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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS ARQUIVOS DO SEMIDEUS / Rick Riordan
OS ARQUIVOS DO SEMIDEUS / Rick Riordan

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Eu estava no quinto tempo, na aula de ciências, quando ouvi sons vindos de fora.
SCRAUC! AU! SCRECH! EIA!
Era como se alguém estivesse sendo atacado por uma galinha possuída. E, acredite, essa é uma situação que já vivi. Ninguém mais pareceu notar o tumulto. Estávamos no laboratório, e todo mundo estava conversando, então, não foi difícil olhar pela janela enquanto fingia que lavava meu béquer.
Como eu suspeitava, havia uma garota no beco empunhando uma espada. Ela era alta e musculosa como uma jogadora de basquete, tinha cabelos castanhos oleosos e usava jeans, coturnos e jaqueta de brim. Estava golpeando um bando de pássaros pretos do tamanho de corvos. Havia penas presas a suas roupas em vários lugares. Um corte acima de seu olho esquerdo sangrava. Enquanto eu a observava, um dos pássaros lançou uma pena como se fosse uma flecha, que se alojou no ombro dela. Ela praguejou e tentou acertar o animal, mas ele voou para longe.
Infelizmente, reconheci a garota. Era Clarisse, minha antiga inimiga no acampamento para semideuses. Ela costumava passar o ano inteiro no Acampamento Meio-Sangue. Eu não tinha ideia do que Clarisse fazia no Upper East Side no meio de um dia de aula, mas, obviamente, ela estava com problemas. E não ia aguentar por muito mais tempo.
Fiz a única coisa que podia.
— Sra. White — chamei —, posso ir ao banheiro? Acho que vou vomitar.
Sabe quando os professores ensinam que as palavras mágicas são por favor? Isso não é verdade. A palavra mágica é vomitar. Ela tira você da sala de aula mais rápido do que qualquer outra coisa.
— Vá! — respondeu a sra. White.
Corri para a porta, tirando os óculos de proteção, as luvas e o avental do laboratório. Então saquei minha melhor arma: uma caneta esferográfica chamada Contracorrente.

 


 


Ninguém me parou nos corredores. Saí pelo ginásio. Cheguei ao beco a tempo de ver Clarisse acertar um pássaro demoníaco com a lateral da espada como numa rebatida de beisebol. O pássaro guinchou e voou para longe em espiral, batendo na parede de tijolos e escorregando para dentro de uma lixeira. Mesmo assim, ainda havia uma dúzia deles em volta dela.

— Clarisse! — gritei.

Ela me lançou um olhar furioso, descrente.

— Percy? O que você está fazendo...

Ela foi interrompida por uma saraivada de penas que zuniram sobre sua cabeça e espetaram-se na parede.

— Essa é a minha escola.

— Que sorte a minha — Clarisse resmungou, mas estava muito ocupada para reclamar mais.

Destampei minha caneta, que se tornou uma espada de bronze de um metro de comprimento, e entrei na batalha golpeando os pássaros e desviando as flechas com a lâmina. Juntos, Clarisse e eu atacamos e atingimos os pássaros até que todos fossem reduzidos a pilhas de penas no chão.

Nós dois respirávamos com dificuldade. Eu tinha alguns arranhões, mas nada além disso. Arranquei do meu braço uma pena. Ela não tinha me perfurado muito. Se não fosse venenosa, eu ficaria bem. Tirei um saquinho de ambrosia do bolso da jaqueta, onde sempre o mantinha para emergências, parti um pedaço ao meio e ofereci um pouco a Clarisse.

— Não preciso da sua ajuda — murmurou ela, mas pegou a ambrosia mesmo assim.

Engolimos alguns pedaços, mas não muitos, já que a comida dos deuses pode queimar até as cinzas se ingerida em excesso. Acho que é por isso que não há muitos deuses gordos. De qualquer forma, em poucos segundos nossos cortes e arranhões desapareceram.

Clarisse colocou sua espada na bainha e bateu a sujeira da jaqueta.

— Então... a gente se vê.

— Espere aí! — retruquei. — Você não pode ir embora assim.

— Claro que posso.

— O que está acontecendo? O que está fazendo fora do acampamento? Por que aqueles pássaros estavam perseguindo você?

Clarisse me empurrou, ou tentou me empurrar. Eu estava bastante acostumado com seus truques, então apenas dei um passo para o lado e deixei que ela passasse direto por mim.

— Vamos lá — insisti. — Você quase foi morta na minha escola. Isso agora virou assunto meu.

— Não virou, não!

— Deixe eu ajudar você.

Ela deu um breve suspiro. Senti que realmente queria me bater. Mas, ao mesmo tempo, havia desespero em seus olhos, como se ela estivesse com sérios problemas.

— São meus irmãos — começou ela. — Eles estão aprontando comigo.

— Ah — respondi, sem muita surpresa. Clarisse tinha muitos irmãos no Acampamento Meio-Sangue. Todos implicavam uns com os outros. Acho que isso era esperado, já que são filhos e filhas do deus da guerra, Ares. — Que irmãos? Sherman? Mark?

— Não — respondeu ela, parecendo assustada como eu nunca tinha visto. — Meus irmãos imortais. Phobos e Deimos.

Sentamos num banco do parque enquanto Clarisse me contava a história. Eu não estava muito preocupado em voltar para a escola. A sra. White chegaria à conclusão de que a enfermeira teria me mandado para casa, e o sexto tempo era aula de trabalhos manuais. O sr. Bell nunca fazia chamada.

— Então me deixe entender isso direito. Você pegou o carro do seu pai para dar uma volta e agora ele sumiu.

— Não é um carro — rosnou Clarisse. — É uma quadriga de guerra! E ele me disse que pegasse. É como... um teste. Eu deveria trazê-la de volta ao pôr do sol. Mas...

— Seus irmãos roubaram o carro de você.

— Roubaram a quadriga — corrigiu ela. — Normalmente, são eles que a guiam, entende? E não gostam que ninguém mais o faça. Então, roubaram a quadriga e me perseguiram com esses pássaros idiotas que disparam flechas.

— Os animais de estimação do seu pai?

Ela assentiu, chateada.

— Eles guardam o templo. De qualquer forma, se eu não encontrar a quadriga...

Parecia que ela estava prestes a ter um ataque de nervos. Eu não a culpo. Já vi seu pai, Ares, ficar irritado, e não foi uma visão agradável. Se Clarisse o decepcionasse, ele pegaria pesado com ela. Muito pesado.

— Vou ajudar você — ofereci.

— Por que faria isso? Eu não sou sua amiga — devolveu ela, irritada.

Não pude argumentar diante daquilo. Clarisse tinha agido mal comigo um milhão de vezes, mas, ainda assim, eu não gostava da ideia de ela ou qualquer outra pessoa estar na mira de Ares. Eu tentava descobrir como explicar isso a ela quando ouvimos uma voz masculina.

— Ah, olhe só. Acho que ela andou chorando!

Um garoto mais velho estava encostado num telefone público. Usava jeans surrado, camiseta preta e jaqueta de couro, e uma bandana cobria seus cabelos. Tinha uma faca presa ao cinto. Seus olhos eram da cor de chamas.

— Phobos. — Clarisse cerrou os punhos. — Onde está a quadriga, seu idiota?

— Você a perdeu — provocou ele. — Não pergunte a mim.

— Seu...

Clarisse desembainhou a espada e partiu para o ataque, mas Phobos desapareceu bem no meio do golpe e a lâmina acertou o poste do telefone público.

Ele apareceu no banco ao meu lado. Estava rindo, mas parou quando encostei a ponta de Contracorrente em sua garganta.

— É melhor você devolver aquela quadriga — eu disse a ele. — Antes que eu me irrite.

Phobos me olhou com desprezo e tentou parecer durão, ou tão durão quanto alguém pode ficar com uma espada na garganta.

— Quem é o seu namoradinho, Clarisse? Agora você precisa de ajuda para vencer suas batalhas?

— Ele não é meu namorado! — Com um puxão, Clarisse tirou sua espada do poste. — Não é nem meu amigo. Esse é Percy Jackson.

Algo mudou na expressão de Phobos. Ele pareceu surpreso, talvez até nervoso.

— O filho de Poseidon? Aquele que deixou papai furioso? Ah, isso é muito bom, Clarisse. Você está andando com um arqui-inimigo?

— Eu não estou andando com ele!

Os olhos de Phobos brilharam num vermelho bem vivo.

— Por favor, não! — gritou Clarisse. Ela golpeou o ar como se estivesse sendo atacada por insetos invisíveis.

— O que está fazendo com ela? — eu quis saber.

Clarisse se afastou para a rua, balançando sua espada furiosamente.

— Pare com isso! — eu disse a Phobos.

Apertei minha espada um pouco mais fundo em sua garganta, mas ele simplesmente sumiu, reaparecendo perto do telefone público.

— Não se anime tanto, Jackson — disse Phobos. — Só mostrei a ela aquilo de que ela tem medo.

O brilho desapareceu dos seus olhos.

Clarisse se curvou, respirando com dificuldade.

— Seu desgraçado — arfou ela. — Eu vou... eu vou pegar você.

Phobos se virou para mim.

— E quanto a você, Percy Jackson? O que você teme? Sabe, vou descobrir. Eu sempre descubro.

— Devolva a quadriga. — Tentei manter minha voz calma. — Enfrentei seu pai uma vez. Você não me assusta.

— Nada a temer além do medo em si. Não é o que dizem? — Phobos riu. — Bom, deixe eu contar um segredinho a você, meio-sangue. Eu sou o medo. Se você quer a quadriga, venha pegar. Está sobre as águas. Você vai encontrá-la onde vivem os animaizinhos selvagens, exatamente o tipo de lugar a que você pertence. — Ele estalou os dedos e desapareceu numa cortina de fumaça amarela.

Preciso dizer: conheci muitos deuses inferiores e monstros de que não gostei, mas Phobos ganhou o prêmio máximo. Não gosto de valentões. Nunca pertenci à turma dos populares da escola, então passei a maior parte da minha vida me defendendo de punks que tentavam amedrontar a mim e a meus amigos. A forma como Phobos riu de mim e fez Clarisse desmoronar só com o olhar... Queria dar uma lição nesse cara.

Ajudei Clarisse a se levantar. Seu rosto ainda estava coberto pelo suor.

— Agora você quer ajuda? — perguntei.

Pegamos o metrô preparados para novos ataques, mas ninguém nos incomodou. Enquanto viajávamos, Clarisse me falou sobre Phobos e Deimos.

— Eles são deuses inferiores — explicou ela. — Phobos é o medo. Deimos é o pânico.

— Qual é a diferença?

Ela deu de ombros.

— Deimos é maior e mais feio, eu acho. Ele é bom em enlouquecer multidões. Phobos é mais, digamos, pessoal. Ele consegue invadir a sua mente.

— É daí que vem a palavra fobia?

— Sim — resmungou ela. — Ele tem muito orgulho disso. Todas aquelas fobias nomeadas em homenagem a ele. O idiota.

— E por que eles não querem que você conduza a quadriga?

— Isso costuma ser um ritual apenas para os filhos homens de Ares, quando completam quinze anos. Eu sou a primeira menina a ter uma chance em muitos anos.

— Bom para você.

— Diga isso a Phobos e a Deimos. Eles me odeiam. Eu tenho de levar aquela quadriga de volta ao templo.

— Onde é o templo?

— Píer 86. O Intrepid.

— Ah.

Aquilo fazia sentido, pensei na hora. Na verdade, eu nunca estivera a bordo do antigo porta-aviões, mas sabia que era usado como uma espécie de museu militar. Provavelmente, estava cheio de armas e bombas e outros brinquedos perigosos. Exatamente o tipo de lugar que um deus da guerra gostaria de frequentar.

— Talvez tenhamos cerca de quatro horas antes do pôr do sol — supus. — Pode ser tempo suficiente, se acharmos a quadriga.

— Mas o que Phobos quis dizer com “sobre as águas”? Estamos numa ilha, pelo amor de Zeus. Pode estar em qualquer lugar!

— Ele disse alguma coisa sobre animais selvagens — lembrei. — Animaizinhos selvagens.

— Um zoológico?

Concordei. Um zoológico sobre as águas pode ser o do Brooklyn, ou talvez... algum lugar de difícil acesso, com pequenos animais selvagens. Algum lugar onde ninguém pensaria em procurar uma quadriga.

— Staten Island — sugeri. — Há um pequeno zoológico lá.

— Talvez — respondeu Clarisse. — Esse parece o tipo de lugar fora do comum em que Phobos e Deimos esconderiam alguma coisa. Mas se estivermos errados...

— Não temos tempo para estarmos errados.

Descemos na Times Square e pegamos o trem número 1 para o centro de Manhattan, em direção ao cais das barcas.

Embarcamos para Staten Island às três e meia da tarde, com um monte de turistas que lotavam as grades do deque superior, tirando fotografias conforme passávamos pela Estátua da Liberdade.

— Ele a esculpiu em homenagem à mãe — comentei, observando a estátua.

— Quem? — Clarisse olhou para mim com desdém.

— Bartholdi — respondi. — O cara que fez a Estátua da Liberdade. Ele era filho de Atena e projetou a estátua de forma que se parecesse com a mãe dele. Bom, foi o que Annabeth me contou.

Clarisse revirou os olhos. Annabeth era minha melhor amiga e tinha loucura por arquitetura e monumentos. Acho que, às vezes, sua fixação pelo assunto acabava me contaminando.

— Inútil — Clarisse considerou. — Se não ajuda você na batalha, é uma informação inútil.

Eu poderia ter discutido com ela, mas, logo em seguida, a barca se inclinou como se tivesse batido em uma rocha. Os turistas escorregaram, derrubando uns aos outros. Clarisse e eu corremos para a frente do barco. A água abaixo de nós começou a borbulhar. Então, a cabeça de uma serpente marinha emergiu na baía.

O monstro era, no mínimo, tão grande quanto o barco. Era cinza e verde, e possuía uma cabeça de crocodilo e dentes em formato de lâminas afiadas. Cheirava como... bom, como alguma coisa que tivesse acabado de sair do fundo das águas do porto de Nova York. Montado em seu pescoço, estava um garoto forte que usava uma armadura grega de cor preta. Seu rosto estava coberto de feias cicatrizes, e ele segurava uma lança.

— Deimos! — berrou Clarisse.

— Olá, irmã! — Seu sorriso era quase tão terrível quanto o da serpente. — Que tal uma brincadeira?

O monstro rugiu. Os turistas gritaram e se dispersaram. Não sei exatamente o que viram, a Névoa geralmente evita que mortais vejam monstros em sua forma verdadeira. Mas, seja lá o que tenham visto, deixou-os aterrorizados.

— Deixe-os em paz! — berrei.

— Ou o quê, filho do deus do mar? — Deimos desdenhou. — Meu irmão me disse que você é um banana! Além disso, eu amo pânico. Eu vivo em meio ao pânico!

Ele incitou a serpente a golpear a barca com a cabeça, e, com o impacto, ela espalhou água para trás. Alarmes dispararam. Passageiros se atropelaram ao tentar fugir. Deimos gargalhava de felicidade.

— Chega — murmurei. — Clarisse, agarre aqui.

— O quê?

— Agarre meu pescoço. Vamos dar uma volta.

Ela não protestou. Agarrou-se a mim e eu comecei a contar:

— Um, dois, três... PULE!

Pulamos do deque superior direto para dentro da baía, mas ficamos embaixo d’água só por um instante. Senti o poder do oceano tomar conta de mim. Induzi a água a fazer um redemoinho em torno de nós, aumentando a velocidade até que surgíssemos no topo de uma tromba-d’água de dez metros de altura. Então nos conduzi diretamente ao monstro.

— Acha que consegue cuidar de Deimos? — berrei para Clarisse.

— Eu pego ele! — respondeu ela. — Só me faça descer dez metros.

Avançamos rapidamente em direção à serpente. Assim que ela expôs sua presa, desviei a tromba-d’água para o lado e Clarisse pulou. Ela foi de encontro a Deimos e os dois caíram na água.

A serpente veio atrás de mim. Rapidamente, virei a tromba-d’água para encará-la. Então, reuni todo o meu poder e induzi a água a subir cada vez mais.

— UOUUUU!

Milhões de litros de água salgada atingiram o monstro. Pulei em sua cabeça, destampei Contracorrente e cortei com toda a minha força o pescoço da criatura. O monstro rugiu. Sangue verde jorrou da ferida, e a serpente afundou nas ondas.

Mergulhei e observei a criatura enquanto ela recuava em direção ao mar aberto. Isto é bom nas serpentes marinhas: elas se tornam bebês gigantes quando estão feridas.

Clarisse emergiu perto de mim; cuspindo e tossindo. Nadei até ela e a agarrei.

— Você pegou Deimos?

Clarisse balançou a cabeça.

— O covarde desapareceu enquanto lutávamos. Mas tenho certeza de que o veremos de novo. E a Phobos também.

Os turistas ainda corriam em pânico pela barca, mas não havia sinais de ninguém ferido. O barco não parecia estar danificado. Decidi que não devíamos ficar ali. Segurei Clarisse pelo braço e fiz com que as ondas nos levassem para Staten Island.

No oeste, o sol se punha sobre a costa de Jersey. Nosso tempo se esgotava.

Eu nunca tinha passado muito tempo em Staten Island. Percebi que era maior do que eu imaginava e não muito divertida para caminhadas. As ruas seguiam trajetos confusos e tudo parecia ficar no alto. Eu estava seco (nunca me molho no oceano, a menos que eu queira), mas as roupas de Clarisse ainda pingavam. Ela deixava pegadas imundas pela calçada e o motorista do ônibus não nos deixou entrar.

— Não vamos conseguir chegar a tempo — observou ela.

— Pare de pensar assim. — Tentei parecer otimista, mas eu também começava a duvidar. Gostaria que tivéssemos tido reforços. Dois semideuses contra dois deuses inferiores já não era uma disputa justa, e eu não tinha certeza do que faríamos quando encontrássemos Phobos e Deimos ao mesmo tempo. Ficava relembrando o que Phobos tinha dito: “E quanto a você, Percy Jackson? O que você teme? Sabe, vou descobrir.”

Depois de nos arrastarmos até a metade da ilha, de passarmos por várias casas de subúrbio, algumas igrejas e um McDonald’s, finalmente avistamos uma placa em que se lia ZOOLÓGICO. Viramos a esquina e seguimos pela rua sinuosa com algumas árvores em um dos lados até que chegamos à entrada.

A senhora da bilheteria nos observou com olhar de suspeita, mas, graças aos deuses, eu tinha dinheiro suficiente para pagar nossas entradas.

Andamos pelo viveiro dos répteis e Clarisse parou de repente.

— Lá está ela.

Ela estava estacionada num cruzamento entre a fazendinha das crianças e o lago das lontras: uma enorme quadriga vermelha e dourada atrelada a quatro cavalos pretos. A quadriga era decorada com incrível riqueza de detalhes. Seria bonita se todas as imagens não mostrassem pessoas morrendo dolorosamente. Os cavalos soltavam fogo pelas narinas.

Famílias com carrinhos de bebês passavam ao lado da quadriga como se ela não existisse. Acho que a Névoa em torno dela devia estar muito forte, pois o único disfarce da quadriga era um bilhete escrito à mão colado no peito de um dos cavalos em que se lia VEÍCULO OFICIAL DO ZOOLÓGICO.

— Onde estão Phobos e Deimos? — sussurrou Clarisse, desembainhando sua espada.

