Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS SUBTERRÂNEOS DA LIBERDADE
Livro I
OS ÁSPEROS TEMPOS
“Os Ásperos Tempos”, “Agonia da Noite” e “A Luz no Túnel” constituem uma trilogia na qual, sob o título geral de “Os Subterrâneos da Liberdade”, o autor tentou traçar um panorama da vida política brasileira nos anos do Estado Novo. Nas suas cinco primeiras edições foi esta trilogia publicada em 3 volumes, como um único romance. Para maior comodidade dos leitores, resolveu o Editor brasileiro das “Obras de Jorge Amado” dar-lhe a forma atual de 3 volumes, ligados pelo título geral da trilogia, atendendo assim, aliás, à idéia inicial do autor
AQUELE fora um mês de más notícias. O deputado Artur Carneiro Macedo da Rocha, descendente da velha estirpe paulista, pensava com alegria que dentro em poucas horas aquele fatídico mês de outubro do ano de 1937 estaria terminado, talvez novembro se iniciasse sob melhores auspícios.
Vinha de trocar de roupa e, ao esvaziar os bolsos do paletó que usara durante a tarde, encontrou o telegrama de Paulo. Mais uma vez o releu e logo o jogou sobre a cama num gesto irritado. Afinal quando êle chegaria? Por que se demorava em Buenos Aires? Nenhuma precisão no telegrama. Paulo poderia desembarcar de um avião a qualquer momento e se encontraria, com certeza, cercado de repórteres ávidos. Fez um esforço para não pensar no filho, na sua próxima chegada, no escândalo que o cercava.
Olhou-se novamente no espelho, antes de sair, e encontrou-se elegante no “smoking” bem talhado, um formoso homem ainda, apesar dos seus cinqüenta anos. Quem lhe daria essa idade? Soubera conservar-se jovem e os raros fios de cabelos brancos emprestavam-lhe um certo ar de distinção que ia a calhar num político da sua responsabilidade. Ajustou a gravata, agora pensava em Marieta Vale.
Na rua, o chofer curvou-se um pouco ao abrir a portinhola do grande automóvel negro. Artur ordenou:
– Vamos à casa do Costa Vale.
Chovera no principio da noite e o automóvel atravessava uma cidade molhada e semideserta nas ruas silenciosas do barro elegante. Através dos vidros, Artur enxergava os postes elétricos derramando uma luz baça sobre gotas d’água no passeio, dando-lhes um brilho de pedra preciosa. À proporção que avançavam para o centro da cidade o movimento aumentava e a marcha se fazia lenta. Uma longa fila de autos atulhava o viaduto do Anhangabaú, dirigindo-se ao Teatro Municipal. Enquanto esperava o descongestionamento do trânsito, Artur leu, quase soletrando através dos cristais úmidos, a inscrição em piche que mãos desconheci das haviam traçado sobre os sólidos muros do edifício monumental da Light & Power, monopólio americano da energia elétrica:
ABAIXO O IMPERIALISMO IANQUE VIVA O P.C.B.
E de novo foi lançado em turvos pensamentos sobre o mês de outubro e suas desagradáveis lembranças. O automóvel marchava outra vez mas Artur continuava a enxergar a inscrição subversiva. E ela relembrava-lhe a entrevista com o dirigente comunista, a precisão das palavras do moço, suas propostas de união e a perspectiva dramática que êle traçara no caso que os políticos democráticos continuassem “de olhos fechados”. Uma estranha mistura de sentimentos dominava Artur ao recordar a entrevista: um certo despeito – aquele homem ainda moço, mal vestido, saído sem dúvida dos meios operários, querendo lhe ensinar política – e uma certa admiração pela severa figura do revolucionário.
Pensou na outra entrevista que tivera naquele mês: com o Ministro do Exterior, gordo e pegajoso diplomata, a propósito do caso de Paulo. Fora igualmente desagradável, não lhe deixara tampouco uma lembrança amável. Mas tinha sido diferente: com o Ministro ele se encontrara dono da situação em todos os momentos, dirigira o desenrolar da entrevista como melhor lhe parecera. Em todo caso, muito desagradável.
Gostaria de pensar em coisas alegres, de arrancar-se das recordações daquele outubro exasperante. Por que não pensar em Marieta Vale que ia rever após longos meses de ausência – o colar de pérolas brilharia sem dúvida mais sobre a brancura do seu colo que as gotas d’água cortadas pela luz – por que não pensar em seus olhos e em seu sorriso que dentro de momentos reencontraria, por que amargurar-se com a boataria política, com o telegrama anunciando a próxima chegada de Paulo, com o escândalo que cercara a bebedeira do rapaz, com a entrevista com o Ministro, com o recente encontro com o dirigente comunista? Parecia-lhe ouvir ainda as últimas palavras pronunciadas, com uma gravidade quase solene, pelo revolucionário:
– A culpa caberá inteiramente aos senhores. Quanto a nós, saberemos como agir...
Fitando o pavimento molhado, tentava enxergar, sob a luz derramada pelos postes, o rosto moreno e melancólico de Marieta, tantos anos inutilmente desejado. E o que via era a face magra, de uma extrema magreza, do homem jovem que Cícero d’Almeida lhe apresentara simplesmente como “João”. A testa larga onde começavam a rarear os cabelos, uns profundos olhos curiosos, as mãos nervosas em contraste com a voz grave e tranqüila, pausada como a de um professor. A certeza mais absoluta que a entrevista deixara a Artur é que sua comentada habilidade política – “aquilo é sutil com um gato”, dizia dele o líder da maio ria na Câmara – de nada lhe servira ao conversar com o comunista. O homem sabia o que queria e o dizia tranqüilamente, sem escolher palavras, sem frases dúbias, de uma forma direta e clara à qual Artur não estava habituado. E quando êle tentava envolvê-lo nos meandros das suas sutilezas, o rapaz apenas sorria e o deixava falar para depois voltar aos seus argumentos precisos, à citação dos fatos concretos, à proposta de união de todas as forças democráticas contra Getúlio Varias e os integralistas. Em nenhum momento, durante hora e meia em que conversaram, Artur se sentiu senhor da situação.
Sim, outubro fora um mês de más notícias, de indesejáveis acontecimentos. Um clima nervoso de incerteza andava pelo ar, dominava os políticos e dele se despendia um indefinível sentimento de medo, medo de qualquer coisa que iria fatalmente acontecer de um momento para outro sem que nenhuma pessoa pudesse evitar. Ninguém precisava o que mas por que diabo ninguém acreditava tampouco que as eleições se realizassem? Por que essa quase certeza de um imprevisto cortando a marcha regular da campanha eleitoral, que parecia estar no conhecimento de todos quando na realidade nada de positivo se sabia, nada de concreto se provava? No entanto, era tão forte aquela atmosfera de expectativa que Artur podia sentir o medo como uma coisa quase palpável quando conversava com os colegas nos corre dores da Câmara, com os correligionários pelas cidades do interior. Terminara por dominá-lo a êle também, apesar da sua longa experiência política que o situava como um dos mais hábeis parlamentares do país e um dos chefes antigetulistas de maior prestígio.
A verdade é que o comunista “João” (como se chamaria ele em realidade?, perguntava-se Artur. João não era certamente o seu nome) precisara essa coisa que andava no ar, falara concretamente do golpe de Estado que Getúlio Vargas preparava em aliança com os integralistas e, ao contrário de todos os demais políticos, êle afirmava, em nome do seu Partido, desse misterioso e amedrontador Partido, que nunca se contava na relação dos partidos políticos do país, que o golpe poderia ser evitado, as eleições poder-se-iam realizar se as forças dos dois candidatos à presidência da República se quisessem unir, fazendo uma trégua na campanha eleitoral, para impedir as manobras de Vargas e dos fascistas. Uma declaração pública, afirmada pelos dois candidatos e pelos governadores que os apoiavam, senhores da situação nos Estados mais importantes, seria o bastante para alertar a opinião pública e pôr um paradeiro ao golpe em preparação. O comunista mostrava um perfeito conhecimento da situação:
– Não me refiro ao governador de Minas. Esse é um homem de Getúlio, cem por cento. Falo dos Estados que apóiam realmente os dois candidatos: São Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e Pernambuco.
Bem, o comunismo falara de coisas concretas. Da viagem do agente de Vargas, o avião parando em cada capital de Estado para consultar – para avisar, dissera o rapaz – os governadores sobre o golpe, cuja data já estava marcada. Uma constituição fascista linha sido redigida por um jurista mineiro e aprovada pelos integralistas. Um general fascista seria nomeado comandante militar da cidade do Rio de Janeiro. Não eram boatos, o rapaz estava perfeitamente bem informado. Artur já antes tivera notícia da viagem do emissário de Getúlio, mas o comunista dera-lhe detalhes novos, irrefutáveis, trechos de conversas, a certeza de que o golpe se estava gestando e não tardaria a liquidar a campanha eleitoral, a liquidar também as mais caras esperanças do deputado Artur Carneiro Macedo da Rocha, cuja designação para Ministro da Justiça era considerada coisa assentada no caso de Armando Sales ser eleito presidente da República.
Nem mesmo o escândalo provocado com a bebedeira de Paulo abalara a solidez da sua candidatura ministerial. A imprensa inimiga utilizara o incidente explorando-o de maneira revoltante. Manchetes, títulos e subtítulos em grossos caracteres, editoriais falando em “nome do Brasil arrastado na lama”, um “bêbedo rompendo a nobre tradição da diplomacia brasileira’, metiam sob os olhos dos leitores, menos que o nome de Paulo, o nome de seu pai, o deputado Macedo da Rocha, chefe de propaganda da candidatura Armando Sales e um dos seus líderes mais importantes. Como se fosse um bicho-de-sete-cabeças um jovem segundo-secretário de Embaixada, farto até a raiz dos cabelos da chata monotonia da vida em Bogotá, beber além da medida e dizer alguns palavrões em meio a uma festa diplomática, Admitindo mesmo como verdade (e Artur sabia que era verdade, Paulo perdia todo o controle quando se embriagava) que tentara, como narravam num excesso de detalhes os telegramas nas primeiras páginas dos jornais, despir em plena saia de baile a esposa de um certo dom Antônio Reyes, e que rolara pelo assoalho em luta corporal com as pessoas que o tentavam dissuadir de tal empresa, ainda assim, noutra ocasião qualquer, a coisa não passaria de incidente sem maiores conseqüências, motivo apenas para cochichos murmurados nos corredores do Itamarati, dando margem quando muito à remoção de Paulo para uma capital européia onde as bebedeiras dos secretários de Embaixadas sul-americanas não chegam a escandalizar.
Desta vez entretanto, resultara em toda essa ignóbil exploração, editoriais em negrito, artigos de fundo nos jornais, caricaturas nas revistas e até um quadro humorístico que fazia o sucesso de um espetáculo de variedade num teatro carioca. Como o rapaz houvesse criado um perigo de guerra entre o Brasil e a Colômbia, como se um porre (acontecimento trivial em meio ao nosso corpo diplomático, Como êle dissera ao Ministro) houvesse liquidado a honra da pátria e insultado os sentimentos mais profundos da República colombiana.
Pura exploração política. Tentativa, envolver num clima escandaloso não só a êle, Artur, mas a toda a facção política que êle representava, as velhas famílias paulistas donas de enormes extensões de terra, de milhões de cafeeiros, apresentando-os como os símbolos de um fim de raça que se termina no álcool e na devassidão, incapazes portanto de dirigir os negócios públicos do país. Os jornais “getulistas” atacavam, tomando como pretexto o escândalo de Paulo, toda a campanha eleitoral, e os integralistas falavam na necessidade de “sangue novo no Itamarati”. E todos, unanimemente, pediam um “castigo exemplar para o filhinho-de-papai que emporcalhara na culta capital da República irmã, o nome que Rio Branco construiu para a nossa pátria à frente do Ministério do Exterior”.
Projetaram mesmo demitir o rapaz. Por isso Artur fora obrigado a falar muito francamente com o Ministro, e dizer- lhe duras verdades. Eis o que fizera a entrevista desagradável: Artur tivera que sair de seus hábitos, da sua costumada maneira de ser, sutil e macia, êle que não amava a violência. Mas, de fonte segura, lhe haviam informado que o Ministro já linha redigido o telegrama onde exigia que Paulo apresentasse seu pedido de demissão. Que jeito senão ser violento, ameaçar, mostrar que era um adversário perigoso? Tinha de salvar a carreira do filho.
Com essa entrevista começara o mês e terminara com a entrevista com o dirigente comunista, cercada de mistério, duas vezes adiada, deixando-lhe uma recordação ainda mais amarga que a conversa pouco diplomática no gabinete ministerial do Itamarati. É que, por mais desagradável que houvesse sido, a visita ao Ministro terminara numa vitória: nenhum castigo perturbaria a carreira de Paulo, apenas êle ficaria no Rio de Janeiro, sem designação para o estrangeiro, durante alguns poucos meses. Tivera de falar franco, num tom ameaçador, mostrar que conhecia nas pontas dos dedos – possuía vinte e cinco anos de vida política – a série infinita de escândalos que se escondia sob os muros respeitáveis e hipócritas do Itamarati. Citara nomes e fatos. Detalhara ao Ministro horrorizado o discurso que havia preparado para quando a demissão, ou qualquer outra sanção contra Paulo, o obrigasse a debater o assunto na Câmara dos Deputados. Enquanto a coisa não passasse de exploração política nos jornais. êle se manteria calado. Mas, se atingissem o rapaz com qualquer medida disciplinar, nesse caso...
Mesmo para dizer as coisas mais duras Artur mantinha aquela voz redonda e macia que lhe dera fama de bom orador parlamentar: que significava a juvenil embriaguez de Paulo (“que jovem diplomata não se embriagou pelo menos uma vez na vida?”) comparada com o escândalo dado pelo Conselheiro da Embaixada em Lisboa – agora Embaixador no Egito –, figura ilustre do Itamarati? O ministro recordaria o fato certamente, datava apenas de um ano: o então Conselheiro de Embaixada fora preso pela polícia lusitana quando, bêbedo como uma cabra, tomava banho nu na praia elegante do Estoril, à meia-noite, em companhia da esposa do Ministro salazarista de Obras Públicas, nua ela também, sem ter sequer longos cabelos com que cobrir o corpo “como o fazia Eva no paraíso”. Sorria a essa frase que, como o Ministro podia ver, daria certa graça ao discurso, O pior era ser obrigado a citar o nome da esposa do Ministro português envolvida no escândalo, quando tão cordiais se mantinham as nossas relações com o governo de Salazar. Mas que fazer, se esse enorme escândalo fora completamente abafado, nem uma notícia nos jornais, e o Conselheiro da Embaixada tivera “sua vocação nudista premiada com a Legação no Egito?”
O Ministro tentava interrompê-lo, mas Artur continuava a detalhar escândalo sobre escândalo: que dizer do Embaixador na Finlândia que passara três dias na cadeia de Helsinque, sem dar a conhecer a sua qualidade de diplomata, por ter, em estado da mais lastimável embriaguez, quase destruído um pacifico cabaré nórdico? No Brasil quase nem se soubera do fato que, no entanto, servira aos caricaturistas da Scandinávia para ilustrar revistas humorísticas que êle, Artur, por casualidade possuía e que exibiria na tribuna da Câmara. Lastimava ter que fazê-lo pois o aludido diplomata, atualmente Embaixador nos Estados Unidos e uma das mais prestigiosas figuras da nossa diplomacia, era seu velho camarada, juntos haviam cursado a Faculdade de Direito de São Paulo, Mas, o Ministro havia de compreender, era a carreira de seu filho que estava em jogo, sua honra também, e a própria honra dele, Artur, que a imprensa, com a cumplicidade do governo – sublinhava essas palavras –, enxovalhava devido a um incidente sem a mínima importância, uns tragos a mais que o rapaz bebera. E não ficaria apenas no relato de cachaçadas homéricas de ilustres embaixadores. O Ministro tinha conhecimento, certamente, de que em seu Ministério sucediam coisas mais graves do que simplesmente borracheiras mais ou menos rumorosas, coisas que Artur – afirmava com voz quase terna – não desejaria jamais tornar públicas. Como homem político que era, zeloso do prestígio das classes conservadoras, Artur preferia que a grande massa popular, as classes trabalhadores já tão desiludidas e atualmente tão influenciadas pelas idéias subversivas dos comunistas, não tomassem conhecimento desses fatos que em nada ajudavam a manter o prestígio dos homens públicos do país. Se o fizesse, se fosse obrigado a pronunciar o tal discurso, não o culpassem a êle e, sim, aos que queriam explorar politicamente a bebedeira de Paulo. Que diria o povo ao saber do escândalo do chá, em que estivera envolvida quase toda a representação diplomática do Brasil na China, uma negociata que rendera milhares de dólares aos funcionários da nossa Embaixada em Pequim? E que gozo não seria para a “gentinha” do povo a leitura de lista enorme – verdadeiramente enorme, senhor Ministro – dos funcionários categorizados do Itamarati que “se davam ao elegante vício da pederastia?” Nesse particular os escândalos se amontoavam, alguns realmente picantes, bom material, sem dúvida, para um discurso de oposição ao governo. Havia, por exemplo, aquela divertida história acontecida em Buenos Aires, quando da Conferência pela paz do Chaco, em que estavam envolvidos um belo e jovem Secretário de Embaixada e o respeitabilíssimo e efeminadíssimo Embaixador...
O Ministro não o deixou continuar (Artur queria citar trechos do poema que o Embaixador escrevera para o jovem Secretário). Estava vencido, esmagado, e desejava evitar sobretudo referências ao caso do chá no qual estava envolvido um seu próximo parente... Começou êle mesmo a desculpar o procedimento de Paulo, “coisas de rapaz”, disse, e afirmar que jamais lhe passara pela cabeça qualquer medida punitiva. Também êle condenava a excitação sensacionalista da imprensa, onde enxergava velha má vontade para com o Itamarati, antiga rivalidade entre diplomatas e jornalistas, agravada naquele caso pelo aspecto político, pela paixão despertada com a campanha eleitoral. Mas tudo havia de se arranjar da melhor forma, talvez fosse necessário que Paulo estagiasse uns seis meses numa das secretarias do Ministério, logo depois se encarregariam de dar-lhe um bom posto na Europa. E acrescentou, uma falsa nota de melancolia na voz:
– Nesse momento eu já não serei Ministro, as eleições já se terão realizado e outro ocupará esse gabinete...
Mas Artur descobria uma distante ponta de ironia na sua voz, como quem não acreditava nem em eleições nem em novo Ministro. E se surpreendeu ao reconhecer no oficial de gabinete que o acompanhou pelos corredores, após a entrevista, a um intelectual integralista cujos artigos violentos reclamavam um “regime forte” para o país e o fim da “torpe comédia eleitoral”. Por todas as partes se encontravam agora os integralistas e era por toda parte aquela atmosfera de conspiração, de golpes que se preparavam, de conversas cochichadas, de expectativa.
Talvez tivesse sido esse clima de nervosismo, esse sentimento obscuro de medo, que o houvesse levado a aceitar a idéia de uma conferência com um dirigente comunista que Cícero d’Almeida, o conhecido escritor, lhe propusera. Artur desejava saber o que os comunistas pensavam da situação, colher dados, pois eles passavam por bem informado Tinha também uma certa curiosidade de conhecer e tratar com uma dessas misteriosas personalidades que dirigiam a luta comunista dos seus impenetráveis esconderijos. Os que êle conhecia eram geralmente intelectuais como Cícero d’Almeida e Artur não podia julgá-lo como um comunista, ligando-o a tudo que esta palavra lhe significava. Como êle próprio, Cícero descendia de uma antiga família da aristocracia cafeeira, seus avós haviam sido senhores de escravos como os de Artur, Cícero havia cursado como êle a Faculdade de Direito de São Paulo, vestiam-se no mesmo caro alfaiate, faziam os sapatos sob medida na mesma elegante sapataria, encontravam.se nas mesmas recepções e por vezes até discutiam, o escritor citando Marx entre os cristais onde brilhava o uísque.
O comunismo em Cícero era, segundo Artur, uma extravagância intelectual, não representava um sério perigo e ele mesmo interviera certa vez junto às autoridades para libertá-lo quando o escritor estivera preso. Dissera então ao chefe de polícia:
– Extravagância de intelectual jovem. Afinal é um robusto talento e é filho do velho conselheiro Almeida, herdeiro da sua fortuna. Um dia desses nós o faremos deputado e ele cura-se do comunismo...
Acrescentara, numa generalização:
– Essa coisa de comunismo e integralismo é como o sarampo que todos os meninos têm, em certa idade. Os intelectuais o têm também, mas depois, com a idade, passa...
O chefe de polícia, porém, estabelecia diferenças. “Uma coisa era o comunismo querendo destruir a sociedade, outra, muito diferente, o integralismo, uma doutrina de muito patriotismo, cheio de um sadio e nobre nacionalismo, baseada nos sentimentos cristãos”. Mas atendeu ao pedido e mandou pôr Cícero em liberdade.
Quando se colocara o problema das candidaturas presidenciais, Artur se valera das relações com Cícero para sondar a opinião dos comunistas a propósito de um possível apoio à candidatura Armando Sales. Nada conseguira, é verdade, os comunistas exigiam um programa impossível: reforma agrária, anistia para os presos de 1935, luta concreta contra o fascismo e o imperialismo, nacionalização dos “trusts” americanos... Apesar disso continuara a manter boas relações com Cícero, admirando-se sempre de ainda encontrá-lo comunista a cada vez que o via, como se admiraria se o encontrasse com a camisa suja ou a barba por fazer. Para Artur, comunismo era uma espécie de coisa que não cabia na personalidade de Cícero, tão marcadamente aristocrata paulista.
Porém, com o outro, aquele com quem conversara nessa tarde, era diferente. Por esse, ele não interviria junto ao chefe de polícia. Nele (como seria mesmo o seu verdadeiro nome? Artur gostaria de sabê-lo) se percebia em seguida uma força, uma convicção que nada linha de amadorismo intelectual, uma flama na voz severa, nos olhos penetrantes. Falara de coisas concretas, acusara Artur e seus correligionários, sem sequer alterar a voz:
– Quando os senhores da oposição votaram a prorrogação do estado de sítio estavam votando a própria dissolução da Câmara. Um suicídio parlamentar.
– Mas a Câmara não foi dissolvida...
– Será, com certeza.
Artur quisera contra-atacar; referiu-se ao plano subversivo descoberto pelo Estado-Maior do Exército e no qual se baseara a mensagem presidencial pedindo o estado de sítio, um plano de revolução comunista, traçado no estrangeiro, certamente em Mascou. O moço, em sua frente, sorria quase com doçura:
– Nenhum dos senhores acredita nesse plano. Todo mundo sabe que êle foi fabricado, peça por peça, no gabinete do General Góis Monteiro. Ademais, um plano imbecil.
Rasgava depois as cortinas daquele obscuro medo que flutuava nos corredores da Câmara, nos meios políticos:
– Os senhores se enganam se pensam que a luta dos fascistas se restringirá à perseguição aos comunistas. Começarão conosco, após serão os senhores, O que os integralistas e Getúlio preparam é um golpe de Estado fascista.
Artur sentia inúteis os rodeios; as nuanças de palavras, tão gratas nas discussões parlamentares, não cabiam naquela conversa. Ouviu a proposição comunista; união das forças antifascistas das duas candidaturas presidenciais contra o golpe projetado, uma pausa nas campanhas eleitorais, o lançamento de um manifesto assinado pelos dois candidatos à presidência e pelos governadores dos Estados que os apoiavam declarando sua decisão de defender a legalidade constitucional contra qualquer ameaça de governo fascista. Segundo o comunista, talvez essa simples declaração fosse suficiente para impedir o desencadeamento do golpe. E se não o fosse, se Vargas e os integralistas persistissem, então as forças democráticas unidas poderiam rapidamente abafar qualquer golpe, restabelecer a ordem e garantir a realização das eleições.
Artur buscava encontrar o que se esconderia por trás da proposta do suposto João. Que esperam os comunistas ganhar, eles que haviam preferido ficar à margem das candidataras presidenciais, sem apoiar nenhum dos dois candidatos, aproveitando a campanha para readquirir algumas posições legais, perdidas após a derrota da insurreição de 35? Sem dúvida eles tinham interesse em lutar antes de tudo contra Getúlio e os integralistas, contra um regime fascista, mas não queriam eles, com essa idéia de união, utilizar as forças chamadas democráticas a seu serviço? Artur sentia uma instintiva desconfiança em relação aos comunistas, sentia-os inimigos, naturalmente, sem que lhe fosse necessário buscar explicações para tal fato. Quando o rapaz acabou de falar, Artur disse:
– Getúlio tem o Exército com ele e os integralistas têm muita força na Marinha...
– Os senhores têm armas, as armas das polícias militares dos Estados. O povo está disposto a lutar contra um golpe fascista. Grande parte da oficialidade do Exército é antifascista. E todo o povo. Só aqui, em São Paulo podemos levantar vinte mil trabalhadores se os senhores se dispõem a resistir ao golpe...
Calou-se, esperando uma resposta. Artur acendeu um charuto, refletia. A princípio a proposta de união das forças antifascistas não lhe parecera uma coisa impossível. Realmente, talvez assim pudessem evitar o golpe, ganhar tempo também para consolidar a candidatura Armando Sales, para buscar-lhe uma popularidade que lhe faltava. Mas agora que o comunismo falara em armar trabalhadores, em misturar os sindicatos naquilo tudo, ele se fazia reticente e desconfiado. Não era assim que ele concebia a política; para êle política era um assunto que cabia à “elite”, cujos problemas deviam ser resolvidos por um grupo de homens e não por todo esse mundo estranho, distante e inquietante de trabalhadores. Já não era pouco ter de fazer promessas ao zé-povinho, a uma gente que nos dias de ontem votara no escuro nos nomes que lhe indicavam os cabos eleitorais...
Disse que ia conversar com os correligionários, que a idéia tinha seus lados interessantes, procurou não se comprometer. O comunista parecia ler nas suas reticências. Levantou-se para despedir-se:
– O senhor tem medo de armar o povo, é isso que se passa. O senhor prefere ver Getúlio continuar no poder, prefere mesmo os integralistas com sua constituição fascista, do que se apoiar no povo... Os senhores irão se arrepender depois...
Artur sorriu:
– Jovem, eu faço política há vinte e cinco anos...
O comunista se retirara e o sorriso desapareceu da face do deputado Artur Carneiro Macedo da Rocha. Da conversa ficara-lhe a certeza, sem nenhuma possibilidade de dúvida, de que o golpe de Estado estava em marcha e seus sonhos de ministério, de grandes negócios, seriamente ameaçados. Ainda agora, no automóvel que o conduz à casa do banqueiro Costa Vale, onde reverá Marieta recém-chegada de seis meses da Europa, é nisso que pensa. Quando desejaria estar de coração limpo de qualquer preocupação para se entregar à alegria da presença da Marieta.
O automóvel penetra na rua elegante onde se elevava o palacete dos Costa Vale. Árvores copadas abafavam a luz difusa dos postes elétricos e uma certa calma, que descia sobre aquele recanto rico da cidade, restituiu a Artur sua perdida jovialidade. Fechou os olhos, por um momento: havia um segredo que o comunista não conhecia e que ele, Artur, se guardara bem de dizer – também eles, os partidários da candidatura Armando Sales, não se contentavam com a preparação das eleições. Também eles articulavam um golpe, estabeleciam ligações no Exército e na Marinha, e, antes ou depois de Getúlio se movimentar, eles chegariam ao poder sem necessidade de entregar armas aos sindicatos e aos comunistas... Sorriu um meio sorriso, aquele fatídico mês de outubro estaria terminado dentro de poucas horas. Novembro começaria, Marieta agora estava na cidade, em breve ele seria Ministro, a vida era bela, apesar de tudo... Espreguiçou-se no assento fofo do auto como a afastar os últimos restos dos pensamentos melancólicos.
A noite era morna quando Artur atravessou por entre as árvores do jardim que cercava a residência em estilo colonial. Ficou um momento parado antes de transpor a porta de entrada. Até ele chegava, através da porta semi-aberta, o ruído abafado das conversações, o tilintar dos cálices de bebidas, um riso cristalino de mulher. Ele o reconheceu de imediato: era de Marieta aquele riso, nenhum outro possuía tão doce melodia.
Da grande sala de recepção, Marieta do Vale o viu diante da porta de entrada e veio com as mãos estendidas. Artur beijou-lhe a mão magra e a conservou entre as suas um instante, num gesto de carinho, enquanto ela perguntava:
– É verdade que Paulinho vai chegar?
– A qualquer momento esse louco pode descer de um avião.
Marieta sorriu mostrando os dentes magníficos, a notícia a deixava mais alegre do que ela mesma desejava. Artur a olhava longamente, como não o poderia fazer depois na sala: era ainda uma bela e desejável mulher, apesar de seus quarenta e três anos. Possuía uns olhos rasgados no rosto moreno e fino e uma boca esplêndida que dava à sua face, com o meio sorriso que lhe era permanente, um ar desdenhoso de quem se divertia com tudo e com todos. Seu corpo conservava a esbeltez da mocidade, as cintas e os porta-seios não tinham sido feitos para ela. Corpo ainda mais fresco que o rosto como se os anos não lhe houvessem pesado. Artur murmurou:
– Estás mais linda do que nunca
Manrieta encolheu os ombros nus sob o decote do traje negro de perfeita elegância:
– Paris rejuvenesce...
Mas logo voltou a falar sobre Paulo, pedindo detalhes dos acontecimentos de Bogotá, indignada com o escândalo dos jornais:
– Preocupo-me muito com Paulinho, tu o sabes. Menino criado sem mãe, por um pai estróina como tu. Ângela era minha amiga e hei de velar pela sorte do seu filho...
Artur baixou a cabeça ao peso de recordações subitamente evocadas:
– Poderias ter sido a mãe de Paulo. Fui um estúpido.
– Não vamos falar outra vez nessas coisas passadas e enterradas, faz muito que já nem me lembro delas. E, se alguma vez penso nisso, é para concluir que fizemos bem. Já pensaste a sério no que teria sucedido se nos houvéssemos casado? Seríamos por aí dois pobretões, amargando uma vida difícil. Eu não tinha dinheiro, só tinha por mim esse rosto que Deus me deu. Tu não tinhas dinheiro, teu único capital era o nome ilustre que herdaste, única coisa que não podias gastar nos cabarés... Empregamos bem o nosso pequeno capital... – Sorriu e seu rosto tinha novamente aquele ar desdenhoso que por um momento o abandonara. – Com bons juros...
Artur a olhava espantado. Jamais ela lhe falara assim. É verdade que nesses vinte e cinco anos muito poucas vezes haviam recordado aqueles tempos. Logo depois que ela se casara, pouco antes de Paulo nascer, êle tentara fazer-lhe a corte mas ela o repelira de uma vez para sempre. Se ele, porém, quisesse ser seu amigo ela se sentiria feliz, porém jamais seria sua amante. E o disse com tal firmeza que êle não voltou a insistir. A amizade entre eles, à qual jamais faltara certa ternura familiar, crescera e muitas vezes Artur vinha pedir conselhos a Marieta ou a seu marido, de quem se fizera também íntimo amigo. Durante os últimos vinte anos, após a morte de Ângela, a casa dos Costa Vale fora um pouco a sua casa, onde vinha para o bridge, para os jantares, pan as longas conversas. Quando, depois da luta armada de 1932, Artur esteve exilado em Portugal e França, foi Costa Vale quem fez todas as despesas do “político desempregado”, como ele dizia rindo.
– Ficaste cínica na Europa... – disse êle.
Ela encolheu novamente os ombros, mais uma vez sorria:
– Cínica? Se assim o queres... Tu morrerás sem te libertares desse sentimentalismo que tanto tem te atrapalhado na vida. Eu possuo o hábito saudável de raciocinar – sua voz tinha uma certa dureza que se prolongava por todo o seu semblante, marcando com uma nota áspera a beleza de sua face. – Para mim a cabeça está antes do coração... Tenho me dado bem... Aliás, Artur, necessitamos falar contigo seriamente, eu e José – era seu marido – talvez possamos fazê-lo após a recepção. Artur encheu-se de curiosidade:
– Do que se trata?
– É conversa longa, fica para mais tarde...
Um instante ficou como que refletindo. Pensava em Paulo que estava para chegar. Disse:
– Não pense que sou má de toda. Por Paulinho até sacrifícios eu faria, êle é a minha fraqueza...
Pôs a mão sobre a mão de Artur num gesto carinhoso:
– Vamos entrar..
E como atravessassem a porta que dava entrada ao grande salão repleto de convidados, Marieta elevou a voz para dizer:
– Então tudo isso que falam de um golpe de Estado não passa de boatos?
Também Artur elevara a voz e dava-lhe aquela entonação um pouco declamatória:
– Boatos, Marieta, boatos de quem não tem o que fazer. As eleições se realizarão normalmente e nós venceremos por mais de trezentos mil votos. São Paulo ainda e São Paulo!
Marieta o conduziu ao grupo onde Costa Vale, enxugando com o lenço o suor na testa calva, traçava os rumos da política mundial. Um velho professor da Faculdade de Medicina, médico de nomeada, doutor Alcebíades Morais, o senador Venâncio Florival – fazendeiro dono de imensas terras em Mato Grosso e de uma ignorância ainda maior – e o poeta César Guilherme Shopel, mulato e gordíssimo, ouviam com respeito as considerações do banqueiro. De quando em vez, César Guilherme deixava escapar uma exclamação admirativa e sua voz tão cheia de cálida adulação como se ele estivesse se dirigindo, numa declaração de amor, a uma mulher de extraordinária beleza. Artur comentou para Marieta, enquanto se aproximavam:
– José está feito todo um orador... Ë preciso candidatá-lo ao Senado. Veja como Shopel bebe-lhe as palavras...
Marieta resumiu, num apressado murmúrio, sua opinião sobre o poeta:
– Não sei como se pode ser ao mesmo tempo tão inteligente e tão sórdido.
Mas já o silêncio se fazia no grupo onde Costa Vale estendia os braços para Artur, enquanto o poeta Shopel repetia, à meia voz como para apreciá-la em toda a sua justeza, valorizando-a ainda mais aos olhos dos outros, a última observação do banqueiro:
– Esse Hitler é um gênio...
Depois do abraço, Artur separava-se de Costa Vale para melhor estudar-lhe o rosto pálido onde brilhavam uns olhos frios e agudos:
– Estás com uma fisionomia excelente. A Europa te fez bem.
Costa Vale também examinava o deputado. Apreciava Artur e sorria-lhe com amizade. Tinha um certo respeito pela habilidade política do outro e uma certa inveja daquele seu ar aristocrático, daquela espécie de superioridade de casta que decorria de Artur naturalmente e que jamais Costa Vale – vindo de muito baixo, como êle mesmo gostava de repetir com certa vaidade – conseguira adquirir apesar dos seus milhões. Essa admiração e essa estima por Artur não iam sem um certo amigável desprezo pela sua falta de energia, pela sua permanente indecisão, que lhe criavam problemas a cada dia. Uma das grandes satisfações de Costa Vale era chamar a atenção de Artur para erros que estava a cometer, considerava-se um pouco como o guia e conselheiro daquele político que era o “seu” deputado. Era o seu banco que financiava as campanhas eleitorais de Artur e Costa Vale não podia pensar nele sem imaginá-lo como uma espécie de alto funcionário seu, ao mesmo tempo prestimoso e decorativo, seu representante na Câmara. O prestígio político de Artur era-lhe de muita utilidade.
– Sim, senhor – disse – não envelheces... Quanto a mim, a Europa e seus célebres médicos nada adiantaram. Venho mais doente do que fui, mas venho contente com a Europa. Principalmente com a Alemanha. Menino, é qualquer coisa de sério como eu dizia agora mesmo ao amigos. A obra de Hitler é digna de toda admiração.
César Guilherme Shopel, gordo de mais de cento e vinte quilos, as banhas do rosto mulato balançando-se sob o riso de admiração que se espalhava por sobre a larga face, interrompeu:
– Costa Vale devia escrever um livro de impressões de viagem... Uma finura de observação, uma penetração política como a dele não devem se restringir às conversas com os amigos. Devem servir a todo o país...
O banqueiro teve um pequeno sorriso entre lisonjeado e irônico, passou a mão pelo queixo:
– Esse Shopel depois que fundou uma casa editora pensa que todo mundo é poeta. Isso de escrever livros é para quem não tem o que fazer e eu tenho muito o que fazer, não tenho tempo para sujar papel...
O poeta arrancou o charuto da boca, a cinza se espalhou sobre o “smoking”, protestou:
– Tu vês, Arturzinho, êsse desprezo de burguês milionário pela literatura... Mas “seu” Costa Vale, me diga o que seria dos grandes homens se não fossem os livros. Hitler mesmo: toda sua carreira se deve ao “Mein Kampf”. Veja Churchill: êle não se envergonha de escrever, nem êle nem Ford, o grande Ford...
Voltava-se para Marieta:
– Não acha que êle devia escrever suas impressões de viagem, dona Marieta?
Mas antes que ela respondesse, Costa Vale disse:
– Hitler é um grande homem, não há dúvida. Mas, Shopel, tire da cabeça essa idéia absurda que foi o seu livro que o fez. O livro teve a sua importância junto ao povo. Mas, menino, quem levou Hitler ao governo não foi nenhum livro, preste bem atenção. Quem o levou ao poder foram os Costa Vale de lá, os que não sabem escrever livros mas sabem enxergar em meio à confusão...
Dizia-o mais para Artur, como se quisesse antecipadamente convencê-lo de algo, que mesmo para Shopel. Marieta agora os deixava para atender aos insistentes chamados da Comendadora da Torre, viúva riquíssima de um industrial português. Essa velha Comendadora não perdia uma única recepção e dela diziam ser a mais viperina língua de todo o Estado de São Paulo. Os olhos de Artur acompanharam Marieta enquanto ela atravessava a sala em direção à poltrona onde a Comendadora, literalmente coberta de jóias, fazia rir todo um grupo às gargalhadas. O poeta Shopel também fitava com uns olhos ensombreados de desejo, a mulher que se afastava. E como Costa Vale estava um pouco ao lado, falando a um convidado, disse a Artur, em voz baixa:
– É uma balzaquiana divina!... fez um ruído com a língua, e Artur achou tudo aquilo pornográfico e indigno de Marieta: a alusão à sua idade, o ruído cúpido, os olhos ávidos do poeta, seu corpanzil imenso e balofo. Não respondeu, não sorriu, sentia-se pouco à vontade na recepção, desejoso que ela terminasse e êle pudesse ficar na intimidade de Marieta e Costa Vale, ouvindo-os falar da Europa, contando-lhes do Brasil, sabendo por fim que coisa tão importante desejavam lhe dizer. Tinha agora o pressentimento de que a atmosfera malsã daquele mês de outubro ameaçava prosseguir nesse novembro prestes a começar. O poeta perguntava por Paulo, mas Artur em vez de responder, voltou-se para o velho professor de medicina que repetia uma interrogação ansiosa ao senador Florival:
– O senhor não crê, realmente, na possibilidade de golpe?
– Quanto a mim, eu não creio... – disse Artur.
O poeta fazia-se conspirativo, aproximava-se para ouvir o que o deputado Artur Carneiro Macedo da Rocha, um dos líderes mais influentes da candidatura do governador de São Paulo à Presidência da República, revelasse. Também o senador curvou-se um pouco para ouvir melhor.
– O Exército empenhou sua palavra em como as eleições se realizarão normalmente. Ë a honra do Exército que está em jogo! E se formos duvidar dessa honra, então não poderemos acreditar em nada do Brasil.
– Sim, o Exército... – fez o professor numa tímida aprovação de quem não parecia muito convencido.
– E os integralistas? É preciso contar com eles. – César Guilherme chupava o charuto entre as frases.
– Os integralistas – Artur fez um gesto de pouco caso com a mão – eles gritam muito e fazem pouco. Ameaças, ameaças, e mais nada.. Palavras no vazio.
– Eles são uma força, – discordou o poeta. O fascismo é uma idéia em marcha em todo o mundo. Veja a Alemanha, veja a Itália, agora é a Espanha. Ainda há pouco Costa Vale estava falando sobre isso. É a realidade da Europa.
O velho professor de Medicina balançou a cabeça, agora não era uma aprovação medrosa, eram palavras de homem convencido do que dizia:
– São uma força, sim. Cresceram de um dia para o outro e têm o apoio da Igreja, do governo, da Marinha. Mesmo de muita gente do Exército... E suas idéias, eu não sou político, sou um cientista que vive no seu gabinete, mas suas idéias me agradam... São sérias, patrióticas, respeitosas para com a religião e o Estado.
Um criado servia coquetéis numa bandeja de prata. O professor recusou; Artur, o senador e César Guilherme serviram-se. Costa Vale continuava, um pouco distante sua conversa com um convidado. Artur olhou através do cristal do cálice, pensativo:
– Concedo que haja na doutrina integralista princípios sãos e sérios, possíveis de apaixonar a juventude. Concedo mesmo que eles tenham certa força. Mas não têm chefes capazes...
O poeta atalhou:
– Não diga isso. Plínio é um ídolo...
– Foi meu aluno na Escola de Farmácia... – disse o professor. – Dei-lhe uma boa nota nos exames do segundo ano. Não sei – e havia uma dúvida melancólica em sua voz – se êle ainda se recordará de mim...
Mas Artur não acreditava no prestígio de Plínio Salgado:
– Um idiota, um fanático. Não é um político... E ademais eles não têm forças para, s dar um golpe de Estado... Nem eles, nem Getúlio...
– E se eles se unem? – o poeta fez-se ainda mais conspirativo. – Vocês sabem, a verdade é que as conversações entre Plínio e Getúlio começaram há muito tempo. É Chico de Campos quem serve de intermediário.
Todos sabiam que o poeta era íntimo do ex-Ministro da Educação e sua revelação trouxe um silêncio que ameaçava durar se o senador Venâncio Florival não abrisse a boca pela primeira vez em toda a conversa. Há muito que bebera o seu coquetel e agora agitava o cálice como uma arma:
– Eu apóio o doutor Armando – sua voz era arrastada como a de um homem do campo – e meus votos são pra êle se houver essas danadas eleições, do que duvido. Mas eu não sou homem de mentiras e não vou dizer que os integralistas não têm razão. Outro dia eles vieram com uma subscrição, pedindo dinheiro. “Pra que é o dinheiro”. eu quis saber. “Pra lutar contra o comunismo”, eles me responderam. “Dou de coração”, eu disse, e assinei vinte contos de réis. O que é preciso é acabar com os comunistas. E quem quiser mesmo acabar com eles conta comigo, seja Armando Sales, Zé Américo, Getúlio ou Plínio Salgado, seja americano, inglês ou alemão.
– Os comunistas – considerou o poeta Shopel – estão de cabeça cortada, levaram um golpe definitivo em 1935. Com Prestes na cadeia, o que ê podem fazer?
– O que eles podem fazer? – o senador se animava, gesticulava, brandia o cálice levando-o até a barriga do poeta como se estivesse com um punhal pronto para ferir. – Vou lhe contar, seu Shopel: esses bandidos conseguiram não sei como, se meter com os homens da minha fazenda e encaixar coisas na cabeça deles. Não é que outro dia vieram colonos me falar querendo contratos de trabalho assinados, cheios de cláusulas? Sabem o que eles diziam: que era para garantir o direito dos camponeses. Camponeses eles, imagine. “Direito de camponeses”, pense nisso! Eu nunca pensei de ver tal coisa em minha vida! Botei tudo pra fora da ´fazenda, uns dois saram meio rebentados de chicotes. Umas lambadas pra aprender o respeito. Obra dos comunistas...
– É um fim de mundo... – disse o professor e estava ao mesmo tempo horrorizado com a ousadia dos colonos e com a sem-cerimônia com que o senador falava do chicoteamento dos homens.
Artur deu largas ao seu antigetulismo:
– Tudo isso é o resultado da demagogia trabalhista de Getúlio com suas leis de proteção aos trabalhadores, com o Ministério e a Justiça do Trabalho. Tudo isso encheu a cabeça dos operários e agora dos colonos e trabalhadores das fazendas. Getúlio assanhou um ninho de marimbondos...
Mas o senador não concordava:
– Qual o quê, seu doutor Artur, qual o quê! Eu sou um caipira, não sou homem de muita instrução, mas vou lhe dizer: o que Getúlio fez foi muito bem feito, não veio assanhar os marimbondos, não senhor, veio acalmar. Fez a justiça do trabalho mas quer acabar com as greves. Que é que os industriais podem querer mais? Não são essas leizinhas de conversa fiada que bolem com os homens. E pras fazendas ele nem leis fez, essa é que é a verdade. São os comunistas que estão botando coisas na cabeça dos homens. É preciso acabar com esses bandidos. Quanto a mim, já dei ordens: se algum aparecer pela fazenda, pau nele. Não sai de lá com vida, Deus me ajude...
Artur riu:
– Justiça sumária, senador! Como nos tempos da colônia.
– Olhe lá, seu doutor Artur, que esses tempos tinham suas boas coisas...
– Os escravos... – Artur continuava a rir.
– Por exemplo... – concordou o senador – escravo nunca veio reclamar contrato de trabalho...
O poeta Shopel tomou do braço do senador:
– O último escravista do Brasil... Cuidado, senador, que os jornais inimigos podem explorar esse seu amor aos tempos coloniais.
O fazendeiro estendeu o braço livre, rindo êle também:
– Sou um homem fraco, seu Shopel. Não sei escrever verso como o senhor nem fazer discursos bonitos como o nosso dr. Artur. No Senado espio os projetos, vejo os que servem, dou meu voto. Quando falo é pra dizer o que penso. Escravista? Todos nós somos ainda um pouco escravistas, eu, o Costa Vale com seu banco e suas fábricas, a Comendadora da Torre com suas indústrias, aqui o Artur com suas ações nas fábricas de Pereira, você mesmo que vive bem porque essas coisas existem. Somos nós que mandamos, os outros devem obedecer e os escravos sempre obedecem melhor que os assalariados. O mal é a gente estar dividido. É isso que me agrada nos integralistas, eles querem juntar todo mundo contra os comunistas...
Fazia-se eloqüente:
– Quem nasce pobre é que Deus o fez pobre, sempre houve pobres e ricos, esses comunistas querem modificar aquilo que é a obra de Deus...
Costa Vale, que voltara ao grupo, concordava:
– Palavras sensatas. Vejam a diferença entre a Alemanha de Hitler e a França do “Front Popular”. Na Alemanha é a ordem, a precisão no trabalho, um ritmo acelerado, nada de greves, de desordens, de motins. Na França é a anarquia, os comunistas ameaçando as instituições mais respeitáveis.
– E a Espanha... – lastimou-se o poeta Shopel. – A Espanha afogada em sangue..
– Os comunistas são uns bandidos... – resumiu o senador.
– Hitler acabou com eles na Alemanha e acabará com eles no mundo inteiro – sentenciou Costa Vale dando às suas palavras todo o peso da autoridade de um homem recém-chegado da Europa. – Eu vi a obra de Hitler com meus próprios olhos... Admirável. Um grande homem!
Tomou do braço de Artur, levou-o consigo:
– Quando a recepção terminar não te vás embora. Quero conversar contigo...
No grupo houve um silêncio. O senador, despedia-se, gostava de dormir cedo. Mas antes de sair ainda disse:
– Se houver um golpe eu perco minha cadeira de senador, mas não me importa. Desde que haja um governo forte, capaz de pôr cobro aos comunistas, ele tem meu apoio...
O professor estava impressionado, interrogou Shopel que conhecia bem Plínio Salgado, havia mesmo editado livros seus:
– Será que o doutor Plínio ainda se recordará de mim? Fui seu professor durante dois anos...
O poeta parecia imerso em cogitações. De súbito perguntou ao professor:
– Doutor Morais, me diga uma coisa: por que o senhor não entra para a Ação Integralista?
O professor recuou um pouco ante a proposta:
– Nunca fiz política em toda a minha vida, vivi sempre entre meu consultório, o laboratório da Faculdade e os alunos...
O poeta segurou-o pelo braço:
– O senhor pensa como os integralistas, o senhor possui um nome conhecido e ilustre, por que não colocá-lo a serviço dessas idéias que são também as suas? Para os integralistas sua adesão seria de muita utilidade e para o senhor...
Puxou o professor para junto de si, sussurrava-lhe aos ouvidos:
– Veja, professor Morais: quando Plínio Salgado, há quatro ou cinco anos, apareceu falando em integralismo todo mundo ria dele. Hoje Costa Vale – o banco e a indústria – o senador Florival – as fazendas, o latifúndio – o apóiam, estão com êle e, assim, todo mundo. Ele está aí, está no governo...
– O doutor Artur tem dúvidas...
– Um poço de ambição e um pote de vaidade. Inteligente mas sem visão política. Está certo que será Ministro se doutor Armando ganhar as eleições. Isso se chegasse a haver eleições... Mas, professor, já não estamos no tempo da liberal-democracia...
O professor alçou os olhos para o teto:
– O mundo perdeu o juízo, Shopel. Eu não sei pan onde marcha... Nem o mundo nem o Brasil...
– Ainda duvida, professor? O Brasil marcha para o integralismo e o senhor pode ser reitor da Universidade de São Paulo.
– Não, não duvido. Sua proposta é interessante e eu estou inclinado a aceitá-la. Muitas vezes antes pensei nisso. Mas não conheço essa gente jovem que está à frente do integralismo e tinha receio de ir incomodar o doutor Plínio... Mas se você se dispõe a transmitir-lhe minha solidariedade...
Fazia-se confidencial:
– Você me conhece, Shopel, sabe que tenho família grande, tenho que pensar no futuro dos meus...
– Amanhã mesmo falarei com Plínio. Os integralistas vão ficar contentes, é uma grande adesão nesse momento decisivo...
– Eu lhe sou muito agradecido...
O poeta calculava o interesse que a adesão do professor, nome conhecido nos círculos científicos, poderia ter para os integralistas. Amava fazer desses pequenos favores aos fascistas se bem jamais houvesse oficialmente ingressado no partido. Durante algum tempo continuou a fazer o elogio do integralismo para o professor com se tivesse medo que esse recuasse. E daí falaram nos tempos atuais e no aspecto desolador da humanidade se afundando cada vez mais num “sórdido materialismo”,. O poeta era católico, sua poesia estava cheia do horror do pecado, do tenor da ira de Deus, das penas do inferno, de cataclismos inesperados, do juízo final. Começou a desenvolver para o professor uma teoria salvadora:
– Deus castiga os homens que perderam o senso da vida simples e da humildade... Devíamos retornar a uma austeridade, a uma sobriedade de vida como a dos antigos ascetas.
E foi desenrolando essa tese que se dirigiu, em companhia do professor, para a outra sala onde estava servida a mesa de doces e salgados. Garçons passavam com bebidas. Junto à mesa, o poeta encontrou Susana Vieira que devorava, com seus dentes gulosos, pequenas porções de pão cobertas de caviar.
– Uma delícia... – disse ela.
O professor desaparecera na confusão em torno à mesa. O poeta deixou de fitar o decote do vestido de Susana, por onde podia imaginar a rigidez dos seios jovens, para receber das mãos enluvadas do garçom um prato repleto. E, enquanto comia, explanou para a moça sorridente ao seu lado, a sua teoria sobre a austeridade, a sobriedade, a vida ascética capazes de arrancar o mundo do abismo onde se enterrara. Ali estava a salvação do homem, a única coisa ainda a tentar. Suzana Vieira ouvia risonha as palavras às quais César Guilherme imprimia um tom profético:
– Uma cabana no deserto, as orações e as macerações longe de todas as vaidades da vida, gafanhotos por único alimento...
Farelos de pastel rolavam dos cantos dos seus lábios sobre o queixo gordo, caíam no peito alvo da camisa, na gola negra do “smoking”.
Enquanto caminhava para o canto da sala de onde a Comendadora da Torre, cercada de todo um grupo, a chamava, Marieta ia recebendo cumprimentos e galanteios, elogios à sua elegância ou à sua beleza, aos quais respondia maquinalmente, quase sem o sentir. Seu pensamento estava longe, estava em Paulo que podia chegar a São Paulo a qualquer momento, amanhã, quem sabe? Todo seu coração estremecia ao pensar que talvez no dia seguinte o pudesse ver, ouvi-lo falar com sua voz displicente e cansada. Recordava-se de quando êle viera despedir-se, antes de viajar para a Colômbia, há uns sete meses. Estava contente com o posto diplomático, confiou-lhe suas simpatias pela carreira: não havia quase nada que fazer, poderia ler, ver quadros, escrever... Por ora era a Colômbia. Bogotá não lhe interessava muito, mas com um ano ou dois conseguiria um posto na Europa, em Paris talvez e isso era bom... O rosto do rapaz, orgulhoso, de ar fatigado, estava naquele dia excepcionalmente alegre. Fazia projetos, traçava planos, Marieta o escutava de coração cortado: êle ia partir, quando ela o voltaria a ver?
Amanhã talvez êle chegue de regresso, mais uma vez ela poderá fitar aquela face que parece indiferente a tudo como se carregasse o fastio de gerações e gerações. Paulo recordava-lhe o pai, mas não o Artur de hoje, ao qual a política tinha roubado quase toda a naturalidade, mas aquele outro Artur de há vinte e cinco anos que a deixara para ir casar com uma moça rica, a filha de um governador do Estado e fazer-se assim em seguida deputado. Tinham os dois idênticos ar de satisfação para consigo mesmos e de desprezo para todos os demais. A mesma afabilidade que escondia – com que dor Marieta constatava – a incapacidade total de ser bom e verdadeiramente amigo. Era o mesmo Artur repetido agora, o mesmo rapaz que ela amara loucamente, a cujo abandono pensara não resistir. Fora necessário naquele tempo empregar toda a força de vontade de que era dotada para vencer a crise e buscar, ela também, o seu caminho de riqueza. Quando Costa Vale apareceu em sua vida, ela ainda estava sofrendo por Artur. Mas se refez e vingou-se dele fazendo-se sua amiga, negando-lhe esse amor pelo qual não quis sacrificar-se. Tivera outros amantes, não fora uma santa nesses vinte e cinco anos de vida matrimonial com um homem doente e eternamente ocupado com seus bancos e suas fábricas. Todos êle foram ligações pouco importantes, nenhum tomou dela nada além do que ela desejou lhe dar. E, de súbito, quando Paulo regressou, de um ano passado numa aventurosa viagem através de Mato Grosso e Goiás, em companhia de uns artistas estrangeiros, ela percebeu que êle se apossara de todos os seus sentimentos. Durante mais de um ano foi quase feliz com o vê-lo em todas as partes, com as longas conversas às quais Paulo se habituara de muito pois Marieta tomara um pouco o lugar de sua mãe, morta quando êle era ainda criança.
Não pudera ficar em São Paulo quando êle fora nomeado segundo-secretário de Embaixada em Bogotá. Eis por que arrastara Costa Vale àquela viagem pela Europa, sob o pretexto de que êle necessitava consultar as celebridades médicas do velho continente. E na Europa fora o esperar ansioso de cada raro cartão de Paulo, cartões onde o rapaz se queixava da monotonia de Bogotá e falava em pedir umas férias indefinidas. Na Europa a alcançara também o ruído do escândalo dado por Paulo e ela arrumara as malas, convencera Costa Vale das vantagens do avião sobre os tardos navios, e desembarcara em São Paulo esperando encontrá-lo. Talvez amanhã ela o veja, possa contemplar aquela face magra e enfastiada de tudo.
Mesmo antes de alcançar o grupo em torno à Comendadora da Torre, ela adivinha que é sobre Paulo que falam. Comentam a bebedeira e Marieta se esforça para sorrir. A Comendadora tomou-a pela mão – rugosa mão cheia de ânsia, fê-la sentar-se ao seu lado:
– Sente-se aqui, meu amor, e conte-me tudo, tintim por tintiin, que sabe sobre o caso do Paulinho...
– Mas se não sei nada, Comendadora. Eu estava na Europa...
– Você é intima de Arturzinho, êle lhe terá contado...
– Nem conversamos ainda...
Um jovem, de cabelos alisados à força de brilhantina, quis saber se era verdade que estava presente à festa, na hora do escândalo, o Ministro de Relações Exteriores da Colômbia. Ninguém sabia ao certo. O que todos sabiam é que Paulo dissera uma série de palavrões à senhora que tentara despir em plena sala de baile. O jovem de cabelos engomados fez o moralista:
– Um horror Era uma senhora da alta sociedade...
A Comendadora da Torre conservava, de sua mocidade, certa liberdade de expressão nem sempre muito condizente com sua atual riqueza e importância social:
– Da alta sociedade... Mas se rebolava com êle na cama, não era? Ele lhe disse em público coisas que naturalmente já lhe havia dito na intimidade... Bobagens...
Voltou-se para Marieta:
– Não acha, Marieta? Quem pode atirar a primeira pedra? Eu me lembro desse rapaz; ele uma vez comeu em minha casa. Achei que êle era simpático; tinha uma cara cansada como se não gostasse de nada. Ora, tomou seu pileque, fez bem.
Agora todos simpatizavam com a atitude de Paulo já que ela merecia a aprovação da Comendadora. Essa Comendadora da Torre, hoje carregada de jóias caras, cujos vestidos vinham de Paris, fora um dia, há muitos anos já, tantos que ela nem mais se recorda, uma simples prostituta, e até fome passara. Havia quem dissesse que fora ela quem amassara, com suas rudes mãos, a riqueza do marido. O Comendador tinha sido um português modesto, se haveria contentado com a pequena indústria inicial, mas a ambição da mulher o aguilhoara e êle se atirara audaciosamente à construção de fábricas, montando em poucos anos a base da indústria têxtil no Estado. Fora ela também quem o obrigara a comprar o título de Comendador, algo que ostentar nos meios elegantes. Agora, viúva e velha, arrastava pelas festas sua bajulada fortuna e certas vezes gostava de humilhar esses jovens orgulhosos das suas tradições de famílias, dos seus quatrocentos anos de paulista, esses aristocratas do café. Não tinha papas na língua, sabia que o dinheiro lhe dava uma agradável imunidade e era temida, Por outro lado amava proteger certos jovens que lhe caíam na simpatia, envolvia-se na política, nas eleições para a Academia Brasileira de Letras, era adulada. O poeta Shopel lhe dedicara um largo poema onde falava da sua infância triste e ela lhe fornecera o capital necessário para êle fundar a sua casa editora (à qual aliás se associara depois Costa Vale). Agora se interessava por Paulo. Durante dias se divertira com os comentários em torno ao escândalo dado pelo jovem diplomata e aos poucos a idéia de proteger Paulo foi criando raízes dentro dela. Tinha duas sobrinhas, que mantinha longe das festas e da alta sociedade, internadas num colégio de freiras apesar de já haverem concluído o curso, e era chegado o tempo de casá-las. Paulo descendia de uma dessas velhas famílias paulistas; seu pai era um político em evidência e o rapaz estava na diplomacia. Voltou-se para os jovens em torno à sua poltrona:
– Vão-se embora, vão comer e beber, vão fazer qualquer coisa. Não quero vê-los mais em minha frente, seus más-línguas...
Riu. Eles riram também, ela ficou só com Marieta.
– Marieta, você conhece esse rapaz. Que tal ele é?
– É um bom rapaz, eu o quero como a um filho. Tomou sua bebedeira, foi uma tolice...
– É claro, mas isso não tem importância. Nada vai lhe suceder e esses disse-não-disse só servem para excitar o interesse das mulheres por êle... Quando êle chegar, vai ter uma fartura de amantes...
Marieta desejava ir-se, aquela conversa sobre Paulo a enervava, enchia-lhe de pensamentos inquietos. Pretextou ter que atender aos convidados.
– Faça-me um favor – pediu a velha. – Se encontrar por aí o pai desse rapaz mande-o aqui. Quero falar com êle...
Que desejaria ela? – interrogava-se Marieta enquanto procurava Artur pela sala. Talvez tivesse resolvido intervir a favor de Paulo junto ao ministro, essa velha louca era capaz de tudo quando se tomava de amores por alguém. Encontrou Artur que vinha de deixar Costa Vale:
– A Comendadora da Torre quer falar contigo. Está apaixonada por Paulo, não sei o que quer...
Apontou a poltrona de onde a milionária os olhava. Artur dirigiu para lá os seus passos. A velha o fitou demoradamente:
– Como vai, seu deputado? Então o seu filho anda pelos jornais?
Artur sentava-se a seu lado;
– Pura exploração política. Aproveitaram a farra do rapaz para atacar a candidatura do doutor Armando. Tentaram colocar-me fora de combate mas não é tão fácil assim como eles pensam. Não sou homem para me assustar com campanhas de imprensa...
A velha Comendadora o interrompeu bruscamente:
– Não diga idiotices... – fitava o deputado com seus olhos que conservavam uma certa juventude. – Tudo isso é idiota...
– O quê? – perguntou Artur, surpreso.
– Tudo que o senhor diz. Não se assustar, etc. No fundo o senhor está preocupado e a campanha eleitoral o inquieta mais do que o senhor desejaria. Preocupado com a sorte do seu filho, com as eleições ameaçadas, com os integralistas, com Getúlio... Por que quer me enganar? Muita gente pensa que sou uma velha ridícula, imbecil, um traste antigo que se tem a obrigação de convidar aos jantares e às recepções porque é rica...
O deputado ficou calado, a Comendadora prosseguiu:
– Deixemos isso de lado, quero falar do seu filho. Eu o vi uma vez em minha casa, gostei dele. .. Eu lhe falo franco, gosto ainda mais desse nome sonoro que o senhor tem. Como é mesmo seu nome todo?
– Artur Carneiro Macedo da Rocha.
– Isso: Carneiro Macedo da Rocha... Um bom nome, cheira a coisa antiga. Quando é que seu filho chega?
– Eu mesmo não sei... Talvez amanhã...
– Traga-o para jantar em minha casa no primeiro domingo que êle passar em São Paulo. Quero apresentá-lo às minhas sobrinhas. Estão em idade de casar, são minhas herdeiras. Deus não quis me dar filhos...
Que estava pensando aquela velha louca e vaidosa? – perguntava-se Artur. Jamais entendera proposta tão cínica e direta e, em sua vida política, ouvira muitas propostas cínicas. Não podia tomar aquele convite para jantar senão como uma proposta de casamento para Paulo. Fitava o chão em sua frente, que pensava dele a Comendadora, da sua honorabilidade, da sua delicadeza de sentimentos? Sentia-se um pouco ofendido mas, ao mesmo tempo, a sua ambição, aquela tentação de dinheiro que dirigira toda a sua vida, fora aguçada pela perspectiva aberta pela velha. Resolveu ganhar tempo:
– É um grande prazer jantar com o Paulo em sua casa. Mas eu devo partir para o Rio ainda esta semana, para uma reunião importante com outros líderes da candidatura do doutor Armando...
– Tolice, O senhor deve saber perfeitamente que não vai haver nenhuma eleição. Ou o senhor faz que não sabe ou então é mais tolo do que eu pensava. Todo mundo sabe disso...
– Boatos...
A velha tinha agora uma voz quase insolente:
– O senhor é advogado, é deputado, é de uma família que vem do Império, dá entrevistas nos jornais, faz discursos na Câmara. Eu comecei num armazém e esse título de Comendadora me custou duzentos contos de réis, contados. Enfim, êle não me vai mal de todo. Mas, seu político, ouça uma coisa: quando eu digo que as eleições não se realizarão é que eu sei que elas não se realizarão.
Levantava-se com esforço da poltrona:
– Leve o rapaz para jantar em minha casa. Minhas sobrinhas são bonitas e bem educadas. Marieta Vale me disse que seu filho é um bom rapaz. Eu espero que êle seja menos tolo que o pai.
Erguera-se de todo, era pequena e curvada, só os olhos pareciam jovens e pareciam rir de Artur.
– Dê-me o braço, deputado, acompanhe-me até o automóvel...
Do outro extremo da sala, Marieta os observava desatenta à conversa em torno dela, doida para saber que coisas haviam falado Artur e a Comendadora. Sentia-se como se tivesse dezoito anos, adolescente que amasse pela primeira vez, um amor doloroso e impossível.
– Estou ficando ridícula... – pensou consigo mesma. Estendia a mão indiferente aos convidados que se despediam. Que projetos tinha a Comendadora para Paulo? Quando chegaria êle, meu Deus, quando ela o veria, quando o apertaria nos seus braços desejando-lhe as boas-vindas? Amanhã talvez e Marieta sabe que não poderá dormir, que suas noites serão de insônia até que êle chegue e então comece um outro sofrimento mais agudo ainda.
Esperaram até que o criado arrumasse os copos, as garrafas, o gelo, todo o material necessário para os uísques. Marieta fez um sinal com a mão que êle podia ir-se. Ficaram os três a sós, num canto familiar da sala enorme e silenciosa. Costa Vale havia tirado o paletó e o colete, desabotoava o peitilho engomado da camisa. Depois estendeu-se, num suspiro de alívio, numa poltrona, enquanto Marieta servia os uísques. Artur olhava o casal, sentia o nervosismo de Marieta e aquela rígida calma de Costa Vale, cuja palidez acentuava-se no confronto com o couro negro da poltrona. Assim, quase deitado na cadeira, o banqueiro dava uma impressão de homem acabado, a quem não restasse senão pouco tempo de vida. Toda energia parecia haver-lhe abandonado mas Artur sabia quanto era falsa essa impressão. Esse homem pálido e doente possuía imensas reservas de força, numa ambição descomunal de fazer dinheiro e sabia fazê-lo como nenhuma das outras pessoas que Artur conhecia.
Marieta suspendeu o cálice, num brinde:
– Pelo prazer de estarmos a sós...
Costa Vale estendeu a mão para o copo, bebeu um trago largo, falou enquanto se ajeitava outra vez sobre a poltrona, semicerrando os olhos:
– Então, Arturzinho, como vão as coisas? Que me diz dessas eleições?
– Quer os boatos ou os fatos? – sorriu Artur.
– Quero tudo. Por vezes, menino, os boatos é que são a realidade e os fatos são apenas sua máscara.
Marieta intervinha:
– Os boatos nos perseguiam por toda Europa. Em cada Embaixada, em cada consulado, todos tinham o que contar. Ninguém parecia se sentir seguro nem sobre o que pode vir a acontecer nem sobre o seu emprego. Por toda parte, pareciam ratos amedrontados...
– Aqui é a mesma coisa. Seja no Rio, aqui em São Paulo, em qualquer pequena cidade, todo mundo parece temer alguma coisa. Como se o céu estivesse carregado de nuvens, dessas que anunciam tempestade. Só que você olha o céu e êle está azul e não se sabe então por que esse medo, essa expectativa.
A voz de Costa Vale veio do fundo da poltrona:
– Menino, não há pior tempestade do que aquela sem nuvens carregadas, que estala quando o céu está límpido. É o que chamam no interior de “trovoada seca”. – Fez uma pausa, abriu de todo os olhos, agora fitava o deputado. – E tu, que sabes de certo? Conta-me tudo. Tu estás no meio dos acontecimentos, deves poder julgar melhor que os outros. Qual a tua impressão? Golpe de Estado? De quem? Getúlio? Os integralistas? Os dois associados? E o pessoal de José Américo? Que dizem a Bahia e Pernambuco? E vocês com o doutor Armando? Fala, menino, eu estou morto para saber.
Artur começou a contar. Era como se desse um balanço para si mesmo. Costa Vale e Marieta ouviam atentos, o banqueiro semicerrara novamente os olhos, apenas os dedos polegares que êle movimentava nas mãos entrelaçadas indicavam que existia vida naquele corpo de palidez cadavérica.
– Uma coisa que pode se considerar certa: Getúlio e os integralistas estão aliados. Os termos exatos dessa aliança não se sabe. Há quem diga que Plínio Salgado será ministro da Educação e que os integralistas terão ainda outro ministério, como há quem diga que Getúlio ficará na presidência como uma figura de proa e Plínio será o verdadeiro ditador. Uma espécie de Hindenburgo e Hitler. Os integralistas já falam por toda a parte como senhores. Ameaçam e por vezes vão além das ameaças. Em certos municípios têm até espancado eleitores nossos. A polícia não faz nada. Eles desfilam, gritam, fazem discursos...
– São simpáticos esses integralistas – comentou o banqueiro sem mesmo abrir os olhos.
– Sua atitude mudou muito em relação a nós. Há um ano mantivemos conversações com eles, tu te recordas, dr. Armando fez mesmo referências elogiosas ao fascismo e pensávamos que seria possível uma aliança para as eleições. Agora eles nos chamam de “parasitas”, de sanguessugas”, de “políticos profissionais”!
Continuou narrando. Falou da campanha de José Américo, populacheira, prometendo mundos e fundos à massa, falando em reformas econômicas, numa fraseologia confusa mas que captava eleitores.
– A verdade é que se houver eleições José Américo será eleito. O Norte em peso vota nele, Minas também, e quando êle era ministro da Viação, fizeram sua popularidade.
Agora Costa Vale se agitava na poltrona:
– Esse não será presidente. Com eleições ou sem eleições, a verdade, menino, é que os americanos não vão deixar José Américo subir as escadas do Catete. Ele disse muita besteira nessa campanha, eu acompanhei pelos jornais. Não que eu pense que êle vá fazer nada do que disse, mesmo que êle quisesse não poderia. Mas os nossos amigos americanos gostam das coisas seguras e esse Zé Américo andou falando em antiimperialismo e outras besteiras assim. O mal dele é ser um tabaréu da Paraíba que não entende nada de política. Vai levar uma porrada que talvez lhe ensine. Conversei em Paris com um homem importante do Departamento de Estado. Estava muito preocupado com a demagogia de José Américo. “Tudo menos Zé Américo”, me disse.
Artur sorria contente:
– Tu vês, é o que eu pensava. A cada discurso de José Américo eu via que êle se enterrava mais. Não sei quem o convenceu .– talvez fossem os comunistas – de que política é o povo quem faz. Essa é uma fórmula que pode servir na Inglaterra ou nos Estados Unidos. Mas no Brasil quem faz política é Londres e Nova Iorque.
– Berlim também, menino, Berlim, não te esqueças. E não comeces com Londres. Ouça, Arturzinho, o que te vou dizer. Vocês também vão levar uma porrada de criar bicho para aprender que a Inglaterra é um leão que perdeu os dentes. Vocês já apanharam em 1930, em 1932 e vão apanhar agora...
Artur suspirou, tomou o copo de uísque, bebeu:
– Não vai ser tão fácil assim... Nós também temos cabeça e desde que Getúlio começou a ameaçar com o golpe, nós começamos a nos preparar também. Tu dizes que Londres não pesa mais. Pois bem, José, foi na Embaixada inglesa que me deram, detalhe por detalhe, todo o plano de Getúlio, suas conversas com os integralistas, e o conselho de nos prepararmos por nosso lado... É o que estamos fazendo; há gente boa do Exército na brincadeira, nós e o Rio Grande do Sul. Podemos voltar aos tempos de antes de 1930...
– Os ingleses estão financiando essa conspiração de vocês? Não bastou 1932 para te convencer, Arturzinho, que os dias dos ingleses no Brasil estão contados?
– Eles têm enormes capitais ainda aqui em São Paulo, nos frigoríficos do Rio Grande, um pouco por toda parte. Não penses que se trata de um plano no ar. A polícia militar do Rio Grande do Sul recebeu um grande carregamento de armas modernas, chegadas da Inglaterra, via Argentina. É um verdadeiro Exército. Aqui também estamos bem armados. E podemos pegar Getúlio de surpresa; ele pensa que estamos enterrados até o pescoço nas eleições.
Costa Vale se levantava – andava de um lado para outro, finalmente parou em frente a Artur:
– Ouça, menino, vocês estão jogando uma cartada perdida. Londres não conta mais na vida política do Brasil. Eles possuem por aí uns restos de capital, mas por quanto tempo os possuirão ainda? Há uma divisão do mundo, Arturzinho, e a América do Sul, pertence aos Estados Unidos. A Inglaterra fica pela Índia e pela Arábia; mas aí mesmo os americanos vão entrando cada vez mais. Eu te digo, menino, a coisa hoje se coloca entre os americanos e os alemães. Teu mal, Artur, é pensar que o mundo fica parado. Tu és de uma família do Império, dos tempos em que a Inglaterra mandava e desmandava aqui. És conservador, estás acostumado aos ingleses, às suas estradas de ferro, às suas minas, aos seus costumes também. Pensavas que isso era eterno, coisa vinda do Império, sagrada, uma herança de família como o teu nome. Levaste a porrada de 30, a revolução de Getúlio, e não compreendeste então que os americanos haviam tomado o lugar dos ingleses. Te lembras do que eu te disse quando vieste me falar da conspiração de 1932? E eu, que fiz eu? Tenho ganho muito dinheiro com os amerIcanos. Há muito dinheiro a ganhar com eles... Só que eu não sei se não há mais ainda a ganhar com os alemães.
– Tu pensas que os americanos vão sustentar Getúlio se nós nos levantarmos?
– Segurissimamente... – o banqueiro separava as sílabas para dar mais força à palavra. – Getúlio é o homem dos americanos, como Plínio é o homem dos alemães...
– Mas eles estão unidos; Getúlio parece agora mais fascista do que qualquer integralista. Não crês mais na possibilidade de um entendimento entre ingleses e americanos que entre americanos e alemães?
O banqueiro refletiu:
– Essa aliança de Getúlio e de Plínio é como a da raposa com o gato. Um quer comer o outro. É isso o que me preocupa, Arturzinho, só isso: quem vai ser o capataz nessa fazenda que se chama Brasil? Com quem devemos marchar? Com os americanos ou com os alemães? Quanto aos ingleses, foi um dia...
Estendia o copo a Marieta para que servisse outro uísque, novamente caminhava pela sala, falando:
– Hitler é o futuro. A guerra não tarda, Arturzinho. A guerra da Alemanha contra a Rússia. Quando Hitler tiver a Rússia, tem toda a Europa, inclusive a Inglaterra. E então a coisa vai se decidir entre êle e os americanos. O importante é saber o momento exato de apoiá-lo aqui. Talvez seja ainda cedo... Mas, de qualquer maneira, é preciso estar de olhos abertos. Sabe, os alemães fizeram-me grandes propostas de negócios. Estou estudando o assunto
Artur se lastimava:
– E eu que contava contigo para convencer alguns generais... Contávamos muito sobre ti, José, essa é a verdade.
– Não, menino, eu não marcho nesse golpe de vocês. Não me convence. Vai ser outra vez 1932, se chegar a ser... Sou franco contigo, como sempre: não marcho. E, se queres um conselho, tira isso da cabeça. Mais dias menos dia vem o golpe de Getúlio. Vai para a tua fazenda uns tempos, descansar, depois volta e já haverá lugar para ti...
– Não posso, José. Estou comprometido.
– Besteira, Arturzinho. Diga ao dr. Armando que é inútil. E, se êle não se convencer, trata tu de sair disso. Ainda tens tempo. Afinal não és uma criança para não ter juízo. E, outra coisa, não fiques falando mal do integralismo por aí como vives fazendo. Os integralistas poderão vir a ser muito úteis... E muito poderosos.
– Tu o crês, então?
