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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS AMORES DE HARRY DANCER / Lawrence Sanders
OS AMORES DE HARRY DANCER / Lawrence Sanders

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Dilacerado pela morte recente da mulher, Harry Dancer torna-se objecto da cobiça de interesses rivais, numa guerra feroz que opõe duas organizações dos Serviços Secretos. Ambos os lados cedo aprendem, porém, que a sedução pode ser uma faca de dois gumes quando a presa está decidida a iludir o caçador.
Lawrence Sanders, o fabuloso mestre do suspense, volta a superar os seus sensacionais êxitos anteriores com um novo romance sobre traição e crime, arrastando o leitor para os abismos do desejo e para os recantos obscuros do coração de um homem perseguido.

 


Um edifício novo, de dez andares, situado na Federal Highway a sul do Commercial Blvd., em Fort Lauderdale. Revestido a vidro de um verde tão escuro que, ao olharem para fora, os ocupantes vêem um mundo aguado e imaginam-se como peixes boquiabertos dentro de um aquário.
Os dois últimos andares estão alugados à Narak Exporting Co., especializada em bugigangas abomináveis, incluindo Estátuas da Liberdade em miniatura, com lâmpadas no archote, Vénus de Milo com relógios eléctricos incrustrados na barriga, pequenos barcos à vela cromados navegando em espelhos azuis.
Os gabinetes exteriores são presididos por uma loura alta e magra, madeixas raiadas de amarelo descendo até às nádegas, e por um libanês baixo e gorducho cuja pele faz lembrar o feltro de uma mesa de bilhar. Na realidade, as bugigangas em exposição são exportadas... e até dão bom dinheiro.
Nas traseiras dos escritórios da Narak, uma porta de pinho falso, fechada à chave... uma camada de verniz sobre dois centímetros e meio de liga de aço à prova de bala. Um óculo à altura dos olhos. Uma pequena câmara de TV foca os visitantes. O monitor está colocado no interior, sobre a secretária de um guarda armado.
Autorizada a passagem por essa porta, semelhante à de um cofre-forte (fechadura eléctrica: bzzzzzz), entra-se numa vasta área de trabalho cheia de secretárias, bandas magnéticas de computador giratórias, telefones sonoros, tele-impressoras gaguejantes, monitores de TV tremeluzentes. Pendurado na parede interior, um enorme mapa, com a legenda REGIÃO SUDESTE, mostra os Estados da Florida, Jórgia, Carolina do Norte e do Sul, Tenessi, Mississipi e Alabama.
Pionés formando um código de cores e distribuídos pelo mapa indicam as actividades do departamento: branco para as sedes estaduais, azul para as delegações das cidades principais, verde para os escritórios-satélite mais pequenos perdidos no interior. Pionés vermelhos indicam os locais das acções em curso.
A temperatura daquela enorme sala, sem paredes nem divisórias, nunca desce abaixo dos 22° C. O ar cheira sempre a desinfectante de cereja brava. As secretárias e as máquinas são operadas por homens e mulheres na casa dos 20, 30 anos. 8
Os supervisores são mais velhos. Três turnos de trabalhadores mantêm a operação em funcionamento vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana.
Nas traseiras, uma escadaria larga e alcatifada conduz ao piso superior, onde estão os executivos. Aí, os gabinetes são privados, com paredes até ao tecto e portas fechadas. As vozes nunca sobem de tom e os únicos sons que se ouvem são os ruídos secos das máquinas de escrever e o zumbido monótono do ar condicionado instalado no telhado.
O gabinete do director regional é uma suite com três salas: o gabinete da secretária, suficientemente grande para albergar um sofá de couro, várias cadeiras, uma consola de computador, uma secretária em L; uma das portas liga esta sala aberta ao gabinete privado do director; ao lado deste, separada por umas portas duplas, está uma sala de reuniões com uma mesa com lugar para vinte pessoas.
Na tarde de 17 de Abril de 1985, uma quarta-feira, Norma Gravesend, a secretária do director regional, está sentada em frente ao seu IBM Selectric, despachando rapidamente uma pilha de correspondência pessoal. A sua dactilografia é precisa e exacta. O único erro que comete - habitualmente - é pôr o "u" antes do "e" na palavra "conteúdo".
Gravesend é uma mulher de 44 anos de idade, de uma magreza quase anoréxica. Toda ela é ossos, músculos, tendões. A pele de pergaminho do seu rosto é muito esticada. O cabelo grisalho ralo, duro e áspero está apanhado num pequeno carrapito, preso com ganchos.
Ainda assim, não é totalmente desprovida de encantos. Os olhos são de um castanho caloroso, o olhar directo e compreensivo e o seu riso chega a ser malicioso. Correm boatos acerca dela e do director - rumores que circulam nas suites executivas de todas as grandes empresas -, mas nunca nada foi provado, e nunca será.
O seu trabalho é interrompido por uma jovem vestida com um saia-casaco de linho de cor cinza. Na mão traz uma pasta de pele castanho-avermelhada. Gravesend ergue os olhos do trabalho de dactilografia.
- Sim? Posso ajudá-la?
- Sou Sally Abaddon, do escritório de Atlanta. - E arriscando um sorriso hesitante:
- Tenho uma reunião com o director às três horas. Cheguei alguns minutos mais cedo.
- Com certeza, Menina Abaddon. Sente-se, por favor. Vou ver se ele já a pode receber.
A secretária bate à porta e entra. Volta daí a instantes.
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- O director vai recebê-la já. - Depois, aproximando-se da visitante e apurando o olfacto, pergunta: - Não pôs perfume, pois não, querida?
- Apenas o que está autorizado. E muito pouco.
- Óptimo. O director é alérgico a todas as outras fragrâncias. Por aqui, se faz favor.
Um homem grande, entroncado. Cabelo branco, elaboradamente penteado. Tez rubicunda. Dentes como minúsculas pedras tumulares. Veste fato com colete em seda natural. Tecido na gravata aparece o logotipo do departamento: uma roseta de espora vermelho-sangue.
Está de pé, os nós dos dedos apoiados na secretária, o corpo inclinado para a frente. Abaddon aproxima-se para o caso de ele querer apertar-lhe a mão. Não o faz. Sorriem e trocam saudações. Ele aponta para o cadeirão ao lado da sua secretária.
- O caso Miller... - diz, abruptamente. - A violência era necessária?
- Era sim, Sr. Director.
- Temos um acordo tácito com a outra parte. Nós não os eliminamos, eles não nos eliminam a nós.
- Excepto em certos casos - recorda-lhe Abaddon. - Cumprimos todas as orientações. A vida de Miller estava em perigo. Eles tê-lo-iam apanhado sem que tivéssemos podido fazer alguma coisa. O agente deles era implacável. Fizemos o que tínhamos de fazer.
- Fê-lo pessoalmente?
- Não. Foi Briscoe, o agente encarregue do caso.
- Muito bem, aceitarei isso. De qualquer forma, Miller desertou. Portanto, tudo está bem quando acaba bem. Nunca esteve na Florida, pois não?
- Não, senhor.
- Óptimo. Precisamos de um estranho para tratar de um caso local. Os agentes da Florida poderiam ser reconhecidos. O sujeito é Harry Dancer, um viúvo recente. Não se chama Henry, nem Harold, apenas Harry. O nosso informador é um amigo e vizinho. Segundo ele, creio que temos boas hipóteses de virar Harry Dancer. O agente que trabalhará consigo neste caso chama-se Shelby Yama. Conhece-o?
- Não, senhor, não conheço.
-Apresentar-lho-ei daqui a instantes. Ele dar-lhe-á todas as informações. Entretanto, creio que devemos aproveitar para nos conhecermos melhor.
- Sim, Sr. Director. Pega no telefone.
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- Miss Gravesend - diz -, não me passe mais chamadas por enquanto.
essa noite, Norma Gravesend sai do seu apartamento em Pompano Beach. Leva um pequeno saco branco. Lá dentro, estão dois livros.
Na biblioteca, no Atlantic Boulevard, olha casualmente em volta. Descobre o seu contacto. Um homem que ela apenas conhece pelo nome de Leonard. Dirigem-se ambos para o meio das estantes.
- Já leu isto? - pergunta ela. - Tira um livro do saco. Hard Times, de Charles Dickens.
- É interessante? - pergunta Leonard.
- Muito - responde ela.
Uma hora depois, Leonard está em casa com Hard Times. Utiliza um código de livro simples para transcrever a mensagem de Gravesend. Converte-a numa série de números de cinco algarismos.
Liga o radiotransmissor. Começa a transmitir. Tem cuidado com o nome "Dancer". Um pequeno erro transformá-lo-ia em "Danger".
A sede da Companhia está localizada num edifício anódino situado na Northwest H Street, Washington, D. C. Numa placa de metal baça pode ler-se: SOCIEDADE PARA A CIVILIDADE UNIVERSAL.
A sala de rádio, no último andar, recebe a transmissão de Leonard à 01.24 da manhã de 18 de Abril de 1985. A gravação é entregue em mão ao decifrador de serviço à 01.43. A transcrição é levada ao chefe de Operações quando este chega à sua secretária, às 08.00 da manhã.
Um homem baixo e mirrado. Rosto sulcado por rugas de preocupação. Cabelo ralo penteado para o lado, sobre um crânio em vias de ficar calvo. Meticuloso, sofre de dispepsia. Veste um fato de tweed demasiado pesado para a sua estrutura frágil.
Lê a mensagem descodificada enviada da Florida por Leonard. O chefe não gosta do director do departamento da Região Sudeste. O tipo saiu vitorioso demasiadas vezes. A nomeação de Sally Abaddon para o caso de Harry Dancer é um desafio.
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Dirige-se à sua base de dados informática e entra nas fichas pessoais dos agentes no activo. Insere os requisitos físicos, intelectuais, emocionais. A impressora começa a cantarolar. Três nomes. Às duas horas dessa tarde, Evelyn Heimdall está no gabinete do chefe de Operações.
É brusco. Não perde tempo.
- Já alguma vez trabalhou na Florida?
- Não, chefe.
- Óptimo. O sujeito está lá. Um viúvo recente chamado Harry Dancer. O agente que trabalhará consigo no caso é Anthony Glitner. Ele dar-lhe-á todas as informações. Viaje para a Florida o mais depressa possível.
- Chefe - diz Evelyn. - Tenho férias marcadas para Agosto.
- Não há problema. Harry Dancer já estará ganho ou perdido nessa altura.
Harry Dancer. A dor rói-lhe as entranhas como uma ratazana. A alegria morreu. O sono ilude-o. Injustiça! Uma coisa tão pequena que só pode ser vista ao microscópio. Contudo, suficientemente poderosa para derrubar aquela magnífica mulher.
Pior ainda, a angústia está a esbater-se, a esboroar-se. A dor permanece, mas dilui-se na memória. Quanto tempo durará o sofrimento de um homem? Recorda a beleza dela, mas tem de olhar para as velhas fotografias. Bons tempos. Risos. No entanto, a recordação dissolve a tristeza. Tenta agarrar-se à sua dor, abraçá-la. Mas não consegue.
- A vida continua - diz-lhe Jeremy Blaine, solenemente.
Um estalo. O mundo devia ter acabado. Mas não.
Ele funciona. Dezoito horas depois do funeral está sentado à secretária. Dancer Investment Management, Inc. Ouve condolências. Acena com a cabeça. Depois, com o rosto pálido, pega no telefone. Continua. Vive.
Os amigos tentam. Convites. Jantares. Cocktails. Churrascos. Apresentam-no a outras mulheres. Rejeita tudo. Vagueia pela casa da praia, a sul de Boca Raton, que não era suficientemente grande para dois e agora é demasiado grande para um.
O álcool não resulta. Nem os comprimidos. Nem a erva. O oceano cintilante, sim. Nadar até à eternidade, seguindo o rasto da lua. Afoguemo-nos. Boca aberta. Bolhas de ar sobem preguiçosamente. Todavia, acaba sempre por voltar para terra, 12
ao sabor da corrente. Arrasta-se penosamente pelo areal até à casa vazia. Mundo vazio.
Homem tenso. Musculado. Olhos escuros e pele acobreada. Feições austeras, curtidas pela tragédia. Move-se com a graciosidade de um tenista. A determinação está agora entorpecida. Mas está lá, à espera. Tudo lhe pertence, basta apenas que o agarre.
- Quero tudo! - dissera ele à mulher.
Mas tudo se desmoronara. Não tem carências. Não tem desejos. Agora, move-se lentamente através de uma vida sem atractivos. A poluição está dentro dele. Ele apodrece.
- Eia, companheiro - diz Jeremy Blaine -, temos de te fazer sair dessa. Tu e eu vamos para os copos.
- Não - responde Harry Dancer.
- Pára de sentir pena de ti próprio.
- Achas que é isso que estou a fazer?
- Claro. Tudo isso não passa de autocomiseração.
- Está bem - diz Dancer -, vamos.
Bebem. Vão até West Palm Beach comer palombeta grelhada. Bebem. Regressam. Param em sítios antigos e noutros, novos, para beber mais. Gritam. Cantam. E Dancer odeia-se a si próprio. Traição.
Passa da meia-noite. Algures perto de Lighthouse Point, Jeremy Blaine, um tipo altiloquente, diz:
- Iupi-di-do! Ouve, companheiro, há um novo espectáculo de nus. Que tal irmos até lá?
- Para quê? - diz Dancer. - Já vi gajas nuas antes.
- Anda lá. Não me digas que não te entusiasma que uma miúda espete o rabo na tua cara. Bebemos uns copos, ficamos lá uma meia hora, uma hora no máximo, divertimo-nos.
- Uma hora no máximo! - diz Dancer. - Tenho um seminário em Miami amanhã de manhã.
Chama-se Tipple Inn. Faz lembrar um celeiro, com mesas pouco maiores que lenços. Bar sem bancos. Três palcos elevados. Duas raparigas em cada palco. Dançam durante quinze minutos ao som de uma banda rock de quatro elementos. São substituídas por outro grupo de bailarinas.
Empregadas vestidas com decoro. Para fazer contraste. Pedem bebidas.
- Oh, caramba! - diz Blaine. Passa o nó de um dedo pelo bigode cor de ferrugem. - Olha para a Miss Mamas ali, à esquerda. Só por um milagre é que não dá com a cara no chão.
O número termina. As bailarinas abandonam os palcos, ao mesmo tempo que entra uma nova equipa. Os clientes chamam-nas. As raparigas que abandonam o palco aproximam-se para
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subirem para cima das mesas, onde executam movimentos ondulatórios privados. Usam uma única liga para prender as gorjetas.
- Fazem uns trezentos ou quatrocentos por noite - diz Blaine. - Livres de impostos. Que me dizes a isso?
Dancer não responde.
Cheiros. Perfume barato. Suor. Cerveja choca. Urina. Desinfectante irritante para os olhos.
- Ouve lá, amigo, vamos chamar uma delas. Uma senhora nua só para nós. Que tal aquela loura, ali no palco do meio? Gosto da rata rapada.
- Escolhe a que der mais ponta - diz Dancer. A música pára. Blaine levanta-se. Acena à loura.
Ela aproxima-se, passando por entre as mesas. Respiração ofegante e pele reluzente.
- Olá, cavalheiros - diz ela. - Exibição privada? Vinte, no mínimo.
- Claro - diz Blaine. Tira a carteira. Enfia-lhe uma nota de vinte na liga. - és das grandalhonas.
- Quanto maiores - diz ela - maior é a queda.
Eles ajudam-na a subir para cima da mesa. A empregada serve uma nova rodada sem que lha tivessem pedido. A música recomeça. A bailarina nua começa a estalar os dedos. Contorce-se. Ondula a pélvis. Sacode as mamas.
Permanecem sentados, bebendo. Observam-na com um sorriso idiota nos lábios. Ela agiganta-se à frente deles. Uma amazona. Abre as pernas. Aproxima a púbis rapada da cara de Harry Dancer. Um odor estranho, activo. Parecido com cinza. Fogo apagado. Cheiro a queimado.
Dança freneticamente. Agita o corpo em contorções violentas. Abandona-se. Blaine vem-se.
- Olha, mas não toques - diz ela. Ofegante. A música termina.
- Outra exibição, cavalheiros? - pergunta. Mãos nas ancas. Pernas afastadas. Olha fixamente para Harry Dancer.
- Claro - diz ele. Tira a carteira. - Como te chamas?
- Sally - diz ela.
Os agentes da Companhia chegam a Fort Lauderdale a 20 de Abril. Chefiados por Anthony Glitner, responsável pelo caso, que organiza as coisas. Apartamento e identificação para Evelyn
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Heimdall. Suite de motel para o tipo das comunicações. Não é necessário uma casa clandestina. Por enquanto.
Glitner regressa a Washington de avião. Reúne com o chefe de Operações. Examinam a biografia de Harry Dancer. O plano de acção. Parece bem. Vamos a eles. No entanto, o chefe está apreensivo. Bebe um golo de Maalox.
- Este é um trabalho tramado, Tony - diz ele. - É um tipo irrequieto.
- Tem de ser feito - diz Glitner. Volta para Lauderdale. No dia 25 de Abril, Evelyn Heimdall telefona para a Dancer
Investment Management, Inc. Pede para falar com o Sr. Harry Dancer.
- Diz-me quem fala, por favor? - pede a recepcionista.
- Sou a Sra. Evelyn Heimdall. O Sr. Dancer não me conhece, mas por favor diga-lhe que o reverendo Perry Stone sugeriu que eu lhe telefonasse.
(O reverendo Stone havia sido prevenido de que poderia vir a ser contactado por Dancer. Glitner, o agente responsável pelo caso, conhece os procedimentos de rotina.)
- Um momento, por favor. Clique.
- Harry Dancer. Em que posso ajudá-la?
- Sr. Dancer, fala a Sra. Evelyn Heimdall. O reverendo Perry Stone sugeriu que lhe telefonasse.
- Ah, sim. Como está o reverendo? Uma gargalhada.
- Ainda fuma aqueles charutos malcheirosos. Manda-lhe cumprimentos. Sr. Dancer, o meu marido faleceu há seis meses e eu mudei-me de Nova Jérsia para Fort Lauderdale. Ainda estou a transferir os meus bens para cá, para além daquilo que o meu marido me deixou. Estou a tentar compreender as operações financeiras, mas tenho de admitir que estou confusa. Por exemplo, que é um Ginnie Mae? Estava a pensar se não poderíamos encontrar-nos para discutir a possibilidade de o senhor me aconselhar.
- Claro, Sra. Heimholtz. Podia...
- Heimdall.
- Heimdall. Peço desculpa. Podia deslocar-se aos nossos escritórios, Sra. Heimdall, mas eu preferia que antes tivéssemos um encontro informal... se estiver de acordo. Para nos conhecermos. Podemos almoçar, que acha?
- Gostaria muito. Mas não conheço a cidade, Sr. Dancer. Pode sugerir um sítio agradável?
- Tem carro?
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- Tenho, claro.
- Bom, há um restaurante interessante junto da praia, na AIA, em Pompano Beach. Chama-se Sea Watch. Pode encontrar-se lá comigo, amanhã ao meio-dia e meia?
- Sea Watch. AIA. Pompano Beach. Amanhã ao meio-dia e meia. Lá estarei. Obrigada, Sr. Dancer.
- Eu é que lhe agradeço, Sra. Heimdall.
A Secção de Serviços Secretos fez um trabalho eficiente, como é habitual. Utilizando os dossiers fornecidos, Glitner põe Heimdall ao corrente de todos os pormenores numa reunião que se prolonga por várias horas. Concentra-se em Sylvia, a falecida mulher de Dancer.
- Uma mulher morena - diz ele, lendo o documento classificado como CONFIDENCIAL. - Um bronzeado magnífico. Cabelo castanho curto. Olhos castanhos. Entusiasta do ténis.
- Como eu - diz Heimdall.
-Por que acha que foi escolhida? Esta é a única fotografia que conseguimos localizar. Tirada quando ganhou os singulares femininos no clube de que era sócia. Publicada no Sun-Sentinel.
- Bonitas pernas - diz Heimdall estudando a ampliação da fotografia.
- Tal como as suas, como já reparei. Tem praticamente a mesma altura e o mesmo peso que ela. Você tem um pouco mais de peito, o que é ainda melhor. O seu cabelo é mais comprido que o dela. Pode cortá-lo mais um pouco?
- Claro. E faço um corte igual ao dela, um corte arrapazado.
- Óptimo. Ela gostava de vodca gimlets. E de salada César e de ler romances. Usava pouca maquilhagem. Nunca usava meias. Fumava Benson and Hedges mentolados. Está a fixar tudo isto?
- Estou. Como é que ela se vestia?
- Sobretudo, criações de estilistas. O nome de outras pessoas aparece em praticamente tudo o que ela possuía.
- Hum... acho que consigo. Dextra ou canhota?
- Dextra. Isso quer dizer que é ambidextra?
- Tony, tenho talentos que nem sonha.
- Acredito. Poderá ter oportunidade de os exibir. Sylvia Dancer tinha a reputação de ser uma fera no departamento cama.
- E como é que os Serviços Secretos descobriram isso?
- Foi fácil. O médico pessoal de Harry Dancer é um dos nossos. Segundo as informações dele, Harry andava preocupado com as dificuldades que sentia em acompanhar a mulher. Estava a tomar injecções de B-12.
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- Estava a tomar? Recentemente?
- Não, as preocupações datam de alguns anos. Ah, outra coisa... Sylvia Dancer gostava de cavalos. Aparentemente, não era uma jogadora inveterada; limitava-se a fazer apostas de dois dólares. Mas gostava de os ver correr em Calder, Hialeah, Gulf Stream... onde quer que fosse. Teve um pónei quando era criança; talvez fosse por causa disso.
- Mais alguma coisa?
- Antecedentes. Pais, educação e por aí adiante. Mas de momento quero que se concentre no seu primeiro encontro com Harry Dancer. Recapitulemos.
Evelyn Heimdall veste-se cuidadosamente para o almoço no Sea Watch. Vestido justo de linho claro, uma criação de Halston. Cabelo mais curto, ligeiramente aclarado. Sem meias. Um mínimo de maquilhagem. Benson and Hedges na carteira Mary Cross. Conseguira passar duas horas ao sol nessa manhã. Pele bronzeada.
O conjunto surte efeito. Quando a empregada a conduz à mesa onde se encontra Dancer, ela vê o choque estampado no rosto dele enquanto se levanta precipitadamente.
Mesa pequena. Conversa trivial. Ambos conseguem ver o
oceano.
- Que haverá do outro lado? - pergunta ela. Faz um gesto na direcção da água. - Se navegarmos directamente para leste, onde vamos dar?
- A Portugal - diz ele. - Creio eu.
Ela inclina-se mais para África ocidental, mas não diz nada. Tira os cigarros mentolados da carteira. Ele acende o isqueiro, segurando-o com uma mão trémula.
A empregada aproxima-se deles, hesitante.
- Aperitivos?
- Vodca gimlet - diz Heimdall. - Com uma rodela de lima,
por favor.
Ele pede umgim martini puro. Quando lho trazem, bebe-o de um só trago. Ela compreende os sentimentos dele. Em silêncio.
- Que deseja comer? - pergunta ele, estudando a ementa. Sem olhar para ela. - O marisco é bom e o hambúrguer é de facto
enorme.
- Será que posso comer uma salada César?
- Claro - diz ele, numa voz tensa. Em seguida pede outro
martini.
Ela não quer atingi-lo demasiado duramente, tão depressa. Desvia a conversa para o estado das suas finanças. Diz que tem aproximadamente oitocentos mil e pergunta como deve investi-los.
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Com calma - aconselha ele. - Pelo menos quarenta ou
cinquenta por cento em investimentos de rendimento fixo. Terei de saber pormenores acerca da sua situação fiscal, dependentes, despesas, etc... Sou cauteloso, pelo que não lhe aconselharia operações de alto risco.
Ela sorri.
Discutem os honorários dele, problemas de transferência dos bens, isenções fiscais em contraponto com títulos de seguros. Ele está muito bem informado sobre o assunto. Ela também, mas não deixa que ele perceba.
Um almoço agradável. Café gelado seguido de Bailey's Irish Cream. Conversa preguiçosa sobre o Sul da Florida. As reacções dela. Lugares para visitar. Coisas para ver.
- Tenho de ir às corridas de cavalos - diz ela. - Adoro corridas, embora não aposte forte. Gosto apenas do espectáculo.
Ele, baixa a cabeça.
- É tão parecida com a minha mulher - diz. O tom de voz dele é tão baixo que ela mal consegue ouvi-lo.
- Ah, sim? Gostava de a conhecer.
- Faleceu. - Ergue a cabeça para olhar para ela. - Há cerca de um mês.
- Oh, meu Deus - diz ela chocada. Põe a mão sobre a dele. - Lamento imenso, não sabia. Passei por isso há seis meses atrás. É difícil, não é?
- É, sim. Difícil.
- O pior de tudo - diz ela -, o mais terrível, é que a dor vai desaparecendo gradualmente. Estamos convencidos de que vamos sofrer para o resto da vida. Lentamente, porém, a dor vai diminuindo. Até que as recordações se esbatem. E parece-nos tão reprovável que quase não conseguimos viver com isso.
- Sim - diz ele. Olhando para ela, espantado. - É exactamente isso.
Ele assina a conta, pagando com cartão. Enquanto esperam pelo recibo, ela decide provocar-lhe um sobressalto final.
- A propósito - diz ela, num tom ligeiro. - Sou maluca por ténis. Será que me pode aconselhar um campo? Um sítio aqui perto?
Antes de se separarem, combinaram um jogo para o dia seguinte, no clube dele em Boca. Sábado. Heimdall dá-lhe a morada e o número de telefone dela.
- Farei a reserva assim que chegar ao escritório - promete ele. - Depois telefono. Suponho que deve estar tudo reservado para de manhã. Se jogarmos ao fim da tarde, talvez possamos ir jantar depois.
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- Adoraria - diz ela. - Como devo vestir-me?
- Para jantar - responde, feliz. - Leve o seu equipamento de ténis num saco. Pode mudar de roupa lá. Irei buscá-la.
- Acho que vai ser divertido - diz ela. Ele aperta-lhe a mão.
De regresso à suite do motel, Anthony Glitner reúne com ela e, juntos, passam em revista o encontro. Que disse ele? Que lhe respondeu ela? Que aperitivo pediu? E ele? Que comeu? E ele? Como é que ele estava? Qual a sua opinião sobre ele?
- Gosto dele - diz Evelyn Heimdall. Lentamente, acrescenta: - Muito. Neste momento sente-se vulnerável. Tudo pode acontecer.
O Departamento tem duas toupeiras na sede da Companhia, em Washington, D. C. Uma delas é o criptógrafo do turno da noite. O departamento recrutara-o, viciando-o em cocaína. Agora consome uma dose por dia, o suficiente para o manter alerta, sem o impedir de funcionar.
Quando chega a transmissão de Leonard, relativa a Harry Dancer, o criptógrafo do turno da noite faz um duplicado da transcrição. Passa-a ao seu fornecedor de cocaína. Este, por sua vez, entrega-o ao presidente do departamento em Washington, que o envia, via microfilme, para a sede do departamento em Cleveland.
Aí, a informação é impressa, avaliada e anexada ao dossier computadorizado. Um alerta é imediatamente enviado ao director da Região Sudeste, em Fort Lauderdale.
Este processo demora quase uma semana. Quando o director regional recebe a informação, fica a saber que a equipa de agentes da companhia já está a operar, cercando Harry Dancer.
Esse facto não o perturba tanto quanto a questão do modo como a companhia teve conhecimento do interesse do departamento por Dancer. A única resposta para isso é uma fuga de informações, e massiva, na sede regional. O director chama Ted Charon, o seu chefe de Segurança Interna.
Reunidos no gabinete do director, fazem uma lista de todo o pessoal com conhecimento da operação Dancer: o próprio director, a secretária, Norma Gravesend, a agente Sally Abbadon, o agente encarregue do caso, Shelby Yama. E mais uma dúzia de pessoas: operadores de computador, arquivistas, assistentes que trataram do emprego de Sally no Tipple Inn.
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- E Jeremy Blaine - acrescenta o director. - Não se esqueça dele. Foi ele que nos deu a informação sobre Dancer, mas talvez esteja a fazer jogo duplo. Investigue-o.
- Sim, senhor - diz Charon. - Tenho um pressentimento de que a fuga se verificou a um nível inferior, mas investigaremos toda a gente. Faz alguma ideia da dimensão da equipa que a companhia destacou para cá?
- Pedi a Cleveland que interrogasse as nossas toupeiras na sede da companhia. Ainda não há nada, mas não tarda receberemos nomes e números. O residente em Washington sabe o que tem a fazer. Mas, enquanto esperamos as informações, vou mandar vir Briscoe de Atlanta.
- Briscoe? Não foi ele que liquidou o agente da companhia no caso Miller?
- É esse mesmo.
- Não sei, director - diz o chefe da Segurança Interna, franzindo a testa. - O tipo parece ser um impetuoso. Um verdadeiro pistoleiro.
- Talvez precisemos de um pistoleiro antes que tudo isto acabe - diz o director regional. Mostra os dentes, que fazem lembrar pedras tumulares. - Quando se trabalha nesta área, vale tudo.
noites de domingo são as piores. Quando Sylvia estava viva, eram as melhores. Ociosas, preenchidas por risos abafados e palmadinhas no rabo. Marisco para o jantar. Camarões ou lagosta da Florida, ou então salada de caranguejo. Tudo acompanhado de uma garrafa de vinho gelado e de provocações mútuas.
Comiam no pátio. Às vezes pegavam no resto do vinho, em dois copos de plástico e iam passear pela praia. Sentavam-se na areia ainda quente do sol. Viam nascer a Lua, escutavam o murmúrio das ondas, sentiam o cheiro a maresia. Satisfeitos.
Mais tarde, voltavam para casa abraçados. Lentamente subiam até ao quarto e faziam amor devagar. Tudo sonolento e agradável. Conversavam, até que, por fim, o sono chegava docemente.
Tudo isso acabara.
Harry Dancer tenta. Nessa noite de domingo, faz uma salada para ele com fatias de salame com alho. Abre uma garrafa de chablis da Califórnia. Estabelece a rotina. Depois põe a salada no frigorífico. Troca o vinho por um gim duplo com gelo. Leva o copo
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de plástico para a praia. Olha para o céu cheio de nuvens e depois baixa a cabeça.
Pensa no dia anterior. A Sra. Evelyn Heimdall. Mulher encantadora, perspicaz. E tão parecida com Sylvia que ele não conseguia deixar de olhar para ela. Boa jogadora de ténis. Óptimas pernas. Belo corpo.
O marido morreu; ela já passou por uma experiência semelhante. Ao jantar falam sobre a dor e os seus efeitos.
- Uma pessoa aprende - diz ela - que todos os velhos lugares-comuns são verdadeiros. "A vida continua." "O tempo cura todas as feridas." E assim por diante. Mas, mesmo sabendo tudo isso, fica um vazio. Um grande vazio na nossa vida. Não sabemos como preenchê-lo. No entanto, esforçamo-nos por isso.
- Que faz? - pergunta ele, esperançoso.
- A religião ajuda. A fé. É um homem religioso?
- Não especialmente.
- Bom, aquilo que funciona comigo poderá não resultar consigo. Mas devia pensar nisso. Se estiver à procura de uma explicação. Não de uma razão, mas de uma explicação. Pense nisso.
- Está bem.
- Promete?
- Claro. Quer um brande?
Agora, na escuridão da praia, acompanhado de um gim com gelo, tentava pensar nisso. Mas não era capaz. Não conseguia encontrar uma explicação ou uma razão. Apenas acasos. Acidentes. Ausência de sentido.
Se a vida não tem sentido nem propósito... Que fazer, então, que fazer? Homens inteligentes, colhei botões de rosa enquanto puderdes. Restará outra opção?
Acabado o gim, ergue-se com dificuldade. Regressa à casa vazia. O telefone soa no momento em que entra.
- Olá, companheiro - saúda Jeremy Blaine. - Blanche está com uma das suas famosas enxaquecas. Que tal se tu e fôssemos até ao Tipple Inn inspeccionar a mercadoria?
- Está bem - responde Harry Dancer.
Sentam-se na mesma mesa minúscula e pedem duas cervejas. Dancer observa as raparigas que se contorcem nos três palcos.
- Estás à procura de alguém? - pergunta Blaine com um sorriso.
- Estou só a ver as vistas.
- Hum... Que tal aquela morena, ali à direita? Tem uma tatuagem no rabo, acreditas?
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Bebem cerveja de garrafa durante quase uma hora. Grupos de mulheres nuas sucedem-se. Raparigas, na realidade. Jovens, todas elas. Corpos firmes, bronzeados, ostentando marcas de biquini. Há um elemento picante nisto tudo, conclui Dancer. Claro e escuro. Como se fosse bolo mármore.
Finalmente, Sally surge no palco. Rapariga dourada. Sem marcas de biquini. Fulgor total. Longos cabelos louros, que podiam ser postiços mas parecem naturais. A sua nudez total e calva é provocante. Irradia um brilho suave. Oscilações frenéticas, mas graciosas para uma mulher tão grande. Coreografadas.
- Vamos chamá-la outra vez - diz ele.
- Claro - concorda Blaine -, chama-a. Tenho de ir lá dentro e já volto - acrescenta, afastando-se.
O número termina. Dancer levanta-se e acena. Sally vê-o. Sorri. Aproxima-se.
- Outra exibição privada? - pergunta.
Entala duas notas de vinte na liga dela. Ajuda-a a subir para cima da mesa. A pele dela tem o tom das natas batidas.
- Podemos encontrar-nos? - pergunta ele, subitamente.
- Claro - diz ela. - Tens carro?
- Esta noite não. Viemos no carro do meu amigo.
- Não faço duplos - diz ela. - Queres que arranje outra rapariga para o teu amigo?
- Não.
- Então telefona-me amanhã. Pede para falar com Sol. Ele dá-te o meu número de telefone.
- Combinado. Obrigado, Sally.
- De nada - diz ela. E começa a dançar.
Sentado, observa o corpo dela. As coxas e os seios parecem-lhe enormes. Ela acaricia a barriga e as nádegas com um prazer secreto.
- Gostas? - pergunta ela.
- Sim, muito.
Volta a sentir o cheiro a queimado. Excitante.
- Telefonas? - pergunta ela, olhando fixamente para ele.
- Sim, claro.
- Serei boa para ti.
Ele concorda. E quer dizer-lho. Nesse momento, porém, Jeremy Blaine volta para a mesa.
- Eia, eia! - diz ele.
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Norma Gravesend envia outra mensagem para a sede da companhia, via Leonard. O chefe de Operações estuda a transcrição e convoca Anthony Glitner para uma reunião em Washington. Conversam numa sala insonorizada, apetrechada contra escutas electrónicas.
- Tony, temos problemas - diz o chefe. Mete uma Tums na boca. -Além de Sally Abbadon, a agente de campo, e de Shelby Yama, o agente responsável pelo caso, os outros vão mandar vir Briscoe de Atlanta. É o homem que liquidou o nosso agente no caso Miller.
- Merda! - diz Glitner.
- Cuidado com a linguagem - diz o chefe. Asperamente. - É uma indicação da importância que atribuem à operação Dancer. Acho que é melhor respondermos com um dos nossos.
- Chefe, nós não temos ninguém como Briscoe - diz o agente responsável pelo caso.
- Eu sei isso. Sugiro que contrate um dos operacionais locais. Um mercenário.
- Acha que isso é sensato?
- Acho que é necessário. Será um dos outros, é claro, mas será uma verdadeira justiça divina derrotá-los com um dos deles. Diga-lhe o menos possível acerca da missão. Convença-o de que se trata de um caso de droga ou de divórcio, ou qualquer coisa. Tenho a certeza de que conseguirá enganá-lo.
- Tratarei disso assim que voltar.
- Óptimo. Agora, o nosso segundo problema é este: o Departamento sabe que tivemos conhecimento do caso Dancer através de uma fuga na sua organização regional. A toupeira que temos lá dentro comunicou-nos o início de uma investigação à Segurança Interna.
- Isso não é nada bom. Vai retirar a toupeira?
- Não, é demasiado preciosa; precisamos dela. Ela tinha Consciência do perigo que corria quando decidiu colaborar connosco. Mas isso não me preocupa tanto quanto isto: se o departamento sabe do nosso interesse por Dancer, então a fuga tem de partir daqui, deste edifício. Alertei a Contra-Informação e eles já estão a investigar. Tony, tenha muito, muito cuidado. É provável que os outros já tenham conhecimento da sua presença e da sua equipa em Fort Lauderdale. Nada os deterá; o caso Miller deixou isso bem claro. Portanto, vigie a sua retaguarda e avise a sua gente. E reduza as suas comunicações ao mínimo.
- Assim farei, chefe. Agora entendo por que acha que devemos contratar alguém de fora.
Permanecem sentados, reflectindo em silêncio durante alguns
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instantes. O chefe tapa a boca com os nós dos dedos, disfarçando um pequeno arroto.
- Acha que Evelyn Heimdall vai resultar, Tony? Ela parece
estar a avançar lentamente.
- Está a seguir o plano do jogo - diz Glitner. - O esquema
definido está a ser escrupulosamente cumprido. Estabeleceu contacto, passou um dia com Dancer. Fez o lance dela. Hoje está no escritório dele, revendo o seu plano de investimentos. Conto encontrar-me com ela para almoçar ou jantar, ou outra coisa qualquer. É uma mulher muito talentosa, sincera e persuasiva, chefe. Acredita no que está a fazer. Tenho confiança nela.
- Espero que tenha razão. Que tipo de homem é este Harry Dancer?
- Grande. Bem-parecido, com uma beleza rude, porte atlético. Ainda está abalado com a morte da mulher. Magoado, confuso, inseguro. Tornou-se macambúzio, o que é compreensível. Esteve casado durante nove anos e agora está sozinho. Evelyn está a oferecer-lhe solidariedade e companheirismo. É uma mulher muito sólida e não há dúvida de que ele se sente atraído por ela. Ele está a afogar-se e ela está a estender-lhe uma bóia de salvação. Estou muito confiante no desfecho.
Todavia, no avião de regresso a Fort Lauderdale, Anthony Glitner admite para si próprio que não está tão seguro como isso.
é um homem alto, esguio, com mãos tão grandes como as de um jogador de basquetebol. Encantadoramente feio. Nariz de cimitarra, boca ampla, enormes orelhas de abano. Tudo isso, porém, se harmoniza quando sorri. Um sorriso alegre.
Sabe que as pessoas devoradas pela dor agem por vezes de uma forma excêntrica e imprevisível. Mudam abruptamente o seu estilo de vida, abandonam hábitos, assumem uma nova personalidade. Os dóceis tornam-se rufias, estes choram. E todos procuram no excesso uma forma de camuflar a sua angústia.
Glitner teme que Dancer possa estar a cair nessa armadilha: o esquecimento através da intemperança. Se isso estiver a acontecer, o agente responsável pelo caso não está seguro de que a bóia de salvação que Heimdall representa venha a ser agarrada - ou até bem-vinda.
Encontra-se com ela em Lauderdale, nessa noite. Ela relata a reunião com Harry Dancer. Nada de importante. Dancer é cordial, fala vagamente sobre outro jogo de ténis, outro jantar, uma possível ida às corridas. Mas não se compromete.
Glitner comunica a Evelyn os avisos do chefe, pedindo-lhe
cautela com a sua segurança pessoal. Depois confessa-lhe as suas
próprias preocupações quanto à estabilidade emocional de Dancer.
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- Ele pode desatinar - diz ele. - É uma reacção à dor bastante comum. Acho que é melhor pressionar um pouco mais. O departamento está a reunir uma equipa dura e experiente. O nosso trabalho está definido. Consegue encontrar-se com Dancer num... hum... ambiente mais íntimo?
- Se eu pressionar de mais - diz Heimdall -, posso afastá-lo. Tenho a certeza de que há muitas viúvas e divorciadas interessadas nele. Quer directamente, quer através de amigos. Bom, está bem, Tony, suponho que posso convidá-lo para um jantar em minha casa. Ele não terá muitas hipóteses de recusar, sou uma cliente nova. Veremos o que acontece.
- Mal não fará - diz Glitner.
O agente responsável pelo caso, Shelby Yama, era produtor teatral quando foi recrutado pelo departamento. "Recrutado", no entanto, não é o termo exacto. Yama ofereceu-se como voluntário.
É um homem "ito": baixito, gordito, novito. E eléctrico. Os colegas acham que ele toma qualquer coisa, mas não é verdade. É apenas a sua adrenalina. Não consegue estar quieto, não consegue ficar a contemplar o seu próprio umbigo. Mantra não é com ele, tem de estar em acção.
A campanha Harry Dancer é o seu primeiro trabalho importante e não tenciona falhar. Sabe qual é a penalização para o fracasso. O departamento nunca perdoa, o castigo é eterno.
A sua formação e treino levam-no a encarar a procura de Harry Dancer como uma peça de teatro. Tem de haver guiões, cenários, guarda-roupa, adereços. E, evidentemente, análises exaustivas das motivações dos actores. Shelby Yama já conhece a trama. Com sorte, o desfecho será dele.
Requisita uma suite de motel em Pompano Beach, alugada pelo departamento. Redecora-a como um boudoir de três salas. Espelhos no tecto por cima da cama de água, cortinados de seda, almofadas fofas por todo o lado. Nas paredes, nus a óleo e pastel. Cassetes pornográficas para o vídeo.
- Vai trazê-lo para aqui - informa Sally Abbadon. Mostra-lhe a suite, indicando como funcionam os apetrechos da casa de banho.
- Ele vai rir-se - diz ela.
- Claro que vai - concorda Yama. - É um homem inteligente. Vai rir-se para mostrar a sua superioridade em relação a todo este kitsch sexy. Mas isto vai mexer com ele, querida.
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Acredite que vai. Dirá para si próprio, E por que não? Vai render-se a tudo isto. E a si. Será uma maneira de esquecer, é isso que ele quer neste momento: esquecer.
- Parece bom tipo - diz Sally, com tristeza.
- E depois? Isso altera alguma coisa?
- Acho que não.
- Faça o seu trabalho, e este tipo será nosso. Há aqui
microfones que chegariam para equipar o Radio City Music Hall. As câmaras de TV serão accionadas quando ele entrar e você carregar no interruptor para acender a luz do tecto. Entendeu?
- Sim.
- Há erva e cocaína na primeira gaveta da mesa-de-cabeceira, se ele quiser. Creio que não. Aposto que ele vai optar por tomar uns copos. Há bastante champanhe no armário e vinho no frigorífico.
- Pensou em tudo.
- Espero que sim - diz Shelby Yama. - Se não pensei, este espectáculo será cancelado após a primeira representação. Estarei no parque de estacionamento com Briscoe. Num Mercedes preto. Se alguma coisa der para o torto, sabe onde estamos.
- Que pode dar para o torto?
- Nada, espero. Não se precipite. Quero dizer, vá com calma. Não o pressione. Ele pode cá ficar o tempo que quiser, impor o seu próprio ritmo. Concorde com tudo o que ele quiser fazer.
- Está a tentar ensinar-me a fazer o meu trabalho? - pergunta Sally Abbadon.
- Não, querida. Conheço os seus talentos. Só quero que tudo corra bem.
- Vai correr - promete ela.
Harry Dancer aparece pontualmente, às nove horas. Traz uma garrafa de champanhe.
- Gregos trazendo presentes - diz ele, com um sorriso idiota.
- És grego? - pergunta ela. - Acende a luz do tecto.
- Não, é apenas uma expressão. Posso entrar?
Ela vestia um vestido comprido de veludo preto, que a cobria do pescoço aos tornozelos. Um fecho éclair à frente e mangas compridas. Shelby Yama insistira nisso.
- Olhe, querida - dissera ele -, este tipo já a viu nua. Agora você aparece toda tapada, vai ser o fim dele. Começa a imaginar, a tensão sexual aumenta. Quanto mais tempo permanecer vestida, mais frenético ele ficará.
- Provocante? - pergunta Sally.
-Exacto, provocante. Fará que lhe saia fumo dos ouvidos. E a umca coisa em que ele irá pensar é no modo como poderá abrir o fecho. Brinque com ele, como se ele fosse um peixe.
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- Ena! - exclama Harry Dancer, olhando em volta, rindo. - Isto é que é um ninho de amor!
- Gostas? .
- Bom... é diferente. Quem posou para estes quadros? Não foste tu.
- Amigas. E amigas de amigas. Queres tomar alguma coisa?
- Óptima ideia.
- Champanhe?
- Não, está morno. Tens gim? Ou vodca?
- Ambos. Qual deles preferes?
- Um gim com gelo seria óptimo. E tu, também bebes?
- Claro.
Ela dirige-se à kitchenette. Ele olha em volta de novo. Sente-se abafado, sufocado. O ar condicionado está ligado, mas o apartamento parece estar quente, húmido. Toda aquela seda e folhos, os nus nas paredes, cortinados macios. Tudo atravancado, um sem-fim de quinquilharias.
"Que faço eu aqui?", pergunta a si próprio. "Que estou a fazer?"
Afunda-se num sofá. Tão fofo e tão fundo que ele parece estar deitado de costas. Ela traz-lhe a bebida. Enrosca-se no chão aos pés dele. Graciosamente. Segura um copo de vinho branco, que ergue para fazer um brinde, ao mesmo tempo que apoia uma mão cálida sobre o joelho dele.
- A nada - diz ela.
- Apoiado - diz ele, sorrindo corajosamente.
Ele bebe um golo. Estende a mão para tocar os longos cabelos louros dela.
- É verdadeiro? - pergunta. .
- Absolutamente. Queres puxar para ver?
- Não, acredito em ti.
- E natural. O resto condiz.
- Mas rapaste o resto dos pêlos. Não sentes comichão quando começam a crescer?
- Claro que sim - diz ela, rindo. - Queres coçar? Esta conversa íntima incendeia-o.
- Quanto tempo tenho? - pergunta-lhe.
- O tempo que quiseres. Não tenho um taxímetro.
- Quanto?
- O que quiseres dar.
- Isso não é justo - protesta ele. - Não é justo, nem para ti nem para mim.
- Vemos isso mais tarde - diz ela. A mão dela move-se ao longo da coxa dele. - Confio em ti.
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Ele olhara para cima enquanto a vira dançar sobre a mesa, no Tipple Inn. Agora olha para baixo para a ver. Tez translúcida, feições correctas, grandes olhos azuis. Inocência. Juventude.
- Que idade tens? - pergunta ele.
- Duzentos e quarenta e seis - diz ela.
- Não, a sério, que idade tens?
- Perto de trinta.
- Não acredito - diz ele. - Pareces ter dezanove.
- Obrigada - diz ela. - Isso é porque tenho um coração puro.
- Aceito isso - diz ele, deixando que ela decifrasse o significado das suas palavras. - Sally, não estou confortável. Importas-te que passe para uma cadeira mais dura?
- A cama de água é bastante dura - diz ela. - Tira o casaco e os sapatos. Põe-te à vontade. Que tal um pouco de música?
- Como queiras.
Ela põe uma cassete. Ella Fitzgerald canta Cole Porter. Dancer olha para ela, espantado.
- Como sabias? é a minha preferida.
- Minha também.
- És demasiado nova para Fitzgerald e Porter. Ela sorri.
No parque de estacionamento, no interior de um Mercedes preto, Shelby Yama e Briscoe escutam a conversa no seu receptor.
- Acho que está a correr bem - diz Yama. - Não acha?
- Até aqui - diz Briscoe.
- Tenho umas cassetes de vídeo especiais - diz Sally Abbadon a Dancer. - Queres vê-las? Para te inspirares.
- Não - diz ele. - Obrigado. Não preciso. Estou inspirado.
- Bem me parecia - diz ela, desabotoando-lhe a camisa.
- Eia - diz ele -, deixa-me ser eu a trabalhar.
- Se isso te excita - diz ela. Roça ao de leve os nós dos dedos no rosto dele.
Ele abre o fecho éclair, lentamente.
- Oh - diz ele. - Meu Deus!
- Gostas da mercadoria?
- Adoro a mercadoria!
Põe a bebida de lado e baixa a cabeça, leva os lábios aos seios dela. •
- Um maná - diz ele.
Não tenhas medo de me magoar - diz ela. - Sou inquebrável.
Por que haveria de querer magoar-te? Ergue-se da cadeira, trémulo. Despe-se. Ela desembaraça-se
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do vestido já aberto. Deixa-se cair suavemente na cama ondulante, os longos cabelos espalhados sobre as duas almofadas. Inspecciona-o.
- Repara no que te está a acontecer - diz ela.
- Peço desculpa por isso. Ela sorri preguiçosamente.
- Nunca peças desculpa por isso. Tens a certeza de que queres ser tu a fazer o trabalho?
- Tenho.
- E depois será a minha vez?
- Se quiseres. Veremos.
Ele encontra aquilo que procura no corpo dela. A dor desaparece. As recordações esbatem-se. A carne dela é como um narcótico para ele. Um mamilo erecto torna-se um universo e ele sente vontade de morar dentro dela.
- Que perfume é esse? - pergunta ele.
- É especial. Gostas?
- É diferente. Excitante.
- Cheira aqui - diz ela. Com as palmas das mãos, empurra-lhe a cabeça para baixo. - Aí. Encharquei-me de perfume. Gostas?
- Oh, sim - diz ele. Não tem a certeza. O odor é perturbador. É um amante terno, quer dar-lhe prazer. Ela mexe-se suavemente, satisfeita.
- Querido - diz ela. - Tão querido. Adoro-te.
- Isso está no guião? - pergunta Briscoe, no parque de estacionamento.
- Bom... não - reconhece Yama, o agente responsável pelo caso. - Não propriamente. Mas ela está autorizada a improvisar. Tem larga experiência destes casos. Sabe o que está a fazer.
Briscoe não responde.
-; Vira-te - diz Harry Dancer. - Deixa-me beijar as tuas magníficas costas.
Ele escarrancha-se nela. Massaja-lhe suavemente o pescoço, os ombros.
- Mãos mágicas - murmura ela, de olhos fechados. Inclinando-se, percorre as costas dela com os lábios.
- É de mais - diz ela.
Aprendera com Sylvia - a sua falecida mulher. Sabia onde tocar e como tocar. Beija-a e acaricia-a.
- Oh... - murmura ela. - Onde tens andado durante toda a minha vida?
- Durante os teus duzentos e quarenta e seis anos? - pergunta ele, pensando que as reacções dela eram fingidas. Conversa de puta.
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- Exactamente. Tenho estado à tua espera.
- Isto não me agrada - diz Briscoe, à escuta no interior do
Mercedes preto. - Ela está a afastar-se demasiado do guião estipulado.
- Dê-lhe tempo - diz Shelby Yama. - Está só a seguir as
deixas dele.
- Não estou a gostar disto - repete Briscoe. - Acho que ela
está a perder o controlo.
- Acho que agora é uma boa altura - diz Harry Dancer. -
Não achas?
- Oh, sim - diz ela, rolando para o olhar nos olhos. - Por favor.
Os braços dela apertam as costas dele, as coxas musculadas envolvem-no num abraço apertado. Muito juntos, olham-se nos olhos.
A técnica abandona-o. Sente-se livre e planando. Separado da sua natureza racional, encontra o esquecimento de que precisa. Ela segura-lhe o rosto entre as mãos, não fazendo qualquer tentativa para o beijar nos lábios. O corpo dela inflama-se, o perfume torna-se mais intenso. Ela contorce-se em movimentos angustiados, olhos fechados.
Ele está vagamente consciente do calor que se liberta dela. Fogo penetrante. Olhando para baixo, vê a carne dela endurecer, tornar-se rígida. Ela transforma-se perante o olhar dele. O auge da paixão. Lábios repuxados para trás, tornando visíveis os dentes brilhantes. Seios rijos, músculos vaginais pressionando-o de encontro a ela.
Subitamente sentiu-se assustado, sentiu a morte presente. Entrega-se com um soluço. Ela ergue-se ao seu encontro. Ouvem-se gritos breves e agudos...
- Apanhámo-lo - diz Shelby Yama. Com satisfação. Olha para o relógio. - Pouco mais de meia hora. Ele nunca mais será o mesmo. Certo, Briscoe?
- Veremos - diz o outro homem. - Isto é apenas o princípio. Dancer permanece imóvel. Deitado sobre ela, acaricia-lhe o
cabelo e o rosto. Beija-lhe o pescoço.
- Sally - chama. - Sally.
Ela abre os olhos. A carne do rosto e do corpo amolece. A sensação de morte desvanece-se. Olha para ele, maravilhada.
- és realmente tu? - pergunta ela. Ele ri-se.
- Não, sou Jack, o Estripador. É claro que sou eu. Que raio de pergunta é essa? Ela não responde.
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- Estás bem? - diz ele, ansioso.
- Se me sentisse melhor estaria inconsciente.
- Posso tomar um duche?
- Não - diz ela. - Deixa-me dar-te um banho de língua. No parque de estacionamento, os dois homens continuam a
escutar a conversa e os sons durante mais uma hora. Mais tarde, depois de Dancer ter ido embora, Shelby Yama desliga o receptor.
- Óptimo, óptimo, óptimo - diz ele, esfregando as mãos. - Ele está apanhado. Voltará.
- Não sei... - diz Briscoe. - O tom era falso. Há aqui
qualquer coisa de errado.
- Errado? Que poderá estar errado? Ela cumpriu as ordens,
não cumpriu?
- Oh, sim. Ela fez o que tinha a fazer. Mas algumas das respostas dela incomodaram-me. Que é que ela quis dizer com:
"És realmente tu?"
- Não sei - diz Yama, intrigado. - Isso também me
incomodou. Vou falar-lhe nisso.
- Faça isso - diz Briscoe. - Detestaria perder esta senhora.
thony Glitner, o agente responsável pelo caso, descobre o seu mercenário procurando "Agências de Detectives" nas páginas amarelas de Pompano Beach. As primeiras três visitas não são satisfatórias: as organizações são demasiado grandes, demasiado legítimas. Estão mais interessadas em fornecer serviços de segurança do que em fazer investigações pessoais. E não estão suficientemente sequiosos.
Na quarta tentativa, encontra o homem que pretende. Herman K. Tischman, polícia reformado de Nova Jérsia. Suficientemente jovem, no entanto, para que Glitner percebesse que por qualquer razão fora obrigado a reformar-se. Era um homem atarracado e pesado, com sobrancelhas hirsutas. Lábios queimados pelos charutos que tem por hábito mordiscar. E sequioso.
Possui uma agência com um único funcionário perto da Federal Highway. "Especializados em investigações domésticas." Os seus honorários são 100 por dia, para além das despesas.
- Tem licença de porte de arma? - pergunta-lhe Glitner.
- Hum-hum. Mas por que pergunta? Disse que se tratava do caso de um marido infiel. Para que preciso de uma arma?
- Nunca se sabe - diz o agente responsável pelo caso. - O nome do homem é Harry Dancer. Vou deixar-lhe a morada de
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casa e do escritório dele e uma fotografia. Averigue o que ele anda a fazer. Voltaremos a encontrar-nos dentro de alguns dias para decidir o que faremos a seguir.
- Certo - diz Tischman. Morde o charuto apagado. -
Trezentos de avanço seria bom.
Quatro dias depois voltam a encontrar-se.
- Pois é - diz o investigador, folheando um bloco de apontamentos. - O tipo anda no engate. Num motel. A gaja chama-se Sally Abbadon e é dançarina na Tipple Inn. Carne de aluguer.
- Óptimo - diz Tony Glitner. - Era isso que queríamos saber.
- Quer que continue a investigar?
- Sim, sim. Agora não convém parar.
- Certo - concorda Herman K. Tischman. Examina a ponta húmida do charuto mordido. - Disse-me que se tratava de uma possível acção de divórcio. A Sra. Dancer acha que o marido a engana. Você é o advogado dela.
- Exactamente.
- Engraçado - diz Tischman. - A mulher dele já morreu há quase dois meses. Se você é advogado dela, não tem licença para exercer no Estado da Florida. Além disso, enquanto estive plantado no parque de estacionamento daquele motel, vi dois outros tipos de vigilância. Num Mercedes preto. Que se passa aqui?
- Tem a certeza de que quer saber? - pergunta Glitner.
- Claro, já que sou eu que dá o couro: Drogas?
- Não, não são drogas. Este Dancer é o testamenteiro de uma herança de família. Eu represento os filhos do falecido, que estão a tentar provar que Dancer não é moralmente capaz de administrar a herança. São os preparativos para uma acção judicial.
