Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS AMBICIOSOS
Segunda Parte
Ao chegarem a Los Angeles, Tess só tinha certeza de uma coisa: estava apaixonada por ele. Nunca antes conhecera um homem como Daniel. Na metade do tempo não sabia do que ele estava falando; na maior parte do tempo, não sabia o que ele estava pensando. Daniel vinha de um mundo que ela nunca imaginara que existia. Trabalho organizado e política eram coisas totalmente estranhas para ela. Tudo o que sabia era que uma pessoa arrumava um emprego, começava a trabalhar, recebia um pagamento pelo que fazia. Às vezes mais, às vezes menos, mas, quanto quer que fosse, dava-se um jeito de sobreviver com o dinheiro recebido, dando graças por isso.
A tarde já ia chegando ao fim e a chuva caía quando avançaram pelo Bulevar Hollywood. As luzes dos teatros e das lojas já estavam acesas, projetando um clarão dançante na rua molhada.
— Alguma vez já viu tantas luzes? — perguntou Tess, impressionada, ao passarem pelo novo Grauman's Chinese Theatre.
— Nova York tem mais.
— Não está parecendo muito feliz — disse Tess, virando a cabeça para fitá-lo.
— Estou cansado. É melhor encontrarmos logo um lugar para passarmos a noite.
— Ali há um hotel que parece bom. — Ela apontou para o Hollywood Roosevelt.
— Parece caro demais. É melhor procurarmos fora das ruas principais.
Encontraram finalmente um pequeno hotel perto de La Brea. Custava um dólar a noite, com banheiro incluído. Era uma nova espécie de hotel. E chamavam de motel. Podia-se estacionar o carro bem na frente do quarto.
A primeira coisa que Tess notou, ao entrarem no quarto, foi que tinha uma pequena cozinha, com fogão, pia, geladeira e louça.
— Não gostaria que eu preparasse uns bifes para nós esta noite?
Daniel abriu a valise e tirou a garrafa de uísque. Arrancou a rolha com os dentes e tomou um trago comprido. Largou a garrafa, sem dizer nada.
— Deve estar tão cansado quanto eu de comer em restaurantes — apressou-se Tess em acrescentar. — Além do mais, sou de fato uma boa cozinheira e gostaria de preparar o jantar para você.
Ele tomou outro trago da garrafa, ainda sem falar.
— Vi um armazém no outro quarteirão. Posso ir até lá para comprar tudo o que é necessário. Tome um banho quente e trate de descansar. Guiou demais.
— Tem certeza de que é isso mesmo o que quer?
Tess assentiu. Ele enfiou a mão no bolso e entregou-lhe uma nota de dez dólares, junto com as chaves do carro.
— Aproveite e compre-me outra garrafa de uísque e alguns charutos.
— Isto é por minha conta — disse ela, devolvendo a nota. — Já pagou demais.
Tess saiu rapidamente. Daniel ficou parado onde estava, escutando o motor ser ligado e o carro se afastar. Tomou outro gole de uísque e depois, exausto, começou a se despir. Largou as roupas numa cadeira e foi nu para o banheiro. Abriu a água na banheira. Voltou para o quarto, pegou um charuto no bolso do paletó e o acendeu. Esfregou o rosto, pensativo. Precisava fazer a barba novamente. Pegou a navalha e o sabão de barba na mala. Viu a mala de Tess perto da janela. Foi pegá-la, pôs no estrado de bagagem. Olhou pela janela. A chuva caía forte, fazia com que a tarde parecesse noite. Ficou observando por um momento, depois pegou a garrafa de uísque e voltou para o banheiro.
A banheira estava quase cheia. Daniel puxou uma cadeira, pôs um cinzeiro e a garrafa de uísque em cima e meteu-se na banheira. A água estava quente e pareceu penetrar até os ossos. Ele tomou outro trago, depois ajeitou o charuto na boca, encostou a cabeça na borda da banheira, olhando para o teto.
Califórnia... Só podia estar doido. O que estava fazendo ali, afinal? Não havia nada para fazer ali. Toda a ação estava no leste. Lera no jornal do dia anterior que Lewis e Murray estavam formando um novo Comitê de Organização dos Metalúrgicos. Era lá que deveria estar. Se estivesse lá, estaria bem no meio da ação.
Pegou a garrafa de uísque e tomou outro trago. Largou-a em cima da cadeira e recostou-se, com um suspiro. Devia mesmo estar louco. Por sequer pensar em voltar para o leste. Provavelmente acabaria ficando com a parte pior do trabalho e se arrebentaria todo. Já estava metido nisso há 20 anos. Era mais do que suficiente. Não tivera outra coisa desde que se encontrara pela primeira vez com Phil Murray e Bill Foster, em 1919.
Daniel acabara de dar baixa do Exército e conseguira emprego como guarda na grande fábrica da U. S. Steel em Pittsburgh. Haviam-lhe dado um uniforme estilo militar, um revólver e um cassetete, que ficava pendurado no cinto. Fazia parte de um grupo de 20 homens, comandado por um antigo sargento do Exército, que era extremamente rigoroso e exercia o comando com uma disciplina militar.
Os dois primeiros meses haviam sido fáceis. Daniel nada tinha a fazer além de passar oito horas por dia de pé junto ao portão, observando os operários entrarem e saírem, nas mudanças de turnos. A maioria era constituída de húngaros e polacos ou procedentes de outros lugares da Europa Central, quase não falavam inglês. Pareciam boa gente, cuidando da própria vida, jamais criando qualquer problema, embora quase não sorrissem. E depois, sutilmente, o clima pareceu mudar.
Os operários agora não sorriam em momento algum. E quando olhavam para Daniel, exibiam nos rostos uma expressão de ressentimento soturno. Mesmo no bar que ele costumava freqüentar, depois que terminava seu horário de trabalho, os homens ficavam em silêncio, quando ele entrava para seu drinque. Afastavam-se dele, até que ficava sozinho num pequeno espaço aberto no bar.
Um dia, o dono do bar chamou-o para um canto. Era um italiano pequeno, que falava com um sotaque que podia ser cortado com uma faca.
— Você é um bom rapaz, Danny. Sei disso. Mas faça-me um favor. Não venha mais ao meu bar.
— Mas por que não, Tony? — indagou Daniel, atônito.
— Tem uma encrenca da grossa vindo por aí. E os homens estão começando a ficar nervosos. Acham que você vem aqui para espioná-los.
— Essa não! Como posso espioná-los, se nem sequer entendo o que estão falando?
— Mas faça-me o favor que estou pedindo, Danny. Não venha mais aqui.
Naquela noite, o sargento convocou uma reunião de seus homens.
— Vocês têm levado uma boa vida até agora. Mas muito em breve vão ter de fazer jus ao que estão ganhando. A qualquer momento, os vermelhos e a I.W.W*. vão promover uma greve entre os gringos daqui. Vão tentar fechar as fábricas. E o nosso trabalho é impedir que isso aconteça.
— E como vamos conseguir isso, sargento? — indagou um dos guardas. — Não temos a menor idéia de como se opera a fundição.
— Não seja imbecil — disse o sargento, sarcasticamente. — Eles param de trabalhar e virão outros homens para substituí-los. Os grevistas tentarão impedir que esses outros homens entrem na fábrica. Compete a nós cuidar para que todos aqueles que querem trabalhar possam entrar na fábrica.
— Ou seja, vamos ajudar os fura-greves — comentou Daniel.
O sargento lançou-lhe um olhar furioso.
— Ou seja, estará fazendo o seu trabalho. Para que acha que está ganhando quinze dólares por semana, com casa e comida? Os gringos trabalham doze horas por dia na fundição por menos de dez dólares por semana. E agora estão achando que têm direito a tanto quanto você ganha e até mais. E a maiorias deles nem mesmo consegue falar, ler ou escrever inglês.
Daniel sustentou o olhar furioso do sargento.
— E como vamos fazer com que os fura-greves passem pelos piquetes, se estaremos do lado de dentro dos portões?
— Terão ajuda. E muita ajuda. Há mais de duzentos homens que serão recrutados pelo xerife para ficar fora dos portões, mantendo uma passagem aberta.
— E se isso não for suficiente?
O sargento sorriu.
— Então saímos para ajudar. — Ele tirou o cassetete da cintura e levantou-o. — É espantoso como este nosso amiguinho pode ser persuasivo.
Daniel ficou calado, enquanto o sargento continuava a fitá-lo fixamente.
— Mais alguma pergunta?
Daniel sacudiu a cabeça.
— Não, senhor. Mas...
— Mas o quê?
— Não gosto disso. Já vi o que acontece numa greve. Tivemos problemas assim na minha terra. Nas fábricas, nas minas. Muitas pessoas saíram feridas. Até mesmo pessoas que nada tinham a ver com o que estava acontecendo.
— Ninguém vai-se machucar, se eles cuidarem da própria vida.
Daniel pensou na irmã. Em Jimmy. Respirou fundo e acrescentou:
— Não gosto disso. Fui contratado como guarda para proteger a fábrica. Não para espancar os trabalhadores. Não para ser um fura-greve.
— Se não gosta, então suma daqui! — explodiu o sargento.
Daniel ficou parado em silêncio por um momento, depois acenou a cabeça lentamente. Virou-se e começou a deixar a sala, ainda em silêncio. Foi detido pela voz do sargento:
— Deixe o revólver e o cassetete!
Ainda sem dizer nada, Daniel desafivelou o cinto e colocou o revólver e o cassetete em cima de uma mesa. Encaminhou-se novamente para a porta, acompanhado pela voz do sargento:
— Quero que esteja longe dos alojamentos dentro de quinze minutos. Se ainda estiver lá quando voltarmos, vai aprender uma lição que nunca mais esquecerá.
Daniel abriu a porta e saiu. Antes de a porta se fechar, ouviu o sargento dizendo aos outros:
— Nunca confiei nesse filho da mãe. Recebemos a informação de que ele é um vermelho disfarçado. E agora, se existe mais algum comuna por aqui, que fale logo e saia daqui enquanto pode!
Daniel atravessou o corredor até o quarto ao estilo de alojamento militar que partilhava com cinco outros homens. Tirou depressa o uniforme, dobrou-o meticulosamente e o pôs em cima de sua cama. Apanhou no armário a velha calça e a túnica militar, vestindo-as. Pegou seus poucos pertences, meteu numa mochila de baeta, pendurou-a no ombro e saiu.
Tornou a atravessar o corredor e deixou o prédio. Encaminhou-se em silêncio para os portões. Os guardas de serviço deixaram-no sair sem dizer uma única palavra. Já haviam sido avisados.
Ajeitou a mochila no ombro, atravessou a rua e virou a esquina. Eles saíram de um portal atrás dele. Daniel ouviu os passos e começou a se virar, mas já era tarde demais. Um cassetete acertou-o no lado da cabeça. Ele cambaleou para a frente, caindo de joelhos. Tentando desesperadamente se levantar, Daniel ouviu a voz do sargento gritar:
— Dêem uma lição nesse filho da puta!
Ele golpeou na direção da voz, mas seu punho não encontrou coisa alguma além do ar. O corpo transformou-se numa massa de dor, sob a chuva de golpes desferidos por cassetetes e punhos. Voltou a cair de joelhos, encolhendo o corpo, a fim de proteger-se da melhor forma possível. Botas pesadas começaram a chutá-lo nos lados do corpo e ele rolou para a sarjeta. Tentou mexer-se, mas era impossível. Sentia que tudo por dentro estava doendo terrivelmente. Não lhe restava qualquer força, nem mesmo para revidar os golpes.
Finalmente a agressão cessou. Daniel ficou caído na sarjeta, semi-inconsciente, a cabeça girando. De uma longa distância, ouviu novamente a voz do sargento:
— Isso ensinará ao comuna filho da mãe que não deve meter-se com a gente novamente.
Outro homem falou, com um tom de medo na voz:
— Acho que ele está morto, sargento.
Daniel sentiu o pé do sargento no lado de seu corpo, fazendo-o rolar de costas. Cerrou os olhos, tentando ver alguma coisa. Podia sentir o bafo do sargento em seu rosto, mas não conseguiu focalizá-lo.
— Ele não está morto — assegurou o sargento. — Mas se aparecer por aqui outra vez, vai desejar ter morrido agora.
Daniel sentiu uma dor intensa no lado da cabeça, quando o sargento chutou-o. E depois tudo se apagou. A escuridão perdurou por um longo tempo.
Lentamente, Daniel começou a recuperar os sentidos. Pouco a pouco, o corpo começou a enviar-lhe sinais de dor. Tentou mexer-se depois de algum tempo. Um gemido involuntário escapou-lhe dos lábios. Fez um esforço para desanuviar a cabeça. Conseguiu ficar de joelhos e depois, agarrando-se a um poste, levantou-se. Olhou-se à luz do lampião. A túnica estava rasgada e coberta de sangue, uma das pernas da calça estava igualmente rasgada. Moveu a cabeça lentamente. Suas coisas achavam-se espalhadas pela rua, a mochila aberta e vazia.
Respirou fundo e começou a se mover, bem devagar, cada passo e cada movimento enviando pontadas de dor pelo corpo. Apesar disso, tratou de reunir suas coisas, metendo-as de volta na mochila. E depois parou para recuperar o fôlego.
Olhou para o céu. A Lua estava alta. Deveria ser em torno da meia-noite. Passara pelos portões às oito horas. As janelas das casas estavam às escuras. Voltou lentamente até a esquina e olhou para os portões.
Os guardas ainda se encontravam ali, em sua pequena guarita. Pôde vê-los conversando, pela janela aberta. Sabiam que o sargento estava à espera lá fora quando ele passara, mas nada lhe disseram. Por um momento, Daniel pensou em ir até lá e acertar as contas Mas o pensamento prontamente se desvaneceu. Não estava em condições de acertar coisa alguma. Teria sorte se conseguisse chegar a algum lugar onde pudessem cuidar dele. Tentou levantar a mochila e pendurar no ombro. Mas era demais. Teve de se contentar em arrastá-la.
Foi andando pelas ruas escuras até o bar do Tony. As luzes estavam acesas, embora a porta estivesse trancada. Mas Daniel pôde ver o pequeno italiano fazendo uma limpeza por detrás do balcão. Bateu na porta.
Sem olhar, Tony fez um gesto indicando que já estava fechado para a noite. Daniel tornou a bater na porta, desta vez com mais força.
Tony olhou. Não conseguiu perceber quem estava parado lá fora. Saiu de detrás do balcão e espiou pela janelinha de vidro na porta.
— Estamos fechados... — Ele parou de falar abruptamente, chocado com o que vira. Tirou rapidamente a corrente da porta e abriu-a. — O que aconteceu, Danny?
Daniel cambaleou através da porta. Tony estendeu a mão para ajudá-lo. Arrastando a mochila pelo chão, Daniel foi arriar numa cadeira. Inclinou-se para a frente e pôs a cabeça sobre os braços, em cima de uma mesa. Tony foi rapidamente para trás do balcão e voltou com uma garrafa de uísque e um copo. Encheu-o.
— Beba, Danny. Vai sentir-se melhor.
Daniel teve de segurar o copo com as duas mãos. O uísque queimou-lhe a garganta na descida. Sentiu o calor espalhar-se pelo corpo. Tony tornou a encher o copo e Daniel bebeu novamente. Sentiu que um pouco de força lhe voltava.
— Eu bem que avisei — disse Tony. — Aqueles gringos iam acabar acertando-o, mais cedo ou mais tarde.
— Não foram eles — balbuciou Daniel. — Foi o sargento. Larguei o trabalho esta noite, quando descobri que queriam que eu agisse como um fura-greve. Estavam esperando por mim na esquina quando saí da fábrica.
Tony ficou calado.
— Tem algum lugar onde eu possa lavar-me, Tony?
— Está precisando de um médico.
— Não preciso de médico nenhum. Tenho só de me lavar. E depois tenho uma porção de coisas para fazer. — Estendeu a mão para a garrafa de uísque. — Este é todo o remédio de que preciso.
— Venha comigo. — Tony levou-o para o banheiro nos fundos Era o banheiro particular, não usado pelos fregueses do bar. Acendeu a luz. — Vou buscar uma toalha limpa.
Enquanto ele saía, Daniel contemplou-no espelho. O nariz parecia torto no rosto, achatado inteiramente. As faces estavam rachadas e cortadas, assim como as têmporas. Os olhos começavam a ficar pretos, o queixo já estava inchado, o rosto todo coberto por sangue coagulado.
— Deus do céu — exclamou Daniel, atordoado.
Tony tinha voltado ao banheiro. Sacudiu a cabeça, murmurando:
— Acertaram-no de jeito...
Daniel abriu a água na pia.
— Vão pagar por isso.
Ele tirou a camisa e começou a lavar-se. Quando se empertigou, viu que as costelas e os lados do corpo estavam arroxeados.
Ensaboou rapidamente a parte superior do corpo e limpou-se com uma toalha molhada. Depois, pôs a cabeça debaixo da água fria até que a vertigem passasse. Começou a enxugar-se.
— Deve haver outra camisa e uma calça na mochila.
— Vou buscar.
Tony saiu do banheiro. Daniel tirou a calça, gritando pela porta aberta:
— Pegue também uma cueca limpa.
Havia outras equimoses nas coxas e pernas, mas felizmente não levara qualquer pontapé na virilha. Devia ter sido por causa da maneira como caíra. Não se lembrava de ter feito qualquer coisa para proteger-se.
Limpou o resto do corpo com a toalha molhada e depois enxugou-se. Quando Tony voltou com as roupas, ele estava tomando uísque diretamente da garrafa.
— A mochila está na maior confusão, Danny.
— Derramaram tudo pela rua — disse Daniel, confirmando com a cabeça. — Tive de pegar e meter na mochila de qualquer maneira.
— O que devo fazer com essas coisas? — perguntou Tony, indicando as roupas rasgadas.
— Pode jogar fora. — Não havia outra coisa a fazer com aquelas roupas. Achavam-se além de qualquer possibilidade de conserto. Daniel vestiu-se rapidamente.
— É melhor procurar um médico, Danny. Seu nariz está quebrado e alguns desses cortes podem precisar de pontos.
Daniel virou-se e tornou a contemplar-se no espelho.
— Não está tão ruim assim. O médico nada poderia fazer por meu nariz e os talhos vão curar sozinhos. Já sofri coisas piores quando era garoto.
Tomou outro gole de uísque e voltou para o bar, levando a garrafa. Em silêncio, tornou a arrumar a mochila. Ao terminar, virou-se para Tony:
— Onde fica a sede do sindicato?
— Na Rua Main. Por quê?
— Vou até lá.
— Está doido. Já é uma hora da madrugada. Eles estão fechados. Não tem ninguém lá.
— Então ficarei esperando até que alguém chegue de manhã.
— Por que não fica fora disso tudo, Danny? É um bom sujeito, não deve meter-se com essas coisas.
Daniel fitou-o fixamente.
— Já estou metido, Tony. — Calou-se por um momento, pensando. Em Jimmy, na irmã, a família, as minas. — Talvez sempre estivesse, mas não sabia.
Eram duas horas da madrugada, quando Daniel chegou à esquina da Rua Main com a State. O cartaz na fachada da loja ainda estava iluminado. Associação dos Trabalhadores na Indústria de Ferro, Aço e Estanho. Mas a loja propriamente dita estava escura e deserta. Daniel comprimiu o rosto contra a vitrine, mas não conseguiu avistar nada lá dentro, nem mesmo uma cadeira ou uma mesa. Apenas uma pilha de papel no chão. Passou pela vitrine e foi até a porta. Ali estava pregado um pequeno aviso datilografado. Mudou-se para o 303 do Prédio Magee.
Daniel respirou fundo. O Prédio Magee ficava a mais de três quilômetros de distância, no outro lado da cidade. Olhou para um lado e outro da rua. Todas as janelas estavam às escuras. Não havia qualquer lugar por ali onde pudesse arrumar um quarto ou uma cama, mesmo que desejasse. Daniel abriu a mochila e tirou a garrafa de uísque que Tony lhe dera. Tomou um gole grande, depois tornou a guardar a garrafa na mochila, pendurou-a no ombro e recomeçou a andar.
Eram quase três horas da madrugada quando lá chegou. O prédio estava às escuras e as portas de entrada trancada. Daniel foi para o meio da rua e contemplou o edifício. Havia luzes acesas por detrás de algumas janelas do terceiro andar. Ele voltou à entrada do prédio e encontrou a campainha para chamar o porteiro noturno. Ficou apertando-a até que um negro sonolento apareceu, cerca de 10 minutos depois.
— Será que não pode perceber que o prédio está fechado? — perguntou o negro.
— Tenho negócios a tratar no escritório do sindicato — disse Daniel.
O negro abriu a porta, relutantemente.
— Vocês devem estar ficando doidos. Aparecem a todas as horas do dia e da noite. A gente nem mais consegue descansar.
Daniel fitou-o sem dizer nada, e o negro apressou-se em acrescentar:
— A escada fica à esquerda. Terceiro andar. 303.
Daniel subiu a escada. Estava certo. As luzes que vira da rua eram mesmo da sede do sindicato. Estendeu a mão e girou a maçaneta. A porta se abriu. Não havia ninguém na sala de espera. Passou por outra porta, entrando num corredor. Um murmúrio de vozes chegou a seus ouvidos. O barulho vinha de detrás de uma porta no final do corredor.
Daniel parou diante da porta, largando a mochila no chão. Bateu uma vez, depois abriu a porta. Havia quatro homens sentados em torno de uma mesa, numa sala impregnada com a fumaça de charutos. Todos olharam para ele, aturdidos.
Um dos homens levantou-se bruscamente e avançou para Daniel, numa atitude ameaçadora, os punhos cerrados, pronto para atacar. Daniel olhou para ele, dizendo calmamente:
— Não faça isso. Já me bateram uma vez esta noite e vou matar o próximo homem que tentar.
O homem parou abruptamente.
— Que diabo está querendo aqui? Por que arrombou a porta?
— A porta estava aberta. — Daniel olhou para os outros homens, ainda sentados atrás da mesa. — Vim falar com o chefe deste sindicato. Tenho informações importantes.
O homem que estava sentado no meio, por trás da mesa, disse em voz suave:
— Sou Bill Foster, secretário-executivo do sindicato.
— É o chefe aqui?
Foster olhou para o homem a seu lado, que acenou com a cabeça, esboçando um sorriso no rosto.
— Acho que pode chamar-me assim. Sobre o que me deseja falar?
Daniel foi postar-se diante da mesa.
— Meu nome é Daniel B. Huggins. Até esta noite, era guarda especial trabalhando na Usina 5, da U. S. Steel.
Um dos outros homens fez menção de intervir, mas Foster silenciou-o com um gesto, dizendo suavemente:
— E o que aconteceu?
— Esta noite fomos informados de que se está esperando uma greve e que deveríamos ajudar os fura-greves a passarem pelos piquetes, usando os cassetetes e revólveres, em caso de necessidade. Disseram ainda que não estaríamos sozinhos, que muitos homens haviam sido recrutados pelo xerife e estariam de prontidão para nos ajudar.
A voz de Foster soou mais suave do que nunca.
— Já sabemos disso. O que mais nos pode contar?
— Não sei... Acho que nada — disse Daniel, sacudindo a cabeça. — Desculpe tê-los incomodado. — E se virou e encaminhou para a porta.
— Espere um pouco. — A voz era de um homem acostumado a mandar. Daniel virou-se. Quem havia falado era um homem de rosto fino, nariz quase aristocrático, cabelos pretos e olhos fundos. — Por que nos veio procurar?
— Larguei o emprego e me mandaram pegar minhas coisas e ir embora. Provavelmente não me passaria pela cabeça vir até aqui. Afinal, a luta de vocês não era da minha conta. Mas estavam-me esperando numa esquina, assim que saí da fábrica. E depois disso compreendi que era da minha conta também.
Os homens ficaram em silêncio por algum tempo, todos contemplaram o rosto arrebentado de Daniel. Finalmente, o homem de rosto fino voltou a falar:
— Parece que fizeram um trabalho e tanto em você.
— Não vai ser nada em comparação ao que vai acontecer com aquele sargento, assim que eu puser as mãos nele. No lugar de onde eu venho, não costumamos aceitar coisas assim: virando as costas e esquecendo.
— E de onde você vem?
— Fitchville, senhor.
— Fitchville... — O homem de rosto fino ficou calado por um instante, pensativo. Abruptamente, fixou Daniel atentamente. — Como é mesmo o seu nome?
— Daniel B. Huggins, senhor.
O homem acenou com a cabeça.
— É o rapaz que trabalhava nas minas em Grafton e que...
— Sim, senhor — disse Daniel, rapidamente. — Sou o próprio.
O homem não disse nada por algum tempo, pensando um pouco, antes de indagar:
— Importa-se de ficar esperando lá fora por alguns minutos? Eu gostaria de conversar com meus amigos.
Daniel voltou para o corredor e fechou a porta. O murmúrio de conversas surgiu imediatamente do outro lado. Ele não se deu ao trabalho de tentar escutar o que estavam dizendo. Pegou a garrafa na mochila e tomou outro trago. Apenas um não era suficiente. Ele começava a chegar ao fim de suas forças. Tomou outro trago.
A porta se abriu e o homem que avançara inicialmente em sua direção chamou-o com um gesto. Daniel entrou na sala, ainda segurando a garrafa de uísque. Todos olharam para a garrafa, depois para ele. Daniel explicou:
— É a única coisa que me está mantendo de pé. Se não fosse por isso, eu já teria caído há muito tempo.
O homem de rosto fino falou:
— Meu nome é Philip Murray, da União dos Trabalhadores em Minas, A.F.L. Conversei a seu respeito com o meu amigo aqui, Sr. Foster. Se está mesmo querendo ajudar, acho que ele tem um lugar a lhe oferecer.
— Obrigado, Sr. Murray. — Daniel virou-se, olhando para Foster, que se apressou em dizer:
— Não vai ter o mesmo pagamento que recebia na usina. Não temos tanto dinheiro assim. O melhor que podemos oferecer é oito dólares por semana com casa e comida.
— Está bom para mim. E o que devo exatamente fazer para merecer esse dinheiro?
— Conhece os guardas. Conhece os métodos deles, a maneira como trabalham. Quando a greve começar, irá para os piquetes conosco, dizendo-nos o que temos de fazer para vencê-los.
— Não sei se posso, Sr. Foster. Contudo, pode estar certo de que tentarei. Mas acho que, se não agirem bem depressa, quando finalmente começarem a greve, já terão contra vocês todo o Exército dos Estados Unidos.
Foster fitou-o fixamente e sua voz tornou-se subitamente irritada:
— Sabemos disso perfeitamente. A greve será iniciada amanhã.
Daniel ficou olhando para ele sem dizer nada.
— E agora é melhor você ir para casa e descansar um pouco — disse Murray.
— Não tenho para onde ir. Morava no alojamento da fábrica. — Daniel sentiu que estava começando a oscilar ligeiramente e pôs a mão na mesa para se amparar. Foster levantou-se rapidamente, gesticulando para o homem que primeiro se dirigira a Daniel.
— Há uma cama de lona no quarto ao lado. Ajude-o a deitar-se e providencie para que um médico venha vê-lo amanhã.
— Obrigado — murmurou Daniel, sentindo que o quarto começava a rodar a sua volta. — Obrigado...
Sentiu que a mão do homem pegava-lhe o braço. Conseguiu chegar à cama no quarto ao lado antes de desmaiar. Era o dia 22 de setembro de 1919.
Uma semana depois, mais de 300.000 homens estavam em greve, em mais de oito Estados. Mas a base era Pittsburgh, a sede da maior de todas as companhias, a United States Steel.
No dia seguinte ao início da greve, Elbert Gary, Presidente da U. S. Steel, emitia uma declaração que foi amplamente reproduzida no,s jornais de Pittsburgh e do país inteiro:
Os vermelhos, anarquistas e agitadores seduziram uma parcela dos trabalhadores americanos a abandonar seus empregos, num esforço para desintegrar a indústria do aço e minar a estabilidade política dos Estados Unidos. Felizmente para a América, há homens suficientes que permanecem firmes em seus deveres patrióticos, defendendo o nosso país da invasão dessas víboras. Faço um apelo a todos os trabalhadores que foram iludidos e se juntaram a. essa falsa greve: voltem ao trabalho e dou a minha palavra, como Presidente da U.S. Steel, de que não haverá represálias contra eles e não se fará qualquer discriminação. Mas afirmo também que, em nenhuma circunstância, as companhias siderúrgicas irão curvar-se à ditadura dos anarquistas comunistas estrangeiros. A greve já está perdida, é uma causa fracassada. Voltem ao trabalho e demonstrem o seu patriotismo e a fé em nosso glorioso país.
Dois dias depois, havia anúncios em todos os jornais e cartazes nas paredes de toda a cidade, proclamando essencialmente a mesma mensagem. Sob um desenho de Tio Sam, com o punho cerrado e o braço musculoso nu, a mensagem “Voltem ao trabalho” estava impressa não apenas em inglês, mas também em sete outras línguas, a fim de que todos os trabalhadores pudessem ler.
Todos os dias, Daniel ia postar-se na rua, diante da usina, enquanto os piquetes desfilavam de um lado para outro. A princípio, estava tudo calmo. Os guardas permaneciam no lado de dentro dos portões. A polícia ficava a distância, observando os piquetes, que marchavam silenciosamente diante da usina. De vez em quando, os grevistas levantavam a cabeça para verificar se a fumaça ainda estava saindo das chaminés dos grandes altos-fornos. Ainda saía, rala e cinzenta, significando que os fogos continuavam abafados. Quando o aço estava sendo produzido, a fumaça saía espessa e preta, impregnada de fuligem, que assentava sobre toda a área ao redor.
Já se passara quase uma semana, quando um dos grevistas aproximou-se de Daniel, que estava encostado no prédio da esquina, com um charuto preso entre os dentes, e comentou:
— Acho que vamos vencer. Os altos-fornos não funcionam há uma semana.
Daniel foi até um ponto de onde podia observar o pátio à entrada da usina. Havia mais guardas do que o habitual. O grevista seguiu-o e perguntou:
— O que acha, Danny?
— Não sei... — disse Daniel, pensativo. — Mas tenho a impressão de que alguma coisa vai acontecer. Eles já esperaram por tempo suficiente para ver se voltávamos ao trabalho. E agora terão de entrar em funcionamento de qualquer maneira.
— Mas isso é impossível. Não podem operar os altos-fornos sem a gente.
Daniel não disse mais nada. Não tinha nada a dizer. Apenas pressentia que a situação se estava aproximando do momento decisivo. E que viria muito em breve. Naquela noite, na sede do sindicato, Daniel ficou sentado em silêncio, observando a intensa atividade em derredor. Pelo telefone, chegavam informações de diversos centros em greve, nos diferentes Estados. A situação era a mesma em todos os lugares: estava tudo quieto.
E foi então que houve o telefonema que mudou tudo. Cerca de 400 negros estavam vindo para Pittsburgh, procedentes da Carolina do Sul, num trem que deveria chegar por volta das oito horas da manhã seguinte.
Às seis horas da manhã, os piquetes que haviam mantido vigília durante a noite diante da Usina Nº 5 começaram a crescer. Os trinta e tantos homens deram lugar a seus companheiros, que pouco a pouco foram ocupando as ruas que levavam à usina. Apesar de cansados da longa noite de vigília, havia uma tensão no ar que os impedia de voltarem para suas casas a fim de dormirem. Por volta das oito horas, já havia 400 homens nas linhas de piquetes, que se moviam lentamente de um lado para outro das ruas, passando pelos portões da usina. Às nove horas, concentravam-se mais de 700 grevistas e não havia espaço para se formarem linhas. Havia apenas um sólido paredão de grevistas, estendendo-se da extremidade da rua até os portões da usina. Os homens mexiam-se devagar, praticamente no mesmo lugar, pois não havia espaço para se deslocarem mais.
Daniel achava-se parado na esquina, do outro lado dos portões. Nos degraus de um pequeno prédio, por trás dele, estavam os líderes sindicais, Bill Foster e alguns de seus auxiliares. Daniel subiu os degraus, ficando ao lado deles, a fim de poder ver alguma coisa por cima da cabeça dos grevistas. Por detrás dos portões da usina, o sargento alinhara todos os seus homens, em estilo militar. Havia 10 pelotões, cada um com oito homens, todos com o uniforme de guarda e armados com o cassetete e o revólver. Daniel inclinou-se para Foster e disse:
— Trouxeram quarenta homens extras. Não havia mais de quarenta guardas, quando eu trabalhava na segurança.
Foster meneou a cabeça com uma expressão sombria, os lábios comprimindo tensamente um charuto apagado.
— O sargento vai usá-los como cunhas assim que os portões forem abertos, a fim de abrir caminho para os fura-greves.
— Era o que eu imaginava — murmurou Foster.
— Se aproximarmos os piquetes dos portões, eles não poderão abri-los. Os portões abrem para fora.
Foster fitou-o com uma expressão de surpresa.
— Tem certeza? Ninguém me disse isso.
— Tenho certeza.
Foster sussurrou para um dos seus assistentes:
— Transmita a ordem: os homens devem aproximar-se dos portões.
Alguns minutos depois, a pequena calçada diante dos portões e da cerca encontrava-se atulhada de piquetes, assim como a rua. Daniel viu que o sargento estava aturdido. O sargento virou-se para seus homens e um instante depois todos empunhavam seus cassetetes.
Um homem com o distintivo sindical na lapela dobrou a esquina e abriu caminho até Foster. A voz era gutural, com um sotaque da Europa Central:
— Meteram os fura-greves em oito caminhões. Há cerca de quarenta cossacos a cavalo e uns duzentos homens do xerife na frente deles. O xerife e outro homem, de uniforme, vêm de carro na frente. Devem entrar na rua a qualquer momento.
Quase no instante mesmo em que as palavras saíram de sua boca, várias pessoas começaram a gritar ao final da rua:
— Lá vêm eles! Lá vêm eles!
A massa de grevistas avançou pela rua, afastando-se dos portões.
— Diga-lhes para não saírem dos portões! — gritou Daniel.
Foster ergueu-se, acenando com os braços.
— Fiquem onde estão! Não se afastem dos portões!
Mas já era tarde demais. Os operários em greve, na ansiedade de verificar o que estava acontecendo, já tinham deixado suas posições e se deslocavam pela rua. O primeiro grupo de polícia montada entrou na rua: seis cavaleiros lado a lado. Cada guarda empunhava um cassetete. Tanto grevistas como a polícia pararam e ficaram-se olhando em silêncio. Havia um carro aberto por trás daqueles primeiros guardas.
O xerife e o homem em uniforme do Exército saltaram do carro e passaram pelos guardas montados, para confrontar os grevistas. O xerife tirou um papel do bolso, desdobrou-o e começou a ler, em voz alta, o suficiente para que Foster e os outros a seu lado pudessem ouvir também:
— Esta é uma ordem judicial, assinada pelo Juiz Carter Glass, da Suprema Corte da Pensilvânia, ordenando que os grevistas se dispersem e que deixem os homens que querem trabalhar chegar a seus empregos.
Houve um momento de silêncio. E depois um rugido gutural pareceu elevar-se das gargantas da multidão. As palavras eram ininteligíveis, por causa das muitas línguas faladas ao mesmo tempo, mas o significado era claro. Os homens não estavam absolutamente dispostos a permitir a passagem dos fura-greves. Começaram a avançar ameaçadoramente na direção do xerife. Por um momento, o xerife permaneceu onde estava, anunciando:
— Quem está a meu lado é o General Standish, da Guarda Nacional da Pensilvânia. Ele tem ordens diretas do Governador para acionar a Guarda Nacional da Pensilvânia, se houver algum problema.
— Não haverá problema, se não quiser criar nenhum, Xerife! — gritou uma voz entre os grevistas. — Basta manobrar esses caminhões e mandar os negros de volta ao lugar de onde vieram!
Os grevistas aproveitaram a deixa:
— Mandem os fura-greves de volta ao lugar de onde vieram! Mandem os fura-greves de volta ao lugar de onde vieram!
— Este é o último apelo que faço a vocês — gritou o xerife. — Dispersem-se pacificamente e ninguém sairá machucado!
Como resposta, os grevistas chegaram mais perto do xerife, de braços enlaçados, pondo-se a entoar, enquanto se moviam ritmadamente de um lado para outro:
— Solidariedade para sempre! Solidariedade para sempre!
O xerife tentou gritar mais alto, mas sua voz foi inteiramente abafada. E ele ficou parado onde estava, olhando, furioso, para os grevistas.
Daniel virou-se para Foster. O rosto do líder sindical estava pálido, os lábios contraídos.
— É melhor dizer aos homens para recuarem, Sr. Foster. Aqueles guardas vão passar a cavalo por cima deles.
— Eles não se atreveriam — disse Foster, tensamente. — Isto mostraria ao mundo inteiro o que realmente são, meros instrumentos dos capitalistas.
— Só que isso não vai ajudar os grevistas que eles vão pisotear.
— Mas talvez faça o país despertar e prestar atenção ao que está acontecendo debaixo do seu nariz. — Foster virou-se para os grevistas e gritou: — Fiquem firmes, homens! Solidariedade para sempre! — Ele ergueu o punho cerrado, o braço encurvado, numa saudação comunista.
— Solidariedade! — gritaram os grevistas.
O xerife virou-se e, acompanhado pelo militar, voltou ao carro. Os grevistas puseram-se a rir e escarnecer, pensando que tinham obrigado o xerife a bater em retirada. Um momento depois, os risos se transformaram em pânico e medo.
Sem que houvesse qualquer sinal perceptível, a polícia montada atacou, os cavalos avançando diretamente para cima dos grevistas, os cassetetes sendo brandidos para um lado e outro, atingindo os homens indiscriminadamente. Em menos de um minuto, havia 14 homens caídos na rua, semi-inconscientes e sangrando. Indiferentes, os guardas passaram com seus cavalos por cima deles, avançando para a fileira seguinte de grevistas. Por trás da polícia montada, avançaram dezenas de homens uniformizados, brandindo seus cassetetes. Mais grevistas foram caindo na rua, os gritos de dor e medo elevando-se por cima da confusão. Subitamente, os grevistas romperam sua formação, desatando a correr para os lados e para as outras ruas. Implacavelmente, os guardas foram atrás. Havia agora um caminho livre e desimpedido até os portões.
Daniel viu o sargento dar a ordem e os portões serem abertos. Um momento depois, os guardas da usina saíram por trás dos grevistas que ainda permaneciam em posição, também brandindo cassetetes.
Daniel virou-se para Foster. O líder sindical parecia paralisado, incapaz de qualquer movimento.
— É melhor sairmos logo daqui! — disse Daniel.
Foster não se mexeu. Daniel virou-se para dois assistentes dele gritando:
— É melhor tirarem-no daqui!
Os dois homens agarraram Foster pelos braços e começaram a descer os degraus, arrastando-o pela esquina. Foster se deixava levar, sem qualquer resistência, quase como se estivesse inteiramente aturdido.
Daniel ficou observando, enquanto o primeiro caminhão começava a passar pelos portões da usina. Havia 50 pretos apertados no caminhão, os rostos cinzentos de medo. O sargento saiu para a rua e começou a acenar para que os outros caminhões entrassem logo. Daniel desceu os degraus e avançou rapidamente pelos grevistas dispersos, saindo da multidão logo atrás do sargento. Este sacudia o cassetete, orientando os caminhões. Daniel estendeu a mão e arrancou-lhe o cassetete. O sargento virou-se surpreso.
— Mas que diabo. . .
— Como vai, Sargento? — disse Daniel, sorrindo. E antes que o sargento tivesse tempo de esboçar qualquer reação, Daniel acertou com o cassetete na cara dele. A boca, nariz e queixo do sargento se desmancharam numa massa sangrenta, com os ossos quebrados. O sargento começou a cair. Daniel chutou-o na queda e o sargento foi estatelar-se sob as rodas de um caminhão que passava. Houve um estalo, quase como o de um balão se arrebentando, quando as rodas passaram por cima do peito do sargento, destruindo as costelas e esmigalhando a espinha. Assim que o caminhão passou, Daniel compreendeu que estava olhando para um cadáver. Ainda segurando o cassetete, virou-se e começou a caminhar lentamente na direção de uma rua lateral.
Um assistente do xerife aproximou-se dele, correndo. Viu o cassetete na mão de Daniel e presumiu que fosse um guarda particular.
— O que aconteceu lá atrás?
— Acho que um caminhão acaba de passar por cima de um dos desgraçados — respondeu Daniel, fitando-o.
— Essa não! Já viu alguma vez algo parecido?
— Não.
Daniel continuou a se afastar. Ao entrar numa rua transversal, jogou a cassetete numa sarjeta. Percorreu cinco quarteirões até o bar mais próximo. Pediu uma garrafa de uísque só para si. O bartender perguntou-lhe:
— Sabe como está indo a greve lá na usina?
Daniel serviu-se da terceira dose e disse:
— Que greve? Sou um estranho por aqui.
A tarde já ia chegando ao fim quando Daniel voltou ao escritório do sindicato. Esperava encontrar uma atitude de desespero, depois da derrota ignominiosa daquela manhã. Mas não era esse o clima reinante.
Em vez disso, havia muito excitamento, quase exultação, com Foster e seus assistentes correndo de um telefone para outro, falando rapidamente com os centros de greve de outras cidade. Daniel parou na porta e ficou escutando Foster dizer ao telefone:
— A história está sendo transmitida para o país inteiro pelas, agências noticiosas. E o mundo inteiro saberá amanhã o que aconteceu aqui. Já recebemos ofertas de ajuda de Nova York, Chicago, até mesmo de São Francisco. Estamos planejando uma grande manifestação diante da usina para depois de amanhã. Sidney Hillman virá de Nova York, Lewis e Murray de Washington, Hutchinson dos Carpinteiros. Mãe Jones disse que estaria presente. E Jim Maurer, o Chefe da A.F.L. aqui na Pensilvânia, estará com ela. As companhias siderúrgicas vão descobrir muito em breve que não podemos ser intimidados e o país saberá que todos os trabalhadores estão por trás de nós. E não apenas isso: amanhã, cerca de quarenta voluntários chegarão de Nova York, para ajudar na campanha e providenciar para que os jornais recebam um fluxo constante de notícias a nosso respeito.
Ele fez uma pausa, antes de arrematar:
— Ótimo. Os quinhentos dólares serão uma grande ajuda. Eu sabia que podia contar com você. Obrigado.
Foster desligou e levantou a cabeça, deparando então com Daniel parado na porta. E perguntou, furioso:
— Onde diabo você se meteu? Mandei homens verificar em todos os hospitais para descobrir o que lhe aconteceu!
— Estou aqui agora.
— Deveria ter providenciado para que estivéssemos mais bem preparados para os acontecimentos. Era a sua função.
— Fiz o melhor que pude. Mas não consegui controlar os homens. Não havia qualquer disciplina.
— Disciplina? — A voz de Foster era desdenhosa. — Eles são trabalhadores e não soldados. O que espera deles?
— Nada. Mas gostaria que houvesse uma liderança melhor. Tive a impressão de que os homens estavam sendo usados como instrumentos.
— Está-me acusando de sacrificar aqueles homens deliberadamente? — indagou Foster, alteando a voz, furioso. Daniel manteve a voz calma:
— Não o estou acusando de nada. Estou apenas dizendo qual a minha impressão.
— Onde você estava, quando o chefe dos guardas da usina foi atropelado pelo caminhão? — perguntou Foster, fitando-o nos olhos.
— Por que pergunta? — falou Daniel, sustentando o olhar.
— Alguns homens disseram que o viram perto dele, pouco antes de acontecer.
— Quem disse isso?
— Alguns homens. — Foster mostrou-se deliberadamente vago.
— Pois estão dizendo besteira. Eu estava ocupado a correr pela rua atrás de você. Mas foi rápido demais para mim.
— A polícia vai acabar aparecendo aqui, mais cedo ou mais tarde, à sua procura.
— Pois diga que deve procurar os homens que mandaram os nossos companheiros para o hospital. Neste momento, os guardas montados estão andando de um lado para outro do bairro operário, arrebentando a cabeça dos pobres coitados que encontrarem das esquinas, conversando com os vizinhos. Quando a noite chegar, não haverá um único homem que não estará com medo de sair à rua.
— Como sabe disso?
— Acabei de vir de lá.
— E por que não me ainda disseram nada?
— Todos os seus assistentes estão ocupados demais bancando os Importantes por aqui para saírem a fim de descobrir o que está acontecendo nas ruas.
— Fala como se pensasse que pode fazer melhor do que nós — disse Foster, com uma expressão irritada. — Não acha que está querendo bancar o esperto?
— Talvez eu não seja esperto o bastante. Apenas não sei como se devem fazer essas coisas.
— Pois aceite a minha palavra de que estamos fazendo o que é melhor. — Foster relaxou, recostando-se na cadeira. — Está é uma greve grande. Estende-se por oito Estados. E não vamos ganhá-la ou perdê-la por causa de um incidente isolado numa usina de Pittsburgh. E pode ter certeza de outra coisa: quando se espalhar a notícia do que aconteceu aqui, ficaremos mais fortes do que nunca.
Daniel ficou olhando para Foster, sem dizer nada.
— Vou mandar dois ou três homens acompanhá-lo. Saiam para as ruas e tragam-me relatórios escritos de perseguições policiais específicas. Quero nomes, lugares, hora certa. Vamos despachar essas notícias pelas agências telegráficas ainda esta noite.
— Sim, senhor — respondeu Daniel.
Mas Daniel nunca chegou a escrever qualquer relatório. Passou aquela noite na cadeia, junto com 300 outros grevistas. Os dois homens que Foster despachou em sua companhia logo descobriram boas razões para voltar à sede do sindicato, ao verem guardas montados subirem na calçada para expulsar três fregueses que estavam numa barbearia de imigrantes.
— Vamos precisar de mais ajuda — disse um deles.
Daniel ficou observando, com um profundo desprezo, os dois homens se afastarem rapidamente pela rua. Depois virou-se e entrou na barbearia. Um dos guardas, no processo de arrastar para a rua um operário imigrante, com espuma ainda no rosto, bloqueou a passagem de Daniel.
— Onde, diabo, pensa que está indo?
— Vou fazer a barba e cortar o cabelo — respondeu Daniel. — O que mais um homem vai fazer numa barbearia?
— Espertinho, hem? — rosnou o guarda.
Outro guarda se aproximou dizendo:
— Espere um instante, Sam. Esse homem parece um americano e não um estrangeiro. — Virou-se para Daniel. — Vá procurar uma barbearia em outro lugar. Este bairro não é um lugar seguro para um americano.
— E esses homens não são americanos? — perguntou Daniel.
— São uns malditos comunas estrangeiros. Os mesmos homens que estão criando encrencas lá na usina.
Daniel olhou para o imigrante parado à sua frente, a espuma começando a escorrer pelos lados do rosto.
— É isso o que você é?
O homem fitou-o com uma expressão de que não estava entendendo.
— Está vendo? — disse o guarda. — O filho da puta nem ao menos fala inglês.
— Mas não me parece um homem que esteja criando encrencas na usina. Dá a impressão de ser apenas um pobre coitado que entrou aqui para fazer a barba e cortar o cabelo.
— Que diabo está querendo? Criar encrencas também?
— Nada disso — respondeu Daniel, com uma expressão de inocência. — Estou tentando pôr a coisa em pratos limpos. É uma questão de registro*, pode-se dizer.
— O Record? É repórter desse jornal?
— Estou aqui para tentar descobrir o que está acontecendo.
— Pois trate de voltar a seu maldito jornal e diga para não se meterem no que não é da conta de vocês!
— Ora, seu guarda, será que nunca ouvir falar da liberdade de imprensa? — indagou Daniel, sarcasticamente.
O guarda sacudiu o cassetete diante do rosto de Daniel.
— Pois trate de sair daqui bem depressa ou vou dar-lhe uma amostra desta liberdade.
Daniel fitou o guarda em silêncio por um instante, fixando os olhos deliberadamente no emblema que havia na túnica. E depois disse, recuando pela porta:
— Sim, senhor. Voltarei ao jornal e direi exatamente isso.
— Não viu nada aqui.
— Isso mesmo — murmurou Daniel, ainda recuando. — Não vi nada. E é justamente o que vou dizer no escritório.
Ele percebeu a rápida troca de olhar entre os dois guardas. Moveu-se rapidamente, mas esquecera do terceiro guarda, que estava na rua. Um cassetete acertou-o em cheio na cabeça. Quando recuperou os sentidos, estava na cadeia, metido numa cela grande com cerca de 60 operários imigrantes.
O homem que vira na barbearia estava sentado a seu lado. Daniel virou a cabeça e tentou sentar-se. Um gemido escapou de seus lábios.
O homem virou-se e passou o braço por baixo de seus ombros, ajudando-o a sentar-se, encostado na parede.
— Está bem?
— Estou, sim. — Daniel tateou a parte de trás da cabeça. Tinha um galo ali, do tamanho de um ovo de pata. — Quanto tempo fiquei desmaiado?
O homem ficou impassível. Só então Daniel se lembrou: ele não falava inglês. Olhou ao redor, virando a cabeça lentamente. A maioria dos homens parecia estar dormindo ou tentando dormir. Ninguém estava conversando.
— Que horas são? — perguntou Daniel, fazendo um gesto como se estivesse consultando um relógio.
O homem meneou a cabeça, levantando dois dedos. Duas horas da madrugada. O homem meteu a mão no bolso e tirou um maço de cigarros. Pegou um, partiu-o ao meio cuidadosamente, oferecendo uma metade a Daniel. Acendeu as duas metades com um só fósforo. Daniel deu uma tragada, a fumaça acre ajudando a desanuviar a cabeça. E acrescentou:
— Vão-nos soltar de manhã.
O homem não respondeu, limitando-se a acenar com a cabeça.
— Onde fica o banheiro?
O homem compreendeu a pergunta. Apontou para o outro lado da cela, depois segurou o nariz com dois dedos e sacudiu a cabeça.
Daniel olhou para o outro lado da cela. Havia um banheiro no canto e cerca de 60 homens na cela. Daniel sabia o que o homem estava querendo dizer e não se deu ao trabalho de levantar. Podia esperar. Acabou de fumar sua metade de cigarro, depois se ajeitou contra a parede e cochilou.
Quando tornou a abrir os olhos, a luz do dia estava entrando pela pequena janela da cela. Dois guardas encontravam-se parados junto à porta aberta, gritando:
— Muito bem, seus estranjas safados, vamos saindo logo daqui!
Em silêncio, os homens foram passando pelos guardas, deixando o prédio por uma pequena porta lateral que desembocava numa viela. Os homens se entreolharam por um momento e depois, sem dizer nada, trataram de se dispersar, cada um voltando para sua própria casa. Daniel estendeu a mão para o homem que o ajudara, murmurando:
— Obrigado.
O homem sorriu, apertando-lhe a mão, vigorosamente, enquanto dizia alguma coisa numa língua estrangeira. Daniel não entendeu, mas podia perfeitamente compreender o aperto de mão efusivo e o sorriso do homem. Sorriu também, acrescentando:
— Boa sorte.
O homem sacudiu a cabeça mais uma vez, depois afastou-se pela rua, apressadamente. Daniel seguiu para a sede do sindicato. Passou por um vagão-restaurante e descobriu subitamente que estava com fome. Entrou, sentou-se ao balcão e pediu um café da manhã reforçado. A moça por trás do balcão sorriu-lhe.
— Posso guardar os ovos por alguns minutos, se quiser se lavar primeiro.
— Está certo.
Daniel foi ao lavatório. Só quando se viu no espelho é que compreendeu o motivo para o comentário da moça. Havia uma crosta de sangue numa das faces, nos cabelos, na nuca e no lado do pescoço. Lavou-se rapidamente, enxugando-se na toalha de rolo. Quando saiu, a comida já estava pronta.
— Deve ter sido uma briga e tanto — falou a garçonete, com um sorriso. Daniel sacudiu a cabeça tristemente.
— Nem cheguei a ver o que me acertou.
Ela pôs uma xícara de café fumegante diante dele.
— Não é o que sempre acontece? Ninguém jamais vê.
A sede do sindicato estava apinhada com pessoas que Daniel nunca vira antes. Eram homens e mulheres, espalhados por diversas salas, falando com sotaques refinados do Leste, ocupados a escrever e fazer anotações, dando a impressão de que jamais haviam trabalhado um dia sequer em suas vidas.
Daniel avistou um dos organizadores sindicais que já conhecia e perguntou-lhe:
— Quem é essa gente?
— É a brigada dos voluntários — respondeu o homem, sorrindo. — Sempre aparecem quando acontece alguma coisa que irá parar nas manchetes dos jornais.
— Não dão a impressão ser gente sindical.
— E não são mesmo. Mas está em voga dizer que se apóia as causas liberais. Mostra que não se deixa o dinheiro interferir com o senso de justiça social.
Daniel percebeu o tom de sarcasmo na voz do homem.
— E eles ajudam em alguma coisa?
— Tenho as minhas dúvidas. — O homem deu de ombros. — Mas Foster acha que é importante tê-los por perto. Afinal, eles não apenas vêm pessoalmente, mas também trazem o seu dinheiro. — Meteu a mão no bolso e tirou um cigarro, observando as jovens elegantemente vestidas que passavam de um lado para outro, enquanto o acendia. — Mas não me estou queixando. Todas elas são gostosas e não se recusam a dar em nome da causa. É outra maneira que encontram de manifestar sua solidariedade com a classe operária.
Daniel sorriu, observando uma das moças.
— Já percebi tudo. Foster está na sala dele?
— Deve estar. Estão-se preparando para ir à linha dos piquetes diante da usina, a fim de tirar fotografias. Mãe Jones e Maurer já foram para lá.
Daniel atravessou a corredor até a sala de Foster e entrou. Foster e Phil Murray estavam sozinhos na sala. Foster virou-se para fitá-lo, com uma expressão contrariada.
— Desculpe — disse Daniel, tratando de recuar. — Pensei que estivesse sozinho.
— Pode entrar — disse Phil Murray. — Estávamos justamente falando a seu respeito.
Daniel tornou a avançar para dentro da sala, fechou a porta e ficou esperando.
— A polícia esteve aqui ontem à noite e hoje de manhã à sua procura — informou Foster.
— Deviam ter procurado na cadeia da Rua 5 — disse Daniel, sorrindo. — Passei a noite numa cela de lá.
— Estava sozinho?
Daniel sacudiu a cabeça.
— Havia mais sessenta homens comigo. Os cossacos estavam recolhendo todo mundo que se encontrava nas ruas ontem à noite. Pegaram-me também, quando fui atrás deles, no momento em que expulsavam dois operários imigrantes de uma barbearia.
— Os homens que saíram daqui com você disseram que tinha desaparecido. Afirmaram que não sabiam onde você estava.
— Pois pode acreditar — -comentou Daniel, sarcasticamente. — Eles fugiram como coelhos assustados no momento em que viram os cossacos avançando. E disseram que iam voltar para buscar ajuda.
— Os homens afirmaram que você os tinha deixado por sua própria iniciativa.
Daniel não respondeu.
— A polícia está querendo conversar com você a respeito daquele guarda que morreu. Os jornais estão fazendo o maior estardalhaço por causa disso.
Foster empurrou alguns jornais por cima da mesa. Daniel deu uma olhada na manchetes. Eram o Times e o Herald Tribune, de Nova York, o Star, de Washington, e o Bulletin, de Filadélfia. As manchetes e as notícias eram quase iguais. Uma manchete dizia: “Guarda Morto por Grevistas na Usina Siderúrgica.” A notícia explorava devidamente o fato. Quase ao final, como se fosse algo sem maior importância, estava a informação de que quase 30 grevistas estavam no hospital. Não havia qualquer referência na notícia à maneira como a polícia iniciara o ataque.
— A impressão que se tem é de que foi a morte do homem que iniciou toda a confusão — comentou Daniel.