Não os via em lugar algum, mas isso só podia ser uma armadilha.

Eu me concentrei nos cavalos. Normalmente, consigo falar com cavalos, já que meu pai os criou. Ei, cavalos, labaredas legais essas. Venham aqui!, chamei.

Um deles relinchou desdenhosamente. Certo, consegui entender seus pensamentos. Ele me chamou de alguns nomes que não posso repetir.

— Vou tentar pegar as rédeas — Clarisse avisou. — Os cavalos me conhecem, me dê cobertura.

— Tudo bem.

Eu não estava certo de como deveria dar cobertura a ela com a espada, mas mantive meus olhos bem abertos enquanto Clarisse se aproximava da quadriga. Ela andou em volta dos cavalos, quase na ponta dos pés. E congelou quando uma senhora passou com uma garotinha de uns três anos de idade.

— Cavalinho pegando fogo! — disse a menina.

— Não seja boba, Jessie — a mãe respondeu com uma voz confusa. — Isso é um veículo oficial do zoológico.

A garotinha tentou argumentar, mas a mãe agarrou sua mão e elas continuaram andando. Clarisse chegou perto da quadriga. A mão dela estava a quinze centímetros do arreio quando os cavalos empinaram, relinchando e soltando chamas. Phobos e Deimos apareceram na quadriga, os dois agora vestidos com negras armaduras de guerra. Phobos deu uma risada, seus olhos vermelhos brilhando. As feições assustadoras de Deimos pareciam ainda mais terríveis de perto.

— A caçada começou! — gritou Phobos. Clarisse tombou para trás enquanto ele chicoteava os cavalos e conduzia a quadriga diretamente para cima de mim.

Bom, agora eu gostaria de poder contar a vocês que cometi um ato heroico, como permanecer parado diante um grupo feroz de cavalos lança-chamas munido somente com a minha espada. Mas a verdade é que eu fugi. Pulei uma lata de lixo e uma grade, mas não houve meio de eu ser mais rápido que a quadriga. Ela foi de encontro à grade logo atrás de mim, escavando tudo pelo seu caminho.

— Percy, cuidado! — gritou Clarisse, como se eu precisasse que alguém me dissesse aquilo.

Saltei e pousei numa ilha de pedra no meio da área das lontras. Fiz com que a água formasse uma coluna para fora do lago e se jogasse sobre os cavalos, apagando temporariamente suas chamas e deixando-os confusos. As lontras não ficaram felizes com isso. Elas tagarelaram e gritaram, e entendi que era melhor sair da sua ilha bem rápido, antes que mamíferos marinhos enfurecidos começassem a me perseguir também.

Corri enquanto Phobos xingava e tentava controlar seus cavalos. Clarisse aproveitou a chance para pular nas costas de Deimos justamente quando ele começava a empunhar sua lança. Os dois saltaram da quadriga no momento em que ela tombou para a frente.

Pude ouvir Deimos e Clarisse começarem a lutar, espada contra espada. Mas eu não tinha tempo para me preocupar com isso porque Phobos estava me perseguindo novamente. Avancei rapidamente em direção ao aquário com a quadriga em meu encalço.

— Ei, Percy! — provocou Phobos. — Tenho uma coisa para você!

Olhei para trás e vi a quadriga derreter e os cavalos se transformarem em aço, envolvendo uns aos outros como se bonecos de barro estivessem sendo retrabalhados. A quadriga se remodelou em uma caixa preta de metal com a parte de baixo como a de um trator, uma pequena torre e um longo cano de arma. Um tanque de guerra. Reconheci por causa de uma pesquisa que tivera de fazer para a aula de história. Phobos dava risadas para mim do alto de um tanque da Segunda Guerra Mundial.

— Diga “x”! — disse ele.

Rolei para o lado quando a arma disparou.

CA-BUUUM! Um quiosque de suvenires explodiu, e bichos de pelúcia, canecas de plástico e câmeras descartáveis voaram em todas as direções. Enquanto Phobos recarregava sua arma, eu me levantei e mergulhei no aquário.

Eu queria me cercar de água. Isso sempre aumentava meu poder. Além do mais, era possível que Phobos não conseguisse fazer a quadriga passar pela porta. Claro que, se ele explodisse tudo, não faria diferença...

Corri pelas salas iluminadas por uma estranha luz azul-clara vinda dos tanques de exposição de peixes. Sépias, peixes-palhaços e enguias, todos me encararam à medida que eu passava correndo por eles. Filho do deus do mar! Filho do deus do mar!, eu podia ouvir suas pequenas mentes sussurrarem. É ótimo quando lulas o consideram uma celebridade.

Parei no final do aquário para escutar. Não ouvi nada. E então... vrum, vrum. Um tipo diferente de motor.

Olhei sem acreditar quando Phobos apareceu pilotando uma Harley-Davidson. Eu já tinha visto aquela moto: seu tanque de combustível decorado com chamas, seus coldres com espingardas, seu assento de couro parecido com pele humana. Aquela era a mesma moto que Ares pilotava quando o vi pela primeira vez, mas nunca imaginei que ela era apenas outra forma para sua quadriga de guerra.

— Oi, perdedor — Phobos me cumprimentou puxando uma enorme espada da bainha. — Hora de ficar com medo.

Empunhei minha espada, determinado a encará-lo. Então, os olhos de Phobos incandesceram e cometi o erro de olhar dentro deles.

De repente, eu estava num lugar diferente. Era o Acampamento Meio-Sangue, meu lugar favorito em todo o mundo, e ele estava em chamas. A floresta pegava fogo. Saía fumaça dos chalés. As colunas gregas do pavilhão do refeitório haviam tombado e a Casa Grande era uma ruína ardente. Meus amigos, ajoelhados, imploravam. Annabeth, Grover e todos os outros campistas.

Salve a gente, Percy!, eles choramingavam. Faça a escolha!

Fiquei paralisado. Era o momento que sempre temi: a profecia que deveria ser cumprida quando eu completasse dezesseis anos. Eu teria de escolher entre salvar ou destruir o Monte Olimpo.

Agora chegara o momento e eu não tinha a menor ideia do que fazer. O acampamento queimava. Meus amigos me encaravam, pedindo ajuda. Meu coração estava disparado. Eu não podia me mover. E se eu fizesse a coisa errada?

Então, ouvi as vozes dos peixes do aquário.

Filho do deus do mar! Acorde!

Subitamente, senti o poder dos oceanos me dominar novamente, milhares de litros de água salgada e centenas de peixes tentavam chamar minha atenção. Eu não estava no acampamento. Era uma ilusão. Phobos me mostrara meu temor mais profundo.

Pisquei e vi a espada de Phobos vindo na direção da minha cabeça. Empunhei Contracorrente e bloqueei o golpe segundos antes que ele me partisse em dois.

Contra-ataquei e acertei Phobos no braço. Icor dourado, o sangue dos deuses, ensopou sua camisa.

Phobos rosnou e avançou sobre mim. Desviei facilmente. Sem o seu poder do medo, Phobos não era nada. Ele não era nem um guerreiro razoável. Eu o contive, golpeando seu rosto e deixando-lhe um corte na bochecha. Quanto mais irritado ele ficava, mais desajeitadamente agia. Eu não podia matá-lo. Ele era imortal. Mas não era possível saber disso levando em conta somente sua expressão. O deus do medo parecia amedrontado.

Finalmente, chutei-o contra a fonte de água. Sua espada foi parar no banheiro das mulheres. Agarrei-o pelos cordões da sua armadura e o levantei até a altura do meu rosto.

— Você vai desaparecer agora — ordenei. — Vai sair do caminho de Clarisse. E se eu o vir de novo, vou lhe dar uma cicatriz maior e num lugar muito mais doloroso!

Ele engoliu em seco.

— Haverá uma próxima vez, Jackson! — E se dissolveu numa fumaça amarela.

Eu me virei para o tanque de exposição de peixes.

— Valeu, pessoal!

Então, observei a moto de Ares. Eu nunca havia pilotado uma superpoderosa quadriga Harley-Davidson de guerra. Quão difícil poderia ser? Subi na moto, acionei a ignição e saí do aquário para ajudar Clarisse.

Não tive problemas para encontrá-la, apenas segui o rastro de destruição. Grades foram derrubadas e animais corriam livremente. Texugos e lêmures estavam explorando a pipoqueira. Um leopardo gordo espreguiçava-se num banco do parque, rodeado de penas de pombo.

Estacionei a moto próximo à fazendinha das crianças, e lá estavam Deimos e Clarisse na área das cabras. Clarisse estava de joelhos. Corri até ela, mas parei subitamente quando vi como Deimos havia mudado sua forma. Agora ele era Ares: o grande deus da guerra, usando couro preto e óculos de sol. Todo o seu corpo soltava fumaça furiosamente enquanto ele levantava o punho para Clarisse.

— Você me decepcionou de novo! — o deus da guerra elevou a voz. — Eu a avisei do que aconteceria!

Ele tentou acertá-la, mas Clarisse arrastou-se para longe.

— Não! Por favor! — clamou ela.

— Garota boba!

— Clarisse! — gritei. — Isso é uma ilusão. Enfrente-o!

A forma de Deimos vacilou.

— Eu sou Ares! — insistiu ele. — E você é uma garota desprezível! Eu sabia que você me decepcionaria. Agora vai sofrer minha ira.

Eu queria avançar e lutar com Deimos, mas, de alguma maneira, sabia que não podia ajudar. Clarisse precisava fazer isso. Esse era o seu maior medo. Ela teria de superá-lo sozinha.

— Clarisse — chamei. Ela se virou e eu tentei sustentar seu olhar. — Enfrente-o — eu disse. — Isso é só fachada. Levante-se!

— Eu... eu não consigo.

— Sim, você consegue. Você é uma guerreira. Levante!

Ela hesitou. E então começou a se erguer.

— O que está fazendo? — Ares elevou a voz. — Humilhe-se por misericórdia, garota!

Clarisse deu um breve suspiro.

— Não — disse ela, calmamente.

— O QUÊ?

— Estou cansada de ser amedrontada por você. — Ela empunhou a espada.

Deimos atacou, mas Clarisse se desviou do golpe. Ela cambaleou, mas não caiu.

— Você não é Ares — afirmou ela. — Você não é nem mesmo um bom guerreiro.

Deimos rosnou de frustração. Ele atacou de novo, Clarisse estava preparada. Ela o desarmou e o atingiu no ombro, não tão profundamente, mas o suficiente para ferir mesmo um deus inferior.

Ele uivou de dor e começou a incandescer.

— Não olhe! — avisei a Clarisse.

Desviamos nossos olhos enquanto Deimos explodia em luz dourada, sua verdadeira forma divina, e desaparecia.

Estávamos sozinhos, exceto pelas cabras da fazendinha, que mordiscavam nossas roupas em busca de migalhas.

A moto se transformou novamente em uma quadriga puxada a cavalos.

Clarisse me observou cautelosamente. Ela limpou a palha e o suor do rosto.

— Você não viu isso. Você nunca viu nada disso.

Eu dei uma risada.

— Você se saiu bem.

Ela olhou para o céu, que ficava vermelho atrás das árvores.

— Suba na quadriga — disse ela. — Ainda temos uma longa viagem a fazer.

Alguns minutos depois, chegamos à estação das barcas de Staten Island e relembramos o óbvio: estávamos numa ilha. A barca não transporta carros. Ou quadrigas. Ou motos.

— Ótimo — resmungou Clarisse. — O que fazemos agora? Conduzimos essa coisa pela Ponte Verrazano?

Nós dois sabíamos que não havia tempo. Existiam pontes para o Brooklyn e para Nova Jersey, mas ambos os caminhos exigiriam horas para levar a quadriga de volta a Manhattan. Mesmo se conseguíssemos induzir as pessoas a pensarem que aquilo era um carro normal.

Então, tive uma ideia.

— Vamos pegar um caminho direto.

— O que você quer dizer? — Clarisse franziu as sobrancelhas.

Fechei os olhos e comecei a me concentrar.

— Siga em frente. Vá!

Clarisse estava tão desesperada que não hesitou. Ela gritou “Eia!” e chicoteou os cavalos. Eles avançaram em direção à água. Imaginei o oceano se tornando sólido, as ondas se transformando numa superfície firme até Manhattan. A quadriga de guerra bateu na arrebentação, a respiração ardente dos cavalos espalhava fumaça ao nosso redor. Andamos por cima das ondas diretamente até o porto de Nova York.

Chegamos ao Píer 86 bem no momento em que o céu ganhava a cor roxa. O USS Intrepid, templo de Ares, era uma enorme parede cinza de metal diante de nós, a pista de decolagem pontilhada de aeronaves e helicópteros. Estacionamos a quadriga na rampa e descemos dela. Pelo menos uma vez eu me sentia feliz por estar em terra firme. Concentrar-me em manter a quadriga sobre as ondas foi uma das coisas mais difíceis que já fiz. Eu estava exausto.

— É melhor eu sair daqui antes que Ares chegue — eu disse.

Clarisse concordou.

— Ele provavelmente mataria você assim que o visse.

— Parabéns — cumprimentei-a. — Acho que você passou no seu teste de direção.

Ela enrolou as rédeas na mão.

— Sobre aquilo que você viu, Percy. Aquilo de que eu tenho medo, quer dizer...

— Não vou contar a ninguém.

Ela me olhou com desconforto.

— Phobos assustou você?

— Sim. Vi o acampamento em chamas. Todos os meus amigos imploravam por ajuda, e eu não sabia o que fazer. Por um instante, não consegui me mover. Eu estava paralisado. Sei como você se sentiu.

Ela baixou os olhos.

— Eu, hum... acho que eu devo dizer... — As palavras pareciam estar presas na sua garganta. Não tinha certeza se algum dia na sua vida Clarisse dissera “obrigada”.

— Não precisa se incomodar — eu disse.

Comecei a me afastar, mas ela me chamou.

— Percy?

— Sim?

— Quando você, hum... teve aquela visão com seus amigos...

— Você era um deles — dei minha palavra. — Só não conte a ninguém, está bem? Ou vou ter de matar você.

Um sorriso fraco passou pelo rosto de Clarisse.

— A gente se vê.

— A gente se vê.

Eu me encaminhei para o metrô. Aquele tinha sido um longo dia, e eu estava pronto para voltar para casa.


PERCY
JACKSON

E O
DRAGÃO DE BRONZE


Um dragão pode arruinar seu dia.

Confie em mim, como um semideus, já tive minha cota de experiências ruins. Já apanhei, já fui arranhado, incendiado e envenenado. Já lutei com dragões de uma cabeça, de duas, de oito, de nove e com um tipo com tantas cabeças que se tivesse parado para contá-las com certeza estaria morto.

Mas e aquela vez com o dragão de bronze? Sinceramente, achei que eu e meus amigos viraríamos ração de dragão.

A noite começou bem tranquila.

Era final de junho. Eu tinha retornado de minha mais recente missão havia umas duas semanas, e a vida no Acampamento Meio-Sangue estava voltando ao normal. Sátiros perseguiam ninfas. Monstros uivavam na floresta. Os campistas pregavam peças uns nos outros, e o nosso diretor, Dioniso, transformava em arbusto qualquer um que não se comportasse. Coisas típicas de acampamento de verão.

Depois do jantar, os campistas ficaram conversando no pavilhão do refeitório. Estávamos todos empolgados porque a captura da bandeira daquela noite seria totalmente cruel.

Na noite anterior, o chalé de Hefesto conseguira uma grande vitória. Eles capturaram a bandeira de Ares — com a minha ajuda, muito obrigado —, o que significava que o chalé de Ares viria atrás de sangue. Bem... eles sempre vêm atrás de sangue, mas nessa noite estariam especialmente inspirados.

Na equipe azul estavam o chalé de Hefesto, Apolo, Hermes e eu, o único semideus no chalé de Poseidon. Por ora, a má notícia era que Atena e Ares, ambos chalés de deuses da guerra, estavam contra nós, na equipe vermelha, junto a Afrodite, Dioniso e Deméter. O chalé de Atena guardava a outra bandeira, e minha amiga Annabeth era a sua capitã.

Annabeth não é alguém que você gostaria de ter como adversária.

Logo antes do jogo, ela se virou para mim:

— Oi, Cabeça de Alga.

— Quer parar de me chamar assim?

Ela sabe que odeio esse nome, principalmente porque nunca consegui responder à altura. Ela é a filha de Atena, o que não me dá muitas opções. Quer dizer, “Cabeça de Coruja” e “Sabidinha” não são insultos de verdade.

— Você sabe que adora.

Ela bateu em mim com o ombro, o que imagino que era para ter sido um ato amigável, mas ela usava uma armadura grega completa, então, meio que doeu. Seus olhos cinzentos brilharam sob o elmo. Seu rabo de cavalo louro descia em cacho sobre um dos ombros. Era difícil alguém ficar bonito numa armadura de combate, mas Annabeth conseguia.

— É o seguinte — ela baixou seu tom de voz: — nós vamos destruir vocês esta noite, mas se você escolher uma posição segura... como o flanco direito, por exemplo... Garanto que não será tão massacrado.

— Uau, obrigado — comecei —, mas estou jogando para vencer.

Ela sorriu.

— A gente se vê no campo de batalha.

Annabeth correu de volta para seus companheiros de equipe, que riram e a cumprimentaram tocando as mãos espalmadas no alto. Eu nunca a tinha visto tão feliz, como se a chance de me acertar fosse a melhor coisa que já acontecera a ela.

Beckendorf se aproximou com seu elmo embaixo do braço.

— Ela gosta de você, cara.

— Com certeza — murmurei. — Gosta de mim como alvo.

— Que nada, elas sempre fazem isso. Se uma garota tenta matar você, saiba que ela está na sua.

— Faz muito sentido.

Beckendorf deu de ombros.

— Conheço essas coisas. Você devia convidá-la para os fogos.

Não consegui descobrir se ele estava falando sério. Beckendorf era conselheiro-chefe de Hefesto. Era um cara enorme com uma carranca permanente, tinha músculos como os de um jogador de futebol americano profissional e as mãos cheias de calos do trabalho nas forjas. Acabara de completar dezoito anos e ia para a Universidade de Nova York no outono. Por ele ser mais velho, eu costumava ouvi-lo sobre as coisas, mas a ideia de convidar Annabeth para os fogos do Quatro de Julho na praia — tipo, o maior programa do verão — fez meu estômago revirar.

Então, Silena Beauregard, a conselheira-chefe de Afrodite, passou por nós. Beckendorf tinha uma não tão secreta queda por ela havia três anos. Os cabelos dela eram longos e pretos e os olhos, grandes e castanhos. Quando ela andava, os caras se viravam para olhar.

— Boa sorte, Charlie — disse ela. (Ninguém nunca chamava Beckendorf pelo primeiro nome.)

Ela lançou para ele um sorriso brilhante e foi se juntar a Annabeth no time vermelho.

— Ah... — Beckendorf engoliu em seco.

Dei um tapinha em seu ombro.

— Obrigado pelo conselho, cara. Que bom que você é tão sábio com as garotas e tudo o mais. Venha. Vamos para a floresta.

Naturalmente, Beckendorf e eu ficamos com o trabalho mais perigoso.

Enquanto o chalé de Apolo fazia a defesa com seus arcos, o chalé de Hermes ocupava o meio da floresta para distrair os adversários. Nesse meio-tempo, Beckendorf e eu exploraríamos a área do flanco esquerdo, localizaríamos a bandeira do inimigo, derrubaríamos os defensores e levaríamos a bandeira de volta para o nosso lado. Simples.

Por que o flanco esquerdo?

— Porque Annabeth queria que eu fosse para o direito — disse eu a Beckendorf. — O que significa que ela não quer que a gente vá para o esquerdo.

Ele assentiu.

— Vamos nos preparar.

Beckendorf vinha trabalhando numa arma secreta para nós dois: uma armadura camuflada de bronze, encantada para se misturar ao ambiente. Se estivéssemos diante de pedras, nossos peitorais, elmos e escudos ficariam cinza. Se estivéssemos em frente a arbustos, o metal mudaria sua cor para um verde-folha. Não era invisibilidade verdadeira, mas teríamos um disfarce muito bom, pelo menos à distância.

— Essa coisa levou uma eternidade para ser forjada — ele me disse. — Não a estrague!

— Pode deixar, Capitão.

Beckendorf rosnou. Eu diria que ele gostou de ter sido chamado de “capitão”. O restante dos campistas de Hefesto nos desejou boa sorte e nós nos embrenhamos na mata, ficando imediatamente marrons e verdes como as árvores.

Cruzamos o riacho que servia de fronteira entre as equipes. Ouvimos uma luta ao longe, espadas contra escudos. Notei um facho de luz vindo de alguma arma mágica, mas não vimos ninguém.

— Nenhum guarda de fronteira? — Beckendorf sussurrou. — Estranho.

— Excesso de confiança — supus.

Mas fiquei incomodado. Annabeth era uma ótima estrategista. Não era do seu feitio ser desleixada com a defesa, mesmo que sua equipe fosse maior que a nossa.

Avançamos território inimigo adentro. Eu sabia que precisávamos ser rápidos porque nossa equipe estava jogando na defesa, e isso não duraria para sempre. Os filhos de Apolo seriam superados mais cedo ou mais tarde. O chalé de Ares não seria detido por uma coisinha como arcos.

Nós nos arrastamos pela base de um carvalho. Quase morri de susto quando o rosto de uma menina emergiu do tronco.

— Shhhh! — disse ela. E então desapareceu atrás de uma raiz.

— Ninfas do bosque — resmungou Beckendorf. — Que irritante.

— Não sou! — disse uma voz abafada vinda da árvore.

Continuamos a avançar. Era difícil dizer exatamente onde estávamos. Alguns limites se mantinham, como o riacho, certos rochedos e algumas árvores muito antigas, mas a floresta tendia a se transformar. Acho que os espíritos da natureza ficavam inquietos. Caminhos mudavam. Árvores se moviam.

De repente, estávamos nas bordas de uma clareira. Percebi que estávamos encrencados quando vi a montanha de sujeira.

— Santo Hefesto — murmurou Beckendorf. — A Colina das Formigas.

Quis voltar e correr. Eu nunca havia visto a Colina das Formigas, mas tinha ouvido histórias dos campistas mais velhos. O monte que chegava quase ao topo das árvores — quatro histórias, no mínimo. Suas laterais eram perfuradas por túneis que se espalhavam para dentro e para fora onde milhares de...

— Myrmekos — murmurei.

Era “formigas” em grego antigo, mas aquelas coisas eram muito mais que isso. Elas fariam qualquer exterminador ter um ataque cardíaco.

Os Myrmekos eram do tamanho de pastores alemães. Suas carcaças blindadas cintilavam em vermelho-sangue. Os olhos brilhavam como contas pretas e as mandíbulas anavalhadas cortavam e estalavam. Alguns carregavam ramos de árvores. Outros levavam pedaços de carne crua, e eu não queria nem pensar em de onde aquilo vinha. A maioria carregava pedaços de metal: armaduras antigas, espadas, pratos que foram encontrando no caminho do pavilhão do refeitório até ali. Uma formiga estava arrastando a lustrosa capota preta de um carro esporte.

— Elas adoram metal brilhante — Beckendorf sussurrou. — Principalmente ouro. Ouvi dizer que elas têm mais ouro no ninho que Fort Knox. — Ele soou invejoso.

— Nem pense nisso.

— Cara, não estou pensando nada — prometeu ele. — Vamos sair daqui enquanto nós...

Seus olhos se arregalaram.

A quinze metros de distância, duas formigas lutavam para arrastar um enorme pedaço de metal em direção ao ninho. Era do tamanho de uma geladeira, todo feito de ouro e bronze reluzentes, com saliências e pontas pela lateral e um ramo de fios preso na base. As formigas giraram a coisa e eu vi sua face.

Quase morri de susto.

— Aquela é uma...

— Shhh! — Beckendorf me puxou de volta para os arbustos.

— Mas aquela é uma...

— Cabeça de dragão — disse ele em tom reverente. — Sim. Estou vendo.

O focinho era tão longo quanto meu corpo. A boca estava aberta e mostrava dentes de metal, como os de um tubarão. A pele era uma combinação de escamas de ouro e de bronze e os olhos eram rubis tão grandes quanto meus punhos. A cabeça parecia ter sido cortada do corpo por mandíbulas de formigas. Havia fios cortados, gastos e emaranhados.

A cabeça também devia ser pesada, porque as formigas se esforçavam, mas só conseguiam movê-la alguns centímetros a cada puxão.

— Se elas levarem a cabeça até o monte, as outras ajudarão — disse Beckendorf. — Precisamos impedi-las.

— O quê? — perguntei. — Por quê?

— Este é um sinal de Hefesto. Venha!

Eu não sabia a que Beckendorf se referia, mas nunca o vira tão determinado. Ele correu pela margem da clareira, sua armadura se confundindo com as árvores.

Eu estava prestes a segui-lo quando alguma coisa pontuda e fria pressionou meu pescoço.

— Surpresa — disse Annabeth, bem a meu lado.

Ela devia estar usando seu boné mágico dos Yankees porque estava totalmente invisível.

Tentei me mexer, mas ela colocou a faca embaixo do meu queixo. Silena surgiu da floresta com a espada desembainhada. Sua armadura de Afrodite era rosa e vermelha, cores escolhidas para combinar com as roupas e a maquiagem. Ela parecia uma Barbie Guerreira.

— Bom trabalho — disse ela a Annabeth.

Mãos invisíveis confiscaram minha espada. Annabeth tirou seu boné e apareceu diante de mim, com um sorriso presunçoso.

— Garotos são fáceis de seguir. Eles fazem mais barulho que um Minotauro apaixonado.

Senti meu rosto quente. Tentei relembrar os fatos na esperança de não ter dito nada embaraçoso. Era impossível saber por quanto tempo Annabeth e Silena nos espionaram.

— Você é nosso prisioneiro — anunciou Annabeth. — Vamos pegar Beckendorf e...

— Beckendorf!

Por meio segundo eu o tinha esquecido, mas ele ainda avançava, diretamente para a cabeça do dragão. Já estava a doze metros de distância. Ele não notara as garotas, ou o fato de que eu não estava atrás dele.

— Vamos! — disse eu a Annabeth.

Ela me puxou de volta.

— Aonde você pensa que vai, prisioneiro?

— Veja!

Ela olhou para a clareira e, pela primeira vez, pareceu se dar conta de onde estávamos.

— Oh, Zeus...

Beckendorf saltou e atingiu uma das formigas. Sua espada tiniu contra a carapaça da coisa. A formiga se virou, estalando as pinças. Antes mesmo que eu pudesse avisá-lo, ela mordeu a perna de Beckendorf e ele caiu ferido no chão. Uma segunda formiga borrifou uma gosma em seu rosto, e Beckendorf gritou. Ele deixou a espada cair e esfregava os próprios olhos loucamente.

Eu me dirigi para alcançá-lo, mas Annabeth me puxou de volta.

— Não!

— Charlie! — berrou Silena.

— Não! — disse Annabeth entre os dentes. — Já é tarde demais!

— Do que você está falando? — eu quis saber. — Nós precisamos...

Então, notei mais e mais formigas se aproximando de Beckendorf... dez, vinte. Elas o agarraram pela armadura e o arrastaram tão rápido em direção à colina que ele foi varrido para dentro do túnel e sumiu.

— Não! — Silena empurrou Annabeth. — Você deixou que elas levassem Charlie!

— Não há tempo para discussão — disse Annabeth. — Vamos!

Pensei que ela fosse nos liderar numa ação para salvar Beckendorf, mas em vez disso ela correu para a cabeça do dragão, que as formigas haviam esquecido momentaneamente. Ela a agarrou pelos fios e começou a arrastá-la para a floresta.

— O que você está fazendo? — eu quis saber. — Beckendorf...

— Ajude-me — Annabeth rosnou. — Rápido, antes que elas voltem.

Ah, meus deuses! — disse Silena. — Você está mais preocupada com esse monte de metal do que com Charlie?

Annabeth girou nos calcanhares e a sacudiu pelos ombros.

— Escute, Silena! Aqueles são Myrmekos. Eles são como formigas-de-fogo, só que cem vezes pior. Eles picam injetando veneno. Eles borrifam ácido. Eles se comunicam com todos os outros e enxameiam qualquer coisa que os ameace. Se avançássemos até lá para ajudar Beckendorf, seríamos arrastados para dentro também. Vamos precisar de ajuda — muita ajuda — para trazê-lo de volta. Agora, agarre alguns fios e puxe!

Não sabia o que Annabeth pretendia, mas eu já tinha vivido aventuras o bastante com ela para saber que devia haver uma boa razão para fazer o que ela dizia. Nós três rebocamos a cabeça de metal do dragão para o meio da floresta. Annabeth não nos deixou parar até que estivéssemos a quarenta e cinco metros da clareira. Então, caímos de cansaço, suando e respirando com dificuldade.

Silena começou a chorar.

— Ele provavelmente já está morto.

— Não — Annabeth retrucou. — Elas não vão matá-lo agora. Temos cerca de meia hora.

— Como você sabe disso? — perguntei.

— Li sobre os Myrmekos. Eles paralisam a presa para que possam amaciá-la antes de...

Silena gemeu.

— Precisamos salvá-lo!

— Silena, vamos salvá-lo, mas preciso que você se controle — disse Annabeth. — Existe uma chance.

— Chame os outros campistas — eu disse —, ou Quíron. Quíron saberá o que fazer.

Annabeth balançou a cabeça.

— Eles estão espalhados por toda a floresta. Quando tivermos todos aqui de volta, poderá ser tarde demais. Além disso, nem mesmo todo o acampamento seria suficientemente forte para invadir a Colina das Formigas.

— E então?

Annabeth apontou para a cabeça do dragão.

— Tá. Você vai assustar as formigas com um grande boneco de metal?

— É um autômato — informou ela.

Isso não fez com que eu me sentisse muito melhor. Autômatos eram robôs de bronze mágicos feitos por Hefesto. A maioria deles eram máquinas assassinas enlouquecidas, e isso quando eram as boazinhas.

— E daí? É só uma cabeça. Está quebrado.

— Percy, esse não é um autômato qualquer — retrucou Annabeth. — É o dragão de bronze. Você não conhece as histórias?

Eu a encarei, sem entender. Annabeth está no acampamento há muito mais tempo que eu. Ela provavelmente conhece toneladas de histórias que eu não conheço.

Os olhos de Silena se arregalaram.

— Você está falando do antigo guardião? Mas essa é só uma lenda!

— Epa! Que antigo guardião?

Annabeth inspirou profundamente.

— Percy, no tempo anterior ao pinheiro de Thalia, antes de o acampamento ter fronteiras mágicas para manter monstros afastados, os conselheiros tentaram inúmeras maneiras diferentes para se proteger. A mais famosa foi o dragão de bronze. O chalé de Hefesto o fez com a bênção de seu pai. Supostamente ele era tão feroz e poderoso que manteve o acampamento a salvo por mais de uma década. E então... há cerca de quinze anos, ele desapareceu na floresta.

— E você acha que essa é a cabeça dele?

— Tem de ser! Provavelmente os Myrmekos o desenterraram quando procuravam metais preciosos. Eles não puderam mover a coisa toda, então, cortaram a cabeça com os dentes. O corpo não pode estar muito longe.

— Mas elas separaram totalmente a cabeça. É inútil.

— Não necessariamente.

Os olhos de Annabeth se estreitaram e eu podia jurar que seu cérebro fazia um esforço extra.

— Nós poderíamos reunir as partes. Se pudéssemos ativá-lo...

— Ele poderia nos ajudar a resgatar Charlie! — Silena concluiu.

— Espere aí — disse eu. — São muitos “ses”. Se nós o encontrarmos, se o reativarmos a tempo, se ele nos ajudar. Você disse que essa coisa desapareceu há quinze anos?

Annabeth fez que sim.

— Alguns dizem que seu motor pifou pelo uso, então ele foi para a floresta para se desativar. Ou que seu programa perdeu o controle. Ninguém sabe.

— Você quer reativar um dragão de metal descontrolado?

— Nós precisamos tentar! — insistiu Annabeth. — É a única esperança para Beckendorf! Além disso, este pode ser um sinal de Hefesto. O dragão deve querer ajudar um dos filhos de Hefesto. Beckendorf ia querer que nós tentássemos.

Não gostei da ideia. Por outro lado, eu não tinha sugestão melhor. Nosso tempo estava acabando e Silena entraria em choque se não fizéssemos alguma coisa logo. Beckendorf tinha dito algo sobre um sinal de Hefesto. Talvez estivesse na hora de descobrir.

— Certo — concordei. — Vamos em busca de um dragão sem cabeça.

Procuramos por uma eternidade. Ou talvez tenha sido apenas uma sensação, porque o tempo todo fiquei imaginando Beckendorf na Colina das Formigas, amedrontado e paralisado, enquanto um bando de seres em armaduras o cercavam, esperando que ele estivesse mais macio.

Não era difícil seguir a trilha das formigas. Elas haviam arrastado a cabeça do dragão pela floresta, deixando um sulco profundo na lama. E nós arrastamos a cabeça de volta pelo caminho de onde as formigas tinham vindo.

Devíamos ter percorrido uns vinte metros — e comecei a me preocupar com o nosso tempo —, quando Annabeth disse: “Di immortales.”

Chegamos à beira de uma cratera, como se alguma coisa tivesse aberto um buraco do tamanho de uma casa no chão. As laterais eram irregulares e pontilhadas de raízes. Trilhas de formigas levavam ao fundo, onde um enorme amontoado de metal brilhava no meio da sujeira. Fios saíam de um tronco de bronze em uma das extremidades.

— O pescoço do dragão — concluí. — Você acha que as formigas fizeram essa cratera?

Annabeth balançou a cabeça.

— Parece mais com uma explosão de meteoros...

— Hefesto — disse Silena. — O deus deve ter desenterrado isso. Hefesto queria que nós encontrássemos o dragão. Ele queria que Charlie... — Ela estava em choque.

— Venham — convoquei. — Vamos reconectar esse bad-boy.

Levar a cabeça do dragão para o fundo foi fácil. Ela caiu direto pela descida e atingiu o pescoço com um sonoro e metálico BONK! Reconectar foi mais difícil.

Annabeth se enrolou com os fios e xingou em grego antigo.

— Precisamos de Beckendorf. Ele poderia fazer isso em segundos.

— A sua mãe não é a deusa dos inventores? — perguntei.

Annabeth me olhou furiosa.

— É, mas isto é diferente. Sou boa com ideias. Não com mecânica.

— Se eu fosse escolher alguém no mundo para recolocar minha cabeça no lugar, escolheria você.

Eu simplesmente soltei aquilo — para passar confiança a ela, eu acho —, mas, imediatamente depois, percebi que a frase soara bem estúpida.

— Awmmm... — Silena fungou e secou os olhos. — Percy, isso é tão fofo!

Annabeth corou.

— Cale a boca, Silena. Passe a sua adaga para mim.

Tive medo de que Annabeth fosse me esfaquear. Em vez disso, ela usou a adaga como uma chave de fenda para abrir um painel no pescoço do dragão.

— Assim não vamos chegar a lugar algum — disse ela.

Então, ela começou a unir os fios de bronze celestial. Isso levou um longo tempo. Muito longo.

Calculei que, àquela altura, a captura da bandeira devia ter acabado. Imaginei quanto tempo levaria até que os outros campistas dessem pela nossa falta e viessem nos procurar. Se os cálculos de Annabeth estavam corretos (e eles sempre estavam), provavelmente Beckendorf teria ainda cinco ou dez minutos antes de as formigas o atacarem.

Finalmente, Annabeth se levantou e expirou o ar de seus pulmões com força. Suas mãos estavam arranhadas e sujas. As unhas estavam estragadas. Havia uma linha marrom em sua testa, onde o dragão cuspira graxa.

— Certo. Está pronto, eu acho...

— Você acha? — Silena perguntou.

— Tem de estar pronto — disse eu. — Nosso tempo está acabando. Como nós, ahn, ligamos isso? Ele tem algum botão ou coisa parecida?

Annabeth apontou para os olhos de rubi do dragão.

— Eles se movem em sentido horário. Acho que devemos girá-los.

— Se alguém rodasse meus globos oculares, eu acordaria — concordei. — E se ele se enfurecer com a gente?

— Então... estamos mortos — Annabeth respondeu.

— Ótimo — devolvi. — Isso é animador.

Juntos, giramos os olhos de rubi do dragão. Imediatamente eles começaram a brilhar. Eu e Annabeth nos afastamos tão rápido que caímos um por cima do outro. A boca do dragão se abriu, como se testasse o maxilar. A cabeça se virou e olhou para nós. Vapor emanou das orelhas e ele tentou se levantar.

Quando descobriu que não podia se mexer, o dragão pareceu confuso. Ele ergueu a cabeça e observou a sujeira. Finalmente, entendeu que estava enterrado. O pescoço se esticou uma vez, duas... e o centro da cratera estourou.

O dragão se levantou desajeitadamente, sacudindo montes de lama do corpo como um cachorro e nos respingando dos pés à cabeça. O autômato era tão incrível que nenhum de nós conseguia falar. Quer dizer, claro que ele precisava de uma passadinha num lava a jato e havia alguns fios soltos aqui e ali, mas o corpo do dragão era maravilhoso, como um tanque ultramoderno com pernas. Suas laterais eram chapeadas com escamas de bronze e de ouro, com pedras preciosas incrustadas. As pernas eram do tamanho de três caminhões e os pés tinham garras de aço. Ele não tinha asas — a maioria dos dragões gregos não tem —, mas a cauda era no mínimo tão longa quanto a parte principal do corpo, que era do tamanho de um ônibus escolar. O pescoço rangeu e estalou quando ele virou a cabeça para o céu e soprou uma coluna de um fogo triunfante.

— Bom... — eu disse baixinho — ainda funciona.

Infelizmente, ele me ouviu. Aqueles olhos de rubi fixaram-se em mim e seu focinho estacou a cinco centímetros do meu rosto. Instintivamente, busquei minha espada.

— Dragão, pare! — Silena gritou.

Eu estava impressionado por ela ainda ter voz. Falou com tanta decisão que o autômato desviou a atenção para ela.

Silena engoliu em seco, nervosa.

— Nós o acordamos para defender o acampamento. Você se lembra? Esse é o seu trabalho!

O dragão inclinou a cabeça como se pensasse. Imaginei que Silena tinha cerca de cinquenta por cento de chance de levar uma rajada de fogo. Eu considerava a hipótese de pular no pescoço da coisa para distraí-la, quando Silena continuou:

— Charles Beckendorf, um filho de Hefesto, está com problemas. Os Myrmekos o levaram. Ele precisa de sua ajuda.

