Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS ANOS DE GLÓRIA
Segunda Parte
Alguns dias mais tarde, em Rastemburgo, eu via no mapa do setor, desde Voronej a Stalingrado, em uma extensão de duzentos quilômetros, muitas flechas vermelhas, indicativas dos movimentos da ofensiva russa. As flechas estavam interrompidas por pequenos círculos azuis, que designavam os restos das divisões alemãs e aliadas. Stalingrado estava circundada por um círculo vermelho. Inquieto, Hitler ordenou a remessa imediata para o sul das tropas estacionadas nos demais setores da frente e nos territórios ocupados, mandando que se movessem com a maior pressa possível. Não havia unidades de reserva. Além disso, muito tempo antes de romper-se a frente, o General Zeitzler observara que cada uma das divisões em combate na Rússia meridional teria de defender um setor de enorme extensão e por isso não estariam em condições de repelir um ataque dos russos em profundidade.
Depois de Stalingrado estar sitiada, Zeitzler, com o rosto vermelho, a fisionomia denunciando falta de sono, insistiu energicamente na sua opinião de que o VI Exército tinha de abrir uma saída para o oeste. Explicou, minuciosamente, a insuficiência do abastecimento dos sitiados, referiu-se à falta de combustível, disse que os soldados estavam lutando entre escombros ou em campos cobertos de gelo, com temperatura abaixo de zero, não podendo receber comida quente. Hitler permaneceu tranqüilo, firme, sereno, como se quisesse dar a entender que a excitação de Zeitzler tinha sua origem em uma psicose de medo.
– A ofensiva que ordenei, procedente do sul, logo libertará Stalingrado. Assim ficará restabelecida a situação. Além disso, já nos vimos várias vezes em tais situações e, no final, acabamos sendo senhores da posição.
Hitler ordenou que as tropas para a contra-ofensiva tivessem à retaguarda trens de reforços e de abastecimento, a fim de aliviar a penúria dos sitiados, logo que fosse levantado o cerco. Mas Zeitzler contradisse Hitler, informando que as forças previstas para a contra-ofensiva eram muito fracas. Mas, se essas forças pudessem ter um contato com o VI Exército, depois da saída para o oeste, haveria possibilidade de novas posições mais ao sul. Hitler expôs argumentos opostos ao de Zeitzler. Afinal, depois de mais de meia hora de discussão, Hitler disse:
– Temos de conservar Stalingrado em nosso poder. É uma posição-chave. Colocaremos os russos em situação difícil se pudermos interromper a navegação pelo Volga, neste ponto. Como irão transportar o trigo do sul para o norte da Rússia?
A explicação não me pareceu muito convincente. Tive, aliás, a impressão de que Stalingrado tinha o valor de símbolo para Hitler. De qualquer modo, aquelas palavras encerraram a discussão.
No dia seguinte, a situação estava pior. Os rogos de Zeitzler eram mais insistentes. Na sala havia um ambiente de desânimo e o próprio Hitler dava a impressão de abatimento e de depressão psicológica. Chegou até a falar na retirada dos sitiados. Mandou calcular quantas toneladas de mantimentos eram necessárias, diariamente, para manter a disposição combativa de mais de duzentos mil soldados. Vinte e quatro horas mais tarde, o destino do exército sitiado estava definitivamente resolvido. Na sala de conferências, apareceu Goering, fresco, radiante, como um tenor de opereta que tivesse de representar o papel de um marechal do Reich vitorioso. Deprimido, com um tom de súplica na voz, perguntou-lhe Hitler:
– Que se pode fazer para o abastecimento de Stalingrado pelo ar?
Goering tomou a posição de sentido e respondeu, solenemente:
– Meu Fuhrer, garanto, pessoalmente, que o VI Exército, sitiado em Stalingrado, será abastecido pelo ar! Pode ter absoluta certeza disso!
Milch informou-me depois que o Estado-Maior da Luftwaffe calculara a impossibilidade do abastecimento dos sitiados por via aérea. Ouvindo Goering, Zeitzler exprimiu também suas dúvidas, mas Goering contestou-o com aspereza, declarando ser da exclusiva competência da Luftwaffe o Cálculo para o abastecimento. Hitler, que era tão consciencioso em matéria de algarismos, não pediu explicações sobre a maneira como poderiam ser preparados os aviões necessários. Bastaram as palavras de Goering para que ele sentisse reanimar-se:
– Pois então mantenha-se Stalingrado! Carece de sentido falar-se ainda de uma saída do VI Exército. Perderia todo material pesado e ficaria sem capacidade combativa. O VI Exército ficará em Stalingrado!
Embora Goering tivesse plena consciência do destino de Stalingrado, que dependeria da sua palavra empenhada, no dia 12 de dezembro de 1942 convidou-nos para uma solene representação de Os mestres cantores de Nuremberg, na reinauguração da destruída Ópera Nacional de Berlim. Ocupava o grande camarote do Fuhrer, eu vestido de fraque, ele o grande uniforme do partido. Aquela noite festiva constava com a tristeza dos acontecimentos, na frente, e durante muito tempo eu repreendi a mim mesmo por ter aceitado o convite.
Decorridos alguns dias, eu estava outra vez no quartel-general do Fuhrer. Zeitzler informava, todos os dias, da quantidade de comestíveis e munições enviadas pelo ar ao VI Exército. Hitler não cessava de pedir explicações a Goering, que sempre tinha evasivas: mau tempo, neblina, ventanias, tempestades de neve estavam impedindo a plena execução da operação de socorro projetada. Mas, logo que mudasse o tempo – prometia Goering –, seriam enviadas as toneladas prometidas.
Se em Stalingrado as rações de comida tiveram de ser reduzidas, Zeitzler, por sua vez, ordenara que lhe servissem, no cassino do Estado-Maior, na presença dos demais, a mesma ração dos combatentes de Stalingrado, razão pela qual estava emagrecendo a olhos vistos. Afinal, Hitler disse-lhe que lhe parecia aquela atitude inadequada ao chefe do Estado-Maior do Exército, que daquele modo estava desgastando sua energia nervosa em tais demonstrações de solidariedade. Zeitzler teria de alimentar-se bem, a partir daquele momento, sem perda de tempo. Em compensação, ele proibiu fossem servidos champanha e conhaque, durante semanas. Mas os ânimos foram-se deprimindo à medida que passavam os dias. As caras transformaram-se em máscaras rígidas e várias vezes nós nos reuníamos para ficarmos silenciosos.
Não obstante isso, quando voltei ao quartel-general, lá permanecendo de 2 a 7 de janeiro, Hitler estava nutrindo esperanças. No entanto, malograra a contra-ofensiva que ele ordenara para levar reforços, que estavam perecendo, naquela cidade. A única perspectiva esperançosa era a de que as tropas sitiadas forçassem uma brecha.
Fui naqueles dias, certa vez, testemunha dos apelos de Zeitzler a Keitel, no sentido de obter de Hitler a ordem para que as tropas sitiadas forçassem a saída. Keitel prometeu solenemente a Zeitzler apoiá-lo nesse pedido. Assim, no decorrer da conferência, quando Hitler insistiu na sua resolução de manter a posição de Stalingrado, Keitel, comovido, apontando para uns grossos círculos vermelhos, no mapa, em torno dos restos da cidade destruída, exclamou:
– Meu Fuhrer, isto nós conservaremos!
Naquela situação desesperadora, Hitler deu ao Marechal Milch, no dia 15 de janeiro de 1943, plenos poderes especiais, a fim de que este tomasse todas as providências necessárias ao abastecimento de Stalingrado, sem a intromissão de Goering. Durante alguns dias, telefonei a Milch, que me prometera salvar meu irmão que estava em Stalingrado. Mas a confusão geral impediu que ele fosse localizado. Recebíamos suas cartas desesperadas: estava atacado de icterícia, tinha as extremidades dos membros inflamadas, fora levado ao Hospital Militar, e andava arrastando-se. Não podendo continuar no hospital, voltara ao seu posto de observador em uma bateria. Não voltamos a ter notícias dele. E o que aconteceu aos meus pais e a mim também aconteceu a milhares de famílias, as quais, entretanto, continuavam a receber notícias dos seus, por via aérea, antes de tudo terminar. Depois, Hitler não disse mais uma palavra a respeito da catástrofe de que ele e Goering eram os únicos responsáveis. Mas ordenou que se organizasse um novo VI Exército, com o qual pensava recuperar a glória do exército desaparecido.
INTRIGAS
No inverno de 1942, durante a crise de Stalingrado, Bormann, Keitel e Lammers fizeram um acordo no sentido de apertar mais o círculo em torno de Hitler. Os papéis que tivessem de ser assinados pelo chefe do Estado só lhe seriam apresentados por intermédio de um daqueles homens. Assim não haveria mais a confusão nas ordens pela irrefletida assinatura de decretos. Os membros desse triunvirato delimitaram as respectivas esferas de jurisdição. Keitel, que se ocuparia de todas as disposições relativas à Wehrmacht, foi impedido de agir, logo no princípio, pela recusa dos comandantes-chefes da Luftwaffe e da Marinha em aceitarem essa espécie de tutela. Os demais assuntos dos ministérios, questões de direito político e da administração, seriam encaminhados através de Lammers. Este, entretanto, foi cedendo suas atribuições a Bormann, pois o secretário de Hitler não lhe dava ocasião de falar com o Fuhrer, freqüentemente. Quanto a Bormann, tinha reservado para si a exposição de todo o movimento da política interior. No entanto, não somente carecia da necessária inteligência para essa função, como também do Indispensável contato com o mundo exterior. Havia mais de oito anos era a sombra de Hitler, não se atrevendo a grandes viagens, a gozar férias, preocupado somente com a possibilidade de decair sua influência. Bormann sabia da periculosidade dos lugares-tenentes ambiciosos, precisamente por ter exercido esse posto junto de Hess. Sabia que Hitler tinha a tendência a encomendar, imediatamente, missões a esses homens, aos quais tratava como se fossem colaboradores do seu estado-maior. Essa característica de Hitler explicava-se não facilmente pelo seu afã em dividir responsabilidades, em qualquer esfera do poder, como também por lhe agradarem as novas, experimentando o valor das novas pessoas. Para a concorrência, dentro da própria casa, mais de um cauteloso evitava a nomeação de subsecretários inteligentes e enérgicos.
A intenção daqueles três indivíduos de isolar Hitler, filtrando as informações, controlando seu poder, talvez mudasse a trajetória do Fuhrer, de chefe do "governo de um só homem", se o triunvirato tivesse sido composto de pessoas com iniciativa própria, imaginação e senso de responsabilidade. Entretanto, ensinados a atuar sempre em nome de Hitler, não podiam deixar de ser escravos das decisões do chefe. Além disso, não tardou que Hitler deixasse de fazer caso daquela combinação, que o incomodava e se opunha à sua natureza pessoal. Compreende-se, porém, que aquele círculo provocasse irritação naqueles que estavam fora dele.
Na realidade, foi somente Bormann quem conseguiu uma posição-chave, talvez perigosa para os chefões do partido. Era ele quem determinava quais as pessoas que seriam recebidas por Hitler. Os ministros, os chefes nacionais e regionais eram constrangidos a expor a Bormann os assuntos que submeteriam à apreciação ou solução de Hitler, antes de serem recebidos pelo Fuhrer. Mas Bormann trabalhava com rapidez. O normal era o ministro interessado receber, dentro de poucos dias, uma resposta escrita, a qual de outra maneira exigiria talvez alguns meses. Sob esse ponto de vista, havia uma exceção para mim como ministro civil, pois minhas atribuições eram de índole militar, tendo tido sempre acesso livre ao gabinete de Hitler. As datas das minhas audiências eram designadas pelos ajudantes-de-ordens militares de Hitler.
Depois das minhas entrevistas com Hitler, Bormann era anunciado, rapidamente, sem formalismos, pelo oficial de serviço. Entrava na sala com os seus expedientes. Expunha os assuntos com frases monótonas, aparentando imparcialidade, e logo propunha a solução. Na maioria dos casos, a aprovação de Hitler resumia-se em uma frase – "de acordo" –, acompanhada de um movimento de cabeça. Bastava meia hora de trabalho para dez ou mais resoluções importantes. Na realidade, Bormann dirigia os assuntos interiores do Reich. Alguns meses mais tarde, no dia 12 de abril de 1943, Bormann obteve a assinatura de Hitler num documento aparentemente sem importância: foi nomeado "secretário do Fuhrer". Até então, sua autoridade restringia-se ao campo de ação do partido. A nova posição permitia-lhe agir onde quisesse.
Depois dos primeiros grandes resultados da minha gestão ministerial, a boa vontade substituiu o mau humor de Goebbels em relação à minha pessoa, depois do seu "caso" com Lida Baarova. Em 1942, solicitei-lhe que me ajudasse com a sua propaganda. Estimulou-se a publicação de periódicos e revistas ilustradas, aumentando-se o meu prestígio.
Tomando-se o fanatismo rotineiro dos discursos de Goebbels, seria errôneo julgá-lo pessoa de sangue ardente, dominada por seu temperamento. Na realidade, era um trabalhador aplicado, minuciosamente exato na execução das idéias, sem perder a visão global da situação. Possuía a faculdade de isolar os problemas das suas circunstâncias, estando portanto em condições de chegar a juízos completamente desapaixonados – tal foi a impressão que tive naquela época. Era, ademais, uma impressão suscitada pelo seu cinismo, pela construção lógica dos seus pensamentos, na qual transparecia a marca do ensino recebido na universidade. Só se mostrava tímido na presença de Hitler.
Goebbels não manifestara nenhuma ambição, durante a primeira fase de vitórias, na guerra. Ao contrário, já em 1940, exteriorizara a intenção de dedicar-se, depois de finda a luta, às suas múltiplas ocupações particulares, opinando então que competia à geração seguinte assumir o peso das responsabilidades.
Em dezembro de 1942, a situação catastrófica forçou-o a reunir-se com freqüência a três colegas: Walther Funk, Robert Ley e eu. Uma escolha típica, pois éramos todos homens de formação universitária completa.
Stalingrado nos tinha abalado: não somente a tragédia com os soldados do VI Exército, mas também – talvez mais – o fato de como poderia ter havido aquela catástrofe, sob o mando de Hitler. Até então, cada derrota fora compensada por uma vitória, o que fazia olvidar os erros, as perdas, as derrotas. Pela primeira vez, o fracasso fora absoluto.
Durante uma daquelas palestras, nos começos de 1943, Goebbels foi de opinião que tínhamos obtido muitos êxitos militares grandes, no início das hostilidades, tendo apenas tomado medidas insuficientes no interior do país. Isso nos habituara a supor que poderíamos continuar alcançando vitórias sem necessidade de grandes esforços. Os ingleses, ao contrário – essa era a opinião de Goebbels –, tinham tido mais sorte, pois a derrota de Dunquerque ocorrera logo no começo da guerra. Derrotados, eles estabeleceram uma limitação radical das exigências civis. Stalingrado fora nosso Dunquerque. Não se podia ganhar a guerra apenas mantendo o bom estado de ânimo da população.
Falando assim, Goebbels apoiava-se nos dados fornecidos pelo seu extensíssimo aparelho de informações, que revelavam a intranqüilidade e o desalento do povo. A necessidade de grandes sacrifícios era também evidente, do ponto de vista dos armamentos. Hitler não somente exigira novo impulso na produção, mas também a incorporação à Wehrmacht de oitocentos mil operários especializados, jovens, para compensar as perdas no leste.
No entanto, os ataques aéreos tinham demonstrado que a vida continuava normalmente nas cidades mais duramente afetadas. Houve porém uma diminuição na receita tributária, pois tinham sido destruídos muitos cadastros do Ministério da Fazenda. Apoiado no sistema de responsabilidade autônoma da indústria, propus depositarmos confiança nos contribuintes, em vez de cultivarmos desconfiança, e partindo daí diminuir o número dos postos de arrecadação, cujos funcionários eram quase três milhões. Discutimos planos para induzir os contribuintes a calcularem eles mesmos o imposto a pagar. Que importância teriam, no total de bilhões consumidos, mensalmente, pela guerra – argumentávamos Goebbels e eu –, os cem milhões, mais ou menos, já subtraídos ao Estado por alguns contribuintes desonestos?
Hitler dera uma aprovação vacilante à nossa proposta de simplificar muito os processos administrativos e de restringir o consumo de bens. Mas eu malogrei na minha intenção de serem confiadas essas funções a Goebbels, porquanto o sempre vigilante Bormann temia um aumento de poder do ambicioso rival. No lugar de Goebbels, nomeou-se o Dr. Lammers, aliado de Bormann no triunvirato, funcionário sem nenhuma iniciativa e imaginação, que sentia eriçarem-se os cabelos ao observar o menosprezo à burocracia, imprescindível, segundo o ponto de vista dele.
Era também Lammers quem, a partir de janeiro de 1943, presidia as reuniões do gabinete, que voltaram a se realizar. Não se convocavam todos os membros do governo, e sim, unicamente, os que tinham interesse nos assuntos na ordem do dia. O local escolhido para tais reuniões – a sala do gabinete do Reich – denunciava o poder de que estava investido o triunvirato.
As reuniões transcorriam acaloradas. Goebbels e Funk apoiavam minhas propostas radicais, enquanto o ministro do interior (Frick) e o próprio Lammers formulavam críticas. Gsuckel disse, claramente, que podia fornecer todos os operários necessários, inclusive os estrangeiros. Mas Goebbels nada obteve quando sugeriu que os dirigentes do partido renunciassem ao seu padrão de vida, de um fausto quase sem limite. Eva Braun, habitualmente tão discreta, quando soube que ia ser proibida a ondulação permanente, como também o fabrico de perfumarias, fez Hitler intervir, recomendando que, em vez de proibição absoluta, houvesse a "cessação disfarçada da produção de tinturas para o cabelo e outros produtos para o tratamento da cútis", assim como a "paralisação dos consertos nos aparelhos empregados nas ondulações permanentes".
Depois de algumas reuniões do gabinete, Goebbels e eu Vimos que devíamos esperar que Bormann, Lammers ou Keitel estimulassem a produção de armamentos. Nossos esforços tinham-se inutilizado no lodaçal dos detalhes sem importância.
No dia 18 de fevereiro de 1943, Goebbels pronunciou seu discurso sobre a "guerra total". Não se dirigiu somente à população. Suas palavras aludiram, ainda que indiretamente, aos setores governamentais que não queriam autorizar nossos esforços comuns no sentido do aproveitamento radical de todas as reservas da nação. Analisado, aquele discurso tencionou colocar sob a pressão popular Lammers e todos os demais vacilantes e relapsos.
Só durante os melhores momentos de Hitler eu vira um público fanatizado de um modo tão impressionante. De retorno à casa, para minha surpresa, Goebbels passou a explicar o efeito psicológico das suas aparentes explosões como uma forma de atuar não muito diferente daquela de um artista a desempenhar, todos os dias, o seu papel. Também se mostrou satisfeito com o auditório e perguntou-me:
– O senhor percebeu? Reagiam ao mais leve sinal e aplaudiam no momento exato. Esse público tem sido o mais politicamente educado da Alemanha.
Aquele público tinha sido integrado por homens enviados pelos núcleos do partido. Nele encontravam-se intelectuais e atores populares como Heinrich George, cujas entusiásticas reações eram fotografadas e reproduzidas em semanários cinematográficos para impressionar público mais vasto. Mas o discurso referia-se também à política exterior, tendo sido uma das tentativas de complemento do pensamento de Hitler, que tinha orientação militar. Segundo supunha Goebbels, o discurso valia por impressionante apelo às nações do Ocidente, convidando-as a considerar o perigo que ameaçava a Europa, vindo do leste. E, alguns dias depois, declarou-se muito satisfeito ao verificar que a imprensa estrangeira comentara de maneira positiva suas declarações.
A verdade é que, naquele tempo, Goebbels demonstrou ambição de exercer o cargo de ministro das Relações Exteriores. Com a sua habilidade na arte de conversar, tentou predispor Hitler contra Ribbentrop e, no começo, parecia estar bem sucedido em suas pretensões. De qualquer modo, entretanto, Hitler ouvia em silêncio as explicações de Goebbels, sem desviar a conversa para temas menos desagradáveis, como era seu hábito. Goebbels já se supunha vitorioso, quando, um dia, inesperadamente, Hitler começou a elogiar Ribbentrop, a habilidade do seu ministro das Relações Exteriores para negociar com os "aliados" e terminou afirmando, em termos inequívocos:
– O senhor tem um conceito a respeito de Ribbentrop inteiramente equivocado. É um dos nossos maiores homens e chegará o dia em que a história colocará o nosso ministro acima de Bismarck. É maior do que Bismarck.
E, ao mesmo tempo, proibiu Goebbels de continuar o que tentara em seu discurso no Palácio dos Esportes: tratar de estabelecer contatos com o Ocidente.
No entanto, o discurso de Goebbels sobre a guerra total foi seguido de uma providência aplaudida pelo povo: mandou fechar todos os restaurantes de luxo e casas de diversões caras em Berlim. Goering, porém, correu em defesa do seu restaurante favorito, o Horcher. Não faltaram entretanto manifestantes, mandados por Goebbels, dispostos a quebrar os vidros das janelas do restaurante, e Goering teve de ceder. O resultado foi uma grave desavença entre ele e Goebbels.
Na noite seguinte ao discurso do Palácio dos Esportes, muitas personalidades foram visitar Goebbels em sua residência, um palácio que ele mandara construir um pouco antes do início da guerra, nas proximidades da Porta de Brandenburgo. Visitaram-no, entre outros, o Marechal Milch, o ministro da Justiça, Thierack, o subsecretário do Interior, Stuckardt, e o subsecretário Kõrner, além de Funk e de Ley. Naquela recepção, discutiu-se pela primeira vez uma proposta apresentada por Milch e por mim: utilizarem-se os plenos poderes de Goering, como "presidente do Conselho de Ministros para a Defesa do Reich", a fim de se conseguir o fortalecimento da política interior.
Nove dias depois, Funk, Ley e eu fomos outra vez convidados a uma reunião em casa de Goebbels. O enorme edifício, ricamente adornado, causava impressão sombria. Para dar exemplo de austeridade, na situação de "guerra total", Goebbels mandara fechar os grandes salões de recepção. Fomos então convidados a entrar em um dos pequenos cômodos de quarenta ou cinqüenta metros quadrados. Criados vestidos de libré serviram-nos conhaque francês e chá, e logo depois Goebbels deu-lhes ordem para se retirar. E começou a falar:
– As coisas não podem continuar assim. Estamos em Berlim e Hitler não recebe informações a respeito do que está ocorrendo. Já não posso exercer nenhuma influência sobre ele, no terreno político, nem comunicar-lhe quais as providências mais urgentes em minha esfera de ação. Tudo tem de passar pelas mãos de Bormann. Há necessidade de Hitler vir com mais freqüência a Berlim.
Goebbels prosseguiu, dizendo que a política interior tinha fugido das suas mãos, dominada como estava por Bormann, um homem que sabia dar a Hitler a impressão de ser o Fuhrer quem estava ainda na direção dos assuntos interiores. Bormann só se orientava por sua ambição, era doutrinário e perigoso para qualquer atuação sensata, continuou explicando Goebbels. No momento, o mais necessário e urgente era diminuição da influência de Bormann.
Contrariando sua norma, Goebbels não excluiu das suas críticas nem mesmo Hitler.
– Não padecemos apenas de uma "crise de chefia", considerando bem os fatos, de uma "crise de Fuhrer".
Para ele, político nato, era incompreensível que Hitler tivesse abandonado a política, precisamente o instrumento de maior importância, para ocupar-se do comando militar nos teatros da guerra, função sem importância, considerada nela mesma. Nós dois não podíamos deixar de concordar com ele, nenhum de nós podia comparar-se com Goebbels quanto a descortino político. Sua crítica revelava o significado de Stalingrado. Goebbels começara a duvidar da boa estrela de Hitler, e por conseguinte da vitória do Fuhrer... E nós também, como ele...
Renovei a proposta de Goering encarregar-se da missão de que se cogitara para ele, no começo da guerra. Isso implicaria plenos poderes, a instituição de um direito político com a faculdade de legislar sem a colaboração de Hitler. A posição usurpada por Bormann e Lammers teria de ser enfraquecida por essa orientação política. Mas Goering e Goebbels estavam de relações cortadas, em conseqüência do incidente do Restaurante Horcher, e pediram-me então os presentes que eu falasse a Goering sobre o assunto.
A escolha desse homem, que desde há alguns anos levava uma vida indolente e luxuosa, talvez seja incompreensível ao observador atual, em face do nosso intento de mobilização de todas as forças. Goering não fora sempre assim, e continuava gozando de prestígio, pois fora ele quem, embora de maneira violenta, criara com inteligência e energia a Luftwaffe e iniciara o Plano Quadrienal. Eu admitia que Goering readquirisse algo da sua antiga energia, ao ver-se estimulado pela execução de uma nova atividade. Além disso, em qualquer circunstância, supúnhamos que o Conselho de Ministros para a Defesa do Reich seria um instrumento que permitiria a adoção de decisões radicais.
Hoje, ao olhar para trás, compreendo que a destituição de Bormann e de Lammers não alteraria somente o estado de coisas, porquanto a mudança de rumo que desejávamos não se efetivaria com a derrubada dos secretários de Hitler, mas, única e exclusivamente, mediante uma ação que visasse ao próprio Hitler. E isto já pertencia ao mundo da pura fantasia. No caso de conseguirmos firmar nossas posições pessoais, ameaçadas por Bormann, talvez não conseguíssemos o nosso objetivo político, e nos submetêssemos à orientação de Hitler mais incondicionalmente do que o intrigante Bormann e, em nossa opinião, o muito vagaroso Lammers. O fato de darmos importância a essas minúcias é significativo da estreiteza do mundo em que todos nos movíamos. Foi essa a primeira vez que deixei minha posição discreta de especialista para entrar no campo da política. Sempre evitara esse passo. Mas, agora, procedendo assim, isso não poderia deixar de ter conseqüências de ordem íntima. Eu tinha até então suposto que podia concentrar-me, exclusivamente, em minhas tarefas especializadas. Mas quando agimos dentro de um sistema autoritário, terminamos inevitavelmente penetrando nos campos de força da política, exigindo isso a luta pela permanência nas posições que ocupamos.
Goering tinha-se retirado para a sua residência de verão, encravada em Obersalzberg. Segundo informação de Milch, fora para lá magoado pelas duras reprimendas de Hitler a respeito da forma como ele estava dirigindo a Luftwaffe. Era sua intenção permanecer lá bastante tempo. Mas, em 28 de fevereiro de 1943, dispôs-se a receber-me. Nossa conversa, que durou várias horas, foi amistosa. E também natural, de acordo com o ambiente da casa, relativamente pequena. Mas não esqueço que ele estava com as unhas pintadas com um esmalte avermelhado e o rosto pintado. Quanto ao enorme broche de rubis, que enfeitava a bata, eu já estava habituado a vê-lo.
Calmo, Goering ouviu toda a minha exposição a respeito do que se tinha conversado em Berlim. Enquanto isso, maçava com pedras preciosas, que tirava dos bolsos da bata, deixando-as escorregarem entre os dedos. Pareceu alegrar-se o fato de nos termos lembrado dele. Também sentia na atuação de Bormann, e mostrou-se de acordo com nossos planos. Em todo caso, ainda estava zangado com Goebbels, mas eu lhe propus que convidasse, pessoalmente, o ministro da Propaganda, para falar-lhe sobre o assunto. No dia seguinte, Goebbels foi ver-me em Berchtesgaden, lhe dei informação do resultado de minha entrevista Goering. Fomos os dois falar com ele. Retirei-me para deixá-los à vontade na troca de opiniões. Quando voltei à encontrei Goering esfregando as mãos de satisfeito, ao na luta que começava, mostrando uma fisionomia animada. A primeira coisa a fazer, explicou, seria constituir um grupo de Ministros para a Defesa do Reich. Goebbels participaríamos do organismo. Também se falou da necessidade de substituir Ribbentrop. O ministro das Relações Exteriores, a quem incumbia orientar Hitler no sentido de uma política exterior sensata, era um simples porta-voz do Fuhrer. Devia, no entanto, ser alguém capaz de encontrar uma solução política na difícil situação militar em que nos encontrávamos.
Goebbels, que não disfarçava sua satisfação pelo desgosto de Goering quanto à situação, procurava ao mesmo tempo tranqüilizá-lo, pois temia a impulsividade do marechal do Reich, muito inábil em questões de tática. Voltou a dizer:
– Pode estar seguro, Sr. Goering, de que abriremos os olhos ao Fuhrer no tocante a Bormann e Lammers. Uma coisa no entanto não faremos: proceder com exagero. Temos de agir cautelosamente. O senhor já conhece o Fuhrer.
E, mais cauteloso, acrescentou:
– Não falaremos muito claramente aos outros membros do Conselho de Ministros. Não têm de saber que estamos dispostos a tirar o poder aos poucos das mãos do triunvirato. Somos amigos leais do Fuhrer e não nos move nenhuma ambição pessoal. No entanto, se cada um de nós responder pelos demais, perante o Fuhrer, poderemos levantar uma sólida muralha em torno dele.
Enquanto voltava para sua residência, Goebbels mostrou-se muito satisfeito.
– Nós alcançamos nosso objetivo! Não lhe parece que o Marechal Goering recuperou a boa disposição antiga?
De fato, eu jamais vira Goering tão bem disposto, enérgico, decidido, ousado como naquele momento. Estivemos passeando por muito tempo, na campina de Obersalzberg, Goering e eu, falando do roteiro de Bormann. Declarei com franqueza que Bormann aspirava apenas à sucessão de Hitler. Ele não recuaria diante de nenhuma iniciativa que pusesse fora de combate Goering, aos olhos de Hitler, como também os demais membros do governo.
Goering escutou-me com atenção crescente. Falei-lhe dos chás em companhia de Hitler, em Obersalzberg, dos quais ele estivera excluído. Tive a oportunidade de observar como agia Bormann. Este jamais atacava diretamente, mas aproveitava-se com cautela de pequenos incidentes ocasionais, cujo conjunto já apresentava algum valor. Por exemplo, durante os mencionados chás, Bormann, para prejudicar Schirach, contava anedotas do tempo de Viena, casos que desacreditavam o companheiro de Hitler. Mas evitava apoiar as observações que Hitler expunha, depois de ele, Bormann, falar. Ao contrário, em seguida às palavras de Hitler, Bormann elogiava Schirach. Sem dúvida, os elogios produziriam efeito negativo em Hitler. Pouco mais ou menos um ano depois, Bormann conseguira o afastamento de Schirach, o qual freqüentemente se mostrava pouco amistoso em relação a Bormann. Na ausência de Hitler, Bormann dizia que Schirach era uma pessoa indicada para viver em Viena, cidade onde todos intrigavam contra todos. Eu acrescentei que Bormann iria minar da mesma forma o prestígio do marechal do Reich.
Claro que para Bormann não seria difícil manobrar contra Goering, que para isso lhe dava motivos mais do que suficientes. Naqueles dias, o próprio Goebbels, desculpando Goering, falara dos "trajes barrocos" do marechal do Reich. Muito mais tarde, na primavera de 1945, quando Hitler ofendeu o seu marechal do Reich, diante de todos os presentes em uma reunião para o estudo da situação, Goering exprimiu seus sentimentos, falando a Below, representante de Hitler na Luftwaffe:
– Speer tinha toda a razão, quando, há algum tempo, advertiu-me a respeito de Bormann. Vejo que este conseguiu o que desejava.
Mas Goering estava enganado. Bormann conseguira o seu objetivo já na primavera de 1943.
Alguns dias depois, no dia 5 de março de 1943, fui de avião ao quartel-general para resolver alguns casos no fabrico de armamentos. Mas, na realidade, o que me preocupava era a aliança entre Goebbels e Goering. Não foi difícil obter uma audiência do Fuhrer a Goebbels, pois Hitler gostou da idéia passar um dia na companhia do agradável ministro da propaganda.
Goebbels apresentou-se três dias depois da minha chegada e logo me chamou à parte para perguntar-me:
– Como anda o Fuhrer, Sr. Speer?
Expliquei-lhe que o Fuhrer não estava bem disposto para Goering e aconselhei prudência. O melhor seria não tocar assunto por enquanto e por essa razão eu não insistira. Goebbels concordou.
– Talvez o senhor tenha razão. Não vamos agora falar de Goering ao Fuhrer. Isso poria tudo a perder.
A sucessão de maciços ataques da aviação inimiga – ataques que continuavam havia algumas semanas – enfraquecera ainda mais a posição de Goering, já vacilante antes disso. Bastava falarem no nome de Goering para Hitler iniciar uma série de acusações por erros da estratégia aérea. Hitler dissera que os bombardeios incessantes não somente destruiriam as cidades como poderiam prejudicar muito o moral do povo alemão. Hitler foi vítima do mesmo erro dos ingleses, no tempo dos ataques aéreos à Grã-Bretanha.
Goebbels e eu fomos convidados por Hitler a almoçar. É curioso notar que, naquelas ocasiões, ele não convidava Bormann, que lhe era imprescindível em todos os campos. Mas, nesse ponto, Hitler tratava Bormann como secretário, nada mais. Estimulado por Goebbels, ele mostrou-se mais vivaz e conversador do que eu costumava vê-lo em minhas visitas ao quartel-general. Aproveitou a ocasião para extravasar seus sentimentos. E, como acontecia na maioria das vezes, serviu-se da ocasião para falar mal de quase todos os colaboradores, com exceção de nós dois, que estávamos presentes. Depois do almoço, retirei-me, e Goebbels ficou sozinho com Hitler, durante várias horas.
Apesar dos inconvenientes, Goebbels e eu concordamos em falar, mediante insinuações apenas, do nosso projeto do Conselho de Ministros para a Defesa do Reich. Já se tinha formado um ambiente propício à nossa intenção, de modo que não se sentisse Hitler alvejado por algo que ele entendesse ser crítica ao seu governo, quando a placidez do momento foi alterada pela notícia de um duro ataque aéreo a Nuremberg. Parecendo ter tido um pressentimento das nossas intenções, ou talvez prevenido por Bormann, Hitler fez uma cena como poucas vezes eu o vira fazer. Ordenou que se fizesse levantar da cama o General Bodenschatz, ajudante-chefe de Goering, e despejou sobre o general duríssimos conceitos com referência ao "incapaz marechal do Reich". Goebbels e eu tratamos de acalmá-lo e afinal conseguimos tranqüilizá-lo. Mas a conseqüência foi ter sido inutilizada a nossa tentativa, e Goebbels achou conveniente abandonar o assunto por enquanto. Mas foi de opinião que sua posição política se tinha firmado, pelas mostras de reconhecimento dadas por Hitler, durante as horas da conversa. Tinha a impressão de ter recuperado a antiga confiança de Hitler. Agora, afirmou com acento de voz decidido, prosseguiria a luta contra Bormann.
No dia 17 de março, Goebbels, Funk, Ley e eu nos reunimos no palácio de Goering, na Leipziger Platz. Ele nos recebeu no gabinete com etiqueta oficial, sentado na cadeira estilo Renascimento, por trás da enorme mesa de trabalho. Nós nos sentamos à sua frente em cadeiras incômodas. Desaparecera a cordialidade com que nos tratara em Obersalzberg. Tinha-se a impressão de que ele agora lamentava a fraqueza demonstrada antes.
Enquanto permanecíamos sentados, quase mudos, Goering e Goebbels iniciaram uma conversa animada, expondo pontos de vista sobre os perigos decorrentes do triunvirato, em torno de Hitler, ambos divagando em esperanças e ilusões sobre as nossas possibilidades de tirar o Fuhrer do isolamento em que se encontrava. Goebbels parecia esquecido por completo das expressões de Hitler, depreciativas de Goering. Ambos já estavam vendo perto a realização dos seus objetivos. Goering, alternando como sempre a apatia e a euforia, dava já pouca importância à influência da camarilha do quartel-general, dizendo:
– Nem devemos lhes dar muito valor, Sr. Goebbels! Na realidade, Bormann e Keitel são apenas dois secretários do Fuhrer. Na prática, que podem fazer? Por eles mesmos, são verdadeiros zeros à esquerda...
Havia muito tempo, os operários que Sauckel tinha de levar à indústria não correspondiam ao número real de trabalhadores destinados às empresas industriais. No entanto, ele não deixava de exagerar o resultado do seu recrutamento de operários, quando dava informações a Hitler. Mas a diferença o número real e o dado por Sauckel ia a umas cem pessoas. Assim, propus que se unissem nossas forças para Sauckel, um dos agentes de Bormann, a fornecer dados fidedignos.
Por ordem de Hitler, fora construído em Berchtesgaden, o serviço de chancelaria do Reich, um grande edifício estilo rural bávaro. Lammers e seus auxiliares mais íntimos despachavam lá o expediente da chancelaria do Reich, durante as longas estadas de Hitler em Obersalzberg. Goering conseguiu que o dono da casa, Lammers, nos convocasse, e também a Sauckel e Milch, para uma reunião, no dia 12 de abril de 1943, na sala de sessões daquele edifício. Antes do início da reunião, Milch e eu dissemos a Goering quais eram os nossos objetivos. Goering esfregou as mãos, declarando:
– Eu arranjarei isso, convenientemente, para os senhores.
Mas houve uma surpresa: Himmler, Bormann e Keitel apresentaram-se e para nossa desgraça não compareceu Goebbels, que sob o pretexto de uma crise renal permanecera acamado em seu vagão especial. Mas nunca pudemos saber se aquele mal fora um pretexto de Goebbels. A reunião marcou o fim de nossa aliança. Sauckel simplesmente ignorou nosso pedido de dois milhões e cem mil trabalhadores adicionais para toda a economia, afirmou que os operários que arregimentara estavam desempenhando sua incumbência satisfatoriamente e encolerizou-se quando o contestei revelando que os seus números estavam errados.
Milch e eu esperávamos que Goering exigisse esclarecimentos a Sauckel e o forçasse a alterar o seu recrutamento de trabalhadores. Mas, em vez de proceder como esperávamos, Goering, para nosso espanto, iniciou um vivo ataque a Milch e indiretamente a mim. Enfim, naquela reunião, cada um dos ministros presentes, embora desconhecedor do problema, tratou de contribuir com suas opiniões. Himmler, tranqüilamente, opinou que talvez tivessem morrido os cem mil e poucos operários que faltavam.
A reunião foi um malogro total. Não conseguimos esclarecer a questão da mão-de-obra e não se iniciou a ofensiva contra Bormann. Depois de finda a sessão, Goering levou-me a um canto e explicou-me:
– Sei que o senhor está muito ligado a Milch, meu subsecretário, e que colabora estreitamente com ele. Mas quero preveni-lo, amistosamente, contra ele. Não merece confiança. E quando há a possibilidade de alguma vantagem, então não tem considerações nem com o melhor dos amigos.
Informei logo Milch do que me fora dito por Goering. Ele riu e declarou:
– Há poucos dias, Goering disse-me de você exatamente a mesma coisa.
O propósito de Goering de semear a discórdia entre nós opunha-se inteiramente à realização do nosso objetivo, a saber, constituir um bloco sólido. Tal desconfiança dava margem a que as amizades fossem interpretadas como ameaça.
Alguns dias depois daquela reunião, Milch informou-me de que Goering estava desacreditado, pois a Gestapo obtivera provas de que ele era morfinômano. Havia tempo que Milch me falara da dilatação das pupilas de Goering. Depois, durante o processo de Nuremberg, meu advogado, o Dr. Flachsner, confirmou-me que Goering tomava injeções de morfina, desde há muito antes de 1933.
É bem possível também que no caso tenha havido a interferência de motivos financeiros. Segundo se depreende de um dos documentos apresentados no processo de Nuremberg, Bormann fez a Goering uma doação de seis milhões de marcos, tirados do Fundo Adolf Hitler, de doação dos industriais.
Depois de malograda nossa aliança, Goering, realmente, readquiriu um pouco da sua atividade, embora – coisa surpreendente – a empregasse contra mim. Contrariando seu costume, algumas semanas depois ordenou-me que convidasse para uma reunião em Obersalzberg todos os principais diretores da indústria do aço. A reunião só merece menção pelo estranho comportamento de Goering. Apresentou-se eufórico, com as pupilas contraídas, e proferiu, ante os assombrados especialistas da indústria do aço, uma conferência sobre a produção de ferro, exibindo ante eles todos os seus conhecimentos sobre altos-fornos e minérios. A conferência foi entremeada de lugares-comuns: era necessário produzir mais; não se devia retroceder ante as inovações; a indústria estava esclerosada pela tradição; era imprescindível sacudirem-se os entraves. Depois de duas horas de um derrame de palavras, começou a falar mais devagar, seu rosto adquirindo uma feição inexpressiva. Afinal, descansou a cabeça sobre a mesa e dormiu, calmamente. Achamos melhor não fazer caso do marechal do Reich e, somente para não colocá-lo em situação difícil, continuamos discutindo nossos problemas, até que Goering despertou e sem rodeios declarou encerrada a reunião.
Goering preparou para o dia seguinte uma conferência sobre o programa de fabricação de radiotelêmetros. Essa conferência também terminou sem resultado. Apresentou-se, como na véspera, com muita disposição, iniciou uma dissertação pedante, mas desprovida de qualquer conhecimento técnico, pretendendo dar explicações aos especialistas presentes, e acabou com uma nuvem de instruções. Quando ele se retirou da sala, o meu trabalho foi tratar de remediar a situação suscitada pelo marechal do Reich, sem desautorizá-lo. De qualquer modo, o ocorrido foi tão grave que tive de informar Hitler do que acontecera. E Hitler, na primeira oportunidade – 13 de maio de 1943 –, convocou os industriais do ramo dos armamentos ao quartel-general, a fim de restabelecer com suas palavras o prestígio do governo.
Encontrei-me com Himmler no quartel-general, alguns meses depois do malogro dos nossos planos. Disse-me, sem preâmbulos, e com voz ameaçadora:
– Acho inoportuno o senhor tentar de novo despertar a atividade do marechal do Reich.
Mas não havia necessidade daquela ameaça. Goering caíra, definitivamente, em sua letargia, da qual só despertou com o processo de Nuremberg.
O SEGUNDO HOMEM DO ESTADO
Algumas semanas depois do fiasco de nosso projeto – talvez nos começos de maio de 1943 –, Goebbels apressou-se em atribuir a Bormann as qualidades que reconhecia em Goering até poucas semanas antes. Daí em diante, tratou de enviar suas informações a Hitler por intermédio de Bormann, pedindo-lhe que transmitisse a ele, Goebbels, as instruções do Fuhrer. Bormann recompensou essa submissão, prestando bons serviços a Goebbels.
O poder estava se deslocando, continuamente, em benefício de Bormann. Apesar de tudo, ele não tinha certeza de que algum dia deixaria de ter necessidade de mini. E, embora não ignorasse talvez a minha malograda intenção de derrubá-lo, mostrava-se muito amável comigo, e insinuou-me que eu poderia proceder como Goebbels: colocar-me ao seu lado. Não me utilizei desse oferecimento, cujo preço seria excessivamente alto: eu ficaria na inteira dependência dele.
Também Goebbels continuou mantendo estreito contato comigo, pois ambos visávamos a um objetivo comum: açambarcar totalmente, sem nenhuma cautela, todas as iniciativas da nação. Creio que fui muito inclinado a fazer-lhe confidências. Cativavam-me seu comportamento educadíssimo, sua extraordinária amabilidade e a frieza dos seus raciocínios correios.
Sendo assim, as coisas pouco mudaram, exteriormente. O mundo em que nos movíamos obrigava-nos à hipocrisia, às aparências, à perfídia. Diante dos rivais, jamais falávamos com franqueza; qualquer palavra podia ser desvirtuada, quando transmitida a Hitler por outrem. Conspirava-se, contando com a volubilidade de Hitler. Aquilo era um jogo felino, em que se podia ganhar ou perder. Como outro qualquer, eu dedilhei também, sem escrúpulos, aquele desafinado teclado de relações mútuas.
Na segunda quinzena de maio de 1943, Goering informou-me da sua intenção de pronunciarmos um discurso no Palácio dos Esportes sobre o armamento alemão. Concordei.
Mas, para surpresa minha, alguns dias depois, Hitler determinou que o orador seria Goebbels. Quando Goebbels e eu comparamos os textos dos nossos discursos, o ministro da Propaganda aconselhou-me a diminuir o meu, pois o dele se estenderia por uma hora. Disse-me:
– Se o do senhor durar meia hora, o auditório perderá o interesse.
Como de costume, enviamos a Hitler o manuscrito dos nossos discursos, sendo que o do meu tinha a anotação de que seria reduzido em um terço do respectivo texto. Hitler ordenou que eu me apresentasse em Obersalzberg. Leu na minha presença os manuscritos que lhe tinham sido entregues por Bormann e, sem nenhuma consideração e – assim interpretei sua atitude – com satisfação, em poucos minutos reduziu à metade o texto do discurso de Goebbels. E dirigiu-se a Bormann, dizendo-lhe:
– Ouça, Bormann, entregue isto ao doutor e diga-lhe que acho magnífico o discurso de Speer.
Assim, diante do intrigante Bormann, Hitler prestigiara-me. Desde então, ficaram os dois, Bormann e Goebbels, sabendo que eu continuava gozando de grande prestígio, como outrora.
A ofensiva russa do inverno estava paralisada. Por outro lado, os novos fornecimentos de armas tinham contribuído para tapar as brechas abertas no leste. Apesar das perdas materiais, durante o inverno, o aumento da nossa produção de armamentos permitiu a Hitler preparar nova ofensiva, a fim de formar uma grande bolsa na região de Kursk. O começo de tal ofensiva, designada como Operação Cidadela, foi, mais de uma vez, adiado, porquanto Hitler tinha esperança no emprego dos novos tanques. Sobretudo, esperava milagres de um tipo de tanque movido a eletricidade, que fora fabricado pelo Professor Porsche.
Durante uma conversa em um quarto com mobília tosca, nos fundos do edifício da chancelaria do Reich, casualmente, ouvi Sepp Dietrich dizer que Hitler tinha a intenção de dar ordem no sentido de não fazer prisioneiros, nessa ofensiva, porquanto as infiltrações de grupos das SS, na frente da batalha, tinham comprovado que os russos assassinavam seus prisioneiros. Hitler afirmara que haveria uma desforra mil vezes mais sangrenta.
Fiquei consternado e ao mesmo tempo alarmado, vendo o modo como nos prejudicávamos a nós mesmos. Hitler disponha de centenas de milhares de prisioneiros. Ora, havia meses que pensávamos como tapar uma brecha, avaliada no mesmo número de pessoas, em nossos efetivos de mão-de-obra. Foi então que pela primeira vez, em ocasião oportuna, formulei objeções à idéia de Hitler. Não me foi difícil fazê-lo mudar de opinião. Parece-me até que se sentiu aliviado ao dar contra-ordem às SS. Naquele dia, 8 de julho de 1943, ordenou a Keitel que redigisse um decreto, em virtude do qual os prisioneiros de guerra seriam colocados à disposição da produção de armamentos.
Foi supérflua aquela resolução a respeito dos prisioneiros de guerra. A ofensiva iniciou-se no dia 5 de julho, mas, não obstante o emprego maciço das nossas armas mais modernas, não se conseguiu formar o bolsão. Fora ilusória a esperança de Hitler. Duas semanas depois, o Fuhrer ordenou que não se continuasse a ofensiva. A derrota foi o sinal do predomínio dos russos, que impunham a lei da ação, mesmo ta estação mais favorável do ano para o Exército alemão.
Depois da segunda catástrofe do inverno, depois de Stalingrado, o Estado-Maior do Exército insistira num front mais à retaguarda, sem no entanto obter o assentimento de Hitler. Mas, agora, como conseqüência da ofensiva malograda, o Fuhrer também se mostrou disposto a estabelecer posições defensivas entre vinte e vinte e cinco quilômetros à retaguarda das primeiras linhas. Então, o Estado-Maior propôs para a referida linha a margem ocidental do Dniepr, que tinha quase cinqüenta metros de altura e cujo declive dominava perfeitamente as planícies que se estendiam à frente. Haveria tempo Pra se estabelecer uma linha defensiva, porquanto o Dniepr estava a mais de duzentos quilômetros à retaguarda da primeira linha. Mas Hitler negou-se, obstinadamente, a concordar com a solução proposta pelo Estado-Maior.
Durante as campanhas vitoriosas, ele costumava elogiar o soldado alemão, qualificando-o de melhor do mundo. Agora, entretanto, dizia o seguinte:
– Não é possível, por motivos psicológicos, estabelecer uma posição à retaguarda. Ninguém poderá forçar as tropas a lutar, se elas souberem que há uma defensiva fortificada a cem quilômetros atrás. Retrocederão, sem oferecer resistência, na primeira oportunidade.
Por intermédio de Dorsch, meu secretário, Hitler foi informado de que a Organização Todt, apesar da proibição do Fuhrer, levantara, por ordem de Manstein e com a tácita aquiescência de Zeitzler, em dezembro de 1943, uma posição defensiva às margens do Bug. Os russos ainda estavam cerca de cento e cinqüenta ou duzentos quilômetros ao leste do rio. Hitler, manifestando uma dureza não habitual, ordenou que se suspendessem imediatamente aqueles trabalhos, alegando as mesmas razões expostas seis meses antes. Supôs haver naquela iniciativa uma intenção derrotista de Manstein e do seu grupo de exércitos.
A teimosia de Hitler facilitava às tropas soviéticas a sua tática de manter sempre os nossos exércitos em movimento. Depois de novembro, não se podia pensar em abrir sequer uma trincheira, na Rússia, pela dureza do solo congelado. Mais uma vez, fora desperdiçada a possibilidade de um descanso para os soldados, expostos à inclemência do tempo e necessitados de toda proteção. Além disso, a má qualidade dos nossos equipamentos de inverno colocava as tropas alemãs em posição desvantajosa, diante dos exércitos soviéticos, perfeitamente equipados para resistir ao rigor do inverno russo.
Essa maneira de pensar demonstrava que Hitler não queria aceitar o novo curso dos acontecimentos. Na primavera de 1943, ordenara a construção de uma ponte de cinco quilômetros de extensão sobre o estreito de Kerch, com via férrea e rodovia. Naquele lugar já estávamos construindo um funicular com um rendimento diário de mil toneladas, que fora posto em serviço no dia 14 de junho. Isso bastava para as necessidades defensivas do Exército. Hitler porém não esquecera o seu projeto de avanço rumo à Pérsia, através do Cáucaso. Fundamentou sua ordem alegando a necessidade de enviar, por aquela ponte, material e tropas à cabeça-de-ponte de Kuban e iniciar aquela projetada ofensiva. Durante a inspeção da cabeça-de-ponte de Kuban, todos os generais da frente exprimiram preocupação quanto à possibilidade de manter posições ali, considerando-se o poder do inimigo. Quando comuniquei esses temores a Hitler, ele manifestou uma opinião de desprezo:
– São subterfúgios sem nenhum fundamento! Falta a Janicke e ao Estado-Maior fé na realidade de uma nova ofensiva.
Pouco depois, no verão de 1943, o General Janicke, comandante-chefe do Exército, viu-se obrigado a solicitar a Hitler a retirada das tropas alemãs da cabeça-de-ponte de Kuban, tendo sido aquela solicitação feita por intermédio de Zeitzler. Queria ocupar na Criméia uma posição mais favorável, a fim de enfrentar a esperada ofensiva russa no inverno. Hitler, mais do que nunca, mostrou-se teimoso no desejo de acelerar a construção da ponte para pôr em prática a intenção de passar à ofensiva. Mas já naquela época estava bem claro que a ponte jamais seria terminada. No dia 4 de setembro, as últimas unidades alemãs da cabeça-de-ponte de Hitler começaram a sua retirada do continente asiático.
Assim como, meses atrás, tínhamos discutido, na residência de Goering, a forma de superar a crise na chefia política, agora Zeitzler, Guderian, Fromm e eu discutimos a crise na direção militar. No verão de 1943, o Capitão-General Guderian, inspetor-geral das tropas blindadas, pediu-me que eu lhe proporcionasse uma entrevista com Zeitzler, chefe do Estado-Maior do Exército. Havia entre ambos algumas divergências, oriundas da imprecisão de limites nos respectivos campos de atividade. E como eu tinha boas relações com os dois generais, era natural o meu papel de mediador entre eles. Ora, revelou-se então que as intenções do General Guderian iam além da tática comum a observar-se no caso de um novo generalíssimo do Exército. E para falarmos disso nós nos reunimos em minha vivenda de Obersalzberg.
As divergências entre Guderian e Zeitzler deixaram logo de ter importância. O centro da conversa foi a situação oriunda do fato de ele ter sido investido Hitler no cargo de chefe supremo do Exército, sem que ele exercesse as funções inerentes a essa chefia. Ademais, os interesses do Exército tinham de ser defendidos mais energicamente em relação aos das duas outras armas da Wehrmacht e à SS. Essa era a opinião de Zeitzler. Ora, na qualidade de generalíssimo supremo da Wehrmacht, Hitler não podia manifestar preferência por nenhuma delas. Guderian complementou as palavras de Zeitzler, sendo que um generalíssimo tinha a obrigação de manter-se estreito contato pessoal com os chefes dos exércitos, de apoiar as necessidades das suas tropas, de também adotar decisões, no caso das questões normais de abastecimento. Ambos, Zeitzler e Guderian, concordavam em que Hitler não dispunha de tempo nem tinha vontade de defender de maneira prática tais interesses do Exército. Nomeava e destituía generais que ele mal conhecia. Só um generalíssimo habituado ao trato direto e pessoal com os oficiais generais e superiores poderia estar habilitado à prática de uma política pessoal. Mas, na opinião de Guderian, o Exército sabia que Hitler deixava que atuassem com um poder quase ilimitado os comandantes-chefes da Marinha, da Luftwaffe, assim como Himmler, ao passo que as coisas eram diferentes no Exército.
Todos estávamos interessados em que Hitler nomeasse um novo generalíssimo do Exército. Guderian e eu, cada um por sua vez, fizemos algumas leves insinuações ao Fuhrer, nesse sentido, que não tiveram nenhum resultado. Ao contrário, Hitler reagiu às nossas insinuações de um modo brutal. Eu, aliás, ignorava que os marechais Von Kluge e Von Manstein já haviam dado um passo semelhante, pouco tempo antes. Hitler deve ter tido suspeita de algo assim como um entendimento entre nós.
Já estava remota a época na qual Hitler acedia de bom grado aos meus desejos, no campo administrativo ou pessoal. O triunvirato formado por Keitel, Bormann e Lammers tentou impedir o aumento do meu prestígio, ainda quando esse acréscimo de poder se limitasse ao exclusivo campo dos armamentos. No entanto, não puderam opor nenhum argumento convincente quando Doenitz e eu, em conjunto, declaramo-nos dispostos a nos encarregar do programa de armamentos da Marinha.
Conheci Doenitz em junho de 1942, pouco depois de haver assumido o meu cargo no Ministério dos Armamentos. Ele era então o comandante-chefe da frota submarina. Recebeu-me em Paris em um apartamento simples porém ultramoderno, segundo os pontos de vista daquele tempo. Aquele ambiente simples causou-me boa impressão, tanto mais que eu saíra de um banquete opulento, em que se serviram muitos pratos e excelente vinho, oferecido pelo Marechal Sperrle, comandante-chefe das forças aéreas aquarteladas na França. Esse marechal instalara seu quartel-general no Palácio Luxemburgo, o antigo palácio de Maria de Médicis.
Os trabalhos comuns nas construções de grandes refúgios de submarinos no litoral do Atlântico fizeram com que Doenitz e eu nos reuníssemos com freqüência, naqueles meses o que parece não foi visto com bons olhos pelo Almirante Raeder, que proibiu sem rodeios a Doenitz tratar diretamente comigo sobre questões de ordem tática.
Nos princípios de janeiro, uma vez em que eu estava no quartel-general de Hitler, este ficou irritado pelas notícias na imprensa a respeito de uma batalha naval, da qual o Alto-Comando da Marinha não lhe dera informações detalhadas. E, durante uma das nossas conferências, depois daquele dia, dirigiu nossa conversa, como se fosse por acaso, para a possibilidade de uma racionalização na construção de submarinos. Pouco depois, entretanto, mostrou mais interesse na infrutífera colaboração entre mim e o Almirante Raeder. Informei-o de que estávamos proibidos, Doenitz e eu, de tratar das questões técnicas, referindo-me aos receios dos oficiais de submarinos e da censura fotográfica. Eu já sabia, pela experiência com Bormann, que somente a desconfiança, cautelosamente despertada no ânimo de Hitler, poderia ter algum resultado. Ele não aceitava nenhuma sugestão que lhe parecesse imposta, o que ocorria quando se tratava de um assunto considerado diretamente. Dei a entender que só mediante a ação de Doenitz desapareceriam os obstáculos à realização dos nossos projetos de construção de submarinos. Na verdade, o que eu pretendia era a destituição de Raeder. Mas não cultivei nenhuma esperança disso, dada a tenacidade de Hitler em manter seus colaboradores.
No dia 30 de janeiro, Doenitz foi promovido a grande almirante e, simultaneamente, a generalíssimo da Marinha de Guerra, e Raeder foi nomeado almirante-inspetor da Marinha, um cargo que só lhe dava direito a um enterro com honras nacionais.
Graças aos seus argumentos de caráter técnico e à força d vontade, no setor da sua especialidade, Doenitz soube preservar a Marinha, até o fim da guerra, da ingerência caprichosa de Hitler. Doenitz e eu chegamos a acordos sobre vários problemas, no campo dos armamentos navais. Apresentou-me um programa, no tocante à construção de submarinos. Em lugar de vinte submarinos mensais com o deslocamento total de dezesseis mil toneladas, como estava ocorrendo até então, teriam de ser construídas no futuro quarenta unidades com deslocamento total de mais de cinqüenta mil toneladas.
Também estivemos de acordo quanto ao programa de construção de navios limpa-minas e lanchas rápidas.
Doenitz explicou-me que a única forma de evitar o fim total da guerra submarina seria a construção de um novo tipo de submarino. E acrescentou que a Marinha desejava desfazer-se do "navio de superfície", que só ocasionalmente navegava debaixo da água. A linha aerodinâmica, a duplicação da potência dos motores elétricos, multiplicando-se a força dos acumuladores, daria ao submarino velocidade muito maior, debaixo da água, e ao mesmo tempo maior raio de ação, também sob a superfície.
Mas, como sempre acontece, o mais importante era encontrar-se um homem capaz de executar os planos. Escolhi um suábio, Otto Merker, que se tinha notabilizado como construtor de vagões que não se incendiavam, o que significava um desafio aos engenheiros navais. No dia 5 de julho de 1943, Merker expôs seu novo sistema de construção ao Alto-Comando Naval. Assim como nos Estados Unidos eram montados os navios Kaiser, assim também os nossos submarinos seriam construídos por seções, sendo equipados em terra com todos os demais elementos, máquinas e aparelhagem elétrica. Depois seriam transportados por mar ou por terra ao local onde seriam afinal montados. Quase comovido, no final da reunião, Doenitz declarou:
– Começamos uma nova vida.
Todos os planos foram terminados no dia 11 de novembro de 1943, apenas quatro meses depois da primeira reunião da Comissão de Construções Navais. Pudemos examinar – Doenitz e eu – um modelo em madeira do novo grande submarino de mil e seiscentas toneladas. A comissão já fizera pedidos às indústrias, processo que tinha dado bom resultado na construção dos tanques Pantera. Já em 1944, foi possível uma experiência com o primeiro submarino do novo tipo. E, durante os primeiros meses de 1945, apesar da situação catastrófica, iríamos executar nossa promessa de fornecer à Marinha quarenta submarinos, mensalmente, se os ataques da aviação inimiga não tivessem destruído a terça parte deles nos estaleiros.
Doenitz e eu nos perguntávamos o motivo por que não tínhamos iniciado antes a construção daquele tipo de submarino, uma vez que não havia nenhuma novidade técnica. Os peritos asseguravam que os novos submarinos teriam iniciado uma série de êxitos na guerra submarina. Isso foi confirmado pela Marinha norte-americana, depois da guerra, ao incorporar em seu programa de construção o nosso novo tipo de submarino.
Três dias depois de ter firmado com Doenitz nosso decreto comum sobre o novo programa de construções navais, pedi a Hitler a ordem para que toda a produção ficasse sob a jurisdição do meu ministério. Baseando-me em razões de caráter técnico, fundamentei a petição nas sobrecargas conseqüentes do programa da Marinha e de outros trabalhos recomendados por Hitler. Mediante a transformação de grandes empresas da indústria de consumo em fábricas para a produção de armamentos – assim expus a questão –, não somente poderiam ser postos à disposição dos programas urgentes quinhentos mil operários como também os elementos da direção e as instalações fabris de tais empresas. Pronunciou-se contra essas alterações a maioria dos chefes regionais. O Ministério da Economia revelou-se incapaz de impor-se ante aquela gente. E eu também seria impotente, ao defrontar-me com eles, como verifiquei mais tarde.
Depois da expedição de circulares – processo lento e confuso –, nas quais se solicitou que todos os ministros do Reich, relacionados com o assunto, todas as autoridades e departamentos do Plano Quadrienal, competentes no assunto, expusessem suas objeções, Lammers convocou para o dia 26 de agosto uma reunião ministerial na sala do gabinete do Reich. Graças à grandeza das idéias de Funk, que "com espírito e humor" pronunciou sua própria oração fúnebre, no decorrer daquela reunião, foi possível obter-se unanimidade, a fim de que toda a produção bélica dependesse do meu ministério, a partir daquela data. Lammers teve de prometer que comunicaria a Hitler aquela resolução, por intermédio de Bormann. Alguns dias depois, Funk e eu nos dirigimos ao quartel-general para obter do Fuhrer a aquiescência definitiva.
Para meu espanto, Hitler, na presença de Funk, interrompeu minhas explicações sobre a lei. Disse-me aborrecido que teria de repelir qualquer esclarecimento posterior a respeito. Precisamente poucas horas antes, Bormann informara-o de que eu pretendia induzi-lo a assinar uma lei, a qual não fora debatida nem com o Ministro Lammers nem com o marechal do Reich. Foi isso o que me disse Hitler. E continuou declarando que não tolerava estar envolvido em nossas rivalidades. Quando tentei esclarecer-lhe que Lammers, na qualidade de ministro do Reich e de acordo com as suas funções, obtivera a anuência do subsecretário de Goering, no âmbito do Plano Quadrienal, cortou-me a palavra outra vez, em um tom de voz áspero:
– Dou graças a que, pelo menos, posso contar com a lealdade de Bormann.
Tais palavras significavam que ele me julgava capaz de enganá-lo.
Funk informou Lammers dos antecedentes do ocorrido. Fomos em seguida ao encontro de Goering, que já estava a caminho do quartel-general de Hitler, procedente do seu campo de caça, viajando em seu carro-salão. Mostrou-se no começo também colérico. Não havia dúvida de que fora informado de maneira incompleta e prevenido contra nós.
Mas a amável eloqüência de Funk conseguiu afinal romper o gelo e ir impondo, ponto por ponto, o nosso projeto. Goering acabou por estar de acordo com tudo, depois de dizer a seguinte frase:
– Não estão de modo nenhum prejudicadas as atribuições do marechal do Reich alemão, na sua qualidade de delegado para a realização do Plano Quadrienal.
Essa restrição carecia de utilidade prática, pois a maioria dos setores importantes do mencionado plano já estavam sendo dirigidos por mim, através da Central de Planificação.
Goering assinou nosso projeto de lei, como prova de conformidade com o mesmo, e Lammers telegrafou, declarando não haver mais nenhuma objeção. Depois disso, Hitler mostrou-se disposto a assinar também o projeto, que lhe foi apresentado como lei, alguns dias mais tarde, em 2 de setembro.
Não produzira efeito a intriga de Bormann. Não me queixei a Hitler. Em vez disso, deixei que ele mesmo refletisse sobre se Bormann lhe havia servido, realmente, com verdadeira lealdade, naquele caso. Eu já sabia, por experiência, que o melhor estava em não esclarecer tais manobras de Bormann, evitando-se assim ao Fuhrer uma situação embaraçosa.
As resistências, mais ou menos francas e encobertas, à ampliação das atividades do meu ministério, tinham de ser, evidentemente, atribuídas a um Bormann receoso. Bormann tinha de saber que eu atuava fora do seu campo de influência e que meu prestígio aumentava, continuamente. Por outro lado, meu tipo de trabalho me havia levado a estabelecer contatos de camaradagem com as chefias das três armas: Guderian, Zeitzler, Fromm, Milch e agora Doenitz. Também se uniam boas relações com aqueles que, precisamente, sentiam aversão a Bormann e que rodeavam Hitler: o General Engel, oficial de ligação entre Hitler e o Exército; o General Von Below, oficial de ligação para a Luftwaffe, e o General Schmundt, oficial de ligação para a Wehrmacht. Além disso, eu mantinha estreita relação com o médico de cabeceira de Hitler, o Dr. Karl Brandt, que considerava Bormann seu inimigo pessoal.
Uma noite, depois de ter tomado em companhia de Schmundt alguns steinhager, este general afirmou que eu era a grande esperança do Exército. Informou-me de que, onde chegasse, ouvia os generais falarem de mim como do homem em quem depositavam a máxima confiança, ao passo que desprezavam Goering. E concluiu um tanto patético:
– Sr. Speer, pode contar sempre com o Exército. Ele está por trás do senhor.
Jamais percebi qual o objetivo de Schmundt ao fazer-me essa declaração. Suponho que ele confundia os generais com o Exército. No entanto, tive de aceitar idênticas manifestações, que Schmundt talvez tivesse feito a outras pessoas. De qualquer modo, devido ao reduzido âmbito do quartel-general, aquelas manifestações do general não podiam continuar ignoradas de Bormann.
Na mesma época – parece-me que lá para o outono de 1943 –, Hitler provocou em mim certa confusão, porquanto antes de começar uma conferência para o estudo da situação ousou chamar-nos, a Himmler e a mim, como aos "seus dois iguais". O chefe nacional das SS não podia sentir-se muito satisfeito ao ouvir aquelas palavras, fosse qual fosse a intenção de Fuhrer, levando-se em conta a indiscutível posição do Reich, do Fuhrer e da SS. Naqueles dias, Zeitzler, muito satisfeito, me disse:
– O Fuhrer sente-se feliz em dispor do senhor! Declarara, recentemente, que deposita as maiores esperanças no senhor! Nasceu um novo sol depois de Goering.
Roguei a Zeitzler que não transmitisse a ninguém essas palavras. Mas, como várias pessoas dos círculos mais chegados a Hitler também me disseram a mesma coisa, eu tive a certeza de que Bormann já soubera daquela declaração do Fuhrer. O poderoso secretário de Hitler viu que no decurso do verão não conseguira indispor-me com o Fuhrer. Acontecera justamente o contrário.
Uma vez que Hitler não costumava fazer revelações sobre assuntos dessa ordem, Bormann deve ter tomado cuidado, tanto mais porque eu não procedia das fileiras do partido. Desde então passou a dizer aos seus colaboradores mais íntimos que eu era não somente um inimigo do partido, mas que aspirava, nada mais nada menos, a ser o sucessor de Hitler. Não estava errado em sua suposição. Lembro-me de que eu tive com Milch algumas conversas relacionadas com o assunto.
Não há dúvida de que, naquela época, Hitler andava muito embaraçado quanto à escolha de seu sucessor. A fama de Goering estava minada, Hess afastara-se por sua própria iniciativa, Schirach estava inutilizado pelas intrigas de Bormann, Himmler e Goebbels não correspondiam ao tipo de "homem inspirado pelas Musas", como Hitler queria. Provavelmente, o Fuhrer descobrira em mim características afins às suas; eu era aos seus olhos um artista bem dotado, que em pouco tempo conquistara uma posição importante na hierarquia política; finalmente, pelos êxitos obtidos no terreno dos armamentos, eu demonstrara possuir qualidades especiais também no âmbito militar. Só não tivera atuação na política exterior, o quarto domínio de Hitler. Talvez, aos seus olhos, eu fosse um gênio artístico vitoriosamente orientado para o campo da política, e nisso ele via, de um modo indireto, uma confirmação do curso da sua própria existência.
Nos círculos de pessoas mais chegadas a mim, eu qualificava sempre Bormann de "o homem que tem as tesouras de podar". De fato, ele, com energia, astúcia e brutalidade, agia de modo que ninguém podia escapar-lhe. Bormann empregou todos os seus recursos para cercear meu prestígio. Depois de outubro de 1943, os chefes regionais formaram uma frente comum contra mim. E um ano depois, afastado temporariamente, eu quis deixar o ministério. A luta entre mim e Bormann continuou indecisa até o fim da guerra. Hitler continha Bormann e não me deixava cair. Algumas vezes até me distinguiu com seus favores, para, logo depois, voltar-se duramente contra mim. Bormann não podia arrebatar-me a indústria, na qual se apoiavam os meus êxitos. A organização industrial estava tão estreitamente vinculada à minha pessoa que a minha queda teria significado o fim da produção e, portanto, um enorme perigo para a marcha da guerra.
BOMBAS
À embriaguez dos meses iniciais, motivada pelo estabelecimento da minha nova organização, os êxitos obtidos, o reconhecimento deles por todos os demais, sucedeu logo uma época de grandes preocupações e dificuldades crescentes. As preocupações não decorriam somente dos problemas derivados do trabalho, das insolúveis questões relacionadas com o fornecimento de materiais, além das intrigas- da "corte". Os bombardeios dos aviões ingleses, com suas primeiras repercussões no campo da produção, fizeram-me esquecer, por algum tempo, Bormann, Sauckel e a Central de Planificação. Mas os ataques aéreos foram também uma das premissas do meu crescente prestígio, porquanto, apesar dos danos causados pelos bombardeios, não estávamos produzindo menos, e sim mais.
Os ataques trouxeram a guerra ao interior do nosso país. Víamos a guerra todos os dias, diretamente, nas cidades incendiadas e arrasadas, visão que nos incitava a produzir mais. Mas riem por isso diminuiu a vontade de resistência da população civil, apesar dos sacrifícios impostos. Ao contrário, durante minhas visitas às fábricas de armamentos, em meus contatos com o homem da rua, tive a impressão de um endurecimento crescente no ânimo de todos. É possível que o decréscimo na força de produção, calculado em mais ou menos nove por cento, fosse vantajosamente compensado pelos aumentos dos esforços do pessoal.
Os danos mais sensíveis foram conseqüência das providências adotadas no tocante à defesa. Em 1943, eram dez mil os canhões antiaéreos que em nosso território ou nos teatros da guerra, no Ocidente, apontavam para o céu. Esses canhões poderiam ter sido empregados na Rússia, contra os tanques e outros objetivos terrestres. Sem aquela segunda frente, a nossa defesa antiaérea teria sido duplicada, no que diz respeito a munições e armas antitanques. Mas isso necessitaria de cerca de mil jovens. Um terço da indústria óptica trabalhava na produção de aparelhos de pontaria para as baterias antiaéreas. As empresas de eletrotécnica destinavam cerca de metade da fabricação de seu material à produção de telêmetros e instalações de informação para a defesa contra os bombardeios. Foi esse o motivo pelo qual nossas tropas, na frente, estavam em situação de inferioridade em relação aos exércitos ocidentais, no que diz respeito ao fornecimento de aparelhos modernos, apesar do alto nível das indústrias de óptica e de eletricidade alemãs.
A primeira idéia das duras provas que sobreviriam em 1943 nos foi sugerida, na noite de 30 para 31 de maio de 1942, quando os ingleses, reunindo todas as suas forças, dirigiram um ataque aéreo a Colônia, com mil e quarenta e seis aviões de bombardeio.
Por acaso, Milch e eu tínhamos sido convocados para uma entrevista com Goering, na manhã seguinte ao bombardeio de Colônia. A reunião não ocorreu em Karinhall, mas no Castelo de Veldenstein, na Francônia, onde estava então residindo o marechal do Reich. Nós o encontramos de muito mau humor, sem querer dar crédito às informações sobre o ataque aéreo a Colônia. Disse com maus modos aos seus ajudantes:
– Não é possível. Não se podem atirar tantas bombas em uma só noite. Quero falar pelo telefone com o chefe regional de Colônia.
Parece que o chefe regional estava contradizendo Goering, que lhe retrucou:
– Na qualidade de marechal do Reich, digo-lhe que os algarismos são altos.
Sentia-se que o chefe regional de Colônia insistia na exatidão das suas informações, mas o marechal do Reich continuou falando:
– Como pôde o senhor contar as bombas incendiárias? Isso é apenas uma estimativa! Digo-lhe mais uma vez que o seu número é exageradíssimo! Tudo falso! Ponha-se imediatamente em contato com o Fuhrer e retifique os algarismos que lhe transmitiu! Ou acaso acha o senhor que estou mentindo? Já forneci ao Fuhrer os números exatos! E não haverá alteração!
Como se nada tivesse acontecido, Goering mostrou-nos a casa, que fora residência dos seus pais. Como se estivéssemos em plena paz, mandou trazer os projetos da grandiosa construção que haveria de substituir a modesta casa burguesa onde tinham vivido seus progenitores. Mas o que primeiro mandara projetar era um sólido refúgio antiaéreo.
Três dias depois, achando-me no quartel-general do Fuhrer, verifiquei não estar ainda abafada a excitação provocada pelo bombardeio de Colônia. Falei a Hitler da conversa de Goering com o chefe regional Grohe, pelo telefone. Naturalmente, admiti que as informações de Goering teriam de ser mais fidedignas do que as do chefe regional de Colônia. Hitler, no entanto, já formara sua opinião. Mostrou a Goering as notícias dos jornais dos países inimigos, relativamente ao elevado número de bombas atiradas. Os danos, segundo as informações da imprensa, superavam os indicados pelo chefe superior da polícia de Colônia. Hitler externou sua grande irritação por essa tática de despistamento praticada por Goering, embora tenha considerado parcialmente responsável o Estado-Maior da Luftwaffe. No dia seguinte, Goering foi bem recebido como sempre e não se voltou mais a falar no assunto.
Já em 20 de setembro de 1942, eu fizera notar a Hitler que nos colocaríamos em dificuldades insuperáveis se fosse interrompida a chegada de tanques procedentes de Friedrichshafen e a produção de rolamentos de Schweinfurt. Hitler ordenou logo que fosse aumentado o número de canhões antiaéreos para a proteção daquelas duas cidades. Vi logo que o rumo da guerra poderia ter sido já decidido, consideravelmente, no decorrer de 1943, se em vez de insensatos bombardeios de extensas zonas tivéssemos tentado paralisar os centros de produção de armamentos. No dia 11 de abril de 1943, propus a Hitler a constituição de uma comissão de industriais que descobrissem os objetivos de importância fundamental no campo da energia soviética. Mas não fomos nós, e sim os ingleses, que quatro semanas depois fizeram o primeiro ensaio nesse sentido, tratando de influir de maneira decisiva no curso da contenda, mediante a destruição de um centro nervoso da economia de guerra. Assim como se pode inutilizar um motor quebrando-se uma pequena peça, apenas dezenove aviões de bombardeio da RAF tentaram paralisar o centro da nossa produção de armamentos, mediante a destruição das represas da bacia do Ruhr, operação que efetuaram no dia 17 de maio de 1943.
As informações recebidas durante as primeiras horas da manhã tinham caráter muito alarmante. A maior das represas, a de Mõhne, fora destruída, esvaziando-se o reservatório. Não havia notícias das outras três represas. Estava amanhecendo, quando descemos no aeródromo de Werl, depois de termos visto do ar a desolação em terra.
A usina, ao pé da barragem, tinha sido arrasada. A água do reservatório arrombado inundara o vale do Ruhr e a conseqüência, aparentemente sem importância, mas de fato grave, fora a inundação dos grupos elétricos de bombeamento, no vale do Ruhr, que se encheram de lama. Por isso a indústria ficou paralisada e perigou o abastecimento de água à população. A informação que transmiti ao quartel-general do Fuhrer "causou uma profunda impressão a Hitler, que guardou consigo os informes", segundo se depreende de uma ata redigida posteriormente.
No entanto, os ingleses não conseguiram com aquele ataque destruir as outras três represas, cujo arrombamento teria impedido quase inteiramente o fornecimento de água à região do Ruhr, durante os meses de verão que se aproximavam. Tinham, contudo, acertado o maior dos reservatórios – o de Sorpe –, mas tivemos a grande sorte de que a bomba atingira muito alto na parede, de forma que o rombo ficava na altura do nível da água. Alguns centímetros mais abaixo e o pequeno arroio se teria transformado em torrente impetuosa. Utilizando um pequeno número de bombardeiros, os ingleses depois quase alcançavam um êxito muito mais importante do que o obtido com milhares de aviões. Cometeram apenas um erro, que não consegui compreender: dividiram suas forças e destruíram a represa de Eder, à distância de setenta quilômetros, a qual no entanto não tinha nenhuma relação com o abastecimento de água da região do Ruhr.
Sete mil homens retirados da linha do Atlântico e mandados à região de Mõhne e Eder trabalharam alguns dias na construção das barragens. A brecha aberta na de Mõhne – vinte e dois metros de largura por setenta de altura – pôde ser fechada antes de começarem as chuvas, em 23 de setembro de 1943. Assim puderam ser represadas as águas, no outono e no inverno, podendo ser satisfeitas as necessidades do consumo de água no próximo verão. A aviação inglesa não se aproveitou de mais uma oportunidade de ataque. Durante nossos trabalhos de reparação, bastariam algumas bombas para destruir as nossas instalações.
Depois daqueles ataques, perguntei a mim mesmo por que a nossa Luftwaffe, embora com recursos modestos, não dirigia seus vôos contra objetivos semelhantes, cujas conseqüências poderiam ser devastadoras. Nos fins de maio de 1943, ou seja, quinze dias depois do ataque aéreo inglês ao Ruhr, repeti a Hitler minha proposta do dia 11 de abril passado: a formação de um estado-maior de trabalho, que tratasse de buscar no território inimigo objetivos cuja destruição valesse a pena. No entanto, tal como em outras ocasiões, Hitler mostrou-se indeciso:
– Julgo inútil tratar de convencer o Estado-Maior da Luftwaffe sobre a possibilidade de serem seus colaboradores os industriais, que o aconselharão a respeito dos preparativos de ataques a objetivos no campo industrial do inimigo. Eu já falei isso ao General Jeschonnek, várias vezes. Volte a falar-lhe sobre o assunto – concluiu com um tom de voz resignado.
Apesar do ceticismo de Hitler e da minha falta de influência, nas esferas da direção da guerra aérea, não me senti desanimado. No dia 23 de junho, constituí, com alguns peritos industriais, uma comissão para o estudo dos objetivos cujo ataque valesse a pena. Nossa primeira proposta referia-se à indústria inglesa do carvão, a respeito de cujos centros, locais de depósitos, capacidade e outros detalhes fora publicada uma informação completa pelos próprios ingleses. No entanto, essa proposta foi apresentada com um atraso de dois anos; já não dispúnhamos de forças suficientes para a ação.
Orientei então meus esforços em outra direção: as centrais de energia russas. Pela nossa experiência, não era de esperar na Rússia defesa antiaérea sistemática. Além disso, a economia elétrica da União Soviética diferenciava-se da dos países ocidentais, em um ponto estruturalmente decisivo: o lento crescimento industrial do Ocidente fizera surgir grande quantidade de centrais elétricas de tamanho médio, ao passo que a União Soviética construíra suas centrais elétricas com dimensões gigantescas, em poucos pontos isolados, de um modo geral no pleno centro de grandes complexos industriais. Por exemplo, grande parte de todo o fornecimento de energia a Moscou provinha de uma grande central no curso superior do Volga. E, segundo informações recebidas, estavam concentrados na capital soviética sessenta por cento da produção de peças indispensáveis à óptica e ao equipamento elétrico. Se destruíssemos algumas gigantescas centrais de energia nos Urais, poderíamos paralisar permanentemente a produção de aço e o fabrico de tanques e de munições. Um impacto nas turbinas ou nos condutos para o fornecimento de água às mesmas teria efeito maior do que o de grande quantidade de bombas. E as informações de que dispúnhamos eram fidedignas, porquanto grande parte das enormes centrais soviéticas foram construídas com a colaboração alemã.
No dia 26 de novembro, Goering deu ordem para o VI Corpo Aéreo, sob o comando do General-de-Divisão Rudolf Meister, ser reforçado com bombardeiros de largo raio de ação. No mês de dezembro, as unidades concentraram-se nas imediações de Bialystok. A fim de os pilotos se exercitarem para a ação, montamos modelos de madeira daquelas centrais. Hitler fora informado por mim, em princípios de novembro, e Milch chamara a atenção de Günter Korten, seu amigo e novo chefe do Estado-Maior da Luftwaffe, sobre os nossos projetos.
Mas, ainda uma vez, tínhamos chegado muito tarde. A ofensiva russa do inverno obrigara nossas tropas a recuar. E a situação tornara-se crítica. Hitler, com a surpreendente miopia que lhe sobrevinha nas ocasiões críticas, disse-me nos últimos dias de fevereiro que o "Corpo Meister" recebera ordem para destruir as linhas férreas, de modo que se impedisse o abastecimento das tropas soviéticas. Todas as minhas objeções foram inúteis. Observei que o solo russo estava endurecido, devido ao gelo, e assim as bombas só teriam efeito superficial. De acordo com as nossas experiências, o leito das ferrovias alemãs, mais sensível, poderia ser reparado em poucas horas. O Corpo Meister desgastou-se em uma operação inútil, naturalmente, sem poder impedir os movimentos do Exército soviético.
Além disso, o interesse de Hitler, na estratégia dos objetivos isolados, estava dominado pelos seus tolos propósitos de vingança contra a Inglaterra. Mesmo depois do aniquilamento do Corpo Meister, ainda dispúnhamos de suficientes aviões de bombardeio para a execução dos nossos planos.
Hitler alimentava a vã esperança de que alguns ataques maciços sobre Londres poderiam obrigar os ingleses a renunciar à sua guerra aérea ofensiva contra a Alemanha. Foi essa a única razão da sua exigência de produção de novos aviões de bombardeio mais pesados, em 1943.
Enquanto eu me esforçava por demonstrar a Hitler e ao Estado-Maior da Luftwaffe a existência de objetivos vantajosos, o inimigo ocidental, durante oito dias (de 25 de julho a 2 de agosto), desencadeou cinco grandes ataques aéreos contra uma única cidade: Hamburgo. Embora aquela ação contrariasse qualquer princípio tático, suas conseqüências foram catastróficas. Os primeiros ataques destruíram os encanamentos da distribuição de água, impedindo assim que os bombeiros pudessem extinguir os incêndios, nos ataques seguintes. O efeito daqueles ataques seriados só pode ser comparado com os de um terremoto. O chefe regional, Kaufmann, por telegrama, rogou repetidas vezes a Hitler que visitasse a cidade. Não sendo atendido, pediu ainda que pelo menos Hitler recebesse uma delegação composta de grupos de salvamento, que se tinham distinguido no seu trabalho durante os ataques. Mas Hitler também se negou a atender este pedido de Kaufmann.
Houve em Hamburgo aquilo que Hitler e Goering, em 1940, tinham pensado para Londres. Durante uma ceia, na chancelaria do Reich, Hitler empolgara-se pela idéia de destruição, falando da capital da Inglaterra. E dissera:
– Os senhores já se detiveram no exame de uma planta da cidade de Londres? A construção é tão cerrada que um único foco de incêndio bastaria para destruir toda a área urbana, tal como ocorreu uma vez, há mais de duzentos anos. Goering, utilizando uma enorme quantidade de bombas incendiárias, de efeito inteiramente novo, pretende provocar focos de incêndios nas mais diferentes partes de Londres, milhares de focos. Esses focos se unirão, formando uma vasta extensão incendiada. As bombas de perfuração não produzem o efeito desejado. As bombas incendiárias, porém, irão causar a destruição total de Londres. Que poderão fazer os bombeiros, quando se desencadearem todos esses incêndios?
O que aconteceu em Hamburgo alarmou-me até um ponto de difícil superação. Assim, quando se reuniu a Central de Planificação, na tarde de 29 de julho, dirigi aos seus membros as seguintes palavras:
– Se os ataques continuarem como têm sido feitos até agora, dentro de doze semanas estaremos livres de um montão de problemas, que estavam dependendo de nós e iremos resvalando por uma ladeira abaixo, em uma descida relativamente rápida. Então, poderemos promover a reunião de encerramento da Central de Planificação! Três dias depois, expliquei a Hitler que estava se desmoronando o setor dos armamentos. Esclareci-lhe ainda que a produção de armamentos tendia, necessariamente, a se paralisar em toda a Alemanha, se fossem dirigidos sobre seis grandes cidades alemãs ataques do vulto daqueles desferidos sobre Hamburgo. Hitler ouviu-me sem dar sinal de nenhuma reação e disse-me apenas isto:
– O senhor irá normalizar outra vez a situação.
Realmente, Hitler teve razão. Conseguimos normalizar a situação, mas não nos utilizando de nossa organização, a qual, apesar da boa vontade, só podia nos dar diretrizes gerais. Nós normalizamos a situação graças aos tremendos esforços de todos os diretamente atingidos, sobretudo os operários. Por nossa sorte, a série de ataques contra Hamburgo não se repetiu nas outras cidades com a mesma dureza. O inimigo proporcionou-nos tempo de adaptarmos nossas experiências às suas investidas aéreas.
No dia 17 de agosto de 1943, apenas quinze dias depois do bombardeio de Hamburgo, éramos alvo de outro ataque. A frota aérea norte-americana dispôs-se ao seu primeiro ataque estratégico, contra Schweinfurt, onde se concentravam grandes fábricas de rolamentos. Essa indústria era um dos escolhos em nosso esforço por aumentar a produção de armamentos.
Ora, já neste primeiro ataque o inimigo cometeu um erro capital: em vez de concentrar suas bombas sobre as fábricas de rolamentos, dividiu o respeitável número de trezentos e ata e seis Fortalezas Voadoras, atacando, simultaneamente com cento e quarenta e seis aparelhos uma fábrica de montagem de aviões, em Regensburg. Esse ataque, embora com sucesso, foi de pequenas conseqüências. Fato decisivo foi o seguinte: as forças aéreas inglesas atacaram várias cidades sem plano. O Estado-Maior da RAF, em junho de 1946, perguntou-me quais as conseqüências dos ataques lançados contra as fábricas de rolamentos. Respondi:
"A produção de armamentos teria diminuído, consideravelmente, no fim de dois meses, e estaria inteiramente paralisada depois de quatro meses:
1) se tivessem sido atacadas, ao mesmo tempo, todas as fábricas de rolamentos (em Schweinfurt, Steyr, Erkner, Cannstatt, França e Itália)
2) se aqueles ataques tivessem sido repetidos três ou quatro vezes, cada quinzena, sem levar em conta o conjunto do objetivo e
3) se, continuando, todo o trabalho de reconstrução tivesse sido impedido, mediante dois fortes ataques aéreos, cada oito semanas, e se esses bombardeios tivessem prosseguido durante seis meses".
O segundo golpe que sofremos ocorreu dois meses depois. No dia 14 de outubro de 1943, estávamos reunidos com Hitler no quartel-general situado na Prússia Oriental, decidindo algumas questões de armamento, quando Schaub nos interrompeu:
– O marechal do Reich deseja falar com o senhor, urgentemente. Desta vez, tem uma boa notícia a lhe dar.
Segundo nos informou Hitler, depois, um novo ataque a Schweinfurt terminara com uma grande vitória da artilharia antiaérea. Parece que o solo ficou semeado de bombardeiros norte-americanos derribados. Intranqüilo, pedi a Hitler que fosse suspensa a reunião, pois eu queria uma ligação telefônica para Schweinfurt. Mas as linhas estavam interrompidas, não me tendo sido possível falar com nenhuma fábrica. Afinal, com o auxílio da polícia, obtive uma ligação e falei com o contramestre de uma das fábricas de rolamentos. Disse-me ele que todas as fábricas tinham sofrido grandes danos. O óleo derramado tinha sido combustível propagador de incêndios, nas instalações de máquinas, e portanto a destruição tinha sido muito pior do que a do primeiro ataque. Nossa produção de rolamentos, desta vez, tinha diminuído em sessenta e sete por cento.
Depois daquele ataque, minha primeira providência foi nomear comissário especial para a produção de rolamentos um dos meus colaboradores mais ativos, o diretor-geral Kessler. As reservas estavam esgotadas e os esforços no sentido de importarmos rolamentos da Suíça ou da Suécia não apresentavam resultado satisfatório. Mas conseguimos evitar uma catástrofe, mediante a substituição dos rolamentos de esferas pelos lisos deslizantes, onde fosse possível essa substituição. Também a catástrofe final se evitou porque, para nosso espanto, o inimigo suspendeu outra vez os ataques à indústria de rolamentos.
No dia 23 de dezembro, o centro de produção de Erkner foi muito danificado, mas não pudemos saber se o ataque foi premeditado, porquanto as bombas caíram em muitos pontos de Berlim, distantes uns dos outros. Depois de fevereiro de 1944, o panorama mudou: Schweinfurt, Steyr e Cannstatt sofreram duros ataques, em quatro dias. Logo depois Erkner, Schweinfurt e mais uma vez Steyr. Nossa produção (de seis centímetros de diâmetro para cima) desceu para vinte e nove por cento, no período de apenas seis semanas.
No entanto, no começo de abril de 1944, os ataques à indústria de rolamentos cessaram, repentinamente. Os Aliados, em sua maneira inconseqüente de proceder, deixavam ainda uma vez escapar das mãos o êxito. Se tivessem continuado com a mesma energia seus ataques de março e de abril, teríamos, rapidamente, chegado ao fim. Por isso, os tanques, aviões, ou quaisquer outros maquinismos não deixaram de funcionar por falta de rolamentos, sendo que a produção de armamentos tivera um aumento de dezenove por cento, desde julho de 1943 até abril de 1944. Em todo caso, no que se refere aos armamentos, parecia realizar-se a profecia de Hitler, para quem o impossível teria de tornar-se possível e todos os temores e prognósticos se apoiavam em excessivo pessimismo.
Depois da guerra, eu soube afinal por que o inimigo errou: os estados-maiores supuseram que no Estado autoritário de Hitler as indústrias mais importantes seriam retiradas sem vacilação e com a máxima pressa das cidades ameaçadas. Em 20 de dezembro de 1943, Harris estava convencido de que "nesta fase da guerra os alemães já fizeram desde há muito tempo todos os esforços possíveis para espalhar pelo país uma lição tão importante (a dos rolamentos)". Superestimava realmente a eficiência de um sistema autoritário, de fato tão indevassável para o mundo exterior. Depois do violento segundo ataque aéreo contra Schwein em 14 de outubro de 1943, resolvi distribuir pelas aldeias próximas uma parte da produção que teria de ser reiniciada, transferindo a outra parte para várias cidades do leste da Alemanha, não expostas a perigo. Com essa "política de dispersão" eu pretendia evitar novos desastres para o futuro, mas tropecei em uma resistência grande. Em janeiro de 1944, discutiu-se a transferência da produção de rolamentos para instalações subterrâneas e, em agosto do mesmo ano, meu delegado lamentou-se das dificuldades que encontrava para realizar sua intenção de "conseguir a realização das obras necessárias para a transferência da produção de rolamentos".
Em vez de paralisar setores técnicos da produção, a Royal Air Force começou uma ofensiva aérea contra Berlim. No dia 22 de novembro de 1943, às dezenove horas e meia, houve um alarma, enquanto eu estava em uma reunião em meu gabinete. Uma numerosa esquadrilha estava voando em direção a Berlim. Suspendi a reunião, quando os aviões inimigos chegaram a Potsdam, e fui para uma torre de defesa antiaérea próxima, de cuja plataforma eu desejava observar o bombardeio, como eu fazia na maioria das vezes. Mal cheguei em cima, tive de refugiar-me no interior da torre, pois os violentos impactos faziam estremecer a estrutura da mesma, apesar da espessura das paredes. Por trás de mim estavam deitados muitos soldados da guarnição dos canhões antiaéreos, os quais tinham sido atirados contra as paredes e feridos em conseqüência da explosão de uma bomba. Os impactos sucederam-se durante uns vinte minutos. Lá de cima, via-se na entrada da torre uma multidão envolta pela poeira, cada vez mais densa, devido à queda das paredes de cimento armado. Quando cessou a chuva de bombas, atrevi-me a sair da plataforma. Meu ministério, ali próximo, era um forno. Corri para lá, onde algumas funcionárias, usando casacos de aço, que lhes davam a aparência de amazonas, esforçavam-se em salvar a papelada, enquanto nas proximidades deflagrava uma bomba de explosão retardada. Onde estivera instalado meu gabinete, havia um enorme buraco aberto por uma bomba.
Nada mais se podia salvar, pois o incêndio propagava-se rapidamente. Mas nas proximidades estava o edifício de oito andares da Diretoria-Geral de Armamentos do Exército. O fogo ameaçava esse edifício. Excitados pelo ataque que sofrêramos, sentíamo-nos impelidos a agir, e portanto entramos na Diretoria-Geral de Armamentos para salvar, pelo menos, os valiosos aparelhos telefônicos especiais, ali instalados. Desligamos os aparelhos das tomadas e os levamos para o porão do edifício, lugar seguro. O General Leeb, chefe da diretoria, fitou-me na manhã seguinte e disse-me:
– O incêndio do meu edifício poderia ter sido dominado nas primeiras horas da manhã. Mas, desgraçadamente – e sorriu com expressão irônica –, nada pudemos fazer. À noite, alguém tirou todos os aparelhos telefônicos das paredes.
Goering estava em sua residência de Karinhall. Quando soube da minha visita noturna à torre antiaérea, ordenou ao comando da torre que não me deixasse subir à plataforma. Os oficiais tinham relações amistosas comigo, que pesavam mais do que a ordem de Goering. Assim, ninguém me impediu de subir à plataforma.
Quando vistos da torre de defesa antiaérea, os ataques aviões inimigos a Berlim proporcionavam um panorama inesquecível. Era necessária a atenção àquela cruel realidade não nos deixarmos levar por idéias fantásticas. Os relâmpagos das explosões, os rolos de fumaça dos incêndios, os luminosos dos refletores, buscando aviões, que evoluíam para fugir daqueles feixes luminosos, a labareda que durava segundos quando o avião era alvejado... tudo isso deixava de ser um espetáculo apocalíptico. A cidade estava coberta por denso fumaceiro, com uns seis mil metros de altura, nuvem enorme que emprestava de cenário lúgubre uma sombra noturna, mesmo sob a luz do dia.
Várias vezes tentei expor a Hitler minhas impressões, ele interrompia-me:
– E quanto ao mais, Speer, quantos tanques o senhor vai fornecer este mês?
Quatro dias depois da destruição do meu ministério, em 4 de novembro de 1943, outro violento bombardeio de Berlim visou nossa importantíssima fábrica de tanques de Allkett. O colaborador Saur teve a idéia de falar, por nossa linha, com o quartel-general do Fuhrer, a fim de que do quartel-general avisassem o Corpo de Bombeiros, uma vez a Central Telefônica de Berlim fora destruída. Assim, foi informado daquele incêndio e, sem pedir mais detalhes, ordenou que se concentrassem imediatamente na fábrica de tanques todos os serviços de bombeiros, incluindo os que aquartelados nas imediações da capital.
Para que os meus colaboradores vissem com mais clareza as preocupações relativas ao armamento aéreo, Milch e eu organizamos, em setembro de 1943, uma reunião para tratarmos dos armamentos, no Centro de Experiências da Luftwaffe, em Rechlinam Müritzsee. Milch e seus especialistas, entre outros assuntos, falaram da futura produção de aviões pelo inimigo. Foram expostos desenhos de todos os tipos e, sobretudo, comparados os gráficos da produção norte-americana com os da nossa. Os algarismos que me causaram maior espanto foram os relativos à futura produção de quadrimotores para bombardeios noturnos, a qual aumentaria várias vezes. Segundo aqueles algarismos, o que tínhamos sofrido até então era apenas um prelúdio do que se aproximava.
Cabe dizer que surgiu a pergunta a respeito de até que ponto estavam Hitler e Goering informados daqueles algarismos. Em tom amargurado, Milch revelou que, havia meses, estava dando instruções aos seus técnicos em armamentos para que estes expusessem a Goering os conhecimentos deles sobre a matéria. Goering não queria saber de nada disso. Segundo declaração do marechal, o Fuhrer dissera-lhe que tudo aquilo era propaganda, tendo o marechal do Reich aceito essa explicação. Também eu não obtive nenhum resultado todas as vezes que tencionei chamar a atenção de Hitler sobre aqueles algarismos. Ele contestava sempre:
– Não se iluda. Essas informações têm uma finalidade determinada. Mas, naturalmente, os derrotistas do Ministério da Aviação deixam-se enganar.
Com observações desse jaez ele repelira, no inverno de 1942, todas as advertências sobre o assunto. E agora continuava na mesma idéia.
Na mesma época, fui testemunha de uma animada discussão entre Goering e o chefe dos pilotos de caça, General Galland. Naquele dia, Galland informara Hitler de que, nas proximidades de Aachen, tinham sido abatidos alguns aparelhos de caça, que escoltavam esquadrilhas de bombardeiros norte-americanos. E fizera sentir o perigo que, em sua opinião, nós correríamos se os norte-americanos, aumentando o número dos seus aviões de caça, possibilitassem a escolta de bombardeiros até o interior do território alemão. Hitler acabava de transmitir a Goering as preocupações de Galland, quando este veio despedir-se do marechal do Reich, que estava para tomar o trem especial que o levaria a Rominten Heide.
Goering encarou Galland e perguntou:
– Como lhe veio a idéia de dizer ao Fuhrer que os pilotos de caça norte-americanos conseguiram penetrar no território do Reich?
Calmo, respondeu-lhe Galland:
– Senhor marechal do Reich, não tardará que eles penetrem ainda mais em nosso território.
Goering alteou a voz:
– Isso é uma insensatez, Galland! Como chegou a tais fantasias?
Galland replicou movendo a cabeça:
– São fatos, senhor marechal do Reich!
Enquanto falava, Galland mantinha uma atitude displicente, o gorro para um lado da cabeça e um cigarro nos lábios, acrescentando:
– Já foram abatidos caças norte-americanos perto de Aachen. Não há nenhuma dúvida a respeito.
Goering insistiu rispidamente:
– Isso não pode ser verdade, de modo nenhum! É impossível!
Galland reagiu com a atitude de quem estivesse gracejando:
– O senhor pode verificar, pessoalmente, senhor marechal do Reich, se há ou não caças norte-americanos abatidos nas imediações de Aachen.
Goering tentou desviar a conversa:
– Vamos ver, Galland, deixe-me dizer-lhe uma coisa: sou um piloto de caça com experiência, sei o que é ou não é possível. Confesse que se enganou.
Em vez de contestar com palavras, Galland apenas negou com um meneio de cabeça. Afinal, Goering opinou:
– Então, há somente a possibilidade de que foram abatidos muito mais no oeste. O que eu quero dizer é que poderiam ter caído a grande distância, se foram alcançados muito no alto.
Galland não moveu um único músculo da face.
– Para leste, senhor marechal? Se eu fosse alcançado por um projétil...
Goering tratou então de encerrar energicamente a discussão:
– Bom, Sr. Galland, ordeno, oficialmente, admitir que os caças norte-americanos não chegaram até Aachen.
O general tratou de opor uma última objeção:
– Mas eles estiveram lá, senhor marechal do Reich!
Aí Goering perdeu as estribeiras:
– Ordeno-lhe, oficialmente, admitir que os norte-americanos não estiveram lá!... Compreendeu? Os aviões de caça norte-americanos não estiveram em Aachen. Entendido, não é verdade? É isto o que eu vou comunicar ao Fuhrer.
Sem mais cerimônias, Goering deixou Galland imóvel. E quando já andava, voltou a cabeça para dizer ainda com expressão ameaçadora:
– Já sabe da minha ordem, oficial.
– Às suas ordens, senhor marechal do Reich – replicou Galland, com um sorriso que jamais esquecerei.
No íntimo, Goering não estava cego à realidade. Algumas vezes ouvi-lhe opiniões muito acertadas a respeito da situação. Agia como o banqueiro às portas da falência e que quer enganar-se a si mesmo e aos demais, até o último momento. Um gesto arbitrário, a despreocupação em face da realidade dos acontecimentos, tinha impelido à morte, já em 1941, o famoso piloto de caça Ernst Udet. Outro imediato colaborador de Goering e, havia mais de quatro anos, chefe do Estado-Maior da Luftwaffe, Capitão-General Jeschonnek, foi encontrado morto em seu gabinete, em agosto de 1943. Esse general suicidara-se. Milch informou-se de que o Capitão-General Jeschonnek deixara uma nota sobre sua mesa, na qual pedia que Goering não estivesse presente no enterro dele. Goering, entretanto, compareceu ao sepultamento do general e deixou sobre a sepultura uma coroa de flores, enviada por Hitler.
Uma das características do espírito, sempre digna de imitação, foi a de reconhecer a realidade, não fazendo caso de fantasias e de pensamentos delirantes. Mas, refletindo sobre os anos anteriores à minha entrada na prisão, vejo que não estive isento de falsas imagens, em nenhum dos períodos da minha atividade.
O afastamento da realidade, o distanciamento que se acentuava continuamente, dominando cada vez mais um maior número de pessoas, não era uma característica especial do regime nacional-socialista. Ora, enquanto em circunstâncias normais dar as costas à realidade é uma atitude corrigível pelas opiniões das pessoas que nos rodeiam, pela zombaria, pela crítica, pela perda de confiança, no Terceiro Reich não havia tal corretivo, sobretudo quando alguém pertencia às categorias superiores. Ao contrário, assim como se multiplica uma imagem em uma sala de espelhos, cada mentira que alguém fizesse a si mesmo multiplicava-se também nas imagens de um mundo fantástico, quimérico, sem nenhuma relação com a sombria realidade exterior. Os espelhos refletiam sempre a imagem do meu rosto, a única imagem que eu podia ver refletida neles. Nenhuma visão estranha perturbava a uniformidade daqueles cem rostos, sempre os mesmos, a uniformidade do meu eu multiplicado.
Havia diferenças de gradação no que diz respeito à fuga da realidade. Não havia dúvida de que Goebbels estava muito mais próximo da realidade do que, por exemplo, Goering ou Ley. Mas tais diferenças diminuem, quando consideramos o afastamento em que, tanto os iludidos como aqueles considerados realistas, nos achávamos com relação ao que ocorria no mundo real.
HITLER NO OUTONO DE 1943
Os antigos colaboradores e auxiliares de Hitler concordavam em dizer que o Fuhrer mudara no decurso do ano anterior. Isso não dava motivo para estranheza. Ele vira a catástrofe de Stalingrado, a capitulação de mais de duzentos e cinqüenta mil soldados em. Túnis, fora testemunha da destruição de cidades alemãs, incapaz de oferecer resistência digna deste nome. Renunciara às suas máximas esperanças, no terreno bélico, ao autorizar a decisão adotada pela Marinha, para a retirada dos submarinos do Atlântico. Mas não se pode duvidar de que Hitler não se iludia, como também de que reagia ante os acontecimentos como um ser humano. Sentia-se frustrado, abatido, e fazia cada vez maiores esforços por manter o otimismo. Para o historiador, Hitler teria se transformado em objeto de frio estudo. Para mim, continua sendo uma criatura humana, dotada de corpo e alma, alguém que ainda existe para mim como se estivesse à minha frente.
No período da primavera de 1942 ao verão de 1943, mostrou-se deprimido. Mas desde então pareceu ocorrer nele uma notável alteração. De um modo geral, manifestava confiança na vitória final, mesmo em situações desesperadoras. Não me lembro bem de alguma referência sua à catastrófica evolução dos acontecimentos naquela época, como era de esperar. Talvez se tivesse auto-sugestionado a tal ponto com a sua vitória definitiva que acabara com uma fé cega nessa vitória. Em todo caso, quanto mais inevitavelmente evoluíam os acontecimentos, rumo à catástrofe, tanto maior ia sendo a impassibilidade do Fuhrer e também maior a convicção de que suas decisões eram acertadas.
Os auxiliares imediatos viam preocupados a crescente insensibilidade de Hitler, que estava tomando decisões que demonstravam crescente indiferença. Ao mesmo tempo ia ficando mais e mais passivo, no plano do espírito, e quase não demonstrava disposição para desenvolver novas idéias. Sob certo ponto de vista, parecia estar escorregando por um caminho já traçado para sempre, sem que ele dispusesse da força necessária para desviar-se daquele rumo.
A causa fundamental para esse estado psicológico era a situação decorrente da superioridade dos inimigos. Em janeiro de 1943, eles tinham feito um acordo, no sentido da rendição incondicional da Alemanha. Talvez fosse Hitler o único que tivesse ilusões a respeito daquele acordo. Goebbels e Goering supunham ser possível obter-se um proveito dos contrastes políticos entre os inimigos da Alemanha. Nas conferências para o estudo da situação, ele manifestava seu pensamento nas seguintes palavras:
– Não se iludam os senhores. Já não é possível nenhum recuo, e sim, apenas, a marcha para frente. Destruíram-se as pontes que tínhamos à retaguarda.
O significado de tal declaração, com a qual Hitler tirava ao seu governo toda a capacidade de ação, não foi apreendido claramente até iniciar-se o processo de Nuremberg.
Outra causa da alteração no modo de ser de Hitler, naquele tempo, segundo me parece, foi a incessante sobrecarga de esforço a que foi submetido, por uma forma de trabalho à qual não estava acostumado. Desde o começo da campanha da Rússia, a antiga maneira de solucionar os assuntos, mediante resoluções improvisadas, seguidas de horas de ócio, fora substituída por jornadas de trabalho de larga envergadura. Antes, tivera a habilidade de escolher outros que trabalhassem por ele. Agora, entretanto, ocupava-se cada vez mais dos detalhes, o que aumentava as suas preocupações. Quis transformar-se em trabalhador disciplinado, mas essa maneira de trabalhar não correspondia ao seu modo de ser, portanto as decisões não podiam satisfazer.
É verdade que, antes da guerra, Hitler sofrera momentos de esgotamento, nos quais se denunciava o horror a tomar decisões, havendo fases de alheamento ou de tendência a torturantes monólogos. Em tais ocasiões, reagia com um simples "sim" ou "não", sem que se pudesse averiguar se ele estava dando atenção ao tema considerado, ou se entrara em devaneios completamente afastados do assunto. No entanto, antigamente, os momentos de esgotamento não costumavam durar muito. Depois de algumas semanas em Obersalzberg, ele ficava mais animado, com os olhos mais vivos, aumentando sua capacidade de reação, readquirindo o bom humor por haver tomado decisões.
Os seus colaboradores mais próximos insistiram em que ele tirasse férias, em 1943. Mas ele apenas mudava de residência, permanecendo algumas semanas em Obersalzberg, ou meses, como aconteceu em 1944, de março a julho. Mas essas mudanças não alteravam o seu regime de trabalho. Por sua vez, Bormann não deixava de submeter-lhe, continuamente, pequenos problemas para solução. Não faltavam visitantes, em Berghof ou na chancelaria do Reich, pois o Fuhrer não era acessível, quando estava no quartel-general. Além disso, não cessavam as conferências diárias para o estudo da situação, pois todo o Estado-Maior militar acompanhava-o a qualquer lugar aonde ele se dirigisse. Quando lhe falávamos de nossas preocupações pelo seu estado de saúde, sua resposta era:
– É muito fácil aconselhar-me a tirar umas férias. É impossível. Não posso deixar, sequer por vinte e quatro horas, que outros tomem as decisões militares.
Os militares que rodeavam Hitler estavam habituados a trabalho duro, desde a mocidade, e por isso não se lhes podia pedir que levassem em conta a sobrecarga a que estava submetido Hitler. Nem Bormann percebia que estava exigindo muito do Fuhrer. Mas, ainda que houvesse boa vontade, Hitler não fez o que faz qualquer diretor de fábrica, ao colocar chefes capazes em cada um dos departamentos da empresa. Além de necessitar de um inteligente presidente do gabinete ministerial, e de um enérgico chefe da Wehrmacht, não dispunha de um oficial competente no comando do Exército. Continuamente violava a antiga regra, segundo a qual se deve dispor de mais tempo livre quando se exerce uma elevada posição como a dele. Outrora, ele regulava-se por esse princípio.
O excesso de esforços e o isolamento a que estava se confinando levaram-no a um endurecimento, a uma torturante indecisão, a uma irritabilidade permanente. As decisões que outrora ele tomava quase brincando custavam-lhe agora tremendo esforço. Eu, que gostava de praticar esportes, sabia o que significava o excesso de exercício. Também o excesso de trabalho intelectual pode ter as mesmas resultantes de um excessivo treinamento físico. Durante os momentos difíceis da guerra, eu pude observar em mim mesmo que o pensamento continuava trabalhando mecanicamente, perdendo-se ao mesmo tempo a frescura e rapidez de percepção, sendo as soluções elaboradas em um estado análogo ao do entorpecimento.
O fato de Hitler ter saído da chancelaria do Reich às escuras, sigilosamente, na noite de 3 de setembro de 1939, para ir à frente, foi um indício do que ocorreria no futuro. Sofreram mudança suas relações com o povo. Embora ainda se apresentasse à multidão, em intervalos de muitos meses, era inegável que o entusiasmo e a capacidade de entusiasmo do povo tinham-se extinguido na mesma proporção em que diminuíra a capacidade de Hitler para sugestionar os ouvintes. Nos começos do decênio de 30, durante as últimas lutas para a conquista do poder, Hitler exigira dele mesmo tanto quanto fora o seu esforço na segunda metade da guerra. No período de 1933 a 1939, quando a posição que alcançara lhe fazia fácil a existência, ficava mais contente quando a procissão diária dos entusiásticos admiradores desfilava à sua frente, em Obersalzberg. Também as manifestações durante a época anterior à guerra tinham sido para Hitler uma espécie de estimulante necessário à vida. Depois daquelas manifestações, ele se mostrava mais firme e seguro de si mesmo. Mas, no quartel-general, o ambiente com secretárias, médicos, ajudantes, era menos estimulante do que os de Obersalzberg e da chancelaria, antes da guerra. No trato diário, tal como eu observara, durante os anos de nossos sonhos comuns, no setor da arquitetura, ele descia do pedestal de semideus em que o havia colocado Goebbels. Ele era então uma pessoa normal, com todas as necessidades e debilidades próprias de um ser humano, embora sua autoridade não sofresse restrições.
Também o círculo militar em torno de Hitler não deixava de provocar-lhe cansaço, uma vez que qualquer admiração ostentosa não deixaria de produzir efeito desagradável no ambiente do quartel-general. Ao contrário, os oficiais comportavam-se como homens manifestamente imparciais, e, mesmo que não o fossem, a etiqueta tinha-lhes sido um dos pilares da educação. Daí, a má impressão causada pelo servilismo de Keitel e de Goering, que não tinha nenhuma característica de autenticidade. Por outro lado, Hitler não fomentava a submissão entre os seus colaboradores militares. Neles predominava o senso prático.
Também Hitler não tolerava críticas à sua forma de viver. Por isso, e apesar de todas as preocupações, ela foi aceita por todos os colaboradores íntimos. Evitava as conversas de caráter pessoal, exceto aquelas, aliás não muito freqüentes, que mantinha cordialmente com os camaradas da época de luta, como Ley, Goebbels ou Esser. No entanto, a maneira como falava comigo ou com os demais dava a impressão de ser impessoal e distante. Os dias em que Hitler aceitava alguma decisão com a vivacidade e espontaneidade de outrora, em que ouvia atento os argumentos opostos às suas opiniões, estavam sendo tão raros que nós notávamos isso.
Schmundt e eu tivemos a idéia de levar ao quartel-gene-ral jovens oficiais vindos da frente de batalha, para que trouxessem algo do mundo exterior à atmosfera espessa e isolada dos domínios do Fuhrer. Mas a nossa tentativa foi um fracasso. Hitler não se mostrou interessado em dedicar àqueles oficiais o escasso tempo de que dispunha. Tivemos de admitir que tínhamos apenas concorrido para haver um contratempo. Um jovem oficial das forças blindadas falou do avanço em Terek, dizendo que sua unidade não tinha encontrado muita resistência, mas que fora detida pela falta de munições. Hitler aborreceu-se de tal modo que, dias depois daquela conversa, continuava a reclamar:
– Já se vê! Falta de munições! Falta de munições para os canhões de setenta e cinco milímetros! O que está acontecendo com a produção? Tem de ser aumentada, rapidamente, de qualquer modo.
O que houvera foi o seguinte: dentro de nossas modestas possibilidades, dispúnhamos da suficiente quantidade de munição. Mas o avanço foi muito rápido, e o suprimento não chegara em tempo devido à grande extensão das vias.
Naquelas reuniões com a oficialidade, vinda da frente, Hitler ficou sabendo de outros detalhes, inteirando-se das negligências do Estado-Maior. Na realidade, a maioria das dificuldades tinham sido causadas pela velocidade do avanço imposta por Hitler. Ma era impossível aos especialistas nesses assuntos expor tais particularidades a Hitler, que desconhecia o complicado funcionamento de um avanço como aquele. Todavia, Hitler continuou recebendo com largos intervalos oficiais e soldados, aos quais distinguia com altas condecorações militares. Mas, dada a sua desconfiança da capacidade do seu estado-maior, depois daquelas visitas dava toda espécie de sugestões e de ordens. Para minorar o efeito negativo daquelas visitas, Keitel e Schmundt tratavam de neutralizá-lo previamente.
A hora do chá, do qual participavam convidados, no quartel-general, foi-se prolongando até às duas da madrugada, às vezes até às três ou quatro. Também a hora de deitarmos foi sendo atrasada, a ponto de irmos para a cama ao alvorecer. Uma vez, eu disse:
– Se a guerra se prolongar, acabaremos por nos regular pelo horário de um boêmio, e os chás da noite de Hitler se transformarão em chás da manhã.
Hitler sofria de insônia. Falava das torturantes horas em claro, passadas na cama, quando se deitava cedo. Durante aqueles chás da noite, lamentava-se freqüentemente de só ter conseguido adormecer pela manhã, depois de horas acordado.
À sua intimidade somente eram admitidos os conhecidos mais chegados: médicos, secretárias, ajudantes-de-ordens militares, oficiais de gabinete, e subchefe da imprensa, o Embaixador Hewel, às vezes a cozinheira vienense que cuidava do regime alimentar dele, um. ou outro visitante seu antigo conhecido e o inevitável Bormann. Também eu era bem acolhido em qualquer momento. Sentávamo-nos nas incômodas cadeiras da peça onde Hitler fazia as refeições. Então, Hitler tratava de criar um ambiente agradável, se possível com o auxílio do fogo da lareira. Assumindo atitude de cavalheiro, entregava pessoalmente bolos às secretárias, esforçando-se além disso em ser muito agradável com os convidados, como se fosse um despreocupado anfitrião. Eu sentia pena dele, que e esforçava por animar os demais e em troca ser também animado.
Estando proibida a música no quartel-general, só havia o Ia conversa, que incumbia quase exclusivamente a manter. Os seus gracejos conhecidos provocavam riso, como se fossem ouvidos pela primeira vez. Acontecia o mesmo com as narrativas da dura época da juventude, ou do "tempo da guerra", ouvidos com o mesmo interesse de relatos novos. Mas isso não podia contribuir muito para animar a noite. Havia uma lei, não escrita, que proibia a menção dos acontecimentos da frente ou da política e a crítica às personalidades de elevada categoria. Compreende-se que Hitler não sentisse necessidade de falar sobre tais assuntos. A única pessoa que gozava do privilégio de formular observações provocadoras era Bormann. Também as cartas de Eva Braun davam uma vez ou outra motivo para aborrecidas interrupções, quando escrevia sobre casos de estupidez dós departamentos oficiais. Quando se proibiu aos habitantes de Munique o esporte do esqui, em pleno inverno, nas montanhas próximas daquela cidade, Hitler excitou-se e falou, em tiradas intermináveis, das suas eternas e incessantes lutas contra a necessidade da burocracia. Afinal, Bormann foi encarregado de tratar de tais assuntos.
A banalidade dos temas tratados demonstrava que baixara muito o nível dos estímulos de Hitler. No entanto, aquelas ninharias serviam de certo modo para relaxar os seus nervos, porquanto lhe permitiam entrar em terrenos limitados onde podia fazer valer seu critério. As providências que ordenava, nesses casos, faziam-no esquecer, ao menos por alguns momentos, a impotência em que estava, desde que era agora o inimigo quem determinava o curso dos acontecimentos, e as ordens militares dadas por ele não tinham o resultado desejado.
Apesar de todas as tentativas de evasão, mesmo naquele reduzido círculo de pessoas Hitler não podia deixar de ter noção da situação em que se encontrava. Gostava, por isso, de voltar às suas antigas lamúrias, queixando-se de se ter transformado em político contra a sua vontade, pois tinha sido um arquiteto malogrado. Tendo de se ocupar, como chefe, dos problemas de governo, não podia dar vazão ao seu talento de construtor. Nutria unicamente um desejo, costumava dizer, revelando agora a tendência cada vez mais imperiosa a compadecer-se de si mesmo:
– Voltarei a vestir minha túnica cinzenta logo que for possível. Quando tiver terminado a guerra, com a nossa vitória, estará terminada minha missão na vida e voltarei à minha antiga morada em Linz. Que o meu sucessor trate de resolver os problemas que surgirem.
Sem dúvida, já manifestara antes esses pensamentos, nas noites de Obersalzberg. Mas, naqueles tempos, isso seria uma espécie de gracejo. Agora, falando em tom natural de conversa, havia na sua expressão algo de sincera amargura.
No decurso daquelas palestras noturnas, nos quartéis-generais da Ucrânia ou da Prússia Oriental, Hitler, freqüentes vezes, dava a impressão de estar desequilibrado. A sensação de carregar um peso de chumbo, naquelas altas horas da madrugada, estendia-se a todos os que participavam daquelas reuniões; somente a cortesia e o sentimento do dever faziam-nos estar presente, embora mal conseguíssemos manter os olhos abertos durante as monótonas conversas, sobretudo depois de termos estado em ufanosas sessões de trabalho. Antes às Hitler aparecer, alguém perguntava:
– Pode-se saber onde está Morell, nesta noite?
Outro respondia displicente:
– Há três noites que não aparece.
Uma das secretárias observava:
– Poderia ficar acordado mais tempo. São sempre os mesmos... Eu também gostaria de ir dormir.
Outra secretária dizia:
– Para falar a verdade, devíamos nos revezar. São sempre os mesmos que se escondem, e sempre nós que temos de ficar aqui.
Naturalmente, Hitler continuava sendo venerado, mas a tua auréola desaparecera.
Depois do desjejum, em hora avançada da manhã, Hitler pedia os jornais do dia e as informações do serviço de imprensa. O serviço de imprensa tinha uma importância fundamental na formação da opinião de Hitler e ao mesmo tempo influía muito em seu estado de ânimo. Logo depois da leitura de certas notícias do estrangeiro, ele reagia, dando réplicas oficiais, em geral agressivas, as quais com freqüência creditava literalmente ao seu chefe de imprensa, Dr. Dietrich, ou ao substituto deste, Lorenz. Sem nenhuma consideração, imiscuía-se em assuntos da incumbência dos ministérios, sem previamente dar ciência disso aos respectivos titulares ou a Ribbentrop.
Em seguida, Hewel relatava os casos da política exterior. Hitler ouvia-o com menos interesse do que lia o noticiário dos jornais. Tenho a impressão de que o efeito tinha para Hitler maior importância do que a realidade, assim as informações jornalísticas interessavam-lhe mais do que os próprios acontecimentos. Depois, Schaub fornecia-lhe os dados relativos aos ataques aéreos, durante a noite anterior, dados transmitidos a Bormann pelos chefes regionais. Como eu inspecionava, freqüentemente, as oficinas da produção, encravadas na área das cidades destruídas, efetuando tais visitas no dia seguinte ao do bombardeio, pude verificar que Hitler estava corretamente informado a respeito da amplitude das destruições.
Hitler estremecia, visivelmente, ao saber dós efeitos dos bombardeios, não tanto talvez pelas baixas sofridas pela população ou destruição dos bairros populosos, como por terem sido reduzidos a escombros os edifícios grandiosos, particularmente os teatros. Antes da guerra, quando devaneava em seus projetos de "reestruturação das cidades alemãs", interessava-lhe sobretudo o que fosse ornamental. Entretanto, silenciava sobre a miséria social e os sofrimentos humanos. Por isso suas exigências pessoais focalizavam-se na reconstrução dos teatros destruídos pelas chamas. Em várias ocasiões, chamei a atenção do Fuhrer sobre as dificuldades que estava atravessando a indústria de construções. Parece que os departamentos políticos locais receavam executar aquelas ordens de Hitler, por serem impopulares. Ele mal cuidava de investigar a respeito daqueles trabalhos, tão absorvido estava pelo cuidado da situação militar.
Negando-se a admitir objeções, Hitler denotava um notável desconhecimento da verdadeira situação e do ambiente reinante. Dizia ele:
– As representações teatrais são necessárias justamente porque se deve elevar o estado de ânimo da população.
A população urbana, certamente, tinha outras preocupações. Essas observações de Hitler provam, ainda uma vez, como ele estava profundamente enraizado no "ambiente burguês".
Durante a leitura das informações sobre os danos causados pela aviação inimiga, Hitler costumava insultar grosseiramente o governo inglês e os judeus, culpados – na sua opinião – daqueles ataques. Dizia que somente a criação de uma grande frota de bombardeiros poderia obrigar o inimigo a suspender os ataques. Ante a minha objeção de que estávamos carecendo de aviões e da quantidade de explosivos suficientes para uma prolongada guerra de bombardeios aéreos, opunha sempre a mesma resposta:
– O senhor já fez possíveis tantas coisas, Speer, que também conseguirá isso.
Na realidade, o fato de nossa produção ter aumentado sempre, apesar dos bombardeios do inimigo, parece-me ter sido uma das razões de Hitler não levar a sério, realmente, a batalha aérea nos céus da Alemanha. Por isso ele repeliu as propostas, minhas e de Milch, no sentido de suspender-se radicalmente o fabrico de bombas em benefício da produção de aviões de caça. Só demasiadamente tarde foi posta em execução essa providência.
Algumas vezes tentei convencer Hitler de fazer uma visita às cidades arrasadas pelos bombardeios, deixando-se ver pela população. Também Goebbels queixou-se de ter perdido sua influência sobre Hitler para decidi-lo a fazer tais visitas. E invejoso referia-se a Churchill:
– Que faria eu no campo da propaganda com uma só de tais visitas!
Ele no entanto recusava-se a atender-nos. Quando se dirigia à Estação de Stettin, à chancelaria do Reich, ou quando estava em Munique e ia à sua residência, na Prinzregentenstrasse, ordenava que seguissem o trajeto mais curto. Antigamente, preferia os trajetos mais longos. Eu o acompanhava, algumas vezes, e fui testemunha do desinteresse e da indiferença com que olhava para as ruínas que se apresentavam em nosso percurso.
Morell aconselhava-o a dar longos passeios. Como seria fácil planejar passeios nos bosques da Prússia Oriental, próximos do quartel-general! Mas Hitler restringia-se a algumas voltas, em um perímetro de cem metros, dentro da Zona Restrita número 1.
Durante os passeios, em geral, Hitler não se interessava pelo seu acompanhante, e sim dava atenção ao seu cão pastor Blondi. Quando, no quartel-general, não havia ninguém cuja presença fosse agradável a Hitler, como comensal, ele fazia a refeição em companhia do cão.
À medida que transcorriam os meses, Hitler foi-se tornando cada vez mais silencioso. Talvez em minha companhia não se esforçasse por uma conversa como quando estava com os comensais não muito chegados a ele. De qualquer modo, desde o outono de 1943 as refeições feitas em sua companhia converteram-se em martírio. Tomávamos em silêncio a sopa e, no intervalo até o outro prato, fazíamos uma ou outra observação a respeito do tempo. Hitler aproveitava a oportunidade para alguns comentários depreciativos a respeito dos informes do serviço meteorológico, antes de a conversa recair, finalmente, sobre a qualidade da comida. Estava satisfeito com a cozinheira e elogiava os conhecimentos dela sobre o regime vegetariano. Quando gostava muito de um prato, convidava-me a que eu também me servisse do mesmo. Receava engordar e observava:
– Não pode ser! Imaginem os senhores se eu andasse por aí com uma boa barriga. Eu me aniquilaria, politicamente.
Por isso, para pôr um ponto final à tentação do apetite, mandava vir o criado e ordenava-lhe:
– Leve isto, por favor! Estou gostando muito.
Naqueles momentos, gostava de gracejar com os comensais carnívoros, embora jamais interferisse nos meus gostos. É verdade que nada tinha contra um steinhager, depois de um prato gorduroso. Mas era de opinião, exprimindo-se em tom compassivo, que ele não necessitava de steinhager, dado o seu regime pessoal. Quando serviam caldo de carne, eu podia ter certeza de que Hitler faria uma referência ao "chá de cadáveres". Quando vinham caranguejos, tinha sempre à mão a história da velha que fora atirada à água de um riacho para atrair tais crustáceos. Quanto às enguias, afirmava que a melhor maneira de atraí-las e apanhá-las era com o emprego de gatos mortos.
Já nos tempos da chancelaria do Reich, Hitler repetia freqüentemente essas histórias. Mas agora, na época das retiradas e das derrotas, elas poderiam ser interpretadas como sinal de boa disposição de ânimo. Entretanto, em geral, reinava um silêncio de morte. Eu tinha a impressão de estar em frente de um homem que se extinguia aos poucos.
Durante as reuniões, que costumavam durar horas, ou durante as refeições, Hitler ordenava ao seu cão que se deitasse em um canto já determinado, na sala, onde o animal ia encolher-se com um grunhido de mau humor. Quando o cachorro não se sentia observado, aproximava-se, lentamente, do lugar onde estava o amo e depois de lentas manobras acabava por lhe pôr o focinho em um joelho. Hitler despachou-o, mandando com uma voz seca que ele voltasse ao canto. Eu, como qualquer outro visitante mais ou menos inteligente, procurava despertar a confiança do cachorro. Mas isso não era difícil. Quando estávamos comendo em companhia de Hitler, o cão vinha colocar a cabeça em um dos meus joelhos, olhando atento os pedaços de carne, parecendo preferi-los aos bocados da comida do seu patrão. Quando Hitler via aqueles modos do cachorro, chamava-o com voz aborrecida. Considerando bem o caso, aquele pastor era o único ser, no quartel-general, que conseguia provocar em Hitler, e em conseqüência no ambiente, um pouco de emoção humana. Mas cachorro não falava.
Foi ocorrendo, paulatinamente, de maneira quase imperceptível, o isolamento de Hitler. Depois do outono de 1943, ele me dizia, de quando em quando:
– Speer, chegará o dia em que eu só terei dois amigos: a Srta. Braun e meu cachorro.
Era ele tão franco nesse juízo depreciativo do gênero humano que não me era possível fazer protestos de lealdade sem considerar-me ofendido. Considerado o caso superficialmente, foi essa a única predição em que Hitler acertou plenamente. No entanto, não havia motivo para ele envaidecer-se do acerto da predição, porquanto isto decorreu mais devido à coragem da sua amante e aos sentimentos do seu cão.
Mais tarde, durante meus longos anos de prisão, pude o que significava viver submetido a uma grande tensão psicológica. Foi então que me dei conta, pela primeira vez, que a vida de Hitler era muito semelhante à de um prisioneiro. A sua casamata, embora não tivesse as dimensões um mausoléu, como em julho de 1944, possuía paredes e muros como os de uma prisão. Portas e rótulas de ferro fechavam as poucas aberturas existentes. Os curtos passeios que dava no interior da área cercada de arame farpado não lhe permitiam respirar mais ar e gozar da natureza do que o aspirado por um presidiário, ao andar pelo pátio de uma prisão.
O expediente de Hitler começava com a grande conferência para o estudo da situação, depois do almoço, às duas da tarde. Em seu curso, elas não tinham tido nenhuma alteração desde a primavera de 1941. As esperanças eram o objeto em discussão. Segundo os interrogatórios feitos aos prisioneiros e as notícias isoladas, provenientes da frente russa, havia esperanças de um esgotamento do inimigo. Os informes a respeito de êxitos insignificantes adquiriam importância, durante o debate, até se transformarem para Hitler na demonstração inegável de que o ataque russo à Alemanha poderia ser contido em tempo necessário, até que aquele país caísse em uma situação de esgotamento. Também muitos de nós pensávamos que Hitler, no momento oportuno, terminaria a guerra.
A fim de expor, claramente, a possível evolução dos acontecimentos nos próximos meses, Jodl preparou um relatório para Hitler, tendo a intenção de reforçar sua posição de chefe superior da Wehrmacht, função que Hitler estava assumindo havia algum tempo. Jodl, entretanto, já sabia da desconfiança de Hitler em relação a trabalhos baseados em algarismos e cálculos. Não ignorava, aliás, as dificuldades para levar adiante seu intento. Por isso, escolheu um jovem coronel da Luftwaffe, Christian, que por algum tempo não faria mais do que expor considerações gerais sobre determinados pontos da situação, durante uma das conferências. Excetuando-se alguns grandes mapas da Europa, que Christian explicou a um Hitler silencioso, já não me recordo de nada mais daquela reunião.
Sem debates e com a anuência dos assistentes, as coisas continuaram como estavam. Hitler tomava todas as decisões sem dispor de base técnica. Deixou de analisar a situação, de pensar com lógica. Não havia para ele nenhum grupo de estudo que examinasse as ofensivas sob vários pontos de vista. Sem dúvida, o Fuhrer recebia informes sobre aspectos parciais, mas as soluções deviam-se à sua cabeça. Portanto, seus marechais e colaboradores mais imediatos eram apenas conselheiros, pois, na maioria dos casos, as decisões de Hitler estavam tomadas de antemão e só seriam alteradas em pequenos detalhes.
Para livrar-se da tremenda pressão da responsabilidade, talvez nada fosse melhor, no quartel-general, do que as decisões com base em ordens superiores. Isso importaria em alívio e desencargo de consciência, ao mesmo tempo. Raramente eu sabia de algum oficial que pedisse sua transferência para frente. Em verdade, nunca pude compreender o que ocorria naquela esfera militar. Assim, se formavam bolsões, na linha de frente – que poderiam ter sido evitados –, só porque Hitler demorava, uma ou outra vez, em autorizar a proposta de retirada feita pelo Estado-Maior.
Sem dúvida, ninguém iria exigir do chefe de Estado que inspecionasse a frente de batalha com regularidade. Mas ele estava obrigado a proceder como supremo comandante do Exército. Além disso, um generalíssimo deve decidir também sobre problemas menores. Ora, se ele estivesse muito doente, deveria nomear um general para substituí-lo. E, no caso de grandes preocupações, não podia continuar no cargo de generalíssimo.
Algumas viagens à frente mostrariam a Hitler e ao seu estado-maior os erros fundamentais que tanto sangue custavam. No entanto, o Fuhrer e seus colaboradores supunham poder dirigir as operações de guerra sem se afastarem dos mapas. Não conheciam o inverno russo, nem as condições das estradas, nem as canseiras dos soldados, sem alojamentos, insuficientemente equipados, vivendo em covas abertas no chão. Havia já muito tempo esgotara-se a capacidade de resistência de muitos. No entanto, durante as conferências em que se examinava a situação, Hitler opinava que as tropas estavam em boas condições, podendo ser empregadas. Debruçado sobre o mapa, Hitler deslocava de um ponto para outro divisões extenuadas, sem armamento, sem munições, indicando ó tempo para se deslocarem, sem concordância com as exigências da realidade. E, como ele ordenava o ataque imediato, as unidades na vanguarda entravam em fogo antes das outras poderem desenvolver toda a capacidade de combate. Assim as nossas tropas enfrentavam o inimigo, assim eram desbaratadas e do mesmo modo aniquiladas, pouco a pouco. O serviço de informação do quartel-general era modelar para a época. De lá podia-se estabelecer imediatamente comunicação com os mais importantes setores das operações. Mas Hitler dava a tais serviços um valor maior do que realmente podiam ter, porquanto, utilizando-se do telefone, do telégrafo e do rádio, o Fuhrer intervinha sem cessar nos setores da frente, dirigindo o deslocamento das divisões em todos os teatros da guerra. Quanto mais difícil a situação, maior seria a distância aberta pela técnica moderna entre a realidade e a fantasia com que se operava naquela mesa.
O chefe militar necessita de inteligência, de tenacidade e de nervos de aço. Hitler supunha-se possuidor dessas características em maior grau do que os seus generais. De vez em quando afirmava – apenas, é bem verdade, depois da catástrofe do inverno de 1941 a 1942 – que ainda havia situações difíceis por superar e que então ele demonstraria sua força e a resistência dos nervos.
Essas manifestações ocasionais de otimismo já eram menosprezadas pelos oficiais. Entretanto, não eram raras as ocasiões em que Hitler dirigia palavras ofensivas aos oficiais do Estado-Maior, que lidavam mais de perto com ele. Acusava-os de falta de resistência, de estarem sempre dispostos a retiradas, de abandonarem sem razão o terreno conquistado. Segundo o Fuhrer, os covardes do Estado-Maior jamais teriam entrado em uma guerra. Sempre lhe haviam dito que as nossas forças eram muito fracas e sempre o tinham aconselhado contra a declaração da guerra. E quem tinha razão, pelo êxito alcançado, senão ele? Tais eram as expressões de Hitler com referência aos seus oficiais.
Nos momentos em que se discutia a situação dificílima em que nos encontrávamos, ele podia perder as estribeiras. O rosto ficava vermelho e Hitler gritava:
– Os senhores não somente são covardes notórios, mas também carecem de sinceridade! Os senhores são perfeitos embusteiros! Na Escola do Estado-Maior ensina-se apenas a mentir e a cansar! Zeitzler, estes dados não são verdadeiros! Também enganam ao senhor! Creia-me se eu lhe disser que a situação é exposta, conscientemente, de maneira desvantajosa, a fim de me obrigarem a ordenar a retirada!
Naturalmente, Hitler ordenava que, de qualquer modo, se mantivessem as linhas em forma de arco, e, também naturalmente, depois de alguns dias ou semanas, as posições eram tomadas pelos russos. Isso motivava novas explosões de cólera e novas afrontas aos oficiais, freqüentemente acompanhadas de opiniões desfavoráveis aos soldados alemães.
– Os soldados da Primeira Guerra Mundial eram muito mais duros. O que tivemos de agüentar em Verdun, no Sommel! Os soldados de hoje sairiam correndo se estivessem diante de situações como aquelas.
Um dos insultados tomou, depois, parte na conjuração de 20 de julho. Hitler estava semeando ventos. Outrora, possuíra extraordinária capacidade de adaptação, que lhe possibilitava dirigir-se da melhor maneira às pessoas que o rodeavam em cada situação. Agora, estava desenfreado, incapaz de autodomínio. A sua torrente de palavras estendia-se sem limites. Na minha opinião, Hitler falava como se estivesse dominado por uma obsessão.
Para provar à posteridade que só dava ordens certas, Hitler mandou vir do Reichstag, no outono de 1942, taquígrafas que anotassem os debates, durante as reuniões em que se estudava a situação. Quando supunha haver encontrado a solução de um problema, observava:
– A senhorita já anotou? Isso me dará razão algum dia. Mas os idiotas do Estado-Maior não querem me ouvir.
Mesmo quando as tropas recuavam em massa, ele se gabava:
– Eu já não tinha dado ordens, há três dias? Pois bem, mais uma vez não cumpriram o que ordenei. Os senhores não executam minhas ordens e depois defendem-se apoiando-se nos russos, alegando que eles impediram a execução do que eu tinha ordenado.
Hitler não queria compreender que os seus malogros se deviam à precariedade da posição a que ele nos conduzira com a sua guerra em muitas frentes.
As taquígrafas, chamadas àquela casa de doidos, talvez tivessem visto, meses atrás, o Hitler que era apresentado por Goebbels: o homem dotado de gênio superior. Mas, agora, até tinham visto a realidade. Parece-me que estou vendo aquelas moças pálidas passeando pela área do quartel-general, nas horas livres. Para mim eram como delegadas do povo, condenadas a participarem, na qualidade de testemunhas, da tragédia.
No princípio da campanha da Rússia, Hitler qualificava os russos de sub-homens, dizendo que aquela guerra era "uma brincadeira com castelos de areia". Mas, no decurso das operações, os russos foram-nos obrigando a respeitá-los. Hitler falava de Stálin com todo o respeito. Quando parecia estar confiante na vitória, dizia com um tom de gracejo que o melhor seria confiar a Stálin a administração da Rússia, quando terminasse a luta, pois era o melhor homem que se podia imaginar para dirigir os russos. Na realidade, via em Stálin uma espécie de colega. Estaria relacionada com esse apreço a ordem que deu para que fosse bem tratado o filho de Stálin, feito prisioneiro. Mas as coisas tinham mudado muito, desde os dias do armistício com a França, quando Hitler vaticinara que a guerra contra a Rússia seria como derrubar castelos de areia. Convenceu-se por fim de que na frente leste havia um inimigo corajoso. Mas afirmava ser escasso o valor combativo das forças dos países ocidentais e sustentou essa opinião até os últimos dias da guerra. Não mudou de ponto de vista nem quando os Aliados foram vencedores na África e na Itália. Sua idéia era de que a democracia debilita os povos. Seu juízo a respeito dos estadistas ocidentais era função daquele ponto de vista. Destarte, Churchill era um demagogo incapaz, beberrão. Relativamente a Roosevelt, afirmava com toda a seriedade que a doença dele não se originava de uma paralisia infantil, mas era conseqüência da uma infecção sifilítica.
No quartel-general de Rastemburgo fora construída uma dependência para servir-se o chá, construção que se diferenciava do estilo simples do edifício. Nós nos reuníamos lá, de quando em quando, para tomarmos vermute. Hitler evitava ir lá, para não se encontrar com a oficialidade do Estado-Maior do Exército ou do Alto-Comando da Wehrmacht. Mas, alguns dias depois de haver terminado o fascismo, silenciosamente, na Itália, em 25 de julho de 1943, e Badoglio ter assumido o poder, Hitler compareceu ao quartel-general de Rastemburgo, a fim de tomar chá em companhia de talvez dez dos seus colaboradores militares e políticos, entre os quais Keitel, Jodl e Bormann. Continuou a ir lá, e uma tarde Jodl disse de repente:
– Na verdade, todo o fascismo rebentou como uma bolha de sabão.
Seguiu-se um silêncio aterrorizado, até que alguém começou a falar de outro assunto, enquanto Jodl enrubescia, visivelmente assustado pelas suas palavras.
Algumas semanas depois, o Príncipe Filipe de Hesse foi convidado a apresentar-se no quartel-general. Era um dos partidários de Hitler que fora sempre bem tratado pelo Fuhrer, o qual lhe dispensava respeito e alta consideração. O príncipe fora útil, freqüentes vezes, proporcionando-lhe contatos com a chefia do partido fascista, mormente nos primeiros anos do Reich. Além disso, ajudara Hitler a adquirir valiosos objetos de arte, que saíram da Itália graças ao parentesco do príncipe com a casa real italiana.
Decorridos alguns dias de permanência no quartel-general, o príncipe manifestou desejo de retirar-se, mas Hitler, sem embaraços, revelou-lhe que não podia sair de lá. Continuou tratando-o com muita cortesia, inclusive até convidando-o a fazer refeições em sua companhia. Mas aqueles que antes manifestavam satisfação em estar na companhia de um "príncipe autêntico" evitavam-no agora, como se estivesse doente de um mal contagioso. No dia 9 de setembro, por ordem de Hitler, o príncipe e a Princesa Mafalda, filha do rei da Itália, foram levados a um campo de concentração.
Semanas depois, Hitler gabava-se de ter suspeitado, havia tempo, de que o príncipe fornecia informações à casa real da Itália. Revelou que ele mesmo o tinha vigiado, tendo dado ordem para que fossem captadas as conversas telefônicas do príncipe, mediante as quais – continuava o Fuhrer -– fora descoberto que Filipe de Hesse se utilizava de um código, quando falava com a sua mulher. A amabilidade com que o tratara – esclarecia ainda Hitler – fazia parte da sua tática. Mostrou-se por fim muito satisfeito com o êxito das suas averiguações policiais.
A prisão do príncipe e de sua esposa advertiu a todos Os que rodeavam o Fuhrer de como tinham caído em suas mãos. Aos poucos foi-se estendendo o sentimento de que Hitler podia espionar com a mesma aleivosia qualquer um dos componentes do seu grupo e dar-lhe um destino semelhante ao do príncipe, sem possibilidade de nenhum esclarecimento.
A conduta de Mussolini para com Hitler, desde a crise austríaca, fora para nós simbólica de uma relação verdadeiramente amistosa. Desde a queda e o desaparecimento de Mussolini, Hitler dera sinais de uma lealdade de nibelungo (4).
(4) Raça de anões da mitologia germânica. (N. do E.)
Durante as reuniões, exortava a que se fizesse o possível por descobrir o local onde estava o Duce. Falava de um remorso que não o abandonava nem de dia nem de noite.
Fixou-se para o dia 12 de setembro de 1943 uma reunião para a qual fomos convocados e de que participariam os chefes regionais do Tirol, da Caríntia, com a minha presença. Ficou então estabelecido que o território italiano, até Verona, ficaria sob a jurisdição do chefe regional do Tirol, Hofer, enquanto que ao chefe regional da Caríntia, Rainer, caberia a administração de grande parte da Venécia, inclusive Trieste. Quanto a mim, não me foi difícil obter a jurisdição daquele território italiano, para fins relacionados com o armamento e seu fabrico, sendo os italianos proibidos de intervirem na esfera de minha incumbência. Mas foi grande a surpresa quando poucas horas depois foi noticiada a libertação de Mussolini.
Estive falando com Hitler sobre a inconveniência de se manterem as decisões tomadas naquela reunião, em seguida à libertação de Mussolini, porquanto o Duce poderia voltar a exercer o poder político sobre o território que tinha sido objeto de nossas deliberações. O Fuhrer esteve refletindo por alguns instantes e disse:
– Apresente-me outra vez o decreto para ser assinado com a data de amanhã. Assim, minhas ordens não darão a entender um menosprezo à liberação do Duce.
No dia seguinte, Mussolini chegou a Rastemburgo. Hitler abraçou-o, visivelmente comovido. No aniversário do Pacto Tríplice, o Fuhrer enviou "ao Duce amigo e aliado... os mais ardentes desejos de que a Itália recupere no futuro uma liberdade honrosa, sob a direção do fascismo".
Quinze dias antes, Hitler tinha mutilado a Itália.
DECLIVE
O aumento da produção de armamentos fortaleceu minha posição até o outono de 1943. Depois de quase esgotadas as reservas industriais da Alemanha, cuidei de utilizar o potencial econômico dos outros países europeus que estavam sob nossa influência. No princípio, Hitler resistira à idéia de se aproveitar a capacidade industrial do Ocidente. Pretendia que os países ocidentais ficassem desprovidos de parque industrial, porquanto, em sua opinião, a indústria fomentava o comunismo e possibilitava a formação de uma camada intelectual indesejável. Mas as circunstâncias foram mais fortes do que as idéias de Hitler.
A França era, industrialmente, o mais importante dos países ocupados. No entanto, até a primavera de 1943, sua capacidade industrial pouco nos aproveitara. O recrutamento de mão-de-obra, feito por Sauckel, mediante coação,1 causara na França maiores danos do que vantagens. Para escapar daquele recrutamento, os operários franceses fugiam das fábricas, muitas das quais trabalhavam para o nosso programa de aumento da produção de armamentos. Queixei-me a Sauckel, pela primeira vez, em maio de 1943. E em julho do mesmo ano, em uma reunião em Paris, propus que, em face das intervenções de Sauckel, fossem protegidas as indústrias francesas que trabalhavam para nós.
Meus colaboradores e eu pretendíamos que essas fábricas fossem empregadas na França, na Bélgica e na Holanda, Ha produção de bens de consumo para a população alemã, roupas, calçados, tecidos, móveis. Assim, na Alemanha, ficariam livres as indústrias desses ramos, as quais se aplicariam fabrico de armamentos. Depois de estar informado do total da produção alemã, convidei o ministro francês encarregado da produção a ir a Berlim. O Ministro Bichelonne, professor da Sorbonne, tinha fama de ser um homem capaz e enérgico. Após algumas discussões com o ministro das Relações Exteriores, consegui que o ministro francês fosse recebido como hóspede oficial. Tive de apelar para Hitler, a quem declarei que o ministro francês não entraria em meu ministério pela "porta de serviço". O Sr. Bichelonne foi hospedado no edifício destinado em Berlim aos convidados oficiais.
Cinco dias antes da chegada do ministro francês, pedi a Hitler que confirmasse a autorização da idéia de planificação da produção européia, da qual a França participaria com os mesmos direitos das demais nações. Hitler e eu partíamos do pressuposto de que a Alemanha- teria voz predominante na planificação da produção.
Recebi Bichelonne no dia 17 de setembro de 1943 e logo nos unimos por uma boa amizade. Éramos ambos jovens, ambos supúnhamos ter o futuro em nossas mãos, e, por essa razão, prometíamos a nós mesmos evitar, mais tarde, os erros cometidos pela geração guerreira, que então estava no governo. Eu estava mesmo disposto a, mais adiante, evitar a mutilação da França, planejada por Hitler, porquanto em minha opinião em uma Europa unida careceria de importância o fato de haver fronteiras nacionais. Bichelonne e eu nos perdíamos nessas utopias, significativas da situação do mundo em que estávamos vivendo.
No último dia das conversas, Bichelonne pediu-me para falar comigo particularmente. Explicou-me que, por indicação de Sauckel, Lavai, chefe do governo francês, proibira-lhe tratar comigo do problema da remessa de mão-de-obra para a Alemanha. Mas, apesar disso, estaria eu disposto a tratar do assunto? Eu lhe disse que sim. Bichelonne expôs-me suas preocupações. Terminei por lhe perguntar se eu lhe seria útil, em seus propósitos de proteção às indústrias francesas, no tocante às deportações de operários para a Alemanha.
– Se isso fosse possível, desapareceriam todos os meus problemas. Isso repercutiria favoravelmente na execução do programa de que acabamos de tratar – retrucou Bichelonne com expressão de alívio. Também assim findaria a deportação de operários.
Eu não tinha dúvidas de que seria aquela a única forma de obtermos resultados satisfatórios com a indústria francesa. Ambos tínhamos feito algo singular: Bichelonne deixara de considerar as ordens de Lavai e eu tinha desautorizado Sauckel. Tínhamos concluído um conveio de largo alcance.
Bichelonne e eu passávamos os fins de semana em casa de um meu amigo, Arno Breker. No começo de cada semana, eu informava os colaboradores de Sauckel dos acordos feitos, exortando-os a que dali em diante se esforçassem por recompensar os operários franceses, estimulando-os a trabalharem em fábricas francesas. O número deles seria considerado cota de contribuição para a produção alemã de armamentos.
Dez dias mais tarde, eu estava no quartel-general a fim de preceder Sauckel na apresentação das informações. De acordo com a experiência adquirida, sempre gozava de vantagem quem primeiro falasse. Hitler demonstrou satisfação, aprovando os meus convênios e admitindo o possível risco de greves e distúrbios. Isso significou quase o fim da atuação de Sauckel na França. Em vez dos cinqüenta mil operários levados, mensalmente, para a Alemanha, não demorou muito que aquele número baixasse para cinco mil. Alguns meses mais tarde, em 1.° de março de 1944, Sauckel, aborrecido, informava:
– As seções oficiais que dirijo na França disseram-me que lá tudo está acabado, que já não tem sentido continuar o recrutamento. Em todas as prefeituras dizem que o Ministro Bichelonne chegou a um acordo com o Ministro Speer. E Lavai me disse: "Agora não porei mais gente à disposição da Alemanha".
Pouco tempo depois eu procedi do mesmo modo com a Holanda, a Bélgica e a Itália.
No dia 20 de agosto de 1943, Heinrich Himmler foi nomeado ministro do Interior do Reich. Até então fora o chefe nacional das SS, denominadas "Estado dentro do Estado". Mas – coisa curiosa –, como chefe da polícia, estava subordinado ao Ministro Frick.
Sob a proteção de Bormann, o poder dos chefes regionais suscitara a decomposição do poder do Reich. Eram duas as categorias desses chefes: a dos antigos, aqueles que tinham sido chefes regionais antes de 1933, homens inteiramente incapazes de dirigir um órgão administrativo; a dos novos chefes regionais, aliciados por Bormann, na maioria jovens funcionários, dotados de completa formação jurídica, capazes de reforçarem, sistematicamente, a influência do partido dentro do Estado.
Em conseqüência das duplicidades funcionais, fomentadas por Hitler, no regime nacional-socialista, Bormann era o chefe dos chefes regionais, como funcionários do partido.
No entanto, o ministro do Interior era o superior imediato daqueles chefes regionais, na qualidade de comissário da Defesa do Reich. Essa regulamentação não supunha nenhum perigo para Bormann, quando havia um ministro do Interior fraco, tal como Frick. Entretanto, os observadores dos acontecimentos políticos foram de opinião que Bormann iria se defrontar com um sério opositor, quando Himmler foi nomeado ministro do Interior.
Essa era também a minha opinião. Eu tinha esperança de que, exercendo o poder, o chefe nacional das SS iria pôr cobro à progressiva decomposição da administração unitária do Reich, quanto à organização, decomposição provocada por influência de Bormann. Aliás, o próprio Himmler assegurou-me que iria pedir contas a todos os chefes regionais do Reich, que se demonstraram incapazes de resolver seus problemas de âmbito administrativo.
No dia 6 de outubro de 1943, pronunciei um discurso perante os chefes nacionais e regionais do partido. Esse discurso iria assinalar uma alteração no curso dos acontecimentos. Era minha intenção abrir os olhos da chefia política do Reich sobre o verdadeiro estado da situação, dissipar-lhes a esperança no emprego de um foguete de grandes dimensões e mostrar-lhes que agora era o inimigo quem determinava o que podíamos produzir. Para que pudéssemos reconquistar a iniciativa, a estrutura econômica da Alemanha, parcialmente funcionando como em tempo de paz, tinha de ser alterada. Dos seis milhões de pessoas que trabalhavam em nossa indústria de produção de bens de consumo, um milhão e meio iriam ser transferidos para a indústria de armamentos. Daquela data em diante, os artigos de consumo procederiam da França. Confessei que tal regulamentação proporcionaria à França Uma posição inicial favorável, quando terminasse a guerra.
Diante de uma multidão de homens que me ouviam, imobilizados como se fossem de pedra, declarei:
– Entretanto, sou de opinião que, se quisermos ganhar a guerra, teremos de ser os primeiros a nos sacrificar.