– Eu creio que a guerra vai vir. A guerra contra a Rússia, já é tempo de acabar com esse foco de infecção. Hitler é o homem de que o mundo precisa. Os demais governos lhe facilitarão tudo para acabar com o comunismo. E depois que êle abocanhar a Rússia, então o capital alemão se estenderá por todo o mundo. Os integralistas são os seus homens, no Brasil. Além da colônia alemã, não te esqueças dela, é importante. É preciso, nesse momento, saber manter-se entre os alemães e os americanos, tratar com os dois, ou seja, com Getúlio e com Plínio Salgado... Depois já se verá... Armando Sales e José Américo não contam para nada. Se tu queres ir até o fim da campanha eleitoral – e quando digo fim da campanha eleitoral, digo o dia do golpe de Estado – por honra da firma, podes ir. Mas não vás além disso. Recolhe-te à fazenda, ouve o rádio, lê os jornais, eu te mandarei chamar depois... O que não quero é que faças besteiras, que te metas novamente em conspirações sem possibilidades de vitória. Pensa bem no que te digo...
Marieta estendeu a mão por sobre a poltrona, pousou-a no braço de Artur que se curvara para a frente, num ar de desânimo:
– José está a par das coisas. Tu não podes te lançar numa aventura, não é só por ti, é também por Paulo. Principalmente agora com esse pretexto que têm, poderiam demiti-lo se tu aparecesses envolvido numa conspiração... José conversou com muita gente na Europa...
Artur voltou-se para ela:
– Esse mês de outubro me perseguiu... – espiou o relógio sobre um móvel da sala, eram mais de duas horas da madrugada – novembro já começou e as más notícias não terminaram. Sabes como acabei o mês, José? – seus olhos buscavam o banqueiro outra vez estendido na poltrona. – Com uma entrevista com um dirigente comunista. Não sei como se chama, apresentou-se com o nome de João. Propunha a aliança de todas as forças democráticas contra Getúlio e os integralistas... Uma espécie de “Front Popular” para evitar o golpe. .. Uma idéia tentadora se não viesse dos comunistas...
– Forças democráticas – o banqueiro lançava as palavras com desprezo –, forças democráticas... Que pensas tu dos franceses que foram envolvidos pelas conversas dos comunistas? Tudo que eles desejam, radicais ou socialistas, é sair da embrulhada em que se meteram. Só existe uma união possível, Artur, e hoje o senador Florival o dizia com palavras brutais de fazendeiro: a união contra os comunistas. É esta que se está fazendo na Europa e se vai fazer aqui... Seja com Getúlio, seja com Plínio como centro... Penso que ainda será Getúlio, dentro de poucos dias te poderei dizer com certeza. O que vocês precisam, os políticos democráticos, é conversar com Plínio e não com os comunistas... Para conversar com esses, temos a polícia. Tu vais me prometer uma coisa: desmanchar essa conspiração armandista. Ou, se não o puderes, pelo menos sair dela...
Levantava-se, apanhava o paletó, o colete e a gravata, bocejava:
– Vou dormir... Amanhã estarei no banco, mas penso ir para o Rio depois de amanhã. Ver como marcham as coisas. Não virás comigo?
– Sim, devo ir à Câmara...
Ficou só com Marieta. Durante um momento foi um silêncio cheio de pensamentos diversos. Artur refletia sobre tudo o que o banqueiro lhe dissera. Marieta pensava em Paulo, por fim deixou cair a pergunta que a enervava desde a recepção:
– O que é que a Comendadora queria?
Artur suspendeu o rosto:
– Aquela velha é maluca... Penso que ela deseja casar o Paulo com uma de suas sobrinhas. Disse-me quase claramente: “leve o rapaz para comer em minha casa. Minhas sobrinhas estão em idade de casar, são minhas herdeiras”. Uma espécie de negócio: o nome da família contra seu dinheiro...
– Tu fizeste quase o mesmo negócio... Casaste para ser deputado.
– É verdade... Mas Paulo não precisa... Temos de que viver, ele já está encaminhado na diplomacia... Enfim... Que tu pensas?
O que ela pensava? Seus sentimentos quase a afogavam, ela sentia vontade de chorar. Fez um esforço para responder:
– Por que não? A Comendadora possui uma das maiores fortunas do Estado. Uma pessoa como Paulo precisa de muito dinheiro para viver... Assim não necessitará de servir aos outros como tu serves a José... Meu Deus, não desejo que Paulo seja jamais mandado por ninguém... Talvez o melhor seja mesmo que êle se case com uma dessas meninas. Assim terá dinheiro e será livre...
Artur pensava nas palavras do banqueiro:
– O plano da conspiração está tão bem amarrado... E não gosto desses integralistas. Eles são tão vulgares...
– A vida é vulgar – generalizou Marieta. – Esse horrível Shopel escreveu num poema que tudo que resta é a solidão. Penso que êle tem razão. Por vezes me sinto tão só...
– Tens a mim... Sou teu amigo.
– Não, não te tenho, nem a José, nem a ninguém. Nem mesmo a Paulo para quem fui como uma mãe. Ninguém tem a ninguém, muito menos a quem se deseja ter...
Artur sorriu em meio aos seus pensamentos e calculou:
– Voltaste dramática da Europa. Algum amor fatal por lá?
– Não digas bobagens. Contigo jamais se poderá falar de coisas sérias.
– Não achas sério o que falamos, José e eu?
– Que me importam eleições, Hitler, americanos, ingleses, comunistas e russos? Isso importa a ti que não gostas de trabalhar e vives desses enredos políticos, importa a José que deles faz dinheiro, a vocês que vivem para isso..
– E tu, para que vives? j
Ela o olhou, repetiu a pergunta para si mesma. Não encontrou resposta, estendeu.lhe a mão:
– Vou-me embora, sou uma idiota.
O chofer dormia na almofada do carro. A chuva recomeçara. Artur respirou o ar da madrugada, deixou que os pingos d’água molhassem sua face. Outubro fora um mês de más notícias, novembro se iniciava sob presságios ainda mais soturnos. Buscou algo que pudesse alegrá-lo em meio a tantas coisas desagradáveis. E foi na Comendadora que êle pensou, no anunciado jantar em sua casa, nas sobrinhas casadoiras, nas fábricas de tecidos, nas ações de estradas de ferro, enquanto se sentava no automóvel. Restava saber se Paulo estaria de acordo. Contava com Marieta para ajudá-lo a convencer aquele estróina...
Naquele dia Mariana completava vinte e dois anos e à noite haviam vindo alguns camaradas à sua casa, a pretexto de festejar o acontecimento, O velho Orestes havia enviado umas garrafas de vinho de abacaxi que ele mesmo fabricava nas horas de folga. Mariana esperava que êle chegasse para servir o vinho e as talhadas de um bolo que sua mãe fizera. Não havia muito o que comer e beber, os tempos eram maus, a própria Mariana fora despedida da fábrica há dois meses, agora se entregara por completo à atividade partidária e os funcionários do Partido ganhavam muito pouco, um minguado salário quase sempre recebido pela metade. Se não fosse o velho Orestes, um ex-anarquista italiano que jamais perdera, apesar de se haver tornado comunista há muitos anos, o amor às frases retumbantes e o anticlericalismo violento, nem vinho haveria para as visitas. No entanto, Mariana se sentia alegre, havia posto seu melhor vestido e trazia uma flor vermelha nos cabelos castanhos que contornavam um rosto cheio de doçura. Seus grandes olhos negros expressavam toda a alegria que a possuía naquele seu aniversário. Pela manhã, no quarto onde dormia com a mãe, ela pensara em sua vida, “dera um balanço autocrítico” como diziam nas reuniões de célula. Ingressara no Partido aos dezoito anos mas, em verdade, desde muito jovem sua vida estivera ligada aos comunistas. Seu pai tinha sido um dos mais antigos militantes do Partido e, na casa que ocupava antes da sua morte, um pouco maior e melhor que a atual, muita reunião ilegal se tinha realizado, muito material de propaganda tinha sido escondido e por mais de uma vez a polícia chegara pela noite, acordando os moradores, dizendo palavrões, ameaçando, vasculhando os menores recantos.
Mariana recordará sempre a primeira “batida” da polícia em sua casa. Ela não havia completado mesmo quatorze anos e era franzina e irrequieta. Os policiais apareceram pela madrugada e ela, através da porta entreaberta do seu quarto, os via tirando livros da pequena estante – aqueles livros que o pai lia pela noite adentro com uns óculos rebentados, amarrados com cordão, aqueles livros cujos dorsos Mariana limpava a cada dia para que o pai, ao chegar da fábrica, os encontrasse sem nenhuma partícula de pó, aqueles livros que ela amava então pelo amor que o pai lhes tinha – jogando-os sobre uma mesa, repetindo títulos que Mariana sabia de cor de tanto os mirar em mãos do pai, sentada aos seus pés, enquanto êle lia: “O manifesto comunista”. “Origens da família”. “O extremismo, doença infantil do comunismo”, um resumo do “Capital” em espanhol. Um dos investigadores os empilhava uns sobre os outros, enquanto, um pouco à parte, um cigarro apagado no canto dos lábios, um mulato de voz rouca, que parecia ser o chefe do grupo, dizia para seu pai:
– Prepare-se para nos acompanhar...
A mãe estava pálida, de lábios cerrados, A irmã menor não acordara e Mariana via o pai vestindo o paletó, lentamente, o rosto sério, esse rosto em geral risonho que ela tanto amara. Depois o viu dirigir-se para onde estava a mãe e beijá-la na face. Foi neste momento que ela abandonou seu esconderijo e se precipitou na sala, agarrando o pai pelo braço:
– Para onde o senhor vai?
– E ele sorriu, aquele mesmo sorriso com que respondia às inúmeras perguntas sobre os mais diversos assuntos colocadas pela infatigável curiosidade de Mariana quando, à noite, se sentava na pequena sala, ao lado da estante de livros; sorriu e tomou-a nos braços, beijou-lhe os olhos:
– Vou preso. Cuide de mamãe e da irmãzinha. Seja uma boa menina enquanto eu estiver fora...
O policial mulato dava pressa:
– Vam’embora...
Ela se desprendeu dos braços do pai, veio se colocar ao lado da mãe, calada, uma raiva crescendo dentro dela e um esforço para não chorar, pois adivinhava que o pai não gostaria de vê-la chorando naquela hora. Ele ia saindo da sala,. cercado pelos três investigadores, um dos quais levava o pacote de livros. O mulato lançou um derradeiro olhar em torno, ao grupo de mãe e filha silenciosas. Sorria e Mariana não se pôde conter diante daquele sorriso insultante: correu para ele de punhos fechados, batia-lhe no peito com ódio
– Desgraçado! Bandido!
O policial segurou-lhe nos braços, atirou-a no chão mas ela voltava a atacá-lo, com as mãos e os pés.
Foi seu pai quem, retornando do corredor que conduzia à porta da rua, a veio acalmar:
– Calma, Mariana. Cuide da mamãe e da irmãzinha.
O mulato comentou, reajustando a gravata:
– Filho de comunista já nasce de sangue ruim – riu um riso satisfeito, apontou os braços de Mariana onde se viam as marcas vermelhas da pressão que êle fizera ao segurá-la. – De outra vez, menina, eu lhe marco melhor... – jogou no chão a ponta apagada de cigarro, saiu atrás dos outros.
A mãe caminhou para a porta onde ficou até ouvir o ruído do automóvel partindo entre as descargas do motor. Na sala, Mariana chorava baixinho, mirando os pulsos doloridos. Sentia-se um pouco humilhada, não pela brutalidade do policial, mas por não ter sabido se conter, quem sabe se isso não seria mau para seu pai? Olhou assim, com ar medroso, a mãe que voltava. Mas ela acariciou-lhe a cabeça e a levou consigo para o quarto do pai, onde, sobre uma pequena mesa, ao lado do grande leito de casal, estavam os seus óculos de aros partidos. A mãe retirou as cobertas, levantou o colchão, pegou sob as tábuas da cama uns papéis impressos, disse-lhe:
– Venha me ajudar... Eles podem voltar com o dia para uma busca mais rigorosa.
Acenderam o fogo e quando terminaram de queimar os volantes, e os velhos números da “Classe Operária” a manhã vinha chegando azulada sobre a cidade. A mãe pôs um xale na cabeça e saiu para ir avisar aos camaradas.
Depois Mariana, com o passar dos tempos, se habituou às visitas da polícia. Lera também os livros que o pai possuía, outros livros que camaradas emprestavam, o material impresso pelo Partido. Ouvira muitas vezes o pai discutindo com os outros e assim se formam militante, conduzindo volantes sob a blusa, levando recados, guardando a porta da rua quando havia reuniões em sua casa, de tal forma que lhe parecia ter sempre pertencido ao Partido. Aos quinze anos deixara a escola pela fábrica de tecidos onde, um ano depois, a irmã mais moça viera lhe fazer companhia. O pai, muito visado pela polícia, não parava em nenhum emprego; a mãe fora obrigada a retornar à fábrica que deixara desde o casamento. Era uma das fábricas da Comendadora da Torre e elas tinham conseguido trabalho porque a Comendadora, quando recém-casada tinha sido vizinha da sua família.
Foi com a morte do pai que ela ingressou no Partido. Ele estivera muitos meses preso durante a luta “constitucionalista” de 1932 e quando o soltaram estava envelhecido e fraco. Arranjou emprego numa oficina mecânica mas não durou muito; apanhou o tifo e morreu em poucos dias. Foram dias de quase contínuo delírio, onde êle repetia, monótona e dramaticamente, a mesma frase com que enfrenta ra as torturas policiais:
– De mim não arrancam nada.
Mariana sentava-se ao lado da cama, nas noites insones, e, escutando-o repetir aquela frase, podia reconstruir os seus sofrimentos na cadeia, sobre os quais êle jamais falava em casa. A irmã mais moça preocupava-se com cinema, com vestidos – economizando no salário para comprar vistosas fazendas baratas – com romances para moças, namorava rapazes do bairro, parecia não tomar conhecimento das atividades políticas do pai. A mãe sofria num silêncio resignado, a cabeça cheia de cabelos brancos apesar de ter pouco mais de quarenta anos. Só Mariana parecia compreender toda a ignorada grandeza da vida do pai e certo dia, durante uma das suas repetidas prisões, expulsara de casa uma vizinha linguaruda que lastimava a mãe:
– É esse negócio de comunismo... Em vez de cuidar da família, de trabalhar no seu canto sossegado, vai se meter com essas invenções do demônio...
Também o pai fora se ligando cada vez mais a ela no correr dos anos, alegre de explicar-lhe a significação da luta operária, de contar-lhe sobre a União Soviética, de falar-lhe sobre Lenin e Stalin. Pusera aqueles seus livros tão amados em suas mãos adolescentes e Mariana podia ver a alegria resplandecer na sua face quando êle constatava o interesse que ela tomava pela luta do Partido. Certa vez êle lhe dissera:
– Eu mesmo não sei muito, minha filha. Foi já depois de homem feito que compreendi a significação da nossa luta. E isso mudou tudo para mim: antes a vida era vazia e eu achava o trabalho um ganha-pão apenas. Vocês duas eram pequenas, tua mãe era moça e bonita, e, no entanto, muitas noites eu ia para a rua, pra casa de amigos ou pro botequim. Hoje no Partido, sei que o trabalho não é humilhante, humilhante é a opressão e que só lutando contra ela podemos melhorar a vida. Desde então tudo foi alegre para mim e nunca mais me cansei de vocês... A mãe tem sofrido muito com essa minha vida, sei que às vezes vocês têm passado dificuldades. Mas penso que estou no caminho direito, no único que liberta a gente do sofrimento.
Mariana tinha dezesseis anos quando êle lhe dissera essas coisas numa noite em que estavam os dois sós em casa. A mãe fora de visita com a irmã. Mas já possuía uma certa seriedade no encarar a vida e se fizera já uma das mais capazes operárias da fábrica, respeitada pelos companheiros de trabalho. Disse ao pai:
– Penso que o senhor faz bem, pai. Só não entendo mesmo como todos não são comunistas, como tem operários que não se interessam...
– É preciso ser paciente e explicar, explicar, sempre. Nós somos como professores e soldados, ao mesmo tempo... Um dia, tu verás, não seremos mais uma parte dos operários, seremos milhares e milhares.
Essas coisas conversavam. Mariana aprendia com o pai e com outros camaradas. Quando o pai estava preso era quase sempre ela quem ia visitá-lo nos dias de permissão. Conhecera muitos camaradas, alguns eram simpáticos e perdiam tempo discutindo com ela, explicando-lhe problemas, outros quase não tomavam conhecimento daquela morena de rosto grave, mas ela sentia-se ligada a todos eles e quando um dia lhe deram uns números da “Classe” para distribuir na fábrica se encontrou tão orgulhosa quanto a irmã menor ao ser deita rainha numa festa de bairro.
Nas vésperas da morte, a febre abandonou o pai por algumas horas, êle procurou Mariana com os olhos fundos. Ela trouxe-lhe um caldo de laranjas com que umedeceu seus lábios secos. Sua voz estava fraca e ela teve de sentar-se na cama para melhor entendê-lo. Passou a mão no rosto sem barbear, disse-lhe:
– O senhor hoje está muito melhor...
– Eu vou morrer, Mariana. Estou muito fraco e não posso resistir. Mas antes quero te falar...
Estendeu a mão onde os ossos forçavam a pele esverdeada, tomou a mão da filha:
– Quero que ocupes o meu lugar no Partido. Não somos muitos e não desejo que minha morte abra um claro em nossas fileiras. E tu podes fazer bem mais do que eu; és jovem, tens estudado, és inteligente... Tu és comunista não é?
Cada palavra lhe custava um esforço. Mariana balançou a cabeça numa afirmação. Continha as lágrimas e os soluços.
– O lugar de um comunista é no Partido. Eu te deixo o meu lugar...
Ficou um minuto silencioso, alisou com a mão ossuda a mão da filha, sorriu com melancolia:
– Eu pensava que um dia militaríamos juntos eu e tu. Mas basta saber que tu tomarás meu lugar para que eu não morra triste. É a herança que te deixo...
Durante a noite, a febre voltou, com ela o delírio mas agora êle já não recordava as torturas na prisão. Repetia trechos dos livros lidos, daqueles seus livros cujo dorso Mariana ainda agora limpava todos os dias. Morreu pela manhãzinha quando Mariana e a irmã se preparavam pan ir para a fábrica. À tarde foi o enterro, ao qual vieram muitos operários e duas delegações sindicais. À beira do túmulo, um camarada, que Mariana não conhecia, dissera algumas palavras: “É um herói anônimo da classe operária que enterramos hoje, mas a bandeira que êle conduziu com tanta valentia se levantará cada vez mais alto nas mãos do proletariado até o dia da vitória; é a invencível bandeira de Marx, de Engels. de Lenin e de Stalin.”
No silêncio triste da casa enlutada, onde parentes e vizinhos se entreolhavam entre lágrimas, ela pensava nas palavras daquele camarada desconhecido – alguém lhe segredara tratar-se de um “dirigente” – saído ninguém sabe de onde para saudar seu pai em nome daqueles homens decididos a mudar a face da vida. No meio da sua dor, aquelas palavras valiam não apenas como um consolo – não era só ela a única a reconhecer a grandeza da vida do pai – mas também como um chamado à luta. Via a bandeira a quem o homem se referira como uma coisa concreta, via-a tremulando em meio a uma batalha desesperada e via seu pai tombando e o lugar vazio que êle deixara. E, ao mesmo tempo, todas as ações do seu pai – as saídas noturnas para as reuniões clandestinas, a agitação desenvolvida nas fábricas onde trabalhara e das quais era geralmente despedido, as prisões, os livros lidos pela noite adentro, a paciência ao lhe explicar a sua concepção do mundo e da vida, sua bondade e sua firmeza – como que se uniam para adquirir uma significação maior, como pedaços de panos de cores diversas, unidos, formam uma bandeira gloriosa. No pesado silêncio da sala, a figura do pai se levantava da velha cadeira ao lado da estante e crescia diante de Mariana. Ela podia enxergá-lo agora, depois do discurso do camarada à beira do túmulo, numa medida nova e seu amor filial misturou-se a uma admiração que a enchia de força e de coragem. No outro dia, na fábrica, procurara um camarada que ela conhecia e pediu ingresso no Partido; enquanto esperava a decisão, viveu inquieta no medo de ser recusada, não completara ainda dezoito anos, podiam não tomá-la a sério. Durante esses dias, ao voltar da fábrica, após o magro jantar engolido às pressas, lia e relia os livros que êle deixara, procurando penetrar no sentido das frases, relembrar as explicações que êle lhe dera. A mãe a observava em silêncio como a adivinhar que aquela também se entregaria a um destino perigoso, que por aquela também ela teria de velar as noites, cheia de inquietação. A irmã, num vestido novo de luto, conversava na esquina com um namorado: o açougueiro do bairro com quem se casou meses depois, deixando para sempre a fábrica e distanciando-se cada vez mais de Mariana.
Mais de quatro anos tinham passado sobre o dia em que ela “recebera a saudação”, ingressara no Partido. Acontecera inesperadamente numa manhã, uns vinte dias depois da morte de seu pai. Ela preparara a máquina para mudar um fuso quando um operário ao qual jamais falara se aproximara e dissera em voz baixa, com um sorriso tímido nos lábios:
– Mariana, os camaradas lhe mandaram a saudação.
Ela levantou o rosto, surpresa:
– Que saudação?
– Você foi admitida no Partido. Na hora da saída para o almoço eu lhe espero na porta, a gente conversa...
Depois foi a primeira reunião de célula, foram as tarefas na fábrica: distribuição da “Classe” e de material, agitação no sindicato, trabalho de finanças, as discussões, o estudo. A célula era pequena naquele tempo e o recrutamento fazia-se cercado de medidas de grande segurança; somente os mais provados nas lutas sindicais eram trabalhados para vir ao Partido. Mas aquela pequena célula ilegal dirigia os acontecimentos na fábrica, dali partiam. as palavras de ordem reivindicativas, dali nasciam as agitações por aumento de salário, fora aquela pequena célula o centro diretor da grande greve que reuniu todos os operários da fábrica, no ano de 1934, greve vitoriosa que consolidara o prestígio dos comunistas entre os trabalhadores. Mariana fizera parte do comitê de greve, eleito em tumultuosa assembléia de sindicato. Desenvolveu intensa atividade naqueles dias difíceis, quando era necessário convencer as operárias – grande percentagem na fábrica têxtil – das possibilidades de vitória, das vantagens que se seguiriam àqueles dias sem salário quando crianças choravam pedindo o que comer. E tão bem trabalhou que, durante os piores dias, após a prisão de alguns companheiros e a despedida, pela direção da fábrica, de todo o comitê de greve e de outros operários, quando vários davam o movimento como derrotado, foram as mulheres as primeiras a votar pela sua continuação, já agora exigindo não apenas o aumento de salário, causa anterior da greve, mas também a liberdade dos presos e a reintegração dos demitidos. Mariana tinha sido logo despedida da fábrica mas se encontrava constantemente com os operários, conversando com um e com outro, animando a todos. Alguns dias depois a direção da fábrica cedera. O aumento de salário foi concedido e os operários demiti dos voltaram. Alguns, porém, ainda estavam presos e a direção da fábrica dizia que nada tinha a ver com aquilo, era um assunto da polícia política. Mariana organizou então uma comissão de mulheres e as levou a falar com a Comendadora da Torre. Ao mesmo tempo em que o comitê de greve discutia com a direção da fábrica as novas tabelas de salários.
A Comendadora as recebera afetando um complacente ar protetor. As operárias sentiam-se pouco à vontade no suntuoso salão atulhado de bric a brac e olhavam-se intimidadas, sem encontrar o que dizer enquanto a Comendadora lhes ralhava com uma voz falsamente maternal:
– Greve... greve... Fui eu quem mandou dar o aumento de salário. Não devia fazer já que vocês entraram em greve, sem considerações sobre os problemas que afligem os patrões... Por que não vieram aqui falar comigo, conversar comigo, dizer o que necessitavam, em vez de entrar em greve, de parar a fábrica? A gente teria resolvido tudo, conversando. Vocês pensam que nós também não temos nossas dificuldades? Os tempos são ruins para todos e vocês, com essa greve, vieram nos dar um grande prejuízo, atrasaram a produção, perdemos vários contratos... Mas eu tenho coração e tive pena dos filhos de vocês... Por isso mandei dar o aumento. Por que não vieram falar comigo? De outra vez venham aqui, em lugar de ir atrás dos comunistas que só querem o mal de vocês e o nosso. Eu podia ter mandado despedir todo mundo, só não fiz de pena, e depois que iam vocês fazer? Passar fome... É isso que os comunistas querem...
Mariana aproveitou-se da interrupção para falar:
– A senhora disse pra gente vir falar com a senhora e nós estamos aqui para isso...
– O que é ainda? – a voz da Comendadora perdera o tom maternal, era desconfiada e dura.
– Há companheiros que ainda estão presos...
– Esses são comunistas. É bom que eles aprendam...
– Então a greve continua.
A Comendadora olhou o grupo de mulheres em sua frente, as palavras de Mariana as reanimaram e elas já não tinham o ar amedrontado do começo. Mariana continuou:
– As condições para a volta ao trabalho foram o aumento do salário e a reintegração de todos os operários demitidos. Os que estão presos também.
A voz da Comendadora ganhava novamente aquela nota de maternal piedade como uma mãe a falar aos filhos estouvados:
– Vocês estão loucas, perderam o juízo e o amor aos filhos? Como vocês vão continuar essa greve se estão já morrendo de fome, não têm o que comer? E no fim do mês com que vão pagar o aluguel de casa? É uma loucura... Se vocês se obstinam, eu posso me obstinar também e serão vocês que perderão. Não têm já o aumento? Não era isso que queriam? Vocês não pensam nos filhos?
– Os companheiros estão presos porque lutaram por nós. Nós devemos ser solidárias com eles. Mesmo que seja passando fome...
A Comendadora passeou o olhar pelas mulheres. Esperava tê-las abalado com suas palavras mas as via em torno dessa jovem de rosto grave e decidido e pensou nas encomendas a entregar, na fábrica parada há três semanas, nos prejuízos se a greve continuasse. No entanto fez um último esforço:
– Voltem ao trabalho, eu vou pensar no assunto. Não depende só de mim, depende também da polícia. Eu verei depois o que posso fazer.
– Comendadora, a gente não volta ao trabalho enquanto os companheiros não forem soltos.
“Uma comunista”, pensou a Comendadora examinando Mariana com seus olhos que não envelheciam. Aquela face doce e grave recordava-lhe alguém que ela não podia localizar em sua memória tão cheia de fatos e figuras. Naquele momento já estava disposta a ceder. A fábrica não podia continuar parada e sabia que aos poucos poderia ir despedindo os chefes da greve, os operários mais combativos, sob diversos pretextos. Daria nesse sentido ordens à direção da empresa. Mas agora não queria que a sua decisão aparecesse aos olhos das operárias como uma vitória delas mas sim como uma concessão do seu bom coração. Fez ainda mais terna sua voz de velha:
– Para falar a verdade eu nem sabia que tinha gente presa. Operários meus, vocês disseram? Eles bem mereceram, mas para mim cada operário das minhas fábricas é como uma pessoa de minha família e eu não gosto de ver ninguém sofrendo... Naturalmente eles têm família, foram sem dúvida enganados pelos comunistas...
Do grupo cerrado avançou uma mulher, falou de olhos baixos:
– Um é meu marido...
– Seu marido... Pobrezinha... – a Comendadora cobriu o rosto de afetuosa piedade. – Essas coisas me põem doente, sou uma velha que não gosta de ver o sofrimento de pessoa alguma. Eu vou telefonar ao chefe de policia agora mesmo... Porque vocês vieram aqui me pedir, por amor dessa pobrezinha separada do marido. Mas, de outra vez, ouçam bem!, eu não terei pena, deixarei tudo morrer de fome se houver outra greve...
– A greve é a arma que temos para que não nos matem de fome... – respondeu Mariana, fitando a velha.
As mulheres se retiravam, e agora, vitoriosas, conseguido o que desejavam, lançavam olhares curiosos aos jarros, estatuetas, ao grande lustre de cristal no salão grávido de luxo. A Comendadora reteve Mariana.
– Como você se chama, minha filha?
– Mariana de Azevedo.
– Azevedo... – a Comendadora buscava na sua memória onde esse nome ressoava.
– Sou filha de Antônio de Azevedo que morou na rua Caetano Pinto faz muitos anos...
Agora a Comendadora sabia a quem ela recordava, a quem ela saíra. “Filho de peixe, peixinho é”, pensou consigo fitando Mariana ao mesmo tempo que lhe perguntava, a voz amiga:
– Como vai sua mãe? Ela também fez a greve?
– Ela está noutra fábrica...
“Essa deve ser despedida antes de todos”, decidia a Comendadora, mas a sua boca dizia amavelmente:
– Dê lembranças a ela. Seu pai foi um louco, fez ela sofrer muito, não vá você seguir o mesmo caminho...
Estendeu a mão de anéis, Mariana tocou-lhe na ponta dos dedos. A velha sorria mas seus olhos jovens tinham um brilho mau. Mariana sorria também, estava contente com a vitória. Alcançou as mulheres às quais um mordomo de ar enjoado e solene abria a porta da rua. A mulher cujo marido estava preso comentou:
– A velha não é mim...
– Que é que você está pensando? – atalhou Mariana. – Que ela vai mandar soltar os homens de pena de você? Coisa nenhuma... Aquilo tudo foi representação, ela vai soltar porque, se a greve continuar, o prejuízo para ela é enorme... Eles têm encomendas urgentes que já estão atrasadas... Só por isso, Antonieta. Ali não há pingo de bondade, aquela velha é ruim como todos os demônios.
Dias depois, quando o trabalho na fábrica se normalizara, ela foi chamada à direção. O gerente, um italiano alto com fama de bom engenheiro, a recebeu com muita amabilidade. Fê-la sentar-se numa cadeira em frente à sua mesa, pediu-lhe o favor de esperar um momento enquanto êle despachava um outro assunto urgente. Que poderia ser? interrogava-se Mariana. Quando a chamaram, ficara certa que era para anunciar-lhe a despedida. Mas agora, ante a amabilidade do gerente, já não sabia do que se pudesse tratar. Um dos camaradas do comitê de greve fora posto na rua nas vésperas, a pretexto de falta de assiduidade ao trabalho. Haviam-lhe pago o mês como mandava a lei getulista, e corriam rumores que o mesmo sucederia com todos os membros do comitê de greve. A célula do Partido agitava já o assunto, buscando preparar o pessoal para um movimento de protesto se as demissões prosseguissem. Um volante tinha sido impresso e distribuído entre os operários, era discutido nas secções, junto às máquinas.
O gerente terminou de assinar uns papéis, voltou-se para ela, começou a lhe explicar:
– Tenho uma boa notícia para você. Você foi com um grupo de operários à casa da Comendadora, há alguns dias, não foi? Pois bem: a Comendadora gostou de você.
Apontou o retrato da velha – um quadro na parede do fundo, ao lado do retrato do finado Comendador – um retrato antigo de quando ela tinha uns cinqüenta anos:
– Ela é assim... Quando uma pessoa lhe agrada, ela quer ajudá-la. Mandou lhe oferecer um lugar de governante em casa dela. É um presente do céu: bom ordenado, cinco vezes o que você ganha aqui, casa, comida, roupa à altura da casa, possibilidade de viajar, enfim, um lugar que eu desejaria para minha própria mulher... E, com tanta gente que freqüenta a casa dela e você com essa carinha bonita, um dia arranja um bom casamento... Eu lhe dou os meus parabéns...
O curioso é que Mariana ante o inesperado da proposta não pensou nem em seu pai, nem mesmo nos camaradas da células, nas companheiras da secção de fiação; foi no velho Orestes que ela pensou. Jamais êle lhe estenderia a mão, nem beijaria seu rosto, estalando os lábios, onde largos bigodes ásperos cheiravam a tabaco, se ela aceitasse. O velho Orestes conservava dos seus tempos de anarquista um horror pelos serviços domésticos, pelos empregos de criada de quarto, de governante, de mordomo, os quais segundo ele criavam nos que os exerciam certa mentalidade servil de escravo e de mendigo. Mariana sorriu pensando na desilusão do velho se a soubesse em tal emprego e nos palavrões em italiano saltando de entre seus eriçados bigodes, nas amargas considerações que êle faria para todo o bairro sobre o seu mau caráter, as duras frases com que lastimaria a memória do Pai. O gerente tomou seu sorriso como uma aceitação agradecida.
– Pode ir amanhã de manhã. Não precisa levar roupa, lhe darão outros vestidos mais próprios. Vou mandar pagar-lhe o salário até hoje e um mês de férias..
Mariana se levantou da cadeira:
– Muito obrigada, doutor Giovanni, mas eu não aceito. Gosto do trabalho na fábrica, não tenho nem jeito nem bastante instrução para ser governante numa casa de gente rica. Diga à Comendadora que eu fico muito grata mas não posso aceitar...
A surpresa do gerente era tamanha que Mariana riu pensando no quanto riria o velho Orestes, alisando os bigodes para melhor o riso escorrer dos lábios, quando ela lhe relatasse a cena. O homem ficou sem palavras, parecia-lhe jamais ter ouvido nada tão inacreditável quanto aquela recusa. De pé, ainda sorrindo, Mariana esperava que ele a despedisse. Mas ele a reteve, falou-lhe durante quase dez minutos, tentando convencê-la.
– É inútil, doutor Giovanni. Eu não aceito. Estou contente com meu trabalho, não quero mudar de profissão.
O gerente deixou cair a mão sobre a mesa num gesto de impotência. Aquela recusa obstinada sobrepujava sua capacidade de julgar os demais.
– Só posso pensar que você é louca. Só uma louca recusaria essa oferta. Não sei como a Comendadora vai receber a notícia mas não espero nada de bom.
Quando Mariana saiu do gabinete encontrou uma comissão de operários na ante-sala. Estavam ali por ela, tinham sido mobilizados rapidamente pela célula, dispostos a intervir se a despedissem. Um deles lhe perguntou:
– Lhe deram o “bilhete azul”?
– Não. Queriam me comprar...
À noite, o velho Orestes realmente riu às gargalhadas, estremecendo as pontas longas do bigode branco, e como de também conhecera a velha Comendadora na rua Caetano Pinto, ao tempo inicial de sua vida de casada, contou sobre ela boas histórias apimentadas, cuja comicidade êle aumentava a intercalar suas exclamações italianas, suas sonoras pragas meridionais que ressoavam tão alegres e claramente quanto a sua gargalhada solta. Após ter rido bastante, ter ridicularizado a Comendadora, êle tomou entre as suas a mão de Mariana e falou sério:
– Tu vês, “cara piccina”, como éles são, essa porca burguesia... Quando descobrem um operário disposto a lutar por sua classe eles logo pensam em comprar ele ou acabar com ele... “Dio boia”, tu só tá começando a trabalhar e eles já exageram que tu é um perigo pra eles. A velha “schifosa”, a porca desgraçada pensou logo em te comprar com um lugar de criada. É assim, “piccina, carina mia”, que eles pensam dividir a gente, impedir a luta do operário. Eles usam de tudo: da polícia e do dinheiro. Não te deixes enganar nunca pensando que eles têm coração. A burguesia só tem estômago, estômago, tripa, tripa e mais nada!
Tinham sido quatro anos cheios de acontecimentos, nem sempre era fácil resolver as dificuldades, muito menos vencer certos sentimentos. Com a irmã as relações se tornavam cada vez mais agudas, a distância entre elas se fazia maior à proporção que o tempo passava, e cada encontro, cada visita da irmã à pequena casa onde tinham ido habitar, após a morte do pai, era um incidente desagradável quando não uma dolorosa cena. A primeira motivara-se da oferta da Comendadora da Torre. Como a notícia chegara aos ouvidos da irmã, Mariana não sabia. Mas ela apareceu alvoroçada, querendo saber as razões da recusa de Mariana, “recusa idiota”, ela dizia. Depois que casara a irmã pensava pela cabeça do marido cuja única ambição era ver progredir o seu açougue, era adquirir outros. As palavras de censura que nunca ousara pronunciar contra o pai, ela as lançava agora à face de Mariana:
– Não basta o que o pai nos fez com essas idéias...
– Que ele fez?
– Muitas vezes a gente comeu porque os vizinhos tinham pena...
– Não tinham pena, eram solidários.
– Não sou doutora pra escolher palavras. Não basta o que a mãe já sofreu? Ou você quer matar a pobre de desgosto?
– A mãe sabe que o pai linha razão e que eu tenho razão. A mãe não abandonou a sua classe...
– Isso é uma acusação? Bonito futuro em cima de uma máquina de fiação. Pra você sou uma criminosa porque abandonei um trabalho desgraçado pra casar com um homem honesto e trabalhador? Manuel não é nenhum letrado mas ele não é também nenhum burro e todo dia êle me diz que êsse negócio de comunismo só serve para atrapalhar a vida.,.
O marido era um português, filho de pequenos lavradores a quem o tio fizera vir ainda menino para o Brasil. Desse tio herdara o açougue e um saudosismo chauvinista que o fazia admirar incondicionalmente tudo que fosse português, inclusive o salazarismo. O açougueiro vivia no receio de ser incomodado pela polícia devido às atividades de Mariana. Logo depois do casamento, Mariana costumava ir visitá-los, com a mãe, aos domingos. Amava a irmã, gostaria de poder contar com ela nas suas bons de solidão, de lhe poder narrar suas coisas íntimas. Mas o cunhado amarrava a cara quando a via chegar, dizia coisas desagradáveis. Mariana foi espaçando as visitas, a mãe se habituou a ir sozinha, Passou a encontrar a irmã somente quando ela vinha vê-las, orgulhosa dos vestidos de seda, dos sapatos de salto alto. E as recriminações se sucediam a cada visita:
– Se tivesse aceitado o emprego da Comendadora, a mãe não precisava trabalhar. Entre as duas, poderíamos sustentá-la..
Mariana linha vontade de perguntar-lhe por que ela não levava a mãe para morar em sua casa, onde havia um quarto vazio e um pequeno conforto bem diferente dessas duas peças nos fundos de uma vila, que mais parecia um cortiço. Mas não perguntava, para que tornar ainda mais difíceis as relações entre elas? Por vezes era preciso que a mãe interviesse para a irmã calar-se:
– Não estou morrendo de fome, não sou tão velha que não possa trabalhar. Mariana é boa filha, o que ela pensa é assunto dela, ninguém tem direito de se meter.
A irmã apontava os velhos vestidos rasgados da mãe:
– Mas a senhora anda por aí pior que mendiga... Uma ocasião como essa, um emprego desse é coisa que não se repete. Manuel ficou até espantado com a bondade da Comendadora depois do que Mariana fez nessa greve...
Também na fábrica as coisas se tornavam difíceis. Só não fora despedida porque a direção temia um movimento de protesto dos operários. Mas perseguiam-na de todos os modos e ela pensava mesmo dever sua primeira prisão a uma denúncia da direção da fábrica. Fora presa alguns meses depois da greve, quando ia em caminho da fábrica. Constatou porém, nos interrogatórios que a polícia não sabia nada de concreto sobre ela, além dos fatos de ser filha de comunista e de haver participado ativamente da greve. Durante oito dias esteve numa cela incomunicável, sofreu dois interrogatórios, mas terminou sendo posta em liberdade. Num corredor, uma ocasião que a levavam para o gabinete do delegado onde devia ser interrogada, viu aquele mesmo mulato que prendera seu pai há muitos anos.
A irmã estava em casa quando ela chegou e pela primeira vez não lhe disse palavras amargas, abraçou-se nela, chorando, e aquele gesto lhe deu tanta alegria que compensava as lembranças do ambiente sórdido da cadeia, Outra alegria foi constatar que os camaradas se haviam preocupado em que nada faltasse à mãe. Todas as manhãs o velho Orestes vinha saber como a mãe estava, se havia o suficiente na pobre prateleira ao lado do fogão. Mariana conhecia bem as dificuldades financeiras do movimento, sabia a dureza da vida dos camaradas, os miúdos sacrifícios quotidianos, emocionou-se quando a mãe lhe estendeu a nota de cem mil-réis:
– O Socorro mandou esse dinheiro mas não precisei...
A irmã aconselhou:
– Compra uma fazenda pra uma saia e uns sapatos. Os teus estão de fazer dó...
– Não, vou restituir o dinheiro. Amanhã cai qualquer outra camarada e assim se tem pra ajudar a família.
O pior é que aproveitaram o pretexto para despedi-la da fábrica. Os operários protestaram, sua secção parou o trabalho durante vinte e quatro horas, mas não havia no momento possibilidades de um movimento mais sério. Alguns dias depois, ela conseguiu trabalho noutra fábrica, bem menor, com salário mais baixo.
Era desta que tinha sido despedida há dois meses quando o gerente concluiu sem sobra de dúvidas (há muito que êle desconfiava dela apesar das precauções de Mariana, agora bem mais experiente do trabalho ilegal) ser ela o centro de toda aquela surda agitação, de todo aquele descontentamento crescente entre os operários dos quais resultara uma ação coletiva na Justiça do Trabalho. Antes da sua entrada, não havia célula na fábrica. Um único camarada trabalhava ali e reunia-se numa célula de bairro. Mas havia simpatizantes, alguns bastante firmes, e pouco tempo depois da chegada de Mariana, já tinham um círculo de leitores da “Classe”, um bom número de contribuintes do Socorro Vermelho, e uma pequena célula de quatro membros. Ao ser despedida (continuo o destino de meu pai, pensara ela ao receber a notícia), deixava uma célula de oito militantes, um sólido grupo de contribuintes e aquela luta por aumento de salário. O gerente admirou-se de ver continuar a agitação entre os operários depois de sua partida. Comentou para o proprietário:
– Ela saiu mas deixou aqui os micróbios. Esses comunistas são como os ventos maus que trazem as infecções. Eles se vão mas a peste fica...
– O que a gente precisa é dos integralistas no poder – respondeu o proprietário. – Eles saberão terminar com os comunistas. E não vai tardar, se Deus quiser.
Foi depois dessa sua expulsão da fábrica que o Partido decidira seu desligamento da produção. Sucessivas quedas de camaradas tinham-se dado nos aparelhos de direção média e mesmo superior e o comitê regional decidira substituir os quadros de ligação, muitos deles marcados pela polícia. Precisavam de novos “estafetas”, e os buscavam entre os militantes provados no trabalho de base e ao mesmo tempo desconhecidos pelos investigadores. Mariana estivera presa mas a haviam soltado certos de que ela nada tinha a ver com o Partido, que fora à greve como os demais, nada se apurara contra ela. Quanto aos acontecimentos da outra fábrica não tinham repercutido na polícia. Além disso, o fato de tratar-se de uma mulher, facilitaria a tarefa. Por esse tempo não eram muitas as mulheres no Partido e a polícia política muito mais facilmente seguiria a pista de um homem que a de uma jovem de grandes olhos negros. Por tudo isso ela foi designada como elemento de ligação entre os membros da direção regional de São Paulo do Partido Comunista do Brasil. Isso ela repetiu para si mesma, à noite, em casa, após a conversa com o camarada Ruivo. O camarada chamara sua atenção para a responsabilidade imensa, para a confiança depositada nela pelo Partido:
– Você terá praticamente em suas mãos, Mariana, toda a direção regional do Partido. Será a única pessoa a saber os endereços de certos dirigentes, praticamente a liberdade de cada um deles fica em suas mãos. Compreende o que isso significa?
Mariana balançou a cabeça, repetindo o gesto afirmativo com a mesma gravidade com que o fizera já uma vez antes, naquele dia quando seu pai lhe perguntara, no leito de agonizante, se ela era comunista e se tomaria o seu lugar no Partido. Acrescentou:
– Significa que podem me matar de pancada na polícia, se eu cair, e não falarei.
Só por uma ocasião antes, ela conversara com o camarada Ruivo, há mais de um ano, quando colocara diante do Partido o problema de fundar uma célula na fábrica onde recém–ingressara. Ele discutira então com ela, longamente, dera-lhe explicações sobre como pesar a decisão, a firmeza, a capacidade de cada simpatizante antes de convidá-lo para militar numa célula. Depois disso ela não voltara a vê-lo, não o conhecia bem, e agora, ouvindo-o tossir, pensou restar-lhe talvez alguma desconfiança em relação às suas possibilidades de resistência num caso de prisão. Não sabia que o Ruivo estava com um pulmão comprometido, aquela era uma tosse de doente. Levantou a cabeça, olhou de frente com seus olhos negros:
– Quando digo que podem me matar de pancadas antes d’eu falar é porque estou certa que será assim. Foi assim com meu pai, não sei se o camarada sabe. E êle morreu repetindo em seu delírio as únicas palavras que disse enquanto o torturavam: “De mim não tiram nada”. Essas serão também as minhas palavras, camarada.
– Sim, eu sei. Conheci muito bem seu pai, trabalhamos juntos e quando pensamos em você para essa tarefa levamos em conta esse fato. Por que você imagina que desconfio de você? – sorria.
– O camarada tossiu...
– Isso é o peito que anda complicado – continuava a sorrir e seu rosto muito branco como o de um nórdico europeu se enchia de amizade. – Meu pulmão esquerdo não é bolchevique. Sim, espero que você saberá se comportar como um comunista se for presa. Mas muito melhor é não ser presa. Você deve tomar todas as precauções, não é necessário que ninguém saiba da sua condição de comunista. Se lhe perguntarem, diga que não tem nada mais a ver com isso, que se cansou de perder emprego, que quer viver em paz.
Viu o desagrado refletir-se na face de Mariana.
– Você é comunista só para que os demais o saibam?
Não é isso. É que é... eu não sei dizer. Sabe como é, parece como esconder o melhor que se possui...
– Os milionários guardam suas melhores jóias nos cofres dos bancos. Já chegará um dia em que cada um poderá afirmar claramente suas convicções. Mas esse dia não chegou ainda. Compreende?
– Sim, eu o farei.
– É necessário também buscar uma ocupação qualquer para você, para que saibam que você tem um trabalho. Já pensamos nisso, acertamos com um médico simpatizante. Você vai ser empregada no seu consultório. Fica lá, sentada numa mesinha na sala de espera, introduz os clientes, atende o telefone, marca as consultas, essas coisas. Ele lhe explicará melhor. Mas, atenção, êle não sabe da sua tarefa. É um bom simpatizante mas nada além disso. Nós lhe dissemos que se tratava da filha de um camarada morto que estava sem trabalho. E é meu médico e inicialmente nosso “ponto” fica sendo mesmo o seu consultório. Você fica diretamente ligada à direção por meu intermédio.
A tosse o interrompeu, êle enxugou os lábios com um lenço, sorriu novamente:
– Vamos ser bons amigos. Eu gosto muito de conversar, quando tenho tempo para conversar. Antigamente gostava também de dançar quando eu era mais moço...
– O camarada é bem moço ainda...
– Trinta e cinco anos... mas já fazem bem cinco que não danço, penso que nem sei mais arrastar os pés. E agora, com esse pulmão assim, não poderia. O médico me diz: repouso, repouso, como se a gente pudesse repousar enquanto o fascismo avança pelo mundo e os integralistas marcham para o poder... Imagine só que êle queria me mandar para um Sanatório, em Campos do Jordão... Quando faltam os quadros, quando Prestes está preso, êle e tantos camaradas... Eu vou me curar é aqui mesmo e vai ser dessas curas de verdade, esse pulmão vai ficar mais forte que o são...
Ela disse com fervor:
– Assim espero.
– Eu também espero. Não quero morrer agora com Hitler no poder e Thallmann preso, com Mussolini no poder e Togliatti no exílio, com Getúlio no governo e Prestes na cadeia. Quero ver ainda as tabuletas do Partido legal nas sacadas de um prédio em São Paulo. E hei de ver, Mariana. Nós vamos passar dias difíceis, bem difíceis, mas depois tudo será melhor. O futuro é nosso e ninguém poderá nos roubar.
Durante esses dois meses ela tivera ocasião de conhecê-lo melhor e de o estimar. O que lhe agradava no Ruivo, sobretudo, era aquela sua dedicação ao Partido, aquela inabalável confiança na vitória. Quando adolescente, acompanhando através das repercussões familiares a luta do pai, Mariana se habituara a considerar essa contínua batalha dos comunistas como o quotidiano de certas vidas, mas via a vitória como uma longínqua aspiração, como a meta de um caminho a ser percorrido ainda por gerações e gerações. Esse sentimento a acompanhara, sem que ela mesma se desse conta, nos primeiros tempos de militança. Foi o movimento da Aliança Nacional Libertadora (que ampliara de muito a influência da célula do Partido na fábrica da Comendadora, onde ela trabalhava então) que colocou pela primeira vez diante dela essa sensação de vitória visível no horizonte da luta subterrânea. Mas a derrota da insurreição de 1935, o fechamento da Aliança que a precedeu, e, sobretudo a prisão de Prestes, a haviam novamente jogado naquela sensação de uma luta sem termo, como, se em vez de caminharem, marcassem passo. Acontecia por vezes discutirem, após as reuniões de célula onde decidiam do trabalho prático, as perspectivas de luta. Após a derrota da insurreição de 1935, com a reação furiosa desencadeada no país e o ascenso do fascismo nos Estados europeus, vários companheiros deixavam entender, através de frases reticentes de pessimismo, ser impossível qualquer modificação mais profunda no Brasil antes de uma vitória comunista nos Estados Unidos. Mariana sentia, mesmo em companheiros dedicados, nesses dias do ano de 1937, um certo desânimo refletindo-se sobre a atividade partidária, diminuindo-lhe o ritmo, expressando-se em criticas sussurradas sob a posição do Partido em face às candidaturas presidenciais, distantes das duas, mas procurando impulsioná-las para uma frente democrática, de luta contra o fascismo e o integralismo, utilizando a campanha eleitoral dos dois candidatos para levantar a bandeira da anistia a Prestes e aos demais revolucionários de 35. Alguns achavam que o Partido devia ter-se jogado de todo ao lado de um dos candidatos num compromisso eleitoral. Mariana defendia, nessas discussões, a linha do Partido, os companheiros da direção. Mas, antes de vir trabalhar com o Ruivo, sentia ir-se apoderando dela, mesmo contra sua vontade, aquele clima de tensão pessimista, aquele cochichar junto às máquinas e nos encontros ilegais, tentando sobre um golpe fascista capaz de assassinar Prestes na prisão e tentando liquidar, numa ofensiva fulminante, a atividade do Partido.
Certa noite, numa pequena festa em casa do velho Orestes (o velho festejava mais um aniversário de sua fuga, no porto de Montevidéu, do navio onde ia deportado de Buenos Aires para a Itália, logo após o fim da Primeira Guerra Mundial), ela ouvira do jornalista Abelardo Saquila uma frase que, algum tempo, se aferrara em sua memória, e que ela se encontrava repetindo para si mesma nos mais diversos momentos, inconscientemente, como, mesmo a contragosto, se repetem certos trechos de tolas canções carnavalescas, Discutiam nesse dia, sentados como sempre nos fundos da casa para que as vozes não atingissem a rua, a política nacional e internacional. Falavam nas ameaças de golpe, na guerra de Espanha, nos preparativos guerreiros de Hitler e de Mussolini. Alguém transmitira más notícias da China, lidas num artigo de uma revista norte-americana, O jornalista confirmou: parecia tudo perdido pela Ásia e, se a Espanha fosse vencida, então seria certamente a inundação fascista transbordando da Alemanha e da Itália sobre o mundo, num ímpeto irresistível, destruindo todo o movimento revolucionário como um rio em cheia monstruosa destrói as plantações, os caminhos e as aldeias. O jornalista achava que nos países semicoloniais o movimento comunista se encontra ante um impasse: não podia nem vencer nem mesmo progredir, dependia por inteiro do fim do capitalismo nos países imperialistas, naqueles que os dominavam política e economicamente. Dizia tudo aquilo tirando baforadas de fumo de um cachimbo, numa voz doutoral que não admitia discussões:
– O nosso movimento, aqui, como nos demais países da América Latina, nos países semicoloniais, e coloniais, em geral – com um gesto largo estendia o campo a cobrir com sua definição – recorda-me um homem querendo romper com a cabeça um desses grossos muros de pedra dos tempos coloniais. Queremos romper o muro de pedras com a cabeça, e rompemos apenas a nossa cabeça...
Houve um silêncio após a imagem tão pessimista, como se o intelectual, com suas palavras e os gestos que as reafirmavam, houvesse levantado aquele muro intransponível ali mesmo, em frente a eles. Uma saída anarquista do velho Orestes os fez rir e os pôs em guarda contra o pessimismo das palavras de Saquila:
– Se não for com a cabeça, a gente rompe êsse “maledetto” muro com uma boa bomba de dinamite... “Per Bacco” que não fica pedra sobre pedra... – e o velho se punha de pé, o braço estirado num gesto de lançar sua bomba vitoriosa.
Riram todos e um dos presentes começou a discutir com Saquila, citando os clássicos marxistas, citando Prestes, mostrando que, por mais difícil que fosse o momento, não havia nenhuma razão para desespero. O jornalista sorria, por entre o fumo do cachimbo como única resposta repetia sua imagem, encantado com ela, fazendo-a sonora e literária:
– Muro medieval de pedras, intransponível muralha...
Numa das suas conversações com o Ruivo, Mariana repetira-lhe a imagem de Abelardo Saquila. Ela o dizia um pouco em troça, para fazê-lo rir, réplica do velho Orestes, eternamente apaixonado por fulminantes bombas de dinamite. Aqueles sentimentos de desânimo e de nervosa expectativa, tinham-na abandonado já, à proporção que ela, em sua nova tarefa, sentia a profundidade do trabalho do Partido. Repetiu a frase de Saquila, imitando seu gesto dramático com a mão aberta, disse a resposta de Orestes, riu esperando o riso do Ruivo. Mas êle não riu, ouvia-a sério e seu rosto se pôs quase fechado para responder-lhe:
– Isso que te parece apenas uma frase sonora de um literato, é o indício de coisa muito mais séria. Há um trabalho do inimigo no seio mesmo do Partido, Mariana. Especialmente aqui, em São Paulo, onde está concentrado o grosso da indústria do país, onde a classe operária é mais numerosa e mais desenvolvida. Faz tempo já que a direção vem notando essa infiltração de ideologia estranha, esse trabalho de sapa tentando criar um ambiente de pânico entre os camaradas, levá-los ao desespero e, como conseqüência, ao afrouxamento do trabalho. Veja bem: o inimigo tenta impedir, com isso, por um lado, crescimento do Partido e de sua influência nos meios operários, nas grandes empresas, onde devem estar assentadas nossas raízes profundas. Por outro lado, tenta infiltrar em nosso seio uma ideologia pequeno-burguesa, desesperada e suicida. Há um grupo de pequenos burgueses, de intelectuais em geral, que vieram ao movimento por amadorismo ou por oportunismo no tempo da Aliança, e que serve de veículo a esse trabalho do inimigo. Saquila é um deles...
– Você quer dizer que ele é um inimigo?
– Eu digo que êle faz, consciente ou inconscientemente, isso não sei, depois veremos, o trabalho do inimigo. O Partido deve estar preparado para enfrentar essa gente, para desmascará-los quando eles tentarem qualquer coisa de mais sério.
– Você crê que eles tentarão fazer alguma coisa?
– Penso. Todas essas críticas contra nossa posição na campanha eleitoral, esse esforço para desarmar os camaradas, para levar o Partido ao desânimo, para desacreditar ao mesmo tempo a direção e o movimento comunista internacional, não são simples tagarelices sem maior importância. Por detrás disso há coisa mais séria, tu verás. É o trabalho de inimigo. Ele não se contenta com a polícia, com a cadeia, as surras. Esse é o lado brutal da reação mas existe o outro, mais sutil e por vezes mais perigoso para o Partido...
Estava de pé diante dela, a face inflamada de paixão como se fosse a mais querida pessoa de sua família que estivesse ameaçada:
– Essa frase trágica é posta na boca de Saquila pelos mesmos homens que fizeram o pacto antikomintern e que atiraram Franco contra a República Espanhola. Pelo capitalismo, Mariana, que usa de todos os meios para impedir a marcha do proletariado para o poder. Mas isso eles não poderão impedir nem com canhões nem com frases por mais sonoras que elas sejam...
A tosse o interrompeu, aquela tosse seca cujo ruído dava a Mariana uma sensação de injustiça, – parecia-lhe injusto um tal homem estar doente, suas palavras serem interrompidas pela tosse.
– Romper a cabeça contra o muro. Frase estúpida, Mariana. Bem idiota, minha filha. Porque a cabeça do homem pensa e não há muro, por mais duras que sejam suas pedras, que resista à vontade, ao pensamento e à ação do homem...
E o Ruivo lhe falava do proletariado, da sua missão histórica, abria-lhe as portas de um futuro próximo e vitorioso. Por vezes lhe dava livros a ler e ela adquiriu um dicionário português-espanhol, porque vários eram em espanhol e ela desejava penetrar o sentido de cada palavra e de cada frase de Lenin e Stalin. Muitas noites dormia sobre o livro, cansada das longas caminhadas tortuosas – ela fazia mais compridos ainda os caminhos que conduziam aos distantes esconderijos dos membros do comitê regional para evitar ser seguida. Na sala de espera do consultório lia também não os livros de teoria, mas romances e livros de poemas, amava sobretudo a poesia. Nesses últimos meses, sob o peso daquela tarefa tão responsável e perigosa, ela se sentia cheia de alegria de viver e espantava a mãe cantando, nas horas que passava em casa, trechos de canções de amor. A mãe fazia suposições consigo mesma: “será que ela está gostando de alguém? Já era tempo, ela vai fazer vinte e dois anos e jamais teve um namorado”. Não podia adivinhar que era o trabalho do Partido, a certeza de estar sendo útil à causa, à qual o pai dedicara sua vida e que era também a sua causa, o motivo único daquela alegria primaveril, resplandecido no rosto de Mariana mais do que nunca nesse dia do seu aniversário.
Talvez fosse também esse sentimento de plenitude de vida, resultante do balanço de sua existência feito pela manhã no quarto, que fizesse Mariana olhar, à noite, com olhos interessados, aquele jovem companheiro desconhecido para ela, silencioso e tímido, que, de um canto da pequena sala (ao mesmo tempo cozinha) a fitava numa insistência que ela teria julgado molesta em qualquer outra ocasião. Fora o secretário da célula da última fábrica onde Mariana trabalhara que o trouxera. Em segredo lhe avisou tratar-se de um camarada, bastante responsável. Haviam-se encontrado após o jantar, e ao dizer-lhe da sua intenção de visitá-la por seu aniversário, o outro revelara um grande interesse:
– Eu vou também. Preciso falar com ela, assim você me apresenta...
Mas nada falara até agora, mantinha-se silencioso, uma ou outra palavra. O velho Orestes chegara e o vinho de abacaxi tinha sido distribuído – os copos não bastavam para todos, haviam vindo colegas das duas fábricas, vizinhos e conhecidos do bairro, e o velho Orestes voltou à casa para trazer mais alguns. O rapaz – tinha sido apresentado a Mariana com o nome de Joaquim – parecia muito cansado e Mariana sentia aquele olhar acompanhando-a por toda a sala, enquanto ela servia o vinho e o bolo. “O que êle tem é sono – pensava ela – e me olha para não dormir, para melhor resistir à fadiga”. Mas ela também o olhava e sorria-lhe, achava simpática aquela face muito magra, o ar terrivelmente fatigado, a larga testa de profundas entradas, as mãos nervosas cruzando-se e descruzando-se. A conversa girava sobre os mais diversos assuntos, da vida difícil e cada vez mais uma discussão sobre a guerra da Espanha – levantada pelo cunhado de Mariana (demorara-se apenas uns dez minutos e partira arrastando a esposa), admirador de Franco. As palavras do cunhado tinham provocado uma onda de protestos e até a mãe, sempre pronta a evitar qualquer conflito com o genro, protestara, levantando-se:
– Esse Franco é um assassino de operários. Tenho fé que êle ainda acaba numa forca... Deus me ajude!
Quando a mãe falou, os olhos de Mariana se encontraram com os do rapaz e ele sorriu, seu rosto fatigado se enchera por um minuto de uma quente animação ao ver a velha levantar-se e gritar sua praga ardente. Mariana sorriu também e por um breve e fugidio instante era como se os dois tivessem um único pensamento e um único coração. Ela baixou os olhos, o sorriso se extinguiu nos lábios do camarada.
Os operários, obrigados a ir para o trabalho de manhã cedo, começaram a se retirar. O secretário da célula que trouxera o pretenso Joaquim, levantou-se para despedir-se, mas antes foi até a cadeira de onde o outro não se movia:
– Vou indo...
– Eu ainda fico... Até outra vez.
Aos poucos a saleta foi se esvaziando. Mariana recebia os votos de felicidade, deixou-se abraçar e beijar pelo velho Orestes, o último a sair, cujos bigodes cheiravam a vinho de abacaxi e cuja voz, exaltada ainda da discussão sobre a Espanha, ganhava um tom enternecido ao lhe dizer:
– Que vivas por muitos anos, cara piccina, até ver a nossa vitória no mundo inteiro... – as palavras eram quase segredadas no ouvido da Mariana mas êle saiu assoviando a musica da Bandiera Rossa, contando sobre a ignorância do guarda-noturno.
Mariana voltou-se para a sala, estava só com o camarada, a mãe recolhera-se há bastante tempo. A brisa noturna trazia pela porta aberta a ária associada da música revolucionária. O chamado Joaquim levantou-se, por um momento escutou o assobio cada vez mais distante do velho operário, andou para a porta e fechou-a a chave. De qualquer parte tirou, num gesto rápido, a credencial ilegal, mostrou-a a Mariana:
– Podemos sentar por alguns minutos?
Sentou-se ao lado dele, ficou esperando que êle falasse, ao mesmo tempo interrogava-se por que aquela ligação não fora feita por intermédio do Ruivo.
– O camarada Ruivo teve de viajar, sou a sua ligação até êle voltar.
Olhou-a com seus olhos cansados como para ver o efeito de suas palavras. Ela estava com a testa enrugada, Ruivo nada lhe havia dito. Ele percebeu os seus pensamentos, bateu-lhe levemente no ombro numa aprovação:
– A vigilância é uma boa coisa, camarada. Mas a verdade é que o camarada Ruivo devia ter feito nossa ligação. Foi porém, obrigado a partir inesperadamente... Eu sou o camarada João.
Ela o fitou, agora já. sorria. Quantas vezes não ouvira falar no camarada João, tão intensamente procurado pela polícia, considerado um dos quadros de maior futuro do Partido, de ação tão heróica na greve dos ferroviários no Rio! Perguntou:
– O Ruivo não está pior? Não foi coisa de saúde?
– Não. Não. Trabalho do Partido.
Descruzou as mão nervosas, de dedos finos:
– Eu estava pensando como ia me ligar com você quando o camarada disse que vinha em sua casa. Aproveitei.
– E o consultório?
– Bom para o Ruivo que é cliente do médico. Pra mim não serve. A cada encontro marcaremos um novo ponto. Pra começar, na próxima terça-feira você vai me encontrar num café chamado “Vasco da Gama”, no Largo das Perdizes. Se eu não estiver no café, espere cinco minutos, se eu não vier vá embora, espere até que eu me ligue outra vez. Cinco minutos, mais nada...
– Mas tenho uma tarefa para você realizar ainda hoje.
– Ainda hoje?
João olhou no relógio-pulseira:
– Não são ainda onze horas, e deve ser feita hoje sem falta.
Meteu a mão no bolso, tirou um envelope, sustentou-o na mão enquanto falava:
– Esconda isso na blusa. Há um camarada que está hospedado no Hotel Rialto, sexto andar, quarto número 623. Repetia: Sexto andar, quarto 623. Entre pela porta da rua Libero Badaró, assim não tem que passar na portaria do hotel. O último elevador não tem ascensorista, é o passageiro mesmo quem faz andar. Mas mesmo que você suba noutro não tem importância, o Rialto é um hotel de encontros amorosos, ninguém repara numa mulher, pensam... Bem, você sabe... A pessoa está lá, esperando. Tome cuidado, o que você leva é muito importante. Entregou o envelope a Mariana, ficou esperando que ela o guardasse. Como era grande para passar pela gola da blusa, Mariana teve de sair da sala:
– Volto já.
– É melhor que eu vá logo. Espere quinze minutos depois que eu sair. – Levantava-se e falava de pé, em frente a ela:
– Como você vai mesmo reconhecer pois há de ter visto a fotografia muitas vezes nos jornais – apontava o recorte de jornal, preso com um alfinete na porta do pequeno armário, onde se via a fotografia dos oficiais revoltosos do 3.º R. I. abandonando, abraçados, o quartel após a derrota de 35 –, é melhor eu lhe dizer: a pessoa que você vai encontrar é o camarada Apolinário que foi posto em liberdade provisória... – seu dedo magro apontava, na fotografia, um jovem alto, próximo a Agildo Barata.
– O tenente Apolinário?
Aquele nome para Mariana significava, como o do camarada João, um mundo de coisas. A atuação do tenente Apolinário no levante do quartel do Terceiro Regimento era conhecida de todos os comunistas e simpatizantes. Depois, o seu comportamento na prisão, as magníficas respostas nos interrogatórios, o discurso ante o juiz na fase da instrução do processo, sua juventude, eram coisas que andavam de boca em boca. Parecia a Mariana serem aqueles conhecimentos os melhores presentes desse seu aniversário.
– Sim, êle mesmo – riu...
Fez-se sério:
– Uma coisa... Tire essa fotografia do armário. Para que ela aí? É o bastante para chamar a atenção da policia...
– Tem razão.
– Vou embora. Quinze minutos e depois saia. Sabe o andar e número do quarto?
– Sexto andar, quarto 623, entrada da Libero Badaró, último elevador. Se me olharem, passarei por uma fulana que vai ver seu amante... Não sei se saberei fazer, riu.
Ele estendia a mão:
– E terça-feira, no Largo das Perdizes.
Reteve a mão de Mariana, titubeava como se procurasse construir uma frase difícil, ela viu novamente aquela flama em seus olhos cansados:
– Quantos anos você fez hoje?
– Vinte e dois...
– Não parece...
– Estou tão velha assim?
– Parece ter dezenove – ele enrubesceu como se lhe tivesse feito uma declaração de amor.
Soltou a sua mão:
– Boa noite e sucesso na tarefa.
– Boa noite.
Mas êle, com a mão na chave da porta para abri-la, voltou ainda o rosto magro:
– Sabe que foi seu pai quem me botou no Partido?
Sorria, ela também sorriu, era como se novamente tivessem um só pensamento e um só coração. Ele desapareceu na noite, Mariana veio devagar, fechou a porta, suspendeu a blusa, guardou o envelope sob o porta-seios. Entrou no quarto, a mãe dormia, ela retirou do cabelo a flor vermelha, olhou as pétalas murchas: “como era magro o camarada João, e sua camisa estava rasgada em mais de um lugar, ela o notara, dura é a vida dos camaradas, mais dura daqueles que são solteiros e não tem quem cuide de sua comida, de sua roupa, não têm um seio onde repousar a cabeça fatigada...
Ante a porta do quarto 623, Mariana respirou: tudo marchara bem. Um elevador cheio acabava de partir quando ela entrara pela rua Libero Badaró, o longo corredor se esvaziara. Pôde tomar o último elevador sozinha, não encontrara também nenhuma pessoa nos corredores do sexto andar. Bateu levemente na porta, ouviu o ruído de alguém que se levantava começava a andar. A porta abriu-se para mostrar una face jovem e sorridente de homem, com um ar infantil. Mas o sorriso desapareceu como se o homem esperasse uma outra pessoa e Mariana estivesse ali por engano:
– Que deseja?
Ela deu a senha em voz baixa e acrescentou:
– Posso entrar?
Ele abriu a porta, agora falava ininterruptamente, numa torrente de palavras, rindo sempre, aquele ar jovial de criança em férias. Ela voltou-lhe as costas para poder tirar o envelope de sob a blusa, enquanto o ouvia dizer:
– Desculpe, camarada, desculpe, mas eu não sabia que o pessoal ia mandar uma moça bonita. Você sabe: eu esperava um cara barbudo e feio, como os comunistas que os cartazes da polícia pintam, e, em vez disso...
Ela lhe entregava o envelope:
– Devo lhe entregar isso...
Ele o fazia desaparecer num bolso:
– Está entregue – apontava uma cadeira. Sente-se para descansar um pouco. Quer água mineral? mostrava a garrafa quase cheia. Tem um copo limpo aqui.
– Aceito um pouco. Obrigada.
Êle sentou-se sobre a mesa. Era alto, o cabelo cortado quase rente, dava uma impressão de mocidade estuante necessitando de grandes espaços livres, constante movimento, havia nele algo capaz de fascinar, uma daquelas pessoas às quais se estima imediatamente. Continuava a falar enquanto ela bebia a água mas, pousando o copo, Mariana o interrompeu:
– E a cadeia? O camarada como se adaptou?
– Não fui feito pra cadeia, hein? Não fui mesmo. O jeito era manter o bom humor, a moral elevada. O que é ruim é saber que não se pode ir embora na hora que se deseja... Mas, que jeito?
Levantava-se, ia até a janela do quarto, debruçava-se para respirar profundamente o ar morno da imensa noite livre. Tinha passado quase dois anos na prisão, há pouco mais de uma semana fora posto em liberdade provisória, juntamente com alguns outros oficiais, aqueles cujo processo ainda dependia de julgamento. O Partido decidira mandá-los para a Espanha, onde já outros, soltos anteriormente ou escapados para o estrangeiro logo após a insurreição de 35, lutavam nas brigadas internacionais.
Voltava a sentar-se à mesa:
– Tenho uma irmã mais ou menos da sua idade... dezenove anos... A pobre vivia fazendo projetos para quando eu saísse da cadeia. A cada visita seus planos cresciam: banhos de mar em Copacabana, passeios, caminhadas pela cidade... Eu gosto de caminhar, sabe? Ela é muito agarrada comigo, minha irmã...
Mariana não se admirava. Que irmã não amaria aquele irmão sorridente e afetuoso, aquele meninão de olhos inteligentes? Devia ser um bom irmão, desses aos quais se podem confiar os segredos mais íntimos, na certeza da sua compreensão.
– Coitadinha... Esperou tanto e me viu apenas poucas horas. Aqueles cães da polícia nos soltaram pela madrugada e já no outro dia tive de desaparecer... Prometi voltar em breve mas sei que ela não acreditou.
Será que o camarada João tem alguma irmã aflita por êle cm qualquer parte, há quanto tempo não a verá, por que Mariana, ao pensar nele, sente-o tão solitário na sua fadiga? Apolinário abria mais o sorriso como para levantar o rosto de Mariana inclinada sobre seus pensamentos:
– O difícil é que ela não tem nada na cabeça, nada sabe de política. Mas tem confiança em mim, isso a ajuda a suportar a separação... E a consolar minha mãe... A velha é firme, só uma coisa lhe dói muito: minha expulsão do Exército. Sabe, sou de uma família de militares: meu avô entrou no Exército como soldado, morreu coronel na guerra contra Rosas, meu pai também foi oficial, morreu servindo na fronteira em Mato Grosso, onde eu nasci. A velha tinha orgulho da minha farda e sentiu muito a expulsão. A cadeia, o processo, essas coisas não a tocaram muito, ela também confia em mim, somos de uma familia pobre, ela sente, um pouco vagamente, que a razão está conosco. Mas a expulsão não lhe passa na garganta... Tive de lhe confiar para onde ia agora... – voltava-se para ela. – Para você é um segredo? Se é, eu nada lhe disse...
– É fácil adivinhar... – sorriu Mariana. – Todo mundo sabe onde estão os oficiais soltos antes... E estamos orgulhosos deles – ela o havia adivinhado desde que sentira a dureza do cartão dos documentos falsos comprimindo o seu seio através do envelope.
– Sim, é lá que está continuando a grande batalha entre o proletariado e o capitalismo. Estou contente de ir. Depois desses dois anos de prisão, entre grades, vendo “tiras” e guardas, é bom encontrar-se no fogo, no meio do combate... É curioso que em menino eu sonhava com essas terras, sonhos derivados de leituras e coisas no cinema: ciganos, laranjais em flor, guitarras e castanholas..
– Agora são tiros e canhões...
– Os miseráveis... Mas nós lhes ensinaremos... – êle ria, nenhum dos dois havia pronunciado a palavra Espanha mas ela estava não apenas nos seus lábios, estava também nos seus corações.
– Internacionalismo proletário... – disse êle – é uma grande e nobre expressão. Não há nada que a reação odeie tanto, como essa solidariedade entre os trabalhadores de todas as partes. Por isso torturam Berger e sua mulher de tal forma na Polícia Especial. Porque em definitivo eles sabem que essa solidariedade internacional os enterrará... Agora eu sinto isso pessoalmente. Como se minha presença lá dissesse aos espanhóis: os trabalhadores do Brasil estão aqui, ao lado de vocês. Os tempos são ruins por lá, há milhares de presos, nosso Prestes está numa cela imunda, separado até de seus companheiros, sua esposa foi mandada para a Alemanha. Mas, em meio às nossas dificuldades, nós pensamos em vocês e na importância dessa luta daqui e lhes mandamos o que temos... Tu sabes que lá, em cada cidade, em cada aldeia, há uma rua com o nome de Prestes? Quando eu penso que nós somos milhões pelo mundo a fora e que existe a União Soviética, sinto-me feliz. Era meu remédio na cadeia contra o “abafamento”. É nos dias de visita que a coisa acontece: a gente vê os parentes, a mãe, a irmã, ouve as notícias dos amigos, daquele mundo vivendo lá fora, adiante dos muros... É o pior dia da cadeia ao mesmo tempo que o melhor... Dialético, como você vê... Nesses dias, quando o “abafamento” me ameaçava eu pensava na “velha” – por “velha” designava a União Soviética como por “velha” designava carinhosamente sua própria mãe – no povo construindo um mundo alegre, e imediatamente estava outra vez curado, ia “desabafar” os outros... Remédio batata...
Mariana poderia ficar a ouvi-lo durante toda a noite. Porém devia partir, a mãe podia acordar, ficar inquieta, cansar-se numa espera nervosa que ela podia evitar.
– Boa viagem, camarada. Muitas felicidades, honre o nome do Brasil e do nosso Partido.
– Creio que não devo lhe acompanhar, os companheiros me recomendaram sair o menos possível. Mas, se não é segredo, gostaria de saber o seu nome e o seu endereço para lhe enviar um dia um cartão. Você é talvez o último camarada do partido que eu vá ver dessa vez...
– O endereço é segredo. Vou lhe dar o de outra pessoa. Escreva no envelope “para Mariana”. Disse-lhe o endereço, êle o repetiu duas ou três vezes para retê-lo na memória.
Acompanhou-a até o elevador, ali trocaram um aperto de mão. Ela disse suavemente:
– Lembranças a tudo por lá, aos soldados e à terra também.
– Adeus.