Ao som da palavra Hefesto, o pescoço do dragão se ajeitou. Um tremor percorreu seu corpo de metal, jogando uma nova chuva de lama sobre nós.

O dragão olhou em volta como se tentasse encontrar o inimigo.

— Nós precisamos mostrar a ele — disse Annabeth. — Venha, dragão! Por esse caminho até o filho de Hefesto! Siga-nos!

Assim, ela desembainhou sua espada e nós três saímos do buraco.

— Por Hefesto! — Annabeth gritou, o que foi uma ideia legal. Avançamos pela floresta. Quando olhei para trás, o dragão de bronze estava bem na nossa cola, os olhos vermelhos brilhavam e fumaça saía de suas narinas.

Ele era um bom incentivo para continuarmos correndo enquanto nos dirigíamos para a Colina das Formigas.

Quando chegamos à clareira, o dragão pareceu ter sentido o cheiro de Beckendorf. Ele nos ultrapassou e tivemos de sair do caminho para não sermos achatados. Ele batia contra as árvores, as articulações rangiam e os pés deixavam crateras no solo.

Ele avançou direto para a Colina das Formigas. No início, os Myrmekos não entenderam o que acontecia. O dragão pisou em alguns deles, transformando-os em suco de inseto. Então, a rede telepática das formigas pareceu se ativar, como se dissesse: Dragão gigante. Mau!

Todas as formigas na clareira se viraram ao mesmo tempo e rodearam o dragão. Mais delas transbordaram da colina, centenas. O dragão cuspiu fogo e uma fileira inteira de formigas bateu em retirada, em pânico. Quem diria que formigas eram inflamáveis? Porém, mais delas continuaram vindo.

— Para dentro, agora! — Annabeth comandou. — Enquanto elas estão concentradas no dragão!

Silena liderou a movimentação — era a primeira vez que eu seguia uma filha de Afrodite numa batalha. Passamos pelas formigas correndo, mas elas nos ignoraram. Por alguma razão, elas pareciam considerar o dragão uma ameaça maior. Vai entender.

Mergulhamos no túnel mais próximo e eu quase vomitei com o fedor. Nada, nada mesmo, cheira tão mal quanto uma toca gigante de formigas. Eu podia jurar que elas deixavam a comida apodrecer antes de comê-la. Alguém precisava seriamente contar para elas que existem geladeiras.

Nossa jornada lá dentro foi um borrão de túneis escuros e ambientes mofados forrados com carapaças de formigas velhas e piscinas de gosma. Formigas agitavam-se, passando por nós a caminho da batalha. Mas apenas dávamos um passo para o lado e as deixávamos passar. O fraco brilho de bronze da minha espada nos deu luz enquanto seguíamos para as profundezas do ninho.

— Vejam! — apontou Annabeth.

Espiei uma sala lateral e meu coração falhou uma batida. Pendurados no teto estavam enormes sacos gosmentos — larvas de formiga, eu acho —, mas não foi isso que chamou a minha atenção. O chão da gruta estava cheio de moedas de ouro, pedras preciosas e outros tesouros como capacetes, espadas, instrumentos musicais, joias. Brilhavam como se fossem objetos mágicos.

— Essa é só uma sala — Annabeth comentou. — Provavelmente existem centenas de berçários aqui embaixo decorados com tesouros.

— Isso não é importante — Silena insistiu. —Temos de encontrar Charlie.

Outra primeira vez: uma filha de Afrodite que não estava interessada em joias.

Seguimos em frente. Depois de mais uns seis metros, entramos numa caverna que cheirava tão mal que meu nariz se fechou completamente. Os restos de refeições velhas estavam numa pilha tão alta quanto dunas de areia: ossos, montes de carne estragada, até antigas refeições do acampamento. Acho que as formigas faziam incursões à pilha de restos do refeitório e roubavam nossas sobras. Na base de uma das pilhas, esforçando-se para se manter ereto, via-se Beckendorf. Ele estava horrível, em parte porque sua armadura camuflada agora era da cor do lixo.

— Charlie! — Silena correu para ele e tentou puxá-lo.

— Graças aos deuses — disse ele. — Minhas... minhas pernas estão paralisadas!

— Isso vai passar — disse Annabeth. — Mas temos de tirar você daqui. Percy, pegue-o pelo outro lado.

Eu e Silena suspendemos Beckendorf e nós quatro começamos a voltar pelos túneis. Eu podia ouvir sons distantes de batalha: metal rangendo, rugidos de fogo, centenas de formigas mordendo e cuspindo.

— O que está acontecendo lá fora? — Beckendorf quis saber. Seu corpo se enrijeceu. — O dragão! Vocês não... o reativaram, né?

— Acho que sim — respondi. — Pareceu a única opção.

— Mas vocês não podem simplesmente ligar um autômato! Vocês têm de calibrar o motor, processar um diagnóstico... Não há como prever o que ele vai fazer! Temos de ir até lá!

Acabou que não precisamos ir a lugar nenhum, porque o dragão veio até nós. Tentávamos lembrar qual túnel levava à saída quando a colina inteira explodiu, cobrindo-nos de sujeira. De repente, estávamos olhando para céu aberto. O dragão estava exatamente acima de nós. Golpeava para a frente e para trás e reduzia a Colina das Formigas a pó enquanto tentava se livrar dos Myrmekos espalhados pelo corpo.

— Vamos! — gritei.

Cavamos para fora da sujeira e caímos aos tropeços pela lateral da colina, puxando Beckendorf conosco.

Nosso amigo dragão estava com problemas. Os Myrmekos mordiam as articulações da sua armadura, cuspindo ácido sobre ela. O dragão pisoteava, estalava e soltava chamas, mas não resistiria muito mais. Fumaça saía de sua carcaça de bronze.

Para piorar, algumas formigas se voltaram para nós. Acho que não gostaram de termos roubado seu jantar. Eu retalhei uma e cortei sua cabeça. Annabeth apunhalou outra bem entre as antenas. Assim que o bronze celestial penetrou a carapaça da formiga, ela se desintegrou completamente.

— Eu... eu acho que consigo andar agora — disse Beckendorf, e imediatamente caiu de cara no chão quando o soltamos.

— Charlie!

Silena o ajudou a se levantar e o puxou com dificuldade enquanto eu e Annabeth abríamos caminho entre as formigas. De alguma maneira, conseguimos atingir a margem da clareira sem sermos mordidos ou cuspidos, embora um de meus tênis estivesse soltando fumaça por causa do ácido.

Ainda na clareira, o dragão tropeçou. Uma grande nuvem de névoa ácida irritava sua couraça.

— Não podemos deixá-lo morrer! — disse Silena.

— É muito perigoso — retrucou Beckendorf, triste. — Sua rede elétrica...

— Charlie — implorou Silena —, ele salvou sua vida! Por favor, por mim.

Beckendorf hesitou. Seu rosto ainda estava muito vermelho por causa da saliva das formigas, e ele tinha a aparência de quem ia desmaiar a qualquer momento mas se esforçava para ficar de pé.

— Preparem-se para correr! — comandou ele. Então, observou a clareira e berrou: — DRAGÃO! Defesa emergencial, beta-ATIVAR!

O dragão se virou na direção do som da voz de Beckendorf. Ele parou de lutar contra as formigas, e seus olhos brilharam. O ar se encheu do cheiro de ozônio, como antes de uma tempestade com raios e trovões.

ZZZZZZAAAAAAPPP!

A pele do dragão lançou descargas elétricas em ondas para cima e para baixo do seu corpo, conectando-o com as formigas. Algumas delas explodiram. Outras queimaram, ficaram pretas e contorceram as patas. Em poucos segundos, não havia mais formigas sobre o dragão. As que ainda estavam vivas bateram em franca retirada, escapando de volta para a colina arruinada enquanto raios elétricos atingiam-nas no traseiro, apressando-as.

O dragão urrou triunfante. Então, ele virou os olhos brilhantes para nós.

— Agora — disse Beckendorf —, nós corremos.

Dessa vez não gritamos “Por Hefesto!”. Gritamos “Socoooooorro!”.

O dragão veio nos golpear, vomitando fogo e lançando raios sobre as nossas cabeças como se estivesse se divertindo muito.

— Como se para essa coisa? — gritou Annabeth.

Beckendorf, cujas pernas agora estavam boas (nada como ser perseguido por um monstro enorme para o corpo ficar em ordem), sacudiu a cabeça e arfou.

— Vocês não deveriam tê-lo ligado! Ele é instável! Depois de alguns anos, autômatos ficam descontrolados!

— Bom saber — gritei. — Mas como se desliga?

Beckendorf olhou em volta freneticamente.

— Lá!

Uma enorme formação rochosa estava à nossa frente, quase tão alta quanto as árvores. A floresta era cheia de pedras estranhas, mas eu nunca tinha visto uma assim. Tinha o formato de uma rampa de skate gigante, inclinada em um dos lados e com uma descida íngreme no outro.

— Corram acompanhando a base do despenhadeiro — disse Beckendorf. — Distraiam o dragão. Mantenham-no ocupado!

— O que você vai fazer? — quis saber Silena.

— Você verá. Vão!

Beckendorf sumiu atrás de uma árvore enquanto eu virei e gritei para o dragão.

— Ei, boca de jacaré! Seu bafo tem cheiro de gasolina!

O dragão soltou fumaça preta pelas narinas. Ele avançou para cima de mim, sacudindo o chão.

— Vamos! — Annabeth agarrou minha mão. Corremos para trás do despenhadeiro. O dragão nos seguiu. — Precisamos segurá-lo aqui — disse ela. Nós três preparamos nossas espadas.

O dragão nos alcançou e cambaleou até parar. Ele inclinou a cabeça como se não acreditasse que seríamos tão burros a ponto de lutar. Agora que nos alcançara, havia tantas maneiras diferentes de nos matar que ele provavelmente não conseguiria decidir.

Nós nos separamos quando a primeira rajada de fogo transformou o pedaço de chão próximo a nós num buraco de cinzas.

Então, vi Beckendorf sobre nós, no alto do despenhadeiro, e entendi o que ele tentava fazer. Ele precisava de um alvo limpo. Eu tinha de prender a atenção do dragão.

— Iááááá! — Avancei. Enfiei Contracorrente na pata do dragão e cortei uma garra.

Sua cabeça rangeu enquanto olhava para baixo, para mim. Ele parecia mais confuso que enraivecido, tipo: Por que você arrancou meu dedo?

Então, ele abriu a boca, revelando uma centena de dentes pontiagudos.

— Percy! — Annabeth me advertiu.

Mantive minha posição.

— Só mais um segundo...

— Percy!

E exatamente quando o dragão ia me atacar, Beckendorf se lançou das rochas e aterrissou no pescoço do autômato.

O dragão empinou-se e soltou chamas, tentando sacudir Beckendorf, mas ele se segurou como um caubói ao mesmo tempo em que o monstro dava cabeçadas a esmo. Eu observava, fascinado, enquanto Beckendorf abria à força um painel na base da cabeça do dragão e arrancava um fio.

Instantaneamente, o dragão congelou. Seus olhos ficaram opacos. De repente, ele era só uma estátua de bronze, mostrando os dentes para o céu.

Beckendorf deslizou pelo pescoço do dragão. Ele desabou ao chegar à cauda, exausto e respirando com dificuldade.

— Charlie! — Silena correu até ele e lhe deu um longo beijo no pescoço. — Você conseguiu!

Annabeth veio até mim e apertou meu ombro de leve.

— Ei, Cabeça de Alga, você está bem?

— Sim... eu acho.

Eu pensava em quão perto cheguei de virar um semideus moído na boca do dragão.

— Você foi ótimo.

O sorriso de Annabeth era muito melhor do que o daquele dragão idiota.

— Você também — disse eu, trêmulo. — Então... o que fazemos com o autômato?

Beckendorf secou a testa. Silena ainda cuidava dos cortes e machucados dele, que parecia bem distraído com toda aquela atenção.

— Nós... é... eu não sei — respondeu ele. — Talvez possamos consertá-lo, fazê-lo proteger o acampamento, mas isso poderia levar meses.

— Vale tentar — comentei.

Imaginei termos aquele dragão de bronze na nossa luta contra Cronos, o Senhor dos Titãs. Seus monstros pensariam duas vezes antes de atacar o acampamento se tivessem de encarar aquela coisa. Por outro lado, se o dragão decidisse ser um bárbaro furioso de novo e atacasse os campistas... isso seria muito pior.

— Você viu todo aquele tesouro na Colina das Formigas? — Beckendorf perguntou. — As armas mágicas? A armadura? Aquelas coisas realmente poderiam nos ajudar.

— E os braceletes — Silena comentou. — E todos os colares.

Estremeci só de lembrar o cheiro daqueles túneis.

— Acho que essa é uma aventura para depois. Seria necessário um exército de semideuses somente para chegar perto daquele tesouro.

— Talvez — ponderou Beckendorf. — Mas que tesouro...

Silena estudou o dragão paralisado.

— Charlie, essa foi a coisa mais corajosa que eu já vi... você pulando naquele dragão.

Beckendorf engoliu em seco.

— Hum... é. Então... você quer ir aos fogos comigo?

O rosto de Silena se animou.

— Claro, seu tolinho! Pensei que você nunca fosse me convidar!

De repente, Beckendorf pareceu estar muito melhor.

— Bom, vamos voltar, então! Aposto que a captura da bandeira já acabou.

Tive de ir descalço, porque o ácido corroeu completamente meu sapato. Quando o joguei fora, percebi que a gosma tinha ensopado minha meia e deixado meu pé em carne viva. Eu me apoiei em Annabeth e ela me ajudou a seguir pela floresta coxeando.

Beckendorf e Silena caminhavam à nossa frente, de mãos dadas, e nós os deixamos à vontade.

Observando os dois, com meu braço em volta de Annabeth para me apoiar, me senti bastante desconfortável. Silenciosamente, amaldiçoei Beckendorf por ele ser tão corajoso, e não estou me referindo a enfrentar o dragão. Depois de três anos, ele finalmente encontrou coragem para convidar Silena Beauregard para sair. Isso não era justo.

— Sabe — Annabeth começou a dizer enquanto nos esforçávamos para andar —, essa não foi a coisa mais corajosa que eu já vi.

Pisquei. Será que ela lia meus pensamentos?

— Hum... o que você quer dizer?

Annabeth segurou meu pulso quando passamos desajeitados por um córrego raso.

— Você encarou o dragão para que Beckendorf tivesse a chance de pular... isso foi corajoso.

— Ou muito idiota.

— Percy, você é um cara corajoso — afirmou ela. — Apenas aceite o elogio. É tão difícil assim?

Nossos olhares se encontraram. Nossos rostos estavam, tipo, a cinco centímetros de distância um do outro. Senti o peito meio esquisito, como se meu coração tentasse fazer polichinelos.

— Então... — comecei —, acho que Silena e Charlie vão aos fogos juntos.

— Acho que sim — Annabeth concordou.

— É... — continuei —, hum, sobre isso...

Não sei o que eu teria dito, mas, justo naquele instante, três irmãos de Annabeth do chalé de Atena brotaram dos arbustos com as espadas desembainhadas. Quando eles nos viram, começaram a rir.

— Annabeth! — um deles a chamou. — Bom trabalho! Vamos prender esses dois.

Eu o encarei.

— O jogo não acabou?

O campista de Atena gargalhou.

— Ainda não... mas acabará logo, logo. Agora que capturamos você.

— Cara, o que é isso — Beckendorf protestou. — Nós nos desviamos do jogo. Havia um dragão, e toda a Colina das Formigas nos atacou.

— A-hã. — Outro garoto de Atena se manifestou, claramente não impressionado. — Ótimo trabalho distraindo os dois, Annabeth. Funcionou perfeitamente. Você quer que nós os levemos a partir daqui?

Annabeth se afastou de mim. Eu jurava que ia nos dar passe livre para a fronteira, mas ela desembainhou a espada e a apontou para mim com um sorriso.

— Não — disse ela. — Eu e Silena podemos fazer isso. Vamos, prisioneiros. Mexam-se.

Eu a encarei, pasmo.

— Você planejou isso? Você planejou essa coisa toda só para nos manter fora do jogo?

— Percy, sério, como eu poderia ter planejado isso? O dragão, as formigas... você acha que eu poderia ter previsto tudo aquilo?

Pode não parecer, mas essa era Annabeth. Era impossível conhecê-la totalmente. Então, ela trocou olhares com Silena, e eu podia jurar que elas tentavam não rir.

— Você... sua... — comecei a dizer, mas não consegui pensar num nome forte o bastante para xingá-la.

Protestei por todo o caminho até a prisão, assim como Beckendorf. Era muito injusto sermos tratados como prisioneiros depois de tudo por que passamos.

Mas Annabeth apenas sorriu e nos prendeu. Enquanto se dirigia de volta para a linha de frente, ela se virou e piscou.

— Vejo você nos fogos?

Ela nem esperou pela minha resposta antes de se lançar para a floresta.

Olhei para Beckendorf.

— Ela acabou de... me convidar para sair?

Ele deu de ombros, completamente enojado.

— Quem vai entender as garotas? Prefiro encarar um dragão descontrolado.

Então, nós nos sentamos e esperamos as garotas ganharem o jogo.


Entrevista com
CONNOR e TRAVIS STOLL,
Filhos de Hermes

Qual foi a melhor peça que vocês já pregaram em outro campista?

Connor: A manga dourada!

Travis: Ah, cara, essa foi sensacional.

Connor: Bom, nós pegamos uma manga e a pintamos com tinta spray dourada, certo? Escrevemos “Para a mais gostosa” nela e a deixamos no chalé de Afrodite enquanto as garotas estavam na aula de arco e flecha. Quando voltaram, as garotas começaram a brigar pela manga, tentando descobrir qual delas era a mais gostosa. Foi muito engraçado.

Travis: Sapatos Gucci voaram pelas janelas. As filhas de Afrodite rasgavam as roupas umas das outras e atiravam batons e joias. Eram como um rebanho fanático de bonecas Bratz selvagens.

Connor: Então, elas descobriram o que tínhamos feito e vieram atrás de nós.

Travis: Aquilo não foi legal. Eu não sabia que elas faziam maquiagem permanente. Fiquei parecendo um palhaço por um mês.

Connor: É. Elas jogaram uma maldição em mim que, não importava o que eu vestisse, todas as minhas roupas ficavam dois tamanhos menores e eu me senti um idiota.

Travis: Você é um idiota.

Quem vocês mais gostariam de ter em sua equipe para a captura da bandeira?

Travis: Meu irmão, porque preciso ficar de olho nele.

Connor: Meu irmão, porque não confio nele. Além dele? Provavelmente o chalé de Ares.

Travis: É. Eles são fortes e fáceis de manipular. A combinação perfeita.

Qual é a melhor parte de estar no chalé de Hermes?

Connor: Você nunca está sozinho. Sério, novas crianças estão sempre chegando. Então você sempre tem com quem conversar.

Travis: Ou zoar.

Connor: Ou roubar. Uma grande família feliz.


Entrevista com
CLARISSE LA RUE,
Filha de Ares

Com quem você mais gostaria de arrumar uma briga no Acampamento Meio-Sangue?

Clarisse: Com qualquer um que atravesse meu caminho, otário. Ah, você quer dizer especificamente? Muitas opções. Tem esse garoto novo no chalé de Apolo, Michael Yew. Eu ia adorar quebrar seu arco na cabeça dele. Ele pensa que o chalé de Apolo é muito melhor que o de Ares só porque eles podem usar armas de longo alcance e ficar longe da batalha como covardes. Sou mais uma lança e um escudo. Algum dia, pode escrever, transformarei em pó Michael Yew e todo o seu chalé de bananas.

Com exceção do seu pai, quem você acha que é o deus ou a deusa mais corajoso ou corajosa do Conselho Olimpiano?

Clarisse: Bom, ninguém chega perto de Ares, mas acho que o Senhor Zeus é bastante corajoso. Quer dizer, ele deu conta de Tifão e lutou contra Cronos. Claro que é fácil ser corajoso quando se tem um arsenal de raios superpoderosos. Sem querer ofender.

Você já se vingou de Percy por ele tê-la ensopado com água de privada?

Clarisse: Ah, aquele inútil anda se exibindo de novo, né? Não acredite nele. Ele exagerou a coisa toda. Acredite, a vingança se aproxima. Um dia desses, ele vai lamentar. Por que espero? Apenas estratégia. Aguardo os próximos acontecimentos e espero o momento certo para atacar. Não estou assustada, o.k.? E sou capaz de quebrar os dentes de quem disser o contrário.


Entrevista com
ANNABETH CHASE,
Filha de Atena

Se você pudesse desenhar uma nova estrutura para o Acampamento Meio-Sangue, qual seria?

Annabeth: Fico feliz que você tenha perguntado. Precisamos seriamente de um templo. Aqui estamos nós, filhos dos deuses gregos, e não temos nem um monumento a nossos pais. Eu o colocaria no monte logo ao sul da Colina Meio-Sangue, e eu o projetaria de tal forma que todas as manhãs o sol nascente brilhasse pelas janelas e desenhasse símbolos dos deuses no chão: num dia uma águia, no outro uma coruja. Ele teria estátuas para todos os deuses, claro, e braseiros de bronze para queimar oferendas. Eu o faria com acústica perfeita, como o Carnegie Hall, para que tivéssemos concertos de lira e flauta lá. Eu poderia continuar falando, mas acho que você já entendeu. Quíron diz que nós temos de vender quatro milhões de caminhões de morangos para pagar um projeto como esse, mas acho que valeria a pena.

Com exceção de sua mãe, quem você acha que é o deus ou a deusa mais sábio ou sábia do Conselho Olimpiano?

Annabeth: Ai, deixe-me pensar... hum. A questão é que os olimpianos não são conhecidos exatamente por sua sabedoria, e digo isso com o máximo de respeito possível. Zeus é sábio a seu modo. Quer dizer, ele mantém a família unida por quatro mil anos, e isso não é fácil. Hermes é esperto. Ele até fez Apolo de bobo uma vez, ao roubar o rebanho dele, e Apolo não é nenhum negligente. Sempre admirei Ártemis também. Ela não desonra suas crenças. Ela apenas cuida dos próprios assuntos e não perde muito tempo discutindo com os outros deuses do conselho. Ela ainda passa mais tempo no mundo mortal que a maioria dos deuses. Então, entende o que acontece. Mas não compreende os garotos. Acho que ninguém é perfeito.

De todos os seus amigos do Acampamento Meio-Sangue, quem você mais gosta de ter a seu lado numa batalha?

Annabeth: Ah, Percy. Sem dúvida. Quer dizer, claro que ele pode ser chato, mas é confiável. Ele é corajoso e é um bom lutador. Geralmente, desde que eu diga o que fazer, ele vence uma luta.

Sabemos que você chama Percy de “Cabeça de Alga” de vez em quando. Qual é a característica mais irritante dele?

Annabeth: Bom, eu não o chamo assim porque ele é brilhante, chamo? Quer dizer, ele não é burro. Na verdade ele é bem inteligente, mas ele age como burro às vezes. Fico pensando se ele não age desse jeito só para me chatear. O cara tem muitas coisas a seu favor. Ele é corajoso. Tem senso de humor. É bonito, mas não ouse contar isso a ele.

Onde eu estava? Ah, sim, ele tem muitas coisas a seu favor, mas ele é tão... lento. Essa é a palavra. Quer dizer, ele não enxerga coisas realmente óbvias; por exemplo, o modo como as pessoas se sentem, mesmo quando você dá pistas a ele e é totalmente explícito. O quê? Não, não me refiro a alguém ou algo em particular! Só estou dando um depoimento geral. Por que todo mundo sempre pensa... Argh! Deixa pra lá!


Entrevista com
GROVER UNDERWOOD,
Sátiro

Que música você mais gosta de tocar na flauta?

Grover: Ah, é... bem, isso é um pouco embaraçoso. Recebi um pedido uma vez de um rato almiscarado que queria ouvir “Muskrat love”, sobre o amor de ratos almiscarados. Bom... aprendi a música, e tenho de admitir que gostei de tocá-la. Honestamente, ela não é mais só para ratos almiscarados! Ela é uma história de amor muito doce. Fico com os olhos cheios d’água quando toco essa música. Percy também, mas acho que é porque ele está é rindo de mim.

Qual desses dois você preferiria encontrar em um beco escuro: um ciclope ou o sr. D furioso?

Grover: Bééééé! Que tipo de pergunta foi essa? É... bem... Eu preferiria encontrar o sr. D, obviamente, porque ele é tão... é, legal. Sim, carinhoso e generoso com todos nós, sátiros. Todos nós o amamos. E eu não digo isso só porque ele sempre ouve e me faria em pedaços se eu falasse outra coisa.

Na sua opinião, na natureza, qual é o lugar mais bonito nos Estados Unidos?

Grover: É incrível que ainda haja tantos lugares legais, mas gosto de Lake Placid, no norte do estado de Nova York. Muito bonito, especialmente num dia de inverno! E as ninfas do bosque de lá... uau! Ah, espere, você pode cortar essa parte? Juníper vai me matar.

Latas de alumínio são realmente tão gostosas assim?

Grover: Minha velha vovó cabra costumava dizer: “Duas latas por dia — para não ter monstros, é a garantia.” As latas têm vários minerais, são muito nutritivas e sua textura é maravilhosa. Verdade, como não gostar? Não tenho culpa se os dentes humanos não foram feitos para o trabalho pesado.


Entrevista com
PERCY JACKSON,
Filho de Poseidon

Do que você gosta mais nos verões no Acampamento Meio-Sangue?

Percy: De ver meus amigos, com certeza. É muito legal voltar ao acampamento depois de um ano na escola. É como voltar para casa. No primeiro dia do verão, passeio pelos chalés e Connor e Travis furtam coisas da loja do acampamento, Silena discute com Annabeth, tentando mudar o seu estilo, e Clarisse ainda enfia as cabeças das crianças novas nas privadas. É bom que algumas coisas nunca mudem.

Você frequentou muitas escolas diferentes. Qual é a parte mais difícil de ser o aluno novo?

Percy: Fazer sua reputação. Quer dizer, todo mundo quer se encaixar num grupo, certo? Mesmo que você seja um nerd, um pit-boy ou o que for. Você precisa deixar claro desde o princípio que não é alguém que eles possam importunar, mas você também não pode ser um mala quanto a isso. Mas provavelmente não sou a melhor pessoa para dar conselhos. Não consigo passar um ano sem ser expulso ou destruir alguma coisa.

Se você pudesse trocar Contracorrente pelo item mágico de alguém, o de quem você escolheria?

Percy: Essa é difícil, porque eu realmente me acostumei a Contracorrente. Não consigo me imaginar sem aquela espada. Acho que seria legal ter um conjunto de armadura que se transformasse em roupas comuns. Vestir armadura é muito ruim. É pesada, é quente. E não deixa você exatamente na moda, entende? Então, ter roupas que se metamorfoseassem em armadura seria realmente útil. Mas eu ainda não estou muito certo de que trocaria minha espada por isso.

Você quase foi pego muitas vezes, mas qual foi o momento mais assustador?

Percy: Vou ter de responder que foi minha primeira luta com o Minotauro, no alto da Colina Meio-Sangue, porque eu não sabia o que diabos estava acontecendo. Eu nem sabia que era um semideus àquela altura. Pensei que tinha perdido minha mãe para sempre, e eu estava preso numa colina debaixo de uma tempestade lutando contra esse sujeito meio touro enquanto Grover, desmaiado, gemia: “Comida!”. Foi aterrorizante, cara.

Algum conselho para crianças que suspeitam serem semideuses também?

Percy: Rezem para estarem errados. Sério, pode parecer divertido ler sobre isso, mas não é uma boa coisa. Se você pensa mesmo que é um semideus, encontre um sátiro depressa. Você normalmente pode achá-los em qualquer escola. Eles riem de um jeito esquisito e comem qualquer coisa. Eles podem ter um andar engraçado porque tentam esconder seus cascos dentro de pés falsos. Encontre o sátiro de sua escola e peça ajuda. Você precisa chegar ao Acampamento Meio-Sangue logo. Mas, de novo, você não quer ser um semideus. Não tente fazer isso em casa.


MAPA DO
ACAMPAMENTO
MEIO-SANGUE


PERCY
JACKSON

E A
ESPADA DE HADES


Passar o Natal no Mundo Inferior não estava nos meus planos.

Se soubesse o que estava por vir, teria inventado uma doença qualquer. Poderia ter evitado um exército de demônios, uma luta com um titã ou uma cilada que quase lançou a mim e aos meus amigos na escuridão eterna.

Mas não, eu tinha de fazer minha prova idiota de inglês. Então, lá estava eu, no último dia do semestre de inverno na Goode High School, sentado no auditório com todos os outros calouros e tentando terminar a minha redação eu-não-li-o-livro-mas-estou-fingindo-que-li sobre Um conto de duas cidades, quando a sra. O’Leary surgiu no palco, latindo loucamente.

A sra. O’Leary é meu cão infernal de estimação. Ela é um monstro preto e peludo do tamanho de uma caminhonete Hummer com caninos afiados, garras cortantes como aço e olhos vermelhos brilhantes. Ela é realmente doce, mas em geral fica no Acampamento Meio-Sangue, o lugar para treinamento de semideuses. Eu estava um tanto surpreso em vê-la no palco andando por entre as árvores de Natal, os duendes do Papai Noel e o restante do cenário da peça de fim de ano.

Todo mundo levantou os olhos para ver. Eu estava certo de que as outras crianças entrariam em pânico e correriam para a saída, mas apenas começaram a cochichar e a rir. Algumas garotas disseram: “Awmm, fofinha!”

Nosso professor de inglês, o dr. Boring (não estou brincando, o significado é “chato” e esse é o nome dele), ajeitou os óculos e franziu o cenho.

— Tudo bem — começou ele —, de quem é o poodle?

Suspirei aliviado, agradecendo aos deuses pela Névoa — o véu mágico que impede os humanos de verem as coisas como realmente são. Eu já a tinha visto distorcer a realidade muitas vezes, mas a sra. O’Leary como um poodle? Essa foi impressionante.

— Hum, é meu, senhor — respondi em voz alta. — Desculpe! Ela deve ter me seguido.

Alguém atrás de mim começou a assobiar “Mary tinha um carneirinho”. Mais crianças aderiram ao coro.

— Chega! — interrompeu o dr. Boring, rispidamente. — Percy Jackson, essa é uma prova final. Não posso ter poodles...

— AU!

O latido da sra. O’Leary sacudiu o auditório. Ela abanou o rabo, derrubando mais alguns duendes. Então, inclinou-se sobre as patas dianteiras e me encarou como se quisesse que eu a seguisse.

— Vou tirá-la daqui, dr. Boring — prometi. — Eu já terminei mesmo.

Fechei meu caderno de respostas e corri para o palco. A sra. O’Leary se dirigiu para a saída e eu a segui enquanto as outras crianças ainda riam e gritavam pelas minhas costas: “Até mais, menino do poodle!”

A sra. O’Leary correu pela rua 81 Leste em direção ao rio.

— Devagar! — gritei. — Aonde você está indo?

Recebi alguns olhares estranhos dos pedestres, mas estávamos em Nova York, e, afinal, um garoto perseguindo um poodle provavelmente não era a coisa mais esquisita que eles já tinham visto.

A sra. O’Leary se manteve bem à minha frente, e se virava para latir de vez em quando como se dissesse: Mexa-se, lesma! Ela correu três quadras para o norte, direto para dentro do parque Carl Schurz. Quando eu a alcancei, ela saltou uma cerca de ferro e desapareceu numa enorme parede de arbustos podados cobertos de neve.

— Ei, vamos lá — reclamei.

Eu não havia tido a chance de pegar meu casaco na escola. Já estava morrendo de frio, mas escalei a cerca e mergulhei na moita congelada.

Do outro lado havia uma clareira: uns dois quilômetros quadrados de grama congelada circundada por árvores sem folhas. A sra. O’Leary cheirava o entorno, balançando a cauda loucamente. Não percebi nada fora do comum. À minha frente, o Rio East, cor de aço, fluía preguiçosamente. Nuvens de fumaça branca saíam dos telhados no Queens. Atrás de mim, o Upper East Side se destacava, frio e silencioso.

Eu não tinha certeza do porquê, mas minha nuca começou a formigar. Peguei minha caneta esferográfica e a destampei. Imediatamente, ela aumentou de tamanho até virar minha espada de bronze, Contracorrente. Sua lâmina reluzia fracamente na luz do inverno.

A sra. O’Leary levantou a cabeça. Suas narinas tremeram.

— O que foi, garota? — sussurrei.

Os arbustos farfalharam e um cervo dourado surgiu entre eles. Quando eu digo dourado, não quero dizer amarelo. Aquela coisa tinha pelo metálico e chifres que pareciam de genuínos catorze quilates. Ele emitia uma aura de luz dourada, quase brilhante demais para se olhar diretamente. Era provavelmente a coisa mais bonita que eu já tinha visto.

A sra. O’Leary lambeu os beiços como se estivesse pensando hambúrguer de cervo! Então, os arbustos farfalharam de novo e uma figura encapuzada saltou para a clareira, uma flecha engatada em seu arco.

Levantei minha espada. A garota mirou em mim — depois parou.

— Percy?

Ela jogou para trás o capuz prateado da sua capa. Seus cabelos negros estavam mais longos do que eu lembrava, mas eu conhecia aqueles brilhantes olhos azuis e a fita prateada que a marcava como a primeira-tenente de Ártemis.

— Thalia! — exclamei. — O que está fazendo aqui?

— Seguindo o cervo dourado — ela respondeu, como se isso fosse óbvio. — É o animal sagrado de Ártemis. Entendi que era algum tipo de sinal. E, hum... — ela indicou a sra. O’Leary com a cabeça, nervosa. — Você quer me dizer o que aquilo está fazendo aqui?

— Aquilo é meu bicho de estimação. Sra. O’Leary, não!

A sra. O’Leary estava cheirando o cervo, invadindo completamente seu espaço. O cervo tocou o cão infernal no nariz. Logo em seguida, os dois estavam brincando de um estranho jogo de pega-pega pela clareira.

— Percy — Thalia franziu o cenho. — Isso não pode ser uma coincidência. Você e eu no mesmo lugar e ao mesmo tempo?

Ela estava certa. Semideuses não viviam coincidências. Thalia era uma boa amiga, mas eu não a via fazia um ano, e agora, de repente, ali estávamos nós.

— Algum deus está aprontando com a gente — sugeri.

— Provavelmente.

— Bom ver você, mesmo assim.

Ela sorriu de má vontade.

— Tá. Se sairmos dessa inteiros, pago um cheeseburger para você. Como está Annabeth?

Antes que eu pudesse responder, uma nuvem passou pelo sol. O cervo dourado tremeluziu e desapareceu, deixando a sra. O’Leary latindo para um monte de folhas.

Preparei minha espada. Thalia armou seu arco. Instintivamente nos posicionamos de costas um para o outro. Um caminho de escuridão passou pela clareira e um garoto caiu dele como se tivesse sido cuspido, pousando na grama a nossos pés.

— Ai — resmungou.

Ele bateu a poeira de sua jaqueta de aviador. Tinha mais ou menos doze anos, cabelos escuros, usava jeans, camiseta preta e um anel de caveira prateado na mão direita. Uma espada pendia a seu lado.

— Nico? — chamei.

Os olhos de Thalia se arregalaram.

— O irmão mais novo de Bianca?

Nico nos olhou de cara feia. Duvido de que ele gostasse de ser anunciado como o irmão mais novo de Bianca. Sua irmã, uma Caçadora de Ártemis, tinha morrido havia alguns anos, e esse ainda era um assunto delicado para ele.

— Por que vocês me trouxeram para cá? — reclamou. — Num minuto estou num cemitério em Nova Orleans. No minuto seguinte... isso é Nova York? O que em nome de Hades eu estou fazendo em Nova York?

— Nós não o trouxemos para cá — jurei. — Nós fomos... — um calafrio desceu pelas minhas costas. — Fomos trazidos juntos. Os três.

— Do que você está falando? — Nico quis saber.

— Os filhos dos Três Grandes — disse eu. — Zeus, Poseidon e Hades.

Thalia respirou fundo.

— A profecia. Vocês não acham que Cronos...

Ela não concluiu o pensamento. Todos conhecíamos a grande profecia: uma guerra estava a caminho, entre os titãs e os deuses, e o primeiro filho de um dos três maiores deuses a completar dezesseis anos tomaria uma decisão que salvaria ou destruiria o mundo. Isso se referia a um de nós. Ao longo dos últimos anos, o Senhor dos Titãs, Cronos, tentou manipular cada um de nós separadamente. Agora... será que ele estava tramando alguma coisa ao trazer os três juntos?

O chão retumbou. Nico empunhou sua espada: uma lâmina negra de ferro estígio. A sra. O’Leary saltou para trás e latiu assustada.

Percebi tarde demais que ela estava tentando me alertar.

O chão se abriu sob Thalia, Nico e eu, e nós caímos na escuridão.

Eu esperava continuar caindo para sempre, ou talvez acabar achatado como uma panqueca de semideus quando atingíssemos o fundo. Mas o que vi a seguir foi Thalia, Nico e eu de pé num jardim, todos os três ainda gritando de terror, o que fez eu me sentir bastante idiota.

— O que... onde estamos? — Thalia perguntou.

O jardim era escuro. Fileiras de flores prateadas brilhavam fracamente, refletindo enormes pedras preciosas que delineavam os canteiros: diamantes, safiras e rubis do tamanho de bolas de futebol americano. Árvores arqueavam-se sobre nós, as copas cobertas de flores de laranjeira e frutas docemente perfumadas. O ar era frio e úmido, mas não como no inverno de Nova York. Parecia mais uma caverna.

— Já estive aqui antes — eu disse.

Nico arrancou uma romã de uma árvore.

— O jardim da minha madrasta, Perséfone. — Ele fez uma cara azeda e largou a fruta. — Não comam nada.

Ele não precisava me avisar duas vezes. Uma só prova da comida do Mundo Inferior e nós nunca seríamos capazes de ir embora.

— Olhem para cima — Thalia alertou.

Eu me virei e vi Thalia mirando sua flecha em uma mulher alta de vestido branco.

A princípio, pensei que a mulher fosse um fantasma. O vestido esvoaçava em torno dela como fumaça. Os longos cabelos escuros flutuavam e ondulavam como se não pesassem nada. O rosto era bonito, porém mortalmente pálido.