- Quem eram os tipos no Mercedes?
- Não faço ideia. Podiam estar à espera de um amigo. O detective observa-o demoradamente.
- Duzentos por dia - diz ele. - Além das despesas.
- Está bem - diz Glitner.
O agente responsável pelo caso encontra-se com Evelyn Heimdall. Repete o que Tischman lhe disse.
- Os outros ganharam o primeiro round - diz ele, amargamente. - Ev, temos de avançar com isto.
- Não se preocupe - diz ela. - Dancer vem cá jantar hoje.
- Óptimo. Está a aquecer. Pedi informações à sede sobre essa Sally Abbadon. O detective vai tentar obter uma fotografia.
Heimdall inclina-se para a frente e faz-lhe uma festa no rosto.
- Descontraia-se, Tony. Isto é só o começo.
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- Ela dança nua - disse ele, tristemente.
- Nós também temos as nossas armas, não é verdade? - diz ela, rindo.
Harry Dancer aparece no apartamento de Evelyn Heimdall com uma garrafa de Frangelico.
- Gregos trazendo oferendas - diz ele.
- Por que deveria ter cuidado consigo? - disse ela, sorrindo. - Não me mete medo.
- Não? Óptimo. Que apartamento magnífico.
É, de facto. A cinquenta metros da praia, virado para o oceano. Sala, quarto, casa de banho, cozinha. E uma bela varanda virada a leste, suficientemente larga para lá caberem cadeiras e uma mesa de cocktail. Sexto andar.
- Bela vista - disse ele, com entusiasmo, apoiando-se no varandim. - Quase poderíamos mergulhar na água.
- Não, obrigada - diz ela. - Mas repare que ninguém consegue ver a minha varanda. Posso tomar banhos de sol nua.
- Cuidado com os pilotos de helicóptero - avisa ele.
Ele acha o apartamento dela encantador. Claro. Arejado. Muita verga vitoriana. Ventoinha de tecto. Tudo aberto e limpo. Cortinas finas e ondulantes. Uma cesta com fruta. Flores por todo o lado. Chão coberto de mosaicos pretos e brancos, decorado com alguns tapetes orientais poídos.
Ela serve martinis na varanda, acompanhados de minúsculas pernas de caranguejo.
- Não me importava de me mudar para cá - diz ele.
- Por favor - diz ela. - É melhor preveni-lo desde já: esta noite vai servir de cobaia. Fiz um... um quê? Uma espécie de guisado, que inventei. Bocados de peito de galinha, de salsicha picante, camarões pequenos. Tudo isto salteado com alho, cebolinhas verdes, pimentos vermelhos e um pouco disto e daquilo. Com vinho branco em quantidade suficiente para empurrar o arroz.
- Já engordei dois quilos - diz ele. - Só de a ouvir. Quer falar de investimentos, esta noite?
- Francamente não. E você?
- Nem pensar! Já me basta o escritório. Nasceu em Nova Jérsia?
- No Maine. O meu pai era pastor. E, por favor, não me pergunte há quanto tempo é que isso foi; não gosto de pensar nisso.
- Posso adivinhar a sua idade?
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- Se quiser.
- Trinta e oito.
Ela sorri.
- Quase, mas não exactamente. Obrigada pela amabilidade.
- Mais velha?
- Um pouco.
- Tem um aspecto magnífico, Sra. Heimdall.
- Podemos tratar-nos por Ev e Harry?
- Excelente ideia. Onde aprendeu a fazer martinis?
- Não está suficientemente seco?
- Está a brincar? Está perfeito. Recebia muito quando o seu
marido era...?
- Bastante, sim. Adoro cozinhar. Como tem feito com as
refeições desde que a sua mulher...?
- Lá me vou arranjando. Coisas simples. Bife com batatas
assadas. Salada. Esse género de coisas.
- Sente-se só, Harry? - pergunta ela, olhando-o com curiosidade.
- Oh, sim. E você? Ela acena com a cabeça.
- É inevitável.
- Suponho que sim. Tenciona ou espera voltar a casar?
- Não para já. Só depois de recompor a minha vida.
- Não deve estar a falar a sério, Ev. Há muito tempo que não conhecia uma mulher tão estruturada como você. Posso beber outro martini?
- Claro, vamos acabá-lo. Quer mais gelo?
- Vou buscá-lo... se me permite. Deixe-me servi-la.
- O prazer é meu - diz ela. Regressa da cozinha com as bebidas.
- Levantei a tampa do tacho e cheirei. Delicioso!
- Tenho uma garrafa de chablis no frigorífico e uma salada.
- Eu vi e roubei uma folha de endívia.
Ele mexe os martinis e enche-lhe o copo. Acabam de comer as pernas de caranguejo.
- Está uma noite magnífica - diz ela, olhando para o céu. - Quantas estrelas haverá?
- Seiscentos milhões, quatrocentos e trinta mil, oitocentas e catorze. Contei-as todas.
Acho que são oitocentas e quinze - diz ela. Então é porque acrescentaram mais uma.
- A sua mulher - diz ela.
Ele pega-lhe na mão e beija-lhe a ponta dos dedos.
- Obrigado - diz ele. - Foi muito simpática em ter dito isso. Jantam à luz de velas, brancas e tremeluzentes, protegidas
por campânulas de vidro. Sentam-se perto um do outro. Comem,
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falam, riem, descontraídos e confortáveis na companhia um do outro.
- Pensa voltar a casar? - pergunta ela. - Perguntou-me a mim. Olho por olho...
- Cuidado com o que diz - diz ele. - Talvez. Um dia. Não para já.
- É uma atitude sensata. Não se precipite enquanto se sentir só e vulnerável. Quero dizer, não tente duplicar o que teve. Dê tempo ao tempo.
- é um bom conselho. E boa comida. Estou a exagerar.
- Temos de comer tudo. Não há sobremesa, mas podemos beber café e o seu Frangelico na varanda.
- Perfeito - diz ele. - Noite perfeita. E você é perfeita.
- Ninguém é perfeito, Harry.
- Você é o exemplo mais próximo da perfeição que conheço. Lá fora, sentam-se nas cadeiras de plástico branco. Bebem o
café, acompanhado de licor de avelã.
- Amava-a muito? - pergunta ela.
- Muito. Lembra-se da Carole Lombard? Um espírito visionário. Sylvia era assim, sempre optimista. Era tão boa para mim. Tenho tendência para ser rabugento. Ela costumava chamar-me "Rabujo". É verdade, de vez em quando fico sorumbático, e ela conseguia sempre animar-me. Era a luz da minha vida. Parece uma canção pop, não é? Mas é verdade. Nunca lhe ouvi um lamento ou um queixume. Nem quando estava a morrer, e sabia-o. Era uma mulher muito corajosa. Não tenho a certeza de que conseguisse ser tão corajoso. Devo estar a maçá-la.
- Claro que não está, Harry.
- Vamos às corridas - diz ele. - Que tal no sábado? Passávamos o dia juntos, jantávamos em Miami. Não será tão bom como este, mas faremos o melhor que pudermos.
- Adoraria ir. Só preciso de saber a que horas nos encontramos.
- Eu telefono.
Ficam sentados em silêncio. Satisfeitos. Ele segura a mão dela enquanto olham, maravilhados, para o céu estrelado. Brisa acariciante. Ar perfumado. Silvo do mar. A escuridão rodopia. O zumbido de um avião, luz faiscante.
- Obrigado, Ev - diz ele.
- Porquê?
- Por tudo.
São horas de ele se ir embora. Levantam-se com relutância e atravessam lentamente o apartamento envolto em sombras até à porta. Viram-se um para o outro. Ele olha-a fixamente.
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- Sou assim tão parecida com ela? - pergunta ela. - Você disse que era.
- Era. Agora já não a vejo em si. Vejo-a a si.
- Isso agrada-me mais.
- A mim também.
Beija-a nos lábios. Uma vez. Uma pressão cálida, os corpos tensos. Toca-lhe na face.
- Doce - disse ele. - Tão doce.
- Vejo-o no sábado?
- Claro.
- Não se afaste de mim, Harry - implora ela. - Não me abandone.
- Não o farei - jura ele. - Não posso. Ela olha-o nos olhos.
- Promete?
- Juro por Deus Todo-Poderoso - diz, erguendo a mão.
- Isso basta-me - diz ela.
Regressa à casa vazia. Olha-se fixamente no espelho do vestíbulo. Nenhuma alteração. Estranho: julgava que estaria completamente mudado. Não está, de facto, mas a pele está macilenta e o bronzeado está a desaparecer.
- Tenho de apanhar sol - diz em voz alta.
Outra coisa: começara a falar sozinho, o que o incomodava; tentava por isso controlar-se. Podia sempre arranjar um cão ou um gato para lhe fazer companhia. E se começava a falar com o bicho?
- Eia, Rover, esta noite vamos comer hambúrgueres.
- Gostas da minha camisa nova, Tabby?
é isso que acontece às pessoas que estão sós: começam a falar consigo próprias, com os animais, os peixes, os pássaros, as plantas. De outro modo, a voz enferruja. Tal como o cérebro.
Arranja um conhaque pequeno e leva-o para o pátio. Deita-se numa espreguiçadeira, à espera de que o desânimo o invada. Nada disso acontece, porém. Sente-se chocado com o seu próprio contentamento. Inacreditável.
Rememora os acontecimentos dessa noite. O que ele disse, o que Ev disse. Pergunta a si mesmo se pode ir para a cama com ela. Quererá ir? Estranhamente, isso não lhe parece importante, instar com ela, sim. De mão dada. Beijando-a ou não. Estar com ela...
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Por causa de Sally, pensa. Ela consegue resolver todas as suas necessidades sexuais - e mais. Dera-lhe uma nota de 100 e ela parecera genuinamente agradecida. Então, está a pagar por um serviço prestado, não está? Excepto... Excepto...
Que será que o move? A beleza física dela, é claro. Incrível. Irreal. E a sua sensualidade desinibida. O sangue fervia-lhe nas veias. Fez coisas com ela que nunca fizera antes. Nem com Sylvia. E Sally prometera-lhe mais, insinuando truques misteriosos que o derreteriam.
Surpreende-se tomado por uma ponta de vaidade. O galo da capoeira. Duas mulheres espectaculares. Sultão de um harém exclusivo.
Apercebe-se, então, de que é mais do que foder. Realidade ou promessa. Estabeleceu contacto. Duas mulheres com quem consegue falar, rir, provocar e ser provocado. Intimidade. Sim, era isso precisamente. Aquilo que lhe faltava desde a morte de Sylvia.
Que seria a sua vida sem isso? Aquela tensão. Electricidade imediata. O conflito, que é o sal da vida.
Não consegue entender. Intimidade física ou emocional? Ou ambas? É incapaz de definir as suas próprias necessidades. As duas mulheres parecem estruturadas. Firmes e determinadas. Ele, pelo contrário, está em tumulto, procurando conhecer-se a si próprio.
Geme. Desespero cómico. Diz a si próprio que tem tudo, diz a si próprio que não sabe o que quer. Não consegue decidir-se. Tem o espírito tão desordenado como o quarto de motel de Sally. Uma terra de doidos.
Todavia, apesar dessas imperfeições, sente-se satisfeito. A vida é mais do que contas, aquisições e notas de projecto. É um circuito intrincado de relações humanas. E ele sente-se ligado de novo. Para melhor ou para pior.
uma reunião tem lugar na sala de reuniões do director regional. Estão presentes o director, Shelby Yama, o agente responsável pelo caso, Briscoe, a agente Sally Abbadon, Ted Charon, o chefe de Segurança Interna. E a secretária, Norma Gravesend, que toma notas da reunião em estenografia.
- Ted? - pergunta o director.
- Nada de definitivo ainda, senhor. Investigámos todos os funcionários do departamento com conhecimento da operação
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Dancer. Parecem limpos. Estamos a ir mais fundo, evidentemente, mas de momento Jeremy Blaine, o informador, parece ser a nossa melhor aposta. Está ao corrente da operação. Sabe que Sally Abbadon foi designada para o caso e é um tipo extremamente instável. É muito possível que tenha sido aliciado. Gostaria de autorização para o pôr sob vigilância permanente.
- Em vez disso - diz Briscoe -, por que não lhe monta uma
armadilha e vê se ele cai nela? Forneça-lhe informações falsas. Se a companhia reagir, saberemos que Blaine é um deles.
- Excelente ideia - diz o director regional. - Mas que tipo
de desinformação? Alguém tem alguma sugestão?
Silêncio.
- Que tal isto? - diz Shelby Yama. - Dizemos a Blaine que
Sally tem herpes ou SIDA. Se ele for um agente duplo, informará a companhia e eles decerto avisarão Dancer.
- Muito obrigada - diz Sally Abbadon.
- Isso é uma estupidez, Yama - diz Briscoe, rudemente. - Essa hipótese disparatada pode provar que Blaine é um agente duplo, mas também afastará Sally da campanha. E não queremos isso.
- Ah... sim - diz Yama, confuso. - Não pensei nisso.
- Que tal isto? - diz Ted Charon. - Sabemos que a companhia conhece a existência de Sally. Sabem onde ela vive. Dizemos a Jeremy Blaine que ela tem drogas duras em casa. Se os chuis aparecerem para fazer uma busca, saberemos que Blaine informou, ele próprio, a Polícia ou comunicou o facto à companhia, que informou a Polícia.
- Há uma coisa errada nisso tudo - diz Sally Abbadon. - As drogas já lá existem.
- Não há problema - diz Briscoe. - Retiramo-las antes de dizermos a Blaine. Isso agrada-me. Simples e inteligente. Se os chuis aparecerem, Sally, deixe-os virar a casa do avesso. Não encontrarão drogas, mas saberemos que Blaine é um duplo.
- E as cassetes de vídeo porno? - pergunta Sally. - E o restante material picante?
- Tiraremos tudo isso de lá - diz Briscoe. - Temporariamente. Se os chuis não aparecerem, volta tudo à procedência. E se eles aparecerem, fizerem a busca e não encontrarem nada, volta tudo para lá depois de eles se irem embora. Não podemos perder.
Óptimo - diz o director. - Vamos avançar com isso. Sally, Podemos passar ao seu relatório da situação?
Acho que tenho Dancer na mão - diz ela. - Vou estar com ele amanhã à tarde. À hora de almoço dele! Estou a começar a
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queixar-me do trabalho no Tipple Inn. Quero que ele avance com o financiamento. Para me sustentar. Estou a avançar com cautela, não quero assustá-lo. Se ele cair nesta, se aceitar pagar as contas, há-de querer estar comigo mais assiduamente... para compensar o dinheiro que está a gastar. Nessa altura, tê-lo-emos na mão. é este o cenário.
- Vai resultar - diz Shelby Yama. - Já foi feito antes. O Anjo Azul, Emil Jannings cantando como galo enquanto pinta as unhas dos pés de Marlene Dietrich.
Permanecem sentados em silêncio, aguardando a reacção do director. Este olha fixamente em frente, sem os ver. Cabelos brancos arranjados em ondas artísticas. Fato preto, impecavelmente vincado. Olhos leitosos e opacos.
- Está bem - diz ele. - Sigam essas directrizes, mas lembrem-se de que não estamos a lidar com um simplório. Dancer é um homem inteligente e complexo. Enquanto a mulher foi viva, acreditava nas verdades essenciais. Agora sente que a sua vida carece de fundamento; é como se andasse de patins em cima de gelatina. Sente-se confuso, com uma crise de fé temporária. Temos de lhe incutir algo em que acreditar, ou não. Agora quero falar-vos sobre aquilo com que nos defrontamos. A companhia pôs em campo uma equipa extremamente forte. O agente responsável, Anthony Glitner, é um homem experiente. A agente Evelyn Heimdall, um elemento muito capaz. Um agente de comunicações. E, recentemente, Glitner contratou um pistoleiro: um detective privado chamado Herman K. Tischman. Isso não me agrada. Quero que ele seja aliciado ou eliminado. Briscoe, você deve ser capaz de tratar disso. é um ex-polícia que tem uma agência modesta em Pompano.
- Não me parece um problema grave, Sr. Director. Tratarei disso imediatamente.
- Óptimo. Mais alguma coisa? Não? Então vamos trabalhar. Norma, querida, importa-se de dactilografar o relatório para ser codificado e enviado para Cleveland? Se possível hoje mesmo. Eles estão muito interessados nesta operação. Briscoe, importa-se de esperar um instante, por favor?
Os outros saem. O director fecha as portas duplas. Volta para a comprida mesa de reuniões e senta-se na cadeira, ao lado de Briscoe. Olha-o fixamente.
- Qual é a sua opinião pessoal sobre Shelby Yama? - pergunta.
- Um peso-pluma - diz Briscoe. - Está a tratar tudo isto como se fosse uma série de televisão ou um romance em edição de bolso. Não se apercebe da importância que isto tem.
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- é a primeira grande campanha em que ele trabalha.
- Acho que ele vai deitar tudo a perder.
O director regional reflecte sobre estas palavras.
- Pode ter razão - diz. - Não quero perder isto. Ele vai manter o comando, mas tem a minha autorização para intervir sempre que achar necessário. Ele vai continuar com o título de agente responsável, mas a responsabilidade final será sua. Se formos bem sucedidos, você será adequadamente recompensado. Entendido?
- Sim, Sr. Director. Mas talvez seja necessário... afastar Yama. Para bem do departamento.
O director acena a cabeça afirmativamente.
- Consulte-me primeiro - diz.
O chefe de operações na sede da companhia, em Washington, recebe plenos poderes dos seus superiores. Apenas os resultados lhes interessam. Espíritos primários. Recebem relatórios semanais sobre os êxitos e os fracassos conseguidos. Não estão preocupados com métodos ou desculpas. Apenas com números.
Assim, o chefe toma, sozinho, decisões de vida ou de morte todos os dias. Bebe Maalox, devora Tums, reza e pede perdão pela arrogância de comportamento e pelos erros cometidos. Está vivamente consciente da importância dos seus deveres. A má digestão, reconhece, é um preço insignificante a pagar.
Uma questão importante é a última comunicação de Norma Gravesend. Devido à fuga na sede da companhia, o chefe intensificou as medidas de segurança. Leonard viaja para Washington de avião. Entrega pessoalmente ao chefe a mensagem de Gravesend, evitando as transmissões por rádio e contornando os funcionários da criptografia.
O chefe lê o relatório três vezes. Dele constam vários aspectos inquietantes. Um é o facto de o departamento ter conhecimento do pessoal da companhia que faz parte da equipa Dancer. Outro, a circunstância de já saberem da contratação de Herman K. Tischman. E de estarem a preparar-se para o neutralizar.
Todavia, para o chefe, a informação mais urgente prende-se com a investigação iniciada pelo departamento, a fim de descobrir a fuga na organização. As suspeitas recaem sobre Jeremy Blaine, o informador. Foi-lhe montada uma armadilha. Se Blaine sair dela limpo, a investigação prosseguirá. Norma Gravesend poderá vir a ficar comprometida. O chefe não pode deixar que isso aconteça.
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Reflecte sobre o que tem para fazer. Juízo moral. Sacrificar um deles para salvar um dos nossos. Será que tem esse direito? É uma opção ética. Todas as opções o são.
Não tarda muito a decidir. Sabe que a companhia não tolera a inacção. Êxito ou fracasso. Mas fazer qualquer coisa.
Envia uma mensagem codificada a Anthony Glitner: Sally Abbadon tem drogas duras na sua residência. Informar anonimamente a Polícia local.
Briscoe. Ninguém conhece o seu nome próprio. Se é que o tem. É um homem taciturno, curvado e abrutalhado, de olhar agressivo e cabelo cortado como um recruta dos fuzileiros. Lealdade absoluta ao departamento, fidelidade ao topo e às bases. Nunca falhou. É recompensado por isso, mas não lhe atribui qualquer importância. O trabalho é a sua vida.
Diz a Shelby Yama como deve lidar com Jeremy Blaine. Yama almoça com Blaine, entrega-lhe um pequeno bónus pelo "notável trabalho" de ter juntado Harry Dancer e Sally Abbadon. Refere, casualmente, que Sally tem muita droga na suite do motel. Planeia viciar Dancer. Jeremy acena vivamente com a cabeça.
Entretanto, Briscoe limpa a suite de Sally. Dois dias depois, aparecem os chuis. São educados, mas insistentes. Não têm mandado de busca, mas Sally deixa-os entrar. Meia hora depois vão embora, desculpando-se.
- Pronto - diz Briscoe. - Tem de ser Blaine. é ele o corrupto. Telefone-lhe, Yama, e diga-lhe que aguarde um telefonema meu. Um novo trabalho. Mais dinheiro. A partir daí encarrego-me eu do assunto.
Jeremy Blaine fica entusiasmado. Um novo trabalho? Mais dinheiro? Isso agrada-lhe. Briscoe telefona-lhe, depois vai buscá-lo a casa, à meia-noite. Dirige-se para norte pela I-95, num Honda com três anos.
- É o melhor sítio para conversarmos - diz Briscoe. - Dentro de um carro. Se o carro foi verificado, não há hipótese de escuta.
- Yama mencionou a hipótese de um novo trabalho.
- Exacto. Uma coisa em grande. Achamos que será capaz de o executar.
- Eia - diz Blaine -, acredite que sim. Entreguei-vos Harry Dancer, não foi? A ideia foi minha.
- Certo - diz Briscoe. - O departamento tem o seu trabalho em alta conta.
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Acelera o Honda até aos 100. Aguarda o momento certo. Vê-o aproximar-se. Um enorme camião com atrelado que se dirige velozmente para sul, na faixa da esquerda. Briscoe vira o volante e atravessa-se na faixa do meio. Jeremy tem tempo para gritar:
- Eia!
Briscoe embate no camião de frente. O Honda amachuca-se e depois incendeia-se. Blaine tem morte instantânea. Aproveitando a confusão, Briscoe afasta-se na escuridão. Ileso.
O departamento cuida da sua gente.
- Lembras-te dele - diz Harry Dancer a Sally Abbadon. - O tipo com quem eu estava quando te conheci no Tipple Inn.
- Vagamente. Barrigudo? Com uma gravata berrante?
- Esse mesmo. Bom, ninguém consegue descortinar por que razão seguia de carro para Norte na I-95, depois da meia-noite. Num Honda. O carro não era dele, ele tinha um Caddy.
- Talvez estivesse bêbedo.
- Talvez, mas que é que ele estava a fazer ali? Num Honda? O funeral foi esta manhã. Que raio de maneira de começar o dia.
- é melhor beberes um copo.
- Obrigado - diz ele. De bom grado. - Um gim duplo com gelo, por favor. E tu, como estás?
Ela espera que ele lhe traga o gim antes de responder. Estão no motel dela. São duas horas da tarde e ela acabou de chegar da piscina, o corpo brilhante do bronzeador. Traz um biquini em croché, rosa forte.
- Estou bem - diz ela. - Acho.
- Qual é o problema?
- O sítio onde trabalho. É uma chatice. Ganho bem, mas já não suporto os porcalhões. Talvez deva ir para outro lado. Tentar outra cidade.
- Não - diz ele. - Não faças isso.
Toma consciência de um fenómeno curioso. Quando está com ela - só com ela -, a química do seu corpo parece alterar-se. O seu odor corporal altera-se. Sente o suor escorrer-lhe pelas costas e um cheiro que não reconhece. Feromonas? Será uma reacção à ousada sexualidade dela?
- Quanto é que ganhas no Tipple?
- Numa boa semana, consigo fazer mil.. Ele fica calado.
- Posso viver com bastante menos do que isso - diz ela. - Valeria a pena se não tivesse de aturar aqueles porcalhões.
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- Deixa-me pensar nisso - diz ele. - Talvez consigamos arranjar um esquema.
- Isso seria maravilhoso. Podíamos passar mais tempo juntos.
- E eu ia parar aos Cuidados Intensivos.
- Não - diz ela. Rindo. - Eu não te faria isso. Só o que fores capaz de aguentar. E depois um pouco mais. Queres uma matiné? Agora?
- Obridado, Sally, mas acho que não. Ainda estou abalado com o funeral. Meu Deus, a mulher dele... a viúva não parava de chorar. Além disso, tenho de ir para o escritório.
- Tens mais alguns minutos, não tens? Entra e conversa comigo enquanto tomo um duche.
Ele senta-se na tampa da sanita. Observa a nudez do corpo dela por detrás do vidro martelado. A água jorra. A carne cintila. Vê-a dobrar-se, arquear-se. Dourada. Um sonho nublado.
- Estou de folga amanhã à noite - grita ela. - Podemos fazer qualquer coisa?
- Claro, há um novo restaurante italiano na Federal. Ouvi dizer que é bom. Queres experimentar?
- Claro. O que quiseres. Terei oportunidade de me vestir bem. Nunca me viste toda produzida. Não vais ficar desapontado.
Ela desliga a água. Abre a porta. Fica de pé sobre o tapete turco. A escorrer água. Passa-lhe uma toalha.
- Seca-me - pede ela. - Por favor.
É como polir uma estátua. Ele é lento, terno. Quando se inclina para lhe limpar as pernas, ela põe-lhe as mãos nos ombros.
- Em todo o lado - diz ela.
Ele está perto dela. Muito perto. Sente o calor solar que ela liberta. As palmas das mãos dela acariciam-lhe o rosto.
- Harry - diz ela. - Eu...
- Quê?
- Nada.
- Podia telefonar para o escritório - diz ele. - Dizer-lhes que não vou.
- Faz isso - diz ela.
Herman K. Tischman está sentado no parque de estacionamento dentro do seu maltratado Plymouth com 6 anos. As janelas estão abertas, mas ele está a suar. Calcula que Dancer vá
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demorar mais uma boa hora, pelo menos. Que manhã. Primeiro o funeral, agora isto.
Um tipo aproxima-se pelo lado do passageiro. Encorpado, cabelo cortado a direito, na mão um cigarro por acender.
- Tem lume, amigo? - pergunta. O tom de voz é áspero. Tischman procura na algibeira do casaco. Enquanto isso, o
estranho abre a porta do lado do passageiro, deslizando para o assento.
- Olá - diz ele.
O investigador morde o charuto frio.
- Que raio é isto? - pergunta. - Ponha-se...
- Você é Herman K. Tischman - diz o tipo. - Anda a seguir Harry Dancer. Que neste preciso momento está lá dentro a dar uma trancada numa gaja chamada Sally Abbadon.
Tischman tira o charuto da boca.
- Diga-me mais. Diga-me quem raio é você.
- Chamo-me Briscoe.
- Ai sim? Era você que uma destas noites estava dentro de um Mercedes?
- Exacto.
- É DP?
- Uma espécie.
- Também está a trabalhar nesta coisa do Dancer?
- Claro. Acho que podemos fazer negócio.
Tischman está encurralado no canto do banco da frente, do seu lado. Aquele tipo duro está a apertar com ele. O ex-polícia acha que consegue arrumá-lo, mas não tem a certeza.
- Estou a ouvi-lo - diz.
- Está a trabalhar para um tipo chamado Glitner - diz Briscoe. - Calculo que lhe esteja a levar cem por dia. Talvez duzentos. Seja o que for. Isso não me interessa. Continue a trabalhar para Glitner como até aqui. Mas eu dou-lhe mais cem por dia se me der as informações em primeira-mão.
- Isso não é ético - diz Tischman. Briscoe ri-se. Não é um som agradável.
- Pois não. Além disso, quando me passar as informações em primeira-mão, poderá haver certas coisas que eu não vou querer que diga a Glitner.
- Isso vale mais de cem.
- Claro que vale. Mas cem é o que irá receber.
- Nada feito - diz Tischman.
- Tem uma miúda gira - diz Briscoe. - Como é que ela se chama... Mary Jane? Caracóis louros. Espera na esquina pelo autocarro da escola, todas as manhãs. Bonita. E saudável.
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- Seu animal - diz Tischman. Com o medo a borbulhar.
- Fazemos negócio? O detective não hesita.
- Como é que o contacto?
- Eu contacto-o a si - diz Briscoe. Sai do carro. - Adeusinho.
Briscoe dirige-se a uma cabina telefónica. Liga para o escritório. Dá o seu número de identificação e a palavra de código do dia. Finalmente, consegue falar com o director regional.
- Consegui o Tischman, senhor - informa ele. - É nosso.
- Bom trabalho - diz o director. - E gosto da forma como tratou do problema Blaine. Onde está Dancer neste momento?
- No motel de Sally.
- Então está tudo a correr de acordo com os planos.
- Até aqui - diz Briscoe.
- Parece um tanto inseguro. Passa-se alguma coisa?
- Nada de definido, Sr. Director. Apenas uma vaga sensação acerca de Sally Abbadon. Acho que ela pode estar a ceder.
- Ah sim? Isso seria um desenvolvimento bem triste. Detestaria perdê-la passados todos estes anos.
- É exactamente isso que eu sinto, senhor.
- Bom, mantenha-se atento e vá-me informando.
- Assim farei.
O director regional desliga. Vira-se lentamente na cadeira giratória. Olha através da janela de vidros fumados para as torres e faróis de Fort Lauderdale. Mundo sombrio, este, até o sol está esmorecido.
Levanta-se. Passeia de um lado para o outro no seu fato de presidente do Conselho de Administração. Sabe que no piso abaixo ecoam os sussurros de computadores, os ruídos metálicos das teleimpressoras acompanhados do cintilar dos monitores. é a engrenagem de uma organização eficiente: informações, comunicações, serviços secretos, projecções, estimativas - é só pedir. Tudo isso, porém, é insignificante. Para o seu sucesso, o departamento depende de pessoas com a paixão e a determinação necessárias para levar a cabo as suas políticas e a sua filosofia. E as pessoas não são máquinas. São frágeis, imperfeitas, irracionais. Mantêm-se leais apenas enquanto isso servir os seus próprios interesses.
Sally Abbadon, por exemplo. Fiel. Experiente. Competente. Sujeita, porém, a todos os caprichos da espécie humana. Pode desertar a qualquer momento. Virar. Pôr as suas capacidades ao serviço da companhia. é possível.
É até bem possível, divaga o director, que ele próprio possa desertar. Não consegue imaginar em que circunstâncias isso
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poderia acontecer, mas tem a certeza de que os seus superiores em Cleveland admitem essa possibilidade e elaboraram um plano de contingência.
Entretanto, o director regional dirige neste momento cerca de vinte casos em que estão envolvidos pelo menos cem dos operacionais mais competentes. Todas aquelas ambições. Necessidades. Desejos. Ganâncias. Vícios. E ele tem de estar consciente de todos eles. Recompensar os fortes, castigar os fracos. Sempre alerta para a possibilidade da traição, mesmo entre os mais fortes.'
Ajusta o colete, alisa o casaco e endireita a gravata. Inclinan-do-se sobre a secretária, acciona o intercomunicador.
- Norma - chama -, chegue cá, por favor. A secretária entra, de bloco na mão.
- Feche a porta - diz-lhe ele. Ela olha para ele. Vê.
- Quer que a feche à chave, Sr. Director? - pergunta.
- Sim - diz ele. - Feche-a.
Anthony Glitner sabe que, no seu ramo de actividade, o zelo nunca é de mais. Depois de muitos anos como agente de campo e uma década como agente responsável por casos, o seu fervor foi temperado pelo reconhecimento da recalcitrância obstinada de muitos sujeitos. O entusiasmo pela causa da companhia é essencial, mas raramente suficiente para realizar o trabalho.
Trata-se de uma tarefa que exige paciência, subtileza, compreensão pela difícil situação do sujeito. Por vezes, exige também tácticas maquiavélicas. Muitas das horas do curso de formação da companhia são dedicadas a tentar saber se os fins justificam os meios, e em que condições.
Glitner reage a este problema de forma quase totalmente pragmática. Embora fosse incapaz de adoptar os métodos dos outros -jogando com os instintos mais baixos do sujeito -, não se furta a aproveitar-se das fraquezas, falhas e defeitos do sujeito para alcançar os fins que justificam em absoluto todos os meios.
Tem consciência da solidão de Harry Dancer. Períodos de apatia e desespero. Glitner acredita que Evelyn Heimdall lhe proporcionará um paliativo para essas dolorosas ansiedades. Simultaneamente, o agente responsável pelo caso sabe que o departamento está a trabalhar arduamente. Não para fornecer o seu próprio paliativo mas para afogar as angústias de Dancer numa devassidão sem sentido - na pessoa de Sally Abbadon.
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Não se trata apenas de um choque de paixões e crenças, pois isso está presente em todos os combates entre a companhia e o departamento. No caso de Dancer, porém, verifica-se também uma batalha de técnicas: saber se o apelo aos melhores ou piores instintos de um sujeito é a forma mais eficaz de ganhar.
A operação Dancer é, afinal, um teste à velha questão: um ser humano responde mais prontamente ao medo do castigo ou à promessa da recompensa?
Enquanto o agente responsável pelo caso pondera as implicações filosóficas da operação em curso, o sujeito está a sofrer um tipo especial de angústia.
É verdade que a sua dor começou a esboroar-se. Já não é uma dor constante que o atormenta a todas as horas. Acordado ou a dormir. Todavia, os seus breves momentos de felicidade com Evelyn Heimdalí e Sally Abbadon resultaram num novo sofrimento. Culpa.
Pesar e remorso andam de mãos dadas. Teria ele dito "Amo-te" vezes suficientes? Teria tocado o suficiente em Sylvia? Tê-la-ia beijado o suficiente? Teria feito qualquer coisa o suficiente?
Não tinha.
Mas agora, menos de dois meses depois da sua morte, está de mão dada com duas mulheres desconhecidas. Beija-as. Rebola-se sensualmente em lençóis suados. Ainda não disse "Amo-te", mas está a pensar nisso.
- Que tipo de homem és tu? - diz em voz alta. Zangado. Um gim com água tónica ajuda. Plasma. Depois arranja-se
para o seu encontro com Evelyn Heimdalí. Com o desvelo de uma huri. Toma banho, faz a barba, perfuma-se, veste-se. Outro gim, puro desta vez. E sai, trauteando uma melodia alegre.
Ela está à espera dele. Um espanto! Envolta em linho branco. Saia comprida com uma faixa azul, um chapéu enorme. Não tem maquilhagem, mas tem um aspecto luminoso. Parece feliz.
- Espectacular! - diz ele. Beija-lhe a face.
- Para as corridas, então! - diz ela. - Como está bonito. Enquanto se dirigem para sul pela I-95, ele conta-lhe o que aconteceu a Jeremy Blaine.
- Oh, Harry - diz ela. - Que horror. Era um bom amigo?
- Não. Para ser honesto, não era um bom amigo, mas era o vizinho com quem me dava mais, e uma pessoa tenta dar-se bem com os vizinhos. Nem sequer tenho a certeza de que gostava dele, mas aturava-o. às vezes era grosseiro e passava a vida a chamar-me "companheiro". Mas tenho de reconhecer que foi muito compreensivo e atencioso quando Sylvia morreu. Bom... falemos de coisas alegres. Que tem feito?
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A conversa flui sem dificuldade, entrecortada por gargalhadas frequentes. Ouvem música do gravador e relembram letras de canções antigas. Ela sabe a letra toda de With a Song in My Heart. Canta-a numa voz de soprano agradável, mas não forte. Tentam um dueto em Nice Work IfYou Can Get It e desistem, dando risadinhas.
O dia assemelha-se a um soufflé. Macio e cremoso. Céu de madrepérola. O carro rola com as janelas abertas. Sentem o cheiro de coisas doces que crescem. O trânsito flui com uma facilidade inusitada. Chegam ao hipódromo antes da primeira corrida.
- Há um potro na quarta chamado Harry's Chance - diz ela. - Normalmente, não aposto mais de dois dólares, mas vou atirar-me de cabeça no Harry's Chance. Dez dólares.
- Vai perder - diz-lhe ele.
- Não creio - diz ela. Sorrindo.
Não perde, de facto. O cavalo rende um pouco mais de cem.
- Pago eu o jantar - diz ela.
- Não paga não - diz ele. - Que lhe agrada na sexta? Sally's Folly?
- Oh, não. Acabou em último da última vez.
- Vou arriscar cinco dólares.
- Vai arrepender-se - diz Evelyn. Arrepende-se.
Almoçam no clube. Salada César para ambos. Uma garrafa de chablis. Não apostam nas três últimas corridas. Deixam-se ficar sentados, olhando em volta e admirando o espectáculo.
- É a mulher mais bela que aqui está - diz ele. - Todos os homens que olham para si sentem inveja de mim.
Ela põe a mão sobre a dele.
- Diga-me mais coisas - pede ela. A rir. - Não pare agora. Levantam-se depois da última corrida.
- Não tenho fome, ainda - diz ele. - Você tem?
- Depois daquele almoço? Claro que não.
- Que tal voltarmos a Boca e jantarmos por lá? Conheço um sítio onde fazem uns bifes óptimos e que tem uma grande variedade de saladas.
- Como quiser.
Que é, recorda ele, exactamente aquilo que Sally Abbadon lhe disse da última vez que estiveram juntos.
A Kansas City Steak House é na AIA, a norte de Lighthouse Point. Harry entrega, discretamente, uma nota a Sol, o chefe de mesa. Ficam numa mesa de canto. À meia luz. Isolada.
- Muito agradável - diz Evelyn. Olha em volta. - Não tem
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luz em excesso nem é demasiado barulhento. Este cheiro é de alho?
- Espero que não seja o empregado. Gosta de daiquiris?
- Adoro.
- Fazem um daiquiri de morango gelado que é uma maravilha. Servido num copo do tamanho de um aquário. Quer experimentar?
- Tudo - diz ela, olhando para ele.
Jantar sossegado. Cocktail de caranguejo. Mignons mal passados. Batatas assadas com casca com maionese e cebolinhas. Espinafres à francesa com pedacinhos de bacon. Uma garrafa de St. Emilion. E com os filets, à moda da Florida, uma fina fatia de melancia.
Harry Dancer dá por si a contar a história da sua vida. Rapaz do campo nascido em Indiana. Purdue. Harvard para um MBA. Depois Merrill Lynch, em Nova Iorque. Em seguida, o Chemical Bank. Transferido para o departamento de trusts, na Florida. Decisão de trabalhar por conta própria. Dancer Investment Management, Inc.. Um êxito.
- Conheci Sylvia no clube de ténis, em Boca - diz ele. Acaba de comer, limpa a boca e recosta-se. - Onde jogámos. Casámo-nos... quando é que foi?... cerca de seis meses depois. Oh, meu Deus, devo estar a maçá-la terrivelmente. Desculpe.
- Não seja idiota - diz ela. Omitindo que já sabe tudo isso. E mais. - Gosto de ouvir as histórias das pessoas. São todas diferentes.
- E a sua?
- Oh, não, nem pense - diz ela, a rir. - Não estou pronta para me confessar. Ainda não. Além disso, é maçadora, maçadora, maçadora. Sabe o que me apetecia fazer?
- O quê?
- Beber café e depois ir até ao bar. Quero oferecer-lhe um brande. Afinal de contas, eu ganhei com oHarry's Chance.
- Aceito - diz ele.
O empregado do bar, cubano, é solícito. Água gelada à parte. Cinzeiro limpo. Pequenas bases para os copos de brande. Serve Rémy Martin com um floreado. Aguarda.
- Está bom? - diz ele.
- Divino - diz Evelyn Heimdall.
Sentam-se bem juntos em bancos altos. Os joelhos tocam-se e os olhares cruzam-se no espelho prateado por detrás do bar.
- Quer continuar? - pergunta Dancer. - Música? Dançar?
- Não, vamos para minha casa. Tiramos os sapatos e descon-traímo-nos. Bebemos outro brande na varanda. Escutamos o que as ondas bravias têm para dizer.
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- Acho óptimo - diz ele.
No apartamento, ela leva pequenos copos de conhaque para a varanda. Desculpa-se e ausenta-se por momentos.
- Vou mesmo tirar os sapatos - diz ela.
Enquanto ela está ausente, ele tira o casaco e a gravata. Estende-se, satisfeito, na espreguiçadeira. Com a bebida em cima do peito. Olha para o céu inclinado, admirando a dança das estrelas. Diz para consigo próprio que não está a sofrer. Não está a sofrer. Maravilhoso!
Ela regressa envolta num amplo roupão turco, abotoado à frente. Está descalça. Toca-lhe com o joelho.
- Chegue-se para lá - diz ela.
Ele chega-se para o lado. Ela deita-se na espreguiçadeira, junto dele.
- Ainda caímos - avisa ele.
- E depois? - diz ela. - Quero lá saber.
Ele ri-se. Põe a bebida no chão de mosaico. Puxa-a mais para si.
- Não se nos aninharmos - diz ele. - Gosta de se aninhar?
- Adoro aninhar-me. é o meu desporto favorito.
- Depois do ténis?
- Antes do ténis.
Ele beija-lhe a ponta do nariz, pensando que por vezes é óptimo ser idiota.
- Lua cheia - diz ele. - Quase.
- Crescem-lhe os dentes? Pêlos espessos nas costas das mãos? Uiva?
- Como é que sabia?
Ela encosta-se mais a ele, deitados de lado. Entrelaçados, olham fixamente um para o outro. Enlevados. Subitamente, inesperadamente, ele começa a chorar em silêncio. As lágrimas saltam-lhe dos olhos. Tenta afastar-se, mas ela não o larga. •
- Desculpe - diz ele, com a voz entrecortada.
- Não faz mal, Harry - tranquiliza-o.
Ele pega no brande e bebe um grande golo. Inspira.
- Que me terá dado? - diz ele. - Não sei.
Ela acaricia-lhe o rosto. Limpa-lhe as lágrimas com os nós dos dedos.
- Eu passava a vida nisso - diz ela. - A princípio. Passado algum tempo pára.
- Sinto-me um idiota.
- Não. Apenas humano. Afinal não é um lobisomem.
Ele sorri. Segura-lhe no rosto. Beija-a na testa. Nas faces. Nariz. Olhos fechados. Nos lábios.
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- Oh... - murmura ele -, fazes-me tanto bem, Ev.
- Sim - diz ela. - E tu a mim.
- Companheiros de sofrimento.
- Companheiros de esperança.
Ele desabotoa-lhe a parte de cima do roupão. Os seios dela são perfeitos. Bronzeados. Mamilos rosados. Baixa a cabeça. Língua atarefada.
- Não gostas da outra? - pergunta ela. Ele ri-se.
- És o máximo. Adoro a outra. Prova-o.
- Harry - diz ela - que estás a fazer vestido?
- Aqui? - pergunta ele.
- Por que não? Ninguém nos vê.
- Excepto Deus - diz ele, despindo-se.
- Ele aprova - diz ela.
Asheron Cleveland, o contabilista do departamento, um homem viperino, examina os recibos de despesas regionais. Apercebe-se de imediato de que a Região Sudeste ultrapassou o orçamento. Revê as despesas. Verifica que a operação Harry Dancer é responsável pela maior parte do défice.
Finalmente, localiza o presidente na Sala de Guerra, parado em frente de um mapa nacional pendurado numa parede de plexiglass. As luzes assinalam as operações em curso. Os operadores, sentados frente a uma série de consolas, actualizam as informações. Um painel digital gigante mostra o número de campanhas em curso e os êxitos e fracassos diários, semanais, mensais e anuais.
- Poderia dar-me um momento do seu tempo, senhor? - indaga o contabilista. Inclina-se e fala em tom baixo.
- Que é? - diz o presidente, virando bruscamente a cabeça leonina. - Bom, está bem. Que é, Acheron?
- A Região Sudeste ultrapassou em muito o orçamento previsto. Sobretudo devido a uma única campanha. Harry Dancer.
O presidente estala os dedos na direcção do supervisor do piso.
- Nick - chama -, traga-me a situação actualizada de Harry Dancer. Região Sudeste.
Daí a instantes, o supervisor regressa em passo apressado trazendo uma longa listagem de computador. O presidente examina-a rapidamente.
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- Está a progredir bem - diz ele. - Deixe andar.
- Aprova as despesas, senhor? - pergunta o contabilista, nervoso.
O presidente olha para ele.
- Aprovo. Quer uma autorização escrita e assinada?
- Oh, não, senhor, isso não será necessário. Gostaria apenas de chamar a atenção do presidente para o nosso actual problema de cash-flow.
- Não me diga que caminhamos para a falência?
O contabilista ensaia uma gargalhada. O rosto enruga-se num sorriso amarelo.
- Nada disso. O nosso financiamento é mais do que adequado. E as contribuições correntes estão em dia. É só que de momento estamos um pouco em falta no que se refere a dinheiro vivo.
- Esse problema é seu, não é, Acheron? - diz o presidente. - Sei que posso confiar em si para o resolver com eficiência, como lhe é habitual. Posso confiar em si, não posso?
- Oh, sim, absolutamente, Sr. Presidente. Vou já tratar disso.
O contabilista sai precipitadamente. O presidente relê a listagem relativa ao caso Harry Dancer. Caso interessante. Faz-lhe lembrar a sua carreira como agente de campo, agente responsável e chefe executivo do departamento, antes de ter sido promovido ao cargo destacado que agora ocupa.
Embora talvez agisse de modo diferente em algumas coisas, considera que, no geral, o director regional está a trabalhar bem. Aparentemente, a eliminação de Jeremy Blaine eliminara a fuga. Virar Herman K. Tischman fora um verdadeiro golpe de mestre. E Sally Abbadon nunca falhara até aqui. Para além de Briscoe.
Mesmo assim, o presidente está preocupado. Há qualquer coisa que não está absolutamente bem. Conhece o chefe de operações da sede da companhia e sabe como ele é complicado. Já se defrontara com ele antes e sabe como podia ser perigoso subestimá-lo.
Volta a olhar para a listagem. Estuda as acções e as contra-acções.
O presidente é um homem bastante obeso. Senta-se numa cadeira que parece um trono, reforçada com barras de aço. Mexe-se o menos possível. Precisa de ajuda para se levantar. O cérebro, porém, não tem gordura, é magro, duro, preciso.
Volta a chamar o supervisor.
- Nick - diz ele -, quero falar com o director da Região Sudeste. Trate disso.
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Cinco minutos depois, traz o telefone até junto dele.
- O director regional está em linha, Sr. Presidente - diz Nick.
- Chamada segura?
- Claro, senhor.
O presidente espera que Nick se afaste. Não confia em ninguém.
- Director? - diz ele.
- Sim, senhor - responde-lhe uma voz metálica, devido ao dispositivo antiescuta.
- Que é que comemos na última vez em que estivemos juntos?
- Çodorniz grelhada, senhor.
- Óptimo - diz o presidente. O rosto gordo enruga-se de prazer. - Só queria ter a certeza de que não estou a falar com um impostor.
- Muito sensato da sua parte, senhor.
- Director, está a exceder o orçamento.
- Tenho consciência disso, senhor. Creio que a importância da operação Dancer o justifica.
- Concordo, mas tente manter as suas despesas o mais modestas possíveis. Está convencido de que a eliminação de Jeremy Blaine eliminou a sua fuga?
- Estou, Sr. Presidente.
- Eu não estou. Faça a vontade a um velho, director, mas já cá ando há muito tempo. Tenho a sensação de que fomos enganados. Quero que tente outra manobra. Quem é que sabe que o detective da companhia foi virado?
- Tischman? Só Briscoe e eu sabemos disso, senhor.
- Óptimo. Quero que informe todo o pessoal com conhecimento da operação Dancer de que Tischman foi virado. Veremos o que acontece.
Silêncio.
- Director? Ainda aí está?
- Estou, Sr. Presidente. Acha que a fuga continua a existir?
- Creio que é possível.
- Muito bem, Sr. Presidente. Farei o que sugere.
- Não estou a sugerir, director. Estou a ordenar.
- Sim, Sr. Presidente.
- E cuidado com essas despesas - diz o presidente. -A sua única justificação será o êxito.
O director regional reconhece uma ameaça quando ouve uma.
- Compreendo, Sr. Presidente - diz ele.
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- não gosto desse Briscoe - diz Sally Abbadon. - É um chato.
- Bom... sim - diz Shelby Yama. - é um duro. Mas é o trabalho dele. E é bom.
-Não gosto da maneira como ele olha para mim. Mantenha-o bem longe de mim, Shel.
- Vou tentar, querida, mas o tipo tem muito peso. Ele e o director são muito amigos. Para dizer a verdade, não gosto da forma como ele olha para mim. Mas acho que é o estilo dele; desconfia de toda a gente.
- Acha que ele está a trabalhar para a Segurança Interna?
- Pode estar. Mas não temos nada com que nos preocupar, pois não?
Sally Abbadon tinha algo com que se preocupar. No entanto, Briscoe nunca o descobriria, a menos que conseguisse ler-lhe o pensamento.
Estão no quarto de motel de Sally. Yama está a ajudá-la a vestir-se para uma noite com Harry Dancer.
O seu primeiro encontro com ele tinha sido um desastre. Usara um vestido curto e justo com lantejoulas verde-azuladas. Bastante decotado. Sapatos de saltos altos, à puta. Cabelo louro comprido e despenteado, espalhado pelos ombros. Maquilhagem carregada. O olhar dele dissera-lhe que tinha sido um erro. Depois do jantar, levara-a a casa e partira, justificando-se com uma reunião na manhã seguinte.
- Foi demasiado ostensiva - diz-lhe Yama durante a reunião. - Ele pensa em si apenas como a bailarina nua do Tipple Inn. Uma puta. Isso está bem, ele aceita isso... em privado. Mas em público quer uma senhora. O tipo é conhecido aqui, tem de salvaguardar a sua reputação. E se ele se cruzar com um dos seus empertigados clientes enquanto janta com uma bimba que não engana ninguém, dois meses depois da morte da mulher? Cancelavam as suas contas logo na manhã seguinte. Temos de a vestir com elegância. Primeiro, ele não se sentirá embaraçado se for visto consigo. Segundo, vai lembrar-se do que está por debaixo do fato de Miss Boazinha e ficará mais excitado.
- Sabe uma coisa, Shel? - diz ela -, você não é mau tipo. Demoram duas horas a arranjá-la. Cabelo comprido preso em
tranças. Um mínimo de maquilhagem. Vestido leve de chiffon estampado, decote subido. Saia ampla e ondulante. Collants brancos. Sapatos discretos de salto baixo. Yama inspecciona-a.
- Fantástico - diz ele. - Parece que vai a um baile de finalistas. Só precisa de flores. Querida, está perfeita. Vai arrumá-lo.
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- Vou tentar trazê-lo para cá - diz ela. Depois, acrescenta casualmente: - Vão gravar esta noite?
- Não vejo vantagem nenhuma nisso - diz Yama. - Mas Briscoe insiste. Estaremos à espera no parque de estacionamento.
- Divirtam-se - diz ela.
Quando Dancer chega no seu BMW prateado, ela observa a reacção dele e confirma que Yama acertara em cheio.
- Estás linda! - exclama Dancer. - Ia sugerir um bife, mas contigo assim vestida nem pensar nisso. Vamos ao clube, quero exibir-te.
No caminho para Boca Raton ele não se cansa de repetir como ela está bonita, como está feliz por estar com ela, como os amigos dele irão ficar impressionados.
- Vão achar que é desvio de menores - diz ele, a rir. Ela sorri e pousa a mão no joelho dele.
A sala de jantar do clube está na penumbra. Lambris de madeira e veludo vermelho. Velas acesas, flores nas mesas. Sala silenciosa com criados que se movem em bicos de pés, suave murmúrio de vozes. "Boa noite, Sr. Dancer. Muito prazer em vê-lo de novo. Sim, Sr. Dancer. É claro, senhor. Por aqui, por favor. Esta mesa agrada-lhe, Sr. Dancer?"
Ele acena a vários conhecidos. Sally tem consciência da agitação que está a causar. As pessoas viram-se para olharem para ela, as mulheres põem os óculos para a verem melhor.
- Estamos a dar-lhes motivo de conversa - diz Dancer.
- Já reparei. Isso incomoda-te, Harry?
- Se me incomoda? Estás a brincar? Orgulho-me de ti. Pedem martinis Beefeater. Os copos tocam-se.
- A... a quê? - pergunta ele.
- A nós - sugere ela.
- Apoiado.
Estudam as ementas, encadernadas em pele com cordões dourados.
- Têm lagosta do Maine - diz Dancer. - Grelhada, se quiseres. Estás interessada?
- Por que não pedes para os dois, Harry? Gosto de tudo.
- Que dizes a uma salada de carne grelhada? É lombo grelhado no carvão, frio, cortado em fatias muito finas. Com ovo cozido, tomate, rabanetes, cogumelos, alcaparras, pão torrado e muitas outras coisas magníficas. Alface francesa. Queres experimentar?
- Parece espectacular - diz ela com um sotaque arrastado. Imitação do sotaque inglês.
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Ele ri-se.
- Então é isso que vamos comer. Com uma garrafa de Beaujolais novo.
Encomendam. Bebem outro martini. Um amigo aproxima-se. Dancer apresenta Sally Abbadon. Depois doishomens. Um casal. Duas mulheres. São todos apresentados. Conversam por alguns instantes. Sally é tratada cordialmente.
- É encantadora, minha filha - diz uma senhora idosa.
- Muito obrigada - diz Sally, baixando os olhos.
- És um sucesso - diz-lhe Dancer.
- Queres que me dispa e dance nua em cima da nossa mesa? Ele revira os olhos.
- Seria uma malvadez, não achas? Mas que cena! Queres fazê-lo?
- Mais tarde - diz ela. Apalpa-o por debaixo da mesa. - Uma exibição privada só para ti.
Ficam à mesa durante quase duas horas. Bebem café. Depois passam ao bar, em madeira de carvalho. Dancer pede Chartreuse verde.
- Experimenta - incita-a. Ela dá um pequeno gole.
- Que é?
- Bom para os teus males. É feito por monges.
- Monges? Acho que passo. Queres acabar o meu?
- Claro. Que queres em vez disto?
- Queria um DevWs Tail. Se o barman não souber fazer, eu digo-lhe como é.
E diz. Rum, vodca, sumo de lima, grenadina e brande de alperce. Misturado com gelo esmagado e servido num copo de champanhe com uma rodela de limão.
-Tenho de provar isso - diz Dancer. Depois: - Caramba! Se eu bebesse dois desses terias de chamar os paramédicos. Onde aprendeste a fazer isso?
- Oh... - diz ela. - Já me esqueci de quem me ensinou.
Saem de mãos dadas. O empregado traz o BMW. Noite nublada, trovões ribombando à distância, a sul, relâmpagos cruzando o céu.
- Acho que vamos apanhá-la - diz Harry. - Mas provavelmente não durará muito. É só uma borrasca.
- Adoro tempestades - diz Sally. - Tu não gostas? Os trovões, o mundo a estoirar.
- És estranha. Pensei que gostasses de sol quente e de praias brancas.
- E gosto, mas as tempestades também são agradáveis. Uma
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das minhas fantasias é vaguear nua debaixo de uma tempestade. O vento roçando na minha pele. Sentir-me encharcada.
- E ser atingida por um raio.
- Eu não - diz ela. - Sou indestrutível. Seguem em silêncio. A chuva começa a cair.
- Para onde? - pergunta ele.
Ela reflecte durante alguns instantes. Pensa em Yama e Briscoe no parque de estacionamento.
- Para minha casa não - diz ela. - E para a tua? Nunca a vi. Pode ser?
- Claro - diz ele. Mas não tem a certeza. Na cama dele? Na cama de Sylvia? - Vamos - diz ele.
Quando chegam à casa de praia, as ruas estão inundadas. Os raios riscam os céus. Os trovões envolvem-nos. Estaciona o carro no abrigo.
Na AIA, Herman K. Tischman pára o carro desconjuntado na berma esponjosa. Desliga os faróis e o motor. Abre ligeiramente a janela. Tira o invólucro a um charuto barato. Começa a mascar, observando a casa.
- Conseguimos - diz Harry Dancer. - Foi por pouco. Mais cinco minutos e ficávamos atolados. Espero que haja energia.
- Há, sim - diz ela.
E há, de facto. Ele acende um candeeiro da sala de estar. Ela olha em volta.
- Linda - diz ela. - Não me importava nada de me mudar para cá.
- Por favor, muda - diz ele. No tom mais ligeiro que consegue. - Foi a minha mulher que a decorou. Tinha bom gosto.
- Não há dúvida de que tinha. Para onde dão aquelas portas de vidro? Para uma piscina?
- Não, não tenho piscina. Parece idiotice, estando a cem metros do oceano Atlântico. Lá fora é o pátio. E o jardim.
Ela encosta o nariz ao vidro. Olha para a escuridão varrida pela chuva, que bate contra as portas.
- Vizinhos próximos? - pergunta ela.
- Não demasiado perto. Há muita privacidade. Arbustos e palmeiras anãs de ambos os lados.
- Então não me vêem.
- Não te vêem como?
- Nua, aos saltos, no teu jardim.
- Oh, meu Deus - diz ele -, estavas a falar a sério.
- Quero fazê-lo, Harry. Por favor, deixa-me.
- Claro - diz ele. Não muito satisfeito. - Vai lá. Mas não estejas à espera de que te acompanhe.
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- Tenho de tirar esta roupa. Estou de cinta. Acreditas? E está a dar cabo de mim.
Começa a desentrançar o cabelo. Ele vai à cozinha. Tira a garrafa de Tanqueray do congelador. Serve-se de uma boa dose. Bebe-a de pé junto do lava-louças, enquanto pensa no que lhe está a acontecer. Duvidando do que está a fazer.
Leva o resto da bebida para a sala de estar. Ela está junto das portas de vidro, mexendo na fechadura. O cabelo louro cai-lhe pelas costas musculadas. Nua, parece ter o dobro do tamanho. Tudo nela é vital e impaciente.
Ele destrava a fechadura. Abre a porta. Ela corre para a tempestade, soltando gritos. Ele fecha a porta. Fica a olhar. Tudo o que consegue ver é um fantasma saltitante. Cabelo ao vento. Um espectro pálido na escuridão. Ela está aqui, ali, em todo o lado. Depois desaparece.
Um som de um trovão sobressalta-o. Um tiro de morteiro mesmo por cima da sua casa. Do seu jardim. O relâmpago seguinte ilumina-a, imóvel. De braços abertos. Com o rosto virado para a chuva.
- é doida - diz ele, em voz alta.
Vai à casa de banho do rés-do-chão. Traz toalhas e o pesado roupão turco de Sylvia. Com o monograma SD na algibeira. Volta para junto das portas de vidro e aguarda.
Finalmente, ela atravessa o pátio a correr. Ele abre-lhe a porta. Ela entra, gritando de satisfação. Cabelo ensopado. Corpo a escorrer. Ele embrulha-a em toalhas e começa a esfregá-la. Depois veste-lhe o roupão. Ela seca o cabelo com uma toalha.
- Tens frio? - pergunta-lhe ele.
- Foi magnífico - diz ela. Ainda entusiasmada. - Absolutamente magnífico. A chuva parecia picadas de alfinetes.
- É melhor tomares uma bebida - diz ele. - Brande?
- Qualquer coisa.
Serve-lhe um pequeno Courvoisier. E outro gim para si próprio. Quando leva a bebida para a sala de estar, encontra-a sentada no chão. Com as pernas nuas afastadas, continua a secar o cabelo. Senta-se no sofá perto dela, segurando as bebidas.
- És do tipo selvagem - diz ele.
- Há uma hora atrás disseste que era estranha.
- E és. Estranha e selvagem.
- Acho que era - diz ela, sorrindo para ele. - Quando era nova.
- Quando eras nova? Essa é boa. E que és agora... antiga?
- Ficarias admirado - diz ela.
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Ela levanta-se. Atira a toalha para o lado. Enrosca-se no sofá perto dele. Pega na bebida. O roupão abre-se. Ele olha para baixo.
- Bonito? - pergunta ela.
- Muito bonito- diz ele, Deslocando o braço por cima dos ombros dela.
- Harry, tens pensado nisso?
- Em quê? - diz ele, embora saiba de que se trata.
- Em tirares-me do Tipple Inn.
- Não posso dar-te mil por semana, Sally.
- Não espero que dês. Quinhentos?
Olhando para ela...
- Está bem - concorda. - Vamos experimentar. Qualquer um de nós pode cancelar o acordo, a qualquer altura sem ter de dar explicações. Certo?
- Claro - diz ela. - Aceito. Queres que me mude para cá?
- Não - diz ele. - Não pareceria bem. Fica onde estás.
- Mas posso cá dormir, não posso? Ocasionalmente.
- Claro.
- Como esta noite, por exemplo?
O cheiro a cinzas que ela exala é mais intenso. Doce.
- Sim - diz ele. - Como esta noite. "
- Bom brande - diz ela, bebericando. - Queres provar? Molha um dedo no líquido. Humedece os mamilos. Obriga-o a baixar a cabeça.
- Prova - ordena ela. Ele obedece.
- Que há lá em cima? - pergunta ela.
- Quartos.
- Então? •.
Sobem as escadas lentamente. De mãos dadas. Ele puxa para trás os lençóis e os cobertores da cama. A cama de Sylvia. Depois desce os estores.
- Deixa a luz acesa - pede ela. - Gosto de ver. - Depois acrescenta: - Esta noite deixa-me ser eu a trabalhar, está bem?
- Não, quero ser eu a trabalhar.
- Então trabalhamos ambos.
- Começo eu - diz ele. A rir.
- Não, eu primeiro - diz ela.
Ela agacha-se por cima dele. Passa o cabelo molhado pelo corpo dele, acariciando-o ao de leve e observando as reacções dele. Ele estende os braços na direcção dela. Puxa-a para si. Inesperadamente, ela beija-o nos lábios. Suavemente. Ternamente. Depois afasta-se.
- Harry - diz -, acho que tenho um problema.
- Qual é?
- Amo-te.
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O chefe de Operações da companhia dispõe de uma sala privada, contígua ao gabinete. Pouco maior que um quarto de vestir. Austera. Mobilada apenas com um oratório antigo. Corre o boato de que dorme lá a sesta.
Não dorme. Todavia, é no interior desse esconderijo à prova de som que ele medita. Joga xadrez mentalmente, planeando jogadas que o mantenham à frente dos outros. Por vezes, sofre cheque-mate e aceita a derrota. Ou fica-se por um empate.
Mas não no caso de Harry Dancer. Ainda não.
As últimas informações têm sido intrigantes. Norma Gravend comunica que todo o pessoal adstrito à operação Dancer foi informado de que Herman K. Tischman, o detective contratado pela companhia, foi virado.
No interior do seu refúgio, dolorosamente ajoelhado, o chefe reflecte sobre a importância disto. Compreende o recrutamento de Tischman. Faz sentido transformar em agente duplo um dos peões do opositor. Mas porquê anunciar publicamente a corrupção? Tais vitórias são normalmente reveladas apenas numa base de confidencialidade.
O chefe tenta penetrar no espírito maquiavélico do pesado presidente do departamento. Que é que aquele elefante diabólico anda a tramar? Que é que ele espera ganhar informando tanta gente sobre a deserção de Tischman?
É claro! O presidente não está convencido de que a fuga na sua Região Sudeste tenha sido solucionada com a eliminação de Jeremy Blaine. Está a montar uma armadilha. Agora, se Tischman for apanhado, o presidente ficará a saber que ainda existe um traidor na sede regional. A Segurança Interna deles retomará as investigações.
Assim, para proteger Norma Gravesend, será necessário que o chefe garanta que Herman K. Tischman continua em funções. Como fazê-lo? A resposta parece óbvia: Tischman foi virado uma vez; pode ser virado uma segunda. Agentes duplos e triplos não são assim tão invulgares. Quando um homem deserta uma vez, pode ser manobrado como um moinho. Impulsionado pela pressão mais forte.
Chama Anthony Glitner a Washington. O agente responsável fica chocado ao saber da traição de Tischman. Os dois homens discutem a forma de lidar com o detective privado.
- Vamos largá-lo - sugere Glitner. - As suas informações sobre as actividades de Dancer são valiosas, mas se ele foi virado, não podemos confiar nele. Pode estar a fornecer-nos informações falsas.
- Sem dúvida - concorda o chefe. - Mas, se o eliminarmos,
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poremos em perigo a nossa toupeira no departamento. Como acha que eles viraram Tischman?
- Dinheiro - diz o agente. - O homem é ganancioso.
- Suspeito de que tem razão. Mas o nosso orçamento já está esticado ao máximo; não temos margem para continuar a subir a parada.
- Bom, então...
- Esse Tischman tem família?
- Sim, senhor. Mulher e uma filha. Com cerca de doze anos. Chama-se Mary Jane.
O chefe segura uma embalagem de Tums, tentando abri-la.
- Há uma manobra que utilizámos em casos anteriores semelhantes a este. Com elevado índice de êxito. Chama-se doença fatal. Já alguma vez a pôs em prática?
- Não, chefe. Não sei qual é.
- Eu explico. Pode achar que é cruel, até mesmo imoral. Mas ninguém morre. Embora envolva um certo... desconforto. Creio que poderá trazer o Sr. Tischman de volta ao rebanho.
Explica, resumidamente, como se joga a doença fatal. O agente toma notas.
Quando o chefe termina a exposição, Glitner fecha o bloco de apontamentos.
- Como o senhor disse, é uma manobra um pouco mesquinha, mas estou disposto a experimentá-la.
- Um dos seus homens pode fazer de curandeiro?
- Willoughby, o nosso homem das comunicações. Tem pedido para ter um papel mais activo. Acho que ele poderia sair-se bem.
- Óptimo. Diga-lhe que, se correr tudo bem, isso constará da ficha dele. Ele quer ser agente de campo?
- É essa a sua ambição.
- É a oportunidade dele. Monte o cenário assim que chegar à Florida. Tony, está satisfeito com o desempenho de Evelyn Heimdall?
- Absolutamente, chefe.
- Óptimo. Mantenha-me informado. Quero ganhar este caso.
- Eu também, senhor.
A morte de Sylvia deixou-o entorpecido. Com os sentimentos confusos, pensamentos efémeros. Considera-se um homem racional e resolve não tomar decisões acerca da sua vida pessoal enquanto se sentir corroído pelo sofrimento e com as emoções baralhadas. Sabe que está temporariamente incapaz de pensar em termos lineares, até mesmo de imaginar qual poderá ser o seu futuro.
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Todavia, agora havia Sally Abbadon e Evelyn Heimdall. Não acredita que seja apenas a solidão que o impele para os braços delas. é verdade que elas são um refúgio, mas são também um escape. E um desafio para o levar a reflectir sobre o modo como pretende ordenar os anos que lhe restam.
Não é uma decisão que tenha de ser tomada imediatamente. Impõe a si próprio um tempo de espera, de ponderação, de avaliação. Para pensar.
Ao mesmo tempo, uma dúvida persegue-o. Será que esta contemporização é fruto do medo? Medo de que outra relação íntima, pessoal, permanente possa terminar tão tragicamente como o seu amor por Sylvia? Às 03.30 da manhã, completamente acordado, escuta as ondas quebrando na praia e pergunta a si mesmo se estará arrumado. Emoções esgotadas. Incapaz de voltar a ter sentimentos profundos.
Tenta comunicar tudo isto a Sally Abbadon. Ela olha para ele.
- Estás com os tremeliques - diz ela. - Com miúfa. Passas demasiado tempo sozinho. A matutar. Harry, tens de começar a viver. A divertir-te. Sei exactamente do que precisas.
Ela é versada em todas as artes sensuais. Sabe em que botões deve carregar. Que gatilhos deve premir. Lenta e pacientemente, transporta-o para um mundo de delícias. Ele segue-a de bom grado. Aí não há dúvidas. Não há perguntas. Apenas exaustão física e abençoado esquecimento.
Não sabe se é prazer ou dor. Por vezes, a paixão dela parece-lhe excessiva, à beira da histeria. Ele não consegue acreditar que ela esteja a fingir, que esteja a fazer o seu truque de puta. As putas não desatam a chorar, nem se agarram desesperadamente aos homens. Ele tenta compreendê-la, mas não consegue.
Quando menciona a sua confusão interior a Evelyn Heimdall, ela escuta-o atentamente. Todavia, não lhe prescreve nenhum remédio rápido.
- Não sejas tão duro contigo próprio - aconselha ela. - Estás a passar por um período de reajustamento muito difícil. Neste momento, não sabes o que queres. Nem sequer quem és.
- Não consigo controlar-me - diz ele. - Não quero lamentar-me, mas estou completamente desnorteado. Nada é claro. Nada é sólido.
- Hás-de sair disso - diz ela. -Acredito realmente que sim. Lembras-te do que eu te disse acerca da fé? Olha que ajuda, Harry.
- Por onde começo? - pergunta ele, soltando uma risada idiota.
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- Vamos dar um passeio pela praia. Está uma noite tão agradável. Conversaremos apenas.
- Está bem - diz ele. - Talvez isso me ajude a descontrair. Ela é forte, ponderada. Tudo o que ela lhe diz faz sentido. Ele
sempre encarara a fé como uma aceitação cega.
- É um jogo, Harry - diz ela. - Ou, se preferires, um teatro. Um papel a desempenhar. A fé é como a cortesia. Um faz-de-con-ta. É muito difícil ser-se educado e cortês para com estranhos. Ou para com pessoas de quem não se gosta e que não somos capazes de respeitar. Mas, sem cortesia, a vida torna-se má e bruta. E sem fé torna-se nada. Sem sentido. E só uma questão de cumprir tempo, como uma pena de prisão.
- Não creio que consiga fingir ter fé. Em nada. Ela sorri.
- Olha que te irias surpreender. Torna-se um hábito. Como respirar. Inconsciente. Automático. Passado algum tempo, uma pessoa deixa de questionar, aceita simplesmente. Depois passa a ser uma presença constante.
- Estás a tentar converter-me?
- Acho que lhe podes chamar isso. Estás claramente infeliz. Quero que sejas feliz. Isso é assim tão terrível?
- Claro que não é terrível - diz ele, pegando-lhe na mão. - Agradeço o que estás a tentar fazer, mas não creio que esteja preparado para isso.
- Vou continuar a chatear-te - avisa ela.
- Continua. és a chata mais querida que alguma vez conheci. Estás a ficar cansada? Queres voltar?
- Acho que sim.
- Podemos tomar uma bebida fresca no pátio - sugeriu ele.
- E depois?
- Deixaremos a natureza seguir o seu curso.
- Excelente ideia - diz ela. - Queres que passe cá a noite?
- Sim, por favor. Esta noite não quero estar sozinho.
- Não estarás. Nunca.
A reunião corre mal. Briscoe é um touro selvagem; está sempre a investir.
- Por que foi para casa dele? - pergunta a Sally Abbadon, pela terceira vez. - Por que não o levou para o seu motel? Sabia que Yama e eu estávamos à espera no parque de estacionamento. Queríamos gravar tudo.
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- Já lhe disse - diz ela. - Ele insistiu para que fôssemos para casa dele. Se eu o tivesse contrariado, a noite teria acabado ali mesmo.
- Faz sentido - diz Shelby Yama.
- Não - diz Briscoe -, não faz sentido. Sally, você afirma que tem Dancer na mão, que ele fará o que você quiser. Então?
- Que diferença é que isso faz? - diz Sally. - Ele quis que fôssemos para casa dele. Fomos. Fodi-o até à exaustão. E consegui arrancar-lhe o compromisso de me tirar do Tipple Inn. De me sustentar. Quinhentos por semana. Era isso que queriam, não era?
Briscoe olha-a fixamente.
- Se Tischman não nos tivesse avisado, não saberíamos onde estavam. Teríamos ficado sentados naquele maldito parque de estacionamento toda a noite. A partir de agora, obedeça às ordens... escrupulosamente.
Ela faz-lhe uma continência trocista.
- Sim, senhor! - diz ela. - Vou estar com ele esta noite e tenho de me vestir. Posso ir-me embora? - acrescenta.
Briscoe deixa-air. Fica sentado, coçando o couro cabeludo com os nós dos dedos.
- Não me agrada - diz a Yama. - Ela está a mentir. Acho que pode estar a envolver-se pessoalmente.
- Sally? - pergunta o agente responsável. - Nunca! Conhece o currículo dela. Há quanto tempo é agente de campo. Nunca falhou.
- Há sempre uma primeira vez - diz Briscoe. - Há muita coisa em jogo nisto, Yama; todos os cuidados são poucos. Quero que... - Cala-se subitamente. - Não - diz ele -, deixe lá. Eu próprio trato disso.
Encontra Herman K. Tischman no seu gabinete. O detective privado está ao telefone. Desliga. Vira-se para Briscoe. O rosto lívido.
- A minha filha está doente - diz ele. - Febre muito alta. Foi a minha mulher que me telefonou. Diz que o médico quer internar Mary Jane.
- Chato - diz Briscoe. - Onde está Dancer?
- No escritório. Nunca sai antes das seis.
- Vai esperá-lo a essa hora?
- Bom... quero ir ao hospital. Ficar lá um bocado. Mas, sim, estarei à espera dele às seis.
- Okay. Agora, duas coisas... Primeiro, quando fizer o seu relatório a Glitner, não quero que diga nada acerca de Sally Abbadon. Tanto quanto sabe, Dancer já não anda com ela.
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O IP tira o papel celofane a um charuto novo. Morde-o.
- Glitner não achará isso estranho?
- Que é que isso tem de estranho? Vai achar que Abbadon é uma puta. Dancer passou algumas noites com ela e depois pô-la a andar. Faz sentido.
- Mas que raio se passa aqui? - exclama Tischman. Briscoe olha para ele irado.
- Agrada-lhe o dinheiro, não agrada? Precisa do dinheiro... a sua filha está no hospital e tudo isso. Portanto, não faça perguntas. A segunda coisa é esta: quero a casa de Dancer sob escuta. Escutas no telefone que captem chamadas e conversas no interior. Sobretudo no quarto. Conhece algum técnico que possa fazer isso?
- Bom, sim, conheço uns tipos. Mas vai custar dinheiro.
- Não achei que fosse de graça. Quero isso feito o mais depressa possível. Amanhã.
- Vou tentar - diz Tischman.
- Vai ter de fazer melhor do que isso - diz Briscoe. - Trate disso.
Dois dias depois, o estado de saúde de Mary Jane piorou. Não está a reagir aos antibióticos. Arde em febre. Está envolta em gelo, mas os médicos não conseguem controlar a temperatura. Já não dizem: "Grave". Agora dizem: "Crítico".
Anthony Glitner chega ao escritório de Tischman precisamente no momento em que o investigador vai a sair.
- Não posso falar consigo agora - diz o detective. - Tenho de ir ao hospital.
- Ao hospital? Que se passa?
- É a minha filha. Está muito mal.
- Lamento. Que é que ela tem?
- Acha que alguém sabe? - pergunta Tischman. - Esses médicos todos que ganham rios de dinheiro não conseguem fazer nada. Ela está a morrer e a única coisa que dizem é: "Vamos tentar isto" ou "Vamos tentar aquilo". Nada resulta. Meu Deus! Mary Jane tem doze anos. Se ela morre, a vida da minha mulher ficará destruída. E a minha também.
- Isso é terrível - diz Glitner. - Ouça, se os médicos desistirem em relação à sua filha, dê-me uma telefonadela. Conheço um homem que tem tido êxitos espantosos com casos como esse.
- A sério? Um médico?
- Não propriamente. Não é licenciado. Não pode exercer Medicina. Intitula-se curandeiro. Curandeiro pela fé, mas resulta.
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- Que é que ele faz?
- Porá a mão na testa de Mary Jane e dirá uma oração. Sei que isto não parece grande coisa, mas resulta. Além disso, que tem a perder?
- Sim, tem razão. Deixe-me falar nisso à minha mulher. Esse tipo cobra?
- Não muito. Poderá pagar-lhe sem problema.
Na manhã seguinte, Glitner recebe uma chamada desesperada de Herman K. Tischman. O investigador está a chorar.
- Ela está a morrer - informa ele. - Em coma. A minha Mary Jane. Os médicos não podem fazer nada. Pode trazer cá esse tipo que conhece? O curandeiro?
- Vamos já para aí - promete Glitner.
Willoughby é um homem alto. Magro. Desajeitado. Com uma maçã-de-adão saliente. Veste fato preto, camisa branca, gravata preta. Traz uma Bíblia debaixo do braço. Cheira vagamente a incenso.
- Deixem-no entrar - diz o médico residente. - Deixem-nos entrar todos. Tudo o que lhes der conforto.
Tischman, a mulher, Glitner, Willoughby - todos eles rodeiam a cama de Mary Jane, olhando fixamente para a figura imóvel. O curandeiro põe a mão na testa da criança.
- Senhor Deus - entoa ele -, escuta a minha prece.
Os seus lábios mexem-se. Estão todos em silêncio, cabeça baixa. Passados alguns momentos, Willoughby retira a mão. Encosta a Bíblia aos lábios ressequidos de Mary Jane.
- Está feito - diz ele.
Glitner e Willoughby sentam-se pacientemente na sala de espera. Uma hora. Quase duas. Depois Herman K. Tischman entra a correr, com uma expressão radiante.
- A temperatura dela baixou - grita ele. - Vai sobreviver. - Agarra-lhes nas mãos. Não as larga. Depois abraça Willoughby. Começa a chorar. - Ela está bem. O médico diz que vai ficar boa. A febre baixou. Obrigado, obrigado, obrigado. Como é que alguma vez vos poderei pagar?
- Eu digo-lhe - diz Anthony Glitner.
sede, em Cleveland, o presidente do departamento acompanha os desenvolvimentos do caso Harry Dancer com imenso interesse. Tischman continua ligado ao caso. Portanto, o presidente parte do princípio de que a fuga na Região Sudeste foi realmente tapada com a eliminação de Jeremy Blaine.
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Isso é bom. Mau é a incerteza de Briscoe em relação a Sally Abbadon. O presidente conhece muito bem a importância do agente de campo. Ele ou ela é o pivô essencial em torno do qual gira toda a operação. Se Sally foi comprometida - pela companhia ou pela sua própria fraqueza - a campanha Dancer está perdida.
O presidente aprova a despesa para colocar escutas na casa de Dancer. Decisão inteligente. Deve provar ou não provar a validade das dúvidas de Briscoe. Aparentemente, está tudo a correr bem. Todavia, o homem gordo não consegue livrar-se da irritante suspeita de que está a ser ultrapassado por aquele filho da puta na sede da companhia.
Irrita-o a distância que o separa do local de acção. A sua longa experiência no terreno diz-lhe que os relatórios operacionais são frequentemente falsificados, exagerados ou apenas incompletos. O agente sabe o que está a acontecer. O agente responsável pelo caso sabe uma parte disso. E a sede é informada de uma parte disso. As informações tornam-se mais escassas, à medida que sobem na hierarquia.
O presidente, sentado em frente do mapa de guerra no seu trono reforçado, retesa os lábios grossos e reflecte sobre o caso de Harry Dancer. Depois estala os dedos para chamar o supervisor do piso.
Envia uma mensagem codificada ao director da Região Sudeste, solicitando um relatório sobre qualquer elemento invulgar, estranho ou inesperado nas vidas privadas das pessoas envolvidas na acção Dancer.
Não é muito, reconhece o presidente, mas é a única coisa que de momento pode fazer para acalmar os seus receios. Cobrir todas as bases. Se tiver de perder, não será por falta de empenhamento. Não deseja comunicar um fracasso, por inacção, aos seus superiores. Sabe quais são as consequências.
Harry Dancer não consegue entender Sally Abbadon, não está sozinho: ela tão-pouco consegue entender-se a si própria.
Reconhece o que está a pôr em risco. Juventude eterna. Beleza. A excitação do mal. Ela pressente, porém, algo vibrante, algo que ela não consegue definir. Um vago anseio. Um desejo de... de quê?
Perscruta o rosto de Harry Dancer, tentando encontrar aí a resposta. Ele é bonito, mas ela já conheceu homens mais atraentes. É um bom amante, mas ela já conheceu melhores. É afável,
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gentil, atencioso. Já corrompeu uma centena de homens com as mesmas qualidades. Então que é?
Não sabe. Não consegue dar-lhe um nome. Desiste de tentar. Todavia, a química existe. Seduzindo-a. Uma suavidade quente. Um indício de algo melhor. Não arrebatador, mas satisfatório. E perigoso.
Pergunta a si própria se não será apenas tédio. Cansaço da monotonia da sua vida. Talvez devesse pedir transferência antes de se expor a situações de perigo. Até mesmo umas férias. Isso renovaria a sua determinação. Duvida. Tem consciência de um movimento lento e profundo. Um deslize e depois o tremor de terra. Umas férias não o podem travar.
Tem consciência das dúvidas de Briscoe. Aquele homem frio suspeita de que algo está a acontecer com ela. Toma precauções. Na cama do motel encosta os lábios ao ouvido de Harry Dancer e murmura:
- Amo-te.
Sabe que as suas palavras não serão escutadas nem gravadas pelos voyeurs no parque de estacionamento.
- Amo-te - murmura ela. E, quando ele se prepara para responder, põe-lhe o dedo nos lábios.
O cenário exige a escravização sexual dele. Estratagema já antigo, com elevado índice de sucesso. Desta vez, porém, o guião parece-lhe ofensivo. Não tanto pelo que a total submissão lhe fará a ele mas pelos efeitos que a mesma terá sobre ela. Esmagando aquilo que sente crescer e agitar-se dentro dela.
Surge então o medo. Se moderar a paixão, conseguirá segurá-lo? Conservá-lo? Não para o departamento, mas para si própria. Pela primeira vez na sua longa vida, sente-se insegura. Dividida. O sexo foi sempre a sua arma. Agora torna-se uma armadilha.
- Amo-te - murmura ela. Passa a palma da mão pelo corpo nu dele. Sente o coração bater. Um fluxo de sangue. Toca os músculos, sondando recantos secretos e obscuros. Gostaria de estar dentro dele. Completamente. Envolvida. Desaparecer entre os tecidos dele. Fazer parte dele.
Escarrancha-se nele. Inclina-se para o olhar nos olhos. Os cabelos caem em volta dela, formando uma tenda. Ela segura-lhe no rosto entre as mãos.
- Querido - murmura ela. - Meu amor, amo-te. Traição. Ela sabe-o. •
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O expediente da doença fatal é um êxito absoluto. Herman K. Tischman é virado pela terceira vez. Anthony Glitner comunica que o IP, por gratidão pela vida da filha, concorda em informar a companhia sobre as actividades de Harry Dancer antes de as comunicar a Briscoe. E condicionará as informações passadas ao departamento de acordo com as instruções de Glitner.
A primeira revelação de Tischman é que Dancer passou a sustentar Sally Abbadon. Encontra-se com ela duas ou três vezes por semana. Além disso, o departamento colocou escutas na casa de Dancer, com capacidade para captar e gravar chamadas telefónicas e conversas no interior.
O chefe de operações está satisfeito com a viragem de Tischman. Em contrapartida, a notícia da relação íntima entre Dancer e Sally Abbadon não o deixa tão satisfeito. E fica intrigado com as escutas na casa do sujeito. Se o departamento está, aparentemente, a ser bem sucedido no processo de perversão moral de Harry Dancer, qual é a necessidade? O chefe ignora.
Assegura-se de que Glitner, o agente responsável pelo caso, informa o seu agente sobre este novo desenvolvimento. Tudo o que ela diga e faça na casa de Dancer será compartilhado pelo departamento. Em seguida, o chefe retira-se para o seu esconderijo. Ajoelha-se no oratório antigo e reza para que seja iluminado.
Evelyn Heimdall, já informada, convence Harry Dancer a ir até ao apartamento dela depois de um jantar pecaminosamente calórico de bratwurst com bacon.
- Podíamos ir para minha casa - sugere ele.
- Não depois deste jantar - diz ela. - Devo ter engordado três quilos. Quero vestir qualquer coisa larga e solta antes que os meus botões comecem a saltar.
-Foi bom, não foi? Não devíamos ter comido a tarte de lima, mas não consegui resistir.
Sentam-se na varanda, suspirando de contentamento e admirando o luar cintilante. Ao longe, as luzes trémulas dos barcos de pesca.
- Este sítio parece um cartaz turístico - diz ela. - E eu estou mesmo no meio dele.
- Estás contente por teres mudado para cá, Ev?
- Nunca mais quero viver noutro sítio.
- Agrada-me ouvir isso. Algumas pessoas não conseguem adaptar-se. O calor tropical, a indolência, a filosofia de mariana. Acham que estimula a dissolução.
- Achas que é?
- Santo Deus, não! Eu trabalho tanto aqui como trabalhava
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em Manhattan. Mas descontraio-me mais... quando tenho oportunidade.
Estão deitados nas espreguiçadeiras, lado a lado. Ela dá-lhe a mão.
- Talvez sinta um bocadinho de dissolução - diz ela. - Mas prefiro chamar-lhe degelo. É como se estivesse a aprender o que é o prazer e a alegria... passados todos estes anos.
- Nunca sentiste prazer-ou alegria antes?
- Claro que sim. Mas era planeado, estruturado. Uma peça na Broadway na quinta-feira à noite. Um piquenique no sábado. Um passeio à beira-mar no domingo. O prazer e a alegria estavam presentes... habitualmente. Mas eram incidentes breves. Aqui, isso constitui o fulcro da nossa vida. Uma pessoa começa a perceber que pode ser permanentemente feliz. Não quero dizer que não existam decepções e contrariedades. Mas parecem tão insignificantes, verdadeiramente sem sentido, comparadas com o sol, a areia, o mar. Ou com uma noite como a de hoje. Estou a fazer-me entender, Harry?
- Claro que estás. Estás no bom caminho para te transformares numa comedora de lótus.
- Oh, Harry!
- Estou a reconhecer os sintomas - diz ele. - Vivo na praia, vejo o que acontece. Vêm para cá mulheres do norte e durante os primeiros seis meses usam fato de banho com folhos e uma saia. Depois passam para o biquini. Que tapa o umbigo, evidentemente. Passado um ano passam a usar o biquini mais minúsculo que conseguem descobrir.
Ela ri-se.
- Comprei hoje um desses. Tenho vergonha de o usar em público.
- Hás-de usar - garante-lhe ele. - O meu amigo Jeremy Blaine morreu recentemente. Desde então, a viúva só usa biquinis pretos. Luto à moda da Florida. No entanto, o tamanho do fato de banho é apenas uma indicação exterior do que se passa por dentro. Como disseste, um degelo. Uma abordagem mais animal da vida. Aprender a descontrair. Completamente. Saborear a comida, apreciar as bebidas e descobrir como evitar aborrecimentos. Ou como ignorá-los.
- Passaste por tudo isso?
- Claro que sim. Até que Sylvia morreu e voltei a ser puxado, bruscamente, para o mundo real.
- Não sei... - diz ela. - Estou a chegar à altura em que não tenho bem a certeza do que é o mundo real. é tristeza, dor e sofrimento, ou é aquilo que temos neste momento?
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- Boa pergunta. Gostava de saber a resposta, mas não sei.
- Sinto-me mais sexy - diz ela. - Isso choca-te?
- Claro que não. Fico encantado por saber isso.
Ela fica calada. Apercebendo-se de que não está a obedecer ao guião. Tony Glitner vai ficar furioso. Nesse momento, porém, a ira do agente responsável pelo caso não lhe parece importante. Ela simplesmente não quer converter ninguém. De súbito, a fé transforma-se numa língua estrangeira.
- Tenho tudo o que é preciso para um cocktail de menta e conhaque - diz ela.
- Óptimo, mas assim não te livras de mim.
- é essa a ideia.
Na cama, ela inclina-se sobre ele e diz:
- És um homem atraente. Muito, muito atraente.
- Isso é o cocktail a falar.
- Não, sou eu a falar.
é uma mulher robusta. Forte. Seios volumosos. Cintura fina. Ancas curvas como uma lira. Pernas fortes, bem torneadas. A pele exala um odor a incenso. Vestida, parece-se com a mulher dele. Nua, é totalmente diferente.
Ela está absorvida pelo corpo dele.
- Os homens também têm mamilos - diz ela -, não têm?
- Exacto. Dois.
- A tua pele parece camurça, Harry.
- Boa ou má?
- Boa. Muito boa. Fecha os olhos e finge que estás a dormir. Deixa-me fazer coisas.
Ele fecha os olhos. Sente o toque da boca dela. Os lábios. A língua.
- Ev... - diz ele.
- Chiu. Estou a descongelar. Aquilo que disseste... uma abordagem da vida mais animal. Creio mesmo que estou a tornar-me um animal.
- Isso incomoda-te?
- Não sei - diz ela. Perturbada. - Não sei lidar com isso.
- Queres abandonar-te? Render-te?
- Sim - diz ela -, é isso que quero. Abandonar-me. Fazer tudo.
Explora-o, maravilhada. Ele faz parte de um novo mundo que ela está a começar a vislumbrar. Ela esquece os limites. Não os esquece, mas ignora-os. Aquilo atrai-a. Acha que ele será a sua passagem. Tudo é possível. Liberdade absoluta. Liberdade.
- Basta - diz ele. - Por favor.
- Mais - implora ela. Escutando-se a si própria, incrédula.
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Na reunião, diz:
- Acho que está tudo a correr bem, Tony. Tivemos uma longa conversa pela madrugada fora. Acho que ele está realmente preso.
- Óptimo - diz Glitner. - Agora diga-me o que ele disse e o que você disse.
Inventa. Inteligentemente. Hesitando aqui e ali. Não se mostrando demasiado displicente, fabrica uma história sobre a conversão de Harry Dancer. Admite que fizeram amor; isso é santificado. Mas é clara acerca das dúvidas de Harry Dancer, das respostas dela, da ambiguidade dele, da insistência dela.
- Parece-me bem - diz o agente responsável pelo caso. - Mas não o pressione demasiado. Não queremos assustá-lo. Vamos devagar e com calma. Sabemos o que os outros estão a fazer. Queremos oferecer a Dancer uma alternativa mais atraente. Tem de ser firme, positiva, absolutamente segura. Já fez isto antes; conhece o modo de operar. Eu posso colaborar, a sede também. Mas essencialmente tudo depende de si, Ev. Nós dependemos de si.
Quando fica sozinha, vai até ao terraço. Agarra-se ao varandim. Observa o mar revolto que se estende até ao infinito. Quer chorar mas não consegue. Fecha os olhos com força. Vê pele de camurça. Saboreia-a. Lembra-se do que fizeram. Estremece de felicidade.
Harry Dancer admite que se tornou um catavento. Gira ao sabor do vento. Adopta as opiniões e a filosofia da última pessoa com quem fala. Parece incapaz de um juízo independente. Mas na sua confusão reconhece a confusão dos outros. É preciso ser-se igual para reconhecer os seus semelhantes.
Não consegue entender Sally Abbadon. Ela nunca fingiu ser outra coisa se não uma mulher venal. O seu corpo está à venda
- se o preço for aceitável. Agora fala de amor, insinuando que procura uma relação mais profunda, mais permanente. Ele reconhece a insatisfação dela, mas não consegue defini-la.
Não consegue entender Evelyn Heimdall. Aquela mulher forte, fiel e segura está a ficar loucamente apaixonada. Com um apetite pelo picante e pelo exótico. Age como alguém que se liberta de grilhões. Tudo nela - o discurso, o vestuário, as acções
- significa uma nova liberdade. Auto-indulgência.
E Harry Dancer não consegue entender-se a si próprio.
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Julgara que o relacionamento com Sally e Evelyn atenuariam a dor da morte de Sylvia. Que o impeliriam para o futuro em vez de o prenderem ao passado. Que exorcisariam, finalmente, as memórias que o atormentavam.
Nada disso aconteceu. Pelo contrário, a intimidade com as duas mulheres acabara de alguma forma por recriar Sylvia. A textura da pele. O hálito quente. A doçura dos recantos secretos dos seus corpos. Todas as glórias do amor físico evocam esplendores desaparecidos.
A forma como Ev abana a cabeça para ajeitar o cabelo curto. A forma como Sally ensaboa os seios: séria e atenta. Ambas pintam as unhas dos pés. Rapam as pernas. A forma como o tocam, como se enroscam para dormir, aparam os pêlos púbicos, andam descalças, usam as camisas dele - e mais nada.
Todos estes pormenores físicos da intimidade lhe relembram uma vida que foi e já não é. Sylvia fazia todas essas coisas. Lembra-se e consegue vê-la cada dia mais claramente. Como explicar isso - novos amores ressuscitando um amor antigo? Elas estão a ressuscitar algo que ele julgava morto e enterrado.
Não consegue compreender. Será que o amor existe por si só? Será todo o amor um só - um sentimento genérico que não necessita de um objecto especial? Qualquer homem ou mulher serviria tão bem como qualquer outro? Apenas a emoção em si teria significado? Como o patriotismo. Que importância tem a nação? Apenas a devoção interessa.
Tudo isto o deixa intrigado. Perturbado. Sente-se envolvido numa luta que não consegue identificar.
- Que se passa? - pergunta em voz alta. E apercebe-se, com um súbito sentimento de angústia, de que não está a falar consigo próprio. Está a falar com Sylvia.
)
Conspiração - contra-conspiração... O chefe de operações chama Anthony Glitner a Washington. Conferenciam na sala à prova de escuta.
- Essa história de colocar escutas na casa de Dancer... - diz ele ao agente responsável pelo caso. - Quais serão as intenções do departamento, em sua opinião?
- O habitual, imagino - diz Glitner. - Matéria-prima para chantagem... se vier a ser necessário.
- Talvez - diz o chefe. Mastigando uma pastilha Tums. - Mas creio que talvez haja outra razão. A minha ideia é que eles não confiam no seu próprio agente.
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O agente tem um sobressalto. Depois reflecte.
- é possível, senhor. Uma forma de a controlar quando ela está com Dancer. Sim, faz sentido. Chefe, não acha que a podemos virar, pois não? Isso é que seria um golpe!
-Pedi aos serviços um dossier completo sobre Sally Abbadon. Ela já está no departamento há muito, muito tempo. Uma folha de serviços magnífica... do ponto de vista deles. Lembra-se daquele secretário de Estado que perdemos? Foi ela que o aliciou. Não há uma única indicação no dossier sobre a mais ligeira infidelidade ao credo dos outros. Mas é curioso terem colocado escutas na casa de Dancer. Talvez ela esteja queimada... ou talvez apenas entediada. Pode ser uma série de coisas. Mas seria negligência da nossa parte se não investigássemos isso. Dê-lhe um toque... para o caso de ela estar mesmo a pensar em desertar.
- Como fazemos isso, senhor?
- Você sabe, Tony, por vezes tentamos ser demasiado espertos. Desprezamos as soluções simples e óbvias. Neste caso, creio que o procedimento mais eficaz, de momento, será fazer um telefonema anónimo para Sally Abbadon. Diga-lhe apenas que a casa de Harry Dancer está sob escuta e desligue. Se ela continuar fiel ao departamento, não atribuirá qualquer importância ao facto. Se estiver a começar a ter dúvidas, mudará a sua forma de operar. Vai ter de a pôr sob vigilância. Que tal Willoughby? Fez um bom trabalho no papel de curandeiro.
- Acho que ele dará conta do recado - diz Glitner. - Quer que ela seja seguida?
- O mais de perto possível. Quando chegar à Florida, reúna com Willoughby e depois faça o telefonema para Abbadon. Vejamos o que acontece.
Ao mesmo tempo, o presidente do departamento, em Cleveland, está nesse momento a rever um relatório do director da Região Sudeste. Trata-se das informações que solicitou sobre aspectos invulgares, intrigantes ou inesperados nas vidas privadas das pessoas envolvidas na operação Dancer.
O presidente descobre o que procura num pequeno parágrafo sobre Herman K. Tischman. A filha do detective foi atingida por uma doença súbita e inexplicável. Os médicos assistentes deram o caso como perdido. Após uma cura milagrosa, encontra-se agora de boa saúde.
"Cura milagrosa, ora essa!", pensa o presidente. E percebe imediatamente o que aconteceu: o assalariado do departamento foi virado.
Liga para o director regional numa linha à prova de escutas.
- Seu idiota! - diz ele. - Foi enganado. Esse seu detective privado foi virado. A doença da filha foi uma encenação.
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O director começa a gaguejar.
- Cale-se! - diz o presidente. - Foi Briscoe quem o recrutou, não foi? Então deixe que seja Briscoe a limpar a porcaria. Forneça informações falsas a esse Tischman. Se a companhia reagir, saberá que tenho razão. Depois deixe que seja Briscoe a agir. Espero resultados dentro de quarenta e oito horas.
O director manda chamar Briscoe. Repete as ordens do presidente.
- Filho da puta - diz Briscoe. - Pensei que tinha o idiota no bolso. O tipo é um derviche rodopiante. Quer dizer que a febre da filha foi uma tramóia da companhia? Inteligente. E de borla.
- Não estou interessado na inteligência da companhia - diz o director. - Tem quarenta e oito horas para tratar disto. O presidente quer o assunto resolvido antes de tomarmos uma acção extrema. Creio que seria melhor para ambos se fosse você a resolver a questão.
Ficam a olhar um para o outro.
- Sim, senhor - diz Briscoe.
Ele elabora um plano complexo. Contém elementos verdadeiros que ele ignora. Dirá a Tischman que Harry Dancer está sexualmente obcecado por Evelyn Heimdall. Que os dois tencionam sair do país, para viverem em pecado algures no estrangeiro.
Briscoe acha que se Tischman for agente triplo informará a companhia deste desenvolvimento. E a companhia retirará Heimdall do caso e nomeará um novo agente de campo.
Contudo, antes que Briscoe tenha oportunidade de pôr em prática este esquema estranho, obtém provas da traição do detective a partir de uma outra fonte. Um gravador accionado pela voz instalado no motel de Sally Abbadon regista uma chamada anónima.
- Menina Abbadon?
- Sim. Quem fala?
- Digamos que é um amigo. Acho que deve saber que a casa de Harry Dancer está sob escuta. Todos os telefones têm um microfone que capta e grava as chamadas e as conversas no interior do quarto. Para benefício dos seus superiores.
- Que disse?
- Ouviu o que eu disse, Menina Abbadon.
- Quem é você? Clique!
Briscoe ouve a gravação duas vezes. Depois reflecte... Só ele, o director, Tischman e os técnicos que instalaram as escutas têm conhecimento da vigilância electrónica efectuada à casa de
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Dancer. Os técnicos, porém, desconhecem a existência de Sally Abbadon. E, como é evidente, Briscoe elimina o director e ele próprio. Resta Herman K. Tischman.
O presidente tem razão; o detective foi virado. Bufou à companhia, que montou o telefonema anónimo. Briscoe informa o director.
- Liquido-o, Sr. Director? - pergunta. - Parcialidade extrema?
- Sim - diz o director. - Imediatamente. Um acidente.
- Claro - diz Briscoe. Irritado pelo facto de o director achar necessário dizer-lhe como fazer o seu trabalho.
Às 06.00 dessa tarde, encontra Tischman. O detective sentado indolentemente está dentro do seu Plymouth ferrugento em frente do escritório de Harry Dancer. Briscoe estaciona o seu carro. Sai. Caminha na direcção do carro do IP. Inclina-se para falar através da janela aberta. - Alguma acção? - pergunta.
- Almoçou com Heimdall - comunica Tischman. - Depois foram para casa dela. Demoraram o tempo suficiente para uma matiné. É tudo.
- Você e eu temos de falar.
- Sobre quê? - diz Tischman, mascando um charuto humedecido.
- Um novo trabalho. Mais dinheiro. Dá-lhe jeito, não dá? Com a conta do hospital da sua filha e tudo o mais.
- Bom, sim, claro. Entre e falamos.
- Aqui não. Demasiado público. Saia mais cedo hoje. Estarei no seu escritório às nove, está bem?
- Você é quem manda.
- Exacto - diz Briscoe.
Chega ao escritório de Tischman meia hora mais cedo. Estaciona a um quarteirão de distância. Faz o resto do percurso a pé. Leva dois litros de vodca barata num saco de papel pardo. Utiliza um bisturi de cirurgião para abrir a fechadura da porta e empurra-a com o joelho. A porta abre-se. Ele entra. Fecha a porta. Acende o candeeiro da secretária.
Deita um litro de vodca no cesto de papéis cheio. Por cima do estofo berrante de um sofá. No tapete. Molha os cortinados. Empurra a garrafa vazia para debaixo da secretária. Utiliza metade da segunda garrafa para fazer uma poça por debaixo da cadeira giratória de Tischman. Depois espera. Sentado.
Tischman aparece pouco depois das nove. Fica surpreendido ao ver Briscoe sentado à sua secretária.
- Como entrou aqui? - pergunta.
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- A porta estava aberta - diz Briscoe, levantando-se.
- Estava uma merda. Tenho sempre o cuidado de a fechar à chave. Meu Deus, pelo cheiro isto parece uma destilaria.
- Estive a beber uns copos - diz Briscoe. Sorrindo. Erguendo a garrafa meio vazia. - Quer um trago?
- Que é isto? - pergunta o detective. - O gabinete está ensopado.
- Pois é - diz Briscoe. - E olhe para isto.
Aponta com um dedo grosso para o cesto de papéis. Este irrompe em chamas. Erguem-se chamas azuladas.
- Meu Deus! - exclama Herman K. Tischman. - Que se passa...?
- E isto - diz Briscoe. Apontando com o dedo para os cortinados. Sofá. Tapete. - E isto. E isto.
O gabinete ruge. O fogo alastra. O detective vira-se, preparan-do-se para fugir. Briscoe agarra-o com braços pesados. Atira-o para a cadeira giratória. A roupa de Tischman pega fogo. O corpo ergue-se. Briscoe volta a atirá-lo para a cadeira, violentamente. Espalha o resto da vodca por cima dele.
O gabinete é um inferno. Chamas. Fumo. Crepitação. Vidros que quebram. Tischman, de boca aberta, contorce-se lentamente, abrindo e fechando as mãos. Olhos a derreter. Roupa a arder. Carne a esturricar.
Briscoe espera pacientemente. De pé, no meio do fogo. Impassível. Depois, quando vê que Tischman não passa de uma massa preta e imóvel, abandona calmamente o gabinete. Vê pessoas correndo para o escritório em chamas. Todavia, continua a dirigir-se para o carro estacionado. O ar puro é uma ofensa. Gosta do cheiro a coisas queimadas e a cinza.
Sally Abbadon não é burra. Comunica o telefonema anónimo a Shelby Yama e a Briscoe.
- Que diabo se está a passar? - pergunta.
- Nada - diz Briscoe. - Esqueça.
- A casa de Dancer está mesmo sob escuta?
- Não precisa de saber - diz Briscoe.
Mais tarde, quando estão sozinhos, Yama pergunta-lhe:
- Que é isto? Está a investigá-la?
- Estou - diz Briscoe. Olha fixamente para o agente responsável pelo caso. - Alguma objecção?
- Não, não - diz Yama. - Todos os cuidados são poucos.
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- Hum-hum - diz Briscoe. Dirigindo-lhe um largo sorriso. Sally sente-se limitada. Sabe que a casa dela está sob escuta.
E agora a casa de Harry está coberta. Pensa no que pode fazer: alugar outro quarto de motel sem informar o departamento. Ou levar Dancer para um ninho de amor diferente sempre que estiver com ele.
Apercebe-se de que nenhuma destas soluções resultará. Briscoe exigirá saber onde ela foi com o sujeito. O que disseram. O que fizeram. E por que não estava sob escuta?
Ela e Dancer vão aos combates dejai alai, no Dania. Perdem alguns dólares. Depois jantam numa churrasqueira na Federal Highway. Vão para casa de carro, sem encontrarem muito trânsito. A época dos tentilhões brancos acabara.
- Apetece-te umas carícias ternas? - pergunta ela.
- Por que não? - diz ele. - Onde?
- Na tua casa. Lá fora. No pátio ou na praia. Quero olhar para as estrelas. Quantas haverá?
Ele não tem vergonha de usar uma boa frase feita.
- Seiscentos milhões - diz ele - quatrocentas e trinta e um mil oitocentas e catorze.
Ela ri-se. Põe-lhe uma mão na coxa.
- És maluco - diz ela.
- É verdade.
Levam latas de Michelob em sacos térmicos. Caminham ao longo da praia, andando para sul. Cruzam-se com poucas pessoas. Amantes. Corredores. Uma mulher à procura de conchas com uma lanterna. Um homem pescando, pacientemente. Desesperadamente.
Não há estrelas. Uma noite espessa coroada de nuvens. O ar ainda está pesado. Ao longe, bem para sul, em volta de Pompano, vêem a claridade indistinta dos relâmpagos. No entanto, os barcos de pesca saíram para o mar, formando um amontoado de luzes.
- Deve haver alguma coisa -. diz Dancer. - Estamos na época das anchovas?
- Anchovas?
- Nunca vais à pesca?
- Não - diz ela sem deixar de pensar que isso não é absolutamente verdade. - Fui uma vez, mas não trouxe nada e apanhei um escaldão horrível. O meu nariz pelou durante dias.
- Sei tão pouco a teu respeito - diz Dancer. - Sei que não és da Florida. Pelo menos não falas como os naturais de cá.
- Nova Inglaterra - diz ela. - Originalmente. Salem, Massachussetts.
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- Ora, ora! A terra das bruxas.
- Exacto.
- és bruxa?
- Tento ser - diz ela. Rindo.
- Bom, devo dizer-te que consegues. Enfeitiçaste-me.
- Enfeiticei? A sério, Harry?
Passeiam de mãos dadas. Por vezes, quando rebenta uma onda grande, correm para a areia seca perseguidos pela espuma branca.
- Quanto tempo viveste em Salem? - pergunta-lhe ele.
- Não muito. O meu pai era caixeiro-viajante. Tínhamos de mudar de terra quando ele era transferido de uma região para outra.
- Ah, sim? Que vendia ele?
- Seguros contra incêndio. Sobretudo a agricultores. Nunca ficou rico com isso, mas ganhava bem.
- Estavas sempre a mudar de escola, imagino!?
- Exacto. Mais vezes do que consigo lembrar-me. Finalmente acabei o liceu em Hadesville, no Texas. Sabes onde fica?
- Não.
- Tens sorte. Harry, vamos voltar para trás. é difícil caminhar sobre esta areia macia.
Voltam para casa de Dancer.
- E depois? - pergunta-lhe ele. - Depois do liceu?
- Fui para Nova Iorque. Fui finalista num concurso de beleza e achei que podia ser modelo. Mas não tinha tipo para isso. Era demasiado grande em todo o lado.
- Não para mim. Alguma vez posaste nua? Para revistas masculinas?
- Por que perguntas isso?
- Tens corpo para isso; achei que podias tê-lo feito.
- Por acaso fiz. Mas é um negócio sujo e não dá assim tanto dinheiro como isso. Depois andei um tanto à deriva... aqui e ali e um pouco por todo o lado. E acabei na Florida.
- Sorte a minha - diz Harry Dancer. - Bom, chegámos. Cansada?
- Um bocadinho. Podemos sentar-nos no pátio?
- Claro. Outra cerveja?
- Isso seria óptimo.
Regressa com cervejas geladas. Fecha a porta de correr envidraçada, que dá para a sala de estar, por causa do ar condicionado. Sally não acredita que os microfones do departamento consigam captar as vozes no pátio.
- Precisamos dessa luz? - pergunta ela.
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- Devia afastar os insectos - diz ele -, mas se quiseres apago-a.
- Por favor - diz ela. - Às escuras é mais agradável. Mais íntimo.
- íntimo - repete ele. Um riso metálico. - Não estou certo de já estar pronto para isso.
- Não entendo. Achei que tu e eu éramos tão íntimos quanto um homem e uma mulher podem sê-lo.
- Somos. Fisicamente. Sexualmente. Não creio que alguma vez tenha sentido tanta intimidade com uma mulher. Nesse sentido.
- Mas...?
- Mas um destes dias dei comigo a pensar se seria capaz de algo mais do que isso. Desde que a minha mulher morreu, é como se tivesse medo da intimidade. De me aproximar realmente de alguém. Isso assusta-me.
Sally Abbadon pousa a cerveja. Levanta-se. Senta-se na beira da espreguiçadeira onde está Dancer. Põe a palma da mão fresca no rosto dele, ruborizado.
- Harry - diz ela -, estás a falar de amor? é a isso que te estás a referir?
- Acho que sim. Acho que é a isso que me estou a referir. Divertir-me na cama é uma coisa. Gosto disso... como tu bem sabes. Mas não sei se conseguirei lidar com mais alguma coisa para além disso.
- Estás a tentar dizer-me qualquer coisa, não estás? A avisar-me?
- Oh, não, querida - diz ele afastando a mão dela do rosto para beijar a palma. - Só quero que saibas que neste momento estás a lidar com um aleijado emocional. Não esperes demasiado dele. Ultimamente, tenho tido a sensação de que os jogos a que nos entregamos não chegam para ti. Que estás à procura de mais alguma coisa. De uma relação mais... mais permanente. Mais significativa. Tenho razão?
- Sim - diz ela. Baixinho. - Tens razão, sinto isso. Não sabia que era assim tão notório.
- Eu noto, Sally. Não quero que sofras. Estou a ser o mais honesto que posso. Incomoda-me que te tornes demasiado... demasiado séria.
- Não é problema teu - diz ela. - é um problema meu. Não te pedi nada, pois não? A não ser as cinco notas por semana para jogos e diversões. Pedi-te algum compromisso emocional?
- Não - admite ele -, não pediste. O que estou a tentar dizer-te é que neste momento não sou capaz nem estou disposto a assumir qualquer compromisso.
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- Não te preocupes com isso, Harry. Sou uma rapariga crescida e tenho experiência da vida. Se cometer erros, esses erros serão meus. Não te culparei a ti. Excepto por seres um burro tão adorável.
Riem-se e tudo volta a ficar bem. Ele puxa-a para si.
- Então e aqueles carinhos que prometeste?
- O que quiseres, Harry. Basta dizeres.
- Vamos lá para cima?
- Vamos ficar aqui - murmura ela. - Está escuro. Ninguém vê.
- O mais provável é apanharmos uma chuvada.
- Adoraria. Tu não?
Despem-se, soltando risadinhas. Ele enrola a roupa e os sapatos e leva-os para a sala de estar. Regressa depois silenciosamente, correndo lentamente a porta de vidro para que não chie. Encontra-a deitada sobre os mosaicos do pátio. Radiosa. Deita-se ao lado dela.
- Vamos ficar sujos - avisa ele. - E doridos.
- Importas-te?
- Nem por isso.
Ela aproxima-se dele, insinuando um joelho entre as suas coxas. Toca-lhe o cotovelo suavemente.
- Harry, aquilo de que estávamos a falar há pouco. Amor. Queé?
- Há de todos os tipos e variedades. Afecto. Amizade. Devoção. Atracção. Amor físico. Amor emocional. Amor intelectual. Lealdade. Amor religioso. Paixão ou ternura. Podia continuar eternamente. é como um grande termómetro. Diferentes graus.
- Portanto, eu posso amar-te de uma forma e tu podes amar-me de outra?
- Sim, isso é possível. Na realidade, é até provável.
- Então está tudo bem. Aceito isso. Tu não?
- Claro.
- Cada um sente-o à sua maneira.
- Bom... - diz ele -, as coisas nem sempre são assim tão fáceis. Aquele que ama, normalmente, quer ser retribuído com o mesmo grau de amor. Ou mais. E, quando isso não acontece para ele ou para ela, surgem problemas no paraíso.
- Não no nosso paraíso - diz ela. Aceito o que houver... tudo o que me deres... e sentir-me-ei feliz.
Ele duvida, mas não diz nada. Beija-lhe os olhos fechados. Mordisca-lhe as orelhas. Passeia a língua ansiosa pelo pescoço dela. Pelo ombro. Pressiona um dos olhos de encontro a um dos seios dela.
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- Cega-me - pede ele.
Ela move-se sobre o mosaico duro, puxando-o com força.
- Que queres que faça? - pergunta ela. - Diz-me.
- Sê simplesmente tu.
Ele está em cima dela. Voraz.
- Chiu - murmura ele. - Chiu. Os vizinhos...
Sentem alguns chuviscos. Gotículas de chuva, gotas e depois uma carga de água. Quente. O mosaico torna-se escorregadio. Eles deslizam, em câmara lenta, rindo entre beijos. Há um caramachão por cima deles, mas a chuva atravessa-o, encharcando-os.
Harry Dancer rola no chão. Projecta a sua erecção para o brilhante céu nocturno.
- Tinhas razão - diz ele. - Agulhas e alfinetes. Maravilhoso!
Brincam um com o outro. Cachorrinhos molhados. Rolando. Deslizando. Escorrendo água. Não fazem nada. Ele não a penetra; ela não o envolve. Mas estão separados com alegria.
- Foste tu quem disse - diz ela. - Todos os tipos de amor.
- Oh, sim - diz ele. - Sim, sim!
A chuva dura dez minutos. Talvez quinze. Permanecem deitados sem se moverem, bocas abertas para beberem a água da chuva. Pernas apartadas para a sentirem. Rolando. Mordendo. Lambendo.
A chuva pára. Ficam de pernas e braços abertos sobre o solo molhado. Tocam-se com as pontas dos dedos. Através do caramachão vêem a deslocação das nuvens. Uma mancha de céu limpo.
- Uma estrela! - exclama Sally Abbadon. - Vi uma estrela. E ali está outra!
- Tu e eu - diz Dancer. Uma para cada um de nós.
Ela vira-se de lado para se inclinar sobre ele. O cabelo ensopado cai sobre o rosto dele. Ele não o afasta.
- Deixa-me amar-te, Harry - diz ela. - à minha maneira. E tu amas-me à tua maneira.
- Sim - diz ele. - Está bem. É justo.
Ambos os lados ignoram os orçamentos e nomeiam mais pessoal para a operação Harry Dancer. A companhia, tendo perdido Tischman, chama um operativo para seguir o sujeito, enquanto Willoughby segue Sally Abbadon. O departamento contrapõe com agentes com ordens para cobrir Dancer e Evelyn Heimdall.
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Os dois agentes responsáveis pelo caso coordenam as actividades das respectivas equipas. Organizam horários. Engendram códigos e senhas. Coligem informações. Apresentam relatórios diários aos seus superiores. Sempre optimistas.
O elemento autónomo em toda esta miscelânia de espionagem e contra-espionagem é Briscoe. Está a chefiar duas campanhas: tenta frustrar os planos da companhia e descobrir quaisquer indícios de abusos por parte do pessoal do departamento. Acha que Shelby Yama é estúpido e inepto. Mas não é um traidor. Briscoe já não está tão certo quanto a Sally Abbadon.
Ela afirma que Dancer quer copular no pátio, na praia, no carro. Todos os sítios fora do alcance da vigilância electrónica. Isso não agrada a Briscoe. Comunica as suas suspeitas ao director.
- Ela diz que Dancer insiste nisto e naquilo - informa. - Mas devia ser ela a insistir; esse é o trabalho dela. Ela jura que o tem preso. Eu não estou assim tão certo disso.
- Não posso acreditar que ela esteja a amolecer - diz o director. - Ela é um rato velho neste jogo. Sempre foi cem por cento leal.
- Sei tudo isso, senhor, e reconheço que não tenho qualquer prova de que ela esteja a pensar em desertar. Mas eu também sou um rato velho e digo-lhe que há aqui qualquer coisa que não cheira bem.
- Que sugere? Quer que fale com ela? Que lhe relembre o castigo reservado à traição?
- Não, Sr. Director, ainda não. Não quero que ela perceba as nossas suspeitas. Deixe-me ver se consigo engendrar um teste qualquer. Ver como ela reage.
- Está bem, faça como quiser. A propósito, de acordo com o último relatório de Yama, o homem destacado para Evelyn Heimdall diz que ela está a agir, passo a citar, de uma forma irregular para um agente da companhia, fim de citação. Não sei bem o que ele quer dizer com isso, mas contactei os serviços em Cleveland, solicitando um dossier completo sobre Heimdall.
Entreolham-se.
- Sim, Briscoe - diz o director -, sei o que está a pensar. Podemos ter duas agentes de campo que estão a pensar em virar. Uma situação muito arriscada. Adoraria virar um dos melhores agentes da companhia. Mas não à custa da perda de um dos nossos. Não há nenhum lucro numa troca igual. Aja com muita cautela com Abbadon. Detestaria perdê-la e não obter nada em troca. Entretanto, fale com o homem que está a cobrir Heimdall e veja se consegue descobrir por que é que ele pensa que ela está
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a agir de uma forma irregular. Se ele estiver certo, talvez consigamos dar-lhe um empurrãozito.
EVvelyn Heimdall sai do corte, suada e risonha. Senta-se numa cadeira à mesa de Dancer. Por debaixo de um grande chapéu-de-sol com franjas. Ele tem um vodca gimlet à espera dela.
- Muito bem - diz ele. - Arrumaste-a.
- Não foi tão fácil como isso. Ela estava a pôr-me doida. Hoje não jogas?
- Hoje acordei um pouco murcho. - Aponta para o seu Bloody Mary. - Mas, depois de dois destes, estou com os olhos a brilhar e cheio de energia.
- Ainda bem. Estás lindo. Devias usar branco mais vezes. A propósito, vou levar-te a almoçar.
- Vais? Qual é a comemoração?
- Nenhuma comemoração - diz ela. Sorriso secreto. - Sinto-me ousada, é só isso.
Ele olha para as pernas macias e bronzeadas. - E onde vais levar-me a almoçar?
-Ao meu apartamento - diz ela. - Tenho uma salada César já feita. E uma garrafa de Frascati gelada.
- Sou todo teu.
- Espero bem que sim - diz ela. - Creio que se chama a isto uma matiné. Ou será orgia?
- Duas pessoas podem fazer uma orgia? - pergunta ele.
- Podemos tentar - diz ela.
Enquanto ele põe a mesa e abre a garrafa de vinho, Evelyn vai tomar um duche. Depois de se ensaboar e lavar, cabelo e tudo, deixa-se ficar debaixo da água morna. Olha para o corpo molhado. Regatos e rios. Marcas de biquini. A metade inferior dos seios branca. E a marca de um cordão em torno das ancas.
Vê um corpo novo. Ou vê o seu corpo de uma forma nova. Algo vibrante. Cheio de promessas. Excitantemente sensível. Tão sensível- que agora reage fisicamente às cores, aos cheiros. Ao som do riso de Harry.
- Sinto-me ousada, é só isso. - Fora isso que dissera? Exactamente. Tenta avaliar os limites do seu novo aventureirismo. Depois, estremecendo com um prazer temeroso, reconhece que não existem limites.
- Eia - grita Harry Dancer -, estás a afogar-te aí dentro?
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Sim, está a afogar-se.
Seca-se, veste o robe de turco branco. Dancer está de calças brancas, camisa branca, sapatos brancos. Almoçam sentados a uma mesa branca posta de branco. Cortinas brancas e finas ondulam ao sabor do vento que entra pela porta aberta da varanda. Uma luz branca inunda a sala. Flutuam ambos num globo de leite.
Conversam descontraidamente, brincando, rindo. Evelyn Heimdall tem consciência da atmosfera delicada do momento. do elo insubstancial entre ela e aquele homem resplandescente. Mais, conhece subitamente a evanescência da vida. Brilhando, brilhando para depois se perder numa brancura opaca.
Dancer conta-lhe uma história divertida sobre um cliente que se enganou no nome de um título que insistia em comprar. Ela escuta, sorrindo em sinal de assentimento.
Mas não está realmente a ouvi-lo. Devora-o com os olhos. Mãos bronzeadas. A forma lenta e intencional como ele se move. Feições marcadas. Olhos azuis, sofridos. Rugas de expressão em torno dos olhos. Linha do maxilar. Cabelo grisalho, tingido pelo sol. A sua solidez masculina. Vê o seu corpo nu. Pele de camurça. E entre as pernas...
Ela apercebe-se de que ele parou de falar.
- Isso é maravilhoso - diz ela. - Só me devia acontecer a mim. Mais salada?
Ele ri e indica com o queixo a saladeira vazia.
- Oh... - diz ela. Confusa. - Posso fazer mais.
- Não te atrevas. Foi mais do que suficiente.
- Ainda há um pouco de Frangelico - diz ela. - Podemos bebê-lo juntamente com o gelado.
- Talvez mais tarde - diz ele. - Por agora estou satisfeito. -• Estás? - pergunta ela. - Completamente? - E espanta-se com a sua ousadia.
- Tenho de pagar o meu almoço? - pergunta ele. Com uma seriedade fingida.
- Tens - diz ela. Rendendo-se à nova Evelyn.
Na cama, nu, ele toca as marcas do biquini no corpo bronzeado.
- Eu bem te disse - diz ele.
- Sim, disseste. Achei que as pessoas ficariam a olhar para mim. Mas não olham... o que é pior. Gostavas que eu fosse toda chocolate, ou chocolate e baunilha? Posso ir à piscina ou bronzear-me na varanda.
- O que te agradar a ti.
- Não, Harry. O que te agradar a ti.
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Ela tem fantasiado acerca desta cena, a meio da tarde. Será louca, apaixonada e voluptuosa. Condimentada pela luz penetrante do sol. Não há nada que eles não façam: ele a ela, ela a ele.
Agora, porém, chegada a altura, ela sente uma curiosa lassidão. Um langor cálido. Está embrulhada, envolta em luz e no calor do seu próprio desejo incipiente. Flutua. Apercebe-se, vagamente, de que, se ele a estrangulasse naquele momento, ela não ofereceria qualquer resistência. Inclinaria talvez a cabeça para lhe beijar os nós dos dedos, tensos.
- O que quer que seja... - murmura ela.
Tem consciência das mãos dele. Da boca. A rendição absoluta é uma bênção. Ela está num sonho branco. à deriva. Surge então o clarão. A princípio, não é maior do que a chama de um fósforo. Bem no fundo dela. Depois uma chama que tinge o branco de vermelho.
A conflagração aumenta. Concentra a mente, as energias. Ela começa a tremer. A contorcer-se no fogo. Simultaneamente consumida e vitalizada. O homem diz qualquer coisa, mas ela não ouve. Ouve apenas o rugido do holocausto dentro dela. E soluça, em sinal de boas-vindas.
Não sabe quanto tempo dura. Até que as chamas começam a diminuir. O vermelho-sangue esmorece. Empalidece. O branco regressa. Sol. Luz. Ela está viva. Intacta. E agita-se. Lá no fundo, porém, dentro dela, uma chama ainda reluz.
- Luz piloto - diz ela. Em voz alta.
- Quê? - pergunta Harry Dancer. - Disseste "luz piloto". Que diabo significa isso?
- Absolutamente nada - diz ela. Sorrindo. Virando-se de lado para lhe tocar. - Ainda estamos na Florida? Pensei que podia ser outro planeta.
- Ainda estamos na Florida. Estás bem, Ev?
- Estou óptima. Maravilhosa. Espantosa.
- Tens os olhos húmidos. Não estiveste a chorar, pois não?
- Se estive, foi de gratidão. Obrigada, meu querido. Ele ri-se.
- Paguei o almoço?
- A mais.
- Se estiveres na disposição de esperar um bocadinho, posso deixar uma gorjeta.
- Oh, sim - diz ela -, tens de deixar uma gorjeta. Melhor ainda, deixa-me ser eu a ir buscá-la.
Mais tarde, ficam ambos deitados, inertes e satisfeitos. Hipnotizados pela luz radiosa. Com as mãos a tapar os segredos um do outro.
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- Sinto-me culpado - anuncia ele.
- Culpado? De quê?
- Não sei. É só uma vaga sensação.
- Bom, não sintas. Sou uma mulher adulta. Tu não me seduziste com promessas loucas.
- Eu sei. Mas mesmo assim...
- Harry, deixa-me dizer-te o que fizeste por mim. O que estás a fazer. Fuga. é essa a palavra. Para um outro mundo.
- Não entendo.
- Tenho sido tão... estruturada. Definitiva. Segura. Disciplinada, pode dizer-se. Mas tudo isso está a mudar. Eu sei.
- Florida - diz-lhe ele. - Céus azuis. Sol quente. Praia. Oceano. Eu disse que irias converter-te.
- Isso é uma parte, creio. - Vira-se de lado para o abraçar. - E tu és parte disso. Ritos de iniciação para uma vida nova.
- Eia - diz ele -, espera aí. Eu não tenho pretensões a afirmar-me como um amante excepcional. Tu já estiveste com outros homens.
- Sim. Estive. Mas tu és tu e é diferente. Não quero que te sintas culpado. Não tens obrigação absolutamente nenhuma. Aquilo que está a acontecer está a acontecer-me a mim. Tu não planeaste nada disto. Acontece que eu também não. Mas está a acontecer. Nunca te pedirei nada, Harry. Nunca! Excepto que possa continuar a ver-te. Passar tardes e noites como esta. Serei uma desavergonhada por dizer isto? Sim, sou uma desavergonhada. Não me ralo.
- Ev, tu sabes o que estás a fazer?
- Sei. Mais do que podes adivinhar. Estou a libertar-me de uma pele velha, Harry.
- Como uma cobra? Ela assente.
- Exactamente como uma cobra. Ele reflecte.
- Dizes que eu não tenho quaisquer obrigações. Mas essa é uma decisão que tem de ser minha, não é? Se eu sinto uma dívida...
- Está bem - diz ela -, se isso te faz sentir melhor. Se não fosses tu seria outro homem. E, se me deixares, encontrarei outro. Pronto. Isso alivia a tua consciência?
- Alivia a minha consciência e esvazia o meu ego. Ela faz-lhe uma festa na face.
- Só estou a tentar convencer-te de que não tens culpa nenhuma. Eu assumo total responsabilidade. Por tudo.
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- E que ganhas com isso?
- Tu - diz ela. Rolando para cima dele.
Anthony Glitner, na qualidade de agente responsável, tem chefiado uma série de agentes de campo ao longo dos anos. Compreende as pressões a que eles estão sujeitos. Pessoas ariscas, na sua maioria. Prima donnas. Têm de ser mimadas, acarinhadas. É preciso incutir-lhes confiança, reforçar constantemente a fé naquilo que estão a fazer.
Já teve agentes falhados. Mas nunca perdeu nenhum para os outros. Não tem a menor intenção de quebrar esse recorde. Não gosta de imaginar as consequências.
Evelyn Heimdall tornou-se um problema. As reuniões com ela não são satisfatórias. Embora não possua provas concretas, Glitner pressente que a relação Heimdall-Dancer se alterou. Não é como a agente a descreve. Ela está a ocultar informações que Glitner tem de saber para poder fazer o seu trabalho. Ela pode não estar a mentir, mas está a ocultar dados.
Ele apercebe-se de uma nova leveza nela. Uma frivolidade, quase. Nota-o em pequenas coisas: roupas mais alegres, riso mais frequente, mais maquilhagem, uma maior leveza de movimentos. Quando se senta, não faz o menor esforço para dissimular as pernas bonitas. Cumprimenta o agente responsável com um beijo e despede-se também com um beijo.
Tudo nela reflecte sensualidade. Ela afirma reconhecer a importância daquilo que eles estão a tentar fazer. Mas Glitner vê uma leviandade chocante. Ela já não leva a sua missão a sério. Diz piadas e faz apartes cínicos.
O agente responsável omite-os nos seus relatórios diários para o chefe de operações. Quer ter a certeza antes de a condenar. Porque a expulsão dela da companhia significará o fracasso de si próprio.
Não menciona as suas suspeitas a nenhum dos elementos da sua equipa. Mas decide efectuar uma investigação pessoal. No sábado de manhã, segue-a desde o apartamento até ao clube de ténis de Boca. Observa-a enquanto joga, estuda-a quando ela se junta a Harry Dancer. Segue-os quando regressam ao apartamento dela. Glitner espera várias horas, mas Dancer não aparece.
Na reunião, pergunta:
- Como se saiu no sábado?
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- Não lá muito bem - diz Evelyn Heimdall. - Harry não estava a sentir-se bem. Ressaca, creio. Bom, levou-me a casa e foi-se embora. Nada a relatar.
- Hum-hum - diz o agente responsável. - Quando vai voltar a estar com ele?
- Deixámos isso em aberto. Ele telefona-me ou então contacto eu com ele.
Glitner deixa-a partir. Não sabe como lidar com aquilo. Está a perdê-la - isso é evidente. Mas será que ela está para além da recuperação? Ocorre-lhe então que o departamento pode estar a tentar aviltá-la. Tal como a companhia espera elevar Sally Abbadon.
No seu próprio interesse, decide que não pode continuar a ocultar estes desenvolvimentos do chefe de operações. Telefona para Washington para marcar uma reunião, mas o chefe está numa reunião do Conselho de Administração em Nova Iorque.
Convencido, agora, de que não pode permitir que a situação se degrade mais, Glitner telefona para Nova Iorque. Finalmente, consegue localizar o chefe. Pede autorização para se encontrar com ele, a fim de discutir um assunto da máxima urgência.
Ouve um pequeno arroto do outro lado da linha.
- Está bem - diz o chefe. - Venha. Posso conceder-lhe uma hora. Não mais.
Os dois homens encontram-se numa luxuosa suite no He-lmsley Palace.
- A companhia cuida dos seus - diz o chefe, com um sorriso contrafeito. - Que terá acontecido à santidade da pobreza? Bom... não interessa. Qual é o problema, Tony?
Glitner explica-lhe os factos, admitindo que não tem dados que possa apresentar num inquérito oficial. Existe, no entanto, a nova personalidade de Evelyn Heimdall. O facto de não ter apresentado um relatório completo sobre as suas actividades com o sujeito, no sábado à tarde.
- é apenas a minha opinião - diz o agente responsável. - A minha impressão. Mas creio que estamos a perdê-la.
O chefe suspira.
- Confio na sua avaliação, Tony, mas ela tem uma excelente folha de serviços. Nenhum indício de deserção.
- Eu sei isso, senhor. Isto é um choque tão grande para mim como é para si. E gosto da mulher. É calorosa, tem personalidade e... pensava eu... é firme e digna de confiança. A agente perfeita para virar Dancer. Receio que não vá ser assim.
O chefe vai à casa de banho. Bebe um trago de Maalox pela garrafa. Volta a sair, limpando a boca.
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- Consideremos as nossas opções - diz ele. - Não temos provas suficientes que justifiquem sequer uma repreensão. Muito menos um inquérito oficial. Pode continuar a segui-la, na esperança de obter provas consistentes. Ou podemos afastá-la do caso imediatamente e nomear uma nova agente.
- Nesse caso, todo o tempo que gastámos terá sido em vão - diz Glitner. - Teríamos de recomeçar tudo do zero. Estabelecer contacto com o sujeito e assim por diante. O departamento já está à nossa frente. Uma nova agente é uma receita para o fracasso.
- Concordo - diz o chefe. - Creio que o primeiro passo é pôr Heimdall à prova, de uma forma ou de outra. Não basta segui-la. Como disse, tudo o que tem não passam de impressões.
- Então qual é a solução?
- É óbvio, não é? Desagradável, mas óbvia. Volto para Washington amanhã à tarde. Vou falar com Tommy Salvo, da Contra-Espionagem. Acho que é melhor ele destacar um homem para Evelyn Heimdall. Um advogado do diabo, por assim dizer. Operará completamente à margem da sua equipa. Nem sequer saberão quem ele é. Reconhece a necessidade de fazer isso, não reconhece?
- Sim, senhor. Ele apresentará os relatórios directamente à Contra-Espionagem?
- Exacto. E, através deles, a mim.
- Mas manter-me-á informado, chefe?
- Claro. Tanto quanto precisa de saber.
No dia seguinte, o chefe de operações reúne com Tommy Salvo, um homem que usa casacos de tweed, calças de fazenda e fuma um cachimbo amarelado. O chefe explica o problema. Salvo fuma pensativamente: professor universitário sem cargo.
- Sim - diz ele, proferindo esta única palavra num tom pontificial. - Creio que estou a entender a situação. Pretende um agent provocateur. Estou correcto?
- Não - diz o chefe -, não está correcto. Não temos o menor desejo de fazer que esta mulher caia numa armadilha. Desejamos apenas assegurar-nos da sua lealdade. é um teste. Não uma tentativa deliberada para a seduzir. Fui claro na distinção?
- Oh, sim. Sim, sim, sim. Entendo perfeitamente. Creio que tenho o homem certo para si. Jovem, atraente, viril. Excelente folha de serviços. De absoluta confiança. Chama-se Martin Frey.
- Está bem - diz o chefe. - Informe-o e mande-o para a Califórnia o mais depressa possível. Não faço ideia de como ele há-de contactar Evelyn Heimdall.
- Martin saberá - diz Tommy Salvo. Sorrindo.
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Harry Dancer, confuso, tentando encontrar significado para a sua vida, recorre à memória.
Sabe que por vezes é um homem triste. Com um gosto pela solidão. Não soturno, mas reflexivo. Dado a períodos de silêncio. Sylvia conseguia animá-lo e a fazê-lo sair deles. Aquela mulher era tudo o que ele não é: leve, caprichosa, com gosto pelo riso e pela extravagância. Era o fermento da vida dele.
Apenas consegue lembrar os bons tempos. A recordação da felicidade torna-a mais forte. Parece-lhe agora que nunca trocaram uma palavra violenta, que nunca amuaram ou gritaram um com o outro. Sabe que isso não pode ser verdade, mas a sua memória só autoriza a entrada do sol. Se houve dor e sofrimento, ele recusa-se a admiti-lo.
Sally Abbadon e Evelyn Heimdall significam desordem. Con-fundem-no; não consegue ter ideias claras. Que é que elas representam para ele? Que representará ele para elas? Procura, mas não consegue encontrar respostas. Só a memória da sua falecida mulher é simples, clara, limpa. Ela era a sua pedra de toque.
O seu casamento foi uma época melhor. Nessa altura, tinha um papel a desempenhar. Conhecia as suas deixas. Sabia quem era.
A beleza física de Sally Abbadon é tanto uma maldição como uma bênção. O patife do seu pai explicara-lhe isso ainda ela não tinha 16 anos.
- Vais destroçar muitos corações - dissera-lhe. - Podes fazer disso uma carreira... se é isso que queres. Sei que és inteligente. A questão é: queres usá-la? Podes tornar-te a querida de um homem rico ou a escrava de um homem pobre e perder a frescura devido ao tédio e à consciência das oportunidades perdidas e de uma vida desperdiçada.
- Que hei-de fazer então? Diz-me.
Ele olhara para ela especulativamente, a cabeça inclinada para um lado.
- Podias considerar a hipótese de entrar para a minha empresa. O trabalho é importante e as recompensas podem ser enormes.
- Mas não tenho qualquer experiência.
- Eu ensino-te, Sal - dissera-lhe o pai.
Descobriu um mundo excitante, cheio de mistério e encanto.
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Viagens. Novas pessoas. Tornou-se uma perita naquilo para que fora treinada. E, como o pai lhe tinha dito, os benefícios eram tremendos. O único senão era que tinha de ser perfeita no seu trabalho; os fracassos não eram tolerados. O pai tinha descoberto isso. Já morrera.
A carreira de sucesso dela continuara, sem qualquer dúvida ou remorso. Ela estava convencida de que tinha entrado para um serviço para o qual estava altamente qualificada. Estava, tal como o departamento prometera, absolutamente satisfeita. Depois fora nomeada para o caso Harry Dancer.
Agora sentia-se invadida por dúvidas e receios. Esforça-se por compreender o que está a acontecer. Diz para si própria que não é Dancer em si mesmo, o homem físico. é aquilo que ele representa. Verdades que eram um anátema para ela. Mas que subitamente se tornavam atraentes, em parte porque estão interditas ao pessoal do departamento.
Ela sempre fora viciada em situações de risco. Mais perigo, mais prazer. Agora, porém, está a cortejar o maior perigo da sua vida. Sabe-o, e não consegue resistir.
- Harry - diz ela -, conta-me a história da tua vida. O que fazias quando eras miúdo, onde vivias e tudo isso.
- Isso ocuparia todos os domingos de um mês inteiro.
- Quero saber.
Vão de carro ao longo da costa, para irem jantar a Palm Beach. Ela veste um saia-casaco de linho acinzentado, com um colar de pérolas negras. Tem o cabelo apanhado e não pôs o perfume regulamentar. Senta-se de lado para poder olhar para ele enquanto ele fala.
Ele conta-lhe algumas coisas, tentando manter a história leve e divertida. Mas ela não desiste. Faz-lhe perguntas acerca dos seus pais, escolas, igreja, namoradas, amores, passatempos, hábitos. Do seu casamento com Sylvia.
- Parece uma vida maravilhosa - diz ela.
- Sim - diz ele, surpreendido. - Acho que foi. Talvez não maravilhosa, mas uma vida boa. Vulgar. Nada de muito dramático. Mas agora, quando olho para trás, apercebo-me de como era satisfatória.
- Era? Não acabou, Harry.
- Eu sei isso, mas as coisas mudaram desde a morte de Sylvia. Percebo agora a sorte que tive. Não sei o que irá acontecer agora.
- Vais continuar a ter sorte. Teremos sorte.
Momentos depois, param num semáforo. Um Mercedes preto pára ao lado deles. Sally olha de relance, vê Briscoe e Shelby Yama olhando-a fixamente. Ela desvia o olhar.
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- O que eu gostava de fazer - diz ela a Dancer - era esquecer o jantar e continuar a andar, a andar.
- Até onde?
- Ao fim do mundo - diz ela. Ele ri-se.
- Óptima ideia. Mas tenho de voltar ao trabalho.
"Sim", prepara-se para dizer, "eu também". Mas não diz nada.
Jantam calmamente no Breakers. Vêem as montras na Via Mizner. Param num pequeno café com esplanada. Bebem um cocktail de champagne.
- Hoje estás muito calada, Sal - diz ele, dando-lhe a mão.
- Estás maçado?
- Santo Deus, não. Nunca me maço quando estou contigo. Mas parece-me que tenho sido o único a falar. Tu mal disseste uma palavra.
- Tenho estado a pensar.
- Pensamentos muito, muito profundos? - pergunta ele. -Muito profundos - diz ela. Vira-se para ele com um sorriso.
- Podemos ir para o meu motel?
- Claro, mas terei de me ir embora cedo.
- Como quiseres. Tu é que mandas.
- Sou? - diz ele. Olhando para ela com uma expressão estranha. - Por vezes interrogo-me sobre isso.
Na viagem de regresso, ela vira-se rapidamente para olhar pela janela de trás. O Mercedes preto segue-os com dois carros de permeio. Subitamente, sente medo. Não tanto de falhar em relação ao departamento como de perder Dancer se não continuar a desempenhar o papel que lhe foi atribuído. Isso, porém, representaria uma traição pessoal.
No parque de estacionamento, ela põe-lhe a mão no braço para o deter.
- Sabes o que eu gostava de fazer esta noite? Só por gozo? Apagar todas as luzes. Correr as persianas. Faremos amor completamente às escuras. Vais adorar.
- Eu bem disse que tu eras doida.
- Confia em mim - diz ela.
Na suite do motel, completamente às escuras, movem-se cautelosamente, tentando não tropeçar. Despem-se desajeitadamente. Encontram a cama. Ela apalpa, encontra-o. Agarra-o pelos ombros. Fá-lo sentar-se à beira da cama. Ajoelha-se à sua frente.
- Que estás a fazer? - pergunta ele.
- Deixa-me, Harry - diz ela. - Por favor.
Ele inclina-se para espreitar. Toca-a. Descobre que ela soltou
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o cabelo. Sente o toque dos seus dedos frios. Estão ambos em silêncio na escuridão.
-• Devagar - murmura ela.
- Gostava de te ver, Sal.
V - Depois. Deita-te para trás.
Ele faz o que ela diz. Fica a olhar para a escuridão. Cerra os punhos quando ela começa.
- Uma coisa nova - diz ela. - Gostas?
- Tu és uma bruxa - diz ele. Ofegante. Ela hesita e depois continua. Excitando-o.
- Querido - diz ela -, sou boa para ti? Ele não responde. Não pode.
- Deixa-me amar-te - murmura ela. - à minha maneira. Tu prometeste.
Ele estende a mão. Entrelaça os dedos no cabelo dela. Agarra-o com força.
- Puxa - diz ela. - Com força.
Ele não entende o que ela quer. Sente os dentes dela e pensa se ela tenciona devorá-lo. Boca. Lábios. Língua. E dedos exploradores. Ela vira-o de pernas para o ar e do avesso.
Ele estremece. Soluça. Mexe-se. Larga-lhe o cabelo para lhe segurar o rosto. Molhado. Mas não sabe se são lágrimas ou a essência dele. E, naquele momento, nada disso importa.
Ficam deitados na escuridão. Abraçados.
- Chama os paramédicos - diz ele. - Diz-lhes para trazerem estimulantes e oxigénio. Oh, Sal... Isto foi de mais.
- Não - diz ela. - Não o suficiente. Vamos repetir.
- Daqui a uns cinco anos. Nessa altura, já devo ter recuperado.
- Eu disse-te que havias de gostar às escuras.
- E gostei. Estavas desincorporada. Uma sensação estranha. Onde aprendeste estes truques?
Ela não responde. Mas aconchega-se mais a ele, apertando-o contra si.
- Quero fazer tudo por ti - diz ela. - Tudo.
- Acabaste de fazer.
- Não, não é isso. Quero ser o tipo de mulher que tu queres que eu seja.
- E és, querida.
- E amas-me? À tua maneira?
- Amo.
- Di-lo.
- Amo-te, Sal. À minha maneira.
- Então está tudo bem - diz ela. Satisfeita. - Nunca deixes de o fazer.
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reunião, Briscoe está furioso.
- Por que não acendeu as luzes? As câmaras não apanharam nada.
Sally Abbadon estava preparada para aquilo.
- Olhe, trata-se de um homem muito conservador. Um verdadeiro bota-de-elástico. Quis apagar as luzes. Que é que eu devia fazer... discutir com ele?
- Bom, que fez?
- Fomos para a cama, ele teve o seu divertimento e foi-se embora. Viram-no ir, não viram?
- Ele masturbou-a? - pergunta Shelby Yama. - Ou foi você que o masturbou a ele?
- Ele fez amor comigo. É assim que ele gosta.
- Bom, que é que ele disse? - pergunta Briscoe. - Os dois murmuraram de tal forma que os microfones não conseguiram apanhar nada.
- Ele não parava de dizer: "Amo-te, amo-te, amo-te."
- Óptimo - exulta Yama. - Está a ir de acordo com o guião. é melhor começarmos a pensar em fechar o negócio e em contratá-lo.
- Não - diz Briscoe -, ainda não. Quero que este tipo esteja tão confuso que não saiba para que lado está virado. Já experimentou as drogas?
- Experimentei - mentiu Sally. - Ele não está interessado. Já disse que ele é um... um homem muito convencional. Sobretudo sexualmente. As coisas mais ousadas fazem-no retrair-se.
- O seu trabalho é excitá-lo - diz Briscoe. - Isto está a demorar demasiado tempo. A esta hora já ele devia estar assinado, selado e entregue.
- Não o quero assustar - diz Sally. - Vão ter de me deixar fazer isto à minha maneira.
Briscoe não está convencido. Abbadon continua a preocupá-lo. Pressente ali fraqueza. Se ela se desligar, o caso Dancer pode ser uma derrocada para o departamento.
Reúne-se com o director e com Ted Charon, chefe da Segurança Interna. A pedido de Briscoe, o agente responsável Shelby Yama não é chamado para estar presente.
- Digo-lhes que Sally Abbadon está a ficar descolada - defende Briscoe.
- Já referiu estas suspeitas - diz o director. - Mas tem provas concretas?
- Não, Sr. Director. Apenas muitas pequenas coisas. Impressões. Sensações. Acho que ela está a pensar em desertar.
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- Isso seria um desastre - diz o director. - Depois de tanto trabalho. De verbas gastas. Alguma ideia, Ted?
- Podíamos pô-la à prova - diz Charon. - Usar um agent provocateur. Briscoe, Sally tem algumas amigas íntimas?
- Que eu saiba não.
-Bom, tenho uma mulher na minha secção que é especialista em casos destes. Chama-se Angela Bliss. Não é um nome esplêndido para uma operativa do departamento? De qualquer forma, opera em Chicago. Não creio que tenha alguma vez trabalhado com Abbadon, mas podemos pedir a Cleveland que verifique os registos para termos a certeza.
- Quer atirar essa Angela Bliss a Sally? - pergunta o director. - Apanhá-la a jeito e tentar descobrir se ela está a pensar em virar?
- Não exactamente, senhor. Angela desempenha um papel mais activo do que esse. Tenta deliberadamente virar o agente. Um advogado do diabo, por assim dizer.
- Briscoe - diz o director -, que acha?
- Vamos fazer isso. Não encontrei uma alternativa melhor.
- Está bem. Mas aguente as coisas até eu ter luz verde do presidente. Ele tem de aprovar todas as transferências de pessoal de uma região para a outra.
- Essa tal Angela Bliss - diz Briscoe a Charon -, trabalha bem?
- é a melhor - diz ele.
Os agentes provocadores da companhia (Martin Frey) e do departamento (Angela Bliss) chegam a Fort Lauderdale no mesmo dia. São ambos informados sobre o caso e sobre as tarefas a executar. Fica entendido que Frey ficará dependente de Tommy Salvo, chefe da Contra-Espionagem, em Washington. Bliss estará subordinada a Ted Charon, na sede da Região Sudeste.
Frey aluga um pequeno apartamento no complexo em frente à praia onde vive Evelyn Heimdall. Tony Glitner leva-o de carro ao clube de ténis em Boca. Indica Evelyn, que está a ter uma lição com o professor.
- é aquele o seu alvo - diz ele a Frey. O agente olha-a fixamente.
- Pronto, já a fixei. Ela costuma nadar na praia ou vai à piscina dos apartamentos?
- Normalmente, à piscina.
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- Óptimo. Vou tentar estabelecer o contacto lá.
Glitner prepara-se para dizer qualquer coisa, mas pára. Não gosta do que estão a fazer a Evelyn, embora reconheça que é necessário.
Uma hora mais tarde, Martin Frey está deitado numa espreguiçadeira acolchoada, no relvado em torno da piscina dos apartamentos. Veste uns calções de banho pretos justos e brilhantes. Corpo de nadador. Ombros largos, músculos alongados. Pele morena. Cabelo preto, penteado para trás. Podia ter sangue índio - ou italiano, do sul. Exala agressividade.
Entra e sai da água várias vezes, fazendo facilmente cinquenta percursos na pequena piscina. Iça-se sem esforço. Sacode o comprido cabelo preto como um cão e penteia-o para trás com os dedos.
à beira da piscina estão também um casal de meia-idade e um homem mais velho, sozinho. Aparecem duas ninfas para um mergulho rápido, esparrinhando água e soltando risadinhas. Depois correm para a praia. Frey observa as pernas bronzeadas, faiscando ao sol.
Está prestes a desistir quando Evelyn Heimdall sai pela porta das traseiras. Veste uma saída de praia branca e calça sandálias à gladiador. Traz um saco de praia amarelo. Frey deita-se com as mãos cruzadas sobre o peito. Observa-a através dos olhos semi-cerrados.
Ela instala-se na outra extremidade da piscina. Estende uma grande toalha na espreguiçadeira. Tira as sandálias e a saída de praia. Veste um minúsculo biquini amarelo. Começa a pôr bronzeador. Há qualquer coisa na forma como o faz. Algo acariciante, decide Frey.
Ele levanta-se, mergulha, começa a deslizar de um lado para o outro num crawl sem esforço. Quando vira na extremidade da piscina onde ela está instalada, repara que ela o observa enquanto unta as pernas com bronzeador.
Ele sai da água. Sacode-se. Seca-se. Olha em volta, indeciso. Depois dirige-se a ela, com passos ginasticados. Ela está de óculos escuros, com as lentes escuras viradas para ele.
- Peço desculpa - diz ele. Um sorriso deslumbrante. Os dentes brancos brilham, contrastando com a pele morena. - Sou novo aqui. Pode dizer-me se há algum sítio onde posso arranjar uma bebida gelada?
- Receio bem que não - diz Evelyn Heimdall. - Tem de a trazer consigo, mas não são permitidas nem garrafas nem copos na zona da piscina. Isso significa que terão de ser latas e copos de papel.
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- Oh - diz ele -, da próxima vez já sei. Obrigado.
- Nada muito bem - diz ela. Tão fácil como isto.
Angela Bliss tão-pouco encontra grandes dificuldades, em circunstâncias quase idênticas. Briscoe aluga-lhe um quarto no motel de Sally Abbadon. Ajuda-a a instalar-se. Dá-lhe o número da suite de Sally.
- Não tem nada que enganar - diz ele. - Loura e alta. Grande em todos os aspectos. Cabelo comprido. Já viu a fotografia dela?
- Sim.
- Então, não terá problemas. Normalmente, trabalha para o bronze todas as tardes. Pode ver a zona da piscina da janela do seu apartamento.
- É bastante bom - diz Bliss. - Encarregar-me-ei de tudo a partir daqui.
Fecha a porta à chave quando ele se vai embora. Despe-se, veste um fato de banho branco, discreto. Põe óculos graduados, revê o dossier de Sally Abbadon. A mulher parece leal - mas nunca se sabe.
Angela Bliss é magra, ossuda. Uma tábua, sem peito nem ancas discerníveis. Cabelo arruivado cortado à rapaz. Olhos de um azul leitoso. Nariz aquilino e lábios duros. Tudo nela é anguloso. A sua única vaidade são as suas mãos: compridas, graciosas, bonitas. Tem as unhas pintadas de vermelho-sangue.
Vai ao quarto várias vezes e olha pela janela. Finalmente, vê Sally Abbadon estendendo uma toalha numa cadeira de plástico. Está ao sol, perto de uma mesa metálica com um grande chapéu-de-sol. Abbadon veste um conjunto cor de carne. Nada entre as pernas a não ser uma tira fina. Parece nua.
Bliss inspecciona a zona da piscina. Há mais duas mesas com chapéus-de-sol, ambas ocupadas. Põe uma saída de praia transparente, sandálias e um chapéu de abas largas. Leva um saco de praia de lona ao ombro.
Sai pela porta da sala. Dirige-se à piscina. Abbadon está a pôr loção nos ombros e nos braços. Bliss olha em volta e depois dirige-se ao alvo, hesitante.
- Peço desculpa - diz ela. Sorriso tímido. - Importa-se de que compartilhe a sua mesa?
98- Com certeza - diz Sally. Ri-se. - Só me posso sentar numa cadeira de cada vez.
- Obrigada - diz Angela Bliss. - Mas que bronzeado maravilhoso você tem.
- Dedico-lhe muito tempo.
- Estou tão branca. Mas estou decidida a ganhar alguma cor. Só para provar à gente lá da terra que estive na Florida. Importa-se de me dizer que bronzeador hei-de usar?
- Com todo o gosto.
- O meu nome é Angela - diz Bliss. - Qual é o seu?
Sentado na Sala de Guerra do departamento, em Cleveland, na sua cadeira semelhante a um trono, o presidente lê as últimas informações sobre as acções em curso. É a listagem diária de computador. Um sumário final indica o resultado do dia anterior: catorze êxitos, doze fracassos. Demasiado equilibrado para o deixar satisfeito, decide o presidente.
Volta à campanha de Harry Dancer. A sua complexidade fascina-o. Fica contente por ver que a agente da Segurança Interna estabeleceu contacto com Sally Abbadon. Isso deve, efectivamente, frustar a possibilidade de traição por parte daquela senhora.
Mas fica confuso com o relatório do agente do departamento nomeado para observar as actividades de Evelyn Heimdall. Aparentemente, ela fizera um novo amigo. Um homem novo, bem-parecido. O agente viu-os juntos em várias ocasiões. A conversar. A rir. A nadar. A passear na praia. O homem chama-se Martin Frey.
No mundo do presidente, as coisas raramente acontecem por acaso. Chama o supervisor e solicita uma investigação a Martin Frey. Espera pacientemente. Cerca de vinte minutos mais tarde, é-lhe entregue um relatório, que ele lê rapidamente. Frey é um agente da companhia, ligado à Contra-Espionagem. _
O presidente puxa o lábio inferior. Delibera. É possível, evidentemente, que Heimdall saiba quem é Frey e que o agente da Contra-Espionagem tenha sido designado como elemento de apoio ou guarda-costas. Mas o presidente não pensa assim.
Acredita que a companhia está preocupada com a lealdade de Heimdall. Martin Frey foi designado para a testar. Pela mesma razão, Angela Bliss fora atracada a Sally Abbadon. O departamento e a companhia estão a fazer jogadas operacionais semelhantes. A guerra secreta que ambos travam assim o exige.
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O chefe de operações da companhia chegou à mesma conclusão. Anthony Glitner comunica que Willoughby, designado para cobrir Sally Abbadon, diz que a agente do departamento tem uma nova amiga. Uma mulher que vive no mesmo motel. Nome: Angela Bliss. Juntamente, é fornecida a descrição física.
O chefe insere o nome no computador. Daí a minutos tem a resposta: Angela Bliss é um agent provocateur. Trabalha na Secção de Segurança Interna do departamento. Base: Chicago. Então o departamento está tão preocupado com a sua agente de campo como a companhia está com a deles.
O presidente e o chefe ponderam as próximas acções. Nesta luta, inacção é sinónimo de derrota. Os dois homens acreditam que as suas estratégias básicas são seguras mas que as tácticas têm de ser revistas para levar em conta a presença e as actividades dos novos intervenientes.
Cada um deles planeia a melhor maneira de explorar as fraquezas do outro. E, como é frequente acontecer no mundo da espionagem e da contra-espionagem, o objectivo principal da campanha é inconscientemente relegado para segundo plano, perante o estímulo e o desafio intelectual suscitados por planos de jogo opostos.
Harry Dancer está a passar por uma curiosa metamorfose. A sua intimidade com Evelyn Heimdall e Sally Abbadon, em vez de atenuar as recordações da sua falecida mulher, avivou-as. Estas passaram para o presente do indicativo.
Sylvia e ele dormem juntos várias vezes antes de ela o pedir em casamento. Ele aceita. Passam uma noite inebriante, planeando o casamento (simples) e a lua-de-mel (grandiosa). Subitamente, Harry deixa de sorrir, fica sério e olha-a fixamente.
- Syl - diz ele -, estou com medo.
- Porquê?
- O casamento é uma coisa nova, sabes? Uma coisa diferente. Uma coisa que eu nunca fiz.
- Eu também não, mas não estou com medo. Queres desistir assim tão depressa?
- Oh, não. Não. Syl, achas que isso vai mudar as coisas?
- Que coisas?
- Entre nós. Ela reflecte.
- Provavelmente - decide ela. - Até agora tem sido só
100
divertimento, certo? Agora aparece um padre, que diz algumas palavras, e nós assinamos um contrato. Claro que as coisas entre nós vão mudar. Têm de mudar. Mas acho que vamos conseguir, não achas?
- Vou fazer um esforço sério. Juro por Deus que vou.
- Eu também. Tens razão, Harry; não vai ser fácil. Ambos vivemos sozinhos durante muito, muito tempo. Os ajustes...
Ele assente.
- Uma série de pequenas coisas. O tubo da pasta de dentes apertado no meio ou numa das extremidades. O papel higiénico a sair do rolo por debaixo ou por cima. Os pratos no lava-louças. Coisas estúpidas. Sem importância. Que não merecem que discutamos por causa delas. Conseguiremos resolvê-las todas com um sorriso. O que me preocupa é o nosso amor um pelo outro. Será que ele diminuirá depois de casarmos? Nunca estivemos juntos mais de... talvez vinte e quatro horas. Que acontece quando vivemos na mesma casa? Juntos... até que a morte nos separe?
- Não estejas à procura de sarilhos - aconselha ela. - Não somos um casal de adolescentes. Ambos temos experiência. Será dar e receber, não é? Na minha opinião, Harry, estaremos ambos a fazer um sacrifício. A desistir de um pedaço de nós próprios. Mas, em contrapartida, ganhamos uma terceira identidade. Existirás tu, eu e o nosso casamento. Com trabalho e alguma sorte, o casamento tornar-se-á mais importante para nós do que nós próprios.
- Esse é um pensamento feliz - diz ele. Abraça-a. - Vais fazer-me bem, Syl; sei que vais.
- Amar-te-ei até morrer - diz ela. - Verás.
A cerimónia do casamento é decorosa e comovente. Dancer fica deslumbrado com a beleza de Sylvia. Não é apenas o vestido branco, comprido e cintilante, o véu. é luminescência. é uma estranha para ele. Etérea. Ele beija uma aparição, com medo de que ela se dissolva.
A recepção no clube é divertida. Muito álcool. Piadas sugestivas. Cotoveladas e risinhos alusivos. Movem-se no meio de tudo aquilo, sorrindo, sorrindo. Depois, de mãos dadas, saem pelas traseiras. Vão de carro para o aeroporto de Lauderdale, a tempo de apanharem o voo para LaGuardia.
- Parabéns - diz a hospedeira.
- Quem lhe disse? - pergunta Sylvia.
- Ninguém. Vocês têm todo o ar disso. Quando ela se afasta, Sylvia pergunta-lhe:
- Que ar é esse?
- Estupefacto - diz ele.
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Ficam numa suite no cimo do New York Hilton. Harry encomendou flores e champanhe. E não prescinde de entrar com ela ao colo.
- Hérnia instantânea - diz ele.
Vão até à janela por momentos, enlaçados pela cintura. Olham lá para baixo, para a cidade cintilante.
- Quere-la? - diz Harry. - É tua.
- Ná - diz ela. - Demasiado pequena. Quero-te a ti.
- Gostava que soubesses que estou ciente de que esta é a tua noite de núpcias e prometo que serei muito terno, meigo e compreensivo.
- Vai-te foder - diz ela.
Saem parajantar no East Side. Dão um passeio de carruagem pelo Central Park. Param no Oak Bar no Plaza para um cocktail de brande e champanhe. Depois apanham um táxi até ao hotel.
- Estou exausta - diz Sylvia. - Foi um dia muito comprido.
- Bom, bom. É a primeira noite e já tens dores de cabeça. Ela ri.
- Não perderia isto nem que estivesse com convulsões. Quantas raparigas são coisadas na sua noite de núpcias?
Ainda vestidos, aproximam-se um do outro. Ele tenta dizer-lhe o que sentiu quando a viu caminhar até ele, flutuante, ao longo da nave.
- Nesse momento tive a certeza - diz ele -, a certeza, de que estávamos a fazer o que era certo. Não há nada que enganar, querida.
- Amo-te, Harry.
- Amo-te, Sylvia.
Tomam duche juntos. Era a primeira vez que faziam isso. -Eia - diz ela -, há quanto tempo é que isto dura? É óptimo.
- Fui eu que inventei - diz-lhe ele. - Syl, se eu não conseguir pô-lo de pé esta noite, salto pela janela.
- Nem penses duas vezes - diz ela. Depois acrescenta: - Concentra-te na primeira.
Ela tem razão: fora um longo dia. Com uma grande carga emocional. Ficam deitados nus, abraçados, conversando. O casamento. A recepção. O aspecto dos convidados. O que disseram. E viste...? E ouviste...?
Subitamente, blackout. Adormecem ambos. Agarrados. Dancer é o primeiro a acordar, estonteado. Demora meio minuto a lembrar-se de quem é, onde está, quem é aquela mulher, o que fizera. Olha para o relógio de viagem. Quase quatro e meia da manhã. Levanta-se cuidadosamente. Quando volta da casa de banho, ela está acordada.
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- Não foi maravilhoso? - pergunta-lhe ele. - Fazer amor nunca foi tão maravilhoso, pois não?
- Idiota - diz ela. Estendendo-lhe os braços nus.
É um idílio. Leve e despreocupado. Vêm-se juntos, com alegria. Aninhados.
- Caramba, mamã - diz ela -, agora já tenho com quem brincar. Isto é porreiro.
O corpo dela é bronzeado. Duro. Músculo sob cetim. Ele toca-a, maravilhado, apercebendo-se de que subitamente ela se transforma numa novidade para ele.
- Querida... - diz ele.
- Que é?
- Nada. Apenas querida. Gostas?
- Não, não gosto. E dou-te exactamente três horas para parares.
- Maluca - diz ele. Rindo. - Casei-me com uma maluca.
- Sr. e Sra. Maluco - diz ela. - Não soa bem?
- Queres que te massaje as costas? - pergunta ele.
- Sim, por favor.
Ela rola na cama. Ele escarrancha-se sobre ela. Começa a massajar-lhe suavemente o pescoço e os ombros.
- Dedos mágicos - murmura ela.
Ele massaja-lhe as costas. Fricciona-lhe as vértebras suavemente.
- Tenho de te engordar - diz ele.
- Como queiras.
Ele inclina-se para a acariciar com os lábios e a língua. Beija-a nas costas. Curva-se para lhe mordiscar as nádegas arredondadas.
- Ooohhh... - diz ela. - Nunca me fizeste isso antes.
- Nunca estive casado antes. Queres dormir?
- Deves estar a brincar.
Ela rola, ficando de costas. Abraçam-se encantados e sorridentes. O amor deles é descontraído. Sem tensão, nem dor. Depois, a carne febril, a união fácil.
- Aceito - diz ela. Repetindo o voto do casamento. - Aceito, aceito, aceito. Oh, meu Deus, se aceito.
Passam uma semana memorável em Manhattan. Repleta de estranhos encantos. Incidentes inesperados. Boa comida. Uma sessão num ringue de patinagem. Uma boa peça na Broadway. Comem peixe cru pela primeira vez. Vêem um Ingres no Metropolitan que faz Sylvia chorar de prazer. Fazem uma viagem de iate à volta da ilha. Comprampretzels a um homem sobre andas.
Depois regressam à Florida. Instalam-se na casa em frente à
103
praia. Dancer volta ao trabalho. Sylvia atarefa-se a redecorar a casa. Leva para lá as suas coisas e faz um esforço para não lhe telefonar de hora a hora a dizer "Amo-te".
A rotina e o hábito instalam-se. Ocorrem vários choques - como já esperavam. Coisas pequenas e estúpidas, concordam. Tudo se resolve. Mas o casamento deles cresce. Floresce. Ao ponto de preferirem passar a noite juntos a terem de suportar a companhia de estranhos simpáticos.
- Temos de parar com isto - diz Sylvia. - A lua-de-mel já acabou.
Mas não.
O que os salva de uma felicidade saturante, desprezível aos olhos dos conhecidos, é a diferença de personalidades. Ela é tão leve, tão alegre. Um duende, de facto. Ele tão pesado, introspectivo. E, por vezes, dado a silêncios e a lágrimas. Esta disparidade é a causa de confrontos psíquicos, uma guerrilha secreta, e por vezes aberta, que os deixa abalados e deprimidos.
Até que, passados três anos de casamento, apercebem-se de que aquela tensão é a pimenta das suas vidas e que o casamento não teria sobrevivido sem ela. Então aceitam-se um ao outro tal como são. A relação aprofunda-se e torna-se uma relação feita tanto de respeito e compreensão como de amor.
Martin Frey, Romeu experimentado, depressa aprende que uma pequena lisonja não é lisonja nenhuma.
- és a mulher mais bela que alguma vez conheci - diz a Evelyn Heimdall.
Ela sorri. Preguiçosa como um gato. Rolando suavemente na espreguiçadeira à beira da piscina. Tostando a pele. Abrindo o corpo ao sol penetrante.
- és um rapaz muito querido - diz ela. - Um rapazinho muito querido.
- Isso faz alguma diferença?
Ela baixa os óculos de sol para olhar para ele.
- Não, não faz.
- Só se vive uma vez.
- É o que eu estou a aprender - diz ela.
- Gostava de te levar a jantar fora, hoje - diz Frey. - Posso?
- Desculpa. Tenho um compromisso.
- Um cocktail"? Antes do teu compromisso? Reflecte por momentos.
104
- Está bem. Uma bebida. Depois tenho de me ir embora. Contentas-te com isso?
- Contento-me com qualquer coisa. Queres passar pelo meu apartamento? Por volta das cinco, achas bem?
- Às seis. Fico uma hora. Não mais. Agora, estás pronto para a minha lição de natação?
- Claro.
- Que me vais ensinar hoje?
- Bruços - diz ele, sorrindo.
- És terrível - diz ela. Dá-lhe a mão para que ele a ajude a levantar-se. Vão juntos até à borda da piscina.
- Vamos tentar outra vez o batimento de pernas - diz ele. Vão para a parte menos funda. Ela agarra-se à borda. Flutua
com a cara virada para baixo.
- Muito bem - diz ele -, começa a bater as pernas. A partir das ancas. Primeiro devagar.
Ela tenta.
- Não, não - diz ele. - Estás a bater a partir dos joelhos. Mantém as pernas esticadas.
Ele toca-a. Obriga-a a manter os joelhos juntos. Os dedos dele parecem seda por debaixo de água.
- Estica os dedos os pés - ordena ele. - Mantém as pernas rígidas. Experimenta outra vez.
As pernas compridas começam a bater. A partir das ancas. Joelhos juntos. Dedos dos pés esticados. A água agita-se até fazer espuma.
- Óptimo - diz ele. - Estás a ir muito bem. Agora vira-te. Flutua com a cabeça para baixo. Atravessa a piscina batendo as pernas. Inspira fundo e mantém a cabeça dentro de água. Braços esticados. Não tentes fazer movimentos com os braços. Bate só as pernas.
Ela começa. Quase consegue. Mas depois tem de tirar a cabeça de dentro de água para respirar. Isso quebra o ritmo da batida.
- Okay - diz ele -, foste muito bem. Agora faz o percurso de volta da mesma maneira. Devagar e com calma. Concentra toda a tua força nas coxas.
Ela estica os braços. Inspira fundo. Mergulha a cara na água. Arranca. Bate as pernas para chegar até ele. Ele avança de forma que as mãos estendidas dela toquem nos calções de banho dele, justos ao corpo. Ela levanta a cabeça, ofegante.
- Muito bem - diz ele. - Faz isso mais algumas vezes. Amanhã vamos experimentar a todo o comprimento da piscina e veremos até onde consegues ir.
Ela cobre a largura da piscina várias vezes, batendo as pernas.
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Quando regressa à zona pouco profunda da piscina, onde ele permanece de pé, estende as mãos para o tocar. Um toque prolongado. Um bailado.
- Estás a ir muito bem - diz-lhe ele.
- Estou?
- Mantém essas belas pernas juntas e faz os movimentos a partir das ancas.
- Tentarei lembrar-me disso - diz ela.
Quando ela chega ao apartamento dele às seis horas, leva vestido um amplo camiseiro de linho alfazema. Bastante decotado à frente e, atrás, descendo quase até à cintura. A sua pele bronzeada brilha.
- Estás um espanto - diz Frey. - Um homem de sorte, esse com quem te vais encontrar logo à noite. Que queres beber? Tenho vodca, rum, uísque e vinho branco. Creio que é tudo.
- Um pouco de vinho branco. Sabes, Martin, as minhas pernas começam a ressentir-se de tantos batimentos. Doem-me as coxas e as canelas.
- Amanhã treinas mais. Passado algum tempo, os teus músculos ficarão tonificados e não sentirás nada.
Ele está descalço, veste uns calções curtos de caqui branco e uma camisa sem mangas, também de caqui. Ela consegue ver tufos de pêlos pretos por debaixo dos braços dele. Desvia o olhar, estranhamente excitada.
- Bom vinho - diz ela. - Obrigada. E a procura de emprego, como vai?
- Tenho outra entrevista amanhã - diz ele. - Não estou desanimado. Os empregos existem, só que os salários não são bons.
- Sei muito pouco de computadores - confessa ela.
-Não é tão difícil como julgas. Se eu consigo fazê-lo, qualquer pessoa consegue.
Sentam-se lado a lado no sofá: uma monstruosidade coberta com um pano cor de laranja de batik. Frey encosta suavemente a palma da mão às costas dela.
- Estás quente - diz ele. - Não andas a apanhar demasiado sol, pois não?
- Acho que não. Uso um protector solar.
- Óptimo. Se não vais pelar como uma cebola. Ev, se o teu encontro acabar cedo, ou mesmo que não acabe, e se te apetecer aparecer para tomar um copo, adoraria que viesses.
Ele desliza as pontas dos dedos pelas costas dela. Ela estremece.
- Não acho que possa fazer isso - diz ela.
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- Porquê?
- Uma pequena questão de ética.
- Ética? - diz ele. Sorriso feroz. - Que é isso? Se não estás a magoar ninguém, qual é o mal?
Ela não sabe a resposta.
- Bom - diz ele -, pensa nisso. Nunca me deito antes das duas da manhã, portanto não me incomodarás.
- Vou pensar nisso - diz ela, sentindo os dedos dele acariciá-la.
- É óbvio que não tens soutien, pois não?
- Obviamente que não.
- Vou dar-te o meu número de telefone - diz ele. Evelyn Heimdall e Harry Dancer vão a um novo restaurante
francês, em Las Olas. Comem escargots, vitela e um souffléGrand Marnier. Bebem um chablis velho. Dancer está melancólico. O jantar é soturno.
- Desculpa - diz ele. Pondo a mão sobre a dela. - Hoje estou rabujento e sei-o. Por favor, desculpa-me.
- Que tens, Harry?
- Oh, tenho destas coisas de vez em quando. Não é propriamente uma depressão, mas uma espécie de amuo. Envergonho-me disso, mas é superior a mim.
- Não acredito que alguma vez amues.
- Pensamentos solenes, então. Contentas-te com isso? Só dura um ou dois dias, mas quando estou assim sei que sou uma péssima companhia.
- Também tenho uma confissão a fazer - diz ela. - Estou naquela altura do mês. Desculpa, chefe. Mas talvez seja bom para nós o facto de os nossos períodos inactivos coincidirem. Daqui a alguns dias estaremos felizes e contentes de novo.
Isso provocou a sua primeira gargalhada da noite.
- Espero que sim - diz ele. - Levo-te a casa cedo e sonharemos ambos com as coisas melhores que virão.
A caminho de casa, ela diz:
- A propósito, tenho um namorado novo.
- Óptimo - diz Dancer.
- Tens ciúmes?
- Loucamente.
- Tenho muita dificuldade em acreditar nisso. Ele mudou-se para o meu bloco de apartamentos. É muito simpático, embora demasiado novo para mim. Mas está a ensinar-me a nadar.
- Queres dizer que não sabes nadar? Santo Deus, devias ter-me dito. Eu ter-te-ia ensinado.
- Demasiado tarde - diz ela -, já tenho professor.
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- Como é que ele se chama?
- Martin Frey. É de Nova Jérsia. Está a tentar arranjar emprego aqui, em computadores.
- é atraente?
- Muito.
- Agora estou com ciúmes. Ela ri-se. Toca-lhe no braço.
- Harry, não tens nada com que te preocupar.
Pouco passa das dez quando ela chega a casa. Está sozinha no seu próprio apartamento. Acende as luzes todas. Despe-se devagar. Vai à varanda, nua. Deita-se na espreguiçadeira. A brisa fresca tem lábios. Fecha os olhos por causa do luar.
Como é reconfortante uma pessoa sujeitar-se a uma disciplina. Exército, estado, religião... seja o que for. Aceitar mitos, sonhos, ilusões. Render-se. Oh, não ter de escolher. As malditas decisões. Assina e ficarás livre. Será a tirania uma espécie de liberdade?
Ela mexe-se. Abre os olhos para olhar para o céu cravejado de estrelas. Isso significa que a liberdade é dolorosa. Dor e sofrimento. Assume a responsabilidade pelo teu próprio destino e estarás metida em sarilhos. A questão é... A questão é...
- Qual é a questão? - pergunta ela. Em voz alta.
A luz-piloto dentro dela reluz, mais quente. Ela jura a si própria, solenemente, que não é só desejo físico. É um desejo de respirar livremente. Levar o mundo para a cama e anotar o que acontece. Vê portas abrirem-se. Janelas bruscamente escancaradas. Intoxicação. É invadida por fantasias loucas.
Levanta-se, trémula. Vai até à sala. Telefona a Dancer.
- Harry? Chegaste bem a casa?
- Cheguei. Desculpa ter estado tão rabugento durante o jantar.
- Tens direito a isso. Todos nós temos neuras. Lamento não estar... fisicamente apta a fazer-te esquecer os teus problemas.
Ele ri-se.
- Amanhã é um novo dia, Ev.
- Pois é. Amo-te, Harry. Dorme bem.
- Tu também, querida. Obrigado por teres telefonado.
Ela volta para a espreguiçadeira, na varanda. Contente por ter telefonado. Mas ainda insatisfeita. Harry parece fazer parte de uma vida passada. Disciplina, mitos, sonhos, ilusões. Ele está por detrás de portas fechadas. De janelas fechadas, onde não sopra nenhuma brisa sedutora, temperada com sal, que agite e excite.
Toca-se, confusa com a miríade de "e se". Sente-se como uma
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miúda deambulando num jardim. Todas aquelas flores, cheiros, sensações. Nunca teve de escolher entre várias alternativas. "Assina, e as tuas preferências serão ditadas." Como pode ela jurar pela cor vermelha quando o branco é obrigatório?
Recosta-se. Abre os braços. Levanta os joelhos. Afasta as coxas.
- Fode-me, lua - diz em voz alta, com um riso abafado. Loucura! Ela desconhece a sua origem. Sabe, porém, que é
perversa. E excitante. E não consegue resistir à sua atracção. Ser todas as coisas! Saber todas as coisas! Sem padrões, sem moral, sem leis. Nem uma. Nenhum desejo de recompensa. Nenhum medo de castigo. Então é que a vida podia ser magnífica!
Ela ainda não está preparada para isso. Ainda não. Contudo, vislumbra o chamamento. É como, diz a si própria, as portas de uma prisão, abertas, de par em par. O preso olha incrédulo. Espanto. Dá um passo hesitante. Depois outro. E outro. E depois, liberto, caminha a passo rápido e vivo, corre, corre desenfreado. Rindo. Chorando.
Evelyn Heimdall arde com esta visão. Volta à sala de estar. Acende o candeeiro da mesinha e remexe na mala. Finalmente, encontra o número dele.
- Martin? - diz ela. - Boa noite. Fala Evelyn.
- Olá - diz Frey. - Como foi o encontro?
- Foi bom. Estou em casa. O convite para tomar uma bebida ainda está de pé?
- Claro. Vem cá abaixo.
- Não - diz ela. - Vem tu cá acima.
Sally Abbadon já esqueceu o que é ter uma amiga íntima. Todas as suas missões são homens. Todos os colegas são masculinos. Agora tem Angela Bliss. Simpática. Generosa. Ansiosa por agradar. Sally gosta de ter uma confidente.
As duas mulheres passam horas juntas. Normalmente, de manhã e à tarde. E nas noites em que Sally não se encontra com Harry Dancer. Deitam-se ao sol, na piscina ou na praia. Fazem compras no centro comercial. Experimentam restaurantes divertidos. Fazem um passeio de barco no Intracoastal Waterway.
Fisicamente diferentes, têm algumas coisas em comum. A experiência de trabalho árduo e longas carreiras. Independência. Ambas com vidas centradas em homens. No caso de Angela, é um marido inválido numa casa de saúde. É o que ela diz.
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- Sinto-me culpada por tê-lo deixado - confessa. - Mas tinha de me afastar, nem que fosse só por algumas semanas. Quando estou em casa, falo com ele todos os dias e visito-o três ou quatro vezes por semana. É esgotante.
- Também me parece - diz Sally. - Não há esperanças de que ele melhore?
- Não, nenhumas. é uma doença nervosa degenerativa. Os médicos dizem que ele pode viver anos, piorando progressivamente.
- Que horror.
-Às vezes apetece-me ir embora, sabes? E nunca mais voltar. Mas não posso fazer isso.
- Porquê?
- Bom, eu amo-o mesmo e ele está completamente dependente de mim. Além disso, sou uma mulher muito religiosa e sei que não seria correcto abandoná-lo. Não sei que faria sem a minha fé e a minha igreja. Dão-me forças para continuar.
Sally Abbadon não responde.
Estão a tomar o pequeno-almoço num Howard Johnson na Briny Avenue. Lá fora, uma chuvada forte fustiga os vidros das janelas. Por detrás vê-se um céu azul, promessa de um dia quente.
- Vai passar - diz Sally. - Vamos ter bom tempo para nos queimarmos. Estás a ficar com boa cor.
- Nunca hei-de ficar tão escura como tu - diz Angela. - Mas tu não estás escura, é mais um tom de alperce.
- Alperce? - diz Sally. Rindo. - Muito obrigada!
- Sabes o que eu quero dizer. És uma mulher muito bela. Gostava de ter a tua figura.
- Não estás nada mal - garante Sally. - No entanto, acho que podias fazer mais por ti do que fazes. Um soutien acolchoado ajudaria, para começar. Ou talvez mesmo cirurgia plástica. Hoje em dia fazem-se milagres.
- Oh, não - diz Angela. - Nunca faria isso. A minha Igreja ensina que a vaidade é um pecado. Terei de viver com aquilo que sou.
O céu limpou. O sol começa a ficar mais quente. Dirigem-se lentamente para o motel.
- Podíamos ir ao Pompano Fashion Square - sugere Sally. - No Jordan Marsh os fatos de banho estão em saldo.
- Talvez logo - diz Angela. - Gostava de apanhar um pouco de sol antes que faça demasiado calor. Depois tenho de escrever algumas cartas.
- Para o teu marido?
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- Para o meu marido, para o padre, para outras pessoas.
- A tua Igreja é muito importante para ti, não é, Angela?
- Muito importante? é tudo. Não sei que faria sem ela. É ela que me faz continuar. Tu não és religiosa, pois não?
- Não, não verdadeiramente. Não fui educada assim.
- Bom, eu nunca tento converter ninguém. Aquilo em que uma pessoa acredita é lá com ela. Mas gostava que viesses comigo à igreja, um domingo de manhã. É tão bonito. Tão reconfortante.
- Vou pensar nisso - diz Sally Abbadon.
Deita-se na toalha de praia estendida sobre a relva. Desaperta a parte de cima do biquini. Angela senta-se ao lado dela. Esfrega-lhe protector solar nos ombros. Nas costas. Movimentos suaves, acariciantes.
- Sabe tão bem - murmura Sally.
- Deixa-me pôr na parte de trás das pernas - diz Angela. Nessa noite, em casa de Harry Dancer, Sally fala-lhe da sua
nova amiga.
- Deve ser bom acreditar tanto numa coisa como ela acredita - diz ela. - Com um marido acamado que está a morrer, teria todas as razões para não acreditar.
- Ela trabalha? - pergunta ele.
- Sim. No departamento de crédito de um Banco de Chicago.
- Bom, espero que o marido tenha um bom seguro de saúde. Ou talvez esteja reformado por invalidez. Essas doenças prolongadas podem levar à ruína.
- Ela não referiu o modo de pagamento e eu não perguntei, claro. Tu frequentas a igreja, Harry?
- Não desde o funeral de Sylvia. Costumávamos ir de vez em quando. Na Páscoa e no Natal. Noutras ocasiões também. Mas não regularmente.
Ele fizera uma grande salada de lagosta e de camarão. Com pão de alho frito. E um jarro de vinho do Reno gelado. Uma refeição informal. Traje informal. Estão ambos de calças de ganga. Sally veste uma das camisas velhas de Harry, apertada à frente com um nó, que deixa ver a sua barriga bronzeada.
- Isto estava muito bom - diz ela. Recostando-se. - Podes cozinhar para mim sempre que queiras.
- Qual cozinhar!? Estava tudo frio. À excepção do pão de alho, e esse apenas aqueci no forno. Que gostavas de fazer... dar um passeio pela praia?
- Nem por isso. Vamos levar o resto do vinho lá para cima.
- Óptima ideia - diz ele.
Está a representar. Sabe que a sua conversa de cama e os sons que fazem ao fazer amor estão a ser escutados e registados. Diz
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coisas e suscita respostas de Dancer que acha que agradarão a Shelby Yama e a Briscoe.
Mais tarde, Dancer vai para a casa de banho tomar um duche. Sally fica sozinha, deitada na grande cama, sobre lençóis suados. Tapa os olhos com o braço.
Aquilo que ela sente, decide, é uma forma estranha de solidão. Não em relação a alguém, mas em relação a qualquer coisa. Uma nova certeza. O seu futuro, que outrora lhe parecera claro, com a promessa de alegrias infinitas, parece-lhe agora sem brilho e sem vida.
As recordações de Harry Dancer da sua vida com Sylvia dão-lhe um vislumbre de uma terra estranha, povoada de amor e de uma delicadeza verdadeira. Gostaria de viver nesse mundo de doce razoabilidade. Dia após dia, exactamente como aquele que passou e o que viria a seguir. Continuidade e significado. Com uma fé constante, como a de Angela.
Não pode alimentar esperanças quanto a um casamento com Harry Dancer. Representou demasiado bem o seu papel; ele considera-a uma miúda exótica e selvagem, mas não uma companheira para amar e acarinhar como Sylvia. E, se ela sugerisse tal coisa, o departamento castigá-la-ia. De formas que ela preferia não imaginar.
Ela ouve-o sair da casa de banho. Tira o braço de cima dos olhos húmidos. Observa-o andando pelo quarto, vestindo-se. Um homem querido, forte, digno de ser amado. Provavelmente, a melhor de todas as suas vítimas. De alguma maneira, de formas desconhecidas dele, e dela, ele ensinara-a a ver a sua culpa.
Toma duche. Veste-se. Ele leva-a ao motel. Despede-se dela com um beijo. Ela volta para a sua suite berrante. Olha em volta, fazendo uma careta. Volta a tomar duche. Por razões que não consegue compreender. Experimenta ler um livro, ouvir rádio, ver televisão. Nada resulta. O vazio ruge.
Veste uns calções, uma T-shirt e sai. Vê uma luz acesa no quarto ocupado por Angela Bliss. Bate à porta. Entra.
- Essa tua igreja - diz Sally Abbadon. - No domingo. - Tenta rir. - A que horas é o espectáculo?
Os mestres espiões estão sentados no centro de teias, aguardando rumores. O chefe de Operações do departamento acha que planeou bem. Todos os seus jogadores estão em posição. Ele fez o que pôde para impedir a traição. Resta-lhe agora esperar e
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confiar no talento e na determinação de funcionários, a centenas de quilómetros de distância.
Todavia, enfrenta um inimigo implacável. A traição do criptógrafo do turno nocturno foi descoberta e o pobre tipo foi enviado para um centro de reabilitação. Contudo, quem sabe quantas toupeiras mais foram infiltradas na burocracia da companhia? E os danos que fizeram. Que estão a fazer.
O chefe toca distraidamente no teclado do seu computador. Está rodeado pela mais avançada tecnologia. Não lhe falta hardware para tornar o seu trabalho mais eficaz. Os seus superiores concedem-lhe grande autonomia na definição de estratégias e de tácticas. Não pode ter nenhuma desculpa para o fracasso.
No entanto, sabe que as suas máquinas, arquivos, quadros de percentagens e rácios de probabilidades... nada disso tem sentido quando comparado com a convicção e determinação dos agentes envolvidos. Eles são a grande aposta, humanos como são. E como tal podem fraquejar, vacilar, podem mesmo ser desleais. Não são peças de maquinaria permutáveis, mas seres vulneráveis, sensíveis, com defeitos e qualidades incalculáveis.
Faz algumas anotações sobre os actores: . Anthony Glitner: Agente responsável pelo caso. Empenhado. Trabalhador. Determinado. Será que este homem tem a verve e a imaginação necessárias para liderar uma missão complexa? Talvez lhe falte a solidez moral para isso? Na realidade, terá ele força suficiente para abrir caminho até à vitória?
Evelyn Heimdall: Agente de campo. Mulher calorosa, atraente. Excelente folha de serviços sem qualquer indício de deslizes. Mas mostra agora sinais inquietantes de enfraquecimento da sua determinação e uma tendência para a auto-indulgência. A sua fragilidade moral pode pôr em perigo toda a campanha Dancer.
Martin Frey: Agente da Contra-Espionagem. Gigolô profissional. Mas terá ele percebido que a sua incumbência é apenas pôr à prova Evelyn Heimdall, não levá-la activamente a trair o seu juramento de fidelidade? Terá perspicácia suficiente para compreender esta subtil diferença?
Relendo os seus apontamentos, o chefe reconhece que eventuais defeitos por parte de qualquer um dos seus três principais protagonistas podem significar derrota. Pega numa embalagem de pastilhas para a azia. Levanta-se, começa a andar de um lado para o outro no seu gabinete. Com uma das mãos pressiona o diafragma.
Apercebe-se, subitamente, de que na sua breve análise dos protagonistas da equipa Dancer, ignorou a personalidade e o
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carácter do jogador mais importante: o próprio Harry Dancer. Os problemas operacionais da acção fizeram que ele subestimasse o alvo.
Mas será Dancer que, sem querer, revelará as fraquezas e as forças dos agentes da companhia enviados para o seduzir. Estes não podem deixar de reagir a ele, aos seus gostos e antipatias, preconceitos, alegrias. Às suas variações de humor.
De uma estranha forma, em campanhas deste tipo, o alvo torna-se o mestre espião. Sem ter conhecimento disso, é ele que dirige a equipa que foi designada para o seu caso. Determina os seus movimentos. Fá-los rever as suas tácticas. Leva-os ao desespero ou oferece indicações suficientes para que eles possam planear com sucesso o modo como, eventualmente, será apanhado.
Mas que tipo de homem é Harry Dancer? Olhando para o grosso dossier com relatórios em cima da sua secretária (apresentados por Tony Glitner), o chefe de operações admite que ele não tem uma noção clara do alvo. Ele é isto, ele é aquilo. Volúvel e taciturno. Feliz e desconsolado. Sensual e puritano.
Por outras palavras, reconhece o chefe, um ser humano. Incompreensível. Um enigma.
Harry Dancer na praia, à noite. Sonhando...
- Olá, resmungão - diz Sylvia, chegando animada. Traz com ela as raquetas e um saco de ténis. - Ganhei, ganhei, ganhei! Estou nas semifinais no sábado.
- Boa - diz Harry. Sorrindo. - Vais às finais e ganhas o troféu.
- Ná - diz Sylvia. - Aquela Laurie Christopher vai arrumar-me. Tem um serviço que nem se vê. Já estou com sorte em ir às semifinais.
- Não fales assim. Quero que te tornes profissional e entres no circuito para eu poder reformar-me.
- Isso é que era bom - diz a mulher dele. Deixa-se cair num cadeirão. - Arranja-me uma bebida grande e gelada, sim, querido? Estou estafada.
Ele leva-lhe um grande copo de vodca com sumo de arando e muito gelo. Grata, ela beija-lhe as costas da mão.
- Sete sets - diz ela. - Estou estoirada. Vou pôr-me de molho num banho quente durante pelo menos uma hora. Não vamos sair esta noite, pois não?
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- Não tinha pensado nisso. Há galinha assada, salada e meio melão.
- Divino. Mas pode ser que tenhas de ser tu a dar-me de comer. Não tenho força para pegar num garfo.
- Quero ver isso. Ela examina-o.
- Estás um bocado esfrangalhado, professor. Tiveste um dia mau?
- São todos maus. Não sei de onde surgiu a ideia de que é divertido jogar com o DOP... Dinheiro das Outras Pessoas. Eu não me divirto nada. Só tenho aborrecimentos e preocupações.
- Tenta esquecer isso por esta noite. Quando eu ressuscitar, vou pôr-te bom.
- Promessas, promessas - diz ele.
- Alguma vez te desiludi?
- Não - reconhece ele -, nunca.
Está sentada e tem as pernas nuas e morenas esticadas. Aquelas borlas malucas caem, penduradas do calcanhar dos ténis, os calções brancos estão puxados para cima. A T-shirt mostra ombros largos, braços fortes. O cabelo curto espetado. Rosto brilhante. Uma mulher saudável, vibrante. Excitante. Fá-lo sentir-se velho. Esgotado.
- Gostas do que vês? - pergunta-lhe ela.
- Adoro.
- Logo vais ver mais.
- Vai tomar banho antes que eu te viole aqui mesmo sobre o tapete. Vou fazer a salada. Jantamos daqui a uma hora, está bem?
- Tu é que mandas - diz ela.
- Desde quando?
Ele põe a mesa, trincha a galinha, faz a salada. Prepara também outro gim martini para si próprio e um cocktail de vodca para Sylvia. Leva as bebidas para cima. Ela ainda está na banheira cheia de espuma. A casa de banho está cheia de vapor. Perfumada.
Ele senta-se na sanita tapada. Dá-lhe o cocktail.
- Plasma - diz ele.
- Obrigada, querido Harry. Blanche e Jeremy Blaine querem que vamos lá jantar na sexta-feira. é a vez deles. Eu disse-lhe que te ia perguntar.
- Como quiseres.
é o quarto ano do seu casamento. Ele sabe que ela está a tentar alargar o âmbito das vidas deles. Receber mais. Ir a Miami e a Palm Beach ver peças da Broadway em digressão. Fazer cruzeiros.
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Visitar galerias de arte. Planear umas férias na Europa. Se dependesse dele, o mundo limitar-se-ia ao escritório e a casa.
- Que gostarias de fazer, querido?
- Claro que vamos - diz ele. - Ele fará a sua imitação de W. C. Fields e ela queixar-se-á de como é difícil arranjar uma boa empregada. Mas consigo suportá-los durante mais ou menos umas cinco horas.
Ela senta-se na banheira. A água com espuma escorre-lhe dos seios bonitos. Dobra um dedo e atira-lhe espuma. Ele esquiva-se.
- O meu velho rabujento - diz ela. - Estás mesmo neura esta noite. Macambúzio?
- Nem por isso. Calado, apenas. Isto passa-me.
- Passa-te sempre. Se não fosse isso já te tinha trocado por um modelo novo há muito tempo.
Ela destapa o ralo da banheira. Dá-lhe o copo. Levanta-se. Ele olha para o seu corpo cintilante. Esguio. Firme. Ela corre a cortina. Começa a tirar a espuma e o óleo de banho. Ele vai para o quarto. Senta-se num sofá forrado a cretone.
Está a libertar-se da neura. Sente-o. Anima-se. Não são os martinis; é ela. Ela tem esse efeito. Abençoado dom.
Nada de importante aconteceu desde que ela chegou a casa. A conversa deles tinha sido banal, as pequenas provocações uma rotina. Nada que ela tenha dito ou feito. É ela. A sua presença. A intimidade calorosa. Ele pertence-lhe, e ela a ele. Dois contra o mundo. Ela tinha razão; a terceira entidade, o casamento deles, vencera.
Não é capaz de imaginar como seria aquela noite se ela não tivesse vindo para casa. Se ela não existisse. Consolo no fundo de uma garrafa, supõe. Ou apenas desespero. Ansiando e não encontrando. De uma forma que o assusta. A sua dependência. Ainda tem medo de investir tudo nela. Os benefícios são enormes. Mas o risco...
Ela sai da casa de banho envolta no seu grande robe turco branco. Enxuga o cabelo com uma toalha. Pega no cocktail e bebe-o todo.
- Cheiras bem - diz ele.
- Claro que cheiro - concorda ela. - Pus uma gota disto e daquilo aqui e ali. Quando jantamos?
- Já - diz ele, pondo-se de pé. - Está tudo pronto. Tens fome?
- Estou esfomeada - diz ela. De súbito precipita-se para ele. Abraça-o, beija-o. - De ti. Sentes-te melhor?
- Como sabias?
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- Consigo perceber.
Ela come avidamente, mastigando as coxas de galinha com os dentes afiados e devorando a salada. Quando abranda, ele encoraja-a a falar do jogo de ténis. Ela revive-o, set a set. Não está especialmente interessado no tema, mas quer ouvir a voz dela. Ver a animação no seu rosto.
Ela está viva. E, através de um curioso processo de osmose emocional, transfere para ele alguma da sua própria vitalidade. Revigora-o. Ele só pode rezar para que não seja só numa direcção. Que ela esteja também a receber algo dele... o que quer que seja.
Acabam de comer o melão. Levam café gelado com um toque de Kahlua para o pátio. Deitam-se nas espreguiçadeiras. Olham para cima. Um céu vazio. Sem lua, sem estrelas. Mas não se ralam.
- Amo-te, Syl - diz ele. Subitamente. Ela vira a cabeça para olhar para ele.
- Querido. E eu amo-te a ti, Harry. Mas que te fez dizer isso?
- Ocorreu-me que não to digo suficientes vezes.
- Demonstra-lo.
- Achas? Espero que sim. Mas tenho de aprender a verbalizar mais os meus sentimentos. Não posso passar a vida à espera de que tu ou seja quem for perceba o que sinto. As acções são mais fortes que as palavras? O raio é que são. As acções são tão susceptíveis de mal-entendidos como as palavras. é preciso combinar as duas. Há uma sinergia. O todo é mais do que a soma das partes.
- Obrigada, professor - diz ela. - Só lamento não estar a tomar apontamentos.
Ele desata a rir.
- Eu estava a merecer isso. Posso contar sempre contigo para me trazeres de volta à terra.
Ficam deitados em silêncio. A bebericar.
- Queres adoptar? - pergunta ela.
- O quê?
- Adoptar. Não parece que tu e eu vamos conseguir fazer um bebezinho. Devemos adoptar? Que achas?
- Não sei - diz ele. - Isso incomoda-me. Por razões egoístas. Concorrência. Quero todo o teu amor. é uma vergonha, eu sei, mas é o que sinto. Queres adoptar? Se insistires nisso, eu alinho.
- Não sei o que quero, Harry. Às vezes penso: "Oh meu Deus, sim, quero um miúdo malcheiroso correndo pela casa. O som de pezinhos a correr..." e tudo isso. Outras vezes isso assusta-me. A responsabilidade. Portanto, se não tenho a certeza é porque ainda não estou preparada para isso... certo?
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- Acho que sim. Quando te decidires, posso ser o primeiro a saber?
- Absolutamente. E, depois, também sinto o mesmo que tu. Tu e eu temos uma relação óptima, para quê correr o risco de a estragar? Ou de a alterar? Um miúdo seria uma mudança dos diabos. Talvez para melhor, talvez para pior. Mas tenho medo do risco.
- Bom, não temos de decidir já, Syl. Não somos assim tão velhos. Vamos pensar nisso, falar mais sobre o assunto.
- Tu e eu podemos falar de qualquer coisa, não podemos, Harry?
- Espero que sim. Não seria lá grande casamento se não pudéssemos.
- Querido, estou com tanto sono que estou praticamente inconsciente.
- Não podemos falar disso - diz ele. Rindo. Levanta-se, segurando-a pela cintura com um braço forte.
Sobem as escadas aos tropeções. Cantam a canção preferida de ambos, Vil Be Seeing You. Senta-a na beira da cama. Ampara-a com uma mão enquanto, com a outra, vira a colcha, o cobertor e o lençol de cima.
Os olhos dela estão fechados. Mas murmura qualquer coisa - um gorgolejar de criança - enquanto quando ele lhe tira o robe. Mete-a na cama, estica-lhe as pernas. Puxa o lençol e o cobertor até ao queixo. Aconchega-a. Ela suspira. Vira-se de lado.
Liga o ar condicionado. Apaga a luz. Fecha suavemente a porta. Volta para baixo e arruma a cozinha, tentando não fazer muito barulho. Depois faz a ronda da casa, verificando os fechos das portas e das janelas.
A casa está em silêncio. Na penumbra. Vazia sem a presença alegre dela. Serve-se de um pequeno conhaque. Leva-o para o quarto, entrando cautelosamente. Às apalpadelas, dirige-se para o pequeno sofá, onde se senta a beber lentamente o brande. Ouve a respiração da mulher. Sente-se de novo completo.
Se existe alguma lei na sua actividade profissional, investimentos financeiros, esta é: diversificar! Nunca pôr todos os ovos no mesmo cesto. Agora, ao ouvir Sylvia dormir, pensa se o mesmo será verdade para os investimentos emocionais. Será sensato pôr todo o amor num título? Se isso falhar, como se fica?
Mas é claro que o dinheiro cresce, o activo aumenta, permitindo uma maior diversificação. Mas será que o amor cresce? Ou é-nos concedida uma quantidade limitada para investir como queremos: malbaratar, apostar, guardar. Sabendo que, quando ela desaparecer, estará completamente esgotada. Nada restará.
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Ele não tem a certeza disso. Talvez o amor retribuído seja amor reaprovisionado. O principal, sensatamente aplicado, ganha dividendos, aumenta. Ora, numa vida a capacidade de amar poderá duplicar. É possível.
Mais um dos problemas insolúveis da vida, reconhece sombriamente. Diversificar ou concentrar o capital emocional? Escolher bem; não haverá uma segunda oportunidade. Mas entretanto o seu investimento amoroso naquela beldade adormecida está a render-lhe lucros incalculáveis. É idiota preocupar-se com o facto de ela ser a sua única carteira.
Sylvia está meio acordada. Chama, sonolenta:
- Harry?
- Estou aqui, amor - diz ele.
Daí a instantes está de novo adormecida, segura e satisfeita.
O presidente está inquieto. Mexe o seu enorme corpo sentado no trono, na Sala de Guerra do departamento. Aquela maldita coisa do Dancer começa a obcecá-lo. O que começara por ser uma simples sedução transformou-se num combate de vontades e de astúcia com o chefe de operações, na sede da companhia em Washington. O presidente está impaciente. Quer resultados. De alguém. Seja de quem for. Os relatórios vão chegando. Ele tenta entender o que se está a passar, mas a lógica escapa-lhe. Não existe um fio condutor que ele possa seguir até ao seu fim inevitável. A menos que esse frágil fio seja, todo ele, a estupidez e a traição.
Não é a sua estratégia que está a falhar. Tem a certeza disso. é a incompetência dos seus funcionários no terreno que o frustra. Eles negaram-lhe uma conquista rápida e esmagadora.
DiRECTOR DA REGião SuDESTE. Homem magistral. Com um amor-próprio empolado. Bom na rotina, mas sem imaginação para uma operação complexa. Estritamente chefia intermédia. Se os boatos forem verdadeiros, o idiota é um escravo dos seus instintos mais básicos.
Shelby Yama: Agente responsável pelo caso. Tipo Hollywood, mas sem a necessária firmeza. Peso-pluma a chefiar o seu primeiro trabalho importante. Encara-o como teatro. Drama. Seria mais bem sucedido numa farsa?
Sally Abbadon: Agente de campo. Registo fantástico de vitórias... mas estará a ceder? Relatórios recentes indicam menor determinação. Contudo, é ela a pedra angular da operação. Se ela enfraquecer, toda a campanha para seduzir Harry Dancer ruirá.
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Briscoe: Agente especial. Homem soturno, violento. Rufia. Demasiado livre com os Poderes Especiais. Desconfiado. Mas obtém resultados. Numa posição de maior poder, poderá revelar-se perigoso. É de utilizar, mas há que reconhecer as suas limitações.
Angela Bliss: Agente de segurança interna. Uma doninha. Tudo no seu dossier atesta uma lealdade quase demoníaca. Mas existirá um elemento de histeria? O departamento desconfia dos fanáticos. Os funcionários como a Bliss não vergam, quebram.
Revendo as suas dramatis personae, o presidente reconhece que não formam a melhor equipa que ele podia ter arranjado. Também não formam a pior. Uma mistura. Tem consciência das pressões e tensões a que estão submetidos. Duvida de que eles reconheçam as dele.
A ocasional fragilidade do pessoal do departamento há muito que é uma fonte de surpresa e espanto. A estas pessoas foi prometido o mundo. E pago. Então, por que trocam o tesouro pelo lixo? O presidente não sabe. Mas isso acontece.
É algo que exige a tomada de precauções. As tentações são um perigo constante. A traição espreita. Ele sente que fez tudo o que podia para a evitar. A acção, porém, desenrola-se a quilómetros de distância. Pode dirigi-la, mas não pode controlá-la.
A chave é, evidentemente, o próprio sujeito: Harry Dancer. É estranho que seja a vítima a ditar o crime - mas sempre foi assim. O presidente gostava de saber mais acerca desse tal Dancer. Assim poderia adaptar as suas tácticas ao perfil dele.
Não o conhecendo com precisão, apenas pode orientar-se por experiências passadas.
Os convertidos ganham-se apelando à sua luxúria, à sua ganância, ao medo. A toda e qualquer fraqueza. Mas qual é o ponto fraco de Harry Dancer?
Ora, pode até ser o amor. Há tantos alvos que são convertidos através das suas virtudes quantos os que o são através dos seus vícios.
Ela telefona-lhe para o escritório ao fim da tarde.
- Harry - diz Evelyn Heimdall -, acerca do nosso encontro desta noite... espero poder ir. Sinto-me pessimamente.
- Que tens?
- Acho que estou com uma constipação. É possível apanhar uma constipação na Florida?
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- Claro que é possível. E a maldita demora uma ou duas semanas a passar. Queres cancelar o nosso encontro desta noite?
- Querer, não quero - diz ela. - Mas não estou com disposição para me arranjar e ir a um sítio qualquer chique onde o ar condicionado é tão forte que uma pessoa fica azul. Dispenso isso.
- Bom, tens de comer. Olha, que tal se eu arranjar dois bifes bem grossos, à moda de Nova Iorque, e talvez umas batatas assadas? Vais de carro até minha casa e jantamos por volta das sete. Assim podes ir para casa cedo e meter-te na cama. Se estás com uma constipação, a melhor cura é o sono.
- Tens a certeza de que não te importas?
- Claro que não.
- Harry, és mesmo um querido.
- Concordo.
- Então vemo-nos por volta das sete. E tentarei não espirrar para cima de ti.
Grelha os bifes, tempera as batatas com muito sal de alho e páprika antes de as meter no forno. Faz uma salada de alface romana com rodelas de cebola, molho de natas e mostarda de Dijon. Enche um jarro com chablis da Califórnia, gelado.
- Casa comigo - diz Evelyn Heimdall, revirando os olhos. - Se sabes cozinhar desta maneira, preciso de ti.
- Vem cá amanhã à noite - diz ele. - Sanduíches de carne à bolonhesa com ervas aromáticas. Como está a constipação?
- A comida está tão boa que até me esqueci dela. Mas sinto-me febril.
Ele põe-lhe a mão na testa.
- Está um pouco quente. Toma um brande antes de te ires embora. Mal não te faz.
É atencioso. Solícito. O bife é tenro? As batatas estão demasiado picantes? O ar condicionado está demasiado frio? Preocupa-se com ela. Serve-a. Obriga-a a comer tudo. Faz café. Traz a garrafa do brande. Serve uma porção para ambos.
- És mesmo um querido - diz ela. - Que faria eu sem ti?
- Que tens feito? Mais lições de natação?
- Hoje não... sinto-me tão mal.
- Ele sempre conseguiu o tal emprego dos computadores? Esse teu amigo... como é que ele se chama?
- Martin Frey. Não, ainda não arranjou nada.
- Se quiseres, posso ver se descubro alguma coisa. Conheço algumas empresas que talvez precisem de alguém.
Ela olha para ele de uma forma estranha.
- Isso é muito simpático da tua parte, Harry. Sei que ele te ficará grato.
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Dancer obriga-a a beber o resto do brande. Depois, quando admite que não tem brande em casa, insiste para que ela leve a garrafa. Está meio cheia. Mete-a num saco de papel pardo.
- Harry, muito obrigada por esta noite - diz ela. - Nem sabes o que fizeste pelo meu moral. Da próxima vez que estiver contigo, já estarei de boa saúde e pronta para as curvas.
- Tem mas é cuidado contigo - admoesta-a ele. - Dorme bastante. Bebe muitos líquidos, sobretudo sumos. Tomas uns bons comprimidos de vitamina C. Não vás para a piscina nem para a praia durante alguns dias. E tem cuidado para que o ar condicionado não esteja virado directamente para ti.
- Sim, professor - diz ela. Depois: - Harry, que se passa? Disse alguma coisa de mal?
- Não, não disseste nada de mal. Mas chamaste-me professor. Há já algum tempo que ninguém me chama isso.
- Sylvia? - pergunta ela. Ele assente.
- Desculpa ter-te feito relembrar memórias antigas.
- Não, não. São boas memórias. Não faz mal.
Ela mete-se no carro e vai para casa, pensando como ele é um homem querido. Depois fabrica o diálogo que repetirá a Tony Glitner na reunião: acerca da fé, da necessidade de devoção e da promessa de recompensa eterna.
- Acho que ele ficou mesmo impressionado - dirá ela a Glitner. - Ele está à procura de alguma coisa. Da verdade. Está próximo de uma decisão.
No apartamento, tira o camiseiro. Veste umas calças de ganga. Tira o soutien. Veste uma T-shirt com GO FOR IT escrito à frente. Depois telefona a Martin Frey.
- Já estou em casa, querido - diz ela. - Queres que desça?
- Dá-me quinze minutos - diz ele. - Ia mesmo agora tomar um duche. Não tenho grande coisa para bebermos, Ev.
- Não te preocupes com isso. Tenho meia garrafa de brande. Eu levo-a.
Martin Frey não é estúpido; sabe o que lhe aconteceu. Uma pessoa representa um papel durante tanto tempo que este deixa de ser um papel. Uma pessoa torna-se aquilo que representa. Todos os actores e políticos sofrem dessa síndroma: passado algum tempo, o pano nunca desce.
Este caso da Heimdall, por exemplo... Ele veio para a Florida a pensar que era apenas mais um trabalho de tentação. Basta acenar com o isco (e que isco!), o peixe morde e pesca-se a vítima-traidora. Frey já fez isto muitas vezes; não leva a sério a
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subtil distinção moral dos seus superiores entre "pôr à prova" e "seduzir".
Evelyn, porém, é uma experiência nova. Talvez dez anos mais velha do que ele. Mas com um corpo jovem. Maduro. Uma mulher bonita. Fácil de conhecer, de convívio igualmente fácil. Bom sentido de humor. Pouco exigente. E bastante mais inteligente que os seus alvos habituais.
O que intriga Martin, o que o incomoda, é algo que pressente nela. Rebeldia. Como um miúdo subitamente à solta na maior loja de brinquedos do mundo a quem é dito "leva o que quiseres". Ela age como se tivesse sido liberta. Sem constrangimentos. Por vezes, isso assusta-a, essa nova liberdade. Mas está decidida a explorá-la.
O agente da Contra-Espionagem sabe que devia ter comunicado tudo isto a Washington. Mas não o fez. Uma grave incúria. Diz a si próprio que é porque o libertinismo de Ev pode ser uma aberração temporária e que ela não tardará a endireitar-se. Nesse caso, denunciá-la como traidora seria um rude golpe para ela e para a sua carreira.
Todavia, Frey sabe que essa não é a verdadeira razão pela qual não cumpriu o seu dever. A verdade é que ele se sente atraído por aquela mulher. De formas que ele não entende totalmente. Talvez seja a simples alegria que ela sente no contacto físico. Num mero toque, até. Talvez seja a sua disposição fantástica. A sua vontade de atingir os limites mais extremos. Ela age como um animal selvagem a quem foram abertas as portas da jaula.
Quando ela chega, ele tem vestido um robe de seda com um dragão cuspindo fogo bordado nas costas. Ela abraça-o, rindo, transbordando de vigor. Pele ruborizada. Carne inchada. Mamilos duros. Mete o joelho entre as coxas dele.
Ele afasta-a ligeiramente, lê a mensagem inscrita na T-shirt.
- Go for it? Que é que isso quer dizer?
- Não sei bem - confessa ela. - Cede à tentação, creio eu. Experimenta tudo. Não te retraias.
- Não tencionava fazê-lo - diz ele. Automaticamente. Representando o seu papel.
Levam brande com soda para a varanda. Muito mais pequena que a dela. Com espaço para duas cadeiras e uma mesa, apenas.
Uma noite brilhante. Céu negro cravejado de buracos de estrelas. Farripas de nuvens pouco maiores que barbas. Uma lua glauca, não cheia, mas bem redonda. Vento de nordeste ligeiramente cortante. O mar está encapelado; ouvem o bater das ondas. Está tudo perto. Envolvendo-os.
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- Numa noite como esta - diz ela -, sinto que vou viver para sempre. Mas não há lá grande hipótese disso, pois não?
Ele responde cautelosamente.
- Fisicamente, não. Os padres falam da vida eterna. Do espírito, sabes? Mas não acredito nisso. E tu?
Ela fica calada por instantes. Depois diz:
- Não sei, mas não é importante.
"Cá está", pensa ele. "Uma prova inequívoca da sua perfídia."
- Estar viva, apenas - continua ela. - Ver, ouvir, cheirar. Sentir. Que alegria isso é! Desde que me mudei para a Florida, recomecei a crescer.
Ele ri-se.
- É verdade - insiste ela. - Era como uma daquelas árvores bonsai, continuamente aparadas. Prendem os ramos com arames para que cresçam em formas estranhas. Forçam-nas a serem miniaturas. Era isso que eu era... uma miniatura. Mas no último mês tenho desabrochado.
- Por todo o lado.
é ela que se ri, desta vez.
- Bom, por que não? Até os bonsai acabam por morrer. Mas, enquanto estão vivos, são umas pobres coisas frustradas. Nunca lhes é permitido atingir o seu potencial. Eu não quero isso.
- Que é que tu queres, Ev?
- Ser, apenas. Fazer. E não magoar ninguém ao fazê-lo. Isso parece-te assim tão mau?
- Claro que não.
- Martin, achas que sou uma mulher malvada?
Ele não pode ignorar o seu guião de agent provocateur.
- Ora, ora, Ev. Todos nós vamos estar mortos durante muito tempo. Temos de aproveitar bem todos os minutos.
- é exactamente isso que eu sinto - diz ela.
Se ele chegou a ter algumas dúvidas, agora não tem nenhuma. Ela saiu do rebanho. Aquilo não é uma aberração temporária, é uma alteração sísmica. Até que esteja reabilitada - se é que isso é possível -, já não tem utilidade ou valor para a companhia. E Harry Dancer está perdido.
- Não achas que já chega de conversa? - pergunta ela, virando a cabeça para olhar para ele. - Eu acho.
Na cama, o profissionalismo dele desaparece deixando-o assustado. Pensando que aquela mulher poderá destruí-lo. Queimá-lo e transformá-lo num tição. Ela pensa que tudo é possível. Não se contenta com o desempenho dele. Aflora a histeria. Gritando: "Mais!" E ele conserva o discernimento suficiente para
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pensar quanto do excesso emocional e físico dela não ficará a dever-se a um sentimento de culpa.
Ele contém os seus paroxismos o melhor que pode. Agarrando o corpo dela, suado e escorregadio. Tentando agir como o danseur noble naquele violento bailado. Até que, perdida a razão, penetra no mundo louco e asfixiado de sensações puras que é o dela. Então fica tão desesperado como ela. Os dois impotentes e insensíveis. Presos numa névoa vermelha. Chamas consumindo a carne. Ambos sentem o cheiro das cinzas.
Ele fica deitado, inerte. Sente o ritmo galopante do seu coração abrandar. A respiração ofegante acalmar. O suor secar. A libertação dos músculos contraídos. Ela está a dormir... ou inconsciente. Não sabe e não se rala. Olha-a de relance para se tranquilizar: os seios magoados sobem e descem...
Ela abre subitamente os olhos. Não apenas com prazer aumentado. Mas demolindo o que ele é. Todas as suas crenças, fé, educação e formação... como um filme em câmara lenta de um edifício alto a ser dinamitado e demolido. Ele quase sente o ruir, a destruição. Ouvi-la, quase. O rugido trovejante de vigas partidas e alvenaria a cair.
E no seu lugar... quê? Um parque verdejante ou um deserto árido?
A tentação atormenta-o. Juntar-se ao novo mundo dela. Quebrar todos os grilhões. Negar tudo e procurar os limites da felicidade. A tentação assusta e excita. Ele tenta imaginar uma vida dedicada apenas ao pecado. Mas isso não seria pecado, é claro. Ele teria de se livrar desse conceito. A alegria eliminaria o pecado.
Terá ele coragem suficiente para fazer essa viragem? Interroga-se e admira a determinação daquela mulher robusta, que decidiu entrar numa liberdade sem princípios?
Ele ainda está a questionar-se, a cabeça em água, quando ela desperta. Olha para ele. Sorri perversamente. Agarra-o com braços fortes e bronzeados. A boca aberta e expectante.
A disciplina esfrangalha-se. Uma noite não pode fazer mal. Uma breve visita àquela terra proibida. Vaguear, livre, e deixar que o capricho dite o seu destino. Ele conhece todos os seus desejos escondidos e fantasias caladas, agora prestes a serem revelados, exibidos, expostos sem vergonha. Até estar nu de corpo e espírito. Torna-se um único nervo nu. Esvoaçante.
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Briscoe sobrevive num mundo onde todos o temem e ninguém o respeita. Vence recorrendo à astúcia e à duplicidade. Todavia, é suficientemente inteligente para usar a força bruta como atalho, quando os procedimentos normais levariam demasiado tempo - ou o maçariam, simplesmente. A violência é apenas um outro método. Os Poderes Especiais facilitam-no.
Consegue lidar com várias missões em simultâneo. E seria um executivo de nível superior se conseguisse controlar ou esconder a sua raiva. A ambição é o seu combustível. Julga que merece um lugar de director regional. Pelo menos. E depois a sede de Cleveland.
Entretanto, porém, é forçado a obedecer às ordens de supervisores cautelosos e frequentemente ineptos. E, embora tenha autorização para passar por cima das decisões de Shelby Yama, é Yama quem tem o título de agente responsável pelo caso numa acção que é dirigida por Briscoe. Se Harry Dancer for subvertido, o agente responsável ficará com todos os louros.
Para além de tentar ganhar Dancer, Briscoe também está a fazer frente às maquinações da companhia e a vigiar de perto a lealdade de Sally Abbadon. Mas, durante as noites escuras de vigilância, são as suas próprias aspirações que martelam os seus pensamentos. O prazer não o seduz. O poder, sim.
Planeia logicamente. Parece-lhe que o primeiro passo é livrar-se da presença irritante de Shelby Yama. Esse homem fraco e ineficaz. Uma vergonha para o departamento. Assim que Yama esteja arredado do seu caminho, será naturalmente concedido a Briscoe o título de agente responsável. O que seria mais do que justo, dado que já está a desempenhar essas funções.
Assim centra os seus pensamentos tortuosos na eliminação de Shelby Yama. Os assassinatos interdepartamentais são raros - e ainda menos raramente aprovados pela sede. Yama tem de ser levado a dar-se como culpado. Falhando isso, terá de se provar que o seu afastamento foi provocado por um agente inimigo.
Briscoe gosta da última hipótese. Matar dois coelhos de uma só cajadada, por assim dizer. Erradicar Shelby Yama e depois liquidar o agente da companhia, aparentemente responsável pela morte de Yama. Há uma simplicidade nessa solução que Briscoe considera gratificante. Deita mãos à obra...
Alguns dias mais tarde, comunica a Shelby Yama:
- Acho que a companhia designou um tipo para vigiar Sally Abbadon. Um gajo alto e magro. É melhor averiguar.
- Claro - diz Yama. - Faça isso. Um dia depois:
- Esse homem que anda a vigiar Sally... segui-o até ao motel
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onde está e dei uma gorja ao recepcionista. Ele diz que o nome do tipo é Willoughby. Acha que deva investigar o nome dele nos ficheiros de Cleveland?
Yama, portentoso, reflecte.
- Sim, Briscoe, acho que isso seria inteligente. Temos de nos manter actualizados sobre essas coisas.
Dois dias depois:
- Yama, esse tal Willoughby de que lhe falei consta dos ficheiros da sede. Pertence mesmo à companhia. Comunicações, sobretudo. Este deve ser o seu primeiro trabalho de campo.
- Caramba - diz o agente responsável pelo caso. - Que acha que devemos fazer?
- Ele representa um perigo claro e imediato - diz Briscoe. - Temos de pôr alguém atrás dele.
- Outro operador? - diz Yama. - O director não vai aceitar isso. Já excedemos o orçamento.
- Eu sei - diz Briscoe. - Teremos de nos arranjar como pudermos. Ouça, estou até aos cabelos com trabalho, com a vigilância a Dancer, a transcrição das gravações e tudo o mais. Por que não trata pessoalmente desse tal Willoughby? Parece ser um amador. Talvez consiga virá-lo. E seria um ponto a seu favor se conseguisse que ele enviasse informações falsas para a companhia.
- Eia - diz Shelby Yama -, tem razão. Poderá mesmo dizer-se que será mais um prego no caixão de Dancer.
- Correcto. Vou dar-lhe a morada do tipo e tentarei arranjar uma telefoto dele, para que você possa identificá-lo. Além disso, ele frequenta uma igreja em Deerfield. Talvez possa fazer o contacto lá.
- Boa - diz o agente responsável. - Isto é excitante. Três dias mais tarde:
- Tinha razão acerca desse tal Willoughby - diz Yama a Briscoe. -Anda mesmo a seguir Sally. Além disso, já estabeleci contacto com ele!
- A sério? Isso é óptimo. Você sabe mesmo disto.
- Bom, fui um bom agente de campo durante muitos anos. Uma pessoa nunca esquece os velhos truques.
- E já são amigos?
- Bem... não propriamente. Mas estou quase lá. O tipo vai à igreja duas ou três vezes por semana. Missa ao domingo, missa da tarde à quarta-feira, ensaio do coro, etc. Estou a aproximar-me dele. Devagar.
- Acha que ele pode ser virado?
- Nesta fase não sei, Ele age como um verdadeiro crente. Mas, sim, acho que consigo.
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- Continue a trabalhar nisso - aconselha Briscoe. - Que golpe isso seria para si!
No dia seguinte, Briscoe tem uma conversa privada com Ted Charon, chefe da Segurança Interna.
- Olhe - diz ele -, não quero condenar um homem assim sem mais, portanto entrego-o nas suas mãos. Não gosto da forma como Shelby Yama tem agido ultimamente. Desaparece ao domingo por volta do meio-dia, à quarta-feira à noite e mais uma ou duas noites por semana. Pergunto-lhe onde esteve e ele esquiva-se.
- Acha que deva mandar vigiá-lo? - pergunta Charon.
- Mal não fará - diz Briscoe.
Amgela Bliss não se deixa confundir por subtilezas semânticas, pela subtil diferença entre "testar" e "armar cilada". As suas ordens são bem claras. Ela tem de efectuar uma operação exploratória a Sally Abbadon. Tentar virá-la. Se Sally sucumbir, está condenada.
Angela tem cumprido ordens toda a sua vida. Na sua carreira como agente- de Segurança Interna, tem descoberto traições em humildes funcionários de secretaria e em membros da hierarquia da sede. Para Angela é tudo o mesmo. Traição é traição, onde quer que se esconda, e tem de ser cortada pela raiz.
é uma mulher solitária. Sem amigos nem inimigos dignos dela. O departamento é a sua vida. é o que confere sentido às suas tarefas frequentemente árduas e dolorosas. Só consegue suportar o trágico destino das suas vítimas através da lealdade a um bem superior - o bem-estar do departamento.
No entanto, nunca fora destacada antes para um alvo como Sally Abbadon. A beleza da agente de campo é avassaladora. Ela parece irradiar beleza. Está envolta numa aura de sensualidade madura. Pertence a uma raça inteiramente diferente: maior, mais saudável, com melhor cor, vigor inquebrantável e movimentos que criam esculturas cinéticas no espaço.
Além disso, há nela uma vulnerabilidade suave que incomoda Angela. Por vezes, Sally faz-lhe lembrar uma garotinha vestida de mulher: chapéu, um toque de bâton, vestido demasiado grande, pérolas. Equilibrando-se em cima dos saltos altos. A imagem comove e entristece.
Saem da beira da piscina para se refrescarem no soturno quarto de motel de Angela e compartilhar um jarro de chá gelado.
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Angela estira-se num cadeirão desengonçado. As alças do seu fato de banho descaem. Sally estende-se em cima da cama. Tem um biquini bem cavado. Cabelo apanhado com um lenço vermelho.
As persianas estão corridas. O quarto está na penumbra. O ar condicionado zumbe. Lá fora, os sons são abafados. Longínquos. Lá dentro, um silêncio fresco. Intimidade pensativa.
- Tens um encontro esta noite? - pergunta Angela.
- Talvez. Ele tem de trabalhar até tarde, mas, se não for demasiado tarde, telefona-me e vamos jantar.
- Portanto, vais querer esperar pelo telefonema dele. Pensei que gostarias de alugar um filme, mas podemos fazer isso outro dia.
-Amanhã à noite - diz Sally. - Está bem? Ele vai a Orlando amanhã, falar com uns clientes. Silêncio. Depois...
- Ama-lo, Sally?
- Ele paga as contas.
- Mas tu ama-lo?
A agente de campo vira o rosto para a parede.
- Sim - diz ela. Tão baixo que Angela mal consegue ouvi-la. - Muito. Mas não o amo verdadeiramente a ele. É aquilo que ele representa.
- Não compreendo.
Sally vira-se bruscamente de costas. Cruza as mãos por debaixo da cabeça. Olha fixamente para o tecto.
-Nem eu. Estou completamente fodida. Desculpa a linguagem.
- Já ouvi pior - diz Angela. Põe de lado o chá gelado. Vai sentar-se na beira da cama. - Sally, que se passa?
- Não sei. A sério que não sei. Sinto que a minha vida se está a desmoronar. Não quero dizer com isso que eu esteja a ir-me abaixo nem nada disso. Mas estou a mudar. Sinto-o. Quero qualquer coisa melhor. Mais gratificante. Mas não sei o que é.
Angela põe a mão fresca na testa quente da outra mulher. Chocada com a sua própria ternura.
- Não te preocupes com isso. Detesto ver-te infeliz. És tão bela. E és uma pessoa tão querida. Oh, não chores, Sally. Por favor, não chores.
Subitamente, inclina-se. Abraça-a. Envolve aquele corpo encharcado de sol com os seus braços, sentindo uma pulsação forte. A força da vida dela! Aromas doces. Carne irrigada por sangue. Abraça Sally. Embala-a suavemente, cantarolando baixinho. Emprego, carreira, lealdade, departamento, tudo isso murcha e fica obscurecido. No calor e na ternura daquela mulher.
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"Que está a acontecer?", pensa ela, desanimadamente. "Comigo? Mulher cinzenta, mulher fria, subitamente sufocada e latejante. Cataclismo."
"Querida", diz ela. Tentando. Mas não em voz alta. Para si própria. Querida. Palavra estranha. Alguma vez a proferiu? Não.
- Sally - diz ela em voz alta -, se o teu namorado se atrasar e não puder jantar contigo, por que não vens cá? Podemos sair as duas.
- Está bem.
- Tens a pele tão quente. Espero que não vás pelar. Deixa-me pôr um pouco de loção hidratante.
- Está bem.
- Queres que eu te rape as pernas?
- Está bem.
À noite, Angela espera, trémula, espreitando pela janela. Finalmente vê parar um BMW prateado. Sally sai a correr. Levada por alguém. A sua rapariga dourada. Foi-se.
Anda de um lado para o outro, agarrando os cotovelos. Tentando compreender o que está a acontecer. O que está a sentir. Tumulto. A sua vida tem sido toda ela lógica. Mas, se a tese está errada, tudo que se segue desmantelar-se-á. O pensamento independente é difícil. Nova linguagem.
Como é que a disciplina de uma vida inteira pode derreter tão rapidamente? Sob o sol quente da Florida. Não consegue imaginar as consequências. Recusa-se a admiti-las. Tudo o que sente é o início da paixão. Uma inundação. Que a arrasta.
O telefone toca.
- Olá, fala Ted Charon. Algum desenvolvimento?
- Não - diz Angela Bliss. - Nada de novo.
Os problemas avolumam-se para Anthony Glitner. O agente responsável pressente que a campanha da companhia para ganhar Harry Dancer não está a correr bem. No entanto, sente-se impotente para influenciar o curso dos acontecimentos. Não tanto dos acontecimentos como das pessoas.
Mensagens codificadas do chefe de operações, em Washington, informam que o agente da Contra-Espionagem, Martin Frey, deu até ao momento um atestado de sanidade limpo de Evelyn Heimdall.
Frey informa que a agente de campo está, aparentemente, a actuar de uma forma activa e eficaz. Não consegue detectar
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qualquer indício de enfraquecimento de determinação, nenhuma possibilidade de deserção.
Todavia, as reuniões de Heimdall continuam a intrigar Glitner. Há qualquer coisa nela que não existia antes. Uma jovialidade. Se ele não a conhecesse bem, diria que ela andava a tomar qualquer coisa. Um intoxicante. Álcool, speeds, cocaína. Os olhos dela estão demasiado brilhantes. Fala demasiado depressa.
E tornou-se coquete. Quase sedutora.
Glitner não consegue entender por que Martin Frey não observou e comunicou essas alterações. A única justificação que ele encontra para isso é o facto de Frey não conhecer Heimdall antes da sua missão. é pois evidente que ele não se aperceberia das alterações na sua personalidade.
Mas o agente responsável tem consciência das modificações. Elas preocupam-no. O cenário exige uma mulher equilibrada, sóbria, que ofereça os dogmas da companhia como forma de redenção e vida eterna. Mas, aos olhos de Glitner, a nova Evelyn Heimdall já não parece estar a representar esse papel.
- Estás bem, Ev? - pergunta-lhe ele.
- Estou óptima.
- Não tens problemas? Nada que queiras discutir?
- Não consigo lembrar-me de nada - diz ela. Sorrindo animadamente. - Estou a encontrar-me com Harry umas duas vezes por semana e falo'com ele ao telefone quase todos os dias. Ele está a virar. Tony, tu preocupas-te demasiado. Vamos apanhá-lo.
Mas Tony não está convencido. Um agente responsável que controla um agente de campo não só tem de ditar as tácticas do agente, com a maior precisão possível, mas também tem de conhecer os pensamentos, medos, impressões desse agente. Glitner tem a sensação de que Heimdall se está a fechar para ele. Ela já não está receptiva. Fechou-se.
Outro problema são as informações fornecidas por Willoughby. Ele comunica que em várias ocasiões foi abordado na igreja de Deerfield, que frequenta, por um homem que diz ser Shelby Yama e que age de uma forma que Willoughby descreve como sendo "suspeitosamente amigável".
Glitner faz correr o nome e a descrição física nos computadores de Washington. Fica a saber que Yama é funcionário do departamento. Depois pede ao chefe de operações que questione a sua toupeira na sede da Região Sudeste. É subsequentemente informado de que Shelby Yama é o agente responsável pela acção Harry Dancer.
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- Que julga que ele anda a fazer? - pergunta a Willoughby. - A tentar virá-lo?
- Deve ser isso, senhor. Provavelmente, fui detectado enquanto seguia Sally Abbadon e verificaram a minha identificação. Como devo proceder? Corto com ele?
- Não - diz Glitner -, não faça isso. Há uma outra possibilidade. Ele deve estar a pensar em desertar e está a tentar arranjar um contacto compreensivo. Dê-lhe corda durante algum tempo. Veja se consegue descobrir o que ele pretende. Mas tenha muito, muito cuidado. O odioso do Briscoe está em cena e as coisas podem tornar-se perigosas.
- Terei cuidado - promete Willoughby.
O terceiro problema de Tony Glitner refere-se às suas relações com a sede. Aparentemente, a taxa de conversões do último mês desceu quase 5% em relação ao mês correspondente do ano anterior. Como resultado, o chefe de operações está sob forte pressão dos seus superiores para aumentar as conquistas da companhia.
A única alternativa que resta ao chefe é exercer pressão sobre os seus agentes de campo. Glitner recebe um fluxo constante de queixas, exortações, sugestões absolutamente impraticáveis. Cada uma destas mensagens termina com "Resposta Urgente". Como resultado, o agente responsável está atulhado de papéis. O que significa trabalho suplementar que em nada contribui para a conquista de Harry Dancer.
Finalmente, Glitner desloca-se de avião até Washington e tem um confronto tenso com o chefe. Na realidade, Anthony diz:
- Largue o meu caso. - Exige o direito de iniciativa independente, sem interferências.
- Se o senhor não gosta da forma como eu estou a conduzir as coisas - diz ele -, então retire-me do caso. Mas não posso operar consigo a olhar por cima do meu ombro e a respirar para cima do meu pescoço. Reconheço que tem problemas, mas eu também os tenho. Tem de me deixar decidir as tácticas. Eu estou no terreno e, com o devido respeito, creio que sei mais acerca do que se passa do que o senhor.
O chefe bebe um golo de Maalox pelo frasco.
- Está bem, Tony, faça as coisas à sua maneira. Vou suspender os memorandos. Em contrapartida, espero ser informado imediatamente de quaisquer desenvolvimentos significativos.
- Prometo que o farei, chefe.
- A propósito, a Contra-Espionagem informa-me de que a mensagem mais recente de Martin Frey repete que Evelyn Heimdall está limpa. Portanto, aparentemente, as suas suspeitas eram injustificadas.
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Glitner não responde, mas não está convencido, apesar dos relatórios de Frey. No voo de regresso a Fort Lauderdale, reflecte sobre a fragilidade da confiança. Pondera a maneira de provar ou negar, pessoalmente, as suas dúvidas sobre a lealdade de Evelyn Heimdall.
Há uma forma. Mas ele não está certo de ter a coragem moral para a levar a cabo.
Durante um período após a morte da mulher, Harry Dancer verifica que as memórias da vida deles estão bloqueadas. Imagina a parede grossa de uma grande represa, impedindo uma inundação. Recordações, grandes e pequenas, de acontecimentos, cenas, hábitos compartilhados e sorrisos secretos... tudo contido.
As intimidades com Sally Abbadon e Evelyn Heimdall abrem uma brecha nessa parede. Primeiro, uma leve racha; um fio de água. Que se alarga. Depois uma fissura, um rio. Que cresce. Ele não consegue compreender de que forma o facto de amar Sally e Ev quebrou a barreira. É verdade que amando uma mulher se amam todas as mulheres?
As memórias tornam-se mais intensas. Os pormenores tornam-se vívidos. Cores. Cheiros. Tons e conversas. Sylvia começa a viver de novo. Ele consegue vê-la. Sente a textura da sua pele. Recita os seus diálogos, quase palavra por palavra. Um filme a cores que ele pode passar e voltar a passar, sem nunca se cansar. Rindo-se das piadas. Chorando nas partes tristes.
Senta-se sozinho, na casa às escuras. Um gim martini intacto na mesa a seu lado, com o gelo a derreter-se. Cruza os dedos sobre o peito. Fecha os olhos. Liga o projector. Uma produção Harry Dancer...
Tarde quente de Agosto. Sol escaldante. Céu pérola com algumas farripas de nuvens evocando marcas de giz. O mar está calmo. As pequenas ondas desfazem-se na areia.
Flutuam a cem metros da praia num colchão de plástico. Não tão grande como um barco de borracha, mas suficientemente grande para os levar aos dois. Com dois remos de alumínio ridiculamente pequenos. Os nadadores estão mais perto da praia. Os barcos mais ao largo. O oceano pertence-lhes. Só a eles.
Deitam-se de frente um para o outro. Com as pernas entrelaçadas. Sylvia tira a parte de cima do biquini. Abre os braços. Reclina-se com um suspiro de satisfação.
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- Se há coisa que eu detesto - diz Harry - são mamas a pelar. E é isso que te vai acontecer se não tiveres cuidado.
- Só um bocadinho - diz ela. - Quinze minutos, não mais. Só para ficarem com alguma cor. Quem gosta de mamas brancas?
- Eu gosto - diz ele. - Das tuas.
A pequena embarcação balouça suavemente. Parece ancorada. Eles fecham os olhos por causa do brilho do sol. Sentem um calor de forno a derreter-lhes os ossos.
- Que mais é que a vida pode dar? - pergunta ela.
- Uma bebida gelada - responde ele. - Temos de contratar um mordomo que saiba nadar. A propósito, ontem estive na biblioteca, à procura de um dicionário jurídico, e descobri um livro com o significado dos nomes. Sabes o que "Sylvia" quer dizer?
- "Virgem da floresta".
- Sabias e nunca me disseste? Está bem, minha virgem da floresta, e "Harry"?
- Isso não sei.
- Significa "professor rabugento".
Ela abre os olhos. Ri-se. Ergue um joelho e toca-lhe nas costas com os dedos dos pés.
- Tonto. Vou para a água.
- Sem a parte de cima do biquini?
- Por que não? Não está ninguém por perto.
- Eu estou por perto. E Deus.
- Ambos me amam, eu sei.
- Bom, tem cuidado ao saltares. Não nos faças virar.
Ela desliza para dentro de água quase sem um salpico. Nada alguns metros, à cão, virando-se para ele. Ele olha para ela. A sorrir. Vendo os seus seios brancos. Pernas bronzeadas a bater. Movimento de braços vigoroso.
- Harry - grita ela -, tens de vir. Parece leite morno. Ele deixa-se rolar para dentro de água. Mergulha à superfície.
Toca no fundo arenoso com as pontas dos dedos. Bate as pernas com força e sai bruscamente da água.
- Lindo - diz ele. Nadando para junto dela. - Muito sexy.
- O quê?
- O oceano. Ele aproxima-se.
- Estou a afogar-me - diz ela - e tu tens de me salvar.
- Maluca!
Ela flutua de costas. Ele nada ao lado dela. Põe-lhe um braço sobre o peito. Agarra-lhe um dos seios.
- Agora que faço? - diz ele.
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- Um pouco de respiração boca-a-boca seria agradável. Ela gira lentamente no mar. Deixa-se envolver pelos braços dele. Um beijo fresco, salgado. Ela olha em volta. Não há ninguém por perto. Afasta-se dele. Começa a nadar lentamente na direcção do colchão.
- Que vais fazer? - grita ele, observando-a.
Ela mexe-se na água. Mergulha por instantes. Quando volta à superfície, tem na mão a parte de baixo do biquini. Acena triunfantemente. Depois atira-a para cima do colchão. Faz-lhe sinal para que ele vá ter com ela.
- és maluca! - grita ele. Mas nada para junto dela. Tira os calções e atira-os para o colchão. Nua, ela mete-se entre as pernas dele.
- Assim é melhor - diz ela. - Não é, Harry?
- Melhor não - diz ele. - O melhor.
Precisam de esfregar a pele molhada. De se agarrar. Mergulham juntos. Tocam-se debaixo da água transparente, apalpam-se, agarram-se. Com o cabelo a ondular. Exploram. Flutuam até à superfície. Respiram fundo.
- Podemos? - diz ela.
- Podemos experimentar - diz ele.
Sentado, sozinho, na casa envolta na penumbra, Harry Dancer recorda esse dia. Ainda consegue sentir-se surpreendido. As recordações provocam-lhe saudades dolorosas. Será que era assim tão perfeito? Ou seria a memória a pregar-lhe a sua habitual partida: os bons tempos perduram; os maus tempos são esquecidos.
Pega no seu gim martini. O gelo derreteu, mas a bebida ainda está gelada. Ergue o copo. Apercebe-se subitamente de que tem uma erecção. Meu Deus, a memória consegue fazer isso? Oh, sim. Teve uma erecção no mar.
-: Aquilo de que não preciso agora - dissera ele - é de uma barracuda esfomeada.
Teria sido uma fantasia, pensa. Aconteceu realmente?
- Claro que aconteceu - diz em voz alta para a sala vazia. Os pormenores são tão distintos. O verde da água. O azul do
colchão. O sol escaldante. O mar calmo. Ninguém por perto. Ela fê-lo. Ela fê-lo. Eles fizeram-no. Céu azul. Tudo como ele se recorda.
A menos... A menos... que ele esteja a imaginar. A sonhar uma vida idílica que nunca existiu. A criar alegria a partir da tristeza.
Faz troça de si próprio, representando o papel de um velho desdentado.
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- Oh, sim - diz ele. Em voz alta. Numa voz quebrada, trémula. - Esses sim eram os bons velhos tempos. Fornicámos no mar. Sim, fizemo-lo. Estávamos nus. Tirámos tudo. Não estava ninguém a ver. Estou a falar a sério! Passámos uns bons bocados. Podia contar-vos...
Dá por si a chorar baixinho. Com a preconização do que a sua vida futura poderá vir a ser. Apenas recordações de coisas passadas. Misturadas com sonhos e fantasias. A totalidade das deambulações de um velho. E nada entre o real e a quimera.
Levanta-se. Acende o candeeiro de mesa. Telefona a Sally Abbadon. Ninguém atende. Telefona a Evelyn Heimdall. Ninguém atende. Envergonhado com a sua fraqueza. Vai à cozinha preparar outra bebida. Pára bruscamente.
Aquilo aconteceu mesmo. Exactamente como se lembra. Sylvia tinha vestido um minúsculo biquini roxo. Corre escadas acima. Acende as luzes. Freneticamente, remexe na cómoda dela. Na roupa dela. Coisas que não teve coragem para dar ou deitar fora.
Encontra um biquini roxo. Fica de pé, com ele na mão, acariciando-o, cheirando-o.
Um minúsculo biquini roxo... Isso é uma prova, não é? Ou não?
Reúnem-se na sala de conferências do director, sentados numa extremidade da enorme mesa.
- O que temos é isto - diz Ted Charon. Olhando para um molho de papéis. - Parece que...
- Espere um instante - diz o director, erguendo a palma da mão rosada. - Isto implica uma possível acção disciplinar, Ted?
- Sim, senhor, implica.
- Então acho melhor fazermos uma acta desta reunião. Para o caso de mais tarde virem a ser feitas perguntas. Algum dos senhores se opõe a que eu peça a Norma Gravesend que venha tomar notas em estenografia do que for tratado?
Ted Charon e Briscoe declaram que não têm objecções. Gravesend entra com o seu bloco e é-lhe dito que anote tudo o que se disser.
- Não precisa ser palavra por palavra, minha querida - diz o director, amavelmente. - Basta que apanhe o principal.
- Posso ir buscar o gravador, Sr. Director - sugere ela. Ele considera a questão. Comparando a dificuldade de
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transcrever uma gravação áudio com a facilidade de censurar o relato estenografado da secretária.
- Não creio que isso seja necessário - diz ele. - Trata-se de uma reunião preliminar, informal. Ted, importa-se de recomeçar, por favor?
- Parece - começa Charon - que o agente responsável pelo caso, Shelby Yama, teve e continua a ter uma série contínua de encontros com um indivíduo que foi identificado como sendo um funcionário da companhia. Nome de código: Willoughby. Consta dos nossos ficheiros como um homem das comunicações, mas aparentemente tornou-se agente activo na campanha Harry Dancer.
- Anda a seguir Sally Abbadon - diz Briscoe. - Isso é ponto assente.
Ted Charon consulta os seus apontamentos.
- Yama tem estabelecido contacto várias vezes por semana numa igreja de Deerfield que Willoughby frequenta. O meu operacional não conseguiu aproximar-se o suficiente para ouvir as suas conversas. Mas informou que durante a última semana Yama e Willoughby se tornaram aparentemente mais íntimos. Foram observados em duas ocasiões a comer num restaurante de fast-food, próximo da igreja. A primeira coisa que tem de ser definida é esta: Shelby Yama foi autorizado a fazer tais contactos com um agente da companhia?
- Não por mim - diz imediatamente o director. - Briscoe, você tinha conhecimento disto?
- Não, senhor. Suspeitei das ausências injustificadas de Yama, mas não fazia ideia do que ele andava a fazer. Perguntei-lhe, mas nunca obtive uma resposta directa. Isso preocupou-me. Passei o caso para Charon, achando que era um problema da Segurança Interna.
- Fez muitíssimo bem - diz o director. -Vigilância constante. Temos de a ter.
Senta-se direito na cadeira, as mãos unidas sob o queixo. Como sempre, está impecavelmente vestido. Colarinho branco engomado e sem um vinco. Fica sentado em silêncio, o olhar distante.
- Bom... - diz. Finalmente. - Não creio que seja uma questão a pôr a Cleveland. Por enquanto. Mas acho que deve ser tratado seriamente, como sendo um assunto da maior importância. Envolvendo, como é o caso, uma possível quebra de segurança e potencial traição. Norma, está a acompanhar tudo isto?
- Sim, Sr. Director. Estou.
- Obrigado, minha querida. Se estivermos a ir demasiado depressa, diga-nos para abrandarmos. Bom, meus senhores, na
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minha opinião, o nosso próximo passo é chamar Shelby Yama para ser interrogado e para lhe pedirmos que explique exactamente o que tem andado a fazer. Pode ser uma iniciativa táctica da sua parte. Nesse caso, o seu único erro terá sido não me informar antes de iniciar a acção. Mas pode ser mais grave do que isso. E, nesse caso, será necessária uma acção disciplinar. Os senhores concordam?
- Posso dispor de mais alguns dias - diz Ted Charon-antes de o chamarmos? Uma semana no máximo? Gostaria de manter Yama sob vigilância apertada. Se a minha gente conseguir vê-lo a passar documentos, ou seja o que for, a Willoughby, o nosso caso terá muito mais força.
- Uma semana? - pergunta o director. - Parece-me razoável. Briscoe, qual é a sua opinião?
- Concordo. Damos-lhe uma oportunidade para se enforcar.
- Está bem, Ted - diz o director. - Voltaremos a reunir-nos daqui a uma semana para decidirmos qual será o nosso próximo passo. E, já que estamos a discutir a acção Harry Dancer, que notícias há de Angela Bliss?
- Não há novos desenvolvimentos, senhor. Ela diz que até agora Sally Abbadon não revelou qualquer desvio. Aparentemente, está a cumprir todas as regras.
- Briscoe?
- Não acredito - diz o homem sombrio. - Abbadon está a virar. Se não for hoje, será amanhã.
- Ora esta - diz o director. Abanando a cabeça leonina. - Você suspeita de toda a gente.
- Exacto - diz Briscoe, olhando-o.
Evelyn Heimdall conhece os lugares-comuns que descrevem a sua actual disposição. Atirar-se de cabeça. Lançar a cautela aos quatro ventos. Quero lá saber. Todos eles denotam imprudência. Tem consciência da sua temeridade e não se rala.
A imprudência é um estado de espírito. A ignorância deliberada do perigo. Nos dias que correm, porém, Evelyn reconhece, ela não é governada pelo seu espírito. O seu corpo possui-a e é ele que manda.
- O meu cérebro está na minha rata - diz a Martin Frey. E, quando ele se ri, ela pergunta-se se poderá repetir o comentário a Harry Dancer. Decide não o fazer.
É uma febre. Estar obcecada pelo físico. Agora compreende
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por que é que os outros se mantêm fiéis à sua crença. Se lhe prometessem anos intermináveis de alegrias carnais, será que ela poderia evitar renunciar aos seus votos e trocaria de lado naquele eterno duelo?
Tudo no mundo corpóreo é uma nova fonte de delícias. As cores são mais fortes. Os aromas mais frescos. Os sons mais musicais. Sente-se como se tivesse passado a vida inteira em coma. Subitamente acordada. Olha em volta e vê um globo brilhante. Está intoxicada de sensações.
- Mais! - grita a Martin Frey. Esse torna-se o seu grito de rebeldia: Mais!
Tenta explicar a Harry Dancer o que sente. Ele escuta-a. Olha para ela com uma expressão séria. Assente.
- Tentei dizer-te, Ev - diz ele. - É o sol, o calor, a qualidade física deste sítio. Afecta-nos a todos, num ou noutro grau.
- A Florida faz parte disto - concorda ela. - Desabrochar. É exactamente isso que sinto. Sinto-me toda a transbordar. Mas em parte é a minha vida anterior. Controlada e disciplinada.
- Estava a pensar... - diz ele. - Que aconteceu a todas essas coisas de que me falaste? A necessidade de fé. Devoção. Bases espirituais.
- Continuo a acreditar em tudo isso. Não existe nenhuma contradição entre acreditar e aquilo que agora sinto. Haverá?
- Não, se pensas que não há.
- Penso? Oh, Harry, há semanas que não penso!
Ele é, decide, um homem simpático, sincero. Falta-lhe, porém, loucura. Recusa-se a deixar-se ir. Quer que ele seja tão livre e ansiosamente apaixonado como ela. Bárbaro. Mas há nele uma secreta reserva. Algo contido e resguardado, que ela não consegue penetrar.
Estão no apartamento dela. Sábado de manhã, antes de um jogo de ténis.
- Temos tempo - diz ela, olhando para ele. - A minha vontade é foder-te até os dentes te tremerem.
- Queres que tenha um colapso no campo de ténis? - diz ele, a sorrir. - Vamos guardar isso para logo à noite.
- Não quero guardar - diz ela. - Gastar, gastar, gastar.
- Logo à noite - promete ele.
- Magnífico - diz ela.
Mas a noite não é magnífica. Bastante satisfatória. Agradável. Mas ela sonha com um amor tão forte e estranho como arte primitiva. Procura o selvagem e encontra o civilizado. Diz-lhe quanto o ama.
- Nunca senti isto antes - diz ela.
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Assim que ele se vai embora, ela telefona a Martin Frey. Ele não atende. Continua a ligar. Ouve aquele irritante trriimm, trriimm, trriimm. Derrotada, senta-se pesadamente na beira da cama. Será demasiado tarde para sair? Demasiado tarde para ir a um bar, a qualquer lado, e encontrar um estranho feroz? Um bruto.
O toque do telefone salva-a. Agarra o auscultador.
- Olá - diz Martin Frey. - Como estás?
- Onde estiveste? - queixa-se ela. - Estou farta de ligar para ti.
- Bom, como sabia que estavas ocupada esta noite, fui às corridas de galgos.
- Por que estamos a falar ao telefone? - pergunta ela. - Por que não estás aqui?
- Estarei - diz ele. - Cinco minutos.
Não toma duche. Não faz a cama. Esta noite quer Dancer dentro dela, Frey dentro dela, o mundo dentro dela. Quer render-se à tempestade que sente dentro dela. Capaz de qualquer coisa e de tudo.
Subitamente, sem pensar em nada, ajoelha-se junto à cama. Cruza as mãos. Fecha os olhos. Reza por ajuda e perdão. Mas, no meio da sua súplica, a campainha toca. Corre para receber Frey. Nua e com os olhos molhados, trémula de um prazer eivado de culpabilidade.
Ele está a tornar-se tão insensato quanto ela. As suas relações não são um namoro, mas uma luta violenta. Combatem e chamam-lhe alegria. A dor é uma bênção. Dentes. Garras. Mergulham na selva com rugidos, gritos, urros. Soluçando. Escravizando. A fé derrotada, a convicção perdida.
Depois ficam deitados, contundidos e entorpecidos. Indolentes.
- Tenho uma coisa para te dizer - diz Frey. Voz sem timbre. Monótona. - Uma confissão.
- Ah, sim? - diz ela. - Grave?
- Sim, muito. Pertenço à companhia. Contra-Espionagem. Ela levanta-se abruptamente. Fica a olhar para ele, com os
olhos muito abertos.
- Não!
- Sim.
- Então eles sabem de mim - diz ela. - Estou arrumada.
- Eles não sabem nada - diz ele. - Acerca de ti. Acerca de mim. Acerca de nós. Tenho apresentado relatórios falsos.
Ela atira-se para cima da cama. Olha para o tecto. Morde os nós dos dedos.
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- Por que foste destacado para me abordares? Quem os avisou?
- Não sei pormenores, mas depreendo que o teu agente responsável sentiu que as coisas não estavam bem contigo. Que estavas a mudar.
- Tony Glitner - diz ela. - Um homem sensível. Eu devia ter percebido que não conseguia enganá-lo. Então mandaram-te cá para me testares?
- Uma coisa assim.
Não está ressentida, apenas resignada.
- Bom, conseguiste o que querias.
- Já te disse que não comuniquei nada. Na perspectiva de Washington, tu estás limpa. O que faz que eu seja teu cúmplice, não é?
Ela beija-o freneticamente.
- Parceiros no crime - murmura ela. - Por que não me denunciaste?
- Tu sabes porquê. Sou tão culpado quanto tu.
- Culpado não, querido. Feliz.
- Sim. Feliz.
Ficam deitados em silêncio. Depois dão as mãos.
- Que havemos de fazer? - pergunta ela.
- Não vejo por que temos de fazer alguma coisa. Tu continuas a trabalhar Harry Dancer. Dizes ao teu agente responsável que está a levar mais tempo do que esperavas. Eu continuarei a enviar relatórios afirmativos acerca da tua lealdade.
Ela abana a cabeça.
- Não resultará. Não durante muito tempo. A sede quer resultados. E não posso empatar Glitner eternamente. Ele já pressente o que está a acontecer.
- Qual é o pior que pode acontecer? Tiram-te do caso Dancer e dão-te outro.
- E que te acontecerá a ti, Martin?
- A mesma coisa. Serei destacado para outro caso.
- Nessa altura estaremos separados. Com o mundo inteiro de permeio. Queres isso?
- Não - diz ele. - Tu queres?
- Nunca! - exclama ela.
Incitados pelo medo da separação, abraçam-se com força. Muito unidos.
- Podemos fugir? - pergunta ela. - Sem mais? Os dois?
- És rica?
- Não sejas tolo.
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- Eu também não. Talvez conseguíssemos viver durante um ano. E depois?
- Arranjamos emprego. Ambos.
- A fazer o quê? Com a nossa formação, que mais sabemos fazer? Além disso, eles encontravam-nos. Tu sabes isso. E começariam as pressões. Acabaríamos em centros de reabilitação.
- Oh, meu Deus. Que vamos fazer1?
Ele vira-se na cama. Começa a lavá-la com a sua língua febril. Depois perdem de novo a consciência. Os medos desaparecem. Incendiados pelo sentimento comum de pecado. O prazer aumentado pela rendição ao mal traiçoeiro. Negam tudo e encontram um novo céu. Um inferno mais excitante.
Até que a carne angustiada não aguenta mais. Em carne viva e doridos, afastam-se. Enlouquecidos pelo excesso. Com a pele queimada, arranhada e mordida. Sabor a sangue. Cheiro a cinzas.
Ela segura o rosto dele entre as mãos. Encosta o nariz ao dele. Olha dentro dos olhos dele, dilatados.
- Podemos desertar - diz ela, num murmúrio.
- Para os outros?
- Sim.
Norma Gravesend faz a transcrição dos apontamentos estenografados, tirados durante a conferência sobre as actividades e o futuro de Shelby Yama. Este relatório é entregue ao director. Nessa noite, uma fotocópia é passada a Leonard, o contacto de Norma. Ele codifica o relatório e transmite-o via rádio para Washington. Uma versão descodificada é entregue ao chefe de operações.
Este considera o conteúdo preocupante. Alerta imediatamente o agente responsável pelo caso, Anthony Glitner, de que o agente Willoughby poderá correr perigo. Sugere a Glitner, mas não lhe ordena, que Willoughby cesse todos os contactos com Shelby Yama.
O agente responsável, estudando as suas informações, sente que o chefe está indevidamente alarmado. Glitner acha que, se o departamento suspeita das actividades de Yama, não autorizadas superiormente, então há boas hipóteses de ele, Glitner, ter acertado em que Shelby Yama está a pensar desertar e a tentar estabelecer um contacto amigável.
- Trabalhe-o - diz a Willoughby. - Se ele insinuar que quer
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passar para o nosso lado, faça-o saber que precisará de estabelecer as suas bona fides antes de lhe garantirmos segurança. Peça-lhe para entregar uma relação completa do pessoal do departamento da equipa Harry Dancer.
Quase ao mesmo tempo, Shelby Yama comunica entusiasticamente a Briscoe que está a fazer progressos relativamente à viragem de Willoughby.
- É do tipo camponês - diz Yama. - Pouco sofisticado. Tenho-lhe contado umas histórias extravagantes acerca da forma como vivo e ele tem-nas engolido todas. Percebo que está entusiasmado. É uma nova versão de Rain. Estou a fazer de Sa-die Thompson junto do seu Davidson.
Briscoe finge pensar longamente no assunto.
- Se acha que o pescou, por que não lhe dá uma das nossas brochuras de recrutamento? E talvez um exemplar do nosso contrato de trabalho.
Yama tem dúvidas.
- Não creio que ele já esteja pronto para dar o salto. E não quero assustá-lo indo demasiado depressa.
- Provavelmente tem razão - diz Briscoe. - Tem muito mais experiência do que eu e confio na sua avaliação da situação. Esqueça o contrato. Mas não fará mal nenhum dar-lhe a publicação de recrutamento. A brochura nova a cores. Isso abrir-lhe-á os olhos.
- E dar-lhe-á ideias - diz o agente responsável. Rindo. - Sim, talvez faça isso. Mostro-lhe como vive a outra metade.
Duas noites depois, ao sair da igreja de Deerfield, Shelby Yama entrega a Willoughby um envelope pardo. Esta acção é observada pelo operacional da Segurança Interna de Ted Charon.
- Conheci muitos homens - diz Sally Abbadon. - De todos os tamanhos, formas, cores. Nem sequer me consigo lembrar de todos. Nem sequer tento.
- Sexo recreativo - diz Angela Bliss.
- Acho que sim. Não significa muito para mim. É como coçar uma borbulha.
As duas mulheres almoçam na esplanada de um café, no Intracoastal Waterway. Estão sentadas a uma mesa com chapéu-de-sol, comendo salada de frutas e bebendo chá gelado. Enquanto isso, observam o vai-vem dos barcos de recreio.
Está um dia nublado. Quente e húmido. Uma brisa suave,
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soprando de sul, mal agita a franja do chapéu-de-sol. Numa mesa próxima, uma mulher gorda abana-se com um leque. Mas parece prestes a desmaiar.
- Depois conheci o homem com quem ando agora - continua Sally. - Chama-se Harry. Nunca te disse, pois não? Estar com ele tem sido uma revelação para mim. O que pode ser o sexo com amor. É como um ingrediente adicional. Sal no guisado. Fez-me perceber como o sexo recreativo é realmente de segunda. Quero dizer, não resulta.
- Ele ama-te, Sally?
- Não como eu o amo a ele. Sei que sente afecto por mim, mas não passa disso. Tivemos uma longa conversa acerca dos diferentes tipos de amor que existem. Concordámos que cada um de nós ficava na sua. E eu aceitei. é cem vezes melhor do que eu tinha.
- Mas não é aquilo de que precisas?
- És muito perspicaz, Angela. Não, não é tudo o que eu preciso. Seja lá o que isso for. Mas é a única coisa que vou ter dele. Queres um pouco de gelado?
- Acho que não, mas come tu.
- É melhor não. Hoje sinto-me muito inquieta. é da humidade, provavelmente. É muito sufocante.
- Vamos acabar de comer para voltarmos para o ar condicionado.
No regresso ao motel, Sally diz:
- Tenho umas garrafinhas de um refresco feito com vinho, no meu frigorífico. Parece uma sangria muito leve. Queres provar?
- Claro. Qualquer coisa gelada. Queres que vá ter contigo ao teu quarto?
- Não - diz Sally. - Levo-as para o teu.
Leva uma embalagem de quatro garrafas de Califórnia Cooler para o quarto de Angela. Abrem duas e bebem pela garrafa.
-Aqui estamos bem melhor - diz Angela. - Nem sei por que saímos com o calor todo que faz. Já estás mais calma?
- Desculpa ter atirado com os meus problemas para cima de ti, querida - diz Sally. - Sei que tens os teus próprios problemas. Mas falar contigo ajuda-me muito.
A outra mulher inclina-se para a frente.
- Nem penses que me incomodas. Não incomodas. Só gostaria de te poder ajudar mais.
- Ouvires-me é a melhor coisa que podes fazer por mim. Nunca tive uma amiga com quem pudesse falar. Só homens. Eles são porreiros, às vezes, mas não é a mesma coisa.
Tiram os sapatos. Estendem-se. Sally desabotoa a camisa até ao cós das calças.
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- Nunca usas soutien, pois não? - pergunta Angela.
- Só quando não pode deixar de ser.
- Eu uso. Sempre. E não sei porquê. é como pôr uma sela num pequinês.
Riem-se. Confortáveis com a sua intimidade.
- Se eu tivesse o teu corpo - diz Angela -, governaria o mundo.
- Eu costumava pensar assim. Mas não é isso que acontece. Fi-lo durante algum tempo, mas já não faço. Ter um bom corpo é apenas uma questão de genes e de sorte. Não foi uma coisa que eu tenha feito. Tento manter a carcaça em forma, mas não a criei; apenas a herdei. Às vezes acho que é uma maldição. Todos os homens que conheço querem saltar-me para cima.
- Harry também?
- Não, ele é diferente. Talvez seja por causa disso que o amo. Nunca dá o primeiro passo. Já reparei que sou sempre eu que tenho de tomar a iniciativa. Depois mostra-se bem interessado. Mas também gosta de passar uma noite calma, a conversar ou a passear pela praia. é um homem estranho. Muito inteligente e muito profundo. Ainda não o entendo completamente.
- Ele é casado, Sally?
- Era, mas a mulher faleceu há alguns meses e acho que ele ainda não se recompôs. Às vezes acho que é por isso que ele age como age. É uma pessoa muito dada a variações de humor.
- Talvez sinta que ao ir para a cama contigo está a enganar a sua falecida mulher.
Sally olha para ela.
- É exactamente isso que eu penso. Eu bem disse que eras muito perspicaz. Portanto, a minha concorrência é a memória de uma mulher que está sete palmos abaixo do chão. Provavelmente, é por isso que ele não pode amar-me como eu gostaria que ele me amasse.
- Achas que ele alguma vez vai pedir-te em casamento?
- Oh, não - diz Sally. - Isso está fora de questão.
- Porquê?
Sally desvia o olhar.
- Por várias razões. Isso é simplesmente impossível.
- Por que não o deixas? - pergunta Angela. - Se a relação está a tornar-te infeliz.
- Infeliz não. Não propriamente. Apenas não é aquilo que eu gostava que fosse.
- Talvez pudesses encontrar outro homem que te ame como precisas.
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- Não quero outro homem - diz Sally. - A resposta não é
essa.
Angela Bliss não tem agora qualquer dúvida de que Sally Abbadon nunca conseguirá converter Harry Dancer. Está a violar a primeira regra do departamento para os agentes de campo: nunca se envolverem pessoalmente. Cada agente deve ser um vendedor do credo do departamento. Não há qualquer justificação para relações pessoais que existem para si próprias e que não produzem resultados.
Para ser fiel aos seus votos, Angela tem de comunicar a incúria a Ted Charon e deixar que ele resolva o assunto a partir daí. é possível que o castigo de Sally seja apenas o seu afastamento do caso Harry Dancer e uma repreensão oficial. Possível... mas não provável. O departamento tem muitos graus de retribuição. A maioria deles inflexíveis.
Angela Bliss olha para o corpo cremoso da outra mulher. Decide. No entanto, é suficientemente inteligente para reflectir que, se for rejeitada, Sally terá certamente de sofrer. É penoso aperceber-se de que está a pôr aquela bela mulher em perigo. Mas não consegue evitá-lo.
Puxa a cadeira para junto da de Sally. Passa-lhe um braço por cima dos ombros.
- Magoa-me ver-te infeliz, minha querida - diz ela. A sua própria voz soa-lhe estrangulada. - Tu mereces o amor que queres.
Sally tenta sorrir.
- Sobreviverei - diz ela.
Angela não está certa disso. Afasta o cabelo de Sally. Aproxima os lábios do ouvido de Sally.
- Deixa-me amar-te - murmura ela. - Por favor, minha querida. Deixa. Eu sei o que procuras. Posso dar-to. Por favor, deixa-me.
Sally olha para ela de uma forma estranha.
- Não se trata apenas de amor físico - diz. - Essa não é a resposta. Quero...
- Eu sei, eu sei - diz Angela. As palavras saem-lhe em catadupa. - Devoção. Forte e absoluta. Uma religião feita de duas pessoas. É isso, não é? Algo constante e eterno. Duradouro, duradouro... É isso que eu quero também. Podemos consegui-lo, minha querida.
Desliza a mão sob a camisa aberta de Sally. Segura um seio quente e cheio. Sente o estremecimento.
- Podemos? - murmura Sally. - Achas que podemos?
- Oh, sim! Sim. É assim que o amor deve ser. Um mundo aos pares. Compartilhado. Pertencendo por completo ao outro.
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Inclina-se para a frente. Beija a outra mulher na boca. As suas bocas abrem-se. As pontas das línguas tocam-se.
- Podemos tentar? - implora Angela Bliss, quase a chorar de fervor. - Por favor, meu amor, vamos tentar.
Depois, às apalpadelas, desajeitadas, apressadas, ficam ambas nuas sobre a cama. Seduzem-se uma à outra com palavras. Amor. Dedicação. Partilha. Crença. Fé. Para sempre.
Descobrem o corpo uma da outra. Exploram e aprendem, com dedos ansiosos, bocas quentes e deslizantes. Gritos frenéticos. Exclamações de prazer. Tudo é novo e promissor. Enlouquecidas pela ternura, penetram depois, rodopiantes, nesse novo universo. Convencidas de que estão a criar algo.
Angela afasta-se bruscamente. Enrosca-se em posição fetal, fechando com força os olhos cheios de lágrimas. Os braços delgados agarram o peito magro. Dela desprende-se um lamento agudo.
Sally inclina-se sobre ela.
- Que é, querida?
A outra mulher vira-se rapidamente para a olhar. Estende a mão para tocar nos lábios de Sally.
- Não podemos começar com uma mentira. Não podemos! Temos de ser absolutamente honestas uma com a outra. Absolutamente abertas. Não é verdade? Não é?
Sally fica a olhar para ela, o rosto gelando lentamente.
- Querida - repete -, que é?
A confissão de Angela sai num rompante. Diz-lhe tudo. Ela trabalha para a Segurança Interna do departamento. Veio de Chicago para testar a lealdade de Sally.
- Briscoe achou que estavas a virar - diz ela.
A história do marido inválido é mentira. Ela é solteira. Está no motel para estabelecer contacto. Para se tornar sua amiga. Para ganhar a confiança de Sally.
- Estou subordinada a Ted Charon - diz ela.
- Estou morta - diz Sally. Inexpressivamente.
- Não, não! Juro, meu amor, que não lhe contei nada. Acerca do que sentes... nem nada. Tanto quanto sabem, estás limpa. Dei-te cobertura desde o primeiro dia.
- Por que fizeste isso?
- Não sabes, minha querida? Porque te amo desde o primeiro dia.
Sally senta-se na cama. Encosta-se à cabeceira. Fica pensativa. Angela sai do quarto. Volta com mais duas garrafas de refrigerante, abertas. Sally pega na dela distraidamente. Bebe devagar.
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- Angela - pergunta -, por que não me contaste isto antes?
- Porque tive medo de que, se o fizesse, me dissesses que me amavas só para te protegeres. Terias achado que era uma espécie de chantagem, não era?
- Provavelmente. E se eu te tivesse rejeitado há uma hora atrás? Ter-me-ias denunciado?
- Não sei - diz Angela, Convencendo-se a si própria de que essa era a verdade. - Honestamente, não sei o que teria feito. Mas amo-te tanto. Tinha de correr o risco. Acreditas em mim?
Sally vira a cabeça para olhar para a outra mulher. Subitamente sorri, radiosa.
- Sim, querida, acredito em ti. Tenho de acreditar em ti. és a minha única hipótese.
- A única hipótese que nós temos - diz Angela. - Tudo o que te disse é verdade. De todo o coração. Este dia abriu uma vida nova para mim. Para nós. Sou dura, meu amor. Posso não parecer nem agir como se fosse, mas sou de aço, a sério que sou. E não vou deixar-te fugir sem lutar. Amo-te, Sally, e quero-te. E tu, queres-me?
Em voz baixa:
- Preciso de ti.
- Precisamos uma da outra. Sozinhas, somos apenas semi-mulheres. Percebes isso, não percebes?
- Sim.
- Então temos de pensar e descobrir uma maneira de conseguirmos aquilo que queremos. Ouve, já trabalho para o departamento há muito tempo... e sei que tu também... e, pensando bem, o departamento não é uma grande organização misteriosa e todo-poderosa. São pessoas, não é verdade? As pessoas fazem as regras. é gerida por pessoas. E a maioria dessas pessoas não é mais inteligente que nós. Acredita em mim, querida, eu sei. Portanto, não penses que não temos nenhuma hipótese, porque temos!
- Tens a certeza? - pergunta Sally. - Achas que conseguimos sair?
- Claro que sim. Mas não podemos pôr-nos a andar, sabes isso. Eles apanhar-nos-iam, mais cedo ou mais tarde.
- Então quais são as nossas opções?
- Vamos pensar nisso - diz Angela. Tirando a garrafa de refrigerante das mãos de Sally, pousa-a no chão. -Vamos falar nisso. Mais tarde. Mas agora deixa-me mostrar-te o quanto significas para mim.
- Sim - diz Sally. - Gostava que o fizesses, meu amor.
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O presidente do departamento, assistido pelo supervisor, levanta-se lentamente do seu trono reforçado na Sala de Guerra. Apoiando-se numa bengala de abrunheiro, tão grossa como um bordão, dirige-se laboriosamente para o seu gabinete privado. Leva consigo as últimas informações sobre o caso Harry Dancer. Sozinho, deixa-se cair num cadeirão forrado a couro vermelho-sangue. Revê os relatórios e as listagens de computador mais recentes. Puxa nervosamente o grosso lábio inferior.
Aquela coisa Dancer começara de forma tão simples. Agora é um monte de vermes. As paixões humanas desagradam ao presidente. Não tem dificuldade em lidar com negros pecados e brancas virtudes, mas aquele pântano acinzentado de emoções fumegantes desanima-o. O bem ou o mal não o intimidam. Em contrapartida, as excentricidades incomodam-no e, às vezes, derrotam os seus planos mais rigorosos.
Veja-se o caso do agente Shelby Yama, que dirige o agente de campo na campanha Dancer. Segundo a Segurança Interna, Yama tem tido repetidos contactos não autorizados com um indivíduo identificado como sendo um agente da companhia. Além disso, foi observado a passar material a esse agente. Pergunta da Região Sudeste: aprova a liquidação de Shelby Yama?
O presidente pondera essa decisão. Yama tem uma boa folha de serviço. Não brilhante, mas boa. No entanto, existem algumas provas de irregularidade. Talvez devido aos seus antecedentes teatrais. Ou talvez à natureza volúvel do próprio homem. Parece inclinado para a representação. Não é o funcionário mais forte do departamento, nem o de maior confiança.
O presidente, raciocinando, reflecte sobre as possibilidades que se lhe apresentam. Uma: retirar Shelby Yama do caso Dancer. Substituí-lo por um outro agente responsável, que necessitaria de um período de orientação, resultando num maior atraso relativamente ao prazo e num maior peso no orçamento. Dois: Convocar Yama para um interrogatório duro, utilizando o último grito em drogas da verdade. Mas como é que ele poderá justificar as suas recentes actividades com um agente da companhia? De qualquer forma, o interrogatório, independentemente do seu desfecho, abalará a sua confiança e o moral dos seus subordinados.
Três: Liquidar Yama. Imediatamente. O presidente suspira pesadamente. Toca, chamando o seu secretário. Dita uma mensagem para o director da Região Sudeste, autorizando a eliminação imediata do agente Shelby Yama. Por meios a serem determinados pelo director.
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O presidente considera, então, o problema da substituição. Decide-se por Briscoe.
- O homem certo no lugar certo - diz ao seu secretário.
Harry Dancer está confuso. E está consciente disso.
Está confuso com a libertinagem selvagem de Evelyn Heimdall. No espaço de algumas semanas, ela perdeu a sua imagem de mulher fria, segura e disciplinada. Tornou-se devassa. O clima tropical e a natureza física da Florida não podem justificar essa mudança. é uma nova pessoa. Para ele e, suspeita, para si própria.
- Por que não? - tornou-se o seu constante refrão, depois de ele contrariar propostas disparatadas. Quer mais de tudo, insaciável e exigente. Ele não consegue acompanhá-la. Reconhece que acha intimidante o abandono dela. E assustador.
- Acalma-te - diz-lhe, tentando sorrir. - Amanhã é um novo dia.
- Como sabes? - desafia-o. -Amanhã pode nunca chegar. Não tem resposta para isso.
Sente-se confuso com a metamorfose de Sally Abbadon. A borboleta parece estar a fechar as asas, a fechar-se em si própria. A reentrar numa crisálida.
- Passa-se alguma coisa? - pergunta-lhe ele. - Que te está a incomodar?
- Nada - responde ela. - Está tudo bem. Que gostarias de fazer esta noite? Farei o que quiseres.
Mas ele pressente uma reserva desconhecida. Recorda o velho dito popular: "Não se conhece verdadeiramente uma pessoa antes de se ir para a cama com ela." Na cama, Sally faz tudo o que costumava fazer para lhe agradar, mas uma parte vital dela desapareceu. Resta apenas uma actriz profissional que está a desempenhar um papel. Demasiado longo, demasiado frequente.
Acima de tudo, porém, Harry Dancer sente-se confuso consigo mesmo. Memórias de Sylvia... Faz um grande esforço para separar a realidade da fantasia, mas a fronteira dilui-se. Tem cada vez mais dificuldade em separar a realidade factual dos sonhos.
Freneticamente, procura velhas cartas, postais, ementas, programas, fotografias, cartões de aniversário... todas as memórias da sua vida em conjunto. Procurando pistas daquilo que faziam. Quando. Onde. Precisa de provas que o tranquilizem. Ancoras para o real.
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Senta-se no chão do quarto. Rodeado dos detritos de uma vida partilhada, tentando recriar um tempo desaparecido. Os pensamentos desaparecem num remoinho...
Um dos clientes mais ricos de Harry envia-lhe um convite para um jantar de gala. Na verdade, é uma ordem. Mil dólares por casal. Para uma obra de caridade meritória.
- Alguma vez ouviste falar numa obra de caridade não meritória? - resmunga ele para Sylvia.
O smoking é obrigatório. O jantar tem lugar numa enorme tenda, montada no jardim de uma mansão em Palm Beach. Harry desencanta o seu smoking de corte conservador. Camisa branca. Laço e faixa.
- Pareces um papá-pinguim - diz Sylvia. - Um esplêndido papá-pinguim.
Ela veste um vestido de lantejoulas, comprido e coleante. Um brilho verde e dourado. Estrelas de diamantes presas aos cabelos. Ombros e braços nus e bronzeados. Rosto iluminado pela antecipação.
- Estás realmente apetitosa - diz-lhe.
- Então? - diz ela.
é uma casa opulenta e espectacular, concebida por Mizner. Jardins formais. Duas piscinas. Estábulo e garagem para seis carros. Pátio revestido a mosaico italiano. Salão de baile na zona principal da casa. Catorze quartos.
- Vamos comprá-la - diz Sylvia.
- Que diabo faríamos com catorze quartos?
- Tu sabes.
- Demónio sexual - diz ele.
- Declaro-me culpada, Sr. Doutor Juiz.
- Há dois conjuntos musicais. Uma enorme mesa de bufete que quase justifica a "contribuição" de mil dólares. Há três bares em funcionamento. Empregados circulam com bandejas de champanhe. Caixas de pó-de-arroz douradas para as senhoras, isqueiros para os cavalheiros.
Sylvia e Harry circulam, com um copo de champanhe na mão. Param para conversar com as poucas pessoas que conhecem. Vão até ao salão de baile e dançam ao som de velhas melodias de Irving Berlin. Voltam a sair para se servirem no bufete. Levam os pratos para o terraço do edifício principal, onde foram colocadas cadeiras e mesas de ferro forjado em filigrana vitoriana.
Uma noite resplandescente. Calma e cremosa. Uma lua modesta em quarto crescente e uma brisa perfumada. Servem-se de caviar em boiões de cristal, bebem champanhe, escutam
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os acordes abafados de They Say It's Wonderful, vindos do salão de baile.
- Feliz? - pergunta Dancer à mulher.
- Ainda não - diz ela. - Estarei quando acabar este filet. Que são estas coisas?
- Cogumelos japoneses. Deliciosos.
- E isto? Ele prova.
- Fatias de trufas pretas.
- Caramba, o professor sabe tudo.
- Sei que és a mulher mais bela desta noite.
- E tu és o homem mais atraente. Mas não vamos dizer a ninguém; será o nosso segredo.
Acabam de jantar num tempo recorde.
- Magnífico - diz Sylvia. Reclinando-se. - Mais dois quilos... mas não me ralo. Temos de ser nós a lavar os nossos pratos?
- Duvido. Queres sobremesa? Café?
- Ainda não.
- Reparei que havia conhaque no bar. Que tal um balão? Vai buscar os brandes.
- Vamos explorar - sugere ela. - Gostava de ver os jardins. Estão iluminados.
Levando consigo os balões enormes, percorrem os caminhos empedrados, inspeccionando os canteiros geométricos. Soutos de palmeiras. Sebes em bizarras formas de animais. Chegam à parede de uma sebe com pelo menos dois metros de altura onde existe uma estreita abertura: o labirinto do diabo, entre à sua
PRÓPRIA RESPONSABILIDADE.
- Vamos experimentar - diz Sylvia. - Talvez nos percamos e tenhamos de passar cá a noite.
Harry tem dúvidas.
- Tens a certeza, Syl? Está a ficar tarde.
- Anda lá, rabugento - diz ela. - Arrisca. Vive um pouco. Entram no labirinto, tentando memorizar direcções, falsas
viragens, paredes sem saída. Passam por outros casais que deambulam nos seus meandros, soltando risadinhas e chamando uns pelos outros.
- Por aqui - diz Sylvia, dando-lhe a mão. - Estamos a aproximar-nos do centro. Confia em mim.
- Não confio sempre?
Encontram o centro do labirinto. Uma pequena pérgola com um banco de pedra. Ficam contentes por poderem descansar. Bebem conhaque. Ouvem os gritos e as exclamações dos outros exploradores que ainda andam perdidos.
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- Espero que continuem perdidos - diz Sylvia. - Este sítio é nosso. - Inclina-se para beijar o marido. - Vamos fazer amor. Aqui mesmo.
- Num banco de pedra? Obrigado, mas não.
- Devíamos, sabes? - diz ela. Olhando para a pequena poça de brande no seu balão.
Ele pressente que algo está mal.
- Syl, passa-se alguma coisa?
Vira para ela um rosto radioso e sorridente.
- Que é que eu podia ter? Está uma noite divina. Estou satisfeita por termos vindo... tu não estás?
- Inteiramente.
- Lembrar-me-ei sempre dela - diz ela. - Sempre. Ele detecta alguma melancolia. Tão estranho nela.
- Vamos sair daqui - diz ele. - Gostava de dançar outra vez antes que o conjunto comece a tocar Auld Lang Syne.
Ela parece subitamente desanimada. Desta vez é ele que lhe dá a mão e a conduz. Mas andam desesperadamente às voltas. Perdidos. Encontram continuamente becos sem saída. É engraçado. A princípio. Mas a frustração aumenta. Um ligeiro toque de pânico. Ouvem outras vozes. Encontram outros estranhos, perdidos. Estão presos. Condenados a errar eternamente.
Deixam de fazer humor. Desespero. Presos e a vaguear. Só quase vinte minutos depois é que encontram a saída. Os brandes há muito bebidos. Ambos témulos. Sylvia agarra-se ao braço dele com força.
- Vamos para casa - diz ela.
- Sim - diz ele. - Concordo.
Fazem o caminho de regresso em silêncio. Finalmente...
- Assim que chegarmos - diz ele -, vou preparar o maior shaker de plasma que alguma vez bebemos. Merecemo-lo.
- E depois vamos para a cama - diz Sylvia-e fazemos amor e tu abraças-me.
- Podes estar certa disso.
Em casa, acompanhados das bebidas, nus sobre a cama, esperam que o temor desapareça. Mas isso não acontece. Não conseguem livrar-se da recordação do medo que sentiram no labirinto. Da sua impotência.
Mais tarde, quando ele já está sonolento, quase adormecido, ela conta-lhe baixinho a sua doença. Ele corre para a casa de banho e vomita. Champanhe, caviar, mignon, brande. Tudo. Futuro. Vida.
Ajoelha-se em frente da retrete. De cabeça baixa. Sylvia limpa-lhe a cara com um pano molhado. Acaricia-lhe o cabelo.
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- Não é assim tão mau - consola-o ela. - A sério, querido,
não é.
Foi assim que aconteceu? Exactamente? É a forma como ele se lembra. O esplendor transformado em dor. O triunfo transformado em derrota em poucas horas. Começara com jazz e acabara com um requiem.
Senta-se no chão do quarto, semeado de coisas antigas, a olhar para o convite impresso do jantar de beneficência. Tenta desesperadamente recordar pormenores. Terá mesmo acontecido tanta coisa numa única noite? Ou o seu cérebro baralhado está a misturar acontecimentos de várias noites? A fazer da história uma confusão. Uma fantasia.
- Sylvia - diz ele. Em voz alta. - Ajuda-me, querida. Ninguém responde.
Os três homens reúnem-se no gabinete do director, à porta fechada e trancada. Norma Gravesend não foi chamada para tomar apontamentos.
O director faz um gesto breve com a mão.
- Autorização do presidente para apagar Shelby Yama. O mais depressa possível. Da maneira que entendermos.
- Muito bem, senhor director - diz Ted Charon. - Tratarei disso.
Briscoe não pode deixar que isso aconteça. Shelby Yama poderá falar antes de ser eliminado. Revelar que Briscoe sabe da razão dos seus contactos com Willoughby. Que o material passado ao agente da companhia era apenas a brochura de recrutamento do departamento.
- Sr. Director - diz Briscoe -, sinto-me pessoalmente responsável por aquilo que aconteceu. Yama era agente responsável, é certo, mas o senhor autorizou-me a sobrepor-me a ele. Falhei em impedir a sua deserção.
- A culpa não é sua - diz o director. O homem não era evidentemente imaculado.
- Eu sei isso, Sr. Director, mas, se eu tivesse estado mais atento, talvez tivesse conseguido impedi-lo. Gostaria que me fosse dada a tarefa da sua eliminação. Sinto que é meu dever.
O director olha para Charon. - Ted, tem alguma objecção?
- Nenhuma, Sr. Director. Compreendo o que Briscoe sente. - Muito bem - diz o director -, faremos assim. Briscoe,
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depois de Shelby Yama estar... fora de cena, o presidente sugere que assuma a responsabilidade da acção Harry Dancer. Eu concordo.
- Obrigado, Sr. Director.
- E incito-o a levar esta campanha Dancer a uma conclusão bem sucedida o mais depressa possível.
- Posso prometer-lhe isso, Sr. Director.
- Óptimo. Um último pormenor... Esse agente da companhia que estava a tentar virar Yama... como é que ele se chama? Willoughby?
- Sim, senhor - diz Charon. - Willoughby.
- Talvez ele também deva ser punido - diz o director. - Não me agrada a ideia de a companhia tentar converter o nosso pessoal.
- Tratarei disso - diz Briscoe.
Evelyn Heimdall reconhece que a sua vida se está a tornar desorganizada. Está a perder todo o sentido de ordem. Pela primeira vez, conhece o prazer do capricho. Explora um mundo sem regras, espantada com o facto de ter desperdiçado uma existência preciosa com disciplina e dedicação.
Tem consciência da sua dissolução de muitas formas. Renunciar a votos. Ignorar rituais. Tocar de mitos sagrados. Todos aqueles pecados se desvanecem quando agarra o corpo acetinado de Martin Frey. Quando se cola a ele. Como o bem e o mal toleram o sentido, a sensação torna-se uma crença.
Está convertida, com a excessiva paixão do crente recente. Ela, por sua vez, quer converter o mundo. Para que todos possam compartilhar a alegria que descobriu. Martin Frey é o seu primeiro recruta. A sua traição à companhia é tão completa como a dela.
A sua traição partilhada é um condimento adicional. A culpa incita-os à mais louca intemperança. A recordação do que estão a trair torna os beijos mais doces. Copulam com o frenesi dos condenados.
Deitados nus, arrefecendo, sobre os mosaicos da varanda de Evelyn. Observam com olhos turvos um céu trémulo com estrelas inclinadas. O seu mundo inclinado. Sentem-se deslizar.
- Pode-se parar o tempo? - pergunta ela.
- Não - diz Frey. - Nunca.
- Nós parámos - insiste ela. - Ainda não há muito tempo.
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O agora continuou e continuou. Durou para sempre. Não sentiste?
- Não tive consciência do tempo.
- É exactamente isso. Foi obliterado.
Ele vira-se. Olha fixamente para os seios maduros dela. Toca-os com a língua. Ri-se da sua reacção túrgida.
- Estás sempre pronta - diz ele.
- Oh, sim - concorda ela. - Sempre e de todas as maneiras. Ela rola para ficar virada para ele, mas mantém-se afastada.
Aprenderam o travo da provocação. Oferecer, prometer, negar. Jogos de amor que nunca perdem a graça. Ele toca-a. Ela toca-o. A concupiscência aumenta.
- Estive com Harry Dancer ontem à noite - diz-lhe ela.
- Eu sei - diz Frey. - Toda a noite. Fartei-me de te telefonar.
- Não foi bom. Nem para ele nem para mim. Perdi interesse em levá-lo para a companhia. Nunca falamos sobre isso. E creio que ele perdeu interesse em mim. Continua a ser um homem querido, mas foi para qualquer lado. Distante. Mesmo que tentasse, não conseguiria entrar nele.
- Achas que o departamento está a conquistá-lo?
- Não, não creio. Ele está muito dentro de si próprio. Ninguém o consegue tocar.
Percorrem o corpo um do outro. Beliscam-se. Puxam. Dores suaves e excitação.
- Aqui? - diz ele. - Assim?
- Sim - diz ela. - Assim mesmo.
- Já voltaste a pensar no que devemos fazer? - pergunta ele.
- Tentei, querido, mas não consigo concentrar-me. Em nada a não ser em ti. Em nós. Quando estou longe de ti, penso no que fizemos e no que vamos fazer. Quase desmaio de desejo. Fico toda molhada.
- Eu sei. O mesmo acontece comigo. Quase fico maldisposto. Literalmente. De tanto te desejar. A sonhar com coisas que ainda não fizemos.
- Mas faremos. Tu sabes isso.
- Oh, sim. Tudo.
Agora estão mais juntos. As suas carícias têm um ritmo mais rápido. O fogo abafado está a começar a inflamar-se. A pele excitada endurece. No céu, as estrelas giram no seu curso ascendente.
- Devo pedir a Glitner que me substitua? - diz ela. - Vou dizer-lhe que não estou a conseguir resultados com Dancer. Tony já sabe. Destacará outra pessoa.
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- De que é que isso adiantaria? - pergunta Frey. - Serias nomeada para um novo caso, e eu também. Ficaríamos separados. é isso que queres?
- Nunca!
- Então não faças nada, Ev. Já falámos nisto uma dezena de vezes.
- Não vamos pensar nisso. Agora. Conta-me algumas das coisas novas que sonhaste que faríamos.
Ele conta-lhe.
- Oh, sim - diz ela. Com os olhos a dilatarem-se. - Quero fazer isso. Deixa-me.
Nenhum deles pergunta: "Amas-me?" "Sim, amo-te; tu amas-me?" "Sim, amo-te." O amor deles é cio. Tão poderoso e avassalador que as emoções se tornam superficiais. Os murmúrios não podem ser ouvidos entre os seus uivos.
Procuram o limite, mas não existe nenhum limite deste lado da morte. Alargam a fronteira. O desejo ardente substitui a fome e a sede. Acreditam que nunca ninguém fez tais coisas. Em toda a história. Como jovens, pensam que são os primeiros e os únicos.
A paixão deles tem a amarga marca do desespero. Gritos mais fortes. Mordidelas mais violentas. Rendem-se ao frenesi. Até se tornarem insensíveis. Para eles, nada existe a não ser a resposta crua. Irracional e tintilante. Regressar ao fluxo.
Esquecido o mundo. Perdida a fé. Abandonado Deus.
O presidente sofre, no seu gabinete privado em Cleveland. O médico residente do departamento diagnosticou as suas queixas como sendo "uma forte constipação com uma ligeira infecção respiratória das vias superiores". O que, considerando os Poderes Especiais concedidos ao pessoal do departamento, é ridículo e humilhante.
Na secretária do presidente está uma caixa de lenços de papel. O cesto de papéis está cheio de lenços de papel amarrotados, tal como o tapete sobre o qual assenta. Ele revê relatórios de progresso de acções em curso, parando frequentemente para levar um lenço de papel ao nariz bolboso que assoa ruidosamente. Está aborrecido com as infecções respiratórias das vias superiores. Consigo próprio. Com a vida em geral.
É suficientemente inteligente para reconhecer como até as mais insignificantes afecções físicas afectam o espírito e a atitude mental de uma pessoa. Mas está convencido de que a sua
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depressão não se deve totalmente ao nariz pingão. Mesmo que gozasse da sua habitual robustez e saúde perfeita, reconheceria que as coisas não estão a correr bem.
A campanha de Harry Dancer, por exemplo. Concedida autorização para liquidar o agente responsável pelo caso, Shelby Yama, por suspeita de traição. A ser substituído por Briscoe. Até aqui tudo bem. Mas são as suspeitas de Briscoe sobre a lealdade da agente de campo, Sally Abbadon, que levam a recorrer à agente da Segurança Interna Angela Bliss. Essa investigação não deu quaisquer resultados. E Dancer ainda não foi ganho.
O presidente fica a cismar enquanto limpa o seu probóscide vermelho-cereja, agora inchado e sensível. Não pela primeira vez, pondera sobre as dificuldades do departamento em fazer conversões. Daquilo que o presidente considera um ponto de vista lógico, não devia haver qualquer problema.
O departamento promete riqueza. Poder. Encantos físicos. Ou uma combinação dos três. Em casos especiais, vingança até. A mais doce das dádivas. Qualquer homem ou mulher razoável não procuraria avidamente tais recompensas?
Todavia, reflecte o presidente, tão caprichosa e inexplicável é a natureza dos seres humanos que um número inquietante deles não o faz.
Em contraste, a companhia oferece sofrimento, sacrifício e dever. Dever! Não felicidade, mas dever! O presidente nunca conseguirá compreender como é que a companhia pode continuar a existir com tal programa. E não só existir, como ocasionalmente florescer. Ultrapassa a sua compreensão.
E, como se isso não bastasse para refutar o bom senso, a única esperança que a companhia oferece é uma eterna e serena vida futura. A companhia promete o amanhã. Ridículo! E, no entanto, os fracos de espírito continuam a optar por um futuro desconhecido e não provado.
O presidente tem a certeza de que Harry Dancer foi seduzido com estas mesmas vagas garantias. Seduzido e defraudado. O sujeito é aparentemente um homem instruído e inteligente. Nunca terá ouvido dizer que mais vale um pássaro na mão do que dois a voar? Ou, considerando a sua profissão, fique com o dinheiro e dispense o crédito?
Por que é que, pensa o presidente, algumas pessoas escolhem deliberadamente as agruras do dever em vez do prazer ilimitado? Têm de reconhecer a efemeridade da vida. Ah-ah! Talvez resida aí o êxito da companhia.
Pois, com a sua oferta de vida eterna, não estarão a jogar com o medo da morte dos seus convertidos? Se se prometer a um
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moribundo mais um dia que seja de existência, ele não pagará qualquer preço para o garantir? Quanto mais o presidente explora esta ideia mais convencido fica de que o atractivo essencial da companhia se baseia no medo da mortalidade.
Se isso for verdade, então talvez o programa de recrutamento do departamento deva ser reanalisado. Não refere o eventual preço a pagar em troca dos favores concedidos. Mas talvez deva ser fornecida uma descrição de um paraíso eterno fictício, assim como de prazeres terrenos.
Muitas pessoas, o presidente sabe-o, têm uma inquietante tendência para trocar alegrias presentes por uma felicidade futura. Oferecendo ambas, o departamento poderá ultrapassar a companhia na conquista de homens e mulheres que reconhecem a sabedoria de comerem o bolo e de ficarem com ele.
Aquele assunto, decide o presidente, dará um excelente memorando, um extenso memorando, para os seus superiores. Esboçando sugestões de alterações no apelo do departamento a potenciais convertidos.
E assoa-se com um ruído triunfante.
- Achas que Briscoe está lá fora? - pergunta Angela Bliss, apontando para o parque de estacionamento. - A vigiar-nos?
- Provavelmente - diz Sally Abbadon. - Ou ele ou Shelby Yama. Ou talvez um dos capangas de Ted Charon. Isso preocupa-te?
- Preocupa-me a tua segurança. Não me preocupo comigo.
- Eu preocupo-me contigo - diz Sally. - Preocupo-me connosco.
Um dia escaldante. Nublado. Céu escondido por detrás de uma cortina de neblina. Sol toldado. O vento de oeste, soprando das Everglades, traz nuvens de libélulas gigantes. Ora a planar, ora em voo picado, com asas cintilantes. Uma delas pousa na orla do copo de chá gelado de Angela. Ela sacode-a.
- Todas aquelas pessoas - diz ela. - Briscoe, Yama, Charon. O departamento. É espantoso como penso tão pouco nelas. Uma parte da minha vida que desapareceu. Não consigo acreditar que alguma vez pertenci àquilo.
- Eu sei - diz Sally. - Por vezes, parece-me um sonho e que agora estou acordada.
- Tudo isso acabou. Está arrumado.
Estão ambas moles. Contagiadas pelo torpor daquele dia
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sufocante, sentadas numa mesa com chapéu-de-sol à beira da piscina. Esforçam-se por não se mexerem. Mosquitos, besouros, meigas esvoaçam em volta. Um rapaz dourado, de tronco nu, guia um cortador de relva na outra extremidade da piscina. Elas sentem o cheiro da relva cortada. Perfumada.
Conversa descontraída acerca das suas infâncias. Pais, sítios onde viveram, pessoas que conheceram, como foram recrutadas para o departamento. O que fizeram. Pensaram. Sentiram.
Não têm pressa em conhecer-se. Acham que têm a vida toda à sua frente. É bom contar tudo. Aproximarem-se. Fazer perguntas. Todos os pormenores. Abrir-se completamente. A primeira vez para ambas. Liberdade! Esta sou eu. Com verrugas é tudo. O êxtase da confissão.
- Contigo posso desnudar-me - diz Sally. - Totalmente. Contar-te coisas que nunca contei a mais ninguém.
- Quero que conheças os meus segredos - diz Angela. - Tudo.
Olham-se nos olhos. Um olhar tão íntimo que assusta. É tudo tão estranho. Estão a aprender uma nova língua. Exploram, maravilhadas, uma terra desconhecida. Ofegantes de medo e esperança. O amor cresce, rebenta, floresce. Não há limites?
- Vais encontrar-te com Harry esta noite? - pergunta Angela, e desvia o olhar.
- Sim. Para jantar. Acho que virei para casa cedo. Perdi-o. Sabia isso ainda antes de te conhecer. Ele está algures. A deriva. Reage, mas mecanicamente. Com um sorriso vidrado. O pensamento dele está a quilómetros de distância.
- Com a mulher?
- Possivelmente. é provável. Está a agir de uma forma estranha. Tem uma expressão estranhíssima quando me olha. Não o compreendo de todo.
- Podias dizer ao agente responsável pelo caso que não estás a conseguir nada com ele e que queres ser substituída.
- Para ser recolocada? Mandada para outro lado qualquer? Sabes que não posso fazer isso. Afastar-me de ti.
- Ah, minha querida, estava à espera de que dissesses isso. Continua durante mais algum tempo. Até decidirmos o que vamos fazer.
Entram na piscina. A superfície está pontilhada de pedacinhos castanhos de relva cortada. Libélulas afogadas. Chapinham juntas, lentamente. Com os braços a tocarem-se. Pernas. A pele macia a arder.
- Esta noite - diz Angela -, quando voltares... vens ter comigo?
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- Claro.
- Querida, já não consigo dormir se não souber que estás presente. Ao meu lado.
- Estarei lá, meu amor - diz Sally.
Nessa noite, Harry Dancer está com aquilo a que chama uma "disposição de cão". Pede desculpa. Insiste em levar Sally ao clube, em Boca. Jantam um pargo que esteve tempo de mais no forno.
- É exactamente assim que me sinto - diz Dancer. - Seco e sem gosto.
- Hás-de sair dessa - conforta-o Sally. - Vamos para tua casa e eu ponho-te a dançar o fandango.
Ele lança-lhe um sorriso desanimado.
- Obrigado, mas não esta noite. Não me sinto capaz. Literal e figurativamente. Fica para outra vez.
Ela cobre a mão dele com a sua.
- Harry, que é? Eu fiz alguma coisa?
- Oh, meu Deus - diz ele -, claro que não. Não és tu, soueu. Estou a tentar colar os pedaços da minha vida e está a ser difícil.
- Queres suspender os cheques do salário? Concordámos... sem fazer perguntas. Se quiseres tirar-me da tua lista de assalariados, tudo bem.
- Para teres de voltar para o Tipple Inn? Ou um sítio semelhante? Não quero isso, Sally, e acho que tu também não queres. Vamos continuar como até aqui. Acabarei por sair desta e voltarei ao normal. Seja isso o que diabo for.
Passeia o olhar pela sala ornamentada.
- Tu e a tua mulher costumavam vir aqui?
- Oh, sim. Frequentemente.
- Nunca me falaste muito dela. Como é que ela era?
Ela abre as comportas. Ele começa a falar e não consegue parar. Sylvia, Sylvia, Sylvia. Como era fisicamente. O que dizia. Fazia. Ténis. Dança. A forma como se vestia. As suas piadas. Gostos. Espírito brincalhão. Coisas malucas. A ausência de medo. A sua impetuosidade. Exactamente aquilo de que ele precisava. Para o animar. Para dar alegria e leveza à vida dele.
Ao ouvi-lo, Sally sabe que nunca será bem sucedida com ele. Nem mais ninguém. Nem o departamento, nem a companhia. O tipo está preso à memória de um amor perdido. Um dia talvez possa ser convertido, mas não por enquanto.
Ele pára de falar. Pesaroso.
- Desculpa-me por tudo isto. Não era minha intenção falar tanto.
- Ela foi uma mulher de muita sorte - diz Sally Abbadon.
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- De sorte?
- Por te ter.
- Merecia mais - diz Harry Dancer.
Leva-a a casa. Ela corre para o quarto de Angela, as lágrimas escorrendo pelo rosto. Angela abraça-a. Conforta-a.
- Querida, que se passa? Que te aconteceu?
Sally fala-lhe sobre Harry Dancer. O que ele lhe disse.
- Ele amava-a tanto. E perdeu-a. Isso destruiu-o. Sei exactamente como ele se sente. E se eu te perdesse? Isso daria cabo de mim.
- Tu não me vais perder - diz Angela. - Nunca. Concordam, solenemente, como todos os amantes, que a cama
é muito, muito importante... mas não é o mais importante. O amor físico é espantoso, maravilhoso, excitante, intoxicante. Mas é a cobertura. O bolo é o compromisso emocional total. Rendição e conquista. Partilhar tudo, pertencer por inteiro. - é o único significado que conheço - diz Sally.
- Uma razão para respirar - diz Angela. Deitarem-se juntas, nuas, não é tanto um desporto sexual
quanto uma via para uma maior intimidade. Garantem uma à outra que podem dormir agarradas sem se excitarem. É a proximidade. Se pudessem habitar o corpo uma da outra, fá-lo-iam. O seu amor é um só.
Mas são traídas pelo seu fervor. Se o contacto físico alimenta o envolvimento emocional, essa fidelidade, por sua vez, impele o amante a dar prazer ao ser amado. Se procuram ser uma só, então as suas carícias tornam-se uma espécie de autogratificação.
Mais correctamente, cada uma delas adora uma terceira. A sua união e harmonia. É essa entidade brilhante que beijam, mordiscam e mordem suavemente. Perdem as suas identidades na unidade do seu amor. Prestando homenagem. Fazendo votos e sacrifícios. Submetendo-se à sua crença.
Encarada desta forma, a paixão sexual torna-se uma oferenda. Queimar incenso ou acender velas. Não estão muito longe dos flagelantes. Flagelando-se a si próprias e uma à outra para provar a intensidade da sua fé. No seu amor.
São insaciáveis. Cortejam avidamente o delírio com bocas esfomeadas, línguas frenéticas, deslizando pelo corpo uma da outra a pele molhada do suor. Cortejando a morte, se necessário. Seria a obediência suprema ao seu novo deus.
Depois, tontas de exaustão, soltam-se. Abaladas pela magnitude da sua adoração. Ficam deitadas em silêncio. A arrefecer. A excitação da carne dá lugar à determinação do coração.
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- Amo-te.
- Amo-te.
Dizem-no num tom de vozes que mal se ouve. Sussurros e murmúrios. Intimidade acrescida. Privacidade suave.
- Estás bem, querida?
- Esgotada - diz Sally. - E tu?
- De gatas. E assustada.
- Porquê?
- É tão... tão forte. Arrasta-me. Tenho de aprender a apreciar isso. Total perda de controlo. Fui sempre tão disciplinada. E agora isto. Não estou habituada. Não sei como lidar com isto.
- Não tens de lidar. Apenas aceitar.
- Sim, eu sei isso. Estou a aprender. Mas é devastador. Ficam deitadas, acordadas. A murmurar. A sussurrar. A luz
do exterior entra pelas frestas das persianas. O ar condicionado ressoa. O ruído abafado de um avião que passa. Alguém ri alto. Ouvem uma sirene uivar e desaparecer à distância. A canalização do motel faz ruídos. Elas, porém, estão sozinhas no mundo.
- Tenho estado a pensar - diz Angela. - Há uma saída para nós.
- Qual?
- Desertar. Ir para a companhia. Pedir asilo religioso. Silêncio. Depois...
- Eles aceitar-nos-ão? - pergunta Sally.
- Creio que sim. Podemos dar-lhes as informações que eles querem. Nomes. Métodos. Cadeias de comando. Códigos. Coisas destas.
- Eles podem proteger-nos?
- Têm escritórios em todo o mundo. Podem mandar-nos para qualquer lado. Teríamos de fazer um acordo com eles. Que nunca seríamos separadas. Essa seria a nossa exigência número um.
- E não nos darem mais trabalho de campo activo - diz Sally. Começando a sonhar. - Dactilografamos, aprendemos informática, seremos secretárias... o que for. Desde que estejamos juntas.
- Certo! Vamos falar nisso, querida. Planear como vamos fazê-lo. Quem contactar e o que dizer. Não consigo ver nenhuma outra alternativa para nós. E tu?
- Não - diz Sally. - Nenhuma alternativa. Abraçam-se. Mais murmúrios. Mais sussurros. Sobre como
proteger a sua própria fé num mundo intolerante.
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Os manuais secretos da companhia dedicados à conversão têm evoluído ao longo dos séculos. São constantemente actualizados. O actual chefe de Operações contribuiu, ele próprio, com um capítulo moderno dedicado à conversão de peritos em informática e em tecnologias de ponta.
O gordo presidente do departamento não está muito longe da verdade quando conclui que a companhia tem êxito, porque apela ao medo que sentem os seres humanos relativamente à mortalidade. Mas essa é apenas uma das muitas técnicas missionárias ensinadas durante a formação de agentes responsáveis e agentes de campo.
Outra é o lance da vida futura: o Paraíso prometido aos sofredores e derrotados. Uma terceira estratégia, chamada o efeito de placebo, corteja potenciais recrutas convencendo-os de que as preocupações e ansiedades terrenas podem ser ultrapassadas pela simples exigência de fé. O dever eclipsa e elimina todas as preocupações terrenas.
Mas provavelmente a técnica operacional de maior sucesso, utilizada no terreno, baseia-se na necessidade humana de amar e de ser amado. A companhia considera o amor como uma força poderosamente motivadora. Um manual de formação específico trata das variedades e complexidades do afecto pelo outro.
O manual começa por caracterizar o amor como um "instinto" que, embora exista em todos os recém-nascidos humanos, necessita de ser estimulado para sobreviver e florescer. A companhia recusa-se a admitir que pode haver indivíduos, novos ou velhos, que não têm nem fome nem capacidade de amar.
Com base nesta premissa, os agentes de campo são ensinados a conduzir os potenciais recrutas "pela escada do amor". Inicialmente, o sujeito pode não demonstrar mais do que um terno cuidado por um animal de estimação... cão, gato, cavalo, etc. Ou pode sentir afecto por uma casa, uma cidade, uma nação. Até as artes... pintura, música, literatura... são consideradas objectos adequados de ligação emocional.
É tarefa do agente alimentar este afecto. Intensificá-lo, levando o alvo a encetar uma relação humana amorosa. Este passo é frequentemente executado através de uma transferência na qual o agente se torna o objecto de fervor do sujeito.
O passo final, numa conversão conduzida da forma ideal, leva o peregrino à glória do amor sagrado. Deus torna-se o objecto do amor. E, em troca da devoção, revela uma preocupação benevolente pelos Seus amantes.
Esta técnica da "escada do amor" está longe de ser infalível, mas levou a uma taxa de conversões mais elevada do que
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qualquer outra estratégia da companhia. Estudos informáticos mostram que o passo mais difícil nesse processo é esse último degrau do amor humano para o amor sagrado. Muitos potenciais recrutas não conseguem assumir um compromisso emocional com um Ser Supremo sem existência corpórea.
O plano da Escada do Amor foi escolhido para ser usado na campanha Harry Dancer. O chefe de operações considerou que no seu casamento o sujeito demonstrara já uma capacidade de amar bem desenvolvida. Com a morte da mulher de Dancer, o chefe supôs que o sujeito estaria ansioso por encontrar outra saída para a ligação emocional. Não deveria ser difícil levá-lo até àquele último degrau.
Todavia, o chefe já trabalha neste ramo de actividade há demasiado tempo para antecipar o êxito em qualquer acção. À semelhança do presidente do departamento, ele tem consciência da natureza caprichosa e inexplicável dos seres humanos. Acerca dos quais nada é previsível, excepto que nada é previsível.
A razão diz-lhe que a vida deles não pode ter sido tão leve e isenta de problemas. Mas a memória insiste. Era uma existência sem rancor. As irritações eram sanadas com gargalhadas. As discussões eram desarmadas com gemidos e beijos.
Harry Dancer lembra-se desse tempo como uma época soalheira. Será que nunca chovia? As únicas coisas de que consegue lembrar-se são um campo de ténis fulgurante, uma praia cintilante, uma pista de corridas encharcada de luz e saturada de gritos agudos e cores faiscantes.
- Vamos ter sorte. - Sylvia não se cansava de dizer.
E ambos cruzavam os dedos ou batiam na madeira.
Será verdade que, um dia, toda a gente tem de pagar a felicidade que goza neste mundo? Que perspectiva tão azeda! No entanto... No entanto... Dar para instituições de caridade. Ir à igreja na Páscoa e no Natal. Tentar evitar ser rude para com os outros. Deslizar silenciosamente através da vida, obliquamente, e esperar que os poderes existentes não reparem na nossa alegria e nos condenem.
Não resultou.
Uma vez mais, volta a sentir um temor respeitoso pelo acaso e pelo acidente. Acontecimentos imprevistos. Depois a vida torna-se um jogo de dados... não é? Lançar dados ou dar cartas. Deixando-nos sem controlo sobre o nosso próprio destino. Nascemos todos em Las Vegas.
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Sentindo isso, emparedado pela dúvida, dilacerado pelo desespero, recorre à memória como a uma droga. Ansioso pela pedrada. Não se ralando já em saber se está a sonhar ou a recordar acontecimentos reais. Isso importa?
Estão ambos num parque de diversões. Algures. Carroceis giram. Gritos dos feirantes nas barracas. Gritos de crianças. Algodão doce. Cheiro a fritos. Barulho das rodas da fortuna. Multidão à procura da promessa pintada: Divertimento! Divertimento! Divertimento!
Sylvia usa um chapéu. Com um vestido estival com metros e metros de chiffon. Serpenteia por entre a multidão. Quer experimentar tudo. Fazer tudo.
Atiram bolas a garrafas de leite de madeira. Vêem todo o parque de diversões do cimo de uma roda gigante. Comem algodão doce. Salsichas de porco. Bebem cerveja morna. Percorrem a rir a Casa dos Espelhos. Ficam especados a olhar para a Mulher Gorda, os Gémeos Siameses, o Homem Esqueleto, um carneiro morto com duas cabeças, um estranho objecto chamado Moby Dick.
Finalmente, empanturrada, pronta para se ir embora, Sylvia implora uma última volta no carrocel. Harry não consegue resistir; o órgão está a tocar Meet Me in St. Louis, Louis. Compram bilhetes. O carrocel pára. Eles sobem. Sylvia monta um leão exuberante. Harry monta uma lama altiva.
Começam a girar. Agora a música é June is Bustirí Out AU Over. Dão voltas e mais voltas, tentando tocar na argola de metal em cada volta. E falhando. Sylvia tirou o chapéu de abas largas. Bate nos flancos do seu leão, como um cowboy montado no seu bronco, num rodeio. Aos gritos. A saia fina enfolada pelo vento.
Harry Dancer, hirto em cima da sua lama, agarrando com força as rédeas de couro, pés nos estribos, não consegue desviar o olhar da imagem da sua mulher a voar. Ela corre à frente dele. A rir. Ele poderia tentar, mas nunca a apanharia.
Ela continua a correr, velozmente, em círculos loucos. Com a cabeça atirada para trás. A bater com os calcanhares no animal de madeira onde vai montada. Deliciada com o rápido movimento. Eufórica com o momento. Gritando de prazer. Dancer dá por si inclinando-se para a frente. Ansiando por ela. Quer capturar o seu espírito livre. Guardá-lo para si. E sabe que não pode.
No caminho para casa cantam fragmentos das músicas do carrocel. Num dos jogos de sorte - atirar anéis para acertar em paus -, Harry ganhou, a grande custo, um ursinho de peluche. Inexplicavelmente, tem os olhos vesgos. Sylvia embala o brinquedo nos seus braços. Insiste em chamar-lhe Irving.
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Chegam a casa tarde. Harry prepara a sua primeira bebida decente do dia: gim gimlets com rodelas de lima. Descalçam os sapatos, sentam-se, falam das sensações e aventuras desse dia.
- Foi divertido, não foi? - diz Sylvia.
- Foi, pois. Estou a aprender.
- A aprender o quê?
- A divertir-me. Ela olha para ele.
- Tens de aprender isso?
- Oh, sim. Muita gente... incluindo eu... não se sabe divertir. Temos de ser ensinados.
- Estás a gozar comigo, professor.
- Juro que não estou. Tu nasceste com essa arte ou aptidão ou capacidade... como lhe queiras chamar. Eu não. Tu estás a ensinar-me a fazê-lo.
- Gostas?
- Adoro. Mas fico deprimido quando penso em todo o tempo que perdi.
- Isso faz parte do divertimento... perder tempo.
- És muito inteligente - diz-lhe ele.
- Tenho cérebro, meu amigo. Sei que casaste comigo pelas minhas mamas tamanho 44 e pelos meus gloriosos cabelos, tão compridos que consigo sentar-me em cima deles... mas ocasionalmente penso.
- Alguma vez o neguei?
- Não - diz ela, sorrindo ternamente. - Nunca me trataste como se eu fosse burra.
- Porque não és burra - diz ele. - Maluca, talvez, mas não burra.
- Tens fome?
- Estás a brincar? Com todas as porcarias que comemos hoje?
- Estou estafada. Vou preparar outra bebida, tomar um duche e cama. Vens comigo?
- Daqui a pouco. Vai andando. Eu fecho a casa.
- Até já, paizinho - diz ela. Pisca-lhe o olho.
- Espero que sim.
Mas, quando ela se vai embora, ele não se mexe. Fica sentado a pensar nos acontecimentos do dia. Tinha sido divertido. E ele não lhe mentira acerca da sua incapacidade para sentir alegria. Até a conhecer. Mas ela está a ensinar-lhe e ele está a aprender. Um mundo novo e assustador. Ele não ousaria aventurar-se nele sem ela. Como uma transfusão de sangue. Quente. Fumegante. Do mesmo tipo.
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Ele bebe mais um gimlet. Mastigando o gelo. Depois levanta-se anda pela casa, fechando-a à chave e apagando as luzes do rés-do-chão. Mas o primeiro andar está iluminado. Ouve Sylvia, que canta. Ele não está sozinho.
Ela já está na cama. Com o lençol puxado até ao queixo. Óculos postos para ler. Folheia um romance à sua habitual velocidade. Devora uma dúzia por semana. Dá-os à senhora cubana que vai fazer limpezas às terças e sextas.
Harry vai para a casa de banho tomar duche. Lava a cabeça, os dentes. Veste um robe de linho fino. Vai sentar-se na beira da cama. Tira gentilmente o livro das mãos da mulher. Põe-no de lado.
- Um dia destes - diz ele -, vou pôr-te a ler Trollope.
- Trollope? - diz ela. - Isso é um peixe?
- Claro que é. Pescado ao largo das Keys. É óptimo.
- Grelhado ou frito?
Riem-se ambos. Ele inclina-se para lhe beijar a face.
- Cheiras muito bem - diz ele. - A sabonete, água-de-colónia e a ti?
- Não a salsicha de porco nem a algodão doce?
- Nem por sombras. Onde está o Irving?
Ela aponta. O ursinho de peluche está numa cadeira, observando-os com olhos vesgos.
- Pensei em trazê-lo para a cama - diz Sylvia. - Pôr a cabeça dele na tua almofada. Mas achei que terias ciúmes.
- E teria. Quero ser o único homem na tua vida.
- E és - garante-lhe ela. - Essa é a verdade, toda a verdade e nada mais do que a verdade.
- Acredito em ti. Apetece-te outra bebida?
- Não, já bebi o suficiente. E tu?
- Acho que não quero. Dormirei sem ela.
Ele pega-lhe na mão. Beija-lhe as pontas dos dedos. A palma. Ela tira os óculos.
- E qual a razão desta paixão desenfreada?
- Estás a começar a falar como as personagens desses teus romances melosos. Não há razão nenhuma. Esta noite sinto-me muito afectuoso.
- Tomaste um duche quente ou um duche frio?
- Morno.
- Isso - diz ela - eu aguento. Mete-te debaixo do lençol comigo.
- Luz acesa ou apagada?
- Acesa.
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Ele dirige-se à cadeira. Vira o Irving de forma que o focinho do urso fique virado para o estofo.
- Não quero ninguém a observar-nos.
- Muito sensato. Aquilo que visse podia travar-lhe o crescimento.
Harry despe o robe. Enfia-se na cama ao lado dela. Ela abraça-o. O seu corpo está fresco. Acetinado.
- Foi um bom dia, Harry - diz ela. - Não foi?
- Um dia estupendo. Temos de voltar a fazer isto.
- Não seria a mesma coisa - diz ela. - Nunca podes repetir. Se te queres divertir.
- Lembrar-me-ei disso - diz ele. - Eu disse-te que estava a aprender.
Sem pressas. Fazem amor languidamente. Lenta e pensativamente. Da forma mais doce.
- Marido - diz ela.
- Mulher - diz ele. - Alguma vez pensaste que uma coisa legal podia ser tão maravilhosa?
- A licença de casamento foi o melhor investimento que alguma vez fizeste.
- Não penses que não sei. Poupou-me muito dinheiro.
- Porco! - diz ela, dando-lhe um soco no braço.
A pele dela é cremosa. Partes quentes, latejantes. Minúsculas dobras. Cantos. Sítios secretos. Todos perfumados. Tintilantes.
- Nunca chegarei ao fim de ti - diz-lhe ele. - Nem daqui a um milhão de anos.
- Se chegasses - diz ela -, perderias o interesse.
Ela sente a necessidade que ele tem de a amar. Normalmente, é ela que comanda. Tão entusiasta que ele mal consegue mantê-la em cima da cama. Hoje, porém, ela olha para ele com olhos muito abertos. Acaricia o cabelo dele. E deixa que ele faça o mesmo.
Ela é a única mulher na vida dele que consegue fazê-lo sair de si. Não porque faça alguma coisa para isso, mas apenas sendo ela. Fá-lo sair de si. Fá-lo esquecer as suas dúvidas e tormentos. Ele fica transfigurado e transformado pelo amor. Um novo ser. Renascido. Por ela.
Tão flexível. Suavemente dura. Ardentemente sensível. Ele diz-lhe que ela é um músico. Que o toca. Ela ri-se, mas é verdade. Ela tira música de dentro dele. Antes só havia melodias. Mas ela conhece os seus acordes e sonoridades.
Rende-se a ela. Tão simples como isso. Abandonando toda a razão e todas as restrições. O poder dela é aterrorizador, mas ele não consegue resistir. Amor tão intenso. Ele chora de felicidade
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e medo. Não é coisa pequena uma pessoa dar-se a outra. A morte da vontade. Voluntariamente.
Vê o mundo na pequena depressão da garganta dela. Vislumbra a eternidade na linha das suas costas. O corpo dela resolve mistérios cósmicos. Beijar uma coxa acetinada transforma-se numa afirmação de fé.
Ele tem consciência de tudo isto. Mas... e ela? Não importa. Isso não lhe pode ser explicado. Nem a ela nem a ninguém. E uma parte secreta dele retrai-se, não querendo tentar. Não querendo revelar a sua fraqueza, a sua dependência. No cetim de um ombro ou no veludo de uma orelha. Numa mulher-duende que esporeia um leão voador.
A sua união é um minuete. Olhos abertos num quarto iluminado. Ainda mais entusiástico devido à sua intencionalidade. O tempo expande-se. O amor pode fazer isso: aumentar um minuto para uma hora. Viver uma vida num único dia.
- É possível - diz ele. Em voz alta.
Mas ela já não ouve. Olhos inchados de espanto. Agarrando-o. Boca aberta num grito silencioso. Ambos sorriem ferozmente. Compartilhando o seu triunfo. Os seus pas de deux terminam. Nada resta a não ser o fim da música. As vénias.
Muito depois, ela diz:
- Bons sonhos.
O director da Região Sudeste, um perfeito burocrata, é especialista em sobrevivência. Conhece todos os truques para reclamar créditos e transferir culpas. Tempera a ousadia com a cautela. Sorri aos superiores, franze o sobrolho aos inferiores. Nunca diz "sim", nunca diz "não".
- Deixe-me pensar nisso - diz ele com ar meditativo.
É mais astuto que inteligente. Veste-se como o presidente de um Banco e pensa como um vendedor de carpetes. Numa outra época poderia ter preparado poções para os Bórgias.
Senta-se imponentemente à secretária polida, no seu gabinete privado. Examina as últimas informações vindas de Cleveland. Incluindo uma diatribe mal-humorada do presidente, exigindo saber quando terá resultados sobre a acção Harry Dancer. O director põe-a de lado. Rubrica alguns memorandos, assina algumas cartas. Lembra-se subitamente de uma nova operadora de computador do andar de baixo. é jovem. Muito jovem.
O director é um mulherengo. Irrecuperável. Crê que esconde
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essa faceta do seu pessoal e da hierarquia do departamento, mas sob o manto de bispo está um garanhão. O departamento permite excessos, evidentemente. Mas não à custa da eficiência. O director considera-se eficiente. E' discreto.
Norma Gravesend bate à porta, entra para entregar os memorandos e as cartas assinadas. Ele olha para ela benignamente. Que funcionária tão leal! Ansiosa por se dar toda. O que ela faz... quando lhe mandam. Mulher estranha. Tão discreta como papel de parede, embora não deixe de ter um certo atractivo. Diferente. Perverso.
- Shelby Yama ainda está por cá, Sr. Director? - diz ela.
- Claro. Por que pergunta?
- Não o tenho visto ultimamente. Pensei que tivesse sido transferido. Quer ver as estimativas do orçamento agora?
- Depois - diz ele. Observa-a enquanto ela sai do gabinete. A pergunta casual acerca de Yama perturba-o. Por que teria
ela perguntado aquilo? Nunca mostrara nenhum interesse especial pelo agente responsável. No entanto, agora pergunta por ele. Curioso. O director é um rato velho; não acredita em acasos ou coincidências.
Shelby Yama está marcado para punição. Mas como é que Norma Gravesend pode saber disso? Não teve acesso à autorização de Cleveland. Foi excluída da reunião com Ted Charon e Briscoe durante a qual fora discutido o destino de Yama. Então, por que é que Norma mostra subitamente interesse por aquele homem?
O director considera as possibilidades. Acreditando, como acredita, que toda a gente, incluindo ele próprio, é capaz de traição... se o preço for aceitável. Subscreve inteiramente o credo do departamento. Que é simplesmente desevangelizar o mundo inteiro. Mas essa crença exige a total eliminação da fé. Não confiar em ninguém. Pessoa ou deus.
Se quisesse, Norma Gravesend podia ter obtido autorização do presidente para cancelar Shelby Yama. Conhece o escritório regional. O modo como os documentos circulam, como os dossiers secretos são arquivados. Ser-lhe-ia fácil ler e copiar a mensagem codificada de Cleveland.
O olhar do director recai no intercomunicador sobre a secretária. Passa ao de leve os dedos pelos botões. E se, durante a conferência à porta fechada com Charon e Briscoe, o botão que o liga a Norma Gravesend estivesse accionado? Ele podia jurar que não estava? Não. Era possível que ela tivesse ouvido o que tinha sido dito? Sim.
é muito improvável, tranquiliza-se ele a si próprio. Suspeitas
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paranóicas. Mas o instinto de sobrevivência do burocrata não pode ser negado. Sai do gabinete. Sorri a Norma.
- Vou lá abaixo, minha querida - diz ele. - Ver as rodas a girar.
Ela assente. Volta a centrar a sua atenção na máquina de escrever.
O director dirige-se imediatamente à Secção de Segurança Interna. Entra no gabinete de Ted Charon sem bater.
- Quero que ponha a sua gente a vigiar a Norma Gravesend - diz a um surpreendido Ted Charon. - Imediatamente. Vinte e quatro horas por dia.
- Se o senhor assim quer, Sr. Director.
- Quero. Quando tiver alguma coisa a comunicar-me, telefone-me e eu virei cá. Fui claro?
- Sim, senhor.
O director desce as escadas até ao andar de baixo. Troca cumprimentos com os supervisores e os chefes. Finalmente, localiza a nova operadora de computador, sentada à sua consola.
Aproxima-se por detrás. Põe-lhe a mão ao de leve sobre o ombro.
- Como é que vão as coisas, minha querida? - pergunta, da forma mais simpática possível.
A forma fácil, Briscoe sabe, é utilizar os Poderes Especiais. Eliminar Shelby Yama e Willoughby de uma só vez. Mas isso seria estúpido. Depois das mortes inexplicáveis de Jeremy Blaine e de Herman K. Tischman, a Polícia poderia estranhar. Fazer perguntas. Investigar a ligação entre as vítimas.
Briscoe gosta deste tipo de problemas. Resolvidos através da acção. Pensa demoradamente sobre o assunto.
A Florida do Sul é uma rede de canais, destinada a controlar as cheias. Úteis, também, para eliminar cadáveres. Briscoe lê os jornais locais; sabe isso. Acha que um canal seria o local ideal para se livrar de Yama e de Willoughby. Podem nunca vir a ser encontrados. E se isso acontecer... que é que isso tem?
Inspecciona os canais locais. Não encontra nenhum que sirva os seus objectivos. Demasiado próximo de estradas com movimento. Ou não suficientemente fundo. Ou demasiado bem iluminado. E há o problema do carro. Se quer dar à Polícia um cenário credível, tem de deixar um carro no local. Além disso, a morte numa vala não tem o dramatismo de que ele gosta.
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Esquece o cenário do canal. Examina a igreja de Deerfield onde os dois homens se têm encontrado. Apercebe-se imediatamente das possibilidades do local. Há uma torre sineira com a altura de uns seis ou sete andares e uma varanda no cimo. Interessante.
Examina-a cuidadosamente. Uma escada de ferro em caracol dá acesso à varanda. A igreja só fecha à meia-noite. Briscoe passa várias tardes vagueando pelo local, explorando-o. Ninguém o detém. Ninguém lhe faz perguntas. Decorrem missas na nave enquanto ele sobe a escada. Cronometrando o tempo.
O plano começa a definir-se. Agrada-lhe. Vai à secção de equipamento de Ted Charon. Requisita uma arma "fria", que não pode ser identificada. Um revólver colt. 38 Detective Special. Em excelentes condições. Carregado. Briscoe requisita também um quilo de cocaína num saco de plástico.
Já tem os adereços. Volta à torre da igreja de Deerfield, levando uma pequena chave-inglesa. Está completamente sozinho lá em cima. Em todas as suas visitas, nunca encontrou ninguém a admirar a vista.
Desaperta os parafusos que prendem uma parte da guarda da varanda ao betão. Faz o trabalho tão habilmente que protege os dentes da chave-inglesa com um trapo para que não fiquem marcas nas cabeças dos parafusos. Experimenta a guarda. Esta cede satisfatoriamente.
Vigia os encontros de Yama com Willoughby durante uma semana. Decide que a melhor altura será quarta-feira à noite. Uma missa vespertina com poucos fiéis. Às dez da noite, a igreja já estará vazia. Talvez um ou dois fiéis nos bancos, a rezar. O padre já terá regressado a casa.
Briscoe revê o plano várias vezes, escrevendo a sequência temporal, que destrói depois de o ter estudado. Um plano extravagante. Que depende da ousadia. Que ele tem... e as vítimas não. Está a contar com o efeito surpresa, com a incapacidade deles para reagirem rapidamente. Os dois poderiam dominá-lo. Facilmente. Mas não são empreendedores.
Na quarta-feira à noite, estaciona a dois quarteirões de distância. Vai a pé até à igreja. Espera pacientemente escondido pelas sombras das grandes palmeiras. Finalmente, as portas da igreja abrem-se. As pessoas saem. Shelby Yama e Willoughby aparecem, juntos. Conversam e riem. O agente da companhia, um homem alto, inclina-se para ouvir o agente responsável.
Briscoe aproxima-se deles por detrás, no parque de estacionamento. Eles ouvem os seus passos. Viram-se. Yama sobressal-ta-se.
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- Mas que...? - começa a dizer. Depois vê o revólver na mão de Briscoe.
Willoughby também o vê. Olha para a arma, para o rosto de Briscoe, para Shelby Yama. Os lábios do agente começam a mexer. Silenciosamente. Estará a rezar?
- Vocês os dois - ordena Briscoe. - Vamos voltar para a igreja. Entram pela porta da frente. Viram à esquerda. Sobem as escadas. Vamos.
- Eia - diz Yama -, que é isto? Que se passa?
- Vamos! - diz Briscoe, erguendo o revólver. Condu-los para a entrada da igreja, com a arma dentro da
algibeira. Contudo, não há ninguém por perto para ver. Sobem as escadas. Lentamente. Em silêncio. Chegam à varanda deserta. Noite agradável. Céu limpo e estrelado. Brisa amena. Tudo conforme previsto.
Briscoe olha para o parque de estacionamento por cima da guarda. Dois carros, afastados. Vira-se de novo para os seus pombos. De arma empunhada, cobrindo-os a ambos.
Shelby Yama começa a falar rapidamente. Que se passa? Ele não compreende. Aquilo não está no guião. Ele disse a Briscoe que estava a virar o agente da companhia. Deixem-no falar com o director. Ele explicará tudo. Alguém está a cometer um grande erro.
Briscoe não ouve. Não responde. O seu plano original era matar Yama a tiro. Deixar o seu corpo na varanda. Empurrar Willoughby pela guarda solta. Com uma bala no corpo. Deixar o saco de cocaína junto do corpo de Yama. Limpar o revólver e deixá-lo cair perto do corpo de Willoughby.
Um negócio de droga que correu mal. É isso que a Polícia pensará. Dois traficantes em luta pelo pó e pela arma. Ambos alvejados. Um morre na varanda, o outro cai e morre no parque de estacionamento. Nenhuma impressão digital na arma. Isso intrigará a Polícia, mas não terão nem tempo nem pessoal para investigar mais profundamente. Mais duas mortes ligadas à droga. Que se lixe.
Agora, porém, lá em cima, Briscoe acha o seu plano sem graça e insatisfatório. é um cenário magnífico. A abóbada negra do céu, pontilhada de estrelas cintilantes. E, lá em baixo, as luzes brilhantes da terra. Sente o poder da noite, deixa-se invadir pela sua majestade.
Rei de tudo aquilo. Quer derrubar aqueles que se opõem à sua vontade. À sua fé. Eles não podem habitar lugares altos, têm de ser atirados para a destruição. Expulsos e derrubados. Afastados do reino das trevas.
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- Ouça - diz Yama -, não podemos...
Briscoe atira-se subitamente a Willoughby. Empurra violentamente o homem com o ombro. A guarda cede com um ruído metálico. O agente da companhia não oferece resistência. Cai para trás, os braços e as pernas abertos. Voa.
Inesperadamente, o agente responsável do departamento tenta defender-se. Luta. Esgatanha. Morde. Não está à altura dele. Briscoe leva Yama até à beira da varanda. Atira-o lá para baixo. Inclina-se para ver a forma escura flutuar e cair. Em cima de Willoughby. Um abraço fatal.
Briscoe deixa cair o saco de cocaína. Vê-o abrir-se numa nuvem branca. Força-se a virar costas e a descer a escada. Devagar, calmamente. Com a arma na algibeira. Se a sua vida acabasse naquele instante sentir-se-ia feliz. Realizado.
Dirige-se displicentemente para o carro. Vai para casa, recordando, saboreando o momento. Expulsão. Descida dos céus. Na melhor tradição do departamento. Há um elemento poético em tudo aquilo. Algo comovente. Excitante. Uma experiência religiosa.
Pois os outros também são religiosos. A sua maneira.
O chefe de operações ajoelha-se no seu oratório, demasiado perturbado para pensar com clareza. E assim vira-se para a oração. Pelo pobre Willoughby. Outros agentes já morreram no cumprimento do dever. Mas a dor não diminui. O chefe gostava de ter poder semelhante ao da canonização. Mas não tem. Há um Quadro de Honra em bronze ao qual o nome de Willoughby será acrescentado. A sua única recompensa. Na terra.
O chefe força-se a voltar para o seu gabinete. Contrafeito, faz uma lista das vítimas do caso Harry Dancer. Jeremy Blaine. Herman K. Tischman. Shelby Yama. Willoughby. Todos perdidos na luta por um único homem. Valerá a pena? Quatro vidas por uma só? A aritmética desconcerta-o. Não consegue definir a escolha moral.
A depressão corrói-lhe a vontade. Como pode ele justificar tal sacrifício? Quatro por um? Uma blasfémia. A menos que... A menos que um seja ouro e os outros quatro escória. Mas isso pressupõe qualidade. Antidogma. Não somos todos iguais aos olhos de Deus? Talvez. Mas não aos olhos do chefe.
Telefona a Anthony Glitner, para a Florida, falando numa linha desocupada.
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- Tony - diz ele -, gostaria de expressar as minhas condolências pela morte do nosso querido amigo.
- Sim - diz Glitner. - Obrigado.
- Sei como se deve sentir. Acredite, sei. Mas não podemos deixar que este infeliz acidente nos desvie do nosso dever. Pelo contrário, deve fortalecer a nossa determinação.
Silêncio.
- Concorda?
- Sim, senhor.
O chefe não gosta do tom de Glitner.
- Tony, quer ser substituído? Isso não será usado contra si.
- Não, chefe. Irei até ao fim.
- Sente-se capaz disso?
- Sim. De momento, estou um pouco entorpecido. Mas recompor-me-ei.
O chefe tenta ser caloroso.
- Claro que sim! Um revés temporário. Recompor-se-á. Todos nós nos recomporemos. Precisa de alguma coisa? Pessoal? Equipamento?
- De momento não, senhor.
- Como se está a portar a agente de campo?
- Sem problemas.
- Nenhum? é estranho.
- Sim - diz o agente responsável -, não é?
Quando desliga, Glitner reflecte que a circunstância é de facto estranha. A notícia do assassinato de Willoughby teve pouco efeito em Evelyn Heimdall. Murmura expressões convencionais de tristeza. Depois recupera a sua disposição alegre, contando uma história animada acerca da sua crescente intimidade com Harry Dancer. De como o homem está a corresponder à evangelização.
O agente responsável, um homem acanhado e discreto, concede que talvez não seja temperamentalmente adequado para dirigir a operação Dancer. Não consegue competir com a brutalidade de Briscoe. Glitner é cerebral; a violência física é-lhe estranha. Como acontecia com Willoughby. O falecido Willoughby.
A questão de Evelyn Heimdall é mais subtil, embora não menos frustrante. é assustadora. Ele tem consciência da desenvoltura que ela tem revelado ultimamente. "Ela está a rebentar pelas costuras", diz a si próprio. Depois pensa se isso será imaginação sua. O agente da Contra-Espionagem, Martin Frey, informou que ela está na ordem. Mas as dúvidas de Glitner persistem.
Ela está diferente. Há ali rebeldia. Vê-a a afastar-se da órbita
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da companhia. Não sabe como trazê-la de volta. Decide pressionar. Descobrir até onde ela foi.
- Gosto da Florida - diz-lhe ele. - E você?
- Adoro, adoro, adoro - diz ela, estalando os dedos e fazendo um passo de dança. - É tão relaxante. Sinto-me cem anos mais nova. Você não?
- No mínimo - diz ele. Sorrindo. - Tenho de ir à praia um destes dias. Apanhar um pouco de cor.
- Claro que tem. Diga-me quando. Passaremos lá o dia. Piquenique. Garrafa de vinho gelado. Tudo em grande.
- Acho óptimo.
- E verá o meu novo biquini - diz ela, rindo-se para ele. - Dois selos do correio e um penso rápido. Dancer adora-o.
- Posso imaginar - diz Glitner. Não gosta daquela conversa, que o excita contra sua vontade.
Está quase convencido de que ela está pronta para desertar. Mas isso significaria que Martin Frey é um total incompetente ou seu parceiro na sua traição. De qualquer forma, a acção Harry Dancer está comprometida.
Tony Glitner, reflectindo sobre as permutas e combinações daquela desagradável situação, decide não enviar um sinal de pânico ao chefe de operações. O agente é responsável pelo seu agente de campo. Não a sacrificará antes de ter provado a sua traição.
Sabe como poderá fazer isso. O que o desanima.
- Ted Charon na linha dois, Sr. Director - diz Norma Gravesend.
- Obrigado, minha querida - diz o director. Carrega no botão.
- Sim, Ted?
- Sr. Director, será que pode dar um salto ao meu gabinete por alguns instantes? Surgiu uma coisa relativamente àquele assunto que discutimos a semana passada. Pode passar por cá?
- Claro. Vou já.
No gabinete de Charon, o chefe da Segurança Interna diz:
- Achei melhor falarmos aqui sobre a investigação a Norma Gravesend.
- Essa foi a minha sugestão original - diz o director, irritado. - Que descobriu?
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-Vigiámo-la de perto durante a última semana. Ela estabelece contactos com um homem de meia-idade na biblioteca pública. Dá-lhe um livro de cada vez que se encontram. Seguimos o homem até casa. Revistámos-lha enquanto ele estava fora. Chama-se Leonard Gabriel. Tem equipamento de rádio em casa que dá para falar para Marte. Não conseguimos encontrar nenhum livro de códigos.
Os dois homens ficam a olhar um para o outro. Gradualmente, o rosto avermelhado do director fica branco como a cal. Apercebe-se do que aquilo significa. Pergunta-se há quanto tempo estará a albergar uma toupeira da companhia no seu gabinete privado. Não é isso o que o presidente lhe irá perguntar?
- Por que desconfiou dela, Sr. Director? - pergunta Ted Charon. Com simpatia, mas já a tentar distanciar-se daquela quebra de segurança.
- Instinto - diz o director. - Tive sempre as minhas suspeitas. Que sugere que façamos?
"Está a tentar fazer que eu compartilhe a culpa", pensa Charon. "Não é o que eu vou fazer, mas o que vamos fazer. O filho da mãe quer que eu limpe a porcaria que ele fez."
- Deitamos a mão a esse tal Leonard Gabriel - diz Charon. - Torcemo-lo até ficar seco. Tenho alguns peritos; Gabriel falará. Depois abordamos Norma. Dizemos-lhe o que temos. Convencemo-la de que a sua única esperança de sobrevivência é virar de novo, tornar-se uma agente tripla. Ajudar-nos a fornecer desinformação à companhia.
O director sente um frémito de esperança. Afinal, talvez a sua cabeça não esteja em perigo. Se eles conseguirem convencer Norma a trocar de lado outra vez, decerto o presidente será mais brando no castigo que decretar. Poderá estar até na disposição de permitir que o director conserve a sua actual posição. Apenas com uma repreensão oficial.
Dois dias depois, chamam Norma Gravesend ao gabinete do director. Fecham a porta à chave. Mostram-lhe fotografias Polaroid do que foi feito a Leonard Gabriel. Observam atentamente o seu rosto. Na esperança de ver lágrimas e histeria. Vêem apenas uma força de pedra.
- Tinham de fazer isso? - pergunta ela. - A esse homem querido?
- Nega que fez parte da conspiração? - diz Charon.
- Não perca tempo - aconselha ela. - Não nego nada. Admito tudo. Sou agente da companhia desde que comecei a trabalhar para esse monstro.
Aponta o director com o polegar, num gesto de desprezo. Ele começa a suar.
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- Norma - diz ele. Tentando ser avuncular. - Antes de dizer mais alguma coisa, minha querida, pense nas consequências. Não é necessário seguir o destino de Gabriel. Há uma forma de se redimir. E de se salvar.
- Já estou salva - diz ela.
- Trabalhe para nós - incita Charon. - Continue a fazer o que tem feito. Nós dir-lhe-emos o que há-de mandar para a companhia.
- Não - diz ela. Erguendo o queixo. - Já imaginava que um dia teria de enfrentar isto e tomei uma decisão. Não me importo com o que me fizerem. Não trairei a companhia. É a única coisa que tenho.
- Estúpida mulher! - grita-lhe o director.
- Pode mudar de ideias - diz Charon. Vira-se para o outro homem. - Tenho a sua autorização para trabalhar nela, Sr. Director?
- Sim, sim. Leve-a daqui e faça o que tem a fazer. Quando fica sozinho, o director senta-se. Abatido. Pensa em
tudo o que Gravesend sabe acerca do funcionamento interno do departamento e do que deve ter contado à companhia. Pior ainda é que ela conhece os seus hábitos privados. Tudo isso está agora nos dossiers da companhia. Contorce-se de embaraço.
A traição dela choca-o, em seguida irrita-o. Depois de toda a sua generosidade para com ela. E a sua paga foi a traição. Os olhos do director marejam-se de lágrimas ao reflectir sobre a injustiça de tudo aquilo. A sua vida pessoal tornada pública. Sujeita a piadas de mau gosto, sem dúvida. A sua carreira em perigo. A sua própria existência em perigo.
Suspirando, limpando os olhos, pega num bloco de notas e começa a escrever uma mensagem. Pensa em como pode informar o presidente do que se passou, sem dar a ideia de que é um idiota incompetente. Meritório candidato a eliminação.
O plano de Briscoe está a resultar às mil maravilhas. A eliminação de Shelby Yama dá-lhe o título de agente responsável. Assim como o poder. Agora pode pressionar Sally Abbadon para que apresente resultados. Ameaçar com represálias se ela não obedecer às ordens.
Ainda melhor é a deserção de Norma Gravesend... o tema de conversa de toda a Região Sudeste. Briscoe acha que isso significa o fim do director. Se isso acontecer, e o seu cargo estiver
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disponível, quem melhor do que Briscoe para o ocupar? Especialmente se tiver êxito na campanha Harry Dancer.
Aí há problemas. Abbadon jura que está a virar Dancer, mas não apresenta prova nenhuma. Angela Bliss, que está supostamente a efectuar uma acção de segurança à agente de campo, comunica que Sally está limpa. Mas Briscoe está a sentir más vibrações relativamente a toda a operação. E estão demasiadas coisas em jogo para que ele ignore o seu instinto.
Atribui a si próprio a tarefa de seguir Abbadon. Descobre que, como ela afirma, Abbadon se encontra com Dancer duas ou três vezes por semana. Todavia, Briscoe verifica que os seus encontros são breves e estão a tornar-se cada vez mais curtos. Almoço. Jantar. Algumas horas no motel de Sally ou na casa de Dancer. Mas já não passam a noite juntos.
Sally e Angela passam a noite juntas. Frequentemente. E passam o dia juntas na piscina, nas compras, no cinema, passeando na praia. Tudo isto pode fazer parte do trabalho de Angela: aproximar-se do sujeito. Mas também pode ser um tipo de intimidade diferente.
Isso não choca nem ofende Briscoe. O departamento aprova uma conduta pessoal amoral. O que o preocupa agora é o modo como a relação das duas mulheres poderá afectar o desfecho do caso. Se puser em risco a conquista de Dancer, então Sally Abbadon terá de ser eliminada. Tal como Angela Bliss.
Briscoe é um homem assexuado. As suas necessidades são poder e estatuto. Até o dinheiro é uma questão secundária. Mas consegue representar, se isso for necessário. E só representando, decide ele, poderá testar a lealdade de Sally Abbadon ao departamento.
Não é um papel que o entusiasme. Contudo, o futuro dela, e o dele próprio, podem depender da sua actuação.
Os moribundos fazem perguntas que não podem ser respondidas. "Porquê eu?" A resignação vem lentamente. Antes disso, porém, há um período de fúria desfocada contra os que estão vivos, os que são felizes, os que são saudáveis. Finalmente, surge a aceitação. Recordações acompanhadas de um sorriso triste. Regressos ao passado.
Harry Dancer, tão deprimido que acredita ser um caso irrecuperável, recorda Sylvia dessa forma. Nostalgia em relação a tudo. Velhas canções, velhos tempos, velhos amigos. 180
o "Lembras-te de quando..." obceca-a. Parece determinada a recriar uma vida. A descobrir o valor dos seus escassos anos de existência. A fazê-los brilhar com uma glória dourada.
Com terna paciência, ele acompanha-a nesse balanço. Tão indulgente para consigo próprio como está a ser para com ela. Esperando atenuar a dor. Em vez disso, torna-a tão cortante como o fio de uma faca. Dois avaros contando a sua riqueza antes de a perder.
- Quero ir ao clube - diz-lhe ela. - Sozinha. Ele olha para ela.
- Está bem.
- Quero sentar-me no bar. Uma mulher sozinha. Depois tu entras e engatas-me.
Uma ideia horrível. Ele sente vontade de chorar, mas sabe o que ela procura. Segurança. Ser desejada de novo. Resgatar a sua juventude. Representar uma aventura. Tudo representado e fingido. Mas precioso para ela. Vital. Está determinado a levar a ideia por diante.
- Está bem - diz ele. - Quando?
- Amanhã à noite. Apanho um táxi. Chego lá por volta das oito. Tu apareces por volta das oito e meia.
- Óptimo. Que vais levar vestido?
- Não podes saber. Serei uma estranha para ti.
Noite seguinte. Ele veste-se rapidamente. Deixa o quarto livre para ela. Leva um gim pequeno para o pátio. Fica lá até ouvir chegar um táxi. A porta da casa bate. O táxi arranca.
Harry volta para a cozinha. Bebe outro gim. Maior. Dá por si de punhos cerrados. Rezando para conseguir chegar ao fim da noite sem se ir abaixo. Respira fundo. Anda pela casa vazia, pensando no papel que ela quer que ele represente.
Quando entra no clube, vê-a ao fundo do bar. Termina um vodca gimlet. Pára, subitamente. Usa o mesmo vestido que tinha no primeiro encontro deles. Um vestido curto, direito, de lamé prateado. Não sabia que ela ainda o tinha. Fica espantado por lhe ficar tão bem.
Senta-se a duas cadeiras de distância dela. O barman aproxima-se. Conhece-os. Olha com uma expressão intrigada para o marido e depois para a mulher. Separados. Não faz nenhum comentário.
- Boa noite, James - diz Harry. - Beefeater com gelo, por favor.
Quando lhe trazem a bebida, olha de relance para Sylvia e depois diz ao barman:
- Importa-se de perguntar àquela senhora se eu a posso convidar para tomar uma bebida?
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James, achando que está no meio de uma discussão conjugal, dirige-se a Sylvia. Volta para junto de Dancer.
Lamento, senhor. A senhora agradece o convite, mas diz que paga ela própria as suas bebidas.
Harry assente. Observa enquanto James prepara outro gimlet para Sylvia. Ficam os dois ali sentados, sem falar. Olhando ocasionalmente de relance um para o outro através do espelho. Depois desviando rapidamente o olhar.
Ele vê-a tirar um maço de Benson and Hedges mentolados. Procura fósforos na carteira. Olha em volta, impotente. Harry está junto dela num instante, com o isqueiro em punho.
- Permita-me - diz ele.
- Obrigada, senhor - diz Sylvia. Muito sofisticada. Mantém a chama acesa para ela, com a mão a tremer ligeiramente.
- É sócia? - pergunta ele. - Creio que nunca a vi por cá.
- Sou uma nova sócia.
- Estou certo de que irá gostar. Chamo-me Harry Dancer. Posso fazer-lhe companhia?
- Se quiser.
Traz a sua bebida. Senta-se na cadeira ao lado dela. O barman olha-os com uma expressão de aprovação.
- O seu vestido é muito bonito - diz Harry. - Comprou-o na Florida?
- Não, em Manhattan.
- Ah, sim? É de Nova Iorque? Já lá vivi.
- Nunca lá vivi, mas vou lá duas ou três vezes por ano fazer compras.
- Joga ténis?
- Oh, sim. Foi por isso que me fiz sócia do clube.
É um engate. Perguntas e respostas. Travam conhecimento um com o outro. Falam do tempo, de ténis, das praias da Florida, de restaurantes. Ela diz-lhe como se chama. Sylvia Lloyd.
- Posso oferecer-lhe uma bebida, Sylvia? - pergunta ele.
- Obrigada, Harry - diz ela. - Aceito com prazer. Jantam no clube. Jovens estranhos que se encontram pela
primeira vez. E passado algum tempo a situação torna-se real. A tensão. Será que ela? Será que ele? Excitação e receio. Esperança e medo de rejeição.
Enquanto tomam café e brande, ele pergunta:
- Vive aqui perto, Sylvia?
- Bastante perto. Vim a pé. Tenho um pequeno apartamento, mas ando à procura de uma casa maior. Onde vive, Harry?
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- Como se diz na Florida, ao fundo da rua. Tenho uma casa junto à praia.
- Junto à praia? Deve ser divino.
- É demasiado grande para mim e está decorada como um armazém. Mas, sim, é agradável. Quer conhecê-la?
Fitam-se nos olhos. Depois ela apaga o cigarro.
- Adorava conhecê-la - diz ela. - Mas só por uns minutos. Tenho de voltar para casa. Amanhã de manhã tenho uma partida de ténis.
- Claro - diz ele.
Não vão desatar a rir nem a chorar, pondo termo à farsa que estão a representar. Subitamente, ela torna-se essencial para ambos. A sua vida juntos renascida. O primeiro frémito. O primeiro desabrochar. São jovens. Nervosos e ansiosos. Com medo de dar um passo em falso. De forçar a situação ou de ceder com demasiada facilidade.
Mostra-lhe a casa. Cozinha. Pátio. O andar de cima. Tudo. Vão até à praia. Ouvem o mar. Vêem as palmeiras junto à praia, fustigadas por um vento forte. Voltam para casa.
- é linda - diz ela. - Realmente linda.
- Eu sei - diz ele. Rindo. - Mas tem imensas potencialidades.
- Sim, é verdade.
- Queres outro brande?
- Não devia, mas quero.
Descalçam os sapatos. Deixam-se cair nos cadeirões fundos. Olham-se sem sorrir.
Agora ou nunca, pensa ele.
- Sylvia - diz -, tens mesmo de voltar para o teu apartamento?
- Isso é uma proposta? - pergunta ela.
- É.
- Podia cancelar a partida de ténis.
- Então?
No quarto, não acendem as luzes. Despem-se apressadamente na escuridão.
- Quero que saibas - diz ela - que normalmente não...
- Eu sei - interrompe ele. - Eu normalmente também não. São deliberadamente desajeitados na cama. A realidade perdeu-se, tão bem representam os seus papéis. Uma vez mais, é a primeira vez. Ambos querem que seja grandiosa. São alternadamente rudes e ternos. Testam-se. Como é que lhe posso dar prazer? De que é que ele mais gosta?
Ela acaba por ceder. E ele também. Não há nada que não
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façam. Ele nunca conheceu uma mulher tão ardente, nem ela um homem tão determinado. As suas fúrias fundem-se.
- Aqui.
- Agora.
- Isto.
- Oh!
- Faz-me.
- Isto?
- Meu Deus!
- Não pares.
- Ah...
- Amo-te.
- Amo-te.
Uma união memorável. Um acontecimento. Que os estilhaça. Abraçam-se com força, escondendo o seu segredo. Sabendo que naquela breve união as suas vidas mudaram. Entraram um no outro. Tornaram-se um.
Ainda a representar o seu papel, Harry diz:
- Quando te queres ir embora?
- Não quero - diz ela. - Nunca.
Agora, com Sylvia morta e enterrada, Harry Dancer está convencido de que aquela noite aconteceu de facto. Exactamente da forma como ele a recorda. Pregaram uma partida ao tempo. Duplicaram um momento, do passado para o presente. E agora é de novo passado.
Ele tem a vaga consciência do que está a fazer: a duplicar a nostalgia da sua mulher moribunda por uma vida perdida. Agora é ele que está a fazer a ponte entre passado e presente e a ignorar o futuro. A glória dourada existiu; ele convoca-a. Já sem se preocupar se ela é a realidade de ontem ou o sonho de hoje.
Anthony Glitner está sentado, curvado, na praia. Protegido do sol do meio-dia por um chapéu de abas largas, enterrado sobre os óculos-de-sol escuros. Tem uma toalha por cima dos ombros pálidos e sardentos. Com outra toalha protege os joelhos flectidos. Mesmo assim, sente o crestar do sol, que lhe consome os fluidos.
Ao seu lado, Evelyn Heimdall está deitada, imóvel, em cima da toalha. Com a cabeça apoiada no antebraço e a tira do soutien do biquini desapertada. As costas cobertas de protector solar brilham. Braços com protector. Pernas com protector. Rapariga
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dourada a tostar ao sol. Ela parece fazer parte do sol, da areia, do mar. Glitner tenta não olhar para ela fixamente.
Acabaram de almoçar. Esvaziaram o cesto de piquenique com frango assado, salada de batata, tomate e pepino. O pouco vinho que sobrou está demasiado morno para ser bebido. Não se conseguem mexer. Saciados e derretidos.
- Tão bom - diz Evelyn, sonolenta. - Um dia perfeito.
- Quente - diz Tony. - Gosta do calor, Ev?
- Degela-me. Livra-me dos meus achaques e das minhas dores. As minhas maleitas pura e simplesmente esvaem-se.
Ele olha para o mar. Catamarãs com velas espectaculares navegam contra o vento. Barcos de borracha flutuam na água. Nadadores mergulham nas ondas, aos gritinhos. E, a dominar tudo aquilo, o clarão impiedoso. O céu está limpo. Não existe céu. Só um vazio azul e o sol flamejante.
- Mais protector - murmura Evelyn. - Por favor. Nas costas e nos ombros. Não quero pelar.
Obedientemente, ele inclina-se para olear a pele aveludada. Sente o calor dela. Músculos firmes. Ela está retesada. Apertada no envelope do seu corpo.
Ele começa o seu ataque.
- Estou a ficar excitado - diz ele, massajando-lhe as costas vibrantes.
- Isso é bom - diz ela. - Eu também. Tem boas mãos, Tony. Doces.
- Graças a Deus que estamos em público. Se não... quem sabe? Talvez me atirasse para cima de si com um grito rouco.
Ela ri-se.
- Faça favor. Não é casado, pois não?
- Não.
- Namorada?
- De momento, não.
- Pobre Tony - diz ela. - Que pena. Os regulamentos deitaram-no abaixo?
- Não - diz ele, detestando o que está a fazer. - Os regulamentos puseram-me para cima.
Quando ela dá uma risadinha, todo o seu corpo se agita num paroxismo sexy. A carne ondula. Ele espalha protector na depressão por detrás dos joelhos. Olhando para a forma como as calcinhas do biquini revelam a curva das nádegas dela. Uma prega funda.
- Descontraia-se, Tony - aconselha ela. - As regras foram feitas para serem quebradas; você sabe isso.
- Não tenho ninguém com quem as quebrar.
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Ela levanta a cabeça para olhar para ele.
- Estou aqui. Ele tenta sorrir.
- Seria um acto de caridade cristã. Ela baixa a cabeça. Fecha os olhos.
- Sou uma mulher caridosa. A minha formação...
Ele está dilacerado. Aquilo que começara por ser um simples teste tornou-se mais complexo. Luta contra a tentação. A cena física derrete a sua determinação. é tão fácil sucumbir.
- Podemos? - Com a voz entrecortada. - Não sei.
- Não se preocupe tanto - diz ela. - Não é assim tão importante. Nem sequer pense na companhia.
- Tenho de pensar. É uma decisão séria.
- Está bem, então pense. Estarei por perto. Pronta, disposta e capaz.
Ela não devia ter dito aquilo, confirmando todos os seus receios. A sua luxúria momentânea desaparece. Agora, tudo o que importa é saber como lidar com o seu hedonismo. Que será melhor para a companhia? Para a campanha Harry Dancer?
- Serei boa para si, Tony - diz ela.
Nessa noite, aninhada nos braços suados de Martin Frey, fala-lhe na tarde de praia com Glitner.
- Ele atirou-se a mim - diz ela. A rir. - Consegues imaginar? E eu que sempre pensei que ele era direito como um fuso.
Frey afasta-se dela. Senta-se. Olha para ela, espantado.
- Que disseste? - pergunta. - O teu agente responsável atirou-se a ti?
- E como! A sério.
- E como é que tu reagiste?
- Dei-lhe trela. Provoquei-o. Se ele quiser, óptimo. Se não quiser, óptimo também. Não tem nada que ver connosco.
Ele liberta um gemido.
- Ev, tem tudo que ver connosco. Foram as suspeitas dele a teu respeito que me fizeram vir para cá. Mas os meus relatórios ilibando-te não o satisfizeram. Ele continua a achar que estás a virar.
Ela começa a morder os nós dos dedos.
- Martin, tens a certeza?
- Claro que tenho a certeza. Tu própria me disseste que ele é um homem perspicaz. Sensível. Ev, ele estava a testar-te. Ele alguma vez fugiu aos cânones? Que tu saibas?
- Não. Nunca.
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- Então eleé direito que nem um fuso. Só estava a tentar ver até onde te tinhas desviado.
- Pode ter sido o sol, a praia. Talvez ele tenha cedido. Como me aconteceu a mim.
Frey abana a cabeça.
- Fui treinado em contra-espionagem. Conheço as técnicas. Glitner estava a lançar-te uma armadilha. E tu caíste nela.
- Achei que ele estava a ser verdadeiro.
- Enganaste-te. Ele estava a representar. Ela vira o rosto desanimado para ele.
- Oh, meu Deus, Martin, que fazemos agora?
- Temos alguma alternativa? Aquilo de que já falámos... passarmo-nos para os outros. Fazer o melhor acordo que pudermos.
- Estaremos juntos?
- Absolutamente. Caso contrário, não viramos. Ouve, há uma série de informações secretas que podemos fornecer-lhes. Seria uma loucura se o departamento nos recusasse. Podem ser perversos, mas não são loucos. E se eles nos vão sacar todas as informações que temos, nós queremos qualquer coisa em troca. Estarmos juntos é a primeira coisa. Vai correr tudo bem, querida; vais ver.
Como fazemos? A quem nos entregamos?
- Deixa-me ser eu a tratar disso. Em casos como este, é melhor ir directamente ao topo. Falar com alguém que possa fazer um acordo.
Trémula de medo, volta a aconchegar-se nos braços dele. Agora a dimensão da sua traição inflama-os. Negando tudo. Copulam como se tivessem sido contaminados pela peste. Com uma intensidade histérica. Num turbilhão em chamas. à espera de um raio que poderá destruí-los. Ou pior, um julgamento que poderá condená-los a um sofrimento eterno.
Sentado no seu trono da Sala de Guerra, o presidente lê os últimos relatórios informativos da Região Sudeste. Murmura com irritação. Aquela secção está a dar-lhe mais aborrecimentos do que as outras nove regiões juntas.
A traição da secretária particular do director é a gota de água. A estupidez do homem! Acolher uma toupeira da companhia no seu próprio gabinete. Se o presidente agisse impulsivamente, mandaria despromover de imediato e definitivamente o director.
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Todavia, o presidente raramente age por impulso ou capricho. Isso é demasiado perigoso. Para a sua própria carreira. Portanto, revê cuidadosamente as acções que têm de ser tomadas no seguimento do desastre Norma Gravesend.
Os códigos terão de ser alterados, evidentemente. O pessoal-chave mudado. Os informadores protegidos. As técnicas de comunicações revistas. Tudo isto porque um idiota de um director empregou uma espia. O presidente tenta não deixar que a fúria obnubile o raciocínio.
Eliminar o director é fácil. Mas o que é importante é o desfecho das campanhas que estão a ser supervisionadas por aquele idiota. Como a de Harry Dancer. Com Briscoe como agente responsável, o presidente espera que a acção Dancer possa vir a saldar-se por uma vitória sólida. Contudo, afastar o director abruptamente podia pôr em risco a conquista de Dancer e mais uma dezena de potenciais recrutas.
Portanto, suspirando, o presidente decide contemporizar. O director da Região Sudeste pode ser eliminado em qualquer altura. Os xóguns do departamento não estão interessados em indivíduos, apenas em números. Numa congregação que aumente continuamente.
Permitirá que o director fique. Por agora. Sem qualquer repreensão, sem qualquer comunicação. O cretino que sue um bocado. A imaginar quando é que a espada irá cair. Entretanto, assustado, talvez aperte com os seus agentes responsáveis. Exigindo convertidos.
Como Harry Dancer.
Briscoe vai ter com Sally Abbadon de manhã cedo. Sem telefonar a avisar. Bate à porta, ela vai abrir e depara-se com ele. Calças de poliéster com um padrão horrível. Camisola de lã com o logotipo do departamento sobre o coração. Mangas curtas que revelam braços peludos e musculados. O antebraço esquerdo tem uma grande cicatriz.
- Olá, miúda - diz ele. Sorriso duro. - Você e eu vamos ter uma conversa.
Deixa-o entrar. Ele pede um café, sumo de laranja, uma cerveja... qualquer coisa. Ela leva-lhe café. Depois pede um bolo, uma torrada... qualquer coisa. Ela leva-lhe um doughnut polvilhado de açúcar. Depois de estabelecer quem manda, senta-se negligentemente num cadeirão, tomando o pequeno-almoço e observando-a atentamente enquanto ela passeia pelo quarto.
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- A mulher com quem passa todo o dia - começa ele. - Aquela que vive ao lado... como é que ela se chama?
- Angela Bliss.
- Sim. Tem um caso com ela?
- Somos amigas. Não posso passar vinte e quatro horas por dia com Harry Dancer.
- Exacto, não pode. Bom, essa Angela Bliss pertence ao departamento. Segurança Interna. Ted Charon mandou-a vir de Chicago para a trabalhar. Ela disse-lhe isso?
Abbadon vira-se para procurar um cigarro e acende-o. Responde-lhe de costas viradas para ele.
- Não, não me disse isso.
- Bom, ela é mesmo boa profissional. Eu não tive nada que ver com isso. Antes de ser apagado, Shelby Yama teve suspeitas a seu respeito. E mandou Charon avançar com ela para ver se você se andava a portar bem.
- E? - pergunta Sally. Com a voz tensa.
- Está limpa. Bliss jura que você é fiel. Portanto, ela vai ser retirada do caso, vai ser mandada de volta para Chicago para lhe ser atribuído novo trabalho. Amanhã já não a terá à perna.
Abbadon senta-se, finalmente. De frente para ele. Cruza as pernas. O robe abre-se. Ele olha para o joelho dela, para a perna macia. Observa enquanto ela dá ao pé.
- Nervosa? - diz ele.
- Claro que não. Por que haveria de estar nervosa? Ela ilibou-me, não foi? Não sei de que é que Yama suspeitava.
- Talvez estivesse preocupado por você nunca mais fechar o caso Dancer. Talvez achasse que você não estava com ele tempo suficiente.
- Vou estar com ele esta tarde. Vou almoçar com ele.
- Almoçar? E uma matiné?
- Se ele quiser. Olhe, Briscoe, há tipos que podem ser pressionados e outros que não podem. Dancer é do tipo de homem que define o seu próprio ritmo. Tenho de o aceitar, se não corro o risco de o perder. Sei o que faço.
- Claro que sabe, miúda. Mas Cleveland só está interessada em resultados; você sabe disso.
- Vai ter resultados!
- Sim? Quando?
Ela acende outro cigarro.
- Não posso dizer.
- Uma semana? Um mês? Faça uma previsão. Ela irrita-se com ele.
- Não me pressione, está bem? Este é um caso difícil.
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O homem ainda sonha com a falecida mulher. Vai levar algum tempo.
- Não serve - diz Briscoe. Abanando a cabeça. - O seu Relatório de Aptidão anual vai ser feito em breve. Eu gostaria de dizer alguma coisa boa a seu respeito. Está a perceber onde quero chegar?
- Oh, percebo muito bem.
- Continua a coisar o Dancer?
- Claro.
- Bom, é esse o seu trunfo, não é? Pressioná-lo. Ameaçar cortar com ele se ele não se passar para nós.
- Não estou certa de que isso resulte.
- Então que raio resultará'? - grita ele. Pára. Tenta controlar a sua ira. - Quer mostrar-lhe as gravações? Os vídeos? Ele tem uma posição de responsabilidade. Há pessoas que dependem dele. Diga-lhe que, se não vir as coisas à nossa maneira, a vida dele está arrumada.
Ela olha-o, tentando manter o rosto inexpressivo.
- Dê-me mais uma semana, Briscoe.
- Está a tentar ganhar tempo - acusa ele.
- Não, não. Dê-me uma semana para tentar convertê-lo. Se não conseguir, então tentamos as gravações e os vídeos.
- Uma semana? - diz ele. - Está bem. Está a ver como é fácil lidar comigo? Um gatinho... é o que eu sou.
- Sim, claro - diz ela.
Espera que isso ponha fim ao encontro. Ele já acabara o café e o doughnut. Quer que ele se vá embora, mas ele fica ali sentado, olhando fixamente para as pernas nuas dela. Ela fecha o robe. O olhar dele sobe lentamente até ao rosto dela. Nunca tinha reparado na cor dos olhos dele. Gelo lamacento.
-Vai estar com Dancer esta tarde? - pergunta ele, numa voz subitamente inexpressiva. E tensa. Simultaneamente inexpressiva e tensa.
- Exacto.
- Então não tem nada para fazer logo à noite - diz ele. - Está sozinha.
- Tenho coisas que fazer.
- Com Angela Bliss. Esqueça. Ela está de saída. Não há nada para si ali, miúda.
Ela não responde.
- Virei cá ter às oito - diz ele. Levantando-se. - Você e eu temos de nos conhecer melhor. Agora que sou o seu agente responsável.
Ela continua calada.
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Oito horas - repete ele. - Está bem? Lembre-se do seu Relatório de Aptidão.
- Claro - diz ela.
Ela espreita pelo estore até o ver afastar-se no Mercedes preto. Depois começa a chorar. Só passados cinco minutos é que consegue controlar-se o suficiente para telefonar a Angela Bliss.
- Podes cá vir? - implora ela. - Imediatamente.
- Que é, querida?
- Por favor...
- Vou já.
Sentam-se encolhidas. De mãos dadas. Sally conta-lhe o que Briscoe dissera. As insinuações, as implicações. E a forma como olhara para ela.
- Ele sabe - diz ela a Angela. - Acerca de mim e de ti. Tudo. Vem cá esta noite. Para me pôr à prova. E diz que amanhã já não estarás cá.
- Pode estar a mentir.
- Mesmo que esteja, é apenas uma questão de tempo, não é? Antes que nos separem. E ele quer que eu faça chantagem com Harry com as gravações e os vídeos que temos. Angela, não posso fazer isso.
- Claro que não. Querida, há muito tempo que andamos a falar nisso, mas agora temos de o fazer. Desertar. Para a companhia. é a nossa única esperança.
- Mas Briscoe vem cá esta noite - diz Sally a chorar. - Precisamos de mais tempo para descobrir quem devemos contactar para desertarmos. Para pensar no que vamos dizer.
Angela encosta a palma da mão à face da outra mulher, sorrindo.
- Não te preocupes. Deixa isso comigo. Sei como essas coisas são tratadas. Vai ao teu almoço com Harry. Quando voltares, já terei um plano.
- E não terei de fazer amor com aquele idiota?
- Claro que não. Nem sequer penses nisso. Confias em mim, querida?
- Tu sabes que sim. Até que a morte nos separe.
- Farás mesmo tudo o que eu disser? Poderá ser duro. Mesmo duro.
- Isso significa que ficaremos juntas?
- É exactamente isso.
- Então farei o que for preciso - diz Sally Abbadon.
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No mesmo dia à tarde. O director está aninhado no seu gabinete. Despenteado. Com o fato amarrotado. Barba de dois dias. "Deixar o cretino suar", ditara o presidente. E o cretino sua. A espera da sentença que não chega.
Entretanto, tenta cumprir a rotina do dia. Até instalou a nova operadora de computador como sua secretária pessoal. Absolutamente ineficiente, mas tão jovem. Terna. é pena ele não ter qualquer desejo de testar a sua lealdade. A deserção e liquidação de Norma Gravesend neutralizaram-no. Sucumbe ao desespero.
Quando o telefone toca, quase desmaia. Certo de que é a intimação. Pega no auscultador com uma mão paralisada. Responde numa voz entrecortada:
- Fala o director.
- Sr. Director, fala Martha, a telefonista. Tenho um homem em linha que insiste em falar consigo pessoalmente. Recusa-se a dizer qual é o assunto ou a dizer o nome. Que quer que eu faça?
- Diga-lhe para falar com a Segurança Interna.
- Já sugeri isso, Sr. Director. Ele diz que desligará se eu o puser em contacto com qualquer outra pessoa que não seja o senhor. Afirma que é do seu interesse falar com ele.
Isso prende a atenção do director. Reflecte. Se verificar que a chamada é de um louco qualquer, pode sempre desligar. Mas se a pessoa que está a telefonar tiver realmente alguma coisa a oferecer...
- Está bem, Martha - diz ele. - Passe-mo. Voz de homem:
- Estou a falar com o director da Região Sudeste?
- Exacto. Com quem estou a falar?
A pessoa ignora a pergunta. Faz ele próprio uma pergunta.
- Está a supervisionar a campanha Harry Dancer?
O director sustém a respiração. Que louco teria conhecimento disso?
- Não sei bem do que está a falar - responde ele.
- Deixe-se de jogos - é a resposta impaciente. - A campanha Harry Dancer. O seu agente responsável é Briscoe, desde que Shelby Yama foi liquidado. O seu agente de campo é Sally Abbadon. Percebe agora que eu sei do que estou a falar?
Choque. Terá havido outra falha de segurança?
- Que quer? - pergunta o director.
- Santuário - diz o homem. - Sou agente da Contra-Espionagem da companhia. Tenho comigo a agente de campo do caso Dancer. Gostaríamos de discutir a possibilidade de nos passarmos para esse lado.
O director afasta o auscultador. Olha para ele com espanto. Uma minúscula chama de esperança começa a tremeluzir.
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- Está? Está em linha?
- Estou - diz o director. Apressadamente. - Está a falar em deserção?
- Exacto.
- Bom - diz o director. Expandindo. - Creio que isso se pode arranjar. Temos um programa que...
- Deixe-se de tretas - diz a pessoa ao telefone. - Eu disse que queríamos discutir essa possibilidade. Conhece a ponte na Atlantic Avenue, por cima do Intracoastal Waterway?
- Sim.
- Eles erguem-na de trinta em trinta minutos. A hora e à meia hora. No momento em que ela fechar depois das duas da tarde, encontrar-nos-emos consigo a meio. Então falaremos. Venha sozinho.
- Estarão lá os dois?
- Exacto.
- Então tenho de insistir em levar um dos meus associados. Silêncio. Depois:
- Quem? Ted Charon, o seu chefe de Segurança Interna? O director sobressalta-se uma vez mais. O homem parece
excepcionalmente bem informado. O que dá força à genuinidade da sua proposta.
- Sim, Charon - responde ele. - Dois para dois. é justo. Novo silêncio. Finalmente...
- Está bem. Na ponte de Atlantic Avenue. Logo após as duas da tarde. Não falte.
Clique.
O director reclina-se. Respira fundo. Se a chamada for legítima, que golpe! Conseguir virar dois importantes agentes da companhia. Enfraquecendo... talvez fatalmente... a operação Harry Dancer.
Mais importante ainda, salvando talvez a pele do director.
Ele e Ted Charon chegam à ponte com meia hora de antecedência.
- Tenho dois carros - diz Charon. - Um em cada extremidade. Três homens em cada carro. Se não conseguirmos chegar a acordo, podemos apanhá-los. Se o Sr. Director quiser - acrescenta.
- Vamos tocar de ouvido - sugere o director. - Mantenha os seus homens afastados até sabermos o que eles querem.
Charon olha em volta.
- Não vejo mais nenhum carro ocupado, estacionado nas extremidades da ponte. Nem ninguém com aspecto de guarda-costas. Talvez venham sozinhos.
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Esperam pacientemente. A ponte abre-se e ergue-se às duas horas. Dois cruzadores e um barco à vela passam pelo Waterway. A ponte fecha-se. As cancelas são erguidas.
- Pronto - diz Charon. - Vamos.
Dirigem-se lentamente para o meio da ponte. Param, de costas para a guarda. Olham em ambas as direcções. Nada.
- Talvez não venham - diz o director, recomeçando a suar. - Talvez tenham visto os nossos carros e se tenham ido embora.
Charon recusa-se a assumir a culpa pelo fracasso.
- Eles virão - diz ele. - A ideia foi deles, não foi? Penalmente, vêem um casal dirigindo-se para eles, vindos do
lado ocidental da ponte. Um homem e uma mulher. De mãos dadas, apertadas com força.
- Podem ser eles - diz Charon. Tira o boné. Limpa a testa com um lenço, alertando os seus homens.
Os quatro encontram-se. Ficam a olhar uns para os outros.
- Sr. Director? - diz o homem. É novo. Atraente. Pele morena. A mulher é quase tão morena como ele. Um corpo sólido. Cabelo curto, dourado pelo sol. Parece assustada.
- Exactamente - diz o director. - E este senhor é Ted Charon, o nosso chefe de Segurança Interna.
- Gostaríamos de ver a vossa identificação - diz Charon. Os dois estranhos olham um para o outro. O homem acena
afirmativamente e tira a carteira. A mulher remexe na carteira. Entregam cartões de plástico a Charon, que os examina. Ergue os olhos para comparar os rostos com as fotografias. Devolve-lhes os cartões.
- Martin Frey e Evelyn Heimdall - comunica ao director. - Confere com as nossas informações. A senhora é agente de campo da companhia a trabalhar no caso Dancer. Frey trabalha na Contra-Espionagem, em Washington.
- Querem juntar-se a nós? - pergunta-lhes o director.
- Se nos derem o que queremos - diz Frey.
- Que é?
- A protecção habitual. Além da promessa de que nós os dois podemos ficar juntos. Trabalhar juntos. Somos uma equipa. Isso tem de ficar bem claro.
- E que é que nós obtemos em troca? - pergunta Charon. - Para além de uma equipa?
Frey encolhe os ombros.
- Tudo o que soubermos. Códigos. Listas de pessoal. Técnicas de recrutamento. Nomes, datas, locais. Não ocultaremos nada. Sabemos que estamos a apostar na vossa boa fé, mas estamos dispostos a correr esse risco. Podemos ser muito úteis ao departamento.
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- Mais do que as informações que podemos dar - diz Heimdall. Falando pela primeira vez. - Podemos ser úteis ao departamento como agentes activos. Somos eficientes. E entusiastas.
- Apercebem-se do que isto implica? - pergunta o director. - Ninguém se demite do departamento. Têm consciência disso?
Ambos acenam afirmativamente com a cabeça. Os quatro falam durante quinze minutos. Pormenores sobre a rendição. Quando e como. Profissionais discutindo desapaixonadamente as condições da traição. Assinatura de documentos. Casas clandestinas. Recolocações. Novos papéis para os convertidos.
Finalmente, o director olha para Ted Charon.
- Que acha? - pergunta.
- Vamos aceitá-los - diz Charon. - Eles não têm mais nenhum sítio para onde ir.
Nesse mesmo dia à tarde. Sally Abbadon e Angela Bliss revêem o seu plano meia dúzia de vezes, procurando coisas que possam correr mal. Imaginando as reacções. Tentando antecipar as medidas de retaliação da parte de Briscoe. A força e a brutalidade daquele homem assusta-as.
- Onde arranjaste a arma? - pergunta Sally.
- É minha - diz Angela. - Fornecida pelo departamento. Toda a gente da Segurança Interna recebe uma.
- Alguma vez a usaste?
- Só no campo de tiro. Mas tenho boa pontaria. Querida, tens a certeza de que consegues levar isto até ao fim?
- Tenho - diz Sally. - Não temos nenhuma outra alternativa, pois não?
- Não, não temos outra alternativa.
Discutem a questão de alugarem um carro. Decidem que isso complicará desnecessariamente as coisas. Discutem a necessidade de utilizarem cordas ou algemas. Uma injecção de droga. Qualquer coisa para o imobilizar.
- Não - diz Angela. - Temos de manter as coisas o mais simples possível. Quanto menos coisas que possam correr mal, melhor. Meu Deus, como estou nervosa. Tu não estás?
Sally estende uma mão trémula.
- Olha.
- Eu sei, querida. Sinto o mesmo.
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- O que estamos a fazer... o que vamos fazer... não é a melhor forma de começar a nossa nova vida, pois não?
- Seremos perdoadas. é justificável. Ele é perverso, um homem perverso. Tem prazer em magoaras pessoas. Conheço a ficha dele.
Estão no quarto de Sally. Rodeadas dos adereços de mau gosto usados para atrair Harry Dancer. O quarto tem agora o aspecto morto e poeirento de um cenário não usado. Não suportam olhar para os nus carnudos pendurados nas paredes. Espelhos com moldura cor de laranja. Uma decoração triste e kitsch.
- Podemos fazer amor? - pergunta Sally. Subitamente. - Por favor. É importante para mim.
- Sim - diz Angela. - Oh, sim.
Nuas nos braços uma da outra, trémulas de medo e de prazer. O plano funciona como um estímulo acrescido. Estão mais unidas pelo perigo, arriscando tudo uma pela outra. O seu abraço é desesperado... e por isso muito mais doce.
Aprenderam a conhecer o corpo uma da outra. Desejos confessados e prazeres ocultos. A sua união é feita de confiança e entrega. Tem o travo da novidade, levedada pelo amor. O seu mundo novo expande-se; não existem limites para elas.
- Deixa-me - diz Sally. - é a minha vez.
O corpo magro e duro de Angela tornou-se tão querido para ela. Algo para acarinhar. Osso e músculo, pele e veia. Todo ele quente e ansioso. As bocas procuram. Uma conspiração a dois. Acordo secreto. O amor pertence-lhes exclusivamente. Elas cercam-no, protegem-no, alimentam-no.
No seu ardor, as dúvidas desvanecem-se. Não há nada que não possam fazer. Os beijos expulsam o medo. As línguas exploradoras confirmam a sua determinação. Ao fazer amor, tornam-se mais fortes. A decisão de ambas é reforçada. As duas são um só corpo, uma só vontade.
Afastando-se, olham-se nos olhos. Acariciando-se. Murmurando. Sentindo lustre e cetim. Pressionando. Puxando. Sorrindo das suas brincadeiras. Inundadas de felicidade. Inchadas de felicidade. Ambas pulsando em uníssono.
- Aconteça o que acontecer... - diz Angela.
- Sim - diz Sally -, aconteça o que acontecer...
Ficam deitadas, indolentes, gemendo de contentamento. Depois levantam-se, vestem-se, fazem os últimos preparativos. Vestem ambas calças de ganga pretas, T-shirts pretas, ténis pretos. Assassinos nocturnos.
- O importante - diz Sally - é não o deixar usar os Poderes Especiais.
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- Não terá tempo - diz Angela. - Confia em mim. Tomam uma bebida a meias... uma única taça de amor de
vodca.
- Coragem a meias - diz Sally. - Temo-nos uma à outra.
- Sempre - jura Angela.
Briscoe está atrasado. São quase oito e vinte quando Sally, espreitando pelas persianas, vê o Mercedes preto chegar e parar no parque de estacionamento.
- Ele chegou - anuncia ela.
As duas mulheres abraçam-se. Agarrando-se com força, encostando os corpos.
- Amo-te.
- Amo-te.
Angela assume a sua posição atrás da porta. Sally apaga a luz do tecto. Deixa acesa a luz fraca do candeeiro da mesinha-de-cabeceira.
O seu toque de campainha é semelhante ao próprio homem: agudo, forte, autoritário.
Sally abre a porta.
- Olá - diz ela.
Ele entra. Quase sorrindo. Angela fecha a porta. Aproxima-se por detrás dele. Encosta o cano da arma à parte de trás da sua orelha esquerda.
- É uma arma - diz ela. - Carregada. Não se mexa.
Ele fica imóvel. Sally revista-o. Não está armado. Tira-lhe as chaves. Angela volta a pressionar o cano da arma contra a cabeça dele. Ele não diz nada. O silêncio dele assusta-as. Vêem os seus olhos de aço a olhar em volta. Calculistas.
- Vai, Sally - diz Angela.
Abbadon sai. Fecha-a sem fazer barulho. Bliss recua alguns passos. De forma a não ser apanhada desprevenida se Briscoe se virar subitamente. Com o revólver firmemente apontado.
- Nada de Poderes Especiais - diz-lhe ela. - A menos que queira morrer.
- Não tem tomates para isso - diz ele, falando pela primeira vez. Uma voz árida.
- Experimente - diz ela.
Ficam de pé, em silêncio. Angela espera que Sally traga o Mercedes para junto do motel. Para não terem de atravessar o parque de estacionamento com Briscoe sob a ameaça da arma. Finalmente, ouve uma ligeira buzinadela. O sinal.
- Ora bem - diz ela -, vamos sair. Você à frente. Eu estarei mesmo atrás de si. Entre para o banco de trás do carro. Sente-se na extremidade oposta. Mantenha as suas mãos bem à vista. Se
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acha que me pode dominar, faça favor. Adoraria liquidá-lo aqui mesmo.
Mas ele não tenta nada. Quase docilmente, obedece às ordens. Sai. Senta-se no banco de trás. Na extremidade oposta. Angela segue-o. Segura na arma com as duas mãos.
- Ele está a portar-se bem, Sally - diz ela. - Vamos embora.
Abbadon vai apanhar a A1A. Vira para sul.
- Vocês vão desertar - diz Briscoe, passando a língua pelos lábios. - Vão passar-se para a companhia. As duas.
- Exactamente - diz Angela. - Vamos cavar.
- E depois? - pergunta ele com um encolher de ombros. - Que é que isso tem a ver comigo? Querem fazê-lo? Façam-no. Não posso impedi-las. Mas para quê envolver-me nisso? Nós limitar-nos-emos a destacar outra agente de campo para a acção Harry Dancer. Não é tão importante como vocês acham que é.
- Se você fosse outro homem qualquer - diz Angela -, eu acreditaria em si. Mas conheço a sua ficha, Briscoe. Sei que tipo de demónio você é. Talvez nos deixasse ir, mas nunca nos deixaria viver. Não conseguiria suportar a derrota. Todos os seus planos, as suas ambições, pelo esgoto abaixo. Fôssemos nós para onde fôssemos, você viria atrás de nós. E acabaria por nos encontrar. Teríamos de passar o resto da nossa vida a olhar para trás. O departamento talvez nos riscasse do mapa de pessoal e nos deixasse em paz, mas você não. Nunca esqueceria nem perdoaria. Porque nós fizemos que parecesse um idiota incompetente. E viria atrás de nós com uma arma. Não é verdade?
Ele não responde. Olha em frente através do pára-brisas. Observa Sally enquanto ela vira à direita para o Atlantic Boulevard. Dirige-se para oeste. Passam a ponte onde, horas antes, Evelyn Heimdall e Martin Frey se renderam ao departamento. Mas nenhum deles sabe isso.
- Vamos fazer um acordo - diz Briscoe.
- Não há acordos - diz Sally. Numa voz ríspida.
- Escutem-me por um minuto - diz Briscoe. - Faz sentido. Levem-me ao aeroporto. Prometo portar-me bem. Metam-me no primeiro voo. Para onde quiserem. Isso dar-vos-á tempo para contactarem a companhia. Eles dar-vos-ão protecção. Eu estarei no ar, longe da cena durante horas.
- Esqueça - diz Angela. - Você voltará e irá à nossa procura.
- Dou-lhes a minha palavra de honra de que não irei. As mulheres riem-se.
Seguem em silêncio durante algum tempo.
- Sabem? - diz Briscoe -, de vez em quando penso em
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passar-me para o lado de lá. Digam-me por que o vão fazer; estou verdadeiramente interessado.
Elas não se dão ao trabalho de responder.
- Estamos quase a chegar - diz Angela a Sally. - Mais uma ou duas ruas. Não podes fazer inversão do sentido de marcha. Tens de dar a volta ao quarteirão.
O trânsito flui e está a chuviscar. Sally liga os limpa pára-brisas. Inclina-se para a frente para ver. Faz a curva. Volta ao Atlantic Boulevard, dirigindo-se para leste. Briscoe" olha pela janela. Vê o reflexo dos candeeiros na superfície escura de um canal.
-Aqui? - grita ele, ofendido pelo amadorismo delas. - Com luzes? Trânsito? A esta hora? Estão doidas!
- Arriscamos - diz Angela.
- Não temos nada a perder - diz Sally.
- Duas mulheres com um homem - acrescenta Angela. - Quem vai pensar que se passa alguma coisa? Nós vamos fazê-lo, Briscoe. Acredite.
Pela primeira vez, elas ouvem o som do desespero na voz dele.
- Olhem - diz ele -, vamos falar sobre isto. Vocês acham que a companhia quererá acolher duas assassinas?
- Eles não saberão - diz Angela. - Pois não?
- O carro! - grita ele. Com o cérebro obnubilado. Agarran-do-se a pormenores idiotas. - Como vão livrar-se do meu carro?
- É fácil - diz Angela. - Limpamo-lo e estacionamo-lo em qualquer lado. É no próximo quarteirão, Sally. Pára aqui. Deixa o motor a trabalhar.
- Eu sei - diz Sally.
Ela abranda e pára. Sai do carro. Abre bruscamente a porta de Briscoe. Ele quase cai no chão. Angela sai rapidamente atrás dele. Encosta-lhe a arma ao pescoço.
- Lá para baixo para o canal - diz ela. - Rápido!
Ele abre a boca para gritar. Angela agride-o nas têmporas com a arma. Atordoado, ele avança aos tropeções. Elas amparam-no e arrastam-no até ao canal. Ele murmura, abanando a cabeça. Puxam-no até à beira da vala suja.
Angela vira-se. Olha para trás, para o boulevard. Espera até que passe um camião. Depois faz sinal a Sally. Vira Briscoe. Atinge-o no rosto com dois disparos. Golfadas de sangue. Ele cai para trás. A cabeça e os ombros caem na água negra.
- Dá-me a arma - diz Sally.
- Quê?
- Dá-ma!
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Angela entrega-lha. Sally faz pontaria, fecha os olhos e atinge Briscoe mais duas vezes no peito e no estômago. Abre os olhos. Olha para a outra mulher.
- Juntas - diz ela. - Fizemo-lo as duas. Juntas.
Empurram o corpo de Briscoe mais para dentro do canal. O corpo afunda-se lentamente. Ficam a olhar até as bolhas brancas desaparecerem. Depois dão meia volta e dirigem-se para o carro.
02.30 da manhã, Anthony Glitner sente que está tudo a ruir. Evelyn Heimdall não fez as chamadas de rotina nas últimas vinte e quatro horas. O agente responsável mandou gente à sua procura. Mas ela desapareceu.
Informa Washington. Por sua vez, da sede da companhia dizem-lhe que não conseguem localizar Martin Frey. As mensagens voam de trás para diante. Um fracasso de Grau-A.
Glitner talvez pudesse ter suportado aquilo, mas ainda está deprimido com o assassinato de Willoughby. Aquele homem doce, entusiasta. Tão firme na sua crença. Foi-se. Para uma vida melhor, acredita Tony devotamente. Mesmo assim, é difícil perder um camarada querido.
Ainda mais duro de suportar é a traição de um crente. E isso, o agente responsável está convencido, foi o que aconteceu a Evelyn Heimdall. E a Martin Frey. A companhia sofreu uma perda terrível. Glitner assume a responsabilidade pela dupla deserção. Devia ter sido mais perspicaz, mais atento. Devia ter pedido uma substituição para a sua agente de campo quando começou a suspeitar de que ela estava a enfraquecer.
Pergunta-se, uma vez mais, se estará queimado. Exausto devido aos conflitos contínuos com o departamento. Intermináveis. Vitórias e derrotas. Mas nunca com um indício firme de um eventual triunfo. O que deixa apenas a fé. Um fino junco às duas e meia da manhã.
Até o mais convicto dos crentes tem dúvidas, ocasionalmente. A companhia pode estar segura disso. Mas a companhia é um credo. Um corpo de leis. Os seus aderentes são indivíduos humanos. Sujeitos a todas as fragilidades inerentes à vida num mundo irracional. Sofrimento? Sofrimento imerecido? Como justificar essas anomalias num universo pautado pela palavra?
Destroçado, dilacerado pela incerteza, Anthony Glitner anda de um lado para o outro. Rezando por provas. Provas incontroversas de que a vida tem significado. Que a sua vida tem valor,
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que o seu trabalho é importante. Quer ser tranquilizado. Uma festa na cabeça, admite com tristeza.
Quando o telefone toca, dá um salto para ir atendê-lo, esperando que seja finalmente o telefonema de Evelyn Heimdall. Esse problema ficaria resolvido. Os seus receios seriam infundados. Mas é uma voz desconhecida. Feminina.
- Anthony Glitner?
- Sim. Quem fala?
- De momento, isso não é importante. O que é importante é que sou agente do departamento, divisão de Segurança Interna. A minha amiga é a agente de campo da acção Harry Dancer. Desejamos ambas desertar. Passar para a companhia. Podemos encontrar-nos para discutir esse assunto? Glitner está estupefacto. Sem voz.
- Está? Sr. Glitner? Está lá?
- Sim, estou. Para quando pretendem o encontro?
- O mais depressa possível. Já, se puder.
- Está bem. Onde?
- Pode vir ter connosco?
- Isso será sensato? Podem estar sob observação. Pausa.
- Sim - diz a mulher -, é capaz de ter razão. Muito bem, iremos ter consigo. Temos a morada. Estaremos aí dentro de vinte minutos.
Tony desliga suavemente. Pode ser uma armadilha... mas ele não é dessa opinião. Ela parecia decidida, segura, profissional. Duas agentes do departamento que querem desertar. Vitória!
Mas ele não se sente de modo nenhum triunfante. Apenas triste. E cansado. Reflectindo nas falhas e nas fraquezas das pessoas da sua profissão. A destruição chega, mais cedo ou mais tarde. Trabalham num ambiente tão carregado. Febrilmente. Acabam por se queimar.
Devido à crueza das suas decisões. Vida ou morte... e nada de permeio. Cada opção é vital, cada acto é essencial. São cirurgiões espirituais. Será de admirar que as suas mãos possam hesitar?
Afasta estes pensamentos desanimadores. Começa a arrumar a sua suite de hotel para se manter ocupado. Planeia como lidará com aquelas duas potenciais convertidas. O que elas pedirão, o que ele oferecerá.
Não é a compensação total pela morte de Willoughby e pela deserção de Evelyn Heimdall. Mesmo assim, é...
Pára subitamente. Relembra os seus pensamentos de há uma hora atrás, quando ansiava por um sinal. Garantia de que a sua
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fé é justificada, de que a sua vida tem valor. Será este o presságio que ele procura?
Tocam à campainha. Vai abrir a porta. A sorrir.
O dia está glorioso. Um sol matutino corajoso num céu translúcido. As palmeiras agitam-se; uma suave brisa de nordeste seca e refresca. O oceano está calmo, pequenas páginas desfolhando um volume infindável na areia.
- Foi por isto que viemos para a Florida - grita um vizinho, e Harry Dancer assente e sorri.
Sentado junto da água, com os seus calções de banho de caqui desbotado. Agarra os joelhos flectidos com as duas mãos. Observa um grupo de miúdos brincando na praia, pessoas fazendo jogging, outras apanhando conchas. Alguns barcos de borracha de cores vivas sulcam a água. Catamarãs que não vão a lado nenhum. Um novato que cai da prancha de windsurf. Espuma branca sobre as rochas. Tudo tão familiar e querido.
Olha para o mar e para a curva suave da terra. Água e céu dão cor a um enorme globo. Sem arestas. Apenas arcos suaves. A cortejar a vista, a acalmar o espírito.
- Vamos nadar, Syl? - pergunta ele. - Para longe?
- Talvez - murmura ela. - Daqui a pouco.
Ela está deitada, imóvel, ao seu lado. Numa grande toalha de praia com um desenho do rato Mickey. O seu corpo bronzeado cintila. Olha para ela com amor e desejo. Nunca conseguirá conhecer por completo aquela mulher total.
- Os melhores amores são incompletos - diz ele.
- Se tu o dizes, professor.
Estende a mão para tocar num ombro brilhante. Um dedo. Um contacto breve.
- Para que foi isso? - pergunta ela.
- Só para ter a certeza de que estás mesmo aí. Ela dá uma risadinha.
- Oh, estou aqui, querido. Estarei sempre.
- Prometes?
- Absolutamente. Positivamente. Não te deixaria sozinho.
- Não - diz ele -, não faças isso. Queres uma bebida? Uma sanduíche?
- Nada, obrigada.
- Caviar? Champanhe? Diamantes? Rubis? Esmeraldas?
- Agora sim. - Depois soergue-se, apoia-se num cotovelo e
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fica a olhar para ele. - Estás muito generoso esta manhã. E romântico.
- Isto passa.
Murmura e volta a pousar a face no antebraço.
- Não - diz ele -, não passa. Amo-te tanto, Syl. E isso assusta-me. Perder-te seria uma amputação. A melhor parte de mim.
- Não me vais perder.
- Não deixes de repetir isso - implora ele. - é a única coisa que me faz continuar.
- Não achas que eu sinto o mesmo? Que é que eu seria sem ti? Não aguentaria.
- Às vezes... - diz ele. Sentindo-se idiota, mas com vontade de o dizer. - Às vezes penso em nós como mais do que casados. Unidos pelo sangue.
- Irmão e irmã?
- Sim - concorda -, mas gémeos. Entendes?
- A identificação - diz ela. - Sim, entendo. É um pensamento lindo.
- é o que eu sinto.
Ela leva a mão às costas. Aperta a parte de cima do biquini. Senta-se. Encosta-se aos joelhos dele. Sorri-lhe..
- Incesto - diz ela. - É isso que se passa aqui.
- Uma coisa assim - concorda ele. - Uma coisa maravilhosa.
Sorriem e viram-se para o horizonte invisível. Com os olhos semicerrados contra o clarão do sol. Olham para a eternidade. Mundo sem limite. Tudo se estende. Sylvia dá-lhe a mão. Aperta-a com força.
- é tudo nosso, Harry - diz ela. - Não é?
- Tem sido - diz ele. - Desde que te conheci.
- E nunca acabará - jura ela. - Juro por Deus. Permanecem sentados. Próximos, muito próximos. A ver a
praia cintilante, viva. Parte dela, mas separados dela. Num mundo só deles, onde apenas a presença de ambos é suficiente.
- Vou nadar agora - diz ele.
- Tens a certeza de que queres mesmo, meu amor?
- Tenho de ir - diz ele. - Preciso. Não tenho outra opção. Ela aperta-lhe a mão com mais força.
- Está bem, Harry, estarei contigo.
Levanta-se lentamente. Estira-se, roda os ombros. Dirige-se para a beira de água. Pára por instantes, com a água pelos tornozelos. Olha para a água suave e profunda. O seu olhar turva-se. Parece-lhe ver uma maré rolando para trás. A fazer espuma à distância. Pronta para o levar. Chamando-o.
203
Avança pelo mar dentro. Não mergulha, mas espera até ser levado. Depois começa a nadar com uma calma deliberada. Nada sem parar, avançando em direcção à eternidade, erguendo os braços, movendo as pernas. Em direcção à sua meta.
Continua a avançar. A respirar regularmente. A sorrir de felicidade enquanto sente a força dos músculos. Sem limite. Passa pelas pessoas que tomam banho, gritando. Passa pelos barcos de borracha e pelas outras embarcações. Para o silêncio onde apenas ouve o sussurro das suas próprias ondas ternas: Ssssylvia, Ssssylvia, Ssssylvia.
Quanto tempo? Não sabe e não se rala. Ocasionalmente, ergue a cabeça. Espreita. Assegura-se de que se está a dirigir para a eternidade. Sentindo o cansaço a despontar. Um calor reconfortante. Braços e pernas começam a fraquejar. O corpo rola.
Feliz com a sua fraqueza. Apercebendo-se do fim. Ouvindo "Ssssylvia, Ssssylvia, Ssssylvia". Não tem de a chamar pelo nome. Ela está com ele. O amor dela fá-lo ir em frente. Estende-lhe os braços pesados como chumbo, procurando-a, ansiando por a resgatar.
Chapinha. O corpo esgotado abranda. Até que, arfando, deixa o mar entrar pela boca aberta. E entrega-se com alegria. Afundando-se lentamente. Bolhas de ar subindo irregularmente até à superfície.
E chega a casa.
O presidente, no seu gabinete na sede em Cleveland, está a ser sujeito a um interrogatório pelo inspector-geral do departamento. Um homem ordinário com o sorriso falso de um embalsamador.
- Perdemos Sally Abbadon e Angela Bliss - diz ele. Acusador.
- E ganhámos Evelyn Heimdall e Martin Frey - recorda-lhe o presidente.
- Briscoe foi eliminado.
- Norma Gravesend também.
- E Shelby Yama?
- E Willoughby?
Olham-se irados. Depois suspiram simultaneamente.
- A operação foi um desastre - diz o inspector.
- Nisso concordo consigo - diz o presidente.
- O essencial é que perdemos Harry Dancer.
204
- O essencial é que ninguém perdeu nem ganhou Harry Dancer. Todos os que estavam envolvidos, departamento e companhia, ambos subestimaram o homem. Era mais do que nos apercebemos.
- O senhor tinha a obrigação de saber. O presidente encolhe os ombros gordos.
- Como já referi várias vezes, inspector, não estamos a lidar com caixas de cereais. Os nossos alvos são seres humanos vivos, que respiram... com todas as esperanças, medos, preconceitos e sonhos idiotas que isso implica. Sabe, isto não é uma ciência, é uma arte.
- Aparentemente, os nossos artistas não têm um talento excepcional.
O presidente bate com a mão sapuda na secretária.
- Não permitirei que questione as minhas capacidades - diz, irado. - As estatísticas estão à sua disposição. Mostram claramente que a minha folha de serviço é excelente. Ganho mais do que perco.
- Mais, talvez - funga o inspector -, mas não muito mais. Senhor presidente, a nossa decepção quanto ao desfecho do caso Harry Dancer não se baseia exclusivamente na perda de um único potencial recruta. Existem também considerações orçamentais.
- Dinheiro - rosna o director. - Acaba tudo por se resumir a uma questão de dólares e cêntimos.
- Temos em curso uma operação a nível mundial - diz o inspector-geral. - Estaríamos a negligenciar o nosso dever se não estivéssemos constantemente conscientes do rendimento, despesas, custos com pessoal etc. Vamos lá rever o seu projecto de orçamento para o próximo ano. Creio que é necessário rever algumas das suas... estimativas mais optimistas.
- Sim, Sr. Inspector - diz o presidente. Rendendo-se.
Quase ao mesmo tempo, uma autópsia mais ou menos semelhante está a ter lugar na sede da companhia, em Washington. O chefe de operações e o agente responsável, Anthony Glitner, estão a conferir o balancete da acção Harry Dancer.
- Mais ou menos ela por ela, senhor - conclui Glitner. Voz monótona, desanimada. - Perdemos alguma coisa, ganhamos alguma coisa.
- E ninguém ganhou Harry Dancer - acrescenta o chefe. Procurando nas algibeiras os comprimidos para a azia. -Não foi uma das nossas campanhas mais gloriosas.
-A culpa foi minha - diz Tony. - Deixei o caso fugir ao meu controlo.
- Disparate - diz o chefe. - A culpa não foi sua. Todo o caso girava em torno da personalidade e do carácter de Harry Dancer. O nosso fracasso deveu-se a uma insuficiência de informações. Já elaborei um memorando sobre o assunto. A partir de agora, as nossas análises de possíveis convertidos deverão ser muito mais pormenorizadas. Uma análise aprofundada. Para sabermos exactamente com quem estamos a lidar.
- Que acha que teria ajudado neste caso? O chefe fica a olhar para ele.
- Que quer dizer com isso?
- Talvez não fosse possível conhecer o homem.
O chefe encontra apenas uma Tums enxovalhada. Mete-a na boca.
- Tony, prefiro não me deter nos mistérios do espírito humano. O importante é concentrarmo-nos nas conversões. Essa é a nossa única razão de existir.
Ficam sentados em silêncio durante alguns momentos. Cabisbaixos. Pensativos.
- Senhor - diz Anthony Glitner -, onde acha que estará agora a alma de Harry Dancer?
- Oh... - diz o chefe. Acenando com a mão num gesto cansado. - Lá fora algures. A flutuar...

 

 

                                                                  Lawrence Sanders

 

 

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