Numa torre qualquer um relógio soava a meia-noite. Da rua, Mariana levantou a cabeça, buscou com o olhar uma janela iluminada no sexto andar do arranha-céu. Distinguiu na sombra um rosto debruçado, a mão abanando adeus. Como estava sob um poste elétrico, iluminada pela sua claridade – assim Apolinário a podia enxergar bem – levou a mão à testa numa continência militar. Rumou depois para a Avenida São João, semideserta. Em frente ao edifício dos correios, esperando o bonde, sentia a noite tropical invadi-la de perfume e de estrelas. Noite de seu aniversário, noite de emoções e alegrias, nesse último dia de outubro: encontrara um irmão, de face infantil e claros pensamentos, esse oficial alto e risonho, provado no fogo dos combates e na soturna permanência nas prisões. Só um irmão encontrara nessa noite? Por que pensa no camarada João, em sua camisa rota, em seu rosto tão magro, em seus olhos de escondida flama, na sua fatigada solidão?
No quarto do hotel, fechadas as janelas, baixadas as cortinas, apagadas as luzes, à exceção do pequeno abajur ao lado do leito, Apolinário retirou do envelope o documento de identidade. Examinou-o numa atenção sorridente: perfeito! Agora chamava-se Arlindo da Silveira, era jornalista, e devia saber adaptar-se a essa personalidade que seria a sua durante alguns dias, até haver atravessado a fronteira uruguaia. Depois seria o navio para Espanha, e depois, quem sabe?, – ninguém poderia saber que caminhos do mundo teria de percorrer. Nem queria mesmo pensar, seu desejo era chegar quanto antes à Espanha, receber as ordens em Madrid, um posto de combate, soldados para comandar, atirar-se contra os fascistas à frente de seus homens, vingar-se neles também da derrota da insurreição brasileira de 35, pois a luta era uma só no mundo inteiro. Examinou o envelope antes de jogá-lo na cesta de papéis e viu a minúscula tira de papel escrito, no fundo. Leu o bilhete e reconheceu a letra miúda do camarada João (êle o conhecera no Rio, alguns anos antes): “Siga amanhã mesmo para Santos, hospede-se no hotel Dois Mundos, ali lhe levarão dinheiro antes de seu embarque e uma credencial para Porto Alegre. Boa viagem”.
Fez um pequeno bolo da tira fina de papel, queimou-o com um fósforo. Enquanto bebia um gole de água mineral, recordou de um incidente na cadeia e fora aquele incidente que lhe ensinara a não guardar consigo nenhum desses pequenos e comprometedores papeizinhos. Num dia de visita, o irmão de um camarada preso passou-lhe um pedaço de papel que êle logo escondeu na bainha da calça. Leu depois, na cela, mas não o destruiu imediatamente, era importante, queria voltar a lê-lo depois. Mas, como por vezes acontecia depois das visitas semanais dos parentes, os tiras da Ordem Política Social chegaram, em grande numero, para uma “batida” nas celas. Sua cela era a primeira da grande galeria e êle não teve tempo sequer de tirar o papel do bolso. Os investigadores se distribuíam pelas ceIas, o que ficara na sua era um tipo baixo, de face boçal e mãos sujas. Apolinário o conhecia, esse tira o acompanhara mais de uma vez quando o oficial era levado da Detenção à Policia Central para depor no processo.
– Levante os braços pra eu lhe correr... – disse o policial.
Apolinário levantou os braços, seu pensamento trabalhava rapidamente. Sabia ser considerado pela polícia como um tipo corajoso e capaz de qualquer feito, e o próprio Ministro da Guerra havia-se referido a êle classificando-o de “aquela fera”. Com os braços levantados marchou para o investigador, o rosto sério, e lhe disse antes dele tocar-lhe:
– Eu tenho um papel em meu bolso direito. Se você o pegar ou falar nele, fique certo que um dia eu lhe mato. Seja onde for, seja como for, um dia eu lhe mato. Mas, se você não tocar nele, não falar nele, quem sabe se um dia isso não lhe salvará a vida? – fitava o investigador com uns olhos decididos, carregados de ameaças.
Durante um segundo Apolinário viveu como que suspenso no ar. Viu o policial olhando-o, como a pesar suas palavras e o viu recuar devagarinho, sem nada dizer, indo pró-forma, levantar a coberta do catre, espiar nos cantos da cela, sem ter-lhe tocado. E só quando êle saiu, Apolinário respirou. Engoliu em seguida o papel e desde então jamais guardara, sequer por minutos, uma daquelas tiras finas onde os camaradas da direção escreviam as ordens.
Abriu outra vez a janela, olhou a rua adormecida. Do alto do edifício chegava o ruído de estrepitosa música carnavalesca, no último andar funcionava um cabaré. Apolinário procurava distinguir, através da noite, os contornos da cidade Não conhecia São Paulo, havia passado ali criancinha, viajando de Mato Grosso para o Rio, após a morte do pai. E não ia conhecê-la agora, chegara naquela manhã, passara o dia no hotel, sem sair, esperando a ligação do Partido. Anunciara na portaria uma gripe, pedira cafiaspirina e comida no quarto. Pena não poder andar por essas ruas de São Paulo, ver seus arranha-céus, seu intenso movimento diurno, conversar com seus operários... Agora que a ligação viera e êle podia sair, era noite alta e Apolinário não era capaz de amar os edifícios e as ruas, os armazéns e as fábricas, se eles não estivessem cheios de gente, se neles não encontrasse os homens se agitando. Nunca as paisagens puderam prender a atenção dos seus olhos por muito tempo e não amava as naturezas mortas na pintura.
De São Paulo, a recordação que lhe ficava era Mariana. Simpática companheira, tão simples e modesta na sua beleza sem artifícios... Também sua irmã era bela, apenas parecia frágil boneca ao lado de Mariana em que êle sentia uma força repousada, uma segurança tranqüila. Pobre irmã, cujos olhos estarão cheios de lágrimas, cujo pensamento estará a imaginar os caminhos de Apolinário, a tremer por sua sorte: Ah!, irmãzinha, a culpa não é minha, é de uns poucos homens ambiciosos, os donos do dinheiro e dos privilégios... Não temas irmãzinha, eu vou ali e já volto, é o tempo de acabarmos com essa gente ruim, sem coração, esses exploradores do homem, e então te levarei a passear, iremos à praia, andaremos pela cidade e eu te contarei histórias...
E, de súbito, uma saudade, não apenas dos seus, mas de todo o Brasil, o invadiu. Dentro de poucos dias estaria já em outras terras, quando poderia voltar? Chegaria a ver outra vez esse céu de estrelas, esse povo de raças misturadas, a ouvir essa música mulata cheia de ritmo e de calor? Quem sabe se não ficaria por terras de Espanha, sob a bala assassina de um fascista? Não o amedrontava a morte, mas a saudade o invadia, penetrava-o como o agudo aço de um punhal.
Seu olhar perdido pousou outra vez naquele poste elétrico sob o qual Mariana parara um instante a saudá-lo. Voltou a vê-la, a mão à altura da testa, na continência militar. Sorriu para si mesmo, novamente se encontrou alegre. O gesto relembrado da moça, recordava-lhe toda a beleza da missão que o Partido lhe confiava: eram os operários brasileiros que o enviavam para ajudar a luta dos operários espanhóis. Não estaria longe do Brasil quando se encontrasse nas trincheiras de Teruel. Ao contrário, todo esse mundo brasileiro esse misterioso mundo de florestas e rios, de homens oprimidos lutando por libertar-se, de rostos de todas as cores, desde o loiro de trigo ao negro de carvão, todo o Brasil estaria com êle, estaria dentro dele e seriam as Marianas de todo o Brasil, os Joãos de todo o Brasil a sustentar o seu braço de fuzil levantado contra os falangistas de Franco, os fascistas de Mussolini, os nazistas Hitler. Um resto de música se perde na noite.
Saiu da janela, tomou do aparelho telefônico, na portaria atendeu uma voz sonolenta.
– Desculpe. Que horas sai o primeiro ônibus para Santos, pela manhã?
– Às seis horas... – respondeu a voz sem vacilar, habituada àquela pergunta.
– É favor despertar-me às cinco horas...
Voltou ainda uma vez à janela, quando regressasse um dia, viria passar pelos menos uma semana em São Paulo, andar por suas ruas, conversar com sua gente. “Eu te trarei, irmãzinha, iremos descobrir essa cidade, os sombreados cantos dos jardins onde as velhas avós passeiam os netos pequeninos, os agitados bairros operários onde italianos, poloneses, húngaros, espanhóis, portugueses, negros e mulatos se misturam e onde cresce a luta. Iremos visitar Mariana e ao chegar em sua casa, eu lhe baterei continência e lhe direi: “Camarada, seu soldado cumpriu com o seu dever...“
O camarada João empurrou a porta apenas encostada da distante casa suburbana. Acendeu a luz da sala, Zé Pedro dormia encolhido no sofá a barba por fazer. Carlos tinha-se estirado no chão, sobre a capa de borracha, e João considerou, ao espiá-lo, quanto êle era jovem ainda: assim dormindo parecia um adolescente. Não os despertou em seguida, foi até o fundo da casa, abriu a torneira da pia na estreita cozinha deixou que a água corresse sobre sua cabeça. Assim afastava o sono e o cansaço. Espiou o fogão e viu o bule de café preparado por Josefa, a companheira de Zé Pedro. Ela jamais esquecia de deixar-lhes, nos dias em que ali se reuniam, o café pronto, era só esquentar. João riscou um fósforo sob o fogareiro a álcool, pôs o bule em cima. Só então foi acordar os outros. Carlos sorria no seu sono, era um mulato claro, mestiço de italiano e negra. Zé Pedro era mulato também, mas de muitas misturas diferentes. De origem camponesa, deixara o trabalho nas plantações nordestinas de cana de açúcar para servir como soldado do Exército, onde aprendera a ler e a escrever e onde se ligara aos comunistas. Quando terminou o serviço militar ingressou como operário numa fábrica de sapatos. Mas a vida partidária não tardou a envolvê-lo por completo e, depois de uma longa prisão, entrou na ilegalidade. Percorreu todo o Nordeste em tarefas do Partido, terminara sendo enviado para São Paulo depois dos acontecimentos de 1935, quando a polícia de vários Estados nordestinos o buscava. Formavam agora os quatro o secretariado do comitê regional de São Paulo, eles três e mais o Ruivo. Um secretariado jovem e novo tinha substituído camaradas presos não havia muito.
Enquanto os outros esfregavam os olhos e se espreguiçavam, João voltou à cozinha, deitou o café nas xícaras, pegou o açucareiro. Botou tudo sobre uma bandeja de lata, trouxe para a sala. Zé Pedro perguntou:
– Então?
Mexiam o café, agora estavam sentados próximos uns dos outros e Carlos havia, trancado a porta a chave.
– Os homens não querem nada... Muita gentileza, muita sabedoria política, meias palavras para dizer as coisas mais tolas como se estivessem dizendo segredos tremendos, eis aí o senhor deputado Artur não sei o que, não sei o que Carneiro da Rocha... Que o Exército, pata ti-patatá, como se êle não soubesse que os generais estão, quase todos, comprometidos com Getúlio ou com os integralistas.
– Que disse da proposta de união das forças antifascistas?
– Não disse nada. Tirou o corpo fora, e quando me ouviu falar em defender as liberdades democráticas dando armas ao operários, o homem só faltou morrer sufocado... Nunca vi tanto medo do povo... Eles não vão aceitar aliança nenhuma, não vão se unir coisa alguma, a gente não pode contar com esses pretensos democratas nem um minuto. Eles sabem que o golpe está aí mas nada fazem e nada farão de concreto pan impedi-lo.
– Nada, – confirmou Carlos. Tivemos hoje notícias do Vítor, da Bahia. Ele esteve também com o pessoal do Zé Américo, lá. O governador tem armas, tem mesmo muita arma, tem amigos no Exército e êle próprio tem prestígio entre os soldados, e Vítor lhe ofereceu gente disposta pro barulho, sabe o que êle respondeu: – Não quero derramar o Sangue do povo baiano... E esse é um que não vai continuar no governo, que Getúlio bota pra fora. Imagine os outros, os que esperam ficar apesar do golpe...
– É um problema de classe... disse Zé Pedro. Eles sabem que o golpe vem, que vamos ter um governo fascistizante, mas eles preferem tudo, mesmo os integralistas, do que apoiar-se no povo. Temem ter que marchar se o povo tiver armas na mão. No fundo, todos eles têm esperanças de arranjar-se depois do golpe...
– Os armandistas estão conspirando, – anunciou João. Era engraçado que o deputado ao falar comigo tinha um ar superior de quem tem um trunfo escondido, desconhecido para o outro. E eu sabendo que é um “putsch” que êles preparam. Mas não têm gente, é meia dúzia de oficiais antigetulistas... Nem gente, nem tempo. O golpe de Getúlio não vai tardar...
– É preciso nos prepararmos para revidar. – Carlos curvou-se na cadeira, olhou demoradamente as mãos. – Não sei o que pensa a direção nacional mas, por mim, considero as conversações com essa gente terminadas. No Rio Grande, já se sabe que o próprio Armando disse ao Flores da Cunha, respondendo à nossa proposta, que numa frente com José Américo, nem vale a pena pensar... Na Bahia, é o que Vítor manda contar, no Rio se escondem da gente. Agora, aqui...
– É preciso comunicar ao Rio e esperar as decisões. Mas poderíamos também sugerir... Podíamos lançar um movimento de greves.
– Não sei – disse Zé Pedro. – Para isso será preciso um grande trabalho do Partido. E não sei como a base vai reagir. Há uma continua campanha contra a direção feita pelo grupo de Saquila. Esse tipo não pode continuar no Partido. É um trotskista evidente e se cercou do que há de pior, de mais pequeno-burguês no Partido, estão num trabalho cerrado de agitação desmoralizante, aproveitam o momento de confusão e boatos que lhes são favoráveis...
– Ruivo foi ao Rio discutir...
– Se não limpamos rapidamente o Partido desses tipos, eles vão causar um prejuízo grande...
– Eles estão preparando qualquer coisa. Minha impressão é que há, entre eles, gente diretamente ligada à policia. Para mim, as quedas de Ricardo, de Orlando e de outros não foram nada casuais. Eles foram entregues, e por essa gente...
– Eu também estou de acordo. Mas nós não podemos esperar a liquidação desse grupo para começar a preparar a gente para reagir a golpe. E necessário começar logo... Pensei em tirarmos um material, distribuí-lo rapidamente pela base.
– É uma boa medida.
– Pensei também que podíamos descer às bases, realizar alguns ativos com o pessoal. Pelo menos com as células das empresas fundamentais. E intensificar a propaganda para alertar toda a massa. Pinturas murais, volantes na rua, estudar mesmo a possibilidade de comícios relâmpagos nos pontos de concentração.
Zé Pedro atalhou:
– Parece-me bem. Não achas que podíamos marcar uma reunião muito próxima para discutir isso? Depois de amanhã, por exemplo. Carlos e eu pensaríamos no assunto, poderíamos traçar todo um plano concreto. E liquidar agora os assuntos que temos para hoje.
– Certo. Fica então para depois de amanhã. Onde? Não deve ser aqui, já nos reunimos demais aqui. E, com esses trotskistas agindo, toda precaução é pouca.
Decidiram onde, marcaram hora, João perguntou a Zé Pedro:
– Tens o dinheiro para a passagem do nosso amigo e para suas despesas? Ele já deve ter recebido o documento e segue amanhã para Santos. Penso mandar Mariana levar-lhe o dinheiro lá. É melhor que êle esteja lá que aqui, a polícia pode localizá-lo e adeus ida pra Espanha...
– Esse negócio de dinheiro é outra coisa que anda atrapalhada. Esse doutor que foi feito tesoureiro ou bem é um sem-vergonha ou bem é um molenga. Me disse que não tinha nenhum dinheiro ainda. Que os simpatizantes não tinham pago, que as finanças das células andam por baixo... Dei-lhe um aperto, prometeu-me o dinheiro para depois de amanhã..
– Ele é um homem de Saquila – interrompeu Carlos. – Não duvido que tudo isso que êle diz seja mentira, que êle esteja comendo o dinheiro. Esse tipo nunca me agradou. Não sei como chegou a tesoureiro do regional. Sempre achei que êle vive do dinheiro do Partido. Clientes ele não tem, é um péssimo médico. Emprego não tem. E vive todo elegante, boa casa, boa roupa. É preciso ver isso.
– Eu mesmo irei amanhã pelo dinheiro – anunciou João. – E, ou bem êle entrega ou êle diz por que não o faz. Andei conversando com uns secretários de célula, sei quanto dinheiro tem entrado da base...
Começaram depois a discutir sobre a oficina gráfica clandestina do Partido. Zé Pedro achava necessário buscar-lhe rapidamente outra casa, substituir também o camarada tipógrafo, o atual fora posto por Saquila, era homem, seu, ex-operário das oficinas do jornal onde o trotskista era redator. Encontrar um novo camarada, conhecedor dos segredos da composição tipográfica e capaz de manejar sozinho uma pequena impressora, disposto a isolar-se do mundo e a ficar em segredo com suas máquinas e os manuscritos já não era tarefa fácil. No entanto, podia-se conseguir. Mas onde outra casa que oferecesse as condições necessárias de segurança?
– É difícil – disse Zé Pedro. – É difícil mas é necessário. Se não, esses caras podem um dia desses entregar a oficina à polícia.
– É tratar disso logo. Desde amanhã, procurar casa e um homem capaz e de confiança. Carlos pode-se encarregar do homem, buscar pelas colunas dos jornais. Zé Pedro e eu ficamos responsáveis pela casa.
Pelas frestas da janela começava a entrar a claridade do dia, Zé Pedro apagou a luz, ficaram numa meia-sombra que os fez baixar ainda mais a voz.
– É tempo de sairmos... Daqui a pouco, a gente começa a acordar. – João levantando-se: – Eu vou primeiro, Carlos. Quero ver se meto a cara na redação desse material sobre o golpe. Pra gente poder discuti-lo já depois de amanhã.
Apertou a mão dos outros, disse antes de sair:
– Conheci hoje a Mariana e foi engraçado, era o aniversário dela, uma jovem valente.
– É uma boa menina... – falou Zé Pedro.
João acendia um cigarro, próximo à porta:
– Tem uns olhos bonitos, negros.
Carlos riu como ante a mais inesperada das frases:
– Desde quando começaste a reparar nos olhos das camaradas?
– Não reparei em olhos nenhum... – resmungou João.
– Encabulaste... Se houver casamento quero ser o padrinho, hein!
– Não tenho tempo para pensar nessas coisas.
A claridade do dia amanhecendo o fez fechar os olhos na rua deserta. Começou a andar para a estação, poderia dormir no trem, durante os quarentas minutos de trajeto. Repousaria a cabeça no encosto de madeira do banco de terceira classe. Seria bom poder repousar a cabeça no ombro de Mariana, sob a carícia dos seus olhos negros. Numa árvore do caminho um passarinho saudava, num canto alegre, o primeiro dia de novembro, sua luz recém-chegada.
Já do bonde viam as luzes inúmeras do parque de diversões, derramando uma claridade álacre pelo largo. Luzes coloridas – azuis, verdes e vermelhas – girando com a roda-gigante, espelhando cores, num ar tão de festa que a noite ficava de repente para trás com todo o seu cortejo de ameaças e medo. Manuela riu, as mãos começaram a se erguer como se ela fosse bater palmas, como se voltasse a ser novamente aquela menina alegre de outros tempos, menos tristes e severos. Não chegou a completar o gesto de plano mas seu sorriso foi largo, desbordou dos lábios para todo o rosto tímido, de traços finos e de um róseo quase transparente. Não foi o seu sorriso costumeiro, como que escondido nas comissuras dos lábios, quase pedindo desculpas de sorrir quando tudo que a cercava era melancólico. Lucas, que acompanhava seu olhar e vira o sorriso nascer e desdobrar-se, pôs-lhe carinhosamente a mão sobre o ombro:
– Bonito, não é?
Manuela abriu ainda mais os grandes olhos para fitá-lo antes de responder-lhe O rosto bronzeado de Lucas encontrava-se próximo ao seu, êle se havia curvado para lhe falar, e ela mais uma vez admirou a força e a decisão que emanavam daquela face quase sempre dura como se fora talhada em pedra mas que, por vezes, chegava a parecer ingênua quando êle deixava que os olhos se enchessem de bondade.
– Lindo... – respondeu.
Demorou-se um instante a fitar o irmão, Lucas parecia-lhe grande demais pan tudo que a cercava. Reparou na velha roupa azul que êle vestia. Tinha sido de outro, era curta para Lucas, os braços fortes do rapaz saíam do paletó, musculosos e peludos. O colarinho da camisa estava puído, gastas as solas dos sapatos, e a fazenda das calças já havia adquirido nos joelhos aquela cor brilhante da velhice. Pelo banco do bonde espalhava-se o resto da família: os velhos avós, tia Ernestina com seu ar lúgubre de fantasma, e os meninos numa agitação que atraía os olhares de todos os passageiros. Manuela considerou a família num rápido momento – os olhos ainda cheios das luzes do parque de diversões entrevisto na curva do bonde – e viu o irmão amarrado com pesadas grilhetas, êle que nascera – assim ela pensava – para realizar grandes coisas e viver uma vida sem limitações de alguma espécie. E quase novamente a envolve aquela tristeza da casa suburbana que as luzes do parque haviam espalhado pelo céu da cidade tão azul após a chuva, na noite morna. Por um instante voltou a sentir o olor úmido e odioso da casa, toda a sua medíocre existência.
O sorriso quase morreu em seus lábios, chegou mesmo a cerrar um pouco os grandes olhos claros e azuis. Porém foi um instante apenas aquela fuga da alegria em que se achava, da excitante novidade do largo ruidoso de luzes, da vida que se processava um pouco além dos trilhos do bonde, tumultuosa e emocionante. Reabriu os olhos para as luzes do parque, agora inteiramente diante dela, e deixou-se levar pelos gritos que chegavam aos seus ouvidos, as exclamações perdidas, o vozerio indecifrável da multidão a penetrar pela grande porta central, aquele calor de vida, tão intenso que fazia desaparecer o frio quotidiano em que vivia envolvido seu jovem coração.
Também Lucas tinha o olhar no mesmo rumo, mas era um olhar perdido, mais além das nuvens, mais além do parque, mais além mesmo do céu de estrelas, preso em sonhos de um futuro ambicioso.
Manuela sorriu novamente ante o espetáculo envolvente do parque de diversões, mais uma vez buscou a face enérgica do irmão. Não o encontrou, êle tinha partido com seus sonhos, estava distante, e quem poderia retê-lo, quem teria forças para contê-lo, para amarrá-lo à realidade das suas vidas tristes? Nem mesmo Manuela com toda a sua fragilidade, seu corpo de junco e sua alma de melancolia. Ninguém era capaz de conter a ambição de Lucas, ela bem o sabia. Admirava-o, mas quando pensava nele uma certa sensação de medo a assaltava. Medo de quê, não o poderia dizer exatamente, medo talvez que êle partisse e a deixasse sozinha entre os velhos avós, os resmungos de tia Ernestina, o cansativo bulício das crianças. Abandonada, condenada para sempre àquela vida, sem mais esperanças de partir um dia, ela também. Enquanto Lucas ficasse entre eles, com a sua força e sua brusca bondade, Manuela tinha certeza que a vida habitava em meio à umidade da casa, que nem tudo estava perdido e haveria esperança. Mas, para isso era preciso que Lucas não os deixasse, que não fosse sozinho, cansado deles, em busca do seu destino.
A voz chorosa de tia Ernestina arrancou-a dos seus pensamentos para a realidade, da chegada:
– Lucas, Lucas Está na hora de descer.
As crianças já se encontravam no meio da rua, não atendiam aos gritos dos velhos que baixavam entre precauções, e Manuela tocou no braço do irmão:
– Chegamos, Lucas.
O rapaz, estremeceu, regressava de um mundo distante. Levantou-se, era alto e atlético, os ombros largos, os punhos fortes. Segurou. no braço da irmã para que ela passasse em sua frente, fosse atender tia Ernestina atrapalhada no estribo do bonde. Ela se ergueu, também era alta, mas esgalga e frágil, os cabelos rolando sobre os ombros, as longas mãos onde se destacavam as veias azuis, mãos pálidas como se não conhecessem o sol. Quando ela desceu, o homem que esperava na rua, em companhia de um amigo, o bonde que os levasse a um bar qualquer onde encurtar a noite, comentou numa voz de surpresa agradável:
– Aquela moça... Aquela lá... Parece uma figura antiga, de outro século. Uma beleza...
Manuela ouviu mas nem se voltou na curiosidade de saber de quem partia o elogio. Ouviu também a resposta do outro:
– Toda a família acabou de fugir de um museu... Repare a velha ridícula com o chapéu de flores, a sobrecasaca imperial do velho. E o rapaz... Parece um palhaço naquela roupa apertada...
Um palhaço... Manuela olhou Lucas que levava um dos sobrinhos no braço e quase arrastava Dora pela mão, ao mesmo tempo que comboioava os velhos indecisos em meio ao movimento. Um palhaço... Para ela não existia homem mais belo no mundo do que seu irmão, mesmo com essa roupa curta e gasta, com os sapatos furados e camisa puída. Não, não era um palhaço.
E, então, voltou-se para os que comentavam e sua voz estava plena de agressividade, aquela agressividade dos tímidos:
– Vocês ainda hão de lamber as botas desse palhaço.
Um dos homens riu às gargalhadas, mas o outro fitou mais uma vez com interesse a face de Manuela que lembrava uma miniatura antiga, de velhas idades: o rosto de um róseo transparente, a pele fina, os grandes olhos azuis e assustados, a boca de lábios desmaiados. “Uma beleza”, pensou e desejou lhe pedir desculpas. Porém Manuela já atravessava a rua, carregando o sobrinho menor, em direção à porta central do parque de diversões, de onde os velhos avós e a tia Ernestina a chamavam em vozes irritadas.
Para Manuela não havia dúvidas que era a música partida da pianola que comandava todas as luzes e todos os movimentos do parque de diversões. A família estacionara, encostada nas verdes grades de madeira que cercavam o carrossel, a admirar o desconhecido instrumento musical. Mesmo as crianças, excitadas ao máximo com a visão dos cavalos, tigres, cisnes, dragões e sereias rodando carregados de meninos, ficaram silenciosas a contemplar a caixa de música da qual se evolava velha melodia esquecida, romântica e dolente.
Lucas segurava os bilhetes que havia comprado para os três sobrinhos e para Manuela – era necessário ir alguém prestando atenção ao menorzinho. “Dir-lhe-ia alguma coisa aquela melodia de amor?”, interrogava-se Manuela. Lucas nunca lhe falara nem de namoradas nem de amantes, como se não lhe sobrasse tempo para assuntos sentimentais. Tampouco Manuela tinha muito o que contar nesse sentido. Ainda assim, sem levar nenhuma imagem recente no coração ela sentia todo o clamor de desespero na plangente melodia da música, cuja letra uma mulher vestida como bailarina, cantava, ao lado da pianola, a voz quase rouca:
“Não te digo adeus, ai!
embora te vás pra sempre.
Não te digo adeus
mesmo que adeus me digas...”
Num tempo distante, quem sabe quantos anos já? alguém tinha partido da vida do compositor. E agora o seu gemido de amor, seu desesperado apelo, comovia o virgem coração de Manuela. “Comoveria a Lucas?” – bem ela o desejava saber. Gostaria de conhecer tudo o que se relacionasse com a vida do irmão, o que lhe sucedia quando êle não estava em casa, quando se encontrava na loja – oito horas durante o dia – ou nas ruas ao sair pelas noites, fugindo do triste serão familiar. Adivinhava, com a força do zelo fraterno, muitos dos seus sentimentos, desejos e sonhos. Porém, êle se guardava ciosamente de contar as suas coisas, apenas uma vez ou outra se abria – e somente com Manuela – para lhe falar dos seus planos, vagos e nebulosos, da oportunidade que êle ansiosamente esperava. Para dizer também do ódio que tinha da loja de fazendas, dos patrões, dos colegas e sobretudo dos fregueses – a “corja”, como êle os designava.
“Um dia largarei tudo isso e irei ganhar dinheiro”. Seus olhos faziam-se ainda mais escuros, como se os cobrisse uma cortina de ambição, enquanto êle repetia com uma certeza na voz:
– Hei de ser rico, Manuela. Mas rico de verdade, não um pinguinho de dinheiro. Hei de ter bancos, palacetes, empregados, automóveis, todas as coisas boas da vida. Seja como for, aconteça o que acontecer.
Manuela compreendia que, ao falar-lhe de tais coisas, ele o fazia antes de tudo para reafirmar em voz alta aquela certeza que lhe enchia o peito. Mais que uma confidência, era o repetir de uma resolução, como se, ao contar seus planos a Manuela, se sentisse ainda mais obrigado a realizá-los. Ela o animava. Sim, com certeza um dia êle seria rico, teria bancos, palacetes, automóveis, empregados. E então abandonariam a atmosfera úmida da casa onde moravam, talvez pudessem mesmo, em meio aos perfumes caros, esquecer o cheiro de mofo que já parecia fazer parte das suas próprias pessoas.
– Quando eu for rico te casarei com um príncipe encantado... – concluía ele, e lá se ia para a rua levando seus sonhos e seus planos, uma luz amarela de ambição nos olhos escuros.
Ela ficava em casa, abandonada aos resmungos da avó, ao crônico catarro do avô, às infindas orações e complicadas promessas de tia Ernestina aos santos pendurados na parede de seu quarto, à obrigação de cuidar das crianças. Às vezes podia isolar-se e pensar em Lucas, na sua inconformada força, e – uma vez que outra – no príncipe encantado que êle lhe prometia.
Rapazes passavam na rua e a olhavam, alguns diziam piadas e galanteios, houve quem lhe enviasse cartas com declarações de amor, e em certo crepúsculo quando se dirigia à padaria, um velho fez-lhe uma proposta desonesta. Não teve raiva nem mesmo do velho que iniciara sua libertina proposição chamando-a de “minha preciosa menina”. Mas tampouco simpatizara com nenhum, jamais respondera às frases ou às cartas, ao velho cínico olhara com olhos tão espantados que êle interrompeu a frase e se foi envergonhado. Seu tempo era curto para estar na janela ou andar na rua, passeando, e desde que deixara o liceu no segundo ano (com a morte dos pais fora impossível continuar os estudos), não tivera mais namorados.
Nessas noites em que Lucas lhe fazia confidências, ela demorava a conciliar o sono. Sentia mais pegajosa a umidade da casa, a triste cal das paredes do quarto e o cheiro de mofo que vinha de todas as partes e quase a asfixiava. Quem dera mesmo que Lucas enriquecesse... Não era preciso que ganhasse tanto dinheiro como êle planejava. Não seriam necessários nem os bancos, nem os palacetes, nem os automóveis, nem os empregados. Um pouco mais de dinheiro apenas para que pudessem mudar-se para um apartamento, com certo conforto, internar o garoto maior num colégio, e ter alguém que arrumasse a casa e lavasse a louça... Se Manuela fosse religiosa seria capaz de fazer – como tia Ernestina – promessas difíceis de cumprir para ver Lucas em melhor situação financeira. Mas perdera a fé há muito tempo já, resultado de certas leituras, da influência de um professor no liceu, e, principalmente, devido à monotonia de sua existência.
Por vezes se recordava ainda daquele mestre do ginásio, conhecido entre os alunos como o “livre-pensador”. Era ele mesmo quem se dizia livre-pensador, nas aulas animadas pelas discussões, diferentes das demais classes monótonas e cansativas. Na memória de Manuela restava a lembrança de um belo tipo de homem, já de certa idade, os cabelos começando a branquear, a voz muito sonora, um eterno cigarro nos lábios, os olhos quase sempre um pouco vermelhos das noites perdidas nos cafés, de álcool e literatura. Dele as alunas cochichavam, entre risos, histórias picantes e tenebrosas: que bebia muito, freqüentava prostíbulos, tinha não se sabe quantas mulheres e escrevia sonetos. Era ferrenho inimigo da Igreja e dos portugueses. Suas aulas possuíam para os discípulos um particular encanto porque êle gostava de discutir e também narrar histórias numa exuberância de gestos e palavras. Contava dramáticos episódios da Inquisição, que davam arrepios em Manuela. E, se bem êle não tivesse conseguido fazê-la antipatizar com os portugueses o professor atribuía à colonização portuguesa todos os males do Brasil, mas Manuela tinha, nessa época, uns vizinhos portugueses simpaticíssimos, muita boa gente – conseguira afastá-la dos padres e das igrejas. É possível que Manuela tenha estado algum tempo apaixonada por êle. Comprava, então, com suas economias de escolar, a revista mensal que publicava seus sonetos e os lia numa emoção de namorada, procurando entender a barata filosofia de vida que o professor metrificava e rimava com alguma dificuldade. Pensou ter sido escrito para ela determinado soneto onde o professor anunciava estar seu coração rendido às graças e atrativos de uma certa Margarida, em realidade, a caixa sardenta de um café-concêrto. No dia seguinte ao da publicação desse soneto que, de tanto reler, aprendera de memória, Manuela demorou-se a cuidar da sua cabeleira que já naquele tempo era vasta e particularmente bela mas da qual não tratava, prendendo numa fita cor de rosa os cachos rebeldes que fugiam ao sabor do vento. Pensava deixar sobre a mesa da sala de classe uma rosa vermelha que colhera para êle, retribuição aos versos da revista.
Ao chegar ao liceu, soube que o professor tinha sido demitido por pressão das famílias de alguns alunos, cujos pais não concordavam com seus ataques à Igreja e à colônia portuguesa. Manuela, conhecida por sua timidez e seu bom comportamento, revoltou-se nesse dia, tomou a defesa do professor, classificou os pais alarmados dos colegas de carolas e a direção do colégio de incapaz. Durante algumas semanas buscou nas ruas, enquanto ia e vinha do colégio, “o livre-pensador” e adormeceu tendo ante os olhos a visão do seu gasto rosto de boêmio.
Recorda-o novamente agora, quando, ante as luzes do carrossel, ouve a música dolente da pianola e a voz rouca da mulher:
“Hei de sempre te amar
outra coisa já não sei fazer...”
Nenhuma outra imagem masculina viera jamais povoar seu coração. Se fez mulher no escondido daquela casa, cuidando de velhos e crianças, e nem se dava mesmo conta de quanto era bela, da cobiça que ensombreava os olhos dos homens quando a viam ir pelas ruas quase colada às paredes, num apressado andar. Hoje, no entanto, essa música antiga, que alguém compusera no sofrimento da partida da bem-amada, enche seu coração do desejo de amar. Desejo de tal maneira intenso que ela relanceia os olhos azuis em torno de si, um olhar tão quente e ansioso de carinho que dele ficou suspenso um rapaz elegante que passava. Parecia ir interessado em direção a uma barraca onde anunciavam a “alucinante dançarina hindu, Savaranah, na dança do ventre”, mas era tamanha a doçura do olhar de Manuela que êle esqueceu todas as promessas excitantes contidas na voz do homem que bradava) do outro lado, através de um alto-falante:
– Venham todos! Venham todos depressa! O espetáculo vai começar. Savaranah, vênus hindu, a formosa das formosas, fugida do harém do paxá, vai começar a dança do ventre, inteiramente nua, INTEIRAMENTE NUA, I-N-T-E-I-R-A-M-E-N-T-E N-U-A!I!
A voz convidativa continuava a ressoar, aumentada em volume e sugestão pelo amplificador de Flandres, porém, mais forte que a nudez oriental por ela prometida, era o olhar de Manuela, nascido da música antiga da pianola:
“Não te digo adeus
meu distante pensamento,
terno carinho meu,
hei de sempre te amar...
O carrossel parava e com êle morria a música prolongando seu ai de amor em derredor. Manuela sorria, quase sem o sentir, para o rapaz bem vestido que a fitava numa admiração, o corpo ainda jogado para diante pois parara bruscamente ao vê-la. Lucas estendeu os bilhetes para a irmã e com a mão a empurrou de leve para a entrada onde um negro vestido numa velha farda vermelha, olhava com simpatia as crianças que se disputavam os cavalos mais árdegos. O jovem diplomata Paulo Carneiro Macedo da Rocha, chegado naquela noite de Buenos Aires, mudou a direção dos seus passos, foi comprar um bilhete para o carrossel.
Gostaria de sair dançando sobre o assoalhado giratório do carrossel. Inventando uma dança para aquela música que voltou a gemer na pianola logo que os cavalos, sereias, cisnes e dragões partiram na sua aventura maravilhosa. Agora, sentada entre as asas de um cisne de imaculada brancura, segurando a mão assustada, porém ansiosa de Gino, ela pôde contemplar a completa cintilação das luzes do parque. Por que não sair dançando sobre o assoalho uma dança daquelas luzes que seus pés sabiam com certeza? Se tomasse o saiote de bailarina da mulher que cantava, comporia um “ballet” para as luzes e a música.
As lâmpadas coloridas e os anúncios luminosos de gás neon passam ante seus olhos enquanto o carrossel roda vertiginosamente. Na escola primária ela inventava passos de dança e, no liceu, o professor de ginástica dizia jamais ter visto vocação para o bailado igual a Manuela. Mas tudo isso se perdera depois no interior úmido da casa, em meio às rezas de tia Ernestina e o rouco catarro do avô. As crianças que avançam nos cavalos indomáveis, nos dragões misteriosos, nas sereias submarinas, nos tigres ferozes para a conquista do mundo, de lança em punho contra invisíveis inimigos, não conseguem abafar, com o ruído de suas vozes excitadas, a música antiga que recomeça na pianola o seu lamento de abandono:
“volta que a noite é longa
triste de tua ausência,
meu infinito amor.
Manuela gostaria de poder sair dançando pelo carrossel, entre os cisnes e os tigres, os dragões e os cavalos. Talvez assim, bailando ao som daquela melodia dolorida, pudesse guardar sempre toda a emocionante beleza desse momento de luzes que rodam, de cores que se confundem, de rostos que passam rápidos ante os seus olhos, de música evocadora e acariciante, e de completa entrega de seu corpo e de seus pensamentos à loucura daquele carrossel que gira sem parar.
Para onde êle se dirigirá, esse carrossel que é mais que um trem de ferro, mais que um navio, mais que um avião, com seu estranho carregamento de peixes, feras, cisnes e crianças? Seu incerto destino final será, sem dúvida, uma terra de surpreendente beleza onde, para uma vida de completa felicidade, um príncipe encantado a esperasse. Manuela não saberia dizer – se lhe perguntassem de repente – qual o seu conceito de completa felicidade. Mas essa terra feliz não teria o bafio úmido de uma casa trancada noutros tempos, segregada do mundo, vivendo nos dias de ontem.
Com os olhos abertos, Manuela sonha. Sua cabeleira voa, um sorriso nasce em seus finos lábios desmaiados. Talvez esse carrossel, em sua desvairada corrida, se dirija para o futuro. Ela enxerga um mundo diferente, cheio de doçura, do encanto de viver, nas luzes que rodam, na melodia de amor da caixa de música. Aquele mundo que Lucas aspira encontrar no dinheiro e que ela deseja buscar na vida da qual nunca participa. E uma vontade de sair dançando, uma dança inventada, uma dança que nunca se dançou, mas que Manuela certamente conhece em todos os seus passos e movimentos. Seus pés querem deslizar como ela o fazia quando era pequena para alegrar a face triste da mãe tuberculosa e fazer rir o rosto fúnebre do pai.
A voz chega por detrás, aos poucos aquele persistente rumor vai dominando a letra da melodia que a pianola remói. Aquela voz de homem parece chegar de muito distante e Manuela presta menos atenção às palavras de elogio à sua beleza do que ao seu tom educado, sugerindo ambientes opostos à casa úmida onde ela morava. Voz refinada que parece vinda de outros tempos, igual à música antiga da pianola, igual a esse desejo de bailar, Manuela demora a ligar essa voz fascinante ao moço que ela percebera entrar às pressas no carrossel quando este já começava a rodar. Vira que êle buscou sentar-se a todo custo perto dela, tendo para isso que mal acomodar-se sobre um tigre de boca sangrenta e ferozes olhos esbugalhados, como se fosse uma criança. Sorriu divertida ao vê-lo um pouco ridículo sobre o tigre, um rapaz tão elegante, rico certamente, mas logo o esqueceu quando a pianola recomeçou a gemer seu lamento de amor.
Depois a voz a foi cercando devagar, respondia a toda a sua emoção, era como que uma ressonância de sonhos timidamente sonhados, de desejos sopitados, de muitas noites acordadas, os olhos puxados para as estrelas longínquas. Aos poucos vai tomando conhecimento das palavras e das frases.
Deixa-se envolver pela voz, pela música, pelas luzes. Gostaria de dançar. De dançar diante do moço como dançava em menina diante dos pais. Dançar para êle sorrir alegre e aplaudi-la quando ela terminasse.
E lhe vem aos poucos uma certa vontade de olhar para o rapaz, de fitá-o por um momento, guardar na memória sua fisionomia para assim poder reconstruí-la nas noites solitárias, pois Manuela está certa de jamais voltar a vê-lo. Não chegara a guardar – nas três vezes que o fitara antes – memória de sua fisionomia e, agora, ao sentir sua voz cheia de sugestões, sente que será bom sorrir outra vez para êle, não num compromisso mas num agradecimento como se êle fosse solidário com ela naquela louca aventura do carrossel conduzindo os sonhos soltos, o irrealizável desejo de bailar.
Volta a cabeça para trás, sorri para Paulo, examina a face orgulhosa do rapaz. Ouve sua voz num cálido pedido:
– Onde podemos nos ver? Posso lhe falar amanhã? Não responde mas êle aceita o sorriso como uma afirmação e sente aquela aventura pequeno-burguesa como algo picante e pouco usual em sua vida de mulheres de alta sociedade.
Manuela dirige os olhos novamente para as luzes que rodam. Ah! se pudesse dançar, deixar os pés contar tudo que lhe ia pelo coração, toda a intensa emoção desse parque iluminado e cheio de vida. Mas, como fazer para dançar se a família é distante de tudo isso e seu destino é cuidar de velhos e de órfãos? Nem mesmo de Lucas ela podia esperar compreensão para seu sonho acalentado sem esperanças desde menina. Talvez o moço que lhe fala em palavras sussurradas, talvez êle compreendesse, traz no rosto e nas roupas a marca daquele outro mundo entendido de teatros, de música, de “ballet”. A êle talvez pudesse contar... Mas é apenas um desconhecido e amanhã, perdida a lembrança desse louco carrossel, nem se recordará de Manuela, muitas e belas são as mulheres do seu mundo. E então uma angústia a invade, a certeza de que jamais, jamais dançará, jamais deixará que seus pés deslizem sobre um tablado, livres, inteiramente livres, numa daquelas danças que ela sabe inventar... Seus olhos azuis ardem de lágrimas prestes a rolar. O moço fala, o carrossel diminui a marcha. Agora o rumor das crianças domina por completo a música que murmura:
“Hei de sempre te amar...
Manuela levanta-se ainda meio tonta, procurando os outros dois sobrinhos, Gino no braço. E ouve Paulo a dizer-lhe:
– Aqui estão seus irmãozinhos.
Realmente as crianças estão ao lado do moço, onde ele conseguira o chocolate com que comprou-lhes a silenciosa cumplicidade. Manuela levava as mãos aos olhos, ainda os tem cheios das luzes girando mas já não sente vontade de dançar. Paulo pergunta:
– Posso acompanhá-la?
E logo agrega, num interesse:
– Está triste?
Porque êle lhe fez essa pergunta, ela não o mandou embora com uma daquelas suas rudes palavras de tímida. Disse apenas:
– Desculpe. Minha família está toda aí...
Ele abriu-lhe passagem, Lucas a esperava na saída do carrossel. “Encantadora – pensou Paulo. – Deve ser de uma inocência divina, capaz de uma ternura infinita. E é disso que eu preciso agora.”
E antes que ela se perdesse, cercada pela família, no movimento do parque, o ex-segundo secretário da Legação do Brasil em Bogotá atirou-se para frente, disposto a acompanhá-la até o fim do mundo, mesmo que isso significasse ter de ir, num bonde incômodo, misturado com gordas matronas suarentas e chorosas crianças aborrecidas, até um subúrbio longínquo da cidade...
O avião internacional aterrissara no aeródromo de São Paulo no começo da noite. Mas Paulo não conseguiu um táxi, teve de vir no ônibus da companhia aérea e quando finalmente chegara em casa, Artur partira já para a recepção dos Costa Vale. O empregado que lhe serviu um jantar frio perguntou-lhe se êle não ia também.
– Não, Pedro, não vou não. Se eu fosse a minha entrada provocaria aquilo que os cronistas mundanos apelidam “uma extraordinária sensação”. E eu prefiro evitá-la. Vou andar um pouco pela cidade.
Do bar onde se recolhera quando a chuva caíra, êle sentiu-se tentado pelo movimento do parque de diversões. Não se recordava do tempo em que entrara num desses parques – desde criança certamente não voltara a nenhum. O bulício da gente, o contacto com a multidão, com esse mundo de suor e de pequenas preocupações, eram coisas que Paulo se habituara a evitar. Sua vida se processara sempre noutro meio, onde não se sentia o cheiro de suor, onde os motivos de preocupação e conversa não se referiam jamais ao pão difícil, ao trabalho pesado. Esse outros mundos, o da pequena burguesia e o do proletariado que Paulo reunia numa única designação: a gente pobre, não o tentava e não o interessava. Ele a olhava com um certo desprezo irônico, despido de ódio, mas despido também, de qualquer simpatia. um desprezo piedoso, eis o seu sentimento para toda aquela gente, cuja existência Paulo não chegava mesmo a explicar. Na Faculdade de Filosofia, onde estudara literatura francesa, não chegara a se ligar senão a uns poucos colegas, provenientes como êle mesmo da “alta sociedade”. Os demais não contavam para ele e o acusavam de orgulhoso e “bêsta”. As moças especialmente, interessadas na sua sóbria elegância inglesa, no seu nome tradicional, em certa reputação literária atribuída ao rapaz, não lhe perdoavam o seu desinteresse, aquele desprezo bem educado com que êle as desconhecia. Um dos colegas, um certo Jacques, de origem israelita e de temperamento acaudilhador, o definira um dia para um grupo:
– Aquilo é uma lesma... Escorregadio, com essa cara de quem comeu e não gostou, cara de vômito.
A hostilidade da maioria dos colegas tampouco o molestava. Não tomava conhecimento dela, algo de terrivelmente frio e calculado marcava a sua natureza, ao lado de uma incapacidade de resistir a certos impulsos, a certas paixões momentâneas, que destruía quase sempre seus atos mais calculados e meditados E, sobretudo, aquela impossibilidade de levar a sério o que fosse, de considerar alguma coisa importante, esse amadorismo herdado do pai como do pai herdara os súbitos receios, o terror de inesperadas per turbações, o terror antes de tudo da pobreza, da vida sem dinheiro que êle imaginava mesquinha e degradante. Era um mito de perfeito cavalheiro social – “de elevada educação”, como escreviam os cronistas sociais – e do moço perdido, capaz de beber dias seguidos e, quando bêbedo, de cometer os maiores absurdos. A posição política do pai e o nome da família lhe haviam feito conhecer e tratar, desde muito moço, com os homens que dirigiam a vida do país: banqueiros, governadores de Estado, ministros, grandes fazendeiros, embaixadores estrangeiros e literatos. A princípio todos pensavam que êle se dedicaria à literatura – alguns poemas seus, herméticos e num ritmo despido de qualquer melodia, tinham sido publicados, em seus tempos de estudante, em revistas literárias e o poeta Shopel escrevera mesmo um artigo sobre “essa revelação de um poeta voltado para o mais profundo de si mesmo, um poeta para poucos, somente para aqueles capazes de sentir o drama angustioso do homem moderno, colocado em face da inutilidade da vida”. Os cronistas mundanos, ao marcar sua presença numa festa, não esqueciam de preceder o seu nome dos termos “brilhante poeta da nova geração”. Deixou a poesia para escrever raros artigos sobre pintura, para participar de Comitês Patrocinadores de exposições modernas, para discutir sobre Bracque e Picasso, sobre Matisse e Salvador Dali. Os cronistas mundanos classificavam-no então como “o nosso brilhante crítico de arte”. Nesse tempo, terminado o curso, não fazia nada, vivia entre Rio e São Paulo: recepções, embaixadas, fins de semana em fazendas de amigos, “ateliers” de pintores, longas conversas com César Guilherme Shopel e outros literatos, alguns com senhoras da sua roda, alguns pileques, as mesas de jogo dos cassinos, vagos projetos de uma peça de teatro para um grupo de amadores formado entre os grã-finos da alta sociedade paulista. Gastava muito dinheiro, não procurava saber de onde êle vinha. E repetia, nos dias de bebedeira, para Shopel (que, ao se embriagar, ficava sordidamente romântico e reclamava, tremendo todas as banhas do corpo imenso, “uma virgem puríssima, não tocada sequer por um mau pensamento, para redimir sua carne pecadora e perversa”), os olhos vidrados e fartos de tudo: Essa vida não presta para nada... O homem só tem um destino digno: o suicídio...
Um dia, porém, seu pai inesperadamente o convidou para uma conversa. Perguntou-lhe o que êle pretendia fazer, era tempo de estudarem o assunto. E lhe explicou que a situação financeira deles não era grande coisa: a pequena fazenda não deixava grande lucro e, além dela, o que possuíam eram algumas ações nas empresas do Costa Vale. Viviam realmente da política, das comissões recebidas pelos negócios facilitados ao banqueiro e a outros amigos, das vantagens da cadeira de deputado. E, entre os dois, naquela vida dispendiosa, gastavam todo o dinheiro que entrava. Paulo necessitava tratar de assegurar-se numa carreira, de iniciar sua vida para que quando êle, Artur, lhe faltasse, não fosse obrigado a solicitar dos outros um emprego público qualquer
Paulo assustou-se ante essa ameaça de pobreza, na qual jamais detivera pensamento. Durante dias andou preocupado, não sentia nenhuma atração pela vida política (o pai lhe abrira essa perspectiva, podia candidatá-lo a deputado estadual nas eleições próximas), muito menos desejava ingressar nas empresas de Costa Vale (Marieta lhe falara disso, de um posto diretivo numa empresa qualquer), não via tampouco a mulher rica com quem casar, para seguir o conselho de Costa Vale:
– Se não quiser fazer nada, case com uma mulher rica.
A possibilidade de ser pobre, de ter de abandonar o alfaiate caro, de ser obrigado a comprar sapatos numa sapataria qualquer, de não poder ir aos bares elegantes na hora do aperitivo, isso era algo insuportável. O que havia de frio e calculado em seu caráter sentia-se apavorado ante tal horror. Foi quando o poeta Shopel lhe perguntou por que não ingressava na carreira diplomática. Possuía tudo que era necessário: o nome ilustre, fala inglês e francês com perfeição, dançava bem, conhecia literatura e arte, tinha um título universitário, seu pai era político influente. Alcançaria, sem dúvida, o primeiro lugar no concurso a realizar-se dentro em pouco.
Decidiu-se, o pai falou com amigos, Costa Vale deu um telefonema para o Ministro. Foi aprovado no concurso, nomeado em seguida para Bogotá.
No avião em que viera de Buenos Aires naquela tarde do último dia de outubro, estava novamente aterrorizado. O escândalo da imprensa em torno da sua bebedeira, os boatos de demissão chegados à Embaixada na Argentina, faziam-no novamente antever, horrorizado, aquela ameaça de pobreza, de emprego público mendigado aos amigos do pai, de vida mesquinha. E senha uma raiva, pouco familiar ao seu temperamento, contra aquela viciada esposa do diplomata chileno, aquela Adela Reys de olhos de cocainômana, que mais bêbeda ainda do que êle, o desafiara a amá-la ali mesmo na sala de festas, ante todo mundo. Perdera completamente a cabeça e tentara despi-la. Ela abrira um berreiro como se fosse uma pudica donzela ultrajada em sua inocência. E o resultado fora a cena do pugilato, a sua expulsão da festa, o escândalo, a viagem precipitada no avião que saia de Bogotá para Santiago pela madrugada.
Talvez fosse porque Manuela lhe aparecia como o oposto de Adela Reys, tímida na sua beleza frágil, que êle tanto tivesse se interessado. Convencera-se nesses dias de medo, ao imaginar-se apavorado uma vida pobre, ser-lhe necessário, como uma estação de cura, o amor romântico de uma terna moça que visse nele a concretização de seus sonhos adolescentes. Um amor como aqueles tão elogiados pelo poeta Shopel nos seus poemas:
“Eu desejo, meu Deus, tímidas raparigas em flor;
Eu desejo, meu Deus, a ternura de um puro amor
que meu corpo arranque do anseio imundo
desse pecar constante contra a tua lei
E pensava também, olhando a paisagem pela janela do avião, ser necessário buscar nas suas rodas, em São Paulo ou no Rio de Janeiro, urgentemente, aquela esposa milionária, aconselhada por Costa Vale, capaz de libertá-lo para sempre, do angustiante medo da pobreza, das camisas suadas, dos colarinhos puídos, dos alfaiates baratos.
Essas coisas aconteceram, naquele último dia do mês de outubro do ano de 1937, data em que se iniciou também a extraordinária carreira de Lucas Puccini, transformado em poucos anos de modesto empregado do comércio numa das figuras mais poderosas da vida nacional. Começou ali, no bar do parque de diversões, onde os avós bebiam guaraná, as crianças devoravam sorvetes e Manuela tomava um refresco de abacaxi entre olhadelas lançadas a susto para Paulo, sentado numa mesa adiante. Quando Lucas, cansado de chamar o garçom atarefadíssimo dirigiu-se à caixa para apressar o pagamento da pequena despesa, encontrou-se de súbito ante Eusébio Lima, seu colega de ginásio, seu amigo inseparável dos dias de estudante. Eusébio desaparecera de São Paulo desde o levante de 30, no qual andara envolvido, e dele Lucas nunca mais soubera. Quase não o reconhece agora, tão bem vestido êle estava, fumando um charuto, falando alto para um grupo na mesa ao lado do balcão. Eusébio levantou-se ao reconhecê-lo, abriu os braços:
– Seu Puccini, é você mesmo? Que surpresa rapaz... – Apresentava-o aos demais – Este aqui é meu velho amigo Lucas Puccini, era o tal no colégio, inteligência e força reunidas, meninos... – puxava outra cadeira noutra mesa. – Mas sente, Lucas, vamos matar as saudades com uma boa pinga...
E o estudava, medindo a velhice das suas roupas, o aspecto pobre do amigo. Lucas desculpava-se:
– Estou ali adiante com a família. Ia na caixa pagar...
Eusébio refletiu um momento, levantou-se, estendeu a mão para os demais:
– Vocês me desculpem mas eu vou com o Lucas. Fazem quase dez anos que não nos vemos... E eu pensava mesmo procurá-lo desta vez...
– Sete anos... – confirmou Lucas.
Voltaram à mesa de Lucas, Eusébio cumprimentou todo mundo, elogiou a beleza de Manuela que êle vira menina, e como a mesa estava muito cheia já, propôs a Lucas sentarem-se noutra vazia ao lado, assim podiam conversar melhor. Bateu palmas com a mão, encomendou bebidas ao garçom, novos sorvetes para as crianças
– Não são seus filhos, não?
– Não. São órfãos de minha outra irmã, não sei se você se lembra dela, chamava-se Ruth. Morreu, o marido vive numa fazenda onde é gerente de um armazém, as crianças estão conosco.
Eusébio fez “Hum! hum!”, voltava a contemplar Lucas, a estudar suas roupas e seus sapatos. Lucas, um tanto incomodado com aquele exame indiscreto, falou:
– Tu estás feito milionário...
– Não vou mal, graças a Deus. E tu, que fazes? Não me parece que possas dizer o mesmo...
– Trabalho numa loja de fazendas, “O Barateiro’, de uns turcos...
– Hum! Hum! ordenado miserável, não?
– Trezentos mil-réis por mês... Se não fosse o cunhado que manda algum dinheiro para as despesas dos meninos, não sei como se podia viver... Manuela tem que ficar em casa tomando conta dos meninos e dos velhos... não pode trabalhar...
– Pois, velho, eu lhe ofereço de cara um conto de réis por mês, como ordenado fixo, e a possibilidade de muito mais...
– Não brinque... Onde isso?
Eusébio, antes de responder, informou-se.
– Você nunca se meteu em política?
– Em política, não.
– Comunismo, integralismo, esse negócio...
– Não. Tem uns dois integralistas na loja, me convidam muito mas nunca me interessei por esses negócios.
– E o sindicato? Aqui há um grande sindicato dos empregados no comércio. Você tem alguma atividade por lá?
– Atividade propriamente, não. Fiz uns discursos umas vezes, sobre o salário mínimo, quando se discutia esse negócio. Isso me criou uma certa simpatia, numa das eleições quiseram-me botar numa chapa mas eu não aceitei... Agora vai haver outra eleição, vieram me convidar de novo.
– Existem muitos comunistas nesse sindicato?
– Homem, não sei. Quando tem reunião, e não é sempre que eu vou, há uns tipos que falam contra o fascismo, contra os integralistas, contra os americanos, em greve, essas coisas... Os outros dizem que eles são comunistas. São sempre os mesmos e agora têm uma chapa pras eleições. Até pediram meu voto...
– Comunistas, batata. Pois, meu velho, aqui como você me vê, sabe o que é que sou?
Lucas aproximou o rosto, Eusébio disse:
– Alto funcionário do Ministério do Trabalho. Sou um dos encarregados da questão sindical. E preciso de gente boa para me ajudar. Homens de coragem e decididos, capazes de enfrentar e liquidar os comunistas nos sindicatos. Compreende? Precisamos de dirigentes sindicais, de funcionários do ministério que tomem conta dos sindicatos e façam deles tranqüilas associações de trabalhadores em vez de ninhos de agitação social. Se você quer vir trabalhar comigo...
– É claro que quero. Um conto de réis, você disse?
– Pra começar, meu caro. E, se você se mostrar correto, eu lhe ensino com se pode ganhar muito mais – baixava a voz. – Há os Institutos dos Industriários, dos Comerciários, a Caixa de Aposentadoria e Pensões... Mamatas, meu velho, cada mamata que é só deixar o leite escorrer...
Gritava pelo garçom, pagava a conta toda das duas mesas, do troco tirou uma nota de dez mil-réis deu aos meninos.
– Procure-me amanhã às três horas, nesse endereço. Eu trabalho no Rio mas quando venho a São Paulo esse é o meu escritório, é uma repartição do Ministério – entregava-lhe um cartão mas voltava a tomá-lo. Vou escrever umas palavras para lhe introduzirem logo que você chegue. Então, até amanhã.
Lucas o viu, sair, lançando baforadas do charuto, o ar importante e não ouvia sequer a ansiosa pergunta de Manuela: – Que é que houve, Lucas. Alguma coisa?
Na outra mesa, Paulo seguia com olhos curiosos toda a cena. Finalmente Lucas se refez da emoção que o sufocava e fixou em Manuela uns olhos tão fulgurantes que a amedrontaram:
– Não te dizia, Manuela? Um dia havia de aparecer a minha oportunidade.
– O que foi?
– Em casa te conto. Vamos embora.
Mas no bonde não se conteve e em breves palavras narrou a conversa com Eusébio, a oferta de emprego no Ministério do Trabalho, o ordenado, as perspectivas...
– Hei de ser rico, Manuela, rico de não poder contar o dinheiro, de ter de botar fora, para comprar tudo o que quiser, para comprar até gente...
Manuela apertou-lhe o braço, aquela era uma notícia maravilhosa. Assim, o irmão com um bom emprego, poderiam deixar a casa úmida do subúrbio, alugar um pequeno apartamento que não cheirasse a mofo, onde o sol penetrasse cada manhã, sobre cujo assoalho encerado ela pudesse deixar deslizarem os pés uma vez que outra numa dança inventada... Alegria tamanha, ela necessitava comunicar a alguém mais. Os avós, porém, ressonavam e tia Ernestina acomodava as crianças no banco.
Olhou então para trás, para o banco onde ia sentado aquele persistente rapaz simpático que a acompanhava desde o parque, e sorriu-lhe um sorriso amplo, era como se respondesse à pergunta por êle feita no carrossel: “está triste?” Não, não está mais triste, seu irmão vai ter um bom emprego, de futuro, deixará de vestir aquela velha roupa azul herdada, deixará de calçar os sapatos cambaios, já ninguém o poderá encontrar semelhante a um palhaço. Paulo encantava-se do seu sorriso, da nova beleza resplandecente, do seu rosto animado de vida.
Lucas, que acompanhara o olhar da irmã, viu Paulo respondendo ao seu sorriso. Examinou-o, viu a sua elegância, o tipo aristocrático, as unhas da mão tratadas a manicure. Ao ver-se notada por Lucas, Manuela voltou-se bruscamente, baixando a cabeça, um sorriso de criança pegada em flagrante numa travessura.
– Namorando, hein? – mas Lucas sorriu também, pois naquela noite tudo lhe parecia agradável e de bom agouro. – Parece pessoa de boa família.
As últimas luzes do parque de diversões perdiam-se na distância, agora começavam as ruas estreitas e o bonde lento rangia nos trilhos. Os meninos, fatigados, tinham adormecido, recostados nos velhos avós também dormidos. Tia Ernestina contava estrelas, os olhos no céu. Manuela aconchegou no seu colo a cabeça de Gino, o sobrinho menor, acariciou-a suavemente.
De um banco ao fundo, elevou-se, irritada, uma voz de homem pondo fim a uma discussão:
– Golpe! Golpe! Que importância pode ter? Presidente ou ditador, paulista ou paraibano, é tudo uma cambada de ladrões, não há diferença nenhuma, só querem é roubar, roubar, encher o bandulho, enriquecer os parentes.. . Para endireitar esse país só existe um homem e esse está preso e não se pode dizer o nome dele, é proibido pela polícia... Mas você sabe quem é, e eu também, e o povo todo!
Tocou a campanhia, desceu no primeiro ponto, era um velhote de óculos, desapareceu numa esquina.
A notícia do golpe de Estado alcançou Apolinário quando ele terminara de atravessar a fronteira. Tinha sido pela noite. Os camaradas de Porto Alegre haviam-lhe estabelecido uma complicada ligação nas proximidades de Bagé, com uns tipos ligados a um uruguaio cujas terras limitavam com a fronteira. Um deles – assim lhe haviam explicado em Porto Alegre – devia a vida a uma camarada do Partido e por isso se prestava, por vezes, transportar um ou outro companheiro ilegal pelos caminhos só conhecidos dos contrabandistas. A fronteira de Santana do Livramento e Rivera, a mais fácil – uma rua como outra qualquer entre as duas cidades – estava impossível, um verdadeiro exército de policiais a guardava naqueles dias precursores do golpe fascista. Não valia a pena arriscar-se, era melhor fazer a travessia mais difícil, porém, mais segura.
De Bagé o levaram a uma casa no campo, não longe da fronteira, onde êle esperara em companhia do homem encarregado de conduzi-lo. Começara a andar, nas pegadas do guia, no começo da noite. O imenso descampado do pampa estava envolto por um céu escuro, de azul anil, na noite sem lua, escolhida de propósito. O gaúcho ia silencioso em sua frente, num passo sutil, de animais do campo. De quando em vez o mugido de uma vaca ou do tropel de um avestruz perdido cortavam o silêncio pesado da marcha. O gaúcho caminhava atento a todos os ruídos, não era raro parar, o ouvido à escuta, entendendo rumores longínquos, totalmente despercebidos pelos ouvidos citadinos de Apolinário.
O ex-oficial possuía aquela calma do homem nervoso que sabe, no entanto, dominar inteiramente seus nervos, comandar seus sentimentos. Quando o guia parava, êle parava também, esperava sem fazer perguntas que o outro desse sinal para recomeçar a caminhada. O gaúcho, um tipo de índio de rosto pouco comunicativo, olhava-o de fugida a cada pausa na marcha, também nas curvas do caminho quase inexistente, só lhe falou uma vez e foi para dizer numa língua de fronteira, um português misturado de espanhol:
– Cuidado ahora. La policia es por aqui, cerquita...
Andaram de rastro, como serpentes, uns quantos metros. O caminho ficara para um lado, iam entre as pastagens de gado. Corujas piavam nos galhos, um grito agoureiro. Em certo momento, o gaúcho sentou-se no chão, começou a imitar, num preciso ritmo repetido, o grito assustador das corujas. Apolinário sentara-se também e entendeu a resposta, vinda de entre umas árvores isoladas ao longe. Logo depois, o clarão de uma lanterna brilhou no campo e eles se dirigiram no rumo da sua luz. Um homem bronzeado, de bombachas e camisa, lenço vermelho ao pescoço, no típico traje dos gaúchos, os esperava. O índio disse, ao apertar-lhe a mão:
– El patroncito tiene coraje de verdad!
Foi só então que Apolinário perguntou:
– Já chegamos?
O homem bronzeado estendeu-lhe a mão, respondeu:
– Usted está en el Uruguay. Pero, atención, que los tiempos aqui son también malos para los comunistas. Es el gobierno de Terra... Venga usted conmigo.
O que o acompanhara preparava-se para voltar. Bebia um trago de cachaça de uma garrafa apresentada pelo outro, se despedia. Apolinário quis dar-lhe algum dinheiro mas o gaúcho bronzeado não permitiu, dizendo bruscamente:
– El trabaja para mi, yo le pagaré su trabajo. No hago esto por plata, yo lo hago por gratitud. Adelante.
Viu ainda o índio tomando o mesmo caminho de volta, impassível e mudo, sombra perdida na noite negra do pampa. Apolinário aceitou o gole de aguardente, oferecido por don Pedro:
– Yo me llamo don Pedro, para servir a usted...
Era conversador e cordial, e, enquanto andavam em busca da casa onde Apolinário devia passar o resto da noite, êle lhe contava que por aqueles mesmos caminhos havia sido, no correr desse ano, transportada muita arma de contrabando para o governador do Estado, Flôres da Cunha, “don Antônio”, como era chamado pelos contrabandistas da fronteira.
– Pobre don Antônio, a esas horas ya se encuentra em Montevideo, llegó por la mañana en un avion especial.
– Flôres da Cunha em Montevidéu, por que?
– Ah! ujsted no sabe todavia de los acontecimientos de Rio... Han sucedido por la mañna...
– Passei todo o dia numa casinhola no meio do descampado com o amigo que me acompanhou. Não sei de nada.
– Es verdad, yo habia olvidado. Pues yo le cuento: don Vargas disolvió el Parlamento, anuló la Constitución, terminó con la campañia electoral. El habló por la radio, pero yo no sé lo que dijo, no estaba em casa. Ese don Getulio es un diablo, no hay persona que pueda com él...
Apolinário pedia detalhes numa fome de notícias mas don Pedro pouco sabia, andara muito ocupado naquele dia, apenas ouvira no rádio que Getúlio Vargas dera um golpe de Estado, proclamara uma outra constituição, dissolvera o Parlamento e que Flôres da Cunha fugira apressadamente de Porto Alegre para Montevidéu, num avião, e se asilara na capital uruguaia.
– Pero usted puede escuchar la radio en casa. Usted se quedará esa noche con nosotros, mañana por la tarde puede tomar el tren para Montevideo en Melo...
Apolinário andou em silêncio o resto do caminho: como que a noite se fechara sobre êle, àquela notícia. Don Pedro acrescentava um detalhe esquecido:
– La radio habla de muchas prisiones en todo el Brasil.
Que estaria se passando no Rio e em São Paulo, na Bahia e em Pernambuco, em Porto Alegre e Curitiba? Haveria resistência ao golpe, a unidade antifascista que o Partido buscava estabelecer entre as forças democráticas teria se realizado? A chegada de Flôres da Cunha a Montevidéu parecia indicar que não, pois era com o Rio Grande do Sul e a Bahia que mais se contava para uma resistência. Que se passaria a estas horas com os camaradas em toda a extensão do Brasil, quem estaria preso, como estaria o povo reagindo ao golpe? E os integralistas, se encontravam eles no poder, desencadeando o terror fascista sobre o país? Apressava o passo para aquela casa onde havia um aparelho de rádio capaz de dar-lhe as notícias desejadas. Um desgosto de não estar no Brasil naquela hora o dominava, quem sabe se não necessitavam dele, era um oficial apto para os combates e quem sabe se em alguma parte do Brasil não se estava combatendo? Por que o tinham enviado para o estrangeiro quando o perigo fascista estava tão próximo e podia se abater, como se abatera, sobre o povo a todo momento? Sentia uma pressão no peito, um obscuro desejo de fazer meia volta e percorrer o caminho impossível que o conduzira ao outro lado da fronteira. Repetiu para si mesmo, para acalmar-se, para dominar a agitação que o possuía...
– O partido sabe o que faz, sabe melhor do que eu.
A iminência do golpe não poderia ter escapado ao Partido, bem informado e sempre vigilante. Fazia apenas sete dias que Apolinário embarcara em Santos para Porto Alegre, se o Partido sentisse necessidade dele não o teria mandado; ainda de Porto Alegre poderiam tê-lo feito voltar. Se os camaradas faziam-no continuar sua viagem é que, certamente, a reação armada ao golpe, a unidade entre as forças dos dois candidatos à presidência da República, não tinham sido possíveis e naquela hora era mais importante que um oficial do Exército, conhecedor de sua profissão, estivesse nos campos de batalha da Espanha.
Essas reflexões acalmaram seu desejo de largar o gaúcho bronzeado no meio do caminho e regressar a Bagé, mas não sua ânsia de notícias. Pensava agora em cada um dos camaradas, no perigo que os cercava, pensava naquela jovem companheira paulista, Mariana, a dar-lhe adeus do cais de Santos quando o navio se afastava. Ela fora levar-lhe, no pequeno hotel santista, o dinheiro para a passagem e pan as despesas. Chegara pela manhã no dia da saída do barco e ficara com êle até a hora da partida. Fora ela mesma comprar a passagem, tinham, passeado pela praia enquanto esperavam o momento do embarque. Mais uma vez, quando êle subia, minutos antes do navio partir, a escada de bordo, ela fez a continência de soldado Dissera-lhe antes:
– Lute bem por lá que aqui ficamos nós fazendo frente à reação... Até um dia...
– Até um dia, irmãzinha... – repetira êle, a voz embargada, pondo nesse adeus à camarada quase desconhecida a emoção da despedida que não fizera à sua irmã.
Pensou nela e em João, pensou no camarada de Porto Alegre que lhe dera a ligação para Bagé, pensou em todos que estavam na ilegalidade e pensou nos presos, como Agildo e Agliberto, aqueles sobre cujas cabeças pesavam violentas ameaças. E pensou sobretudo em Prestes, isolado do mundo no seu cubículo triangular, odiado com ódio mortal pela reação, ameaçado em sua vida. Os integralistas não escondiam a sua sede de sangue de Prestes, a sua intenção de assassiná-lo se chegassem ao poder. Apolinário apertava os pulsos ao lembrar-se do perigo que êle corria, seus dentes se comprimiam uns contra os outros. Mas não! eles não teriam coragem... – pensava. Teriam medo do povo, aquele prisioneiro incomunicável estava defendido pelo amor do povo. E depois havia a campanha pró-Prestes no estrangeiro em diversos países, havia a solidariedade internacional a cercá-lo, a protegê-lo contra o ódio dos seus carcereiros. Apolinário repete essas coisas para si mesmo, o passo rápido comendo o caminho, obrigando o gaúcho a quase correr. A sombra de uma casa se levanta em meio ao campo, protegida pelos eucaliptos e ciprestes.
– Llegamos... – falou don Pedro.
Uma lâmpada de petróleo iluminava um interior simples onde a mesa estava posta: carne assada e frutas. De outra peça acudiu, ao rumor dos passos dos homens entrando, uma mulherzinha pequena e jovem, mestiça de índio, as mãos segurando a ponta do avental. Don Pedro faz as apresentações:
– Mi “china”... Un amigo...
Ela estendia a ponta dos dedos, fazia uma reverência antiquada e graciosa. Apolinário tinha os olhos no aparelho de rádio a bateria, colocado sobre uma mesinha coberta com um pano bordado. Dom Pedro disse:
– Yo voy a ligar la radio...
A mulher os convidava a lavar as mãos. A água já estava posta numa bacia de esmalte, ela lhes entregava o sabão, depois a toalha. No aparelho de rádio trechos de música se sucediam enquanto don Pedro buscava uma estação brasileira. Um resto de tango, na voz nasalada de uma cantora, se espalhou pela sala:
“...desilusión de mi vida...“
Finalmente um samba o dominou, don Pedro veio sentar- se à mesa:
– Es la Radio Nacional, de Rio. Después dará el noticiero...
Comeram os dois, enquanto a mulher, de pé ao lado da mesa, os olhava sem palavra. Don Pedro serviu vinho. Apolinário esperava impaciente que o noticiário começasse. Quase não comeu. Veio para junto do rádio, mastigando um pêssego. E ouviu no correr da noite, aquele noticiário e todos os outros que pôde captar nas estações brasileiras, argentinas e uruguaias. Por fim já era a monótona repetição dos mesmos fatos: Getúlio Vargas, com o apoio de generais e dos integralistas, dera um golpe de Estado, cercara os edifícios da Câmara e do Senado, demitira os governadores da Bahia, de Pernambuco e do Rio Grande do Sul, mantivera os demais governadores transformando-os em interventores dos seus Estados, interditara os partidos políticos, proclamara uma constituição baseada nas de Mussolini e Salazar e intitulara o regime instituído no país de “Estado Novo”, definindo-o como uma “democracia autoritária”. Algumas notícias eram desencontradas: falavam da prisão do governador da Bahia enquanto outros rádios diziam ter-lhe sido feita uma calorosa manifestação popular, falavam de Ministros integralistas, ao mesmo tempo que davam a Ação Integralista entre os partidos proibidos de atuar. Falavam de milhares de prisões e, no entanto, proclamavam a absoluta calma reinante em todo o país. Apolinário procurava orientar-se em meio ao desencontrado das notícias. Don Pedro retirara-se para o quarto com a sua “china”, num canto da sala um leito de campanha fora armado para o hóspede.
As estações começaram a cessar suas emissões. Apolinário movimentava o dial à cata de mais notícias. Terminou por escutar um discurso idiota e violento de um certo dr. Alcebíades Morais, professor de Medicina da Universidade de São Paulo, integralista ao que parecia, ameaçando Deus e o mundo, a União Soviética e os republicanos espanhóis, os comunistas brasileiros e “os podres políticos armandistas”. Dizia que era chegada a hora de uma limpeza completa do país, do castigo exemplar para os incorrigíveis inimigos da sociedade, “os adeptos de Moscou”. Fazia o elogio da nova constituição que “ia por fim, coibir os abusos da liberdade que estavam levando o Brasil ao abismo”. E os enumerava: liberdade de imprensa, parlamento, direito de greve e de reunião, partidos políticos. Finalizava com a apologia de Getúlio e de Plínio Salgado, “patriotas de alto calibre”, que o professor de Medicina, após tê-los comparado a Pedro II e a Caxias, afirmava “serem da mesma família dos modernos heróis da cristandade: Hitler, Mussolini, Hiroíto, Franco e Salazar...”