— A companhia estava torcendo para que acontecesse algo assim — disse Foster. — E tratou de aproveitar a oportunidade.
— Parece-me que eles estavam mais bem preparados do que nós — disse Daniel. — Sob todos os aspectos.
Foster compreendeu a que Daniel estava-se referindo e apressou-se em dizer:
— Mas isso não vai mais acontecer. Dispomos agora da ajuda necessária para divulgar com mais força o nosso lado do acontecimento.
— Será preciso andar muito depressa para alcançar essa versão. Quando divulgar as suas notícias, isto aqui já deve ter-se espalhado pelo país inteiro.
Foster estava visivelmente contrariado. Tirou o relógio do bolso e verificou a hora.
— Está ficando tarde. Os fotógrafos já devem estar com tudo preparado. É melhor partirmos. — Murray levantou-se e Foster tornou a virar-se para Daniel. — Vai encontrar alguns repórteres lá fora. Conte sobre a noite na cadeia. Conversaremos quando eu voltar.
— Não estarei aqui — falou Daniel, fitando-o atentamente.
— E onde estará? — indagou Foster, surpreso.
— Estou indo embora. Não me agrada a idéia de a polícia me agarrar. Tenho o pressentimento de que não posso contar com muita ajuda.
— Se fugir estará admitindo que é culpado.
— Não estou admitindo coisa nenhuma. Apenas não me agrada a idéia de ser pendurado numa cruz entre vocês dois.
Foster permaneceu calado por um momento.
— Está certo. Vá ao caixa e pegue o seu salário até o final da semana.
— Obrigado.
Daniel virou-se para sair da sala. Foi detido pela voz de Murray, que lhe estendia uma chave:
— Esta é a chave do meu quarto no Hotel Penn State. Depois que pegar suas coisas, vá esperar-me lá. Vou de automóvel para Washington esta tarde. Pode ir comigo.
— Obrigado. — Daniel pegou a chave e acrescentou: — Estarei à sua espera.
Passava um pouco das quatro horas da tarde quando o grande Buick preto saiu da cidade, entrando na Rodovia Interestadual 5, com Daniel sentado ao lado de Murray, que estava ao volante. Murray só falou depois de já terem saído da cidade há cerca de meia hora. E não virou a cabeça, mantendo os olhos fixos na estrada.
— Matou aquele guarda?
Daniel respondeu sem a menor hesitação:
— Matei.
— Não foi uma atitude das mais inteligentes. Se a polícia puder atribuir-lhe a culpa, isso nos poderá prejudicar seriamente. Talvez mesmo provocar a derrota da greve.
— A greve já está perdida. Tive certeza disso no instante em que Foster perdeu o controle dos homens. Ele simplesmente ficou paralisado e depois disso não podia fazer nada direito. Por um momento, cheguei a pensar que a greve nada significa para Foster... que ele estava querendo alguma outra coisa.
— Que coisa?
— Não sei. Não conheço o suficiente a respeito de greves e política para ter uma opinião formada. Mas posso perfeitamente perceber quando alguma coisa não é o que deveria ser.
— Acha que aquela luta poderia ter sido evitada?
— Não, senhor. Mas também não havia necessidade de os homens sofrerem tudo aquilo. Se eu estivesse no lugar de Foster, teria descido lá de cima e convencido o xerife a ir devagar. O xerife não parecia muito ansioso em começar qualquer coisa. Ao contrário, dava a impressão de estar procurando algum pretexto para poder recuar. Mas não lhe demos essa oportunidade.
— Acha mesmo que a greve está perdida?
— Tenho certeza, senhor. As companhias estão muito bem organizadas. Pelo que pude descobrir, contam com oito mil homens mobilizados legalmente para reprimir os grevistas. A polícia está percorrendo o bairro dos operários imigrantes, perseguindo-os e prendendo-os. Não vai parar até que a greve esteja terminada. Não posso acreditar que Foster não saiba disso. Mas há mais alguma nessa história que o leva a persistir na greve.
Murray lançou-lhe um olhar rápido.
— Quais são seus planos?
— Ainda não pensei nisso. Talvez percorra o país por algum tempo, arrume um emprego...
— Não gostaria de trabalhar com a U.T.M.?
— Para fazer o quê?
— Começaria por estudar durante dois anos. Iria assim adquirir os conhecimentos necessários para ajudá-la a analisar de maneira mais inteligente os problemas com que se defronta o movimento trabalhista.
— E onde eu iria estudar?
— Na Nova Escola de Pesquisa Social, de Nova York. Acabaria inclusive recebendo um diploma. E pagaríamos tudo.
— Qual é a condição?
— Não é nenhuma. Terá um emprego conosco quando sair. E se não gostar do emprego, poderá deixar-nos quando quiser.
Daniel pensou por um instante.
— Nunca tive muita instrução formal. Acha que poderei fazer esses estudos?
— Creio que sim. Só tem uma lição a aprender antes de começar.
— E qual é?
— O importante no que fazemos é tentar beneficiar os trabalhadores, que confiam em nós. Não nos podemos dar ao luxo pessoal de vingança contra as pessoas que se tornaram nossas inimigas. Os trabalhadores que representamos não merecem isso.
Daniel ficou calado por um momento.
— Ou seja, não se pode fazer o que eu fiz, não é mesmo?
Murray foi claro e objetivo:
— Exatamente. Não poderá mais fazer uma coisas dessas.
— Apesar de tudo, ainda está disposto a assumir um risco comigo. Por quê?
Murray tornou a fitá-lo rapidamente, voltando em seguida a fixar-se na estrada.
— Porque tenho um palpite. Mais do que isso, acho que você possui os instintos certos. Sem saber por que, acertou em cheio em tudo o que disse! Tenho o pressentimento de que algum dia será um homem muito importante no movimento trabalhista. Em algumas coisas, faz-me lembrar de John L. na ocasião em que o conheci. Um homem de coragem e dotado de um conhecimento instintivo.
— Ele é um grande homem — comentou Daniel, respeitosamente. — Acho que nunca poderei ser igual.
— Ninguém pode prever o que vai acontecer. Mas também não precisa ser como ele. Se for apenas você mesmo, talvez possa tornar-se maior do que todos nós.
— Mas ainda não tenho vinte anos.
— Sei disso. Estará com vinte e dois quando sair da escola. É a idade certa para começar.
— Está falando sério?
— Não teria feito a proposta se não estivesse.
— Pois aceito — disse Daniel, estendendo a mão. — E espero não ser um desapontamento.
— Não será — respondeu Murray, apertando-lhe a mão, enquanto a outra continuava a segurar o volante.
— Obrigado.
— Não me agradeça. Basta fazer o melhor que puder. — Murray puxou a mão e tornou a pôr no volante, acrescentando: — Mas que diabo! Está começando a chover!
Isso acontecera há muitos anos. Para ser mais exato, há 17 anos. E agora Daniel estava sentado numa banheira cheia de água quente na Califórnia, fumando um charuto, tomando uísque de uma garrafa em cima de uma cadeira a seu lado, esperando que Tess voltasse do armazém com dois bifes. E lá no Leste estava tudo começando de novo. Uma greve nas usinas siderúrgicas. Mas só que agora era diferente. Lewis conseguira dobrar as grandes companhias no ano anterior. E no momento Phil Murray estava pressionando as companhias menores. A única coisa que perturbava Daniel era o pressentimento de que Murray estava-se encaminhando para o mesmo tipo de desastre em que Foster caíra 17 anos antes.
— Já estamos aqui há quase três meses — disse Tess, acabando de tirar a louça do jantar. — Acho que já é tempo de procurarmos um apartamento.
— Para quê? — indagou Daniel, baixando o jornal. — Estou-me sentindo perfeitamente feliz aqui.
— Pelo dinheiro que estamos pagando neste hotel, poderíamos ter um ótimo apartamento.
Daniel tornou a levantar o jornal e recomeçou a ler, sem responder. Tess sentou-se diante dele e ligou o rádio. Fibber McGee and Molly era o programa no ar. Ela escutou por alguns minutos, depois mudou de estação, impacientemente. Nada parecia interessá-la e acabou desligando o rádio, com um gesto de irritação.
— Daniel... — Ele tornou a baixar o jornal, fitando-a por cima. — Não vai arrumar um emprego?
— Já tenho um emprego.
— Estou falando de um emprego em que trabalhe.
Tess sabia que o cheque dele chegava todas as semanas do Leste.
— Trabalho nisso. Tenho três reuniões esta semana com sindicatos diferentes.
— Isso não é trabalho.
Daniel dobrou o jornal e pôs na mesinha ao lado. Ficou calado.
— Outros homens saem para trabalhar todas as manhãs e voltam para casa à noite. Você não faz isso. Eu é que saio todas as manhãs e volto à noite. E cada dia é a mesma coisa. Deixo-o, sentado nessa poltrona lendo o jornal da manhã e quando volto encontro-o no mesmo lugar, lendo o jornal da tarde. Não é normal.
Daniel pegou a garrafa de uísque e serviu-se de um drinque. Engoliu de um só gole e despejou mais um pouco de uísque no copo.
— Esse é outro problema, Daniel. Bebe uma garrafa de uísque por dia.
— Algum dia já me viu bêbado?
— Não se trata disso. Tanto uísque assim não pode fazer bem.
— Pois estou-me sentindo muito bem.
— Ainda vai acabar doente. Já posso imaginar esse dia.
Daniel tomou a segunda dose de uísque e fitou-a em silêncio por alguns segundos.
— Está bem, vamos logo ao que interessa. O que a está perturbando?
Tess começou a chorar. Tentou falar por diversas vezes, mas em cada ocasião os soluços tornavam-se mais fortes, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Daniel se inclinou, pegou-a nos braços, ajeitou-a em seu colo. Encostou a cabeça dela em seu ombro, afagando-lhe os cabelos gentilmente.
— Fique calma, meu bem. Não há nada que possa ser tão terrível assim.
— Não? — Tess levantou a cabeça, fitando-o através das lágrimas. — Pois saiba que é terrível mesmo! Estou grávida!
Ele manteve a voz serena, sem qualquer vestígio de surpresa!
— E já está com quanto tempo?
— O médico disse que estou entre dez e doze semanas. Não pode ser mais preciso antes do próximo exame.
Daniel ficou em silêncio, por um momento, a mão ainda afagando-lhe a cabeça distraidamente.
— Se ele está certo, então a gravidez já está adiantada demais para um aborto? — Era mais uma declaração do que uma pergunta.
— Foi a primeira coisa que perguntei ao médico. Ele disse que não assumiria o risco. E acrescentou que há médicos em Tijuana que estariam dispostos a tentar, mas não aconselhava.
Daniel fitou-a nos olhos.
— Como foi que não percebeu antes?
Tess sustentou o olhar dele.
— Sempre fui bastante irregular. Há ocasiões em que a menstruação atrasa dois meses. Especialmente nos períodos em que ando trepando demais.
— E temos trepado um bocado.
Tess levantou-se, foi até a cozinha e voltou com um copo. Estendeu-o na direção de Daniel.
— Acho que estou precisando de um drinque.
— Li em algum lugar que beber não é bom para o neném.
— Um drinque pequeno não vai fazer mal algum.
Daniel despejou menos de um dedo de uísque no copo dela e voltou a encher o seu. Levantou-o, batendo de leve no copo de Tess.
— A Daniel Boone Huggins Júnior.
Ela já estava com o copo nos lábios antes de compreender as implicações do que Daniel acabara de falar. A mão parou no meio do movimento.
— Está falando sério?
Daniel assentiu.
— Não precisa fazer isso. Não o estou culpando. A culpa foi minha.
— Ninguém foi culpado. Eu já estava pensando nisso antes mesmo que me falasse.
— Jura? — A voz de Tess estava impregnada de incredulidade.
— Juro. Você é uma ótima mulher. Gente do mesmo tipo que eu. Vamo-nos dar bem juntos.
Tess caiu de joelhos diante dele, pondo a cabeça em seu colo, as lágrimas tornando a aflorar-lhe aos olhos.
— Fiquei com muito medo, Daniel... Eu o amo demais.
Ele levantou-lhe o rosto para fitá-la nos olhos.
— Não havia razão para ficar com medo. Eu também a amo — murmurou Daniel, beijando-a.
Casaram-se na manhã seguinte, perante um juiz de paz, em Santa Mônica.
Era uma casa pequena, numa rua transversal de São Vicente, perto do Bulevar Santa Mônica, em Hollywood. Dois quartos ligados por um banheiro, uma sala de estar e uma cozinha grande, com uma pequena copa. Um caminho de cascalho levava ao abrigo de carro no lado da casa, separando-a da propriedade vizinha. Tanto o quintal da frente como o dos fundos pareciam ter o mesmo tamanho: 10 metros de largura, por toda a extensão da casa, com 8 metros de profundidade.
O corretor de imóveis deixou-os discretamente na sala de estar, a fim de poderem discutir a transação a sós.
— O que acha? — perguntou Daniel.
— A casa me agrada — respondeu Tess. — Especialmente pelo quarto no outro lado do banheiro. Podemos arrumá-lo para o bebê. Posso fazer novas capas para os móveis. E com apenas uma mão de tinta, a casa vai ficar com um ótimo aspecto. O único problema é o custo. O que estão pedindo, mil e quatrocentos dólares, é um bocado de dinheiro.
— Não se esqueça de que está tudo incluído no preço, móveis, o fogão e a geladeira.
— Podemos alugar uma casa como esta por cerca de vinte e cinco dólares por mês.
— Estaríamos gastando trezentos dólares por ano e no final não teríamos nada. Comprando a casa, temos uma vantagem. É como se fosse uma apólice de seguro.
— Quanto será que o banco nos poderia dar pela hipoteca da casa?
— Nenhum banco vai fazer negócios comigo. Eles não gostam muito de líderes sindicais.
Tess fitou-o em silêncio por um minuto, antes de murmurar:
— Ainda tenho aquele dinheiro da venda da minha casa. São quatrocentos dólares. Pode ajudar.
Daniel sorriu:
— Não preciso do seu dinheiro. Posso dar um jeito. Isto é, se você gosta da casa.
— Claro que gosto.
— Pois então deixe-me tentar negociar.
Ele chamou o corretor e começaram a discutir. O negócio foi fechado por 1.275 dólares. Daniel e Tess mudaram-se no fim do mês. Depois disso, levaram pouco mais de um mês para fazerem tudo o que era necessário na casa. Daniel pintou a casa e os móveis, Tess fez cortinas novas e forros, com uma velha máquina de costura que um dos antigos proprietários deixara no sótão.
Daniel estava sentado na sala, lendo o jornal vespertino, como sempre, quando Tess chegou do trabalho. Ele baixou o jornal e fitou-a. Tess achava-se no quinto mês de gravidez, a barriga começando a estufar. O rosto estava vincado, ela parecia exausta.
— Desculpe o atraso, Daniel. Havia muito trabalho e o patrão não me quis deixar sair. Já vou preparar o jantar.
— Não precisa incomodar-se. Tome um bom banho e descanse um pouco. Vou levá-la para jantar fora. Vamos comer num china.
— Não há necessidade, Daniel. Não me importo de fazer o jantar.
Mais tarde, durante o jantar, enquanto comiam o chow mein de galinha, Daniel comentou:
— Acho que já está na hora de você largar o emprego. Não é bom para o Júnior que você passe o dia inteiro de pé.
— Mas o dinheiro vem bem a calhar. Afinal, são doze ou quatorze dólares por semana, o que dá para pagar uma parte das despesas.
— Gasto mais do que isso em uísque e charutos.
Tess não disse nada.
— Além do mais, estou pensando em voltar a trabalhar. Se o fizer, teremos muito mais dinheiro do que atualmente.
— E o que pretende fazer? — indagou ela, surpresa.
— A mesma coisa que sempre fiz: organização sindical.
— Não sabia que se podia trabalhar nisso por aqui.
— Não será aqui, mas sim lá no Leste. Phil Murray telefonou-me pessoalmente. Quer que eu chefie o Comitê Organizador dos Operários Siderúrgicos de Chicago. Vão pagar-me cinqüenta e cinco dólares por semana, mais as despesas.
Havia um tom de desolação na voz de Tess, quando ela disse:
— Mas isso significa que teremos de nos mudar daqui, logo agora que nos estabelecemos. ..
— Não há necessidade. O trabalho não será permanente. Vai durar apenas uns poucos meses, no máximo. E poderei voltar assim que terminar.
— Ficarei sozinha, Daniel. E se chegar o momento do parto antes de sua volta?
Daniel soltou uma risada, declarando, confiantemente:
— Estarei de volta muito antes disso.
— Não seria melhor se você arranjasse algum emprego aqui?
— Sabe perfeitamente o quanto se pode ganhar com os empregos que existem por aqui. Não há nenhum que proporcione sequer a metade do que me ofereceram. E com um bebê a caminho, quanto mais dinheiro ganharmos agora, melhor estaremos. E como vão pagar todas as despesas, podemos guardar todo o salário no banco.
— É isso o que você quer, não é mesmo? — perguntou Tess, fitando-o nos olhos.
— É, sim.
Ela respirou fundo.
— Está certo. Mas vou ficar morrendo de saudade.
Daniel sorriu e inclinou-se por cima da mesa, afagando-lhe o rosto.
— Também vou sentir saudade, Tess. Mas estarei de volta antes do que imagina.
Tess levantou a mão, comprimindo a dele contra seu rosto. Queria acreditar, mas no fundo do coração sabia que seria muito mais tempo do que Daniel imaginava.
— Vai ser perigoso, Daniel?
— Não mais do que todas as outras missões que já tive — respondeu ele, dando de ombros.
— Não quero que nada lhe aconteça.
Daniel apalpou o paletó por baixo do ombro, no lugar em que estava a arma.
— Não se preocupe com isso. Nunca mais vai repetir-se o que aconteceu antes. Tenho um amigo.
Tess tornou a fitá-lo nos olhos.
— Está certo. Mas só lhe peço para não esquecer de uma coisa: também tem uma esposa.
Dois dias depois, Daniel estava na plataforma da estação, preparando-se para embarcar num trem de volta ao Leste. Virou-se para Tess e disse:
— Cuide-se. Faça o que o médico mandar e não saia da dieta. Estarei de volta dentro de seis semanas.
Tess enlaçou-o pelo pescoço.
— Tome cuidado, Daniel. Não quero que nada lhe aconteça até voltarmos a ficar juntos.
— Nada vai acontecer-me. — Beijou-a e acrescentou: — Cuide-se bem.
— Eu o amo, Daniel.
— E eu também a amo.
Ele embarcou no trem. Ficou parado nos degraus, acenando em despedida, enquanto o trem começava a se afastar. Tess jogou-lhe um beijo quando o trem deixou a plataforma, para desaparecer logo depois. Daniel subiu os degraus e pegou a valise, no momento em que um carregador se aproximava.
— Deixe-me ajudá-lo, senhor — disse o carregador, os dentes brancos brilhando num sorriso, tirando a valise da mão de Daniel. — Sua passagem, senhor.
Daniel entregou-lhe a passagem. O carregador deu uma olhada e acenou com a cabeça.
— Queira acompanhar-se, senhor.
Daniel seguiu-o pelo corredor, balançando ligeiramente, enquanto o trem aumentava de velocidade. O carregador verificou novamente a passagem e parou ao lado de um assento quase no meio do vagão. Apontou para o assento e colocou a valise na prateleira por cima, com todo cuidado.
— Pode acomodar-se nas duas poltronas, senhor. O trem não está cheio e vou dar um jeito para ninguém sentar-se a seu lado. Dessa maneira poderá esticar as pernas durante a noite.
— Obrigado — disse Daniel, entregando-lhe uma moeda de meio dólar.
— Obrigado, senhor — reagiu o carregador, com o maior entusiasmo. — Qualquer coisa que quiser pode chamar-me. Meu nome é George.
— O bar está aberto?
— Está, sim, senhor. Fica três carros para trás, logo depois dos vagões-dormitórios. — O carregador começou a se afastar. — Divirta-se na viagem, senhor.
Daniel avistou a moça quando passava pelo segundo vagão-dormitório. Um carregador estava saindo de uma das cabines. Automaticamente, Daniel olhou pela porta aberta. Ela estava parada lá dentro, a mão no botão de cima da blusa. Os olhos dos dois se encontraram por um momento. Depois, a moça exibiu um princípio de sorriso, enquanto fechava a porta com a outra mão. Daniel seguiu em frente.
O bar já estava apinhado. Só restava uma mesa pequena vaga, ao lado da janela, com duas cadeiras. Daniel sentou-se e o garçom se aproximou no mesmo instante.
— Pois não, senhor?
— Quanto custa uma garrafa de bourbon?
— Um dólar e cinqüenta cents a garrafa pequena e dois dólares e sessenta a garrafa grande.
— Traga-me uma grande.
— Pois não, senhor. Com gelo e soda?
— Apenas água. Obrigado.
Daniel estava tomando o segundo drinque quando a moça entrou no carro. Os olhos dela correram ao redor, à procura de uma mesa. Não havia nenhuma vaga. Por um instante, ela pareceu hesitar, como se pensasse em virar as costas e voltar. Mas depois avistou a cadeira vazia à mesa de Daniel e adiantou-se.
— Importa-se de eu me sentar aqui? — Tinha uma voz suave, educada.
— O prazer é todo meu — falou Daniel, levantando-se prontamente. A moça se sentou, enquanto o garçom se aproximava.
— O que está bebendo?
— Bourbon e água. Devo pedir outro copo?
Ela sacudiu a cabeça, dizendo ao garçom:
— Um martíni bem seco. — Virou-se em seguida para Daniel e acrescentou: — Não me agrada a idéia de beber sozinha na cabine.
Daniel sorriu, enquanto a moça estendia a mão.
— Sou Christina Girdler.
O garçom trouxe o martíni. Ela levantou o copo.
— A uma viagem agradável.
Daniel tomou um gole de bourbon.
— A uma viagem realmente agradável, Srta. Girdler.
— Os amigos me chamam de Chris.
— Daniel.
— Estou indo para Chicago. Vim visitar alguns amigos na Califórnia.
— Vou mudar de trem em Chicago e seguir para Pittsburgh. Mas voltarei a Chicago dentro de duas ou três semanas.
— Em que trabalha, Daniel?
— Sou um organizador sindical. Neste momento, estou em missão especial para o Comitê Organizador dos Operários Siderúrgicos do C.I.O.
— O S.W.O.C?
— Já ouviu falar de nós? — Um tom de surpresa transparecia na voz de Daniel. Geralmente as pessoas da classe dela nada sabiam a respeito de sindicatos. A moça soltou uma risadinha.
— Meu Tio Tom teria um ataque, se soubesse que estou sentada aqui conversando com você. Para ele ter uma explosão, basta mencionar o S.W.O.C.
Girdler... O nome se ajustou em seu devido lugar, o Presidente da Republic Steel, na liderança do movimento anti-sindical das companhias siderúrgicas menores. . — Aquele Girdler?
— O próprio. — A moça riu novamente. — Quer que eu deixe a mesa agora?
Daniel riu também.
— De jeito nenhum!
— Mesmo se eu lhe disser que trabalho na divisão de relações públicas da empresa de meu tio e sou uma das pessoas que divulgam as informações anti-sindicais?
— Não tem a menor importância — disse ele, sacudindo a cabeça. — Neste momento, nenhum dos dois está trabalhando.
— Vocês não vão conseguir vencer. Sabe disso, não é?
— Não estou trabalhando.
— Sobre o que então deseja conversar?
— Sobre você.
— Sobre o que a meu respeito?
— Estou de pau duro desde o momento em que se sentou aqui. Quero trepar com você.
Ela prendeu a respiração. O suor brotou subitamente em seu rosto, que ficou ligeiramente corado. Ficou olhando friamente para Daniel.
— Está-se sentindo bem?
Ela passou a língua pelos lábios ressequidos e murmurou:
— Acabei de gozar.
— Isso a deixa com uma à minha frente — falou Daniel, rindo. Ela riu também.
— Posso tomar outro drinque, por favor?
Daniel fez sinal para o garçom. Assim que o martíni foi trazido e o garçom se afastou, ele disse para Chris:
— Vamos jantar primeiro. E depois iremos para sua cabine.
— Por que não a sua?
Daniel tornou a rir.
— Porque não tenho. O pessoal do movimento sindical não se pode dar a esses luxos.
O trem levou quase 40 horas para ir de Los Angeles a Chicago. Durante todo esse tempo, só saíram da cabine para comer. Em Chicago, Chris não o deixou, enquanto ele se preparava para embarcar no trem que o levaria a Pittsburgh, até que Daniel prometeu que lhe telefonaria assim que voltasse à cidade.
Daniel jamais soube como ela descobriu. Mas quando desembarcou do trem em Chicago, duas semanas depois, Chris estava à sua espera. E não o deixou até o momento em que ele se preparou para retornar à Califórnia.
Um dia, quando voltavam de cano para Chicago, vindo de Gary, Indiana, onde Daniel fora efetuar uma pesquisa de campo, Chris pôs a mão no braço dele e disse:
— Eu o amo. E quero casar-me com você.
Ele fitou-a, surpreso.
— Ficou doida.
— Estou falando sério.
— Sabe que sou casado. E que Tess está esperando um filho para menos de um mês.
— Posso esperar que você consiga o divórcio.
— Já esqueceu o quanto eu ganho. Não tenho condições de sustentar Tess e um bebê e ainda por cima ter outra esposa.
— Tenho dinheiro.
— Não, obrigado.
— Não precisa continuar a trabalhar no movimento sindical. Você e Tio Tom iriam dar-se muito bem. Tenho certeza de que ele lhe daria um emprego no momento em que você quisesse. E poderia ganhar muito mais dinheiro do que atualmente.
Daniel tornou a fitá-la atentamente.
— Está tudo indo muito bem entre nós. Por que pressionar e estragar tudo?
— Eu o amo. Jamais conheci um homem que me fizesse sentir as coisas que você me faz sentir.
— Está confundindo amor com sexo. Só porque trepamos maravilhosamente, isso não significa que tenhamos de nos apaixonar.
— Mas eu o amo — insistiu Chris, como uma criança.
— Ótimo. Quero que Você me ame, mas não que se apaixone por mim.
— Você me ama?
— Claro que amo. Mas não estou apaixonado por você.
— Não vejo onde está a diferença. Está apaixonado por sua esposa?
— Não. Mas eu a amo.
— Então não consigo mesmo perceber a diferença.
— Dê algum tempo a si mesma. Vai entender.
Chris ficou calada por algum tempo, mas logo voltou a insistir:
— Se não está apaixonado, por que continua com ela?
— Somos da mesma espécie. A mesma origem, as mesmas idéias. É fácil. Eu nunca me ajustaria à sua sociedade e você não suportaria a minha. E como não existe a menor possibilidade de passarmos o resto da vida na cama, simplesmente não daria certo.
— Está enganado. Você pode ajustar-se muito bem em qualquer lugar. Tio Tom não é diferente de você. Começou do nada e trabalhou duro para subir.
— Nossas filosofias básicas são diferentes. Toda a minha família morreu por causa de homens como o seu Tio Tom. Já conheci pessoas demais sendo destruídas e passando fome por causa de uma coisa chamada política da companhia. E jamais poderia ser parte disso.
— Se fizesse parte, talvez pudesse mudar isso.
— Agora está sendo ingênua e sabe disso. — Daniel soltou uma risada. — O que determina a política da companhia não depende apenas do seu Tio Tom ou de qualquer outro homem isolado. Depende dos bancos, de Wall Street, de uma coisa chamada lucros dos acionistas. E aplicam toda a pressão para que a pessoa siga sua orientação. Se ela se recusa, tratam de arrumar outra para substituí-la. Se seu tio tentasse mudar a política da companhia, não conseguiria agüentar-se no cargo por mais de uma semana. Ele não tem a menor possibilidade de fazer qualquer coisa.. . isto é, se realmente quisesse efetuar mudanças.
— Mesmo assim, continuo querendo casar-me com você.
Daniel tirou a mão do volante e colocou-a sobre a dela.
— Está lindo assim como está, Chris. Vamos continuar desse modo.
A voz dela estava subitamente tensa:
— Quero trepar. Vi a placa informando que há um hotel cerca de quinze quilômetros adiante. Vamos parar lá e passar a noite.
— Mas tenho de estar em Chicago de manhã!
— Não me importa! — disse ela, asperamente. — Quero o seu pau dentro de mim de qualquer maneira!
Daniel fitou-a rapidamente e um momento depois acabou concordando. Ficaram no hotel e ele só chegou a Chicago quase no final da tarde seguinte.
Cinco meses depois, Daniel entrou na sala de Philip Murray, presidente da centrai sindical dos operários siderúrgicos, C.I.O., levando sua valise. Diversos homens estavam reunidos com Murray, mas ele dispensou-os prontamente, ficando a sós com Daniel.
— O que descobriu?
O tom dele era incisivo. Daniel pôs a valise no chão. E também falou incisivamente:
— Não vai gostar do que vou dizer. — Fez uma pausa. — Tem uma garrafa de uísque?
Sem dizer nada, Murray abriu a gaveta do fundo da mesa, tirou uma garrafa de bourbon e um copo, pondo diante de Daniel. Esperou até que Daniel tomasse o primeiro trago e tornasse a encher o copo, antes de dizer:
— Conte-me tudo.
— Passei seis semanas em campo. Visitei quatorze cidades, em oito Estados. E não me agrada o que vi. Estamos sendo atraídos para uma armadilha. Eles estão prontos, à nossa espera. Girdler, da Republic Steel, está com um verdadeiro exército preparado para nos recepcionar. E onde não conta com seu próprio exército, tem a polícia local preparada para fazer o trabalho sujo por ele. Levou a perseguição aos operários e ao pessoal sindicalizado ao máximo possível. E agora está esperando que seja decretada uma greve para poder dar uma lição ao sindicato.
— A situação está tão ruim assim?
Daniel confirmou com a cabeça, tomando outro gole de uísque.
— Talvez pior.
— Como descobriu tanta coisa sobre as ações de Girdler?
— Por intermédio de uma pessoa de sua família.
— Uma mulher?
— Ela trabalha com Girdler — respondeu Daniel.
— E sabe quem você é?
— Sabe.
— Então por que ela lhe iria contar tudo isso?
Daniel não respondeu, tomando mais um pouco de uísque. Murray fitou-o em silêncio por um longo tempo.
— Ela pode ter mentido.
— Não creio. Está querendo casar-se comigo.
— Sabe que você é casado?
Daniel acenou com a cabeça.
— Mas isso não a incomoda. Ela acha que não é problema a pessoa se divorciar.
— E o que você acha?
— Sou um homem casado — disse Daniel, sacudindo a cabeça. — E dentro de uma semana ou pouco mais, serei pai. Não escondi isso. Mas ela diz que pode esperar até que eu esteja pronto para o divórcio.
Murray não fez qualquer comentário e Daniel continuou:
— Falei que teria de ir para casa por ocasião do nascimento do bebê. Estou pensando em partir amanhã.
— Não sei se poderei dispensá-lo neste momento.
— Deu-me sua palavra.
— Tem razão.
— Então vou embora.
Murray ficou outra vez calado. O rosto estava pálido, tenso. Começou a bater na mesa com um lápis. E finalmente murmurou:
— Estou sob uma tremenda pressão para decretar a greve.
— Não faça isso. Lembre-se do que me falou há muito tempo a respeito de Bill Foster. Não comece uma greve a menos que esteja convencido de que pode sair vitorioso. E não tem a menor possibilidade de ganhar desta vez.
— Acredita mesmo nisso?
Daniel acenou afirmativamente.
— Mas que diabo! — Murray quebrou o lápis ao meio com os — Todo mundo está em cima de mim. Lewis entrou em acordo com as grandes companhias siderúrgicas há quase um ano. Estão-me culpando por deixar as outras de fora por tanto tempo. Até mesmo a conquista de novos associados parece estar perdendo o impulso. Os homens querem ação.
— Se eles querem ação, é o que terão. Mas isso não tornará a greve vitoriosa. Só servirá para levar os homens a cadeias e hospitais.
— Reuther já entrou em acordo com a General Motors. Foi uma grande vitória. Estão dizendo agora que também podemos conseguir.
— Mas a Ford ainda está fora — disse Daniel. — E Reuther ainda está muito longe de qualquer perspectiva de vitória neste caso. Lembre-se apenas de que Girdler está tão bem organizado quanto a Ford.
Murray novamente ficou em silêncio por um momento.
— O que acha que devo fazer?
— Qual é a opinião de Lewis?
— Ele não está dizendo nada. Deliberadamente. Está em compasso de espera, como um gato de armazém, esperando que eu faça um movimento. Se vencermos, ele vai aderir ao festival.
— E se perdermos?
— Ele sempre pode dizer que agimos sem consultá-lo — respondeu Murray, dando de ombros.
— E por que não lhe pergunta diretamente?
— Já tentei. Mas sabe como Lewis é. Não há jeito de fazê-lo manifestar-se sobre qualquer coisa quando ele não quer.
A garrafa estava agora pela metade, mas Daniel tornou a encher o copo.
— Procure ganhar tempo.
— Não dá para adiar a decisão por muito tempo — respondeu Murray.
— Apenas duas semanas. A esta altura, já terei voltado da Califórnia. Quero estar em Chicago quando acontecer. Se eu conseguir manter o controle da coisa, talvez não seja tão ruim assim.
— Como pode ter certeza de que voltará a tempo? Há bebês que nascem até com três semanas de atraso.
— Não vai acontecer desta vez. E se eu achar que isso pode acontecer, mandarei o médico fazer uma cesariana. Estarei de volta em meados de março.
— Duas semanas? — indagou Murray, após um momento.
Daniel assentiu.
— Está certo. Mas não poderei resistir por muito mais tempo. Os comunas já estão começando uma campanha para me tirar do cargo.
— Lewis deve ser informado disso.
— Ele já sabe — explicou Murray, irritado. — Mas você conhece a política dele. Não quer saber de nada. Aceita ajuda de qualquer lado, contanto que possa aumentar o número de associados. Foi por isso que deixou-os entrar, depois que Green os recusou na A. F. L.
— Eles estão indo bem com os tecelões?
— Hillman os está inundando com apoio de Nova York — disse Murray. — Vão chegar a um impasse no Sul, mas só daqui a um ano. Neste momento, estão na crista da onda.
— Estarei de volta dentro de duas semanas. — Daniel levantou-se. — Obrigado pelo uísque, chefe.
Murray também se levantou.
— Acredita sinceramente que não temos qualquer possibilidade de vencer esta greve?
— Não temos sequer a chance de uma bola de neve no inferno.
— Espero que tudo corra bem em casa — falou Murray, estendendo a mão.
— Obrigado — disse Daniel, apertando-lhe a mão. — Eu lhe telefonarei assim que acontecer.
Estava nevando quando Daniel saiu do prédio, carregando a valise. Olhou para um lado e outro da rua, à procura de um táxi. Um Chrysler preto estava parado junto ao meio-fio. A porta se abriu subitamente e uma mulher gritou:
— Daniel!
Ele ficou aturdido por um momento, depois encaminhou-se para o carro. Parado sob a neve, abaixou-se para fitá-la.
— Que diabo está fazendo aqui?
— Entre logo no carro. É uma estupidez ficar parado aí embaixo da neve.
Daniel jogou a valise dentro do carro e entrou. A porta se fechou e o carro começou a se afastar.
— Você deveria estar em Chicago.
— Estava-me sentindo entediada lá. — Chris inclinou-se e beijou-o. — Surpreso?
— Como chegou aqui? Não estava no trem.
— Vim de avião. Já há um serviço regular.
— Deixe-me no Chelsea. Preciso dormir um pouco.
— Tenho uma suíte no Mayfair. Vai ficar comigo.
— Já disse que preciso dormir um pouco.
— Vai começar amanhã uma viagem de trem de dois dias. Pode aproveitar para recuperar o sono.
Daniel demorou um pouco para comentar:
— Você está doida. Sabe disso, não é mesmo?
— Estou apaixonada por você. Sabe disso, não é mesmo?
— Preste bem atenção, Chris. Foi realmente sensacional. Mas não adianta insistir. Vivemos em mundos diferentes. Não há a menor possibilidade de podermos viver em comum.
— Posso viver no seu mundo. Não preciso do dinheiro da família.
— E este carro e o Mayfair?
— Podemos largar o carro, pegar um táxi e ir para o Chelsea. Não me importo. A única coisa que me interessa é estar a seu lado.
Daniel sacudiu a cabeça lentamente.
— Não deveria ter vindo, Chris. Se seu tio descobrir, vai haver o diabo.
— Não me importa o que Tio Tom possa pensar ou deixar de pensar. Ele que dirija suas companhias siderúrgicas, mas não queira dizer-me o que devo fazer.
O carro parou diante do hotel. Um porteiro abriu a porta. Inclinou-se e pegou a valise de Daniel, empertigou-se em seguida, enquanto os dois saíam do carro.
— Mande a bagagem para o meu apartamento — disse Chris.
— Pois não, Srta. Girdler.
Daniel entrou no hotel atrás dela. Pegaram o elevador e subiram para o 15º andar. Chris apertou a campainha. Um mordomo abriu a porta.
— Srta. Girdler... — E fez uma reverência.
— Estão mandando uma valise para cá. Deixe-a no quarto de hóspedes.
— Pois não, Srta. Girdler.
— E vou tomar um martíni seco. — Virou-se para Daniel. — O de sempre?
Daniel assentiu.
— E uma garrafa de bourbon para o Sr. Huggins.
— Pois não, Srta. Girdler. — O mordomo fez outra mesura.
— Obrigada, Quincy — disse Chris, seguindo para a sala de estar. Gesticulou para que Daniel se sentasse no sofá. — Fique à vontade. Vamos almoçar daqui a pouco.
Daniel olhou ao redor. Já estivera em muitos hotéis, mas nunca vira nada igual. Era como uma casa particular em pleno hotel. E ele comentou:
— Nada mal...
— É de Tio Tom. Ele mantém este apartamento durante o ano inteiro.
— Não poderia ser de outra forma.
— Ele diz que é mais barato do que tentar conseguir uma suíte toda vez que vem a Washington.
— Mas que homem econômico! Nunca imaginei que ele prestasse qualquer atenção a essas coisas.
— Está sendo sarcástico.
— Claro que não. — Daniel simulou inocência. — Apenas está de acordo com o caráter dele. Afinal, o operário médio dele ganha menos de quinhentos e sessenta dólares por ano, para uma semana de trabalho de sessenta horas. Esta suíte não pode custar muito mais do que isso... por dia.
— Agora, decididamente, não está sendo agradável.
O mordomo trouxe as bebidas numa bandeja de prata, colocando numa mesinha diante do sofá.
— Posso servir, senhor?
— Pode deixar que cuido disso — falou Daniel.
— Obrigado, senhor — murmurou o mordomo, retirando-se em seguida. Daniel encheu o copo e levantou-o na direção do Chris.
— Peço desculpas. Não tenho o direito de falar assim sobre o homem cujo uísque estou bebendo.
— E não se esqueça de outra coisa.
— Qual?
— Também está trepando com a sobrinha predileta dele.
Daniel riu e tomou o uísque.
— Ganhou a discussão.
Chris tomou o martíni de um só gole. Daniel percebeu o vermelho subir pelo rosto dela, enquanto o martíni descia pela garganta. Começou a servir-se de outra dose de uísque, mas Chris estendeu a mão para detê-lo.
— Estou toda molhada. Não quer dar uma trepada antes do almoço?
— Importa-se que eu tome um banho de chuveiro primeiro? Estou fedendo de passar a noite inteira sentado num trem.
— Não faça isso. Adoro o cheiro de suor do seu corpo.
Daniel estava sentado na janela, olhando para fora, enquanto o trem saía lentamente da estação de Pasadena. Mais 40 minutos e estaria em Los Angeles. Os outros passageiros já estavam pegando os seus pertences, preparando-se para desembarcar. Um ferroviário avançou pelo corredor, anunciando:
— Los Angeles é a próxima parada. Los Angeles é a próxima parada.
O sol forte fazia os olhos de Daniel doerem. Ele recostou a cabeça no assento e fechou-os. Já se haviam passado dois meses desde que estivera em casa e vira Tess pela última vez.
Ela estava então no final do sexto mês de gravidez, imensa, a barriga intumescida, os seios parecendo melões maduros e gigantescos, o corpo antes atarracado e firme estava enorme e flácido de tanta gordura, até o rosto achava-se redondo e inchado.
Naquela ocasião, Daniel passara quase cinco dias em casa. Quando comentara que talvez ela devesse procurar o médico, pois estava engordando demais, Tess respondera que isso não tinha importância. Iria emagrecer assim que pudesse deslocar-se novamente. Só engordara porque não tinha nada mais a fazer além de comer e ir ao cinema. Além disso, sentia-se solitária e nem mesmo visitava as poucas amigas que fizera em Los Angeles, porque estava grande demais para se sentar ao volante e guiar para qualquer lugar.
De noite, quando foram para a cama, Tess estendera a mão e descobrira que Daniel estava mole. Depois de um momento, ela comentara:
— O que houve? Geralmente você está duro como pedra.
Daniel não podia explicar que ela não o excitava.
— Estou cansado. Passei cinco semanas trabalhando dia e noite e a viagem de trem me deixou ainda mais cansado. Não consegui arrumar uma cabine, apenas uma poltrona para vir de Chicago até aqui.
— Não pode ser apenas isso. Não o excito por causa de minha aparência.
— Não é isso. Além do mais, tenho receio de machucá-la. E pode afetar o bebê.
— O médico disse que poderíamos continuar a ter relações até o último mês — comentara Tess, ainda afagando-o.
Daniel fizera um esforço para sentir o contato dos dedos dela. Tess sempre conseguira manipulá-lo. Era extremamente hábil ao afagar-lhe o pau e os testículos. E ele sentira logo que endurecia.
Depois de algum tempo, tentara subir em cima dela. Mas a posição era incômoda demais por causa da barriga imensa. Finalmente se postara de lado e a possuíra por trás. Tess começara a gemer e gozara quase que imediatamente. Mas ele não pudera senti-la. Era como se estivesse enfiando o pau num gigantesco barril cheio de óleo quente. Não conseguira chegar ao orgasmo, mas continuara a meter, até que Tess chegara à exaustão de tanto gozar, ofegando como uma cadela no cio. Ela se virará para fitá-lo e o beijara.
— Não sabe o quanto eu precisava de você. Ninguém jamais me fez sentir como você.
Daniel não dissera nada.
— E foi bom para você? — indagara Tess, ansiosamente. — Não o senti gozar.
— E como poderia? Estava tão ocupada a gozar que não poderia sentir mesmo que o teto desabasse.
— Eu o amo.
Tess adormecera quase antes mesmo de terminar de falar. No dia seguinte, ele a acompanhara ao médico. Enquanto Tess se vestia, o médico saíra da sala de exames.
— Sr. Huggins?
— Pois não? — dissera Daniel, levantando-se.
— Não há motivo para se alarmar, mas devo dizer que existe uma boa possibilidade de que o bebê esteja virado.
— E o que isso significa exatamente?
— Se ficar confirmado, talvez tenhamos de recorrer a uma cesariana. Mas não há motivo para se alarmar. Fazemos operações assim odos os dias.
— Se não há motivo para alarme, então por que insiste em me dizer isso?
— Já verificamos que os pais em perspectiva precisam ser constantemente tranqüilizados — dissera o médico, com um sorriso.
— Não se preocupe com isso. Falou que era uma possibilidade. Quando saberá com certeza?
O médico assumira uma atitude professoral.
— Temos um problema. Sua esposa está gorda demais. Vou passar uma receita rigorosa. Até o momento em que o bebê vai nascer, ela deve emagrecer. . . ou pelo menos não engordar mais. Terá de cuidar para que ela se atenha à dieta.
Daniel não respondera. Não havia a menor possibilidade de ele fazer isso, do outro lado do país. Limitara-se a assentir.
— Há mais um outro problema e quero repetir que não é motivo para se preocupar. Constatei que a Sra. Huggins desenvolveu uma ligeira fibrilação cardíaca. Ou seja, uma trepidação do coração. Pode ser o resultado do excesso de peso e creio que o problema ficará resolvido se ela emagrecer, como estou querendo.
— Ainda restam dois meses de gravidez?
— Mais ou menos. Estou calculando em seis a sete semanas. A esta altura, já saberemos a posição exata da criança e estaremos preparados para o que for necessário. Se o bebê estiver numa posição difícil, prefiro realizar a cesariana antes de sua esposa entrar em trabalho de parto.
— Seis semanas?
— Prefiro assim — dissera o médico, acenando com a cabeça. — Mas, por favor, não se sinta alarmado. Não há motivo para isso. O bebê está muito bem e sua esposa desfruta de boa saúde. Não deve haver problema, o que quer que aconteça.
Daniel o fitara atentamente, antes de assentir.
— Obrigado, Doutor.
O médico voltara para a sala de exames e Tess saíra alguns minutos depois.
— O que foi que o médico disse?
— Falou que não havia motivo para ficar alarmado. Você está em boas condições. Precisa emagrecer um pouco e mais nada.
Isso acontecera há quase dois meses e agora o trem levava-o de volta a Los Angeles. Daniel se levantou quando o empregado do trem passou pelo corredor, anunciando:
— Los Angeles, última parada! Desembarquem, por favor!
Pegou a valise na prateleira por cima e saiu para a plataforma, quase antes mesmo de o trem parar. Pedira a Tess que o ficasse esperando em casa. Não queria que ela se visse envolvida pelo tumulto da estação. Ele atravessou rapidamente a estação, até a fila de táxi. Depois de dar o endereço ao motorista, recostou a cabeça no encosto, com um suspiro de cansaço.
— Está chegando do Leste? — perguntou o motorista.
— Estou, sim.
— De Nova York?
— Não. De Pittsburgh.
— Tem muita neve por lá?
— Alguma.
— Não pode ser igual ao tempo daqui. Temos sol o tempo todo. Sempre digo que é o melhor clima do mundo.
Daniel não respondeu. Fechou os olhos, sentindo-se subitamente exausto. Não podia chegar em casa assim. Empertigou-se e bateu no ombro do motorista.
— Pare na primeira loja de bebidas.
Ao sair da loja, com a pequena garrafa de bourbon no bolso, Daniel avistou a florista ao lado. Comprou um buquê de rosas e voltou para o carro. Tirou a rolha da garrafa de uísque com os dentes. Bebeu rapidamente todo o uísque. E quando o carro parou diante de sua casa, já não se sentia mais cansado.
— Você mudou — comentou Tess, quando ele se sentou à mesa para o jantar. — Nem mesmo parece estar escutando quando lhe falo.
— Tenho uma porção de problemas na cabeça. Murray vai decretar uma greve e acho que todos nós vamos dar mal.
— Será que vai ser tão ruim assim para você? — perguntou Tess, pegando o bife dele e servindo-o.
— Não vai ser bom para ninguém.
Daniel cortou a carne e provou. Estava meio passada e suculenta, exatamente como ele gostava. Sorriu para Tess e comentou:
— Não há nada como uma boa comida caseira.
Tess ficou feliz e disse, rindo:
— E que tal uma trepada caseira?
Daniel olhou para a barriga imensa e disse, em tom de brincadeira:
— Basta me informar assim que voltar a entrar em atividade.
— Não vai demorar muito. O médico disse que poderemos voltar a ter relações algumas semanas depois do parto. — Tess se sentou diante dele e começou a comer seu próprio bife, acompanhado de uma porção generosa de purê de batata com um molho gorduroso.
— Como vai sua dieta? — indagou Daniel, observando-a.
— Tive de parar a dieta. Estava ficando nervosa demais. Além disso, algumas amigas me disseram que os médicos estão sempre insistindo para que as mulheres emagreçam só porque isso torna o trabalho deles mais fácil, não porque tenha algum benefício.
Daniel não fez qualquer comentário.
— Mas você emagreceu — disse Tess.
— Estou trabalhando demais.
— Seria maravilhoso se pudesse arrumar algum trabalho perto de casa. Um homem chamado Browne tem telefonado à sua procura. Disse que é do sindicato do cinema, o I. A. ou algo assim. Quer que você o procure.
— Deixou o telefone?
— Deixou, sim. Talvez ele esteja querendo oferecer-lhe um emprego.
— É possível.
— Seria ótimo. Você não precisaria mais voltar ao Leste.
— Tenho de voltar. Dei minha palavra a Murray.
— Mas se vão perder, que diferença isso faz?
— De qualquer forma, dei minha palavra. Além do mais, mesmo que George Browne me oferecesse um emprego, eu não aceitaria. Ele não passa de um escroque ordinário, que recebe ordens dos gângsteres. Há um sujeito chamado Willie Bioff que é quem manda realmente. E Bioff recebe instruções diretamente de Chicago.
— Se isso é verdade, então por que ninguém faz nada? — perguntou Tess, aturdida.
— Não sei. — Daniel deu de ombros. — E não é da minha conta. É um sindicato da A.F.L. Eles é que devem fiscalizar seus filiados. Houve alguma conversa na sede do C.I.O. em vir até aqui para desafiá-los, Mas, neste momento, estamos com problemas demais. Talvez mais tarde, quando já estiverem resolvidos, possamos tentar alguma coisa.
— Mesmo assim, deve conversar com Browne. Talvez a coisa não seja tão ruim quanto está pensando.
— Vou telefonar para ele.
Tess pegou os pratos vazios e colocou-os na pia. — Tenho torta de maçã e sorvete de creme para sobremesa.
— Não vou querer. Comi demais.
— Vou comer só um pouquinho. Nunca me sinto satisfeita, se não como alguma coisa doce depois do jantar. Vai querer café?
Daniel assentiu. Esperou até que Tess pusesse o café à sua frente antes de perguntar:
— Para que horas está marcada a consulta com o médico amanhã?
— Dez horas.
Ele se levantou, foi ao aparador e serviu-se de uma dose de uísque.
— Devia diminuir a bebida, Daniel. Não é bom para o fígado.
— Estou-me sentindo muito bem. — Tomou o uísque, depois se sentou para beber o café, enquanto Tess comia a sobremesa. — Importa-se se eu for deitar cedo? Estou exausto da viagem.
— Não tem problema. Vou limpar tudo e talvez escute um pouco de rádio. A Hora de Rudy Vallee é esta noite, assim como o Teatro Lux. E depois irei para a cama também.
— Está certo.
Daniel foi para o quarto e começou a despir-se. Dobrou a calça meticulosamente no encosto de uma cadeira e pendurou a camisa por cima. Pôs o relógio de pulso e o dinheiro na cômoda, ao lado do vaso com as rosas que trouxera. À luz difusa do quarto, as rosas tinham uma cor suave, vermelha-escura, o perfume pairava no ar. Sentou-se na beira da cama, tirou os sapatos e as meias. Depois, de cueca, estendeu-se na cama.
Lentamente, correu os olhos pelo quarto. Tess estava certa. Mas não fora apenas ele que mudara. Tudo mudara. Ou talvez não. Desde o início que Tess jamais tivera qualquer pretensão de compreender o que ele fazia. E continuava não compreendendo.
E a coisa lhe ocorreu um momento antes de fechar os olhos e cair no sono. Algo que sempre compreendera, mas nunca admitira para si mesmo. Eram estranhos. E sempre seriam.
— Não adianta mais esperar — disse o médico. — Ela não parou de comer e cada dia que passar só servirá para que engorde ainda mais.
— Disse isso a ela? — perguntou Daniel.
O médico acenou com a cabeça, afirmativamente.
— Ela respondeu que não podia evitar, pois não tinha outra coisa a fazer além de ouvir rádio e comer. Sem você em casa, sentia-se entediada.
— E quando pretende fazer a cesariana?
— Amanhã de manhã. Leve-a para o hospital esta noite. Já reservei um quarto semiparticular.
— Ela concordou?
— Concordou. E disse até que se está sentindo melhor, agora que sabe que tudo vai acabar. — Daniel ficou calado e o médico acrescentou: — Não há motivo para se alarmar. Efetuamos cesarianas todos os dias. Muitas mulheres preferem uma cesariana à dor de um parto normal. E depois ela será perfeitamente normal. Poderá ter outros filhos. Nada mudará.
— Não temos alternativa, não é mesmo?
O médico sacudiu a cabeça.
— Receio que não. A posição do bebê é muito difícil.
— Então está certo.
— Minha enfermeira vai entregar-lhe um cartão de admissão para a hospital. Leve-a para lá por volta das cinco horas. E não se preocupe que tudo correrá bem.
O Hospital-Maternidade Sunnyside ficava no Pico Boulevard, perto de Fairfax, um prédio de estuque rosa, de três andares, cercado por um gramado aprazível, com canteiros de flores. Daniel seguiu com o carro para o estacionamento atrás do prédio e foi para a seção reservada a PACIENTES E VISITANTES. Saltaram do carro e Daniel pegou a pequena valise que Tess preparara. Ela parou por um momento, fitando-o, depois que saltou do carro.
— Estou-me sentindo meio esquisita. Nunca antes estive num hospital.
— Pois este hospital está-me parecendo bastante simpático — comentou Daniel, enquanto se encaminhava para a entrada. — É muito diferente dos hospitais em que já estive, todos cinzentos e sujos.
— Mesmo assim, não deixa de ser um hospital.
— Mas é um tipo especial de hospital. Um lugar para os bebês nascerem. Isso o torna melhor.
Tess ficou calada ao entrarem no hospital. As paredes do saguão também eram rosas e havia gravuras agradáveis. A recepcionista, de uniforme branco, sorriu-lhes.
— Bem-vindos a Sunnyside. O escritório de admissão fica no final do corredor.
O escritório era decorado de maneira tão agradável quanto o saguão. Havia diversas mesas, com cadeiras por trás e na frente. Sofás confortáveis estavam encostados nas paredes.
Uma enfermeira entrou no escritório, vindo de uma sala contígua. Sentou-se atrás de uma mesa e gesticulou para que eles se sentassem à sua frente, sorrindo.
— Bem-vindos a Sunnyside. São o Sr. e Sra. Huggins?
— Exatamente — respondeu Daniel.
— Estávamos à espera. Já reservamos um bom quarto. Mas, primeiro, é necessário preencher alguns formulários.
O que levou cerca de 20 minutos. Depois de preenchidos os formulários, a enfermeira pediu licença e foi para a sala ao lado. Voltou poucos minutos depois.
— Parece que está tudo em ordem — disse ela, empurrando diversos papéis por cima da mesa na direção deles. — Podem agora assinar esses papéis. São formulários padronizados de consentimento, dando-nos permissão para cuidar da Sra. Huggins e fazer tudo o que for necessário para assegurar seu bem-estar.
Os dois assinaram rapidamente. A enfermeira recolheu os papéis e verificou as assinaturas, depois meteu-os na pasta em que já tinha guardado os outros formulários.
— Só mais uma coisa, Sr. Huggins. É necessário efetuar um depósito adiantado de duzentos dólares. Essa quantia cobre o aluguel do quarto por oito dias, uso da sala de operações, anestesista e outros serviços do hospital. É claro que receberá uma prestação de contas quando sua esposa deixar o hospital e qualquer restituição que houver será feita imediatamente.
Daniel tirou a carteira do bolso. Contou 200 dólares, em notas de 20. A enfermeira também contou o dinheiro, depois meteu-o na pasta e apertou um botão em cima da mesa.
— Uma enfermeira já vai descer para levá-la ao quarto. __
Ela fitou-os, sorrindo. — O que vai ser? Menino ou menina?
— Daniel acha que vai ser menino — disse Tess.
— Mas tenho certeza de que ele não vai reclamar se for uma menina.
As duas riram, no momento em que outra enfermeira entrava na sala, empurrando uma cadeira de rodas. Tess olhou para a cadeira de rodas e declarou:
— Não há necessidade disso. Posso andar.
— São as regras do hospital, Sra. Huggins — disse a enfermeira da admissão. — É agora nossa paciente e somos responsáveis por seu bem-estar. Alguns desses pisos são escorregadios.
Meio constrangida, Tess sentou-se na cadeira de rodas.
— Daniel pode ir comigo?
— Claro que pode. — A enfermeira que cuidara da admissão sorriu novamente quando eles se encaminharam para a porta, Daniel segurando a valise, atrás da cadeira de rodas. — Boa sorte. E espero que seja mesmo um menino.
Subiram no elevador para o segundo andar. A enfermeira parou no corredor diante do quarto e virou-se para Daniel.
— Há uma sala de espera no final do corredor. Se nos quiser dar alguns minutos, eu o chamarei assim que tivermos ajeitado a Sra. Huggins.
Daniel fez que sim e a enfermeira entrou com Tess no quarto. Ele seguiu pelo corredor até a sala de espera. Havia três homens lá. Dois jogavam cartas, enquanto o terceiro estava arriado numa cadeira, com uma expressão cansada e entediada no rosto. Os jogadores de cartas nem sequer levantaram a cabeça.
Daniel se sentou. Sentia vontade de fumar um charuto, mas decidiu não fazê-lo. A enfermeira dissera que o chamaria dentro de alguns minutos e além do mais havia cartazes de É PROIBIDO FUMAR nas paredes.
Depois de um momento, o terceiro homem aprumou-se em sua cadeira e olhou para Daniel.
— Acaba de trazer sua esposa?
Daniel assentiu.
— Estou aqui desde ontem à noite. Espero que tenha melhor sorte.
Daniel não respondeu.
— Os médicos são uns desgraçados — continuou o homem. — Toda vez me dizem que será apenas algumas horas e toda vez acabo passando dois dias aqui.
— Já esteve aqui antes? — perguntou Daniel.
— Três vezes — respondeu o homem, com uma expressão contrariada. — Esse é o quarto filho. Devo gostar muito de ser punido. Mas garanto que este será o último.
Um dos jogadores de cartas soltou uma risada rouca.
— Somente se cortarem o seu pau antes.
— Não enche! — disse o homem, olhando em seguida para Daniel. — Quando o médico disse que seu filho vai nascer?
— Amanhã de manhã.
— Parece estar muito certo.
— Ela vai fazer uma cesariana — disse Daniel.
O homem ficou aturdido.
— Ei, por que não pensei nisso antes? Posso poupar três dias de hospital dessa forma. Vou conversar com o médico.
A enfermeira apareceu na porta.
— Pode ver sua esposa agora, Sr. Huggins.
Tess estava sentada na cama, usando um robe de seda, quando ele entrou no quarto. Achava-se na cama ao lado da janela; a outra cama do quarto estava desocupada. Daniel atravessou o quarto e beijou-a.
— Parece estar bastante confortável. Tess sorriu.
— Elas são muito simpáticas. — Soltando uma risadinha meio envergonhada, acrescentou: — Mandaram eu fazer pipi num vidro. E olhe aqui. . . — Tess levantou o braço. Havia um esparadrapo branco na dobra do cotovelo. — E também me tiraram sangue. Mas não doeu nada.
Daniel limitou-se a acenar com a cabeça, sem fazer qualquer comentário.
— Não vão-me deixar jantar. Disseram que me precisam deixar limpar. O estômago deve estar vazio.
— É isso mesmo, Sra. Huggins — disse a enfermeira, entrando no quarto. — E vamos começar a trabalhar agora mesmo. — Ela abriu um armário ao lado da cama e tirou um clister e a mangueira, olhando em seguida para Daniel. — Terá de se retirar agora, Sr. Huggins. Vamos querer que sua esposa durma depois, a fim de que esteja forte e descansada pela manhã.
Um tom de medo se insinuou na voz de Tess:
— Quer dizer que só voltarei a vê-lo depois?
— Claro que não. — A enfermeira sorriu. — Poderá vê-lo pela manhã, antes de subir para a sala de operação. Mas agora é mais importante que descanse. — Ela olhou para Daniel. — Se chegar aqui às sete horas, terá tempo suficiente.
— Estarei aqui. — Daniel inclinou-se e beijou Tess. — Seja uma boa menina e faça o que lhe mandarem. Eu a verei de manhã.
— Não vai atrasar-se? — perguntou Tess, ansiosamente. — É melhor ligar o despertador.
— Pode deixar. Não precisa preocupar-se. Tudo vai correr bem.
O telefone estava tocando, quando ele abriu a porta da frente. Deixando a porta aberta, Daniel foi até a sala e atendeu.
— Alô?
— Sr. Huggins? — Era uma voz de homem.
— Pois não. ..
— Aqui é George Browne.
— O que deseja, Sr. Browne?
— Sua esposa disse que eu tinha telefonado?
— Disse, sim.
— Gostaria de falar-lhe.
— Foi o que Tess me disse.
— Mas não me procurou.
— Acabo de voltar do hospital. Minha esposa vai ter um filho.
— Espero que tudo corra bem.
— Obrigado.
— Quando nos poderemos encontrar?
— Talvez depois que o bebê nascer.
— É muito importante. Espere um instante. — Daniel ouviu-o falar com alguém no outro lado da linha. Depois Browne disse ao telefone: — Tem algum plano para o jantar esta noite?
Daniel correu os olhos pela casa. Estava depressivamente vazia.
— Não.
— Ótimo. Conhece o Lucey's, na Melrose.
— Posso encontrar.
— Mandarei um carro buscá-lo.
— Tenho um carro.
— Dentro de uma hora. Está bem assim?
— Estarei lá.
— Basta perguntar pela minha mesa. Estarei à sua espera.
Daniel desligou o telefone e foi fechar a porta da frente. O telefone recomeçou a tocar.
Era Chris. A voz dela estava abafada, com se não quisesse ser ouvida além do bocal.
— Eu tinha de ligar para você.
— Não há problema.
— Se sua esposa atendesse, eu desligaria imediatamente.
— Ela está no hospital.
— Está passando bem?
— Está, sim.
— Fico contente por isso. Oh, Deus!
— O que houve?
— Não posso nem falar com você pelo telefone sem ficar toda molhada.
— Isso de nada lhe vai adiantar aí em Chicago — disse Daniel, rindo.
— Não estou em Chicago.
— E onde, diabo, você está? — perguntou Daniel, sabendo qual seria a resposta, antes mesmo que ela falasse.
— Aqui em Los Angeles. No Hotel Ambassador, no Bulevar Walshire. Arrumei um bangalô.
— Você está doida.
— Não estou, não. Você é que está, se pensa que eu ia deixá-lo sozinho durante uma semana inteira, enquanto sua esposa está no hospital, com todas essas mulheres do cinema dando sopa por aqui.
— Nunca vi nenhuma.
— Mas não pretendo correr qualquer risco. Onde vai jantar? Tenho um lugar maravilhoso aqui, com sala de jantar e tudo o mais.
— Tenho um compromisso.
— Não acredito.
— Mas é verdade. Vou jantar com George Browne, presidente do sindicato do pessoal do cinema.
— Pois venha depois do jantar.
— Não vai ser possível. Tenho de estar no hospital às sete horas da manhã.
— Acordarei você a tempo.
— Não.
— Vou passar a noite inteira me bolinando e acabarei doida.
— Pense em mim — falou Daniel, rindo novamente.
A voz de Chris tornou-se subitamente séria.
— Sua voz parece diferente, Daniel. Está-se sentindo bem?
— Estou ótimo.
— Então qual é o problema? Está preocupado com Tess?
— Estou. Vão fazer uma cesariana amanhã de manhã.
Chris ficou calada por um momento.
— Não precisa ficar preocupado, Daniel. Minha irmã já teve dois bebês assim. Disse que é muito mais fácil do que o parto normal. E ela está ótima.
— Estarei tranqüilo, quando tudo acabar.
— Tenho certeza de que tudo vai correr bem. Vai-me telefonar depois?
— Vou, sim.
— Boa noite, Daniel. — Ela hesitou por um instante.— Sabe que falo com toda sinceridade, não é mesmo?
— Claro que sei.
— Eu o amo, Daniel.
Ele ficou calado.
— Daniel. . .
— O que é?
— Ligue-me amanhã.
— Está certo.
Daniel desligou e foi até a copa, pegando a garrafa de bourbon no aparador. Serviu-se de uma dose e bebeu lentamente, pensando. Chris estava doida, mas havia uma coisa que podia fazer com ela que jamais conseguira com outra mulher. Podia conversar.
Esfregou o queixo, pensativo. A barba por fazer arranhou-lhe os dedos. Levando o uísque, foi para o quarto e começou a se despir. No banheiro, contemplou seu rosto no espelho.
Estava com 37 anos e prestes a ser pai. E o fato de se tornar pai mudava as coisas. Já se descobrira pensando mais no futuro. Sobre seu destino, para onde estava indo, o que estava fazendo. Não seria fácil criar um filho com o dinheiro que costumava ganhar, com o seu tipo de trabalho. Mais cedo ou mais tarde, teria de convencer Murray a entregar-lhe o comando de algum sindicato local. Seria pelo menos uma base para se desenvolver. Era o que todos faziam, Lewis, Murray, Green. Até mesmo Browne tinha ali uma base de onde podia partir. E acabara de ser escolhido para se tornar um dos vice-presidentes da A.F.L.
Além do mais, não era bom para um garoto crescer sem a presença do pai. Talvez Tess estivesse certa. Se Browne apresentasse uma proposta certa, ele deveria aceitar. Não podia deixar de ser melhor do que ficar se desgastando à toa como vinha fazendo.
Ou poderia fazer o que Chris sugerira. Pular a cerca para o outro lado. Muitos líderes sindicais tinham feito justamente isso e estavam ganhando um bom dinheiro. Daniel terminou de fazer a barba, ainda pensando. Lavou o resto do sabão que tinha no rosto, usando um pouco de talco para esconder a mancha azulada da barba que sempre aparecia. Vestiu a camisa, ainda pensando, ainda indeciso.
Enquanto o maitre levava-o para a mesa do canto, nos fundos do restaurante, Daniel se perguntou por que tantos fregueses sentados à mesa lhe pareciam familiares. E logo compreendeu o motivo. Muitos eram artistas de cinema e já os vira diversas vezes na tela. Havia alguns que podia até reconhecer. Lá estava Joel McCrea numa das mesas, enquanto Loretta Young se sentava à outra. Os outros eram familiares, mas não podia recordar os nomes.
Dois homens estavam sentados à mesa, levantando-se assim que Daniel se aproximou. O maior, ligeiramente calvo, estendeu a mão.
— Sou George Browne. E esse é Willie Bioff, meu vice-presidente executivo.
Depois dos apertos de mão e quando se sentaram, Browne fitou-o atentamente.
— Ouvi dizer que é um homem que gosta muito de beber. Isso é verdade?
— Jamais recusei um drinque.
— Sou um bebedor de cerveja. Por causa da minha úlcera. Não posso beber nada mais forte. Pode pedir o que quiser.
— Obrigado. — Daniel olhou para o maitre, que ainda estava parado ao lado da mesa. — Jack Daniels, por favor.
— Simples ou duplo, senhor?
— Nenhum dos dois. Quero uma garrafa. E traga também água. Nada de gelo.
Browne estava impressionado.
— Se o resto que ouvi a seu respeito é tão verdadeiro quanto isso, então é um homem e tanto.
— E o que mais ouviu?
— Que é o melhor organizador de que Murray dispõe. Que ele o mantém em constante movimento, transferindo-o de um local difícil para outro, constituindo e reorganizando os sindicatos locais. E que é tão responsável quanto qualquer outra pessoa pelo sucesso da campanha de recrutamento de S.W.O.C.
— Não é verdade. Temos ótimos homens por toda parte. Apenas ajudo a coordenar os esforços de todos.
— E ouvi dizer também que tem o maior sucesso com as mulheres.
O maitre voltou com o uísque. Daniel não respondeu imediatamente, esperando que o servissem. Depois, levantou o copo.
— A nós — disse ele, tomando o uísque de um só gole e imediatamente servindo-se de outra dose. E acrescentou, sorrindo: — Também ouvi falar muito a seu respeito e do seu amigo aqui presente.
— E o que lhe disseram? — perguntou Browne.
— Que vocês dois estão tomando dinheiro de todo mundo. Que mandam a metade para os rapazes de Chicago. E que seriam capazes de vender a própria avó por um níquel. — Daniel ainda estava sorrindo.
— Mas que diabo... — Browne estava furioso, mas não continuou, detido pela mão de Bioff em seu braço. E foi justamente este quem disse:
— Não ouviu falar também que nossos associados estão recebendo os salários mais altos e outros benefícios como nunca antes tiveram em suas vidas?
— Ouvi, sim.
— E por que não fez qualquer referência a isso?
Daniel tomou um gole do uísque.
— Imaginei que não haveria necessidade. Você próprio se encarregaria de falar. — Terminou o drinque e serviu-se de outro. — E agora que acabamos com os cumprimentos, talvez possam explicar por que me queriam falar.
— Vamos pedir a comida primeiro — disse Bioff. — O espaguete daqui é delicioso.
— Vou comer um bife — disse Daniel.
Comeram rapidamente, quase em silêncio. Daniel limpou o prato, enquanto os outros dois se limitavam a provar a comida. Ao final, depois que o garçom trouxe o café, Daniel tirou um charuto do bolso.
— Importam-se que eu fume?
Eles não fizeram qualquer objeção. Daniel acendeu o charuto e recostou-se na cadeira.
— Foi um esplêndido jantar. Geralmente não freqüento restaurantes de luxo como este. Faço a maioria das refeições em pensões e restaurantes de operários. Obrigado.
Bioff olhou para Browne.
— Incomoda-se se eu falar?
— Pode falar — disse Browne, acenando com a cabeça.
Bioff virou-se para Daniel.
— Há cerca de sete mil pessoas trabalhando na indústria cinematográfica. Em torno de três mil estão aqui, nos estúdios, o resto acha-se espalhado pelos postos de distribuição de todo o país e nos escritórios centrais de Nova York. Estamos começando a alistar esse pessoal num sindicato, mas temos ainda muito preconceito a superar, uma parcela considerável provindo dos próprios trabalhadores. Eles acham que estão acima dessas coisas, pois muitos trabalham em escritórios. Não querem ser confundidos com operários. As companhias sabem disso e tratam de encorajá-los. Já conseguimos alguma coisa, mas o avanço é bastante lento. Soubemos agora que o Distrito 65 está querendo entrar aqui e tem muito dinheiro para investir. Eles já controlam o sindicato dos publicistas do cinema em Nova York. Mas é uma operação comuna e podemos dominá-la. Não queremos é que continuem avançando.
— Por que não recorrem à mesma coisa que já fizeram antes? Podem pressionar os cinemas, que obrigarão as companhias a ficarem com vocês.
— Não podemos fazer isso — respondeu Bioff. — Em primeiro lugar, porque temos contratos que não podemos deixar de respeitar e não queremos pôr em risco a situação de nossos associados. Em segundo lugar, porque ainda não contamos com associados em quantidade suficiente, se nos levarem a uma investigação da Comissão Federal de Organizações Sindicais.
Daniel continuou calado.
— Tem uma excelente reputação. Sempre foi um homem de Lewis e Murray. Sabe como o C.I.O. e o Distrito 65 operam. Se se aliar a nós, tenho certeza de que podemos reunir toda a indústria.
— E o que exatamente está-me oferecendo? — indagou Daniel.
— A presidência da Federação Nacional dos Trabalhadores na Indústria Cinematográfica, filiada à A.F.L. Para começar, o salário é de quinze mil dólares por ano, mais as despesas.
— Sabe quanto estou ganhando atualmente? — indagou Daniel, fitando Bioff nos olhos.
— Seis mil por ano.
— Isso mesmo. — Daniel serviu-se de mais uísque. — Gostaria de aceitar o dinheiro que me oferecem. Mas sou o homem errado para a função. — Fez uma pausa, tomando todo o drinque. — Estão tentando comprar-me pelas razões erradas. Porque sou do C. I.O. e tenho uma boa reputação. O que estão esquecendo é que tenho essa reputação porque venho trabalhando com homens iguais a mim. São os operários imigrantes, polacos e húngaros, são os montanheses, as pessoas com quem sempre convivi. Falo a linguagem deles, podem entender-me. Mas no meio de pessoas que trabalham em escritório, eu seria como um peixe fora d’água. — Daniel esvaziou o resto da garrafa de uísque no copo. — Não iriam entender o que eu lhes diria, assim como eu também não os entenderia.
— Acha mesmo que não pensamos nisso? — perguntou Bioff. — Mas sabemos também que você possui inteligência suficiente para aprender. Qualquer um que consegue ser o primeiro da turma naquela escola trabalhista lá de Nova York não pode ser tão simplório como está querendo parecer. Acho que está cometendo um erro.
— Não é o que penso.
— E se elevássemos a proposta para vinte mil dólares anuais?
— Não faria a menor diferença. O melhor é encontrar um homem da sua própria organização para o cargo. Alguém que possa impor respeito. Ele se sairia muito melhor do que eu.
— Não vamos aceitar sua resposta como definitiva — insistiu Bioff. — Por que não pensa um pouco na proposta? Amanhã, depois que se tornar pai e tiver meditado sobre as vantagens que poderá oferecer à sua família com um trabalho assim, talvez mude de idéia.
— Duvido muito. — Daniel levantou-se. — Mais uma vez, senhores, obrigado pelo uísque.
Bioff fitou-o nos olhos.
— Há ocasiões em que se pode ser esperto demais.
— Concordo plenamente. Mas nunca se pode ser honesto demais.
Tess parecia estar dormindo, quando Daniel entrou no quarto. A enfermeira virou-se, encostando um dedo nos lábios, a fim de que ele não falasse.
— Vamos dar um sedativo para ela relaxar — explicou a enfermeira, num sussurro. — Ela ficará sonolenta.
Daniel acenou com a cabeça para indicar que compreendia, puxou uma cadeira para perto da cama e se sentou. O rosto de Tess estava estranhamente infantil e vulnerável no sono. Respirava lentamente, o lençol que a cobria subindo e descendo. Daniel olhou pela janela. O céu estava azul e o sol forte projetava uma claridade dourada no interior do quarto.
Sentiu mais do que viu Tess se mexer e fitou-a. Ela estava com os olhos abertos, fixados nele. Tornou a fechá-los um momento depois, sem dizer nada. Mas a mão se, arrastou por cima do lençol na direção dele. Daniel pegou-a. A mão de Tess fechou-se firmemente em torno de seus dedos.
Passaram uns cinco minutos até que ela murmurou, ainda com os olhos fechados:
— Estou com medo.
— Não precisa ter medo — disse Daniel, suavemente. — Tudo vai correr bem.
— Tenho dificuldade em respirar. E de vez em quando sinto uma pontada de dor no peito.
— Trate de relaxar. Os seus nervos é que estão provocando tudo isso.
Ela apertou-lhe a mão.
— Fico contente que você esteja aqui.
— Também estou.
A enfermeira saiu do quarto e eles ficaram em silêncio por algum tempo. Subitamente, Tess abriu os olhos e fitou-o.
— Desculpe. . .
— Não há motivo para se desculpar.
— Menti para você. Sabia que estava grávida seis semanas antes de lhe contar.
— Não tem importância agora.
Tess tornou a fechar os olhos e descansou por um momento.
— Achei que se estava preparando para me deixar e não queria que isso acontecesse.
— Eu não pretendia deixá-la. Mas tudo isso pertence ao passado. É melhor esquecer.
— Não queria ter o bebê sem lhe contar a verdade. — Fez uma pausa. — Se me acontecer alguma coisa lá em cima, queria que soubesse que o amava tanto que não podia deixá-lo ir.
— Nada vai acontecer lá em cima a não ser o fato de que terá um bebê e ficará boa.
— Não está zangado comigo? — indagou Tess, fitando-o novamente.
— Não.
— Não sabe como fico feliz por isso. — Tornou a fechar os olhos e dormiu até que a enfermeira voltou, acompanhada por um homem que empurrava uma maça.
— Sra. Huggins — disse a enfermeira, jovialmente. — Está na hora de subirmos.
Tess abriu os olhos. Viu a maca e uma expressão de medo surgiu em seus olhos.
— O que é isso?
— É uma maca de rodas — disse a enfermeira. — Vamos oferecer-lhe uma viagem de primeira classe lá para cima. — Encostou a maca na cama e foi postar-se na cabeceira. Num instante, ela e o atendente transferiram Tess para a maca, habilmente. Envolveram-na rapidamente no lençol e prenderam as tiras de lona para segurá-la à maca.
— Meu marido pode subir comigo? — perguntou Tess, olhando para a enfermeira.
— Claro que pode — respondeu a enfermeira, sorrindo. — Ele estará esperando do lado de fora da sala de operação, quando tiver o bebê. Irá vê-lo assim que sair.
Saíram com a maça para o corredor e Daniel foi andando ao lado, ainda segurando a mão de Tess. No elevador, ela murmurou:
— Estou-me sentindo esquisita... Como se estivesse flutuando, com uma vertigem.
— Isso é normal — tranqüilizou a enfermeira. — Sente-se assim por causa do Pentotal. Não tente reagir. Relaxe e deixe-se dominar. É apenas como dormir. E será mãe quando acordar.
Saíram do elevador e avançaram por outro corredor. A enfermeira parou a maca diante da sala de operação.
— É aqui que vamos deixá-lo — disse ela a Daniel. — Há uma sala de espera no final do corredor. O médico irá procurá-lo assim que acabar.
Tess virou o rosto para Daniel.
— Quero que me prometa uma coisa, Daniel. Se algo me acontecer, tome conta do bebê.
— Nada vai acontecer-lhe.
— Prometa! — A voz dela era insistente.
— Está certo, prometo.
Ela pareceu relaxar.
— Eu o amo, Daniel. Não se esqueça disso.
— E você também não se esqueça de que eu a amo. — Daniel inclinou-se e beijou-a. Ficou observando levarem a maca pela porta de vaivém, e depois seguiu pelo corredor até a sala de espera.
Pareceu mais tempo, mas foi menos de uma hora depois que o médico apareceu na sala de espera. Estendeu a mão, sorrindo.
— Parabéns, Sr. Huggins. Tem um filho. Um garoto grande, como o pai. Quatro quilos e meio.
Daniel sorriu, apertando a mão do médico efusivamente.
— Não posso acreditar. . .
— Vai acreditar quando o vir — acrescentou o médico, ainda sorrindo.
— E Tess. . . está bem?
— Está ótima. Neste momento, encontra-se na sala de recuperação. Deverá voltar para o quarto dentro de duas horas. Isso lhe dará tempo para sair, comprar uma caixa de charutos e dar alguns telefonemas. Ao voltar, poderá ver os dois.
Daniel deixou escapar um suspiro profundo.
— Obrigado, Doutor.
Daniel atravessou a rua em frente ao hospital e seguiu até o restaurante e bar na esquina. À exceção do homem atrás do balcão, que estava limpando os copos, não havia ninguém lá dentro quando ele entrou. Daniel aproximou-se do balcão.
— Um Jack Daniels puro, dose dupla.
O homem serviu o uísque imediatamente, pondo o copo diante dele. Com a outra mão, tirou um copo com água de baixo do balcão.
— O que foi? Menino ou menina?
— Menino. Como soube?
— Os únicos fregueses que temos às nove horas da manhã são os que vêm do hospital no outro lado da rua — disse o homem, rindo. Tornou a enfiar a mão por baixo do balcão e pegou um charuto. — Parabéns. Com os cumprimentos da casa.
— Obrigado. — Daniel olhou para o charuto. Estava envolto num papel dourado, onde se lia: É UM MENINO!
— Também vendemos caixas com vinte e cinco. Por dois dólares.
— Levarei uma caixa. E deixe pagar-lhe um drinque.
— Tenho uma regra: nunca bebo antes do meio-dia — disse o homem, com um sorriso. — Mas desta vez vou abrir uma exceção. Afinal, sou de Nova York e lá já é meio-dia. — Serviu-se de uma dose de uísque e pôs a caixa de charutos em cima do balcão, tudo num só movimento. — Qual vai ser o nome do garoto?
— Daniel. .. Daniel B. Huggins Júnior.
O bartender levantou o copo.
— A ele!
Os dois beberam. Daniel pediu outra dose. Bebeu a metade, ajudando a descer com um gole de água.
— Se quiser dar algum telefonema — disse o bartender — há uma cabine ali no canto.
Daniel correu os olhos pelo bar, depois sacudiu a cabeça.
— Tenho tempo — disse ele, pegando o copo. — E dê-me outra dose. Pode servir-se também.
Foi a vez de o bartender sacudir a cabeça.
— Não, obrigado, Sr. Huggins. Ainda tenho mais oito horas de trabalho pela frente. Se começar a beber agora, não conseguirei nem chegar à hora do almoço.
Daniel assentiu. Tirou o charuto do invólucro dourado e acendeu-o. Soprou uma nuvem de fumaça para o teto. Até que não era ruim.
— Um bom charuto...
— A cozinha está aberta, se quiser comer alguma coisa.
Subitamente, Daniel descobriu que estava faminto.
— Quero um bife, ovos e legumes.
O bartender sorriu e virou-se, gritando para a cozinha nos fundos:
— Ei, Charlie! Levante o rabo daí e venha pôr uma mesa! Temos um freguês!
Daniel comprou flores antes de voltar ao hospital. Avançou pelo corredor e foi descobrir que a porta estava fechada. Girou a maçaneta cautelosamente e abriu-a.
Tess achava-se deitada na cama, apoiada em travesseiros. Já passara alguma maquilagem no rosto e batom nos lábios, mas a pele por baixo parecia extremamente pálida, quase transparente. Os olhos estavam fechados e ela parecia repousar, sem prestar qualquer atenção à enfermeira no outro lado da cama, arrumando os lençóis.
Daniel atravessou o quarto na ponta dos pés e parou ao lado da cama, olhando para Tess. Ela abriu os olhos. Daniel sorriu, estendendo as flores.
— Parabéns, Mamãe.
Tess olhou para as flores.
— São lindas... — A voz dela parecia não ter qualquer força. Daniel beijou-a.
— Como se sente?
— Muito bem. Mas um pouco fraca. Ainda não consigo respirar direito. É como se tivesse uma cinta me comprimindo o peito.
— Não vai sentir mais nada depois que descansar um pouco — disse a enfermeira. — As ataduras que pusemos em seu abdômen podem estar fazendo-a sentir-se assim. — Virou-se para Daniel. — Vou pôr as flores num vaso, Sr. Huggins.
Daniel entregou-lhe as flores. Ficaram observando, enquanto a enfermeira pegava um vaso no armário, enchia-o com água na pia e depois arrumava as flores.
— Já viu o bebê, Daniel? — perguntou Tess.
— Ainda não. E você já viu?
Ela sacudiu a cabeça. Daniel acrescentou:
— O médico disse que ele é um bocado grande. Nasceu com quatro quilos e meio.
— Meus irmãos também nasceram grandes — murmurou Tessr virando-se em seguida para a enfermeira. — Podemos vê-lo agora?
— Era justamente o que eu ia fazer — respondeu a enfermeira, sorrindo. — Estarei de volta com o bebê dentro de um minuto.
E ela saiu, fechando a porta. Daniel puxou uma cadeira para o lado da cama, sentou-se e pegou a mão de Tess.
— Comprei uma caixa de charutos. Olhe só. — Ele levantou a caixa, tirando depois um charuto. — Está vendo esse papel dourado? Está escrito “É um menino!”
Ela sorriu debilmente.
— Onde você estava esta manhã, antes de eu subir?
— Claro que estava... não se lembra? Cheguei mesmo a acompanhá-la até a sala de parto.
— Era o que eu pensava, mas estava tudo muito nebuloso. Deram-me uma injeção antes de eu subir e não me lembro direito das coisas. — Tess fitou-o com uma expressão cautelosa. — Falei alguma coisa horrível?
Ele sacudiu a cabeça.
— Não. Disse apenas que me amava. Mas talvez você ache que isso seja horrível.
— Ao contrário, é maravilhoso. — Tess apertou a mão dele. — Eu o amo, Daniel. Sempre foi muito bom para mim.
— Você também não me tratou tão mal assim — disse ele, soltando uma risada.
A porta do quarto se abriu e a enfermeira entrou, carregando o bebê, envolto por uma manta. Ela contornou a cama, para o outro lado daquele em que Daniel se encontrava. Levantou a ponta da manta que cobria o rosto do bebê e estendeu-o na direção de Tess.
— Aqui está seu filho, Sra. Huggins.
Atônita, Tess pegou o bebê. Aproximou-o cautelosamente, contemplando o rostinho. Olhou em seguida para Daniel, com um sorriso radiante a iluminar-lhe o rosto.
— Oh, Daniel, ele é tão bonito! Parece igualzinho... — Uma agonia súbita contorceu-lhe o rosto e ela gritou: — Daniel! Oh, meu Deus!
O bebê começou a escorregar de seus dedos inertes. Daniel agarrou a criança, no instante mesmo em que o corpo de Tess arriava inerte sobre os travesseiros, uma espuma rala lhe saindo da boca. Ela virou a cabeça para fitá-lo, os olhos arregalados, com um brilho intenso. Os lábios se mexeram, como se tentasse falar. E no instante seguinte os olhos ficavam vazios e a cabeça pendeu de lado sobre o travesseiro. Os olhos contemplavam a eternidade, a boca estava entreaberta, no gesto de emitir as palavras que nunca chegaria a pronunciar.
A enfermeira contornou rapidamente a cama, empurrando Daniel bruscamente e indo apertar um botão na parede. Uma campainha começou a tocar no corredor. Um momento depois, o quarto estava repleto de médicos e enfermeiras, tanques de oxigênio eram trazidos, juntamente com outros equipamentos.
Daniel ficou encostado na parede, observando o movimento. A enfermeira fitou-o, os olhos se encontraram por um momento. Daniel sacudiu a cabeça e disse, a voz sem qualquer reflexão, para ninguém em particular:
— Não vai adiantar nada. Ela se foi.
Depois, gentilmente, ele escondeu o rosto do bebê sob a ponta da manta e murmurou, saindo para o corredor:
— Vamos embora, meu filho...
Daniel procurou aconchegar-se mais no casaco, parado sob a chuva, a cabeça descoberta. A voz do ministro era sonora e retumbante, como se houvesse uma multidão assistindo ao enterro, ao invés de apenas um homem solitário.
— Cinzas de volta a cinzas, pó de volta ao pó...
Daniel olhou para o caixão de mogno avermelhado, a chuva deslizando pela superfície laqueada e escorrendo pelos lados para a cova aberta por baixo. Tão pequeno, tão terrivelmente pequeno... De certa forma, não parecia certo. Tess nunca fora uma mulher pequena. O ministro parou de falar. Fez uma pausa, virou-se para Daniel e acrescentou:
— Pode fazer a sua própria prece.
— Nunca fui muito de rezar, Reverendo.
— Não tem importância. O Senhor ouvirá qualquer coisa que disser.
Daniel respirou fundo.
— Você foi uma boa mulher, Tess. Que o Senhor lhe dê as boas-vindas.
Os dois coveiros olhavam para o ministro, expectantes. Era o último enterro do dia e estavam ansiosos em acabar logo de uma vez. O ministro olhou para Daniel, a fim de verificar se ele já terminara a prece, depois acenou com a cabeça para os coveiros.
Rapidamente, os dois homens deslocaram as estacas de aço em que o caixão se achava apoiado, começando a baixá-lo para a cova aberta, até que pousou no fundo já ensopado. Pegaram as pás.
— Podem deixar que cuido disso — murmurou Daniel. E em resposta aos olhares inquisitivos, ele acrescentou: — Na minha terra, sempre enterramos os nossos mortos.
Em silêncio, os homens recuaram e ficaram observando-o. A sensação da pá em suas mãos era boa. Fazia-o recuar no tempo. Era apenas um menino e o fundo da mina era escuro. Ele olhou para a sepultura quando a primeira pá de terra caiu sobre o caixão, espalhando as flores sobre a tampa fechada. Não demoraria muito para que Tess também estivesse coberta pela escuridão. O ritmo foi-se acelerando. A terra estava pesada, ensopada pela chuva e logo Daniel sentiu o suor escorrendo por baixo das roupas. O que lhe proporcionou também uma sensação de agilidade e força. Subitamente, encontrava-se novamente em contato com a terra. Depois, quase antes mesmo que pudesse perceber, estava acabado, a terra formando uma pequena elevação sobre a sepultura. Daniel entregou a pá a um dos homens, murmurando:
— Obrigado.
O coveiro sacudiu a cabeça, sem dizer nada. O ministro voltou com Daniel até o carro. Daniel parou ao lado da porta e tirou uma nota de 20 dólares do bolso.
— Não precisa fazer isso — disse o Ministro. — Meus serviços já estavam incluídos no preço.
— Mas leve assim mesmo. Tenho certeza de que alguém em sua paróquia vai precisar desse dinheiro.
— Obrigado.
Daniel abriu a porta e sentou-se ao volante. O ministro acrescentou :
— Não se sinta amargurado, meu filho.
— Não estou amargurado, Reverendo. — Daniel ligou o carro. — A morte e eu não somos estranhos. Nunca seremos.
Daniel teve de contornar a imensa limusine preta estacionada junto ao meio-fio para poder entrar no caminho entre a sua casa e a propriedade vizinha. Olhou para o motorista, sentado imperturbável ao volante da limusine, depois correu pela chuva até a porta da casa.
Havia caixas de papelão impecavelmente arrumadas e amarradas na sala, como à espera de que viessem buscá-las. Daniel passou pela sala e foi para o quarto. Chris estava lá, junto com outra mulher, de meia-idade, corpulenta, os cabelos louros penteados para trás e presos num coque. Elas se viraram ao ouvirem os passos. Não havia qualquer indício de surpresa na voz de Chris, quando ela disse:
— Há uma garrafa de bourbon na mesa. Sirva-se de um drinque. Acabaremos aqui dentro de um minuto.
Daniel fitou-a por um momento, olhando em seguida para a gaveta aberta da cômoda e para a caixa de papelão ao lado. As últimas roupas de Tess estavam sendo empacotadas. Sem dizer nada, ele voltou para a sala.
Quando Chris veio para a sala, ele estava parado junto à janela, o copo de uísque pela metade na mão, olhando a chuva que caía.
— Alguém tinha de cuidar disso — murmurou ela.
— Estava chovendo no dia em que chegamos à Califórnia. — Daniel virou-se para fitá-la. — Parece apropriado que esteja chovendo agora.
— O caminhão do Movimento da Boa Vontade deve estar chegando para buscar as coisas. Também encomendei móveis para o quarto do bebê e um sofá-cama para a sala.
— Eu era a única pessoa no cemitério. Nunca conheci os amigos que ela fez quando trabalhava aqui e por isso não sabia para quem telefonar. E também não sabia onde encontrar os parentes dela.
— Os pintores estarão aqui de manhã bem cedo. Disseram que só vão precisar de um dia para acabar tudo. Os móveis novos serão entregues depois de manhã.
— Ela só tinha a mim.
— Daniel! — disse Chris, bruscamente. Ele fitou-a. — Ela teve um filho. O seu filho. Mas agora está morta e não há mais nada que possa fazer a respeito. Portanto, tem de superar a coisa. Tem agora uma responsabilidade para com seu filho e tem de planejar o melhor que pode.
— Estou com medo. Não sei nem por onde começar. — A expressão nos olhos dele era angustiada.
— Eu o ajudarei. Foi por isso que trouxe a Sra. Torgersen.
— Quem é ela?
— A mulher que está lá dentro. É uma enfermeira e babá experiente. Tomará conta do menino para você.
Daniel contemplou-a com um respeito crescente.
— Chris... — Ela sorriu. — Obrigado.
A moça ficou na ponta dos pés e beijou-o.
— Eu o amo, Daniel. E isso é mais do que apenas trepar.
Fitou-a nos olhos por um momento e depois acenou com a cabeça, lentamente.
— Estou aprendendo. — Pegou a garrafa e despejou mais um pouco de uísque no copo. — Mas tenho outros problemas. Não sei se poderei pagar tudo isso. Talvez tenha de aceitar o cargo que Bioff e Browne me ofereceram.
— Mas disse que eles são escroques.
— O que não significa que eu também tenha de ser.
— Sabe perfeitamente como são as coisas. Pelo menos seja honesto consigo mesmo. Se vai mesmo pular a cerca, procure tirar o melhor proveito possível. Aceite um emprego com Tio Tom. Não dê um pulo pela metade, tentando equilibrar-se no alto da cerca.
— Talvez seja melhor eu levar o bebê de volta ao Leste comigo.
— Não seja estúpido. O que iria fazer? Manter o bebê dentro de uma mala? Como tomaria conta dele?
Daniel não respondeu.
— Tem uma boa casa aqui, um lugar confortável para uma criança crescer. E como vive andando de um lado para outro, não tem a menor possibilidade de cuidar de uma criança. A melhor coisa que tem a fazer é deixá-lo aos cuidados da Sra. Torgersen. Ela tem experiência para cuidar de todas as coisas sobre as quais você nada sabe. Ela cuidou dos filhos da minha irmã durante anos.
— E quanto terei de pagar a ela?
— Não será muito. Ela queria mesmo vir para a Califórnia. Não agüentava mais o frio e a neve no Leste. Vai aceitar duzentos dólares por mês. Minha irmã estava pagando trezentos e cinqüenta.
— Ou seja, dois mil e quatrocentos dólares por ano. Calculo que a comida e outras despesas vão consumir pelo menos de mil e seiscentos a dois mil dólares anuais. Não me sobrará muita coisa.
— E para que precisa de dinheiro? — indagou Chris. — O sindicato paga as suas despesas quando está em campo. E está sempre em campo.
Daniel tomou um gole do uísque.
— Já tinha previsto tudo, não é mesmo?
— Nem tudo.
— O que deixou de fora?
Um tom de irritação se insinuou na voz de Chris:
— Se é estúpido o bastante para ignorar, não sou eu que lhe vou dizer.
Daniel ficou em silêncio por um minuto, sondando os olhos de Chris. Depois, abruptamente, virou-lhe as costas, voltando a olhar pela janela. E sua voz soou tensa de emoção:
— Ainda não estou preparado para conversar sobre isso.
A moça aproximou-se dele, pôs a mão gentilmente em seu braço e disse, suavemente:
— Sei disso. Mas há de chegar o dia em que estará pronto...
A Sra. Torgersen era uma governanta. Aproximando-se agora dos 50 anos, estava viúva há 20, quando o marido, oficial da Marinha Mercante, afundara com seu navio, partido ao meio pelo torpedo de um submarino alemão. Falava um inglês quase perfeito, tendo apenas um ligeiro vestígio do sueco original no sotaque. Não havia praticamente nada que ela não soubesse fazer. Cozinhava, costurava, guiava carro, limpava a casa, lavava a roupa, cuidava do jardim. E fazia tudo com uma eficiência que dava a impressão de que nada lhe exigia qualquer esforço.
— Não precisa preocupar-se, Sr. Huggins. Sou uma mulher responsável, não descuido de nada. Tomarei conta de seu filho direito. Como se fosse o meu próprio filho.
— Não tenho a menor dúvida quanto a isso, Sra. Torgersen. Só quero certificar-me de que terá tudo o que pode precisar.
— Não me ocorre mais nada. A casa é bastante confortável. Sinto-me bem aqui.
— Amanhã de manhã, antes de irmos buscar o bebê no hospital, passaremos pelo banco. Quero abrir uma conta em seu nome, a fim de que não tenha de ficar esperando pelo dinheiro cada semana. Terei de viajar constantemente e haverá ocasiões em que não poderei enviar o dinheiro com facilidade.
— Como achar melhor, Sr. Huggins. E sempre que vier para casa, poderei dormir no sofá-cama.
— Não haverá necessidade — falou Daniel, com um sorriso. — Acho que posso agüentar alguns dias no sofá-cama.
Ela hesitou por um instante, antes de perguntar:
— A Srta. Chris vai conosco ao hospital?
Daniel ficou surpreso.
— Nem pensei nisso. Ela não me falou nada a respeito.
— Espero que me desculpe a intromissão, Sr. Huggins. Mas conheço a Srta. Chris há quase dez anos, desde que ela tinha quinze anos de idade. Ela jamais diria qualquer coisa. Mas tenho a impressão de que gostaria de ir junto.
Daniel assentiu, lentamente.
— Obrigado, Sra. Torgersen. Vou convidá-la esta noite, durante o jantar.
— Não, obrigada — respondeu Chris. — Voltarei para Chicago de manhã bem cedo.
Daniel ficou surpreso.
— Mas pensei...
— Lamento muito. — Ela não o deixou continuar. — Já fiz tudo o que posso. E agora não agüento mais.
Saiu da mesa e correu para o quarto do bangalô dela. Daniel seguiu-a. Chris estava parada no canto do quarto, as mãos sobre o rosto. Ele passou o braço pelos ombros dela e a fez virar-se.
— Eu disse alguma coisa errada? — A moça sacudiu a cabeça, em silêncio. — Então o que foi?
— Apenas dei uma boa olhada em mim mesma. Devo estar doida para fazer as coisas que tenho feito. — Levantou a cabeça para fitá-lo, os olhos marejados de lágrimas. — Uma coisa era falar em vivermos juntos. Mas isso foi antes de eu vir para cá. Era algo quase abstrato. Porém, estar com você aqui não foi abstrato. Foi real. Vi a sua dor. A sua preocupação. Eu o amo. E sei que me disse a verdade. Precisa mesmo de tempo. Mas sou humana. E me sinto desesperada. Talvez seja melhor eu voltar para casa, ficar longe de você. Talvez assim a angústia não seja tão grande.
Em silêncio, Daniel puxou-a para si, abraçando-a firmemente.
— Eu não queria que fosse assim.
— A culpa não é sua. Ao contrário, é toda minha. Você jamais disse algo que me permitisse pensar de maneira diferente. — A voz de Chris soava abafada contra o paletó dele. E foi nesse momento que o telefone começou a tocar. Fitou-o por um momento e depois atravessou o quarto para atender.
— Alô? — Chris escutou um pouco e depois disse, antes de desligar: — Está bem, direi a ele.
Virando-se para Daniel, ela informou:
— Era a Sra. Torgersen. Disse que o Sr. Murray acaba de telefonar e pediu que ligue para ele imediatamente. Falou que é uma emergência.
Daniel tratou de ligar. E a voz de Murray soou extremamente tensa ao telefone:
— Não posso protelar por mais tempo. A pressão está grande demais. Quando vai voltar?
— Posso partir no domingo.
— Vá direto para Chicago — disse Murray. — Eu o encontrarei lá.
— Está tudo bem por aí? — perguntou Murray. — O que foi? Menino ou menina?
Daniel compreendeu subitamente que não o informara do que acontecera.
— Foi um menino.
— Meus parabéns. E dê também os parabéns à sua esposa. Até segunda-feira, em Chicago.
Daniel desligou e virou-se para Chris.
— Talvez seja melhor eu ir para casa agora.
— Não.
Os olhos de ambos se encontraram.
— Eu lhe disse que estava doida, Daniel. Não há a menor possibilidade de você sair daqui sem me dar uma trepada de despedida.
A manchete do jornal já estava anunciando a greve quando Daniel desembarcou do trem na Union Station, em Chicago. Ele comprou um exemplar da Tribune e leu no táxi que o levou diretamente ao escritório do sindicato.
Havia duas entrevistas apresentadas na primeira página. A primeira tinha o maior destaque, quase no alto da página. Era de Tom Girdler, Presidente da Republic Steel. A outra, menor, dentro de um quadrado, no canto inferior da página e continuando no miolo do jornal, onde era quase impossível encontrar, era de Phil Murray, Presidente do S.W.O.C, C.I.O.
Os comunistas, anarquistas e agitadores que estão tentando dominar este país, a fim de nos entregarem às mãos gananciosas e ao poder da União Soviética, despertarão para um rude choque quando tiverem de se confrontar com a massa dos verdadeiros americanos, sempre prontos a defenderem seus ideais e o modo americano de viver, para si mesmos e para seus filhos. Não vamos recuar nem nos esquivar diante da missão que nos cabe. Estamos preparados para enfrentá-los e vamos combatê-los nos campos e nas ruas, até mesmo nos portões de nossas fábricas, derrotando-os implacavelmente, assim como os soldados americanos derrotaram a ameaça dos boches na guerra. Quero dizer uma coisa aos grevistas mal orientados. “Não dêem ouvidos aos falsos profetas que irão traí-los e entregá-los aos seus inimigos. Voltem a seus empregos e recomecem a trabalhar. Somos americanos, sempre dispostos a perdoar e a aceitar nossos vizinhos como irmãos”.
Em contraste, as declarações de Murray eram sóbrias, comedidas mesmo:
Tudo o que pedimos para o operário é justiça, segurança no trabalho e os benefícios já concedidos a seus compatriotas pela U.S. Steel e outras companhias, que reconheceram que suas reivindicações eram simplesmente justas e válidas. Não temos a menor intenção de entregar qualquer coisa às mãos de qualquer potência ou ideologia estranha. Queremos apenas melhorar a vida para o operário americano, cujo trabalho torna possível e uma realidade o modo americano de viver.
Daniel deixou o jornal no táxi ao saltar diante da sede do sindicato. Carregando sua valise, não pôde deixar de pensar, enquanto atravessava o andar inteiro que servia como escritório regional do S. W. O. C., na diferença de organização entre o presente e a última tentativa de sindicalizar os operários da indústria siderúrgica, em 1919. Naquela ocasião, era tudo improvisado, iam-se tomando as providências necessárias à medida que os fatos se sucediam. Agora, era tudo planejado. Havia um amplo serviço de informações, com mais de 40 funcionários, que forneciam aos jornais e agências noticiosas dados atualizados sobre as atividades da organização sindical. Havia um serviço estatístico, que se mantinha a par das tendências da economia, analisando tudo o que podia afetar a posição do sindicato e seus associados. Havia também uma seção de fundo de socorro aos grevistas, que proporcionava ajuda aos associados, financeira e de outros tipos. Tudo parecia muito diferente. Mas será que era mesmo?
Apesar da aplicação das mais modernas técnicas empresariais e de um sólido apoio financeiro, como nenhum esforço de organização sindical jamais tivera antes, alguma coisa estava faltando. Daniel podia senti-lo, mas não era capaz de definir exatamente o que era. Talvez fosse apenas o fato de que o próprio sindicato, progredindo rapidamente na crista da onda da opinião pública favorável ao movimento sindical nos últimos anos, se tivesse tornado excessivamente confiante e não mais fosse capaz de reconhecer a determinação da oposição. O súbito colapso da resistência das grandes companhias siderúrgicas no ano anterior, o sucesso do sindicato dos tecelões no Sul e a organização sindical dos operários da General Motors representavam uma tendência que talvez levasse a uma ilusão. Em cada uma dessas vitórias, os acordos haviam sido alcançados com as grandes companhias, aquelas cujas cotas dos respectivos mercados eram tão grandes que as conseqüências quase não as afetavam. Mas as companhias menores, para as quais as diferenças acarretavam um efeito considerável na margem de lucros, tinham bons motivos para resistir e lutar. A Ford Motor Company ainda estava tão longe de um acordo quanto sempre estivera. E o mesmo acontecia com as companhias siderúrgicas menores, que constituíam o que se chamava de Little Steel, em contraste com o outro grupo, que era o Big Steel. As direções individuais das companhias haviam convertido o problema numa batalha pessoal para manter o que julgava ser o controle de seu próprio empreendimento, a sua liberdade. Nem Henry Ford nem Tom Girdler estavam dispostos a se curvar perante os servos. Ao contrário, achavam que todos os que trabalhavam em suas empresas deviam sentir-se gratos pela oportunidade de servi-los, especialmente depois que lhes tinham dado tudo o que era possível.
Os escritórios executivos do sindicato ficavam nos fundos do andar, longe dos elevadores. Cada sala tinha janelas de onde se podia contemplar a cidade, era convenientemente decorada, se não mesmo luxuosamente, com tapete no chão. Era gritante o contraste com as demais salas, vastas, abertas, em que os empregados do sindicato se amontoavam em 30 ou 40 mesas, em espaços que mal poderiam conter a metade. Os líderes sindicais estavam agora tão isolados da massa dos operários que representavam quanto qualquer executivo das companhias que combatiam. Subitamente, Daniel compreendeu qual era o problema. Uma nova hierarquia estava em processo de desenvolvimento. Mais cedo ou mais tarde, o homem dentro do escritório, por trás de uma porta fechada, tinha de perder o contato com os homens lá fora, aqueles a quem representava. Não havia mais um relacionamento emocional. Agora, era uma representação projetada de um ideal, que se transformara em outra forma de grande negócio.
Daniel podia agora entender a pressão para que Phil Murray agisse. A organização deles era como qualquer divisão da General Motors. Havia objetivos a serem atingidos. Se por algum motivo, qualquer que fosse, os objetivos não fossem alcançados, seriam encontrados novos gerentes para providenciá-los. A batalha tinha de ser travada, mesmo que o resultado fosse duvidoso. Murray estava obrigado a provar que não tinha medo nem se esquivava ao cumprimento de sua tarefa. E durante todo o tempo, ele sabia que Lewis estava calmamente sentado em Washington, tomando cuidado para preservar sua posição como o homem que conseguira um acordo com o Big Steel sem uma greve. Por causa disso, Lewis evitava cuidadosamente assumir uma posição nos conselhos sindicais, não se manifestando nem contra nem a favor de uma greve agora. Preferia deixar que a decisão fosse exclusivamente de Murray. E se este fracassasse, estaria liquidado. Se vencesse, Lewis poderia adiantar-se e partilhar a glória, como o homem que apontara o caminho para a vitória e depositara plena confiança em Murray.
Daniel parou diante da porta em que estava pintado o nome SR. MURRAY, em letras douradas. Virou-se para a secretária que estava sentada a uma escrivaninha ao lado da porta. Era uma moça nova, que ele nunca vira antes.
— O Sr. Murray está?
Ela levantou a cabeça da máquina de escrever.
— Pode informar-me quem deseja falar com ele?
— Daniel Huggins.
A moça pegou o telefone.
— O Sr. Huggins está aqui e deseja falar-lhe, Sr. Murray. — Ela largou o telefone um instante depois e olhou para Daniel, dizendo, com um novo respeito na voz: — Pode entrar, senhor.
Daniel achou que Murray parecia muito tenso e cansado quando se levantou da mesa e adiantou-se para cumprimentá-lo. Ele apertou calorosamente a mão de Daniel.
— Fico feliz com sua volta.
— Também me sinto contente por voltar. — E Daniel falava sério. Tornando a sentar-se atrás da mesa, Murray acrescentou:
— Puxe uma cadeira e sente-se. Como está o bebê?
— Muito bem.
— Sua esposa deve estar muito orgulhosa. Apresente a ela minhas desculpas por ter de chamá-lo tão depressa.
— Minha esposa morreu,— disse Daniel, fitando-o nos olhos.
Uma expressão aturdida surgiu nos olhos de Murray.
— Mas não me disse nada!
— Não havia nada para dizer. Aconteceu e está acabado.
Murray ficou calado por um momento.
— Sinto muito, Daniel. Se eu soubesse, não o teria pressionado a voltar tão depressa.
— Não há problema. Fiz tudo o que era necessário e agora estou de volta ao trabalho.
— Seu filho está em boas mãos?
— Arrumei uma mulher excelente para cuidar dele e da casa Vai correr tudo bem.
Murray respirou fundo.
— Se houver alguma coisa que eu possa fazer para ajudar, basta dizer-me.
— Obrigado. — Daniel ficou esperando. O período de amenidades fora rapidamente encerrado. Era o momento de tratar de negócios. E ele podia sentir que alguma coisa estava errada. Percebera-o assim que entrara na sala. Não era nada que pudesse definir com precisão, apenas a impressão de que Murray não parecia inteiramente à vontade em sua presença.
Murray remexeu em alguns papéis que estavam sobre a mesa, pegando finalmente o que procurava. Olhou-o por um momento e depois falou:
— Tenho um novo cargo para você. Estou trazendo-o para o escritório daqui, como coordenador dos escritórios sub-regionais do Centro-Oeste. Terá de cuidar para que nenhum deles comece a se meter a agir por conta própria.
— Não sei se sou um homem talhado para trabalhar num escritório. Estou acostumado a trabalhar como um homem de campo. Por que não posso continuar em meu antigo cargo?
— Está-se tornando importante demais para ficar correndo de um lugar para o outro com a turma encarregada de recrutamento. Precisamos de alguém aqui para ficar de olho no panorama global.
— E a quem ficarei subordinado?
— A David McDonald, em Pittsburgh. Ele está assumindo o controle das operações. Estou voltando para Washington, onde poderei manter a pressão sobre o governo.
Daniel assentiu. McDonald era um bom homem, um veterano de muitos anos na indústria siderúrgica. Correra o rumor de que ele era o herdeiro aparente de Murray, assim como se dizia que Murray era o herdeiro de Lewis. Agora, pelo menos, a primeira parte do rumor estava confirmada. Daniel não via qualquer problema nisso. McDonald era o candidato lógico a substituir Murray eventualmente.
— Terei alguma autoridade específica no novo cargo?
— Achei que seria melhor você se reunir com McDonald e os dois acertarem tudo.
Daniel tirou um charuto do bolso interno do paletó. Cortou a ponta e acendeu-o, lentamente, sem tirar os olhos de Murray. Depois, recostou-se na cadeira e disse, calmamente:
— Já nos conhecemos há muito tempo, Phil. Pode contar-me a verdade. Por que estou sendo chutado para cima?
Murray ficou vermelho.
— Não é exatamente isso.
— Não é exatamente outra coisa qualquer.
Murray sacudiu a cabeça lentamente.
— Não me deixa alternativa, não é verdade? — Daniel ficou calado. — Gente demais ouviu você dizer que era contra a greve. Gente demais sabe de sua ligação com a garota Girdler. E não confiam em você.
— E você confia em mim?
— É uma pergunta estúpida! — explodiu Murray. — Se não confiasse em você, não lhe daria outra função.
— Talvez seja melhor eu largar tudo. Não me agrada enveredar por um beco sem saída.
— Não vai deixar coisa nenhuma — disse Murray, categórico. — Eu não quero, David não quer e Lewis não quer. É o único que conhecemos que tem trabalhado com os escritórios sub-regionais, o único em quem podemos confiar para nos dar uma imagem precisa do que está acontecendo por lá. Além do mais, não será por muito tempo. Quando a greve estiver acertada, temos outra coisa em mente para você.
— Pode estar certo de que vai demorar muito tempo até que o problema esteja resolvido. Acho que não consegui fazê-lo compreender como Girdler é duro na queda. Ele conseguiu formar uma aliança ímpia com as outras companhias independentes, que vão acompanhá-lo até o fim.
Murray ficou pensativo.
— Uma aliança ímpia... Posso usar essa expressão na entrevista coletiva que vou conceder em Washington na próxima semana.
— À vontade.
— Estamos a três semanas do Memorial Day*. Planejamos fazer manifestações de massa em toda a região. Acho que essa aliança ímpia a que você se referiu vai pensar duas vezes depois de ver a massa de trabalhadores que nos está apoiando.
— Estou totalmente convencido de que eles não vão dar a menor importância às manifestações. Estão dispostos a acabar com a greve, não importa o quanto possa custar.
— Pare de lutar contra mim, Daniel. — A voz de Murray era subitamente cansada. — Já há gente demais em cima de mim. Não me torne impossível mantê-lo a meu lado. Procure apenas me ajudar.
Era a primeira vez que Murray lhe falava tão bruscamente, pensou Daniel. E somente os amigos se falavam com tanta sinceridade. Murray sempre estivera à mão quando ele precisara de ajuda. Por quase 20 anos, Murray estivera ao lado dele. E agora era a sua vez de retribuir.
— Está certo, Phil. Qual é a primeira coisa que deseja que eu faça?
— Quero que trabalhe nas manifestações do Memorial Day. Cuide para que não haja encrencas.
— Farei o melhor possível. — Daniel levantou-se. — Se vou permanecer em Chicago, é melhor eu sair e começar a procurar um lugar para morar.
Murray fitou-o em silêncio por um momento, antes de murmurar:
— Obrigado, Daniel.
— Não precisa agradecer, Phil. Eu lhe devo isso.
Murray sorriu, cansado.
— Podemos discutir quem deve a quem algum dia. Neste momento, o importante é fazer o serviço. E eu já me ia esquecendo de informar que a junta executiva aprovou um aumento do seu salário, que passará a ser de oito mil e quinhentos dólares por ano.
Daniel soltou uma risada.
— Deveria ter falado isso logo de saída. Talvez eu não o tivesse pressionado tanto.
Murray também riu.
— Se você estivesse mesmo interessado pelo dinheiro, poderia ter aceitado o emprego que Browne lhe ofereceu em Los Angeles. Não se esqueça de que o conheço há muito tempo, Daniel.
A sala que lhe destinaram era pequena, com espaço apenas suficiente para caber uma mesa e duas cadeiras, uma na frente e outra atrás. Havia um cabide para casacos num canto. As paredes eram pintadas de branco, sem qualquer quadro. Mas ele tinha uma janela... e se não fosse por isso, poderia ter enlouquecido completamente na primeira semana.
E a frustração seria a causa. Ele começou por telefonar para todos os escritórios sub-regionais, procurando seus contatos locais. Todos se mostraram cordiais, mas não estavam dispostos a abrir mão de seu poder ou autoridade para quem quer que fosse sem ordens específicas. E até aquele momento ainda não haviam recebido qualquer comunicado do escritório central sobre a nova posição de Daniel. Deu inúmeros telefonemas para McDonald em Pittsburgh, mas sem conseguir encontrá-lo. A cada vez, era informado pela secretária quie McDonald telefonaria em seguida. Mas ao final da semana, sem que nada acontecesse, Daniel chegava à conclusão de que não havia mais o que esperar.
Os jornais noticiaram na tarde de sexta-feira a entrevista coletiva de Murray em Washington. A expressão “Aliança ímpia” pegou. Causava o efeito que os jornais adoravam. Até mesmo Gabriel Heatter usou-a em seu noticioso da noite pelo rádio. Daniel pegou o telefone e ligou para Murray em Washington. E sentiu alguma surpresa, quando Murray atendeu.
— Parabéns, Phil. A entrevista coletiva foi ótima. Os jornais daqui deram o maior destaque.
Murray estava obviamente satisfeito.
— Isso é ótimo. Acho que a nossa posição está começando a melhorar. A opinião pública está virando para o nosso lado. E como você está indo?
— Estou ficando doido — respondeu Daniel, bruscamente. — Não estou fazendo nada. Estão-me excluindo de tudo.
— Não estou entendendo. — Murray parecia genuinamente surpreso. — Falou com Dave?
— Não consegui encontrá-lo pelo telefone. E os escritórios sub-regionais não foram avisados da minha posição. Não tenho absolutamente nada para fazer.
— Vou ligar para ele.
— Não quero tornar as coisas mais difíceis para você, Phil. Já tem coisa demais na cabeça. Talvez seja melhor eu cuidar da minha vida em outro lugar.
— Não. — A voz de Murray era categórica. — Continue onde está. Darei um jeito na situação.
— Não me deve nada, Phil. Além do mais, tenho o pressentimento de que deveria voltar à Califórnia, para ficar com meu filho. Já é terrível que ele não tenha mãe. Não deve ficar privado também do pai.
— Espere até o final do mês, Daniel. Se não tivermos acertado tudo até lá, poderá ir para onde bem quiser.
— Combinado. — Daniel desligou e pegou a garrafa de uísque na última gaveta da escrivaninha. Serviu-se de um drinque e virou-se para a janela. A chuva e a escuridão estavam caindo sobre Chicago. Enquanto observava os prédios desaparecerem e as luzes se acenderem, Daniel começou a sentir-se acuado e encurralado.
Levantou-se e abriu a porta da sala. Surpreso, descobriu que a sala imensa estava ocupada apenas por uma moça solitária, debruçada sobre uma máquina de escrever, no outro lado. Não havia mais ninguém. Daniel olhou para o relógio. Cinco horas.
Os tempos haviam mudado. Não estava longe a época em que as pessoas que trabalhavam nos sindicatos nunca iam para casa. Depois do expediente, ficavam conversando sobre o que pretendiam fazer, o que esperavam realizar. Mas agora era como uma empresa qualquer. Cinco horas da tarde e todos iam para casa.
Segurando o copo de uísque, Daniel atravessou a sala até o lugar em que estava a moça. Ela levantou a cabeça ao ouvir os passos.
— O que está fazendo? — perguntou ele.
— O Sr. Gerard quer este relatório em sua mesa, quando chegar na manhã de segunda-feira.
— Sr. Gerard? — Era um nome novo para Daniel. — Qual é o departamento dele?
— O jurídico.
— E qual é o seu nome?
— Nancy.
— Gosta de trabalhar para um sindicato, Nancy?
— É um emprego — respondeu ela, baixando os olhos para a máquina de escrever.
— Mas por que o sindicato? Acha que assim está dando uma contribuição ao movimento trabalhista e à melhoria das condições de trabalho?
— Nada sei a respeito dessas coisas. Apenas atendi a um anúncio que saiu no jornal, embora estivessem pagando apenas quinze dólares por semana.
— E não é um salário justo para o seu trabalho?
— A maioria das empresas está pagando dezenove dólares por semana para o mesmo trabalho. O problema é que é difícil encontrar outro emprego.
— Talvez o que esteja precisando seja de um sindicato, Nancy — disse Daniel, sorrindo. Terminou de tomar o uísque. — Aceita um drinque?
— Não, obrigada. — Ela sacudiu a cabeça. — Tenho de terminar este relatório.
— Está certo. — Daniel começou a voltar para sua sala, mas foi detido pela voz da moça.
— Sr. Huggins... — Ele virou-se para fitá-la. — Posso fazer-lhe uma pergunta?
— Claro.
— Desde que puseram seu nome na porta e instalou-se na sala, todo mundo está querendo saber exatamente o que faz e a que departamento pertence. É o tipo de homem misterioso por aqui.
— Já ouviu falar do departamento do limbo? — falou Daniel, rindo.
— Limbo? — A moça estava perplexa. — Acho que não.
— Pois é lá que estou. — E Daniel voltou para sua sala e fechou a porta.
Ainda estava chovendo quando ele deixou o escritório e encaminhou-se para o estacionamento a fim de pegar o carro. Virou a chave na ignição e acendeu os faróis, depois ficou sentado ali, com o motor ligado. A idéia de voltar para o apartamento vazio não o atraía. Lera todos os jornais que haviam saído naquele dia e a perspectiva de ficar sentado sozinho, com uma garrafa de uísque, escutando rádio, não era a sua idéia de uma noitada. Pensou em ir ao cinema, mas isso também nada representava e não oferecia uma fuga real para sua inquietação.
Impulsivamente, seguiu para a zona sul de Chicago, para um bar perto da usina da Republic Steel, cujos operários ajudara a organizar. O bar estava apinhado de operários, homens que haviam passado a maior parte do dia debaixo da chuva, nos piquetes. Na parede, cuidadosamente arrumados, estavam os cartazes usados nos piquetes. REPUBLIC STEEL EM GREVE PARA UM SALÁRIO DECENTE, FIQUE COM O C.I.O.! Alguns eram impressos, mas muitos haviam sido escritos pelos próprios homens.
Daniel abriu caminho até o balcão e pediu um uísque duplo. Enquanto esperava, correu os olhos pelo bar. Havia provavelmente apenas dois copos de uísque no balcão, em meio a diversos copos de cerveja. A greve já alterara os hábitos de beber dos homens. Os operários siderúrgicos bebiam uísque. A cerveja geralmente só era usada para ajudar a empurrar o uísque.
O bartender pôs o uísque em cima do balcão e pegou a nota de um dólar. Largou uma moeda de 25 cents como troco em cima da mesa, enquanto Daniel levantava o copo. Daniel já se estava encaminhando para um reservado no outro lado do bar, quando uma voz chamou-o da extremidade do balcão:
— Ei, Big Dan!
Ele reconheceu o homem, um veterano grisalho de muitos anos na usina, um dos primeiros a ingressar no sindicato.
— Como vai, Sandy?
O operário pegou seu copo de cerveja e aproximou-se de Daniel.
— Tudo bem, Big Dan. Só que não esperava tornar a vê-lo por aqui.
— Por que não?
— Disseram que você tinha ido para a Califórnia.
— E fui mesmo. Mas voltei de lá há uma semana.
— Mas não apareceu no escritório do sindicato. — Sandy estava-se referindo ao escritório sub-regional.
— Estão-me mantendo no quartel-general de Chicago. Deram-me um novo cargo.
— Também andam falando sobre isso — comentou Sandy, sombriamente.
— Não sabia que as pessoas andam tão interessadas em mim — disse Daniel, fitando-o atentamente. — O que mais falaram a meu respeito?
— Coisas — respondeu Sandy, embaraçado.
— Dê-me outro uísque — disse Daniel ao bartender. Assim que foi servido, ele pegou os dois copos. — Vamos sentar, Sandy.
O operário seguiu-o até uma cabine e sentou-se diante dele. Daniel empurrou o segundo copo de uísque na direção dele, por cima da mesa.
— À nossa, Sandy! — Ambos beberam. — Temos sido amigos, Sandy. Pode contar-me o que estão dizendo.
Sandy olhou para o copo, depois levantou a cabeça bruscamente para fitá-lo.
— Quero que saiba que não acreditei no que andam falando. — Daniel ficou calado. Sandy tomou outro gole de uísque, antes de continuar: — Disseram que era contra a greve e que estava muito chegado a alguém da família Girdler. E que por isso o estavam mantendo sem fazer nada no quartel-general.
Daniel sacudiu a cabeça na direção dos homens que estavam no balcão.
— E o que eles pensam?
— São húngaros, suecos e negros. — A voz de Sandy era desdenhosa. — Não sabem pensar direito. Acreditam no que lhe dizem.
— E disseram-lhes que não mereço confiança?
Foi a vez de Sandy ficar calado. Daniel gesticulou para que o garçom os servisse de mais uísque. E quando os drinques chegaram, ele tomou mais um trago.
— Como parece a coisa da linha de frente, Sandy? A usina está completamente paralisada?
— Não totalmente. Está operando com quarenta por cento de sua capacidade. Muitos homens estão com medo de aderir, depois que Girdler anunciou que nenhum grevista seria readmitido. — Tomou um gole de uísque. — E como parece a situação do quartel-general?
— Falei com Murray hoje. Ele acha que as coisas estão começando a virar para o nosso lado. E ele está contando com as manifestações em todo o país no Memorial Day para que haja uma pressão da opinião pública, levando as companhias a entrarem num acordo.
— Temos um grande comício marcado para esse dia — disse Sandy, acenando afirmativamente com a cabeça. — Todos os empregados da Republic estarão presentes. Esperamos um comparecimento de pelo menos trezentas pessoas no Sam's Place.
— É aquele grande salão de reuniões que já usamos?
Sandy voltou a acenar com a cabeça e levantou o copo.
— Eu me sentiria melhor se você estivesse de novo com a gente.
— Era o que eu gostaria.
— Mandaram um tal de Davis para substituí-lo. É o tipo do guarda-livros. Fez curso superior. Não creio que jamais tenha empunhado uma pá em toda a sua vida. — Sandy terminou de tomar o uísque e acrescentou: — Sei que ele é considerado muito bom. E diz sempre as coisas certas. Mas tenho a impressão de que aprendeu tudo numa escola. Acha que existe alguma possibilidade de o mandarem de volta para atuar ao nosso lado?
Daniel levantou-se.
— Não sei. Para ser sincero, não tenho a menor idéia do que eles pretendem fazer. — Estendeu a mão para Sandy. — Boa sorte.
— Boa sorte para você também.
Daniel atravessou a rua debaixo da chuva, voltando a seu carro. Abriu a porta. Três homens emergiram das sombras de um prédio e se aproximaram dele. Daniel sentiu os cabelos da nuca se arrepiarem. Os homens pararam a poucos passos dele.
— Big Dan?
— Sou eu mesmo.
— Não volte aqui. Não gostamos de fura-greves e traidores.
— Ainda sou associado do sindicato. E meu cargo me autoriza a ir onde bem entender.
— Estamos cagando e andando para tudo isso. Não passa de um maldito espião que nos vendeu por uma cona de Girdler. Não precisamos de desgraçados como você por aqui.
Os homens começaram a avançar. Rapidamente, Daniel tirou a arma do coldre no ombro. E disse calmamente:
— Parem onde estão, a menos que estejam querendo que eu lhes estoure os miolos. — Os homens pararam no mesmo instante e ficaram olhando para ele. — E agora atravessem a rua outro lado. E não tentem nada, se não vão-se arrepender.
Daniel ficou observando os homens atravessarem a rua. No momento em que eles subiram na calçada, entrou no carro e ligou o motor.
Os homens se viraram ao ouvirem o barulho do motor e correram pela rua atrás do carro, enquanto este se afastava. Daniel pôde ouvi-los gritando insultos:
— Fura-greve! Traidor! Chupador!
Um momento depois, virou a esquina e não pôde escutar mais nada.
A usina siderúrgica ficava no caminho. Daniel passou por ela lentamente. O piquete noturno era formado por apenas uns poucos homens, marchando desconsoladamente debaixo da chuva. Por trás dos portões estavam os guardas uniformizados, elegantes e secos em suas capas impermeáveis. Daniel contou pelo menos 20 guardas para os quatro homens do piquete. Ele dobrou na esquina seguinte e voltou para o centro de Chicago.
Ele já ia enfiar a chave na fechadura, mas a porta se abriu antes que sequer a tocasse. Daniel empurrou-a mais um pouco e entrou no apartamento, empunhando o revólver. A voz de Chris veio da cozinha:
— Onde, diabo, você andou, Daniel? Venho tentando manter o jantar quente para você há quase três horas.
Eram quase duas horas da madrugada e os olhos de Daniel se abriram subitamente. Fechou-os por um momento. Não adiantava. Estava plenamente desperto. Moveu-se silenciosamente, a fim de não acordar Chris. Ao virar-se, pôde divisar os contornos do corpo adormecido, a fragrância do perfume dela misturando-se com os odores do amor. Ele saiu da cama e passou para a sala, fechando a porta do quarto.
Não acendeu a luz. Sabia onde a garrafa estava, pegou-a e serviu-se de um trago. Engoliu-o e sentou-se ao lado da janela. Ficou olhando para a chuva, caindo como gotas douradas ao clarão dos lampiões da rua. Tomou outro drinque. Mas de nada adiantou. Havia uma sensação de vazio no mundo dele, angustiante, depressiva. Até mesmo o pensamento de amar não conseguia acabar completamente com essa sensação.
A porta do quarto se abriu e a luz acesa lá dentro derramou-se pela sala. Daniel virou-se e viu-a parada na porta, inteiramente nua.
— Não queria acordá-la — disse ele, gentilmente. — É melhor vestir um robe. Está muito úmido.
— O que o está perturbando, Daniel?
— Vista um robe primeiro.
Chris desapareceu. Voltou um momento depois, ainda nua.
— Você não tem nenhum robe e eu não trouxe o meu.
Daniel riu. Ela estava certa. Ele nunca possuíra um robe ou roupão, nem sequer um pijama. Se dormia com qualquer coisa, era de cueca.
— Pegue uma das minhas camisas. A camisa caía até os joelhos.
— Estou-me sentindo ridícula.
— É melhor do que pegar um resfriado. — Daniel serviu-se de outro drinque. — Quer um?
Chris sacudiu a cabeça e esperou até que Daniel engolisse o uísque.
— O que é, Daniel? Nunca o vi assim antes.
— É como se eu me tivesse tornado subitamente o homem invisível.
— É o novo cargo?
— Sabe disso? — indagou Daniel, surpreso.
— Claro que sei.
— E como descobriu?
— Da mesma maneira como descobri onde você estava morando. Dos arquivos confidenciais do escritório de Tio Tom.
— Eles sabem de coisas assim?
— Mantêm fichas atualizadas sobre tudo e sobre todos.
— E seu tio sabe de nossa ligação?
Chris acenou com a cabeça, afirmativamente.
— E disse alguma coisa?
— Ficou furioso a princípio, depois acalmou-se. Ainda não gosta, mas disse que poderia ser pior. Você podia ser um judeu comunista ou um negro.
A risada de Daniel era amarga.
— Ficaria surpresa se soubesse que seu tio está mais informado da minha nova função do que a maioria dos associados do sindicato?
— Ele me disse que o estavam afastando da linha de frente, porque você era contra a decretação da greve. E disse também que o teriam mandado embora sumariamente, se não estivessem com a greve nas mãos. Ficaram com medo de que seu afastamento pudesse acarretar conseqüências mais graves, provocando reações de muitos homens que recrutou para o sindicato.
— Pois então calcularam errado. — Daniel meneou a cabeça. — Descobri esta noite que ninguém realmente se importa. Alguém fez um bom trabalho para me destruir. Tudo o que eu falei foi distorcido, antes de o rumor se espalhar. Até mesmo a nossa ligação. Disseram que eu estava vendendo os homens por sua causa.
— Eles deviam saber muito bem que não é isso o que acontece.
— Acho que Phil Murray sabe. Mas duvido que algum dos outros partilhe a mesma convicção.
— Sinto muito. O que pretende fazer?
— Para ser sincero, ainda não sei. Murray quer que eu espere. Diz que poderá endireitar tudo. Mas não tenho certeza se poderei esperar como ele quer. Não estou acostumado a ficar sentado num escritório sem fazer nada.
— Por que não vai conversar com Tio Tom? Pela maneira como ele fala a seu respeito, tenho certeza de que o respeita, mesmo não gostando de você.
— Não posso fazer isso, Chris. Tenho vivido do outro lado da rua há tanto tempo que não posso mais atravessá-lo. Além do mais, se o fizesse, tudo o que estão dizendo a meu respeito seria verdade.
Ela chegou mais perto dele.
— Eu o amo, Daniel. E não gosto de vê-lo desesperado assim. — Ele não disse nada, limitando-se a fitá-la. — Sei que prometi que ficaria esperando até que me telefonasse. Daniel. Mas não pude. Senti muita saudade. Quero ficar aqui com você.
— Eu também gostaria — disse ele, respirando fundo. — Mas isso só serviria para agravar a situação.
— Então o que vai fazer?
— Esperar. Exatamente como Phil Murray pediu. Talvez, quando tudo estiver terminado, as coisas melhorem.
— E se não puder esperar como ele está querendo e decidir ir embora?
— Vou fazer-lhe uma promessa. Se eu decidir partir, irá comigo.
Daniel viu as lágrimas aflorarem aos olhos dela e abraçou-a, beijando-a no rosto.
— Não seja tola...
— Não estou sendo tola, apenas feliz. — Chris fitou-o nos olhos.
— Você me ama, não é mesmo?
Daniel sorriu, zombeteiro.
— Não seja tão pessoal.
— Só um pouquinho?
— Não apenas um pouquinho — disse Daniel, rindo e beijando-a na boca. — Muito.
Daniel olhou para o calendário em sua mesa. Sexta-feira, 28 de maio de 1937. As duas últimas semanas se haviam arrastado interminavelmente. Ele ficara esperando pelo telefonema que nunca chegara. Apesar da promessa de Murray, McDonald não o procurara. Enquanto isso, podia sentir o crescente excitamento a seu redor, no escritório. Sabia que estavam sendo feitos planos para a manifestação do Memorial Day, mas ninguém lhe dizia nada nem o incluíam nas conversas a respeito. Descobria mais informações sobre o andamento da greve pelos jornais do que no escritório. Olhou para o relógio. Passava das cinco e meia.
Abriu a porta de sua sala e deu uma olhada. A sala grande estava vazia. Fechou a porta e voltou para sua mesa. Pegou o telefone e fez uma ligação para Phil Murray em Washington. O Sr. Murray fora para Pittsburgh e só voltaria ao escritório na segunda-feira. Ligou para a casa de Murray em Pittsburgh, mas ninguém atendeu.
Tirou a garrafa de uísque da gaveta. Só tinha um pouco. Levou a garrafa à boca e esvaziou-a. Não havia o suficiente para justificar um copo. Olhou novamente para o calendário. Murray pedira-lhe que esperasse até o final do mês. Para todos os efeitos, aquele dia era o final do mês. Um pensamento passou-lhe pela cabeça.
Segunda-feira era o dia 31. Seria possível que o estivessem mantendo ali, seguramente fora do caminho, até depois das manifestações do domingo? Será que era certo o que Girdler dissera a Chris? Será que eles estavam com medo de que pudesse balançar o barco?
Daniel ficou pensando no que iria acontecer na segunda-feira. Murray iria telefonar-lhe para dizer que lamentava muito, mas não havia mais qualquer função para ele? Ou será que se sentiriam seguros o bastante para lhe darem um serviço de verdade? O que quer que acontecesse, não importava agora. Daniel abriu as mãos sobre o tampo da mesa e contemplou-as. Algo mudara dentro dele, mas nada transparecia em suas mãos. Ainda eram as mesmas. Grandes, quase quadradas, as mãos de um operário. Não as mãos de um homem que deveria pensar e sentir. E era o que ele sempre fora. Mãos de operário. Acionadas e dirigidas pelo cérebro, pensamentos e desejos de outra pessoa.
Uma onda sufocante de raiva subiu por dentro de Daniel. Contraiu as mãos, batendo com força na mesa. A dor se elevou bruscamente pelos braços. Ergueu os punhos cerrados para a altura do rosto e contemplou-os. Os nós dos dedos estavam brancos e o sangue se derramava pela pele arrebentada. Ele abriu as mãos, lentamente. O que quer que pensasse deles, era chegado o momento de se desligar. O tempo de largar, o tempo de seguir adiante, o tempo de descobrir o que se passava em sua própria cabeça. Começara a abrir a gaveta da mesa, quando bateram na porta.
— Sr. Huggins?
Era uma voz de mulher. Ele foi até a porta e abriu-a. Nancy estava parada ali, os olhos arregalados.
— O que deseja? — perguntou Daniel, rispidamente.
— Voltei para pegar uma coisa em minha mesa e ouvi um estrondo em sua sala. Está bem?
— Estou, sim — assentiu Daniel, lentamente. Uma expressão de alívio surgiu no rosto da moça.
— Pois então vou embora. Lamento tê-lo incomodado.
— Não foi nada, Nancy. Obrigado por sua preocupação.
Ela virou-se para ir embora.
— Nancy...
A moça parou e virou-se novamente para ele.
— Pois não, Sr. Huggins?
— Teria tempo para datilografar uma carta?
— Vai demorar? Tenho um encontro esta noite e tenho de passar em casa para mudar de roupa.
— Não, não vai demorar. E é muito importante para mim.
— Está bem. Dê-me só um minuto para pegar meu bloco de estenografia.
Daniel ficou observando-a por um instante encaminhar-se para a mesa dela, depois voltou para sua própria mesa e começou a esvaziar as gavetas.
Chris chegou ao apartamento logo depois do almoço. Entrou no quarto e avistou-o debruçado sobre a valise aberta.
— Precisa de ajuda?
Daniel sacudiu a cabeça.
— Estou quase acabando. Não havia muita coisa. — Esvaziou a última das gavetas da cômoda e depois fechou a valise. — Não há mais nada.
Chris deu um passo para o lado, enquanto ele levava a valise para a sala, deixando-a no chão, ao lado da outra, perto da porta do apartamento.
— Minhas malas já estão no carro, Daniel.
Ele empertigou-se. O trem só iria partir às seis horas.
— Ainda tenho meia garrafa de uísque. Não há sentido em deixá-la para trás.
Chris assentiu, e ele foi pegar a garrafa e dois copos. Daniel entregou um copo a ela e depois estendeu a garrafa.
— Só um pouco, Daniel.
Ele derramou algumas gotas de uísque no copo dela e depois encheu o seu.
— À nossa sorte.
Chris tomou um gole e fez uma careta.
— Como pode beber um negócio desses? O gosto é horrível.
Daniel soltou uma risada.
— É melhor aprender a gostar. É a bebida de gente pobre. Os seus martínis secos custam duas vezes mais.
Chris não disse nada.
— Tem certeza de que quer mesmo ir comigo? Vai ser uma vida inteiramente diferente para você. Ainda está em tempo de mudar de idéia. Eu compreenderei.
— Não vou deixá-lo tão facilmente — disse ela, sorrindo. Tomou outro gole. — Pensando bem, este uísque não é tão ruim assim.
Daniel não pôde deixar de rir.
— Já falou com a Sra. Torgersen, Daniel?
— Já, sim. Ela se mudou para o quarto do bebê, a fim de que possamos ocupar o outro quarto. Pareceu ficar muito satisfeita pelo fato de você estar indo comigo. Ela gosta de você.
— É que ela me conhece há muito tempo. Como está o bebê?
Havia um tom de orgulho na voz de Daniel, quando ele disse:
— Ela disse que está ótimo. Cada vez melhor. Engordou quase meio quilo e não tem qualquer problema. Dorme direto a noite inteira.
— Está ansioso em vê-lo?
Ele fitou-a em silêncio por um instante, depois assentiu.
— Estou sim. É engraçado, mas nunca pensei em mim mesmo como um pai. Mas quando o peguei no colo e contemplei-o, compreendendo que era responsável por sua existência, senti que eu ia viver para sempre.
Chris estendeu o copo.
— Quero mais um pouco.
Daniel cobriu o fundo do copo.
— Como está a situação lá fora?
— É um dia de sol e faz calor.
— Ótimo. Pelo menos os grevistas estão com alguma sorte. Não é fácil parecer confiante quando a chuva está caindo na cara da gente. A garota que datilografou a minha carta contou que o chefe dela estava muito satisfeito. O jornal cinematográfico da Paramount vai cobrir a manifestação em Chicago. O filme estará sendo exibido em seis mil cinemas na próxima terça-feira.
— Fico contente que não esteja com eles, Daniel. Esta manhã, durante o café, ouvi Tio Tom falar ao telefone. Ele estava conversando com alguém da chefatura de polícia. Disse que esperava problemas na usina e pediu cento e cinqüenta policiais para ajudar na proteção. Ao voltar para a mesa, estava sorrindo e disse à minha tia que, se os comunistas quisessem barulho, iriam encontrar muito mais do que podiam imaginar.
Daniel ficou surpreso.
— Ele já tem quase cem homens no lado de dentro dos portões. Por que precisa dos guardas no lado de fora?
— Não sei. Não prestei muita atenção, porque estava absorvida demais imaginando um meio de sair de casa com as malas sem que ninguém percebesse.
— Ele vai ficar desapontado. A reunião vai ser realizada num salão particular, a alguns quarteirões da usina. Os manifestantes nem vão chegar perto da usina.
Chris ficou calada. E um pensamento surgiu subitamente na mente de Daniel.
— Seu Tio Tom parecia estar certo de que os manifestantes iriam aparecer na usina?
Ela acenou com a cabeça, afirmativamente. Daniel largou o copo.
— É melhor eu ir até lá para garantir que eles não chegarão perto da usina.
— Não é mais da sua conta, Daniel. Pediu demissão. Ou será que já esqueceu?
— O que não me esqueci foi de Pittsburgh em 1919. Muitos homens saíram feridos porque ninguém teve coragem de falar-lhes com um pouco de bom senso.
— Estamos em 1937, Daniel. E não é mais a sua luta.
— Talvez não seja. Mas fui o responsável pelo ingresso no sindicato de muitos dos homens que estão lá hoje e não quero ficar com a consciência pesada, se alguém sair ferido.
Chris não disse nada.
— Dê-me as chaves do carro.
— Não faça isso, Daniel. Vamos começar uma vida nova. Foi o que você me disse ontem.
— Não há a menor possibilidade de começarmos uma vida nova sobre os cadáveres dos meus amigos, Chris. Não, se eu tiver alguma chance de evitar. — Dê-me as chaves do carro.
— Vou com você.
— Não. Vai ficar esperando por mim aqui.
— Disse que me levaria onde quer que fosse. — A voz dela era firme. — Pois vai começar aqui.
As ruas ao redor do Sam's Place estavam apinhadas de carros e pessoas, de tal forma que Daniel não conseguiu estacionar o carro. Parou no meio da rua e saltou.
— Estacione o carro no outro quarteirão e fique esperando por mim, Chris.
O rosto dela estava extremamente pálido. A moça limitou-se a assentir, sem dizer nada.
Dan virou-se e seguiu para o salão. Estava inesperadamente quente, e a multidão que transbordava para a rua mais parecia estar participando de um piquenique familiar, ao invés de ser constituída de grevistas sérios. Muitos homens haviam trazido as famílias para a reunião e mulheres e crianças se deslocavam em meio à multidão de operários em mangas de camisa.
Daniel abriu caminho através da multidão e entrou no salão. Achava-se totalmente lotado. Diversos homens estavam sentados no pequeno tablado no fundo do salão, enquanto um homem estava de pé, falando aos gritos para a audiência:
— Só há um meio de mostrar à polícia que não nos pode intimidar, de mostrar a Girdler que não é a lei. Eles devem entender que nós, o povo, os grevistas, somos fortes o bastante, bravos o bastante, para encará-los e desafiá-los!
Um rugido de aprovação se elevou da multidão. O orador olhou para um pedaço de papel em sua mão, antes de continuar:
— Fica resolvido que nós, os membros do Sindicato dos Operários Siderúrgicos, condenamos as táticas arbitrárias e opressivas do Departamento de Polícia de Chicago, em suas tentativas de intimidar e assustar os trabalhadores, impedindo-os de exercer o seu direito constitucional de livre manifestação e de greve, em busca de uma vida melhor para todos os americanos. Todos os que são a favor digam “Sim”! '
O troar de “Sim” foi ensurdecedor.
— Vamos mostrar-lhes agora com quem estão-se metendo — gritou uma voz no meio da multidão.
— Isso mesmo — gritou outra voz. — Vamos mostrar-lhes o que é um piquete de verdade! Não apenas dez homens, mas mil homens!
Daniel encaminhou-se para a plataforma enquanto o salão ressoava com os gritos de aprovação à sugestão. Subiu rapidamente, afastou o orador para o lado e gritou para a multidão:
— Esperem! Esperem!
O tumulto persistiu. O orador virou-se para Daniel.
— Saia daqui, Huggins. Não o queremos aqui — falou ele, num tom que somente Daniel podia ouvir.
— Você deve ser Davis. Tem que me escutar. Descobri que há cento e cinqüenta guardas de prontidão perto da usina, à espera de encrenca. Se os homens desfilarem diante da usina, muitas pessoas vão acabar sendo feridas. E não apenas os homens, mas também as mulheres e crianças.
— Os trabalhadores têm o direito de se manifestar. — disse Davis.
— Os líderes têm a responsabilidade de zelar para que os homens não sejam feridos. Vi o que aconteceu em 1919, quando os líderes abdicaram dessa responsabilidade. Pode acontecer aqui novamente.
— Não vai acontecer de jeito nenhum. Somos muitos, além do mais, a polícia não tentaria coisa alguma com a presença das câmaras dos jornais cinematográficos. Foi justamente por isso que conseguimos trazer os jornalistas para cá.
— Câmaras não podem deter balas! — falou Daniel. Tornou a virar-se para a multidão e gritou: — Irmãos! Vocês me conhecem. Muitos entraram no sindicato pelas minhas mãos. Mais do que qualquer outra pessoa, eu quero ganhar esta greve. Mas não vamos ganhá-la com uma manifestação contra a polícia de Chicago. Vamos vencê-la paralisando inteiramente a produção em todas as usinas, persuadindo os outros operários a se juntarem a nós. Vamos concentrar nossos esforços nisso, encontrar meios e modos de convencer nossos irmãos de que a batalha que estamos travando é também a deles! Aqui, no salão onde o sindicato se reúne, é que a batalha poderá ser vencida! E não lá fora, nas ruas diante da usina.
Uma voz sarcástica gritou do meio da multidão:
— Nós o conhecemos, Big Dan. Sabemos como nos vendeu por causa de uma garota Girdler. Sabemos que você não queria que entrássemos em greve.
— Isso não é verdade! — berrou Daniel.
— Se não é verdade — gritou outra voz — então junte-se a nós. Não lute contra a gente.
Daniel correu os olhos pela multidão subitamente silenciosa.
— Está bem, irei com vocês. Mas somente os homens devem ir. Não permitam que as mulheres e as crianças nos acompanhem.
Um rugido elevou-se da multidão. Dois rapazes subiram na plataforma, pegaram as bandeiras americanas e começaram a avançar pelo corredor central.
Daniel olhou para Davis.
— Vai ter de me ajudar. Vamos tentar detê-lo um quarteirão antes da usina. — Não esperou por uma resposta, saltando da plataforma e saindo pelo corredor, entre os dois homens que seguravam as bandeiras.
O sol lá fora estava quente. Daniel tirou o paletó. Uma voz gritou de repente:
— Vamos pelo campo. As ruas estão bloqueadas pela polícia.
Lenta e decididamente, começaram a seguir para a usina, a cerca de um quilômetro e meio de distância, em campo aberto. Daniel virou-se e olhou para trás. Os homens marchavam atrás dele, na maior desorganização. E apesar do seu aviso, mulheres e crianças também participavam da marcha. Havia um clima de alegria quase infantil na multidão, como se fossem pessoas indo para um piquenique dominical, ao invés de estarem num piquete de greve.
— Mandem as mulheres e crianças embora! — Mas a voz de Daniel se perdeu no barulho. Uma mão puxou-lhe o braço. Ele se virou.
— Big Dan. — Sandy estava ao lado dele, junto com Davis. — Eu sabia que você viria.
Daniel não respondeu. Olhou para Davis e disse:
— Dê uma olhada. Há um exército de guardas à nossa espera. Acredita em mim agora?
— Estou mesmo vendo os guardas. Só que eles não vão fazer nada. O caminhão do jornal cinematográfico está logo atrás deles. Vamos chegar perto o bastante para que possam filmar a multidão.
— O que é mais importante? As vidas das pessoas ou os filmes?
— Os filmes levarão a nossa mensagem a todo o país.
Daniel fitou-o atentamente. Não adiantava. Não fazia sentido.
Estavam avançando como cordeiros a caminho do matadouro. Daniel disse, cansado:
— Vamos tentar pará-los a cerca de um quarteirão de distância.
Mas não havia como parar os homens. Daniel viu os guardas empunharem as armas e cassetetes. Por um momento, uma imagem passou por sua mente. Os boches estavam esperando do outro lado da terra de ninguém.
Achavam-se na metade do último trecho de campo aberto, cerca de 60 metros da polícia, quando Daniel virou-se e ergueu os braços, tentando deter a multidão.
— Agora! Formem a linha de piquete aqui! Uma voz inesperada apoiou-o.
— Isso mesmo! — gritou Davis. — Formem a linha de piquete aqui. Uma bandeira à direita, outra à esquerda. Espalhem-se por trás das bandeiras.
A multidão ficou indecisa, sem saber o que fazer. Daniel empurrou um dos homens com as bandeiras.
— Mexa-se! — O rapaz começou a se afastar e Daniel gritou para a multidão: — Sigam-no!
— Sigam-no! — berrou Davis.
Daniel olhou rapidamente.
— Obrigado.
A expressão de Davis era sombria.
— Não precisa agradecer-me. Estou apavorado.
— Com alguma sorte, talvez nada aconteça.
Mas a sorte não estava do lado deles. Daniel ouviu os primeiros estampidos dos tiros. Depois, uma marreta atingiu-o nas costas e ele foi lançado para a frente, caindo ao chão. Tentou levantar-se, dando impulso com as mãos, mas as pernas não tinham forças para sustentar o peso do corpo. Ouviu as vozes estridentes das mulheres, os gritos dos homens, todos dominados pelo pânico. E um momento depois havia guardas de uniformes azul por toda parte, golpeando a torto e a direito com seus cassetetes. Daniel viu Davis e Sandy caírem, sob uma onda impetuosa de homens uniformizados, que continuaram a espancá-los muito depois que já estavam inertes e prostrados. Sentiu as lágrimas aflorarem a seus olhos.
— Oh, merda! — gritou ele, o desespero na alma maior do que o ferimento no corpo. — Merda, merda, merda!
E depois os braços cederam e ele caiu num eclipse do Sol.
Agora
Talvez fosse porque era domingo. Ou a hora do almoço. Ou talvez fosse o embargo petrolífero dos árabes na última primavera que deixara a sua marca na mentalidade do motorista americano. O que quer que fosse, o fato é que eu estava sentado no muro baixo de pedra quase uma hora e ainda não passara nenhum carro.
Lembro-me da indignação de meu pai com as filas nos postos de gasolina, fábricas começando a fechar, milhares de trabalhadores ficando desempregados. Dera uma entrevista coletiva, em que acusara todo mundo. O Presidente, o Congresso, as companhias petrolíferas.
— É a mesma história de sempre. Estão todos em conluio, para aumentar os preços e explorar ainda mais os bolsos dos operários americanos, que construíram os próprios campos petrolíferos cujos frutos lhes são agora negados. Demos aos árabes a capacidade de desenvolverem os seus recursos, à custa dos nossos, à custa do operário americano, porque nos foi dito que seria mais barato. E agora estamos descobrindo como é realmente barato. O custo é chantagem e extorsão. E só há um meio de lidar com chantagistas. Exterminá-los. Temos todas as razões válidas e legais. Nossa segurança nacional, nossas próprias vidas e nosso bem-estar estão ameaçados. Mandem os fuzileiros navais!
Acusado por muitos jornais e comentaristas de xenofobia e incitação à guerra, ele respondera desdenhosamente:
— Não lutamos duas guerras mundiais para tornar o mundo seguro para os árabes e as companhias petrolíferas, a fim de que pudessem enriquecer-se à nossa custa. Nosso país possui uma longa tradição de defender ferrenhamente e lutar por seus direitos. Se não fizermos isso agora, podemos descobrir daqui a cinco anos que nos entregamos e talvez a toda a civilização ocidental nas mãos de Caim.
Não foram há tanto tempo. Mas agora era para sempre. Pelo menos para meu pai. Ele se tinha ido e ninguém mais ouvia sua voz. Provavelmente. A não ser eu. Tentei imaginar quanto tempo levaria para deixar de ouvi-lo.
— Quando me conhecer, Jonathan.
— Já o conheço, Pai. Sempre o conheci. A voz dele era gentil:
— Apenas pensava assim. Mas agora está começando a aprender.
— Aprender o quê?
— De onde eu vim. Quem eu sou.
— Quem você era — falei categoricamente. Ele soltou uma risada.
— Uma questão de ponto de vista.
— Nada mudou. Você ainda é o que sempre pensei que fosse,
— Nunca afirmei ser qualquer outra coisa. Serei sempre tudo o que pensar que eu sou. Assim como você sempre será tudo o que pensar que será.
— Estou pensando em voltar para casa, Pai. Já estou começando a ficar cansado de sentar em muros e cercas, de ficar de pé em beira de estradas. Não vou descobrir mais nada.
— Está-se sentindo solitário. Mas seja paciente. A fornada em breve chegará ao fim. Poderá então voltar para casa e reunir tudo o que aprendeu.
— Não faço a menor idéia do que espera que eu aprenda.
— Amor, meu filho. E não se esqueça de que somente um tolo joga isso fora.
— Estou cansado de tudo, Pai. Vou voltar para casa. Agora.
— Não. —- A voz dele era brusca, incisiva. — Olhe para a estrada, meu filho, e descobrirá por que nenhum carro passou na última hora, por que ficou sentado neste mundo em particular, nesta hora específica.
A pouco mais de um quilômetro de distância, um carro passara pelo aclive na estrada e se aproximava de mim rapidamente. Fiquei observando, o sol faiscando intensamente no radiador prateado. Passou por mim em alta velocidade, um Rolls Corniche branco, conversível, capota arriada, dirigido por uma garota de cabelos louros agitados pelo vento. Vi as luzes do freio se acenderem a várias centenas de metros adiante e depois o carro parou. E começou a voltar, em marcha à ré, para o lugar em que eu estava sentado.
O carro veio parar a meu lado. A garota ao volante e eu ficamos imóveis, olhando um para o outro. Não falamos nada. Apenas nos olhamos.
Ela era bonita. Bronzeada pelo sol, os cabelos louros quase brancos caindo pelos ombros, agora que o vento não os estava enfunando, malares salientes, boca larga, queixo firme. Mas os olhos é que davam o remate sensacional. Eram castanhos claros, com um tom azulado. Já os tinha visto mil vezes antes. Mas não sabia onde.
Ela sorriu finalmente, os dentes muito brancos, as rugas nos cantos dos olhos tornando-os ainda mais azulados. A voz era baixa e suave, mais nítida.
— Humpty Dumpty sentado num muro.
— Humpty Dumpty levou um tombo — acrescentei.
— Todos os cavalos do rei...
— E todos os homens do rei...
Acabamos juntos:
— Não conseguiram juntar Humpty Dumpty de novo.
E rimos, A garota perguntou:
— Você é Humpty Dumpty?
— Não sei. Acha que sou?
— Pode ser — disse ela, compenetrada.
— Mas não sou. É apenas uma cantiga infantil.
— Então por que está sentado no muro?
— Não sabia o motivo, até que você apareceu. Agora sei. Estava à sua espera. Quase fui embora, mas persuadiram-me a ficar.
— E quem o persuadiu? — disse ela, olhando ao redor. Não estou vendo ninguém mais por aqui.
— Um amigo. Mas ele já se foi.
Os olhos dela voltaram a fixar-se em mim.
— Tive a impressão de que me chamava. Foi por isso que parei.
Não falei nada.
— Ouvi alguém me chamar.
— Eu a chamei, Princesa — falei, descendo do muro. Peguei a mochila e joguei no banco de trás, depois acomodei-me ao lado dela.
— Princesa... — repetiu a garota, pensativa. — Somente minha mãe chamava-me assim. Meu nome é...
Não a deixei continuar:
— Não precisa dizer-me, Princesa. Não quero saber.
— E como devo chamá-lo? Humpty Dumpty?
— Jonathan.
Ela acenou com a cabeça.
— Gosto do nome. Combina com você. — Deu a partida no carro e voltou para a estrada. Já estávamos a quase 100 antes que eu pudesse sentir. — Estou levando-o para casa.
— Está certo.
Ela me olhou rapidamente.
— Quantos anos você tem?
— Dezoito. — Eu não estava exagerando demais. Só faltavam dois meses para chegar aos 18 anos.
— Parece mais velho.
Não falei nada. Ela enfiou a mão no espaço entre os dois assentos e pegou uma cigarreira de ouro. Abriu-a.
— Acenda um para mim.
Era maconha, enrolada em máquina, papel marrom, com ponta dourada. Fiquei impressionado. Acendi o cigarro. Era da boa, talvez a melhor que eu já havia experimentado. Duas tragadas e eu já estava alto. Entreguei-lhe o cigarro. Ela meteu no canto da boca e deixou-o pendurado ali. Dois segundos depois, quando olhei para o velocímetro, já estávamos a 140. Entendi a mão e tirei o cigarro de sua boca.
— Por que fez isso?
Apontei para o velocímetro.
— Disse que ia levar-me para casa. Quero ter certeza de que vou chegar lá.
— Posso controlar o carro — disse ela baixando a velocidade.
— Tenho certeza disso — falei, apagando o cigarro. — Mas sou do tipo cauteloso.
Ela ficou calada. Alguns minutos depois, entrou com o carro na rampa de saída para West Palm Beach e foi parar no posto de pedágio.
Todos os homens do pedágio pareciam conhecê-la. Ela entregou a carteira com uma nota de cinco dólares ao homem na cabine. Ele saiu da cabine com o troco na mão. A luz vermelha no marcador indicava três dólares e meio.
— Está fazendo um dia lindo, Sra. Ross. Como é o novo carro?
— Bom de verdade, Tom.
— O radar da Patrulha Rodoviária registrou-a a mais de cento e quarenta lá atrás. Mas diminuiu a velocidade prontamente e pedimos aos guardas que relevassem.
— Obrigado, Tom. — Estendeu a mão novamente. Desta vez entregou uma nota de 20 dólares. O dinheiro desapareceu, enquanto ele voltava para a cabine.
— Não pise demais no acelerador, Sra. Ross — disse ele, polidamente. — Nunca se sabe quando alguém que não a conheça poderá estar de serviço.
— Não esquecerei.
Ela ligou o carro outra vez. Descemos pela rampa e entramos na estrada. Dez minutos depois, atravessamos uma ponte sobre um canal e avançamos por uma pequena rua particular. Ela apertou um botão no painel e os portões elétricos se abriram. Passamos e os portões tornaram a se fechar, antes mesmo de pararmos diante da casa. Ela virou-se para me olhar.
— Estamos em casa.
— Ótimo. — Saltei do carro e dei a volta para abrir a porta do outro lado.
— Terá de carregar a sua bagagem — disse ela. — É agosto e todos os empregados estão de férias, à exceção do jardineiro.
— Darei um jeito. — Peguei a mochila e segui-a para o interior da casa. Ela levou-me por um corredor e abriu uma porta.
— Esse é o seu quarto. Aquela porta é a do banheiro. A porta ao lado da janela leva-o diretamente para a piscina ou para a praia, conforme preferir. O armário está nesta parede.
Havia uma porta que ela não explicara.
— E aquela outra porta?
— É a que dá para o meu quarto. Este quarto era do meu ex-marido. Deseja saber mais alguma coisa?
Fitei-a por um momento.
— Onde está a máquina de lavar roupa? Tenho algumas roupas sujas.
Rolei na cama e abri os olhos. O sol já se fora e as sombras do crepúsculo escureciam o quarto. Mexi-me lentamente, sentindo todo o prazer de lençóis de verdade em contato com meu corpo. Fazia muito tempo que não dormia numa cama. E não imaginava como era gostoso até aquele momento.
Sentei-me na cama. Pusera todas as roupas na máquina de lavar. Ainda tinha tempo de colocá-las no secador para ter o que vestir naquela noite, ao invés da bermuda com que ficara. Saí da cama e vesti a bermuda, antes de ver as roupas, impecavelmente passadas e dobradas, no sofá encostado na parede.
Eu devia mesmo ter mergulhado num sono pesado, porque não a ouvira entrar no quarto. Toquei nas roupas. Não devia ter sido há muito tempo que ela as trouxera, porque ainda estavam quentes. Passei a mão pelo rosto. Iria agora fazer a barba e tomar outro banho de chuveiro, para poder sentir-me quase humano novamente. O banho que tomara antes de me deitar servira apenas para me deixar limpo.
Fiquei uma porção de tempo dentro do boxe, deliciando-me com a água quente. O vapor obscurecia a porta do boxe. Quando saí pude sentir o cheiro de maconha pairando no ar. Havia uma toalha grande pendurada ao alcance de minha mão. Enxuguei-me e voltei para o quarto. A porta do quarto dela continuava fechada. Fui até a janela e olhei para a frente da casa. O Rolls desaparecera. Acabei de vestir-me e bati na porta dela.
Não houve resposta. Bati novamente. Ainda o silêncio. Abri a porta e entrei. O quarto estava vazio. Voltei para meu quarto e saí para o corredor. Percorri a casa inteira. Não a encontrei em parte alguma.
Peguei uma lata de cerveja na geladeira, abri-a e atravessei a sala, saindo para a varanda. Afundei numa cadeira, olhando para o mar. No horizonte, um navio cargueiro seguia lentamente para o sul. Enquanto eu observava, a noite caiu e o navio sumiu. Lentamente, as estrelas começaram a brilhar. E logo o céu era de um azul aveludado, repleto de diamantes a faiscar. Tudo combinava. O Rools Corniche, aquela casa e agora um céu repleto de diamantes. Rico era rico.
— Está com fome? — A voz dela soou atrás de mim. Levantei e virei-me. Ela tinha uma sacola de compras em cada braço.
— Trouxe galinha frita, salada e batatas fritas. Não gosto de cozinhar.
— Não me estou queixando. — Estendi as mãos para as sacolas. — Deixe-me ajudá-la.
Havia quatro vezes mais comida do que podíamos comer. Finalmente afastei-me da mesa.
— Vou estourar, se não parar de comer.
Ela riu. Quase não comera. Apenas um pedaço de galinha e mais pouca coisa.
— Vamos guardar o resto na geladeira. Talvez você sinta fome mais tarde.
Pusemos a louça no lavador automático. Depois, ela serviu-se de um copo de vinho tinto, enquanto eu pegava outra cerveja. Fomos para a varanda. Ela se sentou numa cadeira ao lado da minha. A cigarreira de ouro apareceu subitamente. Fiquei observando enquanto ela acendia um dos cigarros marrons.
— Puxa muito fumo? — perguntei.
— É, melhor do que Vallium — disse ela, dando de ombros.
Passou-me o cigarro. Dei algumas tragadas. Estava ainda melhor do que antes. Fiquei logo flutuando.
— Não posso negar que é melhor do que Vallium. Mas por quê?
Ela não me olhou.
— Alivia a angústia da solidão.
Dei outra tragada e devolvi-lhe o cigarro.
— Por que se sente solitária? Parece ter tudo que uma pessoa pode desejar.
— Tem toda razão. — Deu outra tragada no cigarro marrom. — Pobre menina rica.
— Não era isso o que eu estava querendo dizer. É muito bonita. Não precisa ficar sozinha.
A voz dela era amarga:
— Não tenho o hábito de recolher rapazes na estrada.
— Ei, vamos com calma! Está seguindo pelo caminho errado. Fui eu que a chamei, lembra-se?
— Eu estava alta. Imaginei tudo e você colaborou.
— Princesa.
A raiva surgiu na voz dela:
— Não me chame assim! Meu nome é...
Inclinei-me para ela. Com uma das mãos, tirei o cigarro de seus dedos. Segurando a cabeça dela com a outra mão, cobri sua boca com a minha. A princípio, os lábios dela eram duros, em seguida suaves, depois ardentes. E quando afastei a cabeça, os lábios estavam tremendo. Havia sombras azuladas profundas em seus olhos
— Tem os olhos de sua mãe, Christina. A surpresa transpareceu na voz dela:
— Se conhecia o meu nome o tempo todo, por que me chamou de Princesa?
As palavras saíram por meus lábios, mas foi meu pai quem as disse:
— Se tivesse sido a minha filha, seria assim que eu a chamaria. Os dedos dela se cravaram em minhas mãos, impulsionados pelo medo.
— O que está acontecendo, Jonathan? Estou ficando louca ou há alguma coisa nessa maconha que me está fazendo ter alucinações.
Juntei as mãos dela, levando-as aos meus lábios.
— Não precisa ficar com medo. Estamos apenas dando o remate.
— Como assim? — Ela estava completamente aturdida.
— Estamos acabando algo que nossos pais nunca conseguiram. — Levantei-me e ajudei-a a ficar de pé. — Os álbuns de recortes de sua mãe ainda estão na biblioteca?
— Na prateleira de cima, no canto — disse ela com um aceno de cabeça.
Havia cinco álbuns. Grandes, encadernados em couro, um em cima do outro. Peguei todos e coloquei em cima da mesa. Mas só abri o segundo e fui direto à página que procurava.
— Aqui estamos — comentei, apontando para a fotografia. Ela olhou aturdida para o homem e a mulher que sorriam um para o outro. E murmurou, espantada:
— Podia ser nós dois.
— Podia ser, mas não é. É sua mãe. E meu pai. — Comecei a virar as páginas. — Há outras fotografias.
A voz dela tornou-se subitamente irada:
— Não quero ver mais nada!
E ela saiu correndo da sala, batendo a porta. Fechei a álbum com todo cuidado e segui-a. Fui encontrá-la em sua cama, chorando. Fiquei parado por um momento, antes de dizer:
— Desculpe. É melhor eu ir embora.
Ela virou-se, sentando-se na cama.
— Não.
— Não vim até aqui para deixá-la assim transtornada.
— Sei disso. Mas estou perturbada por mim mesma. Sou dez anos mais velha do que você. Deveria ser capaz de controlar o que estou sentindo.
Não falei nada.
— Daniel...
Olhei para as profundezas familiares de seus olhos e compreendi que não era ela quem estava falando. Era sua mãe.
— Eu ainda o amo, Daniel. E ainda o quero.
Tive de fazer um grande esforço para não ser sugado pelo remoinho daqueles olhos. Inclinei-me sobre a cama e beijei-a na testa, gentilmente.
— Tente dormir um pouco.
— Não quero dormir. Tenho muito para lhe contar. — As mãos dela puxaram-me para a cama, a seu lado. — Você estava dominado pela raiva. Nunca vi um homem sentir tanta raiva. Foi por isso que o deixei.
Empurrei-a devagar para cima do travesseiro.
— Você nunca me deixou. Nunca me deixou.
A mão dela encontrou ã minha, apertou-a com força. A voz era um sussurro:
— Tem razão. De certa forma, é mesmo verdade. Nunca o deixei.
E no instante seguinte ela estava dormindo.
Esperei por algum tempo e depois, sem fazer barulho, para não acordá-la, voltei para meu quarto e comecei a arrumar a mochila.
— Jonathan...
— Pare de confundir minha cabeça. Vá embora, Pai. Você está morto.
— Não estou confundindo sua cabeça. Preciso de você.
— Está tudo acabado para você, Pai. Não precisa de qualquer coisa ou de qualquer pessoa agora.
— Eu a amo, Jonathan.
— Está confundindo as coisas, Pai. Ela não é a mãe.
— Ela é tanto a mãe quanto você é eu.
— Não posso ajudá-lo, Pai. Vá embora e deixe-me viver a minha própria vida. — Um pensamento surgiu-me subitamente. — Ela é sua filha, Pai?
— Não. — Havia um suspiro na voz. — Se fosse, eu não precisaria de você para dizer-lhe o que sinto.
— A mãe dela está morta, Pai. Por que não lhe diz diretamente?
— Os mortos não podem falar com os mortos, meu filho. Somente os vivos se podem comunicar.
— Estava falando com alguém, Jonathan?
Ela estava parada na porta aberta que ligava os quartos. Não respondi. Ela entrou no quarto.
— Tive a impressão de ouvir vozes.
— Não há mais ninguém aqui.
Ela olhou para a mochila aberta na cama.
— Vai embora?
Peguei a mochila e derramei as roupas sobre a cama.
— Não, não vou embora.
Havia um tom de curiosidade na voz dela:
— O que aconteceu entre minha mãe e seu pai?
— Não sei. Apenas sinto coisas. Mas algo me trouxe até aqui, porque é importante que eu saiba.
— Também me sinto assim. — Um brilho súbito de compreensão surgiu nos olhos dela. — Minha mãe tinha um diário. Talvez...
— Pode estar lá o que queremos saber — apressei-me em dizer. — Sabe onde está o diário?
— Sei, sim. Era aqui que minha mãe morava. Depois que ela morreu, todos os seus pertences pessoais foram encaixotados e guardados. Os álbuns de recortes ficaram porque estavam na prateleira de cima na biblioteca e só os encontramos depois que o resto estava guardado. Preferimos não nos incomodar com isso.
— Podemos ir buscá-lo?
— As coisas estão guardadas em Miami. Podemos ir de carro até lá amanhã.
Comecei a me sentir melhor.
— A menos de cem por hora. Ela sorriu.
— Prometo. — Virou-se para voltar a seu quarto, acrescentando: — Boa noite, Jonathan.
— Boa noite, Christina.
Observei a porta se fechar atrás dela, depois despi-me e me deitei. Senti a exaustão me dominar o corpo e mergulhei num sono profundo.
30 de junho de 1937
Philip Murray apareceu no hospital hoje para visitar Daniel. Foi a primeira vez que alguém do sindicato apareceu desde que ele foi internado, há um mês. Foi quase uma semana depois que os médicos disseram que Daniel nunca mais voltaria a andar. Dois homens vieram com Murray. O Sr. McDonald e o Sr. Mussman. Eu estava sentada ao lado da cama e fui a primeira a ver os homens, atravessando a enfermaria e abrindo as cortinas que separavam os pacientes uns dos outros. Levantei-me, quando pararam diante da cama de Daniel.
Daniel apresentou-nos e houve um momento de silêncio embaraçoso, quando ouviram meu nome. Por isso, pedi licença e afastei-me até a extremidade da enfermaria. Os homens ficaram com Daniel durante cerca de 15 minutos. Ao partirem, atravessaram a enfermaria em silêncio, sem olhar para trás uma única vez. Voltei para junto de Daniel.
Havia no rosto dele uma expressão que eu nunca tinha visto antes. Como se os músculos se tivessem transformado em pedra e apenas os olhos continuassem vivos, ardendo com uma fúria intensa. Havia alguns papéis espalhados sobre o lençol.diante dele. As mãos de Daniel estavam fechadas, tão tensamente que cheguei a pensar que as articulações iriam romper a pele esticada. Depois de um momento, Daniel pegou um dos papéis e estendeu-o para mim. As mãos tremiam, de tal forma que ele não conseguia evitar.
Era em papel timbrado do S.W.O.C. Tendo em vista os serviços inestimáveis por ele prestados no passado, a comissão executiva decidira não aceitar sua carta de demissão datada do dia anterior aos ferimentos recebidos. Em vez disso, iriam aposentá-lo com um mês de salário adiantado, com uma pensão de 25 dólares por semana, durante um período de dois anos, a começar imediatamente. Além disso, assumiriam as despesas de hospital acima do que fosse pago pelos serviços públicos, desejando-lhe também pleno sucesso em qualquer empreendimento futuro que pudesse iniciar. A carta era assinada por Philip Murray.
Olhei para Daniel em silêncio. Não havia nada que eu pudesse dizer.
— A greve está perdida — disse ele. -— Você sabe disso.
Limitei-me a assentir.
— Dez mortos no Memorial Day, em Chicago. Menos de um mês depois, doze mortos em Youngstown, mais de cem homens aleijados e feridos. E agora está acabado. Eles se afastam, enquanto os homens voltam ao trabalho como cachorros espancados. Vamos pegá-los da próxima vez. Enquanto isso, eles voltam a se empenhar em seus jogos de poder. Os homens que se puseram na linha de frente por eles, sangraram por eles e morreram por eles não são nada além de lixo. Para serem jogados fora, como um limão espremido para o qual não se tem mais uso.
Os olhos de Daniel passaram de ardentes a glaciais. A voz tinha uma paixão como eu nunca ouvira antes.
— Eles acham que estou liquidado. Que nunca mais voltarei a andar, que nunca mais poderei funcionar. E esse é outro erro que podem anotar em seu crédito. Assim como a greve que nunca deveriam ter começado. Uma greve que sabiam que não poderiam vencer. — Os olhos dele se fixaram nos meus. — Vou andar de novo. E você vai ajudar-me.
Assenti.
— A primeira coisa que tem de fazer é tirar-me deste hospital, onde a única coisa que se ouve é “Sinto muito.”
— E para onde vamos, Daniel?
A voz dele tornou-se subitamente suave:
— Para casa.
16 de julho de 1937
Saltamos do trem em Fitchville, Deixei-o sentado na cadeira de rodas, cercado pelas malas, na plataforma da estação, enquanto descia pela rua e comprava um Dodge 35, por 295 dólares. Seguimos depois por estradinhas rurais até as colinas que Daniel considerava o seu lar. O que lá havia nem mesmo era mais uma cabana decrépita, mas apenas uma estrutura enegrecida, inteiramente queimada. Daniel ficou olhando impassivamente depois virou-se para mim.
— Vai voltar à cidade amanhã de manhã. Contrate os quatro pretos maiores que encontrar, a um dólar por dia e mais a comida. Depois, vá ao armazém e compre para cada homem, um martelo, um serrote e um machado, além de algumas tábuas e um barril de pregos. Compre também comida suficiente para sustentar os homens durante uma semana. Feijão, lombo de porco, café e açúcar. E compre o que achar melhor para nós. — Ele percebeu a expressão em meus olhos e acrescentou: — Não se preocupe. Vai dar tudo certo.
— Tem certeza de que é isto o que está querendo, Daniel? Ainda podemos aceitar o oferecimento de Tio Tom.
Fora alguns dias antes que Tio Tom se dispusera a pagar todo o tratamento, com a condição de que Daniel assinasse um documento pelo qual se comprometia a nunca mais trabalhar no movimento sindical.
Daniel recusara: “— Não quero mais fazer acordos com ninguém. Nem contra nem a favor dos sindicatos. Deixo as opções em aberto. Agora, só confio em mim.”
Ele ignorou minha pergunta.
— Vamos dormir no carro esta noite. E amanhã vamo-nos transferir para a casa, assim que os homens a limparem.
Daniel acomodou-se no banco traseiro da melhor maneira possível. Deitei-me no banco da frente, porque era mais fácil para mim meter as pernas por baixo do volante. Acordei durante a noite. Ele estava sentado no banco de trás, olhando para a casa. Ao me ouvir, virou-se para fitar-me. E perguntei:
— Você está bem Daniel?
Ele assentiu.
— Pode fazer-me um favor?
— Claro. O que está querendo?
— Acho que pode dar um jeito de sentar na minha cara?
— Somente se você me deixar chupá-lo depois.
Pela primeira vez em muito tempo, ouvi Daniel soltar uma risada. Foi nesse momento que compreendi que tudo daria certo. Ele estendeu os braços para mim e murmurou:
— Venha, meu bem. Estamos em casa.
28 de agosto de 1937
O Dr. Pincus, o ortopedista, terminou o exame. Passara a tarde inteira mantendo, apertando, verificando. Observara Daniel andar. De muletas. Depois, na pista de barras paralelas, Daniel movera as pernas rigidamente, mas mesmo assim as movera, enquanto se sustentava com os braços. Depois, novamente de muletas, com um tijolo amarrado debaixo de cada sapato, dando-lhe um peso extra, a fim de que fosse necessário um esforço maior para que cada perna desse um passo. O exame finalmente chegara ao fim. Daniel deitou-se exausto, enquanto Vila começava a massagear-lhe as pernas, das coxas aos pés.
O médico saiu comigo.
— Não posso acreditar. Há apenas um mês, eu seria capaz de afirmar que era totalmente impossível o que ele acabou de fazer.
— É que não conhece Daniel.
— Mas tudo o que tem feito está errado. Vai contra a teoria de recuperação da musculatura pela qual trabalhamos.
— Talvez haja alguma coisa errada com sua teoria.
Ele me olhou atentamente.
— De onde foi que Daniel tirou as suas idéias?
— De dois livros que comprou pelo correio: Desenvolvimento do Corpo, de Bernarr MacFadáen, e Não Seja um Fracote de 45 Quilos, de Charles Atlas.
— E a terapeuta? De onde ela veio?
— É a Sra. Torgersen, que toma conta do filho de Daniel na Califórnia. Ela já trabalhou num hospital e escreveu-nos para dizer isso. Era especialista em massagem ortopédica em seu país.
O Dr. Pincus sacudiu a cabeça.
— Vi tudo, mas ainda não sei se posso acreditar. De qualquer forma, não vou-me opor. Está dando certo. E se tudo continuar no mesmo ritmo, ele estará andando dentro de um mês.
— Foi o que Daniel falou. Garantiu que no dia 30 de setembro sairá daqui andando.
O Dr. Pincus assentiu
— Acho melhor eu passar a vir aqui todas as semanas. Não gostaria que ele exagerasse e sofresse um retrocesso.
10 de setembro de 1937
Daniel jogou fora as muletas. Está agora andando apoiado apenas em duas bengalas. E está começando a tentar andar mesmo sem a ajuda das bengalas. Mas depois de dar alguns passos, as pernas fraquejam. Ulla o ampara como se ele fosse um bebê e o repreende por tentar mover-se depressa demais. Deve mover-se lentamente, no início. Daniel sacode a cabeça obstinadamente e recomeça. Desta vez, Ull o segura antes mesmo de ele começar a cair. Depois, como se ele fosse uma criança, Vila pega-o pelas axilas e o arrasta para uma cadeira, fazendo-o descansar. Não sei qual dos dois, se Daniel ou eu, ficou mais surpreso, quando ela fez isso pela primeira vez. Ulla é uma mulher grande, com mais de l,80m de altura, peito imenso, quadris largos, pernas fortes.
Ela ajoelhou-se diante de Daniel, tirando-lhe os sapatos. E ordenou:
— Desabatoe a calça.
Daniel olhou para mim e soltei uma risada.
— É melhor fazer o que ela está mandando ou pode levar umas palmadas.
Daniel abriu o cinto e desabotoou a calça. Habilmente, Vila puxou-a. E pondo as pernas de Daniel sobre seus joelhos, começou a massageá-las.
— O segredo é manter a circulação, a fim de que os músculos não fiquem contraídos e rígidos.
— Claro, claro — murmurou Daniel, olhando para mim, visivelmente constrangido.
Soltei uma risada e entrei na cabana. Estava quase na hora de começar a preparar o jantar. Ulla e eu nos revezamos na cozinha. E hoje era o meu dia.
27 de setembro de 1937
Imagino que, subsconscientemente, eu já sabia que Daniel andava trepando com Ulla. Mas não queria admitir para mim mesma. Desde aquele dia em que a vi puxando a calça de Daniel para massagear-lhe as pernas e percebi que ele estava duro por baixo da cueca. Mas recusei-me a enfrentar a verdade até o dia em que os surpreendi. Estava voltando de Fitchville, onde fora levar o Dr. Pincus na estação ferroviária. O médico mostrava-se cada vez mais impressionado com o progresso de Daniel. Nunca antes vira nada igual. Daniel já estava começando a dar voltas curtas, embora ainda vacilantes, sem a bengala.
— É a força de vontade humana — comentara o Dr. Pincus no caminho. — Creio que jamais poderemos compreendê-la. Os ossos estavam fraturados, os nervos, músculos e tendões dilacerados, nas duas pernas. Segundo os livros, não podia haver a menor possibilidade de ele fazer o que está conseguindo.
O médico me olhara com os olhos faiscando.
— Nunca mais acreditarei em qualquer afirmação negativa. Nem mesmo nas cantigas infantis. Humpty Dumpty pode ser juntado de novo. Basta o próprio ter força de vontade para fazê-lo.
O carro enguiçara no caminho de volta e eu tivera de percorrer o último meio quilômetro até a cabana. Os dois estavam no chão, inteiramente nus! Vila estava deitada de costas, os peitos imensos empurrados para cima, como montanhas gêmeas, as pernas abertas e erguidas, contra a barriga, as mãos enfiadas por baixo dos joelhos. Gemia de prazer, enquanto Daniel se arremessava contra ela, repetidamente, até desabar no orgasmo, repousando sobre o corpo imenso de Vila. Ela afagou-o gentilmente, falando como se ele fosse uma criança.
— Foi muito bom. Quando a gente acabar, suas pernas estarão tão fortes quanto o pau.
Tentei fechar a porta silenciosamente, antes que eles me pudessem ver. Mas Daniel olhou no último instante. Terminei de fechar a porta e fiquei sentada na varanda. Ele saiu da cabana cerca de 10 minutos depois, andando com a ajuda das duas bengalas. Arriou numa cadeira ao lado da minha.
Não falamos nada por um longo tempo, até que finalmente Daniel disse:
— Está imaginando o que estávamos fazendo, não é mesmo?
— Sei o que estavam fazendo. Trepando. Ele riu.
— Isso está certo. E que mais?
— O que mais pode ser? — perguntei, sarcasticamente. — Trepar é trepar.
— Faz parte da minha recuperação.
— Claro, claro — murmurei, ceticamente. — Mas seu pau nunca esteve quebrado.. . apenas as pernas.
— Ê um exercício de flexão.
— Pude ver perfeitamente.
— Era um meio de exercer pressão nas pernas.
Não me pude conter e desatei a rir.
— O prazer foi apenas incidental?
Ele sorriu.
— Você me conhece, Chris. Nunca fui capaz de resistir a uma pequena cona.
— Não era uma pequena cona, mas sim uma cona imensa. Até mesmo para você.
Daniel riu e pegou-me a mão. E no mesmo instante ficou sério.
— Eu a mandarei embora, se você quiser.
— Não precisa. Mas vou fazer uma pequena mudança.
— Qual?
— Se precisa mesmo fazer esse exercício, terá de ser comigo. Tenho sido muito gentil com você. Fico sempre por cima, para que não precise esforçar-se demais. Agora, você voltará a funcionar como antes. Ficarei por baixo, desfrutando ao máximo.
10 de outubro de 1937
Daniel está andando. Quando está cansado, usa uma bengala. Mas está andando. Hoje, levei o Dr. Pincus e Ulla para a estação ferroviária. Ele ficou tão impressionado com Ulla que decidiu levá-la consigo, para trabalhar em seu consultório em Washington. Ele não sabe disso ainda, mas com o tipo de terapia física que Ulla está sempre disposta a oferecer aos pacientes, vai ser o ortopedista mais ocupado do país.
Quando voltei à cabana, Daniel estava sentado na varanda, segurando um drinque e fumando um charuto. Uma garrafa de uísque e outro copo estavam na mesa a seu lado. Ele serviu-me de uma dose de uísque.
— Conseguimos, Chris.
— Você é que conseguiu. — Estendi o copo na direção dele, tocamos num brinde e depois bebemos. — E o que vamos fazer agora?
— Em primeiro lugar, vou à Califórnia para ver meu filho. Depois, tenho de arrumar um emprego.
— Vai voltar a trabalhar com Murray?
Daniel sacudiu a cabeça.
— Quero que ele se dane.
— Lewis?
— Não, enquanto Murray estiver com ele.
— Ainda pode falar com Tio Tom.
— Sabe que eu jamais faria isso. Encontrarei alguma coisa. Talvez até funde a minha própria organização sindical.
— Um sindicato? E em que atividade? Tenho a impressão de que já está tudo coberto agora.
— Nem tudo. Tenho pensado que os associados dos sindicatos precisam de alguma espécie de proteção contra os seus próprios líderes.
— Isso não faz sentido, Daniel. Seria um sindicato dentro de um sindicato.
— Quem sabe? — Ele riu. — Talvez chegue a isso. Quando penso nas coisas que as lideranças sindicais fazem aos associados, começo a me perguntar em benefício de quem exatamente são adotadas todas as decisões. Mas não estou com pressa. Há tempo suficiente. Ainda preciso circular muito. Há muita coisa que tenho de aprender.
— E onde fico nisso tudo? O que devo fazer enquanto você faz todas essas coisas?
— Você tem seu trabalho com seu tio.
— Eu o deixei. Agora, não posso voltar rastejando para ele. Você sabe disso.
— Bem, você não precisa preocupar-se com dinheiro. É rica.
— Não respondeu à minha pergunta. — Estava ficando zangada. — Não estou falando de emprego. Refiro-me a mim e a você.
Daniel não respondeu.
— Sabe que quero casar-me com você.
Ele continuou calado.
— Estou grávida de dois meses. O Dr. Pincus confirmou-o.
O copo se quebrou na mão dele. Furioso, Daniel arremessou-o para longe, o uísque e o sangue dos dedos salpicando a grade de madeira. E sua voz soou extremamente tensa:
— Não! De jeito nenhum! Não vai fazer isso comigo. Todas as mulheres são iguais. Pensam que suas conas podem prender um homem. Tess fez isso comigo e estragou-me a vida. Não vou deixar que aconteça novamente. — Levantou-se e foi até a porta. — Faça um aborto ou o que achar melhor. O filho é seu e não meu.
Ele entrou na cabana, batendo a porta. Ouvi o estrondo quando ele cambaleou e caiu. Abri a porta e vi-o estendido no chão. Ele virou a cabeça, os olhos me fitando com uma expressão furiosa.
— Vá se foder! — gritei.
Fechei a porta. Era a primeira vez que não havia ninguém para ajudá-lo a levantar-se quando caía.
15 de outubro de 1937
Fiz o aborto hoje. O médico não me quis dizer se era menino ou menina. Está chovendo em Chicago. Não tenho notícias de Daniel. Não sei por que não consigo parar de chorar. O médico disse que vai voltar e me aplicar uma injeção, a fim de que eu possa dormir.
Havia poucas anotações no diário depois dessa data. Ela começara um novo diário no ano seguinte. Mas depois de alguns registros, parecia ter desistido dele também. Não havia outros diários para os anos subseqüentes. Assim como também não havia qualquer referência adicional a meu pai.
Christina olhou para o copo de vinho tinto em sua mão.
— Será que ela tornou a encontrá-lo alguma vez depois disso?
— Creio que não. — Guardei os diários de volta na caixa que trouxéramos do depósito. — Quando seus pais se casaram?
— Em 1945. Logo depois da guerra. Meu pai era coronel no quartel-general de Eisenhower em Londres. Conheceu minha mãe quando ela trabalhava no escritório da intendência. Casaram-se quando voltaram para os Estados Unidos. Nasci no ano seguinte. E você?
— Nasci em 1956. Dez anos depois que meu pai fundou a C.A.L.L. Ele levou quase nove anos para começar a organização sindical sobre a qual falou com sua mãe.
— E o que ele fez nesses nove anos?
— Não sei realmente. Nunca soube muito a respeito dele. Quase não conversávamos.
— Mas conversa com ele agora.
— O que a leva a dizer isso?
— Posso sentir. — Ela tomou um gole do vinho. — Há ocasiões em que você é uma pessoa completamente diferente. E quando o olho, não é a você que vejo, mas sim outra pessoa.
Olhei para o relógio. Já passava de duas horas da madrugada.
— Acho melhor irmos dormir.
— Estou inquieta. Não quer fumar um baseado antes?
Hesitei.
— Apenas umas bicadas, Jonathan. Vai servir para me acalmar.
— Está certo.
Saí para a varanda, enquanto ela ia buscar os cigarros marrons. Era uma noite suave, uma brisa quente soprando do mar. Acomodei-me numa espreguiçadeira.
Ela veio sentar-se a meus pés. Acendi o cigarro, enquanto ela tomava outro gole de vinho. Dei algumas tragadas e entreguei-lhe o cigarro. Ela puxou com força, umas tragadas profundas, prendendo a fumaça nos pulmões, depois soltando o resíduo lentamente.
Dei mais algumas tragadas e senti que a cabeça começava a girar. Devolvi o cigarro.
— Acho que já chega para mim.
— Tem de se acostumar — disse ela, sorrindo.
— Não sei se poderia.
Ela riu e tornou a tragar o cigarro.
— Para onde vai agora, Jonathan?
Enfiei os braços por baixo da cabeça, recostando-me.
— Estava pensando em voltar para casa. Mas agora estou em dúvida.
— Descobriu o que veio procurar aqui?
— Não sei o que estou procurando... se é que estou mesmo procurando alguma coisa.
— Seu pai.
— Ele está morto. É tarde demais para isso agora.
Ela tornou a dar uma tragada.
— Sabe que não é bem assim, Jonathan.
Tirei o cigarro dos dedos dela. E desta vez puxei de verdade. Tive a sensação de que o tempo da cabeça saía. E a língua ficou dormente.
— Não vamos mais falar a respeito dele. Combinado?
— Combinado. Sobre o que vamos falar então?
— Em ser rico. Como é?
— Não conheço qualquer outra maneira de viver.
— Seu marido também era rico?
— Era, sim.
— E seu pai?
— Também.
— Ou seja, nasceu em berço de ouro.
Ela pensou por um instante.
— Acho que se pode dizer assim.
— Por que se divorciou?
— Quer saber a verdade?
— Foi para isso que perguntei.
— Ele se sentia culpado por ser rico. O que não era o meu caso.
Soltei uma risada.
— Não tem nada de engraçado, Jonathan. Ele não sabia como relaxar e desfrutar. Estava sempre tenso.
— E por isso se divorciou. Há quanto tempo?
— No ano passado.
— Está melhor agora?
— Em algumas coisas. — Ela deu de ombros. — Pelo menos ele não está mais me olhando a todo instante com uma expressão de acusação. Nem me censurando porque não faço qualquer contribuição à sociedade através do trabalho. No meu ponto de vista, pelo menos não estou tirando um emprego de alguém que precisa.
— Não tenho como contestar esse ponto de vista. — Dei outra tragada no cigarro marrom e devolvi-o. — Toda a minha cabeça está girando. Nunca fiquei assim antes.
— E está-se sentindo bem?
— Não podia ser melhor.
— Pois então trate de desfrutar. — Inclinou-se e beijou-me. A boca estava quente. Comprimi-a contra a minha. Depois,de um momento, ela levantou a cabeça e fitou-me nos olhos.
— Quero que fique aqui comigo por algum tempo, Jonathan. Pode ficar?
— Não sei.
— Fique enquanto puder. Preciso de você.
Sondei fundo aqueles olhos familiares.
— é quase incesto. Está querendo a meu pai e não a mim.
— Não há nada de errado nisso. Você é seu pai, assim como eu sou minha mãe. Você falou que estava planejando recuperar o tempo perdido. Na ocasião, não entendi. Mas agora compreendo. Temos de terminar o que foi começado.
— Não falei nada.
— Alguma vez já esteve apaixonado, Jonathan?
— Acho que não — respondi, após um instante.
— Nem eu. Mas sei que isso existe. Foi o que minha mãe encontrou com seu pai. Talvez possamos também encontrar um no outro.
Desta vez, fui até o fundo dos olhos dela. E de repente já não era mais eu mesmo. Abri os braços e ela se aninhou, a cabeça encostando em meu peito. Lentamente, afaguei-lhe os cabelos compridos e sedosos.
— Acho que já encontramos, Christina. — Virei o rosto dela, fitando-a. — Mas só que não é nosso. Nunca será. E você sabe disso.
— Tem razão — murmurou ela, os olhos se enchendo de lágrimas. — Mas não importa de quem seja, enquanto pudermos senti-lo...
Outro Dia
— Você é um tremendo patife, Big Dan.
Daniel soltou uma risada, enquanto tranqüilamente tornava a encher seu copo com a garrafa de bourbon à sua frente. Olhou para o outro dos dois homens sentados à sua frente e perguntou:
— O que acha, Tony?
— Penso a mesma coisa.
Daniel tornou a rir. Terminou de tomar o uísque de um só gole e levantou-se. Uma mecha de cabelos caía sobre a testa.
— Creio que a reunião está encerrada.
— Espere um pouco — disse o primeiro homem rapidamente. — Não falei isso. Sente-se. Podemos conversar.
Daniel fitou-o por um momento, depois assentiu. Tornou a se sentar, lentamente, encheu o copo mais uma vez.
— Está certo. Pode falar.
— Está pedindo demais.
— Demais o quê? Dinheiro? Não é nada, em comparação com o que posso fazer por vocês. Posso torná-los respeitáveis.
— Já somos respeitáveis — disse o homem, obstinadamente.
— Mas por quanto tempo? Enquanto permanecer nas sombras. No instante em que aparecer em primeiro plano, eles vão cair em cima.
Daniel fez uma breve pausa.
— Vejo as coisas com a maior simplicidade. Dave Beck vai cair. Pela lógica, você será o próximo presidente do sindicato dos motoristas de caminhão, Jimmy. Mas será mesmo? Já imaginou se Meany não gostar? Não pode passar da A.F.L. para o C.I.O., porque as duas organizações vão-se juntar agora. Está perdido. Não tem para onde ir.
Virou-se para o outro homem.
— E o mesmo se aplica a você, Tony. John L. não vai designá-lo para a presidência da U.T.M., quando deixar o cargo. Tom Kennedy é que aproveitará a oportunidade. Está esperando há mais tempo. Mas pode conseguir uma vice-presidência executiva. E com um camarada como Kennedy na presidência, isso é ainda melhor. Ainda estará seguro nas sombras e haverá tempo para fazer o seu lance quando Kennedy sair.
— Já calculou tudo — comentou Jimmy Hoffa.
— Estou nesse negócio há muito tempo — respondeu Daniel.
Tony Boyle soltou uma risada.
— Então por que não está rico?
— Não tinha pressa — declarou Daniel, sorrindo. — Estava esperando que vocês aparecessem.
— Sabe perfeitamente que não posso convencer Lewis a aceitar uma taxação de dez cents por associado para a C.A.L.L. — disse Tony.
— Sei disso. Mas os sindicatos locais podem tomar a iniciativa, se quiserem. E podem providenciar isso. No final das contas, dá no mesmo.
— O velho vai ficar uma fera — comentou Tony. — Ele tem ódio de você, depois do que falou a respeito dele.
— E qual é a novidade que há nisso? — disse Daniel, sorrindo. — Meany, Beck, Reuther... nenhum deles me aceita. São todos sócios do mesmo clube. Estão querendo acabar comigo há anos, mas continuo a sobreviver.
Boyle sacudiu a cabeça, com uma expressão de admiração.
— Não sei como consegue. Não tem tantos membros assim... talvez uns quarenta ou cinqüenta mil.
— Quase cem mil. — Daniel sorriu. — Mas os números não importam. São todos sindicatos pequenos. E independentes. Que os mandachuvas nunca se deram ao trabalho de incomodar, porque não podiam tirar muita coisa deles. Mas servem para proporcionar uma coisa que ninguém mais tem.
— E o que é? — indagou Hoffa.
— Equilíbrio de poder. Nunca tivemos qualquer problema, nenhum escândalo. Ninguém jamais desviou dinheiro.
— Não havia o suficiente para alguém desviar — comentou Boyle, rindo.
— É possível, mas isso não anula o fato. O público confia em nós. Formamos a única organização sindical que conta com a aprovação pública, conforme as pesquisas demonstram.
— Os Teamsters, motoristas de caminhão sindicalizados, também não vão aceitar o acordo — disse Hoffa.
— O Distrito 299 aceitará. É o seu distrito e os homens farão o que mandar. Cerca de duzentos mil homens é o suficiente para pôr a bola em movimento. E, com o passar do tempo, os outros vão acabar aderindo.
— Já sabemos agora o que está querendo. E o que vamos ter em troca?
— Ajuda e conselho. Ambos são jovens e ambiciosos. Posso ajudá-los a realizarem suas ambições. E posso protegê-los contra tudo, exceto contra vocês próprios.
— Pretende falar com outros sindicatos? — perguntou Hoffa.
— Pretendo. Vocês dois são os primeiros.
— E por que logo nós?
— Porque ambos estão em atividades que são vitais para a existência do país.
Os dois homens ficaram em silêncio por um momento. Depois, Boyle indagou:
— Podemos pensar um pouco na proposta?
— Claro — disse Daniel, concordando.
— O que vai fazer se não concordarmos?
— Há outros homens, igualmente jovens e igualmente ambiciosos, em outros distritos.
— Isso é chantagem — comentou Hoffa, sem qualquer rancor.
— Tem toda razão — concordou Daniel, jovialmente.
— Temos uma semana para pensar? — perguntou Boyle.
— Dou uma semana.
Apertaram-se as mãos e Daniel ficou observando-os deixarem o bar juntos. Pela janela aberta, pôde vê-los seguindo para os respectivos carros. Depois que os carros se foram, Daniel olhou para seu copo. Perguntou-se se eles sabiam como a sua situação era desesperada. Lutara durante 10 anos para formar sua base de poder e de repente, no ano anterior, tudo fora destruído de um só golpe Como uma conseqüência da fusão da A.F.L. com o C.I.O. E agora pouco a pouco, os sindicatos independentes que alinhara em sua organização estavam começando a se afastar. Restava o suficiente em caixa para agüentar por mais um ou dois meses. E depois estaria tudo acabado. Os últimos 20 anos teriam sido em vão. E os sonhos, esperanças e ideais estariam destruídos além de qualquer possibilidade de recuperação. Levantou-se, cansado.
— Ponha na conta, Joe — disse ao bartender, ao sair. — E acrescente dez dólares para você.
— Obrigado, Big Dan.
Daniel piscou ao sair para o sol intenso da rua. Esperou que houvesse uma brecha no tráfego, antes de atravessar a rua para o prédio de dois andares. Olhou para as letras de alumínio sobre a entrada. C.A.L.L. Estavam embaçadas, com as marcas do tempo. Teria de mandar o zelador polir aquelas letras.
Ele entrou no prédio, passando pelas salas do primeiro andar. Foi até a escada nos fundos e subiu direto para seu gabinete particular. Daniel Jr. o estava esperando.
— Como foi, Pai?
— Eles escutaram — respondeu Daniel, sentando-se à mesa.
— Acha que eles vão aceitar?
— Não sei. Já não sei de mais nada. — Abriu a gaveta da mesa, tirou um charuto e acendeu-o. — Já recebeu alguma notícia da escola?
Daniel Jr. sorriu.
— Fui aceito em Harvard para o curso de pós-graduação em Economia — disse Daniel Jr.
Daniel levantou-se no mesmo instante. E sua mão quase triturou a do filho.
— Meus parabéns, filho. Estou orgulhoso de você.
— Estou muito satisfeito com isso. Mas...
— Mas o quê?
— Não sou obrigado a ir, Pai. — Júnior hesitou. — Sei qual é a situação financeira. E já tenho idade suficiente para trabalhar.
— E vai mesmo trabalhar. Algum dia terá de assumir o comando de tudo isso e deverá estar preparado.
— E se Boyle e Hoffa não aceitarem? Ficará numa situação difícil.
— Darei um jeito. Você vai estudar de qualquer maneira. É essa a sua obrigação agora. — O telefone tocou nesse momento. — Atenda, Júnior. Vou ao banheiro.
Embora se esforçasse em não demonstrar, Júnior estava impressionado quando informou, assim que Daniel voltou à sala:
— O telefonema era da Casa Branca. Um tal de Sr. Adams.
— Sherman Adams.
Júnior assentiu.
— O que ele queria?
— Está convidado a se reunir com o Presidente durante o café da manhã, no dia 6 de setembro. Querem que ligue de volta para confirmar.
— Ele disse quem mais estava convidado?
— Não perguntei — falou Júnior, sacudindo a cabeça.
Daniel pegou o telefone e pediu à secretária que ligasse para Adams. Enquanto esperava, ele explicou ao filho:
— Eisenhower deve estar ficando preocupado. Praticamente todos os sindicatos da A.F.L.-C.I.O. já aderiram a Stevenson.
A ligação foi concluída, Adams entrou na linha e Daniel prontamente perguntou:
— Qual é o caso, Sherman?
— O Presidente achou que seria uma boa idéia conversarem um pouco.
— Quem mais foi convidado?
— John L. Lewis. E talvez Dave Beck.
— Não convide Beck. Estão acontecendo algumas coisas que podem deixar você embaraçado.
— Pode dizer-me o que há? — indagou o assessor presidencial.
— Não pelo telefone.
— Entendo — murmurou Adams, pensativo. — Vai poder vir?
— Estarei aí.
— Ótimo. O Presidente ficará satisfeito.
— Apresente-lhe meus cumprimentos. E voltaremos a nos falar, no dia 6.
— Às oito horas da manhã —, disse Adams, desligando em seguida.
Daniel olhou para o filho através da mesa e sorriu.
— Acho que a Casa Branca ainda não foi informada de que estamos numa situação difícil. — Olhou para os papéis em sua mesa. — E agora tenho de trabalhar.
— Não vou mais incomodá-lo, Pai. — Júnior foi até a porta, parou e olhou para trás. — Vai jantar em casa esta noite?
— Ainda não sei — respondeu Daniel. — Diga a Mamie que telefonarei mais tarde para informar.
Ficou olhando para a porta fechada por algum tempo, depois que o filho se retirou. Finalmente pegou uma garrafa de uísque na última gaveta da escrivaninha e tomou um gole comprido. Cuidadosamente, tornou a atarraxar a tampa na garrafa e devolveu-a à gaveta. Em seguida, pegou o telefone e perguntou quais eram os recados que haviam deixado para ele.
— A situação vai ficar ainda pior até o final do mês — disse Moses. — Se não conseguirmos arrumar algum dinheiro antes disso, estaremos liquidados.
Daniel olhou para seu assistente executivo.
— Pensei que dispúnhamos de reservas pelo menos para mais dois meses.
— As contribuições não estão chegando. Ao que parece, nem mesmo estão-se dando ao trabalho de nos comunicar que ss estão desligando. — O rosto preto de Moses estava terrivelmente preocupado. Eram amigos há mais de 20 anos e ele fora o primeiro homem que Daniel convidara a ingressar na C.A.L.L. — Acho que é melhor começarmos a dar o aviso prévio aos nossos funcionários.
Daniel pensou por um instante,
— Não podemos fazer isso. A notícia de que estamos fechando vai espalhar-se e aí mesmo é que estaremos liquidados.
— Nesse caso, não sei o que poderemos fazer.
— Teremos de pedir emprestado.
Moses riu amargamente.
— E quem nos vai emprestar algum dinheiro? Não aceitariam as nossas listas de associados como contas a receber. Especialmente depois de verificarem os registros das contribuições no último ano.
— Sei onde podemos conseguir o dinheiro. Com Lansky.
Moses ficou calado. Daniel fitou-o nos olhos.
— Não aprova?
— E você próprio aprova? Sabe o que isso significa. A partir do momento em que os deixar entrar, eles nunca mais sairão. Ouvi-o dizer isso muitas vezes.
— Tem razão — murmurou Daniel, amargamente. — E onde isso nos levou? Talvez tenha chegado o momento de enfrentarmos as verdades da vida. Os outros aceitaram. E não vejo como isso os prejudicou.
— Não é como eles.
— Talvez seja o momento de eu mudar — disse Daniel, cansado. — O mundo inteiro não pode estar com o passo errado e somente eu estar certo.
Moses não disse nada.
— Não fique calado aí como o Sr. Virtuoso — falou Daniel, a voz subitamente furiosa. — Até mesmo Deus teve de fazer um acordo com o Demônio para dividir o chamado reino do futuro.
— Estamos falando sobre o momento presente.
— Se não gosta, sempre pode ir embora — falou Daniel, com voz fria e incisiva.
— Sabe perfeitamente que eu jamais faria isso — respondeu Moses, magoado.
— Desculpe — urmurou Daniel, arrependido. — Não queria dizer isso. Mas se eu conseguir fechar o acordo com Boyle e Hoffa, superaremos a crise. Temos de sobreviver até lá. E ainda tenho a reunião na Casa Branca na próxima semana. Não fará mal algum. Pelo menos servirá para mostrar que ainda estamos vivos e que o Presidente acha que ainda somos importantes.
— Está certo — disse Moses, após um momento. — Quando pretende encontrar-se com Lansky?
— Amanhã, se for possível. Posso pegar um vôo da manhã para Miami e voltar antes do anoitecer.
Já eram quase seis horas e Daniel se preparava para deixar o escritório, quando a secretária chamou-o pelo aparelho de inter-comunicação.
— A Srta. Rourke está aqui.
— Srta. Rourke? — Daniel não tinha a menor idéia de quem fosse.
— Ela telefonou na semana passada. Falou-lhe pessoalmente. Era algo a respeito do pai dela, que não estava recebendo a pensão o sindicato. Pediu-lhe que trouxesse os detalhes. E marquei o encontro para as seis horas de hoje.
Daniel lembrou-se agora. O pai da garota fora atropelado por um trator e perdera o uso de uma perna. E agora estava encontrando dificuldades para receber a pensão.
— Está certo. Mande-a entrar.
A porta se abriu e a moça entrou na sala. Daniel levantou-se prontamente.
— Sou Daniel Huggins.
Era muito jovem, não devia ter mais de 19 anos, pensou Daniel. Os cabelos eram pretos e lustrosos, caindo até os ombros, olhos azuis e pele alva irlandesa.
— Margaret Rourke — disse ela, apertando a mão estendida, a voz suave e controlada. — Obrigada por me receber.
Daniel gesticulou para a cadeira diante da mesa, enquanto se sentava.
— É para isso que estou aqui. Qual é o problema?
Ela abriu um grande envelope pardo e tirou alguns papéis, colocando-os sobre a mesa.
— Já lhe falei sobre o acidente do meu pai. Aqui está tudo o que me pediu para providenciar.
Daniel pegou os papéis e examinou-os rapidamente. Ela era meticulosa. Estava tudo ali, do relatório do acidente ao cartão quitado de associação, indicando que suas contribuições estavam em dia. Só havia uma coisa errada. O distrito a que ele pertencia estava falido. O dinheiro do fundo de pensão desaparecera, juntamente com o presidente e o tesoureiro do sindicato. Daniel olhou para a moça, que o fitava atentamente.
— Há um problema — disse ele.
— Eles não têm dinheiro.
— Exatamente — confirmou Daniel.
— Mas meu pai disse que foram vocês que criaram o plano de pensão e que eles não deveriam poder tocar no dinheiro.
— Era assim que estava planejado. Mas o pessoal do sindicato local alterou este ponto.
— E como eles poderiam fazer isso? Se vocês são responsáveis...
— Só podemos aconselhá-los — interrompeu Daniel — Não podemos ordenar-lhes que façam qualquer coisa. Não temos autoridade para isso. Criamos o que julgamos ser um plano seguro, à prova de tudo. Se o sindicato quer aderir, ótimo. Mas se não quer...
— Não é justo! — exclamou a moça, furiosa. — Meu pai disse que o sindicato pagou a vocês para tomarem conta de tudo. Portanto, são os responsáveis.
— Eles nunca nos pagaram para administrar o plano de pensão. Poderíamos tê-lo feito, se fôssemos solicitados. Mas tudo o que queriam eram os nossos serviços de assessoria.
Ela baixou os olhos para os papéis sobre a mesa.
— Então todas essas coisas nem mesmo valem o papel em que foram impressas...
Daniel não disse nada. A moça fitou-o, com lágrimas de frustração nos olhos.
— O que vamos fazer agora? Meu pai não pode trabalhar e tem mais dois filhos, menores do que eu. Chegamos a solicitar os benefícios da previdência social do governo, mas o pedido foi recusado porque estou trabalhando. Mas não há a menor possibilidade de sobrevivermos com os trinta dólares por semana que consigo ganhar.
— E o que o sindicato está fazendo? Seu pai não perguntou se não poderiam arrumar-lhe um emprego de vigia noturno em alguma fábrica?
— Não há ninguém por lá que seja capaz de fazer alguma coisa — disse a moça, amargurada. — Tudo o que sabem dizer é que ainda estão tentando descobri o que aconteceu, depois que o presidente sumiu com todo o dinheiro.
— Vamos ver o que eu posso, fazer.
Ela se levantou, furiosa.
— Vocês são todos iguais. São ótimos na hora de recolher as contribuições, mas sempre se esquivam na hora de pagar.
— Isso não é verdade — apressou-se Daniel em dizer. — A maioria dos sindicatos assume as suas responsabilidades com a maior seriedade. É uma infelicidade que seu pai pertencesse justamente a um sindicato cujo presidente era um ladrão.
— Vocês todos não passam de ladrões. E não me pode fazer pensar de maneira diferente.
Daniel ficou calado por um momento, antes de dizer, gentilmente:
— Ficar zangada não vai ajudar. Por que não se senta um pouco, enquanto tentamos encontrar uma solução?
Ela voltou a sentar-se lentamente, os olhos fixados em Daniel.
— Acha mesmo que pode fazer alguma coisa?
— Não sei. Mas pelo menos podemos tentar. — Estendeu a mão para o telefone. — Deixe-me fazer algumas ligações.
Foi quase uma hora depois que Daniel desligou pela última vez. Olhou para a moça por cima da escrivaninha.
— Pelo menos já temos agora umas poucas possibilidades. Vamos ter de esperar para ver o que acontece.
Os olhos deles se encontraram.
— Peço desculpas, Sr. Huggins. Não deveria ter dito o que falei.
— Não há problema. Compreendo perfeitamente. Já sofreu provocação demais. — Subitamente, Daniel sentiu-se extremamente cansado. — Se não receber notícias minhas até o início da próxima semana, pode telefonar-me.
Uma expressão repentina de preocupação surgiu nos olhos dela.
— Está-se sentindo bem, Sr. Huggins?
— Apenas estou exausto. Foi um dia muito difícil para mim.
— Lamento muito. Imagino que deve ter muito problemas assim. Não queria tornar as coisas ainda piores, mas não tinha ninguém mais a quem pudesse recorrer.
— Não foi nada, Margaret. — Daniel abriu a gaveta de baixo da escrivaninha. — Importa-se que eu tome um drinque?
Ela sacudiu a cabeça e ficou observando-o pôr a garrafa e dois copos em cima da mesa. Daniel serviu-se de uma dose e fitou-a.
— Não, obrigada.
Ele tomou o uísque de um só gole e Margaret percebeu que um pouco de cor voltava a seu rosto. Daniel tornou a encher o copo.
— Onde você trabalha?
— Sou datilografa numa agência imobiliária.
— É um bom trabalho? — indagou ele, tomando o segundo drinque.
— É, sim. Mas ainda estou em caráter experimental. Aceitei mesmo assim, porque foi a primeira coisa que consegui.
— E sua mãe?
— Já morreu.
— Lamento. É melhor eu deixá-la ir logo de uma vez. Vai atrasar o jantar da família.
— Não há problema. Combinei com uma vizinha para cuidar de tudo.
Daniel terminou de tomar o uísque e guardou a garrafa na gaveta. Levantou-se.
— Meu carro está lá fora. Posso deixá-la no ponto do ônibus.
— Posso ir a pé. O próximo ônibus não vai passar antes das nove horas.
Daniel olhou para o relógio. Passavam alguns minutos das sete horas.
— Gostaria de jantar comigo? Eu a levarei ao ponto de ônibus a tempo.
Ela hesitou.
— Já lhe dei problemas demais.
— Não diga bobagens — murmurou ele, sorrindo. — Não tinha planejado nada para esta noite. Ia simplesmente jantar cedo e depois me deitar.
Ele pegou o telefone e a secretária atendeu.
— Ligue para minha casa e avise a Mamie que vou jantar fora. — Ao desligar, Daniel percebeu a expressão inquisitiva no rosto da jovem e explicou: — Mamie é minha cozinheira.
Ela assentiu, sem dizer nada.
— Não sou casado — arrematou ele.
— Sei disso.
— E o que mais sabe a meu respeito? — Ela ficou calada. — Pode contar. Não vou-me zangar.
Ela hesitou, mas acabou falando:
— Meu pai não queria que viesse procurá-lo. Disse que tem uma porção de mulheres.
— E que mais ele disse? — indagou Daniel, rindo.
— Falou que provavelmente me convidaria para jantar.
— Ele estava certo. Foi exatamente o que fiz. E que mais ele disse?
— Se eu aceitasse o convite para jantar, devia tomar todo cuidado.
— Ainda não saímos para jantar. Portanto, nada sabemos a respeito dessa parte, não é mesmo? — Daniel estava sorrindo. Depois de um momento, ela também sorriu.
— Tem razão.
— Pois tem de correr o risco para verificar o que vai acontecer.
Ela ainda estava sorrindo, quando o fitou nos olhos.
— Vou correr esse risco.
— Não vamos a qualquer lugar elegante. O restaurante do outro lado da rua serve uns bifes excelentes.
— Parece-me ótimo. — A moça se levantou. — Há algum banheiro de mulher por aqui?
— Passe pela sala da minha secretária. Fica no corredor, à direita.
Daniel ficou observando-a sair, depois recostou-se na cadeira e pegou novamente a garrafa de uísque. Tomou um drinque rápido. Era algo na maneira como ela andava. Era diferente do jeito de andar que exibira ao chegar. Então, mais parecia uma menina. Agora, andava como uma mulher.
Daniel desceu pela rampa no aeroporto de Miami, já suando no terno leve, segurando uma pequena valise. Dois homens se aproximaram dele, ainda jovens, um alto e louro, o outro baixo e moreno, ambos vestindo ternos de algodão listrados. Foi o baixo que falou:
— Sr. Huggins?
— Isso mesmo.
— Temos um carro esperando lá fora. Trouxe alguma bagagem?
— Não.
O homem assentiu.
— Por aqui, por favor.
Os dois foram andando nos lados de Daniel, atravessando o terminal, apinhado de turistas em férias. Lá fora, uma limusine Cadillac estava à espera, com o motor ligado. Abriram a porta para que ele entrasse. O louro sentou-se ao lado de Daniel, enquanto o moreno ia sentar-se na frente, ao lado do motorista.
— Chegaremos em quinze minutos — informou o louro, enquanto o carro começava a andar. — Teve um bom vôo?
— Foi ótimo.
— Será ainda melhor dentro de alguns meses. Esperam estar com os novos jatos em operação, quando começar a temporada de inverno.
— Pensei que já estivessem voando.
— Só uns poucos. No outono, todos os vôos já estarão sendo realizados com jatos.
Daniel olhou pela janela do carro. Avançavam rapidamente pela estrada que levava a Miami Beach. Não havia muito tráfego. Pararam por um momento num posto de pedágio e depois continuaram, passando por pequenas ilhas na baía que antecedia a praia. Entraram finalmente na estrada que conduzia a uma das últimas ilhas.
Daniel notou que havia dois guardas uniformizados ao pé da rampa. Conheciam o carro, pois o motorista passou por eles sem diminuir a velocidade. Passaram por diversas casas típicas da Flórida, de um só andar, com gramados ondulantes, por trás de sebes aparadas. Entraram numa rua particular, ao final da qual havia um portão de ferro alto. O carro parou diante do portão.
Um homem saiu da pequena casa ao lado do portão e deu uma olhada no interior do carro. Um momento depois, voltou para o interior da casa e o portão de ferro se abriu. O carro passou, enquanto o portão se fechava imediatamente após. Percorreram o caminho comprido e sinuoso até a casa, que ficava oculta a quem passava pela estrada.
Os dois homens saltaram do carro e ficaram esperando que Daniel saísse.
— Só um momento, senhor — disse o homem alto, polidamente. — Temos de fazer isso.
Daniel assentiu silenciosamente e esticou os braços, enquanto o homem o apalpava habilmente.
— Podemos ver sua valise, por gentileza? -— indagou o homem, assim que acabou de revistá-lo.
— Está aberta — disse Daniel, entregando-lhe a valise.
O louro vasculhou rapidamente os papéis e verificou os lados da valise à procura de compartimentos secretos. Devolveu-a em seguida a Daniel, acenando com a cabeça, sempre polidamente.
— Por aqui, por favor.
A casa inteira estava refrigerada por um sistema de ar condicionado. Daniel foi levado a uma sala com duas janelas grandes, do chão ao teto, dando para uma piscina. Mais além, podia avistar um pequeno cais na baía, onde estava atracada uma lancha de 45 pés.
— O Sr. L., estará aqui dentro de um minuto — disse o louro. Ele apontou para um canto. — O bar é ali. Pode servir-se.
— Obrigado.
Os homens se retiraram enquanto Daniel ia até o bar. Estava fartamente guarnecido com todos os tipos de bebidas que se podiam desejar, jarras de suco de laranja e suco de tomate, baldes de gelo, limões cortados, azeitonas, diversos tipos de molhos. Daniel ficou fascinado. E não havia garrafas abertas. Todas estavam cheias, ainda lacradas. Pegou uma garrafa de Old Forester, rompeu o lacre e serviu-se de um drinque, acrescentando um pouquinho de água. Tomou o uísque, encaminhando-se para a janela.
A vista era espetacular. O céu e o mar misturavam tonalidades de azul, lanchas e barcos à vela deslizavam de um lado para outro. Daniel tomou outro gole. Era um bom uísque. A voz soou atrás dele:
— Sr. Huggins. — Lansky estava parado ali, um homem pequeno, envelhecido antes do tempo, um bronzeado da Flórida não conseguindo disfarçar inteiramente a palidez. Eram mais ou menos da mesma idade, mas o outro parecia muito mais velho, o que deixou Daniel chocado por um momento.
— Sr. Lansky.
Daniel estendeu a mão. O aperto de Lansky foi leve, mas firme. Ele foi até o bar e serviu-se de um copo de suco de laranja. Tomou um gole, lentamente, e olhou para Daniel.
— Laranjas da Flórida. Não existem iguais. Mando espremê-las de hora em hora.
Daniel acenou com a cabeça e seguiu-o até um sofá, sentando-se diante dele.
— Como está-se sentindo, Sr. Lansky?
— Melhor, mas não muito bem. — Bateu no peito. — O velho relógio não está funcionando como deveria.
— Vai viver para mijar nas sepulturas de todos nós.
Lansky sorriu debilmente.
— Se não me incomodarem, estarei bem. Mas estão sempre me pressionando.
— É um dos perigos do sucesso.
Lansky assentiu, a voz tornando-se subitamente firme:
— Soube que anda enfrentando grandes problemas.
— Isso mesmo.
— Eu lhe disse há quatro anos que isso acabaria acontecendo. Avisei-o que estaria liquidado quando a A.F.L. e o C.I.O. se fundissem.
— Não esqueci.
— Deveria ter-me ouvido. — Lansky falava como se estivesse repreendendo uma criança teimosa. Daniel não disse nada. — Mas não adianta olhar para trás — acrescentou Lansky. — Qual é a situação agora?
Daniel descreveu a situação rapidamente. Quando terminou, Lansky acenou com a cabeça, uma expressão de aprovação.
— Sua idéia é muito boa, mas Hoffa e Boyle não precisam realmente de você. A respeitabilidade nada significa para eles. Ambos são lutadores de rua. Vão precisar de alguma persuasão para ajudá-los a tomarem a decisão de se juntarem a você.
— Uma palavrinha sua talvez seja tudo o que eles estão precisando.
Lansky assentiu.
— É possível. Mas você tem outros problemas. Mesmo que eles aceitem, de onde virá o dinheiro? Somente as contribuições não são suficientes para cobrir as despesas.
— Se eles aceitarem meu plano, teremos uma boa parcela da administração do fundo de pensão e do programa de seguros deles.
— Não lhe vão entregar tudo de mão beijada.
— Não vão mesmo. E também não foi isso que sugeri. Quero apenas que nos tornemos co-administradores. Haverá sempre o suficiente para todos.
Lansky ficou calado por um momento.
— E onde eu entro nisso tudo?
Daniel começou a sentir-se mais confiante. Lansky sabia muito bem onde entrava. Afinal, tinha sob seu controle companhias de seguro, bancos, empresas construtoras. Daniel resolveu assumir um risco.
— Se tenho de explicar isso, Sr. Lansky, então desperdicei minha viagem até aqui.
Lansky teve outro momento de silêncio.
— Corre o rumor de que você vai ter um encontro na Casa Branca.
Daniel assentiu. Parecia haver bem pouca coisa que Lansky não sabia.
— Vou tomar o café da manhã com o Presidente no dia 6.
— Falou com Adams? — Daniel tomou a assentir. E Lansky comentou, em tom de aprovação: — É um bom contato. Fique perto dele.
— É o que pretendo.
Lansky passou algum tempo sem dizer nada.
— Eisenhower vai ser reeleito. Você pode ficar numa ótima situação, se souber jogar seus trunfos corretamente.
— Estou com os dedos cruzados.
Lansky riu pela primeira vez. Foi uma risada seca, quase que destituída de humor.
— Parece bastante relaxado para um homem à beira do desastre.
Daniel riu jovialmente, enquanto servia-se de outra dose de uísque. E desta vez não acrescentou água.
— A pior coisa que poderia acontecer seria a minha queda.
Lansky fitou-o atentamente.
— Quanto acha que vai precisar?
— De duzentos e cinqüenta mil dólares. É o suficiente para nos sustentar durante um ano, até que a situação melhore.
— É um bocado de dinheiro.
— É bem pouco, levando-se em consideração as apostas que estão na mesa. O fundo de pensão da U.T.M,, já deve estar com mais de sessenta milhões de dólares. E o dos Teamsters não deve estar muito atrás, As comissões sobre apenas vinte por cento disso podem proporcionar mais de dois milhões de dólares por ano.
Lansky já tinha tomado uma decisão.
— Está certo. Vai ter o que precisa.
— Obrigado, Sr. Lansky.
— Não me agradeça. Apenas não se esqueça das regras. Somos sócios. Meio a meio.
— É demais. Não existe a menor possibilidade de eu desviar tanto dinheiro sem ser descoberto.
— Quanto acha que pode oferecer?
— No máximo, vinte e cinco por cento.
— Não é muita coisa.
— É possível. Mas suas empresas é que estarão cuidando dos negócios. Também terá lucros por esse lado.
Lansky pensou por um momento.
— Negocia implacavelmente.
— Nem tanto. Sou apenas prático e objetivo. Ambos já temos os nossos problemas. Não precisamos procurar por mais.
— Negócio fechado — disse Lansky. Apertou um botão no lado do sofá. Um momento depois, o homem alto que recebera Daniel no aeroporto entrou na sala, carregando uma pasta preta.
Colocou-a na mesinha de café entre os dois e se retirou. Lansky apontou para a pasta e disse a Daniel:
— Abra.
Daniel apertou os botões e a tampa se abriu automaticamente. Lá dentro, havia maços de notas, ainda envoltas pelas tiras do banco. Ele olhou para Lansky, que lhe disse:
— Aí tem um quarto de milhão de dólares. Pode contar.
— Aceito sua palavra — disse Daniel, fechando a pasta e levantando-se. — Já tinha tudo preparado, Sr. Lansky.
O outro sorriu.
— Tenho de estar sempre preparado. Nunca se pode saber quando surge uma boa oportunidade.
Michael Rourke levantou os olhos do jornal de domingo, quando a filha entrou na sala. Notou imediatamente que ela estava usando um vestido novo e se pintara.
— Vai sair esta noite? — perguntou ele.
Margaret assentiu.
— Já está tudo pronto. O rosbife está no forno. Ficará pronto por volta das seis horas. As crianças já sabem quando tirar.
— Big Dan? — indagou ele, após um momento.
Margaret assentiu.
— Leu a notícia sobre o encontro dele com o Presidente na Casa Branca? — indagou Michael, largando o jornal.
— Ele me falou a respeito.
— E quando esteve com ele?
— Na noite de quinta-feira. Eu lhe disse que ia jantar fora.
— E só chegou em casa depois da meia-noite. Não me falou que ia jantar com Big Dan.
— Não há nada de errado nisso, papai. Ele é um homem muito gentil.
— É muito mais velho do que você.
— Se conversasse com ele, não pensaria assim. É um homem que se interessa por tudo.
— Não gosto disso. Acho que se está encontrando demais com esse homem. Devia procurar sair mais com rapazes da sua própria idade.
— Os rapazes da minha idade não me interessam, papai. São imaturos demais. E só querem uma coisa.
— E não é o que ele também quer?
— Ele tem-se mostrado um perfeito cavalheiro.
Michael Rourke sacudiu a cabeça.
— Ele falou alguma coisa a respeito de um emprego para mim?
— Disse apenas que está cuidando disso e espera conseguir alguma coisa muito em breve.
— Claro, claro... — murmurou Michael, sarcasticamente.
Margaret olhou atentamente para o pai.
— Não acredita nele? Mas por que ele iria mentir?
— Porque ele está querendo desfrutar de você — disse Michael, amargamente. — Quer apenas tirar sua calcinha.
— Papai!
— Não me venha com protestos. Sabe perfeitamente que é isso o que ele está querendo. — Michael fitou-a com uma expressão irônica, antes de acrescentar:
— E talvez seja também o que você está querendo.
— Não vou ficar escutando-o dizer essas coisas. — Ela se encaminhou para a porta.
— Margaret!
— Pois não? — disse ela, virando-se da porta.
— Não quis ofendê-la. Apenas estou preocupado por você. Já lhe falei sobre a reputação dele. Como ele bebe e todas as suas mulheres. Não quero que você se torne simplesmente mais uma das mulheres dele. Não quero vê-la magoada, menina.
— Não sou mais uma criança, papai — disse Margaret, a voz tensa. — Posso cuidar de mim mesma.
Michael fitou-a em silêncio por algum tempo, depois tornou a pegar o jornal, murmurando:
— Está certo. Mas não se esqueça de que a avisei.