Maior todavia foi a minha provocação aos chefes regionais, nos seguintes termos:
– Peço-lhes considerarem o seguinte: o atual procedimento de alguns chefes regionais, que excluíram suas regiões do esquema de redução da produção de bens de consumo, não pode continuar, nem continuará de agora em diante. Quando os chefes regionais não observarem minhas instruções, no prazo de quinze dias, serei eu que ordenarei, pessoalmente, a redução naquela produção. Asseguro-lhes que tenho a intenção de impor a autoridade do Reich, custe o que custar. Falei sobre o assunto com o chefe nacional das SS e desde agora tratarei de modo adequado as regiões que não fizerem caso das providências a serem tomadas.
Mal terminei meu discurso, alguns deles, encolerizados, correram aonde eu estava, gritando, gesticulando. E, seguindo um dos antigos chefes regionais, Bürkel, disseram-me que eu os tinha ameaçado com o campo de concentração. Para um esclarecimento, pedi a Bormann que me cedesse de novo a palavra, mas ele não me atendeu. Com hipócrita amabilidade, disse que não havia necessidade disso, pois não havia mal-entendido.
Naquela mesma noite, muitos chefes regionais necessitaram de ajuda para poderem chegar ao trem especial que os levaria ao quartel-general, pois tinham-se embriagado. Na manhã seguinte, pedi a Hitler permissão para dirigir algumas palavras àqueles seus colaboradores políticos, mas, como sempre, Hitler respeitou os sentimentos dos seus camaradas da velha época. Por outro lado, Bormann lhe dera informações a respeito do ocorrido e o Fuhrer deu-me a entender que eles estavam muito irritados, sem entrar em mais detalhes. Logo vi que Bormann tinha conseguido, pelo menos inicialmente, minar o meu prestígio perante Hitler.
No decurso de poucos meses, pela terceira vez, malograra a intenção de ativar-se a força e as possibilidades do regime. A fim de superar o problema ameaçador, passei à ofensiva. Cinco dias depois do meu discurso, consegui que Hitler colocasse sob minha direção a futura planificação de reconstrução das cidades danificadas pelos bombardeios. Assim, eu obtivera plenos poderes em um terreno onde seriam afetados o meus adversários, incluindo o próprio Bormann, pois isso significava para ele muito mais do que vários problemas bélicos. Os chefes regionais já estavam vendo na reconstrução das cidades a sua mais importante missão para o futuro. O decreto de Hitler alertou-os sobre o fato de que iriam depender de mim, naquele setor.
Eu pretendia também enfrentar um perigo, resultante do radicalismo ideológico dos chefes regionais. As destruições das cidades dar-lhes-iam pretexto para a demolição de edifícios de valor histórico, ainda que tivessem de ser restaurados. Quando, em companhia de um chefe regional, estive inspecionando as ruínas de Essen, ele declarou que a catedral teria de ser demolida inteiramente, não só porque estava muito danificada como também porque estorvava a modernização da cidade. O prefeito de Mannheim reclamou contra a minha intervenção no sentido de impedir a demolição do palácio daquela cidade e do Teatro Municipal. Fui informado de que o chefe regional de Stuttgart pretendia demolir o palácio da cidade, também danificado pelo fogo.
Em todo caso, o argumento era o mesmo sempre: "Abaixo palácios e igrejas!" Tornava-se patente o complexo de inferioridade dos maiorais do partido, em relação ao passado. Muito mais reveladora foi a razão que me expôs um desses chefes para fundamentar uma das suas ordens de demolição de edifícios: os palácios e as igrejas, construídos no passado, eram redutos de reação e impediam o caminho da nossa revolução.
Nos começos de novembro, as tropas soviéticas aproximaram-se de Nikopol, centro das minas de manganês. Naqueles dias, houve um caso que esclareceu algo da psicologia de Hitler, tal como ocorrera já uma vez com o Marechal Goering, que ordenou ao general chefe dos pilotos de caça que dissesse uma mentira, conscientemente. Nos primeiros dias de novembro de 1943, Zeitzler, chefe do Estado-Maior do Exército, falando comigo por telefone, informou-me de que acabara de ter forte discussão com Hitler. Este insistira em que todas as divisões disponíveis, nas proximidades, fossem transferidas para Nikopol. O Fuhrer exaltou-se, declarando que a guerra estaria perdida, dentro de pouco tempo, se houvesse falta de manganês. Segundo as explicações de Hitler, Speer teria de suspender, dentro de três meses, a produção de armamentos, se não dispusesse de reservas do mencionado minério. Zeitzler suplicou-me, encarecidamente, que o ajudasse: em vez de uma concentração de tropas, melhor seria iniciar a retirada, se não se quisesse outra Stalingrado.
Pouco depois, eu me reuni com Rõchling e Rohland, nossos especialistas na indústria do ferro, para esclarecermos nossa situação no tocante ao manganês. O manganês é um minério importante no fabrico do aço. Mas, pela conversa de Zeitzler, as minas de manganês da Rússia meridional estavam perdidas, de qualquer modo. Nossas entrevistas tiveram um resultado surpreendentemente positivo. No dia 11 de novembro, expedi a Zeitzler e a Hitler o seguinte telegrama: "Mantendo-se o mesmo ritmo de produção observado até agora, o Reich tem assegurado um estoque de manganês para fez ou doze meses. A indústria siderúrgica alemã garante que, no caso de perder-se Nikopol, as reservas de manganês podem durar até dezoito meses, mediante o recurso a outros processos".
Dois dias mais tarde, indo ao quartel-general, fui mal recebido pelo Fuhrer. Hitler falou-me com tanta grosseria que fiquei surpreso, pois jamais me tinha tratado daquela maneira:
– Como lhe veio a idéia de enviar ao chefe do Estado-Maior seu relatório sobre a situação do manganês?
Eu supunha encontrar Hitler satisfeito, e assim não pude dizer-lhe mais do que o seguinte:
– Mas, meu Fuhrer, foi um bom relatório!
Mas Hitler insistiu:
– O senhor não tem de enviar nenhum relatório ao chefe do Estado-Maior! Quando pretender alguma coisa, dirija-se a mim! O senhor é culpado de eu estar em situação difícil! Precisamente, acabo de ordenar que se concentrem em Kikopol todas as tropas disponíveis. Tive afinal uma razão para obrigar o grupo de exércitos a combater, e vem Zeitzler trazer-me o relatório do senhor. O resultado: fiquei na situação de um embusteiro! Se perdermos Nikopol, o senhor será o culpado! Proíbo-lhe, de uma vez por todas, de enviar relatórios de qualquer espécie a outras pessoas. Entendeu-me? Proíbo!
Apesar de tudo, o meu relatório produziu efeito. Hitler insistiu na batalha para defender as minas de manganês.
Nikopol cedeu apenas a 18 de fevereiro de 1944, pois a pressão soviética naquela região tinha diminuído.
Mas, naquele dia, eu tinha entregado a Hitler outro relatório sobre as nossas reservas de metais para ligas. Os estoques nacionais, as reservas, a importação e o consumo de manganês, níquel, cromo, volfrâmio, molibdênio e silício eram mencionados em um quadro.
Pelo relatório, as menores reservas eram as de cromo, circunstância aliás especialmente decisiva, levando-se em conta que sem o cromo não se pode manter uma indústria de armamentos em alto grau de desenvolvimento. No caso de perdermos os Bálcãs e a Turquia, as reservas de cromo bastariam para apenas cinco ou seis meses. Isto significava que a guerra teria de terminar, cerca de três meses depois da perda dos Bálcãs. Hitler ouviu em silêncio a minha exposição, pela qual se demonstrava que não seria Nikopol e sim os Bálcãs que determinariam o curso da guerra. Voltou-me as costas, mal-humorado, e dirigiu-se ao meu colaborador Saur para discutir com ele os novos programas de fabricação de tanques.
Até o verão de 1943, Hitler chamava-me por telefone, no princípio de cada mês, para saber dos algarismos relativos à produção. Ele recebia minhas informações, comentando-as:
– Muito bem! É realmente maravilhoso! Cento e dez Tigres, realmente? Mais do que o senhor prometeu. . .E quantos Tigres pensa o senhor entregar no mês que vem? Qualquer tanque a mais, agora, tem muita importância.
Às vezes concluía as conversas aludindo à situação:
– Hoje tomamos Kharkov... As coisas estão indo bem... Bom, agradeço-lhe o telefonema. Meus respeitos à sua esposa... Ainda está em Obersalzberg? Bem, apresente-lhe mais uma vez meus respeitos.
Quando, agradecendo-lhe, eu me despedia com o "Heil, meu Fuhrer!", Hitler às vezes respondia com um "Heil, gneer!" Era um cumprimento que ele raras vezes utilizava com Goering, Goebbels e outros íntimos, notando-se contudo entono de sua voz uma leve ironia com relação ao "Heil, meu Fuhrer!", instituído oficialmente.
Em tais momentos, eu me considerava distinguido pelos insultados do meu trabalho, sem dar-me conta do que havia de condescendência naquela familiaridade. No entanto, o fascínio do começo e a familiaridade no trato particular já tinham desaparecido, havia tempo. Agora, considerando-se no fundo aquelas intrigas pelo prestígio, vê-se que elas visavam à obtenção daquelas palavras e expressões, ou o que estava por trás das mesmas. A posição de todos e de cada um dependia disso. Em todo caso, as chamadas telefônicas foram diminuindo, aos poucos. Já no outono de 1943, Hitler adotara o costume de telefonar para Saur, solicitando-lhe os algarismos da produção em cada mês. Não me preocupei com isso. Cabia a Hitler o direito de tirar-me aquilo que me confiara. Entretanto, Bormann tinha boas relações com Saur e com Dorsch –- ambos seus antigos camaradas de partido –, e assim comecei sentir-me inseguro em meu próprio ministério. Cuidei então de firmar minha posição, nomeando cada um dos meus dez chefes de seção representante da indústria. Mas Dorsch e Saur impediram a efetivação de minhas instruções em suas respectivas esferas de ação. Quando vi se acenarem os indícios de que dentro do meu ministério formara-se uma quadrilha, dirigida por Dorsch, no dia 21 de dezembro de. 1943 apliquei uma espécie de "golpe de Estado": escolhi dos meus antigos auxiliares, da época das construções, homens em quem eu podia confiar, e nomeei-os chefes seções de pessoal e de organização, colocando sob as ordens deles a Organização Todt, até então independente. No dia seguinte, livrei-me do mais duro problema do ano de 1943, com suas inumeráveis intrigas e aborrecimentos usuais. Desloquei-me para o mais longínquo e solitário rincão dos territórios ocupados: o norte da Lapônia. Em 1941 e 1942, Hitler não me consentira ir à Noruega, à Finlândia, à Suécia, sob o pretexto de que eram viagens perigosas e me considerava insubstituível. Agora, deu-me licença sem vacilar um minuto.
Quando regressei daquela viagem de inspeção, pelo extremo norte da Europa, poucos dias depois me apresentei no quartel-general do Fuhrer. Por insinuação de Bormann iria haver uma grande reunião, da qual participariam os ministros mais importantes. Nessa reunião seria estabelecido o programa de trabalho para 1944, e Sauckel formularia suas queixas contra mim. No dia anterior, eu propusera a Hitler a solução daquelas divergências, que somente poderíamos esclarecer em uma reunião presidida por Lammers. Hitler reagiu com verdadeira agressividade à minha proposta. Disse-me com um tom de frieza na voz que me proibia influir nos participantes da reunião. E acrescentou que não queria que lhe fossem expostas opiniões já preconcebidas. Ele mesmo adotaria a solução adequada.
Depois daquela repreensão, dirigi-me em companhia dos meus técnicos a Himmler, com quem se reunira, atendendo ao meu pedido, o Marechal Keitel. Eu queria combinar com eles uma tática comum, a fim de impedir que Sauckel voltasse às deportações de operários, tirados dos territórios ocupados, com destino à Alemanha. Keitel, na qualidade de superior de todos os comandantes-chefes, e Himmler, responsável pela ordem pública nos territórios ocupados, temiam que as deportações suscitassem um aumento no número dos guerrilheiros. Combinamos que, durante a reunião, os dois diriam não disporem de efetivos que pudessem agir no novo recrutamento proposto por Sauckel, pois isso iria influir na manutenção da ordem pública. Eu esperava assim terminar com a deportação de operários e incentivar a utilização das reservas alemãs, sobretudo de mulheres.
Parece que Bormann já havia preparado Hitler, no que diz respeito àqueles problemas, tal como eu fizera com Keitel e Himmler. Ao cumprimentar-me, o Fuhrer mostrou-se frio e descortês. Quem o conhecesse, vendo-o assim amuado, evitaria solicitar decisões. Eu deveria ter deixado no fundo da minha carteira as petições mais importantes e exposto somente as mais inócuas. Mas não havia modo de afastar a temática da reunião. Hitler, irritado, cortou-me a palavra:
– Proíbo-o, Sr. Speer, de intentar influir no resultado de uma reunião! Quem está dirigindo os trabalhos sou eu e resolverei sobre o que tiver de ser feito! Note-o bem!
Ninguém teve coragem de enfrentar aquele Hitler colérico. Nem os meus aliados Keitel e Himmler pensaram em expor suas opiniões. Ao contrário, asseguraram a Hitler que de bom grado fariam tudo quanto lhes fosse possível em apoio do programa de Sauckel. Hitler começou a perguntar aos ministros presentes de quantos operários necessitariam para o ano de 1944, e anotou com muito cuidado os pedidos de cada um. Depois dirigiu-se a Sauckel:
– Camarada Sauckel, pode fornecer-nos quatro milhões de trabalhadores, neste ano? Sim ou não?
Sauckel animou-se:
– Naturalmente, meu Fuhrer! Prometo! Pode ter a certeza de que cumprirei minha promessa... mas para isso preciso ter outra vez as mãos livres nos territórios ocupados.
Hitler interrompeu com dureza algumas objeções minhas, no sentido de que uma parte daqueles milhões podiam ser mobilizados na Alemanha. E perguntou:
– Mas, afinal, quem é o responsável pela procura de mão-de-obra? Ê o senhor ou o camarada Sauckel?
E com uma entonação de voz que afastava qualquer veleidade de réplica, ordenou a Keitel que designasse os agentes da execução do programa de recrutamento de operários. Keitel só dizia "sim, meu Fuhrer", e Himmler permaneceu mudo. A batalha já parecia perdida. Em todo caso, tentando salvar alguma coisa, perguntei a Sauckel se podia garantir as necessidades de pessoal das empresas consideradas intocáveis, apesar dos recrutamentos que iria fazer nos países ocidentais. Sauckel, fanfarrão, respondeu que isso não seria motivo de dificuldades. Depois, tentei esclarecer o assunto, de antemão, quanto às prioridades, a fim de obrigar Sauckel a enviar à Alemanha operários somente depois de atendidas as necessidades das referidas empresas; Sauckel concordou com um gesto de mão. Hitler, entretanto, interveio:
– Que mais quer ainda, Sr. Speer? Já não tem as garantias do camarada Sauckel? Depois do que ouvimos, seus reparos com relação à indústria francesa já não têm razão de ser. Continuar a discussão seria fortalecer a posição de Sauckel.
Depois da reunião, Hitler voltou a mostrar-se amável e também dirigiu-me algumas palavras amáveis. A coisa não foi além. O recrutamento não foi posto em prática. É verdade, isso tinha pouca relação com os meus esforços por dificultar os planos de Sauckel mediante meus agentes na França e com o auxílio da Wehrmacht. A perda de autoridade nos territórios ocupados, a força cada vez maior dos maquis (5) e a crescente aversão da administração alemã de ocupação a aumentar as dificuldades com que já se defrontava impediram a realização de todos aqueles projetos.
A reunião no quartel-general do Fuhrer só teve conseqüências para mim. O tratamento que me dispensara Hitler demonstrou a todos que eu estava desprestigiado. O vencedor da disputa entre Sauckel e eu fora Bormann. Desde aquela data, os meus colaboradores, no âmbito industrial, viram-se expostos a ataques, no começo dissimulados, mas logo depois sem disfarces. Tive de defendê-los, cada vez mais freqüentemente, contra suspeitas, na chancelaria do partido, e até mesmo intervir em favor de alguns no Serviço de Segurança.
Nem a última recepção dada à nata do Reich, realizada em local esplêndido, pôde afastar do meu espírito as preocupações. Foi uma festa de gala organizada por Goering, em 12 de janeiro de 1944, comemorativa do seu aniversário. Goering esperava que todos comparecêssemos – e assim foi – levando-lhe presentes valiosos: charutos da Holanda, lingotes de ouro dos Bálcãs, quadros e esculturas de valor. Goering já me dissera que gostaria de possuir um busto monumental de Hitler, em mármore, esculpido por Breker. A mesa onde se expunham os presentes estava na grande sala da biblioteca, e Goering não ocultava sua satisfação em mostrá-la aos convidados. Também sobre a mesa estendiam-se os planos das obras da nova residência, que seria construída em substituição à de Karinhall, onde estava se realizando a festa.
A mesa do banquete, no esplendoroso refeitório, estava coberta de pratos variados, servidos por criados vestidos de libré branca, embora a comida não fosse muito abundante. O discurso de felicitações foi proferido, como nos anos anteriores, por Funk, que elogiou as qualidades e as virtudes de Goering, em palavras eloqüentes, e terminou com um brinde a "um dos maiores alemães". As entusiásticas palavras de Funk contrastavam com o sombrio ocaso do Reich.
Depois do banquete, os convidados distribuíram-se pelas amplas salas de Karinhall. Milch e eu estivemos conversando
(5) Forma reduzida de maquisard, denominação atribuída aos guerrilheiros da Resistência francesa. (N. do E.)
sobre a origem do dinheiro necessário a todo aquele luxo. De onde vinha? Loerzer, antigo amigo de Goering e famoso piloto de caça na Primeira Guerra Mundial, pouco tempo antes enviara a Milch um vagão cheio de objetos provenientes do mercado negro italiano. O conteúdo era de artigos que estavam escasseando, e Milch poderia vendê-lo, no mercado clandestino. Aquela remessa estava acompanhada de uma lista de preços, que tinham sido calculados para darem grande lucro a Milch. Mas este ordenou que as mercadorias fossem distribuídas aos empregados do seu ministério. Pouco depois, Milch ouviu dizer que o dinheiro apurado na venda dos artigos vindos em outros vagões fora levado para os bolsos de Goering. Plagemann, oficial intendente do Ministério da Aviação, encarregado desses negócios para Goering, foi posto, afinal, à disposição do marechal do Reich, deixando de estar subordinado a Milch, que já não podia fiscalizá-lo.
No que dizia respeito aos aniversários de Goering, eu tinha minhas experiências pessoais. Expliquei a Milch que, durante minha permanência no Conselho de Estado da Prússia, eu recebi por ano a quantia de seis mil marcos. Mas, regularmente, todos os anos, eu recebia um aviso de ter sido descontada uma certa importância dos meus vencimentos, destinada à aquisição de um presente de aniversário para Goering. Então, Milch informou-me de que algo parecido ocorria em seu ministério. Por ocasião do aniversário do marechal do ;Reich era creditada ao mesmo uma quantia. Goering então determinava, pessoalmente, qual o quadro que teria de ser comprado com aquele dinheiro.
No entanto, tínhamos certeza de que aquelas quantias poderiam cobrir uma parte do tremendo gasto que Goering fazia. Mas o que não sabíamos era que os industriais contribuíam para as despesas de Goering. Milch e eu podíamos Comprovar a existência daqueles industriais quando um de nós era chamado pelo telefone para ser censurado pelo marechal do Reich, se um dos industriais seus amigos era tratado Com desatenção por alguma das nossas repartições.
Minha recente viagem à Lapônia, com suas novidades, de que ainda me lembrava, apresentava grande contraste com esse mundo corrompido e hipócrita. Também a insegurança da minha posição, junto a Hitler, magoava-me mais do que eu supunha. Em tais momentos, a contínua tensão de quase dois anos não diminuía. Aos trinta e oito anos, eu me sentia quase fisicamente esgotado. A dor no joelho não me deixava. Eu já não dispunha de reservas de energia. Ou seria tudo, simplesmente, a ânsia de fuga?
No dia 18 de janeiro de 1944, dei entrada em um hospital.
DOENÇA
O Professor Gebhardt, general-de-divisão das SS, conhecido em todo o mundo esportivo europeu como especialista em lesões do joelho, era diretor do Hospital Hohenlychen da Cruz Vermelha. O hospital situava-se à margem de um lago, rodeado de bosques, cerca de cem quilômetros ao norte de Berlim. Sem saber, eu caíra nas mãos de um dos poucos amigos íntimos de Himmler. Fui alojado em uma dependência do serviço particular do hospital, ocupando minhas secretárias outros quartos. Instalaram um telefone com comunicação direta para o meu ministério, pois eu tinha a intenção de continuar trabalhando.
Adoecer no Terceiro Reich, sendo ministro, implicava dificuldades notáveis. Freqüentemente, Hitler dispensava os serviços de pessoas de alta categoria, sob pretexto de delicado estado de saúde. Estando eu realmente enfermo, julguei conveniente continuar trabalhando. Ademais, como Hitler, eu não tinha substituto capacitado. Assim, não cessavam os telefonemas, às vezes até a meia-noite, não obstante os esforços dos meus companheiros no sentido de eu ter tranqüilidade.
Mal eu tinha entrado no hospital, recebi um telefonema de Bohr, chefe do pessoal. Indignado, informou-me de que Dorsch tinha mandado para a chefia da Organização Todt um armário fechado, para a guarda de papéis do expediente, que estava no gabinete de Bohr, Ordenei que o armário .continuasse no mesmo lugar. Alguns dias depois, Segundo informação de Bohr, apresentaram-se no ministério membros da Chefia Regional de Berlim, acompanhados de homens para a mudança de móveis, inclusive aquele armário, propriedade do partido. Bohr não soube o que fazer. Graças a uma conversa telefônica com Naumann, um dos mais chegados auxiliares de Goebbels, foi possível adiar a mudança do referido armário, cuja porta, aliás, foi selada por aqueles funcionários do partido. Eu então dei ordem para que se desatarrachasse o fundo. No dia seguinte, apresentou-se Bormann com um pacote de fotocópias de expedientes relativos a antigos auxiliares meus.
Quase todos os expedientes continham notas depreciativas sobre aqueles meus funcionários, acusados de conduta hostil ao partido, exigindo-se até a vigilância da Gestapo sobre eles. Verifiquei então que o partido dispunha de um indivíduo de sua confiança dentro do ministério: Xaver Dorsch. Para mim isto foi uma surpresa menor do que o nome referido.
Desde o outono eu tencionava promover um funcionário, do meu ministério, malvisto pela camarilha que nos últimos meses se tinha organizado dentro dele. O.meu primeiro chefe de pessoal não cessava de apresentar razões contrárias àquela promoção. Antes de adoecer, eu recebera de Bormann uma brutal negativa à promoção daquele funcionário. Agora, examinando aquelas fotocópias, vi, entre os expedientes guardados naquele armário, o rascunho do escrito de Bormann. Segundo se demonstrou, aquele rascunho fora feito por Dorsch e por meu antigo chefe de pessoal, Haasemann, tendo sido literalmente copiado por Bormann no escrito que me enviou. Ora, os delegados do partido nos ministérios de Berlim estavam sob as ordens de Goebbels, chefe regional de Berlim. No meu leito de doente, falei, por telefone, com Goebbels. Este logo se manifestou favorável ao meu ponto de vista, no sentido da promoção do meu antigo auxiliar, Frank, dizendo:
– É uma situação inconcebível a de haver um governo atuando paralelamente ao governo estabelecido. Todos os ministros são na atualidade membros do partido. Ou confiamos neles ou então que se afastem.
No entanto, fiquei sem saber quais os agentes da Gestapo dentro do meu ministério.
Ainda mais difíceis foram os meus esforços por sustentar minha posição durante a doença. Tive de pedir a Klopfer, subsecretário de Bormann, que mantivesse dentro dos seus limites as autoridades do partido, para que não criassem dificuldades aos industriais. Por sua vez, Sauckel, aproveitando-se da minha ausência, havia conclamado os que estavam se empenhando na indústria de armamentos a que "fizessem o máximo esforço possível". Como os meus inimigos estavam se aproveitando da minha ausência para agirem às escondidas, dirigi-me a Hitler. Enviei-lhe vinte e três páginas, datilografadas em quatro dias – sinal de nervosismo –, queixando-me das pretensões de Sauckel, da atuação dos conselheiros regionais de Bormann, pedindo-lhe enfim que fossem confirmadas, incondicionalmente, todas as prerrogativas do meu cargo, para que eu pudesse desempenhar minhas funções sem embaraços.
Quatro dias depois daquela missiva, escrevi outra vez a Hitler. Com uma franqueza que, na realidade, não estava mais de acordo com a situação existente entre nós, informei-o da existência da camarilha que, no ministério, por trás de mim, opunha obstáculos à execução das minhas ordens. Esclareci que eu fora enganado: um pequeno grupo de antigos colaboradores de Todt, encabeçado por Dorsch, faltara à lealdade que me era devida. Por isso eu me via na contingência de substituir Dorsch por uma pessoa de minha confiança.
Sem dúvida, fora muito inábil a minha última carta, na qual, sem pedir autorização, comunicava a Hitler a destituição de um dos seus favoritos. Isso contrariava as normas do regime.
Além disso, eu remetera a Bormann uma cópia das minhas queixas, o que era loucura ou provocação. Agindo assim, eu esquecia as lições da experiência, em desacordo com o que se deveria fazer no mundo de intrigas que rodeava Hitler.
A doença me afastara muito de Hitler, que não reagiu – nem positivamente, nem negativamente – às minhas propostas, petições e queixas. Eu falara no vazio, pois não me veio nenhuma resposta do Fuhrer. Eu deixara de ser o ministro favorito de Hitler, um dos seus possíveis sucessores. Algumas insinuações de Bormann e algumas semanas de hospitalização afastaram-me do cenário político. Essa separação foi influenciada pela tendência que eu já notara em Hitler de riscar da sua lista, sem mais nem menos, quem quer que se afastasse da sua faixa visual por algum tempo. Se tal pessoa reaparecesse, poderia voltar a figurar no rol das pessoas lembradas. Enquanto estive doente, verifiquei isso várias vezes. Mas não me zanguei nem desesperei por isso. Talvez por esgotamento físico, eu estava resignado com a minha nova situação.
Afinal, eu soube, não de maneira direta, que Hitler não tinha intenção de renunciar a Dorsch, seu companheiro no decênio de 20. Ao contrário, distinguiu-o, quase em público, concedendo-lhe entrevistas, em que lhe falava, cordialmente, fortalecendo a posição dele em relação a mim. Goering, Bormann e Himmler aproveitaram-se das circunstâncias para diminuir minha autoridade de ministro. Agiam contra mim, isoladamente, por motivos diferentes. Já não era possível pensar na demissão de Dorsch.
Durante vinte dias, estendido na cama, estive com a perna engessada, dispondo de tempo para refletir sobre os desenganos e aborrecimentos. Quando me levantei de novo, poucas horas depois senti fortes dores nas costas e no tórax, com uma expectoração sanguínea, que poderia ser sintoma de edema pulmonar. Mas o Professor Gebhardt diagnosticou reumatismo muscular e prescreveu massagens no tórax com Forapin, além de ordenar que me dessem sulfas, quinino e barbitúricos. Dois dias depois, sofri um segundo e forte ataque das dores. Preocupei-me, mas o doutor insistia em seu tratamento. Minha esposa falou ao Dr. Brandt, que mandou vir de Berlim o Professor Friedrich Koch, interno da universidade, colega de Sauerbruch. Brandt, médico particular de Hitler, deu a Koch a exclusiva responsabilidade do meu tratamento e proibiu ao Dr. Gebhardt que tomasse a meu respeito qualquer providência de caráter médico.
Segundo o relatório do Professor Koch, durante três dias meu estado foi "extraordinariamente perigoso". Quando melhorei, uma noite, tive uma conversa íntima com o Professor Koch. O assunto foi muito singular. Disse-me que, durante a minha crise, Gebhardt lhe insinuara uma pequena intervenção cirúrgica. Na opinião do Professor Koch, essa pequena operação seria um risco de vida para mim. No começo, o Professor Koch fingiu não entender o motivo daquela insinuação de Gebhardt; mas, quando este insistiu, Koch recusou-se terminantemente a concordar, e então Gebhardt alegou que apenas pretendera pôr à prova os conhecimentos de Koch.
Frank pediu-me que não revelasse nada, pois o Professor Koch poderia desaparecer, indo para um campo de concentração. Tive portanto de guardar segredo. Nem me era possível confiar em Hitler. A minha denúncia provocaria nele um acesso de cólera, dizendo ser impossível o que eu lhe dizia, e premindo o botão da campainha chamaria Bormann para ordenar-lhe que prendesse o difamador de Himmler.
Himmler tinha a fama de homem cruel, frio e pertinaz. Ninguém se atrevia a enfrentá-lo, seriamente. A ocasião se lhe afigurava muito favorável, pois eu não teria resistido a qualquer complicação. Mais tarde, em Spandau, Funk narrou-me detalhes de um assunto a respeito do qual, em 1944, apenas se atrevera a fazer vagas alusões. No outono de 1943, no Estado-Maior das SS, houvera uma reunião, sugerida por Sepp Dietrich, da qual tinham participado, além de Gebhardt, também Horst Walter, ajudante e amigo de Funk, durante muitos anos, e agora auxiliar de Dietrich. Naquele círculo de chefes das SS, Gebhardt dissera que, na opinião de Himmler, Speer era um perigo e teria de desaparecer.
Embora meu estado de saúde não permitisse uma mudança, eu me sentia profundamente intranqüilo e queria mudar-me. Em 19 de fevereiro, ordenei que se procurasse outro hospital. Gebhardt opôs argumentos médicos à minha idéia, e quando, em princípio de março, me levantei da cama, tratou mesmo de impedir minha transferência. Mas não tardou que um hospital próximo fosse atingido pelas bombas dos aviões da Frota Aérea norte-americana. Gebhardt, da noite para o dia, mudou de opinião a respeito das minhas condições para a mudança, supondo que o bombardeio tivesse sido dirigido contra mim. No dia 17 de março pude sair daquele lugar terrível.
Pouco antes de terminar a guerra, perguntei a Koch o que tinha havido afinal comigo. Não quis ir além da referência a uma sua discussão com Gebhardt, que lhe dissera ser também um "médico político".
Em 23 de fevereiro de 1944, Milch visitou-me. Disse-me que as frotas aéreas norte-americanas VIII e XV tinham concentrado seus bombardeios sobre a indústria alemã de aviões. Em conseqüência, no mês seguinte a produção alcançaria apenas um terço da do mês anterior. Levava consigo uma proposta escrita: como o chamado Estado-Maior do Ruhr trabalhava com grande êxito no reparo dos danos causados pelos bombardeios, na bacia daquele rio deveria constituir-se um "Estado-Maior de Caça", a fim de, mediante esforço comum, vencerem-se as dificuldades em ambos os ministérios, no que dizia respeito ao armamento aéreo. Naquela situação, a atitude mais inteligente seria a resposta evasiva, mas eu queria, pelo menos, fazer o possível para ajudar a Luftwaffe, e concordei com a proposta. Milch e eu sabíamos que esse Estado-Maior de Caça seria o primeiro passo para a futura fusão das armas e também do III Exército com o meu ministério.
Minha primeira providência foi telefonar a Goering, que se negou a assinar uma proposta para o trabalho em comum. Não aceitei a negativa de Goering. Comuniquei-me pelo telefone com Hitler, que achou a idéia boa, embora demonstrasse frieza quando lhe falei do chefe regional Hanke para a chefia do Estado-Maior de Caça. Disse-me então:
– Cometi um grande erro encarregando Sauckel do recrutamento de operários, pois, na qualidade de chefe regional, tem de tomar decisões irrevogáveis e, no entanto, agora, há de estar fazendo acordos e buscando normas de ação. Jamais consentirei que um chefe regional proceda desse modo.
Hitler estava se aborrecendo no decurso da conversa e afirmou:
– O exemplo de Sauckel prejudicou o princípio de autoridade de todos os chefes regionais. Quem vai se encarregar daquela função será Saur.
Ele, que se referira à minha atitude política pessoal, pela segunda vez, interrompeu bruscamente a conversa. Seu tom de voz fora hostil e frio, talvez motivado por algum outro aborrecimento. Milch também preferira Saur, razão pela qual aceitei sem reservas a ordem de Hitler.
Meus anos de experiência já me haviam ensinado a entender as atitudes de Hitler, quando alguém completava anos ou estava doente. Seu secretário recordava-lhe uma data natalícia ou a doença de alguém. Um breve "flores e cartão" significava um texto já costumeiro, apresentado à sua assinatura, ficando a escolha das flores a cargo do secretário. Em tais casos, valia por uma deferência acrescentar Hitler algumas palavras, por ele mesmo escritas. Quando se tratasse de pessoas a quem estimasse de modo especial, ele pedia papel e pena para redigir algumas frases, escolhendo às vezes quais as flores que deveriam acompanhar a missiva. Por isso, estando no hospital, quando recebi um ramalhete de flores e uma carta de texto vulgar, escrita a máquina, senti que, embora ainda um dos membros importantes do governo, eu descera ao último degrau no terreno da estima pessoal. Doente, minha reação foi mais viva do que o necessário, porquanto Hitler chamou-me três vezes ao telefone para inteirar-se do meu estado, ao mesmo tempo em que me atribuía a culpa da minha doença.
– Por que o senhor foi esquiar no norte? Sempre lhe alertei.
O Professor Koch não queria de modo nenhum me defender.
– Isso é loucura. Ter de andar com aquelas pranchas nos pés! Logo que puder, queime-as!
Pretendeu assim concluir a conversa com um gracejo: que os meus pulmões se expusessem aos ares de montanha de Oberdzberg. No parque do Palácio de Klessheim, a residência que Hitler designava para seus convidados, próxima de Salzburgo, os príncipes e bispos tinham mandado construir pelo mestre do barroco Fischer Von Erlach um pavilhão de deliciosas linhas curvas, conhecido pelo nome de Palácio da Folha de Trevo. Esse edifício reformado me foi designado, em 18 março, para minha residência, pois no palácio principal hospedado naqueles dias o "regente" húngaro Horthy estava confabulando negociações que terminariam vinte e quatro horas depois com a última entrada das tropas de Hitler em um estrangeiro: a Hungria. Na mesma noite da minha chegada, no intervalo de uma das conferências, Hitler fez-me visita.
Depois de dez semanas sem vê-lo, notei-lhe o formato do nariz, a palidez e a fisionomia repelente, o que indicava que eu começava a olhar para ele sem preconceitos. Depois de sugestão e de atividade febril, pela primeira vez eu detectava as falhas em minhas relações com Hitler. Antigamente, bastariam poucas palavras suas para reanimar-me. Agora, sentia-me cansado e abatido depois do encontro, e minha única ração era ir o mais breve possível para Meran, com minha esposa e meus filhos, passar ali muitas semanas, recuperar minhas forças, embora sem saber para quê, pois eu já não tinha mais objetivo na vida.
No entanto, voltou minha vontade de permanecer em posição, quando, durante os cinco dias de permanência em Klessheim, notei que, mediante intrigas, estavam tratando alijar-me do cargo, definitivamente. No dia seguinte ao do aniversário, Goering telefonou-me para me dar seus parabéns. Disse-lhe que estava bem, apesar do exagero dessa afirmativa, e Goering manifestou-me sua satisfação, mas gritou:
– Ouça, o que o senhor informa não é verdade, de nenhum! O Professor Gebhardt disse-me que o senhor gravemente doente do coração e não há esperança de melhoras; procure saber ao certo. O senhor não tem noção do seu verdadeiro estado de saúde.
Logo em seguida, usando de mil palavras para elogiar-me pelo trabalho que realizei, Goering insinuou que estava prevista a minha substituição. Observei-lhe que as radiografias e eletrocardiogramas nada revelaram. Goering replicou dizendo que me tinham informado mal e recusou aceitar as minhas explicações. Fora Gebhardt quem dera tais informações a Goering.
Também Hitler, visivelmente impressionado, disse a um grupo de pessoas que o rodeavam, entre as quais estava minha mulher:
– Não se pode contar mais com Speer.
Fora Gebhardt quem lhe dissera que eu era uma ruína humana, incapaz de trabalho. Talvez ele pensasse em nossos sonhos arquitetônicos, em cuja realização eu não poderia mais tomar parte, devido a uma incurável doença cardíaca; talvez pensasse na prematura morte do seu primeiro arquiteto, o Professor Troost. De qualquer modo, no mesmo dia, voltou a visitar-me em Klessheim para surpreender-me com um enorme ramalhete de flores, carregado nos braços do seu criado, gesto que me pareceu estranho da parte de Hitler. Algumas horas depois de retirar-se o Fuhrer, apresentou-se Himmler para comunicar-me, oficialmente, que Hitler ordenara a Gebhardt, na qualidade de general-de-divisão das SS, que ele como médico velasse pela minha segurança e saúde. Assim, foi dispensado o interno que cuidava de mim. E uma escolta das SS, confiada a Gebhardt para proteger-me, estava sob as ordens desse general-de-divisão.
No dia 23 de março, Hitler voltou a visitar-me, agora para despedir-se, como se tivesse notado o meu sentimento de distância com relação a ele, no decurso da minha doença. De fato, apesar das suas demonstrações de cordialidade, como outrora, a minha disposição íntima se alterara de maneira sensível. Naturalmente, eu compreendia que para um homem sobrecarregado de trabalho, como Hitler, submetido sempre à máxima tensão mental, justificava-se descuidar-se dos auxiliares afastados da sua presença. Mas em sua conduta nas últimas semanas demonstrava-se como eu valia pouco entre as pessoas que o rodeavam e como ele não se dispunha a orientar-sé pela sensatez e pela imparcialidade em suas decisões. Talvez por haver notado minha frieza, talvez para consolar-me, disse, com acento tristonho na voz, que sua saúde também estava gravemente comprometida e que havia indícios de possibilidade de cegueira. Não fez nenhum comentário quando o informei de que o Dr. Brandt daria os necessários esclarecimentos sobre as condições do meu coração.
O Castelo de Goyen situava-se sobre uma colina que dominava Meran. Lá transcorreram as seis semanas mais felizes do meu tempo de ministro, aquelas que pude passar junto de minha família. Gebhardt estabeleceu o seu quartel-general no vale, longe da minha residência, utilizando-se apenas do direito de regular o horário das visitas.
Durante minha permanência em Meran, Goering, sem me consultar ou sequer informar-me, fazia-se acompanhar de Dorsch e Saur, quando ia falar a Hitler, demonstrando uma atividade que não era a sua habitual. Ele desejava aproveitar a oportunidade para obter outra vez a posição de segundo homem do Reich, depois dos reveses sofridos nos últimos anos, fortalecendo à minha custa a posição desses meus dois auxiliares, que não lhe ofereciam nenhum perigo. Propalou o boato da minha destituição e perguntou ao chefe regional do Alto Danúbio, Eigruber, qual a opinião do partido a respeito do diretor-geral Meindl, amigo dele, Goering. Justificou a pergunta com o pretexto de apresentar Meindl como meu sucessor, em entrevista com Hitler. Ley, um dos chefes nacionais do partido, que desempenhava muitos cargos, também formulou suas pretensões. Sem ter sido consultado, declarou:
– Se Speer sair, eu também posso encarregar-me do trabalho do seu ministério.
Por outro lado, Bormann e Himmler trataram de desvalorizar perante Hitler os meus restantes chefes de seção, levantando suspeitas. Por via indireta, porquanto Hitler não julgava necessário informar-me, eu soube que as acusações contra os três – Liebel, Waeger e Schieber – chegaram a tal ponto que já se contava com a demissão. Além de Fromm, Zeitzler, Guderian, Milch e Doenitz, só ministro da Economia foi quem me demonstrou estima, entre os demais do pequeno círculo dos dirigentes do partido, até a minha doença.
Para evitar os efeitos dos bombardeios aéreos, Hitler insistia na instalação subterrânea das fábricas e grandes refúgios do tipo casamata. Eu já lhe explicara que não se podia lutar com cimento armado contra aviões de bombardeio. Ademais, seriam necessários anos para instalar debaixo da terra ou sob estruturas de cimento as fábricas de armamentos. Para sorte nossa, o inimigo atacava uma vasta região do interior onde havia milhares de braços de valor secundário. Mediante a proteção do interior, obrigaríamos o inimigo a dirigir os ataques no rumo das instalações das indústrias concentradas em um vale fluvial, estreito e profundo. Eu pensava na química, no carvão, nas centrais elétricas e em outros pesadelos. Se, na primavera de 1944, os Estados Unidos e a Inglaterra tivessem podido arrasar as instalações de uma daquelas indústrias, teriam sido ilusórios todos os outros nossos esforços para proteger o fabrico de armamentos.
No dia 14 de abril, Goering tomou a iniciativa e convocou Dorsch para uma entrevista. Declarou que só imaginava a construção dos grandes refúgios se a mesma fosse entregue à Organização Todt. Dorsch contestou, alegando que aquelas construções, dentro das fronteiras do Reich, não eram da competência da mencionada organização, encarregada de obras nos territórios ocupados. No entanto, podia apresentar um projeto já terminado para a França. Na mesma noite, Dorsch foi chamado por Hitler, que lhe disse:
– Ordenarei que, no futuro, também na Alemanha essas obras sejam feitas somente pelo senhor.
Hitler não tinha julgado necessário manter-me ao corrente das providências que estavam sendo tomadas e que estavam minando a minha posição. Sem dúvida, meu orgulho ferido e o ressentimento pelos vexames sofridos influíram na carta que lhe escrevi, em 19 de abril, na qual expunha, abertamente, minhas dúvidas a respeito do acerto das decisões adotadas. Essa foi a primeira de uma extensa série de cartas e memoriais, em que, freqüentemente disfarçado sob diferenças de opinião, vinha-se realizando o meu processo de independência, uma tomada de consciência de mim mesmo, depois de anos de limitada percepção do sentido dos fatos, o que se devia ao fascínio de Hitler. Disse-lhe ser ilusório iniciar-se agora a construção em larga envergadura, porquanto essas obras mal poderiam atender a necessidades mais indispensáveis, alojamento dos operários alemães, a mão-de-obra estrangeira e a reconstrução das nossas fábricas de armamentos. Já não me defronto com a escolha de obras a longo prazo.
Agora tenho de, continuamente, paralisar as construções de fábricas de armamentos, a fim de criar condições prévias imprescindíveis à manutenção da produção alemã de armamentos nos próximos meses. Depois de expor as diferenças em nosso modo de entender as coisas, censurei a Hitler não se haver conduzido corretamente, nesse particular. Disse-lhe que sempre adotei a conduta de dar liberdade de ação aos meus auxiliares, não obstante alguns desenganos, decorrentes da natureza humana. E prossegui: "No entanto, as minhas decepções não me impediram jamais de continuar apegado a esse princípio, que, em minha opinião, é o único que nos permite governar e criar, quanto mais elevada for a nossa posição". Observei que, naquela hora, a economia da construção e a dos armamentos eram um todo indivisível. Dorsch poderia continuar à frente das obras nos territórios ocupados; mas, no território alemão, desejava entregar a direção das obras a Willi Henne, antigo colaborador de Todt. Ambos desempenhariam seus encargos sob a direção única de Walter Brugmann, leal colaborador nosso. Hitler repeliu minhas propostas, e Brugmann morria, cinco semanas depois, no dia 26 de maio de 1944, como o seu predecessor Todt, em um acidente de aviação, cujas circunstâncias não foram bem esclarecidas. Minha carta foi entregue a Hitler na véspera do seu aniversário pelo meu antigo auxiliar Frank. Acrescentei-lhe o pedido de demissão no caso de não coincidir a opinião dele com a minha. Soube depois, pela primeira secretária de Hitler, Johanna Wolf, que o Fuhrer enfureceu-se extraordinariamente com a minha carta e disse:
– Speer deve saber que no seu caso há uma razão de Estado.
Mal eu fora informado – de maneira indireta, como e – da reação de Hitler, recebi de Goering um telefonema, procedente de Obersalzberg. Disse-me ter sabido da intenção de demitir-me, mas cabia-lhe dizer-me que o Fuhrer resolveria a respeito do afastamento de um ministro. A conversa durou cerca de meia hora até chegarmos a um acordo:
– Em vez de demitir-me – afirmei –, vou prolongar a estada no hospital e silenciosamente desaparecer como ministro. Goering aceitou minha proposta, entusiasmado.
– Se for essa a solução – comentou Goering –, podemos aceitar. E o Fuhrer estará de acordo.
Fossem quais fossem os motivos, em todo caso agradava-me a idéia de afastar-me. Quase todos os dias eu via no céu azul meridional os mensageiros do fim da guerra, quando em altura muito baixa os bombardeiros da XV Frota Aérea norte-americana, levantando vôo das bases italianas, sobrevoavam os Alpes para atacar as fábricas alemãs. Não se via nenhum caça, não se ouvia nenhum disparo de artilharia antiaérea. Esse aspecto da nossa total e absoluta incapacidade defensiva impressionava mais do que qualquer relatório. Se até então fora possível a substituição de armamento perdido, durante as retiradas, agora – pensava eu, cheio de pessimismo –j à vista da ofensiva aérea inimiga, tudo iria terminar em breve. Que havia de mais óbvio do que aproveitar a oportunidade oferecida por Goering, não ficar em posição de responsabilidade e desaparecer silenciosamente, pois a catástrofe aproximava-se de maneira cada vez mais evidente? No entanto, apesar das divergências, não me veio a idéia de forçar a minha demissão, de provocar assim o final de Hitler e do seu regime. E, ainda hoje, eu pensaria talvez do mesmo modo.
Meus pensamentos de fuga foram interrompidos, na tarde do dia 20 de abril, pela visita de Rohland, meu auxiliar mais chegado. Tinham chegado aos ouvidos dos industriais rumores da minha intenção de demitir-me e Rohland vinha ver-me para convencer-me a desistir dessa idéia.
– A indústria apoiou o senhor até hoje e não é justo entregá-la de pés e mãos atados aos que vierem depois do senhor. Já se pode imaginar como serão. E, antes de tudo, uma coisa é decisiva para o nosso futuro: a preservação do potencial industrial necessário para o período seguinte à der rota em uma guerra. Essa é a razão pela qual o senhor deve permanecer no seu cargo.
Pelo que me lembro, foi essa a primeira vez em que ouvi falar da "terra calcinada". Continuando a falar, Rohland referiu-se ao perigo de uma chefia desesperada ordenar destruições a torto e a direito. Naquele momento, senti nascer em meu íntimo algo independente de Hitler, algo que somente se referia ao povo e à nação, um vago e obscuro sentimento de responsabilidade.
Algumas horas depois, cerca de uma da madrugada, vieram visitar-me o Marechal Milch, Saur e o Dr. Frank.
Tinham feito o caminho à tardinha e vinham de Obersalzberg. Milch trazia-me uma mensagem de Hitler, em que ele manifestava sua estima, em elevado grau, afirmando continuar inalterável sua amizade. Isso até parecia uma declaração de amor. Mas, vinte e três anos mais tarde, eu soube por Milch que sua insistência foi a causadora daquela carta. Poucas semanas antes, eu me teria comovido, sentindo-me ao mesmo tempo feliz com tamanha distinção. No momento, reagi à mensagem de Hitler com as seguintes palavras:
– Não! Estou farto, não quero mais saber desse assunto!
Milch, Saur e Frank insistiram. É bem verdade que eu julgava insincero e indigno de crédito o comportamento de Hitler. No entanto, eu não desejava encerrar minha atividade ministerial depois de Rohland ter lançado sobre meus ombros uma nova responsabilidade. Transcorreram horas, até que cedi, sob a condição de que Dorsch voltasse a ser meu subordinado e fosse restabelecida minha situação anterior. Quanto à questão dos grandes refúgios, eu estava disposto a ceder; eu já não me interessava nisso. No dia seguinte, Hitler assinava um decreto, que eu redigira durante a noite, mediante o qual Dorsch continuaria construindo os refúgios com a máxima urgência, mas sob a minha autoridade.
Três dias depois, entretanto, compreendi que havia tomado uma resolução apressada. Resolvi escrever mais uma vez a Hitler, porquanto aquela resolução me levaria a uma situação muito ingrata. De fato, se eu apoiasse Dorsch, na construção de grandes obras, facilitando-lhe materiais e mão-de-obra, ver-me-ia na desagradável contingência de ouvir e rejeitar as queixas das autoridades do Reich cujos empreendimentos fossem prejudicados pela minha atuação. E, se eu não atendesse às exigências de Dorsch, então ficaríamos troçando ofícios de queixa e de "cobertura" para a situação. Portanto, o mais lógico seria – continuei em meu memorial – Dorsch aceitar também a responsabilidade dos demais projetos de obras "cuja execução seria prejudicada pela construção dos grandes refúgios". Em suma, minha proposta foi a seguinte: nomear Dorsch "inspetor-geral das construções", subordinado diretamente a Hitler. Qualquer outra solução iria <lar margem a dificuldades de índole pessoal entre Dorsch e mim.
Mas enquanto eu escrevia me veio a idéia de interromper o período da minha convalescença e dirigir-me a Obersalzberg para falar a Hitler. Isso produziu mais dificuldades. Gebhardt referia-se aos plenos poderes que lhe conferira o Fuhrer e fazia restrições quanto ao meu estado de saúde. Mas, alguns dias antes, o Professor Koch me dissera que eu podia viajar de avião, sem nenhuma preocupação. Finalmente, Gebhardt falou com Himmler pelo telefone e este concordou com a minha viagem de avião, contanto que fosse visitá-lo antes de falar com Hitler.
Himmler usou de franqueza, o que em tais circunstâncias concorria para aliviar tensões. Observou que a separação entre o setor das construções e o do Ministério dos Armamentos, pela transferência daquele setor a Dorsch, já fora há tempos decidida em entrevistas com Hitler, das quais participara Goering. Ele, Himmler, solicitava-me não suscitar mais dificuldades, a partir daquele momento. Sem dúvida, isso significava uma intromissão na esfera das minhas atividades. Mas os pensamentos de Himmler correspondiam aos meus e a conversa terminou em ambiente de cordialidade.
Apenas cheguei em minha casa, em Obersalzberg, o ajudante-de-ordens de Hitler veio convidar-me para o chá comum. Mas eu pretendia falar a Hitler em caráter oficial, pois o ambiente de intimidade, durante o chá, limaria os ressentimentos. Sendo isso o que eu pretendia evitar, recusei o convite. Hitler compreendeu a razão da minha atitude e não demorou em marcar a data da audiência no Berghof.
Usando o quepe do uniforme e de luvas na mão, Hitler aguardava-me na entrada do Berghof, para receber-me em caráter oficial. Levou-me depois à sala de estar, como se eu fosse um convidado do Estado. Eu estava preocupado, pois ignorava qual a intenção de Hitler ao proceder daquele modo. Desde então minhas relações com ele entraram em fase crítica. Distinguia-me então com deferências oficiosas, às quais eu não era indiferente, mas, também, eu sentira que a sua atuação política estava sendo cada vez mais fatídica para o povo alemão, fato de que eu vinha tendo consciência, paulatinamente.
Durante a cordial recepção e a conversa que se seguiu, as frentes tiveram um curioso deslocamento: agora, Hitler não queria renunciar à minha colaboração. Quando lhe falei da minha proposta a respeito da jurisdição de Dorsch, ele recusou-a, dizendo:
– Não farei essa separação, de modo nenhum. Nem disponho de alguém a quem eu possa encarregar de tudo quanto se refere à construção. Desgraçadamente, o Dr. Todt morreu, como sabe, Sr. Speer, e isso para mim afeta o setor da construção. Compreenda o senhor. E vou dizer-lhe uma coisa: estou de antemão de acordo com todas as providências que o senhor julgar convenientes.
Hitler contradizia-se, porquanto, poucos dias antes, na presença de Himmler e de Goering, decidira nomear Dorsch. Procedera sempre assim. Naquele momento não meditara sobre suas palavras nem se preocupara com o que Dorsch pudesse pensar. Tal arbitrariedade era um sinal eloqüente da sua funda aversão ao gênero humano. Observei a Hitler que seria necessário tomar uma resolução a longo prazo, ao que ele objetou:
– Minha resolução é definitiva. Não penso em alterá-la, de modo nenhum.
Em seguida passou a falar dos meus três chefes de seção, cuja demissão aliás eu já esperava.
Terminada a conversa, Hitler conduziu-me ao vestiário, colocou na cabeça o quepe, segurou as luvas, e dispunha-se a acompanhar-me até à porta, quando, tomando um tom de fala informal, eu lhe disse que tinha de ir ao pavimento superior para falar com Von Below, oficial da Luftwaffe. À noite, participei da antiga mesa-redonda, rodeado de Hitler, Eva Braun e os demais membros daquele círculo íntimo. A palestra transcorria desanimada e Bormann propôs que se ouvissem alguns discos. O primeiro foi uma ária de Wagner; em seguida, O morcego.
Depois de idas e vindas, de tensões e de convulsões, nos últimos meses, naquela noite experimentei um sentimento de tranqüilidade. Pareciam extirpadas as causas do conflito. A insegurança, durante as últimas semanas, me havia afetado profundamente. Não podia continuar trabalhando sem sentir-me estimado. E agora podia considerar-me vencedor de uma luta pelo poder, que tinha sido dirigida por Goering, Himmler e Bormann. Sem dúvida, os três sentiam-se ludibriados, pois estavam certos de me atirarem à sarjeta. Mas, analisando a complexidade dos motivos que me tinham impelido a voltar ao círculo íntimo de Hitler, de modo tão surpreendente, vi que uma das razões fora o desejo de continuar usufruindo da posição de mando. De fato, apesar da minha disposição à renúncia, eu não resistiria aos estimulantes da embriaguez do poder. As restrições suscitadas em meu espírito pelos recentes eventos foram olvidadas, sob o impacto do apelo dos industriais e da forte e inalterável capacidade de fascinar exercida por Hitler. Sem dúvida, nossas relações tinham sofrido um rude golpe, a lealdade achava-se em situação instável, não voltando a ser o que era antes. Mas, naquele momento, eu regressava ao círculo dos íntimos de Hitler, e estava satisfeito.
Dois dias depois, acompanhado de Dorsch, voltei a falar com Hitler, a fim de apresentar-lhe o recém-nomeado chefe do setor de construções. Hitler reagiu tal como eu esperava:
– Deixo inteiramente à sua discrição, querido Speer, adotar em seu ministério todas as disposições que julgar necessárias. Compete-lhe nomear a quem quiser. Naturalmente, estou de acordo com a nomeação de Dorsch. Mas é inteiramente sua a responsabilidade do setor de construções.
Isso tinha o significado de uma vitória. Mas eu aprendera que as vitórias não valiam muito. Amanhã, tudo poderia estar diferente.
Com frieza deliberada comuniquei a Goering a nova situação. Eu já tinha deixado de lhe dar importância, quando nomeei Dorsch meu representante no setor de construções do Plano Quadrienal. E escrevi-lhe com segunda intenção, sarcástico: "Suponho que o senhor estará de acordo com esta nomeação, dada a confiança que deposita no diretor-geral Sr. Dorsch". Goering respondeu com poucas palavras e algo de desgosto: "Muito de acordo com tudo. Já coloquei Dorsch à frente de todo o setor de construção da Luftwaffe".
Himmler não deu sinal de nenhuma reação. Em tais circunstâncias, ele era escorregadio como uma enguia, não se deixando apanhar. Quanto a Bormann, o vento começou visivelmente a soprar do meu lado, pela primeira vez, depois de dois anos. Percebeu, imediatamente, a importância do meu êxito e do malogro das trabalhosas intrigas, nos últimos meses. Sofrendo, sem dúvida, pela maneira como eu o tratava, pois nem sempre lhe dirigia um olhar, aproveitou a primeira oportunidade para declarar-me que não participara das intrigas tramadas contra mim. Disse-me isso com exagerada amabilidade, durante uma das idas do nosso grupo para a casa de chá.
Pouco tempo depois, convidou-nos – Lammers e eu – a ir à sua casa em Obersalzberg, mobiliada vulgarmente. De modo imprevisto, quase insistindo, fez-nos beber, e à meia-noite disse-nos que podíamos tratar-nos por tu. Isso não o impediu de, mais adiante, criar uma situação embaraçosa para Lammers, enquanto aceitava minhas desatenções com uma cordialidade crescente.
No meado de maio de 1944, por ocasião de uma visita aos estaleiros de Hamburgo, o chefe regional Kaufmann disse-me confidencialmente que, apesar de haver transcorrido mais de meio ano, não se extinguira o desagrado suscitado pelo meu discurso dirigido aos chefes regionais. Bormann apoiava-os e Kaufmann preveniu-me contra o perigo que me ameaçava por esse lado.
Julguei aquela informação suficientemente grave, e assim, no decurso de nossa primeira conversa, posteriormente, referi a Hitler o que me fora transmitido. Ele me distinguira ainda uma vez, convidando-me a ir vê-lo pela primeira vez em seu gabinete revestido de madeira, no primeiro pavimento do Berghof, onde costumava conceder as entrevistas de caráter muito pessoal ou muito íntimas. Com um tom de voz particular, quase como se eu fosse seu amigo íntimo, aconselhou-me a evitar tudo quanto pudesse indispor os chefes regionais. Na realidade, eu não deveria subestimar o poder daqueles homens, pois isso me criaria futuros embaraços no desempenho de minhas funções. Esclareceu-me que ele também sabia das dificuldades oriundas do caráter da maioria deles, sendo que muitos eram autênticos simplórios, um tanto bruscos, porém muito leais. Tinham de ser aceitos tais como eram. Deu-me também a entender que não estava disposto a deixar-se influenciar por Bormann, no tocante à atitude dele, Hitler, para comigo.
– Sem dúvida, recebi queixas, mas, quanto a mim, o assunto está liquidado.
Estas palavras significavam também o malogro da ofensiva de Bormann.
De qualquer modo, entretanto, Hitler revelou-se presa de sentimentos opostos, quando me comunicou sua intenção te distinguir Himmler com a mais alta condecoração do Reich, como se estivesse solicitando minha compreensão para o fato de eu não ser também condecorado. À maneira de desculpas, disse-me que o ReichsFuhrer SS prestara serviços particularmente importantes. Respondi-lhe de bom humor que, depois da guerra, eu esperaria me fosse concedida a não menos valiosa condecoração da arte e da ciência. De qualquer modo, Hitler parecia intranqüilo, pensando em como eu reagiria ao ter notícia da concessão da condecoração a Himmler.
Naqueles dias, eu estive inquieto. Bormann poderia mostrar a Hitler um artigo publicado no jornal inglês The Observer, acompanhando-o de alguns comentários maldosos. Nesse artigo, datado de 9 de abril de 1944, eu era qualificado de corpo estranho, introduzido na engrenagem governamental, partidária e doutrinária. Para rebater um possível golpe de Bormann, eu entreguei a Hitler uma tradução daquele artigo, comentando-o com algumas apreciações zombeteiras. Hitler adquiriu uma expressão séria e começou a leitura:
Speer é hoje, de algum modo, mais importante para a Alemanha do que Hitler, Himmler, Goering, Goebbels ou os generais. Na realidade, todos eles são apenas auxiliares desse homem, que é quem dirige realmente a gigantesca máquina bélica, tirando dela todo o rendimento possível. Vemos nele a exata encarnação da revolução dos diretores de empresa. Speer não é um dos ostentosos e pitorescos nazistas. Na realidade, não se sabe qual seja a sua opinião política; se não é antes convencional, ele poderia pertencer a qualquer partido político, contanto que se lhe proporcionasse trabalho e possibilidade de fazer carreira. Ê o protótipo do homem médio, bem vestido, cortês, incorruptível. Seu estilo de vida, o de sua esposa, o de seus filhos, caracteriza a classe média. Muito menos do que qualquer outro chefe nacional-socialista, Speer corresponde ao tipo clássico nacional-socialista ou a algo considerado, especificamente, alemão. Simboliza melhor um tipo cada dia mais importante em todos os Estados que se acham em guerra: o técnico puro, o homem brilhante carecido de antepassados gloriosos; o homem que não pertence a nenhuma classe, que não visa a outra meta que não seja abrir seu caminho no mundo, utilizando-se apenas das suas faculdades de técnico e de organizador. Precisamente essa falta de lastro psicológico e anímico e a desenvoltura com que maneja a terrível maquinaria técnica e de organização do nosso tempo fazem que esses tipos insignificantes consigam ir muito longe, em nossos dias. Chegou agora a sua época. Poderemos nos livrar dos Hitler e dos Himmler, mas os Speer estarão ainda muito tempo entre nós, aconteça o que acontecer a esse homem em particular.
Hitler leu o artigo com toda a calma, dobrou a folha e me devolveu sem dizer uma palavra, mas com uma expressão de respeito.
Apesar de tudo, no decurso das semanas seguintes, cada vez mais foi-me ficando evidente o afastamento entre Hitler e mim, distanciamento que aumentava sem cessar. De qualquer modo, inclusive as experiências recentes, tudo serviu para dar origem às minhas primeiras dúvidas sobre o caráter, já em princípio discutível, daquele sistema de domínio. Aborrecia-me também o fato de que os homens que formavam o organismo administrativo não se mostravam de modo nenhum dispostos às privações que eu considerava lógicas e normais, como as que estavam sendo aplicadas ao resto da nação. Sem nenhuma consideração, continuavam dispondo das vidas, dos valores materiais e humanos, insistindo em suas intrigas vulgares, amparando assim sua pervertida condição moral. É possível que tudo aquilo tivesse lentamente influído em meu distanciamento daquela esfera governamental. E comecei, embora ainda vacilante, a desprender-me de tudo quanto fora a base da minha vida, até aquele momento, a despedir-me das tarefas, das ligações e das irrefletidas atitudes que tinham sido a causa de tudo aquilo.
A GUERRA PERDIDA POR PARTIDA TRÍPLICE
No dia 8 de maio de 1944, voltei a Berlim para retomar o trabalho. Sempre me lembrei da data de quatro dias depois – 12 de maio –, quando se decidiu o destino da guerra técnica. Apesar das tremendas perdas sofridas pelos exércitos alemães, sempre fora possível produzir, aproximadamente, as armas necessárias à Wehrmacht. Mas novecentos e trinta e cinco bombardeiros da VIII Frota Aérea norte-americana atacaram várias fábricas de carburantes, no centro e no leste da Alemanha, iniciando uma nova fase da guerra aérea, a qual significou o fim da produção alemã de armamentos.
Em companhia de especialistas das fábricas alvejadas – as Leunawerken –, estivemos no dia seguinte caminhando entre tubulagens retorcidas e destruídas. As fábricas de produtos químicos tinham sido muito sensíveis ao ataque. Os melhores prognósticos não permitiam marcar-se o reinicio da produção antes de mais algumas semanas. Depois daquele ataque, a produção diária de cinco mil, oitocentas e cinqüenta toneladas baixou para quatro mil, oitocentas e vinte. É bem verdade que esse déficit poderia ser compensado, durante nove meses, pela reserva de quinhentas e setenta e quatro mil toneladas de combustível para a aviação. Mas aquela reserva correspondia apenas a pouco mais que a nossa produção trimestral.
Informado das conseqüências daquele ataque, no dia 19 de maio de 1944 fui de avião a Obersalzberg, e Hitler recebeu-me em companhia de Keitel. Falei-lhe da catástrofe que se aproximava:
– O inimigo feriu-nos em um ponto vital. Se continuar assim, dentro de pouco tempo não teremos produção de carburante digna desse nome. A única esperança é ter o inimigo um Estado-Maior da Aviação que planeje as coisas tão ilogicamente quanto nós.
Keitel esforçava-se por ser agradável a Hitler, dando pouca importância às minhas explicações. Repetia o argumento-padrão do Fuhrer:
– Nós já nos livramos de idênticas situações difíceis.
E voltando-se para Hitler:
– Também sairemos desta, meu Fuhrer!
Hitler não parecia partilhar do otimismo de Keitel. Além disso, Goering, Keitel e Milch iriam reunir-se para o estudo da situação dos industriais Krauch, Pleiger, Bütefisch e E. R. Fischer. Estaria presente à reunião o chefe do Departamento do Planejamento, Kehrl. Goering tentou impedir a presença dos representantes da indústria de carburantes, mas Hitler já havia determinado quais seriam os participantes da reunião.
Quatro dias depois, enquanto aguardávamos Hitler, eu pedi de antemão aos representantes da indústria de carburantes que expusessem a verdade sem desfigurá-la. Mas Goering tratou de convencê-los de que não deveriam ser pessimistas, talvez por temer as recriminações de Hitler que lhe fossem dirigidas.
Recebendo-nos, Hitler parecia distraído, enquanto apertava a mão de cada um de nós. Solicitou-nos que nos sentássemos e lhe expuséssemos a situação. Todos eles, como homens que calculavam friamente, demonstraram que a situação seria desesperadora, se os ataques prosseguissem sistematicamente. No princípio, Hitler tentou enfrentar aquelas demonstrações com os seus argumentos estereotipados – "os senhores conseguirão", "já passamos por situações difíceis" –, e Keitel e Goering imediatamente utilizaram-se das mesmas expressões, para se mostrarem mais otimistas do que Hitler e ao mesmo tempo enfraquecer a impressão que as nossas explicações pudessem causar a Hitler. Mas os industriais eram feitos de madeira mais dura do que os indivíduos do círculo íntimo de Hitler. De repente, porém, Hitler deixou de animar os presentes e mostrou-se disposto a analisar a situação de um modo diferente. Dava a entender que queria saber da verdade, como se já estivesse cansado dos falsos otimismos, das adulações embusteiras. Ele mesmo resumiu o resultado da reunião:
– Na minha opinião, as fábricas de carburantes, borracha sintética e nitrogênio são um ponto especialmente sensível para a marcha da guerra, porquanto uma substância básica, imprescindível para os armamentos, é fabricada em um pequeno número de empresas.
Terminada a reunião, estávamos ainda na ante-sala, onde encontramos Goering, que nos reprovou por termos molestado Hitler além do permissível com preocupações e considerações de índole pessimista, sem importância.
Depois de terem ido embora todos os participantes da reunião, desceram dos quartos do piso superior os membros do círculo particular. Hitler foi apanhar uma bengala, o chapéu e o seu capote negro. Iniciamos o caminho rumo à casa de chá, onde nos alimentamos de café e bolos. O fogo ardia na lareira e conversávamos sobre assuntos vulgares. Hitler afastava-se das preocupações para entrar em um mundo mais agradável. Era manifesta a sua necessidade de tais expansões. Nem eu voltei a falar do perigo que se aproximava de nós.
Depois de dezessete dias de reparos feitos às pressas, voltáramos aos altos algarismos de produção, quando, de 28 para 29 de maio de 1944, veio contra nós a segunda ofensiva de bombardeiros. Quatrocentos aviões da VII Frota Aérea norte-americana fizeram destruições maiores do que as do ataque anterior. Ao mesmo tempo foram atacados os campos petrolíferos de Ploesti, na Romênia, pelos aparelhos da XV Frota Aérea norte-americana. Estavam justificadas as observações pessimistas, em Obersalzberg, e anuladas as previsões otimistas de Goering, cujo prestígio caiu novamente a um nível muito baixo, segundo depreendi de uma ou outra palavra de Hitler.
Aproveitei-me logo do enfraquecimento da posição de Goering para propor a Hitler que o meu ministério se encarregasse dos armamentos de todo o setor aéreo. O que mais me incitou a fazer tal proposta foi cobrar agora com juros a dívida de Goering para comigo, assumida por sua conduta enquanto estive hospitalizado. No dia 4 de junho, pedi a Hitler "que influísse no marechal do Reich de tal forma que ele me convidasse a uma entrevista, durante a qual colocasse sob minha jurisdição todo o armamento aéreo". Sem dar mostras de contrariedade, Hitler aceitou a minha proposta, o que equivalia a um desafio a Goering. Compreendeu que eu não pretendia desrespeitar o prestígio e ofender o orgulho do marechal do Reich. E afirmou sem azedumes:
– O armamento aéreo ficará sob a jurisdição do seu ministério e não se falará mais nisso. Mandarei chamar o marechal, que virá rapidamente, e lhe comunicarei minhas intenções. O senhor estudará com ele os detalhes.
Fui portanto ao escritório particular de Goering, em Obersalzberg, a fim de tratar do assunto. Goering já estava informado por Hitler do objetivo de minha visita. O marechal do Reich falou com dureza no entono da voz, queixando-se do voluntarioso Hitler, sempre indeciso, daqui para ali. Havia quinze dias quisera dispensar-me, no tocante ao setor das construções. Logo em seguida a uma conversa comigo voltara atrás, e, continuou Goering, sempre foi assim. Naturalmente opinou Goering muito resignado –, se Hitler queria, ser-me-ia entregue a direção da produção de armamentos para a aviação.
– Mas – explicou – não consigo entender isso, pois há pouco tempo Hitler me disse que já era muito amplo o setor das atividades do senhor.
Achei muito significativa aquela súbita mudança, no que diz respeito a favor e desfavor. Havia aí o maior dos perigos para o meu futuro e confesso que achei uma compensação injusta o fato de agora estarem trocadas as nossas posições. Entretanto, deixei de revelar de maneira ostensiva a humilhação de Goering. Em vez de propor a Hitler a assinatura de um decreto, colocando sob minha jurisdição ministerial a responsabilidade pelos armamentos aéreos, concordei em que fosse ele mesmo quem fizesse tal proposta.
O fato de eu estar encarregado de tudo quanto se relacionasse com o armamento aéreo foi algo insignificante, em comparação com os acontecimentos na Alemanha, decorrentes da superioridade da aviação inimiga. No dia 22 de junho, foram inutilizados nove décimos da produção de carburante para aviões. Agora só dispúnhamos de seiscentas e trinta e duas toneladas diárias. Diminuindo os bombardeios, voltamos a alcançar, no dia 17 de julho, uma produção de duas mil, trezentas e sete toneladas, quantidade equivalente quase aos quarenta por cento da produção primitiva. Mas quatro dias depois, em 21 de julho, estávamos praticamente no nível zero, porquanto a produção diária descera a cento e vinte toneladas. Foram paralisados noventa e oito por cento da produção de carburante.
Sem dúvida, o inimigo depois permitiu que fossem funncionando, parcialmente, as grandes empresas químicas. Assim, nos fins de julho, pudemos aumentar até seis e nove toneladas a produção de carburante.
Agora, para nós já era um êxito o fato de alcançarmos a décima parte da produção. Os numerosos ataques tinham inutilizado as tubulações, arrebentadas pelos impactos diretos ou pelos abalos quando as bombas caíam nas proximidades, de modo que eram quase impossíveis as reparações. Em agosto, alcançamos dez por cento, em setembro cinco e meio por cento, em outubro novamente dez por cento de nossa antiga produção. Afinal, em novembro de 1944, houve algo surpreendente: conseguimos um aumento de até vinte e oito por cento (mil, seiscentas e trinta e três toneladas diárias).
A situação era grave, e portanto redigiu-se um memorial, em 28 de julho de 1944, a respeito dos carburantes, confirmando aquele que eu elaborara em 30 de junho. Ambos foram entregues a Hitler. Os memoriais faziam notar que em julho e agosto estariam esgotadas nossas reservas de carburantes para a aviação e de outros tipos, depois do que teríamos de enfrentar uma situação que levaria a conseqüências trágicas. Propus a Hitler diversas providências, para se evitarem aquelas conseqüências ou pelo menos demorá-las. A mais importante seria a mobilização total de todas as forças apropriadas à luta contra as devastações provenientes dos bombardeios. Pedi-lhe que facilitasse a Edmund Geilenberg, – o magnífico chefe da produção de munições – todas as oportunidades indispensáveis ao restabelecimento, na medida do possível, da fabricação de carburantes, autorizando-o a confiscar o material, a intervir em outros ramos de produção e a utilizar-se dos especialistas que ele julgasse necessários. Inicialmente, Hitler repeliu a minha proposta:
– Se eu der esses plenos poderes, não teremos os tanques necessários. Isto não pode ser. Não permitirei de modo nenhum.
Hitler não se apercebia bem da gravidade da situação. Eu já lhe dissera que sem carburantes os tanques seriam inúteis. Afinal, assinou o decreto, quando lhe prometi um aumento na produção de tanques, promessa que Saur confirmou. Dois meses depois, tinham sido incorporados às fábricas de hidrogênio cento e cinqüenta mil operários, incluindo-se nesse total um grande número de especialistas indispensáveis ao fabrico de armamentos. No fim do outono de 1944, contavam-se trezentos e cinqüenta mil operários ocupados na indústria de carburantes.
Mas eu me sentia atemorizado pela falta de compreensão altos-comandos. Eu dispunha das informações do meu Departamento de Planificação, sobre as quantidades diárias baixas na produção, sobre paralisações, sobre prazos para a reativação do trabalho, mas tudo isso na hipótese de conseguirmos impedir os ataques do inimigo, ou, quando menos, traduzi-los. No memorando que entreguei a Hitler em 28 de julho de 1944, supliquei-lhe que fosse "destinada à defesa da Pátria uma considerável parte da produção de aviões de caça". Era já a segunda vez que eu tratava desse problema com ^Hitler. Nos fins de maio, na reunião havida em Obersalzberg, Fuhrer concordara com um plano do General Galland. Segundo esse plano, da nossa elevada produção de aparelhos de caça, uma parte iria constituir uma frota aérea para a defesa do solo alemão. Por seu lado, em uma grande conferência realizada em Karinhall, Goering prometera, solenemente, que frota aérea não seria jamais destinada à frente de batalha. No entanto, quando começou a invasão, Hitler e Goering ordenaram que os aviões daquela força voassem para a França. Em poucas semanas, aqueles aparelhos foram perdidos, sem nenhum proveito. Agora, nos últimos dias de julho, Hitler e Goering renovaram sua promessa. Constituiu-se um novo com dois mil aparelhos de caça para a defesa do território alemão, os demais deveriam estar prontos para levantar vôo em setembro. Ainda uma vez, a incompreensão fez malograr essa iniciativa.
No dia 1.° de dezembro de 1944, em reunião com os responsáveis do setor do armamentos, eu dissera que o inimigo algum conhecimento da vida econômica alemã, porquanto, em se tratando de ataques aéreos, vê-se que ele obedece a um planejamento inteligente. Nossa sorte tem sido que o inimigo não executa de maneira lógica esse planejamento, pelo menos até o meado do ano passado ou nos três últimos trimestres, e que de algum modo não tem havido uma atuação destruidora.
Falando assim, eu ignorava que, em 9 de dezembro de 1942, ou seja, dois anos antes, uma informação da American Economic Warfare Division opinava que "seria preferível grandes destruições em um campo realmente indispensável da indústria a atacar muitas indústrias com um grau menor de destruição".