Então, percebi que o vestido não era branco. Tinha todas as cores misturadas — flores vermelhas, azuis e amarelas brotavam no tecido —, mas era estranhamente desbotado. Seus olhos eram do mesmo jeito, multicoloridos mas esmaecidos, como se o Mundo Inferior houvesse sugado sua vontade de viver. Tive a impressão de que no mundo acima de nós ela seria bonita, até brilhante.

— Sou Perséfone — disse ela. Sua voz era fina e fraca. — Sejam bem-vindos, semideuses.
Nico esmagou uma romã embaixo de sua bota.

— Bem-vindo? Depois da última vez, você tem coragem de me dar boas-vindas?

Eu me mexi, inquieto, porque alguém que fale desse jeito com um deus pode ser transformado em tufos de poeira.

— Hum, Nico...

— Está tudo bem — disse Perséfone friamente. — Tivemos uma pequena desavença familiar.

— Desavença familiar? — gritou Nico. — Você me transformou num dente-de-leão!

Perséfone ignorou o enteado.

— Como eu estava dizendo, semideuses, bem-vindos ao meu jardim.

Thalia baixou o arco.

— Você enviou o cervo dourado?

— E o cão infernal — admitiu a deusa. — E a sombra que coletou Nico. Era necessário trazê-los juntos.

— Por quê? — perguntei.

Perséfone me observou, e senti como se frias florezinhas crescessem em meu estômago.

— O Senhor Hades tem um problema — disse ela. — E se sabem o que é bom para vocês, irão ajudá-lo.

Sentamos em um terraço escuro com vista panorâmica para o jardim. As criadas de Perséfone trouxeram comida e bebida, que nenhum de nós tocou. Elas seriam bonitas não fosse o fato de estarem mortas. Estavam vestidas de amarelo, e usavam coroas de margaridas e plantas venenosas na cabeça. Os olhos eram vazios e as vozes sombrias como o bater das asas de morcegos.

Perséfone sentou-se em um trono prateado e nos estudou.

— Se estivéssemos na primavera, poderia recebê-los apropriadamente no mundo lá em cima. Pena que no inverno isso seja o melhor que eu posso fazer.

Ela soou amarga. Depois de tantos milênios, acho que ainda se ressentia de viver com Hades metade do ano. Parecia sem cor e deslocada, como a fotografia de uma antiga primavera.

Ela se virou na minha direção como se lesse meus pensamentos.

— Hades é meu marido e mestre, meu jovem. Eu faria qualquer coisa por ele. Mas neste caso preciso da ajuda de vocês, e rápido. Tem a ver com a espada do Senhor Hades.

Nico desdenhou.

— Meu pai não tem uma espada. Ele usa um exército e seu elmo das trevas.

— Ele não tinha uma espada — corrigiu Perséfone.

Thalia se levantou.

— Ele está forjando um novo símbolo de poder? Sem a permissão de Zeus?

A deusa da primavera apontou. Em cima da mesa, uma imagem tremulou e ganhou vida: ferreiros esqueléticos trabalhavam sobre uma forja de chamas negras, usando machados decorados com caveiras de metal para moldar uma extensão de ferro em uma lâmina.

— A guerra contra os titãs está muito próxima — disse Perséfone. — Meu senhor, Hades, tem de estar preparado.

— Mas Zeus e Poseidon nunca permitiriam que Hades forjasse uma nova arma! — Thalia protestou. — Isso desequilibraria o acordo de divisão de poderes entre eles.

Perséfone balançou a cabeça.

—Você quer dizer que faria de Hades um igual? Acredite, filha de Zeus, o Senhor dos Mortos não tem planos contra seus irmãos. Ele sabia que nunca entenderiam, e foi por isso que forjou a arma em segredo.

A imagem sobre a mesa tremeu. Um ferreiro zumbi ergueu a lâmina, ainda ardendo com o calor. Alguma coisa estranha estava presa na base — não era uma pedra preciosa. Parecia mais...

— Aquilo é uma chave? — perguntei.

Nico emitiu um som engasgado.

— As chaves de Hades?

— Espere — interrompeu Thalia —, o que são as chaves de Hades?

Nico parecia mais pálido que sua madrasta.

— Hades tem um conjunto de chaves de ouro que podem trancar e destrancar a morte. Pelo menos... essa é a lenda.

— É verdade — afirmou Perséfone.

— Como se tranca e destranca morte? — perguntei.

— As chaves têm o poder de aprisionar uma alma no Mundo Inferior — Perséfone respondeu. — Ou libertá-la.

Nico engoliu em seco.

— Se uma daquelas chaves foi presa na espada...

— Aquele que a utilizar pode ressuscitar os mortos — Perséfone completou. — Ou, com um mero toque, pode ceifar a vida de qualquer coisa e mandar a alma para o Mundo Inferior.

Estávamos todos em silêncio. A água borbotava de uma fonte tranquila. Criadas flutuavam à nossa volta, oferecendo bandejas de frutas e doces que nos manteriam no Mundo Inferior para sempre.

— Ótima espada — disse eu, afinal.

— Seria impossível deter Hades — concordou Thalia.

— Então estão vendo — começou Perséfone — porque vocês devem ajudar a recuperá-la.

Eu a encarei.

— Você disse recuperá-la?

Os olhos de Perséfone eram bonitos e mortalmente sérios, como botões venenosos.

— A lâmina foi roubada quando estava quase pronta. Não sei como, mas suspeito de um semideus, algum servo de Cronos. Se a lâmina cair nas mãos do Senhor dos Titãs...

Thalia ficou de pé.

— Vocês permitiram que a lâmina fosse roubada! Que coisa idiota, não? Provavelmente Cronos está com ela agora!

Então as flechas de Thalia germinaram em rosas de talos longos. O arco se fundiu em uma vinha de madressilvas pontuadas de flores brancas e douradas.

— Cuidado, caçadora! — Perséfone alertou. — Seu pai pode ser Zeus e você pode ser a tenente de Ártemis, mas ninguém se dirige a mim com desrespeito em meu próprio palácio.

Thalia trincou os dentes.

— Devolva... meu... arco.

Perséfone acenou. O arco e as flechas voltaram ao normal.

— Agora, sente-se e ouça. A espada não pode ter deixado o Mundo Inferior ainda. O Senhor Hades usou as chaves restantes para fechar o reino. Nada entra ou sai até que ele encontre a espada, e ele está usando todo o seu poder para localizar o ladrão.

Thalia sentou-se, relutante.

— Então para que você precisa de nós?

— A procura da lâmina não pode ser do conhecimento de todos — respondeu a deusa. — Nós trancamos o reino, mas não anunciamos o porquê. E os servos de Hades não podem ser usados na busca. Eles não podem saber que a lâmina existe até que esteja terminada. Certamente não podem saber que está desaparecida.

— Se acharem que Hades está com problemas, eles podem desertar — supôs Nico. — E podem se unir aos titãs.

Perséfone não respondeu, mas se uma deusa pode parecer nervosa, ela pareceu.

— O ladrão tem de ser um semideus. Nenhum imortal pode roubar a arma de outro imortal diretamente. Mesmo Cronos tem de respeitar a Antiga Lei. Ele tem um herói aqui em algum lugar. E para pegar um semideus... devemos usar três.

— Por que nós? — quis saber.

— Vocês são os filhos dos três grandes — começou Perséfone. — Quem poderia resistir aos seus poderes combinados? Além disso, quando vocês recuperarem a espada de Hades, enviarão uma mensagem ao Olimpo. Zeus e Poseidon não protestarão contra a nova arma de Hades se ela lhe for entregue por seus próprios filhos. Mostrará que vocês confiam em Hades.

— Mas eu não confio nele — retrucou Thalia.

— Nem eu — completei. — Por que deveríamos fazer alguma coisa por Hades, principalmente dar a ele uma superarma? Certo, Nico?

Nico olhava fixamente para a mesa. Seus dedos batiam levemente na sua lâmina negra de ferro estígio.

— Certo, Nico? — incentivei.

Levou um segundo até que ele se concentrasse em mim.

— Eu tenho de fazer isso, Percy. Ele é meu pai.

— Ah, de jeito nenhum — protestou Thalia. — Você não pode acreditar que isso seja uma boa ideia!

— Você prefere que a espada vá para as mãos de Cronos?

Esse era um bom argumento.

— O tempo está passando — disse Perséfone. — O ladrão deve ter cúmplices no Mundo Inferior, e estará procurando por uma saída.

Franzi o cenho.

— Pensei que você tinha dito que o reino estava trancado.

— Nenhuma prisão é hermeticamente fechada, nem mesmo o Mundo Inferior. As almas estão sempre encontrando saídas, com mais rapidez do que Hades pode bloqueá-las. Vocês precisam recuperar a espada antes que ela deixe nosso reino, ou tudo estará perdido.

— Mesmo que quiséssemos fazer isso — começou Thalia —, como encontraríamos esse ladrão?

Uma planta em um vaso apareceu na mesa: um craveiro amarelo, doente, com algumas folhas verdes. O cravo inclinava-se para o lado, como se tentasse encontrar o sol.

— Isto vai guiá-los — informou a deusa.

— Um craveiro mágico? — perguntei.

— A flor sempre aponta para o ladrão. À medida que sua presa se aproximar da fuga, as pétalas cairão.

Foi só falar e uma pétala amarela ficou cinza e caiu flutuando para a sujeira.

— Se todas as pétalas caírem, a flor morre — explicou Perséfone. — Isso significará que o ladrão alcançou uma saída e que vocês falharam.

Olhei para Thalia. Ela não parecia muito entusiasmada com toda aquela coisa de persiga-um-ladrão-com-uma-flor. Depois olhei para Nico. Infelizmente, reconheci a expressão em seu rosto. Eu sabia o que era querer deixar o pai orgulhoso, mesmo que seu pai fosse difícil de amar. Neste caso, muito difícil de amar.

Nico ia executar a missão, com ou sem a gente. E eu não podia deixá-lo sozinho.

— Uma condição — disse eu a Perséfone. — Hades terá de jurar pelo Rio Estige que nunca usará essa espada contra os deuses.

A deusa deu de ombros.

— Não sou o Senhor Hades, mas tenho certeza de que ele faria isso... como pagamento pela sua ajuda.

Outra pétala caiu do craveiro.

Eu me virei para Thalia.

— Eu seguro a flor enquanto você acaba com o ladrão?

Ela suspirou.

— Tudo bem. Vamos pegar esse idiota.

O Mundo Inferior não tinha entrado no espírito natalino. À medida que descíamos pela estrada do palácio até o Campo de Asfódelos, o lugar ficava muito mais parecido com aquele da minha visita anterior: realmente depressivo. Grama amarelada e choupos negros pouco desenvolvidos ondulavam a perder de vista. Sombras vagavam sem rumo pelas colinas, saindo do nada e indo para o nada, conversando entre si e tentando lembrar quem foram em vida. Bem acima de nós, o teto da caverna cintilava ameaçadoramente.

Eu carregava o craveiro, o que me fez sentir bem estúpido. Nico nos guiava, já que sua lâmina podia abrir caminho através de qualquer grupo de mortos-vivos. Thalia basicamente resmungava que ela deveria ter sido mais esperta em vez de sair em uma missão com dois garotos.

— Perséfone não pareceu meio tensa? — perguntei.

Nico atravessou um bando de fantasmas, afastando-os com a lâmina de ferro estígio.

— Ela sempre age assim quando estou por perto. Ela me odeia.

— Então por que ela o incluiu na missão?

— Provavelmente foi ideia do meu pai.

Pareceu que ele queria que aquilo fosse verdade, mas eu não tinha tanta certeza.

Era estranho para mim o fato de que não fora o próprio Hades quem nos designara a missão. Se essa espada era tão importante para ele, por que deixou que Perséfone explicasse as coisas? Geralmente, Hades gostava de ameaçar semideuses pessoalmente.

Nico seguiu em frente. Não importava quão cheios os campos estivessem — e se você já viu a Times Square na noite de Ano-Novo, sabe do que estou falando —, os espíritos abriam caminho diante dele.

— Ele sabe lidar com multidões de zumbis — admitiu Thalia. — Acho que vou levá-lo comigo da próxima vez que eu for ao shopping.

Ela segurou firme seu arco, como se estivesse com medo que ele se transformasse em um ramo de madressilvas de novo. Thalia não parecia mais velha que no ano anterior, e de repente me ocorreu que ela nunca envelheceria, agora que era uma caçadora. E isso queria dizer que eu era mais velho que ela. Esquisito.

— Então — comecei —, como a imortalidade está tratando você?

Ela revirou os olhos.

— Não é imortalidade total, Percy. Você sabe disso. Nós ainda podemos morrer em combate. É que... nós nunca envelhecemos ou ficamos doentes, então vivemos para sempre, contanto que nenhum monstro nos faça em pedaços.

— Isso é sempre um perigo.

— Sempre.

Ela olhava em volta, percebi que observava atentamente os rostos dos mortos.

— Se você está procurando Bianca — falei rápido para que Nico não me ouvisse —, ela deve estar nos Campos Elíseos. Ela teve uma morte de herói.

— Eu sei — respondeu ela, rispidamente. Então se recompôs. — Não é isso, Percy. Eu só estava... esqueça.

Fui tomado por um calafrio. Lembrei que a mãe de Thalia morrera numa batida de carro alguns anos atrás. Elas nunca haviam sido próximas, mas Thalia não teve a chance de se despedir. A sombra de sua mãe poderia estar vagando por ali... Era natural que Thalia parecesse exaltada.

— Desculpe — disse eu. — Não me toquei.

Nossos olhos se encontraram e eu senti que ela compreendeu. Sua expressão suavizou.

— Tudo bem. Vamos acabar logo com isso.

Outra pétala caiu do cravo enquanto caminhávamos. Não fiquei feliz quando a flor nos indicou a direção dos Campos da Punição. Eu tinha esperanças de que pudéssemos ser conduzidos para os Campos Elíseos para estar com pessoas bonitas e festejar, mas não. A flor parecia gostar da parte mais difícil e cruel do Mundo Inferior. Pulamos um córrego de lava e seguimos caminho por entre horríveis cenas de tortura. Não vou descrevê-las porque você perderia completamente o apetite, mas eu gostaria de estar com algodão nos ouvidos para bloquear os gritos e a música dos anos 1980.

O craveiro se inclinou para uma colina à nossa esquerda.

— Lá em cima — disse eu.

Thalia e Nico pararam. Eles estavam cobertos de fuligem por caminhar pelos Campos da Punição. Acho que eu não estava muito melhor.

Um som alto e opressor vinha do outro lado da colina, como se alguém puxasse uma máquina de lavar. Então, a colina foi sacudida por um BOOM! BOOM! BOOM! e um homem xingou.

Thalia olhou para Nico.

— Esse não é quem eu estou pensando que é, é?

— Acho que sim — respondeu Nico. — O maior especialista em enganar a morte.

Antes que eu pudesse perguntar o que Nico queria dizer, ele nos levou até o topo da colina.

O cara do outro lado não era bonito, e não estava feliz. Parecia um daqueles bonecos de troll com a pele laranja, barrigão, braços e pernas mirrados e com um tipo de tanga-fralda envolta na cintura. Seus cabelos de rato estavam eriçados para o alto como uma tocha. Ele pulava de um lado para o outro, xingando e chutando uma pedra duas vezes maior que ele.

— Não vou! — berrava. — Não, não, não!

Então, ele lançou uma sequência de pragas em várias línguas diferentes. Se eu tivesse um daqueles potes em que você coloca uma moeda para cada palavrão, teria feito uns quinhentos dólares.

Ele começou a se afastar da pedra, mas, depois de dez passos, deu uma guinada, como se uma força invisível o puxasse. Cambaleou de volta e começou a bater com a cabeça na pedra.

— Tudo bem! — gritou. — Tudo bem, maldito seja.

Ele coçou a cabeça e resmungou mais alguns palavrões.

— Mas esta é a última vez. Você está me ouvindo?

Nico olhou para nós.

— Vamos. Enquanto ele não tenta de novo.

Nós descemos a colina.

— Sísifo! — chamou Nico.

O cara de troll levantou os olhos, surpreso. Depois, arrastou-se para trás da pedra.

— Ah, não! Vocês não vão me fazer de idiota com esses disfarces. Eu sei que vocês são as Fúrias!

— Não somos as Fúrias — retruquei. — Só queremos conversar.

— Vão embora — gritou ele. — Flores não melhoram a situação. É muito tarde para se desculpar!

— Veja — começou Thalia —, nós queremos apenas...

— Lá, lá, lá! — berrou ele. — Não estou escutando!

Brincamos de pega-pega com ele em torno da pedra até que finalmente Thalia, a mais rápida, agarrou o velho pelos cabelos.

— Parem — choramingou ele. — Eu tenho pedras para empurrar. Pedras para empurrar!

— Eu empurro sua pedra! — ofereceu-se Thalia. — Apenas cale-se e fale com meus amigos.

Sísifo parou de resistir.

— Você vai... vai empurrar minha pedra?

— É melhor que ficar olhando para você. — Thalia me olhou. — Seja rápido com isso. — Então conduziu Sísifo até nós.

Ela apoiou os ombros contra a pedra e começou a empurrá-la bem devagar colina acima.

Sísifo fez cara feia para mim, desconfiado. Ele beliscou meu nariz.

— Ei! — disse eu.

— Então você realmente não é uma Fúria — concluiu, maravilhado. — Para que a flor?

— Procuramos uma pessoa — respondi. — A planta está nos ajudando a encontrá-la.

— Perséfone! — Ele cuspiu na poeira. — Esse é um dos seus artifícios de busca, não é? — Ele se inclinou para a frente e senti um bafo desagradável de velho-que-está-rolando-uma-pedra-por-uma-eternidade. — Eu a fiz de boba uma vez, sabe. Eu fiz todos eles de bobos.

Olhei para Nico.

— Tradução?

— Sísifo enganou a morte — explicou Nico. — Primeiro ele acorrentou Tânatos, o ceifador de almas, para que ninguém pudesse morrer. Então, quando Tânatos se libertou e estava prestes a matá-lo, Sísifo disse à esposa que fizesse um funeral com os rituais errados, para que ele nunca descansasse em paz. Nosso Sissi... posso chamá-lo de Sissi?

— Não!

— Sissi enganou Perséfone, induzindo-a a deixá-lo voltar para o mundo a fim de perseguir a esposa. E ele não retornou para cá.

O velho gargalhou.

— Continuei vivo outros trinta anos antes que eles finalmente viessem atrás de mim!

Thalia estava na metade do caminho agora. Ela cerrava os dentes, empurrando a pedra com as costas. Sua expressão dizia: Apressem-se!

— Então essa foi a sua punição — eu disse a Sísifo. — Rolar uma pedra até o alto da colina para sempre. Valeu a pena?

— Um retrocesso temporário! — gritou ele. — Eu vou sair daqui em breve. E, quando eu sair, todos lamentarão!

— Como você vai sair do Mundo Inferior? — perguntou Nico. — Está trancado, você sabe disso.

Sísifo forçou um sorriso fraco.

— Isso foi o que o outro perguntou.

Meu estômago revirou.

— Alguém mais pediu sua opinião?

— Um jovem irritado — Sísifo relembrou. — Não muito educado. Colocou uma espada na minha garganta. Não se ofereceu para rolar minha pedra nem nada.

— O que você disse a ele? — quis saber Nico. — Quem ele era?

Sísifo massageou os ombros. Ele olhou de relance para Thalia, que estava quase no topo da colina. O rosto dela estava vermelho e encharcado de suor.

— Ah... é difícil dizer — Sísifo respondeu. — Nunca o vi antes. Ele carregava um pacote longo todo embrulhado em tecido preto. Esquis, talvez? Uma pá? Quem sabe se vocês esperarem aqui eu possa ir procurá-lo...

— O que você disse a ele? — perguntei.

— Não lembro.

Nico desembainhou sua espada. O ferro estígio era tão frio que produziu vapor no ar quente e seco dos Campos da Punição.

— Faça um esforço.

O velho estremeceu.

— Mas que tipo de pessoa carrega uma espada como essa?

— Um filho de Hades — disse Nico. — Agora me responda!

Sísifo ficou pálido.

— Eu disse a ele que falasse com Melinoe! Ela sempre tem uma saída!

Nico baixou sua espada. Acho que o nome Melinoe o incomodou.

— Você está maluco? — devolveu ele. — Isso é suicídio!

O velho deu de ombros.

— Já enganei a morte antes. Posso fazer isso de novo.

— Como era esse semideus?

— Hum... ele tinha um nariz — disse Sísifo. — Uma boca. E um olho e...

— Um olho? — interrompi. — Ele usava tapa-olho?

— Ah... talvez — respondeu ele. — Tinha cabelos na cabeça. E... — Ele arfou e olhou por cima do meu ombro. — Lá está ele!

Nós caímos nessa.

Assim que nos viramos, Sísifo escapou colina abaixo.

— Estou livre! Estou livre! Estou... ARGH!

A três metros da colina, sua corrente invisível estendeu-se ao máximo e ele caiu de costas. Eu e Nico agarramos seus braços e o rebocamos de volta.

— Malditos sejam! — Ele soltou xingamentos em grego antigo, latim, inglês, francês e muitas outras línguas que eu não reconheci. — Nunca vou ajudá-los! Vão para o Hades!

— Já estamos nele — resmungou Nico.

— Chegando! — Thalia berrou.

Levantei os olhos e devo ter falado alguns palavrões. A pedra descia a encosta, bem na nossa direção. Nico pulou para um lado. Eu pulei para outro. Sísifo gritou NÃÃÃÃÃÃÃO! enquanto a coisa fazia o caminho até ele. De alguma forma, tomou coragem e parou a pedra antes que ela passasse por cima dele. Acho que tinha bastante prática.

— Pegue-a de novo — bradou ele. — Por favor. Não posso aguentar isso.

— De novo não — ofegou Thalia. — Agora é com você.

Ele nos tratou com uma linguagem bem pior. Estava claro que não ia nos ajudar mais, então o deixamos com sua punição.

— A caverna de Melinoe é por aqui — disse Nico.

— Se esse tal ladrão realmente tem um olho só — ponderei —, pode ser Ethan Nakamura, filho de Nêmesis. Foi ele quem libertou Cronos.

— Eu lembro — disse Nico, sombrio. — Mas se vamos lidar com Melinoe, temos grandes problemas. Vamos.

Enquanto nos afastávamos, Sísifo gritava.

— Tudo bem, mas essa é a última vez. Estão me ouvindo? A última vez!

Thalia tremeu.

— Você está bem? — perguntei a ela.

— Acho que... — hesitou ela. — Percy, o assustador é que, quando cheguei ao topo, achei que tinha acabado. Pensei: “Isso não é tão difícil. Posso fazer a pedra ficar.” E quando ela rolou de volta, eu quase me entusiasmei a tentar de novo. Achei que pudesse conseguir numa segunda vez.

Ela olhou para trás melancolicamente.

— Vamos — disse eu. — Quanto mais cedo sairmos daqui, melhor.

Caminhamos pelo que pareceu uma eternidade. Mais três pétalas do cravo murcharam, o que significava que metade dele estava oficialmente morta. A flor nos conduziu para uma extensão de colinas cinza e irregulares, semelhantes a dentes. Então caminhamos naquela direção, por uma planície de rochas vulcânicas.

— Belo dia para ficar à toa — resmungou Thalia. — Provavelmente, as Caçadoras estão se banqueteando em alguma clareira numa floresta exatamente neste instante.

Imaginei o que minha família estaria fazendo. Minha mãe e meu padrasto, Paul, ficariam preocupados quando eu não chegasse da escola, mas não era a primeira vez que isso acontecia. Eles concluiriam rapidamente que eu estaria em alguma missão. Minha mãe andaria de um lado para o outro na sala, pensando se eu conseguiria voltar para abrir meus presentes.

— Então, quem é essa Melinoe? — perguntei, tentando desviar meu pensamento de casa.

— Longa história — respondeu Nico. — Longa e muito assustadora história.

Eu quase perguntei o que ele queria dizer quando Thalia se agachou.

— Armas!

Desembainhei Contracorrente. Tenho certeza de que eu parecia aterrorizante com um vaso de cravo na outra mão, então o coloquei no chão. Nico desembainhou a espada.

Ficamos de costas um para o outro. Thalia preparou uma flecha.

— O que foi? — sussurrei.

Ela parecia estar ouvindo algo. Então seus olhos se arregalaram. Um círculo de uma dúzia de daímones materializou-se em torno de nós.

Tinham o corpo parte de mulher, parte de morcego. Suas caras eram achatadas e raivosas, possuíam caninos e olhos salientes. Pelo cinza desbotado e uma armadura fragmentada cobriam seus corpos. Tinham braços encolhidos com garras em vez de mãos, asas de couro cresciam das costas e as pernas eram curtas, grossas e arqueadas. Elas seriam engraçadas, não fosse o brilho assassino dos olhos.

— Queres — informou Nico.

— O quê? — perguntei.

— Espíritos do campo de batalha. Elas se alimentam da morte violenta.

— Ah, maravilha — disse Thalia.

— Afastem-se! — ordenou Nico às daímones. — O filho de Hades está mandando.

As Queres sibilaram. As bocas espumavam. Elas olharam para nossas armas, apreensivas, mas senti que não ficaram muito impressionadas com a ordem de Nico.

— Em breve Hades será derrotado — uma delas rangeu os dentes. — Nosso novo mestre nos dará um reino livre!

Nico piscou.

— Novo mestre?

A daímon líder deu o bote. Nico estava tão surpreso que ela poderia tê-lo feito em pedaços, mas Thalia atirou uma flecha à queima-roupa na cara feia de morcego da criatura, e ela se desintegrou.

O restante delas avançou. Thalia deixou o arco de lado e desembainhou as facas. Eu me esquivei enquanto a espada de Nico zuniu por cima da minha cabeça, cortando uma das criaturas pela metade. Eu cortava e golpeava e três ou quatro delas explodiram à minha volta, mas outras continuavam a aparecer.

— Iápeto vai amaldiçoá-los! — uma gritou.

— Quem? — perguntei, mas então eu a atravessei com minha espada.

Anote aí: se você acabar com um monstro, ele não poderá responder a suas perguntas.

Nico também desenhava arcos com sua espada, golpeando as Queres. A lâmina absorvia a essência delas como um aspirador a vácuo, e quanto mais ele as destruía, mais frio o ar ficava ao redor. Thalia golpeou as costas de uma daímon, atravessando-a com uma de suas facas, e com a outra espetou um segundo monstro sem ao menos virar-se para trás.

— Morra sofrendo, mortal!

Antes que eu pudesse levantar minha espada para me defender, as garras de uma daímon rasparam em meu ombro. Se eu estivesse usando uma armadura, tudo bem, mas ainda estava com meu uniforme da escola. As garras da coisa abriram um corte na minha camisa e rasgaram minha pele. Todo o meu lado esquerdo pareceu explodir em dor.

Nico chutou o monstro para longe e o apunhalou. Tudo o que pude fazer foi cair e me encolher, tentado resistir à terrível queimação.

O som de batalha se extinguiu. Thalia e Nico correram para o meu lado.

— Aguente firme, Percy — Thalia pediu. — Você vai ficar bem.

Mas a falha em sua voz me dizia que o ferimento era grave. Nico o tocou e eu berrei de dor.

— Néctar — disse ele. — Estou colocando néctar sobre a ferida.

Nico tirou a rolha do frasco com a bebida dos deuses e pingou um pouco pelo meu ombro. Isso era perigoso, pois apenas um gole do líquido é quase tudo o que um semideus pode suportar. Mas, imediatamente, a dor aliviou. Juntos, Nico e Thalia fizeram um curativo na ferida, e eu desmaiei somente algumas vezes.

Eu não podia saber quanto tempo se passara, mas a última coisa de que me lembro é de estar apoiado com as costas em uma rocha. Meu ombro estava enfaixado. Thalia me alimentava com pequeninos pedaços de ambrosia sabor chocolate.

— As Queres? — murmurei.

— Foram embora, por enquanto — respondeu ela. — Por um instante, você me deixou preocupada, Percy, mas acho que vai resistir.

Nico se agachou perto de nós. Ele segurava o craveiro. A flor só tinha mais cinco pétalas.

— As Queres vão voltar — alertou. Ele olhava para o meu ombro com preocupação. — Esse ferimento... as Queres são espíritos da doença e da peste, assim como da violência. Nós podemos retardar a infecção, mas em algum momento você precisará de sérios cuidados. Quer dizer, do poder divino. Ou então...

Ele não completou o pensamento.

— Eu vou ficar bem.

Tentei me sentar e imediatamente me senti enjoado.

— Devagar — disse Thalia. — Você precisa descansar para poder se mexer depois.

— Não há tempo. — Olhei para o craveiro. — Uma das daímones mencionou Iápeto. É isso mesmo ou minha memória está falhando? Ele é um titã?

Thalia assentiu, desconfortável.

— O irmão de Cronos, pai de Atlas. Ele era conhecido como o titã do oeste. Seu nome significa “o Perfurador”, porque é isso que ele gosta de fazer com seus inimigos. Foi lançado ao Tártaro com os irmãos. Ainda deveria estar lá.

— Mas e se a espada de Hades puder destrancar morte? — perguntei.

— Então talvez — continuou Nico — ela também possa evocar os condenados para fora do Tártaro. Nós não podemos deixá-los tentar isso.

— Ainda não sabemos quem eles são — lembrou Thalia.

— O meio-sangue que trabalha para Cronos — disse eu. — Possivelmente, Ethan Nakamura. E ele está começando a recrutar alguns aliados de Hades para o seu lado, como as Queres. As daímones acham que, se Cronos vencer a guerra, eles terão caos e maldade além do combinado.

— E provavelmente estão certos — disse Nico. — Meu pai tenta manter o equilíbrio. Ele reina sobre os espíritos mais violentos. Se Cronos escalar um de seus irmãos para ser o senhor do Mundo Inferior...

— Como esse Iápeto — completei.

— ...então o Mundo Inferior vai ficar bem pior — continuou Nico. — As Queres gostariam disso. E Melinoe também.

— Você ainda não nos disse quem é Melinoe.

Nico mordeu o lábio.

— É a deusa dos fantasmas... uma das servas do meu pai. Ela controla os mortos que vagam sem descanso pela Terra. Todas as noites ela ascende do Mundo Inferior para aterrorizar mortais.

— Ela tem seu próprio caminho para o mundo, lá em cima?

Nico assentiu.

— Duvido que possa ter sido bloqueado. Normalmente, ninguém nunca pensaria em atravessar sua caverna. Mas se esse semideus for corajoso o suficiente para fazer um acordo com ela...

— Ele poderá voltar ao mundo — emendou Thalia — e levar a espada a Cronos.

— Que a usaria para tirar seus irmãos do Tártaro. E nós teríamos um grande problema — concluí.

Tentei ficar em pé. Uma onda de enjoo quase me fez desmaiar, mas Thalia me amparou.

— Percy — começou ela —, você não está em condições...

— Tenho de estar. — Observei enquanto mais uma pétala murchava e caía do cravo. Faltavam quatro para o fim dos dias. — Me dê a planta. Temos de encontrar a caverna de Melinoe.

Enquanto caminhávamos tentei pensar em coisas positivas: meus jogadores de basquete favoritos, minha última conversa com Annabeth, o que minha mãe faria para o jantar de Natal — qualquer coisa menos a dor. Mesmo assim, eu sentia como se um tigre-dentes-de-sabre estivesse mastigando meu ombro. Eu não ia ser muito útil numa luta, e me amaldiçoava por ter baixado a guarda. Nunca deveria ter sido ferido. Agora Thalia e Nico teriam de rebocar meu traseiro inútil pelo restante da missão.

Eu estava tão ocupado me lamentando que não notei o som de água em movimento até Nico dizer “Oh-oh”.

Cerca de quinze metros à nossa frente, um rio escuro corria com violência por uma garganta de rocha vulcânica. Eu já tinha visto o Estige, e este não parecia o mesmo rio. Era estreito, a correnteza, veloz. A água era negra como nanquim. Até a fumaça produzida era negra. A margem oposta mais distante estava apenas a nove metros, muito longe para saltarmos, e não havia ponte.

— O Rio Lete — Nico amaldiçoou em grego antigo. — Nunca vamos atravessá-lo.

A flor apontava para o outro lado: na direção de uma montanha obscura e de um caminho para a caverna. Além da montanha, os muros do Mundo Inferior assomavam como um céu de granito negro. Eu não imaginara que o Mundo Inferior pudesse ter uma fronteira, mas era o que aqueles muros pareciam ser.

— Tem de haver um meio de atravessá-lo — falei.

Thalia se ajoelhou próximo à margem.

— Cuidado! — alertou Nico. — Esse é o Rio do Esquecimento. Se uma gota da água respingar, você começará a esquecer quem é.

Thalia recuou.

— Conheço esse lugar. Luke me falou dele uma vez. As almas vêm aqui quando escolhem renascer, para esquecer totalmente suas vidas anteriores.

Nico assentiu.

— Nade nessa água e sua mente será apagada. Você será como um bebê recém-nascido.

Thalia estudou a margem oposta.

— Eu poderia atirar uma flecha para o outro lado, talvez ancorar uma corda em uma daquelas pedras.

— Você quer confiar seu peso a uma corda que não está amarrada? — perguntou Nico.

Thalia levantou as sobrancelhas.

— Tem razão. Funciona nos filmes, mas... não. Você pode evocar alguns mortos para nos ajudarem?

— Eu poderia, mas eles só apareceriam no meu lado do rio. Água corrente age como uma barreira para os mortos. Eles não podem atravessá-la.

Eu me encolhi.

— Que tipo de regra idiota é essa?

— Ei, eu não inventei isso. — Ele estudou meu rosto. — Você está horrível, Percy. Deveria se sentar.

— Não posso. Vocês precisam de mim para isso.

— Para quê? — perguntou Thalia. — Você mal consegue ficar em pé.

— É água, não é? Vou ter de controlá-la. Talvez eu possa mudar seu curso tempo suficiente para que a gente consiga atravessar.

— Nas suas condições? — disse Nico. — De jeito nenhum. Eu me sentiria mais seguro com a ideia da flecha.

Cambaleei até a beira do rio.

Eu não sabia se conseguiria fazer aquilo. Eu era filho de Poseidon, então controlar água salgada não era problema. Rios comuns... talvez, se os espíritos do rio quisessem cooperar. Mas rios mágicos do Mundo Inferior? Eu não tinha ideia.

— Afastem-se — pedi.

Eu me concentrei na correnteza: a barulhenta água negra que passava com velocidade. Eu a imaginei como parte do meu corpo. Poderia controlar o fluxo, fazê-lo atender à minha vontade.

Não tinha certeza, mas achei que a água batia e borbulhava com mais violência, como se pudesse sentir minha presença. Eu sabia que não conseguiria parar todo o rio de uma só vez. A água represada inundaria o vale todo, explodindo em nossa direção assim que eu a liberasse. Mas havia outra solução.

— Isso não vai ser fácil — murmurei.

Ergui meus braços como se levantasse alguma coisa acima da minha cabeça. Meu ombro ferido queimou como lava, mas tentei ignorá-lo.

O rio se ergueu. A correnteza elevando-se das margens formava um grande arco. Era um barulhento arco de água negra de seis metros de altura. O leito do rio à nossa frente se tornou lodo seco, um túnel no meio da água apenas largo o suficiente para duas pessoas caminharem lado a lado.

Thalia e Nico me encararam maravilhados.

— Vão. Não vou conseguir sustentar isso por muito tempo.

Pontos amarelos dançavam em frente aos meus olhos. Meu ombro ferido quase gritava de dor. Thalia e Nico caminharam com dificuldade para o leito do rio e seguiram em frente pelo lodo pegajoso.

Nem uma única gota. Não posso deixar que nem uma única gota d’água respingue neles.

O Rio Lete lutou comigo. Ele não queria ser arrancado de suas margens. Queria despencar sobre meus amigos, apagar suas mentes e afogá-los. Mas sustentei o arco.

Thalia, do outro lado, subiu para a margem e se voltou para ajudar Nico.

— Venha, Percy! — chamou ela. — Ande!

Meus joelhos vibravam. Meus braços tremiam. Dei um passo à frente e quase caí. O arco de água estremeceu.

— Não posso! — gritei de volta.

— Sim, você pode! — retrucou ela. — Nós precisamos de você!

De alguma forma, consegui descer para o leito do rio. Um passo, depois outro. Acima, a água. Minhas botas chapinhavam no lodo.

Na metade do caminho, eu tropecei. Ouvi Thalia gritar “Não!”. E perdi minha concentração.

Enquanto o Rio Lete desabava sobre mim, tive tempo para um último e desesperado pensamento: Seco.

Ouvi o bramido e senti o impacto de toneladas de água à medida que o rio retomava seu curso natural. Mas...

Abri os olhos. Eu estava envolto em escuridão, mas continuava completamente seco. Uma camada de ar me cobria como uma segunda pele, protegendo-me da água. Eu me esforcei para ficar de pé. Mesmo esse pequeno esforço para ficar seco — algo que já fiz muitas vezes em águas normais — foi quase mais do que eu podia aguentar. Avancei com dificuldade pela correnteza negra, cego e duas vezes mais dolorido.

Subi para a margem do Lete, surpreendendo Thalia e Nico, que pularam um bom metro para trás. Cambaleei para a frente, caí diante de meus amigos e desmaiei, gelado.

O gosto do néctar me fez despertar. Meu ombro parecia melhor, mas havia um zumbido desconfortável em meus ouvidos. Meus olhos ardiam como se eu estivesse com febre.

— Não podemos arriscar com mais néctar — Thalia dizia. — Ele vai explodir em chamas.

— Percy — chamou Nico. — Você pode me ouvir?

— Chamas — murmurei. — Entendi.

Eu me sentei devagar. Meu ombro tinha novas bandagens. Ainda doía, mas eu podia ficar de pé.

— Estamos perto — disse Nico. — Você consegue andar?

A montanha assomava acima de nós. Uma trilha de poeira se insinuava por uns trinta metros até a entrada de uma caverna. O caminho era pavimentado com ossos humanos, para dar um clima aconchegante.

— Estou pronto — disse eu.

— Não gosto disso — resmungou Thalia.

Ela segurava com cuidado o craveiro, que apontava na direção da caverna. A flor tinha agora duas pétalas, como se fossem duas tristes orelhas de coelho.

— Uma caverna assustadora — comentei. — A deusa dos fantasmas. Dá para piorar?

Em uma espécie de resposta, o som de um assobio ecoou da montanha. Uma névoa branca veio da caverna, como se alguém tivesse ligado uma máquina de gelo seco.

Na neblina, uma imagem apareceu: uma mulher alta com cabelos louros e desgrenhados. Ela vestia um roupão de banho e tinha uma taça de vinho na mão. Seu rosto era severo e desaprovador. Eu podia enxergar através dela, então sabia que era algum tipo de espírito, mas sua voz soava bastante real.