A porta se fechou atrás dela e Michael ficou pensando na situação, angustiado. Se ao menos pudesse ser como antes, não seria assim. Mas não havia nada que ele pudesse fazer agora. Todo o fardo estava nos ombros de Margaret, a casa, os outros filhos.
Talvez ela estivesse certa. Não era mais uma criança. Não tinha tempo para isso.
John L. Lewis estava sentado em sua cadeira detrás da imensa escrivaninha, na sala revestida de painéis de carvalho. As janelas por trás dele davam para os prédios de mármore branco do governo, no centro de Washington. Vestido como sempre, num terno escuro sóbrio, colarinho branco engomado e gravata, ele refletia um senso de poder, obstinado, determinado. Estava ladeado por seus dois principais assessores, Tom Kennedy, agora beirando os 70 anos, cabelos brancos, comportamento gentil, e Tony Boyle, jovem, agressivo e dinâmico. Daniel contemplou os dois homens. Kennedy se empenhava em pensar e planejar, sendo meticuloso na maneira como enfrentava os problemas. Boyle era exuberante, usando o poder e a força para triturar a oposição. E no centro estava John L., que era a soma dos dois. John L. era todas as coisas que seus assessores eram e muito mais, com uma aura de liderança natural que não admitia oposição. Lewis estava falando:
— A T.V.A. é a maior consumidora de carvão do mundo. Por causa de suas necessidades inesgotáveis, estamos enfrentando uma situação difícil: incontáveis minas independentes estão sendo abertas, sem contratos sindicais, e vendendo carvão abaixo dos preços fixados. Isso não apenas faz com que as minas sindicalizadas vendam menos carvão, mas também afeta os trabalhadores sindicalizados, que são despedidos. Ainda por cima, cria empregos para trabalhadores que não são sindicalizados. Já esgotamos todos os meios razoáveis de tentar obter a ajuda do governo para resolver o problema. Mas todas as nossas súplicas foram cair em ouvidos surdos. A situação está-se tornando cada vez mais desesperadora. Se continuar assim, vai acabar ameaçando a própria estrutura sindical, que construímos penosamente ao longo de muitos anos. Se permitirmos que isso continue, posso prever que chegará o tempo em que os nossos associados irão perguntar-se qual a vantagem de permanecerem conosco. Se esse momento chegar, será o fim da U.T.M. como a conhecemos.
Kennedy assentiu solenemente, sem dizer nada. Boyle foi mais positivo:
— Não temos opção. Temos de cair em cima deles com tudo o que temos.
— A violência de nada adiantou no Distrito 19, em 46 e 47 — falou Daniel, virando-se para ele. — E também não levou à coisa alguma no Distrito 23, de 48 a 52. Tudo o que conseguimos foi forçar o fechamento das minas que aceitaram a sindicalização, porque o preço do carvão subiu a níveis superiores às possibilidades econômicas de fazer negócios. Nem mesmo a participação financeira da U.T.M. em algumas minas impediu a falência delas. E o resultado final é que a U.T.M. não apenas perdeu associados, como também muito dinheiro e prestígio. E ainda não sabemos quais as indenizações que os tribunais poderão determinar que sejam pagas, nos processos que foram iniciados contra nós por causa das atividades daqueles anos. Se todas as indenizações potenciais forem mesmo estipuladas, a organização estará na falência e irá fechar, da mesma forma que aconteceria se todos os associados saíssem no mesmo dia.
— Tem alguma idéia melhor? — indagou Boyle, beligerante. — O que acha que devemos fazer? Ficar de braços cruzados, enquanto aqueles fura-greves e patrões nos passam para trás?
— Não tenho nenhuma idéia neste momento — disse Daniel. — Mas sei o que não podem fazer. Este é um ano de eleições. Não podemos fazer qualquer coisa que obrigue Eisenhower a assumir uma posição contra nós, o que ele certamente fará, se for necessário, a fim de manter o apoio dos conservadores.
— Ou seja, está querendo dizer que devemos esperar, não é mesmo? — indagou Boyle.
— Exatamente.
— Então para que precisamos de você? — perguntou Boyle, furioso. — Foi convidado a vir até aqui para nos apresentar algumas respostas.
— Lamento desapontá-lo. Nunca afirmei que tinha quaisquer respostas. E está certo quanto ao resto. Fui convidado para esta reunião. Não fui eu que a pedi. — Daniel levantou-se. — Foi uma honra vê-lo, Sr. Lewis.
John L. fitou-o com a cara amarrada.
— Sente-se, Daniel. Não falei que a reunião estava encerrada. — Ele esperou até que Daniel voltasse a seu lugar. — A única coisa que ficou do nosso encontro com o Presidente foi a impressão que tive de que ele o tem em alta conta.
Daniel ficou calado.
— Creio que nossa credibilidade junto ao governo ficaria.bastante reforçada se pudéssemos encontrar um meio de trabalharmos juntos. Tenho certeza de que um comunicado de que a U.T.M. assinou contrato com a C.A.L.L, para a realização de diversos estudos de viabilidade, abrangendo uma nova organização, plano de pensão, programas de saúde e bem-estar, iria convencer o Presidente de que não estamos empenhados num comportamento irresponsável.
Daniel fitou o velho nos olhos.
— Ou seja, está querendo criar uma cortina de fumaça por trás da qual possa continuar a trilhar seu próprio caminho.
Lewis limpou a garganta.
— É expressar a coisa um tanto vulgarmente.
— Mas é a verdade.
Lewis olhou para os seus colegas e depois assentiu.
— Está certo.
— Conhece a minha reputação, Sr. Lewis — disse Daniel. — Não sou famoso por ficar calado quando tenho uma opinião formada sobre o que é bom para o movimento sindical.
— Vamos correr esse risco. Não se esqueça de que também lutei durante toda a minha vida para a melhoria das condições dos trabalhadores. Podemos ter diferenças de método e opinião, mas não de motivação. E, a longo prazo, a decisão ainda será um direito da organização sindical que contrata os seus serviços.
— Agradeço a oportunidade, Sr. Lewis. É uma honra para mim servi-lo e à U.T.M. — Daniel estendeu-lhe a mão. — Quando quer que comecemos?
Lewis apertou a mão dele, sorrindo.
— Ontem. Acerte todos os detalhes com Tony e Tom.
Boyle seguiu Daniel até o carro.
— Vai trabalhar comigo. Sabe disso, não é mesmo?
— Claro que sei.
— A idéia foi minha. John L. engoliu a isca, com anzol, linha e bóia. Ele está ficando velho. Tudo o que quer agora é manter as mãos limpas.
— Pois irei ajudá-lo nisso — disse Daniel. — Mas não posso manter as mãos dele afastadas das transações financeiras. Ele meteu a U.T.M. em coisas demais. Como o National Bank, em Washington, e as companhias West Kentucky Coal e Nashville Coal. Foi tudo comprado com o dinheiro sindical saído dos fundos de pensão e bem-estar. Mais cedo ou mais tarde, o governo vai iniciar uma investigação. E quando isso acontecer, o desastre será inevitável. Ele não deve preocupar-se apenas com as campanhas de recrutamento sindical.
— E vai dizer-lhe isso?
— Quando chegar o momento apropriado.
— Ele não vai gostar.
— Não posso fazer nada. Ele me pediu para ajudá-lo. Tentarei fazer justamente isso. Ele disse também que fará exatamente o que quiser. Entendi o recado.
— E tudo aquilo que conversamos? Nada mudou?
Daniel fitou-o nos olhos.
— Não houve qualquer mudança. Continuarei a trabalhar com você, para ajudá-lo a tornar-se presidente. Mas posso dar-lhe um conselho de graça desde já. Você não é John L. e nunca será. Isso significa que não conseguirá escapar impune de noventa por cento do que ele faz. Quando ele morrer, vai cair merda no ventilador. É melhor cuidar para estar com as mãos limpas nesse momento.
— Pode deixar comigo — declarou Boyle, confiante. — Sei o que tenho de fazer. Não se pode dirigir a U.T.M. sendo o Mister Bom Rapaz.
— Não estou querendo discutir. Apenas lhe ofereci um conselho de amigo.
— A primeira coisa que gostaria que fizesse é mandar uma equipe para Middlesboro e preparar-nos um relatório sobre todas as novas minas que estão surgindo na região. Vamos precisar de cálculos sobre a produção deles e uma avaliação de sua força de trabalho. Tenho o pressentimento de que, se não tomarmos providências rapidamente, as vendas das minas sindicalizadas à T.V.A. serão reduzidas a praticamente nada.
— Vou cuidar disso. — Daniel entrou no carro. — Mas precisarei de dinheiro.
— Basta me dizer quanto e receberá na manhã seguinte — assegurou Boyle.
Ela estava esperando na rua, diante do prédio, quando Daniel encostou o carro no meio-fio. Ele saltou e foi até Margaret.
— Por que não entrou?
— Sua sala estava fechada.
— Poderia ter esperado na recepção.
— A moça estava saindo e disse que não sabiam se você voltaria.
— Desculpe. — Daniel abriu a porta para que ela entrasse. Subiram a escada, para o segundo andar. — Estava esperando há muito tempo?
— Desde seis horas.
Daniel olhou para o relógio na parede. Já passava de sete horas.
— Fiquei preso numa reunião.
Ele tirou a chave do bolso e abriu a porta. Margaret seguiu-o para dentro da sala. Daniel foi até sua mesa e pegou a garrafa de uísque. Serviu-se de um drinque.
— Não me importei de esperar — disse Margaret. — Sabia que você não esqueceria.
Daniel tomou o uísque.
— Eu deveria ter telefonado.
— Não tem importância.
— Está linda hoje — disse ele, sorrindo. Margaret sentiu que o rosto começava a arder.
— Obrigada.
— Acho que arrumei um emprego para seu pai, se ele estiver interessado. Nosso movimento está crescendo e precisamos de um vigia noturno para ficar de olho no prédio e atender os telefonemas que por acaso surgirem.
Ela sorriu.
— Acho que papai vai ficar extremamente satisfeito.
— Não será fácil. O horário é comprido. De sete horas da noite às sete horas da manhã.
— Tenho certeza de que ele não vai-se importar.
— Pois então traga-o até aqui na semana que vem e leve-o ao Sr. Barrington, que vai cuidar de tudo.
— Obrigada, Sr. Huggins.
Daniel serviu-se de mais uma dose de uísque.
— Não acha que está na hora de começar a me chamar de Daniel?
Margaret ficou subitamente inibida.
— Se quiser assim...
— Claro que quero, Margaret.
— Está bem. .. Daniel — falou ela, quase num sussurro.
— Assim está melhor. Tenho alguns telefonemas a dar. Está com pressa de jantar?
— Tenho tempo.
Ele pegou o telefone e discou um número. Moses atendeu.
— Barrington. — Vozes de crianças soavam em segundo plano.
— Estou interrompendo o jantar?
— Ainda não — respondeu Moses. — É por isso que está ouvindo as crianças berrando.
— Não vou retê-lo por muito tempo. Apenas achei que gostaria de ouvir boas notícias, para variar.
O excitamento prontamente se insinuou na voz de Moses:
— Boyle aderiu?
— Melhor do que isso. John L. está querendo que façamos algum trabalho para eles.
— Está brincando, Daniel! — disse Moses, incrédulo. — Não faça isso comigo. Meu coração não agüenta.
— A coisa é verdadeira, Moses. — Daniel soltou uma risada. — Ele quer que realizemos estudos imparciais de diversas áreas. Vamos começar com uma pesquisa dos direitos de Middlesboro e Kentucky. Terá de formar uma equipe de campo e entrar em ação imediatamente.
— Vou precisar de mais homens.
— Pode recrutar quem precisar. E leve o Júnior com você, como seu assistente. Quero que ele comece a ter alguma experiência.
— E Harvard?
— Ele terá de passar sem isso. É mais importante que tenha alguma experiência real. Pode retomar os estudos mais tarde. E assim que você sentir que ele já pegou a coisa, deixe-o por lá no comando da operação e volte para o escritório.
— Está certo, Big Dan. — Moses baixou a voz ao acrescentar: — Houve um telefonema de Miami. Ele está querendo que você ligue imediatamente.
— Vou cuidar disso.
— Meus parabéns — falou Moses, tornando a elevar a voz. — É como tirar um coelho de uma cartola. Não sei como conseguiu.
— É apenas o princípio — disse Daniel, satisfeito. — Voltaremos a conversar amanhã de manhã. — Desligou e olhou para Margaret, por cima da mesa. — Só mais um telefonema e depois poderemos sair.
— Não tenho pressa.
Daniel deu o número à telefonista de interurbano. Pôs a mão sobre o bocal, enquanto a ligação era efetuada.
— Esse vestido é novo, Margaret? — Ela acenou com a cabeça. — É muito bonito. Mas você também é.
— Obrigada — disse ela, corando.
Uma voz atendeu no outro lado da linha, dizendo apenas o número:
— Sete, seis, três, três.
— Daniel Huggins falando.
— Um momento, senhor.
Houve um estalido na linha. Lansky atendeu, indo direto ao assunto:
— Preciso de um favor.
— Pode falar.
— Vai haver uma eleição dos Teamsters em Nova Jersey. Quero que providencie para que o homem certo vença.
— Farei o melhor possível. Quem é ele?
— Tony Pro.
Daniel ficou em silêncio por um momento. Tony Pro, Anthony Provenzano. Um membro da família.
— Não escolhe os mais fáceis. Sabe que Dave Beck está contra ele.
— Isso é problema seu. Apenas diga a Hoffa que se Tony Pro tornar-se presidente do sindicato local, ele nunca mais terá de se preocupar com os Teamsters da Costa Leste.
— Vou cuidar disso imediatamente.
— Mantenha-me informado.
Lansky desligou bruscamente. Devagar, Daniel repôs o fone no gancho. Começou a discar novamente o número de Moses, mas depois mudou de idéia. O problema poderia esperar até a manhã seguinte. Era banquete ou fome. De nada para fazer a coisas demais. Subitamente, ele sentiu-se cansado.
— Algum problema, Daniel? Ele olhou para Margaret.
— Estou apenas cansado. Foi um dia comprido.
— Não precisa levar-me para jantar. Se preferir ir para casa e descansar, não vou-me importar.
— Tenho uma idéia. Por que não vamos para minha casa? Pedirei a Mamie para nos preparar um bom jantar e depois poderemos ficar confortavelmente sentados assistindo à televisão.
Margaret sentiu que o rosto ficava novamente vermelho, mas havia uma expressão decidida em seus olhos.
— Se é isso o que você quer...
Subitamente, Daniel sorriu, dando a impressão de que os anos se desvaneciam de seu rosto. Ele pegou o telefone e ligou para sua casa.
— Mamie, prepare bifes imensos e todos os acompanhamentos apropriados. Vou levar uma linda garota para jantar em casa.
Era uma casa pequena, muito diferente do que Margaret esperava. Era ao estilo de Cape Cod, numa área em que todas as caias da rua pareciam quase exatamente com a vizinha. Não havia garagem e Daniel estacionou o carro na rua. Atravessaram um pequeno gramado até a porta da frente.
Antes de lá chegarem, a porta foi aberta por uma preta corpulenta, com um sorriso que deixava à mostra os dentes brancos.
— Boa noite, Mister Dan.
— Mamie, essa é a Srta. Rourke — disse Daniel, entrando na casa.
— Srta. Rourke... — disse Mamie.
— Prazer em conhecê-la, Mamie. — Margaret sorriu. — Espero não lhe estarmos causando nenhum problema.
— Claro que não, Srta. Rourke. Quando se trabalha para Mister Dan, a gente termina se acostumando com essas coisas. Não se pode adivinhar quem ele vai trazer para casa. Fique à vontade, enquanto continuo a preparar o jantar. — Ela olhou para Daniel. — Tem tempo de tomar um banho de chuveiro e mudar de roupa, se quiser.
— Está certo, minha chefe. — Daniel virou-se para Margaret. — Mamie pensa que é minha mãe. Manda na minha vida.
Mamie fingiu estar zangada.
— Alguém tem de tomar conta das coisas. E agora trate de subir. Pode deixar que cuidarei da visita.
— Pode ir, Daniel — falou Margaret.
Ele subiu a escada e Mamie levou-a para a sala de estar.
— Fique sentadinha aqui e lhe trarei o drinque que quiser.
— Não preciso de nada. Posso ajudá-la em alguma coisa?
— Está tudo pronto — respondeu Mamie, sorrindo. — Trate apenas de relaxar. — Começou a sair da sala, parou no meio do caminho e tornou a virar-se. — Conhece Mister Dan há muito tempo?
Margaret sacudiu a cabeça.
— Não muito tempo. Talvez uns dois meses.
— Deve ter alguma coisa de especial. — Mamie sorriu outra vez. — Esta é a primeira vez que ele traz uma de suas garotas para casa.
Margaret ficou observando sair da sala. Ouviu o barulho de uma porta batendo lá em cima. Lentamente, correu os olhos pela sala. Os móveis eram antiquados, pesados, de madeira escura. As poltronas e o sofá abarrotavam o pequeno espaço. Havia uma mesa com um telefone num canto. Na parede oposta ao sofá ficava um aparelho de televisão, por cima do qual havia prateleiras, com livros que davam a impressão de nunca terem sido lidos. Havia diversos quadros indefinidos nas paredes. E mais nada.
Um pensamento súbito ocorreu-lhe. Rapidamente, Margaret tornou a correr os olhos pela sala. Era estranho. Em nenhum lugar da sala havia um retrato ou fotografia de qualquer pessoa. Era a primeira vez que ela entrava numa casa em que não via a fotografia de ninguém. A sua própria casa estava repleta de fotografias. Margaret ouviu passos na escada e virou-se. Daniel vestira uma camisa esporte, aberta no pescoço, deixando à mostra o alto dos cabelos do peito. A calça era preta, também esporte. Os cabelos ainda estavam úmidos do banho e ele sorriu ao perceber que Margaret o contemplava.
— Alguma coisa errada?
De alguma forma, ele parecia mais jovem. Margaret sacudiu a cabeça.
— É a primeira vez que o vejo sem um terno e gravata.
— Também os tiro para deitar.
Ela corou ,e Daniel acrescentou:
— Vou verificar se o jantar já está pronto. Quer comer aqui ou na cozinha?
— Onde você quiser.
— Na cozinha. É lá que geralmente comemos. Fica tudo mais fácil.
Voltaram para a sala depois do jantar. Daniel ligou a televisão e pôs uma garrafa de uísque na mesa diante deles. Serviu-se de um drinque.
O aparelho esquentou rapidamente, trazendo para a sala um programa de perguntas. Margaret ficou assistindo com o maior interesse. Não tinha televisão em casa. Daniel parecia entediado, mas ficou assistindo também, enquanto esvaziava a garrafa de uísque. Depois, assistiram a um filme e em seguida ao noticiário das 11 horas. Durante a noite toda, mal trocaram mais de 10 palavras e ficaram sentados no safa separados por uma distância respeitável. Daniel finalmente se levantou.
— Está ficando tarde. É hora de levá-la ao ponto do ônibus.
Margaret olhou para ele, sem se mexer.
— Não me ouviu?
— Claro que ouvi.
— Pois então é melhor partirmos logo.
Ela se levantou e se aproximou dele.
— Daniel...
— O que é?
— Não vim até aqui apenas para jantar.
Ele fitou-a nos olhos.
— Sou velho o bastante para ser seu pai.
— Mas não é meu pai.
— Ouviu uma porção de histórias a meu respeito. Até mesmo seu pai a alertou.
— Tem razão.
— E isso nada significa para você?
— Claro que significa — disse Margaret.
— Então é melhor deixar-me levá-la ao ponto de ônibus, antes que façamos alguma coisa da qual nos iremos arrepender mais tarde.
Os olhos dela encontraram-se com os de Daniel.
— Você não me quer? — Ele não respondeu. — Eu o quero, Daniel. E sempre o quis, desde o momento em que entrei pela primeira vez em seu escritório.
— Não tenho o hábito de conquistar crianças — disse ele, asperamente.
— Pois eu lhe direi a mesma coisa que falei a meu pai: não sou mais uma criança. — Daniel ficou novamente calado. — Não sou mais virgem, se é com isso que está preocupado, Daniel. Mas esta é a primeira vez que realmente desejo alguém. E tão intensamente que o fogo entre as minhas pernas as está deixando moles. Tenho até medo de ficar de pé.
Daniel contemplou-a por um longo momento, depois atravessou a sala, afastando-se dela. E disse, rispidamente:
— Pois trate de se controlar. Vou levá-la de carro para casa. Quero conversar com seu pai.
— Não — disse Margaret, firmemente. — Pode dizer a mim tudo o que tem a dizer a meu pai.
— Quantos anos você tem?
Ela hesitou por um momento.
— Quase 17 anos.
— Neste caso, terei de falar com seu pai. É que quero casar com você.
A chuva era agora de granizo, que ricocheteava na superfície escura da estrada que levava à cidade. Daniel olhou para Moses, que estava ao volante.
— Onde está Júnior?
— Está na pensão de Green, à nossa espera — respondeu Moses, os olhos semicerrados espiando através do pára-brisa, onde os limpadores se movimentavam rapidamente de um lado para outro.
— E os outros?
— Estão com ele.
Daniel fitou-o atentamente. Moses estava meio calado, o que não era normal. Geralmente falava sem parar. Daniel tirou um charuto do bolso interno do casaco e acendeu-o.
— Quando acha que o relatório ficará pronto?
— Já dispomos de todas as informações. Estamos apenas esperando que você dê uma olhada, talvez dê um giro pessoalmente, antes de prepará-lo.
Daniel sacudiu a cabeça. Estava um pouco aturdido. Aquele não era o padrão habitual. Moses nunca esperara por ele antes.
— Como Júnior se saiu?
— Muito bem. — Moses lançou-lhe um olhar rápido. — Ele tem alguma coisa de você. Vai direto ao ponto.
— Estou ansioso por vê-lo. Tenho notícias para ele.
— Se é a respeito da gravidez de Margaret, acho que ele já sabe.
— Mas só descobri na semana passada! — Havia um tom de surpresa na voz de Daniel.
— Ela já está com dois meses — disse Moses. — Meus parabéns.
— Obrigado — falou Daniel, secamente. — Parece que o mundo inteiro já sabe. Como descobriram? Por acaso há microfones instalados no meu quarto?
— Sabe que não é esse o caso — disse Moses, sorrindo. — As mulheres simplesmente não conseguem guardar um segredo.
— Mas que merda! — Subitamente Daniel compreendeu tudo. Mamie. Júnior telefonava para ela uma vez por semana, a fim de pegar os recados. Ele soltou uma risada. — Aposto que todos ficaram tão surpresos quanto eu.
— Até que não ficamos surpresos, Daniel. Para dizer a verdade, não conseguíamos imaginar por que estava demorando tanto.
Passaram por uma placa à beira da estrada.
BEM-VINDOS A JELLICO
População: 1.200
— Faltam agora apenas cinco minutos — informou Moses. Começaram a passar por casas nos dois lados da estrada. As luzes do centro da pequena cidade surgiram à frente deles. Apesar do granizo, as ruas estavam repletas, pessoas andando de um lado para outro, olhando as vitrines.
— Uma cidade movimentada — comentou Daniel. — Dá a impressão de que tem muito mais de mil e duzentos habitantes.
— A maioria não é daqui. Não vai encontrar muitos habitantes locais nas ruas neste momento.
— E quem são esses homens então?
— Mineiros.
— Não me parecem mineiros. Estão limpos demais. E os mineiros geralmente estão muito cansados para estar passeando assim.
Moses ficou calado.
— Onde eles trabalham?
— Não é aqui. São de fora. Mas são realmente mineiros. Todos têm os seus registros sindicais. — Moses virou com o carro à esquerda, no outro lado do centro da cidadezinha, indo parar diante de uma grande casa. — Chegamos.
Daniel ficou esperando enquanto Moses trancava o carro, depois seguiu-o para a casa. Júnior estava esperando na porta e disse, com um sorriso:
— Olá, pai.
Daniel apertou a mão dele. Júnior encorpara. De certa forma, não parecia mais tão infantil quanto três meses antes.
— Como está, filho?
— Tudo bem. E você?
— Também estou muito bem.
— Vamos logo entrar. Estão-nos esperando na sala de jantar.
Havia cinco homens esperando ao redor da mesa. Daniel já conhecia dois. Trabalhavam para a C.A.L.L. Eram Jack Haney, o jovem advogado trabalhista que ingressara na organização no ano anterior, e o assistente de Moses, um brilhante analista estatístico que acabara de ser recrutado da Escola de Economia Wharton. Daniel apertou as mãos deles e Júnior apresentou os outros.
Eram Max Neal e Barry Leif, enviados da sede da U.T.M. em Middlesboro, e o Xerife-Substituto Mike Carson, um veterano ativista da U.T.M. Para todos os efeitos e propósitos, eram a base do esforço da U.T.M. em Jellico.
Daniel sentou-se à cabeceira da mesa e olhou ao redor. Foi direto à questão:
— Todos sabem por que estou aqui. Fui convidado por John L. Lewis para preparar um relatório sobre determinados aspectos de nossos esforços de implantação nesta área. Portanto, vamos ser claros e objetivos. E a primeira pergunta é a seguinte: quem está com o uísque?
Todos riram. O Xerife-Substituto Carson respondeu, enquanto pegava uma bilha embaixo da mesa:
— Nunca pensei que ia ficar fazendo rodeios para perguntar, Big Dan. — Copos apareceram quase que num passe de mágica. E ele encheu um copo e passou-o para Daniel. — É um genuíno produto de fabricação doméstica. O melhor que existe.
Daniel provou. Era fogo líquido descendo pela garganta. Ele sorriu.
— Está absolutamente certo, Xerife. Nunca provei nada parecido desde que ajudava meu pai no nosso alambique.
— Obrigado, Big Dan. Partindo de você, é um elogio de verdade. — Carson encheu os outros copos e distribuiu-os. Finalmente levantou o seu. — Seja bem-vindo de volta ao lar, Big Dan.
Daniel assentiu e tomou outro trago. — E agora contem-me tudo.
Jack Haney correu os olhos pela mesa.
— Alguma objeção a que eu faça um rápido resumo? — Não houve objeções. Ele baixou os olhos para um maço de papéis. — O principal problema que enfrentamos aqui é representado pelas minas Osborne. São as maiores da região e operando através de companhias de transporte simuladas. Estão evitando os contratos sindicais e vendendo carvão à T.V.A. a preços inferiores aos das minas sindicalizadas, por causa de dois fatores. — Haney fez uma breve pausa. — Em primeiro lugar, Osborne paga menos do que os salários fixados pelo sindicato. Em segundo lugar, não precisa pagar os quarenta cents por tonelada de contribuição ao fundo social sindical. Osborne diz que, se atendesse a essas duas reivindicações, não teria condições de obter os contratos da T.V.A. e iria à falência. Por causa de sua liderança, há cerca de trinta ou quarenta outras minas menores assumindo a mesma atitude. Essa é a essência do problema.
— Temos os números dele? — indagou Daniel.
Foi Moses quem respondeu:
— Temos, sim. — O assistente entregou-lhe alguns papéis. — Está tudo aqui.
— Já fez uma extrapolação?
Moses assentiu.
— E a que conclusão chegou?
— Basicamente, ele tem razão. Pela maneira como está operando, iria à falência se pagasse.
— Como assim?
— A maneira como ele opera é a mais antiquada possível. Sua produtividade é de cerca de oito toneladas por homem, enquanto as minas sindicalizadas e completamente equipadas estão conseguindo trinta toneladas por homem. Se conseguisse mudar o equipamento, ele poderia pagar os salários e as contribuições sindicais. Mas ele alega que não dispõe de capital suficiente para isso.
— E ele tem?
— Não. Pela maneira como opera, não tem a menor condição.
— E os outros?
— Estão em situação igual ou até pior. — Moses largou os papéis. — São basicamente operações familiares.
Barry Leif entrou na conversa:
— E o resultado final é que todos estamos sendo prejudicados. As minas sindicalizadas não podem concorrer com os preços. Estão despedindo empregados. Temos quatro minas grandes, com mais de mil mineiros sindicalizados, que estão prestes a fechar.
— Passando pela cidade, vi uma porção de homens na rua — disse Daniel. — São todos mineiros?
Leif acenou com a cabeça, assentindo.
— E trabalham por aqui?
— Não — respondeu Max Neal. — São voluntários que trouxemos de Middlesboro para nos ajudar a acabar com toda a confusão aqui.
— E como esperam conseguir isso? — indagou Daniel.
— Vamos aplicar toda pressão nos filhos da mãe. Ou eles se juntam a nós ou os arrebentamos.
Daniel correu os olhos pela mesa. Depois de um momento, sacudiu a cabeça.
— Já estou percebendo a coisa. Gostaria de dar uma volta amanhã para poder observar o problema pessoalmente.
— A que horas?
— Logo depois do café da manhã. Às oito horas está bom?
Depois que os representantes da U.T.M. e o xerife-substituto se retiraram, Daniel tornou a correr os olhos pela mesa.
— Agora, quero saber das coisas objetivamente.
Moses foi o primeiro a. falar:
— Estamos sentados num vulcão prestes a explodir. Ontem, eles começaram a parar os caminhões que vêm à cidade para buscar o carvão. Se não voltassem, o xerife emitiria uma multa por operarem sem o equipamento apropriado. E na saída da cidade, os motoristas eram arrancados dos caminhões, levavam uma surra, o carvão era despejado. Fomos informados agora de que Osborne contratou guardas armados para acompanhar os caminhões até a fronteira estadual. Carson diz que está preparado para enfrentá-los. Já recrutou como auxiliares jurados mais de cem voluntários da U.T.M. e está concedendo licenças de porte de arma. Estão sendo feitos planos para dinamitar algumas das minas menores e mandar equipes às outras para forçar os homens a se sindicalizarem. Algumas dessas minas são exploradas e operadas pelos próprios donos. São montanheses e não vão ceder facilmente. Estão armados e dispostos a lutar. Tudo indica a possibilidade de um banho de sangue.
Daniel virou-se para Jack Haney.
— Qual é a situação em termos legais?
— Não é nada boa. A U.T.M. será responsável por quaisquer danos que possam resultar. Mesmo que se consiga forçar a sindicalização de todas as minas, as indenizações ainda podem representar um bocado de dinheiro. Pode demorar anos para que os tribunais concluam os processos. Mas quando isso acontecer, os efeitos sobre a estrutura financeira da U.T.M serão terríveis.
— E se houver uma investigação da Comissão Nacional de Relações Trabalhistas?
— A U.T.M. não está querendo. Sabe que não conta ainda com a quantidade necessária de associados e inevitavelmente sairá perdendo.
— E qual é a possibilidade de negociações diretas?
— Absolutamente nenhuma. Nenhum dos lados confia no outro.
— Alguma idéia sobre um possível acordo que permita superar as divergências?
Houve um momento de silêncio, rompido por Júnior:
— Tenho uma idéia. Mas não conheço o suficiente para saber se é exeqüível.
— Pois diga qual é, filho.
— A U.T.M. trouxe para cá pelo menos quinhentos homens e é evidente que eles não estão assumindo as próprias despesas. Está custando à U.T.M. pelo menos dois mil e quinhentos dólares por dia para mantê-los aqui. Acho que os donos das minas aceitariam os salários sindicais, se os pagamentos por tonelagem para o fundo sindical pudessem ser reduzidos.
— Lewis não concordaria com isso. Iria afetar todos os outros acordos que já fez.
— Na superfície, o esquema de pagamento de quarenta cents por tonelada não precisaria ser alterado. Vamos supor que eles aceitem um pagamento de dez cents por tonelada extraída e concordem em pagar o saldo com base nos lucros verificados ao final de cada ano. Se não houver lucros suficientes para cobrir a despesa, haveria uma transferência para o ano seguinte. O sindicato poderia apresentar os quarenta cents por tonelada para o fundo sindical como algo concreto a receber. Num período de três anos, com base na produção atual dessas minas, mesmo que o sindicato jamais consiga receber o saldo, sairia mais barato do que manter os homens aqui por mais sessenta dias, sem falar nas indenizações que podem resultar da situação explosiva em que estamos metidos.
Daniel olhou para o filho e acenou com a cabeça, lentamente. Não deixou transparecer o orgulho que sentia. Podia haver falhas no plano, mas era um passo no caminho certo. Era um acordo honroso para os dois lados. E o que era mais importante: fora seu filho quem imaginara o plano. Ninguém mais. O seu próprio filho. Daniel tornou a correr os olhos pela mesa, perguntando aos outros:
— O que acham?
— É uma boa idéia — respondeu Moses pelos outros. — Pode dar certo. Mas precisará primeiro vendê-la a Lewis.
— Quanto tempo temos?
— Não muito. Uns poucos dias, no máximo. Neal e Leif estão prestes a acender o pavio.
— Alguma possibilidade de contê-los?
— Nenhuma — respondeu Moses, sacudindo a cabeça.
Daniel despejou mais um pouco de uísque no copo e tomou-o de um só gole.
— Se a situação explodir, há alguma maneira de podermos apoiar e justificar a posição da U.T.M.? Afinal, fomos contratados justamente para isso.
Moses olhou para os outros e novamente falou por eles:
— Não vejo a menor possibilidade. Mesmo com ambos os lados errados, não podemos alegar que isso torna um deles certo.
Daniel sentiu-se extremamente cansado.
— Se não pudermos encontrar uma saída, vamos perder Lewis e a U.T.M. Estaremos então praticamente de volta ao ponto em que começamos. Perdemos os pagamentos e estaremos novamente quebrados.
— Não precisamos fazer nada, Pai. Tudo o que devemos fazer é demorar para aprontar o relatório. E quando o entregarmos a Lewis, não se poderá fazer mais nada. Até lá, estaremos fazendo apenas o que deveríamos.
— Na superfície, é isso mesmo. Mas todos sabemos que não é bem assim. Não estaríamos sendo honestos.
— Ninguém nos está pedindo para sermos honestos, Pai.
Daniel olhou para o filho, sem dizer nada.
— Pela maneira como vejo a coisa, é uma questão de sobrevivência. Talvez na próxima vez nos possamos dar ao luxo de sermos honestos, Se é que esperamos fazer alguma coisa no futuro, teremos de sobreviver para que isso seja possível.
— Não é assim que eu costumo operar — falou Daniel sacudindo a cabeça. — Vou a Washington amanhã, para conversar com Lewis.
— Por que, Pai? Por que simplesmente não nos deixa concluir o relatório e depois o encaminha da maneira rotineira? Não precisa lançar-se ao combate como um galante cavaleiro num cavalo branco. O que espera conseguir com isso?
— A partir do momento em que isso começar, muita gente vai sair ferida. Nos dois lados. O que não faz qualquer diferença. Talvez possamos evitar que isso aconteça.
— Não é a nossa guerra, Pai. Durante toda a sua vida, andou lutando as guerras dos outros. E onde isso o levou?
— Desculpe, filho. Teve uma boa idéia. E tenho certeza de que Lewis vai tomar alguma providência assim que souber o que está acontecendo por aqui.
Júnior fitou os olhos no pai.
— O que o faz pensar que ele ainda não sabe? Esse tem sido o padrão de todos os movimentos da U.T.M. desde 1944. Foi o que aconteceu nas minas de Meadow Creek, em Sparta, Tennessee, em 1948. Dinamite, violência, terror. As mesmas táticas foram usadas no Condado de Hopkins, no Kentucky, contra a West Kentucky Coal Company, em 1949. Tenho uma lista comprida de casos assim. John L. Lewis é a U.T.M., e continuará a ser até o dia em que se aposentar ou morrer. E só porque ele delega o trabalho sujo a Tony Boyle e seus outros assistentes, acha mesmo que ele não sabe exatamente o que está acontecendo?
— Talvez tenha razão, filho, mas, de qualquer forma, não posso deixar de tentar.
— Não está sendo justo, Pai. Consigo mesmo e com os homens que permaneceram a seu lado durante todos esses anos, sacrificando-se pessoalmente, a suas famílias e carreiras, na busca de um ideal que simplesmente não funciona em nossa sociedade. Você próprio reconheceu isso, quando apresentou sua proposta a Boyle e Hoffa, quando aceitou aquele dinheiro do nosso amigo na Flórida. Foi você mesmo quem fez o acordo. E não pode agora ignorar as coisas.
A voz de Daniel era gentil:
— É muito fácil para você falar tudo isso, filho. E talvez esteja certo. Não é a nossa guerra. Mas já estive lá, no meio da violência, com todo o sofrimento e os mortos a meu redor. Não posso deixar que aconteça, enquanto houver uma chance de evitar.
Ficaram todos calados por um momento. Daniel tornou a correr os olhos pela mesa e disse:
— Isso foi pessoal. Ainda temos de realizar o trabalho para o qual fomos contratados. Depois que tudo isso estiver acabado, teremos de fornecer à U.T.M. a justificativa que for considerada necessária para todas as suas atitudes. — Levantou-se. — Cancelem o meu encontro de amanhã. Digam que fui chamado de volta por causa de uma emergência. — Virou-se para o filho. — Pode levar-me de volta ao aeroporto?
O granizo não estava mais caindo, porém a estrada continuava escorregadia. Os dois permaneceram calados até que o carro se achava perto do aeroporto. Daniel virou-se então para o filho.
— Deixou-me tremendamente orgulhoso, filho.
— Pensei que ia ficar furioso comigo, Pai. Não quero que isso aconteça. Nunca. Quero sempre agradá-lo, mesmo que não concordemos.
— Não fiquei zangado. E o que você disse era verdade. Mas acho que sou meio antiquado. Lembro-me de como eram as coisas antigamente. Os sonhos que tínhamos quando eu era jovem. Mas você está certo. É outro mundo.
— É o mesmo mundo, Pai. Apenas existem maneiras diferentes de fazer as coisas.
— Assim que este trabalho estiver terminado, filho, quero que volte aos estudos.
— Acha mesmo necessário, Pai? Posso fazer muita coisa para ajudá-lo.
— Disse que era um mundo diferente, Júnior. Vai precisar saber muito mais a respeito dele do que eu aprendi. — Daniel pegou um charuto, mas um instante depois tomou a guardá-lo no bolso. — Não vai adiantar acender agora. Eles me obrigariam a jogá-lo fora antes de embarcar no avião.
Júnior soltou uma risada, ao entrarem no caminho do aeroporto.
— Como está Margaret, Pai?
— Está muito bem.
— Ela se sente feliz com o bebê?
— Acho que sim. — Daniel olhou para o filho. — E você, está feliz com a perspectiva?
— Se você está — disse Júnior, com um aceno de cabeça.
— Claro que estou. Margaret é uma boa moça.
— Ela é muito jovem, Pai.
— Acho que sim. — Daniel sorriu. — Mas, no fundo, ainda sou um montanhês. E nós costumamos casar com mulheres bem moças.
Júnior ficou calado.
— Não aprova?
— Está com cinqüenta e seis anos, Pai. E não se diga que jamais teve garotas. Durante toda a minha vida, sempre o vi com garotas. Apenas jamais compreendi por quê.
— Talvez tenha sido porque Margaret me fez lembrar das garotas que conheci quando era jovem. Moças que cresceram à frente dos seus anos. E que estavam acostumadas a cuidar de suas famílias.
Júnior ficou novamente calado.
— Ou talvez tenha sido porque eu a amava, filho.
Júnior virou-se para fitá-lo, ao parar o carro diante do terminal do aeroporto.
— Essa é a melhor de todas as razões, Pai. Não precisa de mais nada além disso.
Daniel saiu do carro. Inclinou-se para a janela.
— Quero que saiba, filho, que também o amo.
Os olhos de Júnior ficaram úmidos.
— E eu o amo, Pai.
Ele virou-se na cama e abriu os olhos. Margaret o estava observando. Daniel sorriu, inclinando-se sobre o travesseiro e beijando-a.
— Estava sonhando durante a noite.
— Não me lembro.
— Chorava durante o sono. Está-se sentindo infeliz?
Daniel sacudiu a cabeça e pôs os pés para fora da cama.
— E você, Margaret, como está-se sentindo?
— Tudo bem comigo. Acho que o bebê se mexeu.
Ele virou-se para fitá-la.
— Deveria ter-me acordado.
— Não tive certeza. Ainda não estou com cinco meses.
— Mas é bem possível. Especialmente se for um menino.
— É o que está querendo?
Daniel acenou com a cabeça, levantando-se.
— É, sim.
— Mas já tem um filho. Sente-se infeliz com ele?
— Não. Mas é que... — Daniel pensou por um momento. — Júnior é apenas uma parte de mim. A parte prática. Ele é muito bom e com o tempo será melhor do que eu naquilo que faz.
— Então o que está querendo?
— Gostaria de ter um filho que sinta como eu sinto. Que sonhe da maneira como eu costumava sonhar quando era menino, que sinta a beleza nas pessoas e coisas a seu redor, para quem viver não tenha de ser uma sucessão de explicações lógicas.
— Uma menina não poderia sentir-se assim?
Daniel sorriu.
— Acho que sim. Mas será um menino.
— Vai ficar infeliz se for uma menina?
— Não.
Margaret ficou calada por um momento.
— Será um menino. — Ela saiu da cama e foi contemplar-se no espelho. — Minha barriga não está muito grande, mas os seios cresceram um bocado.
— Estão lindos — disse Daniel, sorrindo de novo.
— Gosta de seios grandes?
Ele riu.
— Gosto dos seus seios.
Ela pegou o robe.
— Vou descer e começar a preparar seu café.
— Mamie poderá cuidar disso.
— Gosto de preparar o café da manhã para você. Mamie faz todo o resto.
Daniel aproximou-se e abraçou-a.
— Nem tudo.
— Espero que não — murmurou Margaret, beijando-o no rosto.
Ele enfiou as mãos por dentro do robe, segurando-lhe os seios. Eram firmes e duros. Sentiu os mamilos endurecerem e a reação correspondente entre as próprias pernas dele.
— Vamos voltar para a cama.
Margaret sentiu que estava sendo irresistivelmente atraída.
— Vai chegar atrasado para o trabalho.
Ele puxou o robe para baixo, pelos ombros, deixando à mostra os seios alvos. Baixando a cabeça, Daniel começou a lambê-los, enquanto murmurava:
— Não vou-me atrasar se deixar Mamie preparar o café da manhã...
A mão de Margaret encontrou a prontidão de Daniel ao voltarem para a cama. Deitaram, as pernas dela enlaçando-o pela cintura, enquanto o guiava para dentro de si.
— Oh, Daniel... — murmurou Margaret, os olhos quase fechados. — É tão bom, tão bom.
Somente Júnior estava sentado à mesa, quando ela entrou na cozinha.
— Bom dia, Mãe Maggie — disse ele, sorrindo.
— Bom dia, D.J. — falou Margaret, retribuindo o sorriso. Ela foi até o fogão e serviu-se de café. Voltou para a mesa e se sentou.
— Seu pai já foi para o trabalho?
Ele acenou com a cabeça, assentindo.
— E levou Mamie para deixá-la no mercado.
Margaret tomou um gole do café.
— Vai voltar para a escola na segunda-feira?
— Se puder confiar que vocês dois não farão loucuras de amor quando ficarem sozinhos — disse ele, rindo.
— Ora, D.J.!
Margaret começava a chamá-lo assim logo depois que se haviam conhecido. Era a abreviação de Daniel Júnior. Parecia-lhe melhor do que somente Júnior. E ele revidara chamando-a de Mãe Maggie. Mas havia entre os dois uma simpatia genuína, um respeito mútuo pelo amor que ambos sentiam pelo homem que os unia.
— Ele não dormiu muito bem esta noite. — D.J. fitou-a atentamente e Margaret acrescentou: — Alguma coisa o está preocupando. Desde a semana passada que ele sempre sai armado, usando um coldre debaixo do braço, sob o paletó.
— Ele lhe disse alguma coisa?
— Não. — Ela sacudiu a cabeça. — E se eu pergunto, ele diz que sempre fez isso.
— O que é verdade. Lembro-me de ver isso desde que era garoto.
— O que está acontecendo, D.J.? Não sou uma criança, não importa o que ele pense. Sou a esposa dele.
— Papai também não confia em mim — D.J. pensou por um momento. — Ele criou muitos inimigos ao sair em defesa da U.T.M. depois dos distúrbios em Jellico, há dois meses.
— Acha que iriam ameaçá-lo?
D.J. sacudiu a cabeça.
— Creio que não. É o tipo de guerra em que ele esteve metido durante toda a vida.
— O que poderia ser então?
— Agora deixou-me preocupado — disse D. J., fitando-a atentamente.
— Não foi essa a minha intenção. — As lágrimas afloraram aos olhos de Margaret. — Eu o adoro. E você sabe disso. Ele é o homem mais maravilhoso que já conheci.
Um tanto constrangido, D.J. murmurou:
— Talvez não seja nada. Ele sempre andou armado. Talvez estejamos criando um problema que não existe.
Margaret estava agora chorando. Baixinho.
— Quero ajudá-lo. Quero conversar com ele. Mas não sei como. Ele sabe muito mais do que eu. E simplesmente não sei o que dizer.
D.J. inclinou-se sobre a mesa e afagou-lhe a mão, gentilmente.
— Procure relaxar, Mãe Maggie. Ficar transtornada assim não será bom para o bebê.
— Você é igualzinho a seu pai — balbuciou Margaret, o princípio de um sorriso lhe contraindo os lábios. — Ele diria exatamente isso.
— É bem possível. Mas, infelizmente, por mais que eu queira, não sou exatamente como ele.
Daniel parou o carro na viela nos fundos do armazém, subiu a escada dos fundos e bateu na porta de ferro da saída de emergência. Três batidas rápidas, uma pausa, outra batida.
A porta se abriu no mesmo instante. Um homem corpulento fitou-o atentamente.
— Sr. Huggins?
Daniel assentiu.
— Por aqui.
Daniel seguiu o homem pelo comprido armazém vazio, as repartições guardando apenas poeira. Subiram outra escada, na extremidade do prédio. Passaram por outra porta de ferro e entraram no escritório. Numa mesa comprida, diversos homens e mulheres estavam separando volantes de papel. Não olharam para os dois homens que passaram junto à mesa, entrando em outra sala. Ali havia também uma mesa comprida, em torno da qual estavam sentados homens e mulheres. A diferença era que naquela mesa não estavam separando volantes, mas sim contando dinheiro. Eram notas e moedas, estas colocadas em máquinas, que formavam pilhas como nos bancos. Os dois homens foram novamente ignorados, ao seguirem para a sala seguinte.
Lansky estava sentado atrás de uma escrivaninha, numa sala pintada de branco. Havia diversas cadeiras de aspecto indefinido na sala. Os outros dois homens presentes eram os guarda-costas que Daniel conhecera quando visitara Lansky na Flórida. A um gesto de Lansky, eles saíram da sala, deixando-o a sós com Daniel.
— Puxe uma cadeira — disse Lansky.
Daniel sentou-se diante da mesa. Não falou nada.
— Tem feito um bom trabalho — continuou Lansky. — Acho que é a primeira vez que os membros de sindicato recebem direito os seus seguros e os benefícios dos fundos de pensão. Estão tão acostumados a serem roubados por seus dirigentes que tenho dúvidas se realmente compreendem o que você está fazendo por eles.
Daniel continuou calado.
— Também não nos temos saído mal. É verdade que algumas companhias de seguros queixam-se de que você exige demais na hora dos acordos.
— Deixe-os reclamarem — disse Daniel. — Há o bastante para que ninguém precise roubar.
Lansky fitou-o em silêncio por um momento. Parecia completamente aturdido.
— É um homem estranho, Big Dan. Pelo que posso descobrir, não faz outra coisa senão trabalhar arduamente. As prestações do seu empréstimo são pagas dentro do prazo, as comissões vão para os fundos sindicais, não tira mais nada além do seu salário normal, as despesas de representação são mínimas. Onde está o seu proveito?
Daniel sorriu. Era evidente que Lansky verificara tudo.
— O dinheiro não é tudo. Sou um idealista.
Lansky soltou uma risada.
— Ideais não existem. Todo mundo gosta de dinheiro.
— Não falei que não gostava. Apenas disse que dinheiro não é tudo. Já tem todo o dinheiro de que precisa, Sr. Lansky. Por que então continua a trabalhar?
Lansky assumiu uma expressão pensativa. Não respondeu.
— Por que não se aposenta e desfruta o que conseguiu pelo resto de sua vida?
— Não é tão fácil assim — respondeu Lansky. — Tenho obrigações a cumprir.
— O dinheiro pode pagá-las. Há certamente algo mais do que isso. E é uma coisa de que não quer abrir mão
— E o que acha que é, Big Dan?
— Poder.
Lansky demorou um pouco para falar:
— E é isso o que está querendo?
— É, sim. Mas não quero conquistá-lo à custa das pessoas que devo representar.
— Então como espera alcançá-lo?
— De maneira muito simples. Faço acordo com os demônios.
— E isso não é trair a confiança depositada em você?
— Não. No meu modo de ver, atenuo a capacidade deles de praticarem o mal. Por causa de tudo o que fiz nos últimos seis meses, mais de seiscentos mil trabalhadores sindicalizados estão recebendo benefícios vinte por cento maiores de seus seguros e fundos de pensão. E se eu não pressionasse, a U.T.M. nunca iria construir aqueles dez hospitais em Virgínia e Kentucky que serão inaugurados no próximo mês de junho.
— Mas não está assim contribuindo para perpetuar os demônios no poder?
— Não sou um policial, Sr. Lansky. Não fui eu que os elegi para os cargos que ocupam. Compete aos próprios associados do sindicato decidirem quem eles querem que os represente. — Daniel tirou um charuto do bolso e colocou na boca. Não o acendeu. Estava com uma expressão pensativa. — Passei toda a minha vida no movimento trabalhista, Sr. Lansky. Já vi muitas injustiças. Nos dois lados. E cheguei à conclusão de que não posso melhorar nada pelo lado de fora. A única maneira de melhorar o sistema é trabalhar do lado de dentro.
— Não me importo que você fume — interrompeu Lansky.
Esperou até que Daniel acendesse o charuto. — Imagino que não estaria interessado em passar cinco milhões de dólares por ano através de seus fundos de pensão, mesmo que recebesse uma comissão de cinco por cento pessoalmente, não é mesmo?
— Está falando do dinheiro lá fora? — indagou Daniel, sacudindo a cabeça na direção da porta às suas costas.
— Exatamente.
— Pois imaginou certo, Sr. Lansky.
Lansky ficou calado por um momento.
— Mas não faria qualquer objeção a trabalhar com qualquer sindicato, mesmo que a A.F.L.-C.I.O. estivesse querendo expulsá-lo por corrupção?
— Está-se referindo especificamente aos Teamsters, ao Sindicato dos Trabalhadores em Panificações e aos Trabalhadores em Lavanderias?
— A eles e também aos Trabalhadores em Construção Civil e a vários outros. Estou falando de dois milhões e meio de trabalhadores sindicalizados que podem estar procurando uma nova central sindical ao longo dos próximos anos.
— Só os aceitaria nas mesmas condições com que estou trabalhando agora. Não tenho a menor intenção de iniciar outra central sindical para enfrentar a A.F.L.-C.I.O. Como falei antes, meu objetivo é conquistar mais benefícios para os trabalhadores, operando com os seus representantes eleitos, ao invés de controlá-los.
— Está lembrado da história O Demônio e Daniel Webster? — indagou Lansky, sorrindo. — Tem certeza de que seu nome não é Daniel Webster Huggins?
— Não — respondeu Daniel, rindo. — É Daniel Boone.
— E eu não sou o Demônio — disse Lansky, suavemente. — Não me precisa suplicar pela alma do trabalhador.
— Fico contente por saber disso, Sr. Lansky. Já estava começando a me sentir preocupado.
— Tem feito muitos inimigos, Big Dan. Algumas das pessoas a quem vem ajudando estão começando a se ressentir do prestígio que está adquirindo em seus próprios sindicatos.
— Tenho feito inimigos ao longo de toda a minha vida, Sr. Lansky. Aprendi a conviver com isso.
— É o que também acontece comigo, Big Dan. E gostaria de sugerir que adotasse algumas das mesmas precauções que eu tomo para continuar vivo.
Daniel ficou calado. Aquele era o objetivo da reunião. Depois de um momento, ele se levantou. Alguns rumores já haviam chegado a seus ouvidos e era por isso que voltara a andar armado. Sentia-se contente de a ameaça não estar partindo do homenzinho à sua frente. De certa forma, sentia uma estranha afinidade com Lansky. Ambos eram uma espécie de párias.
— Obrigado, Sr. Lansky. Farei o que puder.
Lansky sorriu e apertou um botão na mesa. Os homens voltaram à sala. A entrevista estava terminada.
— Duzentos mil dólares por semana e isso é apenas o começo — disse Hoffa. — E Dave Beck não vai meter a mão.
Daniel estava sentado, observando-o. Não disse nada.
— Quero que os Estados Centrais instituam o seu próprio fundo de pensão e vão-me ajudar nisso — continuou Hoffa. — Foi por isso que os chamei para esta reunião.
Daniel olhou para Moses e Jack Haney, que tinham vindo com ele, depois para os dois associados de Hoffa no outro lado da sala, Bobby Holmes e Harold Gibbons.
— E o que exatamente espera de nós?
— Quero que crie um sistema seguro, a fim de que possamos administrar o nosso próprio fundo, em benefício de nossos próprios associados.
— E quem vai dirigir o fundo? — indagou Daniel.
Hoffa ficou surpreso.
— Eu mesmo. Em quem mais eu poderia confiar todo esse dinheiro?
Daniel manteve uma expressão impassível.
— Pode ter problemas. Talvez haja um conflito de interesses. Pessoais e sindicais.
— Não haverá problema algum. O que é bom para mim, é bom para o sindicato.
— Não vou discutir isso. Mas talvez seja difícil convencer os outros.
— Pois essa é a sua função — declarou Hoffa. — E agora me diga: como podemos fazê-lo?
— Quer uma resposta imediata?
— Claro que quero. Estamos recolhendo esse dinheiro há quase um ano e já há mais de dez milhões de dólares no banco, parados.
— O dinheiro está começando a abrir um buraco em seu bolso, Jimmy? — falou Daniel, com um sorriso. E, pela primeira vez, Jimmy riu.
— É bom mesmo acreditar nisso. Temos algumas propostas que podem render um bocado de dinheiro.
— Que espécie de propostas?
— Alguns amigos meus de Detroit têm muita força em Las Vegas. E precisam de capital de investimento. Pagam ótimos juros pelo dinheiro, porque os bancos não gostam de soltar grana para eles.
Daniel assentiu, recordando sua conversa com Lansky no mês anterior. Fazia sentido. As ligações do homenzinho eram amplas e variadas.
— Parece um bom negócio. Mas vai precisar diversificar sua carteira de investimentos. Não pode limitar-se a aplicar em coisas assim. Como está funcionando o acordo de seguro?
— Está tudo bem. Deram ao meu amigo a corretagem exclusiva e por isso tudo está correndo bem.
— É um prazer saber disso. Se nos fornecer todas as informações disponíveis, podemos apresentar-lhe um plano viável dentro de uma semana.
— Não mais do que isso?
— Uma semana mesmo.
Hoffa virou-se para Gibbons.
— Entregue-lhe todos os documentos.
— Cópias servem? — perguntou Gibbons, olhando para Daniel — Não gosto de me separar dos originais.
Gibbons saiu da sala. Hoffa inclinou-se sobre a mesa.
— Podemos conversar em particular por um minuto?
Daniel assentiu. A um gesto, os outros homens saíram da sala. Ele esperou até que a porta se fechasse.
— Qual é o problema, Jimmy?
— Dave Beck. A situação não me parece nada boa.
— E não é mesmo.
— Quanto tempo acha que vão demorar para metê-lo na cadeia?
— Com todos os recursos que ainda lhe restam, talvez um ano, até quinze meses.
Hoffa pegou um lápis e pensou por um momento.
— Corre o rumor de que ele pode cantar, para receber uma sentença mais suave.
— Não creio que isso aconteça. Tudo o que eles têm contra Beck é uma fraude sem maior importância no pagamento do imposto de renda. Não há nada para mantê-lo por muito tempo na cadeia. E Beck é esperto o bastante para revelar tudo o que sabe. Se o fizer, vai perder sua pensão e tudo o mais, nos termos do seu contrato de trabalho.
— Acha então que devo estar pronto para dar o meu lance na convenção do outono de 1957?
— Acho.
— E acha que posso conseguir?
— Claro que pode. Não há mais ninguém. Mas é melhor saber de uma coisa, se é que já não sabe. Você é o próximo alvo. Vão partir para cima de você como caçadores de gângsteres.
— Quero que eles se danem. Não vão conseguir pegar-me em coisa alguma.
— Era exatamente o que Dave Beck pensava, Jimmy. E encontraram um jeito.
— Não sou idiota. Pago os meus impostos direitinho.
— Há muita pressão em cima dos Teamsters. Um ataque político contra o sindicato pode explorar o temor público do poder sindical sobre a nossa economia. Mais cedo ou mais tarde, algum político vai aproveitar a oportunidade. Já houve declarações demais de dirigentes dos Teamsters de que podem parar o país com uma greve.
— E podemos mesmo.
— Pois façam isso e será o fim do sindicato. O governo entrará em cena e assumirá o controle.
— Sei disso. — Hoffa largou o lápis. — Em sua opinião, qual a posição de Meany em tudo isso?
— Os Teamsters estão de fora em tudo o que envolve a A.F.L.-C.I.O. Acham-se apavorados com o espectro da corrupção que se seguiu às investigações e julgamentos de Dave Beck.
— Mas o governo não conseguiu provar nada.
— Para Meany, não há necessidade disso. Tudo o que ele precisa é de um pretexto para afastá-lo.
— Está com medo de que a gente assuma o controle.
— É possível.
— Mas não estou interessado. Talvez você lhe possa dizer isso.
— Direi mesmo. Mas não há razão para que Meany acredite em mim. Ele não gosta de mim, assim como também não gosta de você. — Daniel fez uma pausa, fitando Hoffa atentamente. — Mas há uma grande diferença entre nós dois: Meany não pode fazer nada contra mim. A C.A.L.L. não é um sindicato. Somos um grupo de serviço e consultoria sindical, à disposição de qualquer sindicato que nos queira contratar. E mesmo quando somos contratados, não formulamos políticas, apenas fazemos recomendações. Os sindicatos é que devem decidir por si mesmos qual o curso de ação que vão adotar. E têm toda liberdade para nos dispensar a qualquer momento, por qualquer motivo.
— Soube que Meany disse a diversos sindicatos que consideraria a contratação da C.A.L.L. como uma violação da confiança da A.F.L.-C.I.O.
— Também já me falaram a respeito. Mas não tenho provas. Além do mais, não é problema meu.
— Acho que não. — Hoffa sorriu. — Pelo que me disseram, você tem sido contratado por vários sindicatos de todo o país.
— Talvez estejam começando a descobrir que realizamos o trabalho que prometemos — falou Daniel, assentindo.
— Se decidir formar outra central sindical nacional, pode contar com os Teamsters.
— Obrigado, Jimmy. Mas não há espaço suficiente para duas centrais sindicais separadas. AA.F.L. e o C.I.O. reconheceram isso e se fundiram. Estou satisfeito com a situação atual.
— Big Dan, ou você é o homem mais esperto que existe no movimento trabalhista... ou o mais idiota — disse Hoffa, rindo. Daniel riu também.
— Já pensou alguma vez que eu posso ser as duas coisas?
Mais tarde, no carro, a caminho do aeroporto, Moses inclinou-se para Daniel e disse, em voz baixa:
— Hoffa nos mentiu.
— A respeito do quê?
— Disse que tinham cerca de dez milhões de dólares parados. É mais provável que sejam cinqüenta milhões. Ele esqueceu de mencionar alguns outros distritos importantes que também controla.
— Eu já tinha pensado nisso.
A voz de Moses soou abafada, quase impregnada de respeito:
— Dentro de três anos, eles terão mais de um bilhão de dólares para aplicar.
— E daí?
— Isso faz com que o bolo da U. T. M. pareça o da mercearia da esquina. Lewis não pode nem chegar perto disso.
— O dinheiro que eles têm não é da nossa conta.
— Claro que é. Estão-nos pedindo para dizer o que devem fazer com o dinheiro.
— Não estão, não. Estão-nos pedindo apenas para recomendar planos de investimento e proteção do dinheiro, em benefício de todos os associados.
— No fundo, o que eles estão realmente querendo é que você lhes dê uma licença para roubar.
— Mas não vão conseguir isso de mim. Vão receber exatamente o que pediram.
— Não vai conseguir ficar fora disso — comentou Moses. — Se eles se meterem em alguma encrenca, irão convocá-lo para defender suas ações.
— Não posso preocupar-me com isso agora.
— Mas é melhor começarmos a pensar nisso de qualquer maneira — murmurou Moses, sombriamente.
— Está certo. Qual é a primeira coisa que acha que devemos fazer?
— O sindicato dos Estados Centrais está-nos pagando dez cents por associado. Se aceitarmos essa incumbência do fundo de pensão, acho que nos devem pagar outros dez cents.
— Não vejo como isso nos ajudará a resolver o problema deles.
— Vamos ter de aumentar a nossa equipe. E isso custa dinheiro. Alguém terá de pagar o acréscimo das despesas.
— E acha que devem ser eles? — indagou Daniel, fitando-o.
— Parece-me perfeitamente justo — respondeu Moses. — Eles podem arcar com a despesa. Nós não podemos.
— Não tenho qualquer objeção — falou Daniel, após um momento. — Inclua isso como parte da proposta que vamos apresentar.
— E se eles não concordarem?
— Faremos o trabalho de qualquer maneira. Quer me agrade ou não, fiz um trato com Jimmy Hoffa e não tenciono retirar a palavra empenhada.
O barulho da buzina do automóvel entrou pela janela aberta. Daniel levantou os olhos do jornal matutino.
— O carro já chegou.
— Ouvi a buzina — disse Margaret.
Daniel terminou de tomar o café.
— Tenho de correr.
— Virá jantar em casa esta noite?
— Não sei. Estamos afundados em trabalho até o pescoço. Nunca deveria ter aceitado o trabalho adicional para os Teamsters. Acabamos processando e verificando todos os pedidos de empréstimos. Há uma porção que teremos de encaminhar, com as nossas recomendações, para a reunião do comitê executivo deles, depois de amanhã.
— Nos últimos dez dias, só veio jantar em casa em duas noites.
— Não posso fazer nada — disse Daniel, fitando-a. — Tenho as minhas responsabilidades.
— Também tem uma responsabilidade comigo.
— Sei disso — falou ele, levantando-se. — Mas conhecia o trabalho que eu fazia antes de casarmos.
— Não era tão ocupado naquela ocasião. Tinha mais tempo para si mesmo. E para mim.
— E também estávamos à beira da falência.
— O dinheiro por acaso melhora a situação?
— Pelo menos ajuda a pagar as contas. E a nova casa que teremos em Scarsdale, Nova York, não é o que se poderia chamar de uma casa de pobre.
— Estou feliz. Por que temos de mudar para Nova York?
— Já expliquei — disse Daniel, pacientemente. — Estamo-nos envolvendo cada vez mais no negócio de administração de fundos. E o dinheiro se encontra em Nova York. É por isso que estamos transferindo a nossa sede para as proximidades de Wall Street.
Margaret ficou calada, enquanto Daniel vestia o paletó.
— Relaxe, querida. Vai dar tudo certo. O último mês é sempre o pior. Vai sentir-se melhor depois que o bebê nascer.
— Estou horrível — disse ela, sacudindo a cabeça.
Daniel contornou a mesa e beijou-a.
— Ao contrario. Está linda.
— Nunca mais terei o mesmo corpo de antes.
— Terá, sim — retrucou ele, rindo. — Não se preocupe com isso.
— Tenho medo que encontre outra garota e que ela o tire de mim.
— Não há a menor possibilidade.
— Já tem mais de um mês. E eu o conheço. Vejo como está quando acorda de manhã.
— Uma mijada e um banho frio resolvem o problema — comentou Daniel, rindo.
— E quantos banhos frios precisa tomar durante o dia?
— O que vou fazer com você? — falou Daniel, meneando a cabeça.
Margaret não disse nada.
— Ora, querida, a situação não é tão ruim assim.
— Nem mais posso chupá-lo. Estou enjoada o tempo todo.
— Está sendo muito tola.
As lágrimas começaram a escorrer pelas faces de Margaret.
— Estou com medo. Sei que vou perdê-lo.
Daniel levantou-a e beijou-a, tomando cuidado para não comprimir-lhe a barriga.
— Não vai-me perder. — A buzina do carro tornou a soar lá fora. — Estou atrasado, querida. Tenho de correr.
Margaret acompanhou-o até à porta.
— Vem jantar em casa hoje?
— Farei todo o possível. Telefonarei para avisar ao final da tarde.
Ela ficou parada na porta, observando-o encaminhar-se para o carro. O motorista saltou e abriu a porta para Daniel. Ele se sentou no banco de trás. Margaret esperou até que o carro virasse a esquina e depois entrou em casa, Mamie estava saindo da cozinha, com uma sacola de compras na mão.
— Vou até o armazém, Sra. Huggins. Deseja alguma coisa?
— Não, obrigada. Vou subir e me deitar um pouco.
Haviam percorrido apenas uns poucos quarteirões quando George, o motorista, virou rapidamente a cabeça e disse para Daniel:
— Há um carro nos seguindo, Sr. Huggins.
— Tem certeza?
— Absoluta — falou George, olhando pelo espelho retrovisor. — O Dodge azul. Tem dois homens no banco da frente. Já estavam atrás de mim quando saí da garagem esta manhã.
Daniel olhou pela janela traseira. O tráfego era intenso e ele não avistou o carro indicado.
— Onde?
— Cerca de sete carros atrás, Sr. Huggins.
Daniel finalmente identificou o carro. Percebeu que havia dois homens no banco da frente, mas não pôde divisar como eram.
— Reconhece algum deles?
George sacudiu a cabeça.
— Nunca vi nenhum dos dois antes.
— Foi direto da garagem para a minha casa?
— Não, senhor. Peguei primeiro o Sr. Gibbons no hotel e levei-o para uma reunião na sede dos Teamsters com o Sr. Beck. Só depois é que segui para sua casa.
Daniel assentiu. Tanto o carro como o motorista eram dos Teamsters. Portanto, era perfeitamente normal que cuidassem dos seus primeiro. Hoffa providenciara para que o carro e o motorista «estivessem à disposição dele, sempre que precisasse.
— Quem você acha que são?
— Não tenho a menor idéia. Podem ser da polícia. Costumam usar carros velhos assim.
— Falou a respeito com o Sr. Gibbons?
— Não. Não tinha certeza antes. Só passei a ter depois que o larguei e o carro continuou a me seguir.
— Você está armado? — perguntou Daniel.
— Não, senhor.
— Quem mais sabia que você ia buscar-me esta manhã?
— Todo mundo. Os trabalhos dos motoristas são afixados no quadro de avisos na noite anterior.
Daniel tornou a olhar pela janela traseira. O Dodge continuava a segui-los, cinco carros atrás. Virou-se para o motorista.
— Avance o próximo sinal vermelho e vire à direita. Entre na primeira viela que encontrar. Pare lá e se abaixe.
George olhou para trás, vendo Daniel tirar o revólver do coldre no ombro. A voz dele tornou-se subitamente seca.
— Acha que vai haver tiroteio, senhor?
Daniel verificou o tambor do revólver.
— Não creio. Mas aprendi há muito tempo que sempre se deve estar preparado para tudo.
As mãos de George comprimiram tensamente o volante. Percorreram mais três quarteirões antes que ele tivesse uma oportunidade de seguir as instruções de Daniel. O motorista avançou o sinal vermelho e virou bruscamente à direita. Daniel, observando pela janela traseira, não avistou o carro azul quando entraram na viela. George parou o carro na metade do caminho para a outra rua. Virou-se a fim de olhar para trás.
— Abaixe-se! — disse Daniel, asperamente.
George desapareceu e Daniel ficou observando. Cerca de um minuto depois, o carro azul passou velozmente pela entrada da viela.
— Muito bem, George. Vamos embora. Leve-me para o escritório.
George tornou a ligar o carro, enquanto Daniel guardava a arma no coldre.
— Santo Deus! — exclamou George.
— Tem algum serviço depois que me largar no escritório? — perguntou Daniel.
— Não. Tenho instruções para ficar à sua disposição durante o dia inteiro.
— Não há necessidade. Deixe-me no escritório e depois volte para a garagem. Assim que chegar lá, ligue para mim e informe se ainda o estão seguindo.
— Estão atrás de nós outra vez — falou George, olhando novamente pelo espelho retrovisor.
— Eu já esperava por isso. Queria apenas me certificar do que eles estão fazendo. — Daniel percebeu a expressão preocupada de George pelo espelho retrovisor e acrescentou, tranquilizadoramente:
— Não há motivo para ter medo. Eles já sabem que os percebemos. Não vão tentar nada.
O carro parou diante do prédio de dois andares que alojava os escritórios da C.A.L.L. Sem olhar ao redor, Daniel entrou no prédio e seguiu diretamente para sua sala. Estava no meio do exame de correspondência da manhã, quando veio o telefonema.
— Aqui é George, Sr. Huggins. Estou na garagem. Eles não me seguiram.
— Está certo, George. Obrigado.
— Deseja que eu faça alguma coisa?
— Não, George. Telefonarei se precisar de algo. E, mais uma vez, obrigado.
Daniel apertou um botão no telefone. Um momento depois, Moses e Jack estavam em sua sala.
— Há um Dodge azul estacionado em algum lugar lá da rua, com dois homens. Estão-me seguindo desde que saí de casa esta manhã.
— Sabe quem são eles? — perguntou Moses, a preocupação na voz.
— Não tenho a menor idéia. Mande alguém verificar a placa e poderemos depois descobrir a quem pertence o carro, através dos nossos amigos no Departamento de Polícia.
— Pode deixar que cuidarei disso pessoalmente — declarou Moses.
— Não. Se eles me conhecem, também o conhecem. Mande um contínuo ou uma secretária. E avise para não chamar atenção. A pessoa deve apenas passar pelo carro e anotar mentalmente a placa. Mais nada.
— Está certo — disse Moses, saindo da sala.
Daniel virou-se para Jack.
— Qual a nossa situação, se formos convocados a depor sobre os negócios de nossos clientes?
— Se recorrerem às providências legais apropriadas e tiver de prestar depoimento sob juramento, não terá alternativa senão responder às perguntas.
Daniel ficou calado e Jack acrescentou:
— Não conta com a proteção do relacionamento advogado-cliente ou mesmo do médico-paciente, se é nisso que está pensando.
— E o que me diz dos arquivos que nos foram confiados pelos clientes?
— Se for intimado legalmente, terá de entregá-los.
Daniel acenou com a cabeça, baixando os olhos para a mesa, pensativo.
— É melhor pegar tudo o que é dos outros que está no escritório e devolver aos sindicatos que nos enviaram. Antes do anoitecer, só quero nos arquivos os nossos próprios documentos.
— Está tornando a situação muito difícil para nós. Precisamos desses documentos para podermos realizar nosso trabalho.
— Não quero nem saber. Não pretendo ser o caminho para que algum filho da puta liquide com um dos nossos clientes. Tire todos os documentos daqui. E amanhã vamos começar a planejar a criação de pequenos grupos de trabalho para operar nos escritórios dos clientes. Pode ser um pouco inconveniente, mas mesmo assim faremos o nosso trabalho.
— Também vai custar um bocado de dinheiro — comentou Jack.
Daniel fitou-o nos olhos.
— Pode dizer-me o que não custa?
Moses voltou à sala.
— Já sabemos a quem pertence o carro, E não foi necessário ligar para a polícia. Está escrito nas próprias placas. Governo Federal, A.S.G.
— Conhece alguém nos Serviços Gerais que possa informar qual o departamento que o carro está servindo? — perguntou Daniel.
— Acho que sim. — Moses pegou o telefone e discou rapidamente. Falou em voz baixa ao telefone, depois cobriu o bocal com a mão. — Ele está verificando para nós. — Um momento depois, o assistente disse: — Obrigado. — E desligando o telefone, anunciou: — O carro está a serviço do Comitê McClellan.
O nome inteiro era Comitê Especial do Senado sobre Atividades Ilícitas na Administração Sindical.
— Está certo — disse Daniel. — Pelo menos sabemos agora com quem estamos lidando. Só há dois sindicatos que eles estão investigando neste momento, a União dos Trabalhadores na Indústria Automobilística e os Teamsters. E como não temos qualquer contrato com a U.T.I.A., devemos presumir que estão atrás de nós por causa dos Teamsters. — Fez uma pausa, olhando para Jack. — Providencie para que os arquivos dos Teamsters sejam os primeiros a sair daqui.
— Somos uns idiotas — disse Daniel, afastando o relatório meticuloso para o lado da mesa.
— O que está errado? — perguntou Moses, ansiosamente.
— Nada. O único problema é que estamos sentados em cima de uma mina de ouro e nunca percebemos. Estamos recomendando investimentos para o fundo de pensões dos Teamsters e não estamos tomando qualquer providência para nós mesmos.
— E o que podemos fazer? — indagou Jack.
— Podemos começar o nosso próprio fundo — declarou Daniel.
— Não dispomos do dinheiro necessário — comentou Moses.
— Mas podemos obtê-lo. — Daniel acendeu outro charuto e soprou a fumaça para o ar. — Fundo Sindical Comum. Podemos criá-lo de forma a que tanto os trabalhadores sindicalizados como os próprios sindicatos possam aderir. Há centenas de pequenos sindicatos independentes que não dispõem de dinheiro suficiente para instituir os seus próprios planos e que tratarão de aproveitar a oportunidade.
— De qualquer forma, precisaremos de muito dinheiro para iniciar um fundo assim — disse Jack. — Pelo menos dez a quinze milhões de dólares, só para começar.
— Posso conseguir esse dinheiro — declarou Daniel, confiante. — Será fácil arrancá-los dos Teamsters e da U.T.M. E tem mais: será uma boa iniciativa de relações públicas para eles. Alguns dos investimentos deles, embora possam ser lucrativos, estão começando a cheirar mal. Isso pode melhorar a imagem deles.
— A perspectiva parece promissora — comentou Jack, cautelosamente.
— Tenho minhas dúvidas — objetou Moses. — Isso pode mudar toda a natureza de nossa operação. Vamos passar da posição de conselheiros para a de administradores.
— Não vejo o que pode haver de errado — disse Daniel. — Está de acordo com o nosso objetivo, que é o de proporcionar uma segurança maior ao trabalhador sindicalizado.
— Pode ser arriscado — insistiu Moses. — Não sabemos nada sobre a administração de um fundo assim.
— Podemos contratar especialistas. Não há um único corretor do mundo inteiro que não queira aproveitar a oportunidade de um negócio assim. Neste momento, temos mais de três milhões de trabalhadores sindicalizados nos sindicatos que operam conosco. Basta cem dólares de cada um para que tenhamos trezentos milhões de dólares para investir. E não é preciso ser um conhecedor profundo para saber que, investindo apenas em papéis de primeira linha, teremos uma lucratividade média de oito por cento. O que representa vinte e quatro milhões de dólares por ano. E se cobrarmos apenas a metade das taxas de administração habituais, estaremos ganhando três milhões de dólares por ano.
— O que é quase o dobro do que estamos recebendo neste momento em contribuições dos sindicatos que operam conosco — disse Moses. — E não precisaríamos sair por aí com o chapéu na mão.
— Está começando a pegar a idéia, Moses. — Daniel apanhou o relatório em cima da mesa. — Jack, comece a trabalhar nisso imediatamente. Quero saber tudo o que é necessário para criarmos o fundo.
— Está certo.
Daniel virou-se para Moses.
— Mande o departamento estatístico fazer uma lista dos membros de cada sindicato filiado. Quero os nomes e endereços residenciais.
— Teremos de obter essas listas com os próprios sindicatos — disse Moses. — Fazemos a cobrança com base nos relatórios que eles nos enviam.
— Pois trate de providenciar.
— E o que devo dizer-lhes para justificar o pedido? Sabe como eles são temerosos em fornecer a relação dos seus associados.
— Diga que estamos fazendo um estudo sobre as condições de vida dos associados. Apresente qualquer pretexto, mas trate de obter a informação.
— Está certo.
Os dois homens se levantaram. Jack apontou para o relatório.
— Quer que eu mande isso para Hoffa?
— Não — disse Daniel. — Acho que vou entregá-lo pessoalmente.
— Está com alguma idéia na cabeça — disse Hoffa, astutamente. — Se não fosse assim, não teria vindo entregar esse relatório pessoalmente.
— Tem razão — falou Daniel. — Além das nossas recomendações nesta pasta, quero que faça um investimento de quinze milhões de dólares num fundo comum que estamos iniciando.
— O que o leva a pensar que lhe daríamos dinheiro para começar um fundo assim, quando nós mesmos podemos fazê-lo? — indagou Hoffa, fitando-o, atentamente.
— Seria também um investimento de relações públicas. — Daniel sorriu. — Vai mostrar que sua preocupação com os trabalhadores transcende os empecilhos de jurisdição. Vai mostrar que está interessado no bem-estar não apenas dos Teamsters, mas também de todos os trabalhadores sindicalizados.
— Mas que besteira é essa?
— Quer mesmo saber qual é a entrelinha? — indagou Daniel, soltando uma risada.
— Claro que quero — respondeu Hoffa.
— Há duas semanas que estou sendo vigiado por agentes do Comitê McClellan. Nossos amigos do governo informaram-me que me estão vigiando porque decidiram investigar você. Acham que a nossa associação poderá levar a alguma coisa que possam usar contra você. E a qualquer dia vão entrar aqui para examinar seus arquivos.
— E que diabo eles estão procurando?
— Não sei. E tenho o pressentimento de que eles também não sabem. Apenas calculam que com tanto dinheiro por aqui, não pode deixar de haver algo ilegal.
— Não vão encontrar coisa alguma nos meus arquivos.
— Também não encontrarão nada nos meus. Já devolvi, há duas semanas, todos os documentos que recebi dos Teamsters.
— E por que ninguém me disse nada até agora?
— Não tenho a menor idéia. Devolvi tudo para Gibbons.
Hoffa pegou o telefone, dizendo para Daniel:
— Quero que Gibbons venha à minha sala imediatamente.
— Isso pode esperar, Jimmy. Não é importante agora. Acha melhor tomar a mesma providência que adotei. Acione seu departamento jurídico e verifique exatamente quais são os seus direitos, se eles entrarem aqui.
— Tem razão — concordou Hoffa, após um momento.
Daniel ficou calado.
— Quem mais está pondo dinheiro nesse fundo que você está criando? — perguntou Hoffa.
— A U. T. M. está entrando com cinco milhões.
— E por que eu devo entrar com quinze milhões?
— Porque é três vezes mais rico.
Hoffa soltou uma risada.
— Você vai direto ao ponto, Big Dan. — Ele abriu o relatório e deu uma olhada. — O que o faz pensar que será um investimento melhor do que os outros que está recomendando aqui?
— Não sei se será melhor. Posso dizer apenas que será mais seguro. Cada transação que está aí envolve algum grau de especulação. Pode ganhar muito dinheiro, mas também corre o risco de perder. Mas nós vamos ficar nas ações de primeira linha, as blue-chips. Nada de especulação, apenas um crescimento gradativo e constante. Pode não ganhar tanto dinheiro, mas não será prejudicado.
— Temos algum privilégio especial por entrarmos no início?
— Pode colocar um homem no comitê de investimentos.
— Isso não adiantaria de nada — disse Hoffa, rindo. — Tenho todos aqueles idiotas no meu comitê e mesmo assim tenho de tomar as decisões pessoalmente. — Recostou-se na cadeira. — Por quinze milhões de dólares, precisamos ter alguma vantagem.
— É exatamente isso o que estamos querendo evitar — falou Daniel, sacudindo a cabeça. — Vai ser um fundo público. Não quero que os políticos possam transformá-lo em outro futebol político. Vamos agir rigorosamente dentro das regras.
— Está certo, Big Dan. Vamos agir de acordo com as regras.
— Cinco milhões de dólares — murmurou Lewis, pensativo. Olhou para os seus companheiros. — O que acha, Tom?
Kennedy acenou com a cabeça.
— As possibilidades parecem boas.
— Tonny? — perguntou Lewis.
— Creio que se pode fazer o que Big Dan está dizendo. Abre a porta para todos os trabalhadores sindicalizados entrarem com pouco dinheiro no mercado americano. E será uma boa iniciativa de relações públicas nos associarmos.
— Cinco milhões de dólares é um bocado de dinheiro — comentou Lewis.
Daniel ficou calado. Levando em consideração .que Lewis acabara de comprar um banco de Washington para a U. T. M., com mais de 200 milhões de dólares de depósitos, sendo que somente a própria U.T.M. tinha mais de 50 milhões em caixa, o velho estava chorando miséria demais. Lewis inclinou-se sobre a mesa.
— Quanto capital já tem empenhado no projeto, Sr. Huggins?
— Se me der os cinco milhões, terei vinte milhões de dólares para começar — respondeu Daniel, com um sorriso.
— E se eu não der?
— Não terei nada.
— Onde vai conseguir os outros quinze milhões?
— Dos Teamsters.
A voz de Lewis tinha um tom de incredulidade:
— De Dave Beck?
— Não, senhor. Dos Estados Centrais. Jimmy Hoffa.
— E se eu não der o dinheiro, Jimmy Hoffa também não dará?
— Não, senhor. Ele não impôs condições ao investimento. Mas se não quiser entrar, não aceitarei o dinheiro dele.
— Por que não?
— Preciso de uma base mais ampla no movimento sindical do que apenas um sindicato. Quero começar com algo que transcenda aos limites de um sindicato. Algo que possa ser em benefício e uma oportunidade a todos os trabalhadores sindicalizados, não importa qual seja o seu sindicato.
John L. Lewis fitou-o atentamente.
— Parece uma coisa idealista.
— Pode ser, senhor. Mas não há nada de errado com os ideais. Se o senhor mesmo não os tivesse, os trabalhadores em minas ainda estariam na mesma situação da época em que entrei numa mina pela primeira vez, como menino, há quarenta e cinco anos.
Lewis assentiu lentamente.
— Tem razão. Algumas vezes esquecemos a luta que tornou tudo isso possível. Uma luta que jamais cessará, uma luta que exigirá a nossa vigilância eterna. — Virou-se para Kennedy. — Tom, acerte todos os detalhes com o Sr. Huggins. Na minha opinião, ele está dando um passo extremamente construtivo para o movimento trabalhista na América.
— A chave para o sucesso ou fracasso do fundo estará nos investidores individuais. Se não for assim, estaremos sujeitos à acusação de que não passamos de outra ramificação das grandes organizações sindicais no esforço para controlar seus tesouros — disse Jack Haney, em tom objetivo. — E fará também uma diferença na maneira como Wall Street nos encara. Neste momento, eles não estão muito satisfeitos com o nosso plano.
— Eles que se danem — disse Daniel. — Quem se importa com o que eles possam pensar?
— Não deve falar assim — disse Jack. — Sem a ajuda deles, a coisa não será fácil. Eles têm de convidá-lo a entrar para o clube. Somente o dinheiro não será suficiente para comprar o ingresso.
— Precisamos dos recursos dos Teamsters e da U.T.M. ou não poderemos começar — falou Daniel, após um momento.
— Eles reconhecem isso. E não estão contra. Apenas acham que o fundo deve começar com uma base mais ampla. Ficariam satisfeitos se tivéssemos cinqüenta mil cotistas, com investimentos mínimos.
— Precisaríamos de tempo para recrutá-los — disse Daniel.
— Pelo menos de seis a dez meses iriam passar-se para que remetêssemos os prospectos pelo correio, recebêssemos as respostas e vendêssemos as ações. Não quero esperar tanto tempo.
— Não posso imaginar nenhum meio de acelerar o processo — comentou Jack.
Moses, que se mantivera calado até aquele momento, interveio na conversa:
— Sei como pode ser feito. — Virou-se para Jack. — Não estava conosco quando Big Dan percorreu o país no início da C.A.L.L., recrutando associados. Ele é o maior vendedor do mundo. E os homens o adoram. Big Dan é um deles.
— Tenho minhas dúvidas, Moses — falou Daniel, fitando seus assistente. — Isso é diferente.
— É a mesma coisa, Big Dan. Tem de partir para onde está a sua força. Deixe que os homens o vejam e pode estar certo de que eles o seguirão.
— Mesmo assim, vai demorar.
— Posso organizar tudo. Percorrerá o país em dois meses. Ainda temos muitos amigos em toda parte. E se adoçarmos a pílula, oferecendo uma comissão de dez por cento em cotas aos dirigentes sindicais, a coisa não poderá falhar.
— Quanto tempo levaria para poder deslanchar o plano? — indagou Daniel, após um momento.
— Poderemos começar já na próxima semana. E daqui a dois meses você estará de volta com todos os cotistas de que precisamos para deixar todo mundo feliz.
— Tenho que estar aqui em meados do próximo mês, o mais tardar — disse Daniel. — Margaret está esperando o bebê para essa ocasião.
— Podemos dar um jeito para isso.
— Temos alguma alternativa? — perguntou Daniel a Jack.
— Não vejo qualquer outra possibilidade — respondeu Jack, sacudindo a cabeça.
Daniel tornou a pensar por um momento e finalmente concordou .
— Está certo. Pode começar a preparar tudo, Moses. Mas não se esqueça de deixar em aberto os dias da semana da metade do mês que vem. — Olhou para o relógio. Passavam alguns minutos das sete horas. — É melhor eu ir para casa agora. Prometi a Margarei que não me atrasaria para o jantar.
Havia dois homens à sua espera quando ele chegou ao saguão do prédio. Daniel reconheceu um deles como capanga de Lanskv o louro alto que o recebera no Aeroporto de Miami.
— O chefe deseja vê-lo, Sr. Huggins — disse o louro, polidamente.
— Está certo. Peça-lhe que telefone para minha casa. Marcaremos um encontro.
— Ele quer vê-lo agora — insistiu o louro.
— Já estou atrasado para o jantar. Minha esposa está-me esperando.
— O chefe também está.
Daniel fitou o louro nos olhos.
— Ele vai ter de esperar.
— Não vai, não.
Daniel baixou os olhos e viu os contornos de uma arma no bolso do homem. Estava apontada para ele. Daniel soltou uma risada.
— Tem razão, ele não vai esperar.
— Nosso carro está estacionado lá fora.
O outro homem foi na frente, enquanto o louro ia ao lado de Daniel. Uma limusine preta achava-se parada diante do prédio, com um terceiro homem ao volante. O louro e seu companheiro sentaram-se no banco traseiro, flanqueando Daniel. O carro avançou pelo tráfego.
Daniel olhou pela janela traseira e avistou o Dodge azul partir atrás deles. Virou-se para o louro.
— O Sr. L. não vai ficar muito feliz. Está levando os agentes federais até a porta dele.
— De que está falando? — indagou o louro.
— Olhe para trás. O Dodge azul com placa do governo. FBI. Estão-me seguindo há semanas.
— Trate de despistá-los — falou o louro ao motorista.
— Eu não faria isso — disse Daniel. — Eles já anotaram a placa deste carro. No instante em que não o virem mais, vão irradiar um alerta geral. — O louro parecia preocupado. Daniel acrescentou: — Acho melhor telefonar para o Sr. Lansky e informá-lo do que está acontecendo.
— Tem razão — disse o louro, ordenando ao motorista: — Pare na drugstore da esquina. — Ele saltou assim que o carro parou, dizendo a seu companheiro: — Fique aqui com ele.
O louro entrou na drugstore. Saiu alguns minutos depois e voltou para o carro. Olhou meio embaraçado para Daniel.
— O Sr. Lansky mandou que o levássemos para sua casa.
— O que é uma decisão mais inteligente — comentou Daniel, enquanto o carro tornava a entrar no fluxo de tráfego.
— Ele mandou dizer que lhe telefonará ainda esta noite.
— Estarei em casa. Não vou sair esta noite.
O carro parou diante da casa de Daniel 15 minutos depois. Daniel saltou. Virou-se para o louro.
— Obrigado pela carona.
O louro franziu o cenho, sem dizer nada. Daniel sorriu. Não parecia ter-se mexido, mas subitamente o revólver estava em sua mão, apontado para o rosto do louro.
— Na próxima vez que for buscar-me, é melhor aparecer atirando — disse Daniel suavemente, ainda sorrindo. — Porque no instante em que avistar novamente a sua cara, vou estourar-lhe os miolos. Diga isso ao Sr. Lansky por mim.
O revólver desapareceu quando ele bateu a porta, virando as costas e encaminhando-se para a porta de sua casa. O carro já tinha sumido no momento em que ele entrou.
O telefone começou a tocar no instante em que se sentaram para jantar. Mamie atendeu e informou:
—- Tem um Sr. Miami no telefone lhe querendo falar, Mister Dan.
Daniel olhou para ela.
— Diga que estou jantando neste momento e que deve ligar-me dentro de uma hora.
— Quem é o Sr. Miami? — indagou Margaret, fitando o marido atentamente.
— Lansky — respondeu Daniel, cortando um pedaço de carne.
— Por que ele não usa o seu nome verdadeiro? — Daniel deu de ombros. — O que ele está querendo?
— A sua fatia do filé — respondeu Daniel.
— Não estou entendendo.
— A esta altura, Lansky provavelmente já sabe que estamos iniciando um fundo. E acha que tem direito a uma parte.
— E tem?
— Não.
— Então a coisa é simples. Basta dizer-lhe isso.
Daniel controlou o sorriso.
— Ele não é o homem mais fácil do mundo para se dizer um não.
— Está metido em alguma encrenca, Daniel? — indagou Margaret após um momento.
— Não.
— Já li a respeito do Sr. Lansky nos jornais. Ele é um gangster, não é mesmo?
— É o que dizem.
— Então por que tem negócios com ele?
— Meus negócios são legítimos. Tudo o mais que ele possa fazer, não é da minha conta.
— Se eu fosse você, não faria mais negócios com esse homem.
— Não pretendo — disse ele, sorrindo para a mulher. Terminou de comer o bife e afastou o prato. — Estava uma delícia.
— Vá para a sala de estar e se acomode — disse Margaret, levantando-se. Vou buscar o café.
Ela se inclinou para pegar o prato dele e Daniel afagou-lhe a barriga.
— Não deve demorar muito.
— O médico disse que deve nascer dentro de oito semanas.
— Está vigiando o peso?
— Não engordei um só grama desde o mês passado.
— Ótimo. — Daniel foi até o aparador, pegou uma garrafa de bourbon e um copo. — Traga também água gelada junto com o café. Dirigiu-se à sala de estar. Estava sentado numa poltrona, com o copo de uísque pela metade, quando Margaret pôs a bandeja com café na mesinha à sua frente. — Vou começar uma série de reuniões por todo o país na semana que vem, Margaret.
— Para quê? — indagou ela, surpresa.
— Preciso vender o fundo aos diferentes sindicatos e representações locais.
— Você precisa mesmo fazê-lo pessoalmente? Moses ou Jack não podem encarregar-se disso?
— Eu próprio é que tenho de fazê-lo. Sou o único que os homens aceitam.
— Quanto tempo vai demorar?
— Cerca de dois meses. Mas estou articulando tudo para poder estar aqui quando o bebê nascer.
Subitamente, Margaret ficou furiosa e disse em tom sarcástico:
— É muita gentileza sua.
— Por que está tão zangada? Já disse que estarei aqui quando o bebê nascer.
— E o que devo ficar fazendo enquanto você está viajando e tendo todas essas reuniões? Ficar sentada aqui, segurando a barriga com as mãos?
— Isso é problema seu — disse Daniel, asperamente. — E pare de se comportar como uma criança.
— Posso ter apenas dezessete anos, mas não me estou comportando como uma criança — retrucou Margaret, magoada. — Estou me comportando como uma mulher que vai ter um filho e quer que o marido fique a seu lado.
Daniel fitou-a em silêncio por um momento. Tinha quase esquecido. Dezessete anos. E ele estava com 56. Havia uma grande distância em anos entre os dois. E talvez não houvesse a menor possibilidade de construir uma ponte através do tempo. Pegou a mão dela e disse, lentamente:
— Desculpe Margaret. Eu não iria viajar neste momento, se qualquer outro pudesse fazê-lo em meu lugar. Mas é a minha obrigação.
O telefone começou a tocar. Margaret puxou a mão e disse, friamente:
— É o seu amigo, Sr. Miami Lansky Gangster, quem quer que ele seja. É melhor atender. Não há mais ninguém para falar com ele.
A voz de Lansky era cautelosa:
— Está lembrado do lugar em que nos encontramos na última vez?
— Estou.
— Acha que pode ir até lá sem ser seguido?
— Posso tentar. Se não conseguir despistar os agentes, não irei.
— Preciso falar-lhe.
— Por quanto tempo mais ficará aí?
— Duas horas.
— Está certo.
— Se não puder ir, ligue-me amanhã de manhã para a Flórida. Use um telefone público.
— Está bem. — Daniel desligou e voltou para a sala de estar. — Vou ter de sair.
— Estou com medo — falou Margaret, fitando-o.
— Não precisa ficar. Vou apenas tratar de negócios.
Daniel foi até a janela e deu uma olhada. Já estava escuro lá fora, mas o sedã azul ainda não fora embora. Estava parado debaixo de um lampião. Ele não podia compreender. Aparentemente, queriam que ele soubesse que estava sendo vigiado. Se não fosse assim, procurariam parar o carro num lugar em que ele não pudesse avistá-lo. Davam mais a impressão de que estavam tentando assustá-lo do que qualquer outra coisa. O telefone tornou a tocar. Era Hoffa, ligando de Detroit.
— Estava certo no aviso que me deu, Big Dan. Recebi hoje a primeira visita do Comitê McClellan.
— O que eles queriam?
— Vieram buscar meus arquivos. Mas tratei de expulsá-los. Não levaram nada.
— Quem veio?
— Um garoto chamado Bob Kennedy que diz ser o chefe da assessoria jurídica do comitê. Um verdadeiro palhaço. Estava acompanhado por dois lacaios. — Hoffa fez uma pausa, antes de perguntar: — Ainda estão atrás de você?
— O carro está parado diante da minha casa. E debaixo do lampião, onde posso vê-lo claramente.
— Que acha?
— Estão sondando. Não sabem ainda o que procurar. E esperam que façamos alguma coisa que possam usar.
— Segui o seu conselho e conversei com meu advogado. Ele disse para eu não entregar coisa nenhuma, a não ser que haja uma intimação judicial. E mesmo assim, temos meios de tornar as coisas difíceis para eles.
— Acho que a minha idéia de um fundo comum a todos é mais importante do que nunca agora — disse Daniel, após um momento. — Será uma operação limpa, contra a qual ninguém poderá dizer nada. Uma operação aberta, acima de qualquer suspeita.
— A notícia que vem da Flórida é de que não será tão limpa assim. Eles querem entrar e não vão gostar, se você não deixar.
— Darei um jeito de convencê-los a desistir.
— Eles jogam duro, Big Dan.
— E nós não jogamos? — disse Daniel, rindo.
— Se precisar de ajuda, pode gritar — falou Hoffa, rindo também.
— Se eu precisar de ajuda, só vou descobrir quando for tarde demais para gritar.
— Tome cuidado. E boa sorte.
— Obrigado.
Daniel desligou. Ficou imóvel por um momento, depois ligou para a casa de Moses.
— Pegue seu carro e pare na rua atrás da minha casa E me espere lá.
— Qual é o problema?
— Não há motivo para se preocupar. Tenho de sair de casa sem que os meus cães de guarda me sigam.
— Estarei aí dentro de quinze minutos.
Daniel voltou para a sala de estar. Margaret estava sentada no sofá.
— Moses virá buscar-me dentro de quinze minutos. Vou sair pela porta dos fundos, atravessar o quintal do vizinho e chegar à rua que passa por trás da casa.
— Por que não pode sair pela porta da frente?
— Porque lá fora estão alguns homens de um comitê do Senado. Estão-me seguindo há semanas e não quero que saibam para onde estou indo agora.
Margaret ficou calada, observando-o servir-se de um drinque. Esperou que ele bebesse, antes de perguntar:
— Por que não me falou antes a respeito desses homens?
— Não queria preocupá-la. Além do mais, não é importante.
— Não é importante? É isso o que está querendo que eu pense? Porque não é importante, você anda sempre armado. O que espera que eu pense? Vou acabar perdendo o juízo só de pensar que você está correndo algum perigo que ignoro inteiramente.
— Sempre andei armado.
— D.J. me disse a mesma coisa, mas achei que era apenas para eu me sentir melhor.
— Pois é verdade. é mais um hábito do que qualquer outra coisa. — Daniel tornou a encher o copo. — Há muitos e muitos anos, fui seqüestrado, espancado e mantido prisioneiro por três dias, sendo depois largado numa estrada deserta, durante uma tempestade terrível. Jurei que nunca mais deixaria que isso me acontecesse.
— Vai encontrar-se com Lansky?
Daniel assentiu.
— Será perigoso?
— Não. Temos de conversar sobre negócios.
— Quanto tempo vai demorar?
Daniel olhou para o relógio. Já eram quase oito horas.
— Não será muito tempo. Estarei de volta antes da meia-noite. Pode deixar que telefonarei, se por acaso tiver de passar além disso.
— Ficarei à sua espera.
Daniel sorriu e inclinou-se, beijando-a no rosto.
— Não se preocupe, Margaret. Estarei bem.
Moses parou o carro no estacionamento atrás do armazém.
— Quer que eu vá com você, Big Dan?
— Não. — Daniel sacudiu a cabeça. — Fique esperando-me aqui no carro.
Ele subiu a escada e bateu na porta de ferro. A porta se abriu e o mesmo homem que o recebera antes acenou com a cabeça. Daniel seguiu-o.
A situação era a mesma que na ocasião anterior. As mesas de contagem estavam em plena atividade e ninguém olhou quando eles passaram, a caminho do escritório. Como na ocasião anterior, Lansky achava-se sentado atrás da escrivaninha.
O capanga louro postou-se diante de Daniel, quando ele avançou pela sala. E perguntou, com voz fria:
— Está armado?
— Não. Não costumo levar armas, quando vou visitar um amigo.
O capanga olhou para Lansky, que disse suavemente:
— Se ele diz que não está armado, então não está armado.
O capanga assentiu. Depois, virando-se rapidamente, desferiu um violento soco com a direita na barriga de Daniel. Dobrando-se quase ao meio, Daniel fez um tremendo esforço para conter a dor e a náusea. Ficou dobrado, forçando-se a respirar lentamente, até que a náusea se desvaneceu. Só então se empertigou. Havia um esboço de sorriso no rosto de Lansky.
— Meu garoto não gosta que os outros fiquem brandindo armas diante de sua cara.
— Não posso culpá-lo por isso — retrucou Daniel.
Fez menção de que ia contornar o louro e se aproximar da mesa. O capanga virou-se para observar e nem viu o punho de Daniel alçando-se quase do chão. Daniel sentiu o choque subir-lhe pelo braço quando o antiquado uppercut acertou no queixo do louro, quase levantando-o no ar, fazendo-o esbarrar na quina da mesa, cambaleando para trás até parar de encontro à parece e escorregar para o chão. O queixo do homem estava entortado, dentes quebrados achavam-se cravados no lábio inferior, o sangue escorria pelo nariz e boca, os olhos estavam vidrados.
Daniel contemplou-o por um momento, depois virou-se novamente para Lansky. E falou como se não tivesse havido qualquer interrupção:
— Também não gosto que me apontem armas.
Lansky fitou-o atentamente, depois olhou para o capanga caído no chão. Gesticulou para os outros dois homens que estavam na sala.
— Tirem-no daqui e limpem-no.
— No seu lugar, eu o mandaria a um médico — disse Daniel. — Seu garoto tem queixo de vidro. Senti quando quebrou, pelo menos em três lugares diferentes. — Aproximou-se da cadeira. — Importa-se que eu me sente?
Lansky tomou a gesticular, sem dizer nada. Permaneceram calados até ficarem a sós na sala, com a porta fechada.
— Por que tudo isso? — indagou Daniel.
— Sinto muito. Mas sabe como são as coisas. Tinha que deixar o garoto provar do que é capaz.
— E o que ele provou? — falou Daniel, sacudindo a cabeça. — Nada.
— Ele provou que não está à altura do emprego que tinha. Não preciso de capangas de queixo de vidro.
Daniel soltou uma risada. E no instante seguinte, assumiu uma expressão séria.
— Chega de diversão. Queria falar-me?
Lansky foi direto ao assunto:
— Sobre o seu fundo. Estou-me sentindo magoado. Não me convidou a participar.
— Isso mesmo.
— Quero entrar.
— Não faz parte do nosso trato.
— Não falei que fazia. Disse apenas que queria entrar.
— Pois então permita que eu seja bem claro e objetivo, Sr. Lansky. Não foi convidado porque não quero que entre. É uma operação que quero manter limpa.
— Está sendo ingênuo. E procurando encrenca. Podemos destruí-lo assim. — E Lansky estalou os dedos.
— Neste caso, não terão nada. — Daniel sorriu. — Nem o fundo mútuo nem os negócios que já estamos operando.
— Tem uma esposa grávida e um filho na escola.
— E o que tem, Sr. Lansky? — disse Daniel, suavemente. — Uma vida que leva sempre nas sombras, cercado por capangas de queixo de vidro para evitar que o destruam? Já parou para pensar que cada vez que o açougueiro ou o merceeiro chega em sua casa, cada eletricista ou homem da Telefônica, todos usam um distintivo sindical? Há vinte milhões de homens assim. E se eu mandar, não há qualquer possibilidade de escapar a todos eles, a não ser que morra antes de causas naturais.
Lansky ficou olhando para ele por um longo tempo, sem dizer nada. Daniel levantou-se e Lansky finalmente falou:
— Não estou sozinho nisso. Terei de explicar a meus associados.
— Fala iídiche, não é mesmo? - indagou Daniel, olhando-o.
Lansky acenou com a cabeça, assentindo.
— Quando eu cursava a escola sindical em Nova York, há muitos anos, aprendi algumas frases que expressam tudo. Pois aqui vai uma delas. Diga a seus associados que sou o shabbes goy. Aquele que faz os trabalhos proibidos aos judeus no Sabá. Sou o homem que pode ajudar a manter o movimento sindical respeitável e legítimo aos olhos do público. E eles não deve acabar com isso. Se o fizerem, podem muito bem estar matando a galinha dos ovos de ouro.
— Não sei se eles vão aceitar isso.
— Se não aceitarem, ambos iremos lamentar.
Lansky ficou pensativo por um instante, depois um sorriso estampou-se em seu rosto.
— Tem certeza de que não é Daniel Webster?
Daniel olhou para os relatórios empilhados sobre a mesa, à sua frente. Folheou-os rapidamente, dominado por um sentimento crescente de desespero. Finalmente , largou-o e bateu com a mão na mesa, com toda força.
— Não está dando certo!
Moses e Jack ficaram olhando para ele, sem dizer nada. D.J. estava encostado na parede, também olhando para o pai. Era o final de junho e não teria aulas até o outono.
— Viajei seis mil quilômetros nos últimos dez dias, falei em quinze sindicatos locais diferentes, representando pelo menos oito ou nove mil trabalhadores. E não conseguimos mais de quinhentos e setenta subscrições. Como posso fazer os idiotas compreenderem que isso é a melhor coisa que já lhes aconteceu? Que é a primeira vez em suas vidas que têm uma chance de fazerem um negócio honesto?
Moses procurou consolá-lo:
— É aquele velho ditado de que santo de casa não faz milagre.
— Isso não ajuda — disse Daniel. — Precisamos de pelo menos oitenta a cem mil subscrições.
— Deve ser mais persuasivo com os homens — comentou Jack. — Eles estão querendo que lhes fale num céu azul e num pote de ouro ao final do arco-íris.
— Esse não é o meu estilo. Não sou um vigarista. — Daniel mordeu a ponta de outro charuto. — Para onde vou em seguida?
— Detroit — respondeu Jack. — Esperamos quinze mil homens desta vez. Além dos Teamsters, Reuther prometeu-nos um apoio amplo da U.T.I.A. Vai ser tão grande que estamos até esperando uma cobertura da televisão e do rádio.
Daniel mastigou a ponta do charuto por um momento.
— Talvez seja melhor cancelar. Não tenho a menor vontade que o país inteiro me veja caindo de quatro.
D.J. aproximou-se da mesa.
— Tenho uma idéia, Pai. Mas não sei se vai dar certo.
— Pois diga o que é — falou Daniel, olhando para ele. — Neste momento, estou disposto a ouvir qualquer coisa.
— Pode não ter uma aplicação prática neste caso. Mas um dos cursos que acabei de fazer era sobre vendas a crédito. Automóveis, aparelhos eletrodomésticos, móveis, coisas assim.
Daniel ficou subitamente interessado.
— Continue.
— O comprador paga uma determinada quantia de entrada e depois prestações semanais ou mensais, até liquidar o débito. No momento em que o contrato é assinado, o vendedor desconta as promissórias num banco e recebe o dinheiro imediatamente. E o comprador tem a mercadoria.
— Não é a mesma coisa — disse Daniel.
— É possível. No nosso caso, uma cota no fundo mútuo é a nossa mercadoria. E sabe tão bem quanto eu que o homem comum vai pensar duas vezes antes de se desfazer de cem dólares de uma só vez, mas não se importa muito de gastar dois dólares por semana em alguma coisa.
Jack apressou-se em comentar:
— A idéia de D.J. está-me parecendo promissora.
— Não estamos preparados para um negócio desse tipo — objetou Daniel.
— Podemos dar um jeito — assegurou Moses. — Os homens podem efetuar o pagamento diretamente ao sindicato, que nos encaminharia o dinheiro todos os meses.
— Isso mesmo — disse Jack. — E se elaborarmos o contrato de venda certo, podemos arrumar um banco para descontá-lo.
Daniel finalmente acendeu o charuto. Estava assentindo para si mesmo. Podia dar certo.
— Tenho o banco. A U.T.M. é a maior acionista do National Bank, de Washington. Tenho certeza de que John L. vai mandar Barney Cohon, que está dirigindo o banco, nos dar o dinheiro.
Ele olhou para D.J.
— Teve uma idéia muito boa, filho.
— Ainda não sabemos, Pai — falou D. J., corando. — Pode não dar certo.
— Temos que fazer com que dê certo. — Daniel virou-se para Jack. — Por que o pessoal do rádio e da televisão decidiu cobrir a reunião?
— Eles acham que é uma história interessante. É a primeira vez que trabalhadores sindicalizados iniciam um fundo mútuo para investir seu dinheiro no capitalismo.
Daniel ficou em silêncio por algum tempo. Sorriu de repente e sua voz transbordava de confiança quando disse:
— Vai dar certo. Tudo está-se encaixando no seu lugar. Eles ainda não sabem, mas vão-nos dar uma oportunidade de sindicalizar o país inteiro.
— Está nervoso — disse Margaret, observando Daniel arrumar a pequena valise que levaria para Detroit.
Ele respirou fundo.
— Se isso não der certo, teremos de desistir de tudo e voltar ao ponto de onde começamos.
— E isso é tão ruim assim? Afinal, estamos indo bem.
— Você não compreende. A partir do momento em que se começa a ficar parado no movimento sindical, o melhor é desistir. Tudo o que se pode fazer é regredir.
— Não há dinheiro suficiente vindo dos associados normais? Podemos viver tranqüilamente com isso.
— Agora há. Mas quanto tempo acha que essa situação poderá durar? Mais cedo ou mais tarde, vamos ficar sem os trabalhos que realizamos para os sindicatos que nos contrataram. E se não tivermos outros para substituí-los, teremos de fechar as portas. É um círculo vicioso. O sucesso gera o sucesso. No momento em que nossos clientes perceberem que não estamos atraindo novos clientes, vão começar a se perguntar por que precisam de nós. E quando começarem a pensar assim, estaremos liquidados.
Margaret ficou calada, enquanto ele fechava a valise.
— É muito importante para você, Daniel?
— É, sim. Durante toda a minha vida, sonhei em fazer alguma coisa importante no movimento sindical. E cada vez que tentei, acabei perdendo. O que atrapalhava era a política. Eu precisava de algum sindicato local como base, mas não me deixavam tê-lo, porque sempre tive idéias próprias e receavam que eu não fosse concordar com tudo o que fizessem. Esta é a chance de passar por cima de todos eles e forçá-los a me escutarem. Na única linguagem que eles entendem. Dinheiro e poder.
Daniel pegou a valise, e Margaret seguiu-o pela escada abaixo. Ele deixou a valise no vestíbulo e foi para a sala de estar. Pegou a garrafa de uísque no aparador e serviu-se de uma dose.
— Já terminou o seu discurso, Daniel?
— Ainda não. Vou trabalhar mais um pouco nele. Mas estará pronto quando eu tiver de pronunciá-lo, amanhã à tarde.
— Eu gostaria de ir com você.
— Eu também gostaria. — Daniel tomou um gole de uísque.
— Mas não vamos ter de esperar muito tempo agora. Só duas semanas.
— Parece uma eternidade.
— O tempo vai passar mais depressa do que imagina — disse Daniel, sorrindo. Largou o copo. — Sabe onde me encontrar se precisar?
— O número do hotel está escrito ao lado do telefone — falou Margaret.
— Eu lhe telefonarei para contar como estamos indo.
— Vou assistir pela televisão. Jack me disse que seu discurso será transmitido.
— Espero aparecer direito. A TV faz coisas esquisitas com as pessoas.
— Vai ficar ótimo.
— Você é suspeita para falar — comentou Daniel, sorrindo.
— É possível. Mas mesmo assim vai aparecer muito bem. Já me preocupo demais com a maneira pela qual as mulheres dão em cima de você. Depois disso, terei de me preocupar em dobro.
— Ao invés de dobrar a sua preocupação, dobre o seu prazer — falou Daniel, rindo. Margaret riu também.
— Mal consigo esperar. Sinto-me como se fosse novamente uma virgem. Acho que a primeira vez que fizermos amor, depois que o bebê nascer, não vou parar de gozar.
— Promessas, promessas. Não me esquecerei.
— Daniel... — Ele fitou-a. E a voz de Margaret tornou-se subitamente séria: — Mesmo que não dê certo, não é importante. Ainda teremos um ao outro. E não preciso de muita coisa
Daniel beijou-a no rosto.
— Sei disso, meu bem. É uma das razões pelas quais a amo.
— Fico contente por saber disso — disse Margaret, sorrindo. — Até um momento atrás, pensava que só se importava com o meu corpo deslumbrante.
— Isso também. — Daniel soltou uma risada. Uma buzina de carro soou lá fora. — O carro chegou. Tenho de ir.
Margaret acompanhou-o até a porta, onde ele pegou a valise.
— Dê lembranças minhas a D.J. e aos outros.
— Está certo. — Daniel fitou-a. — Esqueci de dizer uma coisa. Se precisar de algo, Jack Haney estará na cidade. Não hesite em telefonar para ele. Poderá encontrá-lo em casa ou no escritório.
— Pensei que ele também iria com você.
— Tivemos de alterar nossos planos no último momento. Jack ficará esperando que os novos contratos de compra e venda cheguem da gráfica, a fim de poder verificá-los e despachar para Detroit antes da reunião.
— Quer dizer que somente D.J. e Moses irão com você?
— Não preciso de mais ninguém daqui. Hoffa colocou alguns homens de sua equipe à minha disposição. — Daniel inclinou-se e beijou-a no rosto. — Cuide-se, Margaret. Voltarei depois de amanhã.
— Boa sorte. — Beijou-o. — E fique longe daquelas mulheres horríveis. Eu o amo.
— Também a amo — disse Daniel, rindo.
Margaret ficou parada na porta, observando-o entrar no carro. Daniel inclinou-se pela janela e acenou. Ela acenou em resposta. O carro começou a se afastar. Margaret continuou olhando até que o automóvel virou a esquina e desapareceu. O telefone começou a tocar. Ela fechou a porta e foi atender. Era Jack Haney.
— Big Dan já foi?
— Acabou de sair.
— Está certo. Ligarei para ele em Detroit.
— Algum problema?
— Não. Queria apenas conferir alguns termos do acordo com ele. — Hesitou por um momento. — Estará em casa amanhã?
— Estarei, sim.
— Vou telefonar para saber como você está. Big Dan pediu-me que verificasse.
— Ele me falou. — Foi a vez de Margaret hesitar. — Se não vai fazer nada de especial amanhã, Jack, por que não vem jantar aqui? Poderemos depois ver Daniel na televisão.
— Não quero causar-lhe nenhum transtorno.
— Não vai causar. Mamie cuida de tudo. E não me sentirei tão sozinha como geralmente acontece quando Daniel está viajando.
— Está certo. Mas telefonarei amanhã, para conferir se não mudou de idéia.
— Não vou mudar de idéia.
Jack hesitou novamente.
— Está bem. A que horas devo aparecer?
— Sete horas está bom?
— Estarei aí. Obrigado.
Margaret desligou e subiu para o quarto. Lentamente, tirou o vestido e pegou o robe. Vislumbrou-se no espelho. A barriga parecia imensa. Não podia ter certeza, mas estava com a impressão de que a barriga começava a descair ligeiramente. Ela vestiu o robe e foi para a cama.
Recostou-se nos travesseiros. Estava contente por ter convidado Jack para jantar. Era a primeira vez que falara com ele sem que houvesse muitas pessoas ao redor. Jack parecia um rapaz extremamente simpático. Talvez fosse um pouco tímido, mas era possível que tal atitude se devesse ao fato de ela ser a esposa do patrão. Mas Jack sempre se mostrara simpático e delicado. Não era como muitos outros cujas atitudes faziam-na sentir que achavam que ela não passava de uma garota esperta, que usara sua juventude e o sexo a fim de preparar uma armadilha para levar Daniel ao casamento.
Margaret deixou escapar um suspiro profundo. Ao inferno com todos eles. Depois que o bebê nascesse, ela lhes mostraria como estavam enganados.
Daniel estava parado à beira do palco, na extremidade da sala de convenções. A pressão da massa que enchia a sala criava um clima de tensão. A U.T.I.A. e os Teamsters tinham trabalhado bem. Haviam-lhe encaminhado seus associados. Agora, tudo lhe competia. Se não conseguisse vender o novo conceito de compra, o fracasso seria dele.
Olhou para as anotações que tinha na mão. Estavam datilografadas em letras maiúsculas, em cartões. Cada cartão era um item. Segurança. Poupança para a aposentadoria. Acréscimo do capital. Rendimento adicional. Além de um plano de pagamento facilitado. Dois dólares por semana para cada cota.
Estava tudo ali. Se falhasse, não poderia culpar a ninguém. O fracasso seria dele e de nenhum outro. Ele respirou fundo.
Há meia hora que diversos oradores vinham falando, explicando o fundo mútuo à assistência. O último orador era o dirigente da seção local da U.T.I.A. A voz dele, transmitida pelos alto-falantes, chegou aos ouvidos de Daniel:
“E agora, para falar mais a respeito dessa grande oportunidade para todos nós, de participarmos do desenvolvimento e da riqueza crescente de nosso país, aqui está o homem cujo gênio criou o plano, um homem cuja dedicação por toda a vida ao movimento trabalhista é conhecida por todos, um homem que tenho orgulho de chamar de amigo: o Presidente da C.A.L.L., Big Dan Huggins!”
Daniel entrou no palco. O orador aproximou-se dele, com um sorriso. Apertaram-se as mãos, enquanto o orador murmurava.
— Pode pegá-los, Big Dan. Já os amolecemos para você.
Daniel sorriu e foi para o meio do palco. Colocou os cartões com as anotações na pequena estante à sua frente. Levantou a mão, acenando e sorrindo, em resposta aos aplausos. Depois, virou a palma para a frente. Lentamente, os aplausos foram morrendo até que o salão ficou em silêncio.
Daniel permaneceu calado por um momento, contemplando a audiência. Cerca de 50% dos homens ainda estavam com as roupas de trabalho. Provavelmente tinham vindo diretamente de seus turnos. Os outros se achavam em mangas de camisa. O calor lá fora chegava a 27°C e havia poucos paletós à vista. Entre as primeiras filas de cadeiras e o palco, as câmaras de televisão começaram a tomar posição diante dele.
Ali estavam os trabalhadores, pensou Daniel. Quase que podia sentir e tocar cada um. Crescera com aqueles homens, comera, bebera e dormira no meio deles. Sentia que era todos e cada um deles Olhou novamente para os cartões. Alguma coisa estava errada. Era o mesmo homem que estava sentado lá na audiência, não um vendedor de títulos. Não importava quão válida fosse a idéia, aqueles homens não tinham ido até ali para escutar um discurso de vendas. Estavam ali para vê-lo. Estavam ali para ouvi-lo e renovarem sua fé no movimento trabalhista e nos sindicatos. Estavam ali para ouvi-lo dizer uma única coisa. Que ainda se importava, que ainda acreditava.
Lentamente, Daniel pegou os cartões e levantou-os, a fim de que audiência pudesse vê-los.
“Meus irmãos, meus amigos. Estes cartões que tenho na mão representam o discurso que eu deveria fazer. Deveria dizer-lhes como é importante que cada um e todos se juntem a nós. Deveria dizer-lhes quanto dinheiro ganhariam com isso e falar sobre os confortos que o dinheiro lhes poderia proporcionar.”
Fez uma breve pausa.
“Mas mudei de idéia. Não vou fazer esse discurso. Outros podem fazê-lo melhor do que eu. Além do mais, cada um de vocês recebeu um papel, ao entrar aqui, no qual está dito tudo o que precisam saber a respeito. Assim, não vou de jeito nenhum fazer esse discurso.”
Daniel abriu a mão e deixou que os cartões caíssem no chão
Olhou-os por um momento, depois voltou a se fixar na audiência!
“O pouco tempo de que dispomos juntos é importante demais para desperdiçá-lo com isso. Quero falar a respeito de algo que sinto ser muito mais importante, algo tão importante que afeta as vidas de todos nós e cada dia de nossa existência. Quero falar-lhes a respeito da maneira como vivemos... algo a que chamo de O Desafio à Democracia.”
Fez outra pausa, esquadrinhando os rostos da audiência. Aqueles homens eram a sua gente. Pôs-se a falar devagar, incisivamente: “Um homem nasce, trabalha, morre. E depois não há nada. Assim tem sido a vida de todos nós, que nascemos na sociedade dos que são trabalhadores. E temos aceitado isso. Porque, tradicionalmente, assim é que tem sido sempre.
“Mas um dia, há algum tempo, um grupo de homens se reuniu para fixar os princípios de algo a que se deu o nome de democracia, segundo a qual todos os homens seriam criados iguais. Na raça, nas oportunidades. E esses objetivos tornaram-se o desafio da democracia. Porque é sempre mais fácil enunciar o ideal do que alcançá-lo.
“A realização se transforma na luta e a luta é nossa. Porque somos as pessoas que trabalham e somos as pessoas que devem aceitar o desafio da democracia, fazendo-a funcionar.
Daniel fez outra pausa, tornando a correr lentamente os olhos pela audiência.
“Meus irmãos, aceitamos esse desafio. Criamos sindicatos para ajudar a melhorar nossas condições de vida. E devemos continuar a melhorar nossos sindicatos e criar outros, para ajudar os que precisam deles. Mas há mais no desafio do que apenas o sindicalismo. O verdadeiro desafio é a vida. Merecemos mais do que apenas nascimento, trabalho e morte. Porque o mundo em que vivemos é também o nosso mundo. E cada um e todos nós devemos deixar nossas marcas neste mundo, por nossas ações. A fim de que cada homem seja lembrado para sempre. Jamais esquecido.
Daniel pegou o copo com água. Por um momento, o silêncio no salão fê-lo sentir como se os homens não entendessem o que estava tentando dizer-lhes. Depois, os aplausos começaram a soar e ele compreendeu que havia atingido os homens. Levantou a mão e os aplausos cessaram.
“Somos guerreiros na batalha. Devemos criar e também enfrentar o desafio à democracia. Porque somente procurando em nós próprios os nossos objetivos é que poderemos ajudar os outros a realizarem os objetivos deles.”
Os aplausos soaram novamente. E outra vez Daniel levantou a mão.
“E é exatamente isso o que devemos fazer. Preocuparmo-nos com os outros, assim como nos preocupamos com nós mesmos...”
Daniel ficou na plataforma por mais de uma hora. Falou da juventude passada e dos sonhos perdidos, as fés desaparecidas. Depois, partilhou com os homens o seu sonho do futuro. O seu sonho do mundo, que eles e somente eles poderiam converter em realidade, porque era também o sonho deles. E disse que a única maneira pela qual poderiam fazer com que isso acontecesse era aceitarem o desafio. Se não aceitassem, estariam colocando em outras mãos a responsabilidade por suas próprias vidas. Com o tempo, acabariam regredindo e todas as conquistas recentes estariam irremediavelmente perdidas.
Quando ele acabou, a audiência estava em silêncio. Daniel virou-se e começou a deixar o palco. E foi então que a audiência explodiu. Os aplausos eram ensurdecedores. A multidão pôs-se a entoar:
“Big Dan! Big Dan! Big Dan!”
Ele virou-se novamente. Todos puderam ver as lágrimas escorrendo por suas faces. Mal conseguiu balbuciar: — Obrigado.
Havia um estranho silêncio nos bastidores quando ele deixou o palco. Não houve os apertos de mão habituais, os tapinhas nas costas entusiasmados. Em vez disso, havia um clima de estranheza, de alerta, entre os homens que pouco antes de seu discurso haviam previsto, exuberantemente, que ele iria obter pelo menos meio milhão de dólares em subscrições somente daquela reunião.
Até mesmo Moses e D.J. mantiveram-se estranhamente em silêncio no carro, ao seguirem para a suíte de hotel que haviam reservado para receber os dirigentes sindicais locais que tinham ajudado no planejamento da reunião. Subiram em silêncio no elevador. Abriram a porta da suíte vazia.
Daniel parou no meio da grande sala, olhando os preparativos que tinham sido feitos. Um bar grande estava armado, as mesas abastecidas com sanduíches para os homens que sentissem fome. Virou-se para Moses.
— Acho melhor providenciar para que o hotel receba tudo isso de volta. Vou arrumar a mala. Não há sentido em permanecer por aqui. Talvez eu consiga um avião para voltar para casa ainda esta noite. — Moses assentiu, em silêncio. — D.J., é melhor começar a reunir os papéis. Não se dê ao trabalho de arrumá-los. Basta jogar dentro de uma caixa e deixar aqui mesmo. Parece que não vamos mais precisar deles.
— Está certo, Pai.
O telefone começou a tocar no momento em que Daniel entrou no quarto. Ele fechou a porta, isolando o barulho. Foi até a cama e sentou. Por que diabo fizera aquilo? Tinha tudo nas mãos e desperdiçara a oportunidade. E por nada. Simplesmente para dizer aos homens como realmente se sentia, algo que já teriam esquecido, quando sentassem à mesa para jantar naquela mesma noite. Como diabo pudera ficar tão ofuscado pela própria visão para acreditar que era algo realmente importante? Os ideais não passavam de palavras bonitas. Não mais afetavam as pessoas. Estas também não acreditavam nos ideais. Poder e dinheiro, essa a única fé que impressionava os homens.
A porta se abriu e Moses meteu a cabeça para dentro do quarto, dizendo, em voz abafada:
— O Presidente quer falar com você.
— O Presidente? — repetiu Daniel, aturdido.
— Isso mesmo. O Presidente dos Estados Unidos.
Daniel fitou-o por um instante, depois virou-se e pegou o telefone na mesinha-de-cabeceira.
— Alô?
Uma voz de mulher entrou na linha:
— Sr. Huggins?
— Sou eu mesmo.
— Um momento, por favor. O Presidente dos Estados Unidos vai falar.
Houve um estalido na linha e depois a voz familiar de Eisenhower disse:
— Sr. Huggins, estou telefonando para dar-lhe os parabéns por seu magnífico discurso. Assisti pela televisão.
— Obrigado, Sr. Presidente.
— Foi uma reafirmação magnífica de todas as verdades básicas que fizeram a grandeza da América. Uma declaração dos ideais com que todos crescemos, ideais que ultrapassam os limites do movimento trabalhista e tocam o próprio coração de todos os americanos que amam o seu país e seus semelhantes. Quero que saiba que nesse discurso falou não apenas por todos os americanos, como também falou por mim. É um discurso que eu ficaria orgulhoso de ter feito.
— Obrigado, Sr. Presidente.
— Mais uma vez, Sr. Huggins, meus parabéns. Até a próxima.
O telefone foi desligado. Daniel levantou a cabeça e deparou com Moses e D.J. na porta. E ele murmurou, com uma voz espantada:
— O Presidente dos Estados Unidos...
Depois, subitamente, parecia que todos os telefones da suíte estavam tocando ao mesmo tempo, enquanto as pessoas começavam a entrar na sala.
As contrações começaram no meio do discurso. Os dois estavam sentados na sala, assistindo a Daniel pela televisão. Um momento depois de ele começar a falar, Jack olhara para Margaret com uma expressão de surpresa.
— Esse não é o discurso que havíamos preparado. Ele lhe disse que pretendia mudá-lo?
— Ele não me falou nada — respondera Margaret, sacudindo a cabeça. — Não posso dizer se é a mesma coisa ou não.
A primeira contração surgiu alguns minutos depois. Margaret teve a sensação de que uma faca a estava cortando. Tentou controlá-la. Sentia-se estranhamente constrangida em deixar que Jack percebesse. Respirou fundo e a dor desapareceu.
Dois minutos depois, houve uma nova contração. Mais forte. Involuntariamente, Margaret deixou escapar um ofego, inclinando-se para frente na cadeira. Jack virou-se para ela.
— Está-se sentindo bem?
Margaret podia sentir o suor no rosto.
— O bebê. Acho que está nascendo. Ligue para o médico. O número está ao lado do telefone.
Jack levantou-se, gritando:
— Mamie!
A preta apareceu na porta.
— Acho que o bebê da Sra. Huggins está nascendo. Fique com ela enquanto ligo para o médico e descubro o que ele quer que façamos.
A suíte do hotel estava uma verdadeira loucura. Daniel não podia imaginar de onde tinham vindo todos aqueles homens. Mas achavam-se ali e estavam exuberantes. Pelo último cálculo, já havia mais de um milhão de dólares em contratos assinados... e mais contratos continuavam a chegar.
— Seu filho da mãe astuto! — disse o orador que apresentara Daniel à audiência. — Deixou-nos pensando que estava louco mas sabia o tempo todo o que estava fazendo.
Moses aproximou-se com um punhado de telegramas.
— Os telefonemas e telegramas não param. Do país inteiro. Todo mundo está querendo você. De Dave Dubinsky, de Nova York, que quer alugar o Madison Square Garden para você falar ao pessoal do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria de Vestuário Feminino e põe à sua disposição o banco deles, o Amalgamated, a Harry Bridges, que está querendo que você fale aos estivadores em São Francisco. Até mesmo George Meany mandou um telegrama de parabéns e reafirmando o seu apoio na conquista de todos os nossos objetivos e ideais comuns.
Daniel sentiu-se subitamente cansado. Começou a abrir caminho pela sala apinhada, na direção do quarto. Precisava de alguns minutos de descanso. Aconteceram coisas demais. Os altos e baixos o haviam esgotado. Passou por um homem que já estava embriagado e transbordava de entusiasmo.
— Big Dan! — gritou o homem, batendo-lhe no ombro. — Se quiser, pode ser o próximo Presidente dos Estados Unidos!
Daniel entrou no quarto. Fechou a porta, foi até a cama e se sentou. A porta se abriu pouco depois e D. J. entrou.
— Está-se sentindo bem, Pai?
— Estou apenas cansado.
— Foi uma idéia brilhante, Pai. Sabia instintivamente como vender-lhes a idéia. Creio que nenhum de nós pôde compreender no momento o que estava fazendo.
Daniel olhou para o filho. Eles continuavam a não entender. Até mesmo D.J. pensava que fora apenas um plano esperto para conseguir subscrições. Daniel não disse nada. O telefone na mesinha-de-cabeceira começou a tocar. Ele gesticulou para que D.J. atendesse .
— É para você, Pai. Jack Haney.
Daniel pegou o telefone.
— O que é, Jack?
— Margaret está tendo o bebê. Acabei de levá-la para o hospital. Ela está na sala de parto neste momento.
— E ela está bem?
— O médico disse que sim. Afirmou que está tudo normal. O bebê deverá nascer a qualquer momento. — Houve um ruído qualquer perto de Jack. — Espere um instante — falou. Daniel ouviu vozes e logo depois Jack disse, muito excitado:
— É um menino, Daniel. Com mais de três quilos. Parabéns.
Daniel respirou fundo.
— Vou partir imediatamente. Diga a Margaret que a verei ainda esta noite. — Desligou e virou-se para D.J. — Você acaba de ganhar um irmão.
O rosto de D.J. iluminou-se num sorriso.
— Meus parabéns! — Pegou a mão do pai, apertando-a efusivamente. — Sinto-me imensamente feliz por você, Pai.
— Chame Moses. Quero dizer a ele. Vou partir imediatamente. Fiquem vocês dois aqui, providenciando tudo.
Moses e D. J. entraram no quarto no momento em que Daniel fechava a valise.
— Vou sair pela porta do quarto — disse Daniel. — Ninguém vai perceber minha ausência.
— Meus parabéns, Daniel — disse Moses, sorrindo. Em seguida, gesticulou para a valise. — Nem precisa preocupar-se com isso. Poderemos levá-la quando voltarmos amanhã.
— Boa idéia. — Daniel foi até a porta que dava para o corredor. — Vou pegar um táxi para ir ao aeroporto.
Saiu para o corredor, seguido por Moses e D.J. Havia uns 10 ou 12 homens no lado de fora da entrada principal da suíte.
— Eles continuam a chegar — comentou Moses. — É melhor pegar um dos elevadores do outro lado.
Daniel olhou para os homens e acenou com a cabeça, começando a virar-se. Uma imagem sobressaiu em sua mente. Virou-se bruscamente, levando uma das mãos para dentro do paletó, à procura da arma, enquanto a outra empurrava Moses de volta pela porta aberta do quarto. Moses esbarrou em D.J. e os dois cambalearam de volta ao quarto, no instante em que soou o primeiro tiro.
Daniel sentiu o impacto no plexo solar, a imagem do louro ainda nítida em sua mente. Fez um esforço para levantar a arma. O segundo tiro fê-lo cair de joelhos. Estava agora com a arma levantada, segurando-a com as duas mãos. Teve de recorrer a toda sua força para puxar o gatilho. E no instante seguinte a imagem do rosto do louro explodiu numa massa de sangue e ossos espatifados, desaparecendo, enquanto outro tiro atingia-o, fazendo-o cair para trás, sem sentidos.
— Estou morrendo, meu filho. E você está nascendo. Nunca o verei. Nunca nos iremos conhecer.
— Não vai morrer desta vez, Pai. Acabei de chegar para o futuro e você ainda está lá.
— Eu lhe deixarei meus sonhos, filho.
— Esperarei por eles, Pai. Mas terá de me mostrar o caminho.
Daniel fez um esforço para emergir do labirinto de dor. Podia sentir mãos colocando-o em uma maca. Abriu os olhos no momento em que erguiam a maca e avistou D.J. e Moses inclinados ansiosamente sobre ele. Conseguiu exibir um débil sorriso.
— Sinto-me um estúpido. Deveria ter esperado algo assim.
— Fique calmo, Pai — murmurou D.J. — Vai ficar bom. O médico disse que nenhum dos ferimentos é grave.
— Sei disso. — assentiu Daniel, fracamente. — Seu irmão já me falou.
Agora
O ar frio de outubro era agradável ao penetrar em meus pulmões. Ao nosso redor, as colinas da Virgínia Ocidental estavam cobertas pelas primeiras folhas que caíam, vermelhas, douradas, alaranjadas. E as folhas que ainda restavam dançavam nervosamente nos galhos das árvores. Chegamos ao alto da colina e falei:
— É aqui.
Christina saiu com o Rolls branco para o acostamento. Parou o carro e fitou-me.
— Tem certeza de que é isso mesmo o que está querendo?
— Tenho, sim. Prometi a mim mesmo que passaria por aqui ao voltar para casa. — Estendi a mão para o banco de trás e peguei a mochila, acrescentando, enquanto saltava do carro: — Plantei algumas flores.
— Estarei aqui para pegá-lo às oito horas da manhã de manhã. Não se atrase. Prometeu à sua mãe que estaria em casa a tempo para o casamento.
Mamãe e Jack iriam casar-se em nossa casa, ao final da tarde seguinte. O Juiz Paul Gitlin, para quem Jack outrora trabalhara, iria presidir a cerimônia.
— Não me atrasarei — respondi, ajeitando a mochila nos ombros.
— Tem tudo o que precisa, Jonathan?
Não pude deixar de sorrir.
— Estou com a escova de dentes, só vou passar a noite aqui, Christina.
Esperei até que o Rolls branco desaparecesse no outro lado da colina, depois atravessei a estrada, passei por cima da cerca e desci a encosta no outro lado. Christina tinha uma reserva num motel no outro lado de Fitchville. Não precisei procurar o caminho desta vez. Já o conhecia.
Levei menos de uma hora para chegar ao pequeno cemitério. Betty May cumprira sua palavra. As flores estavam cuidadosamente plantadas ao redor e entre as sepulturas, os vermelhos fortes, amarelos, azuis e roxos olhando para o céu. Fiquei ali por um longo tempo. De alguma forma, não parecia mais tão solitário e esquecido.
Olhei para baixo da colina. Os talos vazios do milharal dançavam à brisa da tarde. A fumaça saía da pequena chaminé da casa e a pickup empoeirada estava parada diante da porta.
Enquanto eu observava, Jeb Stuart saiu da casa e parou no alto dos degraus da varanda, olhando ao redor. Avistou-me, cerrando os olhos, por causa do sol. Acenei para ele. O rosto de Jeb Stuart se abriu num sorriso ao reconhecer-me e ele acenou em resposta. Comecei a descer, enquanto ele abria a porta. Sua voz chegou aos meus ouvidos, trazida pelo vento:
— Betty May! Jonathan está de volta!
Ela apareceu na porta atrás dele e ficou parada ali, acenando e sorrindo. Algo nela parecia diferente, mas só percebi o que era quando me aproximei. Ela estava mais esguia do que na ocasião anterior. A barriga estufada desaparecera. Jeb Stuart desceu os degraus e apertou-me a mão vigorosamente.
— Como vai, Jonathan, como vai?
Sorri.
— É um prazer tornar a vê-lo, Jeb Stuart.
— Estávamos esperando que aparecesse a qualquer momento. Mas confesso que cheguei a pensar que nos tinha esquecido.
— Isso jamais aconteceria. — Olhei para Betty May. — Meus parabéns. Será que posso beijar a linda mamãe?
— Claro que pode — disse Jeb Stuart.
Subi os degraus e beijei as faces de Betty May.
— Está linda. Ela é tão bonita como você?
— Como sabe que foi uma menina? — falou Betty May, corando.
— Eu sabia. Mas ainda não respondeu à minha pergunta.
— Claro que é — disse Jeb. — É a imagem escrita e escarrada da mãe. Entre e veja pessoalmente.
Entrei na cabana. Era agora mais parecida com um lar. Havia cortinas de chita nas janelas, os móveis estavam pintados. Uma cortina grande, do teto ao chão, separava a área de dormir do resto da cabana. E novos lampiões achavam-se em cima da mesa e das arcas. Betty May puxou a cortina e disse, orgulhosamente:
— Lá está ela.
A menina encontrava-se deitada num berço antiquado, feito da metade de um barril de uísque. Fora pintado de branco e estava apoiado em cavaletes nos dois lados. Inclinei-me sobre o berço. O rostinho vermelho estava contraído no sono, as mãos cerradas. Os cabelos quase brancos davam a impressão de que era careca.
— Ela é mesmo muito bonita — comentei. — Que idade tem?
— Seis semanas — informou Betty May. — Nasceu no dia em que terminamos a colheita.
— Foi quase como se ela soubesse que não devia vir até que Betty May terminasse de me ajudar no trabalho — disse Jeb.
— Já escolheram um nome?
— Temos pensado muito nisso. Mas ainda não decidimos. Queremos levá-la a Fitchville para que seja batizada direito. — Betty May sorriu. — Até lá, nós a chamamos simplesmente de Bebê.
— Já é suficiente — falei, também sorrindo. — Trouxe um presente para ela.
Saí da cabana e desenrolei o saco de dormir. Lá dentro estava a caixa que Christina comprara para mim na Avenida Worth. Entreguei a caixa a Betty May, que me disse:
— Não devia ter feito isso.
— Abra a caixa.
Cuidadosamente, ela tirou o papel. E disse, timidamente, enquanto levantava a tampa:
— Este papel é tão bonito que vou guardá-lo.
Lá dentro, havia um enxoval completo: vestido, touca, meias, botinhas, lençóis, manta, travesseiro, tudo em rosa. Betty May olhou para mim e depois para o enxoval.
— É lindo, Jonathan. Nunca tinha visto nada igual antes.
— É para ela usar no batizado.
Jeb Stuart estava parado ao lado, em silêncio. Tocou em meu braço e virei-me para ele.
— Betty May e eu não somos muito bons com as palavras Mas queremos que saiba que nos sentimos imensamente agradecido.
— É isso mesmo, Jonathan — disse Betty May. Um grito partiu do berço. A moça virou-se rapidamente. — Está na hora de mamar. Ela parece um despertador.
Segui Jeb Stuart para fora, enquanto ela ia para o berço. Sentamos nos degraus e eu perguntei:
— Está tudo bem?
— Está, sim. A colheita foi ótima. Destilei tudo e guardei nos barris. Tenho trinta barris da mais pura aguardente de milho, envelhecendo naturalmente na madeira. Se quiser, posso vender imediatamente por cem dólares o barril. Se esperar até a próxima primavera, posso conseguir o dobro ou mesmo mais.
— O que está pensando em fazer?
— Acho que talvez seja melhor vender dez barris. Será suficiente para nos sustentar durante o inverno. E poderemos vender o resto na próxima primavera.
— É uma boa idéia. — Tirei o maço de cigarros do bolso, ofereci a Jeb, depois acendi um fósforo para os dois. — Teve mais notícias do xerife?
— Nenhuma — respondeu Jeb, sacudindo a cabeça. — Pensei que iria voltar, mas ele nunca mais apareceu.
— Ele cancelou aquele mandado?
— Acho que sim. Mas isso não importa agora. Minha antiga esposa conseguiu o divórcio na sede do condado e se casou com um lojista. Assim, quando formos a Fitchville para batizar a menina, acho que Betty May e eu podemos-nos amarrar legalmente.
— Está tudo dando certo, não é mesmo? — falei sorrindo.
— Está, sim. Mas isso não teria acontecido, se você não estivesse aqui quando o xerife apareceu.
— Isso ficou para trás.
— Pretende ficar por algum tempo?
— Só vou passar a noite aqui. Vou embora de manhã. Tenho de estar em casa amanhã de noite.
— Talvez possa voltar para o batizado. Betty May e eu ficaríamos orgulhosos, se aceitasse ser o padrinho do Bebê.
Senti um súbito aperto na garganta.
— A honra será toda minha. Basta me informar a data e estarei aqui.
Betty May saiu pela porta, atrás de nós.
— O jantar estará pronto dentro de meia hora.
— Está certo. — Jeb Stuart levantou-se. — Não quer dar uma rápida olhada no alambique, Jonathan?
Assenti. Seguimos pela trilha quase invisível através da pequena floresta. Estava tudo como eu lembrava. Só havia uma diferença. Os pequenos barris de madeira achavam-se perfeitamente empilhados junto com a lenha. Com cuidado, Jeb Stuart puxou a lona que cobria os barris, explicando:
— Não quero que a madeira fique úmida.
Fui até o pequeno córrego, enchi as mãos com água, lavei o rosto. A água estava fria e agradável.
— No ano que vem, quando eu receber o dinheiro, vou encanar essa água para levar até a cabana — comentou Jeb Stuart.
— É uma boa idéia.
Voltei para o alambique. A luz do dia estava começando a se desvanecer. Olhei para o pequeno telheiro ao lado do alambique, com diversas prateleiras.
— Meu avô costumava guardar uma arma na prateleira de cima.
— Como sabe? — indagou Jeb Stuart, espantado.
— Simplesmente sei — respondi, dando de ombros.
Ele foi até o telheiro e estendeu a mão para a última prateleira, dizendo:
— Também guardo uma arma aqui. Mas aposto que seu avô nunca teve uma arma igual a esta.
Olhei para o rifle automático, com o pente já encaixado.
— Onde conseguiu essa arma?
— Um amigo meu esteve no Vietnã. Comprei-lhe o rifle por dez dólares, com quatro pentes de balas. Há 30 tiros em cada pente. — Apontou o rifle para baixo, virando-se rapidamente. — Tá-tá-tá-tá! Basta um apertão no gatilho para cortar um homem ao meio.
Não falei nada. Jeb acrescentou:
— Nenhum ladrão vai-me levar o uísque. Senti um calafrio percorrer-me o corpo.
— Vamos voltar.
— Está bem. — Ele tornou a guardar o rifle na prateleira e descemos pela encosta.
O jantar foi de carne defumada, verduras e feijão, encerrando com bolinhos de milho quentes e café. Betty May pediu desculpas:
— Lamento não termos algo melhor para você jantar, mas não vamos a Fitchville desde que Bebê nasceu.
— Não havia nada de errado com o jantar. Estava ótimo — Peguei o saco de dormir e acrescentei: — Acho que vou dormir agora. Tenho de estar de volta à estrada bem cedo.
— Não precisa sair para o milharal — disse Jeb Stuart — Pode dormir aqui mesmo, no chão, pois já temos a cortina.
— Não há problema em dormir lá fora.
— Claro que há! — interveio Betty May, firmemente. — Não estamos mais no verão, o chão está frio e úmido. Vai acabar pegando um resfriado, talvez uma pneumonia.
— Ouviu o que a madame disse. — Jeb Stuart sorriu. — Pode deitar-se perto do fogão, onde está quente.
Eu não tinha percebido como estava cansado, até o momento em que me ajeitei no saco de dormir e fui envolvido pelo calor que se desprendia do fogão. Fechei os olhos e estava dormindo no instante seguinte.
Senti a mão no meu ombro e abri os olhos. Jeb achava-se ajoelhado a meu lado. Mal podia divisá-lo, na escuridão cinzenta que antecedia o amanhecer. Ele pôs um dedo em seus lábios, a fim de que eu ficasse calado. Sentei-me, subitamente desperto.
— Há cinco homens e uma pickup na estrada, parados, a cerca de um quilômetro e meio daqui — sussurrou Jeb.
— Quem são eles?
— Não sei. Podem ser fiscais do governo, podem ser ladrões que vieram roubar-me os barris. Apenas ouvi alguns ruídos estranhos e saí para verificar.
— O que eles estão fazendo?
— Neste momento, nada. Parece que estão esperando por alguém.
— E esse alguém poderia ser o xerife?
— é possível. Não vou correr riscos. Vamos subir para o alambique. Só nós sabemos onde fica.
Saí do saco de dormir e calcei os sapatos. Dormira vestido. No outro lado da cama, Betty May já envolvera a menina em algumas mantas.
Ela virou-se para nós, e disse com voz calma:
— Bebê está pronta.
— Vamos sair pela janela dos fundos — disse Jeb. — Ê melhor não corrermos riscos, pois pode haver alguém vigiando a porta da frente.
Fomos até a janela. Jeb abriu-a cuidadosamente.
— Você sai primeiro — disse-me ele. — E Betty May lhe entregará Bebê.
Passei pela janela. O frio do amanhecer me atingiu em cheio. Virei-me e Betty May entregou-me a menina. Um momento depois, ela estava ao meu lado. Jeb passou pela janela enquanto ela tornava a pegar a menina.
— Fiquem de cabeça abaixada — sussurrou Jeb, enquanto se inclinava pela janela para pegar o rifle de caça. — Vamos passar por trás do milharal e depois subir a encosta.
Meio inclinados, começamos a correr por trás do milharal. Chegamos à beira da floresta com a primeira claridade do amanhecer. A primeira mancha rosada do Sol apareceu a leste.
Subimos pela trilha. Percebi que Betty May estava ofegante e estendi os braços para carregar a menina. Ela sacudiu a cabeça, com uma expressão decidida, continuando a subir. Jeb postou-se ao meu lado.
— Continuem em frente. Vou voltar um pouco para cuidar do terreno. Não quero que encontrem nossa pista.
Acenei com a cabeça, afirmativamente. Ele voltou, enquanto continuávamos a subir para o alambique. Diante da massa de arbustos que ocultava o alambique, Betty May caiu de joelhos.
— Passe primeiro, Jonathan. Vou entregar-lhe Bebê.
Passei pelas moitas e virei-me. Betty May pôs a menina em minhas mãos e depois passou também pelos arbustos. Pegou a filha de volta no mesmo instante. Entramos no telheiro na encosta da colina. Ela se sentou, ajeitando a menina nos braços.
— Você está bem, Betty May?
— Estou, sim, obrigada — disse ela. Parecia calma e polida como se nada de anormal estivesse acontecendo. A menina soltou um grito e a moça se mexeu rapidamente, abrindo a blusa. — A pobre coitada está com fome. Quer tomar a mamada da manhã.
Fiquei observando a menina grudar os lábios famintos no mamilo vermelho e inchado. Começou a sugar ruidosamente. Senti as lágrimas me aflorarem aos olhos e virei a cabeça. Levantei-me e respirei fundo. A beleza parecia inteiramente deslocada naquela manhã.
No momento seguinte, houve um ruído nos arbustos, e Jeb Stuart apareceu. Parou por um instante, olhando para Betty May e a filha, depois estendeu a mão para a última prateleira e pegou o rifle automático que me mostrara no dia anterior. Tirou o pente, verificou se estava em ordem, tornou a metê-lo no lugar. Olhou para mim e murmurou:
— é o xerife.
— Tem certeza?
Ele acenou com a cabeça.
— Vi o carro particular dele. Não está aqui em cima oficialmente.
— Como pode saber?
— Ele não está de uniforme. E se estivesse trazendo os fiscais do governo, os homens estariam com picaretas. O xerife veio mesmo roubar a aguardente. — Jeb tornou a estender a mão para a prateleira e pegou os outros três pentes de balas, guardando-os nos bolsos da camisa. E disse, em tom amargurado: — Eu já sabia que era bom demais para durar.
— Talvez ele não nos encontre — comentei.
— Ele vai-nos encontrar. Veio preparado. Trouxe até cachorros. Quando constatei isso, nem mais me dei ao trabalho de encobrir nossa pista.
Olhei para Betty May. Ela continuava amamentando a filha, aparentemente alheia à conversa. Tornei a virar-me para Jeb.
— O que eles estão fazendo agora?
— Estavam subindo a entrada, a caminho da casa, quando comecei a voltar para cá.
— E se eu descesse e conversasse com eles?
— Iriam matá-lo. Todos estão armados. Vieram aqui para pegar a aguardente e não para conversar.
— Por que então não a entrega? Não vale a pena perder a vida por causa disso.
Jeb Stuart fitou-me nos olhos e disse suavemente:
— Não conhece essa gente, Jonathan. Vão pegar a aguardente e não deixarão ninguém que possa denunciá-los depois.
A voz do xerife, ampliada por um megafone, ecoou nesse momento pelas colinas:
— Jeb Stuart! Aqui é o xerife. Saia de casa com as mãos levantadas e não lhe vai acontecer nada nem a Betty May.
Jeb tinha-se virado para escutar. Olhou novamente para nós.
— Ele vai levar uns dez minutos para descobrir que não estamos na casa. Vai então soltar os cachorros. Jonathan, leve Betty May e Bebê até a estrada. Ficarei aqui, mantendo-os ocupados por algum tempo.
Betty May mostrou nesse momento que estava prestando atenção a tudo:
— Não vou sair daqui sem você, Jeb Stuart.
— Vai fazer o que estou mandando, mulher — disse ele, firmemente.
— Não me pode obrigar — respondeu ela, com a mesma firmeza. — O lugar de uma mulher é ao lado de seu homem, não importa o que possa acontecer.
A voz ampliada pelo megafone tornou a ressoar pelas colinas:
— Tem dois minutos para sair, Jeb Stuart. Se não o fizer, vamos buscá-lo.
— Eles não se atreveriam —falei. — Estão blefando. Sabem que há um bebê na casa.
— Não sabem de nada — disse Jeb Stuart. — Não descemos à cidade depois que ela nasceu e por isso ninguém sabe de nada. Além de nós, ninguém conhece a existência de Bebê. Pelo que eles sabem, ela nunca nasceu. — Fez uma pausa, antes de acrescentar: — E mesmo que soubessem, isso não faria a menor diferença para eles.
— Esta é a sua última chance, Jeb Stuart — tornou a gritar o xerife. — O tempo que lhe dei já se esgotou.
Houve um momento de silêncio e depois o som dos tiros ecoou pela floresta. Em seguida, houve gritos, homens praguejando. Mais tiros. E o silêncio voltou. Jeb Stuart tornou a virar-se para nós.
— A esta altura, eles já sabem que a casa está vazia e vão soltar os cachorros.
Ele sabia exatamente o que os homens estavam fazendo. Um momento depois, os latidos dos cachorros chegaram aos nossos ouvidos. Jeb Stuart virou-se para a mulher.
— Chegou o momento, Betty May. A menos que queira que sua filha seja assassinada por aqueles filhos da puta, é melhor sair daqui agora mesmo.
Ela sacudiu a cabeça, obstinadamente.
— Por que não saímos todos daqui? — sugeri. — Eles que se danem. Que fiquem com tudo. É apenas uísque.
Jeb Stuart fitou-me nos olhos.
— Eles não estariam levando apenas o uísque, mas também minha honra. Se um homem não luta pelo que é seu, então não vale nada.
Os latidos dos cachorros soavam cada vez mais próximos. O ruído de homens subindo pela trilha através da pequena floresta chegou nitidamente aos nossos ouvidos. Pareciam bem perto quando os barulhos cessaram. Houve silêncio por um momento. Depois, a voz ampliada pelo megafone voltou a soar, quase em cima de nós:
— Já sabem onde está, Jeb Stuart. Não tem a menor chance. Há cinco homens aqui. Portanto, é melhor sair com as mãos levantadas e poderemos acertar tudo pacificamente. Ninguém vai sair machucado.
Jeb Stuart ficou calado.
— Sou um homem pacífico, Jeb Stuart. — A voz do xerife tornou a soar pela floresta. — Farei um trato com você.
Jeb Stuart levou as mãos em concha à boca:
— Que espécie de trato, xerife?
— Pago vinte e cinco dólares por barril e nos separamos como amigos.
— Não tem trato nenhum — gritou Jeb Stuart em resposta. — A amizade não pode ser tão barata assim.
— Trinta dólares por barril. E só estou fazendo isso porque não quero que Betty May saia ferida.
— Não tem trato nenhum! — gritou Jeb Stuart.
— Desça para a gente conversar.
— Pode subir até aqui sem arma nenhuma e conversaremos.
— Já estou indo.
— Está certo. — Jeb Stuart virou-se para nós, baixando a voz ao acrescentar: — Betty May, saia daqui agora, levando Bebê.
Betty May fitou-o em silêncio por um momento, depois virou-se bruscamente e pôs a filha em meus braços.
— Jonathan vai levá-la. Vou ficar com você, Jeb Stuart. — E pegou o rifle de caça, que ele deixara no chão, ao se armar com rifle automático.
Fiquei olhando para ele, que me acenou com a cabeça, solenemente.
— Não é a sua luta, Jonathan. Pegue a menina e saia daqui.
Não me mexi.
— Faça o que ele está dizendo, filho. Foi para isso que voltou. A criança que nunca fez.
A voz do xerife pareceu soar quase diretamente à nossa frente:
— Estou aqui fora, Jeb Stuart. Apareça.
Jeb Stuart pegou um galho pequeno caído no chão, agitando os arbustos a cerca de um metro do lugar em que estava de pé. O ar da manhã foi povoado pelos tiros dirigidos contra o lugar que os homens pensavam que Jeb Stuart estava.
— Seus filhos da puta!
Jeb Stuart jogou-se ao chão, empurrando o rifle automático pelos arbustos à sua frente. Puxou o gatilho. O rifle tossiu, em rajadas curtas, entrecortadas. Um instante depois, ele gritava:
— Cortei o filho da puta em mil pedaços!
Ele olhou para trás e me viu.
— Mas que diabo! Saiu logo daqui! Pensa que estou querendo que minha filha morra?
Foi tudo um reflexo. Sem dizer mais nada, comecei a correr pela trilha acima, além do alambique, apertando a menina contra o peito, no instante em que o tiroteio recomeçava, as balas zunindo por toda parte. Ouvi o rifle automático disparar novamente. Continuei a correr, a respiração ofegante, sentindo a garganta arder, e sem olhar para trás. Acabara de atingir o alto da colina quando houve a explosão.
Virei-me a tempo de ver a bola de fogo subindo pelo céu, seguida por uma nuvem de fumaça. Houve outra explosão, uma nova bola de fogo se elevou pelo céu. Fiquei olhando, boquiaberto. Tudo o que precisara fora de uma faísca para explodir todo o álcool ali acumulado.
Caí ao chão, recuperando o fôlego. Estava tudo acabado. Ninguém poderia sobreviver a uma explosão como aquela. Levantei o canto da manta que cobria o rostinho da menina. Dormia serenamente, o leite materno ainda quente em seu estômago. Senti as lágrimas me aflorarem aos olhos e inclinei-me para beijar a testa dela.
— Vai acabar tudo bem, Danielle — murmurei, tornando a cobrir-lhe o rosto. — Vai para casa comigo.
Levantei-me e comecei a descer a colina, na direção da estrada, onde Christina estava esperando no Rolls branco, conversível.
Eram quatro horas da tarde quando cheguei. A rua diante da casa estava apinhada de carros. Passei pela casa, contornei o quarteirão e entrei no caminho de carro da casa de Anne, logo atrás da minha. Olhei para Christina, enquanto desligava o motor. Danielle estava dormindo no pequeno berço de automóvel, no colo dela. A seu lado estava a mamadeira com a fórmula que o farmacêutico recomendara, quando paráramos naquela manhã num shopping center da Virgínia. Outras duas mamadeiras, cheias, estavam quentes num recipiente térmico. Abri a porta e saltei do carro, enquanto Anne descia da varanda dos fundos de sua casa. Ela parou, olhando-me.
— Sabia que viria por aqui, Jonathan. E o estava esperando.
— Onde estão seus pais?
— Lá na sua casa. — Veio para os meus braços e beijei-a. — Senti muita saudade, Jonathan. Cheguei a pensar que nunca mais voltaria.
— Devia saber que isso não poderia acontecer.
— E sabia mesmo — disse ela, beijando-me de novo.
— Venha comigo. — Levei Anne até o Rolls. Christina saiu do carro. — Anne, essa é Christina. A mãe de Christina foi uma amiga muito íntima de meu pai. Christina, essa é Anne. Ela é a minha garota especial.
Uma simpatia mútua pareceu surgir instantaneamente entre as duas. Elas trocaram primeiro um aperto de mão, depois impulsivamente se beijaram.
— Gosta dele? — perguntou Anne.
— Adoro — respondeu Christina, sorrindo.
— Dê uma olhada, Anne. — Levantei a manta e ela viu a menina adormecida. — Essa é Danielle.
Os olhos de Anne ficaram arregalados.
— É filha de quem? De onde veio?
— Acho que agora é minha. Deve estar lembrada dos pais dela, Jeb Stuart e Betty May.
— Claro que me lembro. Onde eles estão?
Foi difícil pronunciar as palavras. Ainda era muito recente.
— Estão mortos. — Anne ficou perplexa e percebi que havia mais perguntas em sua cabeça. Por isso, tratei de acrescentar: — Explicarei tudo mais tarde. Até lá, seria bom que a guardasse em sua casa, até o casamento terminar. Não gostaria de estragar o casamento de minha mãe, se puder evitá-lo.
— Não há problema. — Anne virou-se para Christina. — Vamos levá-la para o meu quarto. — Ela tornou a olhar para mim. — É melhor ir logo para sua casa, Jonathan. A esta altura, eles devem estar quase loucos. O casamento deve começar a qualquer momento e sua mãe disse a todo mundo que você prometeu chegar antes.
Pulei a cerca, como sempre fazia. Subi os degraus da varanda dos fundos e olhei para trás. Elas estavam entrando na casa com a menina. Abri a porta da cozinha e entrei também.
Mamie estava no fogão. Virou-se para ver quem entrara. Por um instante, pensei que ela fosse desmaiar. O rosto dela ficou pálido e cinzento. Depois, correu para mim, abraçou-me e apertou-me contra o peito farto.
— Jonathan, meu bebê! Você voltou! E um homem adulto e crescido como seu pai!
Beijei-a, meio rindo, meio chorando.
— Não sei por que tanta agitação. Não falei que voltaria?
— Sua mãe vai ficar feliz. Vou chamá-la agora mesmo.
— Agora não. Deixe-me primeiro subir, lavar-me e trocar de roupa. Não quero deixá-la assustada.
— Passei seu terno azul, Jonathan.
Subi para o meu quarto pela escada dos fundos e consegui chegar lá sem esbarrar em ninguém. Lá de baixo, subia o zumbido de conversas e o retinir de copos. Fui direto para o banheiro, fiz a barba e tomei um banho de chuveiro. Estava vestido em menos de 10 minutos. Contemplei-me no espelho. Mamie estava certa. Eu começava a parecer com meu pai mais do que nunca. Dei o laço na gravata com todo cuidado, vesti o paletó, atravessei o corredor até o quarto de minha mãe e bati na porta. A voz de mamãe indagou lá de dentro:
— Quem é?
— Seu filho.
O casamento foi às cinco horas em ponto. Às sete, todos os convidados já se haviam retirado e só restavam a família e os amigos mais íntimos: meu irmão Daniel e sua esposa, Sally; Moses Barrington; o Juiz Gitlin e sua esposa, Zelda, e os pais de Anne, os Forbes.
Daniel olhou para Moses:
— Tem certeza de que podemos mesmo dispensá-lo por três semanas? Aquele julgamento importante não está marcado para a próxima semana?
Moses aderiu à brincadeira:
— É bem possível. Vamos ter de reexaminar a situação.
Jack sorriu.
— Ora, parem com isso...
— Voltarei dentro de um minuto — falei, levantando-me.
Deixei a sala, saí pela porta dos fundos e pulei a cerca. Entrei na casa de Anne e subi para o quarto dela. A menina estava deitada na cama, gorgorejando na maior felicidade. Anne fitou-me.
— Ela é mesmo linda.
— Estivemos conversando e acho que não vamos devolvê-la — disse Christina, com um sorriso.
— Pois é melhor esquecer. Enrole-a na manta. Vou levá-la para minha casa. Vamos todos para lá.
Anne ficou segurando a menina, enquanto recuei com o Rolls até a rua. Contornei o quarteirão. Subimos para a varanda da frente da minha casa e toquei a campainha.
Mamãe abriu a porta. E ficou parada ali, olhando para mim, completamente atônita. Olhou Danielle em meus braços, depois fitou-me nos olhos. Pela primeira vez em minha vida, ela não sabia o que dizer. Levei a menina para a sala e todos pareceram ficar doidos. As perguntas partiam de todos os lados. Foi o Juiz Gitlin quem conseguiu finalmente que todos se acalmassem.
Gostei dele. Em algumas coisas, lembrava meu pai. Sempre levava consigo sua própria garrafa de uísque. A diferença era que meu pai tomava bourbon, enquanto o juiz preferia scotch. Assim como meu pai, o juiz de vez em quando esquecia o controle e bebia pelo gargalo, em vez de despejar o uísque num copo. Sempre que isso acontecia, a esposa dele, Zelda, o censurava, como minha mãe sempre fizera com Papai.
— Relaxem — disse ele, cofiando a barba grisalha, impecavelmente aparada. — Deixem que o rapaz conte sua história como achar melhor. Querem saber de uma coisa? Estou sentindo comichões.
— E o que tem isso a ver com o caso? — perguntou Zelda.
— Nada. Mas achei que era interessante.
Ele sorriu-me. Compreendi o que estava tentando fazer: deixar todo mundo relaxado, fora de guarda.
— Pode falar, Jonathan.
Entreguei Danielle a Mamãe. A menina gorgolejou diante do rosto dela.
— Temos fraldas descartáveis no carro, se ela estiver precisando — falei.
— Não há necessidade. — Mamãe contemplou o rostinho de Danielle. — Ela tem lindos olhos azuis.
O Juiz Gitlin sorriu-me. Ele sabia o que eu estava fazendo.
— Não precisa ter pressa, Jonathan. Comece do princípio. Olhei ao redor. E escolhi as palavras com todo cuidado. Não queria magoar os sentimentos de ninguém.
— Tudo começou no enterro de Papai. Quanto realmente o conhecíamos? De certa forma, cada um de nós o via de maneira diferente. Porque cada um de nós, à sua própria maneira, via nele apenas o que desejava ver. E cada um de nós estava certo. Ele era todas aquelas coisas. Mas também era algo mais. Além do que qualquer um de nós via. Era ele próprio.
Falei durante um longo tempo. Comecei pela manhã em que Anne e eu pegáramos o caminhão na U.S. 1 e terminei com os acontecimentos daquela manhã. O relógio no vestíbulo bateu as 10 horas quando acabei de falar. Tornei a olhar para cada um.
— Eles não tinham dado um nome à menina e por isso eu mesmo o escolhi. Danielle, em homenagem a meu pai. Agora, quero ficar com ela. Danielle não tem mais ninguém. Não tem família. Nem mesmo possui uma certidão de nascimento. Jeb Stuart não chegou a ir a Fitchville para registrar o nascimento dela. Planejavam fazê-lo quando fossem batizá-la. Mas isso jamais aconteceu.
O Juiz Gitllin acenou com a cabeça, pensativo. Tomou um gole de uísque, diretamente da garrafa. Desta vez, Zelda não o repreendeu. E ele disse, suavemente:
— Não é tão fácil como pode parecer, Jonathan. Em primeiro lugar, você ainda é menor, e nenhum tribunal deste país lhe daria a custódia de uma criança.
— Por que não? Tudo o que preciso fazer é obter uma certidão de nascimento dizendo que sou o pai.
— Não pode fazer isso. Há muitos problemas legais a superar. Teria de ser realizada uma busca de possíveis parentes. Se fossem encontrados, seria necessário obter o consentimento deles. Se não se encontrasse nenhum, ela ficaria internada em algum orfanato, sob a guarda do Estado, até que seu destino fosse resolvido.
— Isso é uma estupidez — protestei. — O que me impede de pegar Danielle e sumir com ela, sem ninguém se meter?
— Sabe que não deve agir assim, Jonathan. — Fez uma pausa, fitando-me, pensativo. — Mas pode haver um meio de mantê-la perto de você, sem maiores dificuldades. Para isso, no entanto, precisaria da ajuda de Jack e sua mãe.
— Como assim?
— Se eles estivessem dispostos a adotá-la, eu poderia dar um jeito de acelerar o processo. — Fez nova pausa. — Mas essa é uma decisão que os dois terão de tomar pessoalmente. É algo sobre o qual não podemos pressioná-los.
Virei-me para minha mãe. Ela estava olhando para Danielle e chorando. Jack aproximou-se dela e ajoelhou-se a seu lado. Olhou para Mamãe, depois para Danielle e novamente para Mamãe. Ele limpou a garganta e murmurou:
— Sempre quis ter uma filha.
Havia mais uma missão a ser cumprida. No mês seguinte, dois dias antes do Dia de Ação de Graças, meu irmão Daniel e eu levamos nosso pai de volta para casa. A primeira geada do inverno congelara o chão. Enquanto a sepultura estava sendo aberta, subi com Daniel ao lugar que antes ficava o alambique.
Não havia mais nada agora, a não ser um buraco escuro na terra, ocupado por uma massa de tubos de cobre semiderretidos e retorcidos. Fiquei parado ali por um momento, depois virei-me e fui embora. Parecia que fora apenas ontem que eu estivera ali... mas ontem era a eternidade.
Passamos pela cabana. Já estava prestes a desabar. As cortinas de que Betty May tanto se orgulhara já se encontravam esfarrapadas, e a tinta nova começava a descascar. Quase todas as janelas achavam-se quebradas e o ar frio entrava pela cabana.
— Então foi aqui que tudo começou — murmurou Daniel, fitando-me. — Nunca imaginei.
— Ninguém sabia. E eu próprio não teria descoberto, se Papai não me tivesse mostrado. E foi aqui que comecei a descobrir tudo o que havia de bom nele, foi aqui que comecei realmente a amá-lo.
Voltamos para o cemitério. A sepultura já estava quase pronta. Os dois coveiros saíram finalmente do buraco aberto no chão. Instalaram as vigas cruzadas com as correias de lona à beira da sepultura, que lhes permitiram baixar o caixão. Desceram em seguida para o lugar em que o carro fúnebre esperava.
Ficamos observando, enquanto os dois coveiros, ajudados pelo motorista do carro fúnebre e seu assistente, tiravam o caixão, depois subiam pela encosta, lenta e cautelosamente. Apesar do frio, dava para ver o suor nos rostos dos homens, ao passarem por nós. Colocaram o caixão sobre a lona e olharam para nós, esperando a ordem.
Virei-me para Daniel. Combináramos que não haveria nenhum ministro. Daniel assentiu. Os homens puxaram as tiras de lona, erguendo ligeiramente o caixão. Chutei as duas vigas de apoio de um lado, Daniel empurrou no outro lado. Lentamente, os homens baixaram o caixão para a sepultura. No instante em que o caixão estava prestes a tocar no fundo, eles puxaram vigorosamente as tiras de lona, desprendendo-as.
Daniel e eu nos abaixamos, cada um pegando um punhado de terra. Lançamos na sepultura, em cima do caixão. Rapidamente, os dois coveiros pegaram as pás e começaram a jogar terra na sepultura. A princípio, a terra batendo na madeira produzia um som cavo, que gradativamente foi-se tornando abafado. Os homens finalmente acabaram. Depois de socar um pouco a terra com as pás, desceram o outeiro, deixando-nos sozinhos.
Daniel olhou para mim. Acenei com a cabeça. Ele virou-se para a sepultura e murmurou, com voz rouca:
“Aqui ele jaz, onde tanto ansiava estar;
O marinheiro de volta ao lar, de volta do mar
O caçador de volta ao lar, vindo das montanhas.”
Vi as lágrimas escorrendo pelas faces de Daniel. Peguei a mão de meu irmão e apertei-a com força.
— Se prestar atenção, Daniel, poderá ouvi-lo. Era como um sussurro na brisa.
— Obrigado, meus filhos.
* Industrial Workers of the World — Trabalhadores Industriais do Mundo — organização fundada em Chicago em 1905. (N. do T.)
* Record, em inglês (N. do T.)
* Feriado comemorativo dos soldados mortos na guerra. (N. do T.)
Harold Robbins
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