Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS AMORES DE MÁXIMO
Subiu com certa desenvoltura as escadas sonoras que levavam até ao terceiro e último andar o eco, livre e claro dos seus passos firmes. Entrou em casa com uma espécie de sôfrega curiosidade, como se esperasse que, na sua ausência, algum tremor de terra ou sacudidela violenta de misteriosa origem tivesse dado nova feição ao ambiente por ela criado. Como habitualmente, pisou, desinteressada, as cartas que estavam no chão do corredor, sentindo rebentar nela um súbito alvoroço, uma alegria desmedida, quase infantil.
Olhou à sua volta e sorriu.
Tudo estava no seu lugar, tudo permanecia atento e cintilava na penumbra perfumada; nada acontecera ali de extraordinário para além da sua precipitada fuga. Mesmo com o casaco vestido sentou-se numa poltrona da saleta-escritório e afastando a gola entretelada apertou com as duas mãos longas, arrefecidas pela comoção que repentinamente a assaltou, enredando-se ao seu corpo, o pescoço esguio e jovem. A jugular latejava-lhe apressada. Depois da sua grande e apaixonante aventura vivida no imenso e deslumbrante Paris que ficara a amar, sabia-lhe bem o sentir-se novamente na sua casa, naquele seu abrigo que era como a ilha que se ambiciona desde que tumultuários acontecimentos nos magoaram, oprimindo e exaltando, simultaneamente.
Marcela retomou, lentamente, o domínio sobre si mesma. E foi precisamente no minuto em que se julgava a deslizar sobre um calmo rio de adoçadas relembranças que a campainha do telefone começou a tocar (como em muitas outras ocasiões idênticas) imperiosamente; fixou por instantes o relógio de pulso. Ergueu-se, e com um jeito voluntarioso, mas como se tomasse uma decisão corajosa e importante, pegou no auscultador telefónico, perguntando-se (sem que, estranhamente, lhe ocorresse o nome de Máximo) quem desejaria falar-lhe àquela hora macia e reverberante da tarde. Antes de pronunciar um distraido e benevolente "alio" escutou a voz que já tantas vezes a fizera estremecer, de desejo ou de indignação. Ficou suspensa das palavras seguintes e só mais tarde se admiraria (analizando-se cheia de perplexidade) dessa sua aceitação e curiosidade àquilo que Máximo pudesse dizer-lhe, e lhe dissera. Irritado, primeiro, ele vergastou-a com frases chocantes, nas quais se adivinhava, todavia, uma certa dor e uma certa revolta ("Há dias e dias sem responderes. O que aconteceu?! Eu não sou nenhum garoto! Já aí fui, desesperado..."). O orgulho do homem ferido, manifestava-se, contudo, em cataratas de palavras desconexas. E as perguntas sucediam-se, como uma trovoada desencadeada, riscada por flagelantes raios caídos em terra seca. Mas logo a seguir, o homem moderou a sua raiva e pediu-lhe que o ouvisse, que fosse razoável para com ele, que lhe desculpasse os seus exageros verbais.
- Escuta-me um pouco mais... Preciso de dizer-te algumas coisas... Ouve, e vê se compreendes, se me compreendes, e perdoas... Já não quero mentir-te. Perdoa-me... e diz-me, não hoje, se assim o quizeres, mas quando o entenderes, onde estiveste uma semana... Quero que me escutes... Peço-te... Depois, despresa-me definitivamente, ou estima-me...
- Afastei-me de ti... Julguei que compreenderias e não insistirias mais. As verdades que queres apresentar-me ainda interessam?! Creio que não. De resto, as tuas verdades serão mefíticas, tardias, sem valor. Desejo continuar tranquila. Parti e voltei diferente, acredita (ouvia-o como se algo de subtil continuasse a acorrentá-la).
- O que quero que saibas interessa-te... para bem me julgares. Nunca indagaste nada... Eu sou casado, Marcela. Sou casado há vinte e cinco anos e quero que conheças a minha amarga história de homem atormentado e falhado... Há razões para os meus procedimentos, a minha... libertinagem... Sei que estás a ouvir-me... deixa-me continuar... É preciso que te confesse tudo... Mesmo sem esperança não recearei que voltemos a encontrar-nos...
O espanto e um terror informe fizeram com que Marcela, automaticamente, fechasse a porta da saleta e puxasse para junto de si uma cadeira; sentou-se e de lábios entreabertos, muda e a querer falar, permaneceu atenta às convulsas e fantásticas confissões de Máximo (ela, realmente, nada procurara saber da vida dele; queria acreditar nas pessoas e desconhecia quase totalmente as misérias que se ocultam numa grande cidade). Já não lhe dizia que se calasse; não desligava o telefone. E tremia interiormente, recebendo na própria alma as revelações que continham muito lodo e também muito desespero não fingido. Máximo descobria sem sadismo (a sua voz tornara-se monótona), o que fora e era a sua vida de homem amarrado a um tropeço, a uma mulher sexualmente inútil, mas que paradoxalmente o subjugava, de diversos modos, entre eles avultando o problema do dinheiro, que ela ainda não possuia mas herdaria da mãe. Fora ele, com o que ia ganhando, que pagara as operações a que a mulher fora submetida. Porque Leonilde começara a sofrer escassos meses transcorridos sobre o enlace de ambos. Fora operada ao útero e ovários, fora operada ao estômago e ao fígado, e ao apêndice, e preparava-se para outra operação... Há muitos anos (talvez dez) que não tinha relações sexuais com ela... E ele era um faminto do sexo. Seria por tomar as drogas que o seu crónico mal de garganta exigia?! Não o sabia. O certo é que não podia passar sem mulher. Leonilde consentia tudo quanto ele obtivesse de graça. Até consentira que ele tivesse relações com as amigas... E uma delas, era grande amiga... Sim, a mulher do amigo que ele acompanhara a um psiquiatra, aquele que lhe confessara a sua impotência, como que a convidá-lo, a incitá-lo, a prosseguir na ligação já verificada (era preciso que ela fosse conhecendo os pobres seres humanos). Houvera uma altura em que desejara todas as mulheres e muitas possuíra com fúria para logo as abandonar. Não escolhia. Ia frequentes vezes a uma fábrica (ela deveria visitar um meio desses), por motivos de negócios do Banco e era aí que a sua lubricidade mais explodia, perante as mulheres que trabalhavam precariamente vestidas. Mentira-lhe muitíssimas vezes, sim, mas deixaria de mentir; agora sentia-se menos atormentado... A cidade encobre muita coisa... Porque lhe prometia saídas e jantares e ficava em casa dela, a comer e a beber?! Exactamente porque era um biltre cobarde e não tinha, geralmente dinheiro. Quando recebia, entregava quase a totalidade do ordenado a Leonilde (por basófia). Contava, para despesas extraordinárias, com biscatos e uma espécie de gratificações que nem sempre chegavam. Se durante o mês pedia a Leonilde algum dinheiro, ela, áspera dizia-lhe: "Estás a gastar demais". Ficava agastado mas não o dava a entender... A casa da periferia estava em nome da mulher; o carro também. Leonilde raramente ia à casa fora da cidade e daí o andar parecer uma casa de aventuras de homem sozinho. O viver dele não era fácil... Ela... Gostava dela! Não se tratava apenas de atracção física. Gostava, verdadeiramente... Marcela sentia-se agoniada e com uma dor no peito (e o tempo a escoar-se, a tarde a morrer). De repente - e tanto que Máximo já dissera, santo Deus! - foi como se acordasse a meio de um pesadelo absurdo, arripiante. Endireitou o busto, ergueu a cabeça, quase gritou (despedaçando a sua tensão) num desvairamento subitâneo:
- Existe entre nós um abismo imenso! Afastei-me de ti; agora não sou a mesma. Podemos ficar diferentes até no espaço de uma hora! Desiste, cala-te!
- Deixa ao menos que te telefone quando me sentir mais desanimado. Ficaste a saber muito de mim... Foi fácil dizer-te quase tudo, desta maneira... Sê generosa... Estamos ligados... como criminosos...
Marcela desligou enfim o telefone. Bateu com os dois punhos fechados em cima da secretária, fazendo estremecer e tilintar as peças ali alinhadas, os pingentes do candeeiro de cristal. "Idiota! Para que o ouvi durante tanto tempo?! A vida dele... Acabou tudo! Quererei amar, mas amar quem me mereça, ou então viverei no desalento horrível, mas secreto, de me bastar sempre a mim própria! Nem sequer sinto simpatia... Traiu-me, procedeu como bilhostre... Como é enorme a cidade que eu julgava pequena... Ele, casado... E ninguém, nem maldosamente, se lembrou de me informar disso... Várias pessoas conhecidas nos viram... Não desconfiei... Nem perguntei... Fui explorada..."
Relanceou o olhar ao seu redor e então, já a impôr-se serenidade pensou que regressar era continuar o trabalho interrompido, era ter de lutar com maior força de ânimo, destruindo tudo quanto fosse mesquinho ou representasse impedimento ao brotar das boas intenções. Trabalhar, apesar de todas as desilusões sofridas, era afirmar vitalidade e segurança em si mesma.
Deitou-se bastante tarde, sentindo-se sob uma intensa tensão nervosa. Sonhou, dormiu pouco, mas levantou-se cedo. O que escutara na véspera, vindo da boca de Máximo, como que se entrelaçara, com subtil fluidez, nos sonhos que tivera e não lhe tinham permitido um completo repouso. Apesar de tudo, talvez não quizesse acreditar em algumas das afirmações de Máximo. Ele teria exagerado, para mais a impressionar.
Leu a correspondência; pensou em responder a duas cartas de Adriana, a rapariga apaixonada pelo seu presente, ainda incerta pelo seu futuro, temerária, galvanizada por múltiplas ilusões; não o fez, todavia, naquela manhã de reencontro com o seu ambiente. Foi-lhe difícil concentrar-se. As revelações de Máximo tinham-lhe causado uma funda emoção. Essa latejante emoção começava a decantar-se, a ganhar novo volume no seu espírito e fulgurantes relâmpagos de indignação lhe perpassavam nos olhos inquietos. Sentia-se decepcionada consigo própria. Não a consolavam as minguadas conclusões a que chegava. De Madrid regressara um dia amarfanhada devido ao seu encontro e à descoberta do pobre carácter de José Júlio. Da viagem a Paris viera exuberante (todos os poros da sua pele lho afirmavam), exultante e encantada com a sua coragem, satisfeita por sozinha ter visto muito de uma cidade tão fabulosa como a capital da França. Tivera lá encontros curiosos, prometera responder a cartas que lhe escreveriam. A vida apresentara-se-lhe em inéditas dimensões de beleza. Mas logo à chegada fora detida, violada e esmagada no seu entusiasmo interior pelas complicadas confissões de Máximo de quem fugira no recente dia escaldante em que definitivamente o julgara um trapaceiro. Ele fizera-lhe na véspera revelações que ela não esperava. E contudo, podia tê-las adivinhado... Considerava-o um libertino, um traficante de sentimentos, um espoliador, que só apetecia as mulheres com segurança material ou aquelas que poderia abandonar sem explicações. Não supuzera, todavia, jamais, que ele a tivesse enganado naquele ponto sério na vida de todos, mulheres e homens; quando ele lhe dissera, fugidiamente, é certo, e, com escassos pormenores, ele que apreciava alongar-se em banais considerações, muitas vezes mesquinhas e cabotinas sobre qualquer assunto, que vivia com a mãe e uma tia solteirona, não se puzera dúvidas em acreditar. Falara-lhe nas duas irmãs gémeas, numa outra tia rica, viúva e velha que já fizera promessas de lhe deixar valores e propriedades, e, da maneira como o pai morrera, quase de repente, com uma trombose no cérebro; dissera-lhe, até, como a mãe reagira e se comportara, friamente, perante a morte do pai, sem o mínimo sinal de mágoa ou saudade. Nesse instante a mãe apavorara-o. Tinham-no chocado muitas coisas, mas aceitara o que ela de mais brutal dissera, sem um retesar de músculos. Mantivera-se firme e gelado. E ela, ela compreendera-o, de certo modo! Sentira a maldade, não levada a cabo, do pai e nem nesse instante solene da morte respeitara a sua memória. Odiara-o. Não lhe afirmara a mãe, dentro da mesma hora grave que o pai desejara fazer um testamento, beneficiando as irmãs e prejudicando-o a ele?! Falara muito, falara demais...
Em muitas ocasiões Marcela quizera acreditar em Máximo e desejara-o sem nada dissimular, com uma febre intensa que lhe transmitia um ardor impetuoso, nítido, quase selvagem, a todos os gestos.
No dia anterior Máximo voltara a referir, mais enrouquecido, a morte do pai, dizendo que o pai pensara no testamento que não tivera tempo de fazer, porque ele casara com mulher rica e vivia em casa da sogra. A verdade, porém, é que a fortuna, que era esquálida, estava em nome da sogra (não houvera partilhas) e Leonilde nada mais possuia que as suas doenças - umas reais, outras inventadas.
Marcela não podia ainda compreender a razão que levara Máximo a fazer-lhe tantas declarações da sua vida, quando entre eles se tinham quebrado já todos os fios de ligação (e compreendia-se ela, por o ter escutado?!). As recordações mesmo agradáveis, nada podem alimentar.
Que mais pretenderia ele?! Haveria novas torpezas nos fundalhos da sua alma de misérias?!
Depois do desejo, ou a par do desejo, deflagrara nela o ódio e a revolta indicara-lhe uma fuga imediata. Mas a torrente das palavras dele tinham vindo novamente para a atormentar, pelo menos naquela manhã de sol quente, com misteriosas e deslumbrantes quimeras acendidas algures, de aragem branda carregada de aromas fortes, rebentados de troncos, de folhagens, de flores e de frutos.
Levantou-se, foi até à janela, e a seguir voltou a sentar-se, num abandono de todo o corpo, desejando pensar nos dias que acabara de viver com juvenil exaltação. Era preciso que Máximo se transformasse numa figura ou sombra secundária. Devia afastá-lo da sua memória.
Pelos reposteiros unidos a claridade exterior filtrava-se docemente. Junto de Marcela havia serenidade. Não, ela não voltara, agora, com a sensação deprimente de vexame e angústia já sentida, mas sim com a determinada força de viver plenamente, mesmo sozinha, os dias futuros.
Revia-se... Caminhara durante horas, vitoriosa, uma anónima silhueta na grande multidão, no magnifico e estonteador Paris, percorrendo, interessada, todos os seus bairros de fabulosas histórias, os seus museus, as suas longas avenidas, os "faubourgs" do luxo, e a seguir sentara-se, exausta mas alegre (como se tivesse escapado a um furacão) num banco de jardim ou de uma praça, a ver passar a onda contínua das pessoas que, talvez como ela, muitas delas, tinham em si a exigência gloriosa de pedir à vida um pouco mais que trabalho e luta, o que comporta muitas somas de dilacerantes agonias. Fora imensamente longe. Regressara satisfeita, e, supunha, com os seus dons de intuição e observação, mais apurados. Teria, porém, de rever, de analizar e aprofundar, muitos dos seus sentimentos e sentimentos e atitudes alheias. Julgara que se libertara para sempre de Máximo e tal ainda não acontecera, afinal (um sino quebrado badalava, longe, enervante e agoirento). Estaria ela sujeita a oscilações, e a permanentes perseguições nesse labirinto escaldante dos desejos confessados e inconfessáveis?!
Continuou, fervorosa, com fé em si própria, os seus trabalhos de traduções e às horas de descanso ainda furtava algumas para os seus cuidados pessoais e para os arranjos da sua casa que queria conservar irrepreensivelmente arrumada (o nosso aspecto e o que faz parte do nosso viver pode denunciar a nossa exacta mentalidade). Não se queixava de falta de tempo pois o tempo, poupado, chegava-lhe para tudo (como o seu dinheiro) - trabalho, devaneios espirituais, distracções.
Certa tarde, ao fazer conhecimento com Narcisa, no escritório do gerente da casa editora, sentiu-se subitamente como que a transbordar de uma excitada alegria e brilhante de humor, gentilmente espirituosa e afirmando cultura, mantivera e prolongara um diálogo interessante sobre autores actuais. Narcisa, ilustradora de mérito, espantara-se com a firmeza dos seus conhecimentos e com as suas afirmações condenatórias, não apenas das estultas vaidades, da penúria das ideias dos que se proclamam superiores, mas também das protecções, dos "amparos", de tudo quanto é negociata a propiciar o endeusamento de criaturas simplesmente ambiciosas e de vaidades encobertas por máscaras de traços fingidamente simpáticos.
Tinham saído juntas e caminhado e conversado bastante nessa tarde de longes matizados de cores fosforescentes e violentas.
Para sua admiração Narcisa logo lhe falou de Clemente, um amigo - "um grande, perverso e querido amigo", acrescentara, sorrindo com os olhos de pálpebras grossas e com a polpuda boca pintada de um agressivo vermelho - que desejava que ela conhecesse. Não se recusou, como muitas vezes fizera no passado, à sugestão da ilustradora e foi mesmo com uma expressão de interesse que aceitou a ideia de vir a conhecer Clemente, um homem que (depois o saberia) tinha múltiplas ocupações e um carácter de duvidosos aspectos.
Despediram-se a pouca distância da casa de Marcela, à ilharga de um jardim deserto e triste, com pernadas de chorões abatidas pelo calor, a varrerem o chão de terra cascalhenta de um castanho desbotado.
- Telefono-lhe amanhã. Continuaremos a conversar.
- De acordo. Gostarei de ouvi-la...
A outra ficara parada, como que emoldurada no verdeangustiado das árvores, e no azul afogueado e denso do céu e ela, pressentindo um olhar quente e fixo na sua nuca, voltara-se, ao chegar à esquina da avenida e acenara com a mão direita, livre. Narcisa também lhe enviou um adeus lento que dir-se-ia afago voluptuoso.
Sem o desejar, pensou muito na mulher sofisticada e insinuante que teria, precisamente, a sua idade; os modos de Narcisa, as suas frases com tendências abertas a evitarem o vulgar, o metal da sua voz, tinham-na, com efeito, entusiasmado singularmente. Não apreciava conviver, pois as pessoas nada de importante lhe diziam, mas reconhecia que não se pode viver sempre num total isolamento. Narcisa interessava-lhe e se não viesse a ser para ela a amiga que recebe todas as confidências, como o fora Ana, que o cancro matara, lastimá-lo-ia.
Arguta, inteligente e complicada, Narcisa pertencia, sem dúvida, à sua época. Apreciaria conhecer o seu talento, continuando a escutar as suas palavras, de certo modo pomposas. Parecera-lhe original; não condenava a suficiência que ela demonstrara, nem a maneira exagerada como se pintava e a extravagância com que se vestia. Sentia que poderia ser amiga de Narcisa, se ela não a desiludisse.
E Adriana?! Estaria a afastar-se deliberadamente dessa amiga jovem e contraditória, como ela?! "Não, não", disse-se e imediatamente se dispôs a responder às cartas recebidas. O que Marcela não se confessava é que ainda não escrevera a Adriana porque temera que a rapariga adivinhasse através do que escrevesse o tumulto que persistia em existir dentro dela.
Acendeu a lâmpada do candeeiro de cristal; e muralhada agora na sua querida solidão pensou longamente na amiga rebelde e incerta nos projectos, escutando os saltos de Cristina, a correr pelos degraus da escada deserta.
Começou a escrever, cautelosa; tê-la-ia modificado, mesmo em relação aos seres que estimava, a curta viagem que fizera (expressivos sorrisos de bocas generosas, passos certos sobre pedras irregulares, perfumes de castanheiros, o som da casca dos troncos a estalar, as luzes da noite palpitante - tudo ela guardava, tudo podia ainda representar mistério... E a música, o murmúrio do vento vidente, a ressonância das águas dos repuxos feitos flores?!), essa experiência de liberdade, e de apreensão do volúvel, do rápido e do maravilhoso, que dera a si própria?! Poisou a mão esquerda aberta (longa mão para inesquecíveis carícias) sobre a larga e levemente granitada folha de papel; e, a seguir, resolutamente, escreveu a Adriana, respondendo às suas cartas, alongando-se em considerações razoáveis mas que a amiga não lhe solicitara, compondo mesmo um pouco de poesia, respondendo às suas perguntas principais e ocultando-lhe como se se tratasse de um acto perverso, monstruoso, reprovável, a viagem que fizera inesperadamente. Contar-lhe-ia tudo mais tarde, quando a considerasse bem amadurecida para aceitar e compreender, ou talvez nunca lhe dissesse, para não a perturbar, nada dos seus tormentos íntimos, das suas revoltas, daquela febre latente em si, de desejar destruir o que lhe repugnava. Sobre os acontecimentos triviais referidos, com certa exaltação, por Adriana, guardou silêncio, porque todas as pessoas em quem a rapariga falava já lhe eram completamente estranhas e de todas as memórias relacionadas com elas nada mais sentia que uma desagradável sensação de asco.
Adriana tinha de entender isso por meio dos seus silêncios. Terminou a carta felicitando-a por sabê-la disposta a estudar na pequena cidade, aceitando as sensatas sugestões do pai, sem mais conflitos.
Não se pronunciara acerca do encontro que Adriana tivera com Anselmo. A moça dizia-lhe que ele estava mais seguro de si, menos irrequieto, e que breve iria para longe, cumprir o seu dever como militar.
Marcela não duvidava de que no coração da jovem se reacendera, impetuosamente, a chama que a primeira desilusão fizera oscilar, provocando-lhe uma crise de amarga revolta.
- Convido-a para jantar. Clemente irá connosco. Falei-Lhe de si e ele quer conhecê-la, talvez para decifrar os seus enigmas...
- Hoje... Ser-me-á difícil... Lamento não aceitar, mas tenho imenso que fazer (lá se reanimava nela o velho receio por um novo conhecimento que poderia abrir-se em surpresas desagradáveis).
- Nada de desculpas. Há momentos em que todos os trabalhos se abandonam. Este será um deles. Diga-me que aceita e marquemos a hora e o local. Quando não se tem carro, é uma grande maçada... e, tendo-se, também é uma complicação. Não posso ir buscá-la...
Naquele instante, e nem ela soube bem porquê, Narcisa pareceu-lhe fútil e vulgar; ficou admirada. Ainda quis evitar aquele jantar; acabou, porém, por concordar com Narcisa, até quanto ao restaurante proposto. Lá estaria cerca das nove horas.
Durante a tarde assaltou-a um despropositado nervosismo de que não compreendeu a origem. Não intuía ataques, não se sentia fatigada. Porquê, então, aquele grande nervosismo a crispar-lhe as feições, a escurecer-lhe os olhos, as pupilas verdes e doiradas, a secar-lhe a garganta como se tivesse tomado alguma forte dose de "mescalina", a obrigá-la a uma agitação desordenada, antes da "viagem" de informes recortes?! Bem, a verdade é que nada conhecia da vida de Narcisa; e as pessoas desconhecidas intrigavam-na, enchiam-na de desconfianças, já não as aceitava facilmente.
As horas carregavam-se de torpes venenos. Deslizavam surdas. Os pensamentos agrupavam-se, formavam círculos. Ali, nem luares nem estrelas derramavam suas álgidas esteiras de luz.
Marcela saiu respirando com dificuldade.
Quando entrou na sala do restaurante viu logo um braço erguer-se e uma esguia mão acenar-lhe. Avançou com certa timidez. O ambiente causou- he súbita inquietação que tentou dissimular aparentando àvontade.
Levantaram-se os dois e Narcisa apresentou, sorrindo, elevando o queixo pontiagudo:
- Aqui tem Clemente Osório Pimenta Marcolino... Um nome pomposo... É o amigo de quem lhe falei. Apreciarão conhecer-se. Todos falamos a mesma língua, creio.
Sorriu maliciosa.
Foi só então que Marcela olhou de frente para o homem que acompanhava Narcisa e, por bem pouco, não deixou escapar dos lábios trémulos uma frase de espanto convulso.
Estendeu-lhe a mão hirta e baixou os olhos, confusa; o homem falava-lhe e a ela parecia que muito perto de si um ribeiro sussurrava sobre um leito acidentado. Libertou-se da malinha. Todo o corpo lhe latejava; ela sentia a pele fremente e quente. As faces ardiam- he.
Clemente parecia um irmão gémeo de José Júlio (e a visão da posse acontecida em Madrid feriu-lhe os olhos; havia neve, um véu reverberante...) com a diferença de que, em vez de usar óculos, tinha apenas sobre a pálpebra esquerda uma pequena pala negra, como a do general israelita. A mesma testa vasta, o mesmo nariz volumoso, a mesma boca gulosa, a mesma pele e a mesma inflexão de voz. As mãos também lhe tremiam ligeiramente, pegando no cigarro. Não se tratava de miragem, mas sim de realidade tocável. Narcisa inquiriu solícita:
- Não se sente bem?! - e ela retorquiu demasiado alto:
- Aqui está calor... Mas sinto-me perfeitamente. Moveu-se na cadeira, desassocegada. Entrelaçou os dedos
e imediatamente separou as mãos.
Uma hora depois, contudo, sentia-se quase refeita da profunda e desagradável impressão que tivera ao chegar. Falavam, sorriam, bebiam. A atmosfera adensava-se e nela se comprimiam, esfarelavam e volatisavam odores esquisitos e fortes.
Narcisa avisava:
- Cuidado com o Clemente. Ele conhece escritoras
- as poucas que por aí há! -, decoradoras, poetisas... Veja que já teve a coragem de dizer a uma poetisa que rasgasse o que escrevera porque... Que enormidade disse você, Clemente?! Não falou em plágio?! Este homem... Um monstro que não se deseja ter por inimigo... Mais tarde, escreveu uma "Carta aberta a uma poetisa"... Atrevido e contundente... Apesar de tudo, gosta-se dele... Ou estaremos todos dessorados... Ele sabe atacar...
- Não receio que me ataque. E, quando criar seja o que for, será absolutamente, visceralmente meu! bom ou mau, será meu!
Clemente fitava-a com olho perspicaz, cintilante e provocador. Estudava-a sob todos os aspectos e ela sentia a verruma daquele olho brilhante a magoá-la algures.
Antes da meia-noite deixaram o restaurante cheio de vozes e de fumo. Clemente e Narcisa insistiram para que os acompanhasse a um local de variedades proibidas, onde encontrariam gente "bem" (e a rir, eles lembraram até o apartamente de Isilda, mulher opulenta que gostava de pequenas festas a quatro - ela, o amante e duas amigas. Tarde, uma das amigas, requebrando-se e dançando, despia-se, despia-se completamente. Isilda e o amante iam para o quarto e as duas amigas ficavam a afagar-se mutuamente... Não era bizarro e encantador?! O apartamento de Isilda era num oitavo andar, tinha um terraço com bonitas vistas...); Marcela, firmemente, recusou o convite. Narcisa, porém, reteve-a mais uns minutos e obteve dela a promessa de que dois dias mais tarde iria com eles a uma grande noitada, insólita e divertida.
E deste modo se foram estreitando os laços de simpatia entre as duas mulheres que bem depresa se tornaram íntimas. Narcisa era um íman.
Toda a relutância de Marcela se foi rompendo perante a sinceridade brutal de Narcisa que passou a pouco lhe ocultar do seu viver muito complicado e assaz desonesto. Ela dava-se com muita gente cotada, deixava-se admirar e desejar (e até possuir) e acompanhava, sobretudo, com Clemente que tinha, igualmente, inúmeras relações sociais. Clemente, todavia, nem intelectualmente, nem sexualmente lhe interessava; Clemente era o seu vício ou a guitarra de cordas à sua disposição. Reconhecia-lhe defeitos medonhos, sabia-o casado, consentia em que ele levasse para a mulher peças que lhe pertenciam (como uma águia de ouro com brilhante no bico, um alfinete que pouco usava; peças antigas, como a preciosa colcha de renda que uma sua avó lhe oferecera, em menina) e, ia-lhe perdoando frases cáusticas, aceitando-lhe ainda toda a espécie de confidências.
Reconhecia-se de atitudes bizantinas e gostava de ser como era. Desconhecia a auto recriminação.
Marcela admirou Narcisa com as suas loucuras, as suas suficiências, e, especialmente a sua coragem em abordar todos os problemas, respondendo frontalmente a qualquer pergunta chocante ou indiscreta. Só no aspecto político - ela proclamava-se defensora de turbulentos ideais, e, então, Marcela ainda ignorava as mudanças acontecidas na vida e na alma de Leonardo...-não a aceitava, repelindo todas as suas insinuações. E por isso, a partir de uma certa altura, ostensivamente, afastava-se da amiga quando ela iniciava caloramente os seus discursos. Deixava-a rodeada de lisongeadores e procurava, apressada, a sua cidade de palpitante silêncio.
Apreciando conviver, mostrar-se, deslumbrar, Narcisa recebia grupos, frequentemente, em sua casa - um andar com duas salas vastas modernamente decoradas, e mais duas salas pequenas, de requintada intimidade.
A primeira vez que foi a uma dessas reuniões teve ocasião de ver como se comportavam muitas criaturas que depois soube terem nomes sonoramente famosos, num, ou em outro meio; umas, em manifestações estultas de suficiência, exibiam os seus dons de conversadores em gratuitas e tolas afirmações, geralmente maldosas; elogiavam apenas os que podiam ser-Lhes úteis assim demonstrando a sua insignificância. Outros
- algumas mulheres - sentavam-se pelos cantos a observarem gestos, a reterem palavras; pareciam alcoviteiras à espera de uma oportunidade. Se Narcisa oferecia alguns regalos de boca acompanhando as bebidas, essas damas dos cantos viravam glutonas e comiam e bebiam avidamente. Várias vezes Marcela notou, mais tarde, a presença de uma dessas bruxas, vestida de preto, olhando e comentando. O fastio e o desdém podiam notar-se no rosto enérgico de Marcela.
Não lhe agradavam, afinal, nem lhe ofereciam fugas apreciáveis ao seu viver de trabalho, aquelas reuniões de comediantes. E assim, mal entrada nesse mundo de gabarolices, falsidades, traições, amoralidades e pequenas infâmias, logo o detestou. Aparecia raramente. Não inventava pretextos, pois nunca recorria a mentiras ou disfarces .fosse para o que fosse. Simplesmente, dizia a Narcisa:
- Não me convide tantas vezes para os seus encontros... Evitará que tanto recuse os seus convites...
- Espere! (e Narcisa parecia, pela inflexão da voz, ter descoberto uma coisa importante) Espere... Vamo-nos tratar por tu?! É fácil, é moderno. Valeu?!
- Sim, estou de acordo, porque não?!
- Dizias...?!
- Que não me procurasses tanto para os teus serões de convívio. Detesto as pessoas que te cercam. São quesilentas, odiosas, vulgares em tudo.
- Nem todas. Não sejas exagerada. Eu não te dispenso. És muito decorativa... Se é do Clemente que não gostas, em particular, e isso vê-se claramente, afasta-te dele. Demasiado simples.
- Narcisa, no passado afastei-me de todos os conhecidos que considerei torpes e diabólicos. Não quero mais conhecimentos ou experiências humanas... Continuarei a dar-me contigo... Mas pouco irei aparecendo...
Sentavam-se ambas num largo sofá, em casa de Narcisa e a noite começava a insinuar-se por entre os reposteiros de veludo amarelo.
Narcisa apagou o cigarro, ergueu-se.
- Ainda reconsiderarás... Precisamos de gente à nossa volta, acredita. Mesmo que, no íntimo, odiemos essas criaturas, exactamente porque lhe conhecemos os vícios...
- Não preciso de companhias. A minha luta absorve-me grande parte do dia!
Estava tranquila, e segura do que afirmava naquela atmosfera misteriosa da casa de Narcisa, no silêncio apunhalado de sons, do lento entardecer.
A ilustradora ergueu-se, com jeitos de preguiça.
- Espera-me um instante sim?! Acendo a luz?!
- Obrigada. Aqui ainda se vê.
Narcisa saiu da sala e Marcela cerrou as pálpebras com força, e apertou os lábios, transformando-os numa flor. Via cores a perpassarem nas suas pupilas. Cores violentas, galvanizantes. Cores de incitamento. A quê?!
- Olha-me - e a voz de Narcisa era, simultaneamente, imperiosa e macia, quente e profunda.
Uma luz fora acesa.
Marcela como que despertou, sobressaltada, de uma estonteante irrealidade, para, atónita, olhar uma realidade espantosa por tão inesperada.
No meio da sala, Narcisa completamente nua afagava os seios com círculos castanhos e duros bicos rosados. Deslizou as mãos por aquelas ilhas pálidas, acetinadas e esféricas e apoiou-as abertas, quase sobre os rins. Afastava ligeiramente as pernas, e, docemente banhado por uma claridade iridiscente, o seu explêndido corpo apresentava uma nova dimensão de beleza sensual. Os seios estavam de harmonia com os ombros magnificos e jovens; o ventre era enxuto, as ancas, delgadas, de prazer, estremeciam. E havia uma doirada mancha, em desenho breve, e as pontas dos pés de Narcisa poisadas na macieza selvagem de uma enorme pele de leopardo, apresentavam minúsculas setas cor de sangue.
- É uma visão, ou não?! - exclamou de narinas frementes.
- Não. Sou eu. Quis que me visses como sou. Gostas?! Perplexa, Marcela olhava a silhueta perfeita de um branco-marfínico, avultando no aveludado lilaz, cinza e ouro avermelhado da hora que morria e ali estava iluminada. Não sabia o que devia dizer. As suas glândulas salivares desencadearam um trabalho tremendo. Engulia a saliva grossa como se se tratasse de um líquido espesso que não chegava a refrescar-lhe, a lubrificar-lhe a garganta ressequida pela comoção. A outra repetiu, lasciva:
- Gostas?! Achas o meu corpo belo?!
E Marcela confessou, numa voz sumida e entrecortada, que o corpo de Narcisa era bonito.
Sem querer dar uma impressão de infantil receio, ela tomou a decisão de se encontrar mais raramente com Narcisa. E aparecia pouco nas suas reuniões. Quando aceitava ir, era talvez por curiosidade e para analizar, embora superficialmente, aquela gente que se dizia bem do seu tempo e que tão estupidamente gastava as horas; bebiam muito, falazavam demasiado sem nada dizerem de interessante, criticavam, fumavam, comiam, jogavam. Os seus risos eram de máscaras gastas.
Clemente, vendo-a, aproximava-se dela, com a sua oscilante pala negra, e, subtil mas cínico, tentava prender-lhe a atenção. Ele era a imagem de José Júlio (quase um retrato) a persegui-la, era o morto ainda, com a sua boca viciosa e mole a abrir-se em pedidos miseráveis. Recuava; um frio desagradável roçava-lhe as espáduas. Um vento cheio de gritos entrava-lhe pelos ouvidos. Trocista, Clemente abanava imperceptivelmente a grande cabeça e a pala escura cavava-Lhe uma nódoa em toda a face.
Retirava-se cedo. Os seus hábitos regulares nada tinham sofrido com a modificação introduzida na sua vida, aquelas saídas, pouco frequentes, embora.
Ocupava todas as manhãs nos seus trabalhos de tradução que cada vez mais lhe agradavam. Pensara um dia que apenas pediria algo a quem julgasse ou considerasse seu superior; mas na sua amarga batalha acabara por compreender que teria de solicitar muita vez, não só trabalho como um aumento ao que lhe pagavam, a pessoas inferiores, intelectualmente, mas com o pé no estribo do poder. Fazia-o, contudo, sem se degradar, sem subserviências e portanto sem angústia. Frequentemente era atendida, rejubilando com o facto. Sem avareza, começou a amealhar. Sentia em si desejos confusos de abaladas e regressos.
Conhecera em Paris um mexicano que se intitulava um eterno estudante, mas era professor de francês por desporto e pintor de largos recursos que não aproveitava, e que passara a escrever-lhe. Àtilla Guarneros falava-lhe de viagens, de países fabulosos, de fascinantes descobertas que já fizera. Lendo as suas cartas, Marcela foi ambicionando a aventura de viajar, de conhecer muito do mundo; para próximas viagens ia economisando, pois não queria gastar todo o capital depositado, e, nem a Narcisa revelava o seu segredo.
As notícias de Adriana possuiam às vezes a magia de a pacificarem, fazendo-a sorrir docemente. A moça estudava. Em casa, afirmava-lhe, havia sido estabelecido um acordo de harmonia (seria temporário?!) para que ela, serenamente, pudesse preparar as suas lições em clima de tranquilidade propício ao reter do que lia. O pai continuava a sair muito; regressava, todavia, geralmente sóbrio, não pensando, no momento actual, na tolice antiga - ir viver para casa dos pais, que envelheciam sem atribulações materiais.
Marcela, no seu processo mental, revia Adriana e revia Juvenal e Constança, seres que estavam ligados às suas infância e adolescência. As suas memórias eram rápidas. Adriana, sob variados aspectos, pertencia à sua estirpe, mas, vistas as suas atitudes sob diversos ângulos, afastava-se muito dela talvez para seu bem, para alcançar, somente, uma felicidade burguesa, sem problemas.
Respondia com ternura às suas cartas, compridas e com muitas rasuras. Nesses momentos sentia-se junto da rapariga de tumultuários sentimentos, que, muito dentro de si, desejava o amor, para amar, em entregas ilimitadas. Mencionando o nome de Anselmo, pela primeira vez depois de meses de silêncio sobre o jovem que a ferira, não se alongara em considerações. A seguir, porém, ele passou a ser o tema principal das suas cartas de afirmações confusas. A fé de Adriana no seu inesquecível entusiasmo da juventude renascia impetuosamente. Anselmo prosseguia nos estudos enquanto aguardava uma chamada.
Manifestava-se eufórica a moça e nitidamente se percebia que escrevia muito para desabafar, para transmitir de um modo sinuoso o que a perturbava e entusiasmava (nos seus nervos correriam músicas de Primavera e sinos de Aleluia). Viria a amar um único homem?! Anselmo seria esse homem, de sangue ardente...
Porque Narcisa lhe falara, vagamente, de pessoas de família que viviam longe, também lhe desenhou o retrato da desenvolta Adriana, falando-lhe de Constança e de Juvenal, sem aludir, contudo, ao infame Luiz, à derrotada Alice e à filha de ambos, que os odiava, e há muito deixara a vila.
Narcisa, fixando-a com os seus enormes olhos cor de violeta, as narinas palpitantes e aquele seu jeito atrevido (ou insolente) de projectar para a frente o queixo erguido, escutara-a, parecendo absorver as suas simples palavras. E repentinamente:
- Não me fales dessa gente que não te estima. Não me fales mais dessa estouvada Adriana.
- Porquê?! Considero-a, como minha irmã... Irmã dedicada...
- Ora... Uma irmã... Deixa essa provinciana com os seus provincianismos...
Apeteceu-lhe rir e consentiu essa descontracção revigorizante. Narcisa sentiria ciúmes?! Continuou a rir e abraçou Narcisa.
- O que tens tu?!
- Nada, positivamente nada.
- Mas... a tua reacção... quase violenta...
- Reacção violenta?! Que ideia! Parece-me que ainda não me conheces, Marcela.
- Acredito que não. És tão complexa, tão... sofisticada, e, surpreendes tanto...
- Não tanto como supões... Julgas que gosto... que gosto dos homens?! Ou mesmo que aprecio o Clemente?! Enganas-te. Eu amo-me a mim própria. Porque sou bela e elegante e estou razoavelmente relacionada, todos se aproximam de mim. Tenho casa, recebo bem, crêem que haverá por detrás de tudo um Créso de mãos lasgas... Uma cambada de pulhastrás. Se lhes pedisse alguma coisa, a esses que me insensam, debandavam... Adoro ser adulada por essa onda de pelintras de espírito... Mas sei que me virarão as costas se lhes aparecer algum dia famélica.
- Mas... Ainda não há muito te vi numa grande intimidade com Clemente...
- Não. Não há compromisso algum. Sabes que é casado e se puder explorar, explora, para levar para o seu lar... É um devasso. As minhas intimidades com Clemente! Sabes a que se reduzem?! Apenas a... Olha, a isto...
- Narcisa!... Não...
- Digo-te que sim. Uma espécie de fantasia minha.
- Não...
- Sim. Ele corre para junto de mim, como um cão, para o afagar. Jura-me que assim, os seus orgasmos o põem em órbita...
- Por favor, não continues.
- Não podemos falar de tudo?! Não somos adultas?! Há algum mistério no sexo ou nos vícios ?! Julgo bem que não.
Marcela emudeceu. Sentia à flor de todos os poros uma ligeira transpiração. Excitação e repulsa e vergonha e qualquer coisa mais que não compreendia, perturbava-a profundamente. Quase todas as vezes que mais intimamente se aproximava de Narcisa esta lhe revelava uma sua nova e escaldante faceta; não queria, contudo, considerá-la completamente insensível, na sua amoralidade. Apesar de tudo, e exactamente pelos cambiantes complicados da personalidade invulgar de Narcisa, era sua amiga, tão amiga como fora de Ana, de cuja vida pouco conhecera, mas de quem intuira queimantes segredos. As criaturas banais não lhe interessavam nada.
- Deixo-te com os teus mórbidos pensamentos... Eu tenho de trabalhar muitissimo.
- Vais escrever hoje ao mexicano?!
E os olhos cor de violeta sorriam, trocistas.
- Escrever a Àttila não é um trabalho, mas sim um prazer.
Sorrindo se despediram, conhecendo os pensamentos uma da outra. Marcela, sem querer, conservava na memória visual o rápido gesto, obsceno, de Narcisa. E a aragem batia-Lhe no rosto, despenteava-a, acariciava-lhe, como dedos selvagens a garganta lisa e nua. De algures, de alguma torre longínqua, chegaram-lhe sonoridades pacificadoras. Seria só ela a escutar aquela doce música de sinos que tanto a impressionara e comovera na infância?!
Investindo contra o vento, sentiu-se de repente numa imensa planura desabrigada por onde rolavam ecos de trindades em todos os sentidos.
Iam-se tornando menos frequentes os telefonemas de Máximo que já se permitira acusá-la de demasiadas saídas, como se tivesse alguns direitos sobre ela. Geralmente telefonava ou antes de começar o seu trabalho ou à tarde, fechado o Banco. As solicitações para um reencontro estavam na base de todos os colóquios, por vezes breves e rudes.
Para evitar o encontro frontal Marcela fizera uma transferência do seu depósito para outro estabelecimento bancário e nesse dia foi como se realmente tivesse destruído todas as pontes que ainda poderiam servir para um estreitar de relações. A ida a Paris fora um acto de coragem e uma afirmação do seu despreso por Máximo. O homem leviano e temerário, não compreendera, ainda, no entanto, que ela não queria mais ver-lhe o rosto escuro e marcado, os olhos torvos, ou com cintilações de febre pecaminosa, a estreita boca torcida, como uma laceração, a sua fronte baixa de obstinado congénito, o seu pescoço retalhado. E continuara a telefonar-lhe, a revelar-lhe, inutilmente, numa ansiedade masoquista, defeitos e virtudes. Chegara a dizer-lhe, numa das suas horas de confissão aberta, que, naquela noite em que a levara à casa da periferia, os telefonemas estranhos que de lá fizera se dirigiram à criada da sogra e à dilecta amiga de Leonilde, prevenindo-as de que chegaria mais tarde. Avisos. com ambas ia mantendo uma história amorosa. A criada, fora uma certa manhã ter com ele à casa de banho e ele transformara-se em lobo. com a outra... Afinal, estava provado que, quase todas as mulheres vulgares, nos seus Ímpetos, instintos e leviandades eram praticamente iguais. Ele tinha de as ir contentando com fugitivos afagos; criava situações embaraçosas, frequentemente. Queria libertar-se, mas receava cenas ou escândalos. E Marcela escutava-o, fazendo desenhos numa folha de papel - perfis, bocas, olhos, labirintos - e, quando olhava para o relógio e via que o telefonema se prolongava demasiado, dizia-Lhe, absorta: "Falas e falas como se me interessasse o teu viver... o teu ontem e hoje... tu próprio." Máximo enrouquecido replicava agreste: "Mas já te interessou, não?! Ou foi uma farsa, o teu desejo?!"
Um silêncio opaco. Marcela falava: "Temos que fazer e estamos a perder tempo. Se eu ainda sentisse por ti alguma coisa, dir-te-ia que telefonasses mais vezes à Rosa e à outra ou outras, mas mesmo o desejo já desapareceu, entendes?! Digamos adeus..."
Sem opressão, sem a mínima comoção, punha o auscultador no descanso e dobrava a folha onde agrupara desenhos simbólicos. Guardava todas as folhas, para mais tarde sorrir daqueles traços que lhe faziam lembrar pessoas, carreiros percorridos, pensamentos confusos que tivera e que lhe tinham deixado, porventura, rugas na alma.
Se continuava a escutar Máximo era (ela admitia-o) por especulação intelectual, por curiosidade mórbida, e, por algo submerso nela, que nela se ia dilatando como uma semente debaixo da terra.
As confidências singulares daquele homem, nem a exaltavam, nem já a mortificavam; a estação das agonias passara. Contudo, serviam-lhe para um melhor conhecimento do ser humano inconsequente, traidor e pérfido - e, esse conhecimento, bem poderia, algum dia, ser-lhe valioso...
Também ela tinha o seu vício, embora muito diverso do vício de Narcisa. Apreciava ouvir para saber tudo, para conhecer os lastros de bolor que existem dentro das criaturas. E, por aquilo que Máximo lhe ia relatando, num doentio esforço de a convencer a um reatamento, ela julgava muitos dos outros homens, conhecidos ou entrevistos nos caminhos que pisara. Não seria a vida da maioria muito semelhante à desse trampolineiro que desejava, possuía e de certo modo explorava as mulheres com que ia topando, não se coibindo mesmo de encontros-relâmpagos, no próprio lar da sogra, para satisfação da sua carne febril?! Talvez assim fosse.
Marcela precisava de actividade, movimento, em muitas horas, para sacudir de si a interior agitação tendente a perturbá-la. Aí punha de parte as traduções e lançava-se, como quem se lança numa corrida vertiginosa, nos mais duros trabalhos e arranjos da casa, até ficar exausta, tremente, pálida de fadiga. Ou então, escolhia uma boa receita de doce (gostava muito de doces) e distraía-se a prepará-la.
À tarde refugiava-se, ou num jardim pouco concorrido, ou numa sala de cinema. Ficando em casa (o que sucedia frequentes vezes), fechava as janelas, corria os pesados reposteiros de linho estampado e não atendia o telefone. A tarde pertencia-lhe. O sossego, em solidão, era para ela como um banho descongestionante e repousante.
Ainda lhe chegavam notícias (em toda a vida fulguram e se apagam, chamas de notícias, presságios, a recordação e o aviso, da hora passada e da hora que vai chegar) de Macário, o homem de quem se divorciara e que a perseguira tenaz e monstruosamente, e do hediondo Luís, um irmão sem carácter que a roubara. Não as retinha, porque não se considerava ligada, fosse pelo que fosse, ao passado, e construía, valorosamente o seu futuro, sem cavilações e sem amparos. Seria sempre sozinha, no ermo do mundo, livre, e gloriosamente independente na modéstia acertada e querida do seu viver. Não sabia o que seria a felicidade dos outros. Conhecia, porém, o que a ela proporcionava felicidade. Não são precisas muitas coisas para se viver...
Ela saíra de um cinema e caminhava, calma, sorvendo deliciada a aragem branda e aquecida.
Nas árvores da avenida o sol desmaiado fulgia ainda em pinceladas verdes-doiradas. Ouviu pronunciar o seu nome e automaticamente parou e voltou-se, irresoluta. A sua tranquilidade estilhaçara-se. Procurou uma fisionomia conhecida na multidão despreocupada golfada do cinema. "Leonardo?!" Leonardo vinha ao seu encontro, apressado, como se fugisse de sombras invisíveis e no entanto perseguidoras perigosas. No rosto vincava-se-lhe uma expressão diferente que ela não lhe conhecia. Um homem preocupado e envelhecido. Onde perdera ele os acenos alegres, a jovem provocação dos seus olhos buliçosos?!
Estendeu-lhe a face que ele beijou, estreitando-lhe os ombros.
Indiferentes, as pessoas ora os bloqueava, ora passavam, dando-lhes ligeiros encontrões.
- Estás admirada?! Ah! Marcela, eu estava quase doido por não te encontrar. O destino trouxe-me até aqui, num desespero danado. Estás maravilhosa, estás como ontem... Foi ontem que eu te ofereci rosas vermelhas do meu quintal... Foi mesmo ontem...
Sorria, envolvendo-a num olhar caricioso e simultaneamente intenso.
- Que surpresa, Leonardo! Poderia pensar em todos os encontros menos neste. Nem o meu dom divinatório me advertiu... Mas tu... modificaste-te... o que não admira... Outro clima, uma nova atitude perante a vida. Tudo rápido...
- E que grande modificação sofri, Marcela! Custou. Uma qualquer mudança exige adaptação. Foi difícil para mim... Mas não houve só uma mudança... Quero agora contar-te coisas espantosas com palavras velhas. Tu foste e és a mulher amada e amiga que deve saber escutar-me, hoje e sempre... Vê tu... Meti-me na política. Estou comprometido. Pertenço a um partido. Também estou em contacto com grandes elementos...
Marcela esboçou um breve gesto com a mão e com a cabeça. Ele estava a falar como se estivessem sozinhos num planalto distante.
- Não pudemos continuar aqui parados. Parece-me... que estou assombrada.
- Dá-me a tua mão. Sim, vamos andando. E, acredita-me. É verdade, tomei o caminho da política porque, também o perigo me seduz... Posso afirmar-te... Hoje sou um comunista.
- Não, Leonardo!
Parou, bruscamente, insegura. Abriu desmedidamente os olhos, como em presença de um monstro raro, numa admiração bizarra. Levou a mão esquerda à boca, tapando-a, com medo de pronunciar alguma frase irrecuperável.
- Marcela, um comunista é um homem que se dispõe a enfrentar perigos,que se defende de perseguições, que tem um ideal, que crê em muita coisa...
- Estou estonteada, eis tudo. Escuto-te e um turbilhão de pensamentos está no meu cérebro... Há muito, cheguei a escrever ao teu Bispo, bastante atormentada por tua causa... Respondeu-me e foi por ele que soube da tua morada, que guardei... Casaras... Deixaras de ser padre... E agora...
- Procedi tolamente, cobardemente, egoisticamente. Andaria, andava, realmente, desnorteado e com fome de carinhos. Perdoaste-me esse afastamento sem explicações?! Mas, explicações para quê?! Numa explicação há sempre mentira...
- Considerei-te um transfuga e lamentei-te. Um padre... Bem, depois, compreendi-te. E..., o teu matrimónio?!
- Não era bom padre, enredava-me em desejos da carne, e um mau padre que reconhece sê-lo deve deixar o sacerdócio. Só o que, não devia ter fugido naquela altura... O meu casamento foi um desastre. Pois desfez-se em ruinas, fracassei aí também, como talvez não podia deixar de ser. Tudo um disparate, Marcela. E eu podia ter escolhido... Fui desejado por mulheres de todas as idades que saltariam fogueiras a um gesto meu. Um padre, pensariam elas, sobretudo as mais temperamentais, ou exaltadas, ou levianas, não é um homem comprometido e poderá ser meu, só meu, para todas as orgias, para todo o sempre... O que algumas mulheres me sugeriram!... Olha que chegaram a perseguir-me, lá onde tu me conheceste, na cidade bucólica de lombas com sombras de oliveiras e pinheiros... Que precipitado eu fui, que infantil! Afinal, só se amará uma vez, com desejo, com paixão, com admiração e ternura.
- Não creio. Tu amaste?!
- Amei-te a ti. Hoje exalto-me com uma ideia, mas continuo, e nem sei se mais do que no passado, a querer-te, a precisar de ti em todos os sentidos. Tanta, tanta coisa importante que tenho para dizer-te! És a única mulher que conheço com capacidade de serena reflexão analítica. Tu compreendes tudo, tu sabes amparar...
- Leonardo, procuremos uma pastelaria. Quero ver-te bem de frente, olhar os teus olhos...
- Porque não vamos para tua casa?! Estaríamos lá em segurança, ao abrigo de indiscrições.
- Não... Não iremos para minha casa... Nunca mais.
Começaram a caminhar.
A sala relativamente pequena tinha algumas mesas devolutas. Foram sentar-se ao fundo, debaixo de um enorme espelho. Acenderam-se as luzes e o recanto ficou devassado.
Excitado, Leonardo perguntou abruptamente:
- E tu, tu que tanto tens lutado e sofrido humilhações não tens ideias de revolta?! Tens sido injustamente castigada, caluniada, vexada e roubada e não queres revoltar-te contra os ignóbeis, os canalhas que se julgam grandes só porque comem de várias gamelas e vão amealhando fortunas?! Eles não ganham, Marcela! O que interessa é viver na luta, é realizar depois de demolir. Não se diga a um oprimido que se cale perante os poderosos, mas que se revolte.
- Tenho, sem dúvida, ideias. Se não as tivesse, continuaria sozinha, quando há, ainda, tanto pulhastra a querer meter figuras?! Não é por prudência que me tenho calado. Quero continuar livre. Tu és um convicto?!
- Sou. Para tudo e em tudo.
- Eu... Tenho ideias de fraternidade pura e sã. Gostaria que os pobres deixassem de ser tão pobres, que os manipanços desaparecessem, que não se pavoneasse para aí gente com dois e três empregos sustentando ruidosamente duas e três casas, quando há criaturas vivendo de um magro emprego, em cubículos sórdidos. Sou contra as protecções e essas escandalosas atitudes de velhos podres e ricos que colocam bem as suas protegidas. E há os safardanas que aceitam isso, são venais, querem subir, também...
- Então estás comigo em muitas encruzilhadas de acerto! Ou estou eu contigo, pois que também sou pelos pobres, abominando os untuosos para os que mandam, e, essa catrefa de criaturas que nunca lutaram, nunca tiveram dificuldades, nunca provaram o pão que sabe a fel. E que me dizes, quanto às mulheres que estão regaladas em casa, muitas vezes a pensar em ultrajes ou abrindo a porta à traição?! Mas existem, também, as ricas, que detestam o lar e sob protecções ocupam empregos que se recusaram às que realmente precisam e querem trabalhar.
- Na época em que vivemos, não se admitem, na verdade, mulheres que não trabalhem, inúteis predispostas às vidas-duplas. Mas que queres?! A burguesia endinheirada não acabará, prolifera, e o capitalismo está triunfante. Nada se esclarece.
- Tudo será esclarecido. Preciso da tua presença, Marcela! Não para te catequisar, pois saberás o que queres, possuis carácter e dons. Até hoje, porém, terás exigido só amor, o amor de um homem que não existe... Perdoa-me... Também conheço um pouco de ti... Perdoas-me?!
Estendeu-lhe as mãos tão desastradamente que tombou o copo de limonada ainda meio; o copo resvalou para o chão quebrando-se, surdamente.
- Vê o que eu fiz...
- Não tem importância...
O criado aproximou-se recolheu os pedaços de vidro, silencioso e de rosto impenetrável. Um outro criado saiu do balcão e veio limpar o líquido entornado. Quando os criados se afastaram, Marcela continuou:
- Realmente quis o amor e a sinceridade... Tantos patifes que encontrei! Tu ainda não sabes que estive em Paris. Foi uma espécie de aventura, não premeditada, apressada mas extraordinária.
- Quando foi isso?!
- Há pouco tempo. Apesar de lá ter estado só uns escassos dias, voltei - como hei-de dizer-te?! - certamente mais evoluída e de personalidade mais forte. Aproveitei todas as horas. Trabalho agora com nova paixão e vou procurando algumas distracções. Tenho uma amiga que me solicita imenso e que é um verdadeiro poço de tremendos enigmas. vou descobrindo, nela e por ela, coisas estranhas e aparentemente absurdas. Hei-de falar-te mais dela... Mas, Leonardo, nem temos dado pelo passar das horas. É tarde. Olha esses rostos, sonolentos, de pálpebras amolecidas.
- Acompanho-te a casa.
- Não. Encontrar-nos-emos sempre que eu possa. Fui tua verdadeira amiga, sabes isso, tanto, que até escrevi ao teu Bispo quando deixaste de escrever-me... Senti-me inquieta, temi o pior.
- E foi o pior que me aconteceu. Que fuga miserável a minha.
- Nada de auto-acusação tardia. Compreendi-te. Conhecia-te o suficiente para saber como és sincero nas tuas precipitadas atitudes...
Levantaram-se e saíram para a avenida quase deserta varrida por um vento que parecia conduzido por espíritos atormentados. Marcela aconchegou ao corpo o casaco vermelho.
- Continuas elegante e jovem.
Ela sorriu, de perfil para a ventania.
- Despedimo-nos aqui. Até breve?!
- Amanhã telefono-te. Amanhã e sempre. A nossa história vai começar... Desejo viver contigo, apar das minhas actividades que apregoam liberdades e igualdades, uma grande história. Depende de ti...
Estava ela tão traumatizada pelas desilusões, tão céptica e fria que já nem sentia, como sentira, agudamente, no passado de que se afastara com enérgico desdém, a comoção de um reencontro inesperado, comportando curiosas surpresas?! A tristeza de Leonardo, no minuto da despedida, na avenida com guieira gelada, não despertara nela mais do que uma ténue ternura. Leonardo voltava outro homem, com efeito, um homem impulsionado por ideias revolucionárias, mas, por enquanto (e ficá-lo-ia algum dia?!) ela não estava absolutamente segura da seriedade e força dele. Não fora Leonardo um versátil, pisando deveres sagrados e intocáveis responsabilidades que assumira numa idade de ponderação e depois de uma longa preparação metódica?! Estaria ele certo de que poderia prosseguir na sua nova e perigosa cruzada?!
Não, não ficara demasiado comovida, de uma comoção de amizade e simpatia para com o seu viver actual, ao falar a Leonardo. Sucedera um estonteamento, e agora nela avultavam as impressões enterradas em si; naquele findar de tarde, ela, na penumbra da sua pequena casa amada "revia" os seres que conhecia, "revendo" os seus próprios sentimentos em relação a eles; pensava em Leonardo. Leonardo não permaneceria ainda numa dessas encruzilhadas "em que se cortam ou bifurcam dois caminhos, um dos quais sempre conduz à perdição"?! Ela sabia, de o ter lido e guardado na memória, que é "nas encruzilhadas que se invoca o Diabo, que se realizam os conciliábulos dos magos", tendentes a modificar a vida dos temerários. Leonardo encontrava-se numa encruzilhada...
Tinha a certeza, todavia, de que muito dentro dela existia, ainda, intacto, um singelo e bom sentimento por Leonardo, o estouvado Leonardo que ela já vira com as mãos gotejando sangue, ferido no desastre de automóvel, quando a vertigem o conduzia ao seu encontro. No futuro, intensificar-se-ia esse sentimento?! Que caminhos percorreriam eles, no futuro?!
O telefone tocava e ela não atendia. Relembrava Narcisa e sobressaltava-se. Seria uma lésbica?! Ou estaria Narcisa corrompida pelo "amor próprio" e pela "luxúria espiritual"?! Não estava ela agradada de si, da sua gentileza provocante, do seu encanto, como o estivera o velho e eternamente jovem Narciso - "espírito de negação" - ao ver a sua imagem reflectida inteira e nítida num espelho liquido?! A amiga acreditava em plenitudes básicas que eram erros fundamentais. Não a receava; gostava dela porque ela era audaciosa nas suas afirmações e verdadeira nos actos que praticava. Contudo, não queria que se tornassem regulares os seus encontros. Feroz na sua independência, assim também defendia a intimidade na solidão por ela criada. E, antes de tudo, precisava de muitas horas de silêncio e concentração para bem trabalhar, para preparar os esquemas a que obedeceriam os seus mais ínfimos gestos, já que, o ser-se sozinha, para do próprio trabalho se viver, obriga a um cultivo permanente de coragem e uma inquebrantável rigidez de ordenação e de princípios. Não importava que os ignaros e os infames incompetentes pudessem caluniá-la de qualquer modo; o que lhe interessava era ter a certeza de que vivia dignamente e de que não sofria, nem sofreria do "arrependimento tardio e impotente" de que falou Chateaubriand em "Os Mártires".
Cultivava aquela amizade caprichosamente; em casa de Narcisa, no seu convívio, ia conhecendo pessoas devassas mas respeitáveis, ia aprendendo com os maliciosos a sorrir, talvez um pouco hipocritamente, dos alegres comediantes que descontraídos se embriagavam, discretamente, no ambiente poluído.
Para melhor conseguir fazer-se escutar, Máximo começou a telefonar-lhe a horas diferentes das já consideradas habituais. Marcela ao dobrar o fio que ainda parecia ligá-los, sentia, frequentemente uma raiva surda contra si. Era absurdo continuar a ouvir as queixas e os segredos daquela alma leprosa. Porque não desligava o telefone logo que escutava a sua inconfundível voz rouca e áspera?! Talvez um dia soubesse (saberia, com certeza) o "porquê" daquela secreta concordância... Das suas divagações, recordou uma, especialmente, durante vários dias e com um certo estremecimento da carne. Máximo referira-lhe pormenores íntimos da sua infância vivida num meio rural; aí, ele conhecera o prazer do sexo com uma cachopita de uns doze anos ainda sem esquiço, sequer, do triângulo de Vénus atapetado. A seguir, assaltara-o o desejo da volúpia azougada de repetir o acto e fizera-o, em plena natureza, em matagais e em restolhos, junto de rios murmurantes, com fetos verdes e trémulos nas margens, mas com outras mocinhas de mais idade e cada uma delas com seu jeito de incipiente amorosa, todas seduzidas pela novidade voluptuosa que abrindo as suas carnes, despedaçava a monotonia das seus víveres amargos e rudes. com muitas realizara incompletamente o acto, por brincadeira, rindo, rolando sobre montes de palha seca e estoire] ante e de feno rescendente a aromas ácidos ou adocicados. E ele pouco mais tinha que doze anos... Tivera uma infância acidentada. A sua adolescência, instalado na cidade, logo que nele se manifestara a ambição e certamente a inveja pelos colegas de estudos, afortunados, que tinham mais dinheiro do que ele para gastar em divertimentos e guloseimas, já foi de trabalho obstinado, um trabalho compatível, embora, com a sua idade, habilitações e habilidades. Pensara bastante nessas longas exposições de Máximo. A sua imaginação levou-a a esses recantos bravios onde a violação acontecera, simples como um estrindente riso de alegria e dor, rápida como corisco a tinjir de sangue o espaço em tarde abrasadora de calor a desprender-se das entranhas da própria terra, das pampas roxas, das silveiras com amoras rijas e cobras a rastejaram sobre folhagens crepitantes.
Não teriam sido essas experiências sexuais a origem da actual volúpia insasiável do homem de arrefecidos sentimentos?! Não se habituara ele, desde criança à posse indiferenciada, à variedade?! Então, não precisava de mentir, de intrigar, de representar. Tudo lhe parecia normal, após a descoberta, o mergulhar no mistério, como o acto de comer ou de beber.
Marcela gostaria de sentir simpatia por aquele homem complicado. Escutava-o. Mas para que o escutava durante horas?! Eis o enigma que existia nela e que deveria procurar decifrar com urgência, antes que em Máximo se enraizasse a convicção de que ela continuava a desejá-lo fisicamente. Adiava. Adiou, e, por isso, não penetrou no segredo submerso em si em vida de Máximo...
A princípio, divertida, julgou aquilo uma sensacional brincadeira de Satanaz. Passada, porém, cerca de meia hora de observação, considerou o encontro simplesmente curioso. A ela já a conhecia; Máximo, ao apresentar-lha, uma tarde, no Banco, fora comedido nas frases empregadas e nem um músculo do rosto se lhe contraira; procedera como comediante impassível, seguro de ter há muito preparado o seu papel; ela era aquela mulher que, dançando uma noite com ele, numa "boite" superlotada, lhe confidenciara, numa lamúria de lascívia, que o marido, há tempos, não realizava com ela o acto carnal, por sentir-se frouxo... E ela sofria com isso... Máximo apertara-a convulsamente, desejando que o seu corpo, logo ali, entrasse no dela, para a consolar. Crepitava da excitação instigadora de posses. Sussurrara-lhe, num delírio, frases queimantes. Ela era amiga da mulher... O marido era seu amigo... Mas embatera nele o desejo... O amigo de Máximo, nunca o vira. Agora, contudo, ali o tinha ao alcance do olhar; poderia tocar-lhe. Um homenzinho irrequieto, indo de uns para outros, sorrindo pressuroso, fazendo-se notar. Não lhe pareceu totalmente impotente... (Marcela haveria de sorrir dessa sua suposição, ou argúcia no conhecimento dos homens...). Talvez tivesse recuperado, a perda transitória da virilidade seguindo o tratamento prescrito pelo psiquiatra que consultara na companhia de Máximo... Tinha um ar banal e um bigode ainda farto e bem pintado. As mãos acusavam certa sensibilidade. Ele movia-as quando falava. A descoberta desconsertou Marcela pois julgara aquele homem um perfeito cretino, de incoerências chocantes e consentimentos miseráveis. Examinava-o, seguia-lhe os gestos. Seria vaidoso mas não era estúpido.
Narcisa apresentara-lhe o casal (a mulher não dissera que a conhecia e ela também guardara silêncio) com a sua habitual versatilidade. Não trocara com eles mais de cinco ou seis palavras de cortezia. Conservara na sua mão, durante breves minutos, a impressão desagradável do contacto que tivera com a mão gorducha, flácida e suada da outra.
Fora sentar-se perto da Edite - a contista que, como sempre, ia gulosamente comendo os bons pedaços que estavam nos pratinhos postos ao seu alcance e bebendo bastante e com gosto.
Formavam-se e desfaziam-se grupos. Narcisa, com uma nova e longa boquilha de âmbar presa nos dentes, ria alto, num silvo esquisito. Os homens aproximavam-se dela, roçavam-lhe as espáduas desnudas, envolviam-lhe os cabelos nos seus hálitos espessos. Ela ria, semicerrando os olhos, as pálpebras pintadas de azul e lilaz cintilante. Clemente tomava-lhe um braço; comporia uma frase irónica ou francamente realista de subtil perversidade. E a pala escura do seu olho vasado (dissera-lhe que fora uma sua irmã que lho vasára, com a ponta de uma tesoura, tinha ele nove anos, durante uma briga infantil) estremecia com o seu riso ensousso; a boca arrepanhava-se-lhe num dilaceramento de músculos, toda a sua face esquerda ficava tensa.
Apercebeu-se de que o casal "íntimo" de Máximo começava a sentir-se contrafeito; sentiriam ambos, certamente, a sua atenção, a sua vigilância, concentrada e todavia discreta.
A muda e quieta perseguição de Marcela começava realmente a perturbá-los. Trocaram um olhar (onde estaria escondido o poder provocante daquela mulherzinha de um anafado grotesco?! Se Marcela pudesse, sentiria piedade por esse Máximo do egoismo e da fanfarrice, acorrentado à sensualidade, mas que só procurava para os seus prazeres mulheres casadas ou independentes, querendo o gozo gratuito. Que encantos teria ele encontrado naquela criatura baixa, de massas de gorduras, semelhando cogumelos, a extravasarem da cinta de mau corte?!...) breve. Ainda não era meia-noite. Viu-os abandonar a grande sala, com nuvens de fumo trespassadas por sons coloridos, odores misturados, e aquela comédia de gestos e de frases a elevarem-se, aqueles risos, aquele bambolear de nádegas de alguns e de jeitos dúbios de outros. Sairam, sem sequer se despedirem de Narcisa que nessa altura propunha um jogo de cartas. Iriam para novos encontros.
Sentia-se sufocar. Bruscamente, tudo aquilo lhe provocou uma imensa náuzea. Tinha de se retirar, de se afastar do ordinário que se expandia naquela sala debilmente iluminada. A "sábia" Edite, sentada quase a seu lado, ainda comia e bebia.
Narcisa acenou-lhe. Levantou-se, e magestosa caminhou por entre os grupos sem olhar especialmente ninguém.
- Estava a pensar em escapulir-me e é o que fou fazer. Esta gente é horrível.
- Mas são estas parelhas que representam, que constituem a sociedade actual! Fica mais um pouco. Quero apresentar-te um canastrão que tem fama de perigoso conquistador...
- Não me apresentes mais pessoas, peço-te. Obrigar-me-ás a fugir, a fugir-te...
- Tu não pertences ao número das fracas, tu nada temes, Marcela. Tens nojo das pessoas reles, está muito bem. Mas, aguenta um pouco... No fundo, é excitante conhecermos essa gentalha toda. E, os fundalhos que ela tem... Conversemos de bagatelas... Aí vem o canastrão...
- Ia ter consigo para lhe apresentar a minha amiga Marcela. Vão gostar de conhecer-se.
Narcisa segurava na mão esquerda bem tratada, a comprida boquilha com uma anilha de ouro na ponta e sorria, trocista, de queixo levantado.