Em reuniões com o Alto-Comando da Marinha, já em agosto de 1942, Hitler dissera que seria necessário um grande porto para se poder realizar uma invasão. Não havendo esse porto, seria levantada uma linha contínua de casamatas, pouco distantes umas das outras, para se protegerem reciprocamente, em toda a extensão do litoral da França, da Bélgica e da Holanda, o que implicaria trabalho muito acima da capacidade da indústria alemã de construção. Além disso, não se contava de modo nenhum com o suficiente número de soldados para guarnecerem aquelas casamatas. Por isso, só foram defendidos pelas casamatas os grandes portos. Nas zonas do litoral, entre aqueles portos, levantaram-se casamatas de observação, muito distantes umas das outras. Quinze mil pequenas casamatas deveriam dar proteção aos soldados, durante o fogo de preparo para o desembarque. Hitler pensava que os soldados sairiam dos abrigos, durante um verdadeiro ataque, pois uma posição protegida reduziria as qualidades de valor e de iniciativa pessoais, necessárias ao combate. Aquelas instalações defensivas foram planejadas por Hitler, até nos menores detalhes. Ele, pessoalmente, desenhou os diversos tipos de casamatas, ocupando-se nesse trabalho durante noites. Eram somente desenhos, mas feitos com notável precisão. Sem pensar no auto-elogio, dizia que os seus projetos correspondiam de forma ideal a todas as necessidades de um soldado na frente. Aqueles esboços foram aceitos sem alterações pelo tenente-general chefe de engenheiros e enviados para serem executados.
Aquelas obras, feitas às pressas em dois anos apenas, consumiram treze milhões, trezentos e dois mil metros cúbicos de cimento armado, no valor de três bilhões e setecentos milhões de marcos, e além disso necessitaram de um milhão e duzentas mil toneladas de ferro, retiradas da produção de armamentos, dispêndio inútil, reduzido a nada pelo inimigo, catorze dias após o primeiro desembarque, mediante uma genial idéia técnica. Como se sabe, as tropas invasoras trouxeram seus próprios portos, construindo de acordo com planos exatos rampas de descarga e outras instalações na costa aberta de Arromanches e Omaha. Essas instalações permitiram o abastecimento de munições, equipamentos e outros materiais, assim como o desembarque de unidades z reforço. Essa idéia inutilizou todo o plano defensivo.
Rommel, nomeado por Hitler, nos fins de 1943, inspetor das defesas costeiras no oeste, mostrou possuir visão mais ampla. Pouco depois da sua nomeação, Hitler ordenou-lhe que se apresentasse no quartel-general da Prússia Oriental. Depois de uma longa conferência, o Fuhrer acompanhou o marechal até à frente da sua casamata, onde eu o esperava para conversar com ele. Parecia que a discussão ia continuar, quando Rommel lhe disse sem rodeios:
– Temos de deter o inimigo logo no primeiro desembarque. As casamatas e portos não servem para isso. Somente com barreiras e obstáculos primitivos poderemos dificultar o desembarque, tanto quanto for possível.
Rommel continuou falando com firmeza e concisão.
– Se não conseguirmos isso, a invasão será um fato, apesar da Muralha do Atlântico. Ultimamente, foram lança das bombas sobre Trípoli e Túnis, em quantidade tão maciça, que ficaram desmoralizadas até as nossas melhores tropas. Se o senhor não puder impedir isso, todas as demais providências serão inúteis, inclusive as barreiras.
Rommel mostrava-se cortês, porém distante, evitando, evidentemente, dirigir-se a Hitler com o costumeiro "meu Fuhrer". Para Hitler, ele adquirira a fama de especialista, uma espécie de técnico para o combate às ofensivas ocidentais. Só por esta razão ele aceitava com calma as críticas de Rommel. Mas parecia estar aguardando o último argumento de Rommel, a respeito dos maciços ataques aéreos.
– Era isso, justamente, senhor marechal, que eu queria mostrar-lhe, hoje.
Hitler falou-nos então de um veículo em provas, onde ,f estava montado um canhão de oitenta e oito milímetros. Os v,Soldados mostraram a capacidade de tiro do veículo, sua segurança contra os desvios laterais durante os disparos.
– Quantas unidades deste tipo pode fornecer, nos próximos meses, Sr. Saur?
Saur respondeu que umas cem.
– Vejam os senhores – disse Hitler. – Com este canhão antiaéreo, couraçado, podemos dispersar os aparelhos de bombardeio que voarem sobre as nossas divisões.
Teria Rommel renunciado a apresentar argumentos contrários àquelas opiniões, próprias de um leigo na matéria? Em do caso, reagiu sorrindo com expressão pejorativa, quase piedade. Quando Hitler viu que não podia obter confiança, despediu-se rápido e mal-humorado. Em companhia de Saur e de mim, sem dizer uma única palavra sobre o ocorrido, encaminhou-se para um abrigo, onde iria haver uma conferência. Mais tarde, depois da invasão, Sepp Dietrich informou-me do efeito desmoralizador causado em sua divisão de elite, por aquelas nuvens de bombas. Os soldados sobreviventes aos ataques aéreos perdiam o equilíbrio psicológico, permanecendo apáticos e desanimados, durante dias, sem capacidade para a luta, ainda quando saíam ilesos.
Seriam dez horas da manhã do dia 6 de junho, quando, estando eu no Berghof, um dos ajudantes-de-ordens de Hitler informou-me que a invasão começara nas primeiras horas da manhã.
– Acordaram o Fuhrer?
O oficial sacudiu a cabeça, num gesto negativo.
– Ele só saberá da notícia depois da primeira refeição.
Uma ou outra vez Hitler dissera que o inimigo, segundo era de supor, iniciaria a invasão com um ataque simulado, sem indicar o verdadeiro local. Por isso ninguém queria despertá-lo, para depois não se ver acusado de ter ajuizado mal a situação.
Algumas horas mais tarde, na sala de estar do Berghof, em conversa de debate da situação, Hitler pareceu mais convencido da sua opinião preconcebida, segundo a qual o inimigo pretendia enganá-lo.
– Lembram-se, senhores? Entre as muitas informações que recebemos, uma predizia exatamente o ponto, o dia e a hora do desembarque. Justamente isso reforça minha opinião de que não pode ser a verdadeira invasão.
Hitler acrescentou que as informações tinham sido dadas pela contra-espionagem inimiga, com o único objetivo de desviar a atenção do verdadeiro ponto da invasão e deslocar as nossas divisões erroneamente. Entendendo mal uma informação exata, repeliu a idéia, que teve no início, de que a costa da Normandia teria de ser a frente da invasão.
Semanas antes, Hitler recebera informações fornecidas pelas SS, pela Wehrmacht, pelo Ministério das Relações Exteriores, as quais se contradiziam quanto ao local e hora da invasão. Como em muitos outros setores, Hitler tomara para si a tarefa, já difícil para os experientes, de ver qual a notícia talvez autêntica, qual o serviço de informação mais merecedor de confiança, qual o que obtivera maior número e melhores informes, no campo inimigo. Agora, zombava da incapacidade dos diferentes serviços de informações, acabando por usar de expressões cáusticas sobre a insensatez da atividade informativa.
– Ignora o senhor que estes "limpos" agentes são pagos pelos Aliados? Seu noticiário tem um objetivo: confundir-nos. Por enquanto, não deixarei que isto chegue a Paris. Simplesmente, devemos conter estas notícias. Só teríamos um resultado: nossos estados-maiores ficariam nervosos.
Mais ou menos ao meio-dia, resolveu-se a questão mais importante, naquela data: empregar a reserva do Alto-Comando das Forças Armadas, na França, contra a cabeça-de-ponte firmada pelos anglo-americanos, pois Hitler tinha reservado para si a faculdade de ordenar o deslocamento de cada divisão. Mas, ao tomar aquela decisão, aceitara desgostoso o pedido do Marechal Rundstedt para libertar aquelas divisões, a serem utilizadas na luta. Devido a essa demora, as divisões de tanques não puderam ser deslocadas na noite de 6 para 7 de junho. Durante o dia os aviões de bombardeio inimigos impediram a marcha das unidades blindadas, causando-lhes grandes perdas em homens e material, antes de se estabelecer contato com o inimigo.
Aquele dia importantíssimo para o desenrolar das operações não decorrera movimentado, ao contrário do que se deveria esperar. Hitler tentava conservar a calma precisamente nas situações dramáticas... e seu estado-maior copiava essa atitude de autodomínio.
Hitler, demonstrando uma desconfiança característica, porém cada vez mais absurda, continuou convencido, durante dias e semanas, de que se tratava apenas de um simulacro de invasão, feito com o único objetivo de forçá-lo a empregar erradamente as forças defensivas. Em sua opinião, a verdadeira invasão se efetuaria em outro local, muito diferente e desguarnecido. Também a Marinha afirmava que aquela região era imprópria para desembarque de larga envergadura, conforme opinava Hitler, que esperava o ataque decisivo na área de Calais. Como se estivesse exigindo que o inimigo lhe desse razão, Hitler mandara instalar ali, desde 1942, pesados canhões da Marinha, protegidos por grossos paredões de cimento, a fim de destruir o ataque de uma frota inimiga de desembarque. Foi essa a razão de não ter empregado, na costa da Normandia, o XV Exército, estacionado nas imediações de Calais.
Outra razão de supor Hitler que o ataque se faria no Passo de Calais era terem sido instaladas ali cinqüenta e cinco bases de bombas voadoras, de onde seriam lançadas sobre Londres, diariamente, cerca de cem delas. Supunha ele que a verdadeira invasão se faria, fundamentalmente, contra as bases de lançamento das bombas. Não sei por que ele não pensava que, partindo da Normandia, poderiam os Aliados investir contra aquelas bases. Enfim, pensava poder deter em duros combates a cabeça-de-ponte do inimigo.
Hitler e outros presumiam que a nova arma V-l causasse terror e confusão no campo inimigo, paralisando-o. Todos superestimavam o efeito daqueles projéteis. Mas eu não deixei de preocupar-me e aconselhei a Hitler que ordenasse fossem eles lançados somente quando as nuvens estivessem muito baixas, pois tinham pequena velocidade. Mas Hitler não deu atenção à minha sugestão. E, no dia 22 de junho, por uma ordem apressada do Fuhrer, foram lançados os primeiros foguetes V-l. A falta de organização ocasionou a perda de dez daquelas bombas, que não puderam alçar vôo, e assim apenas cinco alcançaram Londres. Esquecido de que fora ele quem dera a ordem do lançamento das bombas, Hitler encolerizou-se, atribuindo o malogro da operação à incompetência dos fabricantes. Na reunião para o estudo da situação, Goering, eximindo-se de toda culpa, lançou-a sobre os ombros do seu antagonista Milch; então Hitler manifestou a intenção de mandar suspender o fabrico daquelas bombas voadoras, muito defeituosas na sua opinião. Mas a sua disposição mudou quando o chefe da imprensa do Reich exibiu-lhe notícias sensacionalistas da imprensa londrina, relativas ao efeito das mencionadas bombas V-l. Goering declarou então que o fabrico das bombas sempre fora estimulado pela Luftwaffe e o seria ainda mais no futuro. Já não se falou mais de Milch, o bode expiatório do dia anterior.
Antes da invasão, Hitler declarara que ele se encarregaria, pessoalmente, da direção das operações na França, logo após o desembarque. Para isso foram estendidos milhares de quilômetros de fios telefônicos, o que significou um gasto de milhões de marcos. A Organização Todt construiu dois quartéis-generais providos de custosas instalações. Naqueles dias em que a França escapava das suas mãos, ele justificou o tremendo gasto alegando que pelo menos um dos quartéis-generais estaria exatamente na futura fronteira ocidental alemã, e portanto poderia ser utilizado como parte de um sistema de fortificações. No dia 3 7 de junho, visitou esse quartel-general, chamado W-2 e localizado entre Soissons e Laon, para na mesma data regressar a Obersalzberg. Estava desanimado e dizia:
– Rommel perdeu a calma e transformou-se em pessimista. Agora, só se pode conseguir alguma coisa sendo otimista.
Conforme essa observação, o prestígio de Rommel era só uma questão de tempo, porquanto Hitler considerava acertada sua tática defensiva. Naquela mesma noite, disse-me que a segurança do W-2 era muito problemática, pois suas bases estavam em uma zona da França infestada de guerrilheiros.
Quase coincidindo com o primeiro grande êxito da invasão, no dia 22 de junho de 1944 começara uma ofensiva soviética, a qual iria causar a perda de vinte e cinco divisões alemãs. Já não se podia deter o avanço do Exército Vermelho, nem mesmo durante o verão. Durante aquelas semanas, quando se desmoronavam as duas frentes, a do leste e a do oeste, como também a aérea, não havia dúvida, Hitler demonstrou ser dono dos seus nervos e possuir uma surpreendente capacidade de resistência. Esse domínio de si mesmo, que perdurou até o último momento, foi um extraordinário êxito da sua força de vontade. Manteve-se firme, apesar do envelhecimento, da doença, das experiências de Morell e das pressões, sempre crescentes, a que estava submetido. Sua vontade freqüentemente me, parecia inconveniente, como a de um menino ; de seis anos, a quem nada pode desanimar e muito menos fatigar. Entretanto, por mais ridícula que parecesse, impunha respeito.
Mas a sua confiança na vitória, quando as derrotas eram contínuas, não se explica somente pela energia do Fuhrer. Durante nossa permanência na prisão de Spandau, confiou-me Funk que Hitler orientava erroneamente os seus médicos porque acreditava em suas próprias mentiras. Acrescentou que isso foi a base da propaganda de Goebbels. Da minha parte, não posso explicar essa convicção de Hitler, no que diz respeito à vitória definitiva, senão por ele mesmo acreditar na realidade da vitória final. De certo modo, ele adorava a si próprio. Em qualquer momento, tinha diante de si um espelho no qual via não somente a sua imagem refletida como também a confirmação da missão que lhe fora confiada pela Divina Providência. Sua religião era a do "grande Acaso", que haveria de beneficiá-lo; seu método, o do autofortalecimento por sugestão. Quanto maior a energia dos eventos que o contrariavam, tanto maior a confiança em seu destino. Naturalmente, julgava com realismo as circunstâncias militares, na ocasião, mas transferia-se ao campo da sua fé, vendo até nas derrotas um desígnio da Providência, relativo ao êxito futuro. Se havia em Hitler algo doentio, era a fé inquebrantável em sua boa estrela, sendo ele o tipo do homem crente, cuja capacidade para acreditar, entretanto, tomara um rumo perverso, devido à fé que ele tinha em si mesmo.
A obsessão de Hitler quanto ao seu destino não deixou de surtir efeito naqueles que o rodeavam. Quanto a mim, até certo ponto eu tinha consciência de que o fim estava próximo. Mas isso não me impedia de falar, freqüentemente, embora no âmbito restrito das minhas atividades, do "restabelecimento da situação". Esta confiança, curiosamente, estava separada da consciência de que nossa derrota era inevitável.
Em 24 de junho, houve comigo um fiasco bastante claro, quando tentei irradiar confiança, durante uma reunião em Linz, para o estudo da situação dos armamentos, já em plena catástrofe militar por partida tríplice, catástrofe que era o tema da conversa. Hoje, ao reler o texto do meu discurso, sinto verdadeiro terror pela minha audácia, quase grotesca, tratando de convencer homens sérios de que um esforço máximo ainda poderia levar-nos ao êxito desejado. No final, exprimi a convicção de que, em nossa esfera, seríamos capazes de superar a próxima crise e que, no ano seguinte, a produção de armamentos alcançaria o mesmo nível dos anos anteriores. Falei impelido pelas minhas sensações. Sem dúvida, não errei no que dizia respeito ao setor dos armamentos, cuja produção aumentaria nos meses seguintes. Mas não fui realista, quando dirigi a Hitler vários memoriais para adverti-lo da proximidade da catástrofe? Dirigindo-me a Hitler, eu me apoiava no conhecimento; falando aos industriais, apoiava-me na fé.
Somente na última frase do meu discurso havia a presença do pensamento em uma responsabilidade que ia além da realidade pessoal, tanto perante Hitler como diante dos meus colaboradores, algo profundo que eu pretendi exprimir com as seguintes palavras: "Continuaremos cumprindo nosso dever para conservar nosso povo alemão". Era isso que os industriais queriam ouvir. Pela primeira vez, assumi publicamente aquelas responsabilidades e o fiz passando por cima de qualquer mandato.
De qualquer modo, não havia dúvida de que os industriais estavam convencidos daquilo que eu lhes dissera, embora nos dias seguintes ao do meu discurso eu tenha ouvido muitas palavras desanimadas. Hitler me havia prometido que falaria aos industriais, e eu pensava que o seu discurso exerceria uma influência positiva.
Os representantes da indústria dos armamentos, pouco mais de cem, reuniram-se na sala de café do Platterhof, que Bormann construíra nas proximidades do Berghof, em Ober-salzberg, por ordem de Hitler, antes da guerra. Na reunião de Linz, eu sentira que o desagrado deles se referia ao contínuo aumento de poder do partido na vida econômica. De fato, o pensamento apoiado em uma espécie de socialismo estatal estava-se difundindo cada vez mais em numerosos funcionários do partido. Já tinham obtido êxito as aspirações tendentes a colocar sob a dependência dos chefes regionais todas as empresas de propriedade do Estado, especialmente as instaladas no subsolo, equipadas e financiadas pelo Estado, cujos elementos de direção, especialistas e maquinaria tinham sido facilitados pelas empresas comerciais, as quais pareciam correr o risco de ficar sob o controle do Estado, quando terminasse a guerra.
Eu pedi a Hitler que considerasse aquelas preocupações. Pediu-me algumas frases de orientação para o seu discurso. Expliquei-lhe que eu prometera aos colaboradores industriais que eles seriam auxiliados durante a dura época de crise que se esperava, que seriam protegidos contra as intromissões do partido, indicando-lhe e finalmente sublinhando as seguintes palavras: "Não se desrespeitará a propriedade privada das empresas, ainda quando figurem como empresas estatais"; e que, "depois da guerra, a economia será totalmente livre e se renunciará, sistematicamente, à nacionalização da indústria".
Durante o seu discurso, Hitler deu uma impressão de insegurança, permanecendo, em suma, no sentido das frases que eu lhe havia fornecido. Equivocava-se, detinha-se, cortava frases, esquecia a ordem dos pensamentos e confundia-se. Revelou-se então o seu estado de esgotamento. Precisamente naquele dia piorava tanto a situação na frente da invasão que não se pôde evitar a perda do primeiro grande porto: Cherburgo. Naquele momento ele repeliu todas as reservas de índole ideológica, "pois só pode existir um dogma, e este dogma se exprime muito sucintamente: é acertado o que é útil em si". Falando dessa maneira, ele reforçava seu modo pragmático de pensar e, na realidade, voltava a retirar todas as promessas feitas à indústria.
Hitler deu rédea solta à sua preferência pelas teorias histórico-filosóficas, pelos vagos conceitos a respeito da evolução, assegurando de forma confusa "que a força criadora não somente configura mas também incorpora o imaginado ao seu campo de administração. Isto é a origem daquilo que nós conhecemos sob o nome de capital privado, propriedade privada ou posse privada, em geral. Por conseguinte, ao contrário do que assevera o comunismo, o futuro não será a igualdade a que aspiram os comunistas, mas acontecerá realmente o contrário, a saber: quanto mais envolver a humanidade, mais diferenciados serão os resultados, e, portanto, a administração do que se obtiver irá, forçosa e logicamente, para as mãos dos que obtiverem rendimentos... O fomento da iniciativa privada é a única condição prévia para toda evolução real, praticamente para a ininterrupta evolução da humanidade. A iniciativa da economia alemã viverá a primeira das suas grandes épocas, quando esta guerra concluir pela nossa vitória. Quantas coisas teremos então de realizar!? Não suponham os senhores que ficarei satisfeito com algumas poucas oficinas estatais para a construção ou com um par de dependências estatais econômicas... E quando começar de novo a grande época da economia alemã de paz, terei única e exclusivamente um interesse: fazer que trabalhem os maiores gênios da economia alemã... Eu agradeço aos senhores por terem sido, na realidade, aqueles homens que me possibilitaram realizar os esforços de guerra. Sob este ponto de vista, os senhores devem entender como expressão do meu máximo reconhecimento a promessa de que este agradecimento não mudará jamais no futuro e que não haverá ninguém, entre o povo alemão, que me recrimine por haver alterado o meu programa. Dizendo-lhes que a economia alemã, depois desta guerra, alcançará seu máximo florescimento, talvez o maior em todos os tempos, terão os senhores de considerar esta declaração como promessa que se realizará um dia".
Hitler apenas colheu aplausos, durante esse discurso desalinhavado. Todos tínhamos a impressão de que nos fora assestada na cabeça uma porretada violenta. Talvez ele tenha falado com reservas para atemorizar os chefes da indústria ante as perspectivas da derrota.
"Não há dúvida de que, se a guerra for perdida, não haverá algo que se possa qualificar de indústria privada alemã, porquanto é compreensível que, sendo destruído o povo alemão, será também aniquilada a economia alemã. Não porque o inimigo deseje afastar a nossa concorrência – essa é uma consideração superficial –, mas sim por estarem em jogo coisas fundamentais. Estamos em uma luta que decidirá a respeito de duas situações: ou o retrocesso da humanidade a um estado primitivo, regredindo alguns milhares de anos, sendo a produção em massa dirigida exclusivamente pelo Estado, ou o contínuo desenvolvimento da humanidade, mediante o incentivo à iniciativa privada."
Alguns minutos depois, voltou o seu pensamento à mesma seqüência de idéias:
"Se perdermos a guerra, senhores, não necessitamos cogitar de uma economia para a paz. Haverá apenas uma situação: cada um em particular reflita sobre o seu próprio caminho, deste mundo para o além – se quer resolver a situação por iniciativa pessoal, se quer ser enforcado, se quer morrer de fome, ou se tenciona ir trabalhar na Sibéria. São estas as considerações possíveis para cada pessoa, individualmente".
Hitler pronunciara estas frases com um tom algo irônico, em todo caso um tom de desprezo às "covardes almas burguesas". Isso anulou minha esperança de serem os industriais estimulados pelo discurso de Hitler.
Talvez irritado pela presença de Bormann, talvez advertido por ele, a adesão de Hitler a uma economia livre em tempo de paz, solicitada por mim e prometida por ele, fora manifesta de um modo mais confuso do que eu tinha esperado. Contudo, algumas frases do discurso tinham sido bastante significativas para merecer que eu tomasse nota delas. Hitler acedeu, espontaneamente, ao meu pedido de gravação do discurso e observou a conveniência de algumas correções. Bormann, porém, impediu que se publicasse o discurso, o que me forçou a recordar a Hitler a promessa que me fizera. Mas o Fuhrer respondeu-me com uma evasiva, dizendo que a sua oração tinha de ser antes revista por ele.
DISPOSIÇÕES ERRÔNEAS, ARMAS MILAGROSAS E SS
À medida que a situação piorava, Hitler foi ficando mais inacessível a todo argumento oposto às suas opiniões, tornando-se mais autoritário do que tinha sido até então. Isso teve conseqüências importantíssimas no campo técnico, daí decorrendo ter-se inutilizado a mais valiosa das nossas "armas maravilhosas": o Me-262, nosso avião de caça mais moderno, com velocidade superior a oitocentos quilômetros por hora e capacidade de ascensão superior a todos os aparelhos inimigos.
Já em 1941, apenas como arquiteto, eu testemunhara o ruído ensurdecedor de um motor a jato, durante a visita que fiz à fábrica de aviões desse tipo, Heinkel, em Rostock. O aparelho estava em experiência. Seu construtor, o Professor Ernst Heinkel, insistiu naquela época no aproveitamento daquele invento revolucionário. Durante a reunião em que se tratou de armamentos, em setembro de 1943, no campo de provas da Luftwaffe, em Rechlin, Milch entregou-me, sem pronunciar uma palavra, um telegrama que recebera na ocasião. O telegrama transmitia uma ordem de Hitler no sentido de paralisar os preparativos feitos para o fabrico em série do Me-262. Sem dúvida, decidimos não dar atenção àquela ordem, mas os trabalhos não puderam ser feitos com a pressa necessária.
Três meses depois, em 7 de janeiro de 1944, Milch e eu recebemos ordem para nos apresentarmos no quartel-general. Essa ordem fora motivada pelo recorte de um jornal inglês em que se noticiava a próxima conclusão dos ensaios britânicos com os aviões a jato. Hitler, impaciente, exigiu que, no menor prazo possível, fabricássemos um grande número desses aparelhos. Entretanto, como já tínhamos abandonado os trabalhos preparatórios anteriores, só pudemos prometer para julho de 1944 a entrega de sessenta unidades mensais. De acordo com nossos cálculos, depois de janeiro de 1945 seriam fabricados duzentos e dez aparelhos por mês. No decurso da reunião, Hitler deu a entender que cogitava de empregar como bombardeiro rápido o avião fabricado para atuar como caça. Os especialistas da Luftwaffe viram-se ludibriados. Supunham entretanto que mediante argumentos de peso iriam alterar as intenções de Hitler. Mas houve o contrário disso: Hitler, teimosamente, mandou que se tirassem as armas de bordo dos aviões para aumentar-se o peso da carga de bombas. Sua opinião era que os aviões a jato não tinham necessidade de defesa, porquanto, tendo velocidade superior, os caças inimigos não os alcançariam. Muito desconfiado ainda com a nova invenção, determinou, para proteger o sistema de propulsão dos aparelhos, que estes fossem empregados, por algum tempo, em rumo vertical e a grande altura, tendo-se em conta uma diminuição da velocidade para redução dos esforços a que pudesse estar submetido o sistema, ainda não posto em prova.
Com uma carga de bombas de quinhentos quilos e um primitivo dispositivo de pontaria, o efeito desses pequenos bombardeiros foi ridiculamente insignificante. No entanto, se tivesse sido empregado como caça, aquele aparelho, por suas qualidades superiores, abateria os quadrimotores norte-americanos que despejavam milhares de toneladas de explosivos sobre as cidades alemãs.
Nos últimos dias de junho de 1944, Goering e eu tentamos, mais uma vez em vão, mudar o pensamento de Hitler. Pilotos de caça tinham experimentado os novos aparelhos e pediam que fossem utilizados contra as frotas de aviões de bombardeio norte-americanos. Hitler não fez caso das nossas palavras. Baseava sobre qualquer ponto seus argumentos irreflexivos e opinava que a velocidade nas evoluções e a rapidez na mudança de altitude exporiam os pilotos a esforços físicos consideravelmente maiores do que os atuais. Ora, ainda segundo Hitler, precisamente a maior velocidade dos novos caças redundaria para eles em desvantagem, no combate aéreo, porquanto os caças inimigos poderiam manobrar melhor, graças à sua menor velocidade. O fato de os novos aparelhos poderem voar a maior altura do que os caças de escolta americanos, e por sua maior velocidade poderem atacar os lentos grupos norte-americanos de bombardeio, não impressionou Hitler. Quanto mais insistíamos, mais ele permanecia emperrado em suas idéias. Quando muito, para consolar-nos, prometeu-nos que em futuro distante ordenaria um emprego parcial daqueles aparelhos em missões de caça.
Todos aqueles que, de certo modo, tinham autoridade ara tratar com Hitler desse assunto tentaram mudar a opinião dele, devido à nossa desesperadora situação aérea: Jodl, Guderian, Model, Sepp Dietrich e, naturalmente, os principais generais da Luftwaffe pronunciaram-se insistentemente contra a decisão de Hitler. O Fuhrer assim demonstrava que todos os pronunciamentos daqueles oficiais desvalorizavam, de certo modo, os conhecimentos militares dele e a sua compreensão da técnica. Quando chegou o outono de 1944, livrou-se afinal, conforme seu estilo pessoal, de todas as discussões e da crescente insegurança a respeito, proibindo que daquela época em diante tocassem no assunto com ele.
Quando eu disse por telefone ao General Kreipe, chefe do Estado-Maior da Luftwaffe, o que eu pretendia expor a Hitler, em meu relatório de meados de setembro, a respeito dos aviões a jato, o general, insistentemente, aconselhou-me a não fazer nenhuma alusão a respeito. Hitler perderia por completo o domínio de si mesmo e eu provocaria a maior entre todas as dificuldades somente com a menção do Me-262. Apesar da advertência do general, eu insisti com Hitler, explicando-lhe que o emprego do avião fabricado para caça como bombardeiro carecia de sentido, sendo totalmente errôneo, dada nossa situação militar. Acrescentei que era a opinião dos chefes militares da Aviação e também dos oficiais do Exército. Hitler não fez caso das minhas ponderações e retirei-me ao setor da minha jurisdição, pois, na realidade, a questão do emprego de aviões incumbia-me tão pouco quanto a da escolha do tipo de avião que se deveria fabricar.
O avião a jato não foi a única arma com superioridade de ação que, depois da fase de experiência, poderia ter sido fabricada em série no ano de 1944. Possuíamos também uma bomba voadora teledirigida, um avião-foguete ainda mais rápido do que os aparelhos a jato, uma bomba-foguete que se dirigia contra os aviões inimigos, um torpedo capaz de captar o som e assim perseguir os navios em fuga, fazendo ziguezague. Estava terminado o foguete terra-ar. O construtor Lippoch desenhara aviões a jato muito avançados para a técnica aérea daquele tempo, feitos segundo uma aerodinâmica revolucionária.
Sofríamos, nem mais nem menos, as conseqüências de um excesso de projetos em fase de verificação. Se, com suficiente antecedência, tivéssemos concentrado nossa atividade em poucos daqueles projetos, certamente teríamos alcançado resultados definitivos. Por isso, durante uma conferência das autoridades competentes, decidiu-se não estimular, no futuro, tantas novas idéias, escolhendo-se entre as já em curso e fomentando a aplicação daquelas que estivessem de acordo com a nossa capacidade de desenvolvê-las.
Foi Hitler quem, apesar de todos os erros táticos dos Aliados, fez aquelas jogadas de xadrez que contribuíram para o êxito da ofensiva aérea inimiga em 1944. Não somente travou o emprego do caça a jato, que depois mandou transformar em caça-bombardeiro, mas pretendeu vingar-se da Inglaterra com o emprego dos novos foguetes. Por ordem sua, nossa enorme capacidade industrial foi orientada, a partir de julho de 1943, no rumo do fabrico dos pesados foguetes de longo raio de alcance, conhecidos com o nome de V-2, tendo catorze metros de comprimento e mais de treze toneladas de peso. Ele queria que se fabricassem mensalmente novecentas unidades. Era uma idéia absurda essa de se tomar vingança dos ataques dos bombardeiros inimigos, no ano de 1944 – os quais, em média com seus quatro mil e cem trimotores, arrojavam diariamente sobre a Alemanha três mil toneladas de bombas –, empregando-se uma arma que mandaria diariamente sobre a Inglaterra vinte e quatro toneladas de material explosivo, o equivalente a um só ataque de doze Fortalezas Voadoras.
Talvez tenha sido um dos meus erros mais graves, na direção da produção de armamentos, ter concordado com aquela decisão de Hitler, apoiando-a também, quando deveríamos ter concentrado nossos esforços no fabrico de foguetes defensivos, terra-ar. O respectivo programa, sob a denominação de Cascata, já tinha alcançado, em 1942, um desenvolvimento tão grande que teria sido possível uma pronta fabricação em série se, desde aquele momento, tivéssemos utilizado a capacidade dos técnicos e cientistas em atividade na base experimental de Peenemünde, sob a direção de Wernher Von Braun.
Esse foguete de oito metros de comprimento, podendo transportar cerca de trezentos quilos de explosivo até quinze mil metros de altura, era dirigido por um raio vetor que lhe permitia alcançar com a maior segurança os bombardeiros inimigos, houvesse nuvens ou não, durante o dia ou à noite. Capazes de produzir, mensalmente, mais adiante, novecentas unidades do grande foguete ofensivo, sem dúvida também poderíamos ter fabricado por mês, com menor custo, alguns milhares dos pequenos foguetes. Ainda hoje penso que os foguetes defensivos junto com os caças a jato poderiam ter inutilizado, desde 1944, as ofensivas aéreas dos Aliados ocidentais contra nossas indústrias.
Entretanto, em lugar disso, gastou-se muito dinheiro e muito esforço na melhoria e na produção de foguetes de grande alcance, os quais, quando finalmente prontos para serem utilizados, mostraram ser um fracasso total. O mais caro dos nossos projetos revelou-se, ao mesmo tempo, o mais insensato. Nosso orgulho e, temporariamente, a minha meta favorita acabaram sendo a única inversão equivocada. Foram também uma das causas de se ter perdido a defesa aérea.
Desde o inverno de 1939 eu mantinha estreita colaboração com a base experimental de Peenemünde, embora naquela época tão-somente no que dizia respeito às petições no campo da construção. Eu me sentia à vontade naquele círculo de jovens cientistas e inventores apolíticos, à frente dos quais se achava Wernher Von Braun, então com vinte e sete anos, rapaz que tinha sempre um objetivo e pensava no futuro de modo realista. Não era normal que aquele grupo tão jovem e inexperiente recebesse centenas de milhões de marcos para trabalhar em um projeto cuja realização estaria tão distante. Comandados pelo Coronel Walter Dornberger, que dava a impressão de ser o pai deles, os moços podiam trabalhar livres de todas as travas burocráticas, desenvolvendo idéias que às vezes pareciam utópicas.
Aquilo, nos seus começos, exercia um fascínio sobre mim, podendo ser considerado o planejamento de um milagre. Aqueles técnicos, cheios de visões fantásticas, aqueles românticos calculistas, impressionavam-me profundamente, todas as vezes que eu ia a Peenemünde. Espontaneamente, senti-me vinculado a eles, sem saber bem a razão. O meu sentimento não se alterou quando Hitler, no outono de 1939, cancelou a urgência dos projetos dos foguetes. Em todo caso, com autorização expressa, mediante um acordo tácito com a Diretoria-Geral dos Armamentos, continuei com as construções na base de Peenemünde, sendo essa a única atitude oposicionista que eu podia assumir.
Não há mal em dizer que, ao ser nomeado ministro dos Armamentos, interessei-me muito naquela atividade de Peenemünde. Hitler, entretanto, como sempre, mostrou-se cético, dominado por sistemática desconfiança em relação a todas as novidades, as quais, como o avião a jato ou a bomba atômica, estavam além do horizonte técnico da geração da Primeira Guerra Mundial, novidades que se orientavam para um mundo seu desconhecido.
Os chefes das três armas, o Marechal Milch, o Almirante Witzell e o Capitão-General Fromm, em minha companhia, voaram em 13 de junho de 1942 para Peenemünde a fim de vermos a experiência do lançamento de um foguete teledirigido. Sem nenhuma armação de apoio, erguia-se um projétil de aspecto fantástico, da altura de um prédio de quatro pavimentos, entre os pinos laterais. O Coronel Dornberger, Wernher Von Braun e sua turma de auxiliares aguardavam conosco, sob a mesma tensão, o resultado do primeiro lançamento do foguete. Eu sabia das esperanças do jovem inventor naquela experiência, que significava para ele, mais do que a invenção de uma nova arma, um passo rumo ao futuro.
Alguns flocos de fumaça anunciaram que estavam cheios os tanques de combustível. No instante previsto, inicialmente vacilante, depois soltando um rugido de gigante, o foguete levantou-se lento, sobre a sua base, e pareceu imóvel, em uma fração de segundo, sobre a sua cauda de fogo, para logo subir e, soltando um silvo, desaparecer entre as nuvens baixas no céu. Wernher Von Braun estava radiante. Eu fiquei atônito, admirado daquela maravilha técnica, da sua precisão, da supressão da lei da gravidade, ao ver que treze toneladas podiam levantar-se nas alturas sem dispositivo mecânico de direção.
Estavam os especialistas explicando a que distância se achava o projétil, quando minuto e meio depois um silvo de intensidade crescente indicava a descida do foguete, nas imediações. O projétil caiu a um quilômetro de distância do local onde nós estávamos. Soubemos mais tarde que o mecanismo de direção falhara. No entanto, apesar disso, os técnicos estavam satisfeitos, porquanto fora solucionado o problema mais difícil, o da subida. Hitler, ao contrário, continuou opondo "gravíssimos reparos" ao projétil, fazendo prevalecer suas dúvidas sobre se "algum dia poderia ser garantida" a direção do foguete.
No dia 14 de outubro de 1942, pude informá-lo de que careciam de objetivo os seus reparos: o segundo foguete percorrera com êxito o trajeto previsto, cento e noventa quilômetros, tendo caído com uma diferença de apenas quatro quilômetros do alvo escolhido. Pela primeira vez, fora sulcado o espaço a mais de cem quilômetros de altura por um instrumento de invenção humana. Parecia ser um passo rumo à realização de um sonho. Afinal, Hitler mostrou-se interessado. E, como de costume, os seus desejos superaram todas as possibilidades; disse que, ao ser utilizado pela primeira vez o foguete, "deveríamos dispor de cinco mil projéteis, ao mesmo tempo, para efetuar um ataque em massa".
Depois de tal sucesso, tive logo de encarregar-me da produção em série. No dia 22 de dezembro de 1942, apresentei a Hitler a ordem para que ele a assinasse, embora o foguete não pudesse ainda ser fabricado em série.
Julguei poder assumir o risco daquela fabricação, porquanto, de acordo com a situação na época, e levando-se em conta as promessas feitas pelo pessoal de Peenemünde, poderíamos dispor de bases técnicas definitivas antes de julho de 1943.
Cumprindo ordens de Hitler, na manhã de 7 de julho de 1943 convoquei Dornberger e Von Braun a apresentarem-se no quartel-general: o Fuhrer desejava esclarecimentos a respeito do projeto V-2. Enquanto ele terminava uma outra reunião, alguns auxiliares de Dornberger e Von Braun tinham arrumado os dispositivos para uma demonstração técnica. Depois de uma breve troca de palavras e com a sala às escuras, começou a projeção do filme colorido. Pela primeira vez, Hitler assistiu ao majestoso espetáculo da subida de um grande foguete, com impulso próprio, elevando-se até desaparecer na estratosfera. Sem receios, com um entusiasmo inteiramente juvenil, Von Braun explicou os seus planos, sem duvidar de coisa nenhuma. Desde aquele momento, Hitler foi conquistado pelo programa dos foguetes. Dornberger falou dos seus problemas, no tocante à organização, e eu propus ao Fuhrer que Von Braun fosse nomeado professor. Hitler disse logo:
– Sim, ponha-se imediatamente em contato com Meiss-Mier. Assinarei pessoalmente a nomeação.
Ele se despediu com muita cordialidade dos componentes do grupo de Peenemunde. Estava muito impressionado e ao mesmo tempo cheio de entusiasmo. Quando voltou à sua casamata, embriagou-se com as perspectivas oferecidas por aquele projétil:
– O A-4 é uma medida decisiva para a guerra. Que alívio para a pátria, quando atacarmos os ingleses com esses foguetes! É uma arma que vai decidir a guerra, podendo no entanto ser fabricada com elementos relativamente modestos. Speer, o senhor deve fomentar com toda a energia o fabrico dos A-4, pondo à disposição desses homens todo o material e mão-de-obra de que necessitarem. Eu já tinha pensado em assinar o decreto relativo ao programa de fabricação dos tanques. Mas altere o expediente, adaptando-o ao fabrico dos A-4, tão importante como o dos tanques. Mas – observou ele –, no fabrico dessas armas só podemos empregar alemães. Deus tenha piedade de nós se o estrangeiro ficar a par do assunto!
Quando estivemos sós, outra vez, não querendo bem acreditar no que vira, perguntou-me:
– O senhor não se enganou? Tem trinta e um anos esse rapaz? Pois veja, eu o supunha mais moço!
Mas, no outono de 1943, pudemos verificar que as nossas esperanças tinham sido muito antecipadas. Os desenhos definitivos para a construção só puderam ser entregues em julho, conforme estava prometido, de modo que não foi possível iniciar-se o fabrico em série. Ademais, houve diversos erros e os primeiros disparos de tiro real foram anteriores ao reingresso do projétil na atmosfera. A estrutura do projétil era complicadíssima, e isso interferia com a execução do fabrico em série.
Transcorreu ainda quase um ano para se lançarem contra a Inglaterra os primeiros foguetes, no começo de setembro de 1944. Mas, ao contrário do que supusera Hitler, não foram cinco mil de uma vez, e sim apenas vinte e cinco, no decorrer de dez dias.
Também Himmler começou a demonstrar entusiasmo, depois de Hitler ter-se animado com o projeto dos V-2. Seis semanas mais tarde, apresentou a Hitler uma proposta com a finalidade de manter em segredo o programa de armamentos, que se admitia iria decidir o fim da guerra. Se os internados nos campos de concentração fossem encarregados de toda a produção, não teriam mais contato com o exterior, porquanto não haveria correio para eles; ao mesmo tempo, comprometeu-se a tirar do meio dos prisioneiros todos os especialistas necessários. A indústria só forneceria os engenheiros e o pessoal da direção das empresas. Hitler concordou com essa proposta e portanto não sobrou nem para Saur nem para mim nenhuma possibilidade de escolha, uma vez que não podíamos formular melhor proposta do que a de Himmler. O que resultou disso foi que tivemos de tratar com a chefia das SS a respeito de uma empresa comum: a "empresa média". Meus auxiliares ficaram indecisos, ao iniciar seus trabalhos segundo esse esquema, e seus temores não tardaram em se confirmar. Decerto, no aspecto formal, nós dirigíamos a produção, mas quando surgiam casos duvidosos éramos obrigados a nos inclinar ante o maior poder de chefia das SS. Por assim dizer, Himmler metera um pé em nossa porta, que nós mesmos tínhamos facilitado fosse aberta por ele.
Minha colaboração com Himmler já tinha começado com uma desavença, logo após ter sido eu nomeado ministro. Quase todos os ministros do Reich, cujo prestígio político ou pessoal tinha de ser considerado por Himmler, recebiam dele a concessão de uma categoria honorífica, dentro das SS. Quanto a mim, Himmler pensara em uma distinção particularmente elevada: queria nomear-me ObergruppenFuhrer (chefe superior de grupos) das SS, categoria equivalente à de capitão-general, distinção conferida raríssimas vezes. Embora Himmler me tivesse observado que se tratava de honra muito especial, eu recusei delicadamente sua oferta, sob a alegação de que o Exército, as SA e o NSKK já me tinham oferecido distinções de alto valor e que eu não as aceitara. Para tirar qualquer sentido pejorativo à minha recusa, propus-lhe reforçar minha posição de membro das SS de Mannheim, sem suspeitar de que até Aquela data eu não era considerado membro daquela organização.
Cabe dizer que, mediante a concessão de tais honrarias, Himmler visava a obter influência em setores que estavam à margem da sua competência. No meu caso, justificava-se minha desconfiança. De fato, Himmler fez logo todo o possível por imiscuir-se nos assuntos do armamento do Exército, oferecendo de boa vontade um grande número dos seus internados em campos de concentração e colocando, já em 1942, seu prestígio na balança para exercer pressão sobre vários auxiliares meus. Poder-se-ia deduzir que ele tinha a idéia de transformar os campos de concentração em grandes e modernos centros de produção, dedicados sobretudo aos armamentos. Tais centros de produção estariam, diretamente, sob o controle das SS. Fromm advertiu-me do perigo dessa iniciativa para um sistematizado armamento do Exército e, neste particular, Hitler concordou comigo. As experiências já feitas com as fábricas das SS, antes da guerra, no fabrico de ladrilhos e no trabalho com granito, já eram suficientes para assustar quem quer que fosse. No dia 21 de setembro de 1942, Hitler resolveu a questão das competências: os internados em campos de concentração trabalhariam em empresas sob a jurisdição da organização industrial de armamentos. Por enquanto, os propósitos expansionistas de Himmler tinham sido freados, nesse setor.
Mas a regulamentação das nossas atividades independentes na produção de armamentos e de equipamentos para o Exército foi desrespeitada por Hitler, quando deu ordem de se fazer uma instalação dependente das SS para o fabrico de foguetes. Antes da guerra, em um distante vale dos montes Harz, estabelecera-se um sistema de grutas, muito ramificado, para a armazenagem de produtos químicos. No dia 10 de dezembro de 1943, inspecionei naquele local as amplas instalações subterrâneas onde seriam depois fabricados os foguetes V-2. Nas compridas naves, cuja extremidade não se via, os homens trazidos dos campos de concentração estavam ocupados na montagem de máquinas ou ajustando encanamentos e outros maquinismos subsidiários. Dirigiam-nos um olhar inexpressivo e tiravam os gorros de pano azul até sairmos do lugar.
Eram realmente bárbaras as condições de existência dos prisioneiros. Todas as vezes que eu penso neles, sinto-me invadido por um sentimento de culpa muito pessoal, de funda consternação. Soube depois, pelos guardas, que as instalações sanitárias eram deficientes, fazendo proliferar as doenças, e que os prisioneiros alojavam-se em cubículos úmidos, no local de trabalho, sendo extraordinariamente alto o número de óbitos. Naquele mesmo dia autorizei o fornecimento dos materiais necessários e dei as ordens indispensáveis à construção de um acampamento de barracões, em uma colina próxima. Insisti com a direção do acampamento das SS para que providenciasse imediatamente sobre o melhoramento das condições sanitárias e da alimentação daqueles homens. Posso dizer que minhas ordens foram cumpridas.
Até então, eu não me tinha preocupado com esses problemas, e os chefes de acampamento me garantiam que nada havia de anormal. Mas, em 13 de janeiro de 1944, o Dr. Poschmann, que dirigia os serviços médicos do meu ministério, descreveu com as cores mais negras as condições higiênicas na "empresa média". Por esse motivo, ordenei a um dos chefes de seção que fosse inspecionar a situação existente naqueles locais de trabalho. Ao mesmo tempo, o Dr. Poschmann iniciou uma série de providências no terreno médico. Mais tarde, entretanto, quando adoeci, eu soube que as medidas tinham sido apenas parcialmente praticadas. Depois, em 26 de maio, após eu ter voltado ao exercício de meu cargo, o Dr. Poschmann informou-me de que os serviços médicos continuavam, em muitos campos de trabalho, mas que havia dificuldades. Naquele mesmo dia recebi uma carta grosseira de Robert Ley, na qual se queixava das atividades do Dr. Poschmann. Dizia que a assistência médica nos campos era de sua única competência. Além disso, exigiu que eu admoestasse o Dr. Poschmann, proibisse-lhe qualquer interferência de cunho pessoal, ficando ele submetido a um expediente disciplinar. Respondi-lhe que eu não via nenhum motivo para submeter-me às suas exigências. Ao contrário, todos tínhamos interesse em que os prisioneiros gozassem de assistência médica suficiente. Na realidade, não terminou o dia sem que eu combinasse com o Dr. Poschmann algumas providências médicas complementares ao que já se estava fazendo.
Não tive mais notícias de Ley. Também Himmler não foi bem sucedido quando tentou convencer-me de que ele podia agir à vontade contra grupos de pessoas importantes. Em 14 de março de 1944, ordenou a prisão de Wernher Von Braun e de dois dos seus auxiliares.
Informaram ao chefe do Departamento Central que aqueles três homens tinham violado uma das minhas disposições ao dirigir sua atenção a objetivos pacíficos, afastando-se dos seus deveres no plano bélico. Mas o que houvera fora apenas isto: Von Braun e seus auxiliares falavam, freqüentemente, das suas idéias, imaginando como, em futuro distante, poderia ser fabricado e utilizado um foguete para o serviço postal entre os Estados Unidos e a Europa. Apegados aos seus sonhos, com ousadia e ingenuidade, fizeram que um periódico ilustrado reproduzisse alguns desenhos realmente imaginados pela fantasia.
Quando Hitler visitou-me em Klessheim, em meu quarto de enfermo, tratando-me com atenção surpreendente, aproveitei a ocasião para conseguir a libertação dos três detentos. Entretanto, tive de esperar uma semana para que se efetivasse sua promessa, e, mesmo seis semanas depois, Hitler resmungava por lhe ter sido muito penoso atender ao meu pedido. Mas Himmler alcançara seu objetivo: daquela data em diante, os membros mais importantes do grupo da fabricação de foguetes não se sentiram garantidos ante a arbitrariedade das decisões do ReichsFuhrer SS. Era portanto compreensível que nem sempre eu estaria em condições de obter a soltura em breve tempo, no caso de algum ser detido.
Havia muito tempo que Himmler tinha a idéia de criar um grupo econômico dependente das SS. Mas Hitler não estava de acordo, pelo menos assim parecia – e eu o apoiava em sua negativa. Talvez tenha sido essa uma das razões da estranha conduta de Himmler para comigo, durante minha hospitalização. Afinal, naqueles meses, ele conseguira convencer Hitler de que uma grande iniciativa econômica da parte das SS poderia oferecer inumeráveis vantagens. E, nos começos de junho de 1944, Hitler solicitou-me que eu apoiasse as SS, em suas aspirações de montagem de um organismo econômico, que operasse desde o campo das matérias-primas até o da indústria de produção de artigos prontos. Fundamentou suas pretensões em preocupações bastante inadequadas à realidade. As SS deveriam ser suficientemente fortes para enfrentar, no futuro, um ministro da Fazenda que pretendesse restringir os meios necessários ao funcionamento da corporação, sob o governo de um sucessor de Hitler.
Assim, ele alcançara aquilo que eu receava, desde o início da minha gestão ministerial. Eu obtive do Fuhrer que as empresas de Himmler "teriam de submeter-se aos mesmos controles existentes para os demais setores da produção bélica e de armamentos", de modo que "uma parte da Wehrmacht não seguisse por vias independentes, depois de eu ter conseguido, em dois anos de trabalho, unificar as três armas, no terreno dos armamentos". Hitler prometeu ajudar-me ante Himmler, mas eu não sabia até onde poderia ele impor sua opinião. Não havia dúvida de que Hitler falara a Himmler de minha entrevista, pois o chefe das SS pediu-me fosse falar com ele em sua casa de Berchtesgaden.
O Reichsfuhrer SS parecia às vezes um indivíduo de idéias totalmente fantásticas, um sujeito cuja maneira de pensar até o próprio Hitler achava ridícula. Mas também era um homem com pensamento prático e realista, que sabia com exatidão quais eram suas metas políticas, metas, aliás, de longo alcance. Em suas entrevistas, procedia com amável correção, talvez levemente forçada, mas não demonstrava Cordialidade. E, nessas ocasiões, estava sempre em companhia de uma testemunha, um dos membros da sua turma de auxiliares. Tinha a virtude – rara naquela época – de ouvir com paciência os argumentos dos seus visitantes. Durante o debate dos temas, freqüentemente dava a impressão de estreiteza de visão e de pedantismo, mas parecia, no entanto, pensar bem nas palavras que dizia. Evidentemente, não lhe importava se daria a impressão de imobilidade ou de limitação intelectual. Seu departamento trabalhava com a precisão de uma máquina bem lubrificada, sendo isso a expressão da sua personalidade, a qual, segundo me parecia, refletia-se no modo de agir objetivista da sua secretaria. Suas funcionárias, ainda jovens, não podiam ser qualificadas de belas, mas pareciam extraordinariamente diligentes e conscienciosas.
Himmler submeteu à minha apreciação uma idéia bem pensada e de vasto alcance. Apesar dos esforços de Saur, as SS, durante minha doença, tinham-se apoderado do consórcio industrial húngaro Manfred-Weiss, importante fábrica de armamentos. Em torno desse consórcio ele pretendia criar outro, e pediu-me que lhe indicasse um especialista para a organização desse vasto empreendimento. Pensei um pouco e propus-lhe o nome de Paul Pleiger, que tinha criado grandes empresas siderúrgicas para a execução do Plano Quadrienal, homem enérgico, voluntarioso. Devido às suas numerosas relações com a indústria, ele não facilitaria a Himmler a idéia de dar ao consórcio alcance excessivo. No entanto, a minha sugestão não agradou a Himmler, que não me falou mais dos planos, para o futuro. Pohl, Jüttner e Berger, íntimos colaboradores de Himmler, agiam dura e impiedosamente, apesar de parecerem homens medianamente bonachões e de apresentarem uma vulgaridade tolerável, à primeira vista. Mas outros dois auxiliares revelavam a mesma frieza do chefe. Heydrich e Kammler, ambos louros, de olhos azuis e grande crânio, eram bem-educados e estavam sempre vestidos corretamente. Os dois eram capazes de, em qualquer momento, tomar decisões inesperadas, que impunham com rara tenacidade, enfrentando quaisquer resistências. Escolhendo-os, Himmler procedera de modo coerente consigo mesmo. Apesar da sua fé ideológica, Himmler não dava a mínima importância à sua filiação ao partido, quando se tratasse de questões de pessoal. Para ele, importava mais encontrar um indivíduo enérgico, dotado de compreensão rápida, e zeloso. Kammler, alto funcionário do Ministério da Aviação, no setor das construções, até a primavera de 1942, foi naquela época nomeado por Himmler chefe do grupo de construções das SS e, no verão de 1943, transferido para funcionar na execução do programa de foguetes. No decurso dessa sua atividade, Kammler revelou-se homem calculista, frio, destituído do senso de piedade, fanático na consecução de um resultado, que ele sabia calcular com tanto cuidado quanto falta de escrúpulos.
Himmler encarregava-o de uma missão logo depois de outra, aproximando-o de Hitler sempre que podia. Logo começaram os boatos de que Himmler tratava de criar um ambiente favorável a que o seu auxiliar fosse meu sucessor.
Durante a guerra, o número de operários determinou, em grande parte, a capacidade das empresas econômicas. Já no começo dos anos 40, e logo com rapidez crescente, as SS começaram a instalar em segredo campos de trabalho e a zelar para que se enchessem. Em memorando de 7 de maio de 1944, Schieber, um chefe de seção, advertiu-me de que as SS aspiravam a empregar seu poder de disposição da mão-de-obra com a finalidade de expandir suas empresas econômicas. Ademais – continuava em seu memorando o chefe de seção –, as SS estavam mostrando uma crescente e inescrupulosa tendência para retirar de nossas fábricas grandes quantidades de operários estrangeiros, baseando-se para isso em transgressões insignificantes que lhes davam pretexto para levar os transgressores para os campos de concentração. Segundo cálculos dos meus auxiliares, na primavera de 1944, as SS, com o seu procedimento, iriam privar-nos de trinta a quarenta mil operários por mês. Por isso, nos começos de junho de 1944 expliquei a Hitler que eu "não poderia resistir a uma redução anual de quinhentos mil operários, sobretudo por se tratar, em grande parte, de operários qualificados, cuja aprendizagem nos tinha custado muito". Hitler prometeu-me resolver a questão, em meu favor, depois de uma reunião em que Himmler e eu estivéssemos presentes. Mas Himmler, diante de nós, negou que estivesse procedendo daquele modo, apesar das provas inegáveis.
Os próprios prisioneiros tinham medo da crescente ambição econômica de Himmler. Lembro-me de uma inspeção que fiz, no verão de 1944, nas fábricas de Linz, onde os prisioneiros andavam livremente entre os operários. Estavam ao lado de máquinas, montadas no pavimento superior de uma fábrica, servindo de ajudantes dos operários especializados, que conversavam com eles, naturalmente. Não eram vigiados por homens das SS, mas por soldados do Exército. Aproximei-me de um grupo de vinte russos e, servindo-me do intérprete, perguntei-lhes se estavam satisfeitos com o tratamento que recebiam. Disseram que sim, gesticulando vivamente, e o aspecto deles confirmava o que diziam.
Não continuei fazendo perguntas. Para quê? As fisionomias bastavam para a expressão do sentimento reinante. Hoje, quando trato de analisar as minhas sensações naquela época, quando, depois de uma existência já vivida, intento saber o que, realmente, me guiava, se era a compaixão, a irritação, a pena ou o nojo, tenho a impressão de que a desesperada carreira contra o tempo, a obsessiva rigidez no tocante a algarismos relativos à produção ocultaram todas as considerações e sentimentos do ser humano. Um escritor norte-americano disse de mim que eu amava mais as máquinas do que os seres humanos. Não lhe falta razão. Hoje, verifico que, vendo homens que sofriam, isso influía apenas em minha sensibilidade, não em meu procedimento. O sentimentalismo só surgia no plano das sensações, enquanto no terreno das decisões continuavam predominando os princípios regidos pela utilidade. O emprego de prisioneiros nas fábricas de produção de armamentos foi uma circunstância agravante, utilizada contra mim pelo advogado de acusação, no processo de Nuremberg.
Segundo a lógica do tribunal de Nuremberg, minha culpa teria sido maior se eu tivesse conseguido aumentar o número de prisioneiros utilizados no fabrico de armamentos, contrariando as pretensões de Himmler, e, por conseguinte, aumentando as possibilidades de sobrevivência de alguns homens mais. Paradoxalmente, eu me sentiria hoje melhor se tivesse sido mais culpado, nesse sentido. Mas nem as normas utilizadas pelos juizes de Nuremberg nem a enumeração das vítimas salvas correspondem ao que sinto, atualmente, pois umas e outras acham-se dentro do respectivo sistema. O que me intranqüiliza mais é o fato de eu não ter visto nos rostos dos prisioneiros a fisionomia do regime, que eu tentava prolongar, naquelas semanas e meses. Não percebia a posição moral que havia fora do sistema, e oposta a ele, da qual entretanto eu deveria ter tido consciência. E, às vezes, eu pergunto a mim mesmo quais seriam os rapazes, que hoje estou vendo, que andaram pelas salas das máquinas das fábricas de Linz ou desceram até às galerias da "empresa média".
Um dia, no verão de 1944, recebi a visita do meu amigo Karl Hanke, chefe regional da Baixa Silésia. Anos atrás, ele me falara das campanhas na França e na Polônia, de mortos e de feridos, de dores e de tormentos, revelando-se então um homem compassivo. Agora, sentado na cadeira de couro verde, em meu gabinete, este homem falava, meio confuso, interrompendo-se de vez em quando. Pediu-me que eu jamais aceitasse um convite para visitar um campo de concentração na Alta Silésia. Hanke viu ali o que não lhe era permitido relatar. Eu jamais deveria visitar aqueles campos.
Não lhe fiz perguntas, nem a Himmler, nem a Hitler, nem falei disso aos meus amigos particulares. Não fiz nenhuma investigação... não queria saber o que estava acontecendo naqueles campos. Devia ser Auschwitz. Naquele momento, enquanto Hanke me advertia, a responsabilidade tornara-se de novo real. Naquele momento, segundo confirmei diante do tribunal internacional de Nuremberg, tive de pensar sobretudo em que a mim, como importante membro da chefia do Reich, cabia também a responsabilidade por tudo quanto estava ocorrendo. A partir daquele momento, fiquei moralmente prisioneiro daqueles crimes, porquanto, por medo, fugi da descoberta de algo que me teria impelido a tirar conclusões. Essa cegueira voluntária contrabalança tudo quanto de positivo eu quis e pude fazer, durante o último período da guerra. Se forem comparadas com essa cegueira, minhas atividades nos últimos tempos da guerra perdem valor e transformam-se em nada. Precisamente pelo fato de eu ter falhado, naquela ocasião, sinto-me hoje, inteira e pessoalmente, responsável pelo ocorrido em Auschwitz.
OPERAÇÃO VALQUÍRIA
Durante o vôo de bombardeiros inimigos sobre uma fábrica de hidrogênio, chamou-me a atenção a segurança com que os aviões dos Aliados alvejavam os objetivos. De repente me veio o pensamento de que, alvejando com tanta precisão, para os aviadores inimigos seria fácil destruir todas as pontes do Reno em um só dia. Meus temores foram confirmados pelos técnicos, a quem encarreguei do levantamento topográfico dos buracos abertos pelas explosões das bombas. Mandei fazer suportes de aço para, em caso de necessidade, proceder a um rápido conserto das pontes. Além disso, dei ordem para se construírem dez pontões e um navio-ponte.
Dez dias mais tarde, escrevi a Jodl uma carta em que lhe comunicava minhas preocupações: "Atormenta-me a idéia de serem destruídas as pontes do Reno, dada a intensidade dos bombardeios nestes últimos meses. Em que situação ficaríamos se, depois de cortada a marcha de recuo das nossas tropas nos territórios ocupados, o inimigo desembarcasse no litoral alemão do mar do Norte, em vez de fazê-lo pela Muralha do Atlântico? É um desembarque perfeitamente possível, pois o inimigo dispõe de absoluta superioridade aérea, primeira condição para o êxito de um desembarque no norte da Alemanha. Em todo caso, suas perdas seriam menores do que as que sofreria dirigindo diretamente um ataque à região defendida pela Muralha do Atlântico".
No solo pátrio, dispúnhamos apenas de unidades de tropa. Se o inimigo, utilizando pára-quedistas, ocupasse os campos de aviação em Hamburgo e Bremen, conseguindo logo ocupar os portos dessas cidades, para o que não necessitaria de muitas forças – tais eram os meus temores –, os exércitos invasores em poucos dias poderiam ocupar Berlim e até mesmo toda a Alemanha, sem encontrar grande resistência, uma vez que os exércitos no oeste estariam isolados pelo Reno, imobilizados pela dureza dos combates de defesa, estando além disso muito afastados para poderem acudir a tempo.
Meus temores eram tão peregrinos como as idéias de Hitler. Estando em Obersalzberg, Jodl observou com ironia que eu talvez estivesse entrando no campo da estratégia. Hitler porém deu atenção ao meu modo de pensar. Mas, no diário de Jodl, sob a data de 5 de junho de 1944, havia a seguinte anotação: "Terão de ser criados na Alemanha quadros divisionários, os quais, em caso de necessidade, possam socorrer as tropas em perigo e substituir as em descanso. Speer preparará as armas necessárias. No solo pátrio há sempre trezentos mil homens disponíveis para se formarem com eles de dez a doze divisões".
A minha idéia já fora estudada, havia muito tempo, sem que nem Jodl nem eu tivéssemos conhecimento. Desde maio de 1942, havia, sob o nome de Operação Valquíria, disposições, estudadas até o menor detalhe, para a rápida reunião em caso de distúrbios ou de situações de emergência das unidades que estavam na Alemanha. Mas agora Hitler interessara-se nisso, e em 7 de junho de 1944 realizou-se em Obersalzberg uma conferência da qual participaram Keitel, Promm e o Coronel Von Stauffenberg.
O Coronel Von Stauffenberg fora escolhido pelo General Schmundt, primeiro ajudante-de-ordens de Hitler, para, na qualidade de chefe do estado-maior de Fromm, ativar os trabalhos que dependiam deste general, que dava mostras de fadiga. As reuniões continuaram nos dias 6 e 8 de julho, na grande sala de estar do Berghof.
Talvez por acaso, talvez premeditadamente, o fato é que os principais conjurados militares estavam reunidos em Berchtesgaden, naqueles dias. Eu não soubera que os conjurados tinham planejado, alguns dias antes, atentar contra a vida de Hitler, utilizando-se de uma bomba preparada pelo General-de-Brigada Stieff. No dia 8 de julho, estive com o General Friedrich Olbricht para tratar com ele da incorporação de novos trabalhadores ao Exército, uma vez que não me fora possível ter um acordo com o General Keitel, com quem eu falara antes. Como em outras ocasiões, também agora se citaram as dificuldades que surgiriam inevitavelmente como conseqüência da organização da Wehnnacht, dividida quatro forças. Ele assinalou anomalias, cuja eliminação possibilitaria a transferência de centenas de milhares de jovens soldados da Luftwaffe para o Exército.
No dia seguinte, reuni-me em Berchtesgaden com o General Eduard Wagner, o Tenente-General Erich Fellgiebel, chefe dos serviços de transmissões, o General Fritz Lindemann, pertencente ao Estado-Maior, e com Helmut Stieff, chefe da seção de organização do Alto-Comando do Exército. Todos estavam implicados na conjuração e nenhum deles sobreviveria nos meses seguintes. Talvez por terem finalmente decidido, em caráter irrevogável e após um longo adiamento, levar avante o golpe de Estado, todos aparentavam despreocupação, parecendo mais desafogados. A crônica do meu ministério refere a estupefação que senti, vendo a despreocupação daqueles oficiais ao tratarem da desesperada situação nas frentes: "Segundo as palavras do General Eduard Wagner, as dificuldades são de pouco vulto... Os generais falam com desenfado da situação no leste, como se fosse uma bagatela".
Uma ou duas semanas antes, o General Wagner pintara a situação com as cores mais negras e formulara pedidos tão despropositais, no tocante aos armamentos, para o caso de ulteriores retiradas, que não era possível de modo nenhum satisfazê-lo. Na minha opinião, agora, aquelas exigências tencionavam demonstrar a Hitler que já não era possível fornecer ao Exército as armas necessárias e que estávamos a caminho da catástrofe. Na minha presença, Saur, meu colaborador, apoiado por Hitler, fez uma advertência ao mencionado general, muito acima dele, como se tratasse com um colegial. Procurei o general depois para dizer-lhe que minha simpatia por ele não tinha diminuído, mas verifiquei que ele não se preocupava com o motivo do desacordo.
Falamos demoradamente das anomalias na direção da guerra, conseqüentes de um comando superior insuficiente. O General Fellgiebel falou da desnecessária quantidade de soldados e de material empregados indevidamente só na instalação de comunicações, em separado, para cada uma das armas da Wehrmacht; a Luftwaffe e o Exército tinham estendido cabos independentes até Atenas e a Lapônia. Pondo de parte qualquer consideração de índole econômica, a fusão dos diferentes serviços garantiria um movimento sem atritos, no caso de uma súbita situação crítica. Mas Hitler reagia negativamente, com aspereza, ante essas insinuações. Eu mesmo contribuí com alguns argumentos favoráveis à unidade na direção dos serviços das armas integrantes da Wehrmacht. Embora não fossem raras as ocasiões em que estive conversando com os conjurados, não cheguei a tomar conhecimento do que estavam tramando. Só em uma ocasião desconfiei de que havia algo suspeito, mas não em conversa com eles e sim por uma observação de Himmler. Quase no fim do outono de 1943, durante uma conversa de Hitler com Himmler, na área que rodeava o quartel-general, ouvi algumas frases:
– Sendo assim, está o senhor de acordo, meu Fuhrer, em que eu fale com a "eminência parda" e finja colaborar com eles?
Hitler consentiu com um gesto de cabeça. Himmler continuou:
– Ignoro os planos, mas talvez eu consiga inteirar-me de algo mais, se conseguir obter a confiança deles. Se o senhor, meu Fuhrer, souber, por intermédio de outras pessoas, da minha atuação, já sabe qual o motivo do meu procedimento.
Hitler gesticulou, demonstrando assentimento.
– Naturalmente, deposito inteira confiança no senhor.
Perguntei a um dos ajudantes-de-ordens quem era o personagem designado pelo qualificativo de "eminência parda".
– Popitz, o ministro da Fazenda – explicou o ajudante-de-ordens.
O acaso encarregou-se da distribuição dos papéis. Durante algum tempo, o destino pareceu vacilante sobre a função que me caberia nos eventos do dia 20 de julho de 1944. Se eu estaria no centro do golpe de Estado, na Bendlerstrasse, OU no centro da defesa, no domicílio de Goebbels.
Na data de 17 de julho, Fromm, por intermédio de Von Stauffenberg, chefe do seu estado-maior, pediu-me que fosse 80 dia 20 do mesmo mês à Bendlerstrasse almoçar com ele, e depois entabularíamos uma conversa. Tive de recusar o convite, pois na manhã daquele dia eu iria falar aos representantes do governo e a homens de negócios para explicar-lhes a situação, no que dizia respeito aos armamentos. Apesar da minha recusa, Fromm repetiu o convite, insistindo, pois era absolutamente necessário que eu fosse vê-lo no dia 20 de julho. No entanto, recusei ainda uma vez aquele convite, porquanto depois da fatigante entrevista da manhã eu teria de ir tratar de armamentos com Fromm.
A minha conferência começou cerca de onze horas da manhã, na sala de reuniões, decorada e pintada por Schinkel, no Ministério da Propaganda, que Goebbels tinha posto à minha disposição. A bomba colocada por Stauffenberg em Rastemburgo explodiu, aproximadamente, à mesma hora em que, terminada minha dissertação, Goebbels, na qualidade de anfitrião, pronunciava algumas palavras de encerramento da reunião. Se os conjurados tivessem sido mais hábeis, teriam detido naquela reunião, na mesma hora do atentado, quase todo o governo do Reich, inclusive seus auxiliares mais importantes, utilizando apenas poucas forças.
Sem suspeitar de coisa nenhuma, Goebbels, em companhia de Funk e de mim, foi para o seu gabinete no ministério. Estávamos falando – como quase sempre nos últimos tempos – das ocasiões perdidas e das que ainda se poderiam aproveitar para a mobilização da nação alemã, quando um pequeno alto-falante anunciou: "O quartel-general deseja falar urgentemente com o senhor ministro. O Dr. Dietrich está no telefone".
Goebbels ordenou que fizessem a ligação. Dirigiu-se à sua mesa de despachos, levou o fone ao ouvido e perguntou:
– Dr. Dietrich? Sim? Goebbels no aparelho... Quê? Um atentado contra o Fuhrer? Que acaba de acontecer? Diz o senhor que o Fuhrer está vivo? Bem, no barracão de Speer. Sabe-se algo de mais concreto? O Fuhrer é de opinião que foi um operário da Organização Todt?
Dietrich teve de ser breve. A conversa terminou. Tinha sido posta em prática a Operação Valquíria, da qual os conjurados falavam, abertamente, havia meses, até mesmo com Hitler, operação considerada como plano de ação destinado a mobilizar as reservas existentes no território nacional.
"Era só isso o que me faltava!", pensava eu quando Goebbels nos repetiu o que ouvira de Dietrich, referindo as suspeitas em torno de um operário da Organização Todt. Se fosse confirmada essa suposição, meu prestígio sofreria um rude golpe. Bormann poderia utilizar-se do meu campo de jurisdição para novas intrigas e insinuações. Goebbels encolerizou-se, quando lhe disse que eu não podia dar detalhes sobre as medidas de controle para a seleção dos operários da Organização Todt, empregados em Rastemburgo. Esclareci-lhe no entanto que centenas de trabalhadores eram diariamente admitidos na Zona Reservada n.° 1 para os trabalhos de reforço do alojamento de Hitler; naquela época, o Fuhrer ocupava o barracão montado para mim. Sendo assim, sacudiu de a cabeça, estranhando que fosse fácil penetrar no interior da área mais protegida e vigiada no mundo:
– Para que servem então todas as medidas de segurança?
Pouco depois Goebbels despediu-se. Ele e eu estávamos presos à rotina ministerial.
Quando cheguei em casa para uma refeição, estava à minha espera o Coronel Engel, antigo ajudante-de-ordens de Hitler, então chefe de tropas na frente.
Interessava-me a opinião desse chefe, a respeito de um memorando que propusera a nomeação de um "vice-ditador" com plenos poderes, o qual, sem considerar prestígios, eliminasse de uma vez a intrincada organização tríplice e quádrupla da Wehrmacht, estabelecendo ao mesmo tempo uma organização coerente e efetiva. Esse memorando, preparado dias antes, mas tendo a data de 20 de julho, refletia idéias discutidas pelos participantes da conjuração.
Não me ocorreu telefonar ao quartel-general do Fuhrer para saber detalhes. Receei que uma chamada para o quartel-general causasse inquietação, dada a excitação de ânimos provocada por aquele acontecimento. Mas, antes de terminar minha conversa com o coronel, Goebbels chamou-me ao telefone. A voz do ministro estava rouca e exprimia excitação:
– Pode interromper seu trabalho? Venha ver-me! É muito urgente! Não, nada posso dizer-lhe por telefone.
Suspendi a conversa com o coronel e, mais ou menos às cinco da tarde, encaminhei-me à residência de Goebbels.
O ministro da Propaganda recebeu-me em seu gabinete, no primeiro pavimento do palácio onde morava, ao sul da Porta e Brandenburgo. Disse-me às pressas:
– Acabo de saber pelo quartel-general que está em andamento uma intentona militar em todo o Reich. Eu gostaria que o senhor estivesse aqui ao meu lado, nestes momentos, pois com freqüência tomo decisões precipitadas. E o penhor, com a sua calma, poderá compensar este meu defeito. Tratemos de agir refletidamente.
Realmente, a notícia causou-me tanta excitação quanto a Goebbels. Lembrei-me de todas as minhas conversas com Fromm, Zeitzler, Guderian, Wagner, Stieff, Fellgiebel, Olbricht ou Lindemann. A desesperada situação em todas as frentes, o êxito da invasão inimiga, a superioridade do Exército Vermelho, e, por último, a ameaçadora falência do abastecimento de carburante uniam-se à lembrança de nossas críticas, freqüentes vezes amargas, ao diletantismo de Hitler, suas decisões insensatas, suas contínuas ofensas a oficiais de alta patente, incessantes demissões e humilhações. Certamente não pensei que Stauffenberg, Olbricht, Stieff e os do seu círculo fossem os cabeças da insurreição. Pensei em um homem como Guderian, dado o seu temperamento colérico. Segundo descobri mais tarde, Goebbels devia estar informado já de que as suspeitas se referiam a Stauffenberg. No entanto, nada me disse a respeito, nem me contou que estivera falando com Hitler, poucos momentos antes da minha chegada.
Eu ignorava os nexos entre os fatos. Em todo caso, senti que uma intentona teria repercussão catastrófica em nossa situação. Não pude ver as razões morais da sublevação. Goebbels podia contar com a minha ajuda.
As janelas da sala davam para a rua. Minutos depois da minha chegada tinham vindo soldados equipados, que se dirigiram para a Porta de Brandenburgo. Chegando lá, dispuseram suas metralhadoras pelas imediações, fecharam o tráfego e ficaram de guarda. Chamei Goebbels para ver aquele movimento de soldados. Ele compreendeu logo a situação. Foi a um quarto contíguo, trouxe de lá uma caixinha de onde tirou umas pastilhas que guardou em um dos bolsos do paletó. E disse, nervoso:
– Isto é para o que possa acontecer!
Mandamos um oficial de gabinete averiguar que ordens tinham sido dadas àqueles soldados. Os que estavam junto à porta disseram:
– Aqui não entra nem sai ninguém.
As conversas de Goebbels, por telefone, em todas as direções, tiveram como resultado notícias que induziam a confusões. Tropas de Potsdam marchavam para Berlim, onde, segundo parecia, se encontrariam com forças provenientes de outras províncias. Apesar de não estar solidário com aquele movimento, eu me sentia afastado de tudo aquilo, como se não me interessasse a febril atividade de Goebbels, nervoso e decidido ao mesmo tempo. Mas o telefone continuava funcionando, não se ouvira nenhuma notícia pela estação de rádio, o que induziu Goebbels a pensar que os amotinados estavam vacilantes. Era incompreensível que eles não inutilizassem os meios de comunicação ou não se servissem destes para seus próprios objetivos. Sem dúvida, soube-se depois que eles tinham previsto a prisão de Goebbels e o assalto à Central de Telecomunicações das SS, à Central dos Correios do Reich, às emissoras mais importantes, nos arredores de Berlim, e à Chefia das Comunicações Radiofônicas. Poucos soldados bastariam para entrar na residência de Goebbels e, sem resistência, deter o ministro. Para nossa defesa dispúnhamos só de algumas pistolas. Provavelmente, Goebbels evitaria a prisão engolindo as pastilhas de cianureto.
Também era de estranhar que Goebbels não tivesse podido comunicar-se com Himmler, a única autoridade que dispunha de gente de confiança para sufocar o movimento. Não havia dúvida, Himmler ficara em segundo plano, o que intranqüilizou Goebbels, que não achava explicação para essa atitude do chefe nacional das SS e ministro do Interior. Pareceu-me sintoma da insegurança da situação o fato de Goebbels desconfiar de um homem como Himmler.
Também desconfiava de mim? Pois não me convidou a entrar em um quarto contíguo, quando foi falar com alguém, em uma das suas chamadas telefônicas? Não dissimulava seu ceticismo a respeito das pessoas.
O ministro da Propaganda talvez pensasse que a melhor maneira de estar seguro era ter-me em sua companhia, comando que as primeiras suspeitas tinham caído sobre Stauffenberg e, portanto, forçosamente, sobre Fromm. De qualquer modo,Goebbels sabia da minha amizade com a quem ele chamava, havia muito tempo, de "inimigo do partido".
Também eu pensei logo em Fromm. Quando me separei de Goebbels, fiz, na estação telefônica da Bendlerstrasse, uma ligação para Fromm, para obter mais informações. Responderam-me que não se sabia onde estava o Capitão-General Fromm. Eu ignorava que ele estava oculto em uma das dependências do edifício da Bendlerstrasse. Pedi então:
– Chame o seu ajudante-de-ordens. Disseram-me que ninguém atendia às chamadas para esse número.
– Pois então ponha-me em contato com o General Olbricht.
Este atendeu logo; falei-lhe em tom de gracejo, como costumávamos fazer em situações difíceis.
– Que há, general? Tenho de trabalhar e os soldados não me deixam sair da residência de Goebbels.
Olbricht desculpou-se:
– Peço-lhe desculpar-me. No seu caso, trata-se de um equívoco, somente. Vou resolver logo.
O general, desligou antes de eu continuar a falar. Eu nada disse a Goebbels, pois o tom e o conteúdo de nossa conversa sugeriram um entendimento entre nós dois, o que haveria de suscitar desconfiança em Goebbels.
Pouco depois, vinha falar comigo Schach, subchefe regional de Berlim. Informou-me que um dos seus conhecidos, um indivíduo chamado Hagen, respondia pela fidelidade do Comandante Remer, cujo batalhão cercara o distrito dos edifícios governamentais. Goebbels tratou de falar ao Comandante Remer e pediu-me que assistisse à conversa. Remer veio ao gabinete do ministro e a primeira coisa que Goebbels fez foi lembrar ao comandante o juramento de fidelidade a Hitler. Remer reafirmou sua lealdade a Hitler, mas acrescentou que Hitler estava morto, e por conseguinte ele tinha de obedecer às ordens do seu chefe, o General-de-Divisão Von Haase. Goebbels apresentou-lhe um argumento decisivo:
– O Fuhrer está vivo!
E, notando a vacilação de Remer, acrescentou: – Vivo! Falei com ele, há poucos minutos! Uma pequena camarilha de generais ambiciosos promoveu uma revolta militar! Uma porcaria! A maior porcaria da história!
A possibilidade de estar Hitler ainda vivo traduziu-se em alívio para aquele comandante atormentado pela ordem de cercar o distrito governamental. Remer olhou-nos firme, satisfeito, mas ainda incrédulo. Goebbels fez-lhe então ver a grandeza histórica daquela hora, a gigantesca responsabilidade perante a história, responsabilidade que pesava só sobre os ombros daquele oficial jovem; poucas vezes, no decurso da história, tal oportunidade se reservara para um ser humano. Quem visse Remer, quem visse Goebbels, saberia que este ganhara a partida. O ministro jogou a cartada mais importante:
– Vou falar já com o Fuhrer e o senhor também poderá dirigir-lhe a palavra. Creio que o Fuhrer lhe dará ordens que anulem as do seu general, não? – concluiu com um tom irônico.
E logo estabeleceu comunicação com Rastemburgo. Goebbels podia falar com o quartel-general por uma linha especial. Decorridos alguns segundos, Hitler estava no aparelho e Goebbels, depois de falar-lhe, passou o fone ao comandante. Remer logo reconheceu a voz de Hitler e, involuntariamente, enquanto segurava o fone, tomou a posição de continência, dizendo, repetidamente:
– Sim, meu Fuhrer... sim. Às suas ordens, meu Fuhrer.
Logo, Goebbels recebeu o fone das mãos de Remer e ouviu de Hitler o que fora resolvido. Em vez do General Haase, seria agora o Comandante Remer quem se encarregaria de tomar em Berlim todas as medidas militares necessárias à manutenção da ordem. Uma única linha telefônica bastou para anular todo o movimento. Goebbels passou à contra-ofensiva e ordenou que todos os homens disponíveis do Batalhão de Guarda fossem rapidamente concentrados no jardim da sua residência.
A rebelião malograra, mas não estava ainda inteiramente sufocada, quando Goebbels, mais ou menos às sete horas da noite, anunciou o atentado pela radiodifusão, acrescentando que o Fuhrer estava vivo e que tinha reiniciado os seus trabalhos. O êxito ainda não estava seguro, pois na Fehrbellinerplatz uma brigada de tanques ainda não se submetera às ordens de Remer. O comandante daquela força blindada declarou que só recebia ordens do Capitão-General Guderian, dizendo: “Quem não obedecer será fuzilado". Sua capacidade combativa era tão evidente que tudo estava dependendo da sua atitude, nas próximas horas. Ninguém sabia com quem estavam aquelas forças blindadas. Goebbels e Remer achavam plausível que Guderian participasse da sublevação. A brigada estava comandada pelo Coronel Bollbrinker, meu conhecido, tratei de falar-lhe pelo telefone. Sua resposta foi tranqüilizadora. Os tanques tinham a missão de anular a insurreição. Cerca de cento e cinqüenta soldados do Batalhão de Guarda de Berlim, em geral homens já maduros, estavam concentrados em torno do jardim da residência de Goebbels. ministro resolveu dirigir-lhes a palavra. E falou-lhes na obscuridade do jardim, onde apenas chegava luz por uma porta entreaberta. No fundo, o discurso de Goebbels nada dizia de mais, tecido de expressões de ânimo, mas Goebbels mostrava-se muito seguro de si mesmo, como se tivesse sido o único e completo vencedor do dia.
O Coronel Bollbrinker veio falar comigo em meu quarto, cerca das onze da noite. Informou-me que Fromm tinha a intenção de submeter a julgamento sumário na Bendlerstrasse os conjurados detidos. Vi logo que isso poderia ser prejudicial a Fromm. Na minha opinião, a decisão a respeito dos sublevados cabia a Hitler.
Pouco depois da meia-noite, saí de carro, em companhia de Bollbrinker e Remer, para impedir que se efetuassem as execuções. Em Berlim, completamente às escuras, a Bendlerstrasse estava toda iluminada por holofotes. Aquilo era fantasmagórico, dando a impressão de um cenário cinematográfico, no centro de um estúdio escuro, recebendo a luz de refletores.
Quando o carro ia entrando na rua, um oficial das SS fez sinal para que ficássemos parados, junto à calçada da Tiergartenstrasse. Ocultos, sob a sombra das árvores, estavam quase irreconhecíveis Kaltenbrunner, chefe da Gestapo, e Skorzeny, o libertador de Mussolini, rodeados de muitos chefes de categoria inferior. Expliquei a Kaltenbrunner que eu me dirigia até ali a fim de impedir que Fromm julgasse sumariamente os conjurados. Kaltenbrunner e Skorzeny, de quem se poderia esperar uma atitude de ódio ou de ironia pela derrota moral do Exército, do qual eram rivais, responderam-me, quase com indiferença, que os assuntos eram da alçada exclusiva do Exército.
– Não queremos nos meter nisso, não faremos nenhuma intervenção. Além do mais, já terminou o julgamento sumaríssimo.
Kaltenbrunner declarou que as SS não seriam utilizadas para sufocar a revolta, ou para cumprir as sentenças ditadas pelos tribunais militares. Proibira mesmo sua gente de entrar no edifício da Bendlerstrasse. Qualquer intervenção das SS causaria novas discórdias com o Exército e agravaria a situação existente. Tais considerações táticas, naquele momento, tiveram curta aplicação, pois duas horas depois os organismos das SS estavam perseguindo os oficiais do Exército participantes da conjura.
Mal Kaltenbrunner acabara de falar quando se viu uma grande sombra, recortada no fundo iluminado da Bendlerstrasse: Fromm, uniformizado, sozinho, dirigia-se para o nosso grupo, caminhando vagarosamente. Despedi-me de Kaltenbrunner e dos seus companheiros e fui ao encontro de Fromm. Dominando-se a custo, Fromm começou a falar:
– A intentona acabou. Já dei as necessárias ordens a todos os destacamentos da região militar. Por enquanto, não posso dar instruções às tropas de reserva, pois me tinham fechado dentro de um quarto. O chefe do meu estado-maior, o meu colaborador imediato!
Era evidente o aborrecimento e a inquietação quando, em voz forte, tratou de justificar o fuzilamento dos homens do seu estado-maior:
– Na minha qualidade de juiz, tinha a obrigação de proceder imediatamente a um julgamento sumário de todos os participantes da conjura.
E acrescentou em voz baixa e tensa:
– O General Olbricht e o chefe do meu estado-maior, O Coronel Von Stauffenberg, já estão mortos.
Fromm tencionava telefonar a Hitler. Pedi-lhe em vão que fosse antes ao meu ministério. Insistiu porém em falar a Goebbels, embora soubesse, como eu, que o ministro não gostava dele.
O comandante militar de Berlim, General Haase, já estava detido em casa de Goebbels. Fromm, na minha presença, em breves palavras comunicou a Goebbels o que acontecera e pediu-lhe que lhe proporcionasse falar a Hitler pelo telefone. Goebbels pediu a Fromm que se retirasse para um quarto próximo da sala e pediu a ligação telefônica. Ordenou a uma sentinela que vigiasse a porta do quarto onde estava Fromm e pediu-me que me retirasse da sala. Já era mais de meia-noite quando chegou em casa de Goebbels o até então invisível Himmler. Sem que ninguém pedisse, começou a dar explicação do seu afastamento, que era um dos seus modos de abafar levantes. Longe do centro do movimento, ele agia, sendo essa a sua tática, e Goebbels pareceu aceitar a explicação. Fingiu-se de bom entendedor e satisfeito narrou, pormenorizadamente, os acontecimentos, insistindo em que ele, praticamente sozinho, dominara a situação. Disse que os militares tinham confiado demais na norma de obediência, segundo a qual todas as ordens são executadas por oficiais inferiores e soldados. Em sua opinião, essa maneira de agir fora a causa do malogro da rebelião, porquanto tinham esquecido – acrescentou com uma satisfação curiosamente fria – que os alemães haviam sido educados, nos últimos anos, pelo Estado nacional-socialista, para pensarem politicamente.
– Precisamente por essa razão já não é mais possível, hoje, fazer que o povo alemão, como se fosse um grupo de bonecos, execute as ordens de uma camarilha de generais.
Aí, Goebbels deteve-se de repente e, como se a minha presença o importunasse, disse-me:
– Tenho de falar a sós algumas coisas com o Reichsfuhrer, caro Sr. Speer. Boa noite.
No dia seguinte, 21 de julho, os ministros mais importantes foram chamados ao quartel-general do Fuhrer para felicitá-lo. No meu caso, estendeu-se o convite a Dorsch e Saur, meus dois principais colaboradores. Era uma exigência inédita, tanto mais porque os demais ministros foram desacompanhados. Hitler cumprimentou os ministros de forma ostensivamente cordial, ao passo que a mim deu só um aperto de mão displicente. Também o círculo de Hitler comportava-se de maneira inexplicavelmente reservada. Logo que eu entrava em um lugar, cessavam as conversas e os presentes ou se retiravam ou se afastavam. Schaub, oficial de gabinete, olhando-me significativamente, disse:
– Agora sabemos quem estava por trás.
Depois me deixou só. Não pude saber do que havia. Separados de mim, Saur e Dorsch foram convidados para o chá da noite, no círculo íntimo. Tudo era inquietante e eu me sentia intranqüilo.
Keitel, entretanto, vencera a crise havida nas últimas semanas, decorrente das fantasias dos que rodeavam Hitler. Logo após a explosão da bomba, ao assentar-se a poeira, vendo que Hitler estava em pé, ileso, precipitou-se para o Fuhrer, segundo contava Hitler, gritando: "Meu Fuhrer! O senhor está vivo! O senhor está vivo!", e abraçou-o, sem dar atenção ao protocolo. Era claro que Hitler não o deixaria cair, mormente considerando-se que Keitel lhe parecia o homem capaz de exercer dura vingança contra os conjurados.
– Keitel quase morre, e não terá compaixão.
No dia seguinte, Hitler mostrou-se amável comigo, sendo imitado pelo seu grupo íntimo. Houve na casa de chá uma reunião, presidida por ele, da qual participei ao lado de Keitel, Himmler, Bormann e Goebbels. Hitler fez sua a idéia que eu lhe propusera por escrito, quinze dias antes, e nomeou Goebbels "delegado do Reich para a sua execução da guerra total". Sua salvação tornara-o mais disposto a tomar decisões. Em poucos minutos alcançaram-se objetivos pelos quais Goebbels e eu tínhamos lutado durante mais de um ano.
Em seguida, Hitler falou dos acontecimentos dos últimos dias, dizendo com expressão de triunfo que agora se chegara ao grande passo positivo na guerra. Verificava que Stálin avançara no rumo do êxito no processo de Tukhatchievski (6). Liquidando o Estado-Maior, abrira vagas para a gente nova que não provinha do tempo dos czares. Antigamente, pareciam-lhe falsas as acusações feitas, durante o processo de Moscou, em 1937. Mas, agora, depois da experiência de 20 de julho, perguntava a si mesmo se não tinha havido algo de verdade naqueles processos. Antes, como agora, não dispunha de mais elementos para os seus raciocínios – prosseguiu Hitler –, mas não podia excluir a existência de uma colaboração traidora nos dois Estados-Maiores.
Todos concordaram, particularmente Goebbels, que se expandiu em expressões de menosprezo ao generalato. Quando apresentei restrições ao que dizia, ele me encarou, mostrando uma expressão dura e hostil. Hitler ouviu em silêncio.
O fato de o General Fellgiebel, chefe das tropas de transmissões, ter sido um dos mais comprometidos deu a Hitler a oportunidade de comentários em que se mesclavam satisfação, cólera e sensação de triunfo, vendo-se justificado.
– Agora sei por que malograram todos os meus grandes planos na Rússia. Tudo foi produto da traição! Se não fossem esses traidores, já teríamos vencido, há muito tempo! Esta é a minha justificativa perante a história. Agora, temos de provar, necessariamente, se Fellgiebel tinha contato direto com a Suíça, caminho pelo qual os meus planos iam ter às mãos dos russos. Tem de ser interrogado com todos os meios disponíveis! Volto a ter razão, mais uma vez! Quem iria
(6) Trata-se do ex-oficial soviético da Guarda Imperial Mikhail Nikolaevich Tukhachevski (1893-1937), que se ligou à Revolução de 1917. Adepto de Trótski, chefe do Estado-Maior e criador do Exército vermelho, foi fuzilado por ordem de Stálin, acusado de traidor. (N. do E.)
acreditar em mim, quando eu me opunha à unificação do comando da Wehrmacht? A Wehrmacht é um perigo, se for dirigida por uma só mão! Acreditam ainda os senhores que foi por casualidade que eu fiz organizar o maior número possível de divisões das Waffen SS? Eu sabia por quê. Dei essa ordem contrariando todas as resistências. Dei essa ordem... ao inspetor-geral das forças blindadas. Tudo fiz, única e exclusivamente, para dividir ainda mais o Exército. Hitler, colérico, voltou a falar dos conjurados, afirmando que os "exterminaria e aniquilaria a todos", mencionando nomes de pessoas que, de algum modo, tinham se oposto a ele. Pretendia incluí-las no rol dos conspiradores. Disse, por exemplo, que Schach fora um "sabotador", no setor dos armamentos, apesar de dúctil e disposto a ceder. Ordenou a sua prisão.
– Também Hess será enforcado como esses porcos oficiais criminosos. Foi ele quem começou tudo isso, ele quem deu o exemplo de traição.
Depois dessas explosões de cólera, Hitler foi-se acalmando. Como alguém que acaba de livrar-se de um tremendo perigo, falou das circunstâncias que tinham dado origem ao atentado, do qual decorria, entretanto, um novo rumo para a situação e para a próxima vitória. Eufórico, interpretou o malogro do atentado como um acontecimento que lhe infundira mais confiança. Nós que o ouvíamos deixamo-nos contagiar pelo seu otimismo.
Somente depois de 20 de julho terminou a construção da casamata de Hitler. Era um bloco de cimento, sem janelas, sem entrada direta de ar, uma obra onde o espaço útil tinha menor superfície que a ocupada pelos grossos paredões. Por fora, parecia um monumento egípcio funerário, do tempo dos faraós. Hitler vivia trabalhando e dormindo naquele túmulo.
Antes de regressar a Berlim, na manhã de 24 de julho, eu visitara o chefe do Estado-Maior do Exército, Zeitzler, já demitido do seu cargo. Não pude evitar a companhia de Saur. Enquanto eu falava com Zeitzler, apareceu o seu ajudante, o Coronel Günther Smend, que seria justiçado semanas depois. Saur logo suspeitou de algo, observando-me mais tarde:
– Não reparou num olhar significativo entre ambos?
Respondi com um não aborrecido.
Estando Zeitzler e eu sozinhos, ele me informou que Smend viera de Berchtesgaden, onde esvaziara os arquivos do Estado-Maior do Exército. A tranqüilidade de Zeitzler, enquanto me falava, convenceu-me de que não estivera envolvido na conspiração.
Kaltenbrunner, capitão-general das SS e chefe da Gestapo, apresentou-se em minha casa, onde nunca estivera. Recebi-o acamado, pois a perna me doía outra vez. Ele demonstrava a mesma perigosa cordialidade, tal como na noite de 20 de julho. Parecia olhar-me inquisitorialmente, e afinal, sem mais rodeios, disse-me:
– Encontramos no arquivo da Bendlerstrasse a lista dos membros do governo, para o dia 20 de julho. O seu nome está incluído nela, para ministro dos Armamentos.
Sem alterar as boas maneiras, perguntou-me se eu já sabia disso. Minha fisionomia consternada ao ouvir tal informação convenceu Kaltenbrunner da minha ignorância do assunto. Desistiu de continuar o interrogatório e tirou do bolso do dólmã uma folha de papel. Era o plano de organização do governo, depois do golpe de Estado. Devia ter sido elaborado por um oficial, pois estava cuidadosamente redigido. Por esse plano, um "Grande Estado-Maior" incluiria as três armas da Wehrmacht. Subordinado ao mesmo estaria o comandante-chefe do Exército nacional, também chefe supremo de todos os setores relacionados com os armamentos. Logo após estava escrito em letras de imprensa: Armamentos: Speer. Mas um cético anotara a lápis, à margem: Se for possível, com um sinal de interrogação. A anotação desse desconhecido e o fato de eu não ter aceitado os convites de Fromm para ir à Bendlerstrasse salvaram a minha posição.
Naturalmente, refleti sobre o que eu teria feito, no caso de triunfo do golpe de Estado e se eu tivesse sido convidado para continuar em meu cargo. Talvez eu consentisse em colaborar, por algum tempo e com restrições. Pelo que hoje sei a respeito dos conspiradores, dos motivos da conjura, minha colaboração contribuiria para afastar-me de Hitler. Mas aquelas mesmas razões fariam problemática minha participação no governo, desde o início, por motivos exclusivamente externos. Entretanto, de um ponto de vista íntimo, haveria uma consideração moral, mediante a qual não se poderia admitir para mim uma posição daquela natureza, na Alemanha depois de Hitler.
Naquela mesma tarde, organizamos uma reunião conjunta dos ministérios para um ato solene de lealdade, do qual participaram todos os funcionários de categoria. A sessão não durou mais de vinte minutos, e eu pronunciei o mais vacilante e débil de todos os meus discursos. Até então, eu me mantivera infenso às fórmulas usuais, mas agora ressaltei com força a grandeza de Hitler, nossa confiança nele, e pela primeira vez terminei um discurso com um "Sieg Heil!" ("Viva!") Até então eu não sentira necessidade de expressões servis, opostas ao meu temperamento e contrárias à minha vontade. Mas eu estava me sentindo inseguro, comprometido e, apesar de tudo, implicado em processos inacessíveis para mim.
Além do mais, os meus receios não careciam de fundamento. Circulavam boatos da minha prisão. Havia pessoas que asseguravam ter sido eu fuzilado. Tudo sintoma de que a opinião pública, embora às escondidas, sentia perigo em minha posição.
Mas os temores cessaram quando Bormann me convidou a falar outra vez, no dia 3 de agosto, sobre o problema dos armamentos em reunião dos chefes regionais em Posen. A reunião estava sob a impressão dos eventos do dia 20 de julho. Embora o convite me tivesse reabilitado, oficialmente, senti em torno de mim uma reserva gelada. Eu estava só, no meio de numerosos chefes regionais. Nada podia definir melhor a situação do que uma observação de Goebbels, na manhã daquele dia, aos chefes regionais e nacionais do partido, que o rodeavam:
– Agora sabemos definitivamente quem é Speer.
Nossa produção de armamentos alcançara, precisamente, seu ponto culminante durante o mês de julho de 1944. Para não irritar mais uma vez aqueles chefes do partido, evitei as observações de ordem geral e despejei sobre eles uma aluvião de algarismos. Logrei relaxar a tensão, na base de numerosos exemplos, demonstrei que a Wehrmacht possuía grandes quantidades de material acessório, as quais não tinham sido empregadas. Goebbels logo gritou: "Sabotagem! Sabotagem!" Evidenciava-se que, desde 20 de julho, a direção do partido via traição, conspiratas e perfídias por toda parte. No entanto, os chefes regionais ficaram impressionados quando viram os algarismos da produção do meu ministério.
Os assistentes daquele congresso dirigiram-se a Posen, ao quartel-general, onde Hitler prometeu que lhes falaria no dia seguinte, na sala de projeções cinematográficas. Hitler convidara-me, expressamente, a participar da reunião. De acordo porém com a categoria oficial dentro do partido, sentei-me na última fila.
Hitler discorreu sobre as conseqüências do 20 de julho, atribuindo ainda uma vez seus fracassos à traição dos oficiais do Exército. Mas exprimiu sua esperança no futuro, declarando haver adquirido uma confiança "como jamais sentira igual em sua vida". Até então, todos os seus esforços tinham sido prejudicados pela sabotagem. Mas fora descoberta e eliminada a camarilha dos criminosos, de modo que, no final de contas, a intentona tinha sido o acontecimento mais promissor, com relação ao futuro. Hitler repetiu todos os argumentos que já expusera em outras reuniões privadas, logo depois do atentado. Quanto a mim, apesar de todas as minhas reservas, eu estava quase enlevado pela magia das suas palavras, quando ele, como se tivesse recebido um choque, pronunciou algumas frases que me despertaram dos meus sonhos enganosos:
– Se o povo alemão sucumbir nesta luta, será por ter sido muito fraco. Assim, não terá resistido à prova que lhe foi imposta pela história, e nesse caso o seu destino só poderá ser o aniquilamento.
Durante aquele discurso, assumindo uma atitude surpreendente, pois isso contrariava sua maneira de proceder, aludiu de modo especial à atuação dos seus colaboradores, referindo-se aos meus méritos e ao meu trabalho. Talvez tenha sabido da hostilidade dos chefes regionais para comigo e assumiu aquela atitude para reabilitar-me, porquanto seria necessária minha cooperação ao governo, também daí em diante. Demonstrou, aliás, de modo inequívoco, aos dirigentes do partido que suas relações comigo não tinham sofrido nenhuma diminuição depois do dia 20 de julho.
Aproveitei a circunstância, expressa na firmeza da minha posição, para ajudar a conhecidos e auxiliares que tinham ido afetados pela onda de perseguições decorrente daquele atentado. Saur, ao contrário, denunciou altos oficiais da Diretoria-Geral de Armamentos do Exército, o General Schneider e o Coronel Fichtner, cuja prisão foi imediatamente determinada por Hitler. Saur levara ao conhecimento do Fuhrer algumas supostas opiniões de Schneider, que teria dito não estar Hitler habilitado a julgar questões técnicas. Para a detenção de Fichtner bastou a alegação de que não incentivara o fabrico do novo tipo desejado de tanques, já no princípio da guerra. Daí ter sido suspeito de sabotagem. Mas uma prova da insegurança de Hitler foi ter concordado com a libertação dos dois oficiais, logo que lhe pedi, sob a condição de não voltarem a trabalhar na Diretoria-Geral de Armamentos do Exército.
Um exemplo demonstrativo da intranqüilidade de Hitler, por desconfiança nos oficiais, foi o ocorrido no quartel-general, no dia 18 de agosto. Três dias antes, o Marechal Kluge, comandante-chefe da frente do oeste, viajara para o setor do VII Exército. Durante horas, não fora possível estabelecer-se contato com o marechal, acompanhado somente por seu ajudante-de-ordens e levando consigo apenas um transmissor. Hitler começou a exprimir suas suposições, convencido de que o marechal e seu ajudante tinham ido a um local, previamente combinado, onde negociaria com os Aliados a rendição dos exércitos alemães na frente oeste. Tais negociações não se fizeram, mas Hitler continuava suspeitando de que a viagem de Kluge fora interrompida por um ataque aéreo, inutilizando-se assim as intenções de traição do marechal. Quando cheguei ao quartel-general, Hitler já tinha demitido Kluge, ordenando-lhe que se apresentasse no quartel-general. Recebeu-se afinal a notícia de que o marechal morrera de um ataque cardíaco, durante a viagem. Guiando-se pelo seu sexto sentido, o Fuhrer ordenou que a Gestapo tomasse conta do cadáver e procedesse à autópsia. Quando se verificou que a morte fora causada por envenenamento, Hitler, dando à voz um entono de sobranceria, declarou estar então plenamente convencido das manobras traidoras de Kluge, embora este militar, em carta, lhe tivesse hipotecado fidelidade até à morte.
Durante a minha permanência no quartel-general, vi na mesa de mapas de Hitler informações dos interrogatórios feitos por Kaltenbrunner. Um ajudante-de-ordens do Fuhrer, que era meu amigo, possibilitou-me a leitura dessas informações, durante algumas noites, pois eu não me sentia muito seguro. Frases que antes de 20 de julho valiam apenas como críticas, aliás justificadas, eram agora interpretadas como provas de culpa. No entanto, nenhum dos detidos tinha feito declarações comprometedoras a meu respeito. Um ou outro apenas me apelidou de "asno que move a cabeça" para significar que eu pertencia ao grupo daqueles que sempre diziam amém a Hitler.
Havia na mesa muitas fotografias que eu não tinha a coragem de pegar para ver de perto. Uma mostrava um homem enforcado com roupa de presidiário e de calças amarradas por uma tira de pano de cor. Um dos chefes das SS, ao meu lado, revelou a identidade do justiçado:
– É Witzleben. Quer ver as outras? Todas são fotos de execuções.
À noite, os filmes das execuções eram projetados na tela da sala do cinema. Eu não podia nem queria ver aquilo. Em todo caso, para não chamar a atenção dos demais, eu pretextava estar sobrecarregado de trabalho. Vi muitas pessoas, na maioria civis chefes inferiores das SS, dirigirem-se à sala onde se exibiam tais filmes, mas não descobri naquela assistência nenhum oficial da Wehrmacht.
AS ONDAS DO OESTE
Nos primeiros dias de julho, propus a Hitler que Goebbels fosse encarregado dos problemas do esforço total para a guerra, em substituição ao ineficaz triunvirato. Eu não podia imaginar então que, algumas semanas depois, estivesse desfeito o equilíbrio entre Goebbels e mim pela perda do meu prestígio, como conseqüência de ter sido eu um dos candidatos dos conspiradores.
Também aumentava o número dos chefes do partido que atribuíam as derrotas passadas à insuficiente intervenção do partido nos assuntos governamentais. Queriam até que os generais saíssem das fileiras do partido. Lamentavam, abertamente, que, em 1934, as SS tivessem sido subordinadas à Wehrmacht. Viam como uma oportunidade perdida a iniciativa de Roehm no sentido da formação de um exército popular, de onde sairia um corpo de oficiais cuja falta era agora a causa dos fracassos, nos últimos anos. O partido julgava que podia no momento fazer pressão sobre o setor civil, dando ordens ao Estado e a todos nós com energia e vigor.
Uma semana depois daquela reunião em Posen, o chefe da Comissão Principal de Armas, Tix, informou-me de que "os chefes regionais, os comandos das SA e outras estruturas do partido" estavam tratando, bruscamente, de modo que não fosse possível nenhuma réplica, da intervenção nas empresas. Três semanas depois, como conseqüência da intromissão do partido, entraria em vigor uma distribuição de "ordens por partida dupla". As centrais de armamentos estavam submetidas, em parte, à pressão dos chefes regionais, com suas arbitrárias intervenções que provocavam uma confusão fenomenal.
Nessa política ambiciosa, os chefes regionais estavam sendo estimulados por Goebbels, que se sentia menos ministro do Reich do que chefe do partido em que, com o apoio de Bormann e de Keitel, preparava amplas mobilizações. Era de esperar que aquelas arbitrariedades causassem graves perturbações na produção de armamentos. Em 30 de agosto de 1944, comuniquei aos chefes de seção meu intento de responsabilizar os chefes regionais pelos fornecimentos de armamentos.
No dia 20 de setembro, escrevi a Hitler uma longa carta, na qual expus francamente todas as censuras que me dirigia O partido, seus esforços por prescindir da minha atuação, desautorizando-me, suas suspicácias e táticas vexatórias. Eu dizia ao Fuhrer que "o 20 de julho serviria de pretexto para fomentarem a desconfiança quanto à lealdade do meu extenso quadro de colaboradores na indústria". O partido parecia estar convencido de que os elementos mais chegados a mim eram "reacionários, interesseiros e contrários ao partido". Goebbels e Bormann tinham-me dito, claramente, que a própria responsabilidade da indústria, criada por mim e meu ministério, podia ser considerada como motivo "de atração de economistas reacionários e até hostis ao partido".
Declarei em minha carta que somente sob condições eu consentiria que o partido interviesse na organização do departamento de armamentos; os chefes regionais e os delegados econômicos de Bormann nas regiões (assessores econômicos regionais) deveriam estar diretamente subordinados a mim em todos os assuntos do armamento. Eu também exigia de Hitler que se pronunciasse outra vez sobre o princípio mediante o qual eu orientara a indústria de armamentos.
Em 21 de setembro, fui ao quartel-general e entreguei minha carta a Hitler, que a leu, silencioso. Sem me dar nenhuma resposta, esmagou nos dedos o lacre do timbre, e entregou o papel ao seu oficial de gabinete para que o levasse a Bormann. Então, pediu ao seu secretário e a Goebbels, que estava no quartel-general, naquela ocasião, que opinassem sobre o conteúdo da minha reclamação. Isso significava minha derrota definitiva. Pelo visto, Hitler estava cansado de intervir em disputas incompreensíveis para ele. Algumas horas depois, Bormann chamou-me ao seu gabinete, situado a poucos passos do alojamento de Hitler. Estava em mangas de camisa, mostrando os suspensórios no volumoso. Encontrava-se lá Goebbels, impecavelmente vestido. Invocando o decreto de Hitler de 25 de julho, o Ministro afirmou que pensava fazer uso ilimitado do pleno poder que lhe facultava aquele decreto, a fim de me dar ordens. Bormann manifestou-se de acordo: eu deveria submeter-me a Goebbels. Além disso, proibia-me qualquer tentativa no sentido de influir diretamente em Hitler. A explicação, cada vez mais desagradável, encerrou-se com um tom de grosseria, enquanto Goebbels ouvia, mostrando fisionomia ameaçadora, de vez em quando fazendo algum comentário cínico. Aquela iniciativa, contra a qual eu tanto lutara, tornara-se realidade e da forma mais inesperada: Goebbels e Bormann marchavam unidos.
Hitler nada me disse a respeito das minhas propostas, na mencionada carta, mas dois dias depois deu-me uma prova da sua boa disposição para comigo, assinando uma convocação, redigida por mim, dirigida aos diretores de fábricas, a qual no fundo confirmava o que eu pedira em minha carta. Em circunstâncias normais, isso significaria uma vitória sobre Bormann e Goebbels, mas naquela época a autoridade de Hitler no partido nada tinha de sólido. Os hierarcas mais fanáticos limitaram-se a não fazer caso e continuaram com suas intromissões no campo econômico. Eram os primeiros sintomas da decomposição da estrutura do partido e da lealdade dos chefes. Naturalmente, Hitler tinha sua parte de culpa na perda de autoridade. Denunciava-se fraco ante os pedidos de Goebbels, que queria mais soldados, e apoiava também as minhas solicitações no que dizia respeito à produção de armamentos; com isso, confirmava ordens contraditórias, até que as bombas e o avanço dos exércitos inimigos tornaram inteiramente supérfluas as suas determinações, anulando a importância da questão da autoridade de Hitler.
Acossado tanto pela política interior como pelo inimigo exterior, eu encontrava grande alívio quando me afastava de Berlim. Minhas visitas à frente de batalha estavam sendo mais freqüentes e prolongadas. No entanto, eu nada podia fazer para melhorar os fornecimentos, pois as minhas experiências não seriam mais úteis.
Além disso, minhas recomendações, orais ou escritas, não eram atendidas. Muitos generais solicitavam-me a renovação das velhas unidades, fornecendo-lhes novas armas e tanques cuja produção era ainda importante. Mas Hitler e Himmler, seu novo comandante-chefe do Exército de Reserva, opinavam, contrariando os meus argumentos, que as tropas repelidas pelo inimigo careciam de espírito de resistência e, portanto, seria preferível formar às pressas novas unidades, as chamadas Divisões de Infantaria do Povo. Quanto às divisões já dizimadas, diziam os dois, deveriam perder todo o sangue, "dessangrarem-se" inteiramente, segundo a expressão deles.
Nos fins de setembro de 1944, visitei uma divisão blindada de instrução, em Bitburg. O comandante, curtido por muitos anos de guerra, mostrou-me o campo de batalha, onde poucos dias antes se consumara a tragédia de uma nova brigada blindada, sem experiência. O adestramento fora insuficiente, durante a marcha tinham-se perdido dez dos novos tanques Pantera, por avarias mecânicas. Os vinte e dois restantes foram para o local da batalha tão erradamente, segundo me demonstrou o comandante, que quinze puderam ser destruídos por uma unidade norte-americana de artilharia antitanque, a qual os alvejava como se estivesse fazendo um exercício de tiro.
E o capitão comentou com amargura:
– Era o primeiro embate da unidade recém-formada. O que não teriam feito os meus veteranos com aqueles tanques!
Quando terminei a minha exposição daquele caso, comentei com ironia que "a criação de novas unidades está muitas vezes em franca desvantagem em relação à reestruturação das antigas". Mas Hitler não se alterou. Durante uma reunião para o estudo da situação, afirmou que, por sua própria experiência, sabia que os soldados só cuidam bem das suas armas quando escasseiam os fornecimentos. Durante minhas visitas à frente ocidental, descobri que, em alguns casos especiais, havia tentativas de acordo com o inimigo. Perto de Arnhem, encontrei o enfurecido General Güpttrich das Waffen SS, cujo Corpo Blindado tivera na véspera um encontro com uma divisão britânica de transporte aéreo. Durante a luta, o general fizera um acordo com os ingleses, mediante o qual o inimigo ficava autorizado a utilizar um hospital de campanha, situado por trás das linhas alemãs. Funcionários do partido eliminaram vários pilotos ingleses e norte-americanos, inutilizando a decisão de Bittrich. As duras expressões que ouvi naquele dia contra o partido tanto mais surpreendentes porque procediam de um General das SS.
Também o Coronel Engel, antigo ajudante-de-ordens de Hitler, agora comandante da 12ª Divisão de Infantaria, em Düren, estabelecera, por iniciativa própria, um acordo com o inimigo para o recolhimento de feridos em combate, durante tréguas. Não era aconselhável falar desses acordos no quartel-general, pois Hitler considerava-os prova de fraqueza. Nós já o tínhamos ouvido depreciar o suposto cavalheirismo dos oficiais prussianos. Ao contrário, segundo ele, a dureza e a implacabilidade com que russos e alemães combatiam no leste serviam para fortalecer o espírito de resistência do soldado, não deixando margem para considerações humanitárias.
Recordo-me de um único caso em que Hitler, contra sua vontade, consentiu em acordo com o inimigo. Nos fins do outono de 1944, a frota britânica cercara as tropas alemãs, nas ilhas gregas, sem possibilidade de comunicação. Apesar da absoluta superioridade naval dos ingleses, as unidades alemãs puderam ser transportadas para terra firme, sem serem atacadas, passando pelos navios de guerra britânicos. Em compensação, os alemães tinham consentido em defender Salônica contra os russos, utilizando-se daquelas tropas, até que os ingleses se apoderaram da praça. Quando terminou a operação, proposta por Jodl, Hitler comentou:
– Foi a única vez em que concordamos com isso.
Em setembro de 1944, os generais da frente, os industriais e chefes regionais do setor ocidental esperavam que os exércitos ingleses e norte-americanos aproveitassem da sua superioridade e levassem de roldão as nossas forças, cansadas e desarmadas, em uma ofensiva sem tréguas. Ninguém contava com a possibilidade de detê-los, ninguém ainda dotado do senso da realidade admitia que acontecesse um "milagre do Marne" em nosso favor.
Competia ao meu ministério preparar a destruição das instalações industriais de qualquer tipo, inclusive as situadas em territórios ocupados. Nas retiradas da União Soviética, Hitler dera ordem de neutralizar, na medida do possível, os avanços do inimigo, mediante o processo de "terra arrasada". Agora, não vacilou em dar instruções análogas para os territórios ocupados no oeste, quando os exércitos da invasão começaram a avançar desde a cabeça-de-ponte na Normandia. Em princípio, essa prática fundava-se em razões de positivo valor estratégico. Devia-se impedir que o inimigo consolidasse posições, que continuasse avançando nos territórios libertados, que se utilizasse dos serviços técnicos de reparações, instalações de gás e de eletricidade, e que, mais adiante, pudesse tirar proveito do potencial da indústria. Enquanto fosse imprevisível o desfecho da guerra, tais processos me pareciam justificáveis. Mas, desde o momento em que a derrota final se apresentou, inelutavelmente próxima, eles perderam todo o sentido.
Ante a situação desesperada, era natural que eu tratasse de evitar as destruições desnecessárias, que haveriam de dificultar as reconstruções. Eu não estava dominado pelo derrotismo que se apoderara dos demais elementos do séquito de Hitler. Mediante um argumento muito simples, eu conseguia, uma ou outra vez, conter o Fuhrer, que cada dia se mostrava mais brutal e mais obstinado em desencadear a catástrofe. Eu insistia na idéia de reconquista dos territórios, e então iríamos necessitar das indústrias que estivessem funcionando.
No começo da invasão, quando os norte-americanos romperam a frente defensiva alemã, cercando Cherburgo, o meu argumento suscitou a decisão de Hitler no sentido de se conservar o potencial industrial da zona, apesar das dificuldades de transporte para lá. Essa idéia de Hitler permitiu ao comandante militar deixar de cumprir uma ordem anterior, dada pelo Fuhrer, em cuja obediência deveriam ser deportados para a Alemanha operários franceses, no total de um milhão de homens, no caso de uma invasão.
Agora, Hitler voltava a falar na necessidade da total destruição da indústria francesa. Em 19 de agosto, quando as forças aliadas tinham alcançado o noroeste de Paris, consegui sua permissão para não se destruírem as indústrias e centrais elétricas que caíssem em mãos do inimigo, mas que fossem apenas postas fora de funcionamento. Mas não me foi possível conseguir que Hitler tomasse uma decisão geral. Em cada caso, eu me servia do argumento de que as retiradas eram transitórias.
Mas quando, nos fins de agosto, as forças inimigas aproximaram-se da bacia mineira de Longwy e Brie, a situação tomou um aspecto diferente. Em 1940, o território da Lorena praticamente anexado ao Reich, e tinha de contar com a presença de um chefe regional. Sendo impossível convencer o chefe de que cedesse ao inimigo o território intacto, dirigi-me diretamente a Hitler e fui autorizado a encarregar-me das minas de ferro e das indústrias, comunicando-me com o chefe regional sobre essa autorização dada pelo Fuhrer.
Nos meados de setembro de 1944, Rõchling, que estava em Saarbrücken, comunicou-me que havia entregado as minas francesas em perfeito estado de exploração. Mas a central elétrica estava do nosso lado e Rõchling perguntou-me se podia fornecer energia às bombas pelo cabo de alta tensão, ainda intacto. Consenti, como aliás já fizera para o fornecimento de energia a Liège, já em poder do inimigo, para não prejudicar o funcionamento de hospitais e centros médicos da zona.
Poucas semanas depois, tive de ocupar-me do que teria de acontecer com a indústria alemã. Naturalmente, os industriais não se dispunham a permitir que se destruíssem suas fábricas. E por assombroso que pareça, alguns chefes regionais solidarizaram-se com eles.
A fim de preparar o terreno, no caso de Hitler saber que as suas instruções não estavam sendo executadas nos setores da frente alemã, no meu relatório de viagem, de 10 a 14 de setembro, eu afirmava que nas proximidades da frente os industriais alemães poderiam continuar trabalhando muito bem. E como exemplo eu dizia que em Aachen uma fábrica estava produzindo quatro milhões de cartuchos para a Infantaria. Portanto, seria muito conveniente que ela continuasse produzindo até o último momento, mesmo sob o fogo do inimigo, a fim de suprir as necessidades imediatas das tropas combatentes naquele setor. Também afirmei que seria desaconselhável a inutilização das usinas de coque, que poderiam continuar fornecendo gás a Colônia e produzindo várias toneladas por dia de benzol para as tropas. Seria também errado inutilizar as centrais elétricas, nas proximidades da frente, uma vez que os serviços postais e as comunicações telefônicas dependiam do fornecimento da energia elétrica. E, amparando-me em anteriores decisões de Hitler, telegrafei a todos os chefes regionais, comunicando-lhes que as instalações industriais não deviam ser danificadas.
Mas, de repente, tudo pareceu voltar a piorar. Quando regressei a Berlim, Liebel, chefe do Departamento Central, recebeu-me na residência dos engenheiros de Wannsee com a notícia de que tinham sido transmitidas a todos os ministérios ordens de Hitler segundo as quais se devia aplicar ao território alemão o princípio de "terra arrasada".
Para estarmos ao abrigo de possíveis indiscrições, sentamo-nos à sombra de uma aléia do jardim da quinta do Wannsee. Era um belo dia de sol de fim de verão. Liebel fez um resumo dos propósitos de Hitler com as seguintes palavras: não seria permitido a nenhum alemão viver nos territórios ocupados pelo inimigo; aqueles que ainda existissem iriam vegetar em um deserto; não somente se destruiriam as indústrias, os reservatórios de água, as usinas de gás, de eletricidade, as centrais telefônicas, mas tudo quanto fosse necessário à vida: cartões de racionamento, livros do Registro Civil, registros de contas bancárias, como também se reduziriam a cinzas os depósitos de gêneros alimentícios, as granjas, e se mataria todo o gado. Não seriam poupadas nem as obras de arte que tivessem escapado dos ataques aéreos, nem edifícios monumentais, castelos, palácios, igrejas, teatros. Tudo estaria condenado à destruição. Por ordem de Hitler, o Volkischer Beobachter estampou um artigo em que se lia esta manifestação de impulso vandálico: "Nenhum fruto alemão alimente o estrangeiro, nenhuma boca alemã lhe dê informações, nenhum braço alemão lhe preste ajuda. Que o estrangeiro encontre destruídas todas as pontes, fechados todos os caminhos; que somente encontre a morte, a desolação e o ódio".
Com o meu relatório de viagem tentei em vão despertar a compaixão de Hitler, descrevendo-lhe a marcha pelas estradas das populações que fugiam ante o avanço do inimigo, tal como ocorrera na França em 1940. Instei com ele para que fosse ao oeste, para ver pessoalmente a situação, dizendo-lhe: "O povo espera-o".
Mas Hitler não foi. Ao contrário, quando soube que o chefe da comarca de Aachen, Schmeer, não empregara todos os meios coercitivos de que dispunha para forçar a evacuação, Hitler demitiu-o do cargo, expulsou-o do partido mandou-o para frente como soldado raso. Teria sido difícil levar Hitler a voltar atrás de sua decisão. E eu não podia por conta própria. Em todo caso, inquieto e preocupado, enviei um telegrama, o qual, depois de autorizado por Hitler, seria remetido por Bormann aos oito chefes do setor ocidental. Eu queria obrigar Hitler a retratar-se, induzindo-o a traçar uma norma geral. Ainda uma vez, recorri à fé de Hitler, autêntica ou simulada, na vitória final. E meu argumento era que, se ele não retificasse as ordens dadas, dava a guerra por perdida, tornando sem sentido as expressões de incitamento à resistência.
Assim, escrevi: "O Fuhrer concluiu que, em breve prazo, poderá reconquistar os territórios perdidos, os quais são de grande importância para a produção de armamentos e material bélico em geral. Assim, durante a retirada, tomem-se as necessárias medidas para que as fábricas possam voltar a trabalhar com pleno rendimento... Até o último momento, não se danifiquem as fábricas, impossibilitando-as de trabalhar por muito tempo..." E mencionei centrais elétricas, minas, reservatórios de água, etc.
Chamei então ao telefone o quartel-general para saber se tinham apresentado o telegrama a Hitler. Mas já fora autorizado, inclusive com uma alteração. Eu esperava correções, aqui e ali, mas, na realidade, Hitler não tocara no texto do telegrama. A única observação referia-se à sua confiança na vitória.
Bormann mandou expedir o telegrama aos chefes regionais com a seguinte nota: "Por determinação do Fuhrer, remeto-lhe anexo um escrito do ministro do Reich, Speer, o qual deverá ser obedecido e fielmente observado". Bormann, entretanto, tinha colaborado no texto transmitido, parecendo compreender melhor do que Hitler as devastadoras conseqüências da total destruição dos territórios que se teriam de abandonar.
Mas, na realidade, Hitler tratava apenas de salvar as aparências, quando falava da "recuperação de uma parte dos territórios perdidos no ocidente". Havia mais de uma semana, ele sabia que, ainda que fosse estabilizada a frente, a guerra terminaria dentro de poucos meses por falta de material. Jodl tinha corroborado com dados estratégicos meus prognósticos do ano anterior, esclarecendo que o Exército ocupava uma área muito extensa, e ilustrava seus argumentos com o exemplo da serpente imobilizada por haver engolido uma presa muito grande. Propunha deixar-se a Finlândia, o norte da Noruega, a Itália setentrional e a maior parte dos Bálcãs. Reduzindo-se as áreas ocupadas, seria possível a escolha de posições defensivas favoráveis, do ponto de vista geográfico, tanto nas margens dos rios Tizsa e Sava como nas encostas meridionais dos Alpes. Assim, ele esperava deixar disponíveis numerosas divisões. No princípio, Hitler resistiu à idéia de autoliquidação, implícita no plano, mas, afinal, em 20 de agosto de 1944, deu-me autorização a, pelo menos, estudar os efeitos da renúncia às matérias-primas que se obtinham naqueles territórios.
Três dias antes de eu terminar meu memorial, no dia 2 de setembro de 1944, Finlândia e União Soviética suspendiam o fogo e exigiam das tropas alemãs que saíssem do território finlandês, antes de 15 de setembro. Jodl chamou-me imediatamente ao telefone, perguntando-me pelo resultado das minhas estimativas. Hitler mudara de opinião. Nem queria ouvir falar de retiradas voluntárias. Jodl, ao contrário, insistia com mais vigor do que nunca na imediata retirada da Lapônia, aproveitando-se o bom tempo. Todo o material estaria irremediavelmente perdido, se durante a retirada as tropas fossem surpreendidas por uma das tempestades de neve que ocorriam nos princípios do outono. Novamente Hitler esgrimiu o mesmo argumento do ano anterior, quando se discutia o abandono das jazidas de manganês do sul da Rússia: – Se perdermos as minas de níquel da Lapônia, em poucos meses estará paralisada a produção de armamentos. Esse argumento não prevaleceu por muito tempo. Três dias depois, em 5 de setembro, enviei pelo correio o meu memorial a Hitler e a Jodl, no qual eu demonstrava que não seria a perda das jazidas finlandesas de níquel o fator decisivo naquela produção, e sim a interrupção das entregas de minério de cromo proveniente da Turquia. Supondo-se que a produção de armamentos continuasse integral – considerando-se os bombardeios, isso era puramente hipotético –, a última entrega de cromo se faria no dia 1.° de junho de 1945. Levando-se em conta o prazo de armazenagem e elaboração industrial, a produção total de armamentos deveria cessar em l.° de janeiro de 1946.
Naquele tempo eram imprevisíveis as reações de Hitler. Eu me tinha preparado para uma explosão de raiva impotente, mas ele inteirou-se do conteúdo do meu memorial com toda a calma, sem deduzir conseqüências e, não obstante os conselhos de Jodl, adiou o início da retirada até meados de outubro. Ê provável que, ante a situação militar no momento, suas previsões lhe tenham sido indiferentes. Uma vez rompidas as frentes de leste e de oeste, a data de 1.° de janeiro de 1946 deveria ser considerada utópica, mesmo para Hitler.
No momento, o que havia de mais premente era a escassez de carburante. O Exército estava quase paralisado por falta de gasolina. Nos fins de outubro, comuniquei a Hitler uma visita que fiz ao X Exército, aquartelado ao sul do rio Pó. Vi ali uma coluna de cento e cinqüenta caminhões, puxados cada um por quatro bois. Outros eram rebocados por tanques e tratores. Nos começos de dezembro, expressei minha preocupação pelo treino dos motoristas de tanques, pois faltava o combustível suficiente para os exercícios. Naturalmente, o Capitão-General Jodl sabia, melhor do que eu, da precariedade da situação. Para dispor das dezessete mil e quinhentas toneladas de combustível necessárias à ofensiva de Ardenas – quantidade que era há tempos produzida em dois dias e meio –, em 10 de novembro de 1944 teve de suspender os fornecimentos a outros grupos de exércitos.
Entretanto, os bombardeios das fábricas de hidrogênio tinham começado a produzir efeito em toda a indústria química. Tive de- informar a Hitler que "para encher as cápsulas, os explosivos teriam de ser misturados com sais, na proporção máxima admissível". Na realidade, desde outubro de 1944, os explosivos continham vinte por cento de sal mineral, o que diminuía sua eficácia na mesma proporção.
Naquela situação desesperada, Hitler não soube jogar com seu último trunfo. Por incrível que pareça, justamente naqueles meses fabricamos mais e mais caças. Durante o último período da guerra, entregaram-se doze mil, setecentos e vinte desses aparelhos, enquanto em 1939 a produção fora apenas de setecentas e setenta e uma unidades. Nos fins de julho, Hitler concordou, pela segunda vez, em que houvesse um treinamento especial de dois mil pilotos, porquanto supúnhamos que, mediante ataques maciços, poderíamos infligir grandes perdas à aviação norte-americana, obrigando-a assim a suspender os bombardeios. Tanto no vôo de ida como no de volta, as esquadrilhas de bombardeiros ofereciam, em média, um flanco de mil quilômetros de extensão.
Adolf Galland, general do Corpo de Caças, e eu tínhamos calculado que se perderia um caça alemão para cada bombardeiro abatido e que as perdas de material, de um e de outro lado, estariam na proporção de um para seis, e a de pilotos na de um para dois. Além disso, a metade dos pilotos alemães derrubados podia salvar-se, de pára-quedas, ao passo que a superioridade do inimigo em homens, material e potencial de treino das tripulações dos aviões adversários, quando estes fossem abatidos, resultaria em vantagem para nós.
Em 10 de agosto, Galland, muito nervoso, pediu-me que voasse com ele ao quartel-general. Em uma daquelas suas arbitrárias decisões, Hitler dera ordem para que a frota aérea do Reich, com seus dois mil aparelhos, que estava prestes a formar-se, voasse para a frente ocidental, onde, segundo nossa experiência, seria destruída em pouco tempo. Naturalmente, Hitler já supunha o motivo da nossa visita. Sabia que quebrara a promessa, feita a mim, em julho, de proteger com aviões de caça as fábricas de hidrogênio. De qualquer modo, durante a reunião evitou explicações e prometeu-nos falar depois, reservadamente.
Com todas as precauções possíveis, comecei a expor minhas dúvidas quanto à eficácia daquela ordem. Apesar do meu nervosismo, fui ponderado na demonstração da catastrófica situação dos armamentos, expus-lhe alguns algarismos e descrevi as conseqüências de um bombardeio contínuo. Hitler então começou a dar sinais de excitação e de impaciência. Ouvia em silêncio, mas eu percebia nos traços do rosto, no típico movimento das mãos, e até no modo de morder as unhas, os sintomas de uma tensão crescente. Quando terminei, supondo tê-lo convencido da necessidade de destinar à luta contra os bombardeiros até o último caça, Hitler já não era dono dele próprio. A face tornou-se-lhe muito vermelha, o olhar fixo e sem vida. Então começou a gritar:
– As operações militares competem a mim! Ocupe-se o senhor dos seus armamentos! O senhor nada tem a ver com isso!
Talvez tivesse aceitado os meus argumentos, se estivéssemos sozinhos. Mas a presença de Galland impedia-o de retratar-se.
Bruscamente terminou a entrevista, atalhando qualquer tentativa de argumentação:
– Não disponho mais de tempo para os senhores. Perplexo, fui em companhia de Galland para o meu
No dia seguinte, quando estávamos tratando de regressar a Berlim, Schaub comunicou-nos que Hitler queria ainda falar conosco. E em tom mais brusco e mais atropelado do que o da véspera, gritou-nos:
– Não quero que se fabriquem mais aviões. O Corpo de Caças vai ser extinto. Cesse imediatamente a produção de aviões! Imediatamente! Entendido? O senhor não se queixa sempre da falta de mão-de-obra especializada? Passem todos ao fabrico da artilharia antiaérea. Todos os operários para os antiaéreos! E o material também! É uma ordem! Mande Saur vir imediatamente ao quartel-general! Tem de haver um programa para a fabricação de artilharia antiaérea. Diga-o a Saur. Um programa dez vezes maior... Centenas de milhares de operários passarão a produzir artilharia antiaérea. Todos os dias leio nos jornais estranhos comentários sobre o perigo da artilharia antiaérea. Isto ainda lhes causa respeito; os caças, não.
Galland dispôs-se a retrucar: os caças poderiam abater mais aviões do que os canhões antiaéreos, mas não pôde ir além das primeiras palavras. Novamente fomos despedidos, bruscamente; na verdade, expulsos.
Logo que cheguei à cantina, tomei um vermute, pois a cena me provocara uma indisposição no estômago. Galland, de ordinário tão sereno e calmo, estava transtornado; era a primeira vez que eu o via assim. Não compreendia a dissolução do Corpo de Caças que ele comandava, e que isso fosse motivado por covardia ante o inimigo. Mas eu já conhecia aqueles rompantes de Hitler e sabia que, na maioria dos casos, com tática adequada, podia-se obter a alteração das suas decisões. Tranqüilizei Galland: não se podiam fabricar canhões com os equipamentos para o fabrico de aviões. E além disso, não eram somente os canhões antiaéreos o que mais escasseava, mas também a munição e sobretudo os explosivos.
Também Saur temia que as exigências de Hitler fossem impossíveis de cumprir. Expôs a Hitler que o aumento na produção de canhões antiaéreos dependia de máquinas-ferra-mentas especiais para a calibragem dos canos compridos. Fui à presença de Hitler em companhia de Saur, para debater aquela ordem que o Fuhrer nos apresentou por escrito. Depois de muito discutir, resolveu reduzir de dez vezes para duas vezes e meia a proporção no fabrico de canhões em relação com os caças. Fixou um prazo para a execução do programa, até dezembro de 1945, e exigiu que se duplicasse a produção de munições. Pudemos discutir com toda a calma vinte e oito pontos do expediente. Mas quando eu pretendi, outra vez, falar da necessidade do emprego de caças, em nosso território, voltou a enfurecer-se e interrompeu-me, repetindo a ordem de aumentar o fabrico de canhões antiaéreos em detrimento dos aviões de caça. E suspendeu a reunião.
Foi aquela a primeira ordem de Hitler a que Saur e eu desobedecemos, por minha própria conta e risco. No dia seguinte, manifestei aos elementos da direção do setor de armamentos que era preciso "manter a produção de caças no mais alto nível". Três dias depois, convoquei os representantes da indústria de aeronáutica a uma reunião e, na presença de Galland, expliquei-lhes a importância da missão deles, que consistia em, "mediante o aumento da produção de aviões de caça, conjurar o maior dos perigos que nos ameaçam: a destruição da indústria de armamentos na Alemanha".
Enquanto isso, Hitler tinha voltado à calma, concedendo-me autorização para tratar com urgência de um programa, embora limitado, de fabrico de aviões de caça. Passara a tormenta.
À medida que nos víamos obrigados a limitar a produção e até mesmo a suspender o fabrico de novas armas, Hitler ia fazendo insinuações, cada vez mais inequívocas, em conversas com chefes militares e políticos, sobre a próxima utilização de novas armas que decidiriam o desfecho da guerra. Em minhas visitas às divisões, freqüentemente ouvia a pergunta sobre quando chegariam as armas milagrosas. Não me agradavam aquelas ilusões. Algum dia haveria o desengano. Por isso, em meados de setembro, quando os V-2 já estavam sendo utilizados, dirigi a Hitler estas linhas: "Está muito generalizada na tropa a crença de que vamos em breve utilizar uma nova arma que vai acabar com a guerra. Estão esperando que se inicie o seu emprego dentro de alguns dias. Até alguns chefes de alta categoria participam, seriamente, dessa opinião. Em momentos tão difíceis como os que estamos atravessando, não me parece aconselhável alimentar esperanças que, de modo nenhum, seriam realizáveis em breve prazo, arriscando-nos a uma decepção que pode prejudicar o moral dos soldados. A população civil, todos os dias, está esperando a arma milagrosa, e já começa a acreditar que nós ignoramos que se aproxima a hora crítica, de modo que mais uma demora no emprego de novas armas – estocadas – é intolerável; cabe a pergunta sobre se é aconselhável tal propaganda".
Durante uma entrevista que tivemos, sozinhos, Hitler reconheceu que eu tinha razão. No entanto, não deixou de aludir às armas milagrosas. Sendo assim, no dia 2 de novembro de 1944 escrevi a Goebbels, dizendo-lhe que me parecia desacertado "dar à opinião pública esperanças cuja realização não se pode garantir dentro de um futuro previsível. Peço-lhe tomar as providências oportunas para que os jornais e as revistas técnicas evitem, de agora em diante, alusões a futuros êxitos de nossa indústria de guerra".
De fato, Goebbels suspendeu as informações a respeito de novas armas. Mas, paradoxalmente, os boatos tornaram-se ainda mais insistentes. Muito depois, durante o processo de Nuremberg, fiquei sabendo por Fritzsche, um dos primeiros auxiliares de Goebbels, que este havia montado para a difusão daqueles boatos um dispositivo especial, manejado por Schwarz Von Berk. Quantas vezes, ao terminar a reunião de trabalho da junta de armamentos, comentávamos os últimos progressos da técnica! Falava-se até da possibilidade do fabrico de uma bomba atômica. Schwarz Von Berk costumava assistir àquelas reuniões, na qualidade de repórter.
Naqueles tempos de ansiedade, quando todos desejavam manter a esperança, aqueles boatos tinham campo aberto. Por outro lado, já havia tempo, ninguém acreditava nos jornais. Mas, nos últimos meses da guerra, as seções dedicadas à astrologia eram uma exceção para o crescente número de desesperançados. Como a publicação das colunas de astrologia dependia do Ministério da Propaganda, segundo me disse Fritzsche em Nuremberg, elas eram utilizadas como processo de influência na opinião pública. Os horóscopos matutinos falavam de profundos vales que iriam cruzar-se, vaticinavam grandes surpresas para um futuro imediato e estendiam-se em promissoras especulações. Somente naquelas páginas astrológicas é que o regime tinha um futuro.
QUEDA
O serviço de armamentos, que desde a primavera de 1944 estivera concentrado em meu ministério, começava a desagregar-se. As SS estavam com o controle do fabrico dos grandes foguetes, considerados de importância capital. Alguns chefes regionais tinham conseguido autonomia para organizarem o serviço de armamentos em suas circunscrições. Hitler apoiava tais iniciativas. Por exemplo, quando Sauckel pediu autorização para construir em sua região, a Turíngia, uma grande fábrica subterrânea para a produção em série de um caça a jato, monomotor, batizado por Hitler com o nome de Yblksjager (caça popular), o Fuhrer concedeu-a, imediatamente. Mas já estávamos no princípio da agonia econômica, de modo que a produção não chegou a se efetivar.
Ao mesmo tempo, como sintoma do crescente desconcerto reinante, havia esperanças de que poderíamos alcançar êxitos com as armas convencionais. No entanto, mais do que a eficácia técnica das armas contaria então o valor do homem. Em agosto de 1944 (quando já era evidente que não se podia repelir a invasão, sendo portanto demasiado tarde para aqueles planos), Doenitz nomeou o Almirante Haye delegado para a construção de submarinos individuais e outros navios de combate, exigindo de nós a construção de muitas unidades. Himmler, por seu lado, insistia na criação de um "comando da morte", com aviões-foguetes tripulados, cuja missão seria destruir os bombardeiros inimigos, atirando-se contra eles. Outra arma era o Panzerfaust (punho blindado), pequeno foguete lançado com a mão e que devia substituir a já inexistente artilharia antitanque.
Nos fins do outono de 1944, Hitler interessou-se de repente na produção de máscaras contra gases e nomeou um delegado que dependia diretamente dele. Elaborou-se com toda a urgência um programa de defesa de toda a população contra os efeitos de uma guerra de gases. Por ordem expressa de Hitler, com caráter de urgência, a partir de outubro de 1944 conseguiu-se triplicar a produção, que alcançou dois milhões e trezentas mil unidades por mês. Mas isso não bastava para a proteção de todos os habitantes das muitas cidades.
Hitler costumava falar do perigo de um ataque inimigo com gases venenosos contra as nossas cidades. Mas o meu amigo, o Dr. Karl Brandt, a quem ele havia encomendado medidas protetoras, não achava impossível que aqueles preparativos febris tivessem por finalidade servir em uma guerra de gases feita por nós. Entre nossas "armas milagrosas", possuíamos um gás venenoso, chamado Tabun, que passava pelos filtros de todas as máscaras conhecidas e cujos efeitos, mesmo em quantidades mínimas, eram letais.
Embora Hitler sempre se tivesse oposto ao emprego de gases, durante uma reunião no quartel-general para se estudar a situação ele insinuou que o emprego de gases na frente leste poderia conter o avanço das tropas soviéticas. Falando assim, entregava-se à vaga esperança de que as potências ocidentais aceitariam uma guerra com gases contra a União Soviética, uma vez que naquela fase da guerra os governos da Inglaterra e dos Estados Unidos estariam interessados em deter o avanço dos russos. Como nenhum de nós, presentes à reunião, reagiu positivamente à idéia, Hitler não tratou mais deste assunto.
Não havia dúvida de que os generais temiam as imprevisíveis conseqüências de tal decisão. Naquilo que me dizia respeito, em 11 de outubro de 1944, escrevi a Keitel para comunicar-lhe que, devido ao colapso da indústria química, as matérias-primas, cianureto e metanol, estavam esgotadas. Portanto, a partir de 1.° de novembro deveríamos suspender o fabrico de Tabun e reduzir à quarta parte o de gás vesicante. Keitel obteve de Hitler uma ordem segundo a qual a produção de gás venenoso não deveria ser reduzida, sob nenhum pretexto. Mas ordens como essa já nada mais tinham a ver com a realidade. Não se lhe deu resposta e a distribuição de produtos básicos às indústrias químicas foi feita de acordo com as minhas recomendações.
No dia 11 de novembro tive de acrescentar mais uma nota alarmante ao meu memorial sobre a escassez de carburante. O território do Ruhr estava praticamente isolado, e eu escrevi a Hitler: "Considerando-se a estrutura econômica geral do Reich, é evidente que a perda da bacia industrial da Renânia e da Vestfália seria irremediável para a economia alemã e impediria a continuação da guerra com possibilidade de êxito. Várias fábricas de capital importância acham-se à beira da paralisação. Nas circunstâncias atuais, não há possibilidade de se evitarem essas paralisações".
Acrescentava ainda que, não podendo ser transportado carvão para o resto do território do Reich, as suas disponibilidades para as ferrovias diminuíam rapidamente, as fábricas de gás estavam ameaçadas de parar, as fábricas de azeite e de margarina não poderiam continuar trabalhando e até as entregas de coque para os hospitais já estavam sendo insuficientes.
Na realidade, tudo já prenunciava o final. Notavam-se sintomas de anarquia crescente. Os transportes de carvão já não chegavam ao seu destino – eram detidos e requisitados pelos chefes regionais, que os utilizavam para suas necessidades. Os edifícios de Berlim estavam sem calefação, os fornecimentos de gás e de eletricidade reduziam-se a algumas horas por dia. Da chancelaria do Reich veio-nos uma queixa enfurecida porque a Central de Carvão lhes havia negado o fornecimento total para o resto do inverno.
Ante semelhante situação, já não podíamos executar nossos programas e devíamos nos limitar à tentativa de produzir peças que faltassem. Quando se esgotassem os restos dos estoques, a produção de armamentos estaria terminada. Mas eu subestimara – como aliás também os estrategistas da aviação inimiga – as grandes quantidades de peças avulsas acumuladas nas fábricas. Conseguimos verificar que, embora limitada, a quantidade existente dessas peças avulsas possibilitaria uma apreciável produção de armamentos. Hitler aceitou a necessidade de executarmos o "programa de emergência ou de complemento", como o denominávamos, com uma calma quase tétrica. Não disse uma só palavra a respeito.
Durante uma reunião com generais, à qual eu estava presente, Hitler disse:
– Temos a sorte de contar com um verdadeiro gênio em armamentos. Refiro-me a Saur. Ele é capaz de vencer qualquer dificuldade.
O General Thomale observou:
– Meu Fuhrer, o Ministro Speer está aqui.
Ele respondeu secamente, aborrecido com a interrupção:
– Já sei. Mas Saur é o gênio que dominará a situação.
Por estranho que pareça, essa ofensa proposital não me feriu. Ouvi-a com indiferença. Já estava despedindo-me.
No dia 12 de outubro de 1944, quando se normalizara a situação multar no oeste e já se podia falar de uma frente, não apenas de vagas humanas em marcha para a retaguarda, Hitler, depois de um conferência, levou-me para o seu gabinete. Fez-me prometer que eu nada revelaria do que falássemos, e disse que pensava reunir todos os efetivos disponíveis no oeste para uma grande ofensiva.
– Para isso é preciso que o senhor organize todos os operários alemães que trabalham em construções, formando um corpo suficientemente motorizado para realizar a construção de pontes de todos os tipos, embora se interrompam as comunicações ferroviárias. Preste atenção nas normas de organização que já demonstraram sua eficácia na campanha de 1940 no oeste.
Objetei que não dispúnhamos de caminhões suficientes para uma empresa como aquela, mas Hitler me contestou em tom imperativo:
– Espere por tudo, não se importando com o que possa acontecer. Esta é a grande batalha que se tem de ganhar.
Nos fins de novembro, mais de uma vez ele declarou que tudo dependia daquela ofensiva, não lhe importando pensar que seria a última tentativa.
– Se malograr, não vejo outra possibilidade de ganhar a guerra... Mas abriremos uma brecha – disse um dia, perdendo-se depois nas suas quimeras. – Uma única brecha na frente do oeste! Verão! Isso provocará o pânico entre os norte-americanos. Tomaremos Antuérpia. Então eles vão perder o seu porto de abastecimento. E rodeando todo o Exército britânico haverá um cerco no qual se farão centenas de milhares de prisioneiros. Tal como na Rússia!
Naqueles dias, estive tratando com Albert Vogler da desesperada situação no Ruhr, decorrente dos bombardeios. Ele me perguntou:
– Quando vai acabar isto?
Falei na intenção de Hitler de concentrar todos os efetivos para uma última tentativa. Vogler insistiu:
– Mas... Será que ele não compreende que depois tudo tem de acabar? Como será possível uma reconstrução, ainda que por poucos meses, se os bombardeios continuam?
Respondi:
– Penso que Hitler está disposto a jogar sua última cartada.
Vogler olhou para mim com expressão de ceticismo na face:
– Naturalmente, vai ser a última cartada, se nossa produção for paralisada. Será para o lado do leste, para aliviar-nos por lá?
Respondi com uma evasiva.
– Tem de ser, forçosamente, para o leste – afirmou Vogler. É impossível que alguém cometa a loucura de desguarnecer a frente de leste para tentar conter o inimigo pelo oeste.
Em todas as reuniões, depois de novembro, realizadas pelo Alto-Comando, o Capitão-General Guderian, chefe do Estado-Maior do Exército, chamava a atenção de Hitler sobre a iminente ameaça que representava para a Silésia a concentração de tropas no leste. Pretendia que fossem deslocadas para o oeste as divisões de leste. No processo de Nuremberg, houve acusados que pretenderam justificar o prolongamento da guerra, durante o inverno de 1944-1945, sob a alegação de que Hitler pretendia salvar a vida do maior número possível de soldados alemães aprisionados pelos russos, como também amparar os refugiados. Mas as decisões do Fuhrer não possibilitam tais conclusões.
Eu sustentava a opinião de ser necessário jogar a "última cartada" de Hitler com a maior segurança possível. Portanto, afirmei ao Marechal Model, comandante-chefe dos Grupos B do Exército, que durante a ofensiva eu o auxiliaria com um serviço extra de suprimentos. Durante minha viagem noturna para a frente, em uma litorina das Ferrovias Alemãs, pude ver nas estações trens parados, cheios de mercadorias. Eles tinham sido detidos com receio dos ataques aéreos.
O quartel-general de Model estava no fundo de um estreito vale das montanhas Eifel, no pavilhão de caça de um rico industrial. Também, com receio dos serviços informativos do inimigo, o Estado-Maior do Exército não se abrigara em casamatas. Model estava satisfeito, pois o ataque de surpresa fora bem sucedido, e a frente estava quebrada.
As tropas avançavam rapidamente. O tempo estava favorável, tal como Hitler desejara.
– Ou teremos tempo ruim ou a ofensiva não dará resultado.
Na minha qualidade de observador, eu tratava de ver tudo. As tropas estavam avançando contentes, porquanto as nuvens baixas impossibilitavam o vôo dos aviões inimigos. Mas no dia seguinte já era caótica a situação dos transportes. Os caminhões pesados rodavam lentos, e para um percurso de três a quatro quilômetros o meu carro, rodeado de caminhões com munições, necessitou de uma hora. Eu temia que o tempo clareasse.
Eram várias as causas daquela desordem, entre outras a falta de disciplina das unidades recém-formadas. De qualquer modo, era evidente que o Exército não tinha mais aquela sua proverbial capacidade de organização, sem dúvida por efeito de três anos sob o comando de Hitler.
O primeiro objetivo do nosso trabalhoso avanço era uma ponte destruída, na ala norte do VI Exército blindado das SS. Eu prometera a Model reparar essa ponte o mais depressa possível. Quando apareci, os soldados não gostaram, e ouvi um deles dizer:
– O Fuhrer deve lhe ter dado um puxão de orelhas, porque a ponte não está em boas condições. Agora deve ter recebido ordem de consertar a porcaria de qualquer modo.
Na realidade, o trabalho de conserto das pontes estava muito vagaroso. Isso porque os batalhões da Engenharia, que tinham sido adestrados com tanto esmero, estavam detidos no imenso atoleiro à margem oriental do Reno. Ainda que fosse apenas pela falta de elementos para a reconstrução das pontes, a ofensiva estava condenada a deter-se em breve.
Também a deficiência de combustível dificultava a boa -marcha das operações. As unidades blindadas tinham iniciado o ataque dispondo de escassas reservas de combustível. Mas Hitler, levianamente, supunha que os tanques poderiam abastecer-se nos depósitos conquistados aos norte-americanos. Quando a ofensiva correu o risco de ficar paralisada telefonei às fábricas de benzol, na bacia do Ruhr, para que organizassem um comboio de caminhões-tanques com destino à frente.
Quando as nuvens se dissiparam e o céu ficou claro, possibilitando o vôo de numerosos aviões inimigos, as linhas de abastecimento desarticularam-se. Viajar de dia era um problema, mesmo em carro veloz. Quando a estrada entrava em uma floresta, sentia-se alívio. Os fornecimentos tinham de ser feitos à noite, às tontas. No dia 23 de dezembro, véspera da noite de Natal, Model comunicou-me que a ofensiva malograra, definitivamente, mas Hitler ordenava que ela continuasse.
Permaneci na zona da ofensiva até os fins de dezembro. Visitei várias divisões, fui metralhado por aviões e guarnições da artilharia inimiga e vi o espantoso efeito de um ataque a um ninho de metralhadoras alemão: centenas de soldados crivados de balas jaziam no chão. Na última noite, visitei Sepp Dietrich, cabo do antigo Exército alemão e agora comandante de um grupo das SS. Estava em seu quartel de comando, nas imediações de Houffalize, cidade na fronteira belga. Era um dos poucos remanescentes da primeira época do partido, e, no entanto, por suas maneiras simples, afastara-se de Hitler. Nossa conversa não tardou em tratar das últimas ordens: Hitler exigia que "a todo custo" fosse tomada a cidade de Bastogne, que já estava sitiada. Queixou-se de que o Fuhrer não queria entender que as tropas escolhidas das SS não poderiam dominar sem esforço os norte-americanos. Era impossível convencer Hitler de que estes eram adversários duros e da mesma têmpera dos demais.
– Além disso – acrescentou –, não recebemos munições. As Unhas de abastecimento foram cortadas pelos bombardeios.
Cerca das quatro da madrugada de 31 de dezembro, protegidos pela escuridão contra os caças, Poser e eu partimos em direção ao quartel-general de Hitler, onde chegamos às duas da madrugada do dia seguinte. Tivemos ainda de nos esconder dos caças, tendo gastado vinte e duas horas para cobrir uma distância de trezentos e quarenta quilômetros.
Depois de ter dirigido a ofensiva de Ardenas, Hitler estava no quartel-general a dois quilômetros de Ziegenberg, em Bad Nauheim, na extremidade de um vale coberto de prados. As casamatas estavam escondidas e disfarçadas, bem protegidas por tetos espessos e paredes grossas, como todos os lugares onde Hitler residia.
Desde que eu fora nomeado ministro, três vezes tentara felicitar Hitler, por ocasião do Ano Novo, e em nenhuma consegui. Em 1943, houve um congelamento do motor do avião; em 1944, o motor de outro avião sofreu uma avaria. Já tinham transcorrido duas horas do ano de 1945 quando, depois de passar por várias barreiras, cheguei à casamata particular de Hitler. Ainda cheguei a tempo: os ajudantes-de-ordens, os médicos, as secretárias e Bormann – todos, excetuando-se os altos comandantes no quartel-general do Fuhrer – estavam reunidos em torno dele, bebendo champanha. Naquele ambiente de moderada animação, provocada pelo álcool, Hitler, que não tinha tomado nenhuma bebida estimulante, parecia ser o único ébrio, dominado por sua euforia crônica.
Embora o começo de um novo ano não mudasse a desesperada situação do anterior, todos os presentes pareciam aliviados, pelo menos pela perspectiva nova mostrada no calendário. Hitler fazia planos otimistas- para 1945: o momento ruim que se estava atravessando logo ficaria para trás; no final, seríamos vitoriosos. Somente Bormann apoiava-o com frases entusiásticas. Depois de mais de duas horas de estarmos ouvindo Hitler, naquele entono otimista, todos nós presentes, inclusive eu, apesar do meu ceticismo, começávamos a sentir nova confiança. Ele ainda conservava seu fascínio. Alimentar esperanças contrariava a razão. Hitler traçava um paralelismo entre a sua situação e a de Frederico, o Grande, no fim da Guerra dos Sete Anos. Bastaria para abrir-nos os olhos. Mas ninguém se deteve nessa consideração.
Três dias depois, em importante reunião com Keitel, Bormann e Goebbels, reavivaram-se aquelas vãs esperanças. Um "levantamento em massa" faria alterar-se o rumo dos acontecimentos. Goebbels tomou atitude insultuosa quando me opus, sob a alegação de que isso afetaria de tal modo os programas ainda por executar que provocaria o desmoronamento total dos grupos de montagem. Ele me fitava decepcionado e furioso, e voltando-se para Hitler exclamou em tom solene:
– Neste caso, Sr. Speer, será sua a culpa histórica de se ter perdido a guerra pela falta de alguns milhares de soldados! Por que não se decide a dizer sim apenas uma vez? Pense bem! Por sua culpa!
Estivemos alguns momentos discutindo, irritados, irredutíveis... até que afinal Hitler apoiou Goebbels, resolvendo ganhar a guerra.
Depois da conferência, houve uma reunião sobre armamento, da qual participaram Hitler, Goebbels e seu subsecretário Naumann. Como era seu hábito havia algum tempo, durante os debates, Hitler discordou de mim, inteiramente, não pedindo minha opinião e dirigindo-se somente a Saur. O meu papel era o de um ouvinte mudo. Depois da reunião, Goebbels disse-me que o havia impressionado a passividade da minha atitude, deixando-me ultrapassar por Saur. Mas tudo aquilo já era apenas falatório sem fundamento. Ademais, com a ofensiva de Ardenas a guerra tinha terminado. O que se fazia agora resumia-se em esforço desordenado e ineficaz para retardar a ocupação do país.
Eu não era a única pessoa a evitar conflitos. Em todos os setores do quartel-general imperava uma indiferença que não se podia atribuir somente à apatia, ao excesso de trabalho e ao influxo psíquico de Hitler. Em vez dos violentos choques e tensões internas que durante anos se tinham manifestado entre facções e grupos hostis, em luta pela conquista de favores de Hitler – e que atribuíam uns aos outros a responsabilidade pelas derrotas mais freqüentes –, reinava agora uma calma que já prenunciava o final. Quando, por exemplo, Saur conseguiu que o General Buhle fosse substituto de Himmler, no cargo de chefe dos armamentos do Exército, esse fato, significativo de redução do poderio de Himmler, quase não foi notado. Em verdade, já não havia ambiente de trabalho; os acontecimentos não impressionavam, pois dominava tudo a certeza de que se achava próximo o final inevitável.
No dia 12 de janeiro, iniciou-se na frente leste a grande ofensiva soviética, prevista por Guderian. Nossas linhas defensivas anularam-se em uma frente muito extensa. Nem os dois mil tanques modernos que estavam no oeste teriam podido neutralizar então a superioridade das tropas soviéticas. Alguns dias depois, estávamos no chamado Salão dos Embaixadores, na chancelaria do Reich, uma ante-sala toda atapetada que dava acesso ao gabinete de Hitler, esperando o início da reunião de estudo da situação, quando chegou Maderian, atrasado por causa de uma visita ao embaixador japonês, Oshima; um servente com o uniforme branco e negro abriu a porta do gabinete de Hitler. Andamos, pisando sa alfombra trabalhada a mão, e aproximamo-nos da mesa dos mapas, em frente à janela. A enorme lousa de mármore, em parte lavrada, era procedente da Áustria, e sobre um fundo rosa desenhavam-se veios de cor branca amarelecida, sublinhados por um traço de coral. Ficamos do lado da janela e Hitler sentou-se à nossa frente.
O Exército alemão da Curlândia estava irremediavelmente cercado. Guderian tratou de convencer Hitler de que aquela posição devia ser abandonada, sendo as tropas evacuadas pelo Báltico. Como sempre, Hitler contradisse o general, por se tratar de uma retirada. Guderian não deu o braço a torcer. Hitler insistiu, o tom de voz azedou-se e, finalmente, Guderian opôs-se a Hitler com uma audácia desconhecida naquelas esferas. Animado sem dúvida pelo licor bebido em casa de Oshima, o capitão-general deixou de lado toda a inibição. Com os olhos em chispas, o bigode eriçado, ele mantinha-se firme de pé, diante de Hitler, que, por sua vez, também se erguera. Entre os dois estava a mesa de mármore.
Exclamou Guderian:
– Simplesmente é nosso dever salvar esses homens! Ainda podem ser evacuados!
Furioso, Hitler replicou:
– Continuarão lutando ali! Não podemos abandonar aquela região!
Guderian insistiu, asperamente:
– Seria inútil sacrificá-los! Não há tempo a perder! Devemos embarcá-los, imediatamente!
Então ocorreu algo em que ninguém teria acreditado: Hitler sentiu-se visivelmente intimidado por aquela atitude do general. Em verdade, não podia tolerar a perda de prestígio, supondo estar sendo desrespeitado por Guderian. Mas espantei-me ao vê-lo ceder a razões militares e observar que a retirada para os portos provocaria total desorganização e maiores perdas do que a continuação da defesa. Uma vez mais Guderian insistiu, dizendo que a retirada já estava cuidadosamente preparada e era perfeitamente possível. Mas Hitler deu a última palavra.
Tratava-se de um sintoma de perda de autoridade? Hitler conseguira impor sua decisão, ninguém saíra furioso da sala, ninguém dissera que responderia pelas conseqüências. Por essa razão o prestígio de Hitler manteve-se até o fim, embora aquele desrespeito ao protocolo nos tenha deixado atônitos. Zeitzler mantinha nas discussões um tom mais comedido.
Mesmo quando discordava, conservava o teor de voz respeitoso. Mas agora, pela primeira vez, ocorrera uma acalorada discussão, diante de testemunhas. Como tinham mudado os tempos! Afundara-se um mundo! Decerto Hitler salvara a aparência. E isto era muito, mas também, ao mesmo tempo, era muito pouco.
Como os exércitos estavam avançando muito rapidamente, pareceu-me conveniente visitar ainda uma vez a zona industrial da Alta Silésia, a fim de saber se as minhas instruções sobre o funcionamento das indústrias não eram contrariadas pelos organismos locais. Em 21 de janeiro de 1945, em Oppeln, reuni-me ao recém-nomeado comandante-chefe do grupo de Exércitos, Marechal Schõrner, que me disse não restar mais do que o nome do seu grupo de Exércitos: os tanques e armas pesadas se tinham perdido durante a batalha. Ninguém sabia a que distância de Oppeln estariam os russos. De qualquer modo, os oficiais do quartel-general estavam indo embora e em nosso hotel havia muito poucos hóspedes.
Em meu quarto havia uma gravação de Kathe Kollwitz: La carmagnole, a canção cantada pelo povo durante a Revolução Francesa. No disco ouvia-se a turba delirante, bailando em torno da guilhotina, e o choro de uma mulher prostrada no chão. Deprimido pela desesperada situação, prenúncio do fim da guerra, fui dormir com o espírito perturbado pelo que eu ouvira no disco. Iria o povo, desenganado e indignado, sublevar-se contra os seus dirigentes e matá-los, como fez a turba que se ouvia naquela gravação? Nós, que estávamos no hotel, conversamos sobre o sombrio futuro que nos aguardava, e Milch disse que o inimigo iria julgar, sumariamente, todos os dirigentes do Terceiro Reich. Eu participava da sua opinião.
Os pesadelos daquela noite foram interrompidos por uma chamada telefônica do Coronel Von Below, oficial de ligação entre Hitler e mim. Em 16 de janeiro, eu avisara o Fuhrer de que o cerco à região do Ruhr e a perda da Alta Silésia acarretariam um rápido colapso econômico. Depois, insisti por telegrama sobre a importância da Alta Silésia e pedi que se fornecesse ao grupo de Exércitos de Schõrner "pelo menos de trinta a cinqüenta por cento da produção do armamento correspondente a janeiro".
Eu pretendia também apoiar Guderian, que continuava pedindo a Hitler que desistisse da ofensiva no oeste e desejava que as poucas unidades blindadas de que ainda dispúnhamos fossem enviadas ao leste. Sugeria que se concentrassem aviões de caça na frente leste. Disse-me Below que Hitler, soltando uma gargalhada sarcástica, afirmara que as minhas apreciações eram justas, mas que ele não tinha dado nenhuma ordem. Consideraria Hitler o Ocidente o seu verdadeiro inimigo? Sentiria, no íntimo, alguma simpatia ou solidariedade pelo regime de Stálin? Lembrei-me de algumas observações anteriores, que se poderiam interpretar nesse sentido e que talvez explicassem sua conduta.
No dia seguinte, tratei de continuar viagem até Kattowitz, no centro da zona industrial da Silésia. Mas não consegui chegar. Saindo de uma curva, o carro derrapou no gelo e foi chocar-se com um caminhão. O meu peito sofreu o violento impacto do volante e da barra de direção. Sentei-me nos degraus de um portão e, pálido, desalinhado, respirava com dificuldade quando Poser comentou:
– Parece um ministro que perdeu a guerra.
Quando cheguei a Berlim, mostrei a Hitler muitas fotografias que eu tinha mandado tirar dos refugiados. Eu alimentava a vaga esperança de que as imagens dos fugitivos – mulheres, meninos, velhos –, que com um frio glacial iam ao encontro de um destino horrível, comoveriam Hitler. Supunha poder convencê-lo da conveniência de retirar algumas tropas do oeste para frear o avanço dos russos. Mas ele, com um enérgico gesto de mão, afastou as fotografias. Não pude saber se as fotos não lhe interessavam ou se o comoviam muito.
Em 24 de janeiro de 1945, Guderian foi visitar o ministro das Relações Exteriores, Von Ribbentrop. Expôs-lhe a situação militar e logo lhe disse, sem rodeios, que a guerra estava perdida. Atemorizado, Von Ribbentrop absteve-se de declarar sua opinião e para safar-se de um compromisso informou imediatamente a Hitler. Assombrado, declarou ao Fuhrer que o chefe do Estado-Maior formara opinião própria sobre a situação da guerra. Duas horas depois, durante a habitual reunião para o estudo da situação, Hitler, excitado, advertiu que, no futuro, castigaria com o maior rigor as manifestações derrotistas daquela espécie. Seus colaboradores só podiam dirigir-se a ele diretamente.
Ficam terminantemente proibidas as generalizações e as conclusões a respeito da situação geral. Isto é assunto exclusivamente meu! Todo aquele que, no futuro, tomar a liberdade de comentar com outra pessoa que a guerra está perdida será tratado como traidor da pátria, com todas as conseqüências para ele e sua família. Seja qual for a sua posição e o seu prestígio!
Ninguém se atreveu a abrir a boca. Tínhamos ouvido silenciosos e em silêncio saímos do gabinete. Desde então, comparecia às reuniões um novo convidado. Mantinha-se afastado, mas a sua presença era plenamente eficaz: tratava-se do chefe da Gestapo, Ernst Kaltenbrunner.
Dadas as ameaças e as veleidades de Hitler, três dias depois, em 27 de janeiro de 1945, enviei aos meus trezentos auxiliares mais importantes, na minha organização das indústrias, um memorial conclusivo a respeito do nosso trabalho, no setor dos armamentos, durante os três últimos anos. Também mandei chamar meus principais auxiliares no campo da arquitetura e pedi-lhes que reunissem e colocassem em lugar seguro as fotografias dos nossos projetos. Não dispunha de tempo nem estava disposto a transmitir-lhes minhas preocupações e minhas impressões. Mas eles compreenderam: era a minha despedida ao passado.
No dia 30 de janeiro de 1945, entreguei ao meu oficial de ligação Von Below um memorial dirigido a Hitler. Casualmente, tinha a data do décimo segundo aniversário da "tomada do poder". Expus que, no campo da economia e dos armamentos, a guerra estava terminada e que, naquelas circunstâncias, os alimentos, os combustíveis para uso doméstico e a eletricidade deviam ter preferência sobre os tanques, os motores de avião e as munições. Para refutar as exageradas afirmações de Hitler a respeito da produção de armamentos durante 1945, juntei ao memorial uma lista da produção de tanques, armas e munições, que se poderia calcular para os três meses seguintes, na base dos restos disponíveis. O memorial concluía: "Depois da perda da Alta Silésia, a organização dos armamentos não estará em condições, nem remotamente, de cobrir as necessidades da frente em munições e tanques. Não podemos enfrentar a superioridade do adversário somente com o valor dos nossos soldados.”
Tempos atrás, Hitler dissera que, no momento em que o soldado alemão, no solo da Alemanha, lutasse pela conservação da sua pátria, nossa inferioridade seria compensada por milagres de valor. Era essa afirmativa que eu refutava em meu memorial.
Depois de ter recebido meu memorial, Hitler pareceu estar esquecido de que eu existia, e assim, durante a reunião para o estudo da situação, procedeu como se eu não existisse. Não me convocou até o dia 5 de fevereiro. Solicitou entretanto a companhia de Saur. Preparei-me para um choque desagradável. Mas, recebendo-nos no gabinete particular da chancelaria, deu a entender que pensava em aplicar as severas medidas com que nos ameaçara. Não nos deixou de pé, como costumava fazer quando estava aborrecido, mas, amavelmente, ofereceu-nos as poltronas forradas de veludo. Dirigiu-se a Saur. A voz era forçada. Parecia sentir-se incomodado. Eu, um tanto confuso, tratei de esquecer as divergências e debater somente os problemas do dia. Muito calmo, passei a tratar das possibilidades, nos meses próximos. Por seu lado, Saur, mencionando um ou outro detalhe favorável, suavizou o sentido deprimente do memorial. Seu otimismo não parecia totalmente injustificado.
Eu ouvia ambos sem intervir no diálogo. Hitler não me dirigiu a palavra até o final da conversa, quando declarou:
– O senhor pode dizer-me por escrito qual é a sua opinião sobre a situação dos armamentos. Mas proíbo-lhe que informe outras pessoas. Nem autorizo que mande cópias deste memorial a quem quer que seja. E, quanto ao seu último parágrafo... – aqui sua voz se tornou fria e cortante – não pode escrever estas coisas, nem mesmo a mim. Estas conclusões eu pude amenizá-las. Mas deixe que seja eu quem extraia da situação dos armamentos as conseqüências...
Disse essas palavras sem demonstrar a menor excitação, em voz baixa, com um assobio entre os dentes. O efeito foi não somente muito mais eficaz, mas também mais ameaçador do que o dos acessos de ira, cujas conseqüências podiam perfeitamente ser anuladas no dia seguinte. Mas, neste caso, tratava-se da sua última palavra, e assim o entendi. Despediu-nos. A mim, secamente. A Saur, com mais cordialidade.
No dia 30 de janeiro, eu entregara a Poser seis cópias do memorial para serem distribuídas entre outras tantas seções do Estado-Maior do Exército. Para cumprir, formalmente a ordem de Hitler, pedi que essas cópias me fossem devolvidas. Hitler disse a Guderian e a outros que tinha guardado no cofre o meu memorial sem lê-lo.
Procedi imediatamente à redação de outro memorial. A fim de interessar também Saur, que no fundo participava dos meus pontos de vista sobre os armamentos, concordei com os chefes das demais comissões que desta vez Saur teria de assinar o memorial.
Para dar uma idéia da minha situação, basta dizer que, em segredo, transferi o local da reunião para Bernau, onde Stahl, chefe da nossa produção, possuía uma fábrica. Todos os participantes da reunião prometeram tratar de convencer Saur para que por escrito corroborasse a minha declaração.
Saur retorcia-se como uma enguia. Não consentiu em fazer nenhuma declaração, mas concordou em confirmar minhas previsões pessimistas na primeira reunião que houvesse para o estudo da situação. Referiu-se a uma conversa que tivera com Messerschmitt, que lhe mostrou o desenho de um quadrimotor a jato. Não obstante a construção de um aparelho daquele tipo, nas circunstâncias atuais, exigir anos, Hitler é Saur embriagavam-se com a possibilidade de um bombardeio de Nova York por aqueles aviões, o que teria enorme efeito psicológico.
Durante os meses de fevereiro e março de 1945, Hitler uma vez ou outra aludiu a certos contatos que, por diferentes vias, mandara estabelecer com o inimigo, embora sem dar pormenores a respeito. Na realidade, eu tinha a impressão de que ele pretendia criar um ambiente de irredutível intransigência. Na época da Conferência de Yalta, ouvi-o dar instruções a Lorenz, diretor da seção de imprensa. Insatisfeito com a reação dos periódicos alemães, exigia deles um tom mais duro e agressivo.
– Os empresários da guerra, em Yalta, devem ser insultados. Atacados e insultados de tal modo que não lhes fique a menor possibilidade de uma oferta ao povo alemão. Essa quadrilha só pretende afastar o povo alemão dos seus dirigentes. Eu tenho repetido sempre: não se pense em capitulação.
E vacilou um momento:
– A história não se repete!
À medida que se aproximava o fim do seu poder, Hitler, que durante os anos de conquistas triunfais se rodeava dos seus generais, ia-se retraindo para o círculo dos seus mais chegados correligionários do partido, aqueles com os quais iniciara sua carreira. Todas as noites passava horas e horas em companhia de Goebbels, Ley e Bormann. Ninguém podia entrar na sala onde estivessem, nem podia saber do que falavam, se lembravam o começo ou especulavam sobre o fim. Esperei em vão que eles pronunciassem uma frase compassiva em relação ao povo. Eles tinham vestido uma camisa de onze varas, agarravam-se ao menor indício de mudança no rumo dos acontecimentos e, no entanto, não se dispunham a considerar o destino de todo b povo tão importante quanto o deles próprios.
– Aos americanos, aos ingleses, aos russos, nós deixaremos um deserto.
Freqüentemente, terminavam com essa frase suas discussões sobre a situação. Hitler estava de acordo, embora não se exprimisse em termos tão radicais, como faziam Goebbels, Bormann e Ley. Mas, semanas depois, seria Hitler o mais radical de todos. Enquanto os outros falavam, ele ocultava seus pensamentos debaixo da pose do estadista. Depois daria ordens para a destruição das bases da existência do povo alemão.
Durante uma daquelas reuniões, em princípios de fevereiro, com os mapas na mesa, que mostravam o catastrófico panorama da ruptura das frentes, das bases, chamei à parte o Almirante Doenitz e lhe disse:
– Cabe-nos fazer alguma coisa.
Ele respondeu secamente:
– Eu represento somente a Marinha. O resto não é meu assunto. O Fuhrer deve saber o que está fazendo.
O curioso era que aquelas pessoas, todos os dias reunidas em torno de uma mesa de mapas, à frente de Hitler, cansado e teimoso, não se atreviam a uma ação em conjunto. Goering já estava muito desenganado e cansado, havia muito tempo. Ele era, aliás, um dos poucos que viram com realismo a situação, no mesmo dia em que estalou a guerra, não tendo ilusões a respeito da crise provocada pelo conflito. Se Goering, na qualidade de segundo homem do Estado, Keitel, Jodl, Doenitz, Guderian, e também eu, tivéssemos exigido de Hitler que nos expusesse seus planos a respeito do fim da guerra, ele teria sido forçado a se explicar. Isso não somente porque Hitler temia sempre tais conflitos, como também porque não permitiria que se desfizesse a ficção de um mando unânime. Em uma noite de meados de fevereiro, visitei Goering em Karinhall. Eu descobrira, no mapa das posições, que ele concentrara sua divisão de pára-quedistas naquele distrito. Havia muito Goering era o bode expiatório de todos os fracassos da Luftwaffe. Era ele quem recebia de Hitler as mais duras repreensões, entre os demais oficiais, durante as reuniões do Alto-Comando. Todavia, deveriam ser piores os encontros de ambos quando estavam sozinhos. Algumas vezes, na ante-sala, ouvi Hitler repreendê-lo.
Aquela mesma noite em Karinhall foi a primeira e única vez que mantive um contato pessoal com Goering. Junto à lareira, mandou destampar uma velha garrafa de Rothschild-Lafitte e ordenou ao criado que se retirasse. Expus-lhe com Ioda a franqueza a decepção que me causara Hitler, e com a mesma franqueza respondeu-me que me compreendia, perfeitamente, e que muitas vezes pensara como eu. De qualquer modo, minha posição era mais cômoda do que a dele, pois eu conhecera Hitler muito mais tarde, e portanto poderia libertar-me com mais facilidade. Ele, ao contrário, estava unido a Hitler, estreitamente, por muitos anos de experiências e preocupações comuns. Jamais poderia libertar-se. Poucos dias depois, Hitler transferia a divisão de pára-quedistas para o d, afastando-a de Berlim.
Naquela época, um alto chefe das SS informou-me de que Himmler estava preparando medidas decisivas. Em fevereiro 1945, o chefe nacional das SS assumira o comando de Exércitos do Vístula, embora não tivesse sido mais do que os antecessores na tentativa de deter o avanço dos russos. Estava sendo então alvo de violentas recriminações de Hitler. Bastaram poucas semanas de comando para esgotar o pouco prestígio que ainda lhe restava. Mas Himmler continuava temido de todos. No dia em que meu secretário me avisou de uma visita de Himmler, fiquei assustado. Aumentou a minha intranqüilidade quando o novo chefe do nosso Departamento Central, com quem eu já tinha falado algumas vezes com bastante franqueza, comunicou-me, muito nervoso, que na mesma hora ele falaria com Kaltenbrunner, chefe da Gestapo. Antes de Himmler entrar na sala, o meu secretário avisou:
– Ele veio só.
As janelas do meu gabinete já não tinham vidraças. Era inútil mandar recolocá-las com os bombardeios diários. Em cima da minha mesa ardia uma vela, pois estava cortado o fornecimento de energia elétrica. Sentamo-nos frente a frente, sem tirarmos o sobretudo. Himmler falou de coisas insignificantes, pediu-me alguns dados sem importância, aludiu à situação na frente e, finalmente, disse esta trivialidade:
– Quando vamos pela encosta abaixo, sempre acabamos no fundo de um vale, e então, Sr. Speer, voltamos a subir.
Como eu nada dissesse, nem para contestar, nem para aprovar essa filosofia, conservando-me, além disso, muito lacônico, Himmler não demorou em despedir-se. Até o último momento, revelou-se amistoso, mas impenetrável. Nunca pude descobrir o que é que ele queria de mim, nem por que Kaltenbrunner visitara Hupfauer, na mesma hora. Talvez tivessem sabido de nossas divergências, talvez tivessem pretendido apenas proceder a investigações.
Em 14 de fevereiro, por escrito, sugeri ao ministro da Fazenda "arrecadar em favor do Reich o aumento de valor do patrimônio nacional, que atingira considerável montante, desde 1939". Essa medida visava à estabilização do marco, cujo poder aquisitivo se mantinha graças a medidas coercitivas. Quando o ministro da Fazenda, o Conde Schwerin-Krosigk, debateu essa minha sugestão com Goebbels, tropeçou com uma oposição tenaz e resistente, pois este seria muito prejudicado com a adoção de tal medida.
Muito menos viável seria outra medida, o que demonstra o fantástico romantismo predominante no ambiente emocional em que estávamos vivendo. Nos fins de janeiro, debati cautelosamente com Naumann, subsecretário do ministro da Propaganda, a situação em que nos encontrávamos. Supondo que Goebbels seria capaz de demonstrar certa compreensão e sentido prático, esbocei, vagamente, minha idéia sobre um grande desenlace: um ato em conjunto dos membros do governo, do partido e do Alto-Comando. Hitler deveria assinar uma proclamação, mediante a qual se divulgaria que os chefes do Reich estariam dispostos a se entregarem ao inimigo, se este garantisse ao povo alemão condições aceitáveis de subsistência. Nessa idéia, um tanto melodramática, conjugavam-se reminiscências históricas, recordações de Napoleão, que, depois da derrota de Waterloo, entregou-se aos ingleses.
Wagnerianismos de auto-imolação e redenção... Menos mal que nunca o pusemos em prática.
Entre todos os meus colaboradores na indústria, o Dr. Lüschen, chefe da indústria alemã, conselheiro e um dos chefes da empresa Siemens, era um daqueles com quem mais me sentia vinculado. Septuagenário de grande experiência, cujos conselhos eu gostava tanto de ouvir, percebia aproximar-se uma época difícil para o povo alemão, sem no entanto duvidar da possibilidade de superá-la.
Nos primeiros dias de fevereiro, Lüschen visitou-me no meu pequeno apartamento, na parte traseira do meu ministério, na Pariser Platz. Tirou do bolso do paletó uma folha de papel e me entregou, dizendo:
– Sabe o senhor qual é a passagem do Mein Kampf de Hitler mais citada agora, por aí?
Naquela folha de papel, lia-se o seguinte: "A diplomacia deve tratar de não basear a existência de um povo no heroísmo, mas saber que se sustenta por meios práticos. Para isso, todos os caminhos são lícitos, e seria um delito de omissão não empregá-los". Lüschen acrescentou que tinha encontrado outra frase muito oportuna: "A autoridade do Estado não pode existir como fim nela mesma, porquanto nesse caso seriam inatacáveis e sagradas todas as tiranias. Se um governo recorre à força para levar um povo à ruína, a rebelião não somente é um direito como também um dever para cada cidadão".
Lüschen despediu-se sem acrescentar uma só palavra, deixando-me sozinho com aquela folha de papel. Comecei a andar nervoso pelo quarto. O próprio Hitler afirmara aquilo que eu estava sustentando desde há alguns meses. Só havia uma conclusão: medindo-o com o seu próprio programa político, Hitler estava cometendo, deliberadamente, um delito de alta traição ao seu próprio povo, que ele sacrificara aos seus objetivos políticos e a quem devia tudo; em todo caso, mais do que eu devia a ele.
Naquela noite tomei a decisão de suprimir Hitler. Para falar a verdade, meus planos não passaram dos estágios iniciais, e tinham um certo ar de ridículo. No entanto, eram um símbolo do caráter do regime e da deformação da personalidade que esse imprimia nos que participavam dele. Ainda hoje, horroriza-me pensar até onde cheguei, eu que não aspirava a nada mais do que ser arquiteto de Hitler. Ainda nos sentávamos, às vezes, frente a frente, para conversar, e até folheávamos velhos projetos de obras. No entanto, estava pensando na maneira de arranjar um gás venenoso para eliminar um homem que, apesar de todas as nossas desavenças, ainda me estimava, e era mais indulgente comigo do que com qualquer outro. Durante anos, eu vivera em um ambiente no qual uma vida humana nada significava; aquilo não parecia afetar-me. Não se tratava de ter sido eu envolvido naquela teia de enganos, intrigas, vilanias, conjuras, mas sobretudo importava o fato de eu ter participado daquele mundo pervertido. Durante doze anos, eu vivera entre assassinos, quase maquinalmente. Agora, afinal, abalado por uma citação do Mein Kampf de Hitler, naqueles momentos de reação contra o Fuhrer, eu mesmo estava quase me transformando em assassino. Era irremediável.
Durante o processo de Nuremberg, Goering zombou de mim e chamou-me de "segundo Brutus". Alguns acusados também me reprovaram, dizendo:
– Quebrou o juramento que fez a Hitler.
Mas a alegação a um juramento não era uma razão ponderável: resumia-se em uma tentativa de fugir à obrigação de pensar por conta própria. Ademais, não houvesse algo mais, ò próprio Hitler lhes tiraria a possibilidade de escudarem-se por trás desse pretexto, como o fizera comigo naquele dia de fevereiro de 1945.
Durante meus passeios pelo parque da chancelaria, eu notara, por mais de uma vez, o tubo de ventilação da casamata de Hitler. O orifício de entrada estava no nível do solo, entre uns arbustos, protegido por uma rede de arame. O ar passava por um filtro, que, como os outros, era ineficaz contra o nosso gás venenoso Tabun.
Um incidente fortuito fez-me travar certas relações de amizade com o diretor de nossas fábricas de munições, Dieter Stahl. Devido a algumas expressões de cunho derrotista, tinha de prestar contas à Gestapo. Pediu-me que eu interferisse, para evitar-lhe um processo. Como eu conhecia bastante o chefe regional de Brandenburgo, o caso pôde solucionar-se, favoravelmente. Nos meados de fevereiro, alguns dias depois da visita de Lüschen, Stahl e eu encontramo-nos em um reduto do nosso refúgio antiaéreo de Berlim, durante um bombardeio. O momento era propício à sinceridade. Naquela câmara sombria, entre paredes de cimento, com porta de aço, mobiliada com umas simples cadeiras, falamos da situação da chancelaria do Reich e da política catastrófica que se ditava dali. De repente, Stahl agarrou-me por um braço e gritou:
– Vai ser espantoso, espantoso!
Com toda a prudência de que eu era capaz, em momentos como aquele, perguntei-lhe pelo novo gás venenoso e se podia consegui-lo. Apesar da pergunta estranha, Stahl não foi reservado. Depois de uma pausa brusca, eu lhe disse:
– É o único meio de acabar a guerra. Tratarei de introduzir o gás na chancelaria do Reich.
Apesar do clima de confiança entre nós, por alguns segundos eu mesmo me assustei da minha franqueza. Mas ele não parecia nem consternado, nem agitado, e, calmamente, prometeu procurar um modo de obter o gás.
Após alguns dias, Stahl informou-me de que tivera um contato com o Comandante Soyka, chefe do departamento de munições da Diretoria-Geral de Armamentos do Exército. Talvez houvesse possibilidade de se retificarem as granadas produzidas na fábrica de Stahl para serem utilizadas no lançamento de gases venenosos. Na realidade, qualquer empregado subalterno das fábricas de gases venenosos tinha acesso mais fácil ao Tabun do que o ministro dos Armamentos ou o chefe da Comissão de Munições. No curso das nossas conversas, verificou-se que o Tabun só podia atuar mediante explosão, portanto, não se podia utilizá-lo, uma vez que a explosão destruiria as delgadas paredes dos tubos de ar. Já estávamos em março. Mas eu não desistia da minha intenção, pois isso me parecia o único meio de se suprimir Hitler, Bormann, Goebbels e Ley, no caso de o atentado ocorrer na hora em que eles estivessem juntos nas reuniões noturnas. Stahl achava que podia arranjar-me logo um dos gases conhecidos. Desde o tempo da construção da chancelaria do Reich, eu conhecia Henschel, chefe dos serviços técnicos da chancelaria. Lembrei-lhe que talvez fosse necessário mudar os filtros de ar, pois estavam em serviço havia muito, e Hitler, na minha presença, queixara-se de que o ar casamata estava viciado. Henschel agiu depressa, mais depressa do que eu; os filtros foram desmontados e as dependências da casamata ficaram desprotegidas.
Mas, ainda que dispuséssemos do gás não teríamos podido empregá-lo. Naqueles dias, por um pretexto qualquer, examinando o tubo de ventilação, descobri que a situação mudara. Sobre os telhados, estavam sentinelas das SS, armadas, e no lugar do orifício de entrada do ar fora colocada uma chaminé de três ou quatro metros de altura, que deixava fora do alcance da mão a entrada do oxigênio. Aquela descoberta teve em mim o efeito de uma paulada na cabeça. Durante um momento, temi que os meus planos tivessem sido descobertos. Mas, na realidade, aquelas mudanças eram efeito do simples acaso. Durante a Primeira Guerra Mundial Hitler sofrera de uma cegueira transitória, causada pelos gases. Agora, mandara colocar aquela chaminé, considerando que o gás venenoso é mais pesado do que o ar.
No íntimo, eu estava satisfeito por não ter executado os meus planos. Em todo caso, durante três ou quatro semanas, fui perseguido pelo medo de que alguém pudesse ter descoberto o complô; eu supunha até que tinham notado que estava conspirando. E o pior foi que, desde 20 de julho de 1944, eu tinha de contar com o risco de a minha família ser forçada à prestação de contas, de modo que o castigo não somente me alcançaria, mas também à minha esposa e aos meus seis filhos.
Assim, não somente se desfez o projeto, mas a idéia sumiu da minha cabeça com a mesma facilidade com que aparecera. Compreendi que a minha missão não era eliminar Hitler, e sim tratar de impedir que se executassem suas ordens de destruição. De qualquer modo, independentemente do medo que eu sentisse, eu não podia, empunhando uma pistola, enfrentar Hitler. Num confronto pessoal, seu fascínio sobre mim seria muito forte, até o final.
Naquele total desacerto dos meus sentimentos, era manifesto que, apesar de eu saber da amoralidade do comportamento dele, eu era incapaz de reprimir a tristeza ante sua queda irremediável e a desintegração da sua altiva personalidade. Havia então em mim um misto de repugnância, compaixão e fascínio.
Além do mais, eu sentia medo. Quando, em meados de março, redigi outro memorial a Hitler, no qual tacitamente me referia à derrota final, decidi acompanhá-lo de uma carta pessoal. Comecei a escrever o rascunho com letra nervosa, servindo-me do lápis verde reservado exclusivamente aos ministros. Por uma casualidade, escrevi aquele rascunho no dorso da folha em que a minha secretária copiara a passagem do Mein Kampf a ser incluída no memorial. Ainda era minha intenção recordar o seu próprio apelo à sublevação, no caso de uma guerra perdida.
Eu começava: "Era minha obrigação escrever o memorial anexo. Na qualidade de ministro dos Armamentos e Produção de Guerra do Reich, este é o meu dever para com o senhor e com o povo alemão". Detive-me. Fiz uma correção e escrevi "povo alemão" em primeiro lugar. Em seguida: "Sei que este memorial acarretará para mim graves conseqüências pessoais".
Terminei o rascunho. Também na última frase introduzi uma emenda. Terminado o trabalho, enviei-o logo a Hitler. A emenda era insignificante: "... pode acarretar-me graves conseqüências pessoais".
A CONDENAÇÃO
Durante aquela última fase da guerra, o trabalho significava para mim distração e calma de espírito. Deixei que Saur se encarregasse do restante da produção de armamentos. Eu continuaria em contato com os industriais para tratar dos urgentes problemas do abastecimento e da transição para uma economia de após-guerra.
O Plano Morgenthau ofereceu a Hitler e ao partido a oportunidade de advertir a população de que uma derrota selaria também definitivamente o destino de todos os alemães. Amplos setores deixaram-se influenciar por aquela ameaça. Mas eu tinha outras opiniões. Aquele mesmo Plano Morgenthau fora aplicado, de modo mais duro, rigoroso, por Hitler e seus políticos de confiança nos territórios ocupados. No entanto, a experiência demonstrava que, na Tchecoslováquia, na Polônia, na Noruega, na França, as indústrias se tinham desenvolvido novamente, contrariando todos os prognósticos alemães, e que, por fim, o impulso para reativá-las com objetivos próprios fora mais forte do que as aberrações de alguns ideólogos amargurados. E para as indústrias voltarem a funcionar era indispensável manter as condições básicas da economia social, alimentando, vestindo a população e pagando salários.
Assim acontecera, pelo menos, nos territórios ocupados. Em minha opinião, o indispensável era ficar inteiramente intacto o mecanismo da produção. Para isso tive de vencer resistências, avançar mais e mais pelo caminho da mentira, da simulação e da esquizofrenia. Em janeiro de 1945, durante uma reunião para o estudo da situação, Hitler mostrou-me um recorte de jornal estrangeiro:
– Eu não ordenei que se destruísse tudo na França? Como é possível que, depois de poucos meses, a indústria francesa já se aproxime dos algarismos de produção anterior à guerra?
E olhava-me enfurecido. Eu, calmo, respondi:
– Talvez seja apenas propaganda.
Hitler compreendia perfeitamente tudo quanto se referisse a falsas notícias da propaganda. Aí terminou a discussão.
Em fevereiro de 1945, voei às jazidas de petróleo da Hungria, aos restos da bacia carbonífera da Alta Silésia, à Tchecoslováquia e a Dantzig. Em toda parte, consegui atrair ara a nossa causa os delegados locais do ministério e encontrar compreensão da parte dos generais. Pude então presenciar, junto ao lago Balaton, na Hungria, o desfile de várias divisões das SS, que deviam tomar parte em uma grande ofensiva ordenada por Hitler. Aquela operação estava-se efetivando sob o maior segredo. Mas era grotesco aquelas unidades exibirem com as insígnias dos uniformes o caráter de tropas escolhidas. Entretanto, mais grotesco do que o movimento das tropas para um ataque de surpresa era a pretensão de Hitler a destruir o poderio soviético, recém-fundado nos Bálcãs, com algumas divisões blindadas. Na sua opinião, os povos do sudeste europeu já estavam cansados do domínio soviético, depois de alguns meses de opressão. Bastariam alguns triunfos parciais, pensava ele já desesperado, para haver um levantamento dos povos balcânicos contra a União Soviética. Então, a população civil faria causa comum conosco contra o inimigo, até alcançar-se a vitória final.
Em minha passagem por Dantzig, fui ao quartel-general de Himmler, comandante-chefe do grupo de Exércitos do Vistala. O quartel fora instalado em um trem especial muito bem aparelhado. Casualmente, fui testemunha de uma conversa telefônica do General Weiss com Himmler, que atalhou os argumentos do general em favor do abandono de uma posição indefensável: – Isto é uma ordem – observou Himmler. – O senhor responde por ela com a sua cabeça. Se perder a posição, o senhor irá prestar-me contas, pessoalmente.
No entanto, no dia seguinte, quando visitei o General Spiss, em Preussisch-Stargard, fiquei sabendo que a posição tinha sido abandonada, e que o general não estava de modo algum intimidado com as ameaças de Himmler. – Eu não exponho minhas tropas em busca de coisas possíveis. Só faço aquilo que se pode fazer.
Durante minha viagem à Alta Silésia, conheci o Capitão-General Heinrici, homem muito compreensivo e com quem trabalharia em íntima cooperação, durante as últimas semanas de guerra. Nos meados de fevereiro, decidimos que as instalações ferroviárias, úteis no futuro ao transporte de carvão, deviam ser respeitadas. Juntos visitamos uma mina em Ribnyk. Apesar de estar nas imediações da frente, os russos permitiram o seu funcionamento. Aliás, parecia que o inimigo não respeitava nossa política de destruição. Os operários polacos trabalhavam com pleno rendimento, atendendo à nossa promessa de deixar-lhes a mina intacta, se renunciassem à sabotagem.
Nos primeiros dias de março, fui à bacia do Ruhr. Os industriais estavam preocupados com as vias de comunicação. As minas e as fundições estavam intactas. Se as pontes fossem destruídas ficaria interrompido o ciclo de carvão, de aço e de laminação. No mesmo dia da minha chegada fui visitar o Marechal Model. Muito aborrecido, disse-me que Hitler acabara de ordenar-lhe atacar o inimigo pelo flanco, no setor de Remagen, e recuperar as pontes, especificando ainda quais as divisões que deveria empregar nessa operação.
– Essas divisões carecem de armas, não têm força para o combate. Na verdade, não podem formar mais do que uma companhia. Mais uma vez, aquela gente do quartel-general não tem juízo. Naturalmente, irão culpar-me pelo fracasso.
O mau humor provocado pelas ordens de Hitler fez que Model desse atenção às minhas propostas. Assegurou-me que, durante a luta na bacia do Ruhr, seriam respeitadas as insubstituíveis pontes, naquele setor, e especialmente as instalações ferroviárias.
A fim de reduzir, na medida do possível, a destruição de pontes, cujas conseqüências seriam danosas para o futuro, concordei que o Capitão-General Guderian redigisse uma "disposição" sobre destruições no território nacional que impedissem o abastecimento da população. Guderian estava disposto a redigir essa "disposição", valida para a frente do leste. Quando porém entendeu-se com Jodl, para que este tomasse providências análogas na frente ocidental, sob seu comando, este enviou o rascunho a Keitel, que por sua vez disse que iria debatê-lo com Hitler. Na reunião seguinte para o estudo da situação, Hitler ratificou as suas severas ordens de destruição e mostrou-se muito irritado pela proposta de Guderian.
Nos meados de março, expus outra vez a Hitler com toda a clareza, em um memorial, minha opinião sobre as medidas a serem aplicadas, durante aquela situação. Eu sabia que o meu memorial iria violar todos os "tabus" que ele impusera nos últimos meses. Mas, poucos dias antes, eu reunira em Bernau todos os meus colaboradores na indústria e dissera-lhes que, embora arriscasse minha cabeça, eu não permitiria que as indústrias fossem destruídas, apesar de estar acurando a situação militar.
Até então eu me opusera aos propósitos devastadores de Hitler apoiando-me no falso otimismo oficial, argumentando que as indústrias não deviam ser destruídas a fim de estar em condições de "serem novamente utilizadas com brevidade, quando houvesse a sua recuperação". Hitler não podia rebater este argumento. Mas agora; afinal, pela primeira vez eu declarava que se devia manter o potencial industrial, "mesmo no caso de que não parecesse impossível reconquistá-lo... Não se pode aceitar, de modo nenhum, que no decurso de uma guerra, em nosso próprio território, tenham de ser destruídas tantas pontes, quando, com os limitados recursos disponíveis, no período de após-guerra, serão necessários anos para a reconstrução da rede de comunicações... Essa destruição supõe a anulação de toda possibilidade de sobrevivência do povo alemão".
Desta vez, não tive a coragem de entregar imediatamente a Hitler o meu memorial. Sendo ele um homem de reações imprevisíveis, algo poderia acontecer. Entreguei as vinte e duas páginas do meu memorial ao Coronel Von Below, meu oficial de ligação com o quartel-general do Fuhrer, a fim de apresentá-lo na ocasião mais oportuna. Logo, fui procurar Schaub, oficial de gabinete de Hitler, para que em meu nome e por motivo de meu quadragésimo aniversário, pedisse ao Fuhrer uma foto com sua dedicatória pessoal. Eu fora o único dos seus colaboradores que, durante doze anos, não fizera esse pedido. Eu pretendia dar-lhe a entender, apesar de contrariá-lo e prever sua derrota, que eu continuava respeitando-o e dava valor a uma foto sua com dedicatória. De qualquer modo, eu não me sentia muito seguro e dispus tudo para estar bem longe, depois da entrega do memorial. Naquela mesma noite, eu queria ir de avião a Koenigsberg, ameaçada pelos exércitos soviéticos, sob o pretexto da minha habitual reunião com os meus auxiliares para tratar de evitar as demolições desnecessárias. Também queria despedir-me deles.
Assim, na noite de 18 de março compareci à conferência em que de praxe havia o estudo da situação, para ter uma oportunidade de desfazer-me daquele papel. Havia muito tempo aquelas reuniões não se realizavam no suntuoso gabinete de Hitler, desenhado anos antes por mim. Hitler transferira-as, definitivamente, para o seu pequeno gabinete na casamata. Dissera-me então:
– Ah, Sr. Speer, sua formosa arquitetura já não está apropriada às reuniões do Alto-Comando!
Entre os temas daquela reunião de 18 de março, figurava a defesa do território do Saar, duramente fustigado pelo exército de Patton. Como no caso das jazidas russas de manganês, Hitler voltou-se para mim, em busca de apoio:
– Diga a esses senhores o que pensa da perda do carvão do Saar!
Espontaneamente, respondi:
– Isso só faria acelerar a derrota.
Nós nos olhamos estupefatos e desconcertados. Eu estava tão assombrado quanto Hitler. Depois de penoso silêncio, ele mudou de tema.
Naquele mesmo dia, o Marechal Kesselring, comandante-chefe da frente ocidental, informou que a luta contra as tropas norte-americanas que estavam fazendo pressão, incessantemente, estava dificultada pela população. Ora, já havia a proibição de os soldados terem contato com os habitantes das vilas e aldeias, mas isso não impedia a pressão sobre os oficiais para que não efetuassem destruições. Em muitos casos, a tropa cedia àqueles desesperados apelos. Sem refletir um só instante, Hitler voltou-se para Keitel e ordenou-lhe que transmitisse ordens ao comandante-chefe da frente ocidental e aos chefes regionais para que a população fosse evacuada à força. Pressuroso, Keitel sentou-se ante uma das mesas e redigiu a ordem.
Um dos generais presentes observou que seria impossível deslocar centenas de milhares de pessoas. Não dispúnhamos de trens, as comunicações estavam cortadas havia muito tempo. Hitler permaneceu impassível e replicou:
– Então, nesse caso, caminhem a pé!
Nem isso era possível, insistiu o general. Havia necessidade de assistência àquela gente, cujas colunas teriam de atravessar zonas pouco povoadas, além do mais sem calçados. Não pôde terminar: imperturbável, Hitler voltou-lhe as costas.
Enquanto isso, Keitel terminara a redação da ordem, apresentando-a a Hitler, que a aprovou. O texto era o seguinte: "A permanência da população civil nos setores ameaçados pelo inimigo é tão perigosa para os combatentes como para a própria população. Portanto, o Fuhrer ordena: a zona ocidental do Reno, inclusive o Palatinado e o Saar, a partir da linha de combate, deve ser evacuada... Direção geral: sudeste, para o sul da linha St. Wendel-Kaiserslautern-Ludwigshafen. O Grupo G de Exércitos, de acordo com os chefes regionais, dará as instruções pertinentes. Os chefes regionais receberão idênticas instruções do chefe da chancelaria do partido. Assinado: Keitel, marechal. Chefe do Alto-Comando da Wehrmacht".
Ninguém protestou quando Hitler, em tom concludente, afirmou:
– Não podemos tomar em consideração a população civil.
Saí da sala em companhia de Zander, elemento de ligação de Bormann com Hitler. Zander estava desesperado.
– Mas isso não pode ser! Vai provocar uma catástrofe! Não há nada preparado!
Impulsivamente, eu lhe disse que não faria o meu vôo a Koenigsberg e que naquela mesma noite eu viajaria para a frente do leste.
Terminara a reunião. Já era mais de meia-noite e começara o dia do meu quadragésimo aniversário. Pedi a Hitler que me concedesse uma breve entrevista, e pouco depois ele mandou chamar-me.
– Aqui tem meu retrato com a minha assinatura. E entregou-me a fotografia ao mesmo tempo em que me felicitava. Tinha a moldura de couro vermelho com insígnias douradas. Agradeci-lhe e deixei o invólucro da fotografia sobre a mesa para entregar-lhe meu memorial. Hitler explicava-me:
– Cada dia que passa, dá-me mais trabalho escrever de meu próprio punho, ainda que seja uma linha. Já sabe como estou com a mão trêmula. Às vezes, nem posso acabar a assinatura. O que escrevi aí é ilegível.
Então, abri o invólucro para ler a dedicatória. Realmente, era quase ilegível, mas estava redigida com extraordinária afabilidade, e nela me agradecia o meu trabalho, assegurando-me sua firme amizade. Era difícil entregar-lhe aquele memorial, em que, simplesmente, eu lhe falava do desmoronamento daquilo que fora o objetivo da sua existência.
Hitler recebeu-o em silêncio. Para suavizar a tensão do momento, eu lhe disse que pretendia ir ao oeste. Despedi-me. Enquanto eu estava na casamata, pedindo o carro e o motorista, Hitler mandou me chamar outra vez e disse-me:
– Pense melhor. É preferível que vá em um dos meus carros e leve Kemptka como chofer.
Eu apresentei alguns motivos para recusar o seu oferecimento. Afinal, concordou em que eu fosse no meu carro, mas sob a condição de ser dirigido por Kemptka. Não me senti tranqüilo, porquanto já não era o mesmo homem cordial e despedira-me visivelmente contrariado. Eu já estava na porta, quando, como se não quisesse dar-me oportunidade para resposta, observou:
– Desta vez, receberá por escrito a resposta ao seu memorial. – E depois de uma pausa breve, em tom glacial, acrescentou: – Se a guerra for perdida, o povo também se perderá. Não é necessário o senhor preocupar-se com as bases de que o povo necessita para manter sua primitiva forma de sobrevivência. Ao contrário, será melhor destruir até isso. O povo demonstrou ser o mais fraco e o futuro pertence aos povos mais fortes do leste. Aqueles que ficarem depois da luta são os que menos valem, pois os bons terão caído.
Quando me vi sentado ao volante do meu carro, respirando o ar frio da noite, o chofer de Hitler ao meu lado, o Tenente-Coronel Von Poser, oficial de ligação com o Estado-Maior, no assento traseiro, respirei aliviado. Eu combinara com Kemptka que iríamos guiar o carro alternada-mente. Era já uma e meia da madrugada. Se quiséssemos percorrer os quinhentos quilômetros que nos separavam do quartel-general do comandante da frente ocidental antes de clarear o dia e aparecerem os bombardeiros inimigos, tínhamos de nos apressar. Com o nosso adio sintonizávamos a emissora que transmitia para os caças noturnos. No painel quadriculado que tínhamos sobre os joelhos, íamos acompanhando com toda a precisão a posição das esquadrilhas inimigas: "Caças noturnos no quadro... vários Mosquitos no Sugdro..." Quando os aparelhos se aproximavam de nós, diminuíamos a marcha e só deixávamos acesas as lanternas. Quando o nosso setor ficava limpo, acendíamos os poderosos faróis Zeiss e o foco movediço, lançando-nos pela autopista a toda velocidade, fazendo rugir o compressor. De qualquer modo, o dia surpreendeu-nos ainda na estrada. Felizmente, nuvens baixas tinham afastado a atividade aérea. Chegando ao quartel-general, tratei de descansar algumas horas.
Cerca de meio-dia, reuni-me com Kesselring, mas nossa conversa não deu resultado. Ele adotou uma atitude própria de soldado e não quis discutir as ordens de Hitler. Mas, por assombroso que pareça, o delegado do partido mostrou-se mais compreensivo. Enquanto passeávamos pelo terraço do castelo, onde estava instalado o quartel-general, o general jurou-me que faria tudo quanto fosse possível para evitar se divulgassem informações a respeito da conduta da que pudessem provocar reações violentas da parte de Hitler.
Durante um almoço frugal com Kesselring e seu estado-maior, quando o general terminava uma curta saudação aludindo ao meu aniversário, uma esquadrilha de caças inimigos em vôo, com um enorme ruído, despejou algumas rajadas de metralhadora. Imediatamente, atiramo-nos no chão. A sirena de alarma não funcionou, e, ao mesmo tempo, começaram a explodir, muito próximas, várias bombas. Corremos para a casamata entre nuvens de fumaça e de pó. Evidentemente, o objetivo do ataque era o coração da defesa na frente ocidental. Sucediam-se as explosões das bombas. A casamata parecia estremecer, mas não recebeu nenhum impacto. Depois do ataque, continuamos a trocar idéias, presente o industrial do Saar Hermann Rõchling, tinha mais de setenta anos. Kesselring disse-lhe que nos próximos dias perderíamos o Saar. O velho ouviu quase com indiferença a notícia de que iria perder a sua casa e a fábrica, apenas observando:
– Já perdemos o Saar, uma vez, e logo o recuperamos. da minha idade, ainda hei de vê-lo voltar a ser nosso.
Tínhamos depois de ir a Heidelberg, onde estava a Central de Armamentos. Eu queria aproveitar a ocasião para uma visita aos meus pais, ainda que breve. Durante o dia, era impossível circular pela auto-estrada, por causa dos aviões. Mas, desde rapaz, eu conhecia bem as estradas secundárias, e então Rõchling e eu fomos pelo Odenwald com um tempo primaveril, quente e ensolarado. Pela primeira vez, falamos com absoluta franqueza. Rõchling, antigo admirador de Hitler, não deixava de afirmar que a continuação da guerra era um ato de disparatado fanatismo. Quase à noite, chegamos em Heidelberg e tivemos boas notícias do Saar. Quanto à destruição das pontes e edifícios, tinham sido feitos apenas os preparativos.
Durante uma penosa viagem por estradas atulhadas de soldados em retirada, fomos profusamente insultados por aqueles homens exaustos e enfraquecidos. Só depois de meia-noite foi que chegamos ao quartel do Exército, situado em um povoado vinícola do Palatinado. O General Hausser, das SS, tinha opiniões muito mais razoáveis do que as do seu chefe a respeito do cumprimento de ordens absurdas. Segundo Hausser, era impraticável a evacuação e injustificável a destruição das pontes. Cinco meses depois, vindo de Versalhes, feito prisioneiro, atravessei o Saar e o Palatinado. As instalações ferroviárias e as pontes estavam intactas.
Stõhr, chefe regional do Palatinado e do Saar, disse-me com toda a franqueza que não tencionava obedecer às ordens de evacuação que recebera. Houve então um curioso diálogo entre o ministro e o chefe regional:
– Se o Fuhrer lhe pedir contas por não ter conseguido obrigar que se procedesse à evacuação, pode responder-lhe que eu afirmei não estar em vigor a ordem dele.
– Não! O senhor é muito amável, mas eu assumo a responsabilidade.
Eu insisti:
– Eu arriscaria minha cabeça com muito gosto por essa causa.
Stõhr retrucou:
– Isso corre por minha conta.
Foi o único ponto em que não estivemos de acordo. Nosso próximo destino era o quartel-general do Marechal Model, em Westerwald, a duzentos quilômetros de distância. De manhã, apareceram novamente os aviões norte-americanos, voando baixo, o que nos obrigou a abandonar a estrada principal enveredamos por outros caminhos até chegarmos a um o povoado. Nem parecia que ali estava situado o co- central do grupo de Exércitos. Não se via um oficial, nem soldados, nem carros, nem letreiros.
Reatei a conversa com Model, e enquanto falávamos entrou um oficial com um telegrama.
– Isto lhe diz respeito – disse Model confuso e perplexo.
Receei algo ruim. Era a resposta de Hitler ao meu memorial. Em todos os quesitos ordenava exatamente o contrário daquilo que eu recomendara em 18 de março. "Todas as instalações militares, de comunicações, industriais e de serviços, assim como todos os valores reais, dentro do território do Reich, devem ser destruídos." Era a sentença de morte para o povo alemão, o princípio da "terra arrasada" em sua forma mais impiedosa. Eu, pessoalmente, ficava explicitamente desautorizado a tomar medidas em benefício das indústrias. Os chefes regionais iam ser agora os encarregados de executar as destruições.
As conseqüências eram impossíveis de imaginar. Durante um tempo indeterminado não haveria luz, nem gás, nem água potável; não haveria carvão nem comunicações. Seriam destruídas as estradas de ferro, os canais, as docas, os vapores, as locomotivas. Mesmo nos lugares onde algumas indústrias tivessem sido poupadas, estas não poderiam funcionar por falta de eletricidade, gás e água. Não haveria armazéns, R nem telefones. Em suma, o país teria regredido à Idade Média.
Pela mudança na atitude do Marechal Model era evidente que a minha situação também tinha mudado. Continuou a conversa em tom muito mais frio e evitou tratar do tema que era o objeto da conferência: a indústria do Ruhr. Tenso e cansado, fui dormir em uma granja. Depois de horas, saí para o campo e subi a uma colina. Embaixo, envolto em névoa, estava o povoado. Desdobravam-se terras além das colinas do Sauerland. Como era possível alguém pretender transformar aquela terra em deserto? Tudo me parecia irreal. Mas a terra exalava um aroma penetrante e já se viam as primeiras folhas novas dos arbustos. Quando cheguei ao povoado, o sol estava já no ocaso. Eu tinha tomado uma resolução. Devia-se impedir que aquela ordem fosse executada. Cancelei a reunião no Ruhr e resolvi ir a Berlim, para ver o que havia por lá.
Tomei o meu automóvel e, apesar da atividade aérea, naquela mesma noite iniciei a viagem de regresso, com as luzes baixas. Enquanto Kemptka guiava, eu escrevia minhas notas, quase todas relativas às minhas conversas nos últimos dias. Eu ia escrevendo, escrevendo, sem saber bem por quê. Mas logo comecei a rasgá-las e disfarçadamente fui atirando pela vidraça aberta os pedaços de papel. Mas durante uma parada olhei para o estribo; ali tinham ficado pedaços das folhas. Sem chamar a atenção do chofer, limpei o estribo, jogando aqueles papéis numa vala.
O ULTIMATO DE HITLER
O cansaço leva-nos à indiferença. Quando, na tarde de 21 de março de 1945, me apresentei a Hitler, não me sentia nervoso. Perguntou-me laconicamente pela viagem e, mostrando-se reservado, não aludiu à sua "resposta por escrito". Pareceu-me inútil referir-me a ela. Quanto a Kemptka, pelo contrário, esteve sendo interrogado durante mais de uma hora. Contrariando as ordens de Hitler, naquela mesma noite entreguei a Guderian uma duplicata do meu memorial. Keitel, muito contrário, muito indignado, recusou aceitar a que lhe ofereci. Tal como depois de 20 de julho, quando foi descoberto, meu nome na lista de ministros dos conjurados, agora também era evidente que eu recaíra em situação desfavorável. E o pior é que eu perdera toda a influência no meu mais importante campo de ação: o da conservação das indústrias, que dependiam de mim.
Duas decisões de Hitler fizeram compreender que ele estava resolvido a agir com toda a brutalidade. No boletim da Wehrmacht de 18 de março, li que fora executada a sentença de morte de quatro oficiais, que não tinham feito explodir a devido tempo a ponte sobre o Reno em Remagen. No entanto, Model dissera-me que eles eram completamente inocentes. "O horror de Remagen", como foi denominado o caso, fez tremer muitas autoridades até o fim da guerra. No mesmo dia, casualmente, eu soube que Hitler ordenara a execução do Capitão-General Fromm. Algumas semanas antes, Thierack, ministro da Justiça, dissera-me, com a maior indiferença, durante uma refeição, entre um prato e outro:
– Também Fromm, em breve, vai perder a cabeça.
Naquela noite foram inúteis todos os meus esforços para fazer Thierack mudar de opinião. Não se convenceu das minhas alegações. Alguns dias depois, escrevi-lhe uma carta de várias folhas de papel, rebatendo a maioria das acusações formais contra Fromm, que me tinham chegado ao conhecimento, e ofereci-me como testemunha de defesa.
Sem dúvida, era uma petição insólita para um ministro do Reich. Três dias depois, no dia 6 de março de 1945, Thierack me escrevia, com toda a crueza, dizendo que para fazer declarações perante o tribunal era necessária uma autorização de Hitler. E prosseguia: "O Fuhrer ordenou-me que lhe comunique que não pensa em conceder-lhe tal autorização para o caso Fromm. Portanto, não me é possível incluir sua declaração no sumário". O cumprimento daquela sentença de morte fez-me ver minha situação comprometida.
Eu estava em um beco sem saída. E quando Hitler me convocou para uma reunião eu enviei Saur em meu lugar. Suas notas da tal reunião demonstravam que ambos estavam muito afastados da realidade. A produção de armamentos já tinha chegado ao fim, havia tempo, e no entanto os dois estiveram discutindo projetos e mais projetos, como se pudessem dispor de todo o ano de 1945. Falaram de uma produção de aço bruto, inteiramente fantástica, concordaram em aumentar ao máximo os fornecimentos de canhões antitanques de oitenta e oito milímetros e a produção de tubos lança-granadas de vinte e um centímetros; entusiasmaram-se ao falar da criação de novas armas, como um fuzil especial para os pára-quedistas, naturalmente com "elevados números de produção", e um lança-granadas com o calibre de trinta centímetros e meio. Na ata, figurava também uma ordem de Hitler para, no prazo de algumas semanas, apresentarem-se cinco novos tipos de tanques. Queria que se estudasse o efeito do "fogo grego", conhecido desde a Antiguidade, que se transformasse com a maior urgência em avião de caça convencional o nosso caça a jato Me-262. Reconhecia assim, implicitamente, o erro tático de um ano e meio atrás, quando fizera prevalecer sua teimosia sobre a opinião dos técnicos.
Eu estava de volta a Berlim no dia 21 de março. Três dias depois, às primeiras horas da manhã, comunicaram-me que em grande extensão ao norte do território do Ruhr os ingleses tinham atravessado o Reno, sem encontrar resistência. Dissera-me antes Model que as nossas tropas estavam impotentes. Ainda em setembro de 1944, nossas fábricas de armamentos podiam fornecer armas a um exército desprovido dos recursos de defesa de uma linha de frente. Agora, não havia essa possibilidade; a Alemanha estava sendo anulada.
Tomei outra vez a direção do meu carro para regressar à bacia do Ruhr, cuja conservação era importante para a época de reconstrução. Na Vestfália, um desarranjo no motor forçou-me a deter-me, e aproveitei o tempo para conversar com alguns camponeses. Espantado, verifiquei que a confiança em Hitler, decorrente de uma propaganda feita durante anos, ainda surtia efeito. Disseram-me que Hitler não podia perder a guerra.
– O Fuhrer está reservando alguma coisa para o último momento. Então as circunstâncias vão ser outras. Deixou-se levar tão longe pelo inimigo somente para pregar-lhe uma peça.
Até membros do governo acreditavam na arma milagrosa, reservada para o último momento, arma que destruiria o incauto invasor, que avançara tanto dentro do país. Funk, por exemplo, perguntou-me um dia:
– Mas nós dispomos de uma arma especial, não é verdade? Uma arma que fará maravilhas. . .
Naquela mesma noite, iniciaram-se as conversas com o Dr. Rohland, diretor da organização do Ruhr, em companhia dos seus mais importantes colaboradores. Suas informações eram terríveis. Os três chefes regionais do Ruhr, dispostos a cumprir a ordem de Hitler, tinham resolvido iniciar no dia seguinte as primeiras destruições de pontes, pois o inimigo avançava rapidamente pelo norte do Ruhr. Mas contavam com reduzidos meios de transporte e tinham de depender da ajuda da minha organização de armamentos. Esperavam encontrar muitas minas, muita dinamite, detonadores, mechas. Rohland mandou chamar imediatamente ao Castelo Thyssen, sede do estado-maior do Ruhr, uma vintena de representantes das minas, homens de toda a confiança. Resolveu-se atirar a pólvora, os detonadores e mechas nas galerias das minas, para provocar as explosões. Um dos nossos auxiliares recebeu a incumbência de tirar todos os caminhões da zona do Ruhr. Se necessário, os caminhões e o carburante ficariam à disposição das tropas combatentes, estando assim fora do alcance das autoridades civis. Afinal, prometi a Rohland e aos seus colaboradores, para defender da ação dos chefes regionais e seus bandos as usinas elétricas e outras instalações industriais importantes, cinqüenta fuzis-metralhadoras, provenientes de nossa produção. Nas mãos de homens dispostos a defenderem suas fábricas, essas armas valiam muito, porquanto, pouco antes, a polícia e os membros do partido foram obrigados a entregar as suas ao Exército. Falamos até de nos declararmos em franca rebelião.
Os chefes regionais Florian, Hoffmann e Schlessmann estavam reunidos no Hotel Bleibergquelle, perto de Langenberg. Apesar de todas as proibições de Hitler, no dia seguinte tratei mais uma vez de convencê-los. Houve uma acalorada discussão com o chefe regional de Düsseldorf, Florian, que, em síntese, dizia que se a guerra estava perdida não era por culpa de Hitler ou do partido, e sim do povo alemão. Somente criaturas miseráveis poderiam sobreviver a semelhante catástrofe. Mas Hoffmann e Schlessmann deixaram-se convencer. Entretanto, argumentavam que as ordens de Hitler tinham de ser obedecidas e ninguém podia eximi-los de responsabilidade. Estavam indecisos. Para agravar a situação, Bormann acabara de transmitir-lhes nova ordem de Hitler, que insistia na destruição dos elementos indispensáveis à existência da população civil. Ordenava também a evacuação dos territórios que estivessem na iminência de invasão do inimigo. O texto da ordem incluía estas frases: "O Fuhrer está perfeitamente consciente das enormes dificuldades da execução desta ordem, mas ela é o resultado de grande reflexão. É inteiramente indiscutível a necessidade da evacuação".
A evacuação de um milhão de pessoas das zonas a oeste do Reno e do Ruhr, de Mannheim e Frankfurt, só seria possível para regiões pouco povoadas, como a Turíngia e as planícies do Elba. Seria uma multidão mal vestida, mal alimentada, a encher uma região em precárias condições sanitárias, sem alojamentos, sem recursos para a alimentação. Seriam, pois, inevitáveis a miséria e as epidemias.
Os chefes regionais declararam unânimes que o partido não dispunha dos recursos necessários à execução daquelas ordens. Somente Florian, para grande assombro de todos, leu o texto de um entusiástico apelo aos funcionários do partido em Düsseldorf, que iria mandar divulgar impresso em cartazes. Deveriam ser incendiados todos os edifícios que ainda estivessem de pé, na cidade, evacuados os seus moradores, quando se aproximasse o inimigo, que só deveria encontrar uma cidade arrasada e deserta.
Os outros chefes começaram a vacilar. Mostraram-se de acordo com a minha interpretação da ordem de Hitler, segundo a qual a produção de armamentos, na bacia do Ruhr, teria sempre importância capital, uma vez que nos permitiria fornecer munições às tropas combatentes naquele setor.
Tratei de agir sem demora. Procurei o Marechal Model, que concordou em circunscrever os combates, na medida do possível, aos territórios afastados do núcleo industrial, reduzindo ao mínimo a ação dos projéteis, bem como em impedir a destruição das pontes. Informou-me também o marechal que os norte-americanos avançavam sobre Frankfurt, sendo impossível mostrar com exatidão a situação das linhas de frente. Naquela noite, o quartel-general de Kesselring seria transferido para leste. Às três da madrugada, chegamos ao quartel-general de Kesselring em Nauheim, e lá, em conversa com o chefe do seu estado-maior, o General Westjihal, soubemos que ele também prometera aplicar, embora moderadamente, aquelas ordens de destruição. Como nem o chefe do estado-maior do Marechal Model sabia até onde chegara o inimigo, fomos dar uma volta pelo Spessart e Oldenwald, rumo a Heidelberg, e atravessamos a pequena cidade de Lohr. Nossas tropas já se tinham retirado e nas ruas e praças sentia-se um estranho ambiente de expectativa.
Em um cruzamento de ruas, estava um soldado com alguns Panzerfausten – foguetes antitanques de mão. Olhou-me surpreso e perguntei-lhe:
– Que está esperando aí?
– Os norte-americanos.
– E que vai fazer quando eles chegarem?
Não titubeou na resposta:
– Sair daqui, imediatamente.
Em toda parte havia a impressão de que a guerra estava praticamente terminada.
Na Central de Armamentos de Heidelberg, da qual dependiam as regiões de Baden e Württemberg, já tinham sido recebidas aquelas ordens de Hitler. O chefe regional de Baden estava disposto a destruir os depósitos de água, a usina de força de minha cidade natal e das demais cidades de Baden.
Participou disso por escrito o comandante da força inimiga se aproximava, mediante comunicados postos em caixas postais de localidades abandonadas.
Os norte-americanos já tinham entrado em Mannheim, distante quilômetros, e lentamente avançavam para Heidelberg. Depois de conferenciar à noite com o prefeito, Dr. Neinhaus, solicitei do general das SS, Hausser, que eu conhecera no Saar, que declarasse Heidelberg cidade-hospital e a entregasse sem luta. Já começava a clarear, quando me despedi dos meus pais. Durante aquelas últimas horas em que estivemos juntos, eles também demonstravam aquela inquietante resignação que se havia apoderado de toda a população. Ao entrar em meu carro, estavam os dois à porta da casa. Então meu pai, apressado, veio até junto da janela do carro, apertou-me as mãos e olhou-me nos olhos em silêncio. Talvez suspeitássemos de que não nos veríamos mais.
A estrada de Würzburg estava bloqueada por tropas em retirada, sem armas, sem equipamento. À luz da manhã, alguns soldados perseguiam um javali, que saíra do bosque. Quando cheguei em Würzburg, fui visitar o chefe regional Hellmuth, que me convidou a um suculento almoço. Enquanto comíamos salsichas e ovos, ele disse-me com a maior naturalidade que, cumprindo ordens de Hitler, resolvera mandar destruir as fábricas de rolamentos de Schweinfurt. Em uma sala contígua estavam os representantes das fábricas e os funcionários do partido, aguardando instruções. O plano estava bem traçado. A maquinaria seria banhada em óleo, o qual, incendiado, acabaria reduzindo as máquinas a sucata, conforme fora demonstrado pelos bombardeios. No começo da nossa conversa, não estava disposto a admitir os argumentos de que eu me utilizava para demonstrar-lhe que tais destruições eram um desatino. Por intermédio de Goebbels e de Bormann fora informado da existência de uma arma milagrosa, cujo emprego estava iminente. Eu sabia que aquele chefe regional pertencia à classe dos indivíduos racionais, e por isso pedi-lhe que não executasse as ordens de Hitler. Acrescentei que, naquelas circunstâncias, seria um disparate arrebatar à população as bases da sua subsistência, fazendo voar pelos ares fábricas e pontes.
Disse também que a leste de Schweinfurt estavam se concentrando tropas alemãs para um contra-ataque a fim de retomarem os centros de produção de armamentos, o que não era totalmente falso, pois o Alto-Comando estava planejando uma ofensiva para breve. O velho e eficaz argumento de que Hitler não podia continuar a guerra sem rolamentos produziu efeito.
Depois de Würzburg, o tempo clareou. De quando em quando, cruzávamos com pequenas unidades que, a pé e sem pesadas, iam ao encontro do inimigo. Eram unidades treinamento, que no entanto tinham sido mobilizadas para uma ofensiva. Nos povoados, os habitantes cavavam buracos para ocultar prataria e outros objetos de valor. Em toda parte eu era recebido com amabilidade. No entanto, aquela gente não via com bons olhos eu me agasalhar sob seus tetos para estar a coberto da metralhada dos aviões, pondo assim em perigo suas casas.
Certa vez, de uma janela gritaram-me:
– Senhor ministro, não podia afastar-se um pouco, até a casa ao lado?
Justamente por demonstrar a população um resignado conformismo e porque em nenhuma parte havia unidades de tropa bem equipadas, todas aquelas destruições de pontes me pareciam agora muito mais disparatadas do que em meu gabinete em Berlim.
Nas pequenas cidades e povoados da Turíngia, andavam pelas ruas grupos do partido, especialmente das SS, uniformizados. Sauckel havia chamado as últimas reservas: rapazes e meninos de dezesseis anos. Na qualidade de milícias tinham de opor-se ao inimigo, mas ninguém podia portar armas. Vários dias depois, Sauckel pronunciou um discurso inflamado, animando-os a lutar até o fim. Mas, logo depois do discurso, entrou em seu automóvel e retirou-se da Alemanha.
No dia 27 de março, à tardinha, cheguei a Berlim. Ali, tudo tinha mudado. Isso porque Hitler ordenara que Kammler, general-de-campo das SS, tomasse conta, além do fabrico dos foguetes, dos quais aliás já estava encarregado, também da produção de todos os aviões modernos. Destarte, não somente escapavam de minhas mãos os problemas do armamento aéreo; Hitler dispusera que Kammler podia utilizar-se dos colaboradores no ministério. Originava-se daí uma situação muito anormal, tanto sob o aspecto puramente prático como também no da organização. Além disso, ele tinha estabelecido que Goering e eu subscrevêssemos a nota de Kammler, reconhecendo-nos subordinados ao general. Eu assinei sem objeções, apesar de sentir-me furioso por aquela humilhação. Naquele dia, não compareci à reunião para o estudo da situação. Também Poser informou-me de que Guderian fora afastado por motivo de saúde. Mas quem estivesse a par da maneira de agir daquele círculo saberia que Guderian não voltaria ao serviço ativo. Assim, eu perdia um dos raros conselheiros militares de Hitler, que não somente estava do meu lado, como também me animava em minha política.
Foi então que recebi de minha secretária as normas de aplicação das ordens de Hitler, no que dizia respeito à destruição de todos os bens nacionais, as quais tinham sido redigidas pelo chefe das tropas de transmissões. Entretanto, fui informado pelo General Albert de que ele pretendia alterar as disposições radicais de autoria de Hitler.
Confidencialmente, fui também informado de que a organização encarregada dos armamentos seria confiada a Saur, embora sob a autoridade de Himmler, nomeado inspetor-geral de toda a produção de guerra. Isso dava a entender, claramente, pelo menos uma coisa: Hitler queria ver-se livre de mim. Pouco depois, recebi uma chamada de Schaub que em tom seco de voz ordenou-me que me apresentasse a Hitler naquela noite.
Eu me sentia bastante intranqüilo, enquanto descia ao gabinete subterrâneo de Hitler. Ele estava só e recebeu-me glacialmente, sem oferecer-me a mão nem responder ao meu cumprimento. Imediatamente, com acento duro na voz, entrou no assunto:
– Recebi de Bormann uma informação sobre as conversas do senhor com os chefes regionais do Ruhr. O senhor pediu-lhes que não executassem minhas ordens e disse-lhes que a guerra estava perdida. Sabe o que isso lhe pode acarretar?
Como se acabasse de recordar algo muito distante, mudou de tom, desapareceu a tensão, e, quase como uma pessoa normal, acrescentou:
– Se o senhor não tivesse sido meu arquiteto, sofreria as conseqüências da sua maneira de agir.
Em parte por franca insubordinação, em parte por cansaço, mais impulsivo do que valente, respondi-lhe:
– Ponha em prática as medidas que julgar necessárias, sem nenhuma consideração pela minha pessoa.
Pareceu-me que Hitler ficou surpreso. Houve uma pausa no diálogo, e logo, em tom amistoso, embora provavelmente estudado, acrescentou:
– O senhor está cansado e doente. Por isso resolvi que vá descansar, imediatamente, e outro se encarregará do ministério em seu nome.
Respondi com decisão:
– Não. Estou bem e não tomarei férias. Se o senhor não quer que eu continue seu ministro, dispense-me do cargo.
Naquele momento, lembrei-me de que, um ano atrás, Goering tinha recusado aquela mesma solução. Hitler respondeu-me em tom terminante:
– Não quero dispensá-lo do cargo. Mas insisto em que tenha já um período de descanso por doença.
Eu permaneci inabalável:
– Não posso conservar minha responsabilidade de ministro deixando outro agir em meu nome.
E em tom mais conciliador acrescentei, para minorar a tensão entre nós:
– Não posso, meu Fuhrer!
Era a primeira vez que lhe dirigia esse tratamento, mas Hitler permaneceu irredutível:
– Não há alternativa. Não posso dispensá-lo do cargo! E acrescentou:
– Por motivos tanto de política exterior, como interior, não posso prescindir do senhor.
Corajoso, repliquei:
– Também não posso tomar férias. Enquanto eu estiver nesta função, dirigirei o ministério. Eu não estou doente!
Fez-se uma pausa. Hitler sentou-se. E eu, sem ter sido convidado a tomar assento, também sentei-me. Em tom mais calmo, Hitler continuou:
– Sr. Speer, se o senhor se convencesse de que a guerra não está perdida, poderia continuar em seu cargo.
Pelos meus memoriais, pela informação de Bormann, ele inteirado de como eu via a situação e quais as conclusões a que eu chegara. Evidentemente, queria obrigar-me a uma declaração que depois me impedisse de revelar às pessoas qual era a verdadeira situação. Observei com um tom de sinceridade na voz e sem intenção de desafio:
– O senhor sabe que eu não posso fazer isso. A guerra está perdida.
Hitler então começou a desfiar lembranças, falou-me de situações difíceis, nas quais tudo parecera perdido, e que no entanto ele conseguira vencer, dominando-as com energia e fanatismo. Pareceu-me que não iria terminar as lembranças das suas épocas de lutas: o inverno de 1941-1942, a ameaça de catástrofe que pesara sobre os transportes, e até me citou como exemplos os meus próprios êxitos na produção de armamentos. Eu já o ouvira mencionar aquilo tantas vezes que quase sabia de cor aquele monólogo. Se ele calasse eu poderia prosseguir, recitando-o textualmente. Agora apenas mudava o registro da voz. Talvez fosse aquele acento desapaixonado e ao mesmo tempo suplicante que dava força persuasiva às suas palavras. Invadiu-me uma sensação parecida com aquela que eu experimentara anos atrás, na casa de chá, quando não quis evitar seu olhar dominador.
Enquanto eu permanecia calado, olhando-o fixamente, ele me surpreendeu com uma brusca atenuação em suas exigências:
– Se o senhor admitisse que ainda podemos ganhar a guerra, se pelo menos pudesse crer nisso, então tudo estaria bem.
O tom de sua voz era cada vez mais suplicante, e cheguei a pensar que se mostrava muito mais persuasivo quando falava aparentando debilidade do que nos arrancos de altivez. Em outras circunstâncias talvez eu tivesse sido fraco e cedesse. Mas, desta vez, bastou-me pensar em seus propósitos de destruição para não ceder. Agitado, e talvez em tom de voz muito alto, eu respondi:
– Não posso, nem com a melhor vontade. Ademais, não quero ser um desses porcos que o rodeiam, que lhe asseguram que crêem na vitória, quando há tempos já deixaram de crer nessa vitória.
Hitler não reagiu. Permaneceu alguns momentos com o olhar fixo no vácuo e recomeçou a falar das suas experiências, da época da luta pelo poder. Como tantas vezes, durante a semana, voltou a brilhar outra vez em seu cérebro a inesperada salvação de Frederico, o Grande.
– Nós devemos crer que no final tudo acabará bem. Espera o senhor ainda que a guerra possa tomar um rumo vitorioso ou já perdeu a fé?
Uma vez mais, Hitler reduziu seu pedido a uma declaração formal que me comprometesse:
– Sim, pelo menos o senhor podia conservar a esperança na vitória... Isso se deve esperar! Com isto eu me daria por satisfeito!...
Não respondi.
Houve um silêncio demorado e violento. Afinal, Hitler levantou-se bruscamente e, adotando de novo o tom cortante e frio com que me falara no princípio, disse-me:
– Tem vinte e quatro horas para meditar em sua resposta! Amanhã irá dizer-me se acha que ganharemos a guerra. Despediu-me sem me dar a mão.
Como demonstrativo do que ocorreria na Alemanha, se fosse cumprida a ordem de Hitler, logo depois daquela conversa, recebi o seguinte telegrama do chefe do Serviço de Transportes, datado de 29 de março de 1945:
Objetivo destruição total dos meios de transporte... escassez explosivos exige hábil aproveitamento possibilidades eficaz destruição.
Esta, segundo especificava o decreto, incluía as pontes de todos os tipos, as vias férreas, as instalações de sinalização, as instalações técnicas das estações de manobras, as oficinas, as comportas e instalações de nossas vias de navegação. Ao mesmo tempo, deviam ser destruídos inteiramente todos os navios mercantes, os guindastes, sendo eficientemente bloqueados os rios e canais mediante o afundamento de barcos. Para esse fim seriam utilizadas munições de qualquer tipo, o fogo ou a destruição das peças mais importantes. Só um especialista que tivesse previsto para um dia a execução dessas ordens tão bem elaboradas poderia imaginar a grandeza da catástrofe. O decreto dava ao mesmo tempo uma amostra do pedantismo com que se seguiam as ordens ditadas por Hitler.
Chegando em meu apartamento, situado atrás do ministério, atirei-me na cama, cansado, e comecei a pensar exatamente em que forma deveria responder ao ultimato de vinte e quatro horas que Hitler havia imposto. Aos poucos, fui concatenando as idéias e redigindo um texto, em que se liam frases como estas: "Mas não posso continuar acreditando no triunfo de nossa causa se nestes meses críticos vemos deliberada e sistematicamente a destruição dos fundamentos da vida do nosso povo. Isto é uma injustiça tão grave para com ele que o destino jamais no-la perdoará. Portanto, suplico-lhe, não proceda deste modo com o nosso povo. Se o senhor pudesse desistir desse ato, eu teria a fé e a coragem necessárias para continuar trabalhando com a maior energia. Já não está em nossas mãos o traçado do nosso destino. Somente uma Providência superior poderá mudar o nosso futuro. De nossa parte, só nos é permitido contribuir para essa mudança mediante uma conduta firme e uma fé inquebrantável no futuro do povo".
Não concluí, como era habitual naqueles documentos particulares, com a expressão: "Viva o Fuhrer!" Minhas últimas palavras foram: "Deus salve a Alemanha".
Ao reler aquela carta, pareceu-me bastante frouxa. Talvez Hitler sentisse nela um tom de rebeldia, que poderia induzi-lo a agir contra mim. Pedi, no entanto, a uma das suas secretárias que copiasse aquela carta na máquina especial, uma que tinha os tipos grandes, por ser estritamente pessoal, escrita a mão e quase ilegível. Ela me deu esta resposta:
– O Fuhrer proibiu-me de receber cartas do senhor. Quer ter sua resposta em pessoa.
Pouco depois, eu recebia ordem para apresentar-me imediatamente a Hitler.
Hitler estava diante de mim, com ar um tanto inseguro, talvez receoso, e perguntou-me, laconicamente:
– Então?
Fiquei confuso, não tinha resposta preparada, mas sem refletir respondi um pouco indeciso:
– Estou incondicionalmente com o senhor, meu Fuhrer.
Hitler não respondeu, comovido por minhas palavras.
Vacilou um pouco e estendeu-me a mão, o que não fizera quando cheguei. Seus olhos, como às vezes acontecia, encheram-se de lágrimas.
– Assim, está tudo bem.
Demonstrou claramente o alívio que sentia. Também eu, ante aquela calorosa e imprevista reação, comovi-me por um instante. Agora, voltava a haver entre nós algo das relações de outrora.
E para aproveitar a ocasião eu disse:
– Se eu estou, incondicionalmente, com o senhor, é lógico que seja eu quem se encarregue de executar suas ordens, não os chefes regionais.
Autorizou-me a redigir uma ordem nesse sentido, para ser assinada imediatamente. Mas, quando iniciamos nossa conversa sobre isso, ele mostrou sua decisão de manter as instruções para a destruição das indústrias e das fábricas. Despedi-me então. Já era uma hora da madrugada.
Em um dos gabinetes da chancelaria, redigi as "instruções de aplicação" do decreto de Hitler, de 19 de março de 1945. Para evitar discussões, desisti de referir-me à revogação daquela ordem. Somente particularizei dois itens: "A execução da ordem será da exclusiva incumbência das centrais e delegações do Ministério dos Armamentos e Produção de Guerra. O ministro dos Armamentos e Produção de Guerra ditará, com minha aprovação, as disposições necessárias à aplicação da ordem. Em cada caso, ele poderá dar aos comissários de defesa as indicações adequadas". Com isso eu voltava às minhas atribuições. Bastara uma frase para convencer Hitler de que na indústria se podia também "alcançar o mesmo objetivo mediante a paralisação". Naturalmente, para tranqüilizá-lo, acrescentei que nas fábricas de especial importância podia haver necessidade da destruição total, e nesse caso, por indicação sua, eu transmitiria as ordens pertinentes. Esta indicação não se chegou a formular.
Hitler, com a mão trêmula, quase sem apresentar objeções, assinou o texto, a lápis, depois de introduzir algumas emendas. Creio que Hitler compreendia, claramente, que depois daquilo não se poderia executar grande parte do seu plano de destruição. Durante nossa conversa, depois da assinatura, consegui levá-lo a reconhecer que a tática da "terra arrasada" não era eficiente em um espaço como o da Alemanha. Só podia ser útil em grandes extensões territoriais como a da Rússia. Tomei nota do nosso acordo e fiz que ele se ocupasse da ata da reunião.
Entretanto, como na maioria dos casos, Hitler agiu com atrocidade. Naquela mesma noite ordenou a todos os comandantes-chefes que "ativassem até o fanatismo a luta contra o inimigo. No momento, não podemos ter nenhuma consideração à população".
Uma hora depois, eu tinha reunido todas as motocicletas, carros e veículos disponíveis, mandando ocupar as redações de jornais e o telégrafo, para deter as operações de destruição que já se tivessem iniciado. Às quatro horas da madrugada, eu mandava divulgar minhas disposições, sem receber para isso, como fora previsto, a aprovação de Hitler. E sem o menor escrúpulo, adotei outra vez todas as minhas normas para a conservação das indústrias, dos reservatórios de água, das usinas de gás e de eletricidade e das fábricas de produtos alimentícios. Para a total destruição das indústrias, eu anunciava a promulgação de instruções especiais, que nunca foram transmitidas.
Naquele mesmo dia, ainda sem autorização de Hitler, ordenei que os terrenos da Organização Todt deveriam estar livres de um cerco da parte do inimigo e que dez ou doze comboios de alimentos deveriam caminhar até às proximidades do Ruhr, já cercado. Concordei com o General Winter do Alto-Comando da Wehrmacht em redigir um decreto para que se detivessem as explosões, o qual, naturalmente, foi impedido por Keitel. Também com o Capitão-General Frank, das SS, responsável pelos depósitos de roupas e alimentos da Wehrmacht, entrei em acordo, no sentido de se distribuir todo o estoque de vestuário à população civil. Malzacher, meu delegado na Tchecoslováquia, deveria impedir a destruição de pontes na Alta Silésia.
No dia seguinte, em Oldenburg, reuni-me a Seyss-Inquart, comissário-geral nos Países Baixos. Durante a viagem estive fazendo exercício de tiro ao alvo com pistola, pela primeira vez. Depois dos cumprimentos de praxe, iniciando-se a conversa, Seyss-Inquart admitiu francamente, para meu espanto, que já cuidara da aproximação do inimigo por seu lado. Não queria fazer na Holanda as destruições e estava disposto a impedir as inundações determinadas por Hitler. Estabeleci um mesmo acordo com o chefe regional de Hamburgo, Kaufmann.
No dia 3 de abril, logo depois do meu regresso, eu proibia que se dinamitassem comportas, represas e pontes de canais. Os telegramas, cada vez mais numerosos e insistentes, em que se solicitavam ordens para a destruição de fábricas eram respondidos por mim, invariavelmente, com instruções para efetuar danos que causassem apenas a paralisação.
De qualquer modo, para aquelas decisões, havia quem estivesse solidário comigo. Meu representante político, o Dr. Jupfauer, aliara-se aos subsecretários mais influentes, para neutralizar-se, na medida do possível, a política de Hitler. Pertencia também ao seu grupo Klopfer, representante de Bormann. Tínhamos conseguido solapar a posição de Bormann, de maneira que, até certo ponto, suas ordens caíam no vazio. Durante aquele terceiro período do Terceiro Reich, talvez ele dominasse Hitler. Mas fora da casamata funcionavam outras leis. O próprio Ohlendorf, chefe do Serviço de Segurança das SS, o qual, segundo me assegurou na prisão, tinha estado sempre a par dos meus atos, absteve-se de dar conhecimento deles aos seus superiores. De fato, em abril de 1945, eu tinha a impressão de que, sem o apoio dos subsecretários, eu podia conseguir mais do que Hitler, Goebbels e Bormann juntos. Na esfera militar, eu tinha entabulado boas relações com Krebs, novo chefe do Estado-Maior. Também Jodl, Buhle e Praun, este chefe das forças de transmissões, mostravam-se cada vez mais compreensivos.
Eu estava convencido de que se Hitler soubesse das minhas atividades agiria de acordo com as suas convicções. Eu tinha de contar com a sua reação. Durante aqueles meses de duplicidade eu me orientava por um princípio muito simples: manter-me sempre o mais próximo de Hitler. Qualquer um sentia poder suscitar suspeitas, mas uma dúvida que surgisse poderia ser comprovada ou eliminada pela minha presença Ele não tinha vocação para o suicídio, e assim já havia encontrado um refúgio de emergência, situado a cem quilômetros de Berlim. Além disso, Rohland tinha preparado para ele um alojamento em um dos numerosos pavilhões de caça do Príncipe Fürstenberg.
Nas reuniões de princípios de abril, para o estudo da ação, Hitler ainda falava de operações de contra-ataque incursões sobre os flancos do inimigo, o qual avançava marcha forçada em direção a Eisenach. Hitler continuava transferindo divisões de um lugar para outro; era como estivesse fazendo um jogo de guerra, um jogo horrível e laborioso. Depois de um dos meus regressos da linha de ocidental, vi como era fantasia aquela atividade de r, pois eu, justamente na ocasião, estivera no setor de Se ocupava Hitler, tendo o mapa à sua frente, e onde havia as tropas por ele referidas. Vi, sim, alguns grupos soldados sem armas pesadas, armados somente de fuzis.
Em meu gabinete também havia, todos os dias, uma reunião para o debate da situação, de acordo com as últimas informações que nos fornecia o meu oficial de ligação com o Alto-Comando, desobedecendo a uma ordem de Hitler, que proibira informar organismos não militares da posição das forças em operações. Todos os dias, Poser indicava-nos com suficiente exatidão os territórios que. iam ser ocupados pelo inimigo, nas seguintes vinte e quatro horas. Essa informação sóbria e realista era muito diferente daquelas, cautelosas e veladas, que se entregavam na casamata da chancelaria. Ali ninguém falava de retirada, de evacuação. Eu tinha a impressão de que o Estado-Maior, sob o General Krebs, desistira, definitivamente, de pôr Hitler ao corrente da realidade dos fatos, limitando-se somente a mantê-lo ocupado com uma espécie de jogo tático. Quando, em desacordo com as previsões da véspera, tinha de dar conta da queda de cidades e setores, Hitler permanecia tranqüilo. Já não se irritava, como em semanas anteriores, contra os seus auxiliares. Parecia resignado.
Nos primeiros dias de abril, Hitler chamou Kesselring, comandante-chefe da frente ocidental. Casualmente, testemunhei aquela grotesca conversação. Kesselring tratou de convencer Hitler de como era desesperadora a situação. Mas Hitler não o deixou falar. Aos poucos, tinha monopolizado a conversa e dissertava sobre a maneira como algumas centenas de tanques aniquilariam o avanço norte-americano de Eisenach, o que provocaria um pânico fenomenal e permitiria expulsar da Alemanha os ocidentais. Hitler perdeu-se em uma extensa peroração sobre a proverbial incapacidade dos soldados norte-americanos em se aproveitarem de uma derrota. No entanto, a ofensiva de Ardenas veio comprovar justamente o contrário. Irritou-me porém a atitude de Kesselring, que, depois de breve resistência, esteve de acordo com as fantasias de Hitler, parecendo levar a sério os planos dele. Ademais, era inútil discutir sobre batalhas irrealizáveis.
Durante uma daquelas reuniões, Hitler voltou à idéia de um ataque pelo flanco. Eu comentei:
– Se tudo está destruído, a recuperação desses territórios de nada servirá. Já não pode haver produção.
Hitler ficou silencioso.
– Não se poderiam reconstruir as pontes com a necessária rapidez – continuei.
Então, eufórico, Hitler me disse:
– Tranqüilize-se, Sr. Speer. Não se destruíram tantas pontes como eu ordenei.
Com a mesma jovialidade repliquei:
– Não deixa de ser curioso nós nos alegrarmos por não se terem cumprido ordens...
Houve então algo assombroso: Hitler mostrou-se disposto a assinar um decreto, que eu deveria redigir, sobre o assunto.
Quando mostrei o texto a Keitel, este, por um momento, perdeu as estribeiras:
– Por que outra contra-ordem? Já se expediu a ordem destruição... Sem se destruírem as pontes não se pode ganhar a guerra!
Afinal, após algumas retificações sem importância, aprovou o texto, que logo seria assinado por Hitler. Por esse decreto só se causariam danos menores às instalações de fortes e de comunicações, conservando-se intactas as demais até o último momento.
Naquele mesmo dia, o General Praun, chefe dos serviços de transmissões, revogou suas instruções de 27 de março de 1945, suspendeu todas as ordens de destruição e até dispôs, por sua conta, que se conservasse o material armazenado, que depois da guerra serviria para restabelecer-se a rede de comunicações. Afirmou que a destruição dos meios de comunicação, ordenada por Hitler, não teria utilidade prática, uma vez que o inimigo dispunha de cabos, fios e estações de rádio, se o chefe dos transportes revogou também suas instruções sobre a destruição de todos os meios de transporte. Em todo caso, Keitel negou-se a aceitar o último decreto de Hitler como norma pragmática.
Keitel censurava-me – nisso tinha razão –, dizendo quela ordem do dia 7 de abril ia causar confusão. Nos dezenove dias compreendidos entre 18 de março e 7 de abril de tinham sido expedidas doze ordens contraditórias. Mas uma das ordens devia contribuir para minorar o caos.
A HORA FATÍDICA
No mês de setembro, Werner Neumann, subsecretário do Ministério da Propaganda, pedira-me que eu pronunciasse um discurso a ser irradiado por todas as emissoras, a fim de reanimar a disposição do povo. Vi nisso uma armadilha de Goebbels e não aceitei o convite. Mas, agora, tendo Hitler assinado um decreto redigido por mim, parecendo-me disposto a apoiar minha linha de ação, julguei conveniente aproveitar a ressonância de um discurso irradiado, para convencer uma área da opinião pública, a mais extensa possível, de que se deviam evitar as destruições inúteis. Aceitei a proposta, e uma vez elaborado o discurso instalei-me no pavilhão da casa de Milch, no distante Stechlinsee.
Naquela fase dos acontecimentos, nós nos preparávamos para qualquer eventualidade. A fim de habilitar-me à minha defesa pessoal, enquanto eu escrevia o discurso, fazia também exercícios de tiro ao alvo, às margens do lago, utilizando-me de uma silhueta humana. Quando vinha a noite, eu estava satisfeito: meus disparos rápidos acertavam bem no alvo, e o meu discurso prosseguia. Só o li para Milch e um seu amigo, enquanto saboreávamos alguns tragos: "É um erro acreditar no aparecimento de armas milagrosas, cujos efeitos substituam a ação do soldado". Não tínhamos destruído as indústrias nos territórios ocupados, e agora considerávamos um dever a conservação das bases de existência em nosso próprio país. Aludi brevemente à teoria da reconquista, referindo-me depois à expressão "destruição dos meios de transporte" utilizada pelo chefe dos nossos serviços de transportes, insistindo em que se deveria evitar, por todos os meios e modos, a efetivação dos propósitos explícitos naquela expressão. Adverti que se todas as medidas fossem aplicadas com prudência seria possível assegurar-se, dentro de um modesto limite, o abastecimento da população, até a próxima colheita. Quando terminei, Milch comentou calmo e corajoso:
– O significado está bem claro... e também para a Gestapo!
O caminhão com a instalação da emissora já estava diante do meu ministério, desde o dia 11 de abril, e os operários montavam a instalação dos fios, quando recebi uma chamada telefônica:
– Apresente-se ao Fuhrer com o texto do discurso.
Embora eu tivesse a intenção de ler ao microfone a redação original, eu preparara uma versão para os jornais, que se amenizavam as frases mais duras. Levei-a comigo. Hitler estava tomando chá, em uma das peças da sua casamata, em companhia de uma das secretárias. Trouxeram uma outra chávena para mim. Havia muito tempo que eu não o via assim com um ar tão natural, na vida particular. Ele pôs no nariz os óculos de aros metálicos, que lhe davam um ar de professor, tomou de um lápis e depois de ler algumas páginas começou a riscar parágrafos inteiros. Sem dar margem a explicação dizia, de vez em quando, em tom aliás perfeitamente amistoso:
– Isso nós suprimimos... ou:
– Este trecho é supérfluo.
A secretária ia lendo com desembaraço as páginas que Hitler ia soltando e lamentava:
– Que pena! Assim o discurso seria bonito . . .
Hitler despediu-me amistoso, quase afetuosamente.
– Prepare outro texto.
Depois de tantas emendas, o discurso perdia o seu significado. Mas sem a aprovação de Hitler eu não disporia das do Reich. E como Neumann não me falou mais a respeito, eu esqueci o caso.
Em meados de dezembro, Wilhelm Furtwangler ofereceu em Berlim seu último concerto, findo o qual fui cumprimentá-lo no camarote. Perguntou-me se ainda havia possibilidade de ganharmos a guerra e eu lhe respondi que o fim estava próximo. Furtwangler moveu a cabeça afirmativamente. Era a resposta que ele esperava. Eu o via em perigo, porque Bormann, Goebbels, o próprio Himmler, não tinham tido muitas das suas sinceras manifestações, nem sua intercessão em favor do compositor Hindemith, quando este foi proscrito pelo regime. Aconselhei-o a não regressar à Alemanha depois de sua tournée pela Suíça.
– Mas que será da minha orquestra? Eu sou responsável por ela!
Prometi-lhe cuidar dos músicos, nos próximos meses.
Nos primeiros dias de abril de 1945, Gerhart Von Westermann, intendente dos músicos da Orquestra Filarmônica de Berlim, comunicou-me que por ordem de Goebbels todos os componentes da orquestra tinham sido convocados para lutar na defesa de Berlim. Pelo telefone, tentei conseguir que fossem recrutados pelo Volkssturm (mobilização geral, que compreendia todos os homens de dezesseis a sessenta anos). Goebbels respondeu-me, secamente:
– Eu sozinho organizei esta orquestra. Graças à minha iniciativa e ao meu dinheiro chegou a ser isso que é. Quem vier depois de nós não terá nenhum direito a ela; que se afunde conosco.
Então recorri ao sistema mediante o qual Hitler, no princípio da guerra, impedira a mobilização dos artistas de sua preferência: pedi ao Coronel Von Poser que destruísse os documentos dos componentes da orquestra, os quais se achavam nos arquivos do recrutamento. A fim de dar um apoio econômico à orquestra, o ministério planejou vários concertos.
O último concerto daquela orquestra foi na tarde de 12 de abril de 1945, em uma sala sem calefação, onde se apinhavam os berlinenses, que tinham sido informados daquela exibição da orquestra. Para a primeira parte escolhi a última ária de Brunhilda e o movimento final de O crepúsculo dos deuses, cuja execução teria significado patético e melancólico ante o fim do Reich. Depois do concerto para violino de Beethoven, a Sinfonia romântica de Bruckner, com seu último movimento de corte arquitetônico, encerrou, por muito tempo, as experiências musicais da minha vida.
Quando regressei ao ministério, encontrei um aviso para chamar logo o oficial de gabinete de Hitler.
– Onde o senhor se meteu? O Fuhrer está à sua espera.
Quando entrei na sala, Hitler veio ao meu encontro com uma vivacidade que não era habitual, agitando na mão um recorte de jornal:
– Tome, leia isto! Aqui, aqui! O senhor não queria acreditar-me...
Falava às pressas:
– Houve o grande milagre que eu tinha prognosticado! Quem tinha razão? Leia o senhor! Roosevelt morreu!
Não podia conter-se. Supunha que se revelara o poder infalível da Providência que o protegia. Goebbels e muitos entre os presentes, radiantes, reconheciam que Hitler não se equivocara em suas convicções, repetidas até à saciedade: repetia-se agora a história que dera a vitória a Frederico, o, Grande, quando parecia inevitável a sua derrota. O milagre dos Brandenburgo! A sorte mudara outra vez, outra vez ocorrera uma virada histórica, repetia Goebbels sem cessar.
Durante alguns instantes, levantara-se o pano do palco onde se representava uma cena de fingido otimismo. Afinal, Hitler exausto em uma poltrona, aliviado e tonto ao mesmo tempo. Apesar de tudo, parecia perdido.
Alguns dias depois, sucedeu uma entre outras inúmeras fantásticas suscitadas pela morte de Roosevelt. Goebbels mandou-me um recado: uma vez que eu gozava de tanta fama nos países ocidentais, seria aconselhável que em um avião internacional eu fosse visitar o novo presidente, Truman. Essa era uma idéia como as outras, que se desvaneciam com a mesma rapidez com que surgiam.
Também naqueles primeiros dias de abril, no antigo gabinete de Bismarck, encontrei o Dr. Ley, rodeado de várias pessoas, entre elas Schaub e Bormann, ajudantes e secretários, todos em confusão. Ley veio ao meu encontro dizendo:
– Temos o raio da morte! Trata-se de um aparelho muito simples que se pode fabricar em grande escala. Estudei bem os planos e não resta dúvida: isto nos dará a saída! Enquanto Bormann o animava, movendo a cabeça afirmativamente, Ley prosseguiu, gaguejando como sempre, e um tom de reprimenda:
– Mas, naturalmente, em seu ministério não quiseram ouvir o inventor. Felizmente, escreveram-me diretamente. Quero que o senhor, pessoalmente, se encarregue do ato. Agora mesmo... Não temos nada mais importante em perspectiva!
Ley então passou a falar da minha organização, segundo ele pouco eficiente, vagarosa e emperrada. Tudo quanto me disse era tão absurdo que não lhe opus nenhuma objeção:
– O senhor tem razão! O senhor gostaria de ocupar-se pessoalmente? Com muito prazer eu o nomearei "dono do raio da morte", dispondo de plenos poderes.
Ley entusiasmou-se com a minha proposta:
– Naturalmente! Isto é um assunto meu e no caso estou disposto até a ser subordinado seu! Afinal, eu sou!
Propus-lhe fazer uma experiência, aconselhando-o a utilizar-se de coelhos que fossem seus, para evitar as fraudes com animais previamente preparados. De fato, alguns dias depois, um auxiliar dele vinha de um lugar do interior da Alemanha trazer-me a lista do material elétrico necessário.
Resolvemos acompanhar a comédia. O amigo Lüschen, chefe da indústria elétrica, foi cientificado do caso e avisado para que fornecesse os aparelhos solicitados pelo inventor. Pouco depois, ele me falava:
– Dei-lhes tudo o que pediam, menos um interruptor de corrente. Não há os interruptores pedidos por eles. Mas o inventor insiste... Sabe o que descobri? – acrescentou Lüschen, desatando a rir. – Há mais de quarenta anos não se fabrica tal interruptor, mencionado em uma velha edição do Graetz (manual de física, ensino médio), do ano de 1900, aproximadamente.
À medida que se aproximava o inimigo, proliferavam casos semelhantes. Naqueles dias, Ley, muito convencido, sustentava a seguinte teoria:
– Se os russos nos dominarem no leste, a corrente de refugiados alemães será tão forte que irromperá em avalancha sobre o oeste, invadindo tudo e apossando-se de tudo. Será como uma migração de povos.
Embora Hitler zombasse das ridículas fantasias de Ley, naqueles últimos tempos demonstrava indisfarçável preferência por ele.
Durante a primeira metade de abril, Eva Braun chegou de repente a Berlim. O Fuhrer tratou de convencê-la a regressar a Munique e eu ofereci-lhe um lugar em nosso avião do serviço postal. Mas ela negou-se obstinadamente a ir embora e todos na casamata compreendemos o motivo por que viera. Sua chegada era como uma mensagem palpável e real da morte.
O Dr. Brandt, médico pessoal de Hitler e assíduo hóspede de Obersalzberg, conseguira que os norte-americanos "arrolassem", como então se dizia, na Turíngia sua esposa e seu filho. Hitler resolveu submetê-lo a julgamento e nomeou um tribunal constituído de Goebbels, o chefe da juventude Axmann e o General Berger, das SS. Mas, ao mesmo tempo, ele interveio no processo, acumulando o papel de fiscal e de presidente do tribunal, pediu a pena de morte e formulou as acusações: Brandt sabia que podia levar a família para Obersalzberg; além disso, havia a suspeita de que, por intermédio da esposa, Brandt havia enviado aos norte-americanos informações secretas. A Srta. Wolf, a primeira secretária de Hitler, diria chorando acerca do Fuhrer: – Já não posso entendê-lo.
Na ocasião, entretanto, Himmler entrou na casamata e acalmou os ânimos; antes do mais, havia necessidade de interrogar-se uma importante testemunha que, segundo acrescentou em tom de voz intencional, "tinha desaparecido".
Esse incidente inesperado intranqüilizou-me, pois desde abril minha família estava longe das grandes cidades, em uma fazenda próxima de Kappeln, em Holstein. Agora, da noite para o dia, isso se convertia em crime. Quando Hitler, por intermédio de Eva Braun, se interessou pelo destino de minha família, eu menti, dizendo que estava em casa de um amigo, perto de Berlim. A explicação tranqüilizou Hitler, mas ele me fez assegurar-lhe que, quando se retirasse para Obersalzberg, eu, minha mulher e meus filhos o acompanharíamos. Ele pretendia travar o último combate na renomada Fortaleza dos Alpes.
Goebbels, por seu lado, afirmou que embora Hitler tivesse de sair de Berlim ele pensava terminar seus dias na
– Minha mulher e meus filhos não devem sobreviver. Os americanos nos forçaram a fazer propaganda contra
A Sra. Goebbels, ao contrário, quando a visitei em Schwanenwerder, nos meados de abril, disse-me que não suportava a idéia de seus filhos morrerem. Parecia, no entanto, citar a vontade do marido. Alguns dias depois, propus-lhe levar, nos últimos momentos, durante a noite, uma barcaça de nossa frota fluvial ao embarcadouro da quinta de Goebbels, em Schwanenwerder. Ela e os meninos se esconderiam no barco, até que este chegasse a algum afluente do Elba pela margem esquerda. Levariam alimentos suficientes para permanecerem ocultos durante algum tempo. Quando Hitler declarou que não sobreviveria à derrota, alguns dos seus mais íntimos colaboradores apressaram-se em afirmar que eles também estavam dispostos ao suicídio. Mas eu sou de opinião que deviam aceitar o sacrifício de se submeterem a um processo judicial, dirigido pelo inimigo. Dois dos mais eficientes oficiais da Luftwaffe, Baumbach e Galland, comigo elaboraram, nos últimos dias, um plano novelesco para vigiar os principais colaboradores de Hitler e impedir que eles se suicidassem. Sabíamos que Bormann, Ley e Himmler, todas as noites, saíam de Berlim, cada um para seu lado, em direção a lugares distantes da capital e pouco expostos a ataques aéreos. Nosso plano era simples: quando os aviões de vôo noturno inimigos deixavam cair as bombas de iluminação, todos os carros ficavam parados e os passageiros fugiam. Algumas daquelas bombas, disparadas por pistolas de sinalização, deveriam produzir o mesmo efeito. Um pelotão armado de fuzis-metralhadoras poderia imobilizar os seis homens da escolta. As bombas já estavam em minha casa, os homens do pelotão tinham sido escolhidos e tudo estava planejado, até nos detalhes. Aproveitando-se a confusão do momento, eles poderiam ser levados a lugar seguro. O Dr. Hupfauer, há tempos colaborador principal do Dr. Ley, para grande assombro da minha parte, insistiu em que o golpe contra Bormann fosse executado por membros do partido, veteranos da frente. Alegava que não havia ninguém mais odiado do que ele. O chefe regional Kaufmann pedia com insistência que o deixassem liquidar o "Mefistófeles do Fuhrer". De qualquer modo, o General Thomale, chefe do Estado-Maior das tropas blindadas, durante uma conversa que tivemos, à noite, na Landstrasse, convenceu-me de que ninguém tinha o direito de intervir na execução da justiça divina.
Por sua vez, Bormann tinha planos. Uma vez encarcerado Brandt, a quem ele, Bormann, considerava a pedra angular da minha influência sobre Hitler, Klopfer, o subsecretário, advertiu-me de que não fora Hitler, mas Bormann, o causador daquela prisão, cuja finalidade era também prejudicar-me.
Além disso, certas notícias difundidas pelo inimigo, pelo rádio, inquietavam-me. Segundo elas, eu deixara fugir um sobrinho, que tinha de comparecer a um conselho de guerra por ter imprimido obras de Lênin. Como se fosse pouco, Hertlanger, que sempre fora atacado pelo partido, ia ser detido logo. Além disso, asseguravam que um jornal suíço publicara uma notícia segundo a qual Von Brauchitsch, comandante-chefe do Exército, e eu éramos os únicos com os quais era possível ao inimigo tratar uma capitulação. Ou pretendiam os Aliados dividir o governo ou eram apenas boatos.
De qualquer modo, entretanto, durante aqueles dias, o Exército pôs à minha disposição vários oficiais, os quais, armados de fuzis-metralhadoras, se instalaram em minha residência. Para casos de emergência, dispúnhamos de um carro blindado de oito rodas, no qual podíamos sair de Berlim. Todavia, ainda hoje ignoro o motivo daquelas precauções.
Era iminente o ataque a Berlim. Hitler já nomeara o General Reymann comandante militar da cidade. No começo das suas funções ainda estava sob as ordens do Capitão-General Heinrici, comandante-chefe do grupo de Exércitos, que se estendia desde o Báltico, a uma certa distância do Oder, até uns cem quilômetros ao sul de Frankfurt an der Oder.
Heinrici dispunha de toda a minha confiança, eu o conhecia havia muito tempo e por último me ajudara a deixar intacta a indústria da bacia carbonífera de Ribnyck. Quando, no dia 15 de abril, véspera do início da grande ofensiva russa contra a capital, Reymann ordenou que se preparasse a destruição de todas as pontes de Berlim, dirigi-me ao quartel-general de Heinrici, em Prenzlau. Para dispor de apoio técnico, levei comigo Langer, conselheiro municipal de urbanismo, e Beck, presidente das Ferrovias do Reich. Heinrici, atendendo minha solicitação, convocara Reymann àquela reunião.
Os dois especialistas demonstraram que as destruições acarretariam a morte de Berlim. O comandante militar da cidade apoiou-se na ordem de Hitler, segundo a qual Berlim teria de ser defendida de todos os modos. – Eu tenho de combater e para isso devo poder destruir pontes.
– Somente aquelas do setor da ofensiva principal? – sugeriu Heinrici.
Respondeu o general:
– Não; em qualquer setor onde estejam combatendo.
Perguntei se também seriam destruídas as pontes do centro da cidade, no caso de luta nas ruas. O General Reymann respondeu afirmativamente. Como em outras ocasiões, lancei mão do meu melhor argumento:
– O senhor luta porque acredita na vitória?
O general titubeou um momento e logo teve de responder com uma afirmação. Insisti:
– Se Berlim for arrasada, a indústria ficará paralisada durante um tempo indeterminado. Sem ela a guerra estará perdida.
O General Reymann ficou indeciso. Teríamos permanecido, indefinidamente, em ponto morto, se o Capitão-General Heinrici não tivesse ordenado que se tirassem as cargas de explosivos de algumas das principais artérias de Berlim, condicionando a destruição de pontes à ocorrência de combates mais importantes.
Quando os demais presentes saíram, Heinrici disse-me:
– De acordo com esta instrução, nenhuma ponte será destruída em Berlim, pois não haverá combate aqui. Se os russos entrarem na cidade, uma ala do Exército irá mover-se para o norte e a outra para o sul. No norte, nós nos entrincheiraremos no sistema de canais leste–oeste. Ali, então, não irei poupar as pontes.
Eu o compreendi.
– Então Berlim será tomada rapidamente?
O capitão-general concordou:
– Pelo menos, sem grande resistência.
Na manhã seguinte, 16 de abril, eu acordei muito cedo. O Tenente-Coronel Von Poser e eu queríamos presenciar, do alto de uma colina à margem do Oder, em Wriezen, a última grande ofensiva da guerra, o ataque soviético a Berlim. O nevoeiro denso impedia a visibilidade, e depois de algumas horas um guarda-florestal avisou-nos de que toda a gente estava se retirando, pois os russos não tardariam em chegar ali. Então, nós saímos do nosso posto de observação.
Passamos perto das grandes comportas de Nieder-Finow, maravilha da técnica do decênio de 30, chave para a navegação rumo a Berlim pelo Oder. Tinham sido colocados explosivos em cada uma das grandes estruturas de ferro com trinta e seis metros de altura. Ouvia-se a certa distância o fogo dos canhões. Um tenente de Engenharia informou-nos que tudo estava pronto para a explosão. Ali ainda obedeciam à ordem de destruição dada por Hitler em 19 de março. Mas o tenente ouviu satisfeito as instruções de Von Poser, no sentido de não efetuar a explosão.
Trinta quilômetros adiante, entramos no "paraíso dos animais" de Goering, os solitários bosques do Schorfheide. Despedi os meus acompanhantes, sentei-me em um tronco de árvore e, cinco dias depois de Hitler ter vetado minha proteção ao país por via legal, escrevi de uma só vez um texto de rebelião. Era um chamado de resistência aos soldados da Wehrmacht e do Volkssturm. Pedia sem dissimular que "por todos os meios e se necessário pela força das SS" se impedisse a destruição das fábricas, das pontes, dos terminais, das instalações ferroviárias e de quaisquer vias de comunicação. Ordenava, além disso, que se entregassem ilesos às forças de ocupação os presos políticos, os judeus, e que se impedisse aos prisioneiros de guerra e aos operários estrangeiros o regresso às suas pátrias. Proibia as atividades de organização Werwolf de resistência e exigia que as cidades e povoações fossem entregues sem luta. E terminava, talvez com excessiva eloquência, reiterando "o testemunho de nossa fé inquebrantável no futuro do nosso povo, que sempre permanecerá imutável".
Por intermédio de Poser, enviei ao Dr. Richard Fischer, Diretor-Geral das Centrais Elétricas de Berlim, uma nota escrita a lápis, pedindo-lhe que mantivesse o fornecimento de energia elétrica à mais poderosa estação de rádio alemã, de Nigswusterhausen, até a sua ocupação pelo inimigo. Pela estação, que todos os dias irradiava os comunicados da organização Werwolf, iria difundir o meu discurso em que se proibiam as atividades da organização. À última hora da tarde, reuni-me com o Capitão-General Heinrici, em seu quartel-general, que tinha sido transferido para uma posição mais afastada, em Dammsmuhl. Eu queria pronunciar o meu discurso no breve intervalo durante o qual a emissora estaria em "zona de combate", portanto fora da jurisdição estatal. Mas Heinrici era de opinião de que a emissora seria ocupada pelos russos, e, antes de eu terminar de falar, propôs que se gravasse logo o meu discurso e lhe fosse entregue o disco, pois ele se encarregaria de transmiti-lo antes da ocupação soviética. Mas, apesar dos esforços de Lüschen, não foi possível encontrar um gravador adequado. Dois dias depois, Kaufmann chamava-me de Hamburgo com a maior urgência, pois a Marinha de Guerra estava prevendo a destruição das instalações portuárias. Durante uma reunião, da qual participaram os principais representantes das vias, estaleiros, administração do porto e a Marinha, devido à energia do chefe regional, tomou-se a decisão de não promover nenhuma destruição. Em sua casa de arrabalde, a do Olster, continuei minha conversa com Kaufmann.
Um grupo de estudantes bem armados tinha-se encarregado de protegê-lo. Disse-me ele:
– Será melhor o senhor ficar em Hamburgo conosco. Aqui está seguro. Em caso de emergência, podemos contar com nossos homens.
Não obstante a advertência de Kaufmann, voltei a Berlim e então lembrei a Goebbels que ele, que passara à história do partido como o "conquistador de Berlim", perderia sua reputação se terminasse a vida agindo como destruidor da cidade. Por muito ridícula que pareça esta observação, ela se adaptava à nossa situação naquelas circunstâncias, muito especialmente à de Goebbels, que supunha que o suicídio aumentaria a sua glória. Na noite de 19 de abril, antes de se iniciar a reunião para o estudo da situação, Hitler manifestou que aceitava uma proposição, formulada pelo chefe regional, segundo a qual deveriam ser utilizadas todas as reservas disponíveis para travar-se o combate decisivo às portas da capital do Reich.
O ANIQUILAMENTO
Durante as últimas semanas da sua vida, Hitler, segundo pareceu, tinha perdido aquela rigidez dos anos anteriores. Estava mais cordato e, às vezes, consentia em discutir suas decisões. Todavia, no inverno de 1944, teria sido inconcebível que ele aceitasse falar comigo sobre as perspectivas da guerra, teria sido impossível que, afinal, cedesse no que diz respeito ao seu propósito de aplicar a tática da "terra arrasada" ou deixasse de emendar um discurso como aquele eu redigira para ser irradiado, sem ter pronunciado uma palavra. Estava outra vez disposto a envolver-se em argumentos dos quais, um ano antes, nem teria querido ouvir falar. De qualquer modo, essa nova atitude correspondia não tanto a relaxamento íntimo, como a uma total claudicação, e até a inércia acumulada durante anos é que o mantinha em ação.
Era um ente simplesmente imaterial. E foi essa a sua característica constante. Ao lembrá-lo, pergunto muitas vezes mesmo se aquela carência de corporeidade, aquela imaterialidade, não foi o seu traço fundamental, desde a primeira juventude até o momento da sua morte violenta. Precisamente por isso, podia apoderar-se dele o despotismo, uma pessoa que não era contrariada por nenhuma emoção humana, jamais conseguiu descobrir a essência do seu ser, esta lhe faltava.
Agora, eu tinha diante de mim um decrépito ancião; tremiam-lhe as mãos, andava curvo e arrastando os pés. Até a voz era insegura e perdera o antigo vigor, sendo a forma de falar titubeante e monótona. Quando se excitava, o que acontecia com freqüência, como à maioria dos anciãos, os sons apagavam-se na garganta. Continuava com os acessos de teimosia, que não me lembravam os de um menino, mas os de um velho. Tinha a tez incolor e o rosto inchado. O uniforme, impecável, estava naqueles últimos tempos freqüentemente desalinhado e manchado pelo alimento que levava à boca com a mão trêmula.
Indubitavelmente, vendo-o assim, as pessoas que o rodeavam e o tinham acompanhado, nos tempos de prestígio, sentiam-se profundamente comovidas. Também eu estava sempre exposto ao perigo de deixar-me impressionar por aquele contraste impressionante. Talvez por isso ouviam-no em silêncio, cada vez que transferia divisões inexistentes ou ordenava transportes com aviões que não podiam levantar vôo por falta de combustível. Talvez por isso, permitiam-lhe evadir-se da realidade quando, no decurso dos debates, perdia-se no fundo da sua fantasia e falava do conflito que não poderia deixar de romper entre o Oriente e o Ocidente, o qual, jurava, era inevitável. Aqueles que o rodeavam deviam compreender que aquelas idéias eram quiméricas. No entanto deixavam-se sugestionar, fascinados, quando Hitler assegurava que somente ele, com sua personalidade e com sua força, estava disposto a ajudar o Ocidente a esmagar o bolchevismo. Parecia admissível sua afirmativa de que para esse fim dirigia agora todos os seus esforços, embora ele, pessoalmente, desejasse que logo chegasse a sua hora. E precisamente a integridade da sua atitude, vendo aproximar-se o fim, induzia à compaixão e contribuía para aumentar o respeito à sua figura.
Além disso, voltava a mostrar-se mais afável, mais simples nos modos. Em muitas coisas, ele me recordava o Hitler que eu conhecera doze anos antes, quando comecei a trabalhar para ele, apenas com uma diferença: parecia-me agora com um vulto menor. Sua afabilidade circunscrevia-se às poucas mulheres que lhe eram apegadas, havia anos. Suas maiores atenções dirigiam-se à Sra. Junge, viúva de um seu ajudante falecido. Mas também a cozinheira vienense, que lhe preparava a dieta, as duas secretárias, Srta. Wolf e Srta. Christian, formavam aquele círculo privado feminino, em companhia do qual estava tantas vezes Hitler, durante as últimas semanas da sua existência. Havia meses, fazia as refeições com elas, tomava chá com elas. Os homens quase não tinham mais acesso à sua esfera mais íntima. Havia muito tempo que eu não me sentava à sua mesa. A chegada de Eva Braun determinou algumas mudanças na rotina diária, embora Hitler não se tivesse afastado da convivência, totalmente inofensiva, com as outras mulheres. Sem dúvida, buscava a companhia delas pela convicção de que, na desgraça, as mulheres são mais fiéis do que os homens. Às vezes, parecia desconfiado da segurança que lhe ofereciam os membros do seu estado-maior. Somente a Bormann, Goebbels e Ley abria uma exceção, porquanto podia estar certo da fidelidade deles. O aparelho governamental continuava funcionando em função daquele Hitler espectral. Esse aparelho impelia também os generais a seguirem o caminho já traçado, inclusive naquela fase em que a magnética vontade de Hitler começava a debilitar-se. Keitel, por exemplo, insistia na destruição das pontes, quando Hitler já se tinha resignado a deixá-las intactas. Hitler devia notar que já afrouxava a etiqueta em torno sua pessoa. Antes, quando ele entrava em uma sala, todos se levantavam e não sentavam até que ele tomasse um assento. Agora, ao contrário, quando ele aparecia, alguns continuavam comendo, sentados, os criados falavam com os convidados na presença do Fuhrer, e determinados auxiliares, embriagados, dormiam nas poltronas ou discutiam em voz alta. Talvez aquela gente não desse mais importância a essas mudanças. Aquelas cenas produziam em mim o efeito de um pesadelo. Também houvera alterações na residência anexa: os tapetes, os quadros, as cortinas, os móveis tinham sido armazenados em uma casamata. Manchas nas paredes, buracos na madeira das peças do mobiliário, jornais deixados aqui e ali, vasos vazios, cinzeiros sujos, um livro esquecido em uma cadeira, tudo isso dava a impressão andança.
Havia meses que Hitler deixara os aposentos de cima, porque os constantes bombardeios não o deixavam dormir e abatiam-no. Na casamata pelo menos poderia descansar.
Instalou-se definitivamente debaixo da terra. A fuga para aquele lugar que deveria ser a cripta, a sepultura, teve para mim um significado simbólico. O isolamento, local inteiramente rodeado de cimento e de terra, traçava definitivamente a separação entre Hitler e a tragédia que se desenrolava no exterior, a céu aberto. Não tinha o contato com essa tragédia, e quando falava do fim se referia ao dele próprio, não ao do povo. Chegara à última fase em sua fuga da realidade, uma realidade que não quis, nem mesmo quando moço. Então, chamava a esse mundo a "ilha dos justos".
No entanto, naqueles últimos dias da sua existência, em abril de 1945, Hitler e eu, uma ou outra vez, conferíamos os projetos para Linz, enquanto em silêncio rememorávamos os sonhos de outrora. Seu gabinete, com um teto de cinco metros de espessura e dois de terra por cima era sem dúvida o local mais seguro de Berlim. Quando explodia alguma bomba de grande calibre nas proximidades a massa da casamata vibrava, devido ao fato de que a areia no solo da cidade transmitia as ondas vibratórias da explosão. Então Hitler encolhia-se na poltrona. Que transformação a daquele intrépido cabo da Primeira Guerra Mundial! Era apenas uma ruína, um feixe de nervos, incapaz de dominar suas reações.
Na realidade, não se festejou o último aniversário de Hitler. Nos anos anteriores, havia muitos automóveis à porta da chancelaria, a guarda prestava continências a dignitários do Reich e dos países estrangeiros que vinham felicitá-lo. Agora, a calma foi absoluta. Hitler saiu da casamata, subiu à chancelaria, que mostrava um aspecto de desleixo. No jardim, apresentaram-lhe uma delegação da Juventude Hitlerista, que se distinguira em combate. Hitler pronunciou algumas palavras e distribuiu algumas palmadinhas no rosto dos componentes do grupo. Sua voz estava fraca. Falou pouco. Compreendera talvez que não dispunha mais de nenhuma força persuasiva, que não podia inspirar mais do que compaixão. A maioria evitou a violenta situação que resultaria de um ato congratulatório formal. Ninguém sabia o que dizer. Dadas as circunstâncias, na reunião para o estudo da situação Hitler recebeu os cumprimentos com frieza, quase com desagrado.
Reunimo-nos como de costume em torno da mesa de mapas, no pequeno gabinete da casamata. Goering sentara-se em frente a Hitler. O marechal do Reich, que sempre dera muita importância ao seu traje, compareceu vestido de maneira diferente da habitual. Para nossa surpresa, ele substituíra a túnica de cor cinza-pérola do seu uniforme por uma de pano marrom, como usavam os norte-americanos. Em lugar das ombreiras douradas com cinco centímetros de largura, trazia-as feitas de pano, tendo por único adorno a insígnia do seu posto, a águia de ouro.
Sussurrou-me um dos presentes:
– Tal qual um general americano...
Mas Hitler pareceu não ter reparado naquela mudança. Na reunião trataram do iminente ataque ao centro urbano de Berlim. Da noite para o dia, Hitler abandonou a idéia de não defender a metrópole e mudar-se para a Fortaleza dos Alpes. Decidiu que se lutaria nas ruas de Berlim. Instaram com ele para que revogasse esta última decisão, pois era urgentíssima a transferência do quartel-general para Obersalzberg. Goering faz finca-pé em conservar em nosso poder uma via de comunicação norte–sul, passando pelo bosque da Baviera, pois a qualquer momento poderia ficar interrompida a última via de saída para Berchtesgaden. Hitler insurgiu-se contra a idéia de sair de Berlim, naquela contingência. – Como irei animar as tropas a combater por Berlim, se na mesma ocasião vou afastar-me pondo-me a salvo?
Goering, em seu uniforme novo, olhava-o com as pupilas arregaladas, pálido, suarento, enquanto Hitler continuava, fiada vez mais excitado:
– Vou deixar que o destino decida se hei de morrer na Capital ou voar para Obersalzberg nos últimos momentos.
Mal terminada a reunião, despediram-se os generais, e Goering, alterado, dirigiu-se a Hitler, dizendo ter assuntos importantes a resolver no sul e que tinha de sair de Berlim, naquela mesma noite. Hitler olhou-o com uma expressão ausente. Pareceu-me que, naquele instante, ele mesmo estava impressionado por sua resolução de permanecer em Berlim, arriscando sua vida. Dizendo-lhe palavras indiferentes, apertou-lhe a mão e não deixou transparecer que entendia os motivos de Goering. Eu, a dois passos dos dois, tive a impressão de presenciar uma cena histórica: o governo do Reich partia-se. Assim terminou a reunião do dia de aniversário do Fuhrer. Retirei-me sem despedir-me pessoalmente de Hitler. Ao contrário do que tínhamos antes combinado, o Tenente-Coronel Poser pediu-me que preparasse a viagem para aquela noite. O Exército soviético iniciara o ataque decisivo a Berlim, e avançava com rapidez. Desde há alguns dias, tudo estava preparado. O grosso da bagagem já fora remetido Hamburgo e, às margens do lago Eutin, nas proximidades do quartel-general de Doenitz em Ploen, esperavam-nos acomodações residenciais das Ferrovias do Reich. Em Hamburgo, visitei de novo o chefe regional Kaufmann. Estranhava que, em tais circunstâncias, a luta continuasse. Sua atitude animou-me a ler o discurso, redigido semanas antes, nos bosques do Schorfheide. Depois da minha leitura, ele ofereceu-se para mandar e levou-me à casamata onde se achavam instaladosos serviços técnicos da emissora de Hamburgo. Feita a gravação, Kaufmann ficou de posse dos discos, os quais deveriam ser irradiados nos seguintes casos: meu assassinato por inimigos políticos, entre os quais estava Bormann; Hitler ser informado das minhas atividades e condenar-me à morte; morte de Hitler e seu sucessor resolver continuar a política de destruição.
Como o Capitão-General Heinrici estava resolvido a não defender Berlim, era de esperar que a cidade fosse tomada dentro de poucos dias, e assim a guerra terminaria. De fato, segundo eu soube pelo General Berger, das SS, e em minha última visita a Berlim, por Eva Braun, no dia 22 de abril, Hitler tentara o suicídio. Mas Heinrici fora substituído pelo tenente-general de pára-quedistas Student, que Hitler considerava um dos seus oficiais mais eficientes e que, naquelas circunstâncias, segundo o Fuhrer, estava especialmente capacitado para o cargo, visto ser homem de visão curta.
Eu estava sem trabalho, pois já não havia indústria de armamentos. Mas uma inquietação interior não me deixava parar. Sem causa nem razão, decidi passar aquela noite na granja de Wilsnack, onde tantas vezes eu passava o fim de semana em companhia de minha família. Ali encontrei um auxiliar do Dr. Brandt, o qual me disse que o médico de Hitler estava preso em uma torre, situada fora da área de Berlim. Descreveu o local, deu-me o número do telefone e informou-me de que a guarda compunha-se de oficiais das SS, muito cordatos. Falamos sobre as possibilidades de libertação do Dr. Brandt, dada a confusão reinante em Berlim. Além disso, eu queria ver outra vez Luschen e convencê-lo de que deveria fugir dos russos.
Foram esses os motivos que me fizeram voltar a Berlim. Mas, entre esses pretextos, havia um motivo mais forte: o magnetismo de Hitler. Eu queria vê-lo pela última vez, despedir-me dele. Deveriam terminar todos aqueles anos de trabalho comum? Durante dias e meses, como se fôssemos dois estudantes, nós nos tínhamos sentado junto dos desenhos de projetos que havíamos elaborado. Durante anos, recebera-nos, à minha família e a mim, em Obersalzberg, e fora um anfitrião amável e atento. Aquele vivo desejo de voltar a vê-lo demonstrava a confusão dos meus sentimentos. Pois a razão que já devia estar morto há muito tempo. Tudo quanto eu fizera contra ele, nos últimos meses, fora ditado pelo propósito de impedir que arrastasse o povo em sua queda. Que prova é mais eloqüente das nossas divergências do que meu discurso, já gravado, cuja irradiação estava aguardando sua morte? Isso denunciava o meu desejo de ocultar-lhe que também me insurgira contra ele. Minha compaixão para o vencido era cada vez mais forte. Talvez muitos dos que o rodeavam tivessem os meus sentimentos em relação a Hitler. O senso do dever, o juramento, a fidelidade, o agradecimento, levantavam-se à frente da amargura de cada um, da catástrofe nacional, causada pela mesma pessoa.
Ainda hoje estou satisfeito por me ter sido possível ver Hitler pela última vez. Apesar de todas as nossas divergências, isso era correto da minha parte, depois de doze anos de relação com ele. Quando saí de Wilsnack eu estava movido por um impulso quase mecânico. Antes de partir, escrevi umas linhas à minha esposa, a fim de estimulá-la e assegurar-lhe que eu não pretendia morrer com Hitler. A noventa quilômetros de Berlim, a estrada estava obstruída por uma avalancha de carros, que se dirigiam a Hamburgo: modelos velhíssimos, automóveis de luxo, caminhões, motonetas, motocicletas, veículos do Corpo de Bombeiros. Para mim, era um mistério a origem de tanta gasolina. Talvez escondida, há meses.
Em Kyritz encontrava-se o estado-maior de uma divisão, obtive uma ligação telefônica para o prédio de Berlim onde estava preso o Dr. Brandt, aguardando a execução da pena de morte. Mas, por ordem expressa de Himmler, fora levado para lugar seguro, no norte da Alemanha. Também não pude localizar Lüschen. Entretanto, não alterei os planos. Falei por telefone com um dos oficiais de gabinete de Hitler, dizendo-lhe que naquela mesma tarde eu faria uma visita ao Fuhrer. Dirigi-me ao grande aeroporto de exercícios de Rechlin, em Mecklenburgo, onde eu presenciara exercícios de vôo, sendo lá bem conhecido. Eu esperava que me cedessem um aparelho. De lá alçavam vôo os caças que atacavam as tropas soviéticas, ao sul de Potsdam. O comandante cedeu-me um caça de treinamento, para conduzir-me a Gatow. Reservaram também dois Cegonhas, aviões de lento vôo, monomotores, que podiam aterrissar lentamente, e nos levariam, a mim e ao meu oficial de ligação, até o interior de Berlim, de onde depois levantariam vôo para o regresso.
Rodeados por uma esquadrilha de caças, que nos escoltavam, voamos em direção ao sul, mais ou menos a mil metros de altura, com boa visibilidade, a vários quilômetros da zona de combate. Quando aterrissamos em Gatow, a esquadrilha de caça continuou voando, rumo aos seus objetivos ao sul de Potsdam. O campo de aviação estava quase deserto. Logo, eu e meus acompanhantes subimos aos dois Cegonhas, que nos esperavam, e, em vôo raso, saboreando a aventura, seguimos a pista leste–oeste, que eu percorrera em companhia de Hitler na véspera do seu qüinquagésimo aniversário. Ante os olhares de espanto dos transeuntes, aterrissamos em plena rua, a pouca distância da Porta de Brandenburgo. Aí, mandamos parar um caminhão da Wehrmacht e nos dirigimos à chancelaria. A tarde já estava adiantada, pois necessitamos de dez horas para cobrir a distância de cento e cinqüenta quilômetros, desde Wilsnack.
Eu não me sentia muito seguro. Não haveria perigo em apresentar-me a Hitler? Não teria havido mudança de opinião da sua parte? De qualquer modo, tudo me era indiferente. Eu tinha esperança de que a aventura terminaria bem. Entretanto, eu não desistia do meu propósito, ainda que o fim fosse funesto.
A chancelaria do Reich estava já sob o fogo da artilharia pesada soviética, mas os impactos eram poucos. Os efeitos dos tiros eram insignificantes, em comparação com o montão de ruínas a que estavam reduzidos os meus edifícios, em conseqüência dos vôos dos bombardeiros norte-americanos, durante as últimas semanas. Passei por um montão de vigas retorcidas, atravessei por destroços de forros e tetos desmoronados e entrei na sala onde Bismarck reunia seus ministros, e onde agora Schaub, ajudante de Hitler, estava bebendo conhaque em companhia de vários indivíduos que eu não conhecia. Apesar do meu telefonema, ninguém me esperava, e surpreenderam-se ao me verem de volta. Schaub cumprimentou-me cordialmente, o que me tranqüilizou, pois isso demonstrava que ignoravam o meu discurso, gravado em Hamburgo. Logo saiu para anunciar a minha chegada. Pedi então ao Tenente-Coronel Von Poser que, por intermédio da central telefônica, localizasse Lüschen e o fizesse vir.
Schaub voltou dizendo-me:
– O Fuhrer deseja falar com o senhor.
Quantas vezes, durante os últimos doze anos, ouvi essa frase estereotipada! Enquanto eu descia os cinqüenta degraus que levavam ao subsolo, pensava somente em se voltaria são a salvo. Ao chegar, a primeira pessoa que vi foi Bormann, vindo ao meu encontro com uma atitude tão cortês, desusada, que me senti tranqüilizado. As maneiras de Schaub ou de Bormann eram sempre sinal do humor de Hitler. Humildemente, falou-me:
– Se falar com o Fuhrer... certamente vai perguntar-se acha que devemos ficar em Berlim ou ir para Berch. Há urgência em assumir o comando no sul da ilha... Dentro de algumas horas, já não será possível chegarmos lá. Vai aconselhá-lo a ir?
Se naquele lugar havia alguém apegado à vida, esse ali era Bormann, que três semanas antes havia exortado os funcionários do partido a dominarem toda a fraqueza e lutarem até o fim. Logo fui conduzido ao gabinete de Hitler. Não me recebeu comovido, como poucas semanas atrás, ao ouvir meus protestos de fidelidade. Não demonstrou a menor emoção. Ainda uma vez, tive a impressão de que ele estava acabado, sem vida. Tomou um ar impessoal e indiferente, sob o qual parecia estar ocultando qualquer idéia, e perguntou a minha opinião sobre o modo de Doenitz trabalhar. Compreendi que a pergunta não se originava de um interesse pessoal em Doenitz, mas que se referia à intenção de um sucessor. Ainda hoje, estou convencido de que ele liquidou a ingrata herança, que veio às suas mãos erradamente, com mais habilidade, dignidade e sagacidade que teria feito Bormann ou Himmler. Disse que minha opinião era francamente positiva e acrescentei, para exemplificar, alguns detalhes que eu sabia seriam do seu agrado. Escarmentado pela experiência, abstive-me de formar opinião em favor de Doenitz, para não suscitar o seu espírito de contradição. Hitler então perguntou:
– Que lhe parece? Devo ficar aqui ou ir para Berchtes? Jodl disse-me que amanhã terei a última oportunidade.
Espontaneamente, aconselhei que permanecesse em Berchtes. Que poderia fazer em Obersalzberg? Se Berlim caísse, a cidade estaria finda, de qualquer modo.
– Se necessário, parece-me que será melhor terminar sua vida de Fuhrer aqui na capital do que em sua casa de recreio.
Senti-me ainda uma vez comovido. Naquele momento, o conselho pareceu-me bom, mas não o era, pois a ida de Hitler para Obersalzberg teria abreviado em uma semana a batalha de Berlim.
Não se referiu a uma mudança nas coisas, não manifestou esperanças. Com certa apatia ou cansaço, como se fosse a coisa mais natural, começou a falar da sua morte:
– Eu também penso assim. Estava resolvido a ficar. Só queria saber a sua opinião.
E sem externar a menor emoção, prosseguiu:
– Não lutarei. Há o perigo de que eu seja apenas ferido e caia vivo nas mãos dos russos. Nem quero que os meus inimigos mutilem meu corpo. Dei instruções para que seja incinerado. A Srta. Braun quer morrer comigo. Mas antes tenho de matar Blondi. Acredite-me, Speer, para mim é fácil dar cabo de minha vida. Um instante e estarei livre de tudo isto, desta dolorosa existência.
Tive a impressão de já estar falando a um morto. O ambiente era cada vez mais lúgubre. A tragédia chegava ao fim.
Durante os últimos meses, houve momentos em que o combati, menti-lhe, enganei-o, odiei-o, mas naquela hora eu me sentia confuso e abalado.
Sem poder conter-me, espantado de mim mesmo, confessei-lhe em voz baixa que não efetivara nenhuma destruição, e que até as impedira. Durante alguns momentos, seus olhos encheram-se de lágrimas. Mas não reagiu. Já não o sensibilizavam aqueles assuntos, tão importantes algumas semanas antes. Dirigiu-me um olhar fixo e inexpressivo quando eu lhe disse que, se ele quisesse, eu ficaria em Berlim. Nada disse, talvez sentindo a minha falta de sinceridade. Tempos depois, perguntava a mim mesmo se ele não teria sabido, naqueles últimos meses, que eu estava trabalhando contra ele e tomando notas para as minhas memórias. E também conjeturava se, ao permitir que eu procedesse ao contrário das suas ordens, não teria dado uma prova da complexidade do seu modo de ser. Jamais saberei.
Naquele momento, anunciou-se a chegada do General Krebs, chefe do Estado-Maior do Exército, para participar da reunião diária. Não houvera mudança. O comandante-chefe Wehnnacht continuava recebendo informes de todas as frentes. Mas, até três dias antes, o gabinete da casamata mal continha os oficiais-generais e comandantes-chefes das unidades da Wehrmacht e das SS. Agora, estava quase vazio. Antes, estavam lá Goering, Doenitz, Himmler, Keitel, Jodl, Koller, chefe do Estado-Maior da Luftwaffe, além de outros muitos oficiais pertencentes a estados-maiores, fora de Berlim. Agora viam-se somente os oficiais de ligação de graduação inferior. Também as informações tinham outro teor, e da frente chegavam notícias vagas. Desdobraram um mapa, à frente de Hitler, mas este incluía somente o setor de Berlim e de Jolsdam. Nem os dados a respeito do avanço soviético coincidiam com a realidade. Surpreendeu-me contudo ver que Hitler tratava de mostrar-se otimista, não obstante ter-me contado, meia hora antes, da sua morte e do que resolvera a respeito dos seus restos mortais. Em todo caso, não possuía mais aqueles dotes de persuasão, tanto assim que Krebs ouvia-o sem paciência e cortesia. Antigamente, diante de uma situação desesperada, assegurava que no final tudo se arranjaria; agora, mal disfarçava a duplicidade das suas palavras. Desde quando estava enganando? Desde quando sabia que a guerra estava perdida? Desde o inverno da ofensiva sobre Moscou? Stalingrado? Desde a invasão? Desde a malograda ofensiva de Ardenas, em dezembro de 1944? Até onde ia a dissimulação? Onde começava? No entanto, aquilo que estava presenciando talvez não fosse mais do que uma das bruscas mudanças de humor, mostrando-se sincero para o General Krebs, tão sincero como fora para comigo. A reunião, que habitualmente durava horas, não custou s findar, mostrando-se então o estado agônico daquilo que tinha sido um quartel-general. Fomos despedidos, laconicamente, e saímos daquele ambiente em que se desenrolara um ato turvo da situação, repleto de erros, faltas e crimes. Quanto a mim, que viera até Berlim com o único propósito de ouvi-lo, Hitler tratou-me como a um visitante habitual, sem perguntar se eu pretendia ficar ou se queria despedir-me. Separamo-nos sem um aperto de mão, na forma costumeira, como se tivéssemos de nos encontrar no dia seguinte. Fora da casamata, encontrei Goebbels, que me disse:
– Ontem, o Fuhrer tomou uma resolução capital. Uma decisão de importância histórica. Ordenou a suspensão da luta no oeste para os ocidentais poderem entrar em Berlim sem dificuldade.
Essa era outra das ficções que estimulavam os ânimos e logo se desfaziam, fantasmas de novas esperanças que duravam apenas algumas horas. Goebbels disse-me ainda que sua mulher e seus seis filhos eram agora hóspedes de Hitler, na casamata, para, acrescentava, morrerem naquele histórico lugar. Diferente de Hitler, Goebbels dominava perfeitamente suas emoções; vendo-o, ninguém diria que ele já se despedira da vida.
Eram já seis horas. Um médico das SS informou-me de que a Sra. Goebbels estava de cama, queixando-se de muita fraqueza e de dores no coração. Mandei perguntar-lhe se queria receber-me. Eu gostaria de falar-lhe sozinho, mas Goebbels esperava-me em uma sala vizinha ao pequeno quarto onde ela estava deitada em uma cama muito simples, pálida e falando baixo. Referiu-se apenas a coisas insignificantes. Sentia-se, no entanto, o seu pavor ante a idéia da morte dos filhos. Goebbels não saía do meu lado, e por isso a conversa apenas tratou do estado da senhora. Até o fim não revelou o que a preocupava.
– Estou satisfeita porque pelo menos Harald (filho do seu primeiro matrimônio) continuará a viver . . .
Eu me sentia constrangido, sem saber o que dizer. Mas... que se pode dizer em situações assim? Despedimo-nos em silêncio e confusos. O marido não nos concedeu sequer alguns minutos para a despedida.
Fora, havia movimento. Chegara um telegrama de Goering, que Bormann apressado levava a Hitler. Eu o acompanhava, movido por simples curiosidade. Goering apenas perguntava se, de acordo com o Decreto de Sucessão, ele devia tomar conta do governo geral do Reich, no caso de Hitler ficar na fortaleza de Berlim. Mas Bormann atribuiu a Goering um preconcebido golpe de Estado; talvez tenha sido o seu último argumento para sugerir a Hitler a mudança, pondo as coisas em ordem quando estivesse em Berchtesgaden. Hitler recebeu aquele despacho de Goering com a mesma indiferença demonstrada durante todo o dia.
Bormann entretanto voltou a insistir em suas insinuações, quando chegou um outro telegrama de Goering endereçado a Ribbentrop, no qual se lia: "No caso de ficar provado, até agora, que o Fuhrer perdeu a liberdade de agir, no governo do Reich, entrará em vigor seu decreto de 29 de junho de 1941, pelo qual eu assumirei suas funções na qualidade de substituto. Se, até às 22 horas de 23 de abril de 1945, não receber do Fuhrer, diretamente, ou de mim, alguma indicação em contrário, peço-lhe que tome um avião, sem demora, e venha até aqui". Esse segundo telegrama deu base à argumentação de Bormann:
– Goering cometeu uma traição! Está enviando telegramas aos membros do governo e já disse ao senhor, meu Fuhrer, que, em face das suas prerrogativas, hoje à noite assumirá as funções de chefe do governo.
Bormann alcançou o seu objetivo. Hitler fora indiferente ao primeiro telegrama, mas agora reagiu. Mediante uma mensagem a ser transmitida pelo rádio, redigida pelo próprio Bormann, retiraram-se a Goering os direitos à sucessão, acusando-o o Fuhrer de traição à sua pessoa e ao nacional-socialismo. Hitler ordenou que se comunicasse a Goering que deixaria de usar de outras medidas, se ele, Goering, abandonasse todos os seus cargos, alegando motivos de saúde. Bormann conseguira tirar Hitler da sua letargia. O Fuhrer entregou-se a um acesso de fúria desatada, em que se mesclavam sentimentos de amargura, impotência, compaixão de si mesmo e desespero. O rosto vermelho, os olhos fixos, Hitler parecia esquecido de nossa presença, gritando:
– Eu já sabia, havia muito... Sei que Goering é um idiota. Nós lhe devemos a desmoralização da Luftwaffe. Corrupto, instaurou a corrupção em nosso Estado. Além disso, há anos é viciado em morfina. Eu sabia, eu sabia...
Hitler estivera ao corrente do que fazia Goering e não agira. E, de repente, voltou à apatia:
– Por mim... Goering pode encarregar-se das negociações para a capitulação. Se a guerra estiver perdida, que importa seja um ou outro quem trate disso?
Hitler chegou então ao limite das suas forças, voltando àquele estado de cansaço que persistira durante todo o dia. Durante anos exigira muito dele mesmo; durante anos, teve de empregar sua imensa vontade para combater em si e nos demais a crescente certeza de que era inevitável esse fim. Agora não dispunha de energia para dissimular o seu estado. Dava-se por vencido.
Cerca de meia hora depois, Bormann trazia o telegrama de resposta de Goering, que alegava grave doença cardíaca para exonerar-se de todos os seus cargos. Freqüentes vezes Hitler recorrera ao pretexto de uma enfermidade para livrar-se de um colaborador incômodo, sem demiti-lo, a fim de preservar a fé do povo alemão na unidade do seu governo. Ainda nas últimas horas, continuava com a mesma tática.
Agora, já no fim de tudo, Bormann conseguira seu objetivo. Goering fora eliminado. Além de convencido da incapacidade de Goering, Bormann agira por dispor de prestígio. Eu senti compaixão de Goering, lembrando-me de uma conversa com ele, na qual o marechal do Reich me afirmara sua lealdade ao Fuhrer.
Houve ainda um incidente que me causou espanto. Hitler acolheu favoravelmente um pedido meu, no sentido de serem alguns diretores da Skoda transportados em avião até o quartel-general das forças norte-americanas. Esses industriais tchecos receavam cair nas mãos dos russos e esperavam ser bem acolhidos pelos norte-americanos. Alguns dias antes, Hitler não teria consentido, mas agora não se negou a assinar a ordem para o transporte daqueles diretores da Skoda.
Enquanto eu falava com Hitler sobre o meu pedido, Bormann lembrou que Ribbentrop estava aguardando ser recebido pelo Fuhrer. Hitler reagiu muito nervoso:
– Já lhe disse, muitas vezes, que não desejo falar com ele.
Por qualquer motivo, Hitler não desejava falar com o ministro das Relações Exteriores, mas Bormann insistiu:
– Ribbentrop diz que não sairá da porta. Esperará aí como um cachorro fiel, até o senhor o chamar.
Essa comparação abrandou Hitler, que mandou entrar Ribbentrop. O Fuhrer falou-lhe da viagem dos industriais tchecos. E, naquela situação desesperada, o ministro das Relações Exteriores lutava por manter suas prerrogativas. Observou-me:
– Isto é assunto do meu departamento. – Mas acrescentou com suavidade: – Não terei nada a reparar se o senhor acrescentar: "Por proposta do ministro das Relações Exteriores",
Apresentei a ordem com esse acréscimo a Hitler, que a subscreveu. Segundo eu soube depois, foi aquele o último ato oficial assinado pelo Fuhrer.
Enquanto isso, chegara à chancelaria meu paternal conselheiro nos últimos anos, Luschen. Foram inúteis minhas insistências para que ele saísse de Berlim. Depois, quando eu estava em Nuremberg, fui informado do seu suicídio.
Cerca de meia-noite, Eva Braun mandou-me um recado solicitando-me que fosse vê-la. Seu cômodo na casamata servia-lhe de dormitório e de sala de estar ao mesmo tempo, mostrando-se no entanto bem arranjado. Mandara trazer os suntuosos móveis que eu lhe desenhara anos antes, os quais, aliás, não se ajustavam ao ambiente. Conversamos tranqüilamente, pois Hitler fora dormir. Na verdade, entre todos os personagens ali presentes, destinados à morte, era ela única pessoa que mostrava calma e serenidade assombrosas. Goebbels exibia um heroísmo exaltado, Bormann estava resolvido a escapar, Hitler mantinha-se apático, a Sra. Goebbels estava deprimida. Somente Eva Braun aparentava uma tranqüilidade quase alegre.
– Que lhe parece se, como despedida, abríssemos uma garrafa de champanha? Podíamos servir-nos de pastéis. O senhor deve estar sem comer há muitas horas.
Isso me pareceu uma comovedora atenção. Depois de estar tantas horas na casamata, ninguém tinha pensado em comer, até aquela hora. O ordenança trouxe-lhe uma garrafa de Moet et Chandon, pastéis e bombons. Ficamos sós.
– Sabe? Foi bom o senhor ter vindo. O Fuhrer supunha o senhor estivesse contra ele. Mas sua visita demonstra o contrário. Não é?
Eu nada disse.
– Além disso – continuou –, ele gostou do que o senhor lhe disse. Resolveu ficar aqui e eu ficarei com ele. O senhor já sabe... Ele queria que eu voltasse para Munique, mas eu não concordei. Vim aqui, para terminar.
Ela era a única pessoa, ali, dotada de sentimentos humanos.
– Por que irão morrer tantos homens? Se já é inútil... certo, quase que o senhor não nos encontra. Ontem a situação era tão angustiosa, que pensamos que os russos ocupariam Berlim imediatamente. O Fuhrer queria sair, mas Goebbels ficou com ele e aqui ainda estamos.
Falava com naturalidade, embora de vez em quando mal de Bormann. Logo voltava a dizer que não se arrependia de estar na casamata.
Eram já quase três horas. Hitler levantara-se e mandei dizer-lhe que eu queria despedir-me. Aquele dia fora de provas para mim e eu temia não poder dominar meus sentimentos, no momento da despedida. Ainda uma vez, eu via o ancião trêmulo, o homem a quem consagrara minha vida, durante doze anos. Mas, se eu estava emocionado, ele, pelo contrário, não demonstrava a menor alteração. Suas palavras foram frias como a mão que me estendeu.
– Então, já vai? Está bem. Adeus.
Nem recomendações à família, nem bons augúrios, nem agradecimentos, nada.
Por um instante, não me contive e disse-lhe que pensava em voltar. Ele compreendeu que se tratava de desculpa e voltou-se para o outro lado. Já me havia despedido.
Dez minutos depois, ante o silêncio de todos, eu saía daquele abrigo subterrâneo. Quis ver pela última vez o contíguo palácio da chancelaria, construído por mim. Era a minha última visita à chancelaria do Reich, que eu projetara e construíra, animado de planos para o futuro. Agora, eu deixava aquele montão de ruínas, ruínas não somente da minha obra, mas também dos melhores anos da minha existência.
– Então, como se foi? – perguntou-me Poser.
– Graças a Deus, não vou fazer o papel de Príncipe Max Von Baden (7) – respondi aliviado.
Interpretei com exatidão a frieza de Hitler, ao despedir-se de mim. Seis dias depois não me mencionava em seu testamento político; em meu lugar, referia-se a Saur, que havia tempos era o seu favorito.
Consegui chegar às cinco ao campo de Rechlin. Dei a um piloto de caça, para entregá-la a Karl Hermann Frank, governador de Praga, a ordem assinada pelo Fuhrer em favor dos diretores da Skoda. Como eu desejava evitar os caças que voavam sobre as estradas da zona de combate inglesa, tive que demorar no campo. Aí, informaram-me de que Himmler se encontrava na clínica onde eu estivera um ano antes, em circunstâncias estranhas. A distância para lá era de cerca de quarenta quilômetros. Fui lá no Cegonha. Ao ver-me, Himmler ficou espantado. Recebeu-me no mesmo quarto onde eu estivera, e, para acentuar ainda mais a singularidade da
(7) Chanceler imperial da Alemanha, ao fim da Primeira Guerra Mundial. Nessa condição, anunciou a abdicação do Kaiser, negociou o armistício e transferiu o governo da Alemanha para os socialistas, atos pelos quais foi muito criticado. (N. do E.)
situação, encontrava-se lá o Professor Gebhardt. Como era seu hábito, exibiu um companheirismo profissional, sem nenhuma familiaridade. Interessou-se por minha viagem a Berlim, e quando lhe falei, sob reserva, da renúncia de Goering a todos os seus cargos, não deu importância.
– Goering será o sucessor. Há muito combinamos que eu serei seu primeiro-ministro. Mesmo sem Hitler, eu podia fazê-lo chefe do Estado... O senhor já o conhece –- acrescentou com um sorriso significativo e sem o menor escrúpulo. – Já entrei em contato com várias pessoas, que eu pensei incluir em meu gabinete. Depois, Keitel virá visitar-me... Talvez Himmler supusesse que eu ia pedir-lhe emprego. Ele estava andando em um mundo fantástico.
– No futuro, a Europa não poderá dispensar meus serviços – assegurou. – Terão necessidade de mim como chefe de polícia para manter a ordem. Uma hora com Eisenhower, e ele de será da mesma opinião! Logo estarão convencidos de que não podem passar sem mim, se não quiserem que sobrevenha a anarquia.
Falou-me das suas conversas com o Conde Bernadotte, para a cessão dos campos de concentração à Cruz Vermelha Internacional. Então compreendi por que havia antes em Sachsenwald muitos carros da Cruz Vermelha. Já tinham dito no final, todos os presos políticos seriam eliminados. Agora, Himmler tratava por sua própria conta de arranjar-se com os vencedores. Hitler já não se preocupava com isso, depreendi em nossa última conversa. Finalmente, Himmler aludiu à longínqua possibilidade de eu ser ministro com ele. De minha parte, sem ironia, coloquei o meu aparelho à disposição dele para uma visita de lida a Hitler. Himmler recusou. Não dispunha de tempo essas coisas. Ficou imperturbável.
– Tenho de preparar meu novo governo. Além disso, minha pessoa é sobremaneira importante para que eu esteja correndo o risco de uma viagem por avião.
A chegada de Keitel interrompeu o nosso diálogo. Na sala vizinha, pude ouvir o marechal, que em voz firme testemunhava sua incondicional adesão a Himmler, tal como procedera com Hitler.
À noite, eu estava de volta a Hamburgo. O chefe regional propôs-me irradiar, imediatamente, o meu discurso. Mas pensando no drama que estaria ocorrendo na casamata de Hitler, em Berlim, não quis proceder ilegalmente. Ainda uma vez, o Fuhrer transtornara o meu espírito. Tentei explicar-me e explicar aos demais a minha mudança de propósito, acrescentando que seria um erro e uma leviandade intervir no desenlace da tragédia.
Despedi-me de Kaufmann e dirigi-me a Schleswig-Holstein, instalando-me em carros ferroviários, às margens do lago Eutin. De vez em quando visitava Doenitz e outros conhecidos do Estado-Maior, que, tão inativos quanto eu, aguardavam o desfecho dos acontecimentos. Vi, assim, quando, no dia 1.° de maio de 1945, foi entregue a Doenitz um radiograma em que se lhe comunicava a limitação das suas atribuições, quando assumisse o novo governo sucessor de Hitler. O Fuhrer designava os membros do novo governo: Goebbels seria chanceler; Seyss-Inquart, ministro das Relações Exteriores; Bormann, ministro do partido. Ao mesmo tempo, Bormann anunciava a sua próxima vinda.
Consternado pela diminuição das suas prerrogativas, dizia Doenitz:
– Isto é impossível! Alguém mais viu este radiograma?
Seu ajudante-de-ordens, Lüdde-Neurath, afirmou que o rádio passara, diretamente, das mãos do operador para as do almirante. Doenitz então ordenou que fizessem o radiotelegrafista prometer que observaria silêncio a respeito e que o despacho, guardado a chave, não fosse mostrado a ninguém.
– Que poderíamos fazer, se Goebbels e Bormann aparecessem aqui? – perguntou o almirante; e respondeu ele mesmo: – Eu não concordaria em trabalhar com eles, de modo nenhum.
Naquela noite, por um acordo comum, resolvemos que Bormann e Goebbels seriam postos de quarentena, de qualquer modo.
Hitler obrigou Doenitz a iniciar o mandato com um ato ilegal. Ocultar-se um documento oficial foi o término de uma série de mentiras, traições, hipocrisias e intrigas, durante aquelas semanas. Himmler, com as suas manobras, traíra o seu Fuhrer; Bormann, enganando Hitler, triunfara em sua última grande intriga, urdida contra Goering; por sua vez, Goering cuidava de chegar a um entendimento com os Aliados; Kaufmann, que tinha entabulado negociações com os ingleses, punha a emissora de Hamburgo à minha disposição; Keitel, com Hitler ainda vivo, buscava agradar a um novo amo; e eu mesmo, durante os últimos meses, enganara meu protetor e até pretendera eliminá-lo. Todos procedêramos assim forçados pelo sistema que nós mesmos tínhamos criado, também obrigados por Hitler, que, por sua parte, nos traíra, como fora o traidor de si mesmo e do seu povo. Assim terminou o Terceiro Reich.
Na noite daquele 1.° de maio, em que se divulgou a notícia da morte de Hitler, eu dormi em uma pequena dependência do quartel-general de Doenitz. Quando abri minha maleta, achei o estojo de couro vermelho dentro do qual estava o retrato Hitler. Minha secretária guardara-o ali. Meus nervos estavam arrebentados. Coloquei o retrato sobre a mesa e prorrompi em prantos. Foi esse o fim das minhas relações com Hitler. Rompera-se o feitiço, desvanecera-se a magia. Do outro lado estavam as imagens dos campos cobertos de cadáveres das cidades arrasadas, dos milhões de criaturas aflitas, dos campos de concentração. Naquele momento, essas imagens não desfilaram em minha mente, mas deveriam estar próximas da minha consciência. Deitei-me e caí em profundo sono.
Duas semanas depois, sob a impressão produzida pela revelação dos crimes cometidos nos campos de concentração, escrevi a Von Schwerin-Krosigk, presidente do gabinete ministerial: "Ao organismo que até agora foi o governo do povo não cabe a culpa geral do destino que aguarda este povo. Cada um dos que participaram daquele governo deve arcar com essa culpa, de forma que ela, que poderia estender-se todos os alemães, seja circunscrita a cada um desses indivíduos".
Assim começou um período de minha existência que ainda não terminou.
FASES DO CATIVEIRO
Karl Doenitz, o novo chefe do Estado, estava, assim como eu e muitas outras pessoas, imbuído das idéias do regime nacional-socialista. Nós tínhamos servido a esse regime, durante doze anos, e agora nos parecia oportunismo grosseiro dar uma brusca virada. No entanto, pela morte de Hitler desvanecera-se aquele engano que, durante tanto tempo, nos impedira de pensar claramente. Logo no começo, a pauta foi riscada pelo senso prático do militar. Doenitz sustentou a opinião segundo a qual devíamos terminar a guerra com a maior rapidez possível, e, uma vez cumprida essa tarefa, nossa missão estaria finda.
No mesmo dia 1.° de maio de 1945, houve um encontro do chefe supremo da Wehrmacht, Almirante Doenitz, com o Marechal Ernst Busch. O marechal queria atacar as forças britânicas, em marcha sobre Hamburgo, e Doenitz julgava inoperante toda medida ofensiva. Importava, sim, manter aberto, durante o maior tempo possível, o caminho do oeste, a fim de dar passagem aos refugiados do leste, que afluíam para a região de Lübeck. As tropas alemãs, no setor ocidental, só ofereceriam resistência para dar tempo àquele movimento migratório. Irritado, Busch reprovou ao Almirante Doenitz esse procedimento, que segundo ele se afastaria das normas de Hitler. Mas Doenitz não cedeu.
Na véspera, 30 de abril, houve uma acalorada discussão entre o almirante e Himmler, que teve de renunciar à pretensão de ocupar um cargo importante no novo governo. E, no dia seguinte, apresentou-se no quartel-general de Doenitz sem se fazer anunciar. Era meio-dia e Doenitz convidou-o a sentar-se à mesa para almoçar, embora o convite não fosse-motivado por simpatia. Apesar da prevenção contra Himmler, pareceu a Doenitz que seria descortesia tratar agora com descaso o homem que, outrora, fora tão poderoso. Himmler veio com a notícia de que o chefe regional Kaufmann pretendia entregar Hamburgo aos ingleses, sem luta, e que já estavam sendo impressos boletins dirigidos à população, a fim de prepará-la para a entrada dos britânicos. Doenitz enfureceu-se; se todos começavam a agir por conta própria, sua missão não se justificava. Eu me ofereci para ir falar com Kaufmann.
Também Kaufmann, em sua chefatura regional, bem guardada por estudantes, estava tão furioso quanto Doenitz. O comandante da cidade tinha ordem de lutar na defesa da cidade e os ingleses tinham mandado um ultimato, segundo o qual, se Hamburgo não se rendesse, as forças aéreas deles fariam um bombardeio mais intenso do que os anteriores. – Por acaso vou agir como o chefe regional de Brehmen? Este, depois de conclamar a população à resistência, para a luta até o final, pôs-se a salvo, enquanto a cidade era submetida a um espantoso bombardeio.
Estava decidido a impedir por todos os meios a defesa de Hamburgo. Caso fosse necessário, mobilizaria as massas, a fim de que se opusessem à defesa da cidade. Por telefone, informou Doenitz de que em Hamburgo havia perigo de sublevação; o almirante pediu tempo para refletir. Depois de uma hora, dava ao comandante da cidade ordem para entregar Hamburgo sem luta.
Já no dia 21 de abril, quando gravei o meu discurso, Kaufmann propusera-me que nos entregássemos juntos ao inimigo. Agora, reiterou a proposta. Recusei, como também desisti do plano que, anteriormente, me apresentara nosso mais hábil piloto de guerra, Werner Baumbach. Um hidroavião quadrimotor de grande raio de ação – que, durante a guerra, partindo do norte da Noruega, fizera o abastecimento de uma estação meteorológica na Groenlândia – podia ler-nos, Baumbach, eu e vários amigos, a uma das tranqüilas da Groenlândia. Lá, poderíamos permanecer ocultos muitos meses, durante os primeiros tempos da ocupação da ilha. Encaixotaram-se livros, remédios, papel para escrever (eu tinha a intenção de começar a redigir minhas memórias), fuzis, munições, meu bote desmontável, esquis, barracas, granadas de mão para a pesca e provisões de boca. Desde que vi a película da Udet-Film SOS Iceberg, a Groenlândia passara a ser um dos lugares preferidos para férias. Mas, visto que Doenitz estava no governo, renunciei àquele projeto, em cuja motivação havia pânico e romantismo.
Quando eu regressava a Eutin, vi à margem da estrada caminhões incendiados. Sobre nós, voavam caças ingleses. Em Schleswig, o trânsito era muito denso, com a estrada cheia de veículos militares, caminhões particulares, soldados e civis a pé. Os que me reconheciam não me insultavam, mas tratavam-me com um ar de reserva e de tristeza.
No dia 2 de maio, quando cheguei ao posto de Ploen, Doenitz, ante o avanço das tropas inglesas, tinha ido para Flensburg. Ali encontrei Keitel e Jodl, saudando o novo amo. Doenitz instalara o quartel-general no navio de passageiros Pátria. Enquanto almoçávamos no camarote do comandante, apresentei-lhe um decreto proibindo a destruição das pontes, que ele assinou logo. Embora muito tarde, eu obtinha plenamente o que solicitara a Hitler, em 19 de março.
Doenitz também concordou em que eu pronunciasse um discurso, dirigido ao povo alemão, conclamando-o aos trabalhos de reconstrução nos territórios ocupados. Doenitz apenas sugeriu que eu submetesse o texto do discurso ao novo ministro das Relações Exteriores, Schwerin-Krosigk, que estava na Escola Naval de Mürwik, perto de Flensburg. Schwerin-Krosigk concordou com o meu texto, acrescentando apenas algumas frases a respeito da política do governo. A irradiação foi captada pelas estações de Copenhague e Oslo.
Quando saí do estúdio da emissora, Himmler estava à minha espera. Lembrou-me de que dispúnhamos ainda de valiosos territórios, na Noruega e Dinamarca, os quais poderiam servir para com eles negociarmos a nossa segurança pessoal. Pelo meu discurso, deduzia-se que íamos entregar aqueles territórios, gratuitamente e sem luta, o que era um disparate. Logo, Himmler surpreendeu Keitel com a proposta de nomeação de um censor para todas as declarações públicas do governo, cargo que ele desempenharia com muito gosto. Mas, naquele mesmo dia, Doenitz já indeferira uma petição nesse sentido, feita pelo governador da Noruega, e no dia 6 de maio assinou uma ordem de proibição de destruições nos territórios ainda ocupados por tropas alemãs, como algumas regiões da Holanda, Tchecoslováquia, Dinamarca e Noruega. Assim, ficava afastada a "política do penhor", como a denominava Himmler.
O grande almirante negou-se também, terminantemente, a sair de Flensburg, na iminência de ser ocupada pelos ingleses, e mudar-se para a Dinamarca ou Praga, onde iria exercer os atos governamentais. Himmler era um fervoroso partidário de Praga, dizendo que a antiga cidade imperial era mais apropriada para uma sede do que a insignificante Flensburg. Esquecia-se no entanto de dizer que em Praga estaríamos distantes da Marinha e à mercê das SS. Doenitz cortou definitivamente a discussão, afirmando que continuaríamos nossas atividades governamentais dentro das fronteiras alemãs. – Se os ingleses quiserem vir buscar-nos, que venham. Baumbach foi nomeado comandante da frota aérea do governo. Himmler pediu-lhe um avião para nele voar até Praga. Baumbach e eu, então, combinamos mandá-lo para um campo de aviação inimigo. Mas o serviço de informações de Himmler continuava funcionando. E Baumbach observou:
– Quando ele viaja em seus aviões, não se sabe qual é o destino.
Alguns dias depois, quando estabelecemos contato com o Marechal Montgomery, Himmler entregou a Jodl uma carta, pedindo-lhe que a fizesse chegar às mãos de Montgomery. Segundo me informou o General Kinzl, oficial de ligação com as forças britânicas, Himmler, naquela carta, pedia uma entrevista com o marechal, se lhe fosse assegurado um salvo-conduto. Para o caso de prisão, esclarecia, tinha direito a ser tratado com as considerações estipuladas nos acordos internacionais para as altas patentes militares, uma vez que já fora comandante-chefe do grupo de Exércitos do Vístula. Mas a carta não chegou ao seu destino, pois Jodl rasgou-a, segundo disse em Nuremberg. Como sempre ocorre nas situações durante aqueles dias manifestaram-se os caracteres vários figurões. O chefe regional da Prússia Oriental, Koch, que durante algum tempo fora também comissário do Reich na Ucrânia, veio a Flensburg pedir um submarino que o levasse à América do Sul. O chefe regional Lohse exprimiu o mesmo desejo. Doenitz negou-se a atendê-los. Rosenberg, mais antigo chefe nacional do NSDAP, queria dissolver o partido, pois era a única personagem que podia fazer isso. Vários dias depois foi encontrado em Mürwick, quase exânime. Falou de uma intoxicação, suspeitaram de tentativa de suicídio, mas na realidade ele estava somente embriagado. Houve porém atitudes meritórias. Karl Hermann Frank, governador de Hitler em Praga, veio a Flensburg para saber se os valores da economia do protetorado deviam ser entregues intactos. Confirmou-se-lhe a necessidade de proceder à devolução, e voltou para Praga, em vez de escapulir entre a massa dos refugiados de Holstein. Seyss-Inquart, comissário do Reich para a Holanda, em uma noite, guiando uma lancha, furou o bloqueio inimigo, a fim de conferenciar com Doenitz e comigo. Recusou permanecer em nossa companhia e voltou para a Holanda, dizendo, melancolicamente:
– Meu lugar é lá. Logo que desembarcar, serei preso.
Cessaram as hostilidades no norte da Alemanha no dia 7 de maio de 1945. Houve então a capitulação geral em todas as frentes, solenemente ratificada, no dia seguinte, com a assinatura de Keitel e dos representantes das três armas da Wehrmacht, no quartel-general das forças soviéticas de Karlshorst, perto de Berlim. A propaganda de Goebbels propalara que os generais russos eram bárbaros, mas estes serviriam à delegação alemã uma excelente refeição com champanha e caviar, conforme me relatou Keitel. Evidentemente, não ocorreu a Keitel pensar que, depois daquele ato significativo do fim do Reich, e que condenava ao cativeiro milhões de soldados, teria sido melhor não provar o champanha dos vencedores e conformar-se apenas com o indispensável a matar a fome. Sua satisfação por aquela atitude dos vencedores denotava uma espantosa falta de dignidade e de ética.
Por outro lado, os ingleses tinham cercado Flensburg, em cujo centro ainda estava instalado o nosso governo. No navio Pátria funcionava a Comissão de Controle para o Alto-Comando da Wehrmacht, sob as ordens do General-de-Brigada Rooks, que logo passou a desempenhar as funções de oficial de ligação com o governo Doenitz. Na minha opinião, pela capitulação cumprira-se a tarefa do governo Doenitz, a saber, a conclusão da guerra perdida. E propus, em 7 de maio, difundir uma proclamação. Mas o subsecretário Stuckardt, então diretor-geral do Ministério do Interior, redigira um memorial opinando que Doenitz, na qualidade de chefe do Estado e legítimo sucessor de Hitler, não podia, voluntariamente, renunciar ao seu cargo, para evitar que se perdesse a continuidade do Reich alemão e perigassem as reivindicações dos futuros governos alemães. Doenitz, que estivera inclinado a concordar com meu ponto de vista, aceitou como válida a opinião de Stuckardt, assegurando portanto a permanência do seu governo por mais outros quinze dias.
Começaram a aparecer repórteres ingleses e norte-americanos, e cada uma das suas notícias dava margem às mais esfarrapadas esperanças. Ao mesmo tempo, sumiram os uniformes das SS. Wegener, Stuckardt e Ohlendorf converteram-se em civis da noite para o dia. E o Professor Gebhardt, íntimo de Himmler, transformou-se nada mais nada menos do que em general da Cruz Vermelha. Em todo caso, por sua inatividade, foi sendo possível a organização do governo. Doenitz nomeou um chefe do Gabinete Militar (o Almirante Wagner), um chefe do Gabinete Civil (o chefe regional Wegener). Após muita discussão, ficou resolvido dar-se ao chefe do Estado o tratamento de "grande almirante". Organizou-se também um Serviço de Informações, utilizando-se para esse serviço um velho aparelho de rádio, com o qual se obtinham as últimas notícias. Até um dos grandes Mercedes de Hitler foi parar em Flensburg, servindo agora para levar à sua residência, à distância de quinhentos metros, o chefe do governo. Apareceu um empregado do antigo fotógrafo de Hitler, Heinrich Hoffmann, para tirar fotografias das reuniões do ministério, o que me fez observar ao ajudante-de-ordens de Doenitz que a tragédia estava se transformando em uma farsa cômica. Até a capitulação, Doenitz procedera corretamente, esforçando-se em pôr fim à guerra o quanto antes. Mas agora, a situação estava-se emaranhando. Dois ministros, Backe e Dorpmüller, desapareceram sem deixar vestígios. Corriam boatos de que tinham sido levados ao quartel de Eisenhower para se encarregarem das medidas a serem tomadas para a reconstrução da Alemanha. O Marechal Keitel, ainda chefe do Estado-Maior da Wehrmacht, foi feito prisioneiro. Nosso governo não somente estava impotente, mas também não prestava para coisa nenhuma.
Redigíamos memoriais, que se perdiam no vácuo, e tratávamos de disfarçar nossa insignificância sob uma aparente atividade. Todos os dias, às dez da manhã, reunia-se o Conselho de Ministros na chamada sala de sessões do gabinete. Era a sala de aula de uma velha escola. Em uma daquelas reuniões, o ministro dos Abastecimentos compareceu levando algumas garrafas de aguardente de trigo, procedentes de um armazém. Fomos buscar copos em nossos quartos e passamos a tratar das alterações a se fazerem no gabinete para adaptá-lo à situação. Houve uma viva discussão a propósito de um ministro para Assuntos Eclesiásticos, que devia entrar no gabinete. Propuseram para o cargo um afamado teólogo, enquanto outros sustentavam que Niemoeller era o candidato ideal. O gabinete, diziam, tinha de apresentar uma forma mais apresentável. Não produziu efeito minha sarcástica sugestão no sentido de se procurarem vários social-democratas e centristas de relevo. As intervenções do ministro dos Abastecimentos contribuíam para animar os debates. Eu tinha a impressão de que estávamos no caminho certo para o ridículo, se é que já não tínhamos chegado lá. No dia 15 de maio, escrevi uma carta a Schwerin-Krosigk, dizendo-lhe que o governo do Reich devia ser formado de pessoas que pudessem gozar da confiança dos Aliados. O gabinete devia modificar-se, sendo substituídos os mais íntimos colaboradores de Hitler. Acrescentava ser tão disparatado entregar a um artista a amortização de uma dívida como foi, no passado, "confiar o Ministério das Relações Exteriores a um negociante de champanha". Pedi que fosse dispensado das funções de ministro da Economia e Produção do Reich. Não obtive resposta.
Depois da capitulação, de vez em quando apareciam oficiais subalternos norte-americanos e ingleses, que, tranqüilamente, passeavam pelas dependências de nossa "sede do governo". Nos meados de maio, apareceu em minha residência um tenente norte-americano e perguntou-me:
– Sabe onde está Speer?
Quando me identifiquei, declarou que o quartel-general norte-americano estava recolhendo dados sobre os efeitos dos bombardeios dos Aliados. Declarei-me então disposto a facilitar informações.
Poucos dias antes, o Duque Von Holstein oferecera-me o Castelo de Glücksburg, situado a vários quilômetros de Flensburg, para servir de quartel-general. Naquele mesmo dia, reuni-me com diversos civis, mais ou menos da minha idade, do United States Strategical Bombing Survey, do estado-maior de Eisenhower. Discutimos os erros e características dos bombardeios de um e de outro lado. Na manhã seguinte, meu ajudante veio dizer-me que na porta do castelo estavam muitos oficiais norte-americanos, inclusive um importante general. Nossa guarda, formada de elementos do grupo blindado alemão, apresentou armas. Assim, de certo modo sob a proteção de fuzis alemães, o General F. L. Anderson, comandante-chefe das unidades de bombardeio da Frota Aérea norte-americana, entrou em minha sala. Muito cortesmente, agradeceu minha disposição de fornecer informações a respeito da ação da aviação de guerra. No dia 19 de maio, visitou-nos o presidente do Economic Warfare de Washington, Franklin d’Olier, acompanhado do seu vice-presidente, Alexander, e dos seus colaboradores, Dr. Galbraith, Paul Nitze, George Bali, o Coronel Gilkrest e Williams. Pelo exercício do meu cargo, eu sabia da grande importância que aquele serviço tinha na América do Norte para o processo bélico.
Naquela "Faculdade da Guerra de Bombardeio", durante dias sucessivos, houve um ambiente de quase camaradagem, que terminou bruscamente quando a imprensa mundial noticiou alarmada o almoço com champanha servido por Goering ao General Patton. Mas, antes, o General Anderson já me tinha dirigido o mais extraordinário e envaidecedor elogio que eu recebi em toda a minha vida:
– Se eu tivesse tido notícia dos seus êxitos, teria dado ordem a toda a Frota Aérea norte-americana para procurar e sepultar o senhor.
Aquela frota aérea dispunha de mais de dois mil bombardeiros pesados. Menos mal que ele tenha tido notícias de mim bastante tarde.
Minha família ocupava um alojamento de emergência, situado a cerca de quarenta quilômetros de Glücksburg. O único risco que eu corria era demorar por alguns dias a minha prisão. Atravessei o cerco de Flensburg e graças à despreocupação dos ingleses passei sem novidade pela zona ocupada. Assim pude chegar ao local onde se abrigava minha família. Mas confiei muito na despreocupação dos ingleses. No dia 21 de maio, fui levado em meu carro a Flensburg e encerrado em uma sala pelo Serviço Secreto. Lá, permaneci vigiado por um soldado, armado de um fuzil-metralhadora. Depois de algumas horas, fui solto, mas o meu carro desaparecera. Os ingleses levaram-me a Glücksburg em um dos seus veículos.
Dois dias depois, logo de manhã, meu ajudante precipitou-se em meu aposento. Os ingleses tinham cercado Glüksburg. Apareceu-me então um sargento, dizendo que eu estava preso. Tirou o meu cinto com a pistola, que deixou em cima da mesa como por distração. Saiu, a fim de dar-me tempo de preparar minha mala. Pouco depois, eu voltava a Flensburg em um caminhão. Vi que em redor do Castelo de Glücksburg estavam algumas peças de artilharia leve. Talvez estivessem se prevenindo contra uma guerra desencadeada por mim... Naquela mesma hora, arriavam na Escola Naval a bandeira de guerra do Reich, içada todos os dias. Se algo podia significar que, apesar de todos os esforços do governo Doenitz, não havia um novo rumo, esse algo seria a conservação da velha bandeira. Doenitz e eu tínhamos concordado em que a bandeira deveria continuar sendo içada. Em minha opinião, não nos competia começar tudo de novo. Flensburg era apenas a última fase do Terceiro Reich, nada mais.
A queda das alturas do poder, talvez acompanhada, em circunstâncias normais, de grave crise psicológica, não me causou grandes perturbações íntimas, o que não deixou de surpreender-me. Adaptei-me, rapidamente, às condições do cativeiro, o que se poderia atribuir aos meus doze anos de treino em subordinação. No Estado de Hitler, eu sempre me senti prisioneiro. Agora, livre da responsabilidade das decisões, acometeu-me a necessidade de sonhar, tomou conta de mim uma abulia espiritual que eu tratava de não revelar.
Em Flensburg, todos os membros do governo Doenitz foram reunidos em uma sala que parecia de espera. Sentamo-nos em bancos, encostados à parede, com as nossas maletas. Parecíamos emigrantes à espera da hora de embarcar. Um a um, fomos passando a outra sala contígua, para o devido registro. Aqueles que voltavam mostravam-se mal-humorados, deprimidos ou ofendidos. Quando chegou a minha vez, também senti repugnância por aquele desagradável exame a que fui submetido. Provavelmente, isso era conseqüência do suicídio de Himmler, que engolira uma cápsula de veneno.
Doenitz, Jodl e eu fomos levados a um pequeno pátio, onde havia metralhadoras nas janelas superiores. Os fotógrafos da imprensa e os cinegrafistas cumpriram suas tarefas, enquanto eu dava a impressão de que tudo aquilo, com finalidade cinematográfica, não se relacionava comigo. Depois fomos apertados em um caminhão. Nas curvas, pude ver que estávamos acompanhados por uns trinta ou quarenta carros. Eu jamais tivera aquela escolta, pois sempre viajava em meu carro sozinho, sem proteção. Em um campo de aviação, subimos para dois aparelhos cargueiros, onde ficamos sentados em maletas e caixotes, com um legítimo aspecto de "prisioneiros". Ignorávamos o nosso destino. Sobrevoamos a costa, depois o mar do Norte. Íamos para Londres? O avião tomou o rumo do sul. Pela paisagem, estávamos sobrevoando a França. Vimos uma grande cidade. Talvez Reims, disseram alguns. Mas era Luxemburgo. O aparelho aterrissou. Fora, formou-se um duplo cordão de soldados norte-americanos, todos de metralhadora apontada para o passadiço por onde tínhamos de andar. Eu só vira procedimento semelhante nas películas de bandidos, quando estes são conduzidos ao cárcere. Sentamo-nos nos bancos de alguns velhos caminhões, tendo ao lado soldados empunhando fuzis-metralhadoras. Atravessamos alguns povoados e afinal paramos diante de um grande edifício, o Palace Hotel de Mondorf. Levaram-nos para a sala de recepção, de onde nós vimos pelas vidraças, do lado de fora, Goering e outras eminências do Terceiro Reich passeando de um lado para outro. Ali estavam marechais, chefes nacionais do partido, subsecretários, generais, os personagens que, nos últimos dias da guerra, tinham se espalhado em várias direções, como espuma ao vento. Eu estava separado, saboreando a paz do local.
Dias depois, perguntei a Kesselring por que continuara destruindo pontes. Com a mentalidade de militar intransigente, afirmou que se devia fazer voar as pontes enquanto houvesse luta. Ele se preocupava apenas com a segurança dos seus soldados. Não tardaram as questões motivadas pela hierarquia de cada um. Goering tinha sido o sucessor indicado por Hitler, anos atrás. Mas, nos últimos momentos, o nomeado foi Doenitz. Por outro lado, sendo marechal do Reich, Goering era o oficial de mais alta graduação. Surgiu uma luta surda entre o novo chefe de Estado e o sucessor destituído, no que dizia respeito à precedência no Palace Hotel de Mondorf, sem hóspedes. Queriam saber a quem competia a cabeceira da mesa, a quem se devia atribuir a mais elevada posição entre nós. Não foi possível acordo. Goering e Doenitz evitavam o encontro nas portas. Na sala de refeições, sentava-se cada um à cabeceira de uma mesa diferente. No entanto, Goering era o mais convencido da própria importância.
Certa vez o Dr. Brandt falava-lhe do que tinha perdido. Goering comentou:
– Ora! Não fale assim... O senhor não tem motivos de queixa... Quais eram os seus bens? Ao passo que eu... Aquilo que eu possuía...
Apenas duas semanas depois da chegada, comunicaram-me que eu ia ser transferido. Desde então, os norte-americanos começaram a tratar-me com certo respeito. Muitos dos meus companheiros de detenção, afeiçoados à idéia de sermos insubstituíveis, interpretaram com otimismo a minha transferência. Disseram-me que isso era a prova de que eu seria encarregado da tarefa de reconstrução da Alemanha. Em frente à porta do Palace Hotel estava um carro. Desta vez. nada de caminhões, nada de polícia militar com metralhadora, mas apenas um tenente que me cumprimentou, afavelmente. Viajamos para o oeste, via Reims, com destino a Paris. No centro da capital francesa, o tenente desceu do carro, diante de um edifício público, e logo voltou com uma planta da cidade e novas ordens. Rodamos no sentido do curso superior do Sena. Eu estava tão confuso que pensei até na Bastilha, supondo que ia ser levado para lá, esquecido de que essa afamada prisão fora destruída havia mais de um século.
O tenente, nervoso, confrontava na planta os nomes das ruas com os das placas nas esquinas. Compreendi, aliviado, que ele estava perdido. Em todo caso, utilizando o meu inglês do tempo de colégio, ofereci-me para guia. Afinal, conseguiu acertar: nós tínhamos de ir para o Trianon Palace Hotel, em Versalhes. Eu conhecia bem o caminho, e gostava de ir para lá, onde estive em 1937, quando desenhei o pavilhão alemão para a Exposição Internacional de Paris.
Muitos automóveis de luxo e a guarda de honra indicavam que naquele hotel achava-se instalada a sede dos Estados-Maiores aliados. Era o quartel-general de Eisenhower. O tenente desapareceu e eu fiquei vendo as idas e vindas dos oficiais. Depois de muito esperar, veio um sargento que me levou por uma avenida, entre gramados, até um palacete.
Durante semanas, vivi em Chesnay. Fui para uma pequena sala no segundo pavimento, com o mobiliário composto de uma cama de campanha e uma cadeira. A janela estava cercada com uma rede de arame farpado e à porta ficava uma sentinela armada. Eu podia passear, durante meia hora, acompanhado de um soldado, sem poder estabelecer contatos.
Mas, decorridos alguns dias, eu já sabia quais eram os presos, quase todos técnicos e economistas de relevo, peritos agrícolas, especialistas em estradas de ferro. Reconheci o antigo ministro Dorpmüller, o Professor Heinkel, construtor de aviões, um dos meus auxiliares, e outros muitos que tinham trabalhado comigo. Uma semana depois, dispensaram-me do acompanhante e eu pude mover-me com mais liberdade. Terminara a monotonia do passeio solitário e melhorei de estado mental. Chegaram novos companheiros: vários auxiliares do meu departamento, entre eles Frãnk e Saur, acompanhados de alguns oficiais técnicos das forças britânicas e norte-americanas, que desejavam ampliar seus conhecimentos. Nós concordamos em pôr à disposição deles nossa experiência das técnicas de armamento.
Pessoalmente, eu não podia fornecer muitos dados, pois Saur conhecia a matéria melhor do que eu. Portanto, fiquei muito agradecido ao comandante daquele centro, quando me poupou o aborrecimento daquelas áridas reuniões, levando-me a passear em seu carro.
Alguns dias depois, deteve-se no pátio do palácio um ônibus, em que vinham pessoas com o aspecto de turistas. Entre elas estavam Schacht e o antigo chefe da organização de armamentos, o General Thomas. Eram presos importantes, procedentes dos campos de concentração alemães do sul do Tirol, libertados pelos norte-americanos, levados primeiramente para Capri e depois para o nosso acampamento. Niemoeller devia estar com eles. Vimos um homem muito frágil, pele branca, traje negro. Heinkel, o construtor Flettner e eu achamos que devia ser Niemoeller. Era um indivíduo visivelmente marcado pelos muitos anos de cativeiro em um campo de concentração, que nos inspirava profunda compaixão. Flettner decidiu exprimir-lhe nossa simpatia, mas apenas começou a falar quando ele interrompeu, exclamando:
– Thyssen! Meu nome é Thyssen! Niemoeller está aí adiante.
Ali estava com efeito Niemoeller, de aspecto jovem, pensativo, fumando cachimbo, um exemplo de como é possível suportar anos de cativeiro. Mais tarde, eu me lembraria dele, freqüentemente. O ônibus continuou a viagem, alguns dias depois, e conosco ficaram Thyssen e Schacht.
Quando o quartel-general de Eisenhower transferiu-se para Frankfurt, apareceu diante do nosso acampamento uma coluna de caminhões militares norte-americanos, composta de umas dez unidades. Subimos para os carros abertos, que tinham bancos de madeira, e o mobiliário seguiu em outros. Durante a travessia de Paris, cada vez que o comboio se detinha por causa do tráfego, em redor de nós formava-se uma multidão que nos insultava e ameaçava. Ao meio-dia paramos em um campo, e lá descansamos, soldados e presos juntos. O objetivo da jornada era Heidelberg, mas eu fiquei satisfeito por não termos chegado lá naquele dia, pois não me era grato ficar no prédio de prisão da minha cidade natal.
No dia seguinte, chegamos a Mannheim. Parecia sem vida, com as ruas desertas e as casas destruídas. Em Nauheim, deixamos a auto-estrada e, depois de subirmos uma ladeira, atingimos o pátio de armas do Castelo de Kransberg. No inverno de 1939, eu ampliei aquele castelo, situado a cinco quilômetros do posto de comando central de Hitler, para servir de quartel-general de Goering.
Ali não havia redes de arame farpado. Tínhamos uma vista ampla, nas janelas do pavimento superior, o dos empregados, que nós estávamos ocupando. Podíamos andar com inteira liberdade pelas terras do castelo. De lá víamos os bosques de Taunus, a povoação de Kransberg com as chaminés a fumegarem, lentamente.
Estávamos infinitamente melhor do que a faminta população civil, em liberdade, pois recebíamos rações militares americanas. No entanto, corriam boatos, entre a gente daquela zona, segundo os quais éramos maltratados, não nos davam comida, e na torre vegetava Leni Riefenstahl. Na verdade, fomos levados àquela fortaleza para responder a interrogatórios sobre os aspectos técnicos da guerra. Compareceram numerosos especialistas, quase toda a classe de primeira categoria do meu ministério, chefes de seção, chefes da produção de munições, tanques, automóveis, barcos, aviões, tecidos, os homens-chaves da indústria química, e desenhistas como o Professor Porsche. Eram muito poucos os curiosos que andavam por lá. Queixavam-se os detidos e esperavam, com razão, que seriam postos em liberdade, depois de interrogados. Também Wernher Von Braun e seus auxiliares estiveram vários dias conosco. Ele e seu pessoal receberam ofertas dos Estados Unidos e da Inglaterra, e ele comentou-as comigo. Também os russos, disfarçadamente, tinham feito ofertas, através do pessoal da cozinha do rigorosamente vigiado acampamento de Garmisch. De um modo geral, nós remediávamos o tédio praticando esportes, organizando conferências científicas, e, uma vez, Schacht leu-nos poesias com assombrosa sensibilidade. Criou-se também um cabaré, que funcionava uma vez por semana. Assistíamos a todas as representações. O tema principal de todos os números era a nossa própria situação. Às vezes, vinham-nos lágrimas, pelo riso que a nossa situação causava.
Um dia pela manhã, pouco depois das seis, um dos meus auxiliares veio acordar-me dizendo:
– Sr. Speer, acabo de ouvir no rádio: o senhor e Schacht estão entre os acusados a serem julgados em Nuremberg.
Tratei de conservar-me calmo, mas a notícia consternou-me. Pelos meus princípios, eu admitia ter sido um dos dirigentes do regime e portanto passível de processo. Mas, ainda assim, custou-me admitir a realidade. Eu já vira em um periódico fotografias do interior da prisão e lera que diversos altos personagens do governo tinham sido levados para lá. Schacht, o outro acusado, teve de deixar logo nosso relativamente confortável acampamento, mas eu teria de esperar algumas semanas, antes que fossem buscar-me.
A acusação contra mim era grave, mas nem por isso deixavam os guardas de tratar-me bem. Para consolar-me, os americanos diziam:
– Logo será absolvido e poderá esquecer-se de tudo.
O Sargento Williams aumentou-me as rações, alegando que eu devia estar forte para enfrentar o processo. O comandante inglês do acampamento convidou-me a dar um passeio, em seu carro, no dia em que se transmitiu a notícia. Sozinhos, sem escolta, percorremos os bosques de Taunus, deixando o automóvel debaixo de uma enorme árvore frutífera. Andamos pelo bosque e enquanto isso ele me contava suas caçadas de ursos na Caxemira.
NUREMBERG
Naquela noite, entrei no tristemente célebre centro de interrogatórios de Oberursel, próximo de Frankfurt. O sargento da guarda dirigiu-me gracejos tolos e serviram-me uma insípida sopa aguada que tomei com os meus bolos ingleses. Sentia saudade do formoso Kransberg. Durante a noite, ouvi os desabridos gritos dos guardas norte-americanos e respostas angustiadas entremeadas de gritos. De manhã, passou por mim um general alemão, sob custódia, com o rosto tumefato e desesperado.
Seguimos viagem em um caminhão, sob um toldo de lona. Eu estava entre outros presos. Reconheci o Dr. Stroelin, prefeito de Stuttgart, Horthy, regente do Reich na Hungria. Não nos disseram o nosso destino, mas isso era desnecessário; sabíamos que nos levavam a Nuremberg. Era já noite quando chegamos. Da entrada vi o corredor cuja fotografia fora publicada no semanário, semanas antes. Na cela da frente estava Goering, que, pela abertura da porta, olhava-me e movia a cabeça. Apesar de os quatro pavimentos estarem ocupados, o silêncio era impressionante. Minha cela ficava em frente à dele e eu via, em intervalos regulares, passar o seu corpo maciço diante do gradil da porta. Também comecei a andar, a princípio de um lado para o outro, depois, a fim de melhor aproveitar o espaço, descrevendo círculos.
Transcorrida uma semana, durante a qual permaneci em situação indefinida, sem ninguém fazer caso de mim, houve uma mudança, para outros insignificante, mas para mim de muito valor: transferiram-me para o terceiro pavimento, em uma sala onde batia sol, e havia melhores celas com melhores camas. Ali me foi ver o coronel norte-americano Andrus, que me cumprimentou:
– Very pleased to see you. (Muito prazer em vê-lo.)
Em Mondorf, no comando do campo de prisioneiros, agia com muito rigor, mas agora senti em suas palavras um tom de gracejo. Quanto a mim, fiquei satisfeito em voltar a tratar com pessoal alemão: cozinheiros, os portadores dos pratos de comida, todos recrutados entre antigos prisioneiros de guerra. Tinham experiência da situação e mostravam-se muito serviçais conosco, quando os guardas não se achavam presentes. Eles nos levavam notícias dos jornais, cumprimentos e mensagens confortantes.
Freqüentemente, Sauckel passava à frente da minha cela, e quando me via sua expressão adquiria um tom sombrio e vago ao mesmo tempo. Afinal, um dia, abriu-se também a minha porta e apareceu um soldado norte-americano com uma papeleta na mão, na qual estava escrito meu nome com a indicação da sala onde se faria o interrogatório. Para chegar lá, tivemos de passar por vários pátios e escadas internas do Palácio da Justiça de Nuremberg. No caminho encontrei Funk de volta de um interrogatório, muito abatido e deprimido. Quando o vi pela última vez, estávamos livres em Berlim. Passando perto de mim, gritou:
– Em que situação nos vemos novamente!
Pelo seu aspecto, sem gravata, o traje amassado, o rosto pálido, pude concluir como eu estaria também. Havia semanas que eu não me via ao espelho, e assim deveria ser, durante anos. Vi também Keitel, em um dos gabinetes, de pé, rodeado de oficiais norte-americanos. Impressionava vê-lo tão decaído.
Esperava-me um jovem oficial norte-americano. Amavelmente, convidou-me a sentar e começou a pedir esclarecimentos. Evidentemente, Sauckel tratara de desorientar as autoridades encarregadas da instrução do processo, apresentando-me como o único responsável pela utilização da mão-de-obra estrangeira. O oficial mostrou-se benevolente e, por iniciativa própria, redigiu uma declaração que punha as coisas em seus lugares. Senti-me aliviado, pois até então eu tivera a impressão de que, segundo a prática de "acusar o ausente", eu fora bastante atacado desde minha saída de Mondorf. Pouco depois era levado ao segundo encarregado da acusação, Dodd. Suas perguntas eram duras e agressivas. Mas eu não queria deixar-me intimidar e respondi-lhe, sinceramente, sem evasivas, sem levar em conta que as minhas declarações poderiam dificultar minha defesa. Mais ainda: omiti qualquer declaração que pudesse ser interpretada como desculpa. Quando voltei à cela, tive a impressão de ter caído em uma armadilha.
De fato, aquela declaração seria depois uma peça fundamental da acusação contra mim.
Mas aquele interrogatório deu-me novas forças: eu acreditava, e ainda acredito, ter procedido corretamente, não buscando paliativos, nem evitando sofrimentos. Com o ânimo tenso, eu esperava o já anunciado segundo interrogatório, que não se realizou. Só houve depois algumas investigações, a cargo de oficiais russos. Ouvindo minhas respostas, eles diziam: "tak, tak", sílaba que me parecia estranha, mas que, depois fiquei sabendo, significava: "bom, bom". O coronel soviético perguntou-me um dia:
– O senhor já leu o Mein Kampf de Hitler? Não?
Na realidade, eu tinha apenas folheado aquele livro, que o próprio Hitler me dissera já estava superado, em parte porque a leitura era difícil. Quando eu disse que não, eles desataram a rir. Irritei-me e disse que sim. Era aliás a única resposta verossímil. Durante o processo, a mentira teve conseqüências inesperadas. No segundo interrogatório, o fiscal soviético lançou-me em rosto minha falsa confissão. Agora, como eu estava sob juramento, tive de reconhecer que a minha resposta não era verdadeira.
Nos fins de outubro, todos fomos levados para o pavimento térreo, onde foram desocupadas as celas até então ocupadas por outros presos. O silêncio era inquietante. Vinte e um homens aguardavam o processo. Então chegou da Inglaterra Rudolf Hess, vestindo um capote azul-cinza, apoiado em dois soldados norte-americanos. Tinha uma expressão de ausência e de obstinação. Durante anos vi aqueles homens altivos, joviais, vestindo soberbos uniformes. Agora, o que eu via parecia irreal. Muitas vezes, supus estar sonhando.
De qualquer modo, procedíamos como presos. Por exemplo: quantos daqueles homens, um marechal do Reich, outro grande almirante, outro ministro ou chefe nacional do partido, teriam imaginado que um dia iriam submeter-se à análise psicométrica dos psicólogos norte-americanos? E, no entanto, sem resistência, submeteram-se às provas. O vencedor, surpresa do teste, que incluía provas de memória, de capacidade de reação, de criação imaginativa, foi Schacht. Ganhou porque à maior idade correspondiam mais pontos. Seyss-Inquart, de quem ninguém teria suspeitado isso, obteve o maior número de pontos efetivos. Também Goering encontrava-se entre os primeiros. Eu consegui um satisfatório lugar mediano.
Alguns dias depois de termos sido isolados dos outros detentos, interrompeu-se o tétrico silêncio da ala de nossos cárceres. Uma comissão formada de vários oficiais vinha de cela em cela, entregando o folheto em que se mencionavam as acusações. Verifiquei estar sendo acusado dos crimes imputados aos demais. Depois da leitura, senti-me possuído de desespero. Mas reagi, resolvendo adotar a seguinte linha de conduta: considerar sem valor meu próprio destino, não lutar pela vida e assumir toda a responsabilidade. Apesar da resistência do meu advogado, não obstante a dureza do processo, mantive-me firme em minha decisão.
Juntamente com o folheto das acusações entregaram-nos uma extensa lista de nomes de advogados alemães, entre os quais poderíamos escolher um defensor, no caso de não propormos algum outro por nossa própria conta. Solicitei ao tribunal que escolhesse um para mim. Alguns dias depois fui levado ao pavimento térreo. Lá encontrei um senhor franzino, de baixa estatura, que usava óculos de lentes grossas e falava com voz suave.
– Se o senhor concordar, posso ser seu advogado. Sou o Dr. Hans Flachsner, de Berlim.
Tinha um modo amistoso de olhar e não afetava importância. Estivemos comentando alguns detalhes do libelo acusatório, revelando-se ele isento de teatralidade, o que produziu boa impressão. Finalmente, entregou-me um formulário, dizendo:
– Leve isto e resolva se quer que eu seja o advogado.
Assinei logo e não me arrependi. Durante todo o processo, Flachsner demonstrou ser um causídico sagaz e sensível. E o que foi mais importante para mim: demonstrou simpatia e compreensão, durante os dez meses do processo, estabelecendo-se entre nós um mútuo e sincero afeto que ainda perdura.
Durante a formação do processo, a acusação impediu que os presos tivessem contato uns com os outros. Mas agora tinha sido suprimida esta norma, de maneira que não somente nos encontrávamos freqüentemente, no pátio, mas também tínhamos permissão para trocar opiniões. O processo, as acusações, a ilegitimidade do tribunal internacional, tudo isso suscitava profunda indignação pela sua ignomínia; estes eram os temas e argumentos que eu ouvia, enquanto passeava. Entre os vinte e um acusados, só encontrei um que estava de acordo comigo: Fritzsche, com quem pude falar, francamente, a respeito do princípio de responsabilidade. Mais adiante, Seyss-Inquart demonstrou certa compreensão. Com os demais, as explicações teriam sido inúteis e aborrecidas. Falávamos línguas diferentes. Era de grande importância decidir-se como deveria apresentar-se naquele processo a gestão de Hitler. No início, Goering adotara uma atitude de reserva crítica, ante certas medidas do regime, mas agora propugnava por sua total aprovação. Sem o menor escrúpulo, afirmava que deveríamos usar o processo para criar uma lenda positiva. Pareceu-me que enganar assim o povo alemão não somente seria uma indignidade como também um perigo, visto como induziria o povo a ter menos confiança no futuro. Só a verdade poderia acelerar o processo de ruptura com o passado. A verdadeira motivação daqueles conceitos de Goering ficou bem patente quando declarou que os vencedores podiam matá-lo, sim, mas que, dentro de cinqüenta anos, seus restos repousariam em um sarcófago de mármore e o povo alemão o aclamaria como herói nacional e mártir. Outros acusados tinham o mesmo ponto de vista a respeito deles próprios. Em outras questões, Goering não foi bem sucedido: segundo ele, todos nós estávamos de antemão condenados à morte, irremediavelmente.
Seria portanto inútil preocupar-se com a defesa.
Eu comentei:
– Evidentemente, Goering quer entrar no Valhalla (8) acompanhado de um grande séquito.
Em Mondorf e depois em Nuremberg, Goering foi submetido a um tratamento de desintoxicação, que o livrou do vício da morfina. Estava portanto em excelente forma, sendo a figura mais imponente no grupo dos processados. Lamentei que não estivesse nessas boas condições durante os meses cruciais do conflito, quando a sua morfinomania o tornara débil e condescendente. Pois ele era a única pessoa cuja
(8) Na mitologia germânica, a casa de Odin, deus da guerra, na qual eram admitidas as almas dos heróis mortos em batalha ou outros que tinham morrido com bravura. (N. do E.)
popularidade e autoridade Hitler poderia tomar em consideração.
Eu continuava decidido a assumir a responsabilidade de todos os atos do regime. Mas essa decisão provocou também algumas terríveis crises psicológicas. A única possibilidade de evitá-las seria fugir do processo mediante a morte. Algumas noites, eu me entregava ao desespero. Tratei de machucar minha perna doente, a fim de provocar uma nova flebite. Em Kransberg, ouvi um cientista dizer que a nicotina de um único cigarro, desfeito e diluído em água, podia provocar a morte. Durante muito tempo, guardei comigo um cigarro desfeito. Mas entre o projeto e a execução havia uma grande distância.
Os ofícios religiosos do domingo foram de grande auxílio para mim. Em Kransberg sempre me neguei a assisti-los, pois não queria aparentar fraqueza. Mas em Nuremberg deixei de lado essa presunção. As circunstâncias levaram-me até à nossa pequena capela, a mim e aos demais acusados, com exceção de Hess, Rosenberg e Streicher.
Durante as últimas semanas as nossas roupas tinham sido inutilizadas. Os norte-americanos forneceram-nos uns trajes padronizados de cor preta. Depois, passaram pelas celas alguns funcionários, para perguntar-nos que trajes queríamos usar durante o processo.
O coronel procedeu à última inspeção. No dia 19 de novembro de 1945, escoltados cada um por um soldado, fomos conduzidos pela primeira vez à sala de audiência. Procedeu-se à designação dos lugares. Na primeira fila, Goering, Hess e Ribbentrop; eu era o terceiro na segunda fila e em grata companhia, à minha direita, Seyss-Inquart; à esquerda, Von Neurath; e à frente, Streicher e Funk.
Estava satisfeito, pois afinal iniciava-se o processo. Os demais pensavam da mesma maneira: terminar logo de uma vez.
O processo abriu-se com o demolidor relatório da acusação, apresentado pelo primeiro promotor público norte-americano, Robert H. Jackson. De qualquer modo, uma das suas frases animou-me: a culpa pelos crimes cometidos pesava sobre os vinte e um acusados, não sobre o povo alemão. Tal conceito coincidia exatamente com o efeito secundário que eu esperava do processo: agora se concentraria em nós, os acusados, o ódio que a propaganda de guerra tinha atraído sobre o povo alemão, ódio que aumentara pela descoberta dos crimes cometidos. Segundo minha teoria, em uma guerra moderna cabia esperar que os dirigentes dos países beligerantes assumissem no final a responsabilidade das conseqüências, uma vez que, durante a luta, eles não tinham estado expostos a nenhum perigo. Escrevi ao meu advogado, fazendo-lhe sentir que, dentro daquele meu princípio, tudo quanto se discutisse para minha defesa iria parecer-me insignificante e ridículo.
Durante meses e meses, vieram se acumulando documentos e testemunhos, que puderam agravar os crimes cometidos, sem considerar se algum dos acusados estivera, pessoalmente, comprometido nesses delitos. Era horrível, e somente suportável porque os nervos foram se insensibilizando gradativa-mente. Ainda hoje me persegue a lembrança de fotografias, documentos e ordens, tão monstruosos como incríveis, mas de cuja autenticidade nenhum dos acusados duvidou.
Quanto ao mais, logo se estabeleceu uma rotina: pela manhã, até às doze, sessão; descanso para almoçar, nas dependências do pavimento superior do Palácio de Justiça; das catorze às dezessete, sessão; depois, volta à cela, onde eu mudava a roupa, rapidamente, dava o outro terno para a lavanderia, jantava e, quase todos os dias, era conduzido à sala da defesa, para discutir, até às vinte e duas horas, com o meu advogado, a marcha do processo e redigir as notas para a próxima defesa. Quando, afinal, voltava à cela, estava exausto e dormia profundamente. Aos sábados e domingos não havia sessão, mas também eu trabalhava mais tempo com o advogado, eu e os outros acusados. Assim, não sobrava cada dia mais do que meia hora para o passeio no pátio.
Entre nós, os acusados, apesar da nossa condição comum, não se criou nenhuma camaradagem. Estávamos divididos em grupos. A prova disso era haver o jardim dos generais. Um tabique baixo dividia em duas partes o pequeno jardim, que não teria mais de seis metros de lado. Aí passeavam sempre nossos militares, em voluntário isolamento, apesar do incômodo que havia no movimento em tão estreito local. Nós, civis, respeitávamos aquela barreira. Para o almoço, a diretoria da prisão distribuíra-nos por diferentes salas. Eu estava com o grupo composto de Fritzsche, Funk e Schirach.
Havíamos recuperado a esperança de salvar a vida. A acusação geral que pesava sobre todos fora substituída por uma acusação particularizada para cada um. Havia claras diferenças, e Fritzsche e eu pensávamos que as sentenças seriam também diferentes.
Na sala do julgamento só encontrávamos rostos desdenhosos e olhares frios. A única exceção estava na cabina dos intérpretes, onde se podia ver um ou outro amistoso movimento de cabeça. Também alguns membros da acusação deixavam transparecer algo que se poderia interpretar como compaixão. Fiquei muito impressionado quando alguns jornalistas começaram a apostar sobre as sentenças; às vezes, chegava até nós o eco dos debates em que se falava até de forca.
Depois de um intervalo de três dias, houve os últimos preparativos para a defesa e em seguida o "contragolpe", tão esperado por alguns dos presos. Goering prometera a Funk, a Sauckel e a outros assumir as responsabilidades deles, a fim de inocentá-los na medida do possível. No princípio das suas declarações, deu a impressão de coragem e decisão, mantendo-se fiel à sua promessa; mas, à medida que ia entrando nos detalhes, começou a exprimir-se a desilusão nas fisionomias daqueles que tinham depositado suas esperanças nele, porquanto voltou a limitar suas responsabilidades, pormenorizadamente.
Em sua disputa com Goering, Jackson, o promotor, levava vantagem, pois ia tirando da carteira documentos-surpresa. Goering, entretanto, sabia tirar partido do desconhecimento da matéria, da parte do promotor. Afinal, à força de evasivas, dissimulações, protestos, ele já lutava somente para salvar a vida.
Sucedeu o mesmo com Ribbentrop e Keitel. Estes deram mais acentuada impressão de pretenderem negar a responsabilidade. Alegavam sempre ordens de Hitler, quando lhes apresentavam documentos. Não pude conter a expressão "ordenanças bem pagos", que logo circulou pela imprensa de todo o mundo. Mas, considerando-se os fatos, no fundo eles tinham razão, pois na realidade funcionavam como porta-vozes de Hitler. Rosenberg, ao contrário, revelou-se franco e coerente. Foram inúteis todos os esforços do seu advogado, oficial e extra-oficialmente, para convencê-lo de que devia retratar-se da sua, digamos, ideologia. Hans Frank, advogado de Hitler, e posteriormente governador-geral da Polônia, aceitou sua responsabilidade. Funk rebateu as acusações com habilidade, inspirando compaixão. O defensor de Schacht, com grande exibição de retórica, tratava de apresentar o seu constituinte como insurreto, o que resultou apenas em prejudicar a eficácia dos elementos favoráveis. Doenitz lutou, encarniçadamente, em sua defesa pessoal, com referência à ação dos seus submarinos, e obteve um brilhante êxito quando seu advogado apresentou uma declaração do Almirante Nimitz, comandante-chefe da frota americana do Pacífico, afirmando que, na guerra submarina, ele agira segundo as mesmas normas aplicadas pelos chefes das operações navais alemãs. Raeder atuou com objetividade. A simplicidade de Sauckel suscitava mais compaixão. Jodl impôs respeito pela precisão e sobriedade da sua defesa. Foi um dos poucos que souberam manter-se acima das contingências.
Os interrogatórios faziam-se pela ordem de colocação dos processados. Meu nervosismo aumentava, porquanto Seyss-Inquart, meu vizinho no banco, subira ao estrado dos depoentes. Ele era advogado e não se iludia a respeito da sua situação, pois interviera diretamente em deportações e fuzilamentos de reféns. Manteve-se sempre seguro de si mesmo e terminou sua declaração dizendo que se sentia obrigado a assumir responsabilidade pelos seus atos. Poucos dias depois daquela declaração, a qual decidiu seu destino, por uma feliz casualidade, recebeu notícias do filho, que se supunha desaparecido na Rússia.
Quando me dirigia ao estrado, eu estava nervoso como um ator que aparece no palco pela primeira vez. Rapidamente, ingeri a pílula tranqüilizante que o médico alemão me dera antes. À minha frente, a uns dez passos de distância, estava o meu advogado, Flachsner, diante da tribuna da defesa. À esquerda, achava-se a mesa dos juizes.
Flachsner abriu seu volumoso manuscrito e logo começaram as perguntas e as respostas. Para começar, declarei:
– Se Hitler tivesse tido amigos, sem dúvida eu teria sido um desses amigos.
Discutiram-se muitos detalhes, relativos aos documentos apresentados. Eu apresentei algumas retificações, sem dar a impressão de que pretendia desculpar-me ou rebater a acusação. Em algumas frases, assumi a responsabilidade das ordens de Hitler que eu cumprira. Mais importante para mim foi estabelecer que, depois de 1942, cabia-me uma parte da responsabilidade geral por todas as medidas ditadas por Hitler, sem exclusão dos crimes, onde e por quem quer que tivessem sido cometidos.
E declarei perante os juizes:
– Na vida do estadista há responsabilidade por tudo quanto ocorra dentro da sua esfera de jurisdição, naturalmente, responsabilidade total e absoluta. Além disso, em todos os assuntos importantes deve haver uma responsabilidade geral, que alcança todos os dirigentes. Pois quem deve assumir a responsabilidade pelo curso dos acontecimentos, senão os mais imediatos colaboradores do chefe de Estado? Mas essa responsabilidade só deve existir para as coisas fundamentais, não para os detalhes... Também em um regime totalitário deve haver essa responsabilidade geral dos dirigentes. É impossível evitar a responsabilidade geral depois da catástrofe. Se nós tivéssemos ganhado a guerra, provavelmente todos os membros do governo teriam exigido sua parte de glória, alegando que a responsabilidade era de todos... Eu me considero tanto mais ligado a esse dever porque o chefe de governo recusou-se à obrigação de responder perante o povo alemão e o mundo.
Falando a Seyss-Inquart, exprimi com mais veemência um dos meus argumentos:
– Que aconteceria se a cena mudasse e nós procedêssemos como vencedores? Todos proclamariam seus triunfos e méritos! Mas agora ninguém quer proceder de acordo com a sua função exercida, pois em vez de honrarias, condecorações e encargos, só esperamos sentenças de morte.
Nas semanas anteriores, Flachsner tentou dissuadir-me do meu propósito de assumir responsabilidade pelos casos e assuntos estranhos ao meu ministério. Dizia-me que isso poderia acarretar fatais conseqüências.
Quanto ao atentado que eu planejara, eu queria apenas fazer breve referência, declarando:
– Não quero entrar em detalhes.
Mas os juizes trocaram entre eles algumas frases e o presidente afirmou:
– O tribunal deseja saber dos detalhes. Agora, suspenda-se a sessão.
Eu não sentia o menor desejo de dar mais explicações,. pois não queria envaidecer-me disso. Obedeci contra a minha vontade e combinei com meu advogado para que parte da minha declaração não constasse dos autos de minha defesa.
Quanto à minha declaração a respeito do que ocorreria, depois de finda a guerra, a fim de não insistir em méritos, eu acentuei:
– Desde janeiro de 1945, na Alemanha, havia possibilidade de serem tomadas medidas opostas à política oficial. Todas as pessoas prudentes acolhiam bem tais medidas. Até os membros do partido cumpriam seu dever para com o povo. Juntos podíamos fazer muito para neutralizar as disparatadas ordens de Hitler.
Flachsner fechou o seu volume manuscrito com expressão de alívio, foi sentar-se junto aos demais advogados, e em seu lugar apareceu Jackson, primeiro promotor público dos Estados Unidos, membro do Supremo Tribunal norte-americano. Sua presença não me surpreendeu, porquanto, na véspera, à noite, um oficial norte-americano entrou apressado em minha cela e informou-me de que Jackson iria também interrogar-me. Ao contrário do seu hábito, começou com uma voz calma, quase benevolente. Fez-me admitir minha responsabilidade na utilização de milhões de trabalhadores forçados, apoiando-se em perguntas e documentos, e depois confirmou a segunda parte da minha declaração. Fora eu o único que teve a coragem de dizer a Hitler, em pessoa, que a guerra estava perdida. Em honra à verdade, também declarei que Guderian, Jodl e vários comandantes-chefes tinham se oposto, abertamente, a Hitler. À sua pergunta sobre se tinha havido mais conjuras, respondi:
– Naquelas condições, era muito simples tramar uma conjuração. Qualquer pessoa podia dirigir-se a outra na rua. Quando se falava da situação, a resposta era: "Isto é uma verdadeira loucura". E se fosse corajoso, oferecia-se... Não havia tanto perigo como hoje parece. Isso porque só existiam algumas dúzias de fanáticos. Os oitenta milhões eram muito sensatos. Quando se lhes revelava o que estava acontecendo, dispunham-se a ajudar.
Depois de mais um contra-interrogatório, feito pelo representante da acusação soviética, o General Raginsky, repleto de mal-entendidos por causa dos erros de tradução, adiantou-se outra vez Flachsner, para entregar ao tribunal um caderno com as declarações escritas das minhas testemunhas. Assim, terminou a parte do processo que me dizia respeito. Eu estava com dores no estômago, havia horas. Quando voltei para a cela, estirei-me na cama, vencido pela dor física e pelo cansaço moral.
CONCLUSÕES
Os acusadores atuaram pela última vez. O processo encerrava-se com as informações apresentadas por eles. Quanto a nós, cabia apenas dirigirmos a palavra ao povo, a qual seria transmitida por uma estação radiodifusora. Seria a nossa última oportunidade de falarmos ao povo e de, mediante,a clara exposição dos crimes do passado, mostrar o caminho que devia seguir a nação que nós tínhamos desorientado.
Aqueles nove meses de processo tinham traçado uma profunda marca em nossas mentes. Até Goering, que manifestara um agressivo propósito de justificar-se, em seu último depoimento referiu-se aos graves crimes revelados, condenou os horrendos assassinatos em massa, que ele não podia compreender. Keitel disse que preferia a morte a voltar à situação em que se cometiam tais atrocidades. Frank falou da culpa que Hitler e o povo alemão tinham assumido. Preveniu os recalcitrantes contra "a insensatez política que, forçosamente, leva à degenerescência e à morte". Suas palavras talvez tenham sido exaltadas, mas coincidiam com a minha opinião. Também Streicher condenou o "genocídio dos judeus", desencadeado por Hitler. Funk referiu-se a horríveis crimes vergonhosos. Schacht estava "consternado pelas atrocidades inomináveis", que ele "tratara de evitar". Sauckel mostrava-se "aniquilado pelos crimes revelados durante o processo". Von Papen declarou que "as forças do mal tinham sido mais poderosas do que as do bem". Seyss-Inquart falou de "espantosos excessos". Fritzsche manifestou que "o assassinato de cinco milhões de criaturas era uma horrível advertência para o futuro". Mas todos negaram ter tomado parte nesses acontecimentos.
De algum modo, minhas esperanças estavam realizadas: grande parte da culpa recaíra sobre nós, os acusados. Mas, naquela triste época, além da depravação humana, entrou na história, pela primeira vez, um fator que distinguia aquele regime despótico de todos os anteriores, um fator que no futuro teria de assumir ainda maior importância. Na minha qualidade de máximo representante de uma tecnocracia que, irrefletidamente, utilizara contra a humanidade todos os recursos ao seu alcance, eu cuidava não somente de admitir aqueles fatos, como também de explicá-los a mim mesmo.
A ditadura de Hitler foi a primeira ditadura de um Estado industrial, nos tempos da técnica moderna, uma ditadura que, para dominar o povo, servira-se com perfeição de todos os meios técnicos. Mediante os produtos da técnica, como o rádio e o alto-falante, oitenta milhões de pessoas ouviam a vontade manifestada pela voz de um homem. O telefone, o telégrafo, o rádio permitiam que as ordens, oriundas da suprema hierarquia, fossem transmitidas imediatamente aos órgãos inferiores, onde eram obedecidas cegamente, por serem provenientes de tão elevada autoridade. Assim, muitas empresas e unidades militares recebiam, diretamente, suas pavorosas ordens. Assim se estendia uma rede de vigilância sobre a população e se possibilitava o segredo dos atos criminosos. Assim, o complexo administrativo estatal podia ser manobrado por uma única vontade. As ditaduras, em outros tempos, necessitavam de chefes de grandes qualidades, inclusive nos postos inferiores, homens que soubessem pensar e agir por sua própria conta. O sistema autoritário da época da técnica pode prescindir desses homens. Bastam os meios de telecomunicação para se mecanizar o trabalho de comando inferior. Daí o nascimento do tipo do executante de ordens, desprovido de espírito crítico.
Os crimes cometidos durante aqueles anos não eram somente fruto da personalidade de Hitler. A enormidade daqueles delitos podia ser atribuída ao fato de Hitler ter sido o primeiro ditador a utilizar-se da técnica para a disseminação daqueles atos.
Pensei nas conseqüências que poderá ter, no futuro, o poder político ilimitado, assistido e, por sua vez, dominado pela técnica. Eu disse que aquela guerra terminara utilizando foguetes teleguiados, aviões supersônicos, bombas atômicas; estando já previstas armas químicas e bacteriológicas. Dentro de cinco ou dez anos, um foguete com uma bomba atômica e dirigido por uma dúzia de homens poderia em segundos matar até um milhão de pessoas no centro de Nova York.
A guerra bacteriológica poderia propagar epidemias e destruir colheitas.
"Quanto mais avançar a técnica, maior será o perigo... Na qualidade de antigo ministro, cuidando do fabrico de moderníssimos armamentos, é meu dever declarar: uma nova guerra destruiria a civilização. Nada impediria a consumação da obra de aniquilamento iniciada pela técnica nessa guerra.
"Sob o regime autoritário de Hitler, quase se realizou tal pesadelo, que aflige tanta gente, a saber: serem os povos dominados pela técnica. Todos os Estados correm hoje o perigo de ficarem sob o terror da técnica, mas em um regime ditatorial isso será inevitável. Portanto, quanto maiores forem os programas da técnica, mais necessário será fomentar-se a liberdade individual, o respeito de cada homem à própria dignidade."
Pelo modo como corria o processo, minha situação parecia-me desesperadora. Minhas últimas frases não eram de modo nenhum retóricas. Eu já me despedira da vida.
O tribunal recolheu-se por tempo indeterminado para deliberar sobre a sentença. Esperamos quatro longas semanas. Durante esse tempo, exausto, sob uma tensão quase insuportável, estive lendo precisamente o romance de Dickens Uma história de duas cidades, cujo enredo se desenvolve durante a Revolução Francesa. No romance, os prisioneiros aguardavam seu incerto destino, na Bastilha, com ânimo sereno, quase alegre. Mas eu era incapaz de sentir essa paz interior. O representante soviético pedira a pena de morte para mim.
No dia 30 de setembro de 1946, usando nossos trajes vindos da lavanderia, sentamo-nos pela última vez no banco dos réus. O tribunal resolvera não permitir a presença de repórteres e cineastas, durante a leitura dos considerandos. Estavam apagados os grandes focos luminosos. A sala oferecia um aspecto excepcionalmente lúgubre, quando entraram os juizes e se levantaram acusados, advogados, fiscais, observadores e jornalistas. Como de vezes anteriores, o presidente do tribunal, Lorde Lawrence, inclinou-se para todos os lados e também para nós. Sentou-se.
Os juizes foram-se revezando. Durante horas, leram com voz monótona o capítulo sem dúvida mais atroz da história alemã. De qualquer modo, a condenação traçava uma linha divisória, que isentava de culpa o povo alemão. Pois, se estavam absolvidos da culpa de terem preparado e feito uma guerra de agressão Baldur Von Schirach, chefe das Juventudes Hitleristas, Hjalmar Schacht, antigo ministro da Economia e depois diretor da produção de armamentos, se eram absolvidos da acusação de terem participado dos crimes contra a humanidade o Grande Almirante Raeder, o lugar-tenente de Hitler, Rudolf Hess, como então culpar qualquer soldado ou mulheres e crianças? Eu esperava então que o processo exercesse influência direta sobre a política de ocupação das potências vencedoras. Aquilo que elas acabavam de definir como sendo crimes não poderia ser por elas praticado contra o nosso povo.
Continuou a leitura de cada considerando, sem se revelar ainda a sentença. Minhas atividades foram mencionadas, fria e objetivamente, em perfeita consonância com as minhas declarações. Referiram minha responsabilidade na deportação de operários estrangeiros, especificando-se que minha oposição a Himmler foi motivada por motivos de produtividade. Acrescentaram que eu aceitara sem vacilar os prisioneiros nos campos de concentração e dispusera que também se obrigassem os prisioneiros soviéticos ao trabalho na indústria de armamentos. Reprovaram-me, além disso, não ter aduzido nenhuma consideração de índole humanitária, nem ética, em minhas petições.
Nenhum dos acusados, nem mesmo aqueles que não podiam esperar mais do que uma sentença de morte, perdeu a serenidade durante aquela leitura. Impassíveis, ouviam-na, em silêncio. Ainda hoje, não consegui entender como pude resistir àquilo sem desmoronar; ouvir a leitura, angustiado, sim, mas sem chegar a perder o domínio de mim mesmo, e com alguma reserva de resistência.
Flachsner estava otimista:
– Sendo essas as acusações, o senhor terá quatro ou cinco anos.
No dia seguinte, antes de se lerem as sentenças, nós, acusados, vimo-nos pela última vez. Reuniram-nos no sótão do Palácio da Justiça. Um a um, entrávamos em um pequeno elevador e não voltávamos. Afinal, chegou a minha vez. Subi, acompanhado de um soldado norte-americano. Abriu-se uma porta e vi-me diante dos juizes, na sala. Subi a um pequeno estrado e deram-me um par de fones para os ouvidos. Ouvi estas palavras:
– Albert Speer, condenado a vinte anos de prisão.
Alguns dias depois, assinei a sentença. Renunciei a uma petição às quatro potências, pedindo clemência. Qualquer pena era insignificante, em comparação com a catástrofe que tínhamos provocado no mundo.
Hoje, um quarto de século depois daqueles acontecimentos, não pesam em minha consciência apenas uns determinados delitos. Por mais graves que fossem. Meu fracasso moral não se pode traduzir em detalhes concretos. Sempre ficará a colaboração no acontecimento geral. Não somente participei de uma guerra que tinha por objetivo o domínio do mundo – como sabíamos todos nós que estávamos na alta esfera do governo –, mas também, com meus esforços e habilidade, a prolonguei por muitos meses. No alto da cúpula de um palácio da nova Berlim eu colocara o simulacro do globo terrestre, cuja posse Hitler ambicionava, não apenas simbolicamente.
A França, eu o sabia, devia ser degradada à categoria de pequeno Estado. A Bélgica, a Holanda, a Borgonha seriam incorporadas ao Reich de Hitler. Eu sabia também que a integridade nacional dos poloneses e dos russos seria igualmente desfeita, pois aqueles povos iriam ser escravizados. E nem Hitler guardou segredo quanto à sua intenção de exterminar os judeus. Ele o declarou, explicitamente, em seu discurso de setembro de 1939, no Reichstag. Mesmo sem estar de acordo com Hitler, eu tinha projetado obras e fabricado armas que serviam aos seus propósitos.
Durante os vinte anos de minha reclusão, em Spandau, meu cárcere foi vigiado por cidadãos das nações contra as quais Hitler fizera a guerra. Eles e os outros seis presos foram a minha companhia imediata. Eu soube por eles qual o resultado das minhas atividades. Muitos tinham de lamentar a morte de um ente querido, especialmente os soviéticos. Mas nunca me disseram uma palavra de censura. Apesar do regulamento da prisão, descobri em todos eles sentimentos sinceros: simpatia, companheirismo, compreensão... Na véspera da minha nomeação de ministro, encontrei na Ucrânia alguns camponeses que me salvaram de um congelamento. Fiquei então comovido, mas sem compreender o significado daquela ação. Agora, quando tudo já passara, esquecendo velhos antagonismos, recebia novas provas de bondade. Agora, afinal, eu quis compreender. E este livro é uma tentativa de compreensão.
Em 1947, na minha cela, eu escrevia: "Esta catástrofe demonstrou a vulnerabilidade do sistema da civilização moderna, edificado no decurso de séculos. Sabemos agora que não vivemos em um edifício à prova de terremotos. O complicado aparelho do mundo moderno, mediante impulsos negativos que se estimulam, reciprocamente, pode decompor-se, irremissivelmente. Não haveria vontade capaz de deter o processo se o automatismo do progresso alcançasse o seu objetivo, rumo à despersonalização do homem, privando-o da obrigação de responder por seus atos".
Durante os anos cruciais da minha existência, deslumbrado pelas possibilidades da técnica, coloquei-me a serviço dela, da qual por fim só me resta ceticismo.
Neste livro pretendo não somente falar do passado, mas também fazer uma advertência para o futuro. Durante os primeiros meses da minha prisão, ainda em Nuremberg, escrevi muito, impelido pela necessidade de aliviar meu espírito dos pensamentos que resultavam da lembrança dos acontecimentos que eu presenciara. Foi essa também a razão de novos estudos e notas, nos anos de 1946 e 1947, até que, afinal, em março de 1953, resolvi escrever minhas memórias de uma forma coerente. Houve vantagem ou inconveniência nessa re-dação feita na mais deprimente solidão? Muitas vezes impressionei-me com a brutalidade dos meus juízos a respeito de outras pessoas e de mim mesmo. No dia 26 de dezembro de 1954, dei por terminado o manuscrito.
Saí da prisão em outubro de 1966. Dispunha de mais de mil páginas de material próprio. Isso, junto com os documentos do meu ministério, conservados no Arquivo Federal de Koblenz, servirá para o desenvolvimento desta autobiografia.
Desejo manifestar meu agradecimento aos senhores Wolf Jobst Siedler, diretor da Editora Ullstein Propylaen, e Joachim C. Fest, conselheiro da mesma firma. Suas perguntas orientaram-me na apresentação das considerações gerais do livro e na explicação dos aspectos psicológicos e históricos dos acontecimentos. Nossas conversas permitiram-me confirmar e robustecer a opinião fundamental, que eu já tinha exposto, havia catorze anos, sobre Hitler, seu sistema e minha própria participação nos fatos, na primeira redação destas memórias.
Agradeço também ao Dr. Alfred Wagner, UNESCO, Paris; Dr. Trumpp, chefe dos Arquivos; Sra. Hedwig Singer, do Arquivo Federal de Koblenz; e David Irving, pela cessão de várias notas dos diários de Jodl e Goebbels, inéditas até hoje.
Albert Speer
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