— Agora você volta — rosnou ela. — Bom, é tarde demais!

Olhei para Nico.

— Melinoe? — sussurrei.

Ele não respondeu. Estava estático, encarando o espírito.

Thalia baixou o arco.

— Mãe? — Seus olhos se encheram de água. De repente, ela parecia ter uns sete anos.

O espírito jogou no chão a taça de vinho, que se estilhaçou e desapareceu na neblina.

— Isso mesmo, menina. Condenada a vagar pela Terra, e isso é culpa sua! Onde você estava quando eu morri? Por que fugiu quando precisei de você?

— Eu... eu...

— Thalia — chamei —, ela é apenas um fantasma. Não pode machucar você.

— Sou mais que isso — rosnou o espírito. — Thalia sabe.

— Mas... você me abandonou — Thalia argumentou.

— Menina desprezível! Fugitiva ingrata!

— Pare! — Nico deu um passo à frente com a espada desembainhada, mas o espírito mudou de forma e o encarou.

Este fantasma era mais difícil de enxergar. Era uma mulher em um vestido de veludo negro fora de moda, com um chapéu combinando. Usava colar de pérolas e luvas brancas, e seus cabelos escuros estavam presos para trás.

Nico parou onde estava.

— Não...

— Meu filho — disse o fantasma. — Morri quando você era tão pequeno. Eu assombro o mundo com pesar, pensando em você e em sua irmã.

— Mamãe?

— Não, é minha mãe — murmurou Thalia, como se ela ainda visse a primeira imagem.

Meus amigos estavam indefesos. A neblina começou a ficar espessa em volta de seus pés, enrolando-se em suas pernas como se fosse uma videira. As cores pareciam sumir de suas roupas e do rosto, como se eles também virassem sombras.

— Chega — disse eu, mas minha voz mal saiu. Apesar da dor, levantei minha espada e andei em direção ao fantasma. — Você não é mãe de ninguém!

O fantasma se virou para mim. A imagem tremeluziu e eu vi a deusa em sua verdadeira forma.

Você poderia pensar que depois de algum tempo eu não fosse mais me apavorar com a aparência dos monstros gregos, mas Melinoe me pegou de surpresa. Sua metade direita era pálida, da cor do giz branco, como se tivessem drenado todo o seu sangue. A metade esquerda era negra como piche e sem vida, parecia uma pele de múmia. Ela usava vestido e véu dourados. Seus olhos eram órbitas negras, vazias, e quando eu olhei lá dentro tive a sensação de ver minha própria morte.

— Onde estão seus fantasmas? — quis saber ela, irritada.

— Meus... eu não sei. Não tenho nenhum.

Ela reclamou.

— Todo o mundo tem fantasmas... Mortes que você lamenta. Culpa. Medo. Por que não consigo ver os seus?

Thalia e Nico ainda estavam hipnotizados, encarando a deusa como se ela fosse a mãe que há muito eles perderam. Pensei em outros amigos que eu tinha visto morrer: Bianca di Angelo, Zoë Doce-Amarga, Lee Fletcher, para citar alguns.

— Estou em paz com eles — respondi. — Fizeram a passagem. Não são fantasmas. Agora, liberte meus amigos!

Ataquei Melinoe com minha espada. Ela se afastou rápido, rosnando de frustração. A neblina ao redor de Thalia e Nico se dissipou. Eles olhavam para a deusa e piscavam como se só agora vissem quanto ela era medonha.

— O que é isso? — Thalia quis saber. — Onde...

— Era um truque — Nico respondeu. — Ela nos enganou.

Vocês estão muito atrasados, semideuses — informou Melinoe. Outra pétala caiu do craveiro, restando apenas uma. — O acordo foi feito.

— Que acordo? — perguntei.

Melinoe sibilou e eu entendi que essa era a sua maneira de rir.

— São tantos fantasmas, meu jovem semideus. Eles desejam ser livres. Quando Cronos comandar o mundo, estarei livre para andar entre os mortais durante o dia e a noite, semeando o terror como eles merecem.

— Onde está a espada de Hades? — insisti. — Onde está Ethan?

— Perto daqui — assegurou ela. — Não deterei vocês. Não será preciso. Em breve, Percy Jackson, você terá muitos fantasmas. E se lembrará de mim.

Thalia armou uma flecha e mirou na deusa.

— Se você abrir uma passagem para o mundo, acha mesmo que Cronos vai recompensá-la? Ele vai lançá-la no Tártaro com o restante dos servos de Hades.

Melinoe mostrou os dentes.

— Sua mãe estava certa, Thalia. Você é uma menina cheia de raiva. Boa em fugir. Nada além disso.

A flecha voou, mas, assim que tocou em Melinoe, dissolveu-se em neblina, deixando para trás apenas o silvo de sua risada. A flecha atingiu as rochas e se partiu, inofensiva.

— Fantasma idiota — resmungou Thalia.

Eu podia jurar que ela estava realmente abalada. Os olhos pareciam avermelhados. As mãos tremiam. Nico também estava impressionado, como se tivesse sofrido uma grande desilusão.

— O ladrão... — ele conseguiu dizer. — Provavelmente está na caverna. Precisamos detê-lo antes que...

Naquele instante, a última pétala do cravo caiu. A flor ficou preta e murcha.

— Tarde demais — disse eu.

Uma gargalhada masculina ecoou da montanha.

— Está certo quanto a isso — rugiu a voz.

Na boca da caverna estavam duas pessoas: um garoto com tapa-olho e um homem de três metros vestido com um esfarrapado macacão de prisioneiro. O garoto eu reconheci: era Ethan Nakamura, filho de Nêmesis. Tinha nas mãos uma espada inacabada, uma lâmina dupla de ferro estígio negro com desenhos de esqueletos gravados em prata. Ela não tinha guarda, mas na base da lâmina havia uma chave dourada, exatamente como a que eu vira na imagem de Perséfone.

O homem gigante ao lado dele tinha olhos inteiramente prateados. Seu rosto era coberto por uma barba falhada e seus cabelos grisalhos eram completamente bagunçados. Ele parecia magro e cansado em suas roupas rasgadas, como se tivesse passado os últimos milênios no fundo de um abismo, e mesmo nesse estado debilitado parecia bastante assustador. Ele estendeu a mão e uma lança gigante apareceu. Lembrei o que Thalia dissera sobre Iápeto: Seu nome significa “o Perfurador” porque é isso que ele gosta de fazer com os inimigos.

O titã sorriu cruelmente.

— E agora vou destruir vocês.

— Mestre! — interrompeu Ethan. Ele estava vestido com uniforme de combate e tinha uma mochila pendurada nas costas. Seu tapa-olho estava torto, e o rosto, sujo de ferrugem e suor. — Nós temos a espada. Devíamos...

— Sim, sim — o titã retrucou, impaciente. — Você se saiu bem, Nawaka.

— É Nakamura, mestre.

— Que seja. Tenho certeza de que meu irmão Cronos vai recompensá-lo. Mas agora temos uma matança para cumprir.

— Meu senhor — insistiu Ethan. — Seu poder não está completamente restabelecido. Devemos subir e convocar seus irmãos do mundo lá em cima. As ordens eram para fugirmos.

O titã virou-se para ele.

— FUGIR? Você disse FUGIR?

O chão retumbou. Ethan despencou sentado e arrastou-se para trás. A espada inacabada de Hades caiu sobre as pedras.

— M-m-mestre, por favor...

— IÁPETO NÃO FOGE! Esperei três eras para ser evocado do abismo. Eu quero vingança, e vou começar matando esses fracotes.

Ele apontou a lança para mim e atacou.

Se estivesse no auge da força, não tenho dúvidas de que teria me perfurado em cheio. Mesmo fraco e tendo acabado de sair do abismo, o cara era rápido. Ele se moveu como um tornado e atacou tão rapidamente que mal tive tempo de me esquivar antes que a lança se cravasse na pedra onde eu estava.

Eu me sentia muito tonto e mal podia segurar minha espada. Iápeto arrancou a lança do chão, mas quando se virou para mim, Thalia encheu seu flanco de flechas, do ombro ao joelho. Ele rugiu e se virou para ela, parecia mais irado que machucado. Ethan Nakamura tentou desembainhar sua espada, mas Nico gritou: “Melhor não.”

O chão se abriu diante de Ethan. Três esqueletos em armaduras emergiram e o atacaram, empurrando-o para trás. A espada de Hades continuava repousada nas pedras. Se eu pudesse só chegar até ela...

Iápeto golpeou com sua lança e Thalia se esquivou. Ela deixou cair o arco para desembainhar suas facas, mas não resistiria muito no combate corpo a corpo.

Nico deixou Ethan para os esqueletos e avançou na direção de Iápeto. Eu já estava à frente dele. Parecia que meu ombro ia explodir, mas me lancei contra o titã e, com um golpe de cima para baixo, cravei a lâmina de Contracorrente em sua panturrilha.

— AHHHHRRRR!

Icor dourado jorrou da ferida. Iápeto girou e o cabo de sua lança me atingiu, me atirando longe.

Eu bati contra as pedras, bem ao lado do Rio Lete.

— VOCÊ MORRE PRIMEIRO! — Iápeto berrou enquanto mancava na minha direção. Thalia tentou chamar a atenção dele atingindo-o com um arco elétrico produzido por suas facas, mas isso também deve ter surtido o efeito de uma picada de mosquito. Nico desferiu um golpe com sua espada, mas Iápeto o atirou para o lado sem nem olhar. — Vou matar vocês todos! Depois lançarei suas almas na escuridão eterna do Tártaro!

Eu estava vendo estrelas. Mal conseguia me mexer. Dois centímetros mais, e teria mergulhado de cabeça no rio.

O rio.

Engoli em seco, torcendo para que minha voz ainda tivesse força.

— Você é... você é ainda mais feio que seu filho — provoquei o titã. — Posso ver de quem Atlas herdou sua estupidez.

Iápeto rangeu os dentes. Ele avançou mancando, sua lança erguida.

Eu não sabia se teria forças, mas precisava tentar. Iápeto baixou a lança e esquivei-me para o lado. A ponta fincou-se no chão, bem próximo a mim. Eu me estiquei e agarrei a gola de sua camisa, contando com o fato de que ele estava ferido e sem equilíbrio. Ele tentou manter-se de pé, mas eu o puxei para a frente com todo o peso do meu corpo. Ele cambaleou e caiu, agarrado a meus braços, em pânico, e juntos mergulhamos no Lete.

BLOOOOOM! Eu estava imerso em água negra.

Rezei a Poseidon que minha proteção não se desfizesse, e, enquanto afundava, percebi que ainda estava seco. Eu sabia meu nome. E ainda segurava o titã pela gola da camisa.

A corrente deveria tê-lo feito escapar de minhas mãos, mas, de algum modo, o rio formava um canal à minha volta, deixando-nos em paz.

Com o pouco de força que me restava, subi para a beira do rio, puxando Iápeto com meu braço bom. Nós tombamos na margem — eu perfeitamente seco e o titã pingando. Seus olhos inteiramente prateados estavam grandes feito a lua.

Thalia e Nico me observavam maravilhados. Lá na caverna, Ethan Nakamura derrubava o último esqueleto. Ele se virou e ficou paralisado ao ver seu aliado titã caído de braços abertos no chão.

— Meu... meu senhor? — chamou ele.

Iápeto se sentou e fixou o olhar em Ethan. Então, olhou para mim e sorriu.

— Oi — disse ele. — Quem sou eu?

— Você é meu amigo — soltei. — Você é o... Bob.

Isso pareceu agradá-lo bastante.

— Eu sou o seu amigo Bob!

Claramente, Ethan podia ver que as coisas não estavam boas para o seu lado. Ele deu uma olhada para a espada de Hades repousada na poeira. Mas, antes que pudesse dar o bote, uma flecha de prata fincou-se no chão a seus pés.

— Nem pensar, garoto — Thalia o alertou. — Mais um passo, e eu prego seus pés nas rochas.

Ethan correu... direto para a caverna de Melinoe. Thalia mirou suas costas, mas eu disse:

— Não. Deixe ele ir.

Ela franziu as sobrancelhas, mas baixou seu arco.

Eu não sabia por que quis poupar Ethan. Acho que já tínhamos lutado o bastante para um dia, e, na verdade, eu sentia pena dele. Ele estaria numa grande encrenca quando voltasse para falar com Cronos.

Nico recolheu a espada de Hades respeitosamente.

— Conseguimos. Nós realmente conseguimos.

— Conseguimos? — perguntou Iápeto. — Eu ajudei?

Forcei um sorriso.

— Sim, Bob. Você se saiu muito bem.

Conseguimos uma viagem expressa para o palácio de Hades. Nico mandou um aviso, graças a alguns fantasmas que ele evocou de debaixo da terra. E em poucos minutos as Três Fúrias em pessoa chegaram para nos transportar de volta. Elas não estavam muito animadas em carregar também Bob, o titã, mas não tive coragem de deixá-lo para trás, especialmente depois que ele notou o ferimento no meu ombro, disse “Awn” e curou-o com um toque.

Enfim, na hora em que chegamos à sala do trono de Hades, eu me sentia ótimo. O senhor dos mortos sentou-se em seu trono de ossos, com o olhar fixado em nós e acariciando a barba negra como se estivesse imaginando a melhor maneira de nos torturar. Perséfone sentou-se a seu lado, sem falar nada, enquanto Nico explicava nossa aventura.

Antes que lhe entregássemos a espada, insisti para que Hades fizesse o juramento de não usá-la contra os deuses. Seus olhos chamejaram como se ele quisesse me incinerar, mas finalmente ele fez a promessa, com os dentes cerrados.

Nico repousou a espada aos pés do pai e fez uma reverência, esperando por uma reação.

Hades olhou para a esposa.

— Você desafiou minhas ordens diretas.

Eu não sabia sobre o que ele estava falando, mas Perséfone não reagiu, mesmo sob seu olhar fulminante.

Hades se voltou para Nico. Seu olhar abrandou só um pouco, como se pedra fosse mais macia que aço.

— Você não vai falar sobre isso com ninguém.

— Sim, senhor — Nico concordou.

O deus lançou-me um olhar penetrante.

— E se os seus amigos não segurarem as línguas, eu vou cortá-las fora.

— Como queira — falei.

Hades fixou-se na espada. Seus olhos estavam cheios de raiva e de algo mais... algo como apetite. Ele estalou os dedos. As Fúrias desceram voando do topo do seu trono.

— Devolvam a lâmina às forjas — ele disse. — Fiquem com os ferreiros até que ela esteja pronta, e então tragam-na de volta a mim.

As Fúrias subiram em círculos com a arma, e fiquei pensando quanto tempo ia levar até que eu me arrependesse daquele dia. Havia brechas em juramentos, e calculei que Hades procuraria por uma.

— Você é sábio, meu senhor — disse Perséfone.

— Se fosse sábio — rosnou ele —, eu a trancaria nos seus aposentos. Se você me desobedecer de novo...

Ele deixou a ameaça pairando no ar. Depois estalou os dedos e sumiu na escuridão.

Perséfone parecia ainda mais pálida que o normal. Levou um tempo arrumando o vestido e depois se virou para nós.

— Vocês se saíram bem, semideuses. — Ela acenou e três rosas vermelhas apareceram aos nossos pés. — Esmaguem-nas e elas os levarão de volta ao mundo dos vivos. Vocês têm a gratidão do meu senhor.

— Imagino — resmungou Thalia.

— Forjar a espada foi ideia sua — percebi. — Por isso Hades não estava lá quando você nos deu a missão. Hades não sabia que a espada tinha sumido. Ele nem sabia que ela existia.

— Absurdo — retrucou a deusa.

Nico cerrou os punhos.

— Percy está certo. Você queria que Hades forjasse uma espada. Ele disse que não. Ele sabia que era muito perigoso. Os outros deuses nunca confiariam nele. Isso afetaria o equilíbrio de poder.

— E aí ela foi roubada — completou Thalia. — Você trancou o Mundo Inferior, não Hades. Você não podia contar a ele o que havia acontecido. E precisava de nós para recuperar a espada antes que Hades descobrisse. Você nos usou.

Perséfone umedeceu os lábios.

— O importante é que agora Hades aceitou a espada. Ela ficará pronta e meu marido se tornará tão poderoso quanto Zeus ou Poseidon. Nosso reino estará protegido contra Cronos... ou contra qualquer outro que tente nos ameaçar.

— E nós somos responsáveis por isso — concluí, infeliz.

— Vocês foram muito úteis — Perséfone concordou. — Talvez uma recompensa pelo seu silêncio...

— Deixe a gente em paz, antes que eu a leve para o Lete e a jogue lá dentro. Bob vai me ajudar. Não é, Bob?

— Bob vai ajudar você! — concordou Iápeto alegremente.

Os olhos de Perséfone se arregalaram, e ela desapareceu em uma chuva de margaridas.

Nico, Thalia e eu nos despedimos numa sacada com vista para os Asfódelos. Bob, o titã, ficou sentado lá dentro, construindo uma casinha com ossos e rindo cada vez que ela desmoronava.

— Cuidarei dele — disse Nico. — Ele é inofensivo agora. Talvez... não sei. Talvez possamos transformá-lo em alguma coisa boa.

— Tem certeza de que quer ficar aqui? — perguntei. — Perséfone fará da sua vida um inferno.

— Eu preciso — insistiu ele. — Tenho que me aproximar do meu pai. Ele precisa de um conselheiro melhor.

Não pude argumentar contra isso.

— Bom, se você precisar de alguma coisa...

— Eu chamo — prometeu ele. — Ele apertou a mão de Thalia e a minha. Virou-se para ir embora, mas me olhou mais uma vez. — Percy, você esqueceu minha oferta?

Um calafrio desceu pela minha espinha.

— Ainda estou pensando no assunto.

Nico assentiu.

— Bem, quando você estiver pronto.

Depois que ele saiu, Thalia perguntou:

— Que oferta?

— Uma coisa que ele me disse no verão passado — respondi. — Uma possível maneira de enfrentar Cronos. É perigoso. E eu já vivi perigo demais num único dia.

Thalia concordou.

— Nesse caso, ainda há tempo para o jantar?

Não pude fazer nada além de sorrir.

— Depois de tudo isso, você está com fome?

— Ei, até os imortais precisam comer. Estou pensando em cheeseburgers na McHall’s.

E juntos pisamos as rosas que nos levariam de volta para o mundo.

 

 

 

DEUS/DEUSA ESFERA DE CONTROLE ANIMAL/SÍMBOLO

Zeus céu águia, raio-mestre
Hera maternidade, casamento vaca (animal maternal), leão, pavão
Poseidon mar, terremotos cavalo, tridente
Deméter agricultura papoula vermelha, cevada
Hefesto ferreiros bigorna, codorna (salta engraçado, como ele)
Atena sabedoria, batalha, técnicas coruja
Afrodite amor pomba, cinto mágico (que faz os homens se apaixonarem por ela)
Ares guerra javali, lança sangrenta
Apolo música, medicina, poesia, tiro com arco, solteiros rato, lira
Ártemis donzelas, caçada ursa
Hermes viajantes, comerciantes, ladrões, mensageiros caduceu, elmo alado e sandálias
Dioniso vinho tigre, uvas
Héstia casa e família lareira
Hades o Mundo Inferior elmo do terror

 

 

                                                                  Rick Riordan

 

 

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