Marcela viu curvar-se à sua frente um homem pesado, de ombros largos. A cabeça grande ergueu-se. Um rosto incaracterístico, onde avultavam uns óculos de vidros pretos
- uns óculos de cego. Uma voz roufenha. Bartolomeu da Silveira dizia-lhe trivialidades. Era Narcisa quem lhe respondia, com a sua arte eximia de compor trocadilhos atrevidos.
Marcela sentia as faces a arder. Devia estar escarlate. Aproximou-se um outro amigo de Narcisa. Então Marcela conseguiu ser natural, voltando-se e afastando-se.
Estava a vestir o casaco quando Bartolomeu, quase em cima da sua nuca lhe perguntou:
- Sai já?! Posso levá-la a sua casa?!
Deu um nó à "ècharpe", protegendo o pescoço; abotoou o casaco sem pressa. Parecia não dar pela presença do homem. Ele repetiu, insinuante:
- Posso levá-la a casa?! Tenho o meu carro perto. Ela avançou pelo corredor, abriu uma porta e fechou-a.
Conhecia perfeitamente a casa. Saiu pela escada de serviço, atravessou o jardim da casa, cujos arbustos e sombras, ao luar, eram minúsculas e misteriosas catedrais e empurrou a cancela que rangeu dolorida. Na rua transversal com barras de penumbra, uma rua tranquila e deserta, os seus passos faziam eco. Ainda estava a pouca distância do andar habitado por Narcisa e era como se já estivesse muito longe daquele ambiente mefítico onde homens e mulheres se roçavam, excitando-se com palavras picantes, olhares, fumo, jogatina, "salgados" e álcool.
O frio da noite, sem agressevidade, refrescava-lhe a fronte, libertava-lhe os cabelos dos cheiros detestados. De passo vivo, ela ia pensando que não devia aceitar tantos convites de Narcisa. Aquelas reuniões propiciavam deboches. Não consentiria em corromper-se!
Um gato vadio saltou para um muro e miou. Mais além dois cães tentavam morder-se. Animais da cidade. E a lua, magnifica, tudo iluminava plàcidamente.
Não havia movimento de carros nem de gente. Uma estranha opressão secava a garganta da mulher sozinha que de olhos prescrutadores ia avançando, destemida.
Pouco passaria da meia-noite; chegara depressa a casa e rapidamente se preparara, para dormir. A campainha da porta sobressaltou-a. Obedeceu a reflexos subitâneos. Correu até ao corredor, inquiriu, aflita: "Quem é?!" Pôs-se nos bicos dos pés, aconchegando ao corpo a transparente camisa de noite, branca, com um cabeção de rendas preciosas e toda plissada. Uma voz baça respondeu: "Sou eu... Bartolomeu... Gostava de falar-lhe."
Gritou, nervosa: "Vá-se embora. Não abrirei a porta." O homem tocou novamente. Ela, a tremer, deitou-se. O telefone chamava-a. Atendeu. Era ainda o odioso Bartolomeu, o dos óculos pretos de cego. Teimava, numa voz pueril, em querer falar-lhe. O que ele desejava era violar a sua intimidade, era...
Cheia de ódio, insultou-o. Mas até às duas horas da manhã o biltre insistiu, quer tocando-lhe na campainha da porta, batendo até com a mão na madeira, quer fazendo retinir, num alarme irritante, a campainha do telefone que, na casa silenciosa, ganhava estridências de apelo confrangedor. Foi preciso ameaçá-lo com a polícia. Entretanto, os vizinhos do lado esquerdo levantavam-se, acendiam luzes, escutavam. Finalmente, tudo serenou. E ela conseguiu adormecer, esquecendo-se por algumas horas do vivo pesadelo que a atormentara.
Um dia. Mais um dia. Dormira, estivera mergulhada num longo sono pesado, mas acordara inquieta e ao levantar-se sentira a cabeça como que atordoada. Meteu-se imediatamente num banho quente, com a água a rasar-lhe as orelhas pequenas e bonitas e aí permaneceu cerca de um quarto de hora. Saltou, ligeira, enxugou a pele rosada e macia e em seguida deu a todo o corpo uma boa fricção com água de colónia de aromas florais. A sensação de plenitude que logo sentiu, impulsionou-a para o trabalho.
Só à tarde, numa hora de lazer absoluto, pensou profundamente no atrevimento de Bartolomeu e na festa da noite anterior, nas pessoas que encontrara em casa de Narcisa, na própria Narcisa, cativante, intrigante, sinuosa, atraente apesar de tudo. A ela que não estava habituada a frequentar aqueles meios, parecia-lhe extraordinário que afluissem tantas pessoas, algumas de posição, àquelas reuniões de bambochata e uma certa espécie de degradação.
Prometia-se afastar-se o mais possível do que não lhe convinha. Também a sua vida de trabalho estava em desacordo com esse "mundo" de diversão estúpida, onde as criaturas se cruzavam com "snobismo", para a trapaça de todos os sentimentos. Nada daquilo lhe interessava. Cultivaria a simpatia de Narcisa porque a sua curiosidade se mantinha insatisfeita. Narcisa era a mulher-enigma que todos os degenerados e estultos procuravam; uma coluna soberba a servir de ponto de referência para o encontro dos bajuladores e dos sátrapas de sempre.
Pegou numa revista; folheou-a. Pô-la de parte e tomou o livro que andava a ler. De tal modo mergulhou na leitura que só se apercebeu que à sua volta se formavam hiatos de escuridão quando o telefone tocou, numa crepitação seca na saleta fechada. De fora, pelos vidros de cortinas afastadas, ainda vinha até ela uma pálida claridade; acenderam-se as lâmpadas dos candeeiros da rua.
Hesitou. Resolutamente, porém, pegou no auscultador, num gesto de desafio. Aguardou que alguém falasse, como quem, solene, espera o ataque para se defender.
- Está, está?!
- Quem fala?! (a sua voz era fria, imperiosa).
- Bartolomeu... Recorda-se, certamente... Não me quererá mal...
Desligou abruptamente o telefone. Uma grande raiva percorreu-lhe os nervos, fê-la apertar os punhos. "Nem em minha casa me deixarão jamais sossegada?! O que autoriza aquele marmanjo a perseguir-me, a querer ultrajar-me?! Que cobarde, que atrevido..."
Para que a tensão dos nervos (a sua boca fremia, ardente), repentinamente deflagrada, diminuísse e se apagasse (sentia nela como que um fogo, de revolta), Marcela não encontrou nada melhor do que recorrer a um trabalho físico. Ligou o ferro eléctrico e engomou várias peças de uso doméstico e alguns vestidos. Serenada, voltou à leitura, até que se sentiu necessitada de repouso.
Antes de adormecer pensou no que teria de fazer na manhã seguinte. Aquele era um seu breve exercício mental que realizava todas as noites, mesmo que se deitasse tarde. Pensando no trabalho, adormeceu enfim tranquilamente, no seu largo leito sem outro calor para além daquele que se desprendia do seu corpo de pele ambarina e acetinada.
A grande preocupação de Marcela, no fim daquela manhã, era a ideia persistente do encontro que teria à tarde com Leonardo. Escrevia a Adriana, mas o seu pensamento estava em Leonardo, na carta misteriosa que dele recebera. Não conseguia uma concentração perfeita. Excitada. Flutuante. Podia dizer-se que era um barco desgovernado, oscilante entre duas distantes margens. Adriana estranharia aquela página de curtos parágrafos como de quem nada tem para dizer. Não deixaria de enviá-la Assim como a rapariga se revelava nas suas cartas, também a iria conhecendo (ou procurando conhecê-la) melhor através das suas páginas, do que lhe escrevia, em horas pacificadas ou de confusões espirituais.
Terminou, dizendo-lhe: "Ficarás abismada, mas não te inquietes. Nada, por agora, de amargo ou de dramático sucede. Apenas me sinto particularmente nervosa - como quando o meu poder divinatório me tem advertido de que uma novidade qualquer, boa ou má, vai chegar. Escreve. Escreve muito e diz muita coisa".
Suspirou. A que longínquas paisagens ia ter o seu pensamento, abrindo caminhos, surpreendendo situações invulgares?! Voltava a Leonardo; e não conseguia adivinhar qual seria o seu estado actual.
Também desejava falar-lhe; também queria dizer-lhe verdades que nela permaneciam ocultas. Iria dizê-las?!
Chegou, ao local designado, antes dele, o que gerou em si uma inesperada confusão. Sentou-se a um dos cantos e nem atinou logo com o que deveria pedir. Tamborilou com os dedos na mesa de mármore, estendeu os lábios e espremeu-os, até que pediu, com desinteresse, um sumo de ananaz.
Não olhava para a entrada, receando que alguém notasse a perturbação dos seus olhos anciosos e naturalmente escurecidos pela comoção que a tomava. Censurava-se: "Estou a proceder como uma adolescente que chega cedo ao encontro que terá com o seu amado. Que tolice. Imponho-me calma e deixo que os nervos se vão estilhaçando".
Bebeu o sumo lentamente, quase o mastigou, e poisou o copo, num gesto precipitado e involuntário, precisamente quando os olhos e a boca de Leonardo lhe sorriram por debaixo da pala dura e caída do boné que ele trazia.
Leonardo sentou-se, tomou-lhe os pulsos, fitou-a na testa (o que queria ele encobrir-lhe?!).
- Fiz-te esperar muito?! Desculpa o atrazo deste vagabundo...
- Cheguei à pedaço... Fica-te bem esse boné... Transforma-te a fisionomia...
- Talvez... Isto de farpelas é como as comidas. "Diz-me o que comes e dir-te-ei quem és"...
- A frase de Savarin é diferente... "O homem é o que come".
Sorria-lhe.
- Ainda melhor se adapta às pessoas e ao que elas usam, aí tens... Creio que o homem é o que veste, pelo menos em certas alturas... Olha, este boné tem uma história... Em mim tudo tem histórias... Um amigo meu que reside em Paris, trouxe-o da Polónia onde esteve a frequentar um curso de cinema... Mandou-mo, e eu, só o tiro da cabeça, para dormir... quando durmo num quarto...
Agora olhavam-se bem no rosto e sorriam, como jovens sem incertezas, sem problemas, sem chagas ou cicatrizes de desilusões.
- Conta-me o que tens feito, o que te tem acontecido.
- Para isso te pedi que viesses. Sabes que me intriga o facto de não quereres que vá a tua casa?! Eu tomaria precauções. Sê franca. Que se passa?!
- com certeza que te falarei francamente. Mais nenhum homem entrará em minha casa, porque sou sozinha e quero defender a minha solidão. Assim, defender-me-ei a mim mesma. Evitarei os ataques dos malandrins cobardes que à entrada sorriem e à saída se escapam como ladrões cautelosos. Esquecerei melhor, totalmente, o que quero esquecer do passado nesta vigilante e permanente defesa.
- Não julgues os homens todos iguais, no abuso, na maldade, na perversidade, na traição infame, na sórdida havareza e nesse querer constante de conspurcar, impunemente.
- Não, não julgo todos os homens patifes, mas o certo é que ainda não encontrei homens dignos. São uns aviltadores, uns tratantes ignóbeis que me enojam.
- Tu és um homem diferente Leonardo... Desculpa...
- Sentir-me-ei feliz quando de ti se desprender todo o ódio, quando ganhares uma outra pele e quizeres lutar com força..., com mais força ainda...
- Já me julgo sem rancores. E no entanto, as perseguições continuam, como se o meu caminho não fosse outro senão um caminho de precipícios e silveirais enredadores. Lutar?! Tenho lutado sempre, valorosamente. Mas... Conta-me coisas de ti, do teu presente...
- Aproximo-me dos que acreditam ou podem vir a acreditar num viver sem tiranias, sem desordenadas opressões, sem mordaças, um viver livre, num mundo de harmonias, organizado, onde o homem possa proclamar a sua verdade, sem que o privem da voz. Sou um homem de bem, Marcela. Descobri caminhos e procuro, com apoios e apoiando, o equilíbrio e a segurança para os que amanhã continuarão a batalha.
- És uma espécie de semeador de palavras...
- Talvez. Um grande semeador de ideias, em todo o caso.
- Longe que tu estás do homem que conheci lá na igreja silenciosa, palhetada de cores luminosas, numa tarde de melancolia, para mim.
- Modificamo-nos, ou porque a nossa inteligência o impõe, ou porque o nosso temperamento o exige, ou também porque, as criaturas, os acontecimentos, as descobertas, nos levaram a profundas análizes e a um sério afirmar de valores que tinhamos desprezado ou que ignorávamos.
- Tens razão. Contudo, não te julgava capaz de um tamanho salto, apesar das decisões que tomaste depois de me conheceres.
- Foste, não há dúvida, o rastilho que propiciou a eclosão... Se não te tivesse desejado apaixonadamente, continuaria, certamente, aquele degradado viver de rotina, escutando, em muitos dias, as mais tolas confissões... Olha que havia uma dama, que aliás conhecia pessoalmente, que, várias manhãs durante a semana, ia ajoelhar-se junto ao meu confissionário, para me dizer, em sussurros suspirados, e provocantes, que na noite anterior pecara, entregando-se ao marido.
- Fantástico. E tu que lhe dizias?!
- Já não estou sob... o jugo antigo... Pois bem, eu, excitado exortava-a: "Mas minha irmã, Nosso Senhor Jesus Cristo pregou a multiplicação dos seres! Não está a pecar..."
- Eras bastante novo...
Leonardo riu sob a pala do boné azul escuro.
- E agora sou velho?!
O riso de ambos possuia ainda muito da infantil alegria de anos antes. Eles entendiam-se e estimavam-se através dos seus olhos brilhantes, dos gestos rápidos das mãos que se tocavam e logo se afastavam.
- Precisarei sempre de ti.
- Nada de frases pomposas... Entre nós, no futuro, tudo acontecerá simplesmente. Afinal, estamos amadurecidos. De maneira diferente, as decepções que sofremos ensinaram-nos a aceitar a vida com nova filosofia. Ainda somos tentados pelos abismos, é verdade... Eu...
- O futuro, Marcela! O que nos reservará o amanhã?! Eu não quero apenas ser um elo de cadeia, uma ponte de ligação. Quero acção, e quero estender a minha mão, e saber que posso estendê-la, a todos os que souberem olhar de frente o seu semelhante sem a mínima dessimulação. O confissionário revelou-me muito das mulheres, e, o trabalho que depois tive de aceitar para me manter ensinou-me a conhecer os homens, a sua pequenez hedionda, as suas congénitas misérias, as suas adquiridas rapacidades. Gosto de falar contigo, Marcela, porque tu sabes acompanhar-me... Hei-de procurar-te mais vezes... Nunca me repilas...
- Não... Creio que a amizade por alguém pode correr-nos no sangue, como seiva que aquece e gera impulsos de... ternura. Mas não deverás pedir-me mais do que compreensão e amizade...
- Não sou eu apenas que estou muito diferente...
- Até nos poderemos modificar de um dia para o outro. Uma dor ou uma alegria, são o suficiente... Não te disse já isto?!
- Aquela tua viagem... E o que me ocultas (porque não reprimia o seu ciúme e contava apenas o que tinha para contar, ficando mais aliviado?!)...
- Que te oculto eu, Leonardo?! Sob todos os aspectos, a tua vida é mais estranha do que a minha. Nem tem comparação.
- Diz-me que acreditas em mim!
- Queria dizer-te inúmeras coisas, mas por enquanto não digo... Acreditar em ti... Acreditar nos teus ideais?! Não... Os políticos vivem da política... Às vezes também sonho com um mundo de novas sinceridades, de uma fraternidade não corrompida. Sinceridade em tudo, Leonardo, e não o agir e obedecer por obrigação...
- Se pudesses ser a minha própria pele! Desculpa-me. Nem podes supor a tristeza que acaba de me encher o coração... Mas agora, vamos falar de mim próprio...
Tinha de aceitar mais trabalho para poder transformar em realidade os projectos em que ia pensando cada dia com mais intensidade. Uma viagem, para ela, não seria uma evasão, ou, muito simplesmente, um precipitado salto para um ponto distante do trivial, como o que dera até Paris,nesse Agosto com longes cor de enxofre e tremulinas vermelhas na aragem sufocante. Faria propostas para ilustrar obras interessantes. Se fossem aceites, o seu desafogo material seria maior. Também poderia fazer mais traduções, ficando, desse modo, com as horas quase preenchidas. Tudo a entusiasmava, incluindo o demónio da facilidade que a levava a trabalhar, sem esforço e sem fadiga, manhãs que começavam às sete horas e terminavam às duas da tarde.
Afastava-se bastante dos torvelinhos dos hipócritas e sentia-se em segurança. O seu ardente desejo de amar como que se pacificava nesses períodos longos de concentração mental; mas se Máximo lhe telefonava, a sua paz interior era despedaçada e a sua força embora não se debilitasse ou sucumbisse, ficava momentaneamente abalada. E não era porque as palavras do homem, por vezes repugnantes no seu realismo, despertassem nela quaisquer sentimentos de aproximação, mas sim porque a obrigavam a pensar nas monstruosas atitudes de alguns homens que, com as suas fomes animalescas, tinham tentado aniquilá-la, destrui-la para a maravilhosa emoção de viver com plena alegria. Muitas vezes, realmente, desligava o telefone, ouvindo a voz de Máximo (obedecia a reflexos incompreensiveis), mas, muitas vezes, também, ficava-se a escutá-lo, sentada à sua pequena secretária, olhando as peças distribuídas pelos cinco cacifos, aparentemente distraida. Confessava-se que, era uma curiosidade estranha que a obrigava a ouvir as espantosas revelações do homem que tanto lhe mentira numa estação grave da sua vida de mulher desamparada; uma curiosidade talvez mórbida, através da qual penetrava, insensivelmente, no mistério de vidas sórdidas de convulsos e inesperados gritos logo abafados pela imposição do orgulho. E assim, no deslizar rápido dos dias de horas crepitantes e estimulantes ansiedades, Marcela ia vivendo os seus grandes sonhos de mulher, com repetidas comoções e inflamados desejos que ciosamente guardavaMas, começaria a latejar nela algo de obscuro que a obrigava a escutar e a reter as avalanches de palavras de Máximo?! Ele era torrencial, quase sempre. Falava como se tivesse os minutos contados e receasse não poder dizer tudo quanto o sufocava. Não, não era com total desinteresse que ia ouvindo Máximo e que, muitas vezes até se alarmava, ambicionando um novo encontro (que viria a dar-se). Seria para um exame de reacções?! Não esclarecia os seus intuitos. E chegou a pensar que gostava das confissões de pecado que ele lhe fazia, nem sempre limpas de uma atordoante sensualidade... Se ele tivesse deixado de telefonar-lhe...
Confidenciando a Adriana aquele seu desejo novo e suplementar de alargar e aprofundar os seus conhecimentos dos seres humanos e do mundo, a moça logo lhe respondeu, incitando-a, vibrantemente, a não deixar esmorecer a chama que a animava - "Não se pode trabalhar sempre, não se pode viver só com o pensamento no trabalho. É preciso ter-se uma luz que não vacile; uma luz que nos alumie, e, aqueça" - escrevia a rapariga com a sua habitual veemência.
Bruscamente, também ela deixou de manifestar revolta e rancor pelo que considerava ilícito e baixo, contra aqueles que, com astúcia ou por medo, iam representando as suas farsas; e isso espantou Marcela, primeiro, para depois razoavelmente pensar que Adriana ia aceitando o meio em que vivia, e, amava.
Preparava-se para pôr em prática os seus planos de alargamento de trabalho quando Narcisa lhe propôs aceitar a realização de uma série de ilustrações que não estava interessada em fazer, porque se encontrava, na verdade, assoberbada com compromissos de vária ordem.
- Sei que és capaz de as realizar de modo a agradarem plenamente. Tens imaginação, tens sensibilidade e tens intuição e gostas de trabalhar. São factores e são virtudes importantes que não se encontram facilmente. Aceitas?! A oportunidade é boa.
- vou tentar fazer o melhor possível. Não há um tempo-limite para a entrega?!
- Pois isso é que há. Trata-se de um trabalho que deve ser entregue no prazo de dois meses.
- Aceito. Combina tudo.
Narcisa viera a casa de Marcela e esta pressentiu que a amiga teria algum problema preocupante de difícil solução. Subtilmente inquiriu:
- Não te sentes bem?! Acho-te hoje menos expansiva.
- Sinto-me neurasténica! Esgoto-me nessas reuniões de histriões que a nada conduzem mas de que todos gostam. Habituei-me a elas... Eu convido porque detesto a solidão e sou vaidosa - sinto-me grande no meio dos pequenos palhaços! - eles convidam por ostentação e para conservarem as relações em que tem interesse. É tudo um jogo, uma comédia idiota, uma tramóia, mas é assim que se vive. Tu, tens mais bom senso, isso tens...
- Detesto as falsidades e nessas reuniões - nas tuas ainda não encontrei outra coisa.
- As pessoas estão podres, é certo. Mas que queres?! Não se pode viver isolado, parece-me que já tu disse...; deixa-se de existir se não damos que falar... Tu, com os teus retraimentos, és um caso único...
- Vim de longe...
- Sabes o que está a acontecer?! Sinto-me bem aqui em tua casa. Respira-se tranquilidade, o teu perfume é exquisito e bom. Estou a sentir-me como quem acorda de um pesadelo e pode distender os membros e sorrir...
- Óptimo. Música?! Queres ouvir Léo Ferré, ou Barbará?! Ouvio-o a ele no "Bobino", a ela no "Olympia". Ele é um homem de aparência vulgar mas tem uma bela cabeça grisalha e ela é soberba...
- Ouçamos Léo Ferré...
Marcela ligou o gira-discos, colocou o disco e foi preparar bebidas. Ao retornar à sala-escritório, teve um sobressalto, um pasmo tão grande que ia deixando cair a bandeja circular onde puzera os copos. Aquilo não era inédito; contudo, voltava a surpreendê-la Narcisa tinha aos pés o vestido de veludo negro e afagava os seios de bicos cor de rosa sobressaindo da rodela acastanhada; o seu púbis de fino velo, era uma flor espalmada que alongara duas pétalas até às pernas ligeiramente afastadas. A silhueta recortava-se na claridade da janela.
Narcisa abandonou os seios, ergueu os braços. Enfiava os dedos nos cabelos e quebrava os rins num jeito voluptuoso.
- Não esperas ninguém?!
- Oh!... Não... Mas não vais ficar assim... Já te tinha visto uma vez, chegava... És uma exibicionista!
- Poisa essa bandeja, não sejas ridícula. É através do corpo que se conhece a alma, fica-o sabendo.
O riso nervoso que rebentou então na boca de Marcela não ofendeu ou perturbou Narcisa que foi até à janela, cerrando os reposteiros.
- É doce este ambiente. A "neura" desapareceu de mim como um quebranto que se evaporasse.
Estendeu os braços longos.
Como a advertência encarnada de um sinal de perigo a campainha do telefone vibrou, retiniu e alarmou, e arrefeceu o riso que estalava na boca de Marcela (o riso, uma arma). Narcisa elevou os ombros e torceu os lábios. Intimamente, Marcela louvou os fios que transmitiam mensagens, a chamada desconhecida, aquela borboleta de asas mortas que tantas vezes detestava.
Ficara indignada, é certo, mas não chegara a sentir revolta ou um desses ímpetos de raiva destruidora que no passado lhe tinham sido peculiares, levando-a a tomar atitudes de declarado ataque, de autodefesa, ou de uma brusquidão chocante.
Macário dera a sua direcção a várias entidades; e, assim, quase todas as semanas chegavam cartas e convites, dirigidos a Macário que mercê das directrises políticas que por interesse defendia e seguia, lograra excelentes empregos, desses empregos que facilitam as relações e os conhecimentos e dão muito dinheiro.
As cartas com remetente devolvia-as. As outras, colocava-as numa papeleira de parede, de madeira escura, que adquirira num antiquário.
Não sabia, exactamente, para que guardava aquelas cartas. Estaria no seu subconsciente, sem dúvida, a prevenção antiga. De Macário só poderia vir-lhe mal. Talvez um dia, as cartas fechadas se transmudassem em documentos preciosos, mesmo que Macário se esquecesse de continuar a molestá-la.
E, para além disso, não se davam alarmantes acontecimentos na vida de Marcela que em certos dias se sentia invadida por um nervosismo que exigia dela movimento. Então deixava as traduções ou punha de parte os desenhos, e, até se sentir veramente cansada, repetia a "receita" que inventara para uso próprio: limpava e arrumava a casa, sacudia tapetes e espanejava os móveis. Precisava do exercício físico para acalmar o ardor que lhe queimava a própria pele. Renunciar ao amor ou à ilusão de amar não era afinal muito fácil e Marcela sentia-o, profundamente, asperamente, em todos os seus membros ágeis, no mais recôndito do seu corpo jovem e crepitante de desejos. Também não podia apagar lembranças e algumas visões a atormentavam. Trabalhava até a um quase desfalecimento, mas mesmo assim, o dilacerante desejo continuava a persegui-la, a pungi-la, embora em grau diferente. Odiava-se, realmente, pelo seu temperamento. Simultaneamente, porém, cerrava as pálpebras, num tremor de angústia e prazer, sentindo em si um palpitar repleto de ansiedades.
Poderia ela trabalhar como trabalhava, se fosse mulher fria, calculista, ardilosa e ambiciosa como a maioria das mulheres que apenas procuram entendimentos por interesse material, e, que, desonestas, chegam a viver à custa dos viciosos ricos, bem colocados, ou dos velhos endinheirados de ilusões cabotinas?! Não devia odiar-se, nem desesperar-se... O que se lhe impunha era criar e cultivar a esperança em algo promitente, numa realidade que ainda poderia alcançar, fosse quando fosse.
Ocultava o turbilhão espantoso de desejos, que lhe dava maior fluidez ao sangue, à jovem Adriana que ia reclamando as suas notícias. A rapariga escrevia-lhe com regularidade, pondo-a ao corrente do que pensava, do que ambicionava, do que acontecia à família irremediavelmente separada. O tempo entretanto, era de facto a areia ou o vento que se vai sumindo continuamente, ficando morto sob crostas de nada.
Numa certa altura, Adriana alongou-se imenso numa carta de várias páginas. Anselmo regressara da Guiné e para angústia dos pais, não quizera continuar os estudos. Empregara-se facilmente e no curso interrompido não desejava sequer ouvir falar. Estava amadurecido, raciocinando como um homem amargo e céptico de muita coisa. Relembrando a adolescência, ele não compreendia como fora então covarde, pusilânime, obedecendo às tolas exigências dos pais. Não é talhada pelos pais a sorte dos filhos.
Adriana sentia-se alegre. O amor de Anselmo impulsionava-se, dava-lhe asas para maravilhosos voos permitidos. com o amor de Anselmo, que passara por várias provações, ela mais nada desejava - a não ser a felicidade compartilhada, o viverem um para o outro.
Não lhe foi indiferente a alegria da jovem que estimava, que passara a amar como se ela fosse ou pudesse ser, sua filha. Era esse o sentimento puro que latejava agora nela.
A sua carta, naquela semana, também foi grande; o que escreveu, brotou-lhe do coração. Adriana há muito deixara de ser criança. Falou-lhe, nas páginas que sensatamente encheu de caracteres, como vidente segura dos seus vaticínios. Ela seria feliz com Anselmo, porque nascera para um amor simples, sem limitações.
A raiz antiga do seu amor pela mãe desconhecida ainda estaria nela?! Permaneceria, certamente, e só esse tenaz e humano sentimento poderia favorecer nela pesares ocultos ou furtuitas melancolias.
Pensou num episódio que soubera por Adriana e que arripiara de tal modo a rapariga que esta tivera então momentos de hesitação, quanto a seguir o curso de medicina, que, afinal não concluiria. Uma jovem médica chamada Leónia, com boa clientela, cometera dois crimes terríveis que ninguém punira. Leónia formara-se cedo; fora galopante a sua subida ao prestigio e à fama. Vivia com os pais no alto da cidade. Um dia a mãe deixou de ser vista, não aparecia. Ela informou os conhecidos de que a mãe adoecera, que deveria conservar-se no leito. Na vivenda rodeada por um jardim com muros e grades e um portão de ferro, só a médica e o pai entravam. Passaram alguns anos e nunca se soube quem descobrira o que de monstruoso se passava na vivenda que flamejava a todos os sóis. Leónia fechara a mãe num quarto interior, de arrecadações, mantendo-a completamente isolada. A comida dava-lha o marido, por um postigo aberto na porta. E isto, porque Leónia e o pai se amavam incestuosamente. Quando a mãe morreu a médica afirmou que a mãe entrevada, sucumbira a um ataque cardíaco. Continuou na vivenda, com o pai, que ao chegar da noite, impaciente, entrava e saía de casa, ia até ao portão do jardim, ancioso pelo regresso da filha - que nunca se casou. A sua clientela não diminuira, pois era uma grande operadora; nunca o seu bisturi errara um golpe. Contudo, embora conhecessem a perícia das suas mãos, muitas mulheres a detestavam secretamente. Adriana conhecera a médica Leónia e perante a mulher pálida, de rosto inteligente - olhos e boca de expressão enérgica - delgada e de estatura regular, duvidara do que se propalara, nunca abertamente. O viver da mãe de Leónia, fora um mistério. Depois do sobressalto de repulsa, a dúvida, e, também um recuo instintivo. Por outro motivo, porém, não triunfaria o seu desejo de se emancipar e destacar pelos estudos...
Mais tarde a rapariga aceitaria, com piedade burguesa ou compreensão desinteressada, sem surdas recriminações, sem nojo, sem revoltas, as acções, as atitudes horríveis das pessoas. Verificando que nem os inteligentes escapam ao incalculável poder ou força do sexo, fogem ao crime de possuírem o que nunca deveriam ter desejado, teria apenas palavras de uma reprovação débil e banal...
Marcela, com estes e outros pensamentos desculpava-se a si mesma e desculpava as criaturas pecadoras, tiranizadas pelos sentidos e aberrantes, de quem já ouvira falar, que conhecera e conhecia. Não gostava ela (tudo lhe perdoando) de Narcisa, apesar de conhecer a hediondez do viver da amiga?! E acaso sentia um visceral despreso por Máximo?! E os outros?! Esses todos que a tinham perseguido e maculado?! E aqueles que ainda pretendiam aviltá-la, como o leviano Bartolomeu, casado com uma mulher nevrótica que internara num manicómio e que quizera forçar-lhe a porta, numa noite inquietante?! Só em noites seguintes, bizarramente, tivera pesadelos assustadores. Caminhava por estradas imensas que se transformavam em rios de volumosas águas escuras com redemoinhos orlados a espuma. As águas envolviam-na} subiam-lhe ao peito e à garganta e ela queria gritar e não tinha voz. Depois, uma força oculta a arremessava para uma casa sombria, com muitas portas, muitos quartos, muitas janelas fechadas, uma casa sem telhado. Nesta prisão ela erguia a cabeça e via sobre si um céu latuádo, ameaçador, prestes a deslocar-se, a cair-lhe em cima - uma pedra tumular. E a sua garganta permanecia afónica, e as suas mãos estavam hirtas de pavor. A seguir, viera o túnel. Um largo e comprido túnel fuliginoso, viscoso, com sapos verdes e brilhantes a saltarem à sua frente, a evitarem que ela saísse dali depressa. Corria. Os seus olhos dilatavam-se e arrefeciam. Longe, abria-se, satânicamente, uma boca de sangue. Acordava despida, com a pele úmida de transpiração quente. Debilitada e angustiada.
Não procurara o biltre para lhe perguntar a razão do seu procedimento. Alguns meses mais tarde o homem ficara viuvo, e, logo uns três meses sobre o luto casara novamente. Encontrara carácter igual ao seu... Tudo depressa, enquanto o apodrecido entusiasmo não morresse... Mas... casamento é coisa séria, que fornece seriedade às pessoas...
Julgava-se psicóloga; ser psicólogo é mais um dom congénito do que realidade de conhecimentos adquiridos ou produto de profundos e sérios estudos. Não seria psicóloga, pois raramente descobria e acertava com a verdadeira índole das criaturas com quem falava ou convivia. Erradamente pensava que o carácter das criaturas pode denunciar-se facilmente, e, que, a impressão inicial, no contacto com um dês- conhecido pode, até certo ponto, considerar-se válida. Enganava-se.
Não, Marcela já não fervia em fúrias, desejando que os patifes fossem destruídos, exautorados, na via pública. Resignava-se à sua condição de mulher sem amparos, condenada a ver, a sentir, a sofrer, as injúrias da miserável humanidade. Que poderia ela fazer mais do que trabalhar para viver?! Fugir de todos, seria cobardia completa.
O que a deslumbrava agora, mais do que todos os sonhos de tangível ou inalcansável beleza em climas de luz sem vozes, era a ideia de poder viajar, de poder admirar, para se maravilhar, guardando avaramente as suas emoções, tudo ou alguma coisa, do que há de fascinante no mundo. Ao pintor vagabundo, a Àttila, o mexicano que conhecera em Paris, "eterno estudante", sem quaisquer embaraços ou compromissos perante a vida, devia aquele desejo ardente que a assaltava em muitas horas: viajar, ir ao encontro do inesperado e do invulgar, com o entusiasmo virgem, romântico, primitivo, daqueles que anciosos tinham abandonado refúgios certos, procurando o sol, a pujante natureza, os vales, as serras, os mares, os doirados areais, as cidades cosmopolitas... Eram dias de alegria, aqueles em que recebia notícias do jovem homem que só se dispunha a vender esquiços e quadros quando já não tinha que comer. Mesmo vestido com fatos a esfiamparem-se, era interessante, sedutor. Uma fronte lisa, marfínica, os olhos sorridentes na angulosa face, jeitos brandos de um caminhante seguro de não se enganar nas estradas por onde tomava; seria um génio, desprendido da vulgaridade.
Ela, idealizando, já vivia a exaltada felicidade de se perder e de se encontrar sozinha em cidades de arte e de lenda, de encantos magníficos e imperiosas solicitações. E, não rompiam, também, ainda outros novos desejos dentro dela?!
O seu ardor no trabalho redobrava. A sua força interior aumentava e com os seus prodígios de economia verificava que as suas reservas materiais iam perfazendo somas apreciáveis.
Trabalhava, saía, conversava, passeava, mas sempre apressada, sempre indagadora, sempre enérgica, como se tudo e todos não fossem mais do que páginas que ia lendo, de um livro desfeito, páginas a desprenderem-se, a soltarem-se nos espaços ficando para trás, caindo longe, amarelecendo, bloqueadas, algures, condenadas a esquecimentos prematuros e magoados e talvez irremediáveis. Dir-se-ia que desejava aproveitar todos os minutos da vida, agora, simplesmente em proveito de si própria, num declarado egoísmo feito de sensações vitais, com urgências a renúncias, a desesperos e depressões, e vitoriosas de ilusões e esperanças. Ela... Um dia...
Vivia uma época de intensas ansiedades sem temores e nunca, como então, Marcela escreveu tanto às pessoas que estimava - amizades antigas e recentes - e que correspondiam galhardamente aos seus abraços espirituais, cruzando as suas cartas com as dela, em alvoroços de singulares descobertas.
Separava-os um quadrado de mármore rosado - o tampo da mesa com pés esféricos, altos, de ferro pintado. Atrás dela estava uma enorme e má aguarela, desbotada, com moldura oxidada. E à volta deles as conversações esmoreciam e apagavam-se e as mesas iam ficando desertas, a sala com um aspecto pelintra e triste de palco vazio.
- Para quê esse espanto?! Claro que preparei tudo com uma certa antecipação, como se impunha. Até os mínimos pormenores representaram para mini experiência interessante. Gosto de surpreender o pasmo e a inveja na cara, na inflexão de voz das criaturas. Talvez pela primeira vez, a ninguém imputei a "culpa" da minha abalada... E lá parti, numa brumosa manhã, satisfeita por poder dar realidade ao que durante meses não fora mais do que desejo e sonho, persistentes. Fora um desejar e um sonhar que fizera florir em mim impulsos extraordinários.
- E tiveste coragem de nada me dizeres...
- Não me acuses... Deixa-me contar, escuta-me. Depois, farás todas as observações que quizeres... Saí de casa alegre como infante a caminho de um jardim soalheiro... Mas... ao entrar no barco, senti-me de repente como que apavorada pela minha própria temeridade. Via gente faladora, risonha; grupos. Olhares furtivos de avaliação. Quis afastar-me depressa daquela congestionada feira, e, de corredor em corredor, alcancei uma zona solitária e aí me sentei a tremer, fitando as águas revoltas, o casario, o céu opaco. Readquiria o domínio dos vervos, o coração começava a bater regularmente. Subitamente, um apelo que me fez dar um salto. Um altifalante repetia o meu nome, chamando-me ao telefone da entrada (Leonardo sorria; parecia divertido). Não pensei em nada. Apenas sentia uma angústia a apertar-me a garganta, uma incerteza que me entontecia. Levantei-me, trémula, e segurando o saco de encontro ao peito, de cabeça baixa como se enfrentasse uma tempestade, caminhei aos tropeções, irresoluta, no corredor que me reconduziria à entrada do barco. Furei por entre a pequena multidão aglutinante. Peguei no auscultador abandonado e não reconheci a voz que me falava. "Quem?! Quem?!" - repetia eu num alto e esganiçado tom nervoso, que horas depois recordei. Pois era Cristina que se lembrara de me telefonar para bordo a desejar-me mais uma vez, uma boa viagem! Confesso que fiquei desapontada. Talvez tenha esperado qualquer coisa de singular... Começou a viagem, a caravana da nossa língua isolava-se, formava círculos e só no termo daquela viajata, no regresso, eu soube o porquê das atitudes que me pareciam e eram estranhas. É que toda aquela gente era contrabandista de ocasião! Não imaginas... Iam casais pagos por outros casais de negociantes e as compras que fizeram, realmente, encheriam uma loja grande... Atracámos no porto de Barcelona. Foi a primeira paragem. À noite vizitámos - havia excursões organizadas - quase todos os "cabarets" e adegas da grande cidade industrial. A seguir, parámos em Génova, no seu porto colorido... Mas... Não queres ouvir mais?! Estás decepcionado comigo... Achas-me frívola... Uma leviana... infantil...
- Não! Conta-me, conta-me toda essa tua história, ou aventura...
- Chamemos-lhe assim, se o queres... Em Génova, fui visitar um cemitério que me afirmaram ser único no mundo. Haverá um outro parecido, em Londres, mas o de Génova é mais completo. Lá, num mausoléu monumental, li a "história" de um nosso compatriota. Bem, dali, seguimos a rota preparada. Desci do barco em Patrass, um diminuto porto da Grécia. Não fiquei satisfeita com o que admirei. O nosso destino seguinte foi Palermo; o tempo escasso não permitiu visita demorada. No entanto, apreciei a "liberdade de expressão" dos sicilianos. Tu deverias ter gostado de ver... Decorria um período de campanha eleitoral, e, presas nas janelas altas dos prédios, como pálios sobre as ruas, oscilavam ao vento, largas tiras de pano vermelho, com enormes caracteres, uns brancos, outros pretos, dizendo: "Vota comunista". Mesmo no macadame escuro, grandes letras encarnadas repetiam a ordem enérgica. Dos "mafiosos" não vi sombras, sequer, e gostava de ter visto. Se me cruzei com algum "padrinho", andava disfarçado... Ainda bem que ris... Acompanhou-me sempre, pelas ruasinhas estreitas de Palermo, ruas pobres, com roupas pendentes de cordas, uma russa naturalizada americana, uma dessas viageiras sem rumo que não sabem o que fazer do dinheiro e do tempo. Era boa conversadora e conhecia imensas coisas. Chamava-se Lola, estudara na Sorbone... Em Palermo ainda se vêem prédios em ruinas, em bairros que foram atingidos mais duramente pela metralha. As pessoas falavam e riam, mas não me pareceram verdadeiramente felizes. Serão, antes, pessoas fortes, que sabem esconder as suas dores e os seus ódios. Agora, esse teu riso, Leonardo... Ri... De Dubrovnik, na Jugoslávia, vi bastante, muito mesmo, e aí, graças a um guia a quem paguei. Falava oito idiomas. Dava explicações de tudo. Adorei a situação e configuração de Dubrovnik, as suas casas, ruas, praças, museus, fortificações, "portas de pedra", a "Coluna de Roland", teatros, o forte legendário, a "torre do Relógio", a "Fonte de Onofre", catedrais, o monumento ao poeta Gundulié, o convento dos Dominicanos, as suas lojas de bordados e de metais. Nem calculas o quanto caminhei! Há dias, achei graça a uns artigos que li sobre a Jugoslávia. A pobreza da redacção era igual à falta de documentação e conhecimentos acerca do panorama artístico, cultural e político de um país onde o comunismo é muito diferente do comunismo russo. Nunca mais esquecerei o que vi. Também gostei de conhecer Nápoles e a sua baía, e a ilha de Cápri onde fiquei uma semana no mesmo palácio-hotel onde costumava alojar-se Faruk, já no exílio. Fui à Gruta-Azul, de barco, visitei toda a ilha. Passei tardes inteiras nos jardins da pequena casa - só a cozinha é grande - de Axel Munthe, subi ao alto da torre de Matterita, enfim, de tudo trouxe comigo memórias maravilhosas... E, finalmente, Veneza. Mas estou a contar-te tudo sem minúcias, e essas tem enorme importância. Também tens de viajar Leonardo, viajar muito.
- Talvez breve. Penso em ir à Polónia, tirar o mesmo curso que o meu amigo lá tirou. Continua...
- Irás para a Polónia?! E depois...
- Posso ficar em Paris... Poderei regressar... Mas tudo isso é futuro...
- Afinal, também tinhas novidades a dar-me! Partirás...
- Não será amanhã... Por enquanto tenho aqui que fazer. Dá-me as tuas impressões de Veneza. É uma cidade que gostaria de visitar, mas não... como anarquista...
- Assombrosa. Extraordinária. Fascinou-me. Aqueles palácios, com mistérios para lá das janelas, mergulhados nos canais, as pontes delicadas e poéticas, as gôndolas deslizando, num encantamento, a praça de São Marcos, as arcadas cheias de bulício, a catedral - tudo em Veneza é maravilhoso, tudo chega a parecer irreal, em certas horas. As minhas emoções ainda não se decantaram totalmente. Teremos nós um dia tempo para falarmos longamente?!... Numa noite quente passeei de gôndola. Um jovem homem cantou a canção do vento... Senti-me embalada e como se viajasse para o infinito de nuvens coralinas levando estrelas de esmeraldas nos meus olhos... Depois visitei Murano, e Florença. Também adorei Florença, o Arno avermelhado, as colossais estátuas devidas a Miguel Angelo. Estive lá durante as festas da cidade. Em Roma permaneci cinco dias e aí vi, falei com o Papa! Verdade. Escrevera ao nosso Embaixador junto da Santa Sé, que me conhecera há muito. Tudo me foi facilitado e posso afirmar que visitei em Roma tudo quante deve ser visitado, incluindo os "Tesouros do Vaticano" que poucas pessoas logram ver. Um ilustre Barão me acompanhou... Tirei fotografias junto do Coliseu, na entrada do palácio Borghèse, em escadarias de museus. Fui uma turista descontraída que se deslumbrou tanto com as monumentais fontes que vão atraindo multidões de estrangeiros, como com os edifícios que contam histórias de arte e tem recantos cheios de segredos. Tomei novamente o navio, magestoso, diga-se, em Nápoles. Então já me sentia nervosa, receando imprevistos. Apesar de tudo, queria regressar depressa à minha casa, como se um grave acontecimento tal exigisse. Crês na intuição, embora tardia?!
- Não compreendo bem o que queres dizer...
- A pergunta não foi correcta. Diz-me só: acreditas em pressentimentos?!
- Sim. Desde há muito.
- Eu disse intuição tardia porque andei sempre tão encantada que não dei por nada...
- E o que é que sucedia?!
- Vais saber... A viagem de regresso foi excelente sob todos os seus aspectos de real importância. Apenas as pessoas se apresentavam desconfiadas, intrigantes, insolentes. Foi aí que descobri que traziam contrabando de vária ordem. Temiam que falhassem os seus poderosos conhecimentos na alfândega... Não falharam. A máquina estava bem montada. Pisei o cais, procurei um "táxi", carregando a minha mala e o saco. E o coração a bater-me descompassado, e a minha boca ressequida, e os meus gestos e até o meu metal de voz a acusarem um grande nervosismo.
- Foste roubada?!
- Não. Cheguei a casa, libertei-me do casaco, e no meio da saleta, quase às escuras, estendi os braços em cruz, ergui a cabeça, tombei-a para trás, fechei os olhos. A minha casa, Leonardo, é tudo para mim...
- Estás a prolongar sadicamente a minha curiosidade. Marcela elevou os ombros, num jeito gaiato e sorriu,
abertamente. Leonardo sorria-lhe cativado, e também trocista. Não esperava revelação sensacional. O que intuira Marcela?! Nada de sério.
- Ainda não levantara as persianas; estava a despir-me. O telefone... Pensei: "Não atendo porque ninguém sabe que acabo de chegar". Contudo - não sei se se dá com toda a gente, mas comigo acontece -, aquele retinir agudo de campainha, exacerbava-me os nervos, feria-me, era como garras a arranharem-me. Eu não atendia e a campainha não deixava de tocar, numa segurança matemática, terrivelmente calculada. Segurando sobre o ventre a combinação que escorregara, atendi o telefone. Um homem desconhecido indagava se eu já chegara. "Sou a própria", respondi asperamente. O homem declinou a sua identidade e eu senti um esvaimento. Iria desmaiar?! "Não compreendo", disse idiotamente. E o homem, sereno e duro, indicava-me uma hora e um endereço. "Desejo que seja pontual" - finalizou com uma cortezia à "gestapo".
- Tu estás a fantasiar, estás a inventar seja o que for, Marcela!
- Não estou! Chamavam-me da Polícia. Seria uma entrevista pouco demorada...
- Foste?! E para que é que te chamavam? Por minha causa?!
- Que estravagante ideia a tua! Sim, fui. Não me sentia culpada mas toda eu tremia, numa angústia dilacerante. Formulei a mim própria perguntas; conjecturas desencontradas se baralhavam no meu espírito. Fiz o caminho a pé, de casa até lá para diminuir ou iludir a minha tensão nervosa. Escrevi o meu nome numa folha de bloco timbrado. Razão da "visita"?! Não sabia. O meu olhar gelara. De repente, numa espécie de desafio, desenhei as letras: "particular". Aguardei uns minutos apenas e quando me sentei num amplo sofá de cabedal, numa sala austera, vasta e silenciosa, em frente de um homem de pequena estatura, mas de rosto afável, de feições correctas e finas, os meus nervos ficaram de veludo! Não posso oferecer-te melhor imagem - veludo.
- Que te perguntou? O que queria?!
- vou acabar com a tua "tortura". O homem apresentou-me três cartas, com caligrafias que se assemelhavam. Gostaria que eu pudesse "identificar" aquelas cartas recebidas por ele na manhã em que eu partira no cruzeiro das descobertas...
- Lêste-as ?!
- Facilitou-me a leitura, mas eu nem li metado do que estava escrito. Diziam as três quase a mesma coisa. "Denunciavam" que eu fora ao encontro de elementos perigosos, ao serviço de uma potência estrangeira, e, que eu própria, era "perigosa"! Sabes como fiquei?! Varada de espanto, incrédula. E o homem amável e simpático a fixar-me, quase com ternura. A princípio, deixei de ter fala. Recuperei-a, de repente, para exaltada dizer que aquilo era absurdo e estúpido. Ele fixava-me penetrantemente. Ele, sim, seria psicólogo... Repetiu o que dissera antes: "se eu reconhecia as caligrafias". Meia hora depois abandonei o edifício. Agora, ouve isto: desde Barcelona que andei sempre "acompanhada" por dois policias; e foi só quando estava para deixar Nápoles que pressenti algo de anormal. Notava curiosidade em algumas pessoas, e no barco a desconfiança enleou-se no meu espírito. Se olhava para alguém, esse alguém tinha os olhos cravados em mim. Andei vigiada por dois homens! Olha, se me tivesse acontecido algum desastre, teria logo quem me socorresse... amavelmente... O que tens?!...
- Estou, simplesmente, impressionado. E é assim que se tem de interromper uma amizade, um desejo...
- Não te compreendo.
- Vais compreender... Eu, agora, não deverei procurar-te, durante muitas semanas, ou meses... Continuarás a ser vigiada...
- Não! Que tolice! Passou!
- Pode ser tolice minha. Contudo vou afastar-me de ti, fisicamente, com pena... Far-me-ás muita falta... Eu fervia, a pensar nestes encontros, também raros... Só de escutar-te, com essa tua exuberância, essa vivacidade natural, esse excesso de vitalidade, eu recuperava muitas vezes, confiança, e, ilusões... Desconfiaste de alguém?! Deste alguma sugestão que levasse a uma descoberta?!
- Sim, dei... Teria sido Macário?! Não sei...
- E como soubera ele que partias?!
- Cristina e o pai terão sido os informadores de Macário, ou de outro qualquer Macário... Perguntei à moça se fora procurada durante a minha ausência e ela afirmou logo que sim! Que alguém fora perguntar por mim duas vezes. Primeiro a desejar saber para onde me ausentara e depois a indagar da data provável do meu regresso. Ela e o pai disseram o que sabiam...
- Viste três cartas. Não seria alguma desse ignóbil Máximo que tão miseravelmente procedeu para contigo?! E outra ainda, não seria do Clemente em que me falaste?!
- Realmente não sei. Há situações que se parecem com inventadas histórias loucas. As cartas estavam escritas à mão, o que me admirou. No primeiro instante afirmei que eram semelhantes...
Marcela ficou um momento pensativa. Leonardo, acabrunhado, enterrou a cabeça nos ombros; o boné punhá-lhe sombra em todo o rosto ainda jovem e bonito.
- As minhas saudades permanecerão vivas... - e Leonardo num pélago de desespero via-se desamparado de ternura feminina, uma ternura que lhe era querida e que buscava sempre que podia. O seu fracasso matrimonial e também a pressa com que abandonara a mulher, tinham-no deixado intimamente cheio de amargas prevenções, contra as mulheres e contra os seus próprios sentimentos. Acerca do seu casamento, resolvido em escassas semanas, era ele o primeiro a condenar-se. Marcela fora o seu amor! Continuava a querer-Lhe e a desejá-la. O inesperado dos seus relatos acabrunhavam-no, exactamente porque ia perder o seu grande apoio sentimental (julgava-se correspondido), durante algum tempo, talvez um tempo longo.
Ela, apesar de inteligente, ainda não descobrira e compreendera que uma desconfiança grave gerada em secretos alarmes, não se dissolve facilmente. Era bela e independente. Nada fútil, e era estranha. Nela estariam poisados muitos olhos, gulosos, e, ambicionando ataques destruidores, reconhecendo a inutilidade dos seus desejos.
Olhava-o e dizia-lhe em voz velada, quente, incitante: "Para ti eu sou a flor aberta ao sol, a asa que esvoaça em jeitos de carícias, a nuvem preguiçosa tingida pelas cores do arco-iris, o perfume persistente, afrodisíaco e raro, o lânguido abraço inesquecível, as mãos com gestos de afagos voluptuosos que o teu corpo espera, a bebida loira e borbulhante que entusiasma, numa embriaguês de amor. Para ti, sou o sonho ao luar, a estrela que palpita e fulgura, a brisa que tem dedos a enfiarem-se nos teus cabelos lisos. Para ti, sou tudo o que há de empolgante e também de repousante. Eu sei isso... Quero-te como tu me queres... Desejo-te como tu me desejas, pele com pele, nos beijos que me dás e eu te dou na maciesa sedosa dos nossos ombros..."
Sacudiu-a um espasmo violento; ela retesou o corpo, teve um movimento frenético. Libertou-se das roupas e sobre o lençol com estampagens de grinaldas de rosas, abriu os olhos, deslizou as mãos ao longo do ventre e das coxas. "Que disparate, que tolice! Mas que sonho libidinoso eu tive! E com quem falava eu?! A quem me dirigia?!... Estará a amanhecer?!"
Marcela soergueu o busto, olhou, à pálida e morna claridade que trespassava os reposteiros, o relógio redondo que tinha sobre a secretária. Oito horas. Deu um salto brusco, e, sentada no leito, as mãos apoiadas nos joelhos unidos, jogou a cabeça para trás, ainda enfebrecida e palpitante pelo sonho que tivera, entre o sono da noite e o despertar para o dia. Não, não "vira" o rosto do homem a quem ia entregar-se, a quem ia chamar "meu amado, amor..." Agora acordada, admirava-se do sonho que tivera. A verdade é que... ela não amava...
O viver actual de Clemente, embora decorresse num certo nível de desafogo, tinha muitos aspectos confusos, e, sórdidos, que nada podia desculpar. Ainda novo, Clemente Pimenta conseguira empregar-se nos Correios, mas imediatamente uma grande ambição deflagrara nele como tempestade, e roído de inveja pelos conhecidos e amigos que depressa alcançavam lugares de prestígio, mercê dos estudos e das protecções, tratou de procurar quem o ajudasse a encaixar-se onde travasse novas e importantes relações que lhe pudessem ser úteis. Compreendera que, sendo-se adepto, francamente simpatizante, ou estando-se de um dos "lados", com a força da cobiça e a coragem dos esfomeados, é muito fácil conquistar lugar melhor, atraindo atenções. Assim, começara, ostensivamente a elogiar o "lado" mais sólido e algum tempo volvido alcançou o melhor que pode conseguir já que os seus poucos estudos não permitiam que fosse mais longe. Casou com uma cantora de pouco talento que pela sua gentileza física conquistara algum sucesso - transitoriamente. Foi pela mão dela que Clemente entrou no círculo dos artistas e pseudo artistas, nesse "mundo" que também comporta muitas falsidades e rivalidades, ao gosto de inúmeras criaturas. Antes dos quarenta anos a mulher, padecendo de hemorragias, abandonara definitivamente a sua carreira de cantante apagada e ele sentiu em si fúrias de sensualidade de resultados imprevisíveis.
Desejava sem escolher. Taras submersas no seu sub-consciente vieram à superfície. Vendo, por exemplo, uma qualquer mulher coxa, ficava desorientado. O claudicar da mulher, o balanço bruto que dava ao corpo, caminhando, provocava no homem singulares erecções. Lançou-se em aventuras variadas escapando sempre a perigos eminentes. A rapacidade era nele atávica. Ele podia jogar, aparentemente, tudo, mas não perdia nada. Muito pelo contrário, ia ganhando a experiência no ardil, e, talvez um pouco mais. Não receando aviltar-se fazia propostas desonestas a mulheres perturbadas por graves desilusões amorosas, ou doentes de falta de carinho. Elas não o repudiavam e ele somente quando o fastio o assaltava se afastava, cauteloso, com protestos de um afecto murcho como o seu desfalecido desejo. Conservava as "amizades", cultivava-as mesmo, com os cuidados de um jardineiro prudente e inteligente.
Narcisa conhecia há muito Clemente e aproveitava a sua companhia porque chegara à conclusão de que era mais acertado fazer-se acompanhar por um homem corrompido por todas as experiências do que por uma mulher que lhe não agradasse ou que a prejudicasse nos seus secretos intentos. Aceitava e procurava, mesmo, a presença de Clemente, bom conversador, afinal. O facto não obstava, porém, a que revelasse, às vezes, em voz de segredo, que Clemente apreciava levar para a mulher as peças bonitas e caras que via em casa das suas amigas, e lhe agradavam... Sabia que ele, até uma peça de tecelagem manual, "extorquira" a uma sua amiga, para oferecer à mulher que imediatamente a puzera a servir de carpete na sala-escritório... E sabia de muitas outras coisas, desagradáveis e repelentes. Todavia, era a Clemente que mais chamava para junto dela, num subterrâneo e depravado anceio de fazer e de receber, confidências escaldantes.
Ninguém parecia notar amoralidade naquelas relações; todos se acomodavam perfeitamente ao estabelecido. Um aspecto de uma sociedade de máscaras.
As reuniões de Narcisa, tornavam-se, em cada semana, mais concorridas, nelas tomando parte personalidades com certa projecção e anónimos e desastrados jovens. Assustadoramente envelhecida, a narradora de historietas lá estava a um canto de olho prescrutador e boca ávida de goluseimas. Ali, já não eram apenas os homens que se intitulavam "grandes", esses menores cabotinos do alarde e da bambochata repetida, os das letras e das tramóias, dos bons empregos, e os das negociatas calculadas e rendosas, que acompanhados das mulheres próprias ou alheias, afluíam a casa de Narcisa, como abelhas ao encontro de flores abertas, para a gratuita conversa, a jogativa, e o degustar e bebericar que alguém pagaria; apareciam também mulheres com ares importantes e despresos nas mandíbulas pesadas. Pelas onze horas da noite, chegavam alguns grupos, sorridentes, que ficavam até muito tarde.
Narcisa, nessas noites, ia representando os mais variados papéis, aquecida pelos lúbricos olhares que eram lava a escorrer-lhe pelo corpo soberbo de caprichosas ondulações.
Marcela não aceitava com frequência os convites de Narcisa; mas, porque uma natural e humana curiosidade estava nela, de vez em quando, num desafio a si própria, ia passar parte da noite a casa da amiga para observar toda aquela gente estulta e divertida, em busca de um qualquer prazer. Um rosto novo interessava-lhe sempre, sem deixar, contudo, de observar os risos, os gestos, os acenos das pessoas que já conhecia, superficialmente.
A meio da geral euforia abandonava a sala, com as faces afogueadas e todo o seu corpo fremente. Fugia do recinto da comedida agitação dos sentidos, temendo que o oculto fogo dos outros se propagasse a ela. Saía sem se despedir de ninguém, no instante em que todos se entretinham numa auto-suficiência inflamada, a falarem de si mesmos sem ironia, em jeitos e em palavras de perturbadora concupiscência contagiante. As luzes estavam veladas de vermelho e a música tinha escamas curuscantes de uma piton em movimentos lentos.
Sentia-se leve e desprendida de todas as triviais preocupações. Olhou, sem pensamentos de rancor, as montras da antiga casa do senhor Samuel (para onde trabalhara numa época da sua vida de grandes agonias e lutas), que já morrera, e não se coibiu de sorrir, porque, o que lhe veio à ideia foi aquele "Samuel" que, segundo os velhos rabinos, fora o sedutor de Eva... O nome relacionava-se com a serpente, "e com a letra "samech" do alfabeto hebraico"... E não aparecia ele, "na companhia de Azarei (Das Buch Henoch") como chefe dos anjos rebeldes que se uniram às filhas dos homens...?!"
O velho, astuto, lascivo, untuoso e sensual senhor Samuel, desaparecera da sua loja de pronto-a-vestir; morrera, afinal, há pouco tempo, depois de ter permanecido três meses inconsciente. Fora na loja que pela primeira vez perdera os sentidos. Uma síncope que se repetira cinco horas volvidas, e, ainda mais tarde, pela meia-noite. Assistiram-lhe vários médicos que chegaram a uma conclusão inesperada: o que atacara mortalmente o velho homem fora um cancro na espinha, que os síndromas não faziam prever. Cegou, perdeu a voz, paralizou e não ouvia, nem certamente pensava. Assim esteve três meses, um mísero destroço de carne a decompor-se; ele teria desejado todas as mulheres, devia ter possuido muitas...
Ultrapassou as portas sem olhar para dentro, seguiu, e, ainda a sorrir para si, dispunha-se a atravessar a avenida quando um carro travou bruscamente junto dela, obrigando-a a dar um breve grito e um salto para traz.
- Que disparate! Ia-me atropelando!
Só então viu o rosto do condutor do carro. O sangue afluiu-lhe às faces. Recuou mais. Rapidamente, Máximo saiu do carro, bateu com a porta e atirando-lhe o bafo quente para os cabelos disse-lhe:
- Eu não te atropelaria... Assustei-te... Marcela, vem comigo, vamos dar uma volta... Estou doido de saudades. Não tenhas medo.
- Não tenho medo de ti nem de nada, mas não quero acompanhar-te. Onde está o teu orgulho de homem?! Esqueceste-te do que te fiz?! Crê, se te escuto ao telefone é... certamente, talvez, por frivolidade... e ainda, também, por algo de estranho...
- Estamos a ser olhados... Peço-te, vem comigo, apenas meia hora. Nunca tivemos uma explicação séria... Só eu tenho falado e falado...
- E para quê uma explicação?! Não há necessidade de mais palavras. Tu sabes isso.
Fixava os olhos dele, febris e implorativos. Cruzavam-lhe a mente pensamentos contraditórios e veementes. A osmose acontecida, através dos beijos, permanece?! Fica no sangue o veneno escaldante do desejo sentido e compartilhado em horas com arabescos de luxúria?!
- Sê mais humana e menos intelectual. Aproveitemos este encontro.
Pegou-lhe na mão e ela consentiu. Apertou-lha.
Deu-lhe um aperto mais forte e rangeu os dentes. Abriu a porta do carro. Ela entrou e ele foi sentar-se no seu lugar ao volante.
- Só te ouvirei durante meia hora.
- Gostava que voltasses a odiar-me...
- Não quero odiar-te mais.
- Marcela, concorda com o que vou propor-te. Será apenas para veres que ultimamente não te menti. Sou um desgraçado, não há dúvida. E em mim, a atracção por ti não se extinguiu... Sei que hoje não está ninguém em casa da minha sogra. Saíram e voltam tarde. A criada foi há tempos despedida... Queria que visses que há duas camas no meu quarto. Leonilde dorme na sua cama. Repito-te, juro-te: há muito que nada tenho com ela. Foi de comum acordo que separámos as nossas camas. O desejo desapareceu e para ela era um suplício, especialmente depois das operações. Eu suava, eu cheguei a pensar que tinha sintomas de impotência.
O orgasmo era acidentado e difícil. Ela não ajudava. Quieta e constrangida ou distraída e serena. Impôs-se dormimos separados. Queres ver o quarto ?!
- És maluco! Serás mesmo mais do que isso. Não bastou teres-me levado a essa casa da periferia que afinal também pertence à tua mulher?! Queres agora levar-me à casa da tua sogra?! Pretendes envolver-me num escândalo para te vingares?!
- Dou-te a minha palavra de homem! Apenas quero que me acredites, que acredites em alguma coisa do que te tenho dito. Há camas separadas e em tudo se nota a falta de intimidade...
Marcela voltou-se no assento para olhar o perfil de Máximo que ia falando e guiando com prudência. Viu-lhe a testa baixa enrugada, o nariz vulgar, a boca embainhada, a pele do rosto envelhecida. E adivinhou no fremir daqueles lábios uma determinação violenta que a contagiou, absurdamente, de uma febre e de uma força que logo se transmudou em desafio, leal, mas perigoso.
- Queres que eu tenha a certeza de que tu, há muito, nada tens com Leonilde?! Que me interessa agora a tua verdade triste de homem "viuvo" junto da mulher apática e da sogra tropeço?! Já nada em ti me interessa, Máximo... Estou aqui, e, nem sei porquê...
- Entra comigo, por curiosidade, ao menos, na casa onde sou "viuvo"! Não tens coragem?!
Ela desafiara e ele desafiava, com os dentes quase cerrados.
- Temos responsabilidades, Máximo, e estamos a proceder como crianças sabidas e tontas...
- Uma... Não me obrigues a ser grosseiro; eu sei lá o que quero provar-te! Concorda comigo pela última vez, com mil raios!
Ela via-lhe as mãos grandes crispadas sobre o volante. A veemência apaixonada do homem envaidecia-a e fascinava-a.
- E se elas chegarem?
Maquinalmente, levou as mãos à boca no desejo tardio de suspender a frase brotada.
- Deixa o caso comigo. Saberei como proceder. Aquela aventura leviana, inesperada e nunca sonhada,
dava a Marcela uma excitação de dimensões novas, que a percorria inteiramente. A pele escaldava-lhe e entretanto sentia que os poros se lhe dilatavam, que tudo nela se abria num espanto sem fronteiras. As mãos, contudo, conservavam-se-lhe frias e trémulas.
A entrada, a escada encerada, o patamar, não tinham aroma algum. Tudo deserto e gelado.
Máximo rodou a chave na fechadura, abriu a porta, rodeou-Lhe a cintura com o braço seco, de músculos tensos.
Havia uma imensa quietude na casa silenciosa. Também ali nenhum cheiro se notava, como se nada naquelas salas vivesse ou tivesse alma, como se um grande mistério recobrisse com véus imponderáveis fontes vitais há muito irremediavelmente esgotadas. Não cheirava a alimentos nem a vida. Os móveis, espectantes, não gemiam, os espelhos estavam oxidados e vazios de imagens. Tudo muito arrumado, tudo inútil, como num mausoléu. Para as traseiras, abria-se uma larga varanda sobre um jardim interior, com árvores de folhagens brilhantes, de placidez abismada.
- É aqui que tu vives?!
A admiração de Marcela envolvia e comportava muito de uma ternura que ela julgava extinta, morta há muito.
- Há mais de vinte anos... com duas múmias... E podia ter sido feliz...
Pôs-se-lhe na frente, apoiou as duas mãos nos ombros dela.
- Creio que isto não é mais do que um pesadelo... que vou acordar...
- Acreditas agora em mim?!
- Não me faças perguntas.
- Está bem.
Marcela sentia que do corpo dele se desprendiam fluidos magnéticos. O seu nervosismo aumentava; não queria, porém, dar a impressão de que vacilava.
- Aquela porta?!
- Sim...
Ali, igualmente, uma ausência total de calor. Duas camas estreitas, uma cómoda, duas cadeiras, um móvel funcional. Uma janela com cortinas sem idade. Em cima da cómoda, apenas um espelho pequeno, ovalado, e um gancho de cabelo, esquecido. Paredes nuas. Um tapete verde. As coberturas das camas eram cor de castanha.
- Quizeste impressionar-me?!
- Quis que visses tudo isto...
Máximo, num gesto repentino fechou a porta e freneticamente começou a despir-se. Um botão saltou das calças, rolou pelo sobrado com um ruido vivo. Ele, tirando pela cabeça a camisola interior, ficou nu, despenteado e ofegante. E então, de maxilares apertados, jogou-a, num ímpeto selvagem, para cima de uma das camas; sujeitou-lhe o corpo debaixo do dele. Rugiu: "Esta é a cama dela".
Marcela debatia-se, com os braços e com as pernas, sacudindo a cabeça para que ele não a beijasse. Ainda não era raiva o que se apoderava dela e lhe duplicava as forças. Sussurrava, secamente: "Afasta-te, afasta-te... Estás a magoar-me..."
Impetuosamente, ele carregava o seu peso no ventre dela, que cada vez mais unia as pernas, elevando os pés, ora para um dos lados, ora para o outro. Caiu-lhe um sapato e ela continuou naquele exercício de quebrar os rins, com as coxas apertadas, utilizando as pernas como armas de prodigiosa defesa. Logrou enfiar os joelhos juntos entre o ventre dela e o de Máximo e dar-lhe ao mesmo tempo um safanão nos ombros, empurrando-o. com a dor sentida no sexo, Máximo desfez o anel que apertava à volta do pescoço dela e sem se desiquilibrar, saltou, como mola, pulou para trás, ficou de pé. "Malvada! Maldita! E eu que queria que tivesses duas gémeas minhas!"- rouquejou o homem, num desespero trágico, e ridículo.
O momento não se prestava a risos e a mulher somente muito mais tarde se relembraria daquela frase, e, também das meias roxas que o homem não descalçara. O dedo grande do pé direito, um dedo grosso de unha coreácea, saía da meia, por um buraco. O grotesco da situação escapava-lhe, no minuto torpe, e, lancinante. Ela queria fugir daquele ambiente mágico. Fugir depressa. Uma aguda percepção de perigo só então lhe picou o peito, galvanizando-a, instantaneamente.
Uma palavra má fendeu-lhe os lábios. Foi como se lhe tivessem quebrado um dente e ela o cuspisse, cheio de sangue, para a cara da outra pessoa.
Gritou-lhe, ainda, surdamente: "Detesto-te. Sinto despreso e asco por ti".
Simultaneamente, tombou, rolou o corpo na cama de Leonilde e caiu de joelhos entre as duas camas. Teve então uma visão assombrosa: nu, Máximo estava do lado oposto; ela viu-lhe, pendente e mole entre as pernas peludas, uma cauda circular; o rosto dele estava verde e os seus cabelos em desalinho, formavam uma curta franja frisada sobre a testa breve; dos lados, os cabelos elevavam-se. Esses dois pequenos tufos pareciam dois chifres espetados. A configuração era perfeita.
Estarrecida, fremente, ela pensou num diabo, talvez um "Satanachia", ou um "Fleuretty", um demónio, enfim, com os seus legendários atributos, e, furioso na sua decepção.
Continuando a olhar o homem miseravelmente nu, como que hipnotizada, Marcela estendeu a mão, apanhou o sapato que resvalara para debaixo da cama e depois deu um grande salto ágil. Correu pelo corredor, saiu batendo a porta com estrondo. Ninguém saía nem entrava no prédio. Só na rua calçou o sapato, baixando-se, ofegante. Pessoas desinteressadas caminhavam debaixo do sol, por uma espécie de obrigação que as enfadasse desde sempre.
Alcançou uma rua transversal, de mais movimento; apressou-se. Tomou um autocarro e foi descer em plena baixa movimentada. Atordoada, queria fixar-se fosse no que fosse; mas o seu espírito conturbado não lhe permitia a atenção ao trivial da vida que, como um caudal deslizava e vibrava junto de si. Fatigada, regressou a casa, aí se refugiando numa hora pesada de enigmas.
O ser humano vive muitos minutos de insensatez; tem procedimentos raros e atitudes loucas. Tudo faz parte, afinal, da sua condição humana que procura descobertas através de absurdos...
Recobrou as energias habituais. Voltou para cima as palmas das mãos e mirou-as detidamente. Estavam limpas. Mas... que diabólica tentação fora a sua?!
A nudez examinada há pouco, em instantes de exaltação, fê-la recordar uma das mais chocantes confidências de Máximo; quando ele contara que uma vez possuíra de pé, atrás da porta da despensa, uma visita... Ela "vira" o corpo dele, no momento do precipitado amplexo... Foi como se tivesse assistido ao acto. Ele, sardónico, dissera que no preciso instante, Leonilde indo para a cozinha parara à porta da despensa, insegura, do caminho a continuar. E "eles", escarlates, com os rostos colados queimados pelo desejo que os juntara, esperavam, sem respiração, que ela se afastasse, para dali saírem, para mentirem... Ele saíra primeiro e a "pobre" da Leonilde, nem sequer se admirara com a demora da sua visita, na casa de banho... Seria o que se acumulara no seu subconsciente que a levara a acompanhar Máximo à casa onde ele vivia com dois espantalhos, duas decrepitudes insensíveis e cegas?! com certeza. No entanto, procedera bem levianamente e a sua curiosidade poderia ter-lhe sido fatal.
O que acontecera fora pouco, desde que fosse analizado friamente o grave passo que dera. Sentia-se agora em plena segurança mas uma profunda agonia, um imenso quebranto de todos os músculos doloridos, a prostravam, num lamentável arrependimento. "Porquê - perguntou-se ela, cerrando as pálpebras de seda - esta terrível angústia, se fui selvagem e forte depois do estouvamento inqualificável?! Precisávamos nós, eu e ele, de mais esta prova, foi o que foi... Não sinto ódio, nem sentimento algum que me envenene a mim própria... Há pouco despresei-o, por vê-lo, simplesmente, um animal. Ele deseja, indeferenciadamente... qualquer mulher...
As mulheres dos amigos, as largas e gordas amigas da mulher, as criadas de abortados sentimentos, as empregadas das casas onde vai, e que, depois, por motivos vários, o procuram, com mensagens... Vai desejando... e esquecendo... Deseja continuamente... Será da cortizona que vai tomando... Essa hormona excita-o, obliterou-lhe a razão... E eu vivi uma estação em que o desejava. Desejava-o, sem o amar, e, ele, também me desejava, mas não me amou! Não sei se foi um bem tê-lo encontrado hoje, tê-lo acompanhado àquele andar frio, onde tudo estava parado e desatento, como que embalsamado. As duas camas, paralelas, a cómoda, sem um sinal de feminilidade ou personalidade. A opacidade de tudo com teias de aranha invisíveis. Nem um ranger de sobrado, uma gota de água a pingar algures, um cheiro vivo e humano..." As sombras nocturnas começavam a encher a saleta muda e perfumada. Da realidade cortante, Marcela deixou-se conduzir para uma clareira de sonhos iluminados...
Com Leonardo passara a falar mais raramente, e de muitas coisas, evitando contudo a política. A clandestinidade de Leonardo assustava-a.
Leonardo quase conhecia Adriana tão bem como ela, e, da sua vida, pouco ignorava. Todos os seus conhecimentos eram familiares a Leonardo, entrando nos seus diálogos. Ela contava-lhe tudo.
Continuavam a encontrar-se em pastelarias de bairro, escolhidas por Leonardo, e, aí, muitas vezes se esqueciam da vertigem das horas; o antigo padre apreciava frequentemente relembrar o passado, e, então, uma luminosidade infantil perpassava nos seus olhos e a boca arqueava-se-lhe num sorriso ingénuo.
- Ainda guardas todas aquelas fotografias de infante, de adolescente e de homem sacudido por desejos fulgurantes e ardentes?!
- Todas; e na memória visual a primeira imagem que tive de ti, naquela tarde em que subi à silenciosa igreja, depois de ter acompanhado Adriana. Há episódios, acontecimentos, que se fixam para sempre nas nossas memórias. Se soubesses as coisas de que me lembro, como se tivessem acontecido ontem!
- Mesmo de ti, da tua infância, por exemplo?!
- Sim. Tenho memórias desde os seis anos de idade, embora pareça incrível; o bom, tem-me acompanhado, com emoções delicadas, e o mau, tornou-me corajosa e destemida.
- Nós pensamos no passado só em horas calmas, ou de melancolia. O presente exige todas as nossas forças.
- Estou de acordo contigo. Ouve... Quero referir-te o que me aconteceu há dias...
- Alguma coisa interessante?!
- Quase... pavorosa... e por minha culpa. Sabes... um desejo é como uma embiageuz. Quando passa, fica-se triste... Começo a convencer-me de que sou eu que procuro as situações intrigantes e perigosas, as experiências mais complicadas. Pois não fui com Máximo a casa da sogra dele?!
- Não acredito.
- Crê. Ele insistiu - encontrámo-nos perto do antigo estabelecimento do senhor Samuel, o sátiro -, queria que eu tivesse a certeza de que não dormia com Leonilde...
- E que te interessava isso?!
- Deixa-me contar-te... Bem, insistiu. Um relâmpago de curiosidade incendiou-me os olhos. Aceitei o desafio desafiando o homem que eu já devia conhecer... Foi tudo de um ridículo ignóbil. E quando lembro o dedo grande do pé direito dele, a sair por um buraco da meia roxa, tenho forçosamente de rir...
- Ele despiu-se?!
- Só não tirou as meias.
- Que tonteria a tua, Marcela. Expuseste-te a vexames.
- Eu sei. Também gosto de viver no perigo. Pensa, se elas regressassem... O que teria sucedido?!
E Marcela, apesar da expressão reprovativa de Leonardo ria, como rapariga a quem fizessem cócegas.
- Apetece-me rir. Saltei uma fogueira e não me queimei. bom, acabou-se. Falemos de outra coisa se queres. Começámos tão poeticamente...
Naquela tarde Leonardo comportou-se sem exuberância, a partir da altura em que o espantalho de Máximo, primeiro a despir-se desordenadamente, e depois nu, se interpôs entre ambos; o ciúme roía o homem que não queria declarar-se apaixonado. Gostava e queria que Marcela lhe contasse tudo, mas, especialmente o realismo daquela última aventura que ela propiciara, chocara-o, enervara-o e deixara-o tristemente transtornado, cioso do corpo dela que o outro conhecia e para ele representava ainda um mistério, como a própria alma dela; ele tomou-lhe as mãos, num dado instante e apertou-lhas até ela se lamentar: "Estás a magoar-me. Quebrar-me-ás os ossos!"
Erguera-se. A figura dele, não sendo imponente, tinha elegância e juventude; os ombros eram possantes, o tronco elástico e só as pernas um pouco curtas não permitiam a total harmonia dos membros. Marcela suspirou e olhando o ventre de Leonardo corou intensamente.
Foi desde aí que ela começou a interrogar-se de vez em quando, acerca dos seus verdadeiros sentimentos em relação ao homem que a amara e que continuava a procurá-la, a desejar a sua presença, naturalmente porque uma presença feminina lhe fazia falta, depois da experiência matrimonial, desastrosa embora, que tivera.
Depois de se interrogar ficava excitada e atormentava-se por meio de uma auto-acusação cruel, incompreensível e inútil. Jamais amaria Leonardo.
Considerava aquele "trabalho", que aceitara impensadamente, absolutamente sórdido, mas porque precisava de manter-se independente e sonhava com novas viagens e outros cometimentos, continuava a realizá-lo; tratava-se do primeiro trabalho que fazia sem entusiasmo, friamente, como alguém que se sujeitasse a uma violação, ou a coisas sujas, por obrigação premente, por dinheiro!
Quando o professor catedrático, que fora seu professor, lhe falou, diplomaticamente, no assunto, não o compreendeu logo; foi preciso que ele repetisse o que dissera, cauteloso, e, mais claramente se explicasse. Então, ainda incrédula, replicara que não saberia escrever as cartas que ele desejava fossem escritas regularmente, que achava absurdo, o pretendido. O professor, contudo, pertencia ao número daqueles homens de persistência sagaz que não se sentem desmoralizados por uma ou mais recusas, às suas solicitações, sejam elas de que ordem for. com a sua dialéctica floreada, imaginosa e aliciadora, ele logrou o seu intento e logo deu a primeira indicação, vivaz e seguramente: "O cerco tem de ser subtil, mas sem constrangimentos. O significado das palavras empregadas deverá ser exacto. Tudo directo e... másculo". Retorquira, abalada, que nunca saberia escrever o que ele pretendia, que não podia pôr-se na pele de um homem viril que deseja conquistar uma solteirona, virgem, de quarenta anos, certamente cheia de recalques, de prevenções, de complexos e de falsos pudores. Ele alegara que o facto de ela ser tradutora era de grande importância e que seria o suficiente pensar que estava a traduzir as cartas amorosas de um homem que, reencontrando uma antiga companheira de liceu, a deseja violentamente, querendo fazer dela sua amante - porque a deseja, e, quer possuir, também para se vingar do velho desdém dela que em nova o despresára, chamando-lhe "gordalhufo", e, dando atenção a um outro colega que parecia um fuso e que afinal casara com uma prima rica. O assunto era este; ela pensaria, se quizesse, que se tratava de uma história vulgar, produto, até, de uma imaginação medíocre. O professor rira um riso estrondoso, e ela arrepiara-se. Voltara a dizer "não", para dias volvidos aceitar o "trabalho" estranho e talvez pouco divulgado: escrever para outrem, cartas amorosas contendo convites e dissimuladas propostas, que lhe eram pagas a cem escudos cada uma. Seria como escrever um contarelo?! Não, não era, pois no que escrevesse não entraria a sua imaginação, nem a sua emoção e nem o seu poder de observação se afirmaria.
Tomou conta do "trabalho". Pela manhã, o professor dizia-lhe o que deveria escrever, numa voz mole de gorduras estremecentes. A solteirona chamava-se Elvira e era professora, fora da cidade.
Começaram a chegar as cartas dela, com muitas reticências, prudentes, sem alvoroço e sem indignação. Havia que responder a essas páginas incolores de mulher desenganada, com vibrantes afirmações de uma escaldante simpatia amorosa; e Marcela sentava-se à sua pequena secretária e agrupava palavras inflamadas, como se fosse um homem, delirante, a dirigir-se à mulher apetecida. Mas, porque o "trabalho" realmente lhe repugnava, achando-o aviltante, encontrava enormes dificuldades em construir frases académicas, necessárias em alguns parágrafos, e próprias de um catedrático exaltado e apaixonado... E daí, o fatigar-se e irritar-se, excessivamente. Um dia, Elvira, para desvairamento do professor, concordou em almoçar com ele. Desde aí, o assunto girava ao redor desse encontro num restaurante que logo foi escolhido. Viram-se, frontalmente, no restaurante barulhento, onde eles, para se ouvirem, tiveram de gritar umas tantas frases convencionais, quando, no sangue do professor corria um fogo de lúbrico desejo. Elvira, comedida, ia avançando, contudo, na escarpada ladeira que a conduziria à desilusão mais amarga.
Nos rápidos encontros acontecidos, Elvira falava, honesta, e ingenuamente, de casamento, enquanto o professor, que era viúvo, sofregamente, depositava nas suas mãos envelhecidas, beijos molhados. Talvez meio ano depois da primeira carta, frustrada nas suas tardias ambições, Elvira rompeu abruptamente o enleio pecaminoso do professor, ameaçando-o de escândalo se ele continuasse a escrever-lhe - e nem ela poderia sonhar que não era o professor a escrever as páginas que ela fora recebendo, em meses sucessivos e que nela tinham ateado uma concupiscência assolapada. O namoro insólito terminou da pior maneira. Elvira devolveu ao professor os mesquinhos e insignificantes presentes que ele lhe enviara, e, o retrato, com os olhos furados e a garganta "cortada". Vingança de solteirona.
Marcela teve de suportar os desabafos, histéricos, do homem que, em plena menospausa, tivera a ideia de pretender a antiga colega, com o intuito infame de a humilhar, e, afastado, ainda acusava de louca a mulher que não se submetera ao seu miserável capricho, ficando, vitoriosa, com mais uma ferida no coração mas com a sua virgindade intacta. Uma consolação dolorosa, afinal.
Mas o "trabalho" detestado terminara e o nojo dera lugar a uma certa alegria e ao rebentar de uma ironia invulgar e causticante.
Dizendo a Leonardo que o "enganara" durante meio ano, este ficara pálido e sisudo e aguardara que ela continuasse a falar.
- E sabes porque te enganei?!-perguntou Marcela, afogueada e risonha - Porque escrevi dezenas e dezenas de cartas amorosas...
- Para quem?! A quem...
- Escrevi-as para ganhar dinheiro.
- Explica-te. Baloiça-me na cabeça um pêndulo. Não sei realmente o que queres dizer.
Ela contou a história do professor lascivo, um homem atarracado, de mãos papudas e dedos curtos e grossos, e um vasto rosto de bochechas caídas em refegos que estremeciam quando ele ria, e Leonardo indignado não se conteve e pronunciou uma frase que foi para ela como uma bofetada violenta, dada com mão irada.
Desde esse instante, Marcela pensou que, mesmo que precisasse muito, nunca mais escreveria cartas idênticas a essas tolas cartas que escrevera para ganhar dinheiro.
Cantarolava, num murmúrio, distraída, como que a embalar-se, a canção que ia criando, numa gentil inconsciência, alheia às verdades que revelava: Tantos caminhos andados Tanto passo repetido... E o futuro violado Pelo passado sem sentido...
O anoitecer ia chegando. Para Marcela, aquele fora um dia de trabalho particularmente exaustivo, mas sem uma única voz a perturbá-la, a desviar-lhe a atenção, ou a afagar-Lhe a pele, provocando-lhe frémitos, que a percorriam como rastilho fulgurante; apenas o recebimento de duas cartas, sem remetente, para Macário, a tinha exasperada durante uma escassa meia hora. Jogara-as para a papeleira e depois prosseguira no seu trabalho, sem impaciências, com determinação tenaz; dera-o há pouco por terminado e sentia-se intimamente satisfeita.
Para se ouvir, ia improvisando versos que irrompiam do seu subconsciente em dolências pacificadoras.
De repente, porém, assaltou-a o desejo de escutar uma voz diferente. Telefonaria a Narcisa.
Ergueu-se, com impetuosidade jovem, levantando a cabeça, como se se dispuzesse a uma provocação. A voz da amiga pareceu-lhe sonolenta, indolente, desinteressada.
- Estás doente?!
- Ah! És tu... Doente não, mas sinto-me aborrecida e indecisa... Estarei cheia de perplexidades e... raivas... bom, mas é um acontecimento seres tu a telefonar. Ainda bem que o fizeste. Estou só e com os nervos arrazados. Não queres vir aqui?!
- Hoje não. Apetece-me falar assim, como se um biombo nos separasse. É engraçado.
- Se comparas a distância a um biombo... Eu estou danada, comigo e com tudo.
- Passou-se alguma coisa que te molestou?
- Tu já sabes. Gasto demasiado, afundo-me e quando apenas fico com a cabeça de fora, esbracejo e acuso-me. Parece-me que o melhor que tenho a fazer é casar-me.
Marcela não pôde evitar o riso que quase a sufocou.
- Falas a sério?! - perguntou ainda a rir e acrescentando:
- Desculpa-me. Talvez eu não consiga ver-te casada, submetida a um homem...
- Pois fica sabendo que nunca falei tão a sério como agora. Será burguês pensar-se que o casamento é o grande "emprego", o bom amparo para a mulher, mas essa é uma verdade irrefutável. Hoje já nenhum homem oprime. Continua-se a ser livre.
- Não creio que seja assim...
- A tua experiência foi péssima. Os primários, hoje, não querem passar por tal, afirmam-se evoluídos, e, quanto mais enganados são, mais sorridentes se mostram, cheios de salamaleques como bem amestrados cavalos de cortezia. Uma corja torpe à procura de relações, de boas situações.
- Estás... revoltada... E eu a querer ouvir histórias que me parecessem lendas...
- O "celeiro" da família está quase vazio... e eu não tolero a pelintrice!
- Podias trabalhar muito mais, não esbanjares o tempo.
- Sabes perfeitamente como é mal pago o trabalho em regime de colaboração. Tu podes trabalhar até ao esgotamento. Serás sempre uma colaboradora, sem regalias. É um aviso: trepa com o auxílio de um "manda-chuva" qualquer senão, nunca serás mais que uma espécie de mulher a dias...
- Não falemos de mim. Bem... Essa tua ideia de casamento, salvar-te-á, com efeito, de muita coisa... Já escolheste...?
- Estás a ser mordaz, mas não importa. Sim, parece-me que vou eleger aquele que melhor satisfaça os meus caprichos, as minhas voluptuosidades... Sabes bem que sou uma mulher completa e requintada. Só posso viver sem dificuldades materiais e rodeada de aduladores - uma "rainha", com a sua corte e algum bobo, para divertir...
- Parece-me que conheço todos os teus amigos. Qual deles escolherás?!
- Nenhum dos que conheces. Prefiro um "capitalista", um desses construtores vaidosos, pesados de dinheiro e com desejos de entrarem nos círculos mundanos. Olha, Marcela, já está quase escolhido! Mas sinto-me aborrecida, sim... As minhas narinas são sensíveis, e, alérgicas, e nem todos os cheiros me agradam e fazem bem. Irei a tua casa quando tiver decidido. Sinto-me mole, gorda, pesada e intoxicada.
- Vamos terminar, por hoje?!
- Está bem. Adivinho o que sentes.
- Não adivinhas nada. Em flutuo... Acredita que, neste momento, me sinto apenas a flutuar num espaço macio, trespassado por setas de brandas sonoridades. Isto acontece-me às vezes. Sem saber como, sou transportada para um mundo irreal, de um encanto mágico, onde tudo é sereno e olimpicamente magestoso. Deixo de ouvir... ou quase, claro...
Aquela declarada indecisão de Narcisa mantinha-se. Marcela recusava-se a analizar, para julgar, as atitudes e os desejos sem compromissos, da amiga.
De Adriana recebia cartas menos longas que, cada vez mais, denunciavam mudanças vitais no seu viver de jovem mulher sem irresoluções bloqueadoras. Os seus actos deveriam um dia surpreendê-la.
E Leonardo, esse, depois que, mais uma vez mudara de domicílio, telefonava-lhe raramente, sempre inquieto, como um animal que pressente perigos e perseguições sentindo-se acossado. Ela tinha, portanto, muito mais tempo livre para trabalhar e para devanear.
Visionava frequentemente Narcisa, uma Narcisa amoral, quase irresponsável pelas suas atitudes, afirmando que ia casar-se para melhor poder prosseguir na sua furiosa e fútil vida de jantares e reuniões. Pensava na amiga. A figura de Narcisa avultava então, na sua memória visual: uma mulher bizarra e interessante que poderia elevar-se a um nível de apreciável independência se quizesse trabalhar para isso. Ao contrário, porém, do que seria de esperar da sua inteligência - porque Narcisa era inteligente -, Narcisa, a um sério esforço e a uma luta persistente e válida preferia a banalidade dos encontros, as conversas estiradas com homens devassos (como Clemente), embora afirmando-se intelectuais, e, as muito repetidas e frequentadas reuniões onde em silêncio é proclamada a bancarrota dos sentimentos nobres e onde gravitam os gananciosos de todas as espécies e idades - essas reuniões de falsa compostura, de secretos escândalos e adivinhados impudores, e, mesmo o impudor declarado no vestir escandaloso.
Porque a família, naturalmente esgotada pelos compromissos assumidos para a satisfazerem, ou cansada de enviar auxílios irrecuperáveis, a avisara de que não continuaria a mandar-lhe o que ela impetuosamente exigia, começara a pensar em dar, não um novo rumo, mas sim uma nova feição à sua vida, apenas por meio de uma transformação que não modificaria os seus hábitos de alegre dissipadora.
Narcisa pertencia ao número, ainda vasto, das mulheres que entendem que ao homem, marido ou amante, compete uma assistência material sem limites. O homem deve sustentá-las e acudir a todos os seus fantásticos desejos. Elas, por vezes, ocupam-se num qualquer trabalho, empregam-se, para se libertarem apenas da tirania dos afazeres domésticos e para terem maior liberdade (em arranjos embelezadores, gastam mais do que ganham). Contudo, querem ter um homem, querem ser "senhoras", querem enfim "possuir" um marido que seja protecção segura em todas as circunstâncias. E então, pomposamente se certificam senhoras dos seus maridos. A estas mulheres não se apontam defeitos nem se atingem, abertamente, com as setas da maledicência que enxovalha. São casadas. Ora Narcisa, apesar de todas as suas sofisticadas atitudes e pedantes afirmações de superioridade, não passava, afinal, de uma mediocridade nauzeante de provinciana burguesa. Queria casar; casar-se-ia com homem boçal, que frontalmente seria capaz de dizer que, com dinheiro, mesmo sujo, compraria tudo o que quizesse. E Narcisa aceitá-lo-ia. Aquela Narcisa que facilmente se desnudava para afagar o próprio corpo de pele aveludada, aquela Narcisa, que, suficiente se dizia culta, que gostava de fumar por compridas boquilhas, que se deitava de madrugada e se levantava ao meio-dia, para logo mergulhar tronco e membros em banhos tépidos e perfumados, tirando assim da carne os cheiros que a impregnavam, sem se lembrar de "limpar" a alma, iria casar com um plebeu que amontoava dinheiro; esse homem não teria a mais insignificante afinidade com Narcisa. Nada de comum existiria entre eles, para além da vaidade orgulhosa e estulta de serem notados e apontados. O surpreendente, porém, era que a sociedade se compunha de muitos destes elementos de certa maneira perniciosos, pelo seu baixo estofo moral. Talvez que Marcela, sentindo-se chocada com as descobertas já feitas, desejasse, intimamente, afastar-se de vez do perigoso redominho de desenfreados desejos onde os valores se prostituíam ou apagavam e acontecia o naufrágio de muitos sentimentos ainda não totalmente corrompidos. Mas, continuava a aceitar convites de Narcisa, falando-lhe, muito mais vezes do que o deveria fazer. Tratava-se de uma atracção inexplicável. Como se uma força misteriosa a acorrentasse à estranha e frágil guarda de um precipício; como se a mão de um demónio tentador, subtilmente a empurrasse para a garganta inflamada de um invulgar abismo, com labaredas, estrelas e cinzas. Ela recusava-se a debruçar-se demasiado sobre o precipício, ela impunha-se o receio - a entrada do túnel flamejante que a levaria até ao abismo. As suas resistências poderiam um dia diminuir?! Aí, Marcela retezava o corpo jovem e belo, como se um espasmo turbilhonante a tivesse atingido num remoto fundo de fabulosos e inacreditáveis orgasmos, com dores lancinantes a trespassarem, a golpearem um prazer a desmaiar, um longo prazer vitorioso apesar de tudo.
Mas ela nada deveria recear do perigo das contaminações, das solicitações escaldantes e ainda de todas as ciladas que os homens lhe preparavam.
Houve mesmo uma altura em que Marcela julgou conhecer-se. Vigiava os seus comportamentos. Analizava os seus sentimentos e todas as emoções com frémitos marginais. Afinal, sempre apreciara uma superficial ou indiscreta convivência com pessoas ambiciosas, vaidosas, de cérebros vazios, meio-loucas! Elas poderiam ter mais interesse que as placidamente comedidas, aquelas de quem se apregoa a seriedade e o equilíbrio...
As mudanças que notava no modo de se exprimir de Adriana depressa a levaram a concluir que a moça, arrebatada e insubmissa, se ia adaptando ao meio que repudiara numa estação de juvenil revolta. Certas descobertas e o procedimento cobarde de Anselmo tinham-na obrigado a fugir desse meio da sua infância e adolescência de cautelosas indagações. Regressando, da fuga temporária mal preparada, guardara, nela, ainda, impetuosos desejos de conquistas pelo saber. Depois, no lento martelar dos dias iguais, o pai de muita coisa, sensatamente a advertira; e Anselmo voltara e do encontro resultara um sacolejar de sentimentos, primeiro contraditórios e logo ávidos de compreensão e carinhosos intercâmbios. Adriana, porém, continuara durante algum tempo anciosa e perplexa. Pensaria no curso ambicionado, na mãe que não conhecia e nos mistérios do ontem e do amanhã. Nela deflagrariam alegrias e tristezas, ódios e desdéns, caprichosos desafios ao irrevelado e ao intocável e desejos de paixão e amor. Tudo se processaria em atmosferas electrisantes que o esbagoar das horas iria arrefecendo. Os seus actos permaneciam subordinados a subterrâneos sentimentos e apelos. Entretanto, a rapariga entretinha-se também com jogos de gestos e de palavras, numa grande liberdade de pensamento e com uma certa confusão nas suas afirmações, com suplementares e equilibrados anceios.
Por enquanto, para Marcela, Adriana continuava a ser a adolescente irriquieta, com algumas vigorosas atitudes que, como um tufão subitâneo, surgiam a desapareciam, felizmente, sem causar prejuízos irreparáveis. Milionária de ilusões e com os sonhos próprios da sua idade de espantos, ela possuía, contudo, uma personalidade interessante. Poderia submeter-se a algumas imposições sem perder a sua força interior?! O seu carácter era recto, denunciava-se mesmo na pureza das linhas harmoniosas do seu rosto que reflectia todas as suas emoções, os choques bruscos que ia recebendo. A sua mente sã não inventava impossíveis. E quando declarava que viria a encontrar a mãe, obedecia, sem dúvida, a avisos sérios da sua privilegiada intuição. Nela, latejava essa certeza animadora, talvez desde que descobrira a verdade magoante; e não seria, desejosa de encontrar a mãe, que ela um dia pensava ser médica, julgando, obscuramente, que doente e desgraçada, se lhe depararia aquela que, aviltada, desaparecera da casa onde apenas fora, em tudo, uma serva?! A vinda para a grande cidade, o pensar no curso de enfermeira que pouco depois abandonara, revoltada, já denunciara, a par de inúmeras das suas frases e perguntas, o desejo submerso em si de conhecer a mulher que somente fora fraca na aceitação da sua própria impulsividade amorosa durante uma época de paixão que a atirara para uma solidão desesperada de repulsas e vergonhas. Adriana tinha caminhos iluminados abertos à sua frente. Não teria de esbracejar, suportando ataques, para se afastar e fugir dos escurecidos atalhos com sombras frias, de punhais que rasgavam e queimavam, nunca pacificando tormentos e agonias. Para ela, de qualquer maneira, tudo seria fácil, amanhã, na pacatez de um pequeno meio onde nem as ambições seriam grandes e as injurias do tempo pouco se notariam, no lento, precoce e certo envelhecimento de todas as raízes e veias. Pelas inquietações e pelas fugas de Leonardo, Marcela sentia uma invulgar curiosidade que se transmudava em certas horas, numa latejante agonia de saudade da sua presença. Não o amava, todavia. Repudiara-o no passado, por variadas e válidas razões, mas no presente, apetecia vê-lo para lhe falar e para o ouvir falar das suas atormentadas corridas. Tudo, na vida complicada de Leonardo, estaria sempre, certamente, relacionado com a sua infância e adolescência; o rapazinho que aos doze anos fora "seduzido" por uma costureira sua cunhada, violenta e viciosa, num palheiro, vizinho de um quartelho feito de tábuas desunidas, curral acanhado guardando borregos e ruminadoras ovelhas, lembrar-se-ia sempre, de este e de outros acontecimentos ocorridos na aldeia a florescer entre penhascos, com bravias moitas de ervagens impetuosas, sufocada entre serras e a refrescar-se nas enseadas breves de um rio que vinha da vila próxima e seguia, com seus murmúrios de mistério, para a cidade vetusta que não ficava longe. Os pais, trabalhadores pobres, moirejavam em terras alheias, de sol a sol, de costas curvadas sob as bátegas flamejantes, horas longas, ficando ele a retoiçar pelos carreiros saibrosos e estradas velhas, desde a saída da escola (que ficava distante) até à noite. O irmão, mais velho do que ele dez anos, casara com a costureira e abalara dali volvido um ano, atanazado pela febre de uma congenital e plebeia ambição. Mais família não tinha.
No regresso da escola, à tardinha, ele pisava as tábuas gementes da casa deserta, bebia água por um púcaro de barro, da "talha" porosa que estava numa prateleira, num canto da cozinha escura e depois vinha sentar-se no degrau de pedra, à porta, escutando, a avultar de outros ruídos informes, o rumor monótono da máquina de costura da cunhada. A noite chegava e dos pinheirais vizinhos elevavam-se vozes desconhecidas. Leonardo, pondo de lado os cadernos, ficava, enebriado pelos aromas esparsos na aragem, suspenso daquelas vozes irreais que acabavam por aturdi-lo. Muitas vezes os pais o encontravam adormecido na soleira da porta, enrodilhado, de bruços em cima do livro aberto, de folhas marcadas por dedadas gordurosas.
A solidão da natureza indomável que tudo penetrava com memórias de lendas inquietantes, levara Leonardo a aproximar-se da cunhada que, muitas mulheres da aldeia detestavam ao ponto de não quererem as suas costuras, apesar de perfeitas. Era mulher sozinha, com olhos de loba.
Quando ela, numa tarde sem vento, assomara à janela baixa do casebre, convidando-o para tomar um chá de folhas de hortelã, correra, num alvoroço, ao seu encontro. Um pouco mais tarde ela propuzera, com as faces vermelhas, irem ver um cordeiro nascido dias antes. No palheiro mal iluminado, com filetes de sol na cal crespa das paredes, tudo bulia e estoirejava sob as traves grossas e as telhas aquecidas. O monte de palha estava morno, e quente era o regaço aberto da mulher. Leonardo aconchegou-se nessa curva e nessa mata e nesse lago, desconhecendo todas as voluptuosidades que escondia e guardava para ele. Acordara novamente na soleira da sua porta, quando os pais chegaram com os ecos das trindades que da vila, de ravina em ravina, e de socalco em socalco, vinham esmorecer ali, entre as árvores espectantes ou já sonolentas e no cascalho açafronado que recobria pequenos terreiros desertos.
Fora a cunhada que também lhe contara uma história que lhe dizia respeito, e, talvez, fosse verdadeira. Na adolescência de espantos, relembrá-la-ia, para imediatamente procurar e aceitar, cilicios, em penitências voluntárias e ardentes sacrifícios, que o enfraqueciam, feitos em desagravo do pecado que o puzera neste mundo complicado, de abominações, de desencontros e de tumultos. Ele seria, somente, meio-irmão do seu irmão ausente, queimado pela febre do muito ganhar. Dos amores furtuitos acontecidos entre a mãe e um rico senhor de muitas terras, moinhos de farinha e lagares de azeite, nascera ele, gentil e frágil. Esse senhor dera, durante muitos verões a culminarem em trovoadas e raios que pareciam querer despedaçar as serras, trabalho à mãe, oferecendo-lhe moedas de ouro que ela, fascinada e avara, guardaria no fundo das arcas velhas arrumadas no quarto em penumbra... Leonardo inclinara-se a acreditar em que algo sucedera, já que para os seus estudos, o dinheiro aparecera sempre, e, em certa altura, os pais começaram a adquirir boas leiras de semeadura, negras de húmus fecundante e alguns olivais por muitos cobiçados.
As suas crises de angústia tinham-se todavia dissipado perante o que para ele se rasgava através dos estudos. Sofrera, também, a alucinação deslumbrante das místicas aparições e nos lagedos das capelas cheias de sombras cinzentas, sentira sobre a cabeça o roçagar de asas de anjos! A voz do Senhor penetrara-lhe no coração alvoroçado, indicando-lhe caminhos de doce serenidade. E durante alguns anos, ele seguira, de facto, caminhos de fé e luar, até que, a concupiscência lhe enfebrecera a carne. Relâmpagos de desejo o atormentavam. Queria fugir das tentações, como em criança fugira da cunhada lúbrica que o atraia para o palheiro com cheiros excitantes de animais e os relentos dos estrumes fumegando sob esteiras de sol. Mais tarde, por um bom espaço de tempo, homem e padre, a inteligência e a razão impuseram-se vitoriosas. Vivera estações de meditação, dedicara-se à música, ocupara-se em obras de caridade. Mas nele hereditário e latente, estava o ardor, a potência, o desejo másculo que os repetidos jejuns e as horas de contemplação não destruíam.
Depois de várias aventuras julgara-se, enfim, senhor de si, capaz de dominar impulsos sensuais. O confessionário, porém, fora para Leonardo martírio permanente. O bom senso não chegaria para o jovem padre... A paixão que irrompera nele, a estilhaçante agonia de um amor impetuoso e proibido, mudara por completo o rumo da sua vida. As efervescentes emoções, as decisões súbitas (Leonardo seria sempre um homem inquieto, com ímpetos inesperados a retalharemlhe a própria carne ardente), o turbilhão das ideias inflamadas, seriam, se não as responsáveis, pelo menos as condutoras para a agitada vida em que iria cair, como alguém que, de salto em salto, fosse rolando para um abismo de imprevisíveis dimensões e funduras. Leonardo seria sempre um atormentado, um insatisfeito, no redemoinho galopante das surdas revoltas.
De Leonardo, que gerava nela ansiedades incompreensíveis, Marcela ia até Máximo, até onde a sua memória podia alcançar, no desenho dos arabescos ambíguos que ele fora traçando ao desenvolver episódios da sua vida, através de várias etapas fundamentalmente decisivas e importantes; abrindo e fechando portas, ela chegava ao ermo do viver actual do homem que a todas as mulheres enganava porque a nenhuma amava, que a todas mentia, mentindo a si mesmo, na procura constante de um chamejante aturdimento. A vida de Máximo era de solidão desesperada. Ele afundava-se no rio das suas mentiras; afogar-se-ia nelas, vendo-se-lhe então, de fora, a língua envenenada e negra pendente como membro repulsivamente murcho?! O futuro é um alçapão...
Marcela que tantas vezes, em aflição, se dissera que não se conhecia, a ela própria, começava a conhecer-se um pouco, compreendendo, afinal, as razões porque se submetera ao desenfreado e esporádico desejo de José Júlio e aceitara, num tempo de algumas vitórias, as odiosas mentiras, em cadeia, de Máximo que agora ia dissecando através dos conhecimentos obtidos. Nela, a libido tinha exercido (e continuava a exercer) uma influência invulgar; desejava, sexualmente, mas esse seu desejo, às vezes rebentando com uma espécie de furor, também se ligava à sua espantosa energia psíquica que criava imagens de prazer, admissíveis numa natureza com imaginação forte e simultaneamente sonhadora, dinâmica, e arrebatada.
O que em outras mulheres, na maioria, não passa, geralmente, de comédia forjada, estudada e representada com intenções voluptuosas de agrado e sedução, era em Marcela plenamente verdadeiro e sentido. Se ela amasse... Ao apelo imperioso e fulminante, ela seria a entrega total que, deveria ser magnífica se fosse correspondida no esplendor de uma vibrante fusão de ternura. Não encontrara jamais o amor... E no entanto, procurara-o, mas em vão. E daí, as suas horas de desencanto e raiva, o amargor dilacerante de muitos minutos nocturnos, no espasmo e no frémito sem correspondência. Da magia dos sonhos por ela criados, ficava, simplesmente, uma poeirada de desilusões.
Máximo encorajara-a aos desejos proibidos, com os seus atrevimentos; por isso ela o desejara, odiando-se, e odiando-o em face da vileza dos seus procedimentos, sobretudo.
Começava a conhecer-se (ou pelo menos, ingenuamente tal julgava) e ao mesmo tempo compreendia que já era capaz de dominar-se fosse em que circunstâncias fosse - dominar-se, tendo a coragem de afastar, até por meio de violências físicas -, com eficaz desdém pela chamada aliciante.
Todavia, continuava a querer amar! E se pensava, intensamente, no futuro, o que não era nela frequente, exactamente porque, apesar de forte em muitos sentidos, temia as interrogações com ecos disformes e agudos, como um estilhaçar de prismas entontecedores, tremendo à ideia de que lá encontraria somente a paisagem árida com uma única sombra: a sua. Gostaria de amar alguém que igualmente a amasse, sem afrontas magoantes, sem a calaceira intervenção do interesse material - alguém que fosse da sua raça de lutadora. Contudo, para amar, precisaria, urgentemente de esquecer o passado onde Macário, José Júlio e Máximo se tinham movimentado. Júlio morrera. Macário e Máximo, porém, impunham-lhe ainda a existência e a presença com o intuito perverso de a não deixarem readquirir a tranquilidade no completo esquecimento. Recusava quimeras. Não queria o transitório, como se ignorasse que a própria vida é ilusão e passagem - que tudo é mortal. Dava aos próprios sonhos dimensões de vivência e aí se exaltava em ardores sem paralelo. Marcela possuia o vigor e a coragem de se bastar a si mesma; contudo, não renunciava a uma procura que emergia do mais secreto do seu ser ardente e impetuoso. No seu subconsciente a luta prosseguia. Escapar-se para longe não lhe seria fácil.
Dos países que já conhecera guardava muitas memórias. A evasão para novas paisagens surgia-lhe, às vezes, quase imperiosa. E para mais algumas dessas aventuras trabalhava afanosamente, privando-se de regalos e divertimentos. Sentira-se demasiado acompanhada, e sozinha, nas viagens que fizera; isso, porém, não obstara a que procurasse descobrir e conhecer o mais possível de capitais como Paris e Roma e de muitas cidades das mais representativas de diversas pátrias. O seu sonho de viajar começara a ser realidade na altura em que quizera estabelecer entre ela e Máximo, que de certa maneira a explorava, um grande traço de distância. A sua temerária e audaciosa atitude de então, fê-la sorrir mais tarde. Realmente, ela era bem uma mulher invulgarmente corajosa e de irrevogáveis decisões, sempre que o desejava. Acaso se deixara intimidar pelas dificuldades, pelas injúrias, pelas ciladas e poços que a vida lhe oferecera ao deixar Macário?! Do procedimento dos familiares apenas guardava lembranças de asco, já que nunca esqueceria a vileza de Luis e de Alice, a rapacidade hedionda dessas criaturas que a tinham roubado. E aceitara tudo o que de mau lhe fora dado porque se sentia bastante forte para enfrentar ainda mais assaltos e tormentos de luta.
Mais por ele mesmo do que por estranhos (Marcela odiava todo o género de cuscuvilhices e o falazar dos alviçareitos), fora sabendo a vida, com sórdidos aspectos, de Máximo. Se os primeiros telefonemas a tinham assombrado, os seguintes, com intervalos mais ou menos longos, e o encontro acontecido, iam-na deixando indiferente. O fel do despreso já não lhe amargava a boca. Muitas vezes, mesmo, surpreendia-se a pensar que, como Máximo existiriam inúmeros homens, trafulhas e mentirosos, venais e insensíveis, somente preocupados pelos prazeres da carne e pelo amontoar do dinheiro - o dinheiro que os filhos esbanjariam com a insolência dos malandros natos que tudo tinham encontrado feito. E assim, o lamentável, fora que o acaso diabolicamente ardiloso os tivesse reunido; do encontro de ambos, no Banco, donde retirara na altura própria, o seu depósito, fazendo uma transferência para outro Banco, exactamente para não mais propiciar qualquer conversa rosto a rosto, ficara-lhe durante meses um intenso desencanto, uma raiva lacerante, uma penosa recordação. Os telefonemas feitos por ele pareciam-lhe os ecos de uma saga fabulosa que, nem a comoviam, nem a exaltavam já; a voz pesada e parda nada tinha de insinuante. Para Marcela, só o vivo diálogo travado na presença dela e com quem falava tinha valor, e a impressionava, bem ou desagradavelmente. Detestava conversas telefónicas e por isso as evitava sempre que podia. Ela apreciava o documento, a verdade, as certezas; gostava de ouvir, de discutir - e também gostava de escrever longas cartas afirmando a sua personalidade, a pujança da sua inalterável força de vontade.
Não era portanto, apenas ela, que guardava centenas de cartas de Leonardo, o apóstata de desvairadas correrias para um amanhã incerto ou trágico; Leonardo também possuía muitas dezenas de cartas suas, com ardentes confissões de amizade, com surtos poéticos ou abordando temas filosóficos. Reunidas todas essas cartas, frementes de afirmações invulgares, dariam um romance original, cheio de contradições é certo, como o próprio ser humano, apaixonado e rebelde, sensato e aventureiro, realista e sonhador, lutador e receoso, querendo e temendo o que lhe poderá oferecer prazer, desesperado e heróico, carregado de renúncias, em suma.
Escrevera-lhe no passado e continuava a escrever-lhe para uma posta-restante; Leonardo mudava, cada vez mais frequentemente de endereço, talvez, para que, aqueles que considerava perseguidores e inimigos não lhe seguissem facilmente o rasto, ignorassem as suas caminhadas de apóstolo de um ideal que não se coadunaria com a mentalidade e modo de viver de um povo livre, no campo de todas as liberdades concedidas aos que honestamente lutam apoiados por garantias de trabalho.
A uma das suas cartas Leonardo respondia com duas ou três, embora lhe telefonasse. Perdia-se, contudo, geralmente, em emaranhados de considerações utópicas e, quem sabe se por pudor ou medo, pouco falava de amor. Dir-se-ia que essa fonte nele tivesse secado já, deixando-o exaurido para novas emoções amorosas ou mesmo furtuitos devaneios epistolares. Ele desejava acção; procurava perigos como se lhe fosse necessária e útil a febre que ainda pode arremessar para mais longe, até à ilha dos aturdimentos.
Apesar de tudo, Marcela pensava bastante em Leonardo. Atribuía isso à sua solidão, e, também porque, fazendo comparações (não há amor quando se atinge ou pisa o clima da comparação), reconhecia que o antigo padre, com todas as suas incoerências, e defeitos, possuía alguns bons sentimentos que não existiam nos homens que conhecera e conhecia; estes eram capazes de todas as trapaças, insensíveis ao mal que causavam. Afastava-se, ia-se afastando dos cubiçosos, dos malvados, dos devassos, dos que arrastavam tédios, preguiças e mórbidas sensualidades em reuniões como as que se sucediam em casa de Narcisa, mas muitas vezes sentia, latente, a angústia do estar só, do permanecer num isolamento com gravitações de chamadas, de apelos, de vertigens e de lúcidos desmaios de um prazer de cinzas brancas; forte, logo erguia, porém, a fronte, como que a desafiar-se. Devia ganhar o hábito da solidão. Depois sentir-se-ia totalmente vitoriosa e trabalharia muito melhor, dispondo de si de acordo com as horas que se esbagoariam num ritmo sem agressões.
Preparara-se há muito para as mais terríveis lutas; o acto de lutar, contudo, comportava mais que energia e força de vontade. Exigia renuncias e a entrega, sem compromissos, de secretas parcelas. No conviver, na falácia gratuita, muitas riquezas se estiolavam e perdiam. Seria a eremita de uma nova fé, sem ergástulos de violências ocultas.
Quase de repente, Adriana virou mulher de insignificantes (pela sua vulgaridade) horizontes. Marcela recordou que a moça lhe dissera um dia que desejava parecer-se com ela; contudo, não fora muito além dessa entusiasta afirmação, numa idade cheia de vigor e irreflectidas palavras. Afinal, essa frase de Adriana também a fizera lembrar (e então sorrira com ironia e malícia) o caso de dois políticos que numa determinada altura das suas vidas, teriam apresentado semelhanças nos seus ideais. Passado algum tempo, porém, um deles, demonstrou brilhante e profundamente a sua alta envergadura, a sua inteligência e argúcia, enquanto o outro, medíocre e primário, em atitudes e reacções insolentes e inesperadas, ficava isolado numa posição de ileiçoeiro sem reais méritos, fixado apenas na moldura aparatosa de um lugar cujo prestígio estava na própria moldura, nada mais. O menor quizera parecer-se com o maior, mas depressa quebrara as asas nas esquinas das tentações. O primeiro subiria. O segundo, era como a mulher que somente se enfeitou até casar, ou que se arrebitou até prender homem que a mantivesse, alcançando com isso situação desafogada. A partir daí, em tudo denunciara o ridículo exagero das suas ambições que se iam gorando, em frustrações sucessivas, num aparato caótico de sonhos destroçados. Do malogro dramático dos desejos orgulhosamente proclamados já na juventude, que fora ardente, só ele, conheceria todos os meandros. Estes escondia-os sob subtis e afectados sorrisos, com insinuações capciosas de uma felicidade inexistente...
Adriana perdera os seus ideais; Adriana deixara de ser a rapariga rebelde, emotiva e corajosa com intenções de aceitar perigos, para os dominar e ultrapassar, na alegria vitoriosa de ir mais além, altiva e triunfante; Adriana convencera-se (e do facto Marcela não tinha dúvidas) de que fora o seu amor por Anselmo (recuperado) que a levara a renunciar a ser médica, a abandonar os estudos com desprendimento, como se não os tivesse começado com paixão. Prosaicamente, Adriana submetia-se; casaria com Anselmo que não desejaria alguma vez ser designado, simplesmente, pelo "marido da médica". Ela não se imporia, na vida.
Na raiz da sua opção, porém, estaria ainda o feminino orgulho por ter sido ela a vencer os pais de Anselmo, a sua resistência, aliás injustificada. Eles haviam-na detestado porque a ela estava ligada, numa espécie de cordão umbilical, a uma história amarga e sombria. Ao filho adolescente, cheio de interrogações e incoerências impuzeram castigos severos, repetindo-lhe ameças, semeando assim na sua alma o medo e a incerteza e obrigando-o a afastar-se da moça que não conhecia a mulher mísera que fora sua mãe e da vila abalara sem avisos, talvez para procurar a luz de um destino menos cruel. Mas Anselmo, enriquecido de conhecimentos pelos anos vividos sob as correias, reencontrando-a, sorrira-lhe como homem, senhor das suas preferências. O sucesso pertencia a Adriana, mas Anselmo é que favorecera, aproximando-se, essa vitória que faria a felicidade de ambos, certos dos seus sentimentos, estimulados por recordações de um passado de sobressaltos e desencontros das atitudes. Anselmo embora amasse os pais, admirando o seu persistente trabalho de educadores, de modeladores de caracteres, deixara de escutar as suas críticas ácidas e injustas, mesmo incompreensíveis, não aceitando os seus conselhos de uma sensatez postergada.
Vindos de famílias pobres, tanto um como o outro tinham estudado suportando as maiores dificuldades e apresentando-se nas aulas mal vestidos e insuficientemente alimentados. Só a mãe de Anselmo, filha de um ferro-velho que tarde enriquecera, nos dois últimos anos de estudo lograra um certo desafogo, mas continuara a ser a filha do ferro-velho viúvo e sórdido que andava pelas aldeias a comprar todas as velharias que encontrava, desde as ferraduras ferrugentas até aos baús de lata com as pinturas apagadas. Quando a jovem começara a vestir-se melhor, as colegas riam do seu mau gosto e espalhafato. E ela jamais esqueceria essas troças juvenis e directas. O pai, filho de um amolador que comprava também peles de coelho que ia revender à cidade, e de uma carvoeira analfabeta e deligente, sentira-se sempre um tímido, de frustrações congénitas e depois de ter ajudado à missa durante dois anos, começara a estudar com afinco, a conselho do senhor padre Mateus que fora seu "explicador", até morrer de "uma dor no coração", e lhe dera beliscões nas orelhas até estas ficarem cor de sangue. Mas o senhor padre Mateus foi relembrado sempre com amor pelo seu "pupilo" - se não fossem esses beliscões queimantes como brasas em cima da pele, talvez nunca chegasse a ser professor...
O casal desejaria que o filho procurasse ou encontrasse moça filha de matrimónio respeitado e opulento, de grandes relações, que lhe propiciasse (e a eles igualmente) a entrada nos círculos interessantes das esferas superiores. Na cidade, não lhe seria fácil um casamento brilhante?! O filho, contudo, somente lhes pertencera até alcançar os vinte e dois anos de idade. Depois, nele explodiram ideias e sentimentos, afirmando-se a sua personalidade. Refractário a sentimentalismos e ocas pretensões, acarinhou, entretanto, um sonho, obstinado, que a ninguém reveleou. Se Adriana não o repelisse quando um dia o acaso os reunisse, dir-lhe-ia (preparando a ocasião) que lhe permanecera fiel, mas que amando-a, poria condições, para o futuro... Foi isso que aconteceu. E os pais silenciaram perante a resolução, com imposições, do filho adulto que traçava o seu caminho para amanhã, deixando-os estarrecidos. Ele em nada os satisfazia; abandonara os estudos, empregara-se, ia casar com a filha do Juvenal de má reputação, um homem incoerente, de passos oscilantes, que se embriagava, que continuava a viver à sombra dos pais e que nunca mais se entenderia com a mulher, a Constança nevrótica de quem a vila inteira conhecia (para maldizer) as crises de exaltação e de abatimento.
A desilusão, o desabar dos seus sonhos de pais que desejavam para o filho as facilidades e o prestígio que nunca tinham alcançado, abateu profundamente os dois professores. O desinteresse veio-lhes ainda do envelhecimento prematuro, fulminante. Concordaram, enfim, calados, sem energia para mais conselhos inúteis e recriminações inaceitáveis. Entretanto, quase toda a "família" de Adriana fora banida dos seus débeis pensamentos. Eles tinham detestado Luís, o ladrão que roubara os bens e muitos objectos da irmã, o "senhor", Luis de lábio rachado mal costurado, que tinha cara de tubarão, e a mulher dele, a Alice que meio-louca ainda fora submetida a uma operação ao fígado que começara a inchar, deformando-lhe a cintura. Apenas admiravam a coragem da "tia" de Adriana que vivia longe e que há muito abandonara definitivamente a vila. Essa merecia, de facto, a admiração dos velhos professores. Uma jovem mulher que despresava os infames e que sozinha trabalhava para viver, proclamando a sua vitória potente na alcançada independência material que lhe conheciam. Mas Adriana afastara-se dessa "tia", não possuía a sua força interior...
Marcela, no pacto e compromisso feitos com o destino que se traçara, era, simultaneamente, comparsa e espectadora da desnaturada comédia da vida cotidiana, que se repetia, com pequenas variantes. Não encontrara ela em Clemente, o cínico amigo de Narcisa, os mesmos abomináveis defeitos que José Júlio escondera na alma torpe de sádico e explorador de mulheres?! A cultura não apagava as tendências para o sórdido no peito dos homens visceralmente malévolos, cheirando e procurando, como podengos traiçoeiros e safados, a oportunidade de se imiscuírem, calaceiros e devassos, na intimidade da mulher vivendo do seu trabalho, sem família e sem quaisquer protecções.
Ouvindo Clemente, desejava muita vez rasgar-lhe a máscara, arrancar-lhe a pala preta do olho vasado, com palavras golpeantes, mas em vez dessa agressão que seria reprovada, apertava os lábios e sorria desdenhosa, das suas afirmações mentirosas. Nada temia, contudo. Não era a cobardia que a arrefecia intimamente. Simplesmente, não desejava o desencadear de uma inútil luta verbal.
Todo o absurdo da vida e das vidas dos seres trampolineiros lhe repugnavam. E, todavia, viver, era para ela um prodígio ímpar que ilimitadamente a entusiasmava. Por isso ainda queria o amor como complemento da sua existência rica de desejos e como ajuda da sua interior e permanente euforia que nada esgotava ou conseguia empalidecer. Mas não encontrava o amor de um homem sincero... O que encontrava eram homens mentirosos, intrigantes, de duvidosas atitudes e que apenas pensavam no sexo, nas ilhas onde se afundariam para o prazer sem obrigações. A lubricidade estava neles. Casados, "poupavam" as mulheres aos seus inflamados caprichos libidinosos (desejos sem centelhas daquela maravilhosa imaginação que torna a posse inesquecível pelo seu acordo e profundidade). Ela tinha, portanto, de continuar só, sonhando com a felicidade, que existe, sem dúvida, entre as dádivas recíprocas do amor, da ligação dos corpos que se procuram, encontram a interpenetram sem reservas.
Lentamente, ia aceitando a injusta maldade do seu destino ou a praga que lhe terá sido rogada por boca venenosa.
Refugiava-se em silêncios para pensar nos outros, no que lhe sucedia, e para se analisar sem contemplações. No mapa pertencente a cada criatura ela "via" os seus traços corruptos desenhados a sangue; na sua própria paisagem ela descobria sagas apaixonantes e carreiros ínvios que deveria evitar com ardente tenacidade...
A notícia da grave doença de Constança chegara-lhe com o atrazo de dois dias. Nesse espaço de tempo, embora curto, dera-se o inesperado. Constança morreu, devido a uma peneumonia que a princípio descurou. Marcela pensou, durante horas compridas de introspecção rigorosa, na irmã bruscamente desaparecida, mas não se decidiu a voltar à vila onde tinha sofrido, sujeitando-se a encontrar o miserável Luis que a delapidara. Lamentou, apenas, Adriana, que se encontraria aflita perante a morte, esse mistério sempre aterrador.
Numa das suas crises de desespero e desconsolo, Juvenal cumprira a ameaça inúmeras vezes repetida; fora para casa dos pais e lá permanecera até que Constança adoecera. A pedido de Adriana, debatendo-se numa confusão de pensamentos, ele regressara à sua casa a tempo de pacificar a alma inquieta da mulher que, provavelmente, nunca o amara; suportara-o, apenas, durante uma vida de histéricas altercações e mesquinhos ataques. A morte viera para apagar muitas coisas do passado conflituoso. E, como se a desgraça e a sorte das pessoas fosse ordenada em instantes preparados, previstos e certos, um outro acontecimento perturbou e exaltou extraordinariamente Adriana, pouco depois da morte daquela que se habituara a tratar por "mãe" (a Constança atrabiliária que Marcela não fora olhar hirta, nessa magestade singular que a morte imprime às fisionomias mais vulgares, ou de mais ordinários traços).
Absorvia-se ela, melancólica, nos preparativos das peças que usaria junto de Anselmo, pois que, como jovem pertencente a uma burguesia ainda não corrompida pelas vertigens da cidade, era ela, quem confeccionava o seu enxoval, desdenhando dos adereços que qualquer pessoa poderá adquirir; na casa deserta planavam asas de paz, que lhe facilitavam os sonhos enquanto as suas mãos bonitas trabalhavam. Para ir à vila, raramente saía, mas, com certa frequência, deslocava-se até à cidade, comprando ali os tecidos e os linhos que ia transformando em preciosas toalhas e conjuntos de cama. Muitos dos desenhos que enriqueciam essas peças eram originais de Marcela, criados exactamente para serem pacientemente bordados por Adriana, com gosto e com amor.
Num dia fulvo de Verão, Adriana (já integrada no seu novo papel de mulher dona da sua casa) preparou-se esmeradamente e disse ao pai que só voltaria da cidade no último comboio; deveria, portanto, regressar à vila, às sete da tarde, ainda com o sol alto. Inquirira, à despedida:
- E o pai fica todo o dia em casa?! Não irá ao armazém, nem dará ao menos uma pequena volta, para se distrair?!
- Não penso sair hoje. O calor tira-me as forças. Vai descansada. Hei-de dormir uma grande sesta, talvez debaixo da latada...
- Fica tudo em ordem.
- Segue tranquila, anda; não é a primeira vez que me arranjo sozinho.
O pai olhava-a e sorria-lhe. Não havia azedume nem ironia nas suas palavras. O ligeiro sorriso que lhe arqueava os lábios requeimados pelo alccol e pelo tabaco, traduzia quietação e uma certa ternura. Estava sóbrio.
Na alma de Adriana, nem um pressentimento. Ágil, desceu as escadas, atravessou o jardim inundado de sol curuscante e para fechar a cancela ressequida, voltou-se para a frontaria da casa; ficou-se a olhá-la, por um instante, como se quizesse assegurar-se bem dos seus traçados, das marcas nela apostas pelo tempo, para a hora próxima. Depois, resolutamente caminhou, sob a implacável bátega de sol, para a estação, com a certeza de que, à tarde, quando regressasse, veria a casa da mesma maneira, como aquele severo e imutável cenário de serras, de vegetaçãões densas, de que conhecia muitos segredos e que ficava para além da planura doirada. Mas, assim não aconteceu... Adriana voltou, com olhos diferentes...
Adriana regressou da cidade ainda com o coração a bater fortemente e com uma expressão de febril espanto nos olhos rasos de ansiedade. Acompanhava-a uma mulher magra, de rosto fechado, que caminhava a seu lado, gravemente, cuidadosa em colocar o pé direito à frente só depois de ter o esquerdo bem espalmado no trilho irregular, com pedras azuladas pelo calor declinante.
Na estrada por onde seguiam não havia movimento humano. Das quintas vinham os rumores dos trabalhos daquele dia, nos restolhos e nas eiras, quase terminados. Um cão de guarda ladrou algures, numa advertência passageira logo soterrada pelos ruídos multiformes da terra fremente e aquecida. De um silveiral, na berma do carreiro largo, escapuliu-se um gato vagabundo magro e mísero que miou um pedido de afago (estes, cão e gato, eram tristes animais de aldeia).
As duas mulheres caminhavam caladas, concentradas no denso clamor das interrogações que se percutiam dentro delas.
A notícia com recortes de acontecimento alvoroçante só no dia seguinte se divulgou, deixando assombradas todas as pessoas da vila; Adriana encontrara a mãe. E fora na carruagem do comboio que a desconhecida se aproximara dela, perguntando-lhe pelo senhor Juvenal... Nos solavancos da carruagem vazia de estranhos, elas tinham-se identificado e abraçado sem efusões demasiadas. Nunca Adriana revelaria a alguém o choque da emoção produzido pelo desejado reencontro. Aquela seria uma das comoções mais profundas da sua vida e que guardaria só para si, como se se tratasse de um mistério de nascimento que ninguém deveria penetrar.
Reentrando no jardim, Adriana terá olhado a casa com olhos diferentes, como num reconhecimento da velha frontaria.
Juvenal dormira toda a tarde e talvez ainda ensonado, fora sem perplexidade que acolhera a mulher que desejara vinte anos antes. No seu espírito, porém, a confusão logo se estabelecera e na manhã seguinte não se levantou à hora habitual. Sentia-se débil, inseguro das atitudes a tomar, receoso de encarar a realidade. Foi aí que Adriana revelou, triunfantemente, todo o seu amor pelo pai e pela mãe, e, toda a sua coragem para enfrentar a onda humana da vila onde nascera.
As pessoas conhecidas, todavia, depressa recuperaram a calma de sempre que fazia delas murchas comediantes da fantochada das vidas que viviam em desertos de mediocridade.
A casa de Juvenal era a mesma e, no entanto, parecia muito mudada pela presença da mulher que percorrera muitíssimos caminhos e voltara, porque nunca deixara de se sentir mãe.
Talvez que só os pais de Anselmo se tivessem sentido ultrajados pelo regresso da mãe de Adriana. O seu frio e ressentido silêncio era uma acusação à mulher desconhecida.
Marcela guardaria daquela noite imensa uma recordação que a perseguiria por muito tempo. Fora uma noite de malefícios, a que vivera, presente e ausente em caminhos com sombras disformes, cavernas e buracos tentaculares. Um labirinto onde julgou perder-se.
Os dias que se lhe seguiram foram de intranquilidade; Leonardo estaria em segurança?! A chamada telefónica, breve e lacónica, alvoroçara-a desagradavelmente; o homem que solicitava um encontro imediato, num balbuciar tumultoso, atropelava as palavras, não terminando as frases, e, nesse galope furioso e desconexo de dizer depressa muita coisa, a voz saia-lhe da boca alterada, grossa e seca. O pânico contraira-lhe a garganta e também com a voz demudada, insegura, perguntou, quando teve margem para o fazer: "Mas és tu Leonardo? És tu que estás a falar-me?!" A mesma voz de homem prestes a afogar-se replicou-lhe: "Sim, sou eu. Pois quem havia de ser?! Vem depressa. Não te enganes..."
Fora ao seu encontro, sentindo um vacilar esquisito nas pernas e uma amarga secura na boca. No local indicado ele lá estava, num grupo de desconhecidos que aguardariam fosse o que fosse, talvez mesmo o desfilar invisível do tempo que ali não os estrangularia de dor, porque não estavam sós.
Tentou sorrir-lhe singelamente, dando a impressão de que não chegava, mas sim "estava" e ambos procuravam, despreocupados, "alguém." Leonardo, com o boné mais enterrado na cabeça, a barba crescida, uma "écharpe" amarela enrolada no pescoço, pôs-lhe a mão no ombro dizendo-lhe: "Aquela tua irmã é assim..." Era a "senha"...
Ela enlaçou-o pela cintura e sairam, furando o turbilhão de vozes agudas e pardas que se baralhavam numa atmosfera pesada de odores e de fumo, contaminada por hálitos infectados, viciada pelo cheiro que se desprendia dos corpos.
Deliberadamente saíram para a noite. O céu longínquo recamava-se de estrelas fulgurantes. De algures, numa rua deserta, rolavam os surdos estrondos de um medonho "sabat". E eles avançaram, muito unidos um ao outro. Marcela tremia. "Onde vamos nós?!" Os passos ecoavam no empedrado da rua em funil. "Iremos onde ninguém nos vigiará nem esperará, lá onde as trevas sejam forforescentes como olhos de gatos já mortos. Pararemos junto de um paredão e pensaremos se nos deveremos lançar às águas rugidoras, ou não..." Leonardo parou, deu uma gargalhada. "Só falta eu cambalear para parecer um homem embriagado. Que dizes?!"
Mas Marcela limitou-se a olhar furtivamente para as casas com raras janelas iluminadas. O aspecto da rua e das casas sonolentas era irreal. Havia paredes muito brancas e portas negras com arabescos de misteriosas sombras.
"Estamos perto do rio... Continuamos?!"
Os passos ecoaram de novo na ruasinha acidentada.
Nunca mais Marcela esqueceria as voltas que dera naquela noite e que lhe fizeram relembrar, paradoxalmente, aquele caso secreto e horrendo de uma parteira que, a horas de espectros vingadores, fora acordada, chamada por um homem de rosto entumescido que, de pistola em punho lhe dissera, com um pé já dentro da sua casa: "Acompanhe-me. A minha filha precisa de ser assistida imediatamente". Embora admirada pela insólita atitude do homem, a parteira, que muitos segredos da vida conhecia, acompanhou-o. No carro dele, deu voltas inúmeras (e a urgência, a urgência que ele apresentara?!), por ruas e avenidas, pracetas e ruelas íngremes, e depois, ela tivera, em certo momento, a impressão de que regressavam quase ao ponto de partida. Mais um deslizar vertiginoso sob a noite, com um vento uivante a fustigar o visível e o invisível. O homem parara o carro abruptamente. Subiram uma escada, pararam num patamar de um primeiro andar cheirando a alfazema. A mulher entrara, fora conduzida a um quarto em penumbra trespassada de gemidos. E assistira a um parto monstruoso, cujo trabalho estava quase no fim à sua chegada. Num leito revolto, os cobertores resvalando para o chão alcatifado, avultava o contorno de um corpo feminino que se contorcia, dilacerado por dores de várias espécies. Os lençóis branquejavam à luz difusa e manchas de sangue alastravam nessa brancura de pesadelo. Uma rapariga, tinha a seu lado algo que não deveria nomear-se...
O homem que a fora buscar, impuzera levá-la novamente a casa. A madrugada avizinhava-se, numa palidez gelada. Cessara o revoltado cântico do vento. Pela cidade sucediam-se os atropelos dos que dormiam pelos bancos, em refúgios miseráveis, de todos esses que, precariamente, têm de ganhar no próprio dia o seu sustento - a magra tibornada dos esquecidos de Deus e que diabos grosseiros empurram para os tremedais dos totais desalentos, onde não há lugar para a blasflémia irada que sugere a frontal rebeldia. A luta enfraquece e embota os infelizes.
Medrosa e agoniada, a mulher descera as escadas, às escuras, cambaleante, escondendo num bolso do casaco um pedaço de gase ensopado em sangue. À saída do prédio, rapidamente, ela tirara a mão do bolso, esfregara a gase na cantaria da entrada daquela casa de bairro com pretensões elevadas. Entrara no carro, guardando o dinheiro - uma soma avultada. E o homem, de olhos dementados, fixos nela, ainda rouquejara: "Guardará segredo até para além da morte".
Aquela mulher sabia muitos segredos. Pertencia a uma classe, todavia, em que a curiosidade dominava todos os sentimentos. Ela indagada, ela com as débeis referências colhidas, havia de encontrar aquela rua, aquele prédio, aquele alisar de porta onde fricionara o pedaço de gase embebido em sangue quente. E encontrou. Revelara o segredo medonho talvez para se libertar de uma opressão, mas não dissera o nome, que ficara a conhecer, dos intervenientes do angustioso drama. Era filha única a jovem que pecara e uma força oculta castigara... Única, e, entregue aos seus caprichos...
Marcela, ao caminhar pelas ruas sonoras, ao descer e subir escadas de pedra, ao atravessar pracetas mal iluminadas e com bancos ocupados por criaturas desgraçadas que ali dormiam sob o céu distante, ao relento húmido, pensou na parteira curiosa, mas, sem desejar voltar para reconhecer os sítios que Leonardo a obrigava a percorrer, fugindo a possíveis espiões e delatores e a mãos poderosas cujo encontro evitava.
Após muito andar, chegaram a um largo atravancado de carros, um cenário estranho sob um luar implacável como luz que ferisse olhos sensíveis. "Conversemos aqui. No meio destas latas passaremos despercebidos". Leonardo rira sinistramente. Ele falara. Dissera-lhe o que ela preferia ignorar da vida dele. Confessou-lhe que continuava a amá-la - um amor complexo com apetites de selvagem; fez-lhe pedidos graves. A seguir, clareava o dia, tingido de cores doiradas, e ela sentia-se entanguida, miseravelmente indefesa e timorata, ele propôs: "Vamos à "Ribeira" tomar uma bebida a escaldar, um chocolate, por exemplo. Estamos perto... Agora, só lá encontraremos os debochados e os que há pouco deixaram o Casino. Não haverá perigo". Ela levantou a gola do casaco, enfriorada. "Não, não, separemo-nos aqui. vou orientar-me..."
- replicara, nervosa. Agora era ela quem receava ser seguida ou perseguida, por fantasmas grosseiros, talvez por algum conhecido de Macário que espalharia a calúnia de que ela dera em noctívaga, ela que, sem saber porquê, tinha horror à noite, embora inflamada de luzes e com céus pontilhados de estrelas.
Despediram-se como quem se despede até um amanhã que pode significar eternidade, no começo de uma rua com vento agreste encanado, demolidor de todos os sonhos. Ela não esqueceria facilmente aquela noite interminável, sem o flamejar de uma ilusão reconfortante...
Cautelosa, evitando o estalido habitual da fechadura da porta, entrou em casa. Como se fundos sinais de libertinagem estivessem no seu rosto, o que primeiro lhe ocorreu de importante e necessário, foi lavar-se, lavar a cara da cacimba fuliginosa, e afundar-se num banho que a aquecesse. Despiu-se. Olhou-se. Afagou-se. Não pensou, todavia, nos prazeres escondidos em grutas de mistérios.
Esteve submersa nas águas esverdeadas pelos sais aromáticos e adstringentes, muito tempo; esfregou o corpo. Secou-o. Deu-lhe uma vigorosa fricção com água de colónia, e, nua, deitou-se entre os seus lençóis de linho perfumado e fino. Ali estava em segurança; o seu corpo distendia-se e aquecia em esquecimentos de volúpias. Poderia dormir. Contudo, o sono não lhe deu tréguas ao pensamento e ela, embora estendida e de músculos lassos, continuou, de olhos abertos na obscuridade cintilante, a recordar Leonardo, a sua perigosa aventura de foragido, ao serviço de ideais que ela não aceitava, que ela, afinal, nem conhecia bem - e assim compreendia, para sempre, que nunca amaria Leonardo e o que devia era procurar o caminho de uma religião que lhe falasse de estima, de ternura, de protecção e de amor, um amor de pureza com marcados encontros para outra vida; uma religião sem ódios nem subterfúgios, sem perseguiçães, sem cobardes ataques e de promessas impossíveis de cumprir. Afinal, Leonardo nem sequer lhe dizia alguma coisa nova sobre as diferenças sociais, como se as doutrinas dos rasoiramentos pudessem lograr, algum dia, oferecer felicidade a alguém, ou anulassem, realmente, as milenárias situações de muito e pouco, que colocavam os homens em diversas planos.
Os homens que atiçavam a fogueira do comunismo, proclamando-o, só queriam o poder, para eles - e então mostrariam, claramente, as suas unhas rapaces, os seus chicotes, os meandros das suas almas torvas. Entretanto, alguns formavam cadeias e assim obtinham novas protecções dos grandes ambiciosos por mudanças espectaculares que, a darem-se apenas conduziriam aos areais da desilusão. Acontecia um surto de avidez pela fama. Agrupavam-se os que a desejavam, enchendo os bolsos de dinheiro... Falavam de liberdade os acorrentados à sordidez dos lucros...
Marcela pensava e sofria; ela precisava, de facto, de encontrar alguma coisa que lhe propiciasse um fulvo entusiasmo...
Leonardo empreenderia uma viagem de perigos para uma outra pátria. Encontraria "anéis" da cadeia a que se ligava, à qual pertencia sem heroismo ainda, e, voltaria. Voltaria?! A mulher que o estimava desejava-o em segurança. Temia, porém, com uma antecipação enorme, o seu regresso. Queria-lhe bem em lembrança do passado. Não o amava; nem lhe queria tanto que pudesse acompanhá-lo na maratona das ideias que apenas iam gerando confusões em espíritos fracos, que não eram válidas, que delatavam utupias, que negavam Deus; não o estimava ao ponto de algum dia o consentir a compartilhar o seu leito. Acabava de descobrir, sem espantos, que o seu sentimento por Leonardo não era mais do que uma estima fogosa, própria do seu carácter, mesclada de curiosidade e admiração pela volubilidade do homem apóstata uma vez, traidor para com a mulher com quem casara, e que proclamava igualdades e liberdades que já tinha combatido ao serviço de uma doutrina séria.
Para que falava ele, aparentemente possuido por uma convicção calorosa, de igualdade, se sabia que, desde o começo do mundo sempre houvera pobres muito pobres, e ricos muito ricos desdenhosos e espézinhadores - tanto em bens materiais como em dotes superiores de inteligência e ainda em hereditárias maldades?! E que liberdade queria ele?! Não se submergiam as civilizações agónicas em demasiadas liberdades?! Quem se sente livre de tudo estará fatalmente preso à inveja atroz pelos que na paz das consciências não aceitam liberdades que corrompem e destroem os valores imortais que lhes circulam no sangue, quais glóbulos ricos.
Levantou-se às duas horas da tarde, trémula e como que combalida. E naquela tarde o seu trabalho de traduções pouco rendeu. O espírito vagabundo não se fixava no que lia. Acusava-se de irreflexão, infantilidade e cobardia. Pensava em frases que dissera e não devia ter dito, em atitudes que tomara e não devia ter tomado. Há muito, afinal, que não condenava os seus actos tão doentiamente. Nem quando, impulsivamente, desligava o telefone a Máximo, chamando-se "criança idiota" a ouvir um malvado intrujão que pretendera, como Macário e como José Júlio, explorá-la, se acusara com tanta severidade. Perguntava-se se as outras mulheres saberiam, perante o bem e o mal que faziam, especialmente a si próprias, acusarem-se, corajosamente, de fracas, levianas e loucas e chegava à quase certeza de que poucas seriam aquelas que se examinariam com inteligência, dispostas a mudarem o rumo dos seus passos, tomando atitudes sensatas e prudentes. Havia na alma feminina algo de complexo e pouco razoável que em inúmeras circunstâncias obrigava a agir desastradamente ou impulsionava para actos inqualificáveis.
Às seis horas resolveu sair para realizar pequenas compras de que tinha necessidade. A meio da sua rua parou, surpresa e indecisa. Devia voltar para trás?!
- Andava a querer descobrir onde mora. Gosto de ver, às vezes, a frontaria das casas onde habitam pessoas que conheço.
É um passatempo inofensivo. Claro, as fachadas das casas, não pode revelar nada... Como os nomes... Foram-nos postos por outros... Enfim, nisto das casas talvez seja diferente quando as mandamos edificar... Depois podem denunciar alguma coisa certa... Você tem as persianas sempre descidas?!
A hesitação dela desfez-se num sorriso. Clemente divertia-a, naquela hora serena a deslizar na rua de aspecto provinciano, com a sua cascata de palavras; a sorrir contestou:
-Sim, tenho as persianas geralmente baixadas. Isso diz-lhe alguma coisa?!
- Muito... Você aprisiona a alma, aprisiona-se...
Ela deu um passo, estendendo a mão. Queria despedir-se.
- Posso acompanhá-la?!
- Porque não há-de continuar a esmiuçar a frontaria da casa onde moro?!
- Agora, gostava mais de conversar consigo...
- Agradeço-lho. Não é possível.
- Vai amanhã, com certeza a casa de Narcisa?!
- E porquê?!
- Ora, porque a reunião será das grandes. Ela apresentará o maciço mestre de obras, ou lá o que ele é, com um leve verniz de civilização, carregado de dinheiro. Você não deixará perder essa farsa... E vão outros.
- Nem sabia que era amanhã essa reunião... Mas... Certamente, não deixarei de ir... Às vezes, gosto de ver muitas pessoas reunidas, faladoras. Quando o álcool lhes sobe às cabeças, revelam-se... ficam descompostas... deixam-se conhecer...
- Sempre intui que você era da linhagem das inveteradas e cruéis observadoras. Não haverá em si um pouco de cinismo?!
- Talvez... bom, então até amanhã. Narcisa deve telefonar-me ainda hoje.
Despediu-se apressada e singularmente enervada. Clemente, com a negra pala a descair-lhe sobre a face murcha, repugnava-lhe. E ela não era nada diplomata, ela não sabia ocultar os seus sentimentos, ela nunca faria parte, actuante, da comédia que os outros iam representando, como se o glorioso acto de viver para eles não fosse mais que uma permanente mascarada de afectados risos.
Não realizou quaisquer compras e regressou a casa rapidamente, com uma lâmina de preocupação a raspar-lhe a pele.
O dia chegava ao seu termo. No céu apareciam as primeiras estrelas em seus fulgores doirados de eterno encantamento.
Marcela, com as luzes da casa apagadas, permaneceu muito tempo (horas que lhe pareceram infindáveis como uma estrada balizada por espectros de configurações alucinadas), à janela, olhando a noite, perdida em regiões de complacentes sombras oscilantes nos espelhos dos rios parados da sua vigilante memória.
Na rua breve fechada entre dois arcos, as pessoas que passavam, eram outras sombras, a deslizarem sem ruido. Foi o telefone que arrancou a mulher aos seus interiores devaneios, impondo-lhe realidades de banais recortes.
Chegou bastante cedo ao elegante apartamento de Narcisa; encontrou-a enrolada num largo roupão negro, trespassado, de seda opaca, bordado à frente com festões de rosas escarlates. Estava descalça e segurava nas mãos um livro. Atirou o livro para cima de uma cómoda, em jeito displicente, pedindo:
- Vamo-nos sentar ali. Já estava a enervar-me com a tua demora. Diz-me o que pensas da minha decisão louca... Mas... Espera... Antes quero mostrar-te o presente que recebi há pedaço do meu noivo (riu, sacudindo os cabelos, a cabeça jogada para trás)...
- Uma jóia?!
- Sim, de certo modo, é uma jóia... em que me envolverei, voluptuosamente... A sua maciesa acariciar-me-á... "Ouro do deserto"... O título de um poema...
- Deixa-me ver esse "Ouro do deserto"... Desfaz o enigma depressa.
- Espera um pouco.
Narcisa saiu da sala, caminhando nas pontas dos pés e enlaçando as mãos sobre a cabeça. Reapareceu minutos depois, explêndida de encanto, cingida num magnífico e brilhante casaco de visons de uma tonalidade pálida com reflexos dourados nas riscas de um béje amarelado; o casaco, todo trabalhado em género tubular, era de uma beleza rara. A sua pequena gola subia pelo pescoço de Narcisa.
- Maravilhoso. Tê-lo-á comprado cá?!
- Claro que sim! São visons "Svedberghs", este é um casaco famoso. Nunca ouviste falar dos visons de "Svedberghs" ?! Vê como é lindo... Todas as mulheres requintadas devem possuir um casaco destes...
Narcisa que calçava agora uns sapatos dourados, virou o corpo, com a graça de um manequim profissional. A grande beleza do casaco estava na cor e luminosidade das peles.
- Só te posso dizer que é precioso e lindo. Afinal, o homem tem sensibilidade.
- Nenhuma. Fui eu quem lhe sugeri a compra, lhe indiquei a casa de "Haute Fourrure". Este casaco vai dar-me sorte. Nunca me desfarei dele, ainda que venha a possuir outros...
- És supersticiosa?!
- Que ideia! Mas vê, vê bem o encanto deste casaco, tão simples e tão maravilhoso. O sonho de todas as mulheres... Visons!... Bem, mas... perguntei-te, se achavas louca a minha decisão (sentou-se, aconchegando o casaco ao corpo).
- Falámos há dias o suficiente sobre esse assunto... Pensas no presente e no futuro, queres o opulento desafogo material à custa de um homem; encontraste o homem, deves sentir-te feliz... Há quem deseje um hoje eterno, sem pensar no que será o amanhã... Tudo é especial em ti...
- Ouve... Fica sabendo que também ainda penso no passado... Fico melancólica, mas reajo depressa... Não sabes tudo de mim... Queres saber alguma coisa?!
- Estou aqui... Se tens necessidade de falar, fala.
- Olha, a minha mãe morreu quando eu tinha cinco anos. Pelas fotografias, muito bem colocadas nos álbuns de família, sempre a achei com um aspecto de desinteressada de tudo, mas a minha tia Inês, uma solteirona sem complexos, dizia que a irmã fora muito alegre, antes e depois do casamento e que só quando eu nasci ela se transformou... Meu pai, viúvo, lá se arranjou como pôde. Creio que, ao impor-lhe a minha vinda para a cidade, desdenhando o meio pelintra em que vivera, sempre implicante, ele ficou satisfeito; libertava-se de uma irrequieta moça que lhe ia pisando os miolos como quem pisa amêndoas num almofariz... Ajudou-me muito, é verdade. Ajudou-me até resolver dar uma cabeçada. Casou novamente e casou com uma furadeira que eu não vejo há mais de sete anos e que me tinham destinado para sogra! Parece-me bem que, já em vida do pai do pobretana do Zé Manuel, um delambidote molengão, o meu pai se entendia com a minha "futura sogra", toda mesuras exageradas. Por todo o lado há podridões. Felizmente para mim, o moço apesar da sua aparência apática e pouco viril, fugiu, estouvadamente, com uma assalariada da lavoura. Um dia escreveu-me, amarfanhado, pensado que fora o desgosto que o pai sentira com a sua fuga leviana, que o matara. Mas isso é história acabada... O meu pai agora está a ser dominado pela mulher avarenta e vai cortando a mesada todos os meses. A tia Inês pouco envia. Eu não ganho demasiado porque sou preguiçosa. Trabalho pouco e gasto muito. E só posso viver com montes de dinheiro! Pois resolvo o meu problema com o casamento!
Pareço-te uma mulherzinha exploradora, como essas que vivem à custa ou por conta de homens?!
- Ainda não sei bem o que hei-de pensar de ti. Sentias ódio pelos homens, considerava-los uns devassos, uns traidores, e, mais do que isso...
- Continuo a pensar o mesmo. Mas eles são necessários. O meu, é, como tantos, um casamento de conveniências, eis tudo...
- Será horrível, Narcisa! Verdadeiramente nojento.
- Não é. O dinheiro "purifica" tudo, crê. Ninguém se atreverá a acusar-me... Tu, Marcela, chegas a dar-me a impressão de que nada conheces desses acordos e ligações que desfilam por aí. Se casasse com um valdevinos, censuravam-me. Casando com um homem rico, embora ele seja um coitanaxo boçal de voz medonha, serei mais bajulada do que nunca; sou pior do que essas cachopinhas burlonas, de vinte e poucos anos, que "casam" com hediondos velhos, poderosamente ricos ?! Elas dizem que houve paixão, e, todas nós sabemos que sim... foi a paixão pelo dinheiro do tonto. Já viste uma jovem apaixonar-se por um velho pobre?! O meu casamento vai ser uma experiência...
- E Clemente, e os outros, que dizem?!
- Nada... Continuaremos a ser amigos. O grupo não se desfará. Essa é uma condição fundamental...
- Eu nunca aceitaria uma situação dessas.
- Ver-te-ás um dia afastada de tudo. Podes esfalfares-te a trabalhar. Ninguém reconhecerá as tuas virtudes, os teus méritos, as tuas qualidades de trabalho. Se te vestires bem, dirão que tens algum homem, escondido... Se te apresentares descuidada bichanarão que és perdulária, ou estás na penúria...
É preciso ter-se à mão um homem rico que nos acompanhe e pague as contas... Assim, poderemos triunfar, sermos "admiradas", percebes?! Sê mais observadora e... realista... Se não aceitares os cínicos serás calcada por eles.
- Detesto o que é ignominoso.
- Nunca verás o "mundo" de cima... bom... Tenho de começar a preparar-me... Convidei imensa gente "bem"... Vão fartar-se de comer e beber... Só não farão amor aqui... Adoro juntar aberrantes criaturas! Deliro com esses comediantes de sorrisos delicados e gestos polidos. Ajudas-me a vestir?!
- Não. Fico a folhear esta revista...
Pegou numa revista, afastando, instintivamente, o cinzeiro de vermelho cristal de Murano cheio de cinza e cigarros quase intactos.
- Ficarás surpreendida com o meu vestido... Também sou muito frívola às vezes...
- Novo?!
- Um modelo de Paris, idealizado para o deboche dos sentidos... Não tem costas, na frente abre em bico até à cintura... Uma tira fina de "strass" dá um nó sob a nuca... Os meus seios ficarão libertos... Na saia, uma fenda até aos joelhos... Preto, forrado de vermelho... As minhas cores predilectas nesta estação... Pareço-te muito sensual?!
- És apenas provocante... e excitante...
Narcisa elevou o queixo, soltou uma curta gargalhada rouca.
- Acertaste. Gosto de ti...
- Sou directa. E, a propósito desse teu vestido... Já não aprecias os pijamas?!
- Não são tão excitantes como se tem apregoado... Vestem demasiado, especialmente as pernas...
- E tu gostas bem de exibir as tuas pernas! Há pouco tempo amavas os amarelos fulgurantes, os dourados... Agora preferes o preto e o vermelho... Exageras em tudo...
- Ah!, Marcela... Mesmo com ressaibos histéricos, és adorável...
A porta da saleta fechou-se suavemente-
Os odores das iguarias que iam chegando alastravam por todas as peças. Gladíolos acetinados, de cores mórbidas, reviam-se nos espelhos indirectamente iluminados. Toalhas fosforescentes estremeciam nos tampos de cristal das mesas baixas. A um dos cantos, junto da mesa redonda de mogno, três cadeiras estofadas a veludo canelado preto, impunham-se como presenças de juizes acusadores...
Naquela noite, na concorridissima reunião de Narcisa, também se encontravam jovens que se drogavam e que obtinham a droga através de viajantes incansáveis, relacionados com jovens de outros países que iam procurando a "hora alucinante", das languidas sensações, por meio das alucinantes drogas (seria por causa destes novos amigos, sobretudo, e não apenas devido ao facto de Narcisa gostar de se fazer acompanhar de homosexuais masculinos e femininos - e não teria Clemente essas tendências, subjacentes em si?! - e de criaturas bizarras, que aquele seu primeiro casamento, tão ruidosamente anunciado e realizado num curto espaço de tempo fracassou?! Mais tarde, em épocas sucessivas, como se obedecesse a ciclos previstos, Narcisa faria a experiência do matrimónio mais três vezes, queimando três razoáveis fortunas e acusando os homens loucos que "seduzira" com os seus sofisticados modos, de tarados sexuais, masoquistas e delirantes esquisofrénicos...) e casais que Marcela não conhecia. A surpresa mais chocante, porém, recebeu-a quando às onze horas da noite (olhara para o relógio e apesar de atordoada e confusa fixara as horas) vira entrar Máximo acompanhado, e, com outro casal. Falava e sorria. Ali estava Máximo, com "duas" das suas mulheres... O homem que entrara com Máximo, coxeava, atirando para o lado a perna bamba e mole, uma perna mais curta do que a outra. Ao vê-la, também Máximo se perturbou, parando, um instante, interdicto. O sorriso paralizou-se-lhe na boca sem lábios, transformando-se num arreguenho.
Avançou, logo, todavia, como animal ousado pronto a investir, entre as duas mulheres que Marcela imediatamente reconheceu (Máximo mostrara-lhe uma fotografia, com as duas juntas sorridentes), enquanto o da perna claudicante, se afastava, de bigode espetado para a frente, como que a afirmar que a sua potência estava toda naquele seu bigode em escova de dentes (porquê certos homens usavam um bigodinho, quase à "hitleriana"?!). Uma das mulheres era a própria, fanada, sem quaisquer encantos, a "outra", era uma "boa" amiga, tagarela, rebolando ostensivamente as adiposidades celulíticas com um riso imoderado e picante na boca envelhecida, de "baton" a alastrar nas finas rugas do lábio superior. A indecisão dele não durara mais que um minuto. Aproximara-se de Narcisa, beijara-lhe a mão, distribuira cumprimentos. Marcela afastara-se para um angulo
da sala, sentara-se, poisara o copo. De pernas cruzadas, e de rosto erguido e esfíngico, apertava as mãos dissimuladas no regaço de sedas macias. No seu sangue crepitava um fogo nervoso. E olhava Máximo que não via desde a tarde em que o acompanhara a casa da sogra dele, a casa que lhe parecera assombrada, sem cheiros vivos, sem alma. A memória magoou-a com a cena vivida... Ele ainda calçaria as meias roxas?! E pelo buraco alargado sair-lhe-ia o dedo grande como um falo?!... Comprimiu os maxilares. A ironia do pensamento afigurou-se-lhe ridícula e descabida.
Máximo desembaraçara-se das duas mulheres; procurava-lhe o rosto, bebendo, falando, num reduzido círculo de homens. Ela desviava o olhar. Sentia-se em segurança no arraial de gente heterogénea entretida num fácil dialogar. Todos se sorriam, despreocupados ou ardilosos. Os vaidosos aproximavam-se aos de maior prestígio social que nos fumos da incipiente bebedeira admitiam sem reservas uma certa familiaridade nas conversas. Pobres jornalistas ambiciosos - e lá estava aquele, alto, de pescoço esguio, com a maçã de Adão levemente vizível, que poucas semanas antes lhe telefonara de Cascais, à uma hora da manhã... Estaria em festa idêntica àquela onde os homens apareceram com camisas femininas, de seda natural, vermelhas, com rendas e fitas de cetim, pretas... Telefonara-lhe a dizer-lhe que gostava dela... Ficara a detestá-lo. Mal o conhecia. Não podia ir além do desdém, pois trabalhava para viver, e, muitos inimigos, mesmo pelintras, são capazes de muita coisa... - eram "tu cá, tu lá" com banqueiros alegres. Apagados artistas e escultores à procura da fama, com ares superiores, as frontes a brilharem de letal transpiração, tudo faziam para se tornarem notados. E as mulheres, essas, no tumultuário ambiente, desnalgavam-se e agitavam-se, eufóricas e provocantes, invejosas umas das outras, mas entretanto sorrindo-se. Aquela Edite cronista e contista, que costumava assistir às reuniões de Narcisa, sentando-se a um canto ou encostando-se a uma porta, a comer e a beber com fúria, e, a observar quem chegava, não comparecera naquela noite excepcional.
Para Marcela, a figura principal, que eclipsava o noivo, de cara quadrada, olhos frios, atencioso e correcto apesar da sua pouca educação e cultura, e o farsante Clemente, era Máximo, como não podia deixar de ser. Não desejara ela aquele homem versátil de pele seca, sob a qual corriam e se despedaçavam labaredas?! Não teria tido sonhos voluptuosos, gerados por situações vividas com ele?! Fugira porque o considerava um mentiroso... Fugira-lhe porque o sabia um trafulha, leviano e licencioso, com gostos por aventuras repetidas... No entanto, desejara-o, sem sentimentos elevados, e esse fora o seu grande crime... Podia mirar de perto as duas mulheres que com ele tinham entrado... Nem um frémito, em si...
A atmosfera da sala adensava-se. As flores enlanguescidas, desmaiavam. Perpassavam ondas coloridas no ambiente electrizado. Na saleta ao lado, jogava-se. O fumo pairava acima das luzes. E Marcela começou a sentir uma dor no peito, uma opressão arranhante na garganta. Mais uma vez fixou as duas mulheres, grotescas nos seus vestidos ajustados, nos seus ademanes e nas suas triunfantes gorduras, que representavam, ali, os amores de Máximo, do homem que estava perto dela e ela já nem desejava, do homem que a atormentara, apertando-a no vicioso cincho dos seus lúbricos ataques de indisciplinado conquistador, inconstante e irresponsável; uma náuzea lhe secou a boca. Pegou no copo e bebeu o liquido que a reconfortou. Aí, Narcisa, imponente, caminhou para junto dela; a cada passo que dava a saia do seu vestido abria-se e as pernas calçadas de meias cor de carne, sobressaíam, tentadoras, em jeitos de um vivo abandono.
- Aborreces-te?!
Sentou-se perto dela. A fadiga transparecia no seu rosto vincado, fortemente maquilhado, com as pálpebras pesadas de azul irisado.
- Talvez... Não chegarei a gostar, jamais, ou a integrar-me, nestas reuniões de convívio social de falsa elegância. As criaturas que tu aqui reúnes...
- É assim em todo o lado... Não tenhamos ilusões... Vem daí. Tenho licores no meu quarto. Um bom licor afrodisíaco dar-nos-á vivacidade.
- Não. Temo as misturas, quero permanecer lúcida.
- Hoje apreciava embriagar-me... fazer tolices...
- Mas... não te será difícil! Vê... Alguns dos teus convivas ensaiam a retirada...
- É melhor não olhar... Ainda vão ouvir fados, gastar a noite em "boites"... Dançarão... Oh! a consentida promiscuidade dos superiores... E, quem sabe?! Irão, alguns deles, também, observar, gulosos, quadros-vivos, para se entusiasmarem... Tu conheces pouco dessa gentiaga... Pouco ou nada...
Narcisa sorria, desdenhosa e misteriosamente. Acrescentou:
- E será melhor não conheceres. Não estás preparada para estas coisas... Afinal, nem te apresentei gente que convidei pela primeira vez...
Quebrou-se uma taça de champanhe. O noivo de Narcisa abeirava-se delas, muito composto, mas de expressão atormentada, como se estivesse inseguro do chão que pisava e receasse cair, desastradamente e irremediavelmente, num precipício. Um homem que não se adaptaria ao meio que comprara.
Narcisa ergueu-se para aceitar as despedidas de dois casais. Máximo aproveitou aquele ensejo de debandada para também se despedir da anfitriã de olhos sonolentos e promitentes.
As duas horas da manhã desenhavam-se, num meio compasso, no enorme mostrador com arabescos doirados, do relógio de ébano que se via ao fundo do corredor largo.
- Não posso mais! - murmurou Marcela ao rés do queixo da amiga - Ver-nos-emos breve...
Retirou-se apressada, temendo que alguém se prontificasse a acompanhá-la ou tentasse segui-la.
Marcela, desde há alguns meses, guardava em si um segredo. O pensamento inicial brotara numa tarde de sol brilhante, em que permanecera em casa. Puzera o trabalho de parte às cinco horas e ficara, de braços a descansar sobre a secretária, as mãos estendidas, relendo, inconscientemente, a última página traduzida. Disse-se, mentalmente, frases encorajadoras e dentro dessa hora, sem traçar planos, lançara as balizas para a obra que intentaria e lhe povoaria o futuro de imagens arrancadas a sonhos fulgurantes repetidos e à própria vida que conhecia e ia conhecendo. A ilusão, e a verdade das criaturas humanas que conhecera nuas, tragicamente imperfeitas e de miseráveis anatomias, ou belas, far-lhe-iam permanentemente companhia, a par de algum sonho perfeito e muitas emoções de recta beleza.
Ela nunca mais se julgaria sozinha; ela inventaria o amor, os encontros e os desencontros, as agonias e a morte para os outros, castigando impiedosamente os seres impuros, bandalhos e usurpadores. Vingar-se-ia das afrontas recebidas, através de descrições realistas, no desenho brutal e no esquiço subtil de figuras facilmente reconhecíveis. E poderia proclamar a sua vitória sobre os, por vezes, desordenados impulsos do seu temperamento ardente. Deixaria de ser a temperamental desejando o amor, para se transformar numa fonte a alimentar, a inundar de força vital, personagens ridículos e monstruosos que desfiguraria, propositadamente, para seu íntimo deleite, deixando-os, todavia, com os seus defeitos, as suas cicatrizes, as suas chagas, intactas, escorrendo fios sanguinolentos.
Marcela sentia-se pletórica e avara (uma terra sob um escaldante sol de Verão; uma terra a ser fecundada pelo sol, plasmada em dilatações de prazer indiscritível); Marcela quase se julgava possuidora de um novo "espírito" de avassalantes intimações; sabia, contudo, até onde poderia ir, para afirmar que, mesmo à mercê de infames perseguições, sem protecções, sem quaisquer amparos ou algum amigo orientador e crítico (ouvia falar bastante de amigos críticos...), ela, mulher sozinha, realizaria uma obra interessante, sob variados aspectos. Uma criação exclusivamente dela!
Por muitos chibantes orgulhosos e maldizentes, a sua obra poderia ser julgada sem valor; alguns (tinha a certeza) aceitá-la-iam curiosos, ou jubilosos, e, um grande número admirá-la-ia, louvando o seu fervor, a sua coragem, a sua verdade apresentada. Talvez houvesse quem se calasse. Nem as pedradas nem o silêncio a fariam vacilar. Passava horas a idealizar, a criar, a viver... Deitava-se, adormecia, e acontecia-lhe sonhar (sonhava frequentemente, sonhos iluminados, de cores vivas, fascinantes) com os personagens com quem "falava" acordada, na exaltação de um dialogar vibrante e indagador. Não tinha verdadeiros amigos a quem confidenciasse o que para ela já representava algo de parecido com a mensagem que se recebe de ignotas origens e é uma afirmação de vitais entendimentos e singulares osmoses, com síndromas de plenitudes apaixonantes; guardava tudo em si, como se esse "tudo" fosse um tesouro que, uma vez desenterrado, lhe ofereceria grandes alegrias muito íntimas, juntas a profundos sobressaltos, ansiedades, e a dor que se enquista no coração, provocada pelos maldosos, os implacáveis desdenhosos, os que a galope passam pela vida, entre fileiras de bonzos que protegem, para maiores seguranças próprias, e, os coitanaxos de todas as categorias que vão louvando, rastejantes, na esperança de serem beneficiados, de qualquer modo e de maneira ostentosa ou obscura, em datas próximas ou mais distantes. Só são atacados os desprotegidos.
Ela sentiria essa dor no coração. Mas, dor, para ela, sempre fora incitamento - o aguilhão da vara que estimula, magoando -, e, portanto, não a receava, como um perigo oculto, ou ponta de arma ofensiva, vinda da sombra.
O casamento de Adriana marcado para o sábado da última semana de um Setembro esplendoroso, teve de ser adiado, sofrendo algum atraso esse enlace de duas juventudes impetuosas e que embora de personalidades distintas se harmonisariam e completariam numa compreensão verdadeira com base nos mesmos desejos.
Alice saíra da casa de saúde e afirmara-se que recuperara o equilíbrio, que em casa, com ocupações leves que a distrairiam, ficaria completamente boa, sem sinais do antigo traumatismo causado pelo fogo deflagrado na casa que fora da sogra e acabara por pertencer-lhe graças às infâmias de Luis. Oito dias depois, porém, tê-la-ão assaltado ideias suicidas; aparecera morta dentro do poço da chamada "terra do prior", inchada e de rosto irreconhecível, já comido pelos gordos e vorazes peixes - bogas enormes e enguias da grossura de um braço, "viviam" nesse poço com fundalhos de lodo - e foi preciso esvasiar a água a baldes, para poderem içá-la dessa líquida sepultura por ela decididamente procurada.
Desde aí, Luís tornou-se ainda mais macambúzio, embora continuasse a atravessar a feira de cabeçorra levantada, com pelos que pareciam de javali no bigode irregular que nada dissimulava a cicatriz do lábio leporino. Falava a poucas pessoas e só com Juvenal se demorava às vezes, sobre a ponte do meio, em conversas gesticuladas que eram vivas altercações. Os ruídos borbulhantes das águas do açude, despenhando-se em cachão, misturados e avolumados com as águas que espadanavam nas rodas do moinho de moer milho, da Efigénia (uma viuva endiabrada, muito procurada por homens de todas as idades que apreciavam os seus cabelos, despenteados e enfarinhados, e, os requebros elásticos do seu corpo de músculos potentes - ela pegava pelas "orelhas", um saco de farinha, de quatro alqueires, como se pegasse numa saia, para sacudir), não deixavam perceber, nem a quem passasse próximo, as palavras azedas que surdamente se atiravam um ao rosto do outro, congestionados pela ira. As velhas questões da herança permaneciam latentes. Juvenal também se considerara prejudicado; na altura devida calara-se, certamente porque Luís lhe fizera promessas de compensações que não cumprira. O azedume, porém, levedara e de vez em quando ele lembraria ao medonho Luís os antigos conúbios, e Luís chamando-lhe bêbado, ia encerrando assim as discussões, acrescentando, que ainda não tinha morrido.
Sozinho, de novo, na casa que usurpara por meio de falcatruas, ficava noites inteiras com as luzes acesas, desejando, desse modo, talvez, exorcimar, afastar, os fantasmas que o perseguiam. Em outras noites, os batedores das estradas desertas, os eternos vagabundos à procura de singelas emoções, não lobrigavam uma chama, sequer, na casa que avultava do fundo sombrio das palissadas de eucaliptos, mimosas e pinheiros. Então a casa parecia desabitada, de paredes numa agressão branca à escura densidade nocturna.
A filha de Luís desaparecera dali e da cidade pequena; algures, seria desavergonhada anónima ou uma honesta mulher vivendo do seu trabalho. Partira e fixara-se em terras de gentes ocupadas com os seus problemas, egoístas ou orgulhosas, com os seus sucessos patentes, ou de beiços grudados pelas derrotas e misérias, gentes que não davam atenção a desconhecidos, permanecendo nos seus círculos de arrogâncias congénitas.
Luís, viuvo, pouco viveu, afinal, e foi a sua morte rodeada de assombrado mistério, que mais influiu no renovado adiamento da cerimónia do casamento de Adriana.
Na vila, deixaram de vê-lo a atravessar, a horas certas, grotesco na sua altivez, a feira atapetada pelas folhas dos plátanos e com sombras erradias pincelando de rosa e ouro o chão de areia grossa. Mas nem o Zica, da taberna da "ponte dos Correios", farejador de escandaleiras e sempre de olho atento a quem atravessava a feira, nem o Florêncio da farmácia, um doido por saias, de mãos enormes, roxas, de dedos inchados, de aspecto duvidoso, nem o Jaime da loja de tintas, ferragens e coiros (dizia-se que ele, em casa, também possuia o seu coiro de estimação), o trio mais lambareiro de boatos, novidades queimantes, anedotas de pôr a arder, gerando viris entusiasmos, a pele de um qualquer, e, uns curiosos de tudo, embora cobardolas como os demais da sua igualha (nunca eram eles a propalar mentiras) indagara a causa daquele desaparecimento súbito. Mas a novidade alastrou e gelou de espanto algumas criaturas menos endurecidas; deu-a em primeira mão, friamente, Juvenal. E ninguém achou isso estranho apesar de todos saberem que Juvenal pouco visitava o cunhado.
A princípio, as bocas de sulfurosos hálitos, escancararam-se, num jeito de frase muda. A seguir, salivosas frases foram compostas, nervosamente, a denunciarem uma grande atrapalhação. Houve quem se fechasse em casa. O medo entrara, como aberto furacão, no sangue daquelas criaturas com pesos de ocultos crimes nas consciências.
Luís aparecera degolado, meio sentado, os braços estendidos, uma das mãos posta em garra, nos degraus da escada, carcomidos pelo bruxo do tempo, da cozinha da casa que pertencera à mãe. Recordou-se que já um parente seu igualmente se degolara, muitos anos atrás, com uma navalha de barba que na véspera tirara da barbearia de um filho, rapaz gago que, ao falar, dava sacões fortes com a cabeça, como cavalo a arrancar, numa subida difícil. Ficara medonho, na morte, o rosto do homem ladrão e trapaceiro; a morte que até aos mendigos enobrece, não se apiedara dele. A barba ter-lhe-ia crescido depois da cabeça separada do corpo?! Assim parecera... Ninguém quis pronunciar-se abertamente acerca daquele caso; ninguém pensou em averiguações que rompessem, para um esclarecimento, as sombras que envolviam aquela morte horrível. Todos os habitantes da vila seriam criminosos, de qualquer maneira; e se nem todos o eram, até àquele dia, ficaram a sê-lo. Luís não se poderia ter degolado a ele próprio! Houvera crime?! Autoridade alguma foi chamada ou compareceu. Só em segredo se disse que fora assassinado, que não houvera suicídio. Raivas antigas, teriam explodido na estação precisa em que Luís vivia solitário. A raiz teria sido a questão, nunca encerrada, da posse das terras... Contudo, um silêncio grosso se estabeleceu. E Luís foi a enterrar, com a cabeça posta nos ombros e um lenço escuro a cobrir-lhe o rosto disforme. Desceu à cripta do jazigo de que também se apossara, um jazigo de longa pedra tumular, em granito, com uma enorme cruz, e, encostado a essa cinzenta e pulida cruz, um anjo de asas abertas, lendo a branca página de um livro de pedra.
Mas o fim trágico de uma criatura infame não apaga as nódoas da sua vida. Não se lamentou aquela morte, assim como não se lamentara a morte de Alice, mergulhada no poço das bogas e das gordas enguias.
Luís morreu sem ter, afinal, descoberto o tesouro das panelas com ouro, enterradas na loja bafienta, com janelos gradeados, pelo prior que ali vivera e que muitas velhas viúvas, de pecados submersos nos seus corações ressequidos e enfraquecidos, teriam fartamente obsequiado. Morreu e tudo deixou; tudo quanto roubara ali ficava, sob mistérios de sombras, sóis e ventos a entrarem pelos postigos, a esgarçarem teias de aranha, a dançarem no empedrado azul com grãos de poeira amarelada.
Dois meses depois, uma tabuleta anunciava a venda da casa e do quintalão. Numa estaca enterrada na terra, fora pregada uma tábua nova. Aí alguém desenhara a caracteres vermelhos a palavra "vende-se". A tinta escorrera das letras. Parecia que as letras escorriam sangue. Quem adquiriria aqueles bens roubados, quebrando a maldição que sobre eles pesava?! É um jardim de surpresas o dia de amanhã mesmo que nem todos tenham futuro...
Adriana, chocada, como é natural, e de acordo com Anselmo, os pais deste, e o seu pai, decidiu aguardar que rolassem alguns meses sobre o inesperado acontecimento. Esperava que essa enfiada de semanas agisse como cilindro, a transformar pedras em poeiradas.
Finalmente fixara o dia e esse dia representou para a vila de criminosos natos uma distracção gratuita e imprevista.
Dentro da mesma hora, Adriana casou com Anselmo e Juvenal casou com a mãe da rapariga que tanto se preocupara com o destino da mulher-serva que qualquer homem patife ou devasso poderia utilizar, desprezando-a (era uma pobre mulher à mercê da cubiça e dos apetites carnais sem compromissos, dos homens de frouxo carácter) em seguida.
Até àquele dia nada transpirara. Juvenal deu assim uma satisfação aos puritanos pais de Anselmo que se tinham manifestado horrorizados perante a perspectiva de o filho coabitar com um casal vivendo em pecado...
Marcela há muito se dissera que não voltaria (ou o seu destino ainda a levaria lá?!), para rever os cenários da sua infância e da sua adolescência atormentada, esses locais onde fora infeliz com Macário, e por culpa da mãe, e que indelevelmente estavam gravados na sua memória. Portanto, não viu Adriana no seu belo vestido branco de "organdi", semeado de pétalas de flores, bordadas, envolta no flutuante véu de tule preso num toucado de pequeninas rosas. Mas visionou-a, trémula e vitoriosa, subindo os degraus que ela já subira, largos degraus que conduziam ao adro da igreja sobranceira à vila, às planuras verdes e doiradas, com muralhas de vivaz vegetação e serras dominadoras na sua pesada imponência. Quase ouviu um repicar de sinos, alegre, como sinos de aleluia, tocados por mão segura e jovem...
Grudavam-se algumas páginas do livro que pertencia à vida de Marcela. com o passado ela deixaria de ter contactos. O que morre enterra-se, e tudo se transforma em fumos que desaparecem.
Oxidado, completamente deteriorado ou distanciado em rios sem margens, tudo ia morrendo em novos rumos e os caminhos que ela pisava eram agora outros, a afastarem-se cada vez mais dos terreiros de sol onde brincara, e, dos túneis de sombras que atravessara, com o pânico e o desespero a gelar-Lhe, inúmeras vezes, o rosto de crispados traços.
A afluência às reuniões de Narcisa era enorme. Ela rodeara-se de uma opulência que suscitava mal escondidas invejas. Os estafados pelintras queriam ser-lhe apresentados para pertencerem à sua roda; os bem instalados, gosadores de todos os minutos, divertiam-se no encontro com os galopins risonhos, descarados e bifrontes que em dado instante a todos tratavam por tu. No grupo dos vaidosos estava Máximo que baixando a voz rouca e com ar de delator, falava, a íntimos, do seu reduzido, mas interessante harém... A lascívia escorria-lhe da boca como espuma venenosa. E os seus amigalhaços entre goladas de bebidas fortes, visionavam uma viuva de ancas opulentas e esfomeada de carícias, uma antiga criada, da sogra, autoritária, que escondia sob a sua rispidez e vigilância um desejo inconfessado, velho de anos de intimidade debaixo do mesmo teto, a querer enredá-lo na teia astuciosa do seu permanente desejo, uma solteirona a derreter-se em promessas e concessões, e, vivendo dos rendimentos, e, mais uma furiosa amorosa, igualmente sogra, mas não dele, em perseguições de sensualidade exacerbada como se andasse atacada, nas entranhas, por um grande fogo... O homem falava e sorria, arreganhando os lábios curtos, descobrindo os dentes sem esmalte. Apertava-se o anel. Os rostos congestionavam-se sob a pressão de subterrâneos apelos. A excitação empolgava aqueles homens. Máximo, nesses momentos de revelações escaldantes, no ambiente de escândalos secretos, sentia-se um triunfador (talvez desejasse que Marcela estivesse, sempre presente, para o observar; ele renunciara, mas não esquecera...). Ele falava, entusiasmava-se, e contudo, dentro dele, nele, a vida escoava-se, como da "jarra quebrada" do poema de Gautier, a água se escoara, "gota a gota".
Numa das noites em que Marcela também visitou Narcisa, agradavelmente casada com um homem vaidoso e inofensivo, que lhe facilitava todas as fantasias, conservando-se invisível, retirado por motivos de negócios, alguém falou de Máximo de maneira segredada e ela sentiu-se estremecer. Foi como se lhe derramassem água gelada nas espáduas quentes, ao compreender o que se dizia. Elevara a voz um desenhador de bonecos. Morrera Máximo... Joãozinho Lesma, o desenhador de bonecos desarticulados, todo ele mesuras para os endinheirados, com as lentes a faiscarem-lhe sobre o rosto de chata expressão, contava o desastre que vitimara o homem safardana que tanta mentira semeara; e acrescentava, algo de estonteante, para admiração dos presentes. Ele estava em casa da mulher de um amigo (era visita dessa gente) quando o telefone tocou e uma voz acusadora pronunciara nitidamente a palavra "adúltera". Máximo aflito e cobarde, correra então para casa de outra sua amiga, preparando um "alibi"... Aí, enervado, tivera uma curta discussão, fútil mas aborrecida. A sua chegada, inesperada, levantara quaisquer desconfianças na mulher que teria um dia aceitado ser a terceira, ou quarta... Repelira-o, gritando-lhe surdamente: "Afasta-te, não me toques"...
Saindo, de cabeça em fogo, certamente, atravessara a avenida como se a avenida fosse uma espécie de parque para seu deleite privado, um parque que podia cruzar à vontade... A morte estava no bruto camião que desembocara de uma rua transversal... Como sabia ele tudo ?! Sorriso irónico... Andava sempre bem informado... E o desenhador vaidoso terminara, dizendo, num encolher de ombros: "Foi-se um porcalhão... de maneira merecida... Gabava-se demasiado..." Todos sorriram veladamente. Estava feito o epitáfio de Máximo...
Marcela sentiu agudamente aquela notícia. Já se habituara a encontrar Máximo ali. Escapara-lhe, verdadeiramente, quer indo para Paris, quer deixando-o a vestir-se, na casa deserta da sogra. Mas ela desejara-o... Desejara-o, apesar das suas repulsivas dualidades... Não voltaria a ver Máximo. Ele morrera. O que sentiriam as coitanaxas das suas amantes ao sabê-lo destruído?! Não morrera dos males que o obrigavam a tomar doses excessivas de cortizona. Fora atropelado perto do Banco. A pancada frontal do camião atirava-o para longe. Para longe de tudo... Nem sequer morrera de desastre dentro do carro comprado em nome de Leonilde, e que ele guiava, soberbo, nele passeando as suas "amadas", para fugas breves, reclinando-as no assento que se transformava em cama... Tivera morte estúpida...
Uma voz feminina elevara-se: "Que horror..." Marcela olhou. A mulher horrorizada cerrava as pálpebras e a sombra das pestanas postiças, hirtas e baças fazia-lhe riscos no rosto excessivamente vermelho.
Marcela procurou um recanto desocupado. Sentou-se, tremendo. "Odiara tanto aquele homem que lhe mentira! E como ela desejara que as suas unhas se transformassem em navalhas para o golpear, para lhe retalhar a carne impura, a potência que enxovalhava... Afinal, um olho do diabo continuara poisado sobre os procedimentos de Máximo. Por isso Máximo tivera morte horrível, dando aos indiferentes ocasionais e de sempre, um espectáculo gratuito. A faca da morte desfigurara-o em plena via pública, para gáudio e comiseração da gentalha que acorre a todos os desastres, como moscas vindas não se sabe donde, ao cheiro de coisas deterioradas..."
Os olhos ardiam-lhe e sentia as mãos tão frias que até as articulações lhe doíam.
Se tivera ciúmes daquele homem versátil, esse sentimento nunca mais seria dor no seu coração mortificado. Máximo deixara, enfim, de trair, de se vangloriar, odiosamente, dos seus complicados amores.
- Sinto-me repelido... E eu vinha tão desejoso da tua presença, das tuas palavras quentes de ternura, Marcela...
- Tens razão, Leonardo, eu estarei a sentir e a proceder de um modo que não conhecias. É que desejo ser outra, vê tu! Não me libertei eu do trabalho mesquinho da costura que realizava para um safardana ignóbil que muitas vezes tentou devassar o meu corpo?! E não fui, antes, bastante forte para abandonar Macário, e para pôr fora de minha casa José Júlio, afastando-me mais tarde de Máximo?!...
- Queres ser outra... Mas tu és sempre admirável... Ouve... Tens tido algumas notícias de Macário?!...
- Não. Porquê?!
- Ele é da polícia... Já não vive só... Deixar-te-á tranquila...
- Bem desejo tranquilidade e paz. Persegue-te?!
- Sim... Por isso também sei muita coisa da vida dele...
- Não falemos mais dessa criatura. É apenas um fantasma... Um mau fantasma... Mas... O estranho, sabes o que é?! É que ele há tempos que vem dando o meu endereço a várias entidades e muitas cartas para ele continuam a chegar a minha casa! Quer e quererá, não sei para quê, divulgar e afirmar que se dá comigo... Não achas torpe, e, maquiavélico?! Porque serei eu assim perseguida por uma enfiada de malvados aviltadores que ninguém desmascara?! Não, não quero falar mais desse fantasma do meu passado...
- Não falaremos... Mas, Marcela, podes dizer-me o que tentas, o que pensas fazer?! Em ti não continua a fermentar uma certa revolta?! Libertaste-te realmente de tudo quanto te maltratou e feriu?! Esqueceste essa gente que foi tua família?! O irmão que te roubou e sempre procedeu mal para contigo?!
- Quero acreditar que esqueci tudo ou quase tudo... Não se pode viver armazenando recordações amargas. Tive desilusões e fui mais forte do que elas... Nada regride. As indecisões são cinzas que devemos atirar ao vento... Desejo pisar um caminho de vitórias difíceis... Pisá-lo-ei... Hás-de saber o que farei, apaixonadamente...
- Sem amor?! O amor exalta e fortalece... E seguirás esse caminho sem amparos?!
- Mesmo sem amor... Sem nada, a não ser a minha indomável tenacidade, a minha exuberante força... Protecções para quê?! Estou decidida a desafiar o amanhã. Será duro?! Talvez, mas nada receio. Acaso não tenho dado já provas de coragem?! Pois continuarei a dá-las, firmemente resolvida a... triunfar... Até há pouco eu sentia-me como que envolvida em redemoinhos de complexas tibiezas, e, desejos... Hoje, parece-me que, sem cálculo, domino tudo... Desprezei. Conheço a vileza dos tratantes. Quero afirmar-me...
- Tu és bela. És bela e linda, reúnes qualidades e virtudes excepcionais. Nem compreendo o que te tem acontecido... Porque te maltratam?! Agora... Pensa, Marcela...
- Sou sozinha e tenho trabalhado e trabalho para viver. As maldades que suportei nunca me abateram. Não conservei o marido, não tenho família, e, a verdade é esta: não sou nada esperta! Sinto, contudo, que existe algo de grande em mim...
- Marcela, vim junto de ti para te fazer, mais uma vez, uma séria proposta. Quero que me escutes...
- Estou a ouvir-te. Fala. Do meu segredo, nada acrescentarei...
- Vivamos os dois, Marcela! Não me amas o suficiente para assumires o compromisso de seres minha?!
- Tudo nos separa, Leonardo... Não aceito a tua proposta, não desejo ser tua... Violaste leis, vives num desajuste permanente. Lealmente te digo: passei a detestar as tuas ideologias políticas. Conheço camaradas teus que são uns ignóbeis mentirosos. Apregoam fraternidade e não são mais do que uns patifes. Essas ideias que te arrastam a limites de perigos, como esses do lançamento de bombas, não são válidas para nós. Os "nossos - salvo seja! - avermelhados", o que pretendem é o poder, a anarquia, para serem eles a mandar. Se tal sucedesse, seria horrível. Nessas fileiras há farsantes abomináveis. Perdoa-me, Leonardo, não sei mentir, não quero mentir-te... Pensava afastar-me de ti... O interesse curioso apagou-se... Naquela noite em que me fizeste dar inúmeras voltas... A noite em que me revelaste coisas estranhas...
- Julguei que estavas comigo, que comungavas nos mesmos ideais. Tanta vez acorreste à minha chamada! Então, não foi nem por amor, nem por camaradagem?!
- Não... Havia somente em mim uma espécie de exaltada ternura pelo homem desvairado... Que queres?! As pessoas muito normais, é que não me interessam nada...
- Sempre assim foi?!
- Também houve... sim, existiu, um certo entusiasmo e um desejo de compartilhar ansiedades... Eu lembrava-me de como te conheci... E depois... Estava bloqueada de ilusões mortas e muitas interrogações... Nem sei se te quis... O que me impulsionava era, ainda, a ideia de conhecer as tuas aventuras... Perdoa-me... A criatura humana é visceralmente contraditória...
- O que sinto agora é raiva e desespero. Não, não sintas piedade... Mas olha que afrontei enormes perigos para chegar junto de ti... Sou, de facto, um indivíduo que vive na clandestinidade. Eu queria convencer-te a que fosses ter comigo, algures, onde te indicaria... Vim para isso... Viajei pela Rússia, tenho amigos em Paris, lá onde tu também tens o teu amigo mexicano... Aqui, o que podes alcançar?! Sempre a mediocridade...
- Leonardo, não sou mulher de aventuras, não sou uma aventureira! Nunca aceitaria o que pensaste, o que me propões. Continua a saltar de um lado para o outro, se é esse o teu destino... Pensa em mim como miragem a distanciar-se... O meu amigo mexicano?! Já não está em Paris... Àttila Guarneros retornou a Puebla-Puê, cidade onde nasceu. Os pais morreram, ele exerce agora, lá, o professorado. Continua a ser, estudante, pintor e poeta... A juventude da sua alma poucos a conhecem... Jugulou em si muitos desejos... Escreve-me e encoraja-me...
- Sempre tiveste corajem...
- Sim, não tenho vacilado... é certo. Todavia, há sonhos, ou resoluções, que, para tomarem forma e vulto, carecem de palavras incitadoras, de frases que sejam como um atiçador de brasas... Àttila sabe do fogo que me queima...
- Eu não sei... Não me disseste ainda o que pensas fazer. Julgava-te satisfeita com os trabalhos de tradutora e ilustradora.
- Estarmos satisfeitos com o que apenas nos assegura o pão é pertencermos a um rebanho de vencidos sem imaginação nem febre... As minhas ilusões tem asas... Desejo subir montanhas, ir muito longe, embora saiba com antecipação que os sofrimentos não me vão abandonar. Sem esses "amigos" que fazem uma boa publicidade, seja do que for, desde que sejam "pagos", sei que terei de sustentar uma grande luta. Pois sou tão obstinada que procuro essa luta dolorosa...
- Diz-me o que vais empreender.
- Não. Um dia... Será para ti uma fabulosa surpresa, Leonardo! Não verei a tua reacção, mas, calculo como ficarás admirado...
- Não és mulher de enigmas. Estás, contudo, a acirrar a minha curiosidade. E destruíste o meu sonho!
- Preferias que tergiversasse, que adiasse o que deveria dizer-te na hora exacta?! Mesmo que não me propuzesses o acordo amoroso eu dir-te-ia que... não nos veríamos... durante muito tempo...
- Não quero ser brutal... Todavia, penso que, há muito, podias ter-me afastado, até subtilmente... Depois do meu desastre conjugal, transformei-me imenso, é certo... E queria-te... Quero-te, porque sempre te quis...
- Tu ainda andas à procura de ti mesmo, ainda não te encontraste. Um dia julgaste amar-me... afirmas que sempre me quizeste, e, casaste... Repentinamente, resolveste casar... Reencontrámo-nos. Ambos tínhamos muitas histórias para contar. As nossas chagas estavam vivas. Algo se dilacerara em nós. Precisávamos de alguém que nos ouvisse... Eu viajara, e, continuo a permitir-me essas fugas que realizo após muitos meses de sacrifícios materiais, e tu, tiveras uma esperiência violenta, e, lançaras-te, inexplicavelmente, na política, escolhendo o caminho mais sombrio... Fui e sou tua amiga. Contei-te episódios do meu viver de lutas e de aceitações... Acorria, alvoroçada, às tuas chamadas, escutava-te, ficava a acompanhar-te, mentalmente, como que a escutar os teus passos, em estradas ermas, de pardos clamores, porque era tua amiga. Não, não era amor o que eu sentia, Leonardo, era amizade, ternura, estima... Eu nunca amei! Eu apenas desejei! Não me obrigues a dizer mais, a ser cruel. Cultivemos a amizade. Se te amasse... Mesmo se te amasse, não queria ser somente tua companheira, não queria seguir-te nos trilhos que pisas. Sou "contra", exactamente porque conheço as pulhices da maioria dos homens... Eu sou, quero ser, simplesmente independente. Ser eu!
- Acabaste?! Que fôlego o teu... Pois bem, desisto de te conquistar. Possuo o meu orgulho. És uma mulher complexa e misteriosa... Creio que pouco, muito pouco, de ti conheço... E... não queres, então, dizer-me, o que vais fazer?! Abrirás uma casa de alta-costura (a ironia, transparente na voz de Leonardo, nem sequer fez sorrir Marcela)?!
- Não... Para ter uma casa de alta-costura precisaria de um capitalista... Encontraria algum vampiro, como o defunto senhor Samuel... Sob a capa da ajuda, o interesse vil. Deixei, definitivamente de talhar e de cozer...
- Não insisto. Sinto-me fatigado e desiludido. Algum dia saberás de mim e eu saberei de ti. vou partir. Fixar-me-ei durante meses em Paris... Se lá chegar...
- Espero e desejo que sim, que venhamos a saber um do outro... Guarda no teu coração um pouco de ternura, e, não rancor. O ódio é veneno que corrompe o próprio sangue.
- Dispensa-me, por favor, das tuas femininas considerações...
...E num impulso de violência, o rosto com expressão de desânimo, Leonardo ergueu a mão direita em despedida e afastou-se a largos passos, fazendo oscilar as orlas da capa vasta e negra em que se envolvia.
Foi esta a última imagem que Marcela guardou de Leonardo. Ele não teria mais notícias dela. Ela, saberia, poucas semanas volvidas que ele não se ausentara, mais uma vez, como dissera, mas sim partira para a eternidade. A bomba deflagrara enquanto ele se encontrava perto. Explodira antes que ele abandonasse o local que se transformara em ruínas fumegantes. Dos escombros, o seu corpo fora retirado, despedaçado. Mesmo aí, Marcela não chorou. O que sentiu foi um grande aperto na garganta, uma fina dor no peito.
Marcela, na tarde com sol primaveril, entrou numa livraria onde sabia encontraria livros com ilustrações suas, que desejava folhear. O proprietário, cumprimentando-a, segredou-lhe, sorrindo: "Quero apresentar-lhe um amigo. Conversemos um pouco, até que ele se desembarace daqueles com quem está a falar..." com um jeito breve do queixo indicou um grupo formado por três homens, junto de uma estante.
Encarou o livreiro com um ar altivo e divertido. Perguntou: "Mas quem é o homem?!" Nesse instante viu que um dos do grupo se despedia; dois homens aproximavam-se e parando junto dela, dispensaram apresentações. O livreiro sorria. Ambos disseram tê-la conhecido em estudante. Perplexa, Marcela olhara aqueles dois homens, um alto e outro baixo, de tipos diferentes, e, não encontrara, exactamente, as palavras com que gostaria de formar frases invulgares.
Um deles, após uma troca informal de frases mais ou menos brilhantes, despediu-se e partiu. O outro (aquele que o livreiro desejava apresentar-lhe) encetou com Marcela um diálogo vivo, em explosões de simpatia, fremente de entusiasmo, que se prolongou durante cerca de uma hora. Esqueceram-se do local onde estavam. Falavam, numa cascata de palavras quentes e vibrantes.
Marcela, porém, não se sentia fascinada. Apenas estava excessivamente nervosa. Compreendeu que no homem havia deflagrado um tumultuar de desejos e quis desaparecer rapidamente daquela loja acanhada, cujo tecto parecia querer abater-se sobre ela para a aniquilar. Tinha de fugir a um perigo, fugir a mais um devasso perseguidor, a um trampolineiro de falas gostosas. Ou quereria ela consentir o submeter-se a mais uma prova, aceitando aquela falsa cordialidade de quem alguma coisa desejava ganhar à sua custa?!
Continuara a sorrir e a falar mas o atormentado aviso já lhe corria no sangue.
O vilão ou vilãozito que aos dezoito anos puxava aos varais de uma carroça, podia ser algum dia homem de sérias e nobres atitudes?!
A mulher, certamente nunca deixaria de sorrir de tudo e de todos...
Na sua casa, que mesmo dali a dezenas de anos ainda conservaria os seus perfumes prestigiosos, como esses "Shalimar" ou "Chamade", de Guerlain que ela mais usava, perfumes que evocavam flores e os sonhos das "mil e uma noites", o seu "fluido", a sombra esquiva e diáfana da sua presença, Marcela cada vez mais raramente se entregava a recordações amargas, à relembrança dos seres que a tinham molestado e que a morte reduzira a volumes sem pesos nem dimensões; memórias muito agradáveis, dessas que ajudam a suportar as graves solidões, tinha algumas. Essas, reconfortavam-na, oferecendo-lhe alegrias amáveis e subitâneos alvoroços.
Todas as suas experiências e os seus conhecimentos, reunidos sem premeditação, ofereciam-lhe um excelente material para compor o que desejava; tudo quanto suportara, sentira e conhecera, era para ela como um baralho de cartas... Em filas e em grupos, Marcela alinhava e dispunha essas cartas-chaves de descobertas e em seguida, como que animava por um cálido sopro de vida as imagens que fulguravam no seu espírito, na sua imaginação, nos seus olhos.
No prédio, podia dizer-se que somente horas mortas se sucediam, sem paixões e sem pesares. Nem Cristina, a filha do enorme porteiro, já por ali andava, subindo e descendo as escadas, ruidosamente, com a canção irisada de promessas da sua juventude. Alguém, algures, deixara em testamento, ao gordo homem um "chalet" (propalara-se algo pouco limpo acerca desse legado) e umas terras de cultivo, e Cristina acompanhara o pai, indo para a casa que passara a pertencer-lhes. Nos seus últimos anos de porteiro, o pai de Cristina tivera de suportar o desdém dos inquilinos, pois dissera-se que a sua ocupação mais rendosa não era aquela. Teria, mesmo, várias outras ocupações. Substituira-o um casal tímido e reservado que pouco se via. Gentes dos andares superiores que para ali tinham vindo em épocas de ambições e que despropositadamente riam, ao sair e ao entrar, afundadas em desencantos e precoces envelhecimentos, já não denunciavam estouvamentos, nem às saídas, nem às entradas, com as torrentes dos seus risos estrídulos e estúpidos. O prédio acusava, no seu silêncio, a recusa das criaturas aos desafios da vida. Sem a palpitação vibrante dos ondeados desejos, o prédio, na sonoridade fria dos degraus da escada, apresentava alguns sinais de abandono gerador de todos os desinteresses.
O deflagrar das risadas das crianças acontecia a certa distância, no jardim mal conservado que ficava à ilharga de um cinema de moderna fachada. E, na verdade, só no primeiro andar do prédio de banalissimo aspecto (o andar ocupado por Marcela), germinavam sementes de uma vida oculta que seria vestida de realidade. Marcela, a valorosa mulher que amava a solidão, continuava a trabalhar.
Sonhos e pesadelos da sua própria vida de mulher impulsiva e corajosa, ardente e exuberante, mercê de uma arte estranha e poderosa do pensamento criador, transmudar-se-iam em seres "vivos", postos numa galeria vasta, onde o grotesco e o miserável dariam ombros ao complexo, com raros matizes que pudessem utilizar-se em surtos poéticos, com rajadas de sons coloridos.
Marcela não podia, evidentemente, admitir que o número de devassos, aviltadores de sentimentos e valores, infames gananciosos, fosse muito superior ao da plêiade de seres humanos de carácter, de moralidade inatacável; contudo, sentia-se angustiada ao verificar que o destino só puzera até ali no seu caminho o que a humanidade tinha de mais repugnante e condenável, mais infame e mísero.
Fazia-se perguntas e dava-se respostas. Ao seu redor o silêncio media-se pelo pulsar do seu coração. Ela debruçava-se, de muito alto, para paisagens submersas em claridades e brumas. Atingia-a nos olhos uma vertigem com cores de arco-iris. O relógio redondo que tinha na sua frente, no pontilhar certo dos minutos que se iam esbagoando, no verde e doirado dos ponteiros que avançavam um atrás do outro, numa perseguição eterna e inútil, dava satisfação a muitas das suas tormentosas interrogações. Quando não permanecia sentada à secretária, Marcela afundava-se, de pálpebras cerradas, numa das poltronas de tapeçaria carmezim, de canelados sedosos, e permitia que o seu espírito reconstituísse cenas, esquiçadas ou gravadas em cenários antigos. Não divagava. Criava, com um certo sofrimento.
Sabia que ia tomar por um novo caminho de ciladas, onde a inveja e a malvadez a espreitariam em curvas de sombra. Mas a sua decisão, apoiada apenas na sua magnífica e prodigiosa força de vontade, estava tomada; mais uma decisão... Nada a faria vacilar... Não tinha amigos?! E que valor para o futuro tem aqueles que "sobem" à custa dos amigos embusteiros que gritam louvores enquanto isso lhes interessa?! Assistindo, como espectadora, às festas dadas por Narcisa (que um dia compreenderia os seus erros), entendera claramente que a "amizade" tem de pagar-se e só se cultiva bem com jantares, ceias, bebidas... O intercâmbio das ideias, carecia, igualmente, de ambientes especiais. Mulheres triunfadoras, apenas aquelas que tinham alcançado, que possuiam fortunas, para alimentarem os amigos, toda a catrefa de mesureiros, bajuladores e críticos de tudo. Ela continuava sozinha; seria sempre sozinha?! Não receava, porém, as vis trapaças dos desdenhosos. O que não revelara a Leonardo, nem a ninguém, enchia-lhe todos os instantes de um ardor vivificante. Renunciaria às viagens... E o livro que escrevia, seria ela a lançá-lo! Dezenas de anos da vida de uma mulher... Talvez não fosse, propriamente, a história dela que escrevia, que lançaria em breve; mas tinha quase terminado um romance verdadeiro, com a sólida base da palavra certa, um livro com frisos de seres reais, que ela conhecia, que ela vira miseravelmente despidos. Não apresentava símbolos nem absurdos. Desenhava formas, atitudes, caracteres. Se não era demasiado profunda também não divertia com a superficialidade. Encontrara-se. Triunfadora ou simplesmente trabalhadora incansável, seria em todos os amanhãs que ainda viveria, com a graça de Deus, a mulher que sozinha ia construindo o seu futuro, ganhando honradamente o seu sustento. As pedras que lhe atirassem seriam de raiva e de inveja. Não proclamaria o seu fervoroso amor pelo seu viver de solidão e independência; mas esse fervor estaria nela e ela, mulher ardente, sentir-se-ia sempre apaixonada pelo milagre da vida a renovar-se constantemente.
Dedicava mais horas aos seus trabalhos de tradução; primeiro porque assumira grandes compromissos, e segundo porque necessitava de realizar dinheiro para acudir às novas despesas que iria ter com o seu livro, escrito com uma febre intensa, um inviolado desejo de reproduzir com verdade as criaturas e as situações que conhecera e lhe tinham deixado no próprio cerne da carne as marcas inapagáveis da repulsa pelo que é baixo - criaturas de um mundo de pequenas e grandes infâmias
Se tivesse consentido em deixar-se embalar pelo canto da futilidade, da amoralidade, da vaidade e dos vícios do fumo, das bebidas e da droga (tudo quanto acontecia em casa de Narcisa), flutuaria, como folha miserável, que um vento doido fizesse redemoinhar, até a afundar, despedaçada, num tremedal de lodo. Apesar de entregue a si mesma, defendera-se galhardamente dos apelos demoníacos, das solicitações dos malvados e agora sentia-se de pés bem assentes num terreno firme, embora a paisagem lhe oferecesse muitos silêncios trespassados de chamadas. Nada de agoirento a perturbava.
Saindo, para a entrega dos seus trabalhos, ou para comprar rosas, e junquilhos, as suas flores predilectas, fazia enormes caminhadas a pé, olhando as multidões e seguindo a trajectória das asas de alguma ave transviada ou em reconhecimento de alturas. Sentia-se pletórica e finalmente feliz. Sentia-se como mulher grávida que ao sol pode, subtilmente, afagar o seu ventre onde lateja vida, onde palpita uma raiz de vital importância. Marcela sentia-se, realmente, como se carregasse em si uma outra vida de esperanças e de amor! Uma vida que ela deveria acariciar, alimentar, prolongar - e assim se acariciaria, alimentaria e prolongaria a si mesma, na glória e na alegria, na transitória melancolia, no prazer imenso de ser vitoriosamente só e corajosamente perseverante.
Olhava as árvores, sorria ao vento, ao céu, ao sol, mesmo à chuva, e, caminhava, serena no meio do turbilhão anónimo dos eternos galopadores da vida. Não, ela não era como a mulher grávida; ela era a mulher grávida, estava realmente, grávida, e dela uma nova força queria irromper, dela, dos seus poros, brotaria algo de imortal... Essa força e essa vida, golperaria a sua boca, no grito secreto que no seu sangue ficaria submerso...
O perfume das rosas e dos junquilhos que muitas vezes apertava nas mãos, banhava-lhe toda a pele. Ela voltava, possuída por uma íntima fascinação, à sua casa de sonhos e mistérios.
Paris, Outubro de 72 - Lisboa, Abril de 73.
Aos meus Leitores
Sinto um imperioso desejo de escrever estas páginas especialmente para agradecer aos meus Leitores o acolhimento feito a "Desejar não é Amar" de que o presente volume é a continuação (só despresei algumas figuras secundárias, criando outras, nítidas). Sem críticas (as quatro "notícias" aparecidas não as considero como críticas; é certo que enviei o meu romance somente a quatro jornais e não os ofereci aos apregoados críticos de soberbas basófias que apenas se alongam a "criticar" o que lhes convém, louvando por "cortesia" (ou interesses), ou então se repetem em críticas a livros clandestinos (?!) ou que ninguém leu...) e sem publicidade, "Desejar não é Amar" nem por isso deixou de ser procurado.
E, porque não enviei eu "Desejar não é Amar" aos tubarões ou galopadores da crítica actual?! Não foi por medo aos seus ataques; foi, simplesmente, porque nunca lhes "dediquei" os meus outros romances publicados. Mas esperei críticas dos jornais onde trabalho. Isso sim! Não apareceram, e, "Desejar não é Amar", vendeu-se bem. Portanto, tenho leitores! E é aos meus Leitores que estou grata. Agora sei que a grande massa dos que lêem já não acreditam em críticas, nessa feira de gritadores e autocríticas que vão fazendo a publicidade dos amigos e das suas próprias produções, com frases muito bem escolhidas e de explêndidas sonoridades. Não, os Leitores, não acreditam nos críticaxos da crítica publicitária que fazem tanto alarido como as bombas postas a deflagrar em caixotes de lixo, e, que, afinal, pouco resultam...
Pois apesar de não ter recebido críticas, e de ter descoberto as tramóias de alguns birbantes e chibantes que nem sequer queriam que as "notícias" saíssem (também tive promessas de mais "notícias" que não chegaram a ser publicadas...) eu não perdi a coragem e a força e eis-me agora a lançar o meu novo romance
- "Os Amores de Máximo" - que tem páginas de realidades palpáveis e muitas outras de vivos sonhos e de ilusão num amanhã menos corrompido, onde não se admitam só os protegidos, onde não se galardoem apenas aqueles que ".estão de cima)), senhores de mando, que é conveniente e urgente adular.
A propósito, quero confessar que, levada por uma exuberância congénita que às vees não domino, concorri com "Desejar não é Amar" a um Prémio que "logo" foi atribuído e breve será divulgado... Pois para meu espanto (não desilusão...), precisamente dois dias antes da Páscoa da Ressurreição, foi-me confidenciado que o Prémio já estava dado, que os quatro componentes do júri, dois homens e duas mulheres, tinham decidido ".aquilo"... Ainda houvera um segundo turbulento que ambicionara o Prémio para o conjunto da sua Obra, mas... Bem, o meu "Desejar não é Amar" nem foi lido... Para quê?! Sei quem compunha o júri. E apenas pasmei, por várias razões...
Não chegou a haver injustiça... Mas houve trafulhice, houve torpeza - se é verdadeira a informação que, sem eu a pedir, me deram. Tudo assombroso... Pois também me admirei, semanas e eu ficarei encantada e agradecida. Não acreditem em críticas... O que vale é a Verdade, a sinceridade e honestidade com que se trabalha, e luta, e sofre, e se caminha para a frente, sem receio das ciladas, renunciando a falsas alegrias e prazeres, saltando abismos, esperando o Sol que aquece e estimula, quando a tempestade nos fustiga, em fúrias doidas... O que vale, com efeito, é a Verdade, a tenacidade e a esperança.
Confio na vossa humana simpatia e por isso continuarei a escrever, não historietas ridículas (e serão algumas escritas por quem as assina?!) destinadas (já com certezas) a "isto ou àquilo", livrinhos com "apoios certos", de críticos e de júris (figuras grotescas, flácidas, calvas, arrogantes a despresarem os "desafortunados" que vivem apenas para trabalhar e lutar), mas sim histórias másculas, sem esmaltes adulterados, onde desfibrarei uma sociedade a afogar-se em sujas insolências, a morrer em infectos ambientes - as vasas da alquimia fabulosa que transforma em deuses, uns diabitos com olhos de ratos, contaminados por variados vírus deformadores e dessórantes até aos mais remotos limites das reconhecíveis configurações.
Todos os exemplares de "Os Amores de Máximo" serão por mim rubricados.
Carmen de Figueiredo
O melhor da literatura para todos os gostos e idades