As estações silenciaram de todo no aparelho de rádio. Apolinário apagou a lâmpada de querosene. Iam começar dias ainda mais difíceis no Brasil, as ameaças suspensas no ar tinham-se concretizado e o Partido deveria agora fazer frente a condições muito mais duras. Seu pensamento estava outra vez com os companheiros presos: deveria ter sido um agitado dia nas prisões. Os boatos suceder-se-iam, as hipóteses, as discussões. E Prestes? Teria ele na sua incomunicabilidade, sabido do golpe? Os companheiros teriam conseguido maneira de comunicar-lhe? Prestes estava preso, incomunicável e isolado de todos, há quase dois anos. Mas quando Apolinário se sentia inquieto e preocupado, era no torturado prisioneiro que pensava e a certeza de que êle vivia bastava para lhe dar outra vez confiança e segurança. Assim foi nessa noite, numa casa perdida no pampa uruguaio.
O Partido saberia marchar em meio aos obstáculos, saberia seguir para diante até derrubar aquele “Estado Novo” nesse dia implantado. Apolinário perguntou-se quantos milhares de homens e mulheres não voltariam naquela noite, da Amazônia ao Rio Grande, seu angustiado pensamento para Prestes? E quantos como êle, não se sentiriam em seguida confiantes, como se da prisão soturna lhes respondesse uma voz de esperança e de certeza..
Costa Vale chegara do Rio nas vésperas do golpe. Os dias passados na capital da República tinham sido de intensa atividade. O banqueiro estivera no Palácio do Catete, numa demorada conversa com o presidente. Este lhe pedira sua opinião sobre a Europa. Costa Vale falou com calor, insinuou suas impressões sobre as perspectivas da política internacional, deixou entrever que o futuro era de Hitler no jogo de interesse do mundo. Estivera também com generais, com políticos diversos, almoçara na Embaixada dos Estados Unidos, conferenciara com um representante de capitais alemães, recém-chegado ao Rio.
Jantava quase todas as noites com Artur e discutiam política e negócios. O deputado andava macambúzio, perdera a facilidade de rir, parecia envelhecido, nem mesmo Shopel conseguira fazê-lo divertir-se numa noite em que jantara com eles. No entanto, o poeta estava particularmente brilhante nesse dia, cheio de histórias saborosas sobre os amores de um ex-Ministro com uma viúva rica. Não era que o ex-Ministro de tão apaixonado – pela viúva e pelo dinheiro, esclarecia o poeta – se dedicara às musas e escrevera largo poema, de monotonia terrível, e o entregara a Shopel para editar em plaqueta de luxo, papel da Holanda, tiragem limitada? Ele ia editá-lo, é claro, pois era edição paga, e bem paga pelo autor e, ao demais, o ex-ministro estava em muito boas relações com os integralistas e com Getúlio, fora êle sem dúvida, o principal redator da constituição a ser proclamada em breve quando viesse o golpe... Mas os versos, ah! esses versos, valia a pena lê-los para gozar. Shopel tentara meter o dedo neles – com permissão do autor, é claro – para ver se pelo menos os fazia escapar ao ridículo. Impossível, porém: a coisa era de tal maneira ruim, numa linguagem empolada de juristas, em imagens tão cretinas que nenhum remendo podia salvar a versalhada retórica e sentimental. E o homem pusera naquilo tudo o título de “Nova Ilíada”. Não era para morrer de rir? Uma velhota conservada à custa de cremes e massagens, duas vezes pelo menos sujeita a operações plásticas para esticar a pele do rosto, tratada de Helena, de beleza grega, de flor do Lácio, de estátua Jônica e de outras cretinices que tais...
Costa Vale ria e comentava:
– É isso que atrapalha este país. Os homens não têm seriedade. Vejam vocês, um homem como esse, várias vezes Ministro, inteligente, culto com um escritório de advocacia que lhe dá o dinheiro que quer, resolve escrever versos depois de velho. Isso na mesma hora em que se prepara para ser Ministro da Justiça. É capaz de perder o Ministério por uma coisa dessas...
– Nada – discordou o poeta. – Getúlio gosta dessas coisas. Anedotas, poesias, literatura, boas piadas... É um gozador.
Artur não ria nem intervinha na conversa. Ele não escrevera poemas a nenhuma viúva rica e, entretanto, o sonhado ministério lhe escapava inteiramente. Já agora sabia ser o golpe uma certeza infalível e o banqueiro abalara sua confiança na conspiração “armandista” preparada para derrubar Vargas. Não se desligara dela por inteiro mas, num balanço dado naquela semana nas ligações estabelecidas, podia ver a fragilidade das suas bases: além do Rio Grande do Sul com sua polícia militar e seus voluntários, com as armas compradas por Flôres da Cunha, nada mais existia. Mesmo em São Paulo a coisa era difícil, o comandante da Região Militar era homem de confiança de Getúlio e os integralistas estavam infiltrados em todas as partes. Numa conferência com outros chefes da candidatura de Armando Sales, êle aconselhara francamente o abandono do plano de golpe militar, capaz apenas de reforçar Getúlio. Mas os outros persistiam e êle declarou se desinteressar do assunto.
Costa Vale quis levá-lo consigo para São Paulo. Para convencê-lo, revelou-lhe saber de fonte segura a data do golpe e estar ela bem mais próxima do que Artur pensava. Mais uma vez lhe repetiu:
– Vai para a tua fazenda, fica lá tranqüilo uns dias até a coisa serenar e se esclarecer... Logo chegará o teu momento, quando Getúlio necessitar se apoiar em forças que contrabalanceiem os integralistas...
– Que queres dizer com isso?
– Almocei na Embaixada americana.,. Sondei o ambiente, essa coisa da aliança de Getulio com os integralistas. eles são otimistas, dizem que Getulio joga com os integralistas como um grande gato com os pequenos ratos vorazes...
– Perdeste a confiança nos integralistas?
– Não é isso. Eu creio que, de futuro, todos nos uniremos quando chegar a hora da guerra, a hora de Hitler. Haverá então lugar para os integralistas. Porém agora, creio que ainda é cedo. Os americanos são ainda os que mandam e os americanos são Getúlio. Penso que depois do golpe, Getúlio rifa os integralistas. Pelo menos como força independente...
– Tudo isso é uma porcaria... – disse Artur. – Penso seriamente em deixar a política, voltar à advocacia, estou cansado.
– Não estás cansado coisa alguma nem pensas em deixar a política. Estás chateado porque esperavas ser ministro. Tolice. Quem te disse que não serás ministro um pouco mais tarde?
– Ministro de Getúlio? Nunca!
– Bobagem. Que tem Getúlio de mais? Não ser paulista de quatrocentos anos? Eu também não o sou, meu caro. Getúlio é um político inteligente, êle sabe conduzir esse barco melhor que ninguém: engana os operários com leis trabalhistas às quais vocês, de um conservadorismo retrógrado, torcem o nariz; trabalha com os americanos mas ao mesmo tempo percebe a importância dos alemães e não lhes fecha as portas. Um homem hábil, menino, êle pode até terminar Imperador. Eu já te disse mais de uma vez que política baseada nos interesses ingleses, se acabou no Brasil. E que vais continuar a fazer nessa canoa furada? Não te preocupes, ainda vais ser muita coisa neste país. Estou planejando um grande negócio, uma empresa capaz de nos dar rios de dinheiro... Nessa viagem lancei algumas bases do assunto, vou completá-las em São Paulo Espero que a Comendadora da Torre queira participar. Já falei com os americanos e se eles não se interessarem, os alemães estão prontos a entrar na combinação...
– De que se trata?
– Depois te contarei quando a coisa estiver melhor armada. Mas posso te adiantar que é um negócio monumental, uma empresa gigantesca.
Limpava a testa calva que o calor de novembro enchia de suor, seus olhos frios pousavam no deputado:
– Vou precisar muito de ti colocado num alto posto político. Vai ser necessário manejar com muita coisa e com muita gente...
A palidez do seu rosto se animava sob a sombra de um sorriso divertido:
– Preciso também de um testa de feno para aparecer como lançador do negócio. E penso ter encontrado um excelente...
– Quem?
– Shopel...
– O poeta? – Artur fez um gesto de dúvida.
– O poeta, menino. Gosto desse tipo. É completamente cínico e capaz de tudo pelo dinheiro. Até de ser leal...
Mas, apesar de todos os argumentos, Costa Vale não conseguiu levar o deputado consigo. Artur explicara-lhe a necessidade de ficar: desmoralizar-se-ia por completo se abandonasse a Câmara naquele momento, se não ficasse até o último instante. Depois então iria para a fazenda. Mas se fosse agora, antes do golpe, isso só seria prejudicial para o seu futuro.
– Pode ser... – disse o banqueiro. – São essas tuas coisas de honra, esses preconceitos de família antiga. Mas menino, não há nada que desmoralize um político no Brasil a não ser estar por baixo. Porém, já que queres ficar, fica. Garante-me, porém, que viajarás no dia imediato...
No dia nove à noite, Costa Vale, de volta a São Paulo, conversara com Marieta. Perguntara-lhe quais seus compromissos para o dia seguinte. Ela enumerou uns quantos: o cabeleireiro, a costureira, um chá com Paulo na elegante livraria (com sala de chá ao fundo) recém-aberta por uns grã-finos.
– Cancele tudo, minha cara. O melhor é não sair de casa amanhã. Pode haver desordens pela cidade. Amanhã Getúlio dará o golpe de Estado.
– E Artur? – interessou-se ela.
– Aquele idiota quis ficar na Câmara até o fim. Quixotismo de político antigo. Os nossos tempos não comportam mais essas tolices. Às vezes ele chega a me cansar com essas suas falsas honradezas de fidalgo. Se não fosse eu saber que tudo isso é puro ornamento, que na hora dos negócios sérios êle as atira fora, já tinha largado Artur há muito tempo. Vamos deixar êle cair com honra, como êle vai dizer a todo mundo. Isso eleva o seu preço, depois. Cada um vende o que tem, minha cara. Ele vende, pelo preço mais alto que pode, essas honradezinhas...
– E o caso de Paulo?
– Ah! tudo certo. Conversei com o Ministro, deram-lhe um mês de férias, depois fica pelo Rio uns tempos e terminará sendo promovido.
No dia do golpe, Costa Vale saiu como de hábito para o seu escritório no banco, à mesma hora de sempre. E estava fechado em seu gabinete, numa importante conferência com a Comendadora da Torre, quando alguém bateu nervosamente na porta. Levantou-se para abrir, a Comendadora estudava, com uns olhos extremamente interessados, um mapa traçado por mão competente, cheio de riscos, de pontos, de sinais.
Na porta aberta apareceu a assustada figura do gerente, dizendo numa voz balbuciada:
– Os rádios estão anunciando um golpe de Estado. O Exército está na rua, patrulhando a cidade. Falam que o governador foi preso...
A Comendadora voltou-se, num interesse excitado:
– Golpe de Estado? De quem? Fala, homem, diz o que sabe.
Mas Costa Vale atalhou a onda de notícias e boatos que o gerente se preparava para revelar:
– Não tem importância, Comendadora. Quem não sabia há muito tempo que Getúlio não ia permitir as eleições?
Fechou a porta, retornou tranqüilamente para junto do mapa estendido em sua grande escrivaninha, apontou-o com o dedo:
– Que me diz do negócio que lhe proponho? Não lhe parece que é uma verdadeira mina de ouro, melhor que uma mina, é ouro sobre a terra, é só apanhar com a mão?
A Comendadora levantou os olhos do mapa:
– Quem pode conseguir a concessão? Se o doutor Armando fosse eleito, seria fácil, o Arturzinho se encarregaria. Mas, com esse golpe do danado do Getúlio, como pode ser?
– Tenho uma pessoa íntima dele, muito influente, interessada no assunto. Não se preocupe pela concessão. Eu sei o que faço e jamais acreditei nessas eleições...
Uma excitação de dia de grande prêmio nas corridas de cavalos fazia frenética a voz de Suzana Vieira narrando os acontecimentos. Estavam no pequeno salão que dava sobre o jardim, o chá fora servido, cada um tinha o que contar. A voz da moça dominava todas as demais:
– Levei quase uma hora para chegar aqui... Em cada esquina os soldados paravam o automóvel, pediam documentos como se eu não estivesse em minha terra, até examinando os coxins do carro, para ver se não havia nada escondido. E uns soldados brutos, sem educação. No centro não queriam me deixar seguir... Se não fosse um capitão que apareceu – uma simpatia de homem... – eu ainda estaria por lá, com certeza. Uma falta de consideração, nunca se viu nada assim...
Fitava Paulo, esperando encontrar nele uma solidariedade àquelas suas desditas. O rapaz sorriu, seu habitual sorriso mole como a cair dos lábios. Marieta seguiu a cena, O olhar da moça, o sorriso formal de Paulo, o silêncio horrorizado de dona Henriqueta Alves Neto, a esposa do ilustre advogado. Dona Henriqueta já se lastimara antes; com ela tinha chegado a notícia do golpe getulista. Seu automóvel não fora interrompido pelos soldados: ela morava na mesma rua, tinha vindo a pé recolher-se na residência de Costa Vale, seu marido fugira com receio de ser preso e lhe aconselhara a não permanecer em casa, a polícia poderia vir incomodá-lo. Por isso ela interrompera a animada conversa de Paulo e Marieta, entrando esfogueada, uma voz entre risonha e temerosa, um gesto largo:
– Minha filha, venho te pedir asilo...
– Que sucede? Tonico te expulsou de casa... – e, baixando a voz ao abraçá-la: – Ele descobriu?
– Não. Não, nada disso... – agora falava para Paulo: – Golpe de Estado... Getúlio, os integralistas... Estão prendendo todo mundo, dizem que até fuzilando... O pobre do Tonico teve que fugir às pressas e me deixou sozinha... – seu olhar provocante procurava o de Paulo como a lhe dizer que êle a protegesse agora que o marido, covardemente, a deixava só na hora do perigo.
Marieta simulou uma surpresa:
– Golpe de Getúlio? Que horror! E você, pobrezinha... Esses homens não têm mesmo coração... – mas estava atenta ao jogo da outra e pensava na sua insaciabilidade sexual, na sua escandalosa crônica de amantes se sucedendo, por vezes mesmo coexistindo. E a via agora lançando aqueles olhos vorazes para Paulo, se oferecendo ao rapaz tão cínica e despudorada que Marieta não podia deixar de insultá-la mentalmente: “prostituta”!
A Comendadora da Torre, velha de idade e de experiência, é que tinha razão ao classificar o escândalo de Paulo como um chamariz de mulheres. Ali estava Henriqueta se entregando quase, depois fora a vez de Suzana Vieira, os olhos a devorá-lo. E uma e outra a adulavam como se ela as pudesse ajudar nos seus sujos desígnios, como se ela fosse a mãe benevolente de Paulo devendo facilitar os seus amores. Sim, tanto a jovem esportiva quanto a picante mulher de trinta e cinco anos a olhavam como a uma velha, uma possível aliada e jamais uma rival. Aquilo a feria e magoava, ela se sabia mais bela e desejável que Henriqueta apesar de mais idosa. E, quanto a Suzana, era uma dessas irrequietas semivirgens, de corpo sem dúvida já mais flácido que o seu...
Via Paulo indiferente a uma e a outra, aquele ar de fastio aumentando à proporção que as ouvia. Nada mais descobria nele além da civilizada gentileza que o fazia atento, obrigando-o a sorrir e a dizer frases. Nenhum outro interesse. E isso alegrava à inquieta Marieta a ponto de fazê-la má e vingativa. Assim, antes de Suzana Vieira chegar com sua história de automóveis, soldados e capitães, ela desmontara toda a fachada teatral de Henriqueta, deixando-a apavorada e encolhida na cadeira, quase a chorar, com boatos tremendos de vinganças getulistas contra os partidários de Armando Sales, especialmente os chefes da sua candidatura e seus amigos íntimos como o dr. Antônio Alves Neto. Uma coisa diziam certa: a fortuna dos mais comprometidos seria, com certeza, desapropriada... Pessoas de confiança de Getúlio os tinham prevenido: aquilo que o ditador não tivera coragem de fazer em 1930, o faria agora – fazendas, fábricas, jornais, ações, tudo passaria para as mãos do Estado ou dos familiares do governo... A fortuna deles, os Costa Vale, essa estava garantida, José não se comprometera na campanha, estivera de lado, andara viajando pela Europa, ainda há poucos dias conferenciara longamente com Getúlio. Mas, a de Artur e a do dr. Antônio, essas seriam na certa interditadas. Artur, enfim, não ficaria ao desamparo, o posto de advogado do banco e dos outros negócios de Costa Vale bastava-lhe para viver na abundância, mas outros...
Henriqueta arregalava uns olhos pela primeira vez, sinceros, o rosto pálido, a boca semi-aberta, sem voz. Paulo não compreendia bem o motivo da comédia de Marieta mas a seguia divertido e, para ajudá-la, acrescentou detalhes dando força de veracidade às suas afirmações alarmantes:
– Desde ontem à noite, mesmo antes do golpe, o exército ocupou o “Estado”, um dos jornais armandistas. Os Mesquitas vão perder tudo que têm... E eu mesmo estou asilado aqui, igual a você. Penso que a estas horas a polícia já está lá em casa, fazendo o inventário do pouco que temos...
– Não é possível... – articulava Henriqueta, agora de todo desinteressada de conquistar Paulo, pensando exclusivamente nas suas propriedades, na casa magnífica construída há seis meses apenas, pelo célebre arquiteto Marcos de Sousa, nas fazendas cobertas de cafeeiros, na rua inteira de prédios de aluguel no centro da cidade, rendendo uma fortuna mensal. – Não é possível... Essas coisas são sagradas, ninguém as pode tomar...
– Minha filha, agora é o Estado Novo, a ditadura fascista, não é como em trinta... Olha o que Hitler fez na Alemanha: tomou os bens de todos os judeus...
– Mas a gente não é judeu, Deus me livre... Tonico é de uma das mais velhas famílias de São Paulo e eu sou de origem inglesa. A gente pode provar, Tonico tem em casa a árvore genealógica da família, custou um dinheirão...
– O negócio de judeu foi na Alemanha, minha filha. Aqui é exatamente contra os paulistas de quatrocentos anos que Getúlio deu o golpe...
Dona Henriqueta punha as mãos no rosto, perdera o ar picante, o quebrado sensual dos olhos, e se não fosse a entrada ruidosa de Suzana Vieira, ela romperia em soluços ante essa súbita ameaça de pobreza.
Suzana sentara-se ao lado de Paulo, queria saber de Artur:
– Não sucedeu nada com êle?
– Até agora não. Falei com êle pelo telefone há meia hora, pouco mais... Esteve na Câmara mas já a encontrou cercada pela tropa. Virá amanhã para aqui se não o prenderem hoje...
E tentou, sob a animação do perverso jogo de Marieta, repeti-lo para Suzana:
– Tu já sabes que estamos todos nós sob a ameaça da mais negra miséria? De ter de vir mendigar o pão a Marieta?
– Que história é essa?
Ele desenvolveu outra vez a teoria da desapropriação. Mas, como o fazia para rir-se e não para se vingar, tais e tamanhos detalhes inventou que logo Suzana começou ela também a rir:
– Como “bola” é das melhores que tenho ouvido...
– Fiada? – Henriqueta a interrompia. – Não tem nada de piada, Suzaninha... – e sua voz estava plena de soluços contidos. – Marieta e José tiveram a notícia de fonte segura...
– Vá atrás disso... Onde já se viu tomar as propriedades dos outros? Isso são os comunistas que querem fazer. E Getúlio, é êle por acaso comunista?
– Fascista... – Repetiu Henriqueta.
– E onde você já viu os fascistas tomarem propriedades de alguém?
– Hitler tomou dos judeus...
– Bem, isso foi outra coisa. Eram judeus... Aqui não vai se passar nada disso... Pode ser que prendam alguns políticos, mas no dinheiro ninguém toca... Imagine só!
Agora Marieta e Paulo riam também e Henriqueta começou a compreender que se haviam divertido às suas custas. Quis zangar-se, mostrar-se ofendida, mas o alívio que sentia era tanto que ela também riu, novamente recuperando seu ar lânguido e provocante. Marieta explicou ter feito a pilhéria para a desanuviar. Henriqueta a abraçou, fitou novamente Paulo, uma terna repreensão no olhar:
– Que susto vocês me meteram.
Marieta acompanhava cada movimento das outras em torno a Paulo. Desde que êle chegara, desde que a viera visitar no dia seguinte ao da recepção, ela vivia numa constante agonia a pensar que a qualquer momento uma nova mulher entraria em sua vida. Ele lhe contara toda a aventura de Bogotá, a chatice da vida e a idiotice daquela paixão pela mulher do embaixador do Chile, viciada e louca... Disse-lhe também do vazio de sua vida, dos seus desejos de um terno amor para consolá-lo da última aventura. Esse terno amor que Marieta poderia dar-lhe se não fosse... Se não fosse o que?, perguntava-se ela nas noites sem sono sobre o leito enorme, no seu quarto onde raras vezes Costa Vale aparecia. Se não fossem uns quantos preconceitos nada mais que preconceitos. Porém mais fortes que aqueles matrimoniais rompidos quando ela se entregara a outros, em São Paulo, no Rio, na Europa. Porque o conhecia desde menino, porque Artur fora seu noivo noutros tempos, porque Paulo crescera quase em sua casa, porque os demais a olhavam como se ela fosse uma segunda mãe para o rapaz... Mas nada disso era verdade, nada era exato... Paulo, ela só o conhecera verdadeiramente quando êle se fizera homem. Aquela criança enjoada a brincar sobre seus joelhos nada tinha a ver com o jovem displicente sentado agora em sua frente... Era uma fraqueza o curvar-se a tais preconceitos se nenhum laço de sangue os ligava, se eram apenas um homem e uma mulher, livres de se amar... isso ela pensava nas noites de neurastenia, rolando na cama, a garganta fechada de soluços, rasgando com os dentes as rendas da camisa. Mas, êle pensaria, como olharia esse amor desesperado, como reagiria aos mesmos fatos por cima dos quais era necessário passar? Essa a dúvida a torturá-la, a impedi-la de concorrer com Henriqueta e Suzana no páreo dos olhares sugestivos, das palavras insinuadas, dos risos de convite... E se êle a afastasse num gesto de horror, enojado daquela paixão inesperada, aquele desejo parecendo-lhe talvez incestuoso? Ou se... – e isso era o mais terrível – a encontrasse velha, fanada mulher sem interesse? Nessas dúvidas ela se debate, prisioneira delas, sem poder, como Henriqueta, como Suzana, como todas as demais mulheres lutar pelo seu amor.
A conversa rolava sobre o golpe, sua possível repercussão na vida do país, na política do Estado, na existência de cada um. Henriqueta interrogava, numa pergunta sorridente:
– Será que agora vamos ter de convidar Plínio Sal gado para as recepções? Mas êle é tão ridículo e mal-educado...
Marieta quase não participava da conversa, remoendo seu atroz desejo. Seus olhos iam das mulheres para Paulo e por vezes se demoravam no rapaz e ela não sabia como conter o fogo do seu olhar, como conter sua voz apaixonada, como não cair em seus braços, como não lhe contar...
O criado entrou na sala para anunciar:
– O Dr. Shopel pergunta se pode ser recebido...
Foi uma surpresa para todo o mundo. Faziam o poeta no Rio, onde êle residia e onde funcionava sua casa editora. Ele entrou rumoroso, arrastando o peso das suas carnes gordas, beijou as mãos das senhoras, abraçou-se a Paulo (a quem ainda não tinha visto) longamente, murmurando-lhe palavrinhas:
– Oh! sublime juventude, oh! caráter impoluto, oh! imaginação dos deuses... E eu que te buscava de ceca em meca por essas ruas paulistanas, venho te encontrar num pacífico chá nesse dia de fim de mundo getuliano...
Marieta quis saber que fazia êle em São Paulo naquele dia “de fim de mundo getuliano”, êle que era homem da situação, editor dos integralistas e amigo dos amigos de Getúlio, que fazia êle naquele covil de “políticos carcomidos”, onde ela mesma se sentia em perigo, apesar de ser a sua casa? O poeta arrumou as banhas numa poltrona, atirou para trás a cabeça escura, e declarou que êle mesmo não sabia, um telefonema urgente de Costa Vale o arrancara dos sensacionais acontecimentos do Rio de Janeiro, enfiara-o num avião de carreira e o colocara num hotel de São Paulo como um fugitivo. O banqueiro exigira sua vinda imediata, convocava-o para um jantar nessa noite, e êle, na esperança de rever a bela dona Marieta, obedecera às drásticas ordens do “patrão”.
– Pode parecer, dona Marieta, aos seres vulgares que aqui estou porque um banqueiro, dono do dinheiro e da vontade dos homens, patrão de poetas e de políticos, me ordenou. Mas a realidade é outra: é essa minha paixão sem remédio pela formosa esposa do banqueiro...
E o dizia comendo com os olhos de boi manso o corpo excitante de Suzana Vieira, recordando os seios entrevistos na noite da recepção, lastimando a blusa esporte que ela vestia nessa tarde, fechada no pescoço. Marieta ria ao galanteio, satisfeita, como se as palavras do poeta a valorizassem aos olhos de Paulo. Mas tanto Henriqueta, como Suzana pediam notícias do Rio, do que se estava passando por lá, dos tremendos boatos chegados a São Paulo. O poeta as desiludiu:
– Nunca se viu uma cidade mais tranqüila. José Américo está em sua casa, Arturzinho no seu apartamento arrumando as malas para vir para São Paulo amanhã,., – dirigia-se a Paulo. – almocei com êle, está na santa paz do Senhor. Não houve nada, não vai haver nada... Já sabem qual é o nome indicado para ministro da Justiça?
Não sabiam, e o poeta triunfou revelando que era o seu amigo, o jurista famoso, aquele cujo livro de poemas estava a sair do prelo de sua casa editora. Não sabiam do livro de poemas? Contou a história da paixão do ex e novamente ministro pela velha viúva, a veia poética despertada na idade madura pelo amor, s edição de luxo sendo feita:
– E lhes digo unia coisa: o homem tem um verdadeiro talento poético. É uma coisa nova, diferente, com certa grandeza clássica, um poder de imagens verdadeiramente camoniano...
E os integralistas? Quantos ministros davam ao novo governo? Plínio Salgado em que posição se encontrava? O poeta fez-se reticente... Não sabia, alguma coisa parecia não marchar bem entre Getúlio e os integralistas. Não havia nenhum integralista no novo Ministério onde a maioria dos antigos ministros permanecia. Falava-se que a Ação Integralista seria dissolvida como os demais partidos mas ninguém sabia nada ao certo, havia apenas boatos. Em todo caso na Bahia eles haviam assumido a chefia do governo e no Rio estavam pelas ruas da cidade apoiando o golpe. Naturalmente ainda se estudava a composição do novo governo. O poeta estava informado de uma conferência a realizar-se nesta tarde entre Plínio Salgado e dois emissários de Getúlio, por sinal que dois amigos e simpatizantes do integralismo. Talvez depois da conferência as coisas se esclarecessem...
– Então não houve prisões? – interessava-se Henriqueta.
– Bem. De gente conhecida, não. Prenderam comunistas, algumas centenas, creio. Mas foi tudo...
Paulo lhe perguntava em que hotel estava, se não tinha medo de ficar hospedado em sua casa:
– Tenho muito que te contar...
– É claro... Toda essa história de Bogotá...
– Ah! isso – fez um gesto de quem tinha coisa melhor e uma inquietação invadiu Marieta, que estaria acontecendo na vida de Paulo? Por que êle andava nos últimos dias desabitualmente animado, como estirado num sonho? Seria por ela, por acaso, que seus olhos se cerravam voluptuosamente? Ou seria por outra, uma dessas muitas atraídas pelo rumoroso incidente diplomático?
Suzana Vieira ofereceu-se levá-los no seu automóvel. Assim também eles a protegeriam contra os soldados brutais. E, ao demais, nesse dia de agitação não seria fácil conseguir táxi. O poeta aceitava, no hotel tinha apenas uma pequena valise. Suzana duvidava:
– Pequena? Não creio. Shopel. Mesmo que tenhas trazido só um terno é necessário uma mala de cabina para transportá-lo...
Só Henriqueta ficava, dormiria ali por via das dúvidas. Marieta convidava Paulo e Suzana a voltarem. Shopel viria jantar fariam depois uma farrinha. Música, uísque, poderiam dançar.
– Ou jogar um pôquerzinho... – sugeriu Suzana. – Vocês sabem: Raulzinho de Mendonça inventou agora uma maneira deliciosa de se jogar pôquer... Não se aposta dinheiro... A gente aposta as peças de roupa... Outro dia Múcia dos Santos ficou nuinha em pêlo... Perdeu tudo, até as calcinhas... Apostou-as contra a gravata de Fred Muller, esse americano bonito do consulado...
– E ela levava calcinhas? – perguntou num ar inocente o poeta Shopel.
– Porco... – riu Marieta.
– Não, dona Marieta. Surpreso, apenas...
Ficaram sós, ela e Henriqueta. A tarde começava a declinar e na rua, além dás grades do porão, ia uma calma e clara doçura de começo de verão, nada recordava os agitados acontecimentos políticos do dia. Marieta disse:
– Esse Shopel às vezes tem graça...
– Gosto de ler sua poesia, ela é triste e sentimental – comentou Henriqueta. – Mas êle é um monstro com essa gordura de capado e essa mania de se jogar em cima de todas as mulheres... Em compensação esse Paulo, menina, que amor... Sabe quem êle me lembra, Marieta: é uma imagem de Jesus Cristo, uma de Cristo nu, na Cruz, que tem na Igreja da Sé. Os olhos assim meio mortos, a boca pequena. O resto do corpo não sei, nunca vi Paulinho nu...
Riu, mordendo os lábios:
– Ainda não...
- Marieta pensava uma única palavra e desejava poder dizê-la em voz alta, lançá-la numa cusparada na face da outra: “vaca”.
Da sacada do último andar do edifício do banco, Costa Vale via os soldados patrulhando a rua onde a grande maioria dos estabelecimentos havia cerrado as portas, no receio de perturbações da ordem. Deixara há pouco o gabinete, onde mantivera demorada conversação telefônica com o Rio de Janeiro. Pelas diversas salas do prédio, empregados do banco trabalhavam, mas o expediente para o público fora encerrado, normalmente, às três horas.
Antes de debruçar-se na sacada, estivera parado ante um grande mapa pendurado na parede do gabinete: a região do Rio Salgado. um vale de densas florestas e de inúmeros cursos d’água. Ali habitavam o impaludismo, o tifo e a varíola, o jaguar e as venenosas serpentes. Em meio àquele mundo de árvores e cipós, espalhados numa extensão sem fim, existiam umas poucas choças de camponeses. Especialmente à margem do rio, onde as terras eram férteis e não pertenciam a ninguém, pequenas roças haviam sido plantadas por homens chegados de diversos lugares por variados caminhos. Umas centenas de famílias pobres, talvez alguns milhares, ninguém sabia ao certo, habitavam as margens do rio inexplorado. Esse era um pequeno problema no seu plano, nem valia a pena demorar nele o pensamento. Nenhum direito legal possuíam sobre aquelas terras, os juizes e as leis estariam do seu lado. E os soldados também, caso fossem necessários.
Alguns anos passados, voltando de avião de uma viagem de negócios aos Estados Unidos, sobrevoava aquela região. O intrincado de florestas virgens nada lhe dizia mas o interesse profundo demonstrado por outro passageiro da aeronave, Mr. Thompson, técnico ianque agregado à Embaixada dos Estados Unidos, cujos olhos curiosos não se despegavam da janela do aparelho e as ordens dadas por êle ao piloto para voar baixo, chamaram a atenção de Costa Vale. De volta a São Paulo envolveu-se nos seus diversos negócios, mas, o pequeno incidente do vôo não saiu de sua memória. Encarregou um dos seus empregados de procurar-lhe todo o material existente sobre o Vale do Rio Salgado. Não era muita coisa: uns quantos relatórios, dois livros de viajantes, um deles interessante, outro um simples relato de aventuras e um estudo cheio de detalhes valiosos publicado numa re vista norte-americana, devido a um professor ianque contratado pela Universidade de São Paulo, o qual parecera dedicar muito mais tempo ao Vale do Rio Salgado que aos seus alunos. Não era muita coisa mas era o suficiente para esclarecer Costa Vale sobre os motivos de interesse de seu companheiro de viagem: preciosas jazidas de manganês existiam certamente naquele Vale, além de muitas outras riquezas minerais.
O banqueiro começou a amadurecer o seu plano. Evidentemente, êle não podia sozinho mastigar todo aquele pedaço de país, mas podia, se soubesse manobrar habilmente, garantir a sua participação num negócio a surgir, sem dúvida, a qualquer momento. Era uma questão de não perder tempo e, infelizmente, os negócios políticos andavam embrulhados naquele momento, com o início da campanha eleitoral e os seus ainda imprevisíveis resultados. Quando os primeiros rumores de golpe surgiram timidamente, antes de sua viagem à Europa, Costa Vale exultou: necessitavam no país de um governo forte, de um homem podendo fazer e desfazer, e ele ajudou no que lhe foi possível a trama política que resultou no golpe de 10 de novembro. Não só afastando-se por completo da candidatura Armando Sales – da qual esperavam fosse êle um dos baluartes financeiros –, mas abrindo crédito à Ação Integralista no seu banco, financiando jornais getulistas, tudo por detrás da cortina, sem jamais aparecer, como era seu hábito antigo. Fora mesmo para a Europa para evitar ver seu nome misturado aos acontecimentos.
E qual não foi sua surpresa quando, em Berlim, convidado para uma conferência econômica com grandes industriais nazistas, encontrou, sobre a mesa em torno da qual se sentara com os alemães, um mapa dessa mesma região do Vale do Rio Salgado e ouviu falar, com um absoluto conhecimento de causa, das suas inúmeras riquezas e, sobretudo, das fabulosas reservas inexploradas de manganês ali escondidas. Desses relatórios sobre os quais se baseavam os alemães para falar, êle jamais tivera conhecimento e só então se deu perfeita conta do valor incomensurável daquelas terras. Os alemães eram realistas e frios, Costa Vale gostava da sua maneira de discutir negócios. Falaram-lhe francamente: precisavam daquelas riquezas, do manganês antes de tudo, para a guerra próxima e inevitável. Já tinham organizado todo o plano da empresa monumental, era-lhes necessário a cooperação brasileira, devia ser uma empresa germano-brasileira, o início de uma grande colaboração do capital alemão no desenvolvimento do Brasil. Costa Vale, que eles sabiam (como o saberiam?) interessado também pelo Vale do Rio Salgado, podia muito bem ser essa parte brasileira sem a qual o plano não seria possível.
Costa Vale estava amarrado, pelos liames de vários negócios, aos norte-americanos. Começara sua vida pela mão dos ingleses (seu pai havia sido um pequeno funcionário de estrada de ferro, êle mesmo trabalhara como empregado num escritório da “Paulista”), com eles ganhara o primeiro dinheiro grande, mas soube ver o declínio do capital britânico no Brasil e aliou-se aos americanos em várias empresas. Agora procurava adivinhar de quem seria o futuro: na Europa sentira o clima de guerra, vira os desfiles militares alemães, lera os artigos e os estudos sobre o poderio germânico, e, ao embarcar para o Brasil, estava quase disposto a mais uma vez mudar de barco. A ida ao Rio, porém, o punha pensativo. A segurança dos ianques, a sua assentada estabilidade, a aproximidade mesmo dos Estados Unidos, tudo o fazia agora vacilar. Depois do almoço na Embaixada americana, ele conversou com o conselheiro comercial. Falou-lhe do Vale do Rio Salgado e viu o brilho nos olhos azuis do gringo. Abriu-se um pouco mais, traçou em amplas linhas um quadro do seu projeto. Nomes vieram à baila, tão murmurados que não chegavam às pesadas cortinas de veludo da sala: Rockefeller, Dulles, outros mais. O conselheiro comercial ficara de avisá-lo em poucos dias para sua conversa mais definitiva. Costa Vale resolvera, porém, iniciar seus trabalhos, lançar as primeiras bases do plano. Aos poucos, da sua indecisão sobre em quem apoiar-se, se nos americanos, se nos alemães, nasceu-lhe a idéia de começar sozinho e poder depois, de cima, escolher o capital em dólares ou em marcos quando mais clara fosse a situação mundial.
Quando jogara no golpe de Estado, dera uma cartada certa. Um ministro o deixara antever claramente ao perguntar-lhe, agradecido de sua posição política, o que êle desejava de futuro. Respondera que se sentia contente de apoiar um governo realmente patriota, cuja gestão estava fazendo do Brasil uma grande potência mundial. Seu desejo era ajudá-lo nessa obra grandiosa e tinha alguns projetos relativos a regiões inóspitas do país que, com a aplicação de capitais nacionais, poderiam se transformar em verdadeiros paraísos, como, por exemplo, o Vale do Rio Salgado, no Estado de Mato Grosso... O Ministro lançara uma baforada do charuto baiano, perguntara após um minuto de silêncio:
– E esses capitais nacionais para o Vale do Rio Salgado, virão seu Vale, do City Bank of New York ou do Banco Alemão? Uns e outros estão me apertando num torniquete...
O banqueiro ergueu um olhar frio:
– Não sei ainda... Penso que o melhor é começar sozinho, é lançar a empresa e esperar um pouco... Assim é possível escolher a melhor proposta... E também ver como se desenvolve a situação internacional.
Outra larga baforada no charuto do Ministro e depois a afirmação do talento de Costa Vale, estava ali uma boa idéia...
O banqueiro acrescentou estar cogitando num grupo de capitalistas e de técnicos para a direção inicial da empresa. Citou alguns nomes e, entre eles, um próximo e caro ao coração do Ministro. Esse riu ouvindo o desfilar de nomes, pediu notícias dessa divertida Comendadora da Torre tão boa narradora de anedotas... E, ao despedir o banqueiro, depois de terem falado sobre a Europa e sobre o escândalo de Paulo em Bogotá, lhe disse:
– Volte depois que puser o negócio de pé... Poderemos então estudar melhor essa questão... Penso que realmente é uma empresa patriótica e de grande envergadura.
E o 10 de novembro tinha chegado, os soldados estavam na rua, a ditadura se estabelecera. Já não poderiam os jornais gritar, exigir rios de dinheiro por um silêncio cúmplice, já os deputados da oposição não teriam tribunas de onde fazer escândalo, tudo era melhor e Costa Vale, da sacada do último andar do edifício do seu banco olhava com simpatia os soldados de baioneta nua sobre o fuzil, patrulhando as ruas comerciais. Conseguida a concessão, lançada a empresa, americanos, e alemães teriam de vir a êle, fazer-lhe suas propostas, pagar o que êle pedisse pelo manganês encravado entre os rios, as florestas e a febre, E por que não os dois ao mesmo tempo, os americanos e os alemães, se certamente amanhã estariam juntos na guerra contra a URSS, e aquele manganês serviria para liquidar com os bolchevistas?
Sons marciais de fanfarra interromperam seu pensamento. Gritos de comando ressoavam, passos de homens marchando se aproximavam E o desfile integralista penetrou na rua, rumando para o largo da Sé. Iam em filas compactas, vestidos com camisa verde, levavam nas mãos bandeiras do Brasil e da Ação Integralista, a cada dez metros deixavam escapar um grito: “Anauê!”
Os olhos frios do banqueiro correram sobre as filas cerradas, medindo o tamanho do desfile. Eram muitos homens; não há dúvida que o integralismo havia se transformado numa força. Recordou os industriais alemães – alguns vestindo ostensivamente a camisa cáqui nazista – debruçados sobre o grande mapa da região do Vale do Rio Salgado. Eles contavam com os integralistas no poder para empregar grandes capitais no Brasil, pan concorrer com os ianques na vida econômica do país. Estavam a par dos problemas políticos, e um deles, poderoso industrial e ao mesmo tempo influente líder do partido Nacional Socialista, lhe deixara antever, em forma suficientemente clara, o futuro enorme de um Brasil ligado economicamente à Alemanha quando amanhã, terminada a guerra, estendido o grande Reich pelas terras férteis da Ucrânia e dos Urais, dirigindo uma França dominada e aliado e protetor da Espanha, Portugal e Itália, chegasse a vez de afastar dos negócios do mundo os primos norte-americanos. Seria o Brasil a alavanca sobre a qual apoiar-se-ia para remover esse escolho no caminho triunfal de Hitler e do império germânico...
E pensava também nos americanos da Embaixada, em seu seguro otimismo, nas anedotas sobre a aliança de Getúlio com os integralistas. E da sacada do seu banco parecia-lhe não ter soado ainda a hora dos alemães. Costa Vale amava contar, nas suas raras horas de confidências, dever sua carreira à perspicácia com que podia calcular e jogar no futuro. Quando, antes de 30, se desligara dos ingleses para se tornar um homem dos americanos, muitos outros capitalistas haviam lastimado sua sorte. E agora ali estava êle, mais poderoso que qualquer outro. Não seria chegado o momento de apostar mais uma vez nesse futuro que êle enxergara em Berlim, nos desfiles do exército alemão, nas conversas com os industriais, naquele comício nazista monstruosamente grande? Ao mesmo tempo sentia sob os seu pés a firme terra dos dólares norte-americanos, a sombra próxima, mais que próxima, presente, dos Estados Unidos dispostos a não ceder seu lugar a nenhum concorrente. “Quem será amanhã o capataz dessa fazenda –. perguntava-se mais uma vez, os olhos no desfile integralista. O melhor era mesmo começar sozinho, recoberto de um simpático manto nacionalista, e esperar que o tempo indicasse o melhor caminho. Pensou numa ordem aos jornais por êle financiados: uma pequena campanha sobre a necessidade de desenvolvimento dos capitais nacionais, de empresas brasileiras para a exploração de “nossas” riquezas. Uma coisa bem equilibrada, um pouco de patriotismo, um pouco de independência e de progresso, e aí estava uma boa propaganda para a Empresa do Vale do Rio Salgado, alguma coisa também a elevar seu preço ante os americanos e os alemães... “Cada um vende o que tem, e eu tenho – terei certamente – essa imensa terra com suas florestas e rios, feras e homens, plantações e minerais, seu manganês cobiçado..
Do alto da sacada pareceu-lhe reconhecer um dos comandantes do desfile integralista. Fixou o olhar, sim, era êle, seu médico, o professor da Faculdade de Medicina, doutor Alcebíades de Morais. Lá ia de camisa verde, dragonas no braço, devia ser, ao menos brigadeiro ou coronel, mascarando com um ar feroz o rosto preocupado, era quase cômico. O banqueiro só não riu porque, nesse momento, o professor levantou a vista, viu-o no alto do banco, gritou uma ordem enérgica aos homens, o pelotão levantou o braço na saudação integralista e berrou dois “anuês” em homenagem a Costa Vale. O professor Alcebíades tinha-se voltado para a fachada do prédio, o braço estendido, uma pose marcial. O banqueiro hesitou um rápido instante. Mas levantou o braço também, sua voz tombou, como uma bênção, do alto do banco.
– Anauê!
Outra ordem gritada pelo médico e o pelotão seguiu para se juntar aos demais já reunidos no largo da Sé. Na rua, alguns curiosos olhavam, agora que o desfile passara, o ban queiro sozinho em sua sacada. Havia um silêncio entre amedrontado e hostil. Uma hostilidade crescente, subindo, daquela gente parada nos passeios da rua, para a sacada do banco. Costa Vale começou a senti-la e com os olhos buscou os soldados da patrulha, como se algo de mau fosse suceder. Mas nada sucedeu, além daquele silêncio pesado, dos mudos olhares voltados para a fachada do banco. O banqueiro colheu os ombros, afastando num gesto de desprezo o ridículo medo que o dominara, entrou novamente para a sala, novamente demorou-se ante o mapa. Pensou em pátrias e em homens: na Alemanha e nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Espanha, em Roosevelt, em Hitler, em Mussolini e em flanco, Só por um instante pensou no Brasil. Foi quando seu frio olhar pousou nos pontos vermelhos a indicar no mapa as zonas onde sertanejos e caboclos haviam plantado roças e desbravado um pouco de floresta. “Gente doente e ignorante – pensou – será necessário varrê-los dali quanto antes, substituí-los por bons colonos alemães ou japoneses...”
Incorporaria o prof. Alcebíades Morais aos seus planos: um grande médico para dirigir os trabalhos – “verdadeiramente patrióticos”, sorriu pensando nos artigos dos jornais – de saneamento da região, capacitando-a para receber técnicos e colonos. E agora seus olhos presos no mapa enxergavam o futuro, as casas dos alemães ou japoneses substituindo as cabanas dos roceiros, as minas trabalhando, barcos no rio transportando minério, um aeródromo onde pousariam os aviões. E sobre essa terra, num alto mastro, uma bandeira tremulando numa afirmação de posse. Mas qual? A dos Estados Unidos, suas faixas, suas estrelas, ou a da Alemanha, com sua cruz gamada? Alargou-se o sorriso em seus lábios, passou a mão pela testa calva: isso seria êle quem ia resolver, nas suas mãos estaria o poder de decidir. Num prédio em frente, inclinada em direção ao banco, esvoaçava ao vento a bandeira brasileira. Costa Vale não a notara sequer, não a via tampouco agora no seu ardente sonho ante o intrincado mapa de rios e florestas.
Manuela veio com a xícara de café, pousou-a na mesa, andava nas pontas dos pés para não perturbar o irmão ocupado. Mas Lucas a sentiu chegar e levantou a cabeça do papel, onde o lápis emendava palavras:
– É difícil mas está saindo.
Manuela sorriu com afeto, passou os magros dedos de porcelana, numa afetuosa carícia, sobre os cabelos do irmão:
– Para ti nada é difícil...
Lucas estendeu a mão, abraçou-a pela cintura, puxou-a para junto de si:
– E o namoro, como vai?
– Besteira. Moço rico, aristocrata, diplomata, coisa sem futuro... Não vai se interessar por uma pobre de Deus.
Com a mão livre Lucas tomou da xícara de café, bebia em pequenos goles saboreados. Manuela olhava as pontas dos sapatos:
– Ele é tão delicado, tão diferente dos outros... – e quando falava nos outros pensava nos homens da sua rua, os empregados no comércio, o velho da proposta libertina, o mundo que a enquadrava. – Eu nem sei como conversar com êle... Outro dia a gente falou de dança, êle entende tanto, é tão inteligente e instruído... – hesitava como sem saber se devia ou não revelar ao irmão o grande segredo. – Ele me disse que, se eu quiser, pode me apresentar a Maria Ianova...
– Quem é? – perguntou Lucas, colocando a xícara sobre a mesa.
– A professora de “ballet” que tem um curso particular. Parecia impossível, sabe? Tudo mudou tanto nesses dias, Lucas, que eu até tenho medo.
– Medo, de quê?
– Agora tu tens um bom emprego no Ministério, a gente vai se mudar, apareceu esse rapaz, é amigo de toda a gente de teatro, me anima para dançar... Tudo tão depressa...
Para Lucas toda pressa era pouca. Desde que lhe haviam dado o primeiro impulso, se atirara para a frente e abria caminho com os braços e os cotovelos:
– Tu tens mesmo vontade de ser bailarina?
– Penso que não posso. É uma coisa que a gente deve estudar desde menina e nunca estudei... Mas Paulo diz que o importante é a vocação e que eu tenho futuro seja no “ballet” seja no teatro... Não sei...
– Nós podemos tomar uma empregada para cuidar das crianças, daqui a algum tempo, então tu poderás...
– Mesmo ante, eu penso. No princípio serão algumas horas durante três dias na semana, tia Ernestina pode se ocupar... Tu consentirias?
Lucas refletia:
– Talvez. Se tu tens vontade. Teatro, não. Não é carreira para uma moça de bem. Mas o “ballet”... E esse rapaz, que intenções êle tem contigo?
– Até agora a gente tem conservado, umas poucas vezes... É diferente dos outros, não me falou ainda nada...
– Nada de amor?
– Nada. Por vezes diz coisas gentis, meus cabelos, minhas mãos, meus olhos e só.
– Não tentou te beijar?
Manuela sorria:
– Não... Ainda não...
– Tem cuidado, Manuela. Ele te oferece algo, que quererá êle em troca? Toma o que êle quer te dar mas cuidado em não dar o que êle te pedir...
– Não está na gente dar ou não dar seu coração.
– Bem. Não é do coração que falo... Vai-te embora, dei-me acabar esse discurso, de outra vez a gente conversa.
Ela saiu e êle afastou o problema da irmã de sua cabeça. Escrevia o seu primeiro discurso. Fazia uma semana apenas de emprego no Ministério do Trabalho e já o haviam escolhido para falar na rádio nessa noite, em nome dos comerciários. Seu amigo Eusébio Lima, pessoa de Getúlio, estava contente com êle:
– Tens futuro, rapaz. Com as idéias que tens, irás longe.
Trabalhando desde 1930 no Ministério, agindo nos sindicatos, Eusébio se tornara um técnico daquilo que chamavam nos meios governamentais a “política trabalhista”. Viera a São Paulo com importante missão: devia preparar o terreno para a visita de Vargas, alguns dias depois do golpe, ao centro da oposição ao seu governo. Essa visita devia ser realizada à base de um inventado “convite dos trabalhadores” e culminar numa grandiosa manifestação ao ditador que pronunciaria então um discurso fixando os rumos da política social do novo regime, a “conciliação de classes”, a harmonia entre o capital e o trabalho. Essa manifestação seria uma advertência aos políticos inimigos do regime, serviria para ampliar a base social do governo, golpearia também a agitação comunista.
Mesmo antes do golpe, Eusébio vivia numa atividade febril, entrevistando-se com personalidades da polícia, com integralistas, com os agentes do Ministério do seio dos sindicatos, mantendo ligações com proprietários de fábrica e com os americanos da Light. A emissão radiofônica, nessa primeira noite do novo regime deveria lançar a idéia da manifestação. Falariam os “representantes” das classes trabalhadoras dando seu apoio ao Estado Novo e convidando Getúlio a visitar São Paulo para receber a prova da sua solidariedade. Lucas falaria pelos comerciários; um ex-empregado de uma fábrica têxtil, espião durante uma greve e atual investigador de polícia, pelos têxteis; agentes ministeriais por outros ramos de indústrias.
Lucas soubera nesses poucos dias tornar-se indispensável a Eusébio Lima. Não fora quem resolvera a maior dificuldade de manifestação projetada? O temor de Eusébio é que os operários não comparecessem. Com os americanos e com os patrões de diversas empresas acertara já a paralisação dos trabalhos no dia da manifestação, e contava com os integralistas, os investigadores de polícia, os funcionários do Ministério para fazer números, para dirigir os aplausos, para gritar “Viva Getúlio!”. Mas, se os trabalhadores, no inesperado feriado, em vez de irem à manifestação fossem descansar em suas casas? A manifestação pouco significaria, pouco resultado político teria, se os trabalhadores não comparecessem. Foi Lucas quem sugeriu:
– E se a gente fizer a coisa num estádio de futebol, com uma boa partida entre dois clubes populares, após os discursos? Vai encher completamente; todo mundo irá para assistir à partida de futebol...
– Isso é uma idéia mãe. Um time do Rio, outro de São Paulo. Seu Lucas, você deu com a coisa...
E Eusébio Lima acrescentou, num entusiasmo:
– Vou lhe recomendar pessoalmente ao dr. Getúlio. Você vai longe...
Quando finalmente terminou o seu discurso, Lucas o leu em voz alta. Manuela voltara e, sentada numa cadeira, escutava o irmão, numa admirativa ternura no olhar. Quando êle concluiu, ela lhe perguntou:
– Ele é mesmo bom assim, esse Getúlio Vargas? Merece tanto elogio?
– Bom ou ruim eu sei lá... O que sei é que é com êle que vou subir. Agora, Manuela, êle manda sozinho, faz o que quer e bem entende, compreende? E Eusébio me prometeu que ia me recomendar a êle pessoalmente... Ou tu pensas que eu vou querer ficar nesse conto de réis por mês no Ministério...
– Às vezes tenho medo...
– Tu és uma medrosa. Bem, podes ver com o tal rapaz a professora de dança, se não for muito cara... Podes ir mesmo ao cinema com êle, se êle te convidar... Quando eu for rico te mandarei estudar na Europa...
Naquela noite, pela primeira vez, o nome de Lucas Puccini ressoou em São Paulo, quando o “speaker” da rádio anunciou, após a aplaudida oração do professor Alcebíades de Morais da Faculdade de Medicina:
– Ides ouvir agora a palavra do prestigioso Líder dos comerciários paulistas, senhor Lucas Puccini, numa saudação ao benemérito chefe do governo, ao instituidor do Estado Novo, Getúlio Vargas.
Mas, o nome desconhecido escapou à atenção da maioria dos ouvintes. Apenas Manuela, o ouvido curvado sobre o aparelho de rádio de uma família vizinha, sorriu orgulhosa ao ouvir a voz redonda do “speaker” dizendo o nome do irmão.
Aquele discurso de Lucas, numa importante estação de rádio, misturado com professores universitários e com políticos compensava em Manuela a tristeza desse dia confuso de golpe de Estado, impedindo que Paulo viesse – como sempre de táxi, devia pagar uma fortuna – à conversa noturna agora já fazendo parte da sua vida, sendo mesmo o seu melhor momento. Um telegrama recebido no fim da tarde avisara da ausência de Paulo e trouxera um convite: “Impossível ir hoje ponto Espero-te amanhã sem falta às três horas na Confeitaria Ideal rua Marconi quero te apresentar um amigo ponto Amo-te muito Paulo”. Era a primeira vez que êle dizia amá-la e o fazia num telegrama. Ainda assim Manuela sentia invadir-se por deliciosa emoção. Esses eram dias de sonho para ela. Aquele moço tão gentil e distinto, conhecedor de poesia e de pintura, que lhe falava de tanta coisa desconhecida e bela, com seu ar superior e por vezes um pouco distante, a envolvera por completo e ela nem sabe mesmo como pôde viver tantos anos sem conhecê-lo, talvez por isso fosse melancólica sua vida, antes. Bastava a presença noturna de Paulo, a hora que êle ficava andando com ela pela rua, ou conversando, sentado num banco na pequena praça, para que a casa já não lhe parecesse tão úmida, já não sentisse tão agudamente o cheiro de mofo. Ela lhe dissera que iam mudar-se, o irmão buscava um pequeno apartamento no centro, já tinha mesmo um em vista na Praça Marechal Deodoro. Ele fazia projetos para quando ela se mudasse, passeios. exposições, concertos. E mais que tudo a animava, desde que ela, sem assunto para sustentar a conversa na sua segunda visita, lhe contara dos seus desejos de dançar, dos seus pés inquietos na ânsia de criar passos de “ballet”. Ele conhecia todo mundo, toda essa gente misteriosa e longínqua dos teatros, da literatura, cujos retratos Manuela via nas revistas.
– Eu te descobri... – dizia êle. – Farei de ti uma grande estrela. Serei teu Pigmaleão...
Ela não sabia quem era Pigmaleão mas deixava-se embalar naqueles projetos murmurados pelo moço ao mesmo tempo que acariciava sua mão e a olhava como a um objeto raro:
– Tu sabes que és muito, muito bela? Uma das poucas mulheres realmente belas que eu já vi...
Gostava também de tocar os seus cabelos, de prendê-los em suas mãos. No entanto nem palavras de amor, nem a esperada e clássica declaração, nem tentativa de beijá-la. Era tão estranho que chegava a amedrontá-la. E se êle não a amasse, se fosse apenas uma estima de amigo? Porque ela sentia amá-lo já com toda a intensidade de seu árdego e virgem coração. E sonhava com êle, com seu rosto de fim de raça, com sua voz educada e sem entusiasmo, com seu perfil aristocrático. Na rua comentavam o namoro, tia Ernestina a olhava em casa com olhos cheios de censura, mas ela temia apenas a opinião de Lucas e nesse dia êle lhe dissera que estava bem.
Tia Ernestina lhe entregara o telegrama, resmungando. Quantas vezes ela o releu, até saber de cor todas as suas palavras, repetindo o verbo simples e terrível: “amo-te”? Guardou-o entre os seios, voltou a lê-lo mais uma vez quando Lucas acabou de falar e os aplausos se extinguiram na estação de rádio.
Vestindo-se para o jantar em casa de Costa Vale, o poeta Shopel ouvia as confidências de Paulo. Exigira ordem na narração, para melhor segui-la e gozá-la:
– Começa do princípio, Paulinho. Começa de Bogotá, flor dos Macedo da Rocha, desse falado escândalo, desse pileque olímpico, desse catch as catch can nudista com a senhora embaixatriz na pudica e provinciana cidade de Bogotá. Devagar e com método, filho, para eu saber de tudo. Depois chegarás a essa furiosa paixão romântica nos bairros itálicos de São Paulo... Vamos partir do sexo para o coração...
Mais uma vez Paulo contou a bebedeira, as provocações de doña Adela, a luta com os outros convivas, O poeta gozava num riso quase babado cada detalhe picante do escândalo monumental.
– Pois, filho, eu te digo que Getúlio devia era te promover. Primeiro, intrinsecamente pela luta que sustentaste, espetacular feito esportivo: um brasileiro contra mais de dez colombianos e ainda o marido chileno...
– Não, o marido não interveio, estava muito mais bêbedo que eu, incapaz de se levantar da cadeira...
– Segundo, pela utilidade que esse escândalo teve para a genial política getuliana. Ele o explorou contra os “armandistas” de todas as maneiras. Tu, durante mais de uma semana apareceste na imprensa como o símbolo da corrupção, da decadência, da imprestabilidade dos políticos de São Paulo, eras o símbolo do lupanar, do vício, da falta de patriotismo. Arturzinho, coitado, andava numa roda viva com as coisas que a imprensa dizia...
– Bem, se é assim, que êle me promova, me dê pelo menos o consulado de Paris...
– E largas aqui teu amor romântico?
– Bem. Paris vale bem uma missa... E esse amor, seu Shopel, é desses que de muito profundos são de pouca duração. Tu sabes, essas flores do campo são muito lindas mas duram pouco quando colhidas...
– Já colheste?
– Não, longe disso ainda. O gostoso é exatamente ir conquistando essa inocência, ir ganhando confiança dia a dia, e ver a transformação se operando na moça... Mas estou só no comecinho...
Contou o encontro do parque de diversões, as conversas na rua suburbana, propôs-lhe reunirem-se os três no dia seguinte para que o poeta conhecesse, pudesse julgar da sua beleza:
– É divinamente bela. Uma daquelas belezas da grande pintura do Renascimento. Perfeita. E ademais com vocação para o “ballet”. Quer dançar, isso é tudo para ela.
– Vocação mesmo?
– Bem, nunca a vi dançar mas ela fala com tal paixão que é capaz de ter mesmo jeito... Pensei em apresentá-la a Ianova, ver se ela se interessa...
O poeta sentava-se na cama, afundando o colchão com o seu peso, estirava o dedo gordo em direção a Paulo:
– Que Ianova, que nada, Paulinho. Vamos fazer coisa muito melhor. Vamos pegar essa tua beleza divina e vamos fazer dela grande sensação artística. Talvez a Ianova possa lhe ensinar uns passos, mas o importante, é fazermos em torno dela uma grande propaganda. Artigos e notas nas revistas e nos suplementos literários, mostrá-la um pouco aqui e no Rio, criar-lhe um ambiente... Depois o sucesso é certo...
– Fabricar uma estrela?
– Que pensas? É um plano magnífico, é da gente se divertir de morrer... Este, seu Paulo, é um país de botocudos e de charlatães. Se alguém afirma que sabe qualquer coisa, seja mesmo a coisa mais difícil do mundo, há sempre quem acredite. O importante é a coragem e o cinismo de afirmar. Imagine você se quem afirma somos nós, a elite do país... A menina vai ser todo um sucesso.
Paulo sentia-se tentado.
– É gozado, sim... Mas, a menina? Coitada, ela leva a coisa a sério.
– Não precisa saber que não é a sério. E depois, quem sabe?, pode ser mesmo que ela faça sucesso. O pior que pode lhe acontecer é terminar num teatro de revista no Rio de corista, na Praça Carlos Comes. E pelo que você me diz da vida dela é sempre um progresso. E imagine como nos divertiremos..
– Como no caso de Sibila..,
– Te lembras? A pobre imbecil, era caixa na livraria. Quem foi mesmo que teve a idéia?... Foste tu, não? Eu estou agora é te plagiando...
Recordaram o caso de Sibila, uma quarentona meia idiota que era caixa da Livraria Católica, onde Shopel fora gerente. A pobre tinha ambições intelectuais, um dia, Paulo convenceu-a que devia dedicar-se à pintura. Sibila não sabia dar um traço mas atirou-se às telas e às tintas, ao mesmo tempo em que Paulo, Shopel e outros falavam nas rodas artísticas e literárias na “grande revelação de pintora, no talento de Sibila, uma primitiva que ia deixar longe todos os pintores modernos do pais.” A caixeira realizou uma exposição, abandonou o emprego, vivia agora metida em vestidos espantosos, nos meios artísticos
– Mas teve muito crítico que a elogiou a sério... Este é um país perdido, Paulinho. Tu sabes que ainda há uns quinze dias saiu um enorme artigo de Silva Neto, o crítico da “A Notícia”, sobre a pintura da Sibila, comparando-a aos ícones russos?
Continuava, animado:
– É incrível... Nós pensávamos que todo mundo ia morrer de riso na exposição da Sibila e foi aquele coro de elogios... Como ignorância, seu Paulinho, este país deixa muito longe qualquer Costa d’Ouro ou Angola... Eu prevejo para essa tua bailarina sucesso monumental. Mas devemos pensar sobre o assunto com calma. Organizá-lo em todos os detalhes... Ah! o que vamos nos divertir! E o que nos resta agora, Paulinho, é cada um procurar divertir-se. Com Getúlio no poder para todo o sempre, o gozo vai ser o lema geral. Para seguir o exemplo do presidente.
Levantou-se para terminar de vestir-se. Paulo, que só iria à casa do Costa Vale após o jantar, estirou-se na cama:
– Que pensas se ela interpretasse uns bailados negros?
– Não, filho, não. Nada de negros agora, isso vai cair de moda com o governo fascista. Agora devemos ser um pouco racistas, tu sabes, com os integralistas mandando. É melhor pensar em bailados dos índios. É bem nacionalista, e o nacionalismo vai entrar em evidência com o Estado Novo. Arranjamos um bom nome para ela... Por falar nisso como ela se chama mesmo?
– Manuela.
– Não serve, muito português.
– Mãe portuguesa, pai italiano.
– Não. Precisamos de algo bem brasileiro, bem indígena: Iracema... – fez um gesto de desgosto. – Não, muito batido... O velho Alencar desmoralizou... Jandira.. Que pensas de Jandira? Veja: “Jandira, a deusa da floresta virgem nos bailados religiosos dos índios... Que índios?
– Aimorés, talvez...
– Não. Os índios xavantes que são antropófagos, ainda há pouco tempo andaram comendo uns exploradores e missionários ingleses .. Impressiona mais.
Terminava de vestir-se:
– Tu pensas por teu lado, eu penso pelo meu, quando sairmos da casa de Costa Vale vamos ajustar todos os detalhes. E, Paulinho, tu tens alguma idéia sobre o que possa querer de mim o Costa Vale? Estou morto de curiosidade. Seu telefonema era uma ordem terminante: venha pelo primeiro avião.
Paulo fez um gesto total de ignorância:
– Nada sei nesta vida a não ser que estou apaixonado. Uma paixão um pouco besta mas de um encanto...
– Ah! menino, essas pequeno-burguesinhas são deliciosas... E, depois, de uma fidelidade, de um agarramento...
– Esse é o lado chato...
O poeta suspirou:
– E eu, que amo a quem não me ama, eu que quero a quem não me quer?
– É ainda Alzira?
– Ainda. E será sempre. Terminará casando comigo mas não deixará jamais de enganar-me. Vejo o perigo em minha frente mas não tenho forças para evitá-lo... Sei que um triste destino me aguarda... Mas, que fazer?
– Talvez eu também me case...
– Tu? Não é possível...
– Melhor: talvez me casem... Marieta anda com um plano, tu sabes que ela foi sempre um pouco minha mãe. Agora se meteu na cabeça que eu devo casar-me com uma sobrinha da Comendadora da Torre... Ainda hoje, durante mais de meia hora, me doutrinou...
– Mas, filho, tu compreendes o que isso quer dizer? São milhões e milhões, é uma das maiores fortunas do Brasil...
O poeta arregalava os olhos, numa inveja deslumbrada:
– O que vale nascer aristocrata... Menino, não discuta; arrebanha esses milhões, vai fazer uma viagem em torno ao mundo e leva-me de secretário...
Enumerava as vantagens:
– Quando estiveres muito cansado da esposa, eu a conduzirei ao teatro, às costureiras, às casas de chá...
– Prefiro levar a Manuela de secretária... É mais cômodo e menos perigoso para minha tranqüilidade de esposo... Não consegui ainda apreciar o gosto de ser enganado...
O poeta revirou olhos enormes, estalou a língua:
– Ah! é um prazer refinado, para raros... Dói, mas é bom... Eu o digo porque o sei... – e saiu declamando em despedida os versos de um seu poema recente;
“De todas as humilhações quero sentir o gosto,
chorando, em leito imundo ir procurar-te
perdoar sabendo que outra vez te irás
e outra vez de joelho te buscar!”
A reunião íntima em casa de Costa Vale durara até tarde. Só o banqueiro se recolhera cedo, carregando consigo, para o quarto, papéis e relatórios trazidos do banco, trabalharia, sem dúvida, antes de dormir. Depois do jantar, animado de conversações sobre o golpe, de novidades trazidas do Rio pelo poeta Shopel, o banqueiro fora com o hóspede para seu gabinete enquanto Marieta e Henriqueta recebiam Paulo e Suzana Vieira. A conversa entre o capitalista e o poeta não durara muito. Mas, quando surgiram de volta na sala, o rosto de Shopel parecia recoberto de uma dignidade preocupada, perdera aquele ar ligeiro de homem sem grandes responsabilidades. Henriqueta disse...
– Até parece que o senhor levou um carão, dr. Shopel...
– Conversa séria, de negócios – disse Costa Vale. – O nosso poeta tem um plano interessante mas por ora é segredo.
Logo depois o banqueiro retirara-se deixando os hóspedes com a esposa, a música e as bebidas. Ficaram numa conversa preguiçosa, bebericando uísque e ouvindo discos que Paulo mudava na eletrola. Marieta, estirada numa chaise-longue, alegre daquela noite íntima quando podia deixar o olhar demorar-se em Paulo, já que as luzes se tinham apagado à exceção de um pequeno abajur, trauteava trechos de música, num abandono feliz. Henriqueta e Suzana discutiam sobre samba e rumba. O poeta Shopel é que perdera, após a conferência com Costa Vale, sua costumada jovialidade. Imerso em profundos pensamentos, seguia desinteressado o fio das conversas, respondia ao acaso às perguntas, só se animou mesmo quando Henriqueta, exaltada pela discussão e pelos uísques, resolveu mostrar para Suzana como se dançava o verdadeiro samba, o do morro, dos negros e mulatos, o samba da Favela e da Mangueira, num remelexo frenético.
Saíram pela madrugada e Marieta não se havia movido da cadeira. Durante algum tempo, Paulo sentara-se no chão aos seus pés e ela acariciara seus cabelos. Henriqueta ficava para dormir, em realidade já estava adormecida no sofá, completamente embriagada. Suzana Vieira, em cujo auto embarcaram Paulo e Shopel, estava também bastante alegre e o poeta protestou violentamente contra a maneira como ela estava conduzindo o volante: em ziguezagues pela rua, tirando “finas” nos postes. Foi necessário parar, entregar a direção a Paulo. Suzana passou para o assento de trás ao lado do poeta, a quem começou a narrar uma história sem pé nem cabeça, complicada aventura amorosa com um desconhecido pintor de paisagens numa praia de Santos. Apesar de que a história possuía certos detalhes picarescos, o poeta não conseguia interessar-se, ia espiando a rua deserta, os pensamentos longe, repetindo para si mesmo a proposta alucinante de Costa Vale.
De súbito, Paulo parou o automóvel, voltou a cabeça para trás, disse-lhes:
Espiem! Espiem!
– O quê?
– As paredes...
Suzana soletrou as letras de piche negro, numa voz pastosa de bêbeda:
A-BAI-XO O ES-TA-DO NO-VO!
Comentou num ímpeto de embriagado entusiasmo
– Viva São Paulo! Viva o doutor Armando! Vejam: os paulistas já reagem... Isso é o começo...
Mas o poeta Shopel lia as demais frases:
VIVA PRESTES! VIVA O P.C. B.
– São os comunistas...
Paulo balançou a cabeça.
– São terríveis, hein? É preciso coragem para pichar as paredes numa noite como a de hoje...
O poeta murmurou baixo:
– É preciso liquidar essa gente. Enquanto eles existirem ninguém pode ter sossego...
Paulo riu, pondo o motor em marcha:
– Falas como um burguês rico e não como um poeta católico, cujo dever é perdoar aos inimigos...
O poeta não respondeu mas agora seus olhos seguiam os muros, procurando decifrar as assustadoras inscrições repetidas, lendo-as pela metade, adivinhando o fim das frases.
MORRAM OS INTEGRALISTAS!
Um medo o assaltava, um medo avassalador desses homens perseguidos e persistentes, agindo desde a profundeza da ilegalidade, ameaçando a estabilidade das fortunas assentadas, perigo sobre a sociedade e também sobre os projetos de Costa Vale, esses magníficos projetos que deveriam transformar o poeta Shopel de um pequeno editor intelectual, de bolsos eternamente vazios, num homem de negócios, temido, respeitado e adulado... Ah! esses comunistas! Aí estavam eles presentes nesse mesmo dia de golpe de Estado, agitando a noite da cidade, lutando contra o regime naquele dia instituído, como se a nova constituição, batida nos moldes fascistas, não os amedrontasse, como se não houvessem lido as edições extraordinárias dos jornais, pouco noticiosas e pouco informativas sobre pormenores do golpe, mas unânimes em considerar que o estado de coisas implantado no país era uma necessidade premente para pôr cobro à agitação comunista, à “ameaça vermelha”, à ação subversiva dos “elementos extremistas”. Generais e políticos, fazendeiros e industriais, um cardeal e o chefe de polícia do Rio de Janeiro, usavam quase idênticas palavras para exaltar o Estado Novo como o definitivo fim dos comunistas no Brasil. O chefe da Polícia Federal, resumira tudo numa violenta ameaça, publicada em manchete, em grandes tipos, num jornal da tarde: “Não deixarei um só comunista em liberdade. O Estado Novo limpará o Brasil para sempre da peste vermelha”.
No entanto, mesmo naquela primeira noite, ali estavam eles presentes, nos muros da cidade, nas inscrições em enormes letras desiguais. E assim estariam pelas demais cidades, Rio, Bahia, Porto Alegre, Belo Horizonte, Recife e Belém, apesar dos integralistas arrotando violências pelas ruas, das patrulhas armadas de soldados, da polícia política em permanente atividade. Apesar de que nada os poderia mais valer se fossem surpreendidos e presos no perigoso trabalho de pichagem de rua. As inscrições atiravam o poeta aterrorizado contra o encosto do banco: que coisas tremendas não planejavam esses comunistas, metidos nas fábricas, nos locais de trabalho, na consciência de milhares de homens? Suzana Vieira ressonava, o poeta cobriu-se com sua gordura, o covarde coração em susto. Mas a voz de Paulo o arrancou do fundou do automóvel quando entravam na praça João Mendes:
– Veja, Shopel, meteram bandeirolas vermelhas sobre os fios de eletricidade. São uns machos...
Shopel suspendeu os olhos, o pescoço dobrado para ver melhor: sobre os fios elétricos se balançavam pequenas bandeiras vermelhas, sustentadas por pedregulhos amarrados a um cordel. Investigadores da polícia política cruzavam a praça de revólver em punho, novos automóveis da polícia chegavam cortando o silêncio com as sirenes ruidosas. Sobre os investigadores, autos, sirenes e revólveres, sobre o medo do poeta, as bandeiras vermelhas, pequenas manchas coloridas, se agitavam alegremente à brisa da madrugada.
Muita pichagem de muro ela fizera durante seus quatro anos de militância, especialmente no tempo da Aliança Nacional Libertadora. Gostava mesmo da tarefa, o pequeno grupo marchando nas sombras, conduzindo as latas de piche e os pincéis, camaradas colocados nas extremidades da rua para dar aviso se aparecesse alguém, as inscrições rapidamente feitas, a foice e o martelo desenhados em dois traços, a afirmação de luta lançada em face da burguesia. Tarefa de base, a.b.c. dos militantes, mas exigindo calma e presença de espírito, coragem e disposição: não era raro cair um grupo de “pichadores” e a polícia os espancava violentamente antes de começar a processá-los. Os investigadores odiavam esses estranhos muralistas e, quando conseguiam agarrar alguns em pleno trabalho, descarregavam sobre eles sua raiva. Mais de um camarada fora morto ao buscar fugir das mãos da polícia, quando surpreendido numa pichagem de muro. Assim morrera um jovem operário têxtil, companheiro de trabalho de Mariana na fábrica da Comendadora.
Ela, porém, tivera sempre muita sorte. Raspara alguns sustos, certa vez estivera quase nas mãos da polícia. Pichavam naquela ocasião as ruas centrais e o vigia de um banco, que os viu, telefonou à polícia. Como eles não sabiam terem sido notados continuaram tranqüilamente o trabalho. Os policiais cercaram as ruas próximas e, se não fosse a casualidade de uma sessão extraordinária num cinema que eles mesmos pensavam já cerrado (era mais de uma hora da manhã), teriam sido todos presos. Mas se misturaram aos convidados à exibição do filme e foi impossível à polícia buscá-los em meio à ruidosa multidão. De outra feita, só a sua presença de espírito a salvou. Era uma pequena equipe de três, Mariana e mais dois camaradas, um dos quais ficou andando na rua, de esquina a esquina, vigilante. Aconteceu, porém, que as esquinas eram distantes e a polícia apareceu numa delas quando o camarada estava na outra. Vinham num auto de patrulha, em marcha lenta. Mariana abandonou os pincéis, derrubaram a lata de piche num portal, e ela deu o braço ao camarada e veio com ele pela rua numa pose romântica de namorados e assim passaram mesmo em frente ao carro de polícia. O outro camarada escapara pela esquina distante.
Muitas vezes o trabalho era interrompido pelo assobio de aviso dos camaradas postos de vigia: assobiavam uma ária antes combinada, eles escondiam piche e brochas, desapareciam na escuridão. E as inscrições ficavam, por vezes sem terminar, mas animando a luta, dando força ao povo para resistir às ameaças dos integralistas, para se levantar contra a miséria. Mariana amava olhar do bonde que a transportava ao trabalho essas inscrições murais, feitas no mistério da noite, sob a ameaça permanente da polida. Acompanhava o olhar curioso com que os passageiros e os transeuntes liam as frases e as palavras de ordem:
LIBERDADE PARA PRESTES! ANISTIA!
Nesse 10 de novembro de 1937, Mariana voltou a pichar ruas. Quando chegou a casa, de regresso da perigosa excursão, estava inquieta: que iriam dizer os camaradas da direção, como o Ruivo reagiria quando soubesse? E como o camarada João aceitaria o fato, que palavras teria para aquela sua indisciplina? Uma indisciplina, sim, e uma grave indisciplina. Não estava ela, por acaso, afastada de todas aquelas tarefas, proibida mesmo de se encontrar com os velhos camaradas das bases, de participar de reuniões? Não tinha agora sobre os seus ombros uma tarefa muito mais importante e delicada? Não sabia que sua prisão era um perigo para toda a região do Partido, em São Paulo?Nisso ela pensa ao voltar, estendida no enferrujado leito de solteira. Mas como lhe teria sido possível resistir? Ah! esperava bem que os camaradas compreendessem, não fossem muito duros para com a sua falta, que o sorriso cordial não se apagasse nos lábios amigos do Ruivo, que o camarada João não a recebesse com uma daquelas suas frases bruscas, indicativas da sua reprovação, sobre todas temida por Mariana. Agora ela estava ligada aos dois, e, apesar da volta do Ruivo do Rio de Janeiro, por vezes era com o camarada João que ela se encontrava para receber os papéis ou os recados a transmitir. Mesmo naquele dia estivera com êle e, em seu nome, fora em busca de outros quadros para as primeiras providências exigidas pelo novo estado de coisas estabelecido no país. Tinha sido um agitado dia, os jornais lidos às pressas nas viagens de bonde, um ódio fechando a garganta, a visão desagradável dos desfiles integralistas pela cidade, dos soldados em patrulha, dos carros da polícia passando velozmente. Mariana estivera nos quatro cantos de São Paulo nessa tarde, levando ordens. O camarada João lhe dissera, na casa pobre onde ela o fora encontrar ao lado das edições extraordinárias dos jornais:
– Muito cuidado, Mariana. Nesses primeiros dias eles são capazes de tudo. O importante agora é organizar uma resposta ao golpe, juntar todas as forças democráticas do país para impedir a fascistização. Os operários precisam demonstrar seu repúdio à nova constituição, ao mesmo tempo que se forme uma frente de todas as forças democráticas para impedir sua aplicação. É preciso que a reação sinta a oposição dos trabalhadores ao golpe. É necessário pichar ruas hoje mesmo, jogar bandeiras vermelhas nos fios, enquanto se prepara coisa mais positiva, o movimento grevista. Sem isso não vamos poder fazer marchar esses políticos chamados democratas que pensam estar tudo perdido.
Ela o ouvia falar e sua voz a enchia de confiança. Êle dava nesse dia uma impressão ainda mais poderosa de força e de vontade indomável. Não havia no seu rosto nenhum traço de fadiga, apesar de que certamente êle não havia dormido nenhum instante na noite anterior. Mariana esforçava-se por manter-se calma e não deixar transparecer a inquietação que sentia pela segurança dos camaradas, especialmente do camarada João, cuja responsabilidade partidária o levara a descer muitas vezes às bases, a tratar com políticos de diversos partidos, conhecido de vista por muita gente. Nesses dias passados depois da noite de seu aniversário, ela sentira crescer em si, apesar de todos os seus esforços para dominá-la, uma quente ternura por aquele camarada tão jovem e tão responsável já, cujo severo rosto não conseguia esconder o humano coração. E por vezes sentia nele também um interesse especial por ela, como se também êle tivesse sido tocado por idêntico sentimento e fosse obrigado a afastar da cabeça os mesmos pensamentos de amor a povoar agora os sonhos de Mariana.
Ia deixá-lo, escondidos no seio os troços de papel, guardando na memória o recado para o Ruivo. Estendeu- lhe a mão, êle fazia ainda recomendações:
– Cuidado e cuidado. Antes de entrar em qualquer “ponto” assegure-se de que não está seguida e de que a polícia não anda por lá... Não é só sua liberdade que está em jogo, é a da direção do partido.
– Terei cuidado.
Ele a olhou como o fazia de quando em quando, uma tímida ternura aparecendo:
– Você tem a mesma coragem de seu pai.
Gostaria de poder-lhe dizer muitas outras coisas, dizer- lhe, por exemplo, que a seguiria com o pensamento em sua caminhada através da cidade. O camarada João era de todo inexperiente em assuntos românticos, não se imaginava sequer que Mariana pudesse se interessar por êle. E se guardava, como bom comunista, de a ofender ou perturbar deixando-a entrever o sentimento crescente em seu peito. Demais, aqueles não eram dias para se pensar em tais coisas. Um dia, talvez, quando os assuntos políticos andassem melhor e ela tivesse se acostumado a ele, talvez então pudesse lhe dizer que gostaria de casar-se com alguém como ela...
Na cama, Mariana relembra a cena: um segundo de silêncio se seguira à frase de João, um silêncio carregado de ternura, de doces frases não pronunciadas, de palavras guardadas no fundo do peito. Sentiu então que não era indiferente a êle e compreendeu que o amava. Por isso mesmo teme ainda mais seu julgamento: como uma irresponsável aceitara o convite do camarada secretário da célula da última fábrica onde trabalhara para fazer parte de uma equipe de pichamento. Mas, onde encontrar coragem para recusar? Haviam-lhe faltado as palavras como faltaram-lhe ante o olhar terno do camarada João.
O camarada aparecera em sua casa depois do jantar. Mesmo após o desligamento de Mariana da célula, êle vinha por vezes conversar, dizer-lhe de como marchavam os companheiros e as tarefas, era um bom camarada, impetuoso e leal. Não sabia em que organismo Mariana militava agora, mas sabia que ela continuava a merecer a confiança do Partido. Naquele começo de noite estava preocupado, mastigando um cigarro. Recebera, como as demais bases, ordem para pichar muros, sua célula estava responsável por inscrições em algumas mas. Recebera a ligação, porém, já muito tarde, não pudera avisar a todos os companheiros (a célula contava apenas oito membros), dois tinham declara do sua impossibilidade de vir – um deles não podia realmente apesar de o desejar, o outro tinha apenas medo –, um terceiro estava de férias e êle não pudera encontrá-lo, sua equipe para esta noite estava assim reduzida a três pessoas. E o trabalho exigia pelos menos quatro: dois para a pintura, dois para guardar as esquinas, não era possível pichar aquelas ruas vigiadas sem dois companheiros na segurança. Expunha seu problema a Mariana esperando naturalmente que ela, uma camarada provada e conhecida por não recusar tarefas, se oferecesse para ir com êle. Mas ante o silêncio da moça, não teve outro jeito senão propor:
– Você não topava vir com a gente? A gente vai depois de uma hora da manhã, não haverá perigo... Não sei o que você anda fazendo, nem quero saber, mas uma tarefinha de base não vai lhe fazer mal...
As ordens eram terminantes, o Ruivo lhe dissera repetidamente ser necessário evitar qualquer atividade que a pudesse marcar. Não devia ir. Sentia-se tentada, sem dúvida, e o problema do companheiro secretário de célula a preocupava, ela sabia que uma pessoa a mais garantiria de muito a segurança da equipe. O pior era não poder dizer ao camarada as verdadeiras razões da sua recusa:
– Não vou não. Hoje eu não posso...
Ele não escondeu o seu desapontamento. Contava com ela, viera na certeza de completar com Mariana a equipe necessária para o bom cumprimento da tarefa e não esperava a recusa:
– Não quer se expor? – grunhiu êle de mau humor. – A pessoa sobe um pouquinho, trata logo de não se arriscar...
– Você sabe que isso não é verdade. Sabe que os riscos maiores não são esses de pichar rua. Por que é injusto? Além disso eu não subi coisa nenhuma, sou tão de base quanto você ou menos ainda... Esses resmungos não ficam bem num comunista.
O companheiro se desculpava, encabulado, arrependido da frase mal-humorada e injusta:
– Você tem razão, esse negócio de golpe não passa em minha garganta, ando furioso de raiva, minha vontade era poder dar uns tiros nessa cambada de integralistas, nesses galinhas-verdes impando pelas ruas. E ainda por cima não consegui formar uma boa equipe pra hoje... Se você diz que não pode ir é porque não pode. Eu sou assim, meio estúpido sempre, preciso corrigir isso...
Ela lhe sorria com amizade.
– Eu sei o que você sente. Eu também senti a mesma coisa hoje, vendo os desfiles dos integralistas. Agora vai ser necessário cada um de nós valer por dois.
– Mesmo porque os oportunistas vão nos largar. Como o Salu, hoje, quando eu convoquei êle pra tarefa. Ficou branco de medo, inventou uma irmã doente, não sei o que... um que vai torcer caminho.
– Outros virão, muitos que ainda não se haviam dado conta do perigo. E virão os melhores, os capazes de resistir aos dias ruins.
– Tomara que seja assim. Bem, eu vou indo. De qualquer jeito, três ou quatro, a gente deve fazer a tarefa. Se a gente cair, paciência, é que chegou o dia.
Tomava o velho chapéu manchado de chuva, Mariana não resistiu: ante seus olhos estava a visão dos companheiros sendo surpreendidos pela polícia por falta de quem guardasse uma esquina.
– Espere aí, vou com você...
Felizmente não ocorrera nada de mau. As ruas estavam vazias, só por uma vez tiveram de interromper o trabalho, um automóvel aparecera subitamente, mas era um carro particular. E ela regressara a pé cortando o caminho por ruas pouco freqüentadas, evitando encontros com bêbedos, com retardatários em busca de aventuras. Respirou aliviada ao chegar em casa. Durante todo o tempo que durara a pichagem, ela temera cair, assim como ao fazer caminho de volta. Pela primeira vez o receio de ser presa se fizera presente enquanto ela cumpria uma tarefa. Não era medo, era a certeza de estar cometendo uma falta e de jogar assim, por ter cedido a um sentimento pessoal, a segurança de uma ligação efetiva da direção regional.
No seu leito, ela pensa: revê as inscrições sobre as paredes das casas ricas, o nome de Prestes levantado como uma bandeira, a foice e o martelo para perturbar o sono bem alimentado dos cúmplices do golpe. Era uma bela coisa, valia a pena arriscar-se mil vezes. Mas, ao mesmo tempo, vê apagar-se o sorriso amigo nos lábios do Ruivo, vê uma severidade sem ternura na face cansada do camarada João. Sim, o que fizera fora um erro e o melhor era, na primeira vez que estivesse com um dos dois, contar-lhe, fazer sua autocrítica. O sono começava a pesar sobre suas pálpebras fatigadas. Imagens se misturavam: integralistas desfilando, patrulhas de soldados, o secretário da célula tomando o velho chapéu para sair, as letras crescendo nos muros, o sorriso do camarada Ruivo, e o rosto de João, sua voz lhe dizendo as frases adivinhadas no instante de silêncio quando naquele dia ela o deixara. Adormecendo, ela o via e seus lábios se abriram num sorriso. Sim, o melhor era contar-lhe o erro cometido, fazer sua autocrítica. “Camarada João, sou ainda uma militante sem senso de disciplina, deixando-se guiar pelos impulsos momentâneos: fiz uma burrada, fui pichar muros arriscando ser presa... Sou assim, preciso me corrigir, me educar melhor como quadro. Talvez, se eu chegar a me tornar uma verdadeira comunista, possa ser digna do amor que te tenho, tão grande que jamais o poderás imaginar sequer...”
Poucos dias após, ela se encontrara com os dois ao mesmo tempo, num edifício de apartamentos caros, no centro. Talvez fosse a residência de um simpatizante, havia quadros na parede da sala onde conversavam. João lhe dera aquele endereço como próximo ponto e quando ela chegou, êle já estava acompanhado do Ruivo. Era uma sala bem mobiliada, poltronas largas de couro, numa delas o Ruivo se afundara. Parecia pior, emagrecera nesses meses de árduo trabalho, tossia quase continuadamente. De quando em vez cuspia no lenço onde Mariana pôde enxergar um laivo vermelho de sangue. João mantinha-se de pé, andava pela sala, olhava os quadros. Balançava a cabeça ante um óleo surrealista, complicação de linhas e de cores, indecifrável. O Ruivo dissera, a voz rouca:
– Senta, Mariana.
João viera andando de junto do quadro, perguntou, a voz baixa, parando ante a poltrona onde ela se instalara:
– Como vai a senhora pichadora de muros?
– Ah! Já sabe? Eu tinha mesmo a intenção de falar nisso. Penso que foi uma besteira, uma dessas coisas que a gente faz nem se sabe por que. Me deu pena de ver a equipe desfalcada, a segurança dos outros em perigo, e fui. Quando me dei conta já era tarde, estava de pincel e piche na mão.
– Não foi uma besteira – disse João sentando-se na borda de uma cadeira, os braços sobre os joelhos, o rosto sobre as mãos. – Foi bem mais que uma besteira, foi uma grave infração da disciplina partidária. Você jogou com a segurança de toda a direção. Um comunista responsável não pode fazer uma dessas coisas que se fazem sem saber por que, como você diz. Um comunista deve saber o que faz e por que faz.
– Uma coisa é certa, camarada João: se eu fosse presa não falaria...
– Mas tem camaradas ligados a você, que vão à sua casa, que podiam não saber de sua prisão e voltar a uma casa vigiada, serem seguidos depois e servirem de pista até a direção. E na tarefa que você executa, você não pensou? Ou você imagina que existem centenas de pessoas que podem ocupar seu posto, que podem ter em suas mãos os endereços de responsáveis? Quem lhe deu o direito de arriscar a liberdade de um estafeta da direção regional? Ou você se esqueceu da sua responsabilidade?
Mariana ergueu os olhos:
– É verdade. Só agora me dou conta do erro que fiz. Muito maior do que eu pensava. Não estive à altura da confiança que o partido depositou em mim – estava certa de que a iam separar da tarefa atual, fazê-la voltar a uma base, e achava justo. Sentia-se terrivelmente consciente agora do perigo que poderia ter resultado do seu ato impulsivo. – A única coisa a dizer é que não fiz por mal, mas bem sei que isso não diminui em nada a gravidade da falta. Agora me dou conta, de hoje em diante procurarei conter meus impulsos, pensar antes de tudo no interesse do Partido. Agi como uma leviana.
O Ruivo sorriu, sua voz de frases entrecortadas na respiração difícil:
– O erro está sobretudo em você não ter pensado que, arriscando sua liberdade, estava arriscando a de um estafeta da direção. Aprenda a pensar em terceira pessoa, Mariana, é um bom método que eu emprego sempre. Quando tenho vontade de fazer qualquer coisa assim, procuro ver se eu acharia bom que outro dirigente a fizesse.
João continuou:
– A direção resolveu fazer-lhe uma séria advertência. E espera que um fato desses não se repita mais.
– Não se repetirá. E eu estou pronta a receber a advertência. É bem merecida.
Ruivo voltou a sorrir:
– Já foi feita e bem feita por João. Agora é saber ganhar a experiência do erro cometido, é assim que a gente se faz um bom comunista: aprendendo com os acertos e com os erros.
– Quer dizer que eu continuo de estafeta?
– É claro – disse João. – Ou você acha que devíamos lhe mandar pra base, buscar outro que amanhã cometesse um erro igual? Você, já o fez e agora aprendeu que não o devia ter feito, não voltará a fazê-lo. O lado positivo do seu erro foi ter feito você compreender inteiramente a responsabilidade da sua tarefa atual. Certo?
– Sim, é verdade. Agora tenho certeza que serei muito mais prudente, vou também pensar em terceira pessoa.
– Tá bem... Agora vamos ao trabalho.
Ruivo começou a falar. Mariana aproximara a cabeça para melhor ouvir sua voz quase ciciada na sala silenciosa e sentia a respiração ofegante, a doença comendo o peito do companheiro. A tosse o interrompia seguidamente, êle limpava os lábios com o lenço e Mariana voltava a ver o laivo de sangue. Ela devia se encarregar de organizar uma reunião do secretariado. Devia ir avisar a José Pedro e a Carlos, dar-lhes a data e o endereço. Mas cumpria-lhe também ir abrir a casa (uma casa desalugada, emprestada por um simpatizante), esperá-los lá.
– Se você puder fazer um pouco de café, é uma boa coisa – João agora sorria também.
O Ruivo lhe entregava a chave:
– É uma casa isolada no caminho de Santo Amaro. Talvez até a possamos alugar depois para a utilizar para a tipografia... – falava para João que respondeu com um mudo assentimento, balançando a cabeça.
Despediam-na rindo:
– Até outra vez, dona pichadora...
João apontou o quadro surrealista na parede:
– Letra em muro você faz, mas um quadro complicado como esse é que eu duvido.
Mariana aproximou-se da parede onde a tela estava pendurada, enquadrada numa larga moldura de madeira lisa:
– Eu não entendo nada de pintura, não posso criticar. Mas o que eu gostaria de saber é que coisa o pintor quis mostrar com essa complicação...
João olhou a tela mais uma vez:
– Antes de tudo êle quis não mostrar a realidade. É uma das maneiras de fazer arte contra o povo.
Ruivo teve um acesso mais violento de tosse, seu peito magro estremecia na cadeira, Mariana deixou o quadro e andou para ele, pôs-lhe uma mão nas costas.
– Já passou. Obrigado.
– Você não tem ido ao médico. Ele já me perguntou por você... Diz que assim não pode se responsabilizar pela sua cura...
– Esses dias não tenho lido tempo... Muito que fazer.
– Pense em terceira pessoa camarada Ruivo. Um dirigente do partido não tem direito a se suicidar...
– Boa – disse João. – Isso mesmo eu já lhe disse...
Ela saiu, ia um orgulho no seu peito, orgulho de ser membro do Partido, de ser companheira de luta de homens como aqueles. Mas era necessário velar sobre a saúde do Ruivo, se êle continuasse assim, a trabalhar sem descanso, a não ter tempo para ir ao médico, não duraria muito.
Na sala, os dois dirigentes se olhavam sorrindo.
– Boa menina, disse Ruivo. Comportou-se bem ante a crítica.
– Muito boa, sim – João sentou-se em frente ao camarada, animou-se com o sorriso chegado dos seus lábios. – Tão boa que eu, se resolvesse casar, lhe pediria para casar comigo...
– E por que não se resolve?
– Complicado. Esses não são tempos pra casar.
– E por que não? O que me vale ainda é ser casado, senão já tinha batido a bota há muito tempo... É Olga quem me obriga a comer, chegue a que hora chegue encontro comida, é ela quem me obriga a ir ao médico.
– De qualquer maneira para dois se amarrarem é preciso que os dois estejam dispostos... Não basta um.
O Ruivo espantou-se:
– E você ainda não percebeu que Mariana não tem olhos senão para você? E você tem coragem de se dizer observador...
– Você crê?
Mas a conversa não continuou porque nesse momento a campainha da porta retiniu e João foi abrir, dizendo, ao deixar a poltrona, como num aviso:
– O homem está aí...
Saquila entrou, alto e um pouco calvo, os óculos sem aro escondendo uns olhos fugidios, o cachimbo na boca. Apertou a mão do Ruivo, João vinha voltando da porta. Saquila ainda de pé, tirava uma bolsa de fumo, começava a limpar e a encher o cachimbo. O Ruivo falou:
– Saquila, você que é entendido nessas coisas de literatura e arte, explique a João o que significa aquele quadro na parede de frente... Ele está embasbacado de admiração mas não compreende nada.
Saquila dirigiu o olhar para o quadro, com o dedo polegar apertava o fumo no cachimbo:
– Esse é um quadro de um surrrealista inglês, Cícero trouxe da Europa no ano passado. Possui uma grande qualidade plástica, e um colorido original. Pintor de grande poder técnico...
– Mas o que é que o pintor quis mostrar no quadro? – João repetiu a pergunta de Mariana.
– Ah! Trata-se da reação do artista diante de um domingo de festa religiosa. Todo o tumulto de boas e más emoções que a visão da pequena burguesia lhe provoca...
– Complicado, velho. Aqui o que vejo são manchas e linhas, mais nada, por mais esforço que faça...
– Mas, se são as emoções do artista refletidas no jogo dessas cores e dessas linhas, aparentemente sem harmonia. Você não sente a angústia, a solidão, os instintos primários, o medo telúrico, e o desejo de liberação misturados no quadro?
– Não sinto nada disso, absolutamente nada e, lhe digo mais, não creio que ninguém sinta, nem você, nem Cícero, nem o pintor...
– Bem é necessário um gosto educado...
– Não, velhinho, o que é necessário é ter apodrecido por completo para gostar realmente de uma coisa dessas. Só que eu não creio que a maioria de vocês goste realmente. É moda, vocês vão na onda para não parecer atrasados...
O Ruivo apontava outro quadro:
– E aquele, mais malfeito que desenho de menino de oito anos? Aquela rua ali com uns garranchos representando homens...
Saquila tirava o cachimbo da boca:
– é um dos melhores óleos de uma primitiva brasileira, Sibila. Uma beleza, de uma sensibilidade poética extraordinária...
– Meu velho isso pode ser tudo que você quiser, só que não é pintura. Pelo menos pintura para meus olhos de operário...
– Meu caro, você é um reacionário em arte, um acadêmico sem gosto, não percebe a força revolucionária da arte moderna.
– Pode ser. Mas, de minha parte, eu penso outra coisa. Penso que você confunde moderno com revolucionário e assim quer fazer passar como revolucionária essa pintura que é produto de uma burguesia podre. Jamais a classe operária pode aceitar esses quadros. A classe operária é sã, esses quadros são enfermiços; a classe operária está voltada para a vida, esses quadros são fugas da vida; a classe operária possui sentimentos limpos, esses quadros são frutos de sentimentos sujos...
O Ruivo interrompia a longa resposta que Saquila iniciava com um gesto onde revelava todo o desprezo que lhe mereciam as considerações de João:
– Essas afirmações primárias...
– Seu Saquila, vamos deixar para outra ocasião essa discussão sobre pintura. Temos coisas mais sérias a conversar. Infelizmente não e só em matéria de pintura que há divergências entre nós...
João sentenciava:
– Essas são reflexo das outras...
– Por isso estou aqui. Aliás, há muito que desejo essa conversa. E agora, depois do golpe de Estado, ela me parece essencial.
– A nós também...
O Ruivo tomou a palavra. Sua voz rouca e lenta, devido à dificuldade da respiração, se fazia aos poucos apaixonada. Acusou Saquila de atividades divisionistas, de agir de forma antipartidária, levantando uma campanha contra a direção no seio das bases, criando dificuldades para o bom cumprimento das tarefas, sabotando-as em última instância já que criava a confusão entre os companheiros. A linha política a ser seguida na campanha eleitoral tinha sido amplamente discutida antes de ser aprovada pela direção nacional do Partido. Aprovada que fora, cumpria aos militantes levá-la à execução. E se algum tinha ainda o que discutir, devia fazê-lo nos organismos próprios e não sair numa atividade grupista a recrutar opositores, em cochichos, em reuniõezinhas privadas, onde até a vida particular dos camaradas era objeto de intrigas e infâmias. E agora, nesses primeiros dias após o golpe, sentia-se um recrudescimento da atividade desse grupo. Em vez de ajudarem os companheiros a levantar a luta necessária contra o Estado Novo, estavam apontando o golpe como o resultado de uma linha política falsa do partido, dificultando a pesada tarefa dos companheiros da direção, alastrando um pessimismo perigoso entre certas bases do partido. E tudo indicava que Saquila era o centro de todo esse grupo, sua figura dirigente. O camarada Saquila era membro do Comitê Regional, tinha uma responsabilidade de direção, sua palavra pesava ante os companheiros de base, como explicava ele sua atividade de nítido caráter trotskista?
Saquila não explicou, negou. Realmente, disse, não estivera de acordo com a linha política a seguir na campanha eleitoral. Era por um compromisso com as forças de Armando Sales. Acreditava possível ter sido evitado o golpe se tal aliança tivesse se efetivado, O grupo de políticos paulistas era, ,a seu ver, o mais democrático do país, possuía uma certa tradição liberal não desprezível, e se os comunistas tivessem participado da campanha, esse grupo teria se reforçado, poderia ter feito frente a Getúlio. Isso êle pensava, mas desde que a direção nacional aprovara a linha política resultante da discussão no Partido, êle não mais a combatera. Nenhum trabalho fizera contra ela no seio dos organismos partidários, e se alguma vez haviam conversado, êle e outros camaradas que pensavam como êle, tratava-se de bate-papos sem importância, simples comentários casuais. Estava disposto a discutir sua atuação na primeira reunião do Comitê Regional e mesmo a autocriticar-se, se lhe mostrassem um erro seu concreto. Mas sabia não ter nada de que autocriticar-se, recusava-se veementemente a aceitar a classificação de trotskista. Falava numa torrente fácil de palavras, um certo brilho nas frases, limpando ao mesmo tempo o cachimbo, lançando olhadelas de través ora para João, ora para Ruivo. Concluiu dizendo estar disposto a discutir o assunto, mas não assim, numa conversa, com dois elementos do secretariado. Ou bem ante o Comitê Regional ou, pelo menos, diante do Secretariado completo e ampliado dos membros do regional que se encontrassem na capital do Estado.
Tirava fumo da bolsa, enchia o cachimbo. João e Ruivo se entreolharam. Saquila acrescentava:
– O que eu creio é que devemos discutir urgentemente, e foi para isso que pedi essa reunião, é a posição a tomar agora. Eu tenho um assunto concreto a transmitir ao partido: os ‘armandistas” estão se preparando para um levante, coisa séria, há muita gente do Exército comprometida. Vão liquidar o Estado Novo e convocar outra vez as eleições... Eles me sondaram para saber o que o Partido pensa... Eu acho...
– A direção nacional já está a par do assunto, já o estudou e já decidiu sobre ele...
– Quando?
– O material chegou hoje. Amanhã começará a ser levado ao conhecimento dos diversos organismos.
– E que diz?
– A direção alerta o partido para que não se deixe envolver em aventuras golpistas, cujo resultado será reforçar apenas a ditadura. E traça o caminho a seguir na luta contra o Estado Novo: agitação greves, desmascaramento de Getúlio nos sindicatos e entre todos os trabalhadores, negociação para a formação de uma frente democrática que impeça o estabelecimento de um regime fascista...
– Um regime fascista já está estabelecido...
– Há uma constituição parafascista mas ela será cumprida ou não na medida da luta popular contra ela. O que há, em verdade, é uma ditadura sul-americana, onde sobram as contradições, algumas delas já mais do que agravadas, como entre Getúlio e os integralistas. Contradições interimperialistas, contradições entre os grupos políticos nacionais. Nós devemos, em vez de nos metermos nesse golpe armandista, bem capaz de conservar a constituição de Getúlio se chegasse a vencer, é tratar de agrupar todos os elementos democráticos, à base de um pequeno programa mínimo: liquidação da constituição fascista, volta à constituição de 34, anistia, luta contra o integralismo. E essa frente só pode ser realizada num processo, à proporção que cresçam as lutas de massa contra a ditadura. – João calou-se.
– Acho tudo isso vago e falso. Frente democrática com quem? Os elementos de Zé Américo eram um aglomerado sem sentido. A maioria deles está apoiando Getúlio. Restam os “armandistas”. Com esses é possível marchar. Mas eles estão sendo muito mais realistas que o Partido, eles estão preparando a única coisa que pode liquidar Getúlio: um golpe armado. E se nós não participamos dele, então é que queremos mesmo desaparecer da vida política... A oportunidade é única. Volto a repetir que os homens estão bem articulados. Há vários generais desgostosos com Getúlio, outros estão impressionados com a posição do Exército devido ao golpe, Juraci Magalhães está sendo trabalhado, Flôres da Cunha entrará pela fronteira do Rio Grande... É uma coisa que tem base, um golpe rápido e decisivo. E não todo esse negócio de luta de massas, greves, e ainda por cima agora que greve é crime previsto na constituição, boa coisa para material, para artigos na “Classe” mas sem nenhum futuro...
O Ruivo fitava o jornalista:
– Há muito tempo que não ouço tanto absurdo junto: o justo é o “putsch” e não a luta de massas, o certo é ir na rabada da burguesia e não colocar a direção da luta na mão da classe operária, substituir os mineiros e os gaúchos por Flôres da Cunha, os operários de São Paulo por Armando Sales e assim por diante. Você, Saquila, é um homem que leu, Marx, Engels, “O Capital” completo, obras de Lenin e Stalin, tudo que pôde arrebanhar de marxismo pelas livrarias e o que manda buscar no estrangeiro. Leu e não entendeu nada, meu velho. Indigestou. É o mal de vocês, intelectuais metidos num gabinete a devorar marxismo, distante das massas. Em vez de se alimentarem de teoria para melhor agir na prática, vocês indigestam e depois só fazem besteira... A decisão da direção é justa, esse golpe armandista vai cair no vazio, o único a ganhar com êle é Getúlio. A gente deve fazer é tudo para evitá-lo. Está aí um bom trabalho para você: conversar com a gente honesta metida nisso, não devem ser muitos, mas deve haver alguns, e convencê-los do que há de errado e perigoso em tal política...
– Meu caro, não é com ironias que você me convence. Eu vou deixar de lado todo o seu sectarismo estreito contra os intelectuais para reclamar apenas uma coisa: ir ao Rio para discutir com a direção nacional a sondagem dos armandistas. Estão de acordo?
– É preciso consultar o Rio, antes. Saber se a direção nacional quer discutir com você. Podemos consultar.
– Eu peço que o façam o mais rapidamente possível...
João falava:
– Uma última coisa. É o problema da oficina gráfica. Você é o responsável por ela. O secretariado resolveu mudá-la de casa. A atual já não oferece segurança.
– Por que?
– Está num mau lugar, já foi objeto de comentários na rua, o camarada que está lá já foi visto por muita gente... É necessário mudá-la. Nós já temos uma casa em vista... Você deve dizer ao camarada para começar a desmontar a impressora e a empacotar os tipos...
– Está bem, vou tratar disso. E a outra casa, onde é?
– Ainda não está definitivamente acertada. Depois você saberá. E vamos mudar também de tipógrafo. Estamos buscando outro camarada. Esse já está enterrado em cima dessa máquina, há mais de um ano. Já deve estar verde de tanta falta de sol...
– Eu posso me encarregar de procurar um outro.
– Certo, procure por seu lado, nós procuraremos também. Depois veremos quem escolher.
Depois que êle saiu, João andou mais uma vez até o quadro surrealista:
– Compreende, Ruivo: “putsch” e não luta de massas, direção da burguesia e não do proletariado... Não há diferença entre o que êle pensa em política e o que ele pensa em arte. Ao contrário, há uma perfeita harmonia: trotskismo e surrealismo são formas de luta da burguesia em planos diferentes. Essa coisa de querer colocar a arte acima de crítica da classe operária é um absurdo. Seria como admitir que o marxismo é válido para certas coisas e não para outras. Eu não entendo de pintura, velho, mas sou um operário e o marxismo que tenho lido não me indigestou... Eu o digiro direitinho no trabalho do Partido.
O Ruivo balançou a cabeça:
– O importante é fazer os militantes operários estudarem para não serem envolvidos por esses intelectuais que trazem ideologias estranhas ao Partido.
– Um dia que eu tiver tempo vou ler o que existe sobre esse troço de arte. É necessário se quisermos ajudar a turma honesta mas desorientada, os jovens...
O Ruivo, porém estava pensando era no problema político, a conversa com Saquila acabara de lhe dar toda a consciência do perigo, que aquele grupo representava para a existência mesmo da região do Partido:
– É preciso liquidar com urgência esse foco trotskizante. Se não essa gente vai nos dar dor de cabeça. Esse Saquila, no caminho que vai, pode chegar a tudo.
– Antes do mais, mudar a tipografia...
– Bem, vou saindo. Quero ver se ainda alcanço o médico no consultório. Boa menina, essa Mariana. Parabéns...
– Deixe dessa pilhéria.
João ficou só, fazendo hora para não sair em seguida ao outro. Andou do quadro surrealista, mais estranho ainda agora, quando as primeiras sombras do crepúsculo penetravam na sala, para o da pintora inventada por Shopel e Paulo:
– E têm coragem de chamar isso de arte...
O crepúsculo chegara lentamente chamado pela voz dos sinos tocando a ave-maria. Na rua, as luzes começaram a se acender. A estas horas, pensou João, Mariana estaria chegando ao distante subúrbio onde morava Zé Pedro, talvez jantasse lá antes de ir em busca de Carlos em seu esconderijo. Sorriu à lembrança da moça, como seu rosto estava sério na hora da autocrítica... Naquela noite do golpe até êle, João, tivera de lutar contra si mesmo para não ir pichar paredes. Boa menina, coração valente.
Na cidade estrangeira, antevista da janela do hotel, Apolinário se debruça ansioso sobre os jornais comprados na estação. O golpe de Estado dado no Brasil já não ocupa as manchete; afastado pela história de um célebre arqueiro de futebol que fugira do país, num avião, para jogar numa equipe da Venezuela.
Lê avidamente os telegramas: o ex-senador Venâncio Florival dirigira-se a Vargas apoiando o novo regime e numa entrevista aos jornais declarara ser o combate ao comunismo a necessidade primordial do país. Apolinário torceu o rosto numa careta de repulsa ao ler o nome do grande latifundiário, cujas histórias corriam pelos campos de Mato Grosso e Goiás: os assassinatos de camponeses, a violência contra os que se lhe opunham, sua vontade sendo lei sobre enormes extensões de terra. Outro telegrama falava de divergências entre Getúlio e os integralistas. A ação Integralista tinha sido interditada como os demais partidos e o General Newton Cavalcanti, cujas ligações com o partido fascista eram notórias, deixara o comando militar da cidade do Rio de Janeiro. No entanto, acrescentava o correspondente de uma agência americana, o novo Ministro da Justiça tentava ainda uma fórmula que conciliasse Vargas com os integralistas. Segundo esse correspondente, o Ministério da Educação linha sido oferecido a Plínio Salgado e a Ação Integralista, desaparecendo como partido político, se transformaria numa grande organização paramilitar, sob o rótulo de sociedade esportiva. Outro telegrama anunciava a libertação de alguns políticos presos no dia do golpe e a chegada ao Rio, para voltar às fileiras do Exército, do ex-governador do Estado da Bahia. Um pequeno despacho, em tipo menor num canto da página, dizia da prisão de comunistas, no Rio, quando pichavam ruas. Um processo, o primeiro baseado na nova Constituição, fora instaurado contra eles. E, em três colunas, em negrito, saltando da pá gina, o telegrama sensacional: numa entrevista exclusiva à United Press, Vargas traçava a linha da política internacional do seu novo regime. Falava no panorama confuso do mundo e afirmava que seu governo continuaria fiel à amizade tradicional entre o Brasil e os Estados Unidos, garantia da segurança do continente nesses tempos de ameaças de guerra na Europa. Fazia, em termos entusiásticos, o elogio de Roosevelt e se referia à dívida do Brasil para com os capitais e os técnicos norte-americanos, fatores importantes do progresso brasileiro. Terminava classificando o novo regime por ele instaurado, como uma democracia de tipo mais elevado, onde reinaria um clima de cooperação entre patrões e trabalhadores e onde desapareceriam as agitações extremistas, perigosas para a saúde da Pátria. Num comentário à entrevista, a agência telegráfica concluía serem as palavras de Vargas uma concludente resposta aos receios do Departamento de Estado e dos meios financeiros da Wall Street, temerosos no primeiro momento de uma falada adesão do Brasil ao pacto antikomintern, de uma ligação profunda com a política germânica e de uma colaboração com os capitais nazistas. A entrevista de Vargas viera desmentir tais rumores e esperava- se a todo momento que os Estados Unidos reconhecessem o novo regime político brasileiro apesar do seu caráter autoritário e antidemocrático. Num jornal católico, Apolinário leu ainda um editorial comentando o golpe. O jornalista analisava a nova constituição e, se bem reconhecesse que certos artigos e parágrafos poderiam à primeira vista chocar a mentalidade democrática do povo uruguaio, não podia deixar de fazer o seu elogio pois tratava-se de defender a integridade moral, econômica e política do Brasil contra a nefasta ação dos comunistas; e o mundo havia chegado a um momento onde não era possível continuar, em nome de um liberalismo democrático caduco, dando possibilidades aos “cúmplices de Moscou” para realizar sua obra satânica de desagregação social. O editorial apresentava o novo regime brasileiro como um modelo a ser seguido pelos demais países do continente, se eles pretendessem realmente salvar a civilização cristã da ameaça bolchevique. Bastava elevar os olhos para os acontecimentos da Espanha, para ver o perigo. Proclamava Vargas um grande homem, exemplo para os políticos latino-americanos, e garantia-lhe a aprovação de Deus: “do Supremo Artífice do Universo que don Vargas deseja salvaguardar com a Constituição estadonovista”.
Apolinário fez outra careta ao findar a leitura do editorial e murmurou: “cínicos”. Deixou os jornais sobre a cama, olhou pela janela a rua movimentada no começo da noite. Chovia, uma chuva fina e persistente. Que companheiros teriam sido presos no Rio? Como iria evoluir a situação brasileira, em que terminaria a luta surda entre Getúlio e os integralistas? Como iria o Partido responder ao golpe, que novas ações empreenderia? Deixou a janela e seus pensamentos para se afundar agora na leitura dos telegramas sobre a guerra de Espanha. Leu sobre batalhas, sobre movimentos de tropas, a impávida defesa de Madrid. Franco avançava, ao que parecia. No entanto, os republicanos resistiam bem, apesar dos oficiais e soldados alemães e italianos, das armas enviadas por Hitler e Mussolini. Ah! seu desejo era chegar quanto antes à Espanha, sentir-se em meio à áspera batalha, envolvido pelo cheiro da pólvora, cercado de soldados. Ali, em Montevidéu, naquela sua primeira noite da cidade, sem ter estabelecido ainda nenhum contacto, sentia-se solitário e inquieto. Já não estava no Brasil e ainda não chegara à Espanha. Os acontecimentos do Rio e de São Paulo já não eram seu assunto imediato, os de Madrid e Barcelona ainda não o eram. “Um comunista, pensava, pode cumprir o seu dever de revolucionário em qualquer parte do mundo”. Mas, ali, êle estava de passagem apenas, indo de um para outro campo de batalha. E a situação lhe parecia tão tensa em toda parte, especialmente no Brasil e na Espanha, que a espera em Montevidéu dava-lhe a impressão de um tempo perdido, de um desperdício. Tinha pressa de combater, a imobilidade bulia-lhe com os nervos. Como ficar entre as notícias, quando os camaradas eram presos no Brasil, quando os camaradas morriam na Espanha sob balas nazistas? Amanhã êle saberá o dia da partida, a data da saída do navio. Amanhã já não será um falso jornalista brasileiro, terá um novo nome e outra profissão. Mas nessa noite de chuva, seu pensamento está voltado para o Brasil, para a violenta reação levantada com o golpe, para as dificuldades maiores surgidas em frente ao Partido. Gostaria de ter um companheiro com o qual conversar, alguém a cujo lado pudesse andar pela cidade trocando opiniões sobre a situação brasileira, sobre as perspectivas da guerra de Espanha. Sente uma densa solidão, chegando da cidade desconhecida para o quarto anônimo de hotel. O melhor, pensa, é sair para jantar.
Comeu num modesto restaurante onde discutiam espanhóis entre gritos exaltados. Escutou as trocas de argumentos, sorriu um sorriso de apoio a um homem baixo, de boina, que classificava Franco de “imundo traidor”. A discussão era tão violenta que ameaçava degenerar num conflito. Um franquista gordo fechava o punho no rosto do espanhol baixo e Apolinário pensava: “se êle tocar no republicano, eu lhe mostrarei como se trata um fascista, começarei aqui mesmo a minha luta espanhola”. Mas, em seguida se deu conta da sua impossibilidade de intervir, na discussão ou no conflito, não lhe era permitido, antes de chegar à Espanha, envolver-se em nada capaz de interromper sua viagem. Se um conflito começasse entre os espanhóis republicanos e franquistas, naquele restaurante, o que êle tinha a fazer era afastar-se rapidamente, antes da chegada da polícia. Mas não estalou nenhuma luta, apenas as pragas se fizeram mais intensas, enquanto o homem baixo repetia as palavras de Passionária, num grito apaixonado e vitorioso:
– No passarán! Los falangistas no passarán!
Toda a cooperação que lhe pôde dar Apolinário, foi um sorriso de ãnimo e de encorajamento. Pagou a conta e saiu sob a chuva para as ruas iluminadas. Olhava as vitrinas, os transeuntes abrigados sob guarda-chuvas, os bondes e ônibus. Onde seria a sede do Comitê Central do Partido uruguaio, êle gostaria de passar em frente a ela, sentir sua presença solidária nessa noite abandonada. Mas não sabia onde ela ficava, não sabia tampouco quais, entre esses homens apressados sob a chuva, eram companheiros, de coração batendo pela mesma causa da liberdade do homem. Não se sentiria certamente em solidão se não fosse estar o Brasil, varrido por um golpe de caráter fascista, mais além da fronteira próxima a chamá-lo com a força do sofrimento desabado, das ameaças pesando sobre os camaradas, das prisões cheias com os bravos de 35, da prisão onde estava Prestes. Sua liberdade, provisoriamente inútil nas ruas de Montevidéu, pesava-lhe como um fardo. Quem sabe se não se distrairia com um filme? Havia enxergado, ao vir para o restaurante, o atraente anúncio de uma película francesa. Dirigiu seus passos para a grande avenida onde ficava o cinema. Mas um quiosque de jornais, exibindo, através dos vidros, cartões postais com vistas da cidade, interrompeu seu caminho. Durante algum tempo folheou os postais, escolhendo os mais belos, comparando-os uns com os outros. Decidiu-se por dois, comprou também selos, ali mesmo escreveu os endereços e umas palavras sóbrias de lembrança para sua irmã e para Mariana. Assinou num rabisco, a irmã e a camarada adivinhariam facilmente de quem provinha essa palavra de carinho. A irmã se sentiria alegre ao sabê-lo em terras estrangeiras, longe das grade. das prisões cariocas, liberto da ameaçadora vigilância dos policiais, sem poder ser atingido pela sentença do processo a julgar-se em breve. A camarada paulista sentir-se-ia ela também alegre ao sabê-lo do outro lado da fronteira, em caminho da Espanha. Para ela, naqueles dias de atmosfera carregada com o golpe de Estado, o cartão talvez servisse igualmente como um estimulante, um aperto de mão em meio à luta dura.
Já não tinha vontade de entrar no cinema. Buscava uma caixa de correio onde colocar os postais. Pingos d’água molhavam seu rosto, êle subia a Avenida 18 de Julio, percebeu o curioso olhar lançado por uma mulher abrigada num portal, cujos olhos o haviam medido de alto a baixo, mas seguia com seus pensamentos, com seu distante Brasil sofrido, sozinho em meio ao movimento intenso, apesar da chuva fina. Assim demorou a perceber o rumor vindo de uma praça adiante, um rumor de aplausos e de “vivas”. Mas o ruído crescia à proporção que êle avançava pela avenida e terminou por prender sua atenção. Apressou o passo, parecia entender no barulho das vozes elevadas um nome familiar. Desembocou na praça, sobre um comício. Da sacada de um edifício, um orador falava e o Brasil era o tema do seu discurso. Apolinário abriu caminho entre a multidão concentrada sob guarda-chuvas, aproximou-se.
Era em frente ao “Ateneo” de Montevidéu. Milhares de pessoas se haviam reunido, apesar da chuva persistente esfriando a noite, para declarar sua solidariedade aos antifascistas brasileiros naquela hora difícil para eles, quando uma ditadura inspirada no fascismo se abatia sobre o seu país. Os oradores se sucediam, operários e intelectuais, representantes de partidos e de organizações de massa, diziam da significação do golpe getulista, do perigo por êle representado para todas as forças democráticas do continente latino-americano.
Diziam da confiança do povo uruguaio no povo brasileiro, nos seus líderes antifascistas e, sobretudo, em Luís Carlos Prestes. Quando o nome mágico do prisioneiro era pronunciado, um clamor incomensurável de aplausos se elevava, e a multidão repetia num ritmo afirmativo:
PRES-TES – SI... VAR-GAS – NO
Apolinário estava imóvel como uma estátua, como se tivesse os pés ligados à terra por uma camada de chumbo. Todas as palavras dos oradores, as palmas que as entrecortavam, os brados de apoio às frases mais fortes, e aquele nome de Prestes repetido por milhares de bocas, eram uma resposta à sua inquietação de antes, àquela perdida solidão. Não, nunca estivera e nem estaria só, não possuía o direito de jamais se julgar em solidão: em torno dele, onde quer que estivesse, estariam centenas e milhares, haveria sempre a mão de um companheiro para apertar a sua mão. E repetia, sem o sentir, com a solidária multidão:
PRES-TES SI! VAR-GAS NO!
Nenhum comunista estava sozinho em meio à batalha, mesmo quando de passagem numa cidade estrangeira, indo de um campo de luta a outro campo de luta. Nenhum estava só, perdido e abandonado, nem mesmo na prisão mais incomunicável, nem mesmo no cárcere mais imundo, separado dos demais como perigosa fera. Em torno deles, rodeando-os de militante solidariedade, estavam milhões e milhões de homens sobre a terra, a defendê-los e a ajudá-los. O ex-oficial sentia-se como alguém a quem houvessem rasgado um abscesso, numa alegria de convalescença subindo no seu peito, aliviado de toda a dor e de toda a inquietação. A chuva fina penetrava através da fazenda da roupa mas êle não sentia o frio, um calor de primavera subia do seu peito para os olhos, enevoando-os de emoção. Ao seu lado um operário de barba rala fez um aceno, convidando-o a abrigar-se sob o seu guarda-chuva. Apolinário sorriu agradecendo, se colocou ao lado do companheiro desconhecido, deixou que a voz rolasse proclamando o nome bem-amado de Prestes, deixou que rolasse a obstinada lágrima.
Viu depois a multidão confiante deixar a praça, dissolver- se nas ruas e na avenida. Em sua frente passaram os cartazes, “Abajo el Estado Novo”, “Anistia para PRESTES”, “Libertad para el Brasil”, as faixas, os retratos dos líderes, um de Prestes com longas barbas, do tempo da marcha da Coluna, os homens partindo sob a chuva. Ficou ainda largo tempo na praça diante da janela de onde os oradores haviam falado. Dentro de alguns dias estaria na Espanha, de outro lado do mar, e lá defenderia também o povo brasileiro, os companheiros presos, o seu partido comunista. Em qualquer trincheira que se encontrasse, sustentando um combate contra o fascismo, estaria cumprindo seu dever de comunista e também seu dever de patriota, êle o compreendia agora sentindo ainda ressoar nos seus ouvidos o clamor da multidão uruguaia, na sua mensagem ao povo brasileiro:
Prestes Si! Vargas no!
Andou para o hotel, via os transeuntes nas calçadas, olhava-os com simpatia, enxergava as vitrinas iluminadas, os bondes cheios, e sentia vontade de dizer a essa gente simples da rua, num agradecimento: “irmãos, irmãos...” Não estava mais sozinho, era um entre milhões.
O rio corria num ímpeto de águas barrentas, as piranhas vorazes encrespavam-lhe o tortuoso dorso de serpente. Barrancos, troncos de árvores, corpos apodrecidos de animais, folhas secas e coloridas penas de aves, viajavam no rumo do mar através da floresta, arrastados pela correnteza. Pássaros de variadas famílias trinavam nas árvores copadas onde saltavam ágeis macacos sob o grito estrídulo dos periquitos, araras, papagaios. Flores de rara beleza nasciam nos parasitas sobre os troncos, orquídeas de incrível colorido, e flores do campo, vermelhas, azuis, amarelas, pintalgadas, se alastravam por entre a selva fechada em sombras úmidas. Cogumelos monstruosos nasciam e cresciam em alucinante rapidez sob o vôo das mariposas de todas as cores, algumas de um azul sombrio, quase negro, outras de um azul celeste como um céu sem nuvens. Animais diversos vinham da selva beber nas margens do rio: porcos-espinhos e antas, cutias rápidas e assustadiças pacas, veados de elegante caminhar, serpentes prateadas de agudos dentes venenosos, o temido jaguar de imprevisível salto, de mortais garras assassinas. Na desembocadura dos pequenos afluentes, os crocodilos esquentavam sol, a enorme boca aberta fechando-se sobre os peixes inocentes. Uma vida de começo do mundo se desenvolvia sob o sol ardente, por entre o intrincado dos cipós ligando as árvores no quase desabitado Vale do Rio Salgado.
Uma vez que outra, muito raramente, uma primitiva canoa, cavada num tronco de árvore, subia o rio, assustando pássaros e feras, acordando os crocodilos preguiçosos, fazendo correr loucamente nos troncos, numa desabalada fuga, os curiosos macacos irrequietos. De longe, eles atiravam cocos de palmeiras no rumo da audaz embarcação como para dizer-lhe que jamais voltasse a transitar naquelas paragens perigosas. Os pássaros silenciavam seus melodiosos cantos, os jacarés desapareciam sob a água, os sapos mergulhavam, o tropel fugitivo dos veados se perdia na selva, as cobras se enroscavam preparadas para o peçonhento bote. Só as piranhas, ávidas de sangue, saltavam em torno à canoa, em cardumes infinitos. Em geral o caboclo cismarento que conduzia o remo nem levantava o olhar para o repetido espetáculo. Ia desviando sua embarcação dos troncos que desciam, evitando a proximidade perigosa dos crocodilos.
Um dia, no entanto, nos fins do ano de 1936, uma canoa subiu o rio levando um homem para o qual aquela visão era nova e envolvente, que não podia desprender os olhos da floresta misteriosa, das flores magníficas, da escura testa escamosa dos crocodilos. Mesmo agora, quase um ano depois de quando por ali passara pela primeira vez, Gonçalão ainda sente aquela sensação de imensidade, de invencível poder, transmitida pela floresta e pelo rio. Sua rápida canoa já explorou boa parte deste rio, sua carabina de caça já foi muitas vezes disparada no meio da selva sobre as antas e os veados. Seus olhos já se habituaram a distinguir entre as cobras, as venenosas e as sem veneno, seus ouvidos aprenderam a conhecer de longe o passo sutil do jaguar. Ainda assim, a cada dia descobre algo novo e belo ou terrível nesse mundo desconhecido onde se esconde da polícia. Ali plantou pequena roça, mandioca e milho, desbravando um pouco da terra na margem do rio. Do distante universo erguido no litoral, há muito que ele nada sabe. Até o fundo daquela floresta virgem não chega a repercussão da vida. Bom abrigo para se esconder um homem condenado a quarenta anos de prisão, dez como extremista e chefe de revoltosos e trinta como assassino.
Morreram alguns soldados da polícia militar, é bem verdade, mas Gonçalão não sabe mesmo se algum morreu de tiro disparado por êle. No entanto, o condenaram como se ele os tivesse matado a todos, como se houvessem tombado em emboscada e não numa luta contra pobres índios indefesos.
Aquele epíteto de “assassino”, com que a justiça o marcara, não lhe faz mossa. Se alguém saísse de cabana em cabana, nas margens do rio, pelas pequenas roças perdidas, entre os caboclos impaludados, a perguntar se ali se escondia um temível criminoso, um homem de talhe gigantesco, de braços como grossos ramos de árvore, de pesadas mãos calosas, de bronzeada cor de cobre, lhe respondiam existir certamente por ali, cultivando uma rocinha de milho e mandioca, um gigante assim, mas esse era um pouco médico e um pouco enfermeiro, sabia ler e escrever, entendia de raízes e folhas, era de uma bondade sem tamanho, incapaz de fazer mal a uma formiga, com certeza não era êle o procurado assassino. Chamavam-no seu José, nunca lhe haviam perguntado seu sobrenome, alguns o designavam, nas conversas entre vizinhos distantes que se escondiam nas caçadas, pelo apelido de “Amigão”, palavra freqüente em cada frase de Gonçalo, com a qual êle se dirigia a conhecidos e desconhecidos. Quando alguém se referia ao “Amigão” todos sabiam que êle falava do homem solitário no extremo do Vale do Rio Salgado. E era certo que, se a polícia um dia adivinhasse estar ele escondido ali e viesse buscá-lo, todos os caboclos da região se juntariam para defendê-lo. Naquele ano de permanência na floresta, Gonçalão se fizera respeitado e querido por todos.
Não demorava longo tempo na sua roça. Tomava da canoa e ia de plantação em plantação, cuidando dos doentes, recomendando tisanas feitas com raízes e folhas, aprendidas com os índios, ajudando os caboclos a derrubar troncos e a construir cabanas, caçando com eles, tentando ensinar-lhes a ler, falando-lhes de outros mundos onde diferente era a vida dos que labutavam sobre a terra. Quando êle aparecia na sua canoa era saudado aos gritos pelos habitantes da plantação e vinham homens e mulheres, crianças empapuçadas e obesas, esperar a embarcação. Os caboclos que tinham filhas em idade de tomar marido, se entreolhavam numa rivalidade esperando cada um ser a sua filha a privilegiada com a escolha de Gonçalão. Ele, porém, trazia uma aliança de noivado num dedo da mão esquerda, e lembrança de gracioso rosto moreno no coração, e parecia não desejar levar mulher para sua cabana de madeira à margem do rio.
Gonçalão sabia que mais além do Vale, do outro lado da montanha, se estendiam os campos de pastagens das fazendas de gado, as plantações, as casas de colonos e trabalhadores. E algumas vezes se aventurou até lá apesar do perigo, até essas terras pertencentes ao célebre Senador Venâncio Florival, cujo nome fazia tremer populações inteiras. Foi assim que iniciou em meio aos camponeses da fazenda um trabalho partidário, apesar de se encontrar inteiramente desligado de qualquer organismo, perdido na floresta. Tinha sido uma decisão dos companheiros: êle devia desaparecer sem deixar rastro, ficar durante largo tempo escondido em qualquer remoto lugar, era impossível guardá-lo nas cidades, as policias de todos os Estados o procuravam e a ordem era matá-lo se o encontrassem. Isso o fazia inútil para qualquer tarefa e ao mesmo tempo uma pesada carga para o Partido. Ele compreendeu e atravessara, numa espantosa caminhada, o sertão e as montanhas, o rio e as matas virgens até atingir o Vale do Rio Salgado, onde nenhuma polícia poderia imaginá-lo nem sonharia vir buscá-lo.
De quando em vez um jornal da Capital da Bahia, recordava o seu nome, apontava-o como responsável da mais recente agitação política, alguns afirmavam se encontrar êle no grupo de cangaceiros de Lampião, outros diziam ter sido êle visto em pequenas cidades do interior. Todas as vezes que faltavam notícias sensacionais na imprensa, os redatores recordavam Gonçalão e surgia nos títulos a pergunta ao chefe de polícia: “Onde andará José Gonçalo?”. O chefe de polícia se explicava numa entrevista: as buscas continuavam, não só na Bahia mas em todo o país, a prisão do “bandido” era coisa de mais dia menos dia. Mas só um homem em todo o Brasil sabia onde êle se encontrava: era o camarada Vítor, do secretariado do Nordeste, responsável partidário na região da Bahia. Fora Vítor quem lhe indicara no mapa o vale longínquo:
– Isso é quase desabitado. É uma região riquíssima, ainda há pouco li sobre ela um artigo numa revista americana. Os americanos não tardarão talvez a estender as garras sobre ela. Há manganês sobrando por aqui. Por que você não vai esperá-los aí, antes que eles cheguem? Eles ou os alemães, estes também estão interessados.
Gonçalão mediu com o dedo grosso a distância no mapa:
– É uma caminhada...
Riu seu riso de bom gigante;
– Amanhã mesmo me afundo pra lá.
O julgamento do seu processo linha terminado, a sentença havia sido publicada, quarenta anos de prisão, êle rira constatando num espanto:
– Tenho trinta e dois, se cumprir quarenta de cadeia, quando sair serei um velhinho de bordão...
– Se eles te pegam, te matam para dar exemplo. Essa luta dos índios foi o primeiro movimento sério contra os latifundiários no Brasil e eles têm medo que a coisa se reproduza.
Por vezes, em meio aos caboclos do Vale do Rio Salgado, Gonçalão se recordava dos índios de Ilhéus. Depositavam nele a mesma cálida confiança, olhavam-no com os mesmos olhos amigos. Um resto de tribo, escapado do massacre organizado através dos tempos da colônia, cultivando terras hereditariamente suas, uma pequena missão do Serviço de Proteção aos Índios funcionando junto da Colônia. Gonçalão era enfermeiro da Colônia, gostava do trabalho entre os índios, fazia as vezes de professor, ensinava o analfabeto e ao mesmo tempo despertava-lhes a consciência política.
Os companheiros haviam-lhe conseguido aquele lugar depois dele ter ficado muito marcado, devido à greve que dirigira numa fábrica de óleos vegetais. A profissão de enfermeiro êle a aprendera quando servira no Exército, ao fazer seu serviço militar. No Hospital onde se empregou ao deixar a farda, fez-se comunista. Um médico lhe fornecera os primeiros materiais, logo se tornou ardente ativista. Do hospital saiu para a fábrica, a greve foi útil escola. Não pôde mais viver em paz depois do movimento: a polícia o considerava perigoso e a dois por três o tomava preso. Foi quando, por intermédio do mesmo médico que o ligara ao Partido, conseguiu ser nomeado enfermeiro da Colônia Paraguaçu.
Não foi apenas entre os índios da Colônia que a atividade do Partido cresceu com a chegada de Gonçalão. Ele encontrava tempo para ajudar as organizações partidárias de Ilhéus e Itabuna, de Pirangi e Água Preta, para conversar com os trabalhadores das fazendas de cacau. Sua figura enorme se tornou rapidamente popular em toda a zona e os índios da Colônia tinham por êle verdadeira adoração, amavam ensinar-lhe segredos medicinais de ervas e raízes, traziam-lhe animais de presentes, papagaios faladores e esplêndidos jacus negros amansados. Ele ia com os índios para as roças, tomava dos machados e das foices como eles, derrubava árvores e colhia frutos, afundava a enxada na terra, sabia ser aquela a melhor maneira de conquistar a sua confiança. O velho sargento que dirigia a Colônia era um pobre homem cujo único prazer era pescar nas águas do ribeirão, praticamente a vida da pequena comunidade se encontrava nas mãos do comunista.
Mas aquelas eram terras férteis e as roças cresciam em produção sob o árduo trabalho dos índios. Um dia, um político descobriu que jamais alguma concessão legal de terras havia sido feita aos caboclos, aquelas eram terras de ninguém. Com a benevolente simpatia do Governador do Estado, requereu no Cartório de Registro de Títulos, o registro em seu nome de certa extensão de terra sem dono da qual apresentou a medição. O pessoal do Posto Paraguaçu e os índios só souberam da coisa quando o político apareceu um dia, empunhando seu título de propriedade, disposto a tomar posse de sua terra e a “entrar num acerto amigável com os nativos”. Gonçalão obrigou o velho Sargento a embarcar para o Rio, a levar o caso à direção do Serviço de Proteção aos Índios, cujo chefe supremo era um General do Exército. O serviço se movimentou, foi à justiça. O processo durou algum tempo, o General-chefe parecia ter tomado a coisa a peito. Quando o Sargento voltou, Gonçalão foi à Bahia discutir o assunto com a direção do Partido. Vítor lhe dissera, sua brusca voz direta, a mão puxando os fios do bigode que criava largo e eriçado:
– É preciso não ter ilusões na decisão da justiça. É uma justiça de classe, uma justiça dos latifundiários. E, apesar de que esse é o mais clamoroso escândalo, o furto de terras mais abjeto, o Supremo Tribunal não dará ganho de causa aos índios. Alimentar ilusões nesse sentido é desarmar os lavradores pobres e os colonos...
– Os índios estão dispostos a defender a terra com as armas... São valentes, dizem que aquela terra é tudo que possuem e não querem entregar de jeito nenhum, preferem morrer com a repetição na mão...
– Vamos discutir o assunto na direção. Tomar uma decisão imediata.
Enquanto esperavam a decisão do processo, Gonçalão preparou a resistência. Acumulou a maior quantidade possível de armas, estudou conscienciosamente os caminhos, manteve largos conciliábulos com os índios. O Sargento pescava, afirmava a todo mundo confiar no resultado do julgamento pelo Tribunal, o General lhe garantia que aquele escândalo não teria o beneplácito da justiça, os índios podiam lavrar tranqüilos sua terra, herdada de seus avós.
Mas, como Vítor previra, o Supremo Tribunal deu ganho de causa ao político. Este voltou e trazia com êle o Delegado de polícia de Ilhéus e jagunços. No Posto, o Sargento curvou a cabeça, sentia-se triste e fraudado em sua boa-fé mas, já que a justiça assim decidira, as terras eram bem do seu novo proprietário. O político foi magnânimo: estava disposto a conservar não só os índios, num regime de meeiros, mas também o Posto de proteção, pretendia mesmo auxiliá-los a cumprir sua tarefa. Tudo parecia resolvido em boa harmonia, apenas os índios tinham desaparecido e, com eles, Gonçalão. O político, acompanhado do Delegado, do velho Sargento e de alguns jagunços, saiu para ver suas terras. Foi recebido por uma saraivada de balas. Assim começou a luta do Posto Paraguaçu que durou mais de um mês, tendo sido necessário mobilizar, para liquidar os índios, quase toda a polícia militar do Estado.
Naquele primeiro encontro o político fora ferido, um jagunço morto, tinham-se retirado às pressas. Melancólica foi a entrevista à noite entre o Sargento e Gonçalão. O velho pescador tentou convencê-lo da inutilidade da resistência:
– Pobre não vale nada nessa terra, pobre é coisa nenhuma, que é que os índios podem ganhar se revoltando se nem o General, com todas as suas estrelas e seu prestígio, não pôde nada? É mesmo que marchar pra morte...
Não entendia as razões de Gonçalão e partiu pela madrugada, levando suas canas de pesca e uma saudade sem medida daquelas terras e daqueles índios mansos, pobres criaturas de Deus. Ao chegar em Ilhéus foi preso e na cadeia ficou uns oito dias até se convencerem não ter êle culpa alguma do tiroteio. No hospital, onde lhe haviam extraído a bala da coxa, o político conferenciava com as autoridades locais, organizava a expedição punitiva. E dizia, rindo aos muitos amigos que o iam visitar:
– Sou o último “bandeirante” do Brasil...
A expedição punitiva, misto de soldados da policia militar aquartelados em Ilhéus e Itabuna e de jagunços escolhidos nas fazendas, fracassou. Os índios se defendiam bem, estavam armados e sua pontaria era segura. Vieram reforços da Bahia e com eles um Coronel da polícia e jornalistas. O nome de José Gonçalo ganhou uma rápida e amedrontadora celebridade por todo o país. Como os jornalistas pouco ou nada sabiam do seu passado, inventaram histórias tenebrosas, ligaram seu nome ao banditismo reinante nas terras do cacau em anos anteriores, descreveram-no como a um criminoso sem entranhas a serviço dos comunistas. Apenas um dos correspondentes de jornais, um jovem escritor mulato, mostrou em seus despachos a justiça da causa defendida pelos índios. Foi logo chamado pela direção do seu jornal e, ao chegar à Bahia, investigadores de polícia o assaltaram à noite e o deixaram sem consciência de tanto que lhe deram. Não descrevera êle, abusando sem dúvida da confiança do seu jornal, as torturas infligidas pelo Coronel e seus subordinados a um índio feito prisioneiro? Torturas horríveis, relembrando os tempos coloniais com os nobres portugueses e os padres jesuítas a queimarem índios no avanço das “bandeiras”.
Ao mesmo tempo, por toda a zona, entre milhares de trabalhadores rurais, se desenvolvia uma campanha de solidariedade aos índios. Homens se arriscavam à noite, através das roças patrulhadas, para virem trazer munições ao Posto Paraguaçu, e alguns não regressavam, pondo sua certeira pontaria a serviço dos rebeldes. Durante mais de um mês, sob o comando de Gonçalão, os índios resistiram. Reforços e novos reforços foram embarcados na Bahia. As terras da Colônia foram cercadas, o espaço dado à luta aumentava quotidianamente nos jornais, os índios iam tombando um a um mas a resistência continuava. Cada avanço do latifundiário era pago à custa de sangue. Nas fazendas em torno, trabalhadores e meeiros ouviam as detonações e a fuzilaria, e aprendiam. Aprendiam com os índios. O nome de Gonçalão adquiriu para eles um significado, assim como adquirira um outro para os grandes senhores da terra.
E o cerco ia-se apertando, até o dia em que se viram reduzidos quase ao Posto e a uns poucos homens. Nesse dia Gonçalão foi baleado numa sortida e os índios, num prodígio de audácia, só possível a eles que conheciam aqueles caminhos como a palma das suas mãos, o transportaram para distante casa de amigos. Antes haviam seguido os seus conselhos, incendiando plantações e choças. Foi sobre uma terra nua e calcinada, úmida do sangue dos homens derramado, que o político pôs os pés no dia seguinte.
Através do sertão, Gonçalão foi transportado à Bahia, numa viagem de curtas etapas cobertas à noite, pois a polícia batia as estradas em sua perseguição. Os trabalhadores das fazendas, os colonos, os pequenos lavradores o escondiam, davam-lhe de comer, sorriam para êle. Gonçalão deixara crescer a barba e lhes aparecia como um daqueles santos e beatos, periodicamente surgidos da fome e da miséria na caatinga nordestina. Só que esse não falava do fim do mundo, da morte e do castigo de Deus. Falava da luta e da vida, de um futuro feliz a conquistar.
Na Bahia, os camaradas, o esconderam enquanto durou o processo. Alguns índios tinham sido presos, a maioria havia morrido nos combates, os restantes desapareceram nos caminhos, acobertados pelos trabalhadores das fazendas. A polícia conseguira estabelecer a identidade de Gonçalão era o mesmo comunista perigoso José Gonçalo, o da greve da fábrica de óleos, o gigante que derrubara num comício, com um soco, o Delegado de Ordem Política e Social do Estado. O Serviço de Proteção aos Índios se movimentou (o que não fizera durante toda a luta) e assim toda a responsabilidade foi atirada nas costas de Gonçalão. Os índios, terrivelmente espancados na cadeia, foram absolvidos, José Gonçalo condenado a quarenta anos de prisão. Quando a sentença foi lida, um dos índios presos disse ao advogado, um companheiro do Partido:
– Se há um homem bom no mundo é Gonçalão. Botar êle na cadeia é mesmo que prender a terra que alimenta a gente... Mas eu sei que nunca vão prender êle. Êle pode mais que a polícia inteira.
O Partido podia mais que a polícia inteira. Os senhores de terra não estavam contentes: não bastava a condenação; eles queriam a cabeça do revoltoso, daquele temerário que se levantara contra o poder do latifúndio. A polícia da Bahia parecia não ter outra missão senão buscar o chefe da luta dos índios do Posto Paraguaçu. As polícias dos demais Estados foram mobilizadas, os jornais afirmavam ser a detenção uma questão de dias, várias pistas estavam sendo seguidas. Gonçalão passava de casa em casa, as residências de comunistas e simpatizantes eram varejadas, as saídas de navios e as estações guardadas, os pontos de partida de ônibus, as estradas de rodagem. Os investigadores tinham ordem de atirar se o encontrassem, depois diriam que ele resistira à prisão e tentara fugir. Um dia Gonçalão disse a Vítor:
– Estou sendo um fardo para o Partido.
Foi quando o dirigente lhe apontou no mapa aquele pedaço perdido de Brasil, falou-lhe dos olhos vorazes dos americanos e alemães voltados para o Vale do Rio Salgado.
– Se eu conseguir sair da cidade, no resto do caminho me arranjo. Tenho amigos por todo esse sertão e quando acabar o sertão farei novos amigos.
Não saiu nem de navio nem de trem, de ônibus ou de automóvel. Saiu num saveiro, escondido no pequeno porão, em meio à carga de tijolos, coberto por uma lona. Havia embarcado no pequeno cais de saveiros em frente ao Elevador, pelo meio da noite, e o mestre Manuel que o conduzia atendendo ao pedido de um seu amigo, um doqueiro negro de nome Antônio Balduíno, cantava na hora da partida uma canção marítima:
“A gente só morre quando chega o dia,
marcado na folhinha por Iemanjá.
Antes não há, nem temporal nem bala
que possa com um valente terminar...”
Suspensas as brancas velas sob as estrelas, acesa a estrela do cachimbo de barro do mestre Manuel, o saveiro cortou as águas do mar baiano no rumo da cidade de Cachoeira. Do cais, como se despedindo e respondendo à canção do saveirista, ressoou a voz profunda do negro Antônio Balduíno, encarregado de embarcar o fugitivo, no canto do “ABC” de Gonçalão, composto por um anônimo bardo do Mercado e vendido no cais e feiras a operários, camponeses e mulatos:
“Dos índios capitão,
coronel da gente pobre,
general da valentia,
Zé Gonçalo ou Gonçalão”!
revoltoso perseguido,
escondido na Bahia
e condenado à prisão
Nunca que prender vão
Zê Gonçalo ou Gonçalão”!
Era o Vale do Rio Salgado que ele devia atingir e ele o atingiu. Dissera a Vítor possuir muitos amigos no sertão, possuía um número muito maior do que pensava. Viajou nos mais variados meios de condução, mandado de um camponês a outro camponês, fez grande parte do percurso tangendo, com vaqueiros vestidos de couro, rebanhos de gado; acompanhou durante alguns dias os vagabundos carros de ciganos, ouvindo canções em língua estranha e soldando panelas e tachos; num rancho solitário, uma noite, conversou com cangaceiros, ouviu-lhes contar as façanhas, os ataques a fazendas, vilas e cidades. Percorreu caminhos abertos pela Coluna Prestes, nos distantes anos de 25 e 28, encontrou ainda o rastro da passagem do revolucionário na memória dos camponeses. Demorou uns dias num garimpo, em meio a um universo de aventureiros de todas as raças e todas as cores, e, de certo ponto em diante da caminhada, começou a ouvir falar do Vale do Rio Salgado e do seu impenetrável mistério. Diziam serem aquelas florestas o seguro refúgio dos índios xavantes, nômades e perigosos, ou de outras tribos ignoradas e ainda primitivas. Contavam da malária e das febres mortais, dos mosquitos transmissores das mais incuráveis doenças. Sobre a população espalhada à margem pouco se sabia: vagamente comentavam de caboclos perdidos naquelas lonjuras inexploradas.
Os conglomerados humanos foram diminuindo, passou a encontrar apenas raros viajantes nos campos infindos. Aproximara-se das florestas e pântanos, durante dias e dias viajou sem enxergar pessoa e pensava-se perdido naquele labirinto de verde, o corpo inchado de picadas de mosquitos, as mãos rasgadas, os pés chagados. Mas sua indomável vontade o fez prosseguir e varou a floresta de lado a lado. Quando surgiu nas margens do rio era um ser espantoso, roto e sujo, a carabina ao ombro, o “parabelum” no cinto, um ar de alucinado.
Aos poucos foi conhecendo toda a população ribeirinha. Ali não se perguntava de onde tinha vindo, que passado turvo o havia levado àquele fundo de floresta onde a vida do homem se diferenciava quase nada da dos animais. Havia sertanejos tocados de suas terras pela seca ou pelos “Coronéis”, havia um cearense baixote e falador, dono de um violão, único instrumento musical de toda a região. Gonçalão costumava dizer ser esse cearense, cantador de embaladas e tiranas, o representante da arte e da literatura no Vale do Rio Salgado, como êle com seus parcos recursos de enfermeiro e com o conhecimento das plantas medicinais obtido dos índios, era o representante da ciência. Quando desamarrava sua canoa para ir visitar, rio abaixo, o cearense, repetia para si mesmo, de bom humor:
– A ciência vai visitar a arte...
Havia principalmente caboclos, fugidos da escravidão das fazendas feudais, alguns com famílias enormes, amarelos de impaludismo, mas satisfeitos de cultivarem terra sua. E, centro dessa vida primitiva, existia um sírio de peito tatuado, era o comércio. Possuía miserável tenda onde vendia açúcar, cachaça, fósforos e fumo de corda, peças de roupa de fazenda barata, pás, machados e foices, canas de pesca e mais que tudo balas e carabinas. Sua tenda ficava longe mas o sírio vivia a maior parte do tempo numa canoa indo de plantação em plantação, trocando suas invariáveis mercadorias pelo milho, pelo café, pela farinha dos lavradores. Cada dois ou três meses êle partia, com seus burros, para mais além das montanhas ia vender e comprar. Voltava trazendo açúcar e fósforo, cachaça e fumo, balas e pás, por vezes, um chapéu encomendado, um espelhinho para a mulher de um caboclo. Era um homem silencioso e sombrio, falando um português arrevesado, com acento árabe e termos franceses. Numa ocasião em que se embriagou, narrara para Gonçalão um pedaço da sua vida: por um bárbaro crime passional cometido em Marselha, onde vivia, fora condenado à prisão perpétua e enviado para a Guiana Francesa. Conseguiu evadir-se de Caiena, através da selva amazônica, chegara a Manaus. Aí estivera alguns anos, mascateando peio grande rio, até ser descoberto um dia e novamente preso a requerimento da justiça francesa. Enquanto esperava os trâmites do processo de extradição, fugiu mais uma vez, comprando a cumplicidade de um guarda da prisão. Descera então para o Vale do Rio Salgado e ali ficara e ali esperava viver em paz o resto de sua vida. Narrava a história numa voz monótona, o rosto parado, as mãos imóveis sobre os joelhos. sem gestos. Agitou-se apenas ao falar da mulher que assassinara na noite de ciúme: Era “blonde” e se chamava Ginette mas pra mim era Jinou, era assim que eu a chamava – abria a camisa de bulgariana, mostrava o peito onde o nome estava tatuado sob um coração atravessado por uma flecha – C’est ça... Por que dizia que me amava e ia dormir com outro quando eu tava trabalhando?
Ficava silencioso, apertando a cabeça entre as mãos, comentava depois:
– Às vezes penso que não fazia por mal, era da natureza dela. C’est ça... Mas quando descobri não pude pensar nada, abri a garganta dela com o “rasoir”... Era “blonde”, Amigão, (dizia “Amigon”) de noite sonho com ela...
Embarcava o copo de cachaça, repetia:
– C’estça
Quando Gonçalão baqueou, derrubado pelo impaludismo o sírio apareceu, a notícia linha chegado até êle. A cor bronzeada do gigante tinha ganho uns tons esverdeados com a febre, seu rosto emagrecera. O sírio trouxe quinino, aplicou-lhe em doses cavalares, disse:
– Mais um freguês pro quinino... Da primeira vez eu não cobro nunca. C’est ça...
Êle nunca pegara o impaludismo, explicara a Gonçalão jamais ter estado doente em toda sua vida. Com a baixa do rio, o impaludismo tinha derrubado meio mundo entre os lavradores. O sírio ia, de plantação em plantação, com sua canoa, levando as doses de quinino pelas quais exigia muito café e muito milho. Gonçalão, melhorado, o acompanhou, deu conselhos de higiene aos enfermos, aplicou seu conhecimento de ervas e raízes. Por vezes chegavam tarde, um corpo havia sido enterrado ao pé de uma árvore de floresta próxima ou jogado simplesmente no rio se não existiam parentes dispostos ao trabalho de cavar uma sepultura.
Nos começos daquele ano de 1938, o sírio atravessara com seus burros, mais uma vez, as montanhas para atingir a civilização distante, levando o café, o milho e a farinha.
Ao voltar trouxera como sempre fósforos e fumo, cachaça e açúcar, anzóis e balas. E também os jornais atrasados, encomenda sempre renovada de Gonçalão. Foi então que o revolucionário e os demais habitantes do Vale souberam do golpe de Estado dado em 10 de novembro de 1937, mais de três meses antes. Os habitantes do Vale, à exceção de Gonçalo, não se impressionaram com a notícia. A eles pouco importava quem estivesse no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, o regime político dominante no país. Porém, uma outra notícia, nos jornais mais recentes trazidos pelo sírio, perturbara a vida de todos. Um dos jornais noticiava ter um certo César Guilherme Shopel, poeta e editor no Rio. obtido do governo uma concessão sobre as terras do Vale do Rio Salgado e estar organizando uma grande empresa para sanear aquela região, abrir estradas, levar até lá os fios telegráficos, montar indústrias, perfurar as minas, empresa considerada pelo jornal, cheia de nobres objetivos patrióticos. Gonçalão leu e releu a notícia, estava só, o sírio tinha-se ido em sua canoa viageira, deixando fumo e açúcar, cachaça e balas. Andou até a margem do rio, abarcou com um olhar a floresta próxima, as águas caudalosas, as pequenas plantações dos caboclos vizinhos. Murmurou para si mesmo:
– Vítor tinha razão. Eles vão chegar. Mas quem são eles, americanos ou alemães? – alteou o corpo gigantesco, fechou os poderosos punhos decididos, sorriu suavemente. – Não importa o que sejam, estou aqui para recebê-los e saberei recebê-los, bem cansado ando de não fazer nada...
O rio rolava indiferente, arrastando troncos, galhos secos, corpos de animais; a floresta dormia ao sol, povoada de feras, serpentes e mistério.
Lucas Puccini ouvia os resmungos de tia Ernestina, certas palavras ficavam ressoando, obstinadas, em seus ouvidos. A velha solteirona parecia desarvorada no novo apartamento, como se sentisse falta do úmido ambiente da escura casa suburbana, do seu permanente odor de mofo, como se não se acostumasse ao sol de verão entrando, num exagero de claridade, pelas rasgadas janelas do apartarmento moderno, na praça Marechal Deodoro. Parecia desconfiar de toda aquela súbita prosperidade, olhava de soslaio o sobrinho vestido de novos ternos feitos sob medida, fechava a cara num pressentimento de desgraça quando Manuela atravessava a sala, cantando, executando passos de “ballet”, numa alegria primaveril de pássaro. Os avós iam para o jardim próximo, com as crianças. Eles sim, haviam gostado da mudança, ficavam os dois, encostados um ao outro, durante longas horas num banco do jardim, satisfeitos de poder acompanhar com os olhos a vida intensa da rua central. Lucas escrevera ao cunhado para comunicar-lhe a mudança operada em sua vida, o emprego público obtido, as perspectivas, e para discutir das possibilidades de internar o maiorzinho num colégio. Tia Ernestina arregalava os olhos, fazia promessas a Nossa Senhora da Aparecida para que tudo aquilo, aquela inesperada (e para ela inexplicável) prosperidade, não terminasse num desastre qualquer. E nos resmungos pelos cantos onde se escondia da luz violenta, maldizia sobrinho e sobrinha, os homens em geral e a alegria da casa. Odiava sobretudo o amor, sentia pelos assuntos sentimentais aquela repulsa das mulheres jamais amadas, jamais objeto de um terno olhar, de uma palavra doce de carinho. Por isso uma grande percentagem da sua mastigada reprovação era dirigida contra Manuela em cuja alegria saltitante ela descobria os sinais do amor. Quando a sobrinha saía, pela tarde ou à noite, para ir encontrar-se com Paulo, tendo-se demorado antes em frente ao espelho num desejo de se fazer ainda mais bela, ela murmurou entredentes.
– Vai, cachorrinha, vai chafurdar com esse caixa de ossos, esse cara de vômito... Porque êle tem automóvel e dinheiro, te dá perfumes e te diz coisinhas, tu pensas que êle vai casar contigo. Ele vai é te largar na rua de vagabundas, e eu vou me rir depois... Vai, cadelinha, vai te rebolar com êle...
Ia assim pela casa, cosida às paredes, deixando à sua passagem um rastro de maldade pequenina, sabendo que trechos de frases eram ouvidos por Lucas:
– E o irmão vai deixando, só pensa em ganhar dinheiro, ainda vai acabar na cadeia e é capaz de meter nós todos.. Onde êle vai buscar tanto dinheiro para pagar essa casa e professora de dança para a outra? Tem coisa suja no meio disso, minha Nossa Senhora me proteja, eu tenho medo...
A princípio Lucas ria, fazia pilhérias com a tia, mas aos poucos aquela voz de agourenta profecia o foi irritando. Não tanto pelo que dizia sobre êle, pelas insinuações resmungadas, pelos olhares suspeitos que lhe lançava. Mas, principalmente, devido às murmurações contra Manuela, cuja conduta preocupava por vezes também a Lucas. A irmã, desde que começara as aulas de “ballet” e à proporção que ia avançando o namoro com o jovem diplomata, transformava-se noutra pessoa, despida de toda a melancolia, independente, mais cheia de projetos, ainda mais que êle mesmo, Lucas. Agora Manuela conhecia um mundo de gente nos meios literários e artísticos, comparecia com Paulo a festinhas em “ateliers” de pintores e reuniões em casa de escritores, estava posando para um retrato de um mestre da pintura moderna, usava termos requintados na conversação, como se, ao mudar de residência, tivesse adquirido outra personalidade. Chegava a parecer uma outra Manuela, sem nada de comum com a tímida rapariga trancada na umidade da casa suburbana. Não era o novo ambiente da irmã que preocupava Lucas. Ele compreendia ser necessário a ela, se quisesse realmente se lançar como bailarina, penetrar naquele meio de literatos e artistas. O que o preocupava em certos momentos, pondo uma nota de desgosto em meio à exaltação em que êle vivia nos últimos meses, era a paixão de Manuela por Paulo. Sentia a irmã de todo entregue àquele amor, sem lhe oferecer a mínima resistência, falando do rapaz como de um deus, jurando por êle, disposta a tudo que êle desejasse. E Lucas se perguntava se não devia intervir, proibir as relações de Manuela com Paulo, apresentá-la a seus novos amigos do Ministério, a alguns daqueles rapazes de futuro assegurado e dispostos a construir família. Tinha um pouco de medo que as pragas maldosas da tia Ernestina, cuspidas nos cantos contra Manuela, se realizassem. Não sabia mesmo se já não seria tarde, até onde teriam ido já as relações da irmã e do namorado? Manuela passava dias inteiros fora de casa, por vezes chegava no meio da noite, os olhos fatigados. Mas Lucas sentia uma certa vergonha de discutir com ela aquele assunto. Calava-se ouvindo-a contar os planos em execução para lançá-la no Rio de Janeiro como bailarina. Um certo poeta – Shopel – de quem, aliás, Eusébio Lima lhe falara com muitos elogios dizendo ser homem de grande projeção literária e social, amigo do Ministro da Justiça e testa-de-ferro do banqueiro Costa Vale, íntimo de Paulo, se encarregara do assunto. Manuela estudava, com a professora de “ballet”, danças indígenas, e seria apresentada ao público como uma “autêntica bailarina brasileira”, como tendo sida descoberta entre os índios do Vale do Rio Salgado – terra na qual o poeta estava altamente interessado pois ali seria montada uma grande empresa – uma rival de Eros Volúsia, qualquer coisa de extraordinário e inédito. Uma sutil campanha de imprensa se iniciava e o próprio banqueiro Costa Vale estava interessado na carreira de Manuela, acreditava ser essa história de bailado uma interessante propaganda para a empresa recém-lançada. Lucas a via partindo, como êle, para um futuro brilhante. E pensava se o preço que ela certamente ia pagar a Paulo, se já não o tivesse pago, seria ou não exagerado... Balançava-se entre certo cinismo adquirido nos dias de pobreza e ambição (ao qual ele chamava “realismo”) e os preconceitos herdados da família religiosa e moralista. Durante o dia, quando ouvia o resmungar de Tia Ernestina, jurava falar à noite com Manuela, discutir, dar-lhe conselhos, tomar uma medida qualquer capaz de impedir a perda da irmã. Mas à noite nada lhe dizia, não podia resistir ao interesse que os planos do poeta e de Paulo lhe despertavam, às vezes fazia mesmo sugestões ditadas por sua inteligência viva e audaciosa. Quando Manuela, ela mesma um pouco amedrontada ante todo esse futuro aberto em sua frente, lhe dizia da campanha a ser empreendida um mês antes da sua estréia – que devia dar-se no inverno, no Rio de Janeiro – dos preparativos para a sua chegada à Capital do país vindo diretamente, em avião, do Vale do Rio Salgado, parecia a Lucas que a honra virginal da irmã era um preço bem pequeno para tantas possibilidades. Apesar de tudo, no entanto, era-lhe difícil desprender-se da imagem do futuro que êle mesmo concebera para Manuela nos seus dias de desenfreados sonhos: um casamento com um bom rapaz, solidamente estabelecido na vida, capaz de dar a Manuela uma existência descansada e tranqüila. Assim imaginara sempre o amanhã para essa menina que era a única pessoa pela qual êle sentia um afeto verdadeiro. E agora a via num turbilhão de planos, envolvida com essa gente sem dúvida brilhante e poderosa da literatura e da arte, mas também, de suspeitos costumes, de moralidade duvidosa, sem algum respeito pelas convenções estabelecidas. Que iria suceder com ela? Teria ele, por acaso, direito de meter-se como um ditador em sua vida, cortar-lhe o início de carreira, impedi-la de dançar, de fazer um nome, de cobrir-se de triunfos e de dinheiro? E, pensava também, não poderia ela, transformada numa conhecida artista, ser-lhe útil nos seus negócios, na carreira que ele também iniciava? Esse pensamento fazia com que Lucas silenciasse sobre Paulo nas conversas com Manuela.
Travara mesmo conhecimento com Shopel, apresentado por Manuela, numa das atualmente repetidas viagens de Shopel a São Paulo. Com Paulo, Lucas mantinha distantes relações. Quando o encontrava próximo ao edifício de apartamentos, esperando que Manuela descesse, apertava-lhe a mão, trocava duas frases banais e ia-se, um pouco sem jeito diante do rapaz elegante, de maneiras aristocráticas, de uma displicência superior. Mas gostara do poeta, parecia-lhe um homem mais do seu meio apesar do nome louvado nos jornais, dos livros publicados, das amizades graúdas. Shopel conversava longamente com êle, sobre o trabalho no Ministério, mostrava conhecer bem os segredos da alta administração, os bons negócios que se podiam realizar, como manejar inteligentemente o dinheiro das Caixas de Pensões e Aposentadoria, dinheiro descontado no salário dos trabalhadores. Tinha a impressão que também o poeta gostara dele, prometera-lhe, quando Lucas fosse ao Rio, apresentá-lo a alguns figurões que lhe poderiam ser úteis depois. E discutira muito sobre o futuro de Manuela. Disse que ela tinha um grande talento para o bailado, que a professora estava assombrada, que sem dúvida, ela faria uma gloriosa carreira, tudo dependia um pouco da estréia, do lançamento inicial, mas desse, êle se encarregaria, gostava de descobrir novas talentos, de ajudá-los, êle sabia, por experiência própria, como era duro para um escritor ou para um artista, começar. Manuela tivera sorte ao relacionar-se com Paulo, um tipo prestigioso nos meios literários. Até o célebre sociólogo Hermes Rezende se interessam por ela. E, ao demais, ela tinha, no seu ativo, aquela magnífica beleza virginal, aquele rosto de formosura clássica. Lucas baixava a cabeça, refletindo, compreendia tudo que havia de claro e também de insinuado nas palavras de Shopel. “É preciso ser realista”, repetia-se.
O poeta conversara também sobre a empresa que acabava de lançar, o grande empreendimento patriótico sobre o qual todos os jornais – agora sujeitos à censura governamental através do Departamento de Imprensa e Propaganda, talvez o mais poderoso dos ministérios do novo regime, e cujo diretor era amigo de Shopel – falavam num unânime elogio – a louvar-lhe a iniciativa nacionalista e audaz. Lucas lera nos jornais as frases sobre “a empresa admirável do saneamento do Vale do Rio Salgado, feita exclusivamente com capital nacional, que vai, ao mesmo tempo, levar a civilização e o progresso a toda uma imensa região desabitada do país e abre um novo caminho, dentro do espírito nacionalista do Estado Novo, na economia brasileira, libertando-a da influência estrangeira”. Eusébio Lima na vez que haviam trocado idéias sobre o poeta, lhe dissera, comentando a Empresa do Vale do Rio Salgado:
– É o Costa Vale quem está por detrás do gorducho. Ele e seu grupo: a Comendadora da Torre, os Condes Calepi, os Mendonças... Agora quem está por detrás dele, não sei direito, é mesmo um mistério. Tem quem diga que são os americanos, tem quem diga que são os alemães... Penso que são os americanos... O Shopel é apenas testa-de-ferro mas vai enriquecer com esse negócio. É capaz até de deixar dessa besteira de poesia.
O poeta terminou por oferecer-lhe um bom emprego na nova empresa. Precisariam, naquele sertão de florestas, de homens audazes e valentes e em Lucas êle enxergava um desses homens. Puccini agradeceu e recusou. Não desejava ser empregado de ninguém. Exatamente o que buscava encontrar, servindo no Ministério do Trabalho, era a possibilidade de marchar sozinho num negócio onde fosse êle o patrão. O poeta o animou, batendo-lhe no ombro com a gorda mão suada, prometeu-lhe apresentação no Rio de Janeiro. Ao despedir-se, ofereceu-lhe um charuto e disse-lhe:
– Não se preocupe com Manuela. Dela eu me encarrego e pode ser até que amanhã ela venha a lhe ser útil...
Assim também pensava Lucas quando, irritado com as murmurações de tia Ernestina, sentia picar-lhe a consciência o abandono em que deixava a irmã envolvida num mundo estranho para ela, caminhando sozinha, sendo tão fácil tropeçar, quando não tinha olhos senão para descobrir beleza e bondade naquele rapaz que parecera a Lucas tão frio e incapaz de qualquer profundo sentimento, de qualquer permanente afeição. Ao demais, como criticar a irmã se êle mesmo não poderia apresentar-se diante dela como um modelo de moralidade? É bem verdade que suas noções morais se reduziam quase aos preconceitos familiares e o mundo dos negócios era considerado por de uma coisa à parte, regido por outras leis onde a moralidade estava em relação aos lucros a alcançar. Já agora, com apenas três meses de Ministério, êle multiplicava por três ou quatro o ordenado mensal, com favores prestados a patrões, a industriais, com assuntos a resolver na Justiça do Trabalho, dissídios coletivos e pagamentos de férias a operários, com certos arranjos nos sindicatos. Eusébio Lima o introduzira nesses meandros pelos quais marchavam muitos de seus colegas, uma gente ligada à polícia política, ao gabinete do Presidente da República e ao do Interventor do Estado, dizendo-se todos líderes sindicais e sendo em verdade um misto de guarda-costas dos políticos e de cavadores de negócios. Lucas se aproveitava como os demais, porém achava tudo aquilo muito pouco para a sua ambição e esperava que lhe aparecesse, visível desde o excelente observatório que era o Ministério do Trabalho, o grande negócio sonhado. Não tinha nada de impossível. Outros, antes dele do mesmo Ministério, haviam partido para a fortuna. Enquanto espera impaciente, êle vai se beneficiando da amizade de Eusébio Lima e um dinheiro fácil escorrega-lhe no bolso.
Também sobre esses assuntos ele não conversa com Manuela. O mesmo preconceito nutrido por êle em relação à vida sentimental da mulher, Manuela o possui, muito mais agudo no tocante ao dinheiro. Se êle lhe dissesse ser uma parte do seu orçamento mensal baseado em certas pequenas transações, em certos favores aos donos de fábricas necessitados da proteção do Ministério contra seus operários, Manuela se escandalizaria, sentir-se-ia burlada, perderia por completo a confiança nele. Ela poderia cometer erros e faltas – pensava Lucas – mas o faria por ignorar o valor de certas coisas, não seria jamais capaz de aceitar, como honestas e justas, essas transações com a Justiça do Trabalho, a percentagem ganha no conseguir para terceiros, certos empréstimos nas Caixas de Aposentadoria e Pensões, desviando um dinheiro reservado, segundo a lei, para os velhos operários incapacitados já de trabalhar ou para os acidentados no trabalho. Lucas sabe que, se ela tivesse conhecimento de tais coisas, o olharia com horror, como a algo repelente. Ele próprio, em certos momentos, assim se sente, como se tivesse um pouco de lama nas mãos. Mas essa sensação lhe vem, principalmente, devido ao magro proveito resultante dos “golpes” aplicados. Não lhe importaria estar coberto de lama se o dinheiro a ganhar fosse muito, O dinheiro – essa era a sua teoria – lava qualquer sujeira. Mas esses dois contos de réis, dois contos e quinhentos mensais, que lhe rendiam os biscates, eram bem pouco ao lado do que êle desejava para sentir-se um homem poderoso. Sua ambição é bem maior do que a de Eusébio Lima, feliz com suas pequenas negociatas, com o receber ordens do Presidente e do Ministro, com a bajulação dos funcionários mais modestos, é bem maior mesmo que a de Shopel em vias de enriquecer sendo testa-de-ferro de Costa Vale. Ele deseja ser como Costa Vale, um de cima, comandando políticos e literatos, tendo às suas ordens gente como Eusébio Lima e Shopel. Para consegui-lo, êle se dispõe a passar por cima de tudo, a utilizar todos os processos e a servir-se do que quer que seja, mesmo de Manuela, dos seus bailados, da sua beleza...
E, como para descansar sua consciência por completo, Paulo viajou para o Rio, terminadas suas férias, obrigado a ir algumas horas durante o dia ao Ministério do Exterior, onde o agregaram a uma vaga comissão de fronteiras e limites, vem somente nos fins de semana e Manuela passa praticamente o sábado e o domingo com ele. Mas Lucas não tem nem mesmo tempo de preocupar-se, ocupado todo o dia na preparação da vinda do ditador a São Paulo para essa manifestação projetada, tantas vezes adiada e agora definitivamente marcada para dentro de uma semana. Foi encarregado, por um telefonema de Eusébio Lima, de formar um corpo de segurança pessoal para o chefe do governo, buscando os melhores homens, os mais leais, do Ministério e da direção dos sindicatos, pois na polícia havia muita gente posta pelos armandistas e pelos integralistas, gente na qual não se podia confiar inteiramente. Lucas se dedicara àquele trabalho na esperança de ser notado pelo Presidente, de estabelecer um primeiro laço com aquele homem atualmente dono indiscutível do poder, mandando sobre o país como um rei absoluto, podendo tudo.
Os resmungos de tia Ernestina o irritam. Um diabo de solteirona beata e histérica, vivendo às suas custas, incapaz de ajudar na limpeza da casa, queixando-se eternamente de achaques e doenças, que devia agradecer-lhe ter um leito onde dormir e a comida que comia, julga-se no direito de criticar seus atos e os de Manuela, de ameaçá-los com pragas e maldições! Era de perder a cabeça. Ele procurava conter-se, afinal trata-se de sua tia, irmã de sua mãe, daquela pobre mãe doente, cujo carinho era uma das raras boas lembranças do passado de Lucas. Essa mãe que êle revê em Manuela, a mesma beleza fina, a mesma fragilidade, a mesma bondade tímida e a paixão ardente, sem limites. Tão diferente de tia Ernestina.
Toda a família, à exceção de Manuela, o incomoda e irrita. Os velhos avós começando a caducar, como sombras pela casa, as crianças largadas ali pelo cunhado que se considerava quites com suas obrigações paternas enviando cada mês quinhentos mil-réis para as despesas. Uma gente que não tem nada de comum com êle, cadeias a amarrá-lo a esse mundo medíocre de onde êle deseja fugir. Amarrando também a Manuela, obrigada a servir de mãe a todos eles, mesmo a essa desagradecida tia Ernestina... Por que não meter os velhos num asilo, não enviar as crianças ao cunhado, não botar tia Ernestina num quarto de pensão? Manuela fala em ir para o Rio, Shopel tem todos aqueles planos para a sua estréia. E ele, Lucas, não suportará viver sem a irmã, em meio a essa família à qual não se sente ligado por nenhum afeto. É necessário resolver esse problema. A idéia de meter os velhos num asilo nunca será aceita por Manuela. Tampouco a de enviar as crianças para a fazenda onde o cunhado é capataz. Talvez o jeito seja tomar uma governante, logo que ganhe mais dinheiro, alguém que seja pago para cuidar e suportar velhos e crianças. Mas, para isso é preciso esperar ainda.
Uma coisa, porém, faz-se urgente: terminar com esses resmungos de tia Ernestina, com esse corvejar de ameaças na voz da solteirona. E Lucas lhe diz em meio ao corredor:
– Ouça, tia Ernestina, e ouça bem porque eu não vou repetir o que lhe vou dizer agora: ou bem a senhora pára com esses resmungos e essas cochicharias sobre mim e Manuela, ou eu lhe mando embora daqui, se estourar no meio do inferno... Não quero nunca mais ouvir seus resmungos nesta casa....
– Você está me ameaçando, ameaçando sua tia, a irmã de sua mãe, só porque eu não tenho de que viver, sou obrigada a aceitar o pão que você me dá... Eu que vivo rezando por vocês, fazendo promessas pra Manuela não se perder e não acabar meretriz por aí, para você não acabar na cadeia... – e abriu num choro histérico, de gritos altos, como se Lucas a atacasse a bofetadas, como se a quisesse estrangular.
Ele cerrou os dentes de tanta raiva. Num esforço manteve-se calmo, alterou a voz para suplantar o ruído do choro:
– Não se preocupe com o que possa suceder a mim e a Manuela. É melhor preocupar-se um pouco com as crianças, com os velhos que são seus pais e aos quais a senhora não liga importância. Em vez de ficar chorando e rogando pragas.
Como única resposta ela gritava mais alto ainda, não tardaria a ter um ataque. Mas Lucas, noutro esforço, concluiu:
– Não voltarei a lhe falar no assunto. Mas se a ouvir outra vez dizendo coisas de Manuela ou de mim, boto sua mala fora da porta e a senhora atrás da mala...
Não vira Manuela entrar. A moça ficara parada escutando, num assombro, a voz estrangulada de ódio dó irmão. Vinha da aula de ballet, o coração festivo: Paulo chegaria nessa tarde, à noite viria buscá-la. Tia Ernestina, ao enxergá-la, aumentou a intensidade dos gritos, arrancava os cabelos:
– Desalmado! Coisa ruim...
– Que se passa? – perguntou Manuela.
Lucas voltou-se pouco contente da chegada da irmã. Não pôde mais conter-se, como desejava:
– Essa bruaca velha vive pelos cantos resmungando contra a gente, dizendo cobras e lagartos de mim e de você. Eu lhe disse que se ela não terminasse com isso eu a mandaria embora. E mando mesmo...
Manuela olhou-o numa censura amigável:
– Mas, Lucas, tia Ernestina é doente, coitada. Ela diz essas coisas não é por maldade, é o jeito dela, sempre foi assim... Não brigue com ela, por favor.
Tia Ernestina ameaçava rolar no chão num ataque histérico. Seus gritos agora já não eram acompanhados de lágrimas. Manuela aproximou-se dela, pensando em conduzi-la ao quarto. Mas a solteirona, quando a viu vir, se afastou pela parede, gritando:
– Não me toque, sua desavergonhada; não me toque que eu não sei onde andaram suas mãos, não venha me sujar com sua porcaria... – e gritava mais alto, a face desfigurada de ódio.
Manuela recuou, muito pálida, e Lucas deu um soco na parede berrando para a velha:
– Você vai sair agora mesmo, cachorra...
Estava cego de raiva, segurava tia Ernestina pelo braço, disposto a arrastá-la até a porta. Manuela tocou-lhe no braço:
– Deixe, Lucas, deixe... Ela não tem para onde ir... Eu te peço, pelo amor de mamãe...
Lucas largou a solteirona, comentou, a voz ainda irritada:
– Tu és boa demais...
Tia Ernestina fugia, subitamente sem gritos, para o seu quarto. Manuela disse ao irmão:
– Sou apenas feliz. Mas tão feliz, Lucas, que ela não pode me magoar...
O sangue voltava-lhe às faces, Lucas acariciou seus longos cabelos loiros:
– Perdi a cabeça com o diabo da velha... Mas ela estava demais. A lição vai lhe servir... Bem, vou sair, tenho o que fazer.
Manuela foi buscar-lhe o chapéu:
– Minha vida se resume em você e Paulo. Quando eu era pequena gostava de dançar para papai e mamãe. Agora que eu vou dançar de verdade, é somente para você e Paulo que eu vou dançar. Mesmo se tiver gente no dia da estréia, mesmo que vocês dois não estejam, é só para vocês que eu estarei dançando...
Ele a beijou na face, ela fechou a porta, durante um instante ficou encostada na parede. Por que Paulo jamais lhe falava em casamento? De amor, sim, já lhe falara e com que maravilhosas palavras êle sabia dizer da sua paixão. Muitos beijos já haviam trocado, muitas carícias, e ela vivia na espera da sua proposta matrimonial. Ele parecia, no entanto, não ter pressa de fazer o pedido que ela ansiosamente aguardava. Em todas as partes onde apareciam, tratavam-na como se ela fosse noiva de Paulo. Só êle não falava em noivado nem em casamento. Falava de baile; da próxima ida de Manuela para o Rio, levava-a à sua casa, ficavam pela tarde nos preguiçosos divãs, numa intimidade de noivos próximos ao casamento. Que esperava êle afinal para lhe dar o anel de noivado, para calar a boca de tia Ernestina, para terminar com o medo que certas noites, só em seu quarto, a assalta? Se êle a ama, se é livre, se tem do que viver, por que então não se casam? Manuela afasta-se da porta, não quer pensar nessas coisas. Não é bastante que êle a ame, que faça tanto por ela, que venha vê-la todas as semanas, que lhe diga tão belas coisas, que acaricie seus cabelos, suas mãos, que tome dos seus lábios? Um dia êle lhe falará, com certeza, ela é que é apressada, afinal esse namoro dura, apenas, três meses. Naturalmente, pensa ela, êle está se reservando para a pedir em casamento no dia da estréia, como o melhor presente a lhe oferecer nessa sua hora de triunfo e de alegria. Certamente é isso. Manuela sorri e se dirige para o quarto de tia Ernestina. “Pobre velha, sem alegria.”
Na hora elegante do chá, em casa dos Costa Vale, ia uma discussão animada entre o ex-deputado Artur Carneiro Macedo da Rocha, dona Henriqueta Alves Neto, Suzana Vieira e o ex-senador Venâncio Florival, a propósito da próxima visita do ditador a São Paulo. Só Marieta Vale não participava, o rosto pálido como se andasse enferma, desatenta aos seus convidados, esquecida dos seus deveres de dona da casa, indiferente à conversação.
Fora a notícia de que a Comendadora da Torre abriria os salões da sua esplêndida residência – um palácio escondido entre árvores, repleto de preciosos objetos de arte – para receber o ditador, a mecha a fazer explodir a indignação paulista de dona Henriqueta Alves Neto. Seu marido esperara suceder Armando Sales no governo de São Paulo, era um dos políticos mais prejudicados com o golpe. Dona Henriqueta arregalava os olhos escandalizada, ferida nas suas suscetibilidades de “paulista de quatrocentos anos”.
– Uma casa paulista abrindo suas portas para receber o humilhador de São Paulo! Bem se vê logo que a Comendadora não possui tradições, ninguém conhece seus avós... – repetia palavras ouvidas do marido, jogado em plena conspiração contra o governo.
O ex-senador Venâncio Florival pousava os olhos inexpressivos sobre a exaltada senhora, divertido com a sua reprovação. Suzana Vieira, mordiscando um biscoito molhado em vinho do porto, procurava acalmá-la:
– Henriqueta, minha filha, não se exalte... O melhor é fazer como eu: encomendar um novo vestido de soirée... Mandei fazer o meu no atelier de Madame Berta. Ela é formidável... Getúlio vem para fazer as pazes com São Paulo. É o que todo mundo está dizendo.
– Não, Suzaninha, tenha paciência... Eu, de minha parte, não vou. A Comendadora pode pensar o que quiser, mas durante os dias que esse. . – procurava o termo capaz de definir o ditador – ... maldito estiver em São Paulo, nem as janelas de minha casa se abrirão.
O fazendeiro Florival riu sua grossa gargalhada pondo uma nota áspera de vulgaridade na elegância da reunião.
– Não tem de que rir, Senador...
– Não sou mais Senador, dona Henriqueta, o Doutor Getúlio fechou o Senado, estou desempregado... – e ria novamente.
– Nós já combinamos, um grupo de senhoras das mais distintas de São Paulo: vamos nos vestir de luto enquanto durar a visita. Luto fechado.. . Tudo que é de boa família está do nosso lado... As Mendonças, as Cerqueiras, as Modestos, as Prados, são todas do nosso grupo. Já encomendamos os vestidos. Quem for paulista de verdade se veste de preto nesses dias...
Suzana Vieira espantou-se:
– E eu que não sabia disso.. . De preto, você diz? Vai ser chique, hein? Por que não me avisaram?
– Vocês estão do lado do ditador... Teu pai não foi nomeado Procurador-geral do Estado?
– Ah! isso não quer dizer nada, menina. Papai pode ir receber o homem e eu botar-me de negro... Agora é até moda essa divisão política nas famílias. Veja os Almeida: o velho é “democrático”, jura pelo Dr. Armando: o irmão, o doutor Ambrósio é integralista; o filho mais velho, Mundinho, é getulista, e Cícero é comunista...
– Mundinho não é getulista coisa nenhuma... – defendeu Henriqueta. Raimundo d’Almeida era seu atual amante.
Suzana maliciou:
– Bem, você sabe melhor do que eu, mas ouvi dizer que ele é candidato a Interventor de São Paulo...
– Boato... Êle está firme e quando chegar a hora...
– Que hora, dona Henriqueta? – perguntou o fazendeiro.
Henriqueta tomou um ar conspirativo:
– Eu não sei de nada, é melhor perguntar a Arturzinho. Tudo que sei é que São Paulo não vai se deixar humilhar assim...
O ex-senador dirigia-se ao ex-deputado:
– Conspiração, seu Artur? Que besteira é essa?
– Eu tampouco sei de nada. Estou em minha fazenda desde o golpe, sem sair, sem receber ninguém. Sou contra o regime, todo mundo sabe. Sou um homem de princípios liberais, não aceito o totalitarismo, venha de onde vier.. Mas também não creio ser patriótico se conspirar nesse momento. A situação internacional é extremamente complicada e o Brasil precisa de paz para não ser uma presa fácil...
– Que é isso, Arturzinho? – Henriqueta se espantava. Até você está dando para trás?
– Eu estou onde sempre estive, Henriqueta. Coerente comigo mesmo. Sou contra o governo mas sou contra também qualquer conspiração... – suavizava a voz para o argumento: – Um golpe fracassado só servirá para fortalecer o governo... O melhor é deixá-lo cair de podre... Com os escândalos se sucedendo, com todos esses amigos de Getúlio como urubus em cima de carniça a dividir o Brasil, não vai tardar...
– Não vai tardar o que? Getúlio cair? – Venâncio Florival tinha dúvidas. – Homem, eu sou um caipira das brenhas de Mato Grosso, mas não creio nisso. Escândalos sempre houve, escândalos sempre haverá... Quem está de cima procura comer, essa é a lei da política, seu Arturzinho... E ademais quem é que sabe dos escândalos, agora com a censura da imprensa? Os jornais escrevem o que o DIP manda e o povo não sabe de nada... Eu penso que o doutor Getúlio vai ficar no governo pelo resto da sua vida. Ele tem os Generais com êle, pode fazer frente a qualquer golpe, o homem é sabido. Por mim, não me envergonho de dizer: estou com êle. Tenho aqui na carteira o telegrama que êle me passou agradecendo o apoio que lhe ofereci. E vim da fazenda para esperá-lo aqui...
– Oh! – Henriqueta parecia ter chegado ao cúmulo do escândalo. – O Senhor, Senador, o Senhor vai aderir também? Mas é uma verdadeira traição...
O ex-senador ia responder, certamente com uma daquelas suas costumeiras brutalidades, quando Marieta interveio para evitar uma cena desagradável:
– Mas então, Henriqueta, vocês vão lançar uma moda: o negro como cor para vestidos de verão... Eu também estou interessada apesar de José não se meter em política...
Venâncio Florival, que se contivera ante a voz de Marieta, voltou a rir:
– Costa Vale não se mete em política... Essa é boa, dona Marieta...
Henriqueta, satisfeita da sua própria exaltação, começou a dar detalhes sobre os vestidos negros encomendados, sobre os “milagres” de chique realizados pelas costureiras caras. E revelava os segredos:
– Mariúcia Soares de Macedo até está pensando num baile, no mesmo dia da recepção da Comendadora, todo mundo de negro, mas um negro pesado, de luto... Uma coisa original: danças ao som de músicas fúnebres, Bertinho Soares está organizando o programa...
O fazendeiro continuava a rir:
– Ora, vamos fazer as pazes, dona Henriqueta... Enquanto vocês estiverem dando festinhas, fazendo vestidos de luto, a coisa vai bem. O que não está certo é conspirar. Isso é que é perigoso...
Suzana Vieira queria saber:
– Mas existe mesmo conspiração?
– Existem conversações entre armandistas e integralistas. E quem se aproveita com isso tudo? Os comunistas... Só eles ganham com a confusão, com a divisão entre nós... Eu sempre digo: o justo é apoiar doutor Getúlio contra os comunistas...
Henriqueta estava dando a Marieta detalhes da festa projetada: os homens iriam de branco mas com um sinal de luto no paletó, as mulheres de véu negro sobre o rosto, Bertinho Soares, um dos jovens grã-finos mais em evidência da capital paulista, estava catando tudo quanto era disco de música sacra e fúnebre para servir como música de dança, o arquiteto Marcos de Souza havia emprestado os “Cantos gregorianos” numa gravação magnífica.
– Mas isso é até um sacrilégio... – disse Artur.
Suzana Vieira estava vacilante entre os negros vestidos elegantes e a recepção da Comendadora:
– Estou quase topando o plano de vocês...
– Seu pai vai ficar danado...
Um criado anunciava a Comendadora da Torre. A velha surgia num exagero ridículo de jóias, todos se levantavam para cumprimentá-la. Ela queixava-se do calor, desse “clima africano do Brasil, um clima selvagem, feito para negros e mulatos”. E esse calor asfixiante era anúncio de grandes chuvas, de temporais que talvez viessem cair na semana da visita de Vargas, reduzindo a imponência do comício.
– Comício... – Henriqueta estirava o lábio num gesto de pouco caso. – Se não fosse o jogo de futebol não iria ninguém... E depois falam da popularidade do ditador...
Suzana Vieira revelava, num tagarelar leviano, os projetos antiestadonovistas dos políticos decaídos de São Paulo:
– A senhora já sabe, Comendadora? Não é a chuva somente que ameaça a sua recepção e o comício... Muita coisa está sendo preparada para gorar a vinda do Gegê... Andam dizendo que os estudantes de direito vão entrar em greve e fazer o enterro de Getúlio no mesmo dia que êle chegar em São Paulo. E, agora mesmo, Henriqueta estava contando que ela e muitas outras vão se vestir de luto, de negro cerrado, enquanto êle estiver aqui...
A Comendadora da Torre fixou os olhinhos espertos em Henriqueta:
– Cuidado, Henriqueta, que o negro na sua idade envelhece muito... Dá pelo menos cinco anos a mais... Você vai parecer uma velha de cinqüenta...
Henriqueta enrubescia:
– Mas eu só tenho trinta e dois...
A Comendadora era perversa:
– Você casou muito menina, hein? Seu filho quantos anos tem? Não fez vinte, já?
– Vinte? Que horror, meu Deus! Nhozinho tem somente quinze anos... E eu me casei mesmo muito moça... Está ai Marieta que sabe. Não é, Marieta?
Marieta era arrancada de seus melancólicos pensamentos:
– Você era criança quando se casou...
– Até papai não queria deixar... – agora estava com raiva e enchia-se de altivez. – Mesmo que eu parecesse velha, não me importa. Vou me vestir de luto para protestar contra o insulto a São Paulo... – buscava o apoio de Artur. – Não acha, Arturzinho?
– Acho, sim, Henriqueta. É uma profunda humilhação feita a São Paulo, essa visita três meses após o golpe. Eu me retirarei para a minha fazenda...
A Comendadora da Torre resmungou:
– Enterro coisa nenhuma, greve coisa nenhuma... Vocês são todos uns testarudos... Que é que Getúlio tem demais? Só por que andou mais depressa que o doutor Armando?
– Isso mesmo... – apoiou Venâncio Florival.
– Oh! – fez Henriqueta.
– Eu não sou paulista de quatrocentos anos, menina, não me chamo nem Macedo da Rocha nem Alves Neto. Para mim êle é um bom presidente e mais dia menos dia seu marido vai pensar o mesmo, e Arturzinho também...
Artur levantou-se, muito digno:
– Minha senhora, faça-me justiça. .. Eu penso em São Paulo, na sua dignidade ofendida por esse homem sem passado que se apoderou do governo... Não digo que êle não tenha qualidades de estadista, nunca as neguei, nem mesmo na Câmara, nos meus discursos parlamentares. Mas uma coisa é ter qualidades e outra é querer governar contra os interesses de São Paulo... Veja o preço do café, nunca esteve tão baixo. A lavoura cafeeira está às portas da ruína e o governo, o que é que o governo faz?
Venâncio Florival respondia:
– Não seja injusto, Artur. O governo não está de olhos fechados, posso lhe afirmar. Há um projeto de compra de todo o resto da safra pelo governo.
Aquela notícia pareceu interessar muito mais que toda a discussão anterior, pediam detalhes, confirmações, todos eles tinham fazendas de café e um resto de safra a vender. Mas o ex-senador não quis revelar o segredo, disse não conhecer-lhe as minúcias, apenas sabia com certeza da existência de um projeto em estudos, projetos a ser realizado em breve. Suzana Vieira decidia-se finalmente pela recepção:
– Eu não disse que êle vem para fazer as pazes com São Paulo Eu vou é à recepção da Comendadora... E toda de branco, nem um tiquinho de negro sobre mim...
Aos poucos foram saindo. Primeiro Henriqueta, a quem a presença mal-educada da Comendadora incomodava. Depois o fazendeiro e Suzana Vieira. Marieta ficou em companhia de Artur e da velha. Essa fazia virulentos comentários sobre a personalidade de Henriqueta:
– Dando-se ares de grande senhora... Filha de um reles comerciante de secos e molhados... Se ela preza tanto a honra da nobreza paulista não devia arrastar o nome do marido pela cama de quanto rapaz novinho há em São Paulo. Na hora de deitar-se, ela não se recorda dos brasões da família...
Artur sorria, estendia os braços numa súplica:
– Piedade, Comendadora, piedade para a pobre Henriqueta! Ela é a nossa Maria Madalena e Cristo já a perdoou por antecipação...
A Comendadora volta-se para êle:
– Você é outro atrapalhado... Cadê seu filho que você não levou a jantar em minha casa? Não se lembra mais?
– Foi o golpe de Estado, Comendadora, que atrapalhou tudo. Não saí da fazenda nesses meses, agora é que estou voltando... E Paulo está no Rio, no Ministério...
– Mas vem a São Paulo todo fim de semana, anda às voltas com uma sirigaita de cabelos loiros, eu estou a par, o Shopel me contou... Eu lhe dou um prazo de oito dias: ou leva o rapaz à minha casa ou eu me desinteresso dele...
Marieta tomava interesse pela conversa:
– A Comendadora tem razão, Artur. Paulo precisa casar- se. Anda por aí batendo a cabeça, envolvido num caso com uma aventureira, é capaz de aparecer casado de repente, sem você saber. Uma pobretona, o irmão é um pequeno empregado do Ministério do Trabalho, pouco mais que um porteiro, e ela, ao que eu sei, é uma espécie de girl de cabaré barato ou se prepara para ser... E Paulo anda tão encegueirado que nem vem mais aqui...
Artur preocupava-se:
– Eu não sabia de nada... Pensava que era uma coisa sem importância... Mas, se é assim, é mais sério... Vou conversar com êle. E tu deves conversar também, Marieta, ele te ouve muito...
– Ele nem aparece mais... Quando vem é por uns poucos minutos e só tem voz para falar na tal bailarina, nos projetos para fazê-la estrear no Rio, uma loucura idiota.
A voz de Marieta atravessara a garganta com dificuldade, ela sentia-se infeliz, Paulo parecia-lhe definitivamente perdido.
A Comendadora ia embora:
– Leve ele para jantar em minha casa, vamos tirar essa loira de sua cabeça... Minha sobrinha mais velha também é loira. Não é bailarina mas toca piano muito bem...
Artur a acompanhou, acertava o dia do jantar, um próximo domingo. Marieta ficou só, ante as xícaras vazias de chá e os cálices onde fora servido o vinho do porto. Paulo já estava na cidade, ela sabia que ele costumava chegar no avião das duas da tarde. Bem poderia ter vindo tomar chá em sua casa, antes sempre o fazia. Mas agora era de fugida que aparecia no fins de semana, e a torturava falando-lhe dessa tal Manuela, contando da sua beleza, da sua ternura de pequeno-burguesa dedicada, aquela paixão cheia de calor deliciando Paulo. Marieta procurava medir, através da conversação, a intensidade dos sentimentos de Paulo pela moça. Por vezes convencia-se alegre tratar-se apenas de uma aventura sem conseqüência, prendendo o rapaz apenas pela novidade de um afeto virginal ao qual ele não estava habituado. Nessas horas se sentia mais calma. Porém, ao ouvi-lo falar da formosura de Manuela com palavras poéticas, um temor a assaltava: aquela namorada saída de um meio pobre não seria uma dessas aventureiras sabidas, com um plano bem armado, disposta a envolver Paulo num sentimento fabricado calculadamente para levá-lo ao casamento e para dominá-lo por completo? Marieta sabia ser-lhe impossível possuir completamente Paulo. Seus planos para se fazer amar pelo rapaz eram, eles mesmos, pouco concretos e definidos. Sabia apenas que o amava além de suas forças. Não importava que êle casasse. Desejava mesmo que o fizesse, que esposasse, por exemplo, umas das sobrinhas da Comendadora da Torre, num casamento rico e sem amor. Uma esposa assim não era ameaça aos seus desígnios, bem ao contrário: um Paulo casado e fastidiado da esposa estaria mais próximo a ela. O perigo era um casamento de paixão, trazendo a condenação de todo o mundo e, por isso mesmo, ligando Paulo à esposa, afastando-o do seu meio, afastando-o dela, Marieta.
Pensa nele, e, ao contrário de Manuela, ela não o deifica, não o idealiza: sabe do medo que êle tem à pobreza, do receio de viver sem dinheiro para todos os seus caprichos. Marieta o amava assim mesmo, talvez o ame ainda mais por êle ser cheio de defeitos, frio, indiferente, medroso e cínico. Ele se parece a ela, são produtos do mesmo ambiente. É preciso – repete a si mesma na busca de um meio de libertá-lo de Manuela – amedrontá-lo com a perspectiva da pobreza, da vida difícil e medíocre que o espera se êle cometer a loucura de casar-se com essa moça desconhecida, sem nome e sem dinheiro, carga pesada para os ombros frágeis de Paulo Carneiro Macedo da Rocha...
A entrada de Costa Vale interrompe os seus pensamentos. O banqueiro joga-se numa poltrona, pede uísque ao criado vindo em busca de ordens, explica à esposa:
– Esse Shopel é um homem precioso... Ele está conduzindo com uma habilidade extraordinária a propaganda da Empresa do Vale do Rio Salgado. Soube dosar bem a pílula: os acentos de nacionalismo alarmaram nossos amigos norte-americanos. Eles temem que Getúlio se apóie nos alemães e ficaram tontos com o golpe da concessão feita a Shopel. O conselheiro comercial veio aqui especialmente para conversar comigo, nem sabia ainda que eu estava por detrás do negócio. Eu lhe expliquei que me adiantara para impedir os alemães. Ele vai falar com Nova Iorque por telefone, vamos ver que proposta farão... A verdade é que ele me olhou com respeito desta vez... – bebeu um trago de uísque e falava como para si mesmo. – Mas já é tempo de fazer silêncio sobre o Vale do Rio Salgado. De agora em diante quanto menos se fale, melhor será... É preciso avisar ao Shopel.
Mas, Marieta não o ouvia sequer, pois na porta aparecera a figura de Paulo, sem se fazer anunciar. Ela se ergueu precipitadamente, correu para êle de mãos estendidas.
Esse mundo mercantilista e poderoso de negócios, bancos, empresas, fábricas, companhias, fazendas imensas, em cujo centro homens empreendedores e capazes, como Costa Vale, manejavam os cordéis fazendo movimentarem-se políticos, jornalistas, funcionários, policiais, advogados, tentava Lucas Puccini, atraia-o com a força de uma ambição ilimitada. Mundo acima das leis, mundo do poder sobre os homens, aparecia ante os olhos do jovem ex-comerciário como o centro de toda a vida, esse mundo de uns quantos privilegiados, dignos de toda inveja, segundo Lucas. Ele aspirava a penetrar nesse fechado universo, ser um daqueles poucos homens a manejar os cordéis de marionetes como Shopel ou Eusébio Lima. Seu olhar sonhador partia da sala da repartição para vagar sobre os arranha-céus onde estavam instaladas as grandes companhias e os bancos. Da sua janela podia ver a fachada de cimento-armado do edifício do “Banco da Lavoura e Indústria”, e, em certas ocasiões, na sacada do último andar debruçar-se a figura pálida e calva de Costa Vale, o olhar passeando sobre a rua como um proprietário a examinar suas propriedades. Lucas, ao enxergá-lo, deixava a mesa de trabalho, saía para a janela, demorava-se silencioso na contemplação do poder que sentia emanar-se do outro e quase podia acompanhar seus pensa mentos: “êle agora está pensando na Empresa do Vale do Rio Salgado, resolvendo problemas, calculando os milhões a ganhar”.
Milhões a ganhar... Havia milhões a ganhar em múltiplos negócios. O importante, pensava Lucas, era começar, “lançar-se”, como Me dizia a si mesmo. Mas para isso era necessário uma oportunidade inicial e boas proteções. Não via tal oportunidade aparecer em sua frente e, quanto a protetores, estava reduzido a Eusébio Lima e às promessas vagas de Shopel. Tudo muito pouco e muito abaixo do que êle se propunha a realizar. Sentia-se como parado ante um largo fosso, enxergando do lado de lá a fortuna a chamá-lo, o dinheiro rolando pelo chão era só recolhê-lo. Mas, para isso era necessário atravessar o fosso, encontrar-se do outro lado, e como fazê-lo? Vendo Costa Vale andar da sala para a sacada, em passos medidos, pensando seus grandes negócios, Lucas sentia-se mesquinho e miserável. Como fazer para encontrar-se, êle também, no último andar de um arranha-céu, no edifício do “seu” Banco, dominando a cidade e os homens?
Foi assim que Eusébio Lima, chegado do Rio para os derradeiros preparativos da visita do ditador, o encontrou, os olhos fixos na sacada em frente, a testa enrugada em pensamentos. O “técnico de política trabalhista” estava como sempre conversador e cordial. Abraçava funcionários ao passar, dava-lhes tapas leves no rosto, pedia notícias das famílias.
– E você, meu velho, como vai? Que faz aqui, nessa janela, admirando a careca do Costa Vale... – ao mesmo tempo tirava o chapéu, curvava-se num rasgado cumprimento para o banqueiro que, desatento, não o via de sua sacada.
– Não admiro, invejo...
– Ele é uma força, não há dúvida. Fortuna enorme, tem nas mãos uma série de companhias e fábricas, é homem de confiança dos americanos... Manda e desmanda neste pais... O “patrão” (assim designava Getúlio Vargas) gosta dele, ele esteve por detrás do golpe de Estado todo o tempo. Em troca, abocanhou as terras do Vale do Rio Salgado, é o maior negócio dos últimos tempos... Se não fosse, menino, essa bendita censurazinha da imprensa, muitos jornais estariam botando a boca no mundo, falando em escândalo em negociata, pedindo inquéritos e comissões. Mas agora anda tudo de boca arrolhada, nós estamos no país ideal com o regime ideal....
Baixava a voz numa confidência:
– É só abrir a boca e comer, meu velho, comer até empanzinar...
Ria em risadinhas curtas, saboreando seu dito, contente do regime, da sua posição, da oportunidade de negócios:
– O importante é estar metido dentro, seu Puccini, é fazer parte da dança. Nós fazemos parte da dança... E viva o Estado Novo e seu chefe o grande brasileiro doutor Getúlio!
– Você faz parte da dança mas eu sou quando muito um reles porteiro ou um pobre garçom servindo os convidados. Pra mim ficam as sobras da mesa, as migalhas...
– Você é apressado, rapaz. Nem bem começa e já quer estar rico. Eu venho nisso desde 1930 e, se bem não possa me queixar, ainda não tomei indigestão de dinheiro.
Segurou no braço de Lucas, novamente confidencial:
– Só agora é que tenho nas mãos um negocinho que pode render umas boas centenas de contos de réis, uma bolada grossa, dessas de dar água na boca... Um desses arranjinhos que, se der certo, vai fazer a independência do Sr. Eusébio Lima e do sr. Lutas Puccini...
– A minha, por quê? – fez Lucas num interesse.
– Porque eu sou seu amigo, quero fazer você participar da bolada. Hoje jantaremos juntos e no jantar lhe conto todo o plano... Agora, vamos a ver como marcham as coisas para a vinda do homem, do nosso patrão e amigo, o benemérito da pátria, nosso chefe doutor Getúlio Vargas, na intimidade “Gegê”... – e ria do interesse despertado em Lucas, dos olhos de cobiça acesos no rosto do rapaz. – Calma, meu velho, calma, que já há milho para todos os bicos...
Lucas esperou impaciente a hora do jantar. Discutira com Eusébio os planos para a visita de Vargas a São Paulo. Tudo estava pronto, a publicidade do comício a realizar-se era enorme, dezenas de milhares de pessoas certamente lotariam por completo o estádio onde, após o discurso do ditador, os clubes de futebol campeões do Rio e de São Paulo, disputariam uma partida. Uma guarda pessoal escolhida a dedo, fora organizada. Gente segura, de absoluta confiança, devotada por completo à pessoa do chefe do governo. Os integralistas é que estavam dando trabalho, recusavam-se a participar da manifestação, os chefes andavam descontentes com o fechamento do partido fascista, e com a sua não participação no governo. Criticavam a política interna de Vargas, de aceitar o apoio dos ex-correligionários de Armando Sales e José Américo, e sua política internacional vacilante, recuando da projetada adesão ao pacto antikomintern, fazendo concessões aos americanos, sem abrir de vez as portas aos alemães. Porém não existia unanimidade de vistas entre os integralistas. Lucas tratara, durante esses dias, com muitos deles. E, ao lado de tipos irritados contra Getúlio, sentindo-se enganados, convencidos de que o Estado Novo necessitava de outro chefe, alguém que afastasse os velhos políticos “democráticos” e se voltasse por completo para a Alemanha, encontrara vários dispostos a colaborar, como aquele professor da Faculdade de Medicina, dr. Alcebíades de Morais, que se pusera à sua disposição para levar ao comício estudantes e amigos seus, ex-integralistas satisfeitos com Vargas. O professor lhe dissera, em seu consultório, onde o recebera:
– O doutor Getúlio está realizando o que eu sonhava: um regime forte, de combate ao comunismo, de defesa das instituições cristãs. Se êle se chama integralismo ou não, pouco importa. Desde que êle está de acordo com minhas idéias, eu o sirvo.
Disse-lhe mais, que gostaria de expressar pessoalmente essa solidariedade ao ditador quando de sua visita a São Paulo:
– Quero ter a honra de apertar a mão desse grande patriota e, se possível, falar-lhe dos problemas da Universidade. Porque, meu caro amigo, essa Universidade de São Paulo precisa ter à sua frente alguém capaz, de pulso firme e de idéias como as nossas. Os comunistas se infiltraram entre os estudantes, mesmo entre os professores, e existe também muito “armandista”, inimigo de doutor Getúlio...
Lucas sentira-se um pouco envaidecido com as confidências daquele médico ilustre quase a pedir-lhe proteção para ser nomeado Reitor da Universidade de São Paulo. Não lhe explicou que êle mesmo, Lucas, não tinha nenhum prestígio, buscava pistolões capazes de ajudá-lo. Prometeu tudo fazer para lhe facilitar o encontro com Vargas. Discutindo agora o assunto com Eusébio, esse se mostrara muito interessado:
– Esse cara tem nome na medicina... Ele podia ser um dos que saudassem doutor Getúlio, no comício... Precisamos de um intelectual de prestígio. E que seja de São Paulo Conversaremos com êle sobre isso, amanhã.
Eusébio ficara satisfeito com os preparativos da manifestação, saíra para ir conferenciar com o chefe de polícia do Estado Era necessário, nas vésperas da vinda do ditador, dar uma batida completa na cidade, encafuar nos cubículos da polícia central quanto comunista andasse em liberdade. Para evitar a possibilidade de surpresas desagradáveis... Viria, no fim da tarde, buscar Lucas para o jantar. Conversariam então sobre o grande negócio.
Lucas morria de impaciência quando, já depois das sete, Eusébio voltou. Os demais funcionários tinham saído há muito e Lucas, sozinho na sala, procurava adivinhar que negócio seria esse, capaz de dar-lhes centenas de contos de réis. Quem sabe se não era a sua esperada oportunidade?
Eusébio o levou a um restaurante caro, de luxuosos gabinetes reservados num dos quais se meteram. Após terem encomendado o jantar o líder trabalhista começou a explicar:
– Não sei se você sabe, que os fazendeiros de café estão atrapalhados. A safra foi muito grande e os americanos, jogando com o café da Colômbia, arrasaram os preços. Os fazendeiros estão com a corda no pescoço: existe um resto de safra a ser vendido e os exportadores oferecem um preço miserável. Outro dia eu estive conversando com o Florival, um grande fazendeiro de gado e de café, Venâncio Florival, um que era senador... ele se queixava, rogava praga nos americanos, o café está colhido e sem comprador... Da conversa nasceu a idéia de vender-se esse resto de safra ao governo. Eu poderia me encarregar de mexer os pauzinhos com o pessoal do gabinete do presidente. Comecei logo a movimentar-me. A coisa parece que vai. Havia uma dificuldade: que fazer desse mundão de café? Queimar ou jogar no mar não se podia dessa vez, há muita gente conspirando contra o regime: comunistas, “armandistas”, integralistas, iam se aproveitar para sua propaganda. Essas coisas, você sabe: o povo não pode comprar café e o governo queima café, joga no mar... Mas um amigo meu, que está também no negócio, eu lhe digo em segredo que é trunfo no Departamento de Imprensa e Propaganda, teve uma boa idéia: o nosso governo, que é como todo mundo sabe, anticomunista, pode fazer um presente de algumas centenas de mil arrobas de café ao general Franco que está acabando com o comunismo na Espanha, café para os seus soldados... A coisa está amarrada assim... O governo compra aos fazendeiros o resto da safra, paga os preços altos de antes, oferece de presente um bocado do café a Franco, nós pegamos uma boa comissão dos fazendeiros e ainda vai sobrar uns quantos milhões de sacas de café para cada um de nós vender aos retalhistas... Que lhe parece? Pensei em você também: meu amigo Puccini deve dar sua dentadinha nesse doce de coco... Você pode ser encarregado de receber o café dos fazendeiros aqui, tratar do embarque, em Santos, da parte que vai para o general Franco e, sabe como é, guardar uma parte da sobra para a gente... Essa parte venderemos para nós dois, mas você levará alguma coisa também da comissão dos fazendeiros. A comissão deve andar num milhão de cruzeiros, é verdade que para dividir entre muita gente. Mas pode sobrar uns vinte contecos para você, meu velho.
Riu seu risinho cheio de sabedoria:
– Sou seu amigo, hein? Eu sou assim, meu velho: não sei comer sozinho. Quando me aparece um bom naco, penso nos amigos...
Lucas o ouvira em silêncio, não o interrompera nem uma única vez. Pensava, enquanto Eusébio desenvolvia sua história, e uma idéia lhe viera e crescera enquanto outro falava:
– Muito obrigado, você tem sido para mim mais do que um amigo. Mas, vou lhe dizer uma coisa, eu vejo muito mais dinheiro a ganhar nesse negócio se a gente puder dar um jeitinho...
– Mais dinheiro? Como, seu Lucas?
Tinha confiança na inteligência de Puccini, avançava o busto sobre a mesa:
– O que é que você tem na cabeça?
– Ouça: por que é que o governo deve sair de fazendeiro em fazendeiro comprando o resto de safra: Por que não compra a um homem só?
– Não entendo direito...
– É fácil... Alguém compra, por um bom preço, mas inferior ao que o governo vai pagar, o resto de safra de todos esses fazendeiros... E o governo depois compra a essa pessoa todo o café e na diferença de preços se ganha uma fortuna...
Eusébio Lima escancarou a boca:
– Seu Lucas, você é um gênio! Eu sempre achei, desde o colégio, que você tinha miolo nessa cabeça... Essa é a maior idéia dos últimos tempos... Nós compramos o café, podemos até comprar em nome do governo e vendemos uns tostões mais caro cada quilo. Vai fazer, meu velho, uma montanha de tostões maior que o Himalaia. Seu Lucas, meus parabéns... Se eu tivesse essa sua inteligência já estava mais rico que o Costa Vale...
– Só tem uma dificuldade... – falou Lucas.
– Qual é?
– Arranjar o dinheiro para financiar a operação.
– O dinheiro para pagar o café aos fazendeiros?
– Isso mesmo... É preciso um dinheirão.
Eusébio abriu o rosto num sorriso de triunfo:
– É aí que entra Eusébio Lima e resolve a dificuldade. Para que fim existem, seu Puccini, as Caixas de Aposentaria e Pensões e Eusébio Lima mandando um bocado no Ministério do Trabalho? O dinheirinho está lá à espera da gente. É só retirar, realizar a transação, depois repor...
O garçom vinha trocar os pratos e saber que sobremesa desejavam. Depois que êle saiu, os dois amigos começaram a discutir os detalhes da empresa. Já era tarde quando terminaram de botar completamente em pé a negociata. O restaurante estava deserto de fregueses, o garçom que os servira cochilava numa cadeira, o caixa lia um jornal da tarde. Eusébio Lima pagou a conta, deu uma generosa gorjeta. Ria sozinho, esfregava as mãos uma na outra:
– Idéia mãe, seu Lucas, idéia mãe... E isso fica entre nós dois, cinqüenta por cento para cada um... Além da comissão dos fazendeiros, além do cafezinho para vender aos retalhistas... E viva o doutor Getúlio!
Uma chuva pesada, precedida e acompanhada de trovões e raios, caiu com o crepúsculo, aliviando um pouco O calor insuportável. No bairro operário, crianças esfarrapadas brincavam, os pés metidos na água que corria junto aos passeias para as bocas-de-lobo dos esgotas. Mariana viu o barco de papel, solto por um pequenino de olhar atrevido, partir veloz na correnteza, naufragar mais adiante. O menino que batia palmas ao seu barco viageiro, suspirou ao vê-lo tombar de um lado e voltar a ser uma simples folha de papel:
– Afundou...
Mariana acariciou a cabeça do pequerrucho, evitou a poça de lama, continuou o seu caminho. Vinha de visitar o velho Orestes, preso ao leito por um ataque de reumatismo. Impedido de movimentar-se, de ir, à noite, de um lado para outro, conversando com os vizinhos, o velho italiano ficava de mau humor, reclamava contra tudo e contra todos, esticava os longos bigodes e os antigos laivos anarquistas vinham à tona fazendo-o deblaterar contra os métodos atuais de luta operária, esse desprezo por uma boa bomba de dinamite, por um retumbante atentado. Mas a visita de Mariana o acalmava, êle tinha uma predileção especial por ela, conhecera-a desde quando ela era ainda um nada de gente e sentava-se em seus joelhos para ouvi-lo cantar em espanhol canções anarquistas, aprendidas por Orestes em Buenos Aires:
“.– Dónde vas, con paquetes y listas
que tan pronto te veo correr?
– Al Congreso de los anarquistas
que reclaman un derecho: vivir.
– Escúchame un momento si quieres
Anarquista, qué quiere decir,
– Es la inmensa falange obrera
que reclama el derecho a vivir!”
Mariana fazia-o recordar-se dos tempos iniciais do Partido em São Paulo, quando era um pequeno grupo de homens audaciosos, vários deles vindos do anarquismo, entre os quais Azevedo, o pai de Mariana, de quem Orestes costumava dizer “ter sido o melhor de todos eles”. Acompanhara dia a dia o desenvolvimento da jovem operária, via nela o próprio desenvolvimento da sua classe, o seu amadurecimento político, a sua marcha para diante. Velho já e enfermo, não podendo mais participar como antigamente de uma forma ativa de todas as lutas partidárias mas sentindo jovem o seu coração entusiasta, sua vida eram as discussões no bairro, onde sua voz exaltada dominava todas as demais, era o trabalho de finanças para o Socorro Vermelho do qual era responsável no quarteirão, era o acompanhar, num interesse carinhoso, a evolução dos quadros jovens. Por vezes ainda realizava um daqueles feitos que o haviam celebrizado entre o proletariado da Argentina, do Uruguai e do Brasil. Ainda pouco antes do golpe de Estado, tendo ido assistir a uma conferência sobre direito penal do doutor Antônio Alves Neto, escandalizara todo o auditório, composto de gente da alta sociedade, ao interromper o conferencista. O marido de Henriqueta acabara de declarar que “um cidadão que assassina um rei é um regicida” e do fundo da sala elevou-se a voz de Orestes, perguntando:
– E um rei que mata um povo como se intitula?
Mariana acalmava-lhe os nervos, dava-lhe notícias da guerra de Espanha. Ela recebera, enviado de Paris, um folheto com música e letra de canções dos republicanos espanhóis. Tinha sido certamente Apolinário quem o fizera enviar da França, não querendo mandá-lo diretamente da Espanha onde já estava há quase dois meses participando dos combates, no posto de Capitão. O velho Orestes vivia intensamente a guerra espanhola. Possuía um mapa da Espanha onde marcava, com alfinetes, as posições dos republicanos e dos franquistas. Queixava-se:
– Esses jornais burgueses, “cara piccina”, já não valiam nada antes mas agora, com a censura, só publicam notícias da Espanha quando é para dizer que Franco avançou. Das vitórias republicanas não dizem nada, até dá raiva ler, “per Bacco”.
Levantava-se na cama apesar das dores reumáticas:
– Eu queria era estar lá, em Madrid ou na Catalunha, mostrando a esses falangistas o que um velho comunista... Tenho um desgosto de não ser mais moço...
Mariana o animava, falava da luta no Brasil, cada vez mais áspera e difícil. Os políticos burgueses viviam aterrorizados ante Vargas, inteiramente acovardados, o Partido era a única força positiva na luta contra o Estado Novo. Ele não soubera da resposta que um político baiano dera a um camarada responsável pela região da Bahia, Vítor, quando este o procurara para tratar de uma frente democrática capaz de impedir a marcha do país para a fascistização completa? Orestes não sabia mas disse poder imaginar facilmente.
– Não, não pode imaginar, é uma coisa que chega a parecer absurda. Ele respondeu a Vítor que era inútil qual quer movimento sério no Brasil. Que o Brasil estava podre e êle só via uma solução para o país: ser transformado em domínio inglês, fazendo parte do Império Britânico, imagine...
– Ele julga o povo através da burguesia sórdida que ele conhece. Essa gente não tem pátria, “carina mia” , eles vendem o país a quem der mais. Pra essa gente só uma bomba rebentando debaixo da bunda... Não tem outro remédio.
Quando ela se despedira, êle tomou-lhe da mão e perguntou afetuosamente:
– Que se passa contigo? Pareces preocupada.
– Não é nada... – ela sorriu.
– Se alguma coisa te aborrece, vem aqui e me conta
Não contara nada, afirmou estar bem, sem alguma outra preocupação a não ser as resultantes da própria situação política. Mas, enquanto vinha pelo passeio molhado, respirando o ar úmido após a chuva, arrependia-se de não haver aberto o coração ao bom velho Orestes. Ele saberia certamente consolá-la, tranqüilizar sua inquietação. Olhava as poças d’água e via refletir-se nelas o rosto magro do camarada João e parecia escutar ainda sua voz se despedindo há quase dois meses já:
– Não sei quando vou voltar. Tenho uma tarefa da direção nacional fora daqui. Um mês, dois meses, não sei...
Tomara as suas duas mãos, fitara-a nos olhos negros:
– Quando eu voltar quero lhe perguntar uma coisa...
Quase ela lhe pede para perguntar logo, adivinhava o que era, percebia os sentimentos dele depois que descobrira os próprios. Gostaria de responder-lhe antes dele partir, mas uma timidez a invadiu e não disse nada, apenas baixou os olhos e sorriu.
Onde andará êle, que perigos correrá, há quantas noites não repousa a cabeça, não consegue tempo para umas horas de sono? Quando irá voltar, quando ela poderá rever seu rosto magro e seus olhos penetrantes? Várias vezes teve vontade de perguntar ao Ruivo se tem notícias do camarada João. Mas sempre se contém: nessa vida ilegal, quanto menos se pergunta, melhor; ele se foi numa tarefa do Partido, voltará quando a tiver cumprido. E a encontrará pronta para dar-lhe a resposta desejada. Mesmo que ele caia, que seja preso e condenado, ela o esperará e seu amor só fará crescer, esse amor sobre o qual nunca falaram, amor sem palavras, de raros olhares mudos, de fugitivos sorrisos amedrontados. Por que estar inquieta, por que preocupar-se? Êle está cumprindo uma tarefa, esse é o quotidiano dos comunistas, e nesse amor ela deve encontrar um incentivo ainda maior para o trabalho partidário. Sua saudade e seu desejo de revê-lo não devem levá-la jamais a esperar que êle volte antes de ter realizado a tarefa que lhe confiou o Partido. Em nenhum momento, em seu amor, ela desliga o homem do comunismo. Nem o poderia fazer pois ela não pode pensar senão como comunista. Quando ele voltar, ela poderá lhe dizer:
– Tive muitas saudades, mas não deixei que elas perturbassem o meu trabalho.
Sorri ao entrar em casa. Foi bom não ter falado nada com o velho Orestes. Ele era capaz de pensar que ela estava aflita, com medo do que pudesse suceder a João, confundindo sua pura saudade com um desejo de furtá-lo aos perigos que cercam a vida de um dirigente comunista ilegal. Deseja que êle volte, sim, deseja-o intensa e ardentemente. Mas que êle volte após ter cumprido a missão que o Partido lhe confiou. Sem que nenhum sentimento o perturbe nem apresse. Que nenhum sentimento a perturbe também, que sua espera seja calma e alegre. Quando êle chegar, amanhã ou um dia qualquer, então ela lhe perguntará:
– Tudo bem?
– Tudo bem – êle responderá com um pequeno sorriso no rosto austero.
Ela buscará em seus olhos penetrantes aquela flama incontida e lhe dirá:
– Que pergunta você queria me fazer antes de partir? Faça logo pois não desejo ficar jamais com nenhum motivo para impaciências quando outra vez partires.
Em casa, encontra o médico simpatizante em cujo consultório faz ponto. Traz-lhe um recado urgente do Ruivo e estuda, numa curiosidade de homem de outro meio, a casa operária. Mariana esquece todas as suas preocupações: algo de grave deve estar se passando para que o Ruivo tenha utilizado o médico como ligação. Agora só uma impaciência reside em seu coração, ver chegar a hora do encontro com o dirigente, saber para que a necessitam, que perigos ou trabalhos esperam o Partido nesses dias próximos. O médico, despedindo-se, fita a face jovem e séria da operária. E parece-lhe vê-la pela primeira vez, um rosto grave e decidido, maduro de vida, pleno de uma luminosa beleza, face assim tão resoluta ele jamais vira, beleza assim jamais lhe fora dado ver. “Não será a isso que chamam de beleza da alma?”, pergunta a si mesmo transpondo a porta para a rua molhada onde crianças esfarrapadas brincavam na água suja dos esgotos.
Pelas noites, durante toda aquela semana que precedeu a visita do ditador a São Paulo, os carros da policia – automóveis, carros de patrulha, tintureiros – cortaram a cidade de São Paulo e seus subúrbios em “raids” e “batidas”. Os bairros operários viveram dias inquietos, as ruas do Brás, da Mooca, do Belenzinho, da Penha, da Vila Pompéia, do Alto do Pari, despertadas à noite pelas sirenes anunciadoras da policia, indo, de casa em casa, em busca de comunistas e simpatizantes. Famílias eram acordadas pela madrugada, operários arrancados dos seus leitos pobres, centenas de pessoas jogadas nos cubículos da Polícia central. Nas cidades industriais próximas, Santo André, São Caetano, Sorocaba, Campinas, Jundiaí, surgiram os investigadores vindos da Capital, trazendo com eles a ordem de “limpeza” completa. Os noctívagos viam esses carros atravessar velozmente as ruas, sem respeito pelos sinais de trânsito, adivinhavam a qualidade dos presos ali conduzidos. Nos muros, cartazes coloridos anunciavam o grande comício onde o ditador falaria aos paulistas. Grupos se reuniam nas calçadas para comentar, e alguns homens, de iniciativa própria, arrancavam e rasgavam cartazes após a passagem dos carros da polícia.
Muitos dos presos não eram sequer membros do Partido: a grande maioria era constituída por operários fichados pela polícia devido à atividade grevista ou por gente que havia participado do movimento de massas da Aliança Nacional Libertadora, em 1935. Alguns intelectuais tinham sido igualmente presos, entre os quais Saquila e Cícero d’Almeida. Vários judeus, cujo nome estrangeiro e origem russa bastavam para torná-los suspeitos, viam-se subitamente acusados de agentes da Terceira Internacional. Pela cidade corriam noticias terroristas, alarmando a pequena burguesia: quem não comparecesse ao comício seria fichado como comunista – a polícia exercia um controle severo sobre toda a população.
O velho Orestes foi tirado da sua cama de enfermo, às duas da manhã, por um grupo de quatro tiras de revólveres em punho. O velho italiano tinha fama de valente e os policiais cercavam seu leito numa atitude tão ameaçadora que o fizeram rir:
– Nem que eu fosse Lampião...
No tintureiro onde o meteram estavam já alguns homens. Os investigadores ocupavam um pequeno automóvel parado atrás do carro de transporte de presos. Um tira empurrou brutalmente Orestes e fechou a porta sobre êle. O velho, cuja perna dolorida o impedia de equilibrar-se, tombou, com o empurrão, sobre um homem sentado. E mesmo na escuridão o reconheceu: era um operário de Santo André, companheiro do Partido. Ao seu lado estava um jovem quase imberbe ainda, de fisionomia zangada. O operário sobre o qual Orestes caíra, ajudou-o a sentar-se:
– Mas se é o velho Orestes. . -
O jovem fitou com curiosidade o italiano cujos cabelos brancos estavam iluminados pela luz filtrada através dos respiradores do carro. Curvou-se para os dois e murmurou numa voz ciciada para não ser ouvida pelos demais presos:
– Se eles pararem outra vez para meterem mais gente, vou me escapar.. Tenho de me escapar...
O operário de Santo André explicava a Orestes:
– Ele chegou do Rio há dois dias, estava escondido em minha casa...
O jovem trocou ainda algumas palavras com eles, foi sentar-se depois na ponta do banco, ao lado da porta. O velho Orestes e o companheiro de Santo André sentaram-se no banco em frente, também ao lado da porta. Minutos depois o tintureiro parou numa freada violenta que os jogou uns contra os outros. Um investigador abriu a porta, ficou de guarda. Mais atrás, o auto onde vinham os demais policiais estava vazio, apenas o chofer ficara e acendia um cigarro. Numa casa próxima havia um ruído de vozes, distinguia-se um choro de mulher. O jovem examinava a rua, estavam quase numa esquina, uns dez metros de distância. O investigador que guardava a porta do tintureiro voltara-se para trocar umas palavras com o chofer do automóvel, ficara de costas para êle. Foi nesse momento que o jovem saltou sobre êle, derrubando-o. O operário de Santo André e Orestes saíram também do tintureira, seu desejo era apenas criar confusões. O chofer do automóvel gritou, sacou do revólver. O investigador se levantava, encontrava o velho Orestes em sua frente, segurava-o. Policiais apareciam na porta da casa onde a mulher soluçava, no mesmo momento em que o jovem dobrava a esquina. O chofer, que mantinha o revólver apontado contra o operário de Santo André, indicou a esquina com um gesto:
– Fugiu por ali...
Os investigadores se lançaram numa carreira precipitada. Alguns minutos depois ouviram-se tiros disparados mais além. Orestes e o operário de Santo André estavam agora encostados contra o tintureiro sob a ameaça de revólveres. O velho sentia uma dor intensa na perna doente, a custo mantinha-se em pé. “Eles vão nos quebrar de pancadas, mas o plano deu bom resultado, o menino pôde dar o fora, ele tem certamente alguma missão importante a realizar”.
Os tiras, que haviam partido em perseguição ao jovem, voltavam, os revólveres ainda na mão. Um, que parecia o chefe da expedição, aproximou-se do tintureiro, perguntou ao que ficara de guarda:
– Qual foi o que fugiu?
– Aquele meninote...
O polícia voltou-se para o operário de Santo André:
– O que estava em tua casa, hein? Quem é ele?
– Já disse que ele não tem nada que ver com isso. É um sobrinho meu que veio do interior buscar trabalho aqui, estava morto de medo, foi por isso que fugiu.
– Você explica isso direitinho na polícia – media com o olhar o velho Orestes. – E você, seu corno velho, também queria fugir... Nós vamos lhe ensinar essa noite mesmo... Nós vamos te curar essa doença com um remédio especial..
Dirigia-se novamente ao operário de Santo André:
– Sobrinho, hein? Eu ponho a limpo hoje a história de tua família, cachorro.
Elevou a mão, baixou-a numa bofetada sobre o rosto do operário. Fez um sinal a dois dos três homens que estavam consigo para voltarem à casa onde não haviam cessado os soluços da mulher. Os soluços cresceram, vozes numa discussão faziam abrir-se janelas na vizinhança.
Já os tiros disparados antes haviam acordado moradores da rua. Rostos apareciam nas janelas, operários que olhavam com rancor os carros da polícia. Através das frestas das venezianas assistiam à cena entre o investigador e os presos, a bofetada vibrada no rapaz de Santo André. Começaram a surgir figuras nas portas, homens rudes com a marca do sono sobre o rosto, os cabelos despenteados. Agora a voz da mulher, molhada de soluços, chegava distintamente:
– Não levem meu marido, êle não fez nada, não é nem ladrão nem assassino, não matou nem roubou... Deixem meu marido em paz...
Os investigadores surgiam com um homem calvo, de óculos, pequeno e prematuramente envelhecido. Agora nas portas e na calçada aumentava o número de espectadores. O chefe dos tiras começava a ficar inquieto. Empurrou o operário de Santo André com o revólver:
– Pro tintureiro, seus cachorros...
Os outros tiras se aproximavam com o novo preso. Alguém gritou na rua:
– Morra a polícia!
O chefe dos investigadores viu a pequena multidão das portas e calçadas se congregando. Sentiu a atmosfera carregando-se de ódio. Gritou para os seus homens:
– Depressa...
O operário de Santo André, a cabeça aparecendo na porta do carro celular, começou a dizer: “Vamos presos porque somos comunistas, lutamos pelo bem de todos...”
Um lira fechou violentamente a porta, cortando a frase. Os investigadores, de revólveres apontados, para os espectadores, recuavam para o automóvel. Um murmúrio de protesto se elevava entre os assistentes. O tintureiro partiu, o automóvel arrancou atrás. O chefe dos investigadores estendeu o braço pela portinhola, descarregou seu revólver contra os homens parados no passeio, cercados agora num grupo cheio de ódio. Um operário fechou o punho em direção ao auto que desaparecia, num gesto de ameaça:
– Um dia vocês pagam, bandidos...
Antes de dobrar a esquina, voltou a cabeça e viu o velho Orestes parado ante o investigador que se levantava, impedindo-lhe os movimentos. “Bom velho – pensou – facilitou-me a fuga”. Bom companheiro também, aquele operário de Santo André, em cuja casa fora preso nessa noite. Iriam ter de se explicar na polícia, era possível que fossem espancados, os tiras deviam estar com ódio. Mas êle não podia ser preso, para êle isso não representava apenas alguns dias de cárcere, durando enquanto durasse a permanência do ditador em São Paulo. Se ele chegasse à polícia, sua identidade seria facilmente descoberta e durante anos e anos êle seria inútil para o Partido. Logo agora, quando o designavam para uma tarefa importante. Por isso tivera de arriscar o sossego dos companheiros, e, enquanto corria, fazia votos para que nada de pior lhes sucedesse, especialmente ao velho italiano já de cabelos brancos e ainda tão bravo!
Quando dobrou a esquina não tinha nenhum plano traçado. Não conhecia a cidade, chegara há apenas três dias. Continuou a correr, entrou na primeira na à esquerda, quebrou mais adiante noutra rua onde um casal de namorados o olhou passar correndo, num espanto. Ouviu tiros ao longe, deviam ser os investigadores em sua busca. Afastou-se da rua onde os namorados o haviam visto, agora se encontrava num beco sem saída, terminando num muro. Por quanto tempo a polícia o perseguiria? Olhou em torno, não havia ninguém. Escalou o muro, saltou numa horta plantada de couves e alfaces, podia enxergar ao longe o vulto branco de uma casa. Deixou-se ficar encostado ao muro, no receio de que surgisse algum cão de guarda. Seus ouvidos estavam atentos aos ruídos vindos da na. Procurou enxergar as horas, no relógio de pulso: três e meia da madrugada, o dia não tardaria a surgir...
Era necessário traçar um plano de ação. Não desejava demorar-se muito tempo ali, com as primeiras luzes da aurora o chacareiro poderia vir trabalhar em sua horta e ele seria descoberto, tomado talvez como um ladrão. Não seria fácil explicar sua presença, escondido entre os canteiros de legumes e hortaliças. E seria outra vez a polícia e sua identidade descoberta, terminadas as possibilidades de assumir o posto para a qual o partido o designara. Não era divertido ser preso em São Paulo depois de ter conseguido chegar do Rio, numa difícil viagem ilegal. Quando os investigadores tinham surgido em casa do companheiro onde êle estava hospedado. uma raiva surda se apossara dele. Que falta de sorte, preso mal chegara. Quando os companheiros no Rio lhe propuseram vir para São Paulo como responsável pela tipografia clandestina do Partido, a missão o encheu de entusiasmo. Vivia numa irritação entre aquelas quatro paredes do apartamento onde estava escondido, proibido de pôr os pés na rua, impossibilitado de qualquer trabalho útil. Sua sensação não era apenas a de um homem acuado, obrigado a esconder-se, a viver reduzido aos poucos metros quadrados do pequeno apartamento de uns amigos. O que o afligia, antes de tudo, era um sentimento de inutilidade. Nessa hora tão grave para a vida do país quando o Partido necessitava de todas as suas forças para fazer frente à situação, êle estava reduzido a ler os jornais, a ouvir as notícias trazidas pelos donos da casa, a discutir com eles. Aquilo era contra a sua natureza, êle amava o movimento e o trabalho. Era muito jovem ainda e parecia ainda mais moço pois o sangue indígena que lhe corria nas veias fazia rala a sua barba. Tinha vinte anos mas ninguém lhe daria mais de dezessete ou dezoito. O cabelo negro e liso escorria-lhe pelos lados na face ligeiramente bronzeada e angulosa. Chama-se Jofre Ramos e o Tribunal de Segurança o havia condenado recentemente a oito anos de prisão como participante da insurreição de 1935. Se fosse levado à polícia logo o reconheceriam (seu retrato fora espalhado, após a condenação, por todas as polícias estaduais) e êle teria de cumprir ainda seis anos e meio de cárcere, seis anos e meio de inutilidade para a luta do Partido. Não, não podia ser preso, fizera bem em fugir, mesmo que isso trouxesse alguma complicação aos dois companheiros.
Não podia era ficar ali, encostado naquele muro, estendido sobre um canteiro de alfaces. Devia pensar rapidamente, encontrar solução para os problemas imediatos: como tomar novamente contacto com o Partido, como fazer a direção regional saber da sua fuga e colocar-se à sua disposição? Haviam-lhe dado, no Rio, o endereço do camarada em Santo André, em cuja casa ele devia ficar e aguardar. Ali veio encontrá-lo aquela moça cujo nome ele não conhecia para lhe avisar da próxima reunião com um dirigente. Como ele não conhecia a cidade de São Paulo, ela, dois dias depois, viria buscá-lo para o conduzir. Pensando nisso, êle recordou-se que esse encontro devia ser nesse novo dia que estava nascendo. A moça iria chegar e não o encontraria. Pior ainda, talvez encontrasse a polícia vigiando a casa, a esperá-lo de volta. E a moça – Senhor, uma “estafeta” da direção! – seria presa... Levantou-se ante esse pensamento. Sim, era necessário voltar a Santo André rapidamente, montar guarda escondido nas proximidades da casa, impedir que a moça chegue até lá, impedir sua prisão.
As primeiras luzes da aurora clareavam a rua. Ele tornou a escalar o muro, limpou a roupa suja de terra. O beco ainda dormia, fechadas as janelas das casas. Começou a caminhar rapidamente. Sabia que da Praça da Sé partiam ônibus para Santo André. Mas em que parte da cidade esta ria ele, longe ou perto da Praça da Sé? Trancado no carro de transporte de presos não ficara com nenhuma idéia do lugar onde tinha empreendido a fuga. Alcançou uma avenida larga, estava disposto a se informar com o primeiro transeunte que encontrasse. A claridade crescia sobre a cidade deserta, um ou outro raro automóvel cruzava a rua.
Impedir que a moça fosse bater na casa certamente vigiada... Esse pensamento o impelia para a frente, ele quase corria sem se dar conta sequer que estava andando ao acaso, sem saber se se aproximava ou se afastava da Praça da Sé. E se tomasse um táxi para Santo André? Era longe, porém, e ele tinha muito pouco dinheiro consigo. Ademais, a moça não iria aparecer pela madrugada, ele teria tempo de chegar de ônibus. Encontrou finalmente um homem parado no passeio que lhe forneceu as explicações desejadas. A Praça da Sé estava próxima, em dez minutos de marcha ele podia atingi-la. O informante estava um pouco bêbado e se demorava num luxo de explicações, encantado de ajudar aquele estranho à sua cidade. Jofre desembaraçou-se dele com certa dificuldade, dirigiu-se no rumo indicado. Não tardou a desembocar na praça e a encontrar um ônibus com a tabuleta de Santo André, em cujo volante ressonava um chofer. Meteu-se no fundo, após ter comprado um jornal atrás do qual escondeu o rosto. O ônibus foi se enchendo aos poucos, passageiros ainda sonolentos, operários na sua maioria. Gente que vivia em São Paulo e trabalhava em Santo André. Inutilmente Jofre buscou no jornal alguma notícia sobre as prisões efetuadas na véspera. Em compensação encontrou um largo noticiário sobre as projetadas comemorações para a visita próxima do ditador quando “o proletariado paulista lhe demonstraria sua estima e gratidão”.
Enquanto esperava a partida do ônibus – “esse desgraçado desse ônibus não sai...” impacientava-se – leu os telegramas da guerra de Espanha, um editorial de louvor a Franco, um artigo de “um técnico militar norte-americano sobre o Exército Vermelho no qual o militar ianque – apresentado pelo jornal como grande autoridade – afirmava a extrema fraqueza do Exército e da Aviação soviéticos, incapaz, segundo ele, de resistir a qualquer ataque de um verdadeiro exército moderno. Ao findar a leitura, Jofre fez um comentário para si mesmo: “Imbecil...” E, para variar, procurou a secção literária onde se enterrou num enorme artigo, de três colunas, sob a assinatura de um Senhor César Guilherme Shopel, no qual eram cantadas as qualidades poéticas extraordinárias do autor de um livro de versos intitulado “Nova Ilíada,” cavalheiro que tinha o mesmo nome que o Ministro da Justiça. Jofre não tardou a constatar que se tratava do próprio ministro estreando nas belas-letras com um poema lírico que no dizer do autor do artigo, renovava na literatura brasileira as melhores tradições dos “Sonetos” de Camões e da “Manilha”, de Tomás Antônio Gonzaga. Abandonou o artigo pelo meio, cheirava-lhe demais a bajulação política. Começou a ler os anúncios – “quando sairá esse ônibus?”.
Virou a página do jornal, fitava quase sem ver a fotografia de uma formosa mulher assassinada pelo marido, agora seu pensamento estava longe, os anúncios de companhia de navegação o haviam levado a voltar-se para as recordações dos tempos em que era marinheiro.
Começara sua vida vendendo jornais e revistas numa cidade do extremo-norte do país. Era uma criança franzina e ágil, nas ruas onde crescera havia aprendido a saltar como um artista de circo, e, pela madrugada, enquanto esperava que se terminasse a impressão dos jornais numa antiga rotoplana, divertia os tipógrafos com suas cabriolas. Foi assim que ganhou a estima do dono da antiquada oficina gráfica e um lugar de aprendiz. Dominou rapidamente os tipos, as caixas de composição, aprendeu os segredos da velha máquina impressora. Aquela era uma pequena oficina fora do tempo, sem linotipos e sem rotativas, imprimindo os anúncios dos cinemas locais, os convites para enterros, e um bissemanário que se designava como “noticioso e literário”, mas para os olhos do menino órfão criado na rua, era ao mesmo tempo um mundo e um lar. Ele a amava e os dois anos que ali passou foram dos mais felizes da sua vida. Ganhava apenas a comida, o direito de dormir à noite embaixo das estantes de tipos e alguns níqueis dados pelo velho proprietário, mas cuidava da máquina com o mesmo afeto com que cuidaria de um ser humano, gostava de limpá-la, de trazê-la brilhante e, quando lhe permitiram, pela primeira vez, movimentá-la, pensou não poder provar jamais maior satisfação. Com o tempo conseguiu também o direito de ler os livros do patrão, alguns poucos volumes onde se misturavam romances de Alexandre Dumas e folhetos anarquistas. O dono da oficina, tipógrafo ele mesmo, passava a maior parte do tempo compondo seu soneto semanal (publicado sempre no centro da primeira página do jornal, num quadro em duas colunas sob pseudônimo) onde atacava os padres e cantava a natureza num panteísmo de rimas pobres, ou as notícias em louvor ao Juiz de Direito, do Promotor Público, do Prefeito da cidade: o jornal gozava de uma subvenção da prefeitura e essa era a sua maior fonte de renda. Porém jamais estava satisfeito e murmurava eternamente contra a organização social, esperava a chegada de um dia onde corresse o sangue de todos os burgueses, e antes de tudo, o de todos os padres. Algumas vezes dizia a Jofre:
– O mundo só endireita no dia em que se fuzilar toda essa gente rica começando pelos padres...
No entanto não existia pessoa mais pacifica, menos belicosa, mais temente a Deus e respeitosa às autoridades. Jofre se apaixonou pelos romances de Dumas e pelos folhetos anarquistas. Em sua imaginação infantil vestiu os “Três Mosqueteiros” com as idéias libertárias e conquistou a cidadezinha onde vivia, matando a espada todos os ricos, como desejava o dono da tipografia. Um dia, porém, uma crise cardíaca derrubou o pobre jornalista em meio à criação do seu soneto semanal, e a família vendeu o título do jornal e a tipografia para uma cidade vizinha. Jofre viu-se novamente na rua, sem trabalho.
Vagabundeou algum tempo de um lado para outro, fazendo biscates, com vagos planos de viagem para cidades maiores onde pudesse trabalhar como gráfico. A aparição na cidadezinha de homem recrutando jovens para a Escola de Aprendizes de Marinheiro que funcionava na Capital do Estado, interrompeu sua vagabundagem e seus planos. O padre da localidade, parceiro de longas partidas de gamão do falecido poeta anticlerical, o recomendou e êle foi aproveitado.
O regime da Escola era duro mas Jofre nascera à beira do mar e os grandes navios de guerra o tentavam. Não foi um aprendiz modelo, revoltava-se facilmente contra a injustiça, não era capaz de bajular sargentos e oficiais, foi muitas vezes castigado e ao terminar o curso e ao ser designado como marinheiro para um destróier, fundeado no Rio de Janeiro, uma fama de rebelde o acompanhava, fazendo-o logo popular no navio. Não tardou a ser recrutado pela célula do Partido, envolvera-se num protesto coletivo contra a comida onde revelara qualidades de comando e de combatividade que chamaram a atenção dos comunistas. Quando chegaram os dias de 1935, o jovem marinheiro foi um dos dirigentes dos organismos da Aliança Nacional Libertadora na Marinha de Guerra. Os oficiais integralistas há muito o traziam de olho e logo após a derrota da insurreição de 35, ele foi entregue à polícia, juntamente com outros comunistas, expulso da Marinha, surrado e processado. Durante ano e meio esteve preso até ser solto nos meados de 1937. Ficou pelo Rio, ligado ainda ao trabalho na Marinha, quando, em dezembro, seu processo foi julgado e êle condenado a oito anos de cárcere. O Partido o escondeu e assim ele vivera algumas semanas, numa impaciência crescente, até que, sabedores da sua antiga profissão de tipógrafo, os companheiros lhe propuseram ir para São Paulo, como responsável pela tipografia clandestina do Partido, a melhor que possuíam em todo o país, onde estava sendo atualmente feito o órgão central do Partido, “A Classe Operária”.
Chegara há três dias e a primeira coisa a lhe suceder era ser preso e ter de arriscar-se numa fuga improvisada em caminho da polícia. No ônibus que finalmente partiu, com o jornal em frente aos olhos, Jofre recordava o navio de guerra, o amplo mar sem limites, os companheiros e as discussões com os integralistas. Quando poderá novamente espiar a imensidão do mar do alto de um mastro? O pior era ter ficado escondido, inútil para a causa. Não lhe importa se tiver de ficar segregado numa casa, em meio às caixas de tipos e a uma velha máquina impressora, compondo o jornal do Partido, os manifestos, os volantes. Desde que esteja trabalhando, colaborando com os demais companheiros, tudo irá bem, já nenhuma impaciência o dominará, não andará de um lado para outro incessantemente, como o fazia no pequeno apartamento do Rio.
A gorda mulher ao seu lado, uma cesta de verduras no colo, comenta, apontando o jornal com o dedo:
– Matou a pobrezinha com quatorze punhaladas... Malvadeza...
Somente então Jofre leu o título ocupando todo o alto da última página do jornal, os subtítulos comentando o crime passional. A vizinha de banco devorava a notícia, Jofre terminou por lhe emprestar o jornal. É necessário estar atento para saber onde descer quando o ônibus penetrar em Santo André. Não deve chamar a atenção dos demais, talvez a polícia esteja por lá à sua espera. Mas não pode deixar de arriscar-se, não pode deixar que a moça seja presa, ela é um “estafeta” da direção, sua prisão será um perigo para todo o organismo superior do Partido no Estado. O jovem coração de Jofre bate apressado a esse pensamento. O ônibus se enche ainda mais a cada parada, é o primeiro desse dia para Santo André e vai atulhado de trabalhadores. Jofre estuda as fisionomias desconhecidas, homens de raças variadas, quantos entre eles não serão companheiros ou amigos do Partido? Certamente há de haver alguns, se êle pudesse adivinhar, lhes confiaria seus problemas, seria fácil então avisar a moça.
O ônibus pára mais uma vez, estão quase saindo de São Paulo. E Jofre enxerga a moça tomando o ônibus, abrindo passagem, apoiando-se com a mão contra um banco. É ela, sim, guardou bem sua fisionomia. Bem cedo vai ela em sua busca, no primeiro ônibus, e Jofre suspira aliviado. Levanta-se do banco, procura aproximar-se. Trocam apenas um rápido olhar, descem na primeira parada, ela sai andando na frente, êle a acompanha e só depois de ter o ônibus desaparecido, Jofre se aproxima:
– Fui preso ontem...
– Já sabia. Mas não sabia que tinham lhe soltado.
– Fugi...
Conta em poucas palavras a cena da fuga. Ela o olha com admiração, depois murmura:
– Coitado do velho Orestes. São capazes de terem batido nele.. Mas êle é duro, o velhinho...
– Estava com medo que você fosse presa quando fosse me buscar hoje. Por isso estava voltando para lhe esperar perto de casa.
– Eu não ia lhe buscar, o pessoal soube de sua prisão. Agora é preciso dizer que você fugiu, acho que não sabem ainda. Mas tenho o que fazer antes. O mais urgente é lhe meter em algum lugar...
Pensa, enquanto caminha. Mariana terminou por lhe murmurar um endereço:
– Volte para São Paulo. Nesse endereço diga que foi o Ruivo quem lhe mandou para você esperar ai. E fique lá até eu aparecer. É um lugar seguro. Agora até logo e boa sorte. Eu devo esperar outro ônibus.
Ele afastou-se em largas pernadas. Tivera chance. Começara o dia com sorte, ao encontrar a moça no ônibus. Se não iria passar horas a esperá-la, no risco de ser novamente preso, numa espera inútil, pois ela, informada de sua prisão, não viria. Começara o dia com sorte... A casualidade de deparar com a moça no mesmo ônibus ligara-o de novo ao Partido, já não se encontrava perdido numa cidade desconhecida. Pode novamente pensar nas caixas de tipos e na máquina que o aguardam em qualquer parte escondidas da grande capital de onde sairão os volantes, os manifestos, os jornais com as palavras de ordem, de onde partirá a voz esclarecedora do Partido.
Encontra uma padaria aberta, compra um pão ainda quente do forno, vai comendo enquanto espera o bonde. A manhã acabara de chegar, o movimento começara nos subúrbios.
Mariana caminha apressada, o encontro com Jofre a fez retardar-se, ela desejava chegar em casa de Zé Pedro antes que o movimento nas ruas se fizesse intenso. Mas tinha sido ótimo o encontro com o rapaz, ela bendizia a casualidade. Boa notícia a transmitir aos companheiros, a da fuga de Jofre. Vira a face preocupada do Ruivo quando, pela madrugada, chegara o responsável pelo organismo em Santo André com a notícia das prisões efetuadas naquela noite. Desde alguns dias já, Mariana estava em constante contacto com o Ruivo, desde que êle a mandara chamar pelo médico e lhe dera ordens de sair de casa para evitar ser presa nas “batidas” que precederiam fatalmente a vinda do ditador. Tinham-lhe arranjado um quarto no mesmo apartamento onde o Ruivo se encontrava. Ela tinha muito trabalho naqueles dias, a direção necessitava manter-se num contacto constante com as bases.
A onda de prisões não pegara o Partido desprevenido. A direção regional previra aquelas medidas policiais e providências haviam sido tomadas para garantir a segurança dos elementos mais visados. Novas moradias foram arranjadas para os dirigentes, e os quadros ligados à direção, como Mariana, tiveram ordens de mudar-se por alguns dias.
Mariana estava trabalhando com o Ruivo quando o responsável por Santo André chegou. Era ainda madrugada e o companheiro vinha cansado, havia feito uma boa parte do trajeto a pé, na noite sem condução.
– Não caiu ninguém de grande responsabilidade. Alguns companheiros, muito poucos... A maioria é de grevistas da greve de outubro. Prenderam a torto e a direito... Só que Josué também caiu...
– Josué? – Ruivo levantou o rosto cada vez mais magro, de faces cavadas e róseas da moléstia. – E o rapaz que estava em casa dele?
– Levaram êle também...
– Isso é o diabo... – aquela prisão parecia preocupá-lo mais que todas as outras reunidas.
O companheiro de Santo André havia se sentado, limpava com um lenço sujo o suor do rosto:
– Isso é prisão besta... Vai durar o tempo da visita do Gegê... Depois soltam todo mundo...
– Esse rapaz eles não soltam... Ele está condenado.
O companheiro de Santo André não viera especialmente pelas prisões. Deveria vir de qualquer maneira para informar sobre a situação na sua cidade. Falava agora lentamente, medindo as palavras, o Ruivo escutava com a cabeça um pouco curva, os olhos congestionados pelas noites sem dormir. Mariana via seus pulsos magros, os ossos dos ombros e das costelas sob a camisa. Como ele podia resistir a tanto trabalho, como podia superar suas condições físicas, a doença que lhe comia o peito? A voz do companheiro de Santo André rolava monótona no relatório:
– Não há condições para uma greve, por ora. A Turma do Ministério do Trabalho está prometendo mundos e fundos aos trabalhadores... Dizem que o Getúlio vem para anunciar, nos comícios, novas leis trabalhistas e isso deixa os homens indecisos... Ademais fizeram uma greve em outubro, se ressentem ainda das conseqüências... Nós pensamos que precipitar uma greve agora é comprometer todo o trabalho. As condições não estão ainda maduras. Mais um mês, dois meses talvez e poderemos obter um grande movimento... Talvez agora com as prisões se possa fazer alguma coisa, agitar... Não temos um motivo concreto para a greve... Muita gente ainda tem ilusões no Getúlio...
O Ruivo comparava mentalmente aquele informe com os demais ouvidos nesses dias: ainda era cedo para partir para o movimento grevista, muitos trabalhadores ainda alimentavam ilusões em Getúlio e em suas promessas demagógicas. Por outro lado, o fato de a nova Constituição considerar a greve ilegal amedrontava uma parte. Havia uma tendência entre muitos a não tomar posição antes do discurso do ditador no comício anunciado para a sua visita. As notícias chegadas dos outros Estados diziam de um ambiente idêntico. O fechamento da Ação Integralista era usado pelos agentes do Ministério do Trabalho no seio dos sindicatos como um argumento aos trabalhadores para os convencer de que o novo regime, apesar de sua Constituição moldada sobre a italiana e a portuguesa, apesar do seu caráter ditatorial, nada tinha a ver com o fascismo. No entanto, o Partido sentia a necessidade de responder ao golpe de Estado com um possante movimento de massas trabalhadoras, capaz de impedir novos passos do ditador no sentido de aplicar a Constituição fascista, capaz, por outro lado, de ajudar a formação da Frente Democrática necessária para a derrota da ditadura. O trabalho marchava porém lentamente e, em São Paulo, a ação dos elementos trotskistas e cissionistas dificultava ainda mais o amadurecimento político da situação.
– O importante –. disse o Ruivo – é continuar a preparar o movimento. Não vamos marcar uma data formal para começar as greves, não as vamos ligar à vinda de Getúlio. quer dia aparece o bom motivo, o fato que abrirá os olhos à massa e fará frutificar o nosso trabalho. De qualquer maneira é preciso não perder tempo.. Precisamos responder à campanha demagógica dos pelegos do Ministério do Trabalho. Getúlio vem aqui é para comprar o apoio dos fazendeiros de café e não para legislar pros trabalhadores. Explicar isso a toda a massa. O discurso do Getúlio irá. mostrar que nós temos razão...
Levantou-se, o ar ainda preocupado:
– Precisamos fazer alguma coisa durante a visita dele. Qualquer coisa que ponha abaixo sua demagogia. Não basta pichar muros e colocar bandeiras nos fios. O importante agora é desmascarar Getúlio. Iniciar um movimento de solidariedade aos presos, uma campanha pela sua libertação. À base disso talvez possamos chegar mesmo a preparar qualquer coisa para os dois dias da visita de Getúlio... Devemos discutir esse assunto no secretariado.
O companheiro de Santo André saiu. O Ruivo falou para Mariana:
– A polícia anda tonta. Não consegue localizar o Partido e essa já é uma grande vitória. Eles pensavam que em só dar golpe de Estado e o Partido sumia. Estão prendendo gente que não tem nada a ver com isso, precisam mostrar serviço. Mas, se os companheiros trabalharem bem, essas prisões vão mostrar o que é esse governo.
– E o rapaz que veio do Rio?
– Isso é que foi ruim... Ele está condenado, oito ou dez anos de prisão, não sei direito. Vai ter que cumprir a pena. E o pior não é isso: é que necessitávamos dele aqui. Vai ser duro arranjar um homem para substituí-lo. Em todas essas prisões só há duas que me chateiam: essa e a de Saquila...
– A de Saquila, por quê? É melhor ele preso do que em liberdade, botando teias de aranha na cabeça dos outros...
– Eu não sei até onde essa gente está ligada à policia. Mas espero tudo deles, não vou me admirar se eles se entregarem à polícia. Se já não estão trabalhando há tempos para a Delegacia de Ordem Política e Social.
– Tem uma coisa que eu não compreendo, Ruivo.
– O que é?
– Há vários meses já que vocês localizaram a infiltração trotskista, conhecem os chefes, e, no entanto, não os expulsam do Partido. Por quê?
O Ruivo sorriu:
– E fácil compreender. Há dois motivos. Primeiro: nesse grupo há de tudo, gente ruim, agentes do inimigo, e boa gente que eles envolveram. A esses devemos salvar, ganhar para o Partido e é isso que estamos fazendo. Você não notou ainda que Saquila e uns poucos mais estão sendo isolados completamente da massa, das bases do Partido? Que gente que jurava ontem por eles, está agora pedindo sua expulsão?
– É verdade.
– Esse é o primeiro motivo. Se nós os tivéssemos expulsado quando eles começaram a luta contra a direção, eles teriam arrastado muita gente com eles, poderiam continuar a fazer confusão. Segundo: essa gente chegou a ocupar postos importantes na região e a conhecer uma boa parte da máquina ilegal do Partido. Se nós os expulsássemos então, eles poderiam entregar quase todo o Partido à polícia ou fazer qualquer provocação em grande escala. Nós estamos modificando a máquina aos poucos, e quando eles se derem conta já não nos podem fazer mal nenhum. Compreenda: enquanto eles não forem desmascarados publicamente, eles não têm interesse em agir claramente como policiais, estão procurando penetrar ainda mais, saber ainda mais. Porém, se os expulsarmos antes de termos desfeito a parte da máquina ilegal que eles conhecem, eles podem causar um sério prejuízo à região do Partido. Compreendeu agora?
– Agora sim. Mas, você sabe, por vezes é difícil imaginar um homem que militou com a gente, esteve preso, faz parte de uma célula, pode vir a trabalhar para a polícia. Assim outro dia conversei com o secretário da minha antiga célula na fábrica. Houve um tempo em que êle andava acaudilhado por Saquila, era um desses de que você falou. Mas João trabalhou com ele depois e êle endireitou a cabeça, é um bom tipo. Nós conversamos sobre Saquila.. Sua opinião é que Saquila e um errado e nada mais. Não crê que êle possa ser um inimigo. Diz que é mesmo um sujeito honesto, que errar todo mundo erra... Eu mesmo, às vezes, tenho dificuldade, em aceitar a idéia que Saquila é um traidor, um inimigo, um agente da policia...
– Eu não disse que êle é um policial, mas, sim, que pode vir a ser... – Todo mundo erra, é verdade, – continuou. Mas alguém que erra sempre, que é alertado sobre seu erro e persiste nele apesar de tudo, faz o jogo do inimigo, consciente ou inconscientemente. A burguesia, Mariana, na sua luta para sobreviver, emprega contra nós todos os métodos de luta, desde o terror até os mais sutis como o da infiltração de inimigos em nosso meio. Mais difícil era pensar que Trotsky era um agente do inimigo e hoje, quem duvida? E toda essa turma dos processos de Moscou? Eram velhos membros do Partido bolchevique, não eram? No entanto foram desmascarados como agentes do inimigo. O inimigo não se contenta com nos cercar. Ele procura também nos. atacar de dentro. É o que Saquila faz em São Paulo. Ele e seu grupo...
Passou a mão sobre os olhos cansados, continuou:
– É necessário sermos vigilantes. Não temos o direito de jogar com a segurança do Partido, da luta do proletariado, por considerações de bom coração... Essa tendência a confiar em todo mundo, a não aceitar a idéia de que um agente do inimigo possa estar entre nós só porque êle é simpático, pichou muros apesar de ser jornalista, um dia dormiu numa casa de operários, pegou uma cadeia mansa, é uma tendência perigosa. A posição justa é aquela que nos leva a lutar pela melhoria da vida do homem sem compaixão para com os traidores... O que exige que se seja vigilante.
Com o Ruivo, Mariana tinha a impressão de aprender sempre. “Ele nasceu para professor”, pensava em certas ocasiões. E como duvidar do seu senso de justiça, se êle ali estava, os pulmões roídos pela tísica, lutando pelo bem de todos? Essa bondade capaz de fazê-lo duro como aço.
Ele a encarregara de preparar a reunião do secretariado. Ela deveria buscar, nessa mesma manhã, a Zé Pedro e a Carlos, encontrar uma casa onde pudessem se reunir sem perigo, devia ademais tomar contacto com companheiros diversos para saber até onde as prisões tinham afetado os organismos. Antes dela sair, o Ruivo lhe dissera:
– Em casa de Zé Pedro você vai ter uma boa surpresa...
– Uma surpresa? Qual – e não podia conter a agitação que a fazia quase tremer
– Tem alguém de passagem aqui que quer lhe ver...
– João?
– Quem sabe? – e o Ruivo ria e o riso lhe provocava a tosse seca, difícil, rompendo-lhe o peito, uma tosse que repercutia dolorosamente sobre Mariana.
Ela ia abrindo a boca para falar, mas antes que dissesse qualquer palavra, êle, findo o acesso de tosse, a impediu com um gesto de mão:
– Já sei... Não precisa dizer... Eu vou dormir, sim. Estou mesmo cansado.
Agora Mariana cortava em passos largos o caminho para a casa de Zé Pedro, perdida nos subúrbios de São Paulo. Pensa na face rosada de febre do Ruivo, nas palavras sobre a justiça e a vigilância, nos ossos quase furando a camisa, na tosse abalando seu tronco. Pensa no jovem companheiro ainda imberbe, parecendo um menino, a fugir das mãos da polícia, pensa no velho Orestes, doente e ajudando a fuga do outro apesar de saber que iria ser espancado depois. E pensa em João que ela vai encontrar, após meses de ausência, chegado ela não sabe de onde, pronto já para partir, ela não sabe para onde. Pensa em Zé Pedro, procurado por toda a polícia de São Paulo, podendo sair de casa apenas pela noite e ainda assim com todas as precauções, pensa em Carlos, tão moço e alegre, mas com as costas marcadas das torturas sofridas há um ano, pensa também naquele ex-oficial do Exército, que se encontra na Espanha, que não pôde despedir-se da irmã na hora de partir, que não lhe pôde sequer escrever da trincheira onde comanda brigadistas internacionais. Pensava novamente em João que é seu amor, esse amor nascido e crescido nos encontros ilegais, nas conversas políticas em casas empresta das por simpatizantes, sempre rodeado de perigo. Pensa em todos esses homens, em seu Partido Comunista clandestino, como em São Paulo e em todo o Brasil e como no Brasil, e em grande parte do mundo. Ao seu lado passam homens e mulheres, operários e operárias que seguem para o trabalho, nesse começo de manhã quando a vida acorda rumorosa pelas ruas. A maioria desses homens e mulheres não suspeita sequer da existência daqueles que estão forjando seu destino futuro. Por vezes, os camaradas contam feitos heróicos de companheiros mortos em combates, de homens enfrentando a policia com uma coragem de gigantes, mas Mariana pode pensar e julgar desse heroísmo quotidiano da vida ilegal, desses comunistas, encafuados em esconderijos, que jogam sua liberdade a cada momento que não têm direito a nenhuma diversão, muitos deles não tem sequer possibilidade de vida privada, que são o corpo e o sangue do Partido, a cabeça da classe operária. Ela conhece o seu dia-a-dia de anônimos heroísmos, ela se pergunta a si mesma o que deve fazer para ser digna companheira de tais homens, para ser digna mulher de João que a espera, que tem uma pergunta a lhe fazer. Ah!, seu Partido, aquele Partido pelo qual seu pai dera a vida, pelo qual tantos homens abandonam a segurança e o conforto, a claridade do dia e o direito de andar nas ruas livremente, como ela ama a esse Partido perseguido e odiado que ela se acostumou a ver caluniado, a esse Partido que ela se acostumou a ver acordado na hora que chega a madrugada como se fosse êle mesmo o construtor da aurora do homem! Um sentimento de incomensurável grandeza a possui quando ela, a pequena operária de São Paulo, pensa no seu Partido. A que pode ela compará-lo? Que lhe recorda êle, esse Partido de homens de nomes trocados, de endereços desconhecidos, de noites mal dormidas, de dorsos marcados pelas torturas da polícia? Esse seu Partido lhe recorda o mar, aquele infinito mar azul que ela viu em Santos, quando foi embarcar Apolinário. Como o mar-oceano êle não tem limites nem fronteiras,. se estende pela vastidão do mundo, vitorioso na União Soviética, em armas na Espanha, nas montanhas da China, nos subterrâneos da Alemanha, combatendo um duro combate nos demais países, um mar subterrâneo que se levantará um dia em ondas colossais lavando da superfície do mundo a podridão e a injustiça. Mariana lança um olhar vigilante em torno à rua, antes de bater na porta da casa anônima onde Zé Pedro habita.
Ela fita a face bem-amada, adormecida no sofá. Não deixou que o acordassem, mais tarde ela própria poderá lhe falar, que êle descanse agora, nem mesmo o amor tem o direito de interromper seu merecido repouso. João dorme um sono profundo e, assim, de olhos cerrados, parece mais moço e menos severo. A testa larga não está cortada de rugas, um breve sorriso aflora-lhe aos lábios. Com que sonhará êle? Mariana ajeita-lhe um braço que escorregara. Ri dos buracos nas meias que êle não descalçou. Tirara apenas o paletó e os sapatos, essas meias necessitam de remendos urgentes. As bordas das calças têm restos de lama, por que caminhos não andou êle, nesses tempos de ausência?
Mariana deve partir, larga viagem a espera ainda até a casa onde Carlos está passando esses dias e ela já acertou com Zé Pedro o local para a reunião do secretariado à noite, e o que fazer com Jofre. Ela irá à reunião por um momento também para ver João. Poderá então lhe falar, escutar essa voz agora muda, perguntar-lhe talvez com que sonhava ele pela manhã, que imagens o faziam sorrir no seu sono. Zé Pedro entra na sala trazendo uma xícara de café e atrás dele aparece Josefa, sua mulher, com o filho pequeno no braço. Os dois riem da contemplação apaixonada de Mariana. Josefa mostra.lhe o filho:
– Você precisa casar e ter filhos...
Zé Pedro ri:
– Venha tomar café...
João movimenta-se no sofá. Mariana coloca um dedo sobre os lábios pedindo silêncio.
– Deixa o pobre dormir...
Bebe a xícara de café mesmo em pé. Zé Pedro foi sentar- se em frente à mesa de trabalho, debruça-se sobre um livro de Stalin, parece totalmente esquecido de Mariana, de João, da esposa e do filho. Lê ansiosamente como se buscasse no livro do grande líder as respostas para as perguntas que as notícias trazidas por Mariana colocam em sua frente. Mas volta-se e sorri quando a criança, buliçosa nos braços da mãe, balbucia chamando: “papá, papá”. Mariana acaricia a face mulata do garoto, passa carinhosamente a mão no cabelo despenteado de Josefa, fita mais uma vez João e sai.
Era quase meio-dia quando chegou ao esconderijo de Carlos, no outro extremo da cidade. Aproveitara para passar antes nos locais onde podia encontrar alguns companheiros que deviam lhe transmitir notícias e para dar destino a Jofre. À tarde outros viriam ao consultório. Almoçou com Carlos, ouvindo-o falar ininterruptamente como era seu hábito, falar sobre as coisas mais diversas. Encontrava Carlos envelhecido, notou que alguns fios de cabelo branco começavam a surgir em sua cabeça. No entanto, que idade êle poderia ter? Não teria mais de vinte e cinco ou vinte e seis anos com certeza. Os tempos de cadeia, aquela vida ilegal, o estavam envelhecendo prematuramente. Mas a jovialidade êle a não perdia e agora contava a Mariana, numa profusão de detalhes, como pusera quase louca toda a polícia do Rio, há dois anos passados, quando inventara, num interrogatório, uma embrulhadíssima história na qual o Delegado acreditara. Durante dias e dias a polícia buscou afanosamente pela Capital do país os tipos descritos por êle, frutos da sua imaginação. Carlos nascera em São Paulo, seu pai era um operário italiano que se casara com uma negra e êle herdara dos dois a imaginação ardente e o senso musical. Cedo tinha ido para a fábrica mas ao mesmo tempo começara a estudar mecânica por correspondência e gostava de ler. Veio muito moço à juventude comunista, logo depois foi transferido para o Partido. Seu heróico comportamento na prisão (fora preso quando militava no Rio), sua resistência às torturas mais brutais, fizeram com que, ao ser libertado, fosse mandado pelo CC. para o comitê regional de São Paulo, desfalcado com as prisões de 35 e 36. Foi êle o primeiro a apoiar o Ruivo na sua luta contra as tendências de Saquila e seu grupo. A princípio encontrou dúvidas na própria direção. Mas era obstinado e aos poucos foi convencendo os companheiros do perigo daquele grupo sempre em luta contra as decisões, ligado de perto aos políticos “armandistas”, trazendo ideologias estranhas para o seio do Partido. Quando da reorganização do secretariado foi eleito secretário de agitação. Conhecia como nenhum outro, à exceção talvez de João, as bases do Partido e era por toda a parte popular pois sabia rir, contar anedotas, fazer pilhérias e era um garfo respeitável.
Recebera Mariana com uma pergunta indiscreta:
– Então o nosso noivo está na terra?
– Que noivo?
– Segredo em saco sem fundo... São Paulo inteiro já sabe dessa paixão que te devora e a João. Só vocês dois é que não sabem...
– Essa brincadeira, Carlos, ainda vai dar mau resultado.
– É claro. Vai resultar em casamento...
– Bem, devo lhe informar sobre as prisões dessa noite e acertar a reunião para hoje...
– Vamos conversar na mesa. Está na hora do almoço e a dona da casa preparou uma macarronada famosa... – estava escondido em casa do contramestre de uma fábrica de tecidos cuja esposa tinha em alta conta os seus dotes de cozinheira.
Carlos se alegra com a notícia da fuga de Jofre:
– Precisamos resolver quanto antes esse problema da tipografia. Há meses que isso rola sem solução. Bom rapaz o Jofre, hein? Eu o conheço da cadeia do Rio. É um cara batuta, firme como uma rocha apesar daquela cara de menino raquítico...
Mariana esperou a chegada da noite, numa impaciência. A reunião se efetuaria num bairro elegante, em casa de um arquiteto, Marcos de Souza, cuja lealdade ao Partido datava de largo tempo. Tratava-se de um solteirão, sua casa era ampla e quando êle a cedia para reuniões ilegais, dava folga aos empregados, ficava sozinho, numa sala da frente, vigilante. Mariana o conhecia desde os tempos de menina e admirava sua figura romântica, de revolta cabeleira prateada, a gravata larga de artista boêmio, e aquela constante estima pelos comunistas. Participara do movimento da Aliança mas, como não era um homem de ação, jamais a polícia suspeitava dele. Ao demais ganhava muito dinheiro, era um dos arquitetos preferidos pela gente rica, muito conhecido e muito relacionado, havia construído muitas das mais luxuosas habitações dos grã-finos paulistas, inclusive a casa de Antônio Alves Neto. Quando Mariana o vinha ver, em seu escritório, ele lhe perguntava, após ter trancado a porta, um amplo sorriso na boca carnuda:
– É dinheiro ou é a casa?
Nunca negava nem dinheiro nem a casa mas Mariana procurava não abusar, aquele era o melhor local para reuniões e ela o reservava para os momentos mais difíceis como o de agora. Na rua elegante e tranqüila, os companheiros podiam discutir em segurança. Na sala da frente, sentado ante a janela, o arquiteto velaria, bebendo em pequenos tragos, um aperitivo qualquer, enquanto numa sala aos fundos o secretariado discutia.
Quando Mariana chegou, a reunião ainda não tinha terminado. Ela vinha numa alegria exuberante: não só porque ia ver e falar com João mas também porque notícias chegadas dos cubículos da polícia diziam que o velho Orestes nada sofrera além de uns empurrões. O outro companheiro que tinha facilitado a fuga de Jofre levara umas pancadas mas como se mantivera firme em sua história de um sobrinho amedrontado, os tiras tinham terminado por acreditar. Jofre era desconhecido em São Paulo e seu ar de menino havia ajudado a dar um colorido de verdade à inventada explicação.
Ficou na sala conversando com o arquiteto. Mas seus ouvido estavam atentos aos ruídos da peça, aos fundos.
Marcos de Souza lhe mostrava, através da janela, as estrelas inúmeras no céu claro. Dizia-lhe os nomes de cada uma, a distância que as separava da terra, a sua grandeza, contava-lhe de como cada uma delas era o centro de um universo com muitos mundos maiores que o nosso e tudo aquilo parecia um conto de fadas.
– Será que nesses mundos existem também a exploração capitalista e partidos comunistas? – riu Mariana.
A pergunta ficou sem resposta porque um rumor de cadeiras empurradas anunciava o fim da reunião. Zé Pedro apareceu na sala, apertou a mão do arquiteto, a de Mariana, puxou o chapéu de feltro sobre a testa, pôs os óculos escuros, desapareceu no pequeno jardim que circundava a casa. O arquiteto dirigiu-se para a outra sala, sabia que eles não saíam jamais juntos, de quinze a vinte minutos de distância entre cada um, e desejava-lhes oferecer algo de beber. Mariana ficou só, não queria encontrar João na vista de Carlos e do Ruivo, dando lugar aos seus motejos.
João apareceu logo depois, estendeu-lhe as duas mãos. Agora seu rosto estava novamente severo, os olhos penetrantes o faziam mais velho. Mas tinha nos lábios o mesmo sorriso de pela manhã quando sonhava adormecido no sofá.
– Tudo bem? – perguntou ela.
– Tudo. Vamos jogar a massa na rua, no dia da chegada do Getúlio, reclamando a liberdade dos presos.
Estava parado diante dela, ficou um momento indeciso, terminou por dizer:
– Sou o próximo a sair. Você não quer vir um momento ao jardim, fazer hora comigo?
Acrescentou, para a convencer:
– Estou em São Paulo por um dia, apenas, amanhã viajo de novo, não sei por quanto tempo.
– Vamos, sim...
O perfume cálido dos jasmineiros em flor os envolveu. Sentaram-se num banco de cimento, João olhou o relógio, as flores dos jasmineiros balançavam-se suavemente sobre os cabelos de Mariana. Ficaram silenciosos como se as palavras fossem frágeis e impotentes para expressar tudo que sentiam.
– Estou contente – disse ela por fim. – Não maltrataram o velho Orestes...
– Ele escapou de boa. Bom cara, esse Jofre.
E o silêncio reinou de novo, um silêncio pesado de coisas por dizer, de tantas coisas importantes por dizer, que Mariana achou aquela timidez injusta e se resolveu a falar:
– Senti falta de você...
E se pergunta em seguida como encontrou coragem para a frase. Ah! como é difícil expressar tudo que lhe vai no coração.. João se levantou, tomou das suas duas mãos:
– Mariana... Quer ser a minha companheira? Quer casar comigo? Faz tempo desejo lhe dizer...
Ela levantou-se também, seu rosto aparecia entre as flores sob o claro resplendor da lua:
– Quero, sim, João.
– Não me chamo João, sabes? João é um nome de guerra, meu verdadeiro nome é Aguinaldo. Nome besta, não é? É melhor mesmo que continues a me chamar de João...
Deu um jeito no braço, olhou o relógio:
– É hora de sair. Quando eu voltar, a gente casa. Vou mandar preparar os papéis em Jundiaí, é mais prudente casar lá do que aqui. Dê sua certidão de nascimento ao Ruivo, ele me manda...
Apertou suas mãos:
– Não sei dizer palavras bonitas. Mas sei que te amo porque sonho contigo...
Completou, alargando o sorriso:
– Mesmo acordado...
Mariana sente o calor de suas mãos ossudas. Os lábios de João roçam a sua face e, quando ela abre os olhos, ele já não está, acaba de atravessar o portão do jardim e seus passos ressoam na calçada, levando-o para qualquer lugar distante, no cumprimento de uma nova tarefa, e ninguém sabe por quanto tempo estará ausente. Mas com ela ficou o calor de suas mãos, a carícia quase imperceptível do seu beijo. Por entre o jasmineiro de envolvente olor, brilha a luz de uma estrela fugidia. Como se chamará essa estrela, testemunha do seu noivado, iluminando com seu brilho o solto cabelo castanho de Mariana
Deve voltar à sala, o Ruivo ou Carlos terão certamente o que lhe dizer, ordens a dar, encontros a marcar, esses dias próximos serão de muito trabalho. Já não ouve passos na calçada, mas sente ainda nas mãos o calor das magras mãos do camarada João, na face o tímido roçar dos seus lábios. Como se chamará essa estrela, a sua estrela?
Era um homem comprido e pálido, quase esverdeado, de mãos sempre suarentas e voz arrastada. Um resto de cigarro apagado pendia-lhe eternamente do lábio. Seu nome de guerra era um velho apelido posto pelos companheiros da oficina onde aprendera o ofício de tipógrafo, há muitos anos: Camaleão.
– Foi Saquila quem me entregou essas máquinas e só entrego a êle. A mais ninguém, nem que seja o secretário-geral do Partido, nem que seja mesmo o Prestes que saía da cadeia e apareça aqui...
Carlos, sentado sobre um caixão de querosene, recomeçou, pacientemente, as explicações:
– Essas máquinas e essas caixas de tipos não são nem suas nem minhas, nem de Saquila, são do Partido, meu velho. E se o Partido decidiu tirá-las de suas mãos, seu dever de militante é entregá-las à pessoa encarregada de recebê-las que no caso sou eu... E você me conhece, sabe quem sou...
– Não sei coisíssima nenhuma quem você é. Só porque apareceu aqui duas ou três trazendo material para ser composto, não é motivo para eu lhe entregar as máquinas.
– Você sabe perfeitamente, Camaleão, que eu sou o responsável pela secretaria de agitação, o próprio Saquila lhe disse em minha vista, disse que você devia executar o que eu ordenasse. Não é verdade?
– Pode ser, não me lembro, como você quer que eu me lembre de tudo que me dizem? Não sou nenhum Rui Barbosa... O que sei é o que Saquila me disse, faz poucos dias, na véspera mesmo dele ser preso...
– E o que foi?
Camaleão levantou os olhos do chão, espiou de soslaio o jovem em cuja face via a raiva crescendo:
– Ele me disse: “Cuidado, Camaleão, tem um bocado de aventureiros infiltrados no Partido. Gente que não gosta nem de mim nem de você. Eles querem tomar conta do Partido, botar a gente pra fora. Agora estão de olho na oficina...”
Tirou do lábio a ponta de cigarro, atirou-a no chão e a esmagou com o pé calçado num chinelo roto:
– É isso mesmo. Ou pensa que eu não sei? Eu vivo aqui nesta toca, sem ver ninguém, mas eu sei o que está se passando, sei de toda a sujeira...
– Que sujeira?
– Que vocês andam por aí que nem uns lordes, vivendo em apartamentos, andando de automóvel, comendo do bom e do melhor, embolsando o dinheiro dos “simpas” ricos, enquanto a gente rebenta de fome, nem recebe o salário direito. Tem dias que nem um cigarro eu tenho para fumar... Enquanto vocês vivem que nem uns burgueses...
Sua voz monótona parecia repetir uma lição decorada:
– E está tudo errado na linha do Partido. Vocês falam em frente democrática, já estou até cansado de compor material falando nisso, mas na hora do lobo beber água vocês não querem saber de nada. O pessoal do Armando Sales está aí pronto para derrubar o Getúlio, era a hora da gente aproveitar.
Carlos falava lentamente, num esforço para continuar calmo:
– Seu amigo Saquila lhe meteu muitas coisas na cabeça, Camaleão. Já nem falo dessas calúnias, sobre a vida da direção regional do Partido, indignas de um militante. Pode ser que às vezes você receba seu salário com atraso, as finanças não marcham como deviam, e a culpa é mais de Saquila que nossa. Mas, com certeza, você recebe antes de nós e recebe tanto quanto nós. Mas isso é um assunto que devemos discutir depois, organicamente. Assim como a linha política. De que você nos acusa? De não nos metermos na conspiração “armandista” de parceria com os integralistas? De não colocarmos a classe operária na rabada da burguesia? Não é com nenhum “putsch” que a gente vai derrubar o Estado Novo, é com um movimento de massas e isso não é um processo de um dia, é lento. A linha do Partido é justa. Essa tendência a aderir ao golpe “armadista” é do mais puro oportunismo, não tem nada que ver com a política do proletariado. Isso é de gente que quer cavar emprego público...
– Olhe lá que um empreguinho para alguns de nós não era tão ruim assim. Eu, de mim, já estou cansado de estar enterrado aqui, escondido nesse fim de mundo, morrendo à míngua em cima desses tipos. Se o Armando Sales ganhas com o apoio da gente, e depois desse uns empreguinhos a alguns de nós, era bem bom. A gente podia ajudar mais o Partido... Mas – e olhava intencionalmente Carlos – não é todo mundo que tem a cabeça do Saquila. Se êle estivesse na direção nacional do Partido a coisa seria outra... Eu sempre digo e repito: o operário no Brasil não tem ainda cabeça para dirigir partido nenhum. A gente deve entregar isso a quem sabe pensar, como Saquila. Aquilo é uma cabeça e tanto.
– A direção do Partido aos intelectuais...
– Isso mesmo; aos intelectuais. E por que não? Eles...
Carlos o interrompeu, abruptamente:
– Há muito tempo que não ouço tanta cretinice junta. Você apodreceu, velho, apodreceu de todo... Essas coisas que você está dizendo são palavras de traidor.
O tipógrafo alongava o pescoço, sua pele parecia ainda mais verde, sua voz lastimosa;
– Traidor, eu? Tá aí o que a gente ganha se sacrificando... Não é você que vive metido numa casa sem sair nunca, envenenado pela tinta de impressão... Faz quase dois anos que Branco e Saquila me meteram na outra casa e durante esse tempo tenho trabalhado para o Partido dia e noite, quando saio é às carreiras, me escondendo, e ainda ouço reclamações quando o material atrasa, como se eu fosse dez em vez de um e tivesse uma boa máquina em minha mão...
– Essa impressora estava ainda em bom estado quando você tomou conta dela, hoje não vale mais nada. Velhinho, eu desconfio que você, antes de vir para aqui, nunca viu uma oficina em sua vida.
– Eu sou gráfico há vinte anos. Já fui até subchefe de oficina na “Gazeta da Tarde”... A máquina é que não presta mesmo, foi um “abacaxi” que empurraram em minha mão.
– E não é só isso. Nós estamos informados que você tem um xodó com uma mulher das redondezas da casa anterior. Quer dizer: você colocou a segurança da oficina do Partido nas mãos da primeira mulher que lhe apareceu... Têm vindo companheiros trazer ou buscar material e não lhe encontram, você saiu para visitar a vizinha, está metido com ela, em casa dela...
– E eu havia de ficar sem mulher esse tempo todo? Pensa que sou de pedra?
– Bem, Camaleão, tudo isso acabou. Seu caso a gente vai discutir depois, você explicará ao Partido por que faz campanha contra a direção regional e contra a linha política. Cabe ao Partido decidir, não a mim. Não vou discutir mais com você, não adianta. Vim foi lhe dar uma boa notícia: o regional decidiu lhe substituir na oficina e lhe dar outra tarefa, um trabalho no sindicato dos gráficos onde somos fracos... Os anarquistas e trotskistas mandam por lá. Para você é de colher: você não precisa mais viver escondido, pode andar à vontade pelas ruas, você mesmo deve manter-se legal para poder atuar no sindicato. Você é membro, não é?
– Sou.
– Pois está aí. Você me entrega a oficina, vai-se embora, eu lhe dou um ponto para nos encontrarmos e você discutirá com o regional.
– Lhe entregar a oficina? Não, já lhe disse que não. Há dois homens a quem posso entregá-la: a Branco e a Saquila. Branco está na cadeia no Rio de Janeiro, condenado; Saquila está na cadeia aqui, mas não está condenado. Quando êle sair eu entrego a oficina a ele. Não sei que diabo vocês querem fazer com ela.
– Não sabe nem precisa saber. O que o Partido vai fazer com a oficina é coisa que não deve lhe interessar. E quanto à sua recusa a entregá-la, devo lhe dizer que é motivo suficiente para sua expulsão...
– E quem são vocês para expulsarem alguém? Ouça bem: para mim o Partido é Saquila e os companheiros que estão com de... A gente é que é o Partido. E lhe aviso de outra coisa: enquanto Saquila estiver preso eu não componho material nenhum... Sabe o que eu vou fazer, depois que você sair daqui? Vou passar o cadeado na porta e dar um fora. Quando Saquila for solto, entrego a chave a ele, ele que faça o que quiser com a oficina... E não me amole mais... Para mim, vocês não são partido coisa nenhuma.
Carlos se levantou, tinha os punhos cerrados. Por um momento temera perder a cabeça e jogar-se em cima de Camaleão aos socos.
– Você está tão podre que até fede... – disse e passou ao lado do tipógrafo que não se moveu.
Do lado de fora, no terreno mal cuidado que cercava a casa, respirou com força o ar puro, pensou que quanta razão tinha João ao dizer que não seria nada fácil receber a tipografia. Durante semanas, Saquila dificultara o transporte das máquinas para a nova casa, baseando-se em mil pequenos detalhes, adiando de um dia para outro. Afinal tivera de ceder ante a pressão do secretariado mas não arranjara um elemento para substituir Camaleão que acompanhou as máquinas ao novo local, uma pequena chácara nos arredores da cidade, há muito desabitada.
Esse assunto preocupara de tal maneira o regional que a vinda de Jofre foi decidida pela direção nacional, no Rio. Agora era necessário obrigar Camaleão a entregar a oficina.
Essa oficina fora dada ao Partido por Saquila, há alguns anos, quando se inscrevera como militante. Pertencia-lhe antes, nela era impressa uma revista literária modernista, de limitada circulação. Aquele presente fizera com que o ingresso de Saquila no Partido tivesse sido saudado como uma valiosa aquisição. Ele possuía certo renome literário, havia publicado um volume de poemas alguns anos antes, tinha participado do movimento modernista, era considerado nos círculos intelectuais como entendido em matéria de literatura e arte de “avant-garde”. Homens como Shopel e o sociólogo Hermes Rezende tinham em conta a sua opinião, citavam-no em seus artigos. Ao demais possuía uma larga roda de conhecidos capazes de contribuir para as finanças do Partido e era secretário de redação de um matutino poderoso. Branco, que o trouxera ao movimento, levou-o quase incontinenti ao comitê regional (“para ampliar sua composição social”, explicava) e não tardou que Saquila dominasse quase por completo o regional, ouvido como autoridade indiscutível em todos os assuntos. Apenas o Ruivo resistia à sua influência.
Falou-se mesmo em sua coptação para o comitê nacional e isso teria sucedido, talvez, se o movimento da Aliança Nacional Libertadora não tivesse revelado as dificuldades do Partido, em São Paulo, nos anos de 1934-35. A direção regional se encontrava então nas mãos de meia dúzia de intelectuais e o Partido desligara-se quase completamente do proletariado das grandes empresas, rareavam as células de empresa em proporção às de bairro de composição pequeno-burguesa na sua maioria. A prisão, após o movimento de 1935, de uma parte da direção, foi o ponto de partida para uma virada nessa situação. A vinda para São Paulo de João, a chegada de Zé Pedro e depois a de Carlos, vieram dar força às repelidas proposições de Ruivo: o Partido começou a penetrar nas empresas, nas fábricas, o regional começou a mudar de aspecto, uma nova direção operária deu um impulso profundo ao trabalho. Durante esses anos a luta entre a nova direção e Saquila – ainda membro do comitê regional – se aprofundou dia a dia. E chegava agora, quando o trabalho silencioso e persistente do novo regional começava a dar seus frutos, ao momento culminante. Saquila fora caracterizado como um agente trotskista, ligado à burguesia paulista, procurando fazer do Partido um caudatário da política dos latifundiários de café, envolvê-lo em suas aventuras golpistas, tentando ao mesmo tempo dividi-lo, criando um grupo oponente à direção, entravando, no que podia, a marcha normal do trabalho partidário. A direção nacional já tomara conhecimento do assunto e o regional esperava haver libertado da influência de Saquila os elementos sãos por ele acaudilhados, para liquidar definitivamente com seu prestígio: esperava o momento opor- hino para expulsá-lo e a alguns mais. Tratava de modificar toda parte da máquina ilegal conhecida de Saquila pois a opinião de Ruivo e de João era que no grupo cissionista havia elementos quase certamente ligados à própria polícia. O trabalho de esclarecimento aos companheiros estava dando resultados positivos: certas células começavam a pedir a expulsão de Saquila, mas o secretariado sentia não ser chegado ainda o momento justo, parte da base ainda não se convencera da verdadeira posição do trotskista.
Camaleão viera ao Partido pela mão de Saquila no tempo em que este fazia e desfazia. Saquila atuava no sindicato dos trabalhadores do livro e do jornal, fora membro de sua diretoria, e ali conhecera Camaleão, ouvira suas queixas sobre os companheiros de oficina e sindicato, apadrinhou-o, dominou-o por completo. Assim o trouxe ao Partido, assim o levou para a oficina clandestina. E, como continuava sendo o responsável pela oficina, pôde conservar intacto seu prestígio junto ao gráfico.
Mais tarde, naquele mesmo dia, Carlos explicou a situação ao Ruivo e a Zé Pedro:
– É um buraco: onde vamos imprimir material para a visita de Getúlio? Precisamos inundar a cidade de material Não há uma só tipografia legal que queira trabalhar para a gente, nem a peso de ouro... E é materialmente impossível montar uma nova oficina numa semana..
– Nem se pode pensar nisso...
– E a tipografia de Sorocaba? João está lá...
– Muito pequena.. Não dá pra nada. Mal chega pra Sorocaba mesmo...
O Ruivo perguntou:
Você acha que Cama deu o fora mesmo, largou a oficina?
– Pelo menos êle disse que ia fazê-lo.
– Podemos mandar alguém lá ver se a casa esta mesmo vazia e vigiar se o homem não volta...
– E daí?
– Se êle deu mesmo o fora, a gente arromba a porta, bota o Jofre para trabalhar...
– E se Camaleão voltar depois?
– Afinal êle é ainda membro do Partido, não?
– É um cão...
– Mandaremos um companheiro com Jofre, por precaução. Se Camaleão aparecer êle terá que se conformar com a situação. Por bem ou por mal. A gente não pode é ficar sem material para a vinda do Getúlio.
– Parece que é o único jeito...
Ruivo propunha:
– E tratar de procurar logo outra casa. Tratar de mudar mais uma vez a oficina e, quanto antes. Não pode haver segurança para os companheiros que trabalharem lá, Camaleão conhecendo o local. E enquanto não se arranja casa, o jeito é fazer Camaleão se esconder. Evitar que ele seja preso. Não dou nada por esse cara. Se êle cair é capaz de contar o que sabe e o que não sabe...
Zé Pedro aprovava:
– É isso mesmo. Mas, por hora, o jeito é correr o risco. Botar Jofre e um outro na casa, a gente não pode ficar sem material para a vinda do Getúlio..
– Quem a gente bota com Jofre?
– Tem que ser alguém de absoluta confiança e disposto a tudo...
Quem de mais confiança que o velho Orestes? Quem mais valente, mais capaz de convencer Camaleão se ele aparecer? Quem não respeita o velho Orestes no seio do Partido? Ele fora solto dois dias depois de preso pois seus padecimentos tinham-se agravado e a polícia temera que êle morresse no cimento frio do cubículo e que sua morte provocasse uma agitação desagradável no seio do proletariado às vésperas da visita do ditador. O Delegado de Ordem Política e Social, ao saber que o velho não podia sequer mover-se concluíra pela sua libertação. “Velho e doente êle não representa nenhum perigo. E os dias de cadeia valem como uni aviso. Se êle morrer aqui, os comunistas vão explorar o assunto de todo o jeito, o velho é muito conhecido. O melhor é pô-lo em liberdade”. Dera ordens também para libertar Saquila, vários pedidos lhe tinham sido feitos, inclusive um pelo doutor Antônio Alves Neto, a quem o delegado (que vinha naquele posto desde o governo Armando Sales) nada podia negar pois devia a êle sua carreira. O advogado “armandista” se interessara grandemente pela libertação de Saquila. Explicou esse interesse ao delegado, dizendo que Saquila fazia falta na secretaria de “A Notícia” – jornal do qual o Dr. Alves Neto era um dos maiores acionistas.
Foi Mariana quem falou em Orestes. O italiano era inútil para outras tarefas, devido à idade mas servia bem para aquela, ademais o ar do campo ser-lhe-ia útil, acabaria de curar o seu reumatismo. O Ruivo ouviu os argumentos, depois ampliou a idéia. E se Orestes ficasse morando de uma vez na chácara? Ele não linha família, vivia só, o trabalho na fábrica pesava-lhe. Se ficasse residindo na chácara poderia cultivar legumes, aquilo legalizaria o local, sitiantes vizinhos pensariam tratar-se de qualquer velho italiano retirado dos negócios, cuidando de sua pequena horta. E Jofre poderia passar por seu filho ou seu empregado. Ao mesmo tempo, o transporte de material se facilitaria. E a oficina estaria mais protegida. Foi assim que o velho Orestes reencontrou o jovem cuja fuga ajudara, curvado sobre a maltratada impressora, pondo-lhe óleo nas engrenagens, travando conhecimento com ela. Mariana tinha vindo com o velho e divertiu.se com o espetáculo do encontro, da surpresa dos dois. Pareciam avô e neto, Orestes dando a impressão de mais velho do que era, com seus cabelos totalmente brancos e sua face enrugada, Jofre com seu ar de menino franzino.
– Se você pensa que eu vou ficar aqui sem fazer nada, está muito enganado, “signorino”. Eu vou é aprender a manobrar essa máquina, vou virar tipógrafo, eu também... – avisou o italiano.
– Nada disso, tio Orestes – disse Mariana. – Você vai é cultivar legumes. Plantar uma boa horta. Jofre lhe ajudará um pouco, durante o dia. Mas vai ser um ajudante preguiçoso, dorminhoco... Porque vai passar as noites trabalhando na oficina. Essa é a decisão do Partido...
Orestes voltou-se para Jofre:
– Diabo de Partido esse nosso! Essa que está aí me dando ordens, eu conheci pequenininha, desse tamanhinho, um “piccolo pingo” de gente... Agora está ensinando ao velho Orestes o que êle deve fazer... – e ria satisfeito olhando os dois jovens, essa nova geração que ocupava os árduos postos de luta.
Acompanhou Mariana de volta até o portão. Ela lhe comunicou, sabendo que a notícia ia alegrá-lo:
– Vou me casar, tio Orestes...
– Tu, carina? Com quem?
– Conhece o camarada João?
– João? Mas é esplêndido... Ele é desses que quebram mas não dobram... E eu que pensava que tu estavas apaixonada pelo oficial que foi para a Espanha, esse que te manda cartões...
– Não. Gosto dele como de um amigo, de um companheiro simpático. Nada de amor.
– E quando é o casamento?
– Quem sabe? Nessa vida...
Trauteou a melodia de um samba em voga:
Amanhã se não chover,
eu volto pra te ver, ó mulher...
– Vou preparar vinho para a festa.... – beijou Mariana na testa, seus olhos estavam embaciados. – Tu é uma boa menina e uma boa companheira. Não são muitas as que tem a tua coragem, cara piccina, e eu te desejo muita felicidade.
Voltou para perto de Jofre. Era noite, a máquina tinha sido colocada num quarto onde não havia janela, Jofre continuava a estudá-la, a substituir por fios de arames os cordões que amarravam certas peças. Ao lado das paredes alinhavam-se as estantes de tipos. Algumas resmas de papel atiradas a um canto. Jofre se queixou:
– O cara que estava aqui antes era um açougueiro e não um gráfico. Esculhambou a máquina. Também essa máquina é mais velha do que a Sé de Braga. Mas, se o companheiro tivesse tido um pouco de cuidado, ela não estaria tão arruinada. O resto da oficina está nas mesmas condições. Mas eu vou endireitar isso tudo. Gosto deste trabalho, nasci nisto...
Contava para o velho a sua infância na pequena tipografia nordestina, enquanto cuidava da impressora, as mãos sujas de óleo e de tinta, o cabelo liso escorregando-lhe sobre os olhos.
– Apesar de ruim, era uma oficina melhor do que esta. Temos muito poucos tipos, é preciso providenciar novos. E algumas peças para a máquina... No primeiro contacto com o pessoal é preciso pedir. Eles podem arranjar nas oficinas onde temos companheiros...
Passava a mão sobre a máquina:
– Nós vamos ser amigos, bicha velha. Vou te pôr novinha, vou te lustrar toda, vou te deixar que nem uma beleza... Tu vai ver... Amanhã, quando chegar a matéria, a gente vai estrear... Nada de querer bancar a difícil comigo, é melhor não fazer chiquê, trabalhar direitinho...
O velho Orestes ria, não iria sentir saudades das prosas com os vizinhos, aquele rapazola era dos dele, gostava de gente assim, alegre e disposta. Começou a contar, ele também, uma história. A de uma oficina em Buenos Aires, há muitos anos, onde se imprimia um jornal operário. Era uma oficina legal mas a polícia a atacara uma vez, de surpresa, e empastelara máquinas e tipos. Depois o pessoal ficara vigilante, uma boa turma foi designada para a segurança da casa. E quando a polícia voltou, durante uma grande greve animada pelo jornal, encontrou inesperada e corajosa resistência, tivera de bater em retirada. Orestes havia participado da luta, deixara dois ou três policiais fora de combate, era naquele tempo então um rapagão robusto, cujos bigodes ruivos faziam estremecer o coração das portenhas.
– Não é a primeira vez que monto guarda a uma oficina, – disse com orgulho. Daquela vez foi batuta, os policiais corriam que nem ratos, dava gosto ver...
Contava em gestos largos e dramáticos, narração intercalada de pragas em italiano e Jofre ria, animado o seu rosto de menino, sentindo-se já ligado àquele velho no qual enxergava a tradição da luta do proletariado. Riam os dois numa gargalhada só, o velho e o jovem, um quase ancião, um quase adolescente, ao lado daquelas máquinas ilegais, na solidão escondida daquela casa de campo de onde partia, nos jornais, nos volantes, nos manifestos, a voz da vanguarda dirigente da luta do povo brasileiro. Mais de quarenta anos de idade os separavam, mas eram dois irmãos, deles era a mesma esperança e a mesma certeza, lutavam o mesmo combate, e rindo, com a máquina entre eles, eram como um símbolo da continuidade da luta operária. Riam naquela mesma hora noturna em que, na polícia central, o Delegado de Ordem Política e Social reunia os chefes de investigadores para lhes transmitir a ordem recebida do Rio de Janeiro:
– É absolutamente necessário descobrir a tipografia do Partido. Nem um só volante deve ser jogado nas ruas durante a visita do doutor Getúlio. Mesmo que seja necessário varejar toda a cidade, casa por casa, é preciso encontrar essa oficina...
Um quase ancião de cabelos encanecidos na luta, tendo-se batido em quatro países, um daqueles que haviam trazido da velha Europa as primeiras idéias e os primeiros folhetos, e um quase adolescente, cuja vida de militante começara não há muito, flor de unia juventude formada na revolta contra a miséria em que se afogava o povo brasileiro, guardavam aquelas máquinas procuradas. Aquelas velhas máquinas maltratadas, aqueles poucos tipos gastos, aquelas resmas de papel dificilmente obtidas, de onde sairiam as palavras de fogo, os anônimos troços impressos de papel mais preciosos que o ouro, mais poderosos que a polícia e a reação que os senhores de imensas terras e os banqueiros de Wall Street – as palavras de ordem criadoras da luta contra o fascismo e o imperialismo, contra a miséria e a fome. Era um velho italiano de cabelos brancos, chegado um dia à América Latina, na terceira classe de um barco de imigrantes, trazendo no baú pobre e na cabeça ardente, as idéias e a tradição de luta; era um jovem marinheiro condenado à cadeia, menino ainda ontem nas ruas pobres do Norte esfomeado, inocente coração, espontânea revolta. Ah! eram um quase ancião e um quase adolescente, o velho Orestes e o jovem Jofre guardando as máquinas do povo, velhice e adolescência fabricando o futuro nos subterrâneos ilegais da liberdade.
Naquela mesma hora dessa noite inquieta que precedia a visita do ditador a São Paulo, Saquila conversava com o doutor Antônio Alves Neto. O advogado vinha muito raramente à redação da “A Notícia”, e depois do golpe de Estado não houvera mais aparecido. Seu nome não figurava no cabeçalho do grande matutino mas sabia-se ser êle o verdadeiro diretor, pertencia-lhe a maioria das ações da sociedade anônima editora do quotidiano. Aquele fora o órgão central da campanha da candidatura Armando Sales à presidência da República, e, logo após o golpe de Estado, e o estabelecimento da censura de imprensa, o jornal tentara, duas ou três vezes, certas tímidas críticas ao regime. Mas a reação do DIP fora imediata: ameaçara suspender, por prazo indeterminado, a publicação do jornal. Antônio Alves Neto alarmou-se e deu ordens à direção para manter-se estritamente dentro das prescrições da censura, o jornal lhe rendia muito dinheiro, não valia a pena sacrificá-lo. Não seriam notícias, editoriais ou artigos que derrubariam Getúlio, pensava o advogado. Ele, Antônio Alves Neto, luminar da Faculdade de Direito, advogado de companhias inglesas, senhor de terras infindas nas fronteiras de São Paulo com Mato Grosso, um dos mais influentes políticos do seu Estado, sabia como derrubar o ditador, como levar Armando Sales à presidência da República e êle mesmo ao governo do Estado. Costumava gabar-se do seu “realismo” político e olhava com desprezo a maioria dos seus correligionários. Em suas mãos se centralizava agora a conspiração contra o governo, a preparação do “putsch” contra Getúlio Vargas, desde que Artur Carneiro Macedo da Rocha a abandonara sem explicações. Em sua fazenda, em São Pauto e no Rio (para onde viajava constantemente) mantinha conversações com políticos, com oficiais do Exército, com altas patentes da Marinha, com integralistas. Andava ultimamente muito entusiasmado com a aliança secretamente estabelecida por êle com os chefes mais graduados da Ação Integralista, descontentes dos resultados do golpe de Estado: Getúlio abocanhara o poder, estabelecera um regime forte em proveito próprio, deixando de lado os seus parceiros integralistas. O apoio de Plínio Salgado ao projetado “putsch” vinha lhe fornecer uma sólida base na Marinha de Guerra e mesmo a cooperação de certos generais do Exército. Após essas conversações, Antônio Alves Neto considerava a vitória do “putsch” uma coisa assegurada, todo o problema residia na escolha da melhor ocasião para derrubar o ditador. Mas ao mesmo tempo, o acordo com os integralistas o amedrontava um pouco. Sabia que esses não estavam dispostos a se deixarem enganar uma segunda vez e que pretendiam o poder para eles, exigiam uma política internacional de aliança com a Alemanha e a Itália fascista, e Plínio Salgado à frente do governo, mesmo que Armando Sales conservasse o titulo de Presidente da República. Um dos chefes integralistas havia dito, em qualquer parte:
– Desta vez não vamos preparar a festa para os outros dançarem...
Estudando como contrabalançar a força dos integralistas e poder fazer-lhes frente após a derrocada da ditadura, Antônio Alves Neto recordou-se de suas conversações com Saquila durante a campanha eleitoral. Sabia ter sido Saquila vencido no seio do Partido Comunista naquela ocasião, quando defendia a tese do apoio a Armando Sales. Sabia, também, que as divergências entre o seu secretário de re dação e os demais dirigentes comunistas continuavam em ascensão. Apreciava Saquila, achava-o inteligente e capaz de entender aquilo que êle, Antônio Alves Neto, intitulava a “grande política”. O jornalista não era intransigente em certos princípios (reforma agrária, por exemplo) como outros comunistas com os quais êle já conversara. Por que não lhe propor agora a participação dos comunistas no golpe? Se chamassem para o “putsch” aliados ao mesmo tempo a integralistas e comunistas, duas correntes opostas e inimigas, eles, os “armandistas” poderiam usufruir os benefícios da luta certamente a travar-se entre as duas outras forças. Antônio Alves Neto sorria a esta idéia que considerava extremamente hábil.
Saquila limpava os óculos num lenço enquanto sentava- se na cadeira em frente à grande mesa negra de acaju, onde descansava a pasta de couro do advogado. Respondia à pergunta do proprietário do jornal com um meio sorriso nos lábios:
– Nada. Prisão sem importância. A primeira noite foi meio pau, me deixaram num dos cubículos do depósito. Mas, logo de manhã, no outro dia, me levaram para cima e depois me soltaram.
– Eu intervi junto ao delegado. Ë um antigo conhecido meu, um amigo nosso, – digo-lhe isso em confiança...
Saquila havia colocado os óculos, começava a preparar o cachimbo, murmurou uns agradecimentos. Antônio Alves Neto interrompeu-o com um gesto cordial:
– Não tem o que agradecer, afinal não costumo deixar os meus redatores na cadeia. Gosto de ser leal para com os funcionários do meu jornal, mesmo quando eles pensam diferente de mim...
Levantou-se, rodeou a grande mesa, veio sentar-se ao lado de Saquila como se necessitasse estar mais próximo dele ante a gravidade das coisas a lhe dizer:
– Essas prisões são um pano de amostra do que vai ser para vocês o Estado Novo. Ainda há poucos dias alguém me contou, pessoa de intimidade do Catete, que Filinto Muller declarou que agora ia acabar de vez com os comunistas. Eu sei que a polícia está estudando um plano organizado de combate a vocês...
Saquila acendia o cachimbo, apagava o fósforo:
– Se êle e Getúlio tiverem tempo... O senhor crê que os americanos vão deixar Getúlio no poder quando êle está namorando com os alemães? Os americanos estão inquietos.
– Getúlio é sabido. Ele namora com os alemães mas não chega ao casamento. É para se valorizar ante os americanos, para se vender mais caro. Por isso êle fechou a Ação Integralista... É sabido, o homenzinho... –
Fez uma pausa como que refletindo, continuou:
– Mas os sabidos, de tão sabidos, cometem por vezes tolices... É o que está acontecendo com êle. Acaba ficando sozinho: os americanos estão com a pulga atrás da orelha. A concessão das terras do Vale do Rio Salgado a Costa Vale repercutiu mal na Wall Street, onde já estava em organização uma companhia para explorar o manganês. Por outro lado, os alemães esperam mundos e fundos e até agora não conseguiram nada, além de declarações de simpatia. Os integralistas foram postos de lado, há muita gente descontente no Exército e na Marinha... A verdade é que as condições para derrubar Getúlio não podiam ser melhores... Vocês é que estão atrapalhando tudo...
– Nós?
– Sim, vocês, os comunistas Nesse momento em que Getúlio ainda não se decidiu por completo entre os americanos e alemães, não tem quem o defenda. Ele ainda não teve tempo de solidificar a ditadura. É uma questão de audácia e de visão: um golpe rápido, súbito, inesperado, e foi um dia a ditadura de Getúlio
– Realmente .. .– Saquila olhava de través esperando.
– Mas vocês atrapalham tudo. Essa história de frente democrática, de movimento de massa, toda essa conversa fiada que não leva a nada. Só há um jeito de derrubar Getúlio: um golpe armado, dado pelo Exército e pela Marinha. Grande parte da oficialidade está de acordo. Posso lhe dizer, em reserva, que generais e almirantes dos mais importantes estão dispostos a participar... Uma coisa que estourasse ao mesmo tempo aqui e no Rio, de madrugada. Pela manhã Getúlio já não seria governo e estaria tudo acabado.
Abriu a cigarreira de prata, Saquila apressou-se em riscar um fósforo. Puxou a primeira baforada:
– O perigo são os soldados, os cabos e os sargentos. Vocês enchem a cabeça dessa gente com histórias, contra o “putsch”, e, como isso, estão simplesmente garantindo Getúlio no poder..
– Nós somos contra Getúlio e o Estado Novo. Daí acharmos necessária a frente democrática de todas as forças antiestadonovistas
– Frente democrática .. Daqui até que se chegue a fazer o que vocês desejam, preparar o povo para uma insurreição, já o Getúlio teria engolido todo mundo. Um bom golpe, de surpresa. Nada de agitação até lá. Deixar que o homem se julgue em segurança. Nem greves, nem passeatas, nada disso.. Os estudantes de Direito estavam querendo fazer qualquer coisa para a chegada do Getúlio. Uma passeata de protesto, uma besteira dessas. Trabalho de vocês e de gente nossa sem experiência. Eu fiz cessar a agitação. Assim não se vai conseguir nada. Vamos somente colocar o homem de sobreaviso. O melhor é ser prudente agora, esperar até que tudo esteja bem articulado. A coisa marcha, meu caro, é tudo que lhe posso dizer... A coisa marcha, e bem...
– O Senhor pensa...
– Não penso, tenho certeza. Getúlio está aí por pouco tempo. E agora eu pergunto: e vocês que vão fazer? Vocês, se fossem inteligentes, poderiam se aproveitar para sair desse buraco em que se meteram com a revolução de 35. Muita gente entre nós é contra uma aproximação com vocês. Com essa história de revolução democrático-burguesa, de reforma agrária e nacionalização, vocês se isolam. Falar de reforma agrária num país de caboclos analfabetos é se suicidar politicamente. Não falo como fazendeiro, penso mesmo que a reforma agrária é uma necessidade para os países industriais. Mas o nosso é um país agrícola. Vamos primeiro industrializá-lo, depois falaremos de dividir as terras... Quanto à industrialização, estamos de acordo.. Enfim, apesar de tudo, eu acho que podemos colaborar com vocês. Sou homem de idéias largas e penso que vocês poderiam participar do movimento. Se a gente puder contar com vocês a coisa se facilita junto aos soldados e aos sargentos... Que é que vocês ganham em se opor a um golpe?
– Mas os integralistas estão envolvidos também...
– Ora, os integralistas... Meu caro vocês que falam tanto em realismo, na hora necessária não passam de uns sonhadores. Pense bem: os integralistas estão de cabeça cortada, divididos, não são eles que vão ao poder. E muito menos se vocês estiverem também conosco... O perigo é exatamente a vitória de golpe onde eles estejam e vocês não... Eles poderão exigir certas coisas, compreende?
Saquila ficou silencioso. Pensava e a proposta dos “armandistas” parecia-lhe tentadora sob todos os aspectos. Terminou por perguntar:
– E após a vitória? Que tipo de governo teríamos?
– Convocaríamos eleições num certo prazo: seis meses, oito meses. As eleições decidiriam.
– Liberdade para os partidos políticos?
– Certamente
– Para o nosso também?
– Isso depende...
E aproximou a sua cadeira da de Saquila, sua voz fez- se amigável, como a de um homem experimentado aconselhando um jovem que se inicia na vida:
– Depende de vocês... Primeiro esse nome de partido comunista... Isso amedrontaria muita gente... De pois, esse negócio de reforma agrária, de nacionalização... Besteira, já lhe disse. Apresentem um programa democrático e nós lhe garantiremos a existência legal. Luta contra o nazismo? De acordo... Certas condições para o capital estrangeiro? De acordo... Industrialização? De acordo,.. Que é que vocês querem mais?
– Anistia para o pessoal de 35...
– Isso é um assunto para a Câmara a ser eleita...
Houve um prolongado momento de silêncio. Saquila limpava o cachimbo:
– Sua proposta é interessante, não lhe escondo que ela me parece muito viável. Mas o senhor sabe, eu não resolvo sozinho. Preciso discutir com os companheiros... Depende do que eles disserem, O que posso lhe afirmar é que porei todo o meu prestígio em jogo...
– Muito bem. Discuta e depois venha me ver. O melhor é vir à minha casa, não desejo ser muito visto aqui na redação. Diga a seus companheiros que reflitam duas vezes antes de continuar a perder tempo com essa bobagem de frente democrática. Querer fazer política com o povo num país atrasado, de analfabetos, é brincadeira de meninos. Isso é coisa de sonhadores como o Prestes... Resultado: está na cadeia com três processos nas costas... Eu lhes ofereço uma oportunidade única... E isso, desejo-lhe dizer, em grande parte devido à estima que lhe tenho...
– Dentro de poucos dias eu o procurarei...
Levantava-se para despedir-se. Antônio Alves Neto fazia-lhe uma última recomendação:
– E evitem agitação durante a visita do Getúlio. Deixemos que êle se sinta seguro. Não lhe parece o melhor?
Saquila retirava-se, Antônio Alves Neto voltava à sua poltrona, tomava do telefone na mesa negra de acaju, ordenava à telefonista da rede interna do jornal que lhe enviasse o gerente. Enquanto esperava, acendia um novo cigarro, envolvia-se na fumaça e em pensamentos calculados. O gerente entrou, após bater na porta, esperou silencioso, de pé ante a mesa. O proprietário do jornal lhe disse:
– O senhor acertou com o Costa Vale a campanha sobre o Rio Salgado? A série de reportagens?
– Sim, senhor. Ele adiantou cinqüenta contos...
– Devemos dar um caráter sensacional a essas reportagens. Com a censura de imprensa o jornal está perdendo público. O melhor será talvez organizar uma expedição, qualquer coisa desse gênero, aventurosa, que interessa o público. Converse com o Saquila sobre o assunto. Não precisa lhe dizer que se trata de matéria paga.
– Vou conversar ainda hoje...
– E por falar em Saquila, aumente o seu ordenado em quinhentos cruzeiros a partir deste mês...
Quando Manuela lhe deu a notícia, Lucas Puccini não pôde se furtar a dizer:
– Subimos os dois, mana, ao mesmo tempo – e deixava que o riso de contentamento se espalhasse sobre sua face. – Não fique nervosa, o Presidente não é nenhum bicho. E se você fizer sucesso, sua carreira está garantida...
Saiu logo depois, agora quase não parava em casa, seu tempo todo ocupado com o negócio do café e os últimos detalhes da visita do ditador. Havia estado, em companhia de Eusébio Lima, com o ex-senador Venâncio Florival, e iniciara as grande compras de café. Depósitos haviam sido alugados em Santos, Eusébio Lima tinha mexido os cordões e o dinheiro das Caixas de Aposentadoria e Pensões estava às ordens, era só assinar os cheques contra o banco de Costa Vale, onde se acumulava aquele dinheiro, retirado mensalmente dos salários dos operários. Nesses agitados dias, tão agitados que pareciam um sonho, Lucas Puccini tinha travado conhecimento com muita gente, falara mesmo com o próprio Costa Vale, fizera relação com vários fazendeiros de café e mantivera uma conversação meio secreta com o representante de Franco no Brasil, um rico comerciante espanhol. Recebia agora a notícia de que a irmã iria dançar ante o ditador na recepção da Comendadora da Torre, como mais um sinal de que a sorte estava realmente do seu lado, que sua carreira se iniciava.
Fora César Guilherme Shopel, o poeta católico, quem arranjara tudo. A estréia de Manuela era prevista para daí a um mês, no Rio de Janeiro, ligada à grande campanha de imprensa sobre a Empresa do Vale do Rio Salgado e o poeta projetava dar-lhe um caráter sensacional, fazendo a bailarina vir, num avião especial, do interior do país, como se tivesse sido descoberta em pleno vale selvagem, uma revelação das danças aborígines, a primeira riqueza conquistada para o país pela patriótica empresa à qual êle emprestava seu nome, Mas, a Comendadora aproveitara sua vinda a São Paulo, para confiar-lhe o programa artístico a ser apresentado na recepção ao ditador. Logo César Guilherme vira a possibilidade de lançar Manuela. Discutiu o assunto com Paulo, modificou os planos anteriores, e ela foi colocada como número central, entre os cantores de sambas e os artistas de uma companhia italiana de operetas naquele mo mento em excursão em São Paulo.
A professora de bailado afirmava ter Manuela feito reais progressos e ser uma indiscutível vocação. O poeta viu as vantagens de lançá-la na visita do Presidente: a coisa ganharia em importância e seria útil a todo mundo, como explicou ele à Comendadora que punha certas restrições:
– No dia seguinte faremos troar as trombetas de imprensa. Diremos que ela foi descoberta no vale e aproveitaremos qualquer frase de louvor do Getúlio... É uma ótima propaganda para a Empresa, por um lado, é uma coisa simpática para Getúlio, por outro, e para a jovem é formidável...
– Uma aventureirazinha que quer casar com o Paulo. – disse a Comendadora.
– Casar? Gente dessa espécie não casa, Comendadora... E essa menina, com seus bailados e sua inocência, pode dar uma auréola de simpatia à Empresa, uma popularidade que lhe será necessário na hora em que os comunistas começarem a nos combater...
A Comendadora era de opinião que mais valia ter os inimigos sob a sua vista que escondidos na sombra. E, se Manuela era um provável empecilho aos seus planos, o melhor era conhecê-la, tê-la nas suas proximidades, mais fácil seria neutralizá-la. Concordou assim com os projetos de Shopel dispôs-se a patrocinar a estréia “privada” de Manuela. E ela mesma discutiu com Marieta quando esta mostrou-se mais do que enfadada com a notícia. Marieta se entregara por completo, nos últimos dias, aos projetos matrimoniais da Comendadora. Paulo jantara em companhia de Artur, sob a insistência de Marieta, em casa da milionária. Não escondera depois sua triste impressão das sobrinhas casadoiras:
– A mais moça – explicou ele a Marieta – é fisicamente monstruosa com aquele olho vidrado. Inteiramente impossível...
– Ninguém fala da mais moça. A mais velha... A Rosinha.
– Uma lambisgóia... Uma água morta, de um loiro sujo, sem graça, não sabe se vestir, não sabe conversar, não sabe rir, um horror, Marieta, um horror...
– Tu exageras. Ela é bonitinha e quanto à elegância, isso depende de ti. Se tu tens bom gosto e ela possui os milhões que possui, poderá ser a mais elegante das mulheres...
– Devo me transformar em modista...
– Paulo, estou falando sério... A Comendadora quer casar a sobrinha. É o melhor partido de São Paulo. Tu és um felizardo que ela pense em ti...
– É duro suportar durante a vida inteira aquele horror...
– Tu és injusto. Paulo. Por que pensas que eu me interesso? Que tenho a ganhar com isso? Penso em ti, em teu futuro. Não possuis nada, o que Artur tem é relativamente muito pouco. Com teu temperamento podes perder até o emprego a qualquer dia. E mesmo que não o percas, de que vale um diplomata pobre? Vais vegetar anos e anos como secretário de Embaixada. Mas, como genro da Comendadora, – não te esqueças que as sobrinhas são para ela como filhas, são suas herdeiras – farás uma rápida carreira, estarás Embaixador em pouco tempo. E livre de qualquer preocupação material... Tu andas é de cabeça virada com essa tal dançarina...
– Nada disso, Marieta. Eu sei que te interessas pelo meu futuro e eu só tenho que te agradecer. Eu sei que devo casar mas, pelo amor de Deus, não me apresse... Eu não digo que não, eu estou disposto, sei que é necessário para mim. Mas não vamos correr, deixa que eu viva livre desse fardo ainda algum tempo...
Paulo sentia a resistência de Manuela ceder a cada dia. Não podia sequer pensar a sério em projetos de casamento nesses dias, quando todo o seu esforço está concentrado em liquidar as últimas frágeis notas de oposição de Manuela.
O problema tinha se colocado uma tarde, quando êle, tendo-a levado à sua casa, arrastou-a ao quarto. Ela se recusara, numa inesperada firmeza, e a conversação adquiriu um tom sério. Se êle a amava, disse-lhe ela, deviam casar-se. Para Paulo foi um golpe inesperado. A palavra casamento jamais tinha aparecido numa conversa entre eles e Paulo imaginava que Manuela sabia bem para o que êle a desejava. Sua primeira reação foi brutal, sua voz saiu ciciante e fria:
– Casar? Contigo? Por quê? Que idiotice é essa? Viu, na face bela da moça, a surpresa e a dor. Viu as lágrimas encherem os olhos, os soluços saltarem da garganta, entendeu a voz entrecortada:
– Eu devia saber, eu devia saber... Vou-me embora.
Não a deixou ir. Era covarde, tinha medo também do sofrimento dos outros. Envolveu-a numa onda de carícias:
– Não me entendes. Não quero dizer que não vou casar contigo. Sim, certamente vou casar contigo. Só que não posso fazê-lo agora, não tenho sequer meios para casar-me. Um pouco mais tarde, com certeza. Quando for promovido e isso não deve tardar. Então nos casaremos e te levarei comigo para a Europa...
Ela o ouvia, os últimos soluços levantando-lhe o peito. Sentia necessidade de acreditar nele, sem isso não podia viver.
– Por que falaste então daquela maneira?
– Porque me irrita que coloques o nosso amor num plano mesquinho. Não te entregas porque ainda não nos casamos... Como se fosse um negócio...
– Não.. Não...
– Que pensas de mim? Que te abandono depois que te possuir. Que não te amo?
– Tenho medo, querido...
– Eu te amo e quero casar contigo. Mas te direi uma coisa: não me casarei com uma mulher se antes não tiver dormido com ela. Para saber se nos entendemos completa mente...
– E, se não se entender?
– Te diga uma coisa: juro que casarei contigo quando for promovido... Palavra de honra. Ou não crês em mim?
– Creio.
– Então?
– Não, hoje não... deixa-me pensar.. Hoje estou nervosa e triste...
Ele a deixou. Mas voltou ao assunto cada dia (estava passando uma semana em São Paulo, viera para as festas de visita de Getúlio) e sentia que ela ia cedendo, que começava a aceitar como justa a idéia de ser sua amante enquanto esperava a anunciada promoção que possibilitasse o casamento. No dia que êle lhe transmitiu a notícia da sua próxima estréia, na recepção da Comendadora ao ditador, sentira no beijo agradecido da moça o fim de toda a resistência. Lastimou estarem numa confeitaria e ela ter que ir-se para a aula de “ballet” Mas agora sabia-a presa segura e uma deliciosa sensação o invadia, fazendo-o dizer a Shopel ser essa a mais saborosa aventura de toda sua vida de homem de muitas mulheres.
Manuela andava nervosa. A proximidade da estréia a fazia tremer. Um medo de fracassar, de tornar-se ridícula aos olhos de Paulo e de Lucas, oprimia-lhe o coração. Ao mesmo tempo, sabia, sabia-o de maneira total, que ia se entregar a Paulo. Não duvidava das suas promessas de casamento. Não duvidava do seu amor, não considerava essa entrega um sacrifício. Mas fora educada no sentimento de que o casamento deve preceder o leito e custava-lhe aceitar essa idéia nova repetida por Paulo, a todos os instantes. Que diria Lucas se viesse a saber? Que diria tia Ernestina, os velhos avós? Mas compreendia ser impossível resistir por mais tempo, não encontrava em si mesma sequer o desejo real de fazê-lo. Ela o amava com um amor sem limites, um doido amor de moça pobre e modesta por um príncipe encantado. Se ele a desejava logo, porque negar-lhe o que êle lhe pedia? Ao demais não deveria tardar sua promoção e então se casariam, ela já não teria motivos para sentir-se envergonhada ante o irmão e a família. Penetraria nesse mundo em que êle habitava, esse mundo dos ricos e dos poderosos, dessa gente distante que ela apenas entrevia em Shopel, em algumas colegas do curso de “ballet” Quando pensava nisso, nesse mundo que deveria ser o seu, após o casamento, não se sentia alegre. Preferiria de muito que Paulo abandonasse esse seu meio, essa sua carreira diplomática, que fossem os dois viver num canto, alimentados da alegria do seu amor.. Mesmo que isso a forçasse a deixar de dançar, que cortasse a sua carreira ainda nem começada. Dançaria para êle e isso lhe seria suficiente, isso lhe bastaria.
Sabe, porém, que esse é um sonho impossível, que, se casar com Paulo terá que penetrar nesse mundo estranho e certamente inimigo, onde a olharão como a uma intrusa. Mas, apoiada no braço de Paulo, sentindo no dedo o ouro da aliança matrimonial, não terá medo, saberá fazer frente a todos, saberá impor-se. E depois possui a sua arte, quando casar com Paulo já será alguém nesse outro mundo igualmente poderoso que é dos artistas e escritores, da gente do cinema e do teatro.
Não deve ter medo, pensa. Não deve sobretudo ter medo de Paulo, ser injusta com êle, duvidando dos seus sentimentos, do seu amor, das suas promessas de casamento. Ele dera sua palavra de honra, casaria após ser promovido, que mais ela podia desejar? Era até injusta se negando tanto, injusta para com ele e para consigo mesma, pois Manuela sente ferver em seu sangue o desejo de ser completamente dele, de senti-lo como uma parte de si mesma. Após a estréia, quem sabe? Sorri confusa a esse pensamento, ah!, bem complicada coisa é o amor... Uma mistura de alegria e temor, de felicidade e sofrimento...
Também Marieta do Vale, a invejada esposa do milionário, pensava, em suas horas solitárias em meio ao luxo, às visitas de amigas, às exposições, teatros e festas, que o amor era amargo como fel, era agudo sofrimento, desesperada ânsia. A ela não lhe importa casamento, delicados sentimentos, palavras românticas e outros são seus problemas. O amor para ela não significa o mesmo que para Manuela, não possui a mesma complexidade de sentimentos, não quer dizer a vida matrimonial, a esposa devotada ao marido, a luta para criar o bem-estar dos filhos, ela não aprendera sua definição do amor no seio de uma família pequeno-burguesa, com religião e preconceitos. Amor para ela significa a posse no leito, a paixão da carne delirante, os encontros clandestinos nas garçonnières, as festas com champanha, é um amor limitado mas por isso mesmo de violência brutal. Nada mais que isso lhe diz a palavra amor. E o que a martiriza e a faz sofrer é não poder sequer dizer a Paulo do seu desejo. Nenhum outro sentimento a impede senão o medo de que êle se recuse, que a ache velha, gasta e maternal, e a afaste com horror. Para ela, o amor não tem nenhuma alegria, não conduz a nenhuma doce sensação a nenhuma ternura repousante. Se ela tivesse de definir o amor diria que ele era antes o desejo violento e após o cansaço e o fastio, que ele queimava como fogo, para não deixar depois senão cinzas que o vento, com o passar do tempo, levaria consigo. É esse o amor que ela enxerga em torno de si, o amor das suas amigas e dos seus amigos, o amor de Henriqueta Alves Neto, a dos incontáveis amantes, o amor de Suzana Vieira, a semivirgem de repetidas aventuras, é o amor cantado na poesia cristã de Shopel, descrito nos romances que ela lê, apreendido na vida que ela vive, com a gente que a cerca. Agudo sofrimento, desesperada ânsia, mortal fastio no dia seguinte. O amor despido de toda sua grandeza, mesmo dessa medíocre grandeza feita de devotamento, de pegajosa ternura, de medo e esperança que marca o amor de Manuela por Paulo.
Também outra mulher suspirava de amor nesses dias agitados de São Paulo à espera da visita do ditador. Era a operária Mariana e também para ela a palavra amor tem um significado. Diverso daquele de Marieta, diferente do de Manuela. O amor para ela não quer dizer nem egoísmo, nem ávido desejo imperativo. Seu amor contém admiração e amizade, ela pensa em João como esposo e amante mas, antes de tudo, como companheiro, seu companheiro de cada dia. Seu amor é infinitamente mais complexo que o de Manuela, infinitamente mais profundo que o de Marieta. Sua grandeza está muito além dos limites do leito sonhado por Marieta, do casamento pelo qual anseia Manuela, seu amor abarca as fronteiras de todos os sentimentos, é a vida em toda a sua plenitude, e para ela significa ardente alegria, segura confiança, seu amor a ilumina e dá-lhe forças. Não lhe traz esse amor, nem por um instante sequer, nenhum sofrimento, não lhe causa nenhuma dor, não a faz ter medo, nem chorar, nem desesperar-se não a faz menor como a Marieta, nem envergonhada como a Manuela. Seu amor lhe dá novas forças para suas árduas tarefas, seu amor a faz melhor a cada manhã, povoa-lhe de sonhos belos as noites fatigadas, as poucas horas de dormir.
Os matutinos publicavam, numa unanimidade de elogios, a entrevista do ditador, distribuída na véspera a todos os jornais pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, O chefe do governo, cujo rosto gordo e risonho, fumando enorme charuto, abraçando as autoridades estaduais ou ao lado do banqueiro Costa Vale, ilustrava suas declarações nas colunas dos jornais, afirmava sua intenção de combater sem tréguas o comunismo até “livrar completamente o país dessa praga extremista importada do estrangeiro”. A luta contra o comunismo era o centro da política do Estado Novo implantado com o golpe de novembro. Para esta luta êle esperava contar com a leal colaboração de todos, especialmente dos homens de São Paulo, dos seus industriais e dos seus agricultores, tão diretamente ameaçados pelo “credo de Moscou”.
Anunciava seus planos de industrialização do país, a criação de uma usina metalúrgica e citava a concessão das terras do Vale do Rio Salgado a Costa Vale como exemplo da sua política de incremento das possibilidades nacionais: era toda uma região do país a ser ganha para a civilização. Mas, dizia, era necessário igualmente proteger a lavoura sob a qual pesavam tantas dificuldades. Eis por que o governo decidira adquirir os estoques restantes de café nos depósitos de Santos, sustentando assim os preços altos, e, no prosseguimento, num plano internacional de sua política anticomunista, resolvera enviar à Espanha uma parte desse café, de presente aos exércitos de Franco em luta contra os “vermelhos”, O comunismo era o grande perigo estendido sobre o Brasil e sobre o mundo, o Estado Novo nascera como um necessário baluarte na luta contra essa ameaça à civilização, às tradições brasileiras, à estabilidade da família fundada sobre a moral cristã. Os trabalhadores estavam, segundo êle, com seus interesses suficientemente bem defendidos pela legislação trabalhista e uma era de conciliação social, de entendimento entre as classes, se iniciava com a nova forma de governo. Nada dizia sobre os trabalhadores rurais, os meeiros e colonos, os milhões de camponeses estendidos pela vastidão do país.
Numa das fotografias, publicada em primeira página pelo jornal de Antônio Alves Neto, via-se o ditador cercado pelas figuras importantes que o tinham ido receber ao aeródromo: o Interventor do Estado, o Chefe de Polícia, o Comandante da Região Militar, a Comendadora da Torre, Costa Vale, o fazendeiro Florival, o poeta Shopel, o professor dr. Alcebíades Morais. Um pouco ao lado, vigilante, um grupo de “guarda-costas” sob a chefia de Eusébio Lima e de Lucas Puccini. O jovem ex-comerciário aparecia atrás do chefe do governo, guardando-o com sua figura atlética, um sorriso no rosto bronzeado. Apesar de que seu nome ainda desconhecido não figurava na legenda explicativa do clichê, Lucas Puccini adquiriu cinco exemplares do jornal e enviou um ao cunhado, no interior do Estado.
Uma chuva fina começara a cair sobre a cidade após o meio-dia fazendo desaparecer certo ar de festa emprestado à manhã pelos soldados formados para a revista, na Avenida São João, pelas bandeiras nos mastros, pelos curiosos que tinham vindo espiar a cerimônia militar. A cidade estava tranqüila na hora da sesta, apenas alguns caminhões transportavam gente para o estádio onde devia realizar-se às quinze horas o anunciado comício, seguido de um jogo de futebol. Como a entrada era grátis e o jogo se disputava entre os clubes campeões do Rio e de São Paulo, bastante gente marchava em caminho do campo de esporte. Algumas pessoas, porém, começaram, por volta da catorze horas a destacar-se dos grupos que rumavam para o estádio e dirigiam-se para o Palácio dos Campos Elísios onde o ditador estava hospedado.
No Palácio ia uma grande animação. Salas e corredores estavam cheios. O grande almoço oferecido pelo interventor vinha de terminar e o chefe do governo retirara-se para ir dormir a sesta. Nos corredores funcionários, políticos, policiais e jornalistas se misturavam, saboreando os charutos fartamente distribuídos. No vão de uma janela, Eusébio Lima e Lucas Puccini conversavam com o Delegado de Ordem Política e Social.
– A polícia trabalhou mal, essa é a verdade, seu doutor. – Eusébio Lima tirava do bolso um dos volantes distribuídos na rua durante a revista militar: – A cidade está inundada de material comunista, eles jogaram essas porcarias mesmo, na cara da polícia durante a cerimônia da manhã. Onde estavam seus homens?
– Prendemos dois...
– Dois... E os outros? Por que não prenderam todos antes da chegada do Presidente? Quais foram as ordens? E a tipografia? Era uma ordem direta do major Filinto Muller: encontrar a tipografia... Está aí o resultado: a cidade cheia de volantes comunistas,
O delegado agitava os braços, impotente, buscando desculpas numa voz medrosa:
– Esses comunistas são uns demônios. Parecem sair de debaixo da terra... Removemos toda a cidade buscando essa tipografia... Estou certo que ela funciona no Interior... Nós a encontraremos, haja o que houver. E já dei ordens para a vigilância no estádio. Lá não poderão jogar nenhum material. Tenho homens espalhados por toda a parte...
Nesse momento começaram a se fazer ouvir os primeiros gritos da multidão. Ao mesmo tempo, Eusébio Lima e o Delegado olharam pela janela e viram, aparecendo num dos extremos da rua, o desfile, precedido de uma larga faixa.
– Que é isto? – perguntou Eusébio.
O delegado precipitou-se:
– Vou ver... – e saiu correndo, arrebanhando na sua passagem quanto investigador podia encontrar.
Lucas Puccini ocupou o lugar vago na janela, ao lado de Eusébio Lima. Procuravam os dois decifrar os dizeres da faixa ainda distante. Os gritos da multidão chegavam, cada vez mais altos. Entendiam palavras, agora as janelas do Palácio começavam a se encher, apareciam cabeças, num ar interrogativo.
– Pode ser uma manifestação ao Presidente... – disse alguém perto de Eusébio.
– São os comunistas... Não está ouvindo os gritos: liberdade para os presos? Puxa, que eles têm raça, esses bandidos...
Os investigadores, sob a chefia do Delegado de Ordem Política e Social, guardavam as imediações do palácio. A multidão, umas centenas de pessoas, homens e mulheres mal vestidos, aproximava-se lentamente. A grande faixa pedia liberdade para os operários presos nas vésperas da chegada de Vargas. Outros cartazes distribuídos entre os manifestantes e em geral conduzidos por mulheres reafirmavam essa reivindicação. Era o pedido de liberdade para os presos sem processo e eram as famílias dos prisioneiros que desfilavam. Na primeira fila vinham mulheres e crianças esposas e filhos dos operários presos naquela semana. Uma mulher destacou-se da massa, ia certamente começar um discurso, quando Eusébio Lima fez um sinal ao delegado. Este levantou a cabeça, sem entender, perplexo.
Então Eusébio Lima estendeu o busto, debruçou-se na janela, gritou para o delegado:
– Que está esperando? Que eles entrem no Palácio?
O delegado puxou o revólver, bradou uma ordem aos seus homens. O tiroteio começou. A mulher que se adiantara caiu ferida, pessoas corriam pelas calçadas buscando as esquinas, um dos manifestantes gritou:
– Não atirem! Não atirem! Queremos só pedir...
Mas já um investigador o derrubava com a coronha do revólver. A luta generalizou-se, a pequena multidão utilizava os cartazes como armas, haviam arrancado a madeira que sustentava a faixa e com ela se defendiam. Ordens eram gritadas, a guarda do Palácio apareceu, carregou sobre os manifestantes, soldados começaram a montar uma metralhadora na porta do jardim.
A massa recuara mas voltara a juntar-se e tentava novamente aproximar-se do Palácio. Foi quando a metralhadora deu a primeira rajada. Um homem caiu de bruços, peito rasgado pelas balas.
Ficaram cinco feridos nos passeios, ao lado do morto, um operário de Santo André. Algumas pessoas, inclusive curiosos chamados pelo rumor da luta, tinham sido presas. No outro dia, os jornais foram unânimes em reclamar medidas mais drásticas contra os comunistas e a louvar a ação serena da policia...
As notícias do massacre da manifestação pela liberdade dos presos se estenderam rapidamente por toda a cidade. A chuva aumentara, tornara-se quase torrencial, e grande parte da gente que se dirigia ao estádio tomou outro rumo no receio que novas perturbações da ordem estalassem durante o comício. Pouco depois um novo conflito surgia no Largo de São Francisco, onde os estudantes de Direito tentavam realizar o enterro simbólico do ditador. A polícia apareceu, travou-se luta entre investigadores e estudantes. Um grande número de universitários tinha sido preso, carros de polícia, as sirenes em alerta, atravessavam agora a cidade antes tranqüila. De quando em vez, do alto de edifícios, volantes com palavras de ordem contra o Estado Novo e Vargas, caíram sobre as ruas, voavam sobre os passantes, ficavam pelos passeios. Um clima de inquietação, de boatos, de espera de maiores conflitos dominou a cidade, numa incrível rapidez. Homens saltavam dos caminhões que conduziam gente para o estádio, e, mesmo os maiores amadores de futebol achavam que o melhor era ir para casa, também o brilho da partida estava definitivamente comprometido pela chuva. Só mesmo aqueles que tinham obrigações e interesse pessoal continuaram dispostos a assistir ao que deveria ter sido a “grande manifestação de solidariedade dos paulistas a Vargas
Apenas as tribunas cobertas reservadas a pessoas importantes, estavam lotadas, O resto do grande estádio se encontrava vazio e Eusébio Lima resmungava desse fracasso, irritado, contra o Delegado de Ordem Política e Social. E, quando à noite, pouco antes de se dirigir à recepção da Comendadora da Torre, êle encontrou nos passeios novos volantes, falando já dos acontecimentos da tarde, tratando Vargas de “assassino de trabalhadores”, disse a Lucas Puccini:
– É preciso demitir esse Delegado. É um tipo ligado aos “armandistas” e não fez nada para impedir a ação dos comunistas... Disse que a tipografia era no interior do Estado e, veja você, eles já tiveram tempo de imprimir novos insultos... interior do Estado... Esse cara é um inimigo nosso. Ainda hoje vou falar sobre isso, amanhã êle não será mais Delegado... Precisamos botar no seu lugar um homem de verdade, capaz de liquidar com os comunistas!
No seu gabinete, o delegado arrancava os cabelos: entre os estudantes presos estavam filhos de famílias importantes e os protestos e pedidos se acumulavam em sua frente. Não podia mantê-los presos por muito tempo, os pais e parentes eram pessoas ligadas, de uma forma ou de outra, ao governo, aos bancos, às grandes fazendas, Fora disso restava-lhe apenas os operários presos, quase nada a oferecer, como prova de lealdade, ante os tumultuosos acontecimentos do dia. E, mais que tudo boliam-lhe com os nervos os novos volantes, lançados no fim da tarde, feitos certamente naquele mesmo dia, após a manifestação em frente ao Palácio. Em que inferno, nessa cidade, estaria metida aquela oficina tipográfica? Ah! se ele a descobrisse, saberia como tratar os que a manejam!
Deixou o seu gabinete para ir interrogar pessoalmente numa sala maior, os presos daquela tarde. Talvez pudesse arrancar de algum deles um detalhe revelador. “Mesmo que tenha de matá-los de pancada”, pensava, enquanto seguia pelo lúgubre corredor da polícia, acompanhado de investigadores.
Quando iniciou os primeiros passos da dança, vestida de penas de pássaro de floresta, ainda estava com medo e via todos em sua frente, mesmo Lucas, quase escondido no fundo da imensa sala de recepção. Via o chefe do governo, as mulheres ricas e elegantes sentia o olhar pesado de desprezo da esposa de Costa Vale a quem Paulo a havia apresentado, a maliciosa curiosidade dos olhinhos vivos da Comendadora da Torre, o sorriso vaidoso de Paulo para quem se voltavam todas as atenções. César Guilherme Shopel pronunciara algumas palavras de apresentação quando chegara a vez de Manuela dançar. Dissera ser ela a primeira descoberta feita do Vale do Rio Salgado pelos “modernos exploradores do ignoto sertão, os descendentes dos antigos bandeirantes paulistas, os Costa Vale impulsionadores do progresso do país, e essa descoberta da poesia, do folclore e da beleza era apenas o prelúdio das magníficas riquezas que o vale, agora entregue às mãos criadores do homem civilizado, daria ao Brasil. Jandira, a deusa maravilhosa das florestas virgens, era o símbolo do Brasil inocente e puro que ela retratava em suas danças, desse nosso Brasil feliz, sem problemas, do Brasil de Getúlio Vargas para quem ela ia dançar pela primeira vez fora da floresta impenetrável”. Manuela não entendia sequer as palavras, tinha vontade de fugir, de esconder-se em qualquer parte distante. Parecia-lhe estar nua ante toda aquela gente, os olhares fixos nela davam-lhe uma sensação de vergonha e de medo, quase incontrolável. Paulo sorria de longe, sentado ao lado da sobrinha da Comendadora da Torre.
Mas tudo desapareceu quando ela começou a dançar. Os primeiros passos foram ainda tímidos e inseguros. Porém, um minuto após, já nada via, esquecera-se de onde estava, da gente que a rodeava, sabia apenas que Paulo e Lucas a presenciavam dançar e para eles dançava. Leve como uma das plumas que a vestiam, elevava-se na sala, ao som melodioso da música, e era como se estivesse outra vez naquele carrossel alucinado, na noite do parque de diversões, onde conhecera Paulo, dia em que começara realmente sua vida. Deixa-se levar pela dança, inventa passos jamais aprendidos nas lições mas que ela conduz consigo em seus pés nascidos para dançar, e um silêncio de admiração a cerca, um silêncio povoado por ela de um sonho de amor transformado em “ballet”, um “ballet” diferente de todos, criado ali quase na hora, nascido de seu coração onde a solidão e o amor eram os únicos sentimentos profundos.
Os aplausos calorosos, um mar de aplausos, a trazem novamente para o mundo da sala luxuosa de mil luzes, para os olhares ávidos dos homens mordendo sua beleza exposta, para a inveja das mulheres. Vê o chefe do governo avançando para ela, a mão estendida, sente Lucas a seu lado a empurrá-la na direção do ditador. Ouve a frase de cumprimento, sem quase a entender:
– É uma revelação! Extraordinária...
Eusébio Lima aproveita a ocasião para apresentar Lucas ao Presidente. E ela sente-se outra vez abandonada em meio a esses homens e mulheres que a cumprimentam, que a felicitam, que lutam para apertar sua mão, para dizer-lhe palavras amáveis. Mas eis que Paulo aparece, ela sorri, apóia-se no seu braço. Ele a ajuda a atravessar a sala, a dirigir-se ao quarto onde deve trocar de roupa. Ela tem vontade de beijá-lo ali mesmo, de ali mesmo entregar-se. Ele beija-lhe a mão:
– Estiveste maravilhosa. Vai, eu te espero...
O envelope com dinheiro que uma camareira lhe entrega de parte da Comendadora da Torre parece-lhe uma ofensa. Por que pagar-lhe? Não foi por dinheiro que ela dançou, foi por Paulo e por Lucas, foi porque ama dançar, essa é a sua razão de ser. Quando terminara de bailar, quando os aplausos a haviam cercado, as palavras gentis, os elogios, ela pensara que aquela distância sempre sentida entre ela e Paulo, aquela barreira de dois mundos diferentes, linha caído para sempre. E agora, esse envelope com dinheiro, pagamento do seu número, novamente lhe dá essa sensação de medo, esse pressentimento de desgraça, novamente a coloca longe de Paulo, como se ele estivesse muito distante dela podendo tomar dela mas sem jamais entregar-se, sem jamais ser inteiramente seu. Senta-se com o envelope nas mãos e é assim que Lucas, radiante, a vem encontrar.
O irmão a beija no rosto:
– Tu és a grande sensação da noite... O Presidente me disse que patrocinará a tua estréia no Rio. Foi muito amável comigo, nem podes imaginar.
Mas nota a tristeza no rosto dela:
– Triste? Por que? Brigaste com Paulo?
Faz que não com a cabeça. Mostra-lhe o envelope com dinheiro, esse pagamento que a humilha.
– Mas é assim mesmo... – explica êle. – Tu dançaste, te pagam. Vais ser ou não uma artista profissional?...
– Hoje não queria receber. Foi por Paulo que dancei aqui. Não é um teatro, é uma casa de família, uma festa dessa gente dele e eu sou como uma empregada, somente...
Lucas passou a mão nos seus cabelos:
– Tire isso da cabeça, tolinha. É assim, não há nada que fazer. Ninguém teve intenção de te humilhar. E não te preocupes que jamais te deixarei ser empregada de ninguém. Agora, Manuela, começo a subir e não tardará, serei mais rico que eles todos e então seremos nós que distribuiremos envelopes com dinheiro...
Riu com o rosto todo, aquele rosto forte, pleno de ambição, despido de qualquer escrúpulo. Manuela o achou lindo, mais belo que êle só mesmo Paulo e ela não tinha o direito de estar triste, quando possuía tal irmão e tal noivo. Noivo?... Um dia o seria, e esposo certamente logo que a promoção chegasse. Só que esta noite, nesta sua primeira noite de bailarina e de mulher, seria apenas sua amante... Mas, por que encher-se de tristes pensamentos, porque amargurar-se quando tudo ia tão bem, quanto tudo era tão alegre em torno e mesmo seus mais antigos e impossíveis sonhos se realizavam? Ouve a voz de Lucas, dizendo:
– Tenho que ir, Eusébio me espera. E tu não demores também, Paulo rói as unhas de impaciência...
Paulo aguardava na porta do quarto.
– Vamos fugir daqui? – perguntou êle.
Balançou a cabeça, aceitando. Dessa vez ela deixou-se levar sem fazer perguntas, sabia, já de antemão, para onde ele a levava. Mas, sem saber mesmo porque, não podia impedir que uma lágrima fugisse dos seus olhos enquanto o automóvel cortava velozmente as ruas no caminho da casa de Paulo. Por que chorar se o fazia consciente, se estava certa que êle a esposaria logo que fosse promovido? Por que chorar se era tão feliz?
“A Notícia” alcançara uma venda excepcional, esgotando a edição, no dia seguinte ao da visita do ditador. Uma única grande fotografia, no centro da primeira página, ilustrava o noticiário da rápida estada de Vargas em São Paulo, noticiário em termos tão calorosos quanto o dos outros jornais, controlado como os demais pelo Departamento de Imprensa e Propaganda. Era uma fotografia do estádio, na hora do discurso de Getúlio, tomada do alto, daquele estádio terrivelmente vazio. A imaginosa legenda ganhava um tom de virulenta ironia ante a clara realidade do clichê: “Apesar da chuva, incalculável multidão lotou o estádio para aclamar o Chefe do Governo... Saquila havia desprezado todas as fotografias enviadas pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (flagrantes da revista militar, instantâneos do ditador em companhia do interventor, beijando uma criança, apertando a mão a um funcionário do Ministério do Trabalho – apresentado como líder sindical – uma vista da tribuna de honra, repleta de políticos), escolhera aquela tomada por um dos fotógrafos do jornal.
A ordem da censura para apreender a edição chegou tarde, quando quase todos os exemplares haviam já desaparecido das bancas e estavam sendo passados, de mão em mão pelos curiosos. Os investigadores encarregados da apreensão conseguiram levar apenas umas poucas centenas de números e Eusébio Lima, os olhos ainda injetados da bebedeira de champanha que tomara na véspera na recepção da Comendadora, apontou com desprezo o pequeno monte de jornais, a voz indignada, o dedo gordo apontado para o Diretor da sucursal do Departamento de Imprensa e Propaganda:
– Isso aqui vai mal, ah, vai muito mal... Um Delegado de Ordem Política que deixa os comunistas fazer o que bem entendem, um Diretor da sucursal do DIP que permite circular um jornal como esse... Eu quero ver como o Senhor vai se explicar com o Lourival Fontes, que espécie de história vai lhe contar... Quanto ao Delegado, chegando ao Rio vou conversar com o Major Filinto Muller... Não é possível que um moleirão dessa espécie continue na Delegacia de Ordem Política e Social de um Estado como São Paulo, o coração do Brasil. Se êle continuar, um dia a gente acorda com a revolução comunista na rua, e a gente nem tem tempo de saber do que se trata, porque nessa hora já está dependurado nos postes... Um absurdo...
O Diretor da sucursal paulista do Departamento de Imprensa e propaganda sentia as ameaças na voz de Eusébio Lima, dava explicações:
– Como eu podia adivinhar? O jornal recebeu o mesmo material informativo e fotográfico que todos os jornais. O censor não duvidou que eles fossem publicar uma das nossas fotografias... Confiou, não pediu para ver os clichês, foi isso... Mas já demiti o censor, já o pus no olho da rua... E citei o Diretor do jornal para uma conversa comigo. Far-lhe-ei uma séria advertência. Se o fato se repetir, o jornal será suspenso...
Mais tarde, almoçando, em companhia de Lucas, com o ex-senador Venâncio Florival, Eusébio Lima se queixava:
– Veja o Senhor: o doutor Getúlio vem aqui para anunciar a compra dos estoques de café, para salvar os fazendeiros da ruína, e o quê recebe em paga? Um jornal, que se apresenta como defensor da lavoura, faz uma destas...
– Isso deve ser algum comunista metido lá dentro... Eles estão espalhado por toda a parte, a gente não pode confiar nem mesmo nos amigos mais próximos... Enquanto não se acabar com essa gente, seu Eusébio, ninguém pode viver em paz...
– Mas existem, por aí também “armandistas” conspirando... Esses Alves Neto, por exemplo, são uma gente muito ligada a Armando Sales, aos ingleses, sonham com a volta ao governo como antes de 30. É possível que eles estejam metidos no mesmo saco que os comunistas. Mas, se eles estiverem, ai deles... O doutor Getúlio prefere viver em paz com todo mundo, mas êle também é bom para briga. Se quiserem porrada terão porrada. E porrada grossa, de criar cascão. Nós vamos endireitar isso, Senador...
– Não sou mais Senador, seu Eusébio. E estou contente. Se posso vender meu cafezinho por bom preço me dou por satisfeito. Eu sempre digo a essa gente: ninguém melhor que o doutor Getúlio para governar esse país... E, por falar em café, não se esqueça que estamos aqui para eu lhe entregar a sua comissão, a sua bem merecida comissão, deixe que eu lhe diga. O senhor trabalhou bem, não há dúvida. Mas nós, os fazendeiros, não somos mesquinhos. É uma bolada gorda... – abria a carteira de onde extraía um cheque. – Depositamos o dinheiro no banco do Costa Vale. É só ir lá e cobrar o seu cheque.
Eusébio Lima, estudava o cheque, fazia-o desaparecer rapidamente no bolso do paletó:
– Dinheiro para dividir com muita gente, seu Florival. Há meio mundo metido nesse negócio, o senhor nem ima gina... A começar do gabinete do Presidente para terminar no DIP e na polícia. Quando eu acabar a distribuição nem sei se restará algum para mim.
– Ora, o meu amigo não é tolo, sabe se defender... Afinal quem foi que comprou o café para revendê-lo ao governo? Ou pensa que eu não sei? – ria seu deseducado riso, dava uma cotovelada nas costelas do outro. – Bom negocinho, hein? O senhor tem razão em ser tão fanático pelo doutor Getúlio...
Eusébio Lima, recebido o cheque, encontrava-se em trem de confidências:
– Uma idéia aqui do amigo Puccini que tem cabeça e irá longe. Irá longe, seu Florival... Até já o apresentei ao Presidente e agora temos uns quantos planos... Se o doutor Getúlio se agüentar no governo, a gente pode ir se defendendo direitinho. A verdade, seu Florival, é que eu não compreendo essa gente metida em conspirações como os “armandistas.” O Brasil é grande e rico, os negócios andam aí aos pontapés, há de comer para todo o mundo, quer dizer: para toda a gente decente, toda a gente direita...
Fazia uma pausa para engolir o vinho, perdia-se em considerações:
– Está aí: eu admito que os comunistas gritem. Afinal não se pode dizer que a vida seja um céu aberto para o zé-povinho. Eles cortam uma dureza, os preços sobem, a greve está proibida, a justiça do trabalho, bem, o senhor sabe.. Que eles gritem está certo, a gente solta a polícia em cima, como ontem, em frente do Palácio. Isso até ajuda a esconder os bons negócios. Mas que gente de bem como nós, gente de cima, que tem de tudo, a quem o doutor Getúlio deu esta constituição abençoada, livre de parlamento, dos gritos dos jornais, das greves, das passeatas, dos comícios, uma gente que pode comer descansada, que essa gente viva conspirando porque quer comer sozinha, isso é que não admito... Nem posso compreender...
O ex-senador concordava plenamente:
– Eu sempre digo: precisamos é nos juntar todos contra os comunistas que nos ameaçam a todos. O que é que os integralistas queriam? Um regime forte, autoritário, pois ai o têm. O que desejavam os “armandistas”? Uma política de proteção ao café: pois aí a têm... Os industriais que pediam? Um freio metido na boca dos operários cada vez mais vorazes; pois aí o tem na Constituição. Isso de que uns estão ligados aos americanos, outros aos ingleses e outros aos alemães, não quer dizer nada... Há lugar para todo mundo como o senhor diz muito bem. Às vezes eu penso que o melhor era dividir de uma vez o Brasil para contentar todo o mundo: São Paulo para os ingleses, com um pedaço do Paraná, o outro pedaço e Santa Catarina pros alemães, o resto pros americanos que devem ter mais pois são nossos vizinhos, amigos e protetores... Assim todo mundo está satisfeito. .. Mas eu sou somente um caipira burro, e uma vez que falei nisso no Senado, conversando numa roda, me fizeram calar de repente, “que essas coisas não se dizem”, era só o que eu ouvia... Como se fosse um crime dizer o que todo mundo pensa... O mal é como o senhor diz: querer comer sozinho, é isso que atrapalha tudo. E quem ganha com isso? Os comunistas, só eles...
Quase as mesmas palavras dizia Costa Vale a Antônio Alves Neto, noutra mesa de almoço, em sua residência. Marieta servira o café e os deixara a sós, estava ainda cansada da festa, desejava ver se podia falar com Paulo pelo telefone. Desde que o jovem diplomata desaparecera da recepção em companhia de Manuela, Marieta se encontrava triste e irritada. Adivinhava o que devia ter-se passado e, mais do que nunca considerava perdidas as suas esperanças. Logo que ela saiu,, Costa Vale entrou no assunto:
– Uma quixotada, essa fotografia... Tu te dizes tão realista e ages como Don Quixote... Isso no tempo do general Franco... Só os comunistas ganham com isso e mais ninguém...
– Para falar a verdade – disse Antônio Alves Neto rindo, eu só soube dessa bendita fotografia hoje pela manhã quando vi o jornal. Foi obra do meu secretário de redação, um rapaz hábil. Mas a coisa tem sua graça e alcançou grande sucesso... O pior é o Departamento de Imprensa e Propaganda que está ameaçando suspender o jornal.
– Tu vês? Que é que você está buscando, Tonico? Por que, em vez de conspirar, você não passa uns meses meio retirado, como o Arturzinho, sem se meter em política? Depois se aproxima do Getúlio...
– Não, meu velho, nada disso. Eu sei o que quero e como alcançá-lo. Getúlio não pode fazer política conosco, nós somos “ingleses” êle é americano... Mas você agora, com o Vale do Rio Salgado para digerir, não é nem americano nem inglês... E eu também tenho um conselho para lhe dar: fique pelo menos neutro... Para que amanhã não venham querer lhe incomodar... O Vale do fio Salgado é um bocado grande e tem muita gente mal-contente. Mesmo os seus amigos da Wall Street.
Costa Vale riu:
– Os ingleses não contam, Tonico. Estou cansado de repetir isso. Vocês vão direitinho para a cova... Quanto aos meus amigos da Wall Street já tenho a sua proposta. Vamos fazer o negócio juntos... Você não quer se associar? Poderíamos examinar o assunto levando em conta o seu jornal. Uma empresa como a nossa deve possuir um jornal...
– Por ora eu só quero outra coisa.
– Diga...
– Não peço que você nos apóie, pelo menos de frente. Mas, precisamos de dinheiro. Temos um contrato de publicidade com você para a empresa do Vale. Por esse caminho você podia nos fornecer uns cobres sem que ninguém soubesse...
– Não acredito na vitória de vocês, mas seguro morreu de velho... Com uma condição: se vocês vencerem, o Florival será o Interventor de Mato Grosso... Preciso de um homem como ele na região...
– Ele anda metido com o Getúlio.
– Quem não anda?
– Com quanto podemos contar?
– Vou estudar o assunto... Por outro lado, faço-lhe também uma proposta: se vocês perderem, seu jornal será fechado, o seu prejuízo será total. Passa-me uma parte das ações, eu garantirei a existência do jornal enquanto você estiver na cadeia... E lhe enviarei cigarros...
– É uma coisa a estudar... Em resumo: se eu ganho, você não terá aborrecimento com o Vale do Rio Salgado. Se perco, você garante a vida do jornal...
Levantou o cálice de cristal:
– À nossa...
Em meio à agitação dos dias que se seguiram à visita do ditador, Mariana e João casaram-se. Os papéis tinham sido preparados em Jundiaí, para onde ela, em companhia do velho Orestes, viajou na manhã da cerimônia. O italiano levava como única bagagem, uma cesta cheia de vinho de abacaxi, fabricado por êle na chácara onde se escondia a tipografia. Sua presença representava para Mariana a família ausente, o velho Orestes era como um parente próximo, alguém que lhe relembrava seu pai e tudo que êle lhe ensinara. A mãe não viera, ficara arrumando a casinha alugada num subúrbio distante onde passaria a habitar em companhia da filha e do genro. Tampouco viera a irmã. Mariana mesmo preferira que ela não estivesse presente naquele casamento tão diverso do seu, sem véu de noivado, sem vestido branco, sem cerimônia religiosa. A irmã lhe dera um vestido azul quase novo e um par de sapatos, com eles Mariana se casava. Os companheiros haviam feito uma subscrição, encabeçada pelo Ruivo, haviam recolhido dinheiro com que lhe comprar um barato relógio de pulso, coisa que, aliás lhe fazia muita falta.
Da estação, em Jundiaí, a conduziram à casa de uns companheiros onde João a esperava. Também êle estava de roupa nova:, umas calças grossas de lã, adquiridas no armarinho de um sujo, contrastando com o paletó já um pouco gasto, mas de excelente tecido, tomado a Cícero d’Almeida. Parecia mais sério do que nunca nesse dia, e, se não fosse terem-se envolvido numa discussão sobre política internacional, Mariana não sabe como teriam passado aquelas longas horas que precederam o almoço. Estavam todos um pouco sem jeito. Os donos da casa eram um casal de operários já de certa idade, pais de quatro crianças barulhentas. Haviam-se esmerado no almoço. Ante as garrafas de vinho de abacaxi, abertas por Orestes, tornaram-se faladores, não tardou que os risos altos enchessem a pequena sala. Alguns brindes foram trocados. Orestes bebeu àquela nova família comunista que ia se constituir naquele dia, falou sobre a moral dos operários, o seu amor aos filhos e aos pais, à luta que ligava todos eles, ao futuro pelo qual trabalhavam. Os donos da casa tinham lágrimas nos olhos ao ouvi-lo e, quando êle terminou, o operário também quis dizer umas palavras. João havia sempre ficado em casa deles todas as vezes que viera, em tarefa do Partido, a Jundiaí. Êle bebia àquele companheiro responsável, para quem o tempo não contava, nem as condições materiais, de quem jamais ouvira uma queixa, com o qual aprendera quase tudo que sabia. Mas, disse, queria beber também a todos os camaradas espalhados pelo mundo; em trincheiras, em prisões, na ilegalidade, queria beber ao camarada Prestes prisioneiro, queria beber ao camarada Stalin que dirigia essa luta deles todos de algumas distantes peças do Kremlin... Desta vez foi Mariana quem sentiu os olhos úmidos. E ainda os tinha molhados quando o velho Orestes exigiu que ela falasse. Levantou seu copo aos camaradas espanhóis que barravam, com sangue e fogo, o caminho do fascismo. E àqueles, vindos de todo o mundo, para ajudá-los, especialmente os brasileiros. Simbolizava-os no camarada Apolinário, o capitão das brigadas internacionais, cuja fama de heroísmo começava a atravessar as fronteiras.
Por último falou João. Disse apenas umas poucas palavras, mas disse as palavras que Mariana esperava escutar, o brinde que desejava beber. Saudou a memória imortal de todos aqueles que haviam tombado pela causa dos trabalhadores, pela vitória do proletariado, pelo estabelecimento do socialismo no mundo, aqueles que como Azevedo, o pai de Mariana, eram os mártires sagrados da revolução.
Saíram do almoço para o forum onde já outros casais aguardavam o juiz. A cerimônia foi rápida e serviu para que finalmente Mariana soubesse o nome completo de João:
– Aguinaldo Penha deseja receber em casamento a Mariana de Azevedo? – perguntou o juiz.
Naquela mesma tarde voltaram para São Paulo. Na estação o velho Orestes os deixou, tinha sido resolvido que nenhuma comemoração seria feita na residência dos subúrbios. Só a mãe os esperava e havia posto um grande ramo de flores na sala. A noite chegara, era uma clara noite de lua, multiplicada de estrelas, um céu profundo e distante, e em alguma parte um violão gemia. João a abraçou pelo busto, levou-a até a janela. Contemplaram a noite, silenciosos, ela encostou a cabeça no ombro do seu companheiro. Ele lhe disse:
– Sempre sonhei com isso: com uma casa, um lar, uma família. Não sei como vai ser, Mariana, talvez seja muito duro para nós certas vezes. Mas eu sei que, de agora em diante, tudo me será também mais fácil: pensarei em ti...
Ela suspendeu os lábios e o beijou. Disse:
– Nada pode ser definitivamente mau quando a causa por que se luta é justa. Tudo que eu quero é poder lutar a teu lado. Jamais me sentirei, triste, mesmo quando não saiba onde estás, que perigos correrás... Nada, nem ninguém nos poderá nunca separar porque vivemos para a mesma causa... Quero que saibas disso: não precisas te preocupar comigo quando estiveres longe... Guarda apenas no teu coração a minha lembrança.
Olharam outra vez o céu profundo e ela enxergou aquela mesma estrela entrevista na sua noite de noivado, dos jardins da casa do arquiteto simpatizante. Apontou-a com o dedo:
– Tu sabes? Aquela é a nossa estrela, só que não sei o seu nome, sei o de quase todas as outras... Mas ela é mais brilhante que todas, um dia arranjarei um nome para ela...
Os sons de violão chegavam da penumbra da rua, numa melodia popular. Eles se olharam, sorriram um para o outro e assim ficaram em silêncio ouvindo a música, a do violão seresteiro e a que subia dos seus próprios corações plenos de amor.
Logo três ou quatro dias depois do seu casamento, Mariana teve de recorrer mais uma vez ao arquiteto; uma reunião ampliada do secretariado devia ser realizada com urgência.
Comunicou-lhe então haver-se casado e Marcos de Sousa riu gostosamente, dizendo andar já desconfiado de que alguma coisa existia entre ela e João. Quis a pulso dar-lhe um presente, qualquer objeto útil para a casa. Disse que entregaria quando da reunião.
Além de João, Ruivo, Zé Pedro e Carlos, outros elementos estiveram presentes. Quadros responsáveis pelas células fundamentais, alguns membros do regional vindos de Santos, de Sorocaba, de Campinas, Saquila e Cícero d’Almeida. A reunião deu um balanço da ação realizada quando da visita de Getúlio e concluiu que ela tinha sido positiva. Não só fizera fracassar a grande manifestação do estádio como tinha afirmado a existência do proletariado paulista como uma força política disposta a dificultar a fascistização do país. Os próprios políticos burgueses oposicionistas mostravam-se agora mais dispostos a cooperar com o Partido Comunista numa ampla frente democrática. E a massa pequeno-burguesa das cidades sentia ser o Partido a única força organizada capaz de lutar contra o Estado Novo. Era preciso, porém, saber colher os frutos daquela ação. Foi o que o Ruivo demonstrou no seu informe: o massacre da manifestação pacífica dos parentes dos operários presos repercutira profundamente entre os trabalhadores. Muitos dos que ainda tinham ilusões com respeito a Getúlio, que se mostravam refratários à idéia de movimentos grevistas, começavam agora a abrir os olhos. Por um lado a impassibilidade com que o ditador assistira à polícia atirar contra os operários, por outro lado a falta de qualquer medida concreta de defesa dos interesses do proletariado (medida prometida para o seu discurso no estádio pelos agentes do Ministério do Trabalho), tendo ficado o seu discurso apenas em frases sobre uma era de paz social e de entendimento entre trabalhadores e patrões, tudo isso criara um bom ambiente para o trabalho político. E esse ambiente encontrava agora seu melhor instante quando o governo, fazendo a política dos altos preços do café, oferecia de presente a Franco café comprado aos fazendeiros, na mesma hora em que o povo não podia sequer comprar a sua bebida nacional, tão elevados estavam os preços. Chegara o momento de se marchar para ações mais decisivas: tudo indicava a possibilidade de um amplo movimento grevista no Estado, a iniciar-se entre os doqueiros de Santos, cujas tradições de luta revolucionária eram conhecidas, e que certamente tentariam impedir o embarque do café para Franco. Ruivo propunha o envio para Santos do companheiro João, encarregado de preparar as condições para a greve. Propunha também que o secretariado e os demais membros do regional descessem às bases do Partido para discutir a situação e começar o trabalho para estabelecer as possibilidades de um largo movimento de solidariedade aos trabalhadores de Santos quando a coisa começasse. Chamava a atenção também para a necessidade de incrementar o trabalho no campo. Sem conquistar a aliança dos camponeses, o proletariado não poderia marchar, no Brasil, para uma ação revolucionária definitiva. O trabalho no campo não adquirira ainda nem de longe, a profundidade necessária e era preciso estudar seriamente esse problema. A direção nacional do Partido estava seriamente preocupada com a Empresa do Vale do Rio Salgado, onde enxergava uma nova investida do imperialismo ianque sobre as riquezas nacionais, e se preparava para desmascará-la e lutar contra ela. E, como os primeiros a serem prejudicados pela nova empresa, seriam os camponeses estabelecidos na região, fazia-se urgente começar um trabalho por lá. Um companheiro do regional de São Paulo devia ser designado para ir a Mato Grosso.
Após a discussão do informe de Ruivo, Carlos informou sobre o problema das divergências existentes no seio da direção estadual. Expôs os acontecimentos desde a campanha eleitoral. Fez uma crítica severa à atuação de Saquila e seu grupo. Demorou-se no caso da tipografia, explicou como agira Camaleão. Agira – disse – como um inimigo do Partido negando-se a entregar a oficina, negando se a compor material, desaparecendo depois sem deixar rastro, até agora ninguém sabia dele, parecia ter abandonado o Partido. Responsabilizava o jornalista pela maneira de agir do tipógrafo, como o responsabilizava por tentar trazer ideologias estranhas ao seio do Partido. Não era por acaso o camarada Saquila que desejava fazer prevalecer o problema da industrialização sobre o da reforma agrária no programa da revolução democrático-burguesa? Não era êle quem, na prática, queria deixar a direção dessa revolução democrático em mãos da burguesia e da pequeno- burguesia, dos políticos e dos partidos burgueses, ao negar as possibilidades de um amplo movimento de massas, ao combater a linha de frente democrática contra a fascistização do país, ao tentar arrastar o partido para as aventuras golpistas dos “armandistas” ainda por cima aliados aos integralistas? Não era êle também que advogava agora uma política de conciliação com o capital americano e inglês para assim fazerem frente à ameaça do capital alemão? Não era tudo isso, por acaso, fazer o jogo do imperialismo, da burguesia e dos latifundiários? Programa de revolução democrático-burguesa sem reforma agrária e sem luta contra o capital americano, era uma traição aos interesses do povo, o camarada Saquila cometera em sua atuação erros criminosos, agira como um elemento trotskista...
Saquila anunciava a seus amigos, àqueles que ainda o acompanhavam no Partido, atender essa reunião para reduzir a nada a direção atual, para mostrar como ela era incapaz e errada. Mas não esperava, nem de longe, a detalhada violência do informe de Carlos. Viu que, à proporção que Carlos falava, uma atmosfera pesada o cercava. Podia senti-la nos olhos de Cícero d’Almeida, seu amigo. Cícero, cuja sinceridade ninguém punha em dúvida, parecia finalmente enxergar a verdadeira face de Saquila e foi o tê-lo sentido nos olhos do outro o que decidiu Saquila a botar a mão no peito e a autocriticar-se. Parecia um monge antigo a macerar-se; realmente errara muito, agora o via, e a cada erro partia para um maior. Xingava-se, fazia praça da sua origem pequeno-burguesa, dizia-se indigno e miserável. Mas não assumiu a responsabilidade pelas ações de Cama- leão. Não só não o defendeu como o atacou violentamente e foi o primeiro a pedir a expulsão do tipógrafo. Depois pediu perdão para os seus erros, disse ter sempre agido de boa-fé, prometeu emendar-se. Fez-se dramático ao falar do Partido, do que a luta representava para êle, que tivessem confiança nele, que lhe dessem ainda uma oportunidade, e ele saberia corrigir-se e fazer-se digno do nome de membro do Partido Comunista do Brasil.
A reunião tomou várias decisões. Foi resolvido iniciar-se o trabalho para o movimento grevista e estalar num prazo rápido, foi decidido mandar João para Santos e Carlos a Mato Grosso para estudar in loco, durante alguns dias, a situação do Vale do Rio Salgado. Camaleão foi expulso do Partido e Saquila foi separado da direção, devendo voltar à base durante algum tempo, até provar sua disciplina e sua lealdade às decisões do Partido. Foi decidido igualmente que a expulsão de Camaleão seria noticiada na “Classe Operária”.
Quando os demais se retiraram e ficaram apenas os membros do secretariado, o Ruivo disse a Carlos:
– Tu deves partir amanhã mesmo... Dentro de vinte dias ou um mês pode começar a onda de greves e precisamos de ti aqui.
– Pensei que a direção nacional me enviasse para ficar pelo menos um bocado de tempo...
– Não. Já existe alguém lá ou pelo menos pensa-se que existe. Tu vais exatamente para tomar contacto com esse companheiro, estudar a situação com ele, ver do que ele precisa, como se podem estabelecer as bases de uma resistência aos homens de Empresa. O companheiro que está lá chama-se Gonçalo e tu deves procurá-lo em nome de Vítor...
– É o Gonçalo da Bahia, o dos índios?
– Ele mesmo...
– Então a coisa vai bem...
Falaram depois sobre Saquila. Carlos não estava satisfeito com a resolução, era pela expulsão pura e simples do jornalista, parecia-lhe que a direção se deixara impressionar por “aquela automaceração que Saquila apelidara de autocrítica”:
– Aquilo nunca foi autocrítica em lugar nenhum... Repare que em nenhum momento êle disse estar de acordo com a linha do Partido. Que tinha errado, sim senhor, era um miserável, um tipo à-toa, não sei o que mais... Mas não abandonou suas posições nem por um momento...
– O que impressionou o pessoal foi ter ele mesmo proposto a expulsão de Camaleão. E não se ter nada de concreto contra ele a não ser suas concepções ideológicas falsas. Os companheiros do regional consideram-no um errado mas não um inimigo. Se forçássemos o problema de expulsão agora não íamos ajudar a educação dos quadros. Ia dar a alguns a impressão de luta de grupo. Saquila vai se enterrar sozinho...
– E agora, na base, ele tem muito menos possibilidades de fazer mal ao Partido...
Carlos se preocupava também com Camaleão:
– Esse tipo não me sai da cabeça. Vocês precisavam tê-lo visto na conversa comigo quando fui receber a oficina. Parecia um policial... Era preciso saber por onde êle anda, onde se meteu, que diabo está fazendo.
Zé Pedro concordou:
– Eu também me preocupo. Afinal êle sabe onde fica a oficina, é um perigo. Por mais difícil que seja, é preciso arranjar outra casa. Não se pode ficar na mão de um cara assim...
– O difícil é arranjar a casa...
– O nosso amigo Marcos não conhece nenhuma?
– Mariana já lhe perguntou. Ele não conhece os subúrbios, só conhece casas pelo centro e impossíveis...
Ruivo voltou-se para João:
– Está terminada tua lua-de-mel. Vais para Santos, a jovem fica... Quem mandou casar? – e ria.
João riu também:
– Foi por isso que casei com uma comunista... Bem, até outra vez... – despediu-se, partiria para Santos no dia seguinte.
Foram saindo nos intervalos regulares. Quando estavam só o Ruivo e Zé Pedro, o arquiteto apareceu, um embrulho na mão.
– Isso era para João. Um presente de casamento. Mas êle já foi... E eu, que havia anunciado a Mariana...
– Eu entrego a ela – disse Ruivo.
Marcos de Souza sentou-se com êle, começou a comentar a visita de Getúlio. Ainda não se falava de outra coisa em São Paulo. Os estudantes tinham sido finalmente soltos mas os operários presos durante a manifestação ainda estavam nos cubículos da polícia central, tinham sido brutalmente espancados. Mesmo os quatro feridos, recolhidos a um hospital, ainda estavam incomunicáveis. O arquiteto soubera que o delegado de Ordem Política e Social não tardaria a ser demitido. A delegacia seria entregue, segundo lhe haviam contado, a um antigo chefe de investigadores, especialista na repressão ao comunismo, o célebre “chefe” Barros. Um tipo horroroso, o encarregado das torturas, com vinte anos de polícia...
– O Barros... – disse Ruivo. – Conheço êle muito bem, é um animal, vários companheiros nossos foram vitimados por ele. O pai de Mariana, por exemplo. Quando saiu de suas mãos foi para morrer... Essa é uma notícia interessante...
Também o diretor da sucursal do Departamento de Imprensa e Propaganda – continuava contando Marcos de Souza – parecia estar em maus lençóis. Falavam igualmente da sua substituição no cargo, aliás, parecia que Getúlio levara péssima impressão de todas as autoridades estaduais, da sua lealdade. Existiam muitos “armandistas” metidos em postos importantes. E os “Armandistas” estavam conspirando, com certeza. Um golpe que podia dar certo, eles não achavam?
– Não, não achamos... – riu Carlos. – Eles não têm forças para derrubar Getúlio... Só vão fortalecê-lo...
– Pois é pena... – lastimou o arquiteto. – Afinal, antes Armando Sales do que Getúlio...
Ruivo levantava-se para sair, pôs a mão magra de tuberculoso no ombro do simpatizante:
– É tudo a mesma coisa, velho... Getúlio ou Armando Sales são pano da mesma peça... Ou você pensa que se Armando Sales der um golpe com êxito vai se desfazer da Constituição de novembro? Vai é governar com ela, fazer o Estado Novo para ele. Um golpe pode mudar somente o ditador, não pode acabar com a ditadura. Só um movimento de massas que se desenvolva em todo o país, compreende? Para nós não há nenhuma diferença fundamental entre esses homens todos. Eles representam no fundo a mesma coisa. Com uns ou com outros, o Barros está sempre na polícia, liquidando operários... Sai governo, entra governo e o Barros lá está, mais firme que uma rocha... É como um símbolo. E só o povo pode varrer o Barros de lá e todo o resto da porcaria.
Riu, o arquiteto riu também numa admiração...
– O que eu admiro... do que eu gosto... é da confiança de vocês no povo. .. Pode ser que isso seja até errado, mas, com todos os diabos, é bonito como o quê!
– E é certo também, – corrigiu Carlos.
Camaleão se escondera em casa da amante, nas proximidades de onde havia funcionado antes a tipografia. De há muito êle confessara a mulata, uma lavadeira abandonada pelo marido, ser comunista e correr perigo. Ela possuía uma noção muito vaga de tudo aquilo e os trechos de material repetidos pelo gráfico numa voz declamatória apenas lhe causavam confusão. Camaleão aparecia-lhe como um letrado e ela dizia rindo por entre os dentes podres:
– Tu é direitinho um padre fazendo um sermão. Como é que um homem pode ter tanta coisa guardada na cabeça? Tu é mesmo que um doutor...
Camaleão impava de orgulho. Suas únicas horas alegres eram as passadas em companhia da mulata; ali estava alguém que o admirava, alguém que sabia reconhecer o seu valor. Mesmo quando a oficina foi transferida para a chácara distante, êle vinha à noite vê-la, numa longa e arriscada viagem. Ela gastava com êle todo o pouco dinheiro que ganhava lavando roupa para famílias das ruas vizinhas, empregados do comércio, um investigador da polícia com sua mulher, um tenente da Polícia Militar, um telegrafista aposentado. Ela mesma morava num trecho perdido de rua, um caminho nos matos onde se levantavam seis ou sete casas de barro batido, habitações de lavadeiras e cozinheiras, de um pai-de-santo (onde aos sábados e domingos dançavam macumbas), de um operário desempregado.
Nas noites em que Camaleão aparecia, demoravam-se, após o jantar, bebendo cachaça. E, quando bêbedo, Camaleão tornava-se falador, contava coisas do Partido, queixava-se. Daquilo tudo a lavadeira concluía ser o tipógrafo um sujeito importante e estava vaidosa das suas relações com êle, tão vaidosa que não podia se conter e, aos poucos, deixava escapar para as vizinhas curiosas certas histórias contadas por êle.
Um dia Camaleão apareceu, inesperadamente, à tarde. Vinha de mau humor e lhe contou uma embrulhada história: a polícia o perseguia, êle devia esconder-se, ela não podia dizer a ninguém que êle se encontrava ali. Aquela parecera a Camaleão a melhor coisa a fazer, após a cena com Carlos: meter-se em casa da amante até Saquila ser posto em liberdade e decidir o destino a lhe dar. Havia deixado um recado na redação do jornal, dizendo onde Saquila o podia encontrar. Tomou conta da casa da amante, dormia a maior parte do dia, enquanto ela levava roupa e a secava num córrego próximo, embebedava-se à noite quando ela voltava. Os comentários dos vizinhos não tardaram, mesmo porque Camaleão começou aos poucos a sair, a fazer relações, acompanhou a mulata a uma batida de macumba na casa do pai-de-santo. Dizia-se um tipógrafo sem emprego mas já os vizinhos murmuravam tratar-se de um criminoso procurado pela polícia. Alguns falavam de furto, outros afirmavam ser um perigoso assassino.
Camaleão sentia-se a cada dia mais distante da vida anterior. Tinha agora tudo que desejava: comida, bebida e mulher, podia sair à noite pelos matos, não era obrigado a trabalhar. Assim, quando Saquila o procurou, êle não se mostrou muito interessado em aceitar um lugar na oficina da “A Notícia”. Fez exigências, não queria um lugar qualquer, estava bem, nada lhe faltava, e deixou entrever, em certas frases, as obrigações de Saquila para com êle:
– Você bem pode me arranjar o lugar de subchefe da oficina do jornal. Você é o secretário, manda e desmanda... Afinal você me deve muitas obrigações e eu se quisesse... – deixava a frase no ar e Saquila teve medo, prometeu-lhe ver o que podia fazer.
Nada disse ao Partido da conversa com Camaleão e durante algum tempo não o procurou. Só voltou a vê-lo depois da reunião do regional e lhe trouxe um exemplar do último número da “Classe Operária” onde era noticiada a expulsão do tipógrafo. Havia-lhe arranjado também um emprego numa grande oficina gráfica de uma casa editora.
Encontrou Camaleão bêbedo e foi impossível qualquer conversa mais séria. A primeira reação do tipógrafo ao tomar conhecimento da expulsão do Partido foi chorar como uma criança. Talvez um distante sentimento seu, quase perdido já, tivesse sido tocado e Saquila quis se aproveitar desse momento para convencê-lo de que ele podia reabilitar-se:
– Você volta ao trabalho de massa, no sindicato, e se reabilita. Essa direção não vai ser eterna no Partido, eles estão cometendo besteira sobre besteira, nossa hora não tarda a chegar. Eu mesmo quase fui expulso... Tiraram-me da direção, fizeram-me voltar à base. .. Isso tudo por sua causa, porque lhe defendi. Mas as coisas vão mudar, eu lhe garanto, e você voltará ao Partido, eu lhe prometo. Pode até ser membro da direção. Você, com a experiência ganha no trabalho da oficina, dá um bom responsável de agitação.
Mas Camaleão terminara de chorar e sua segunda reação foi uma raiva indignada. Não queria saber de nada, às frases de consolação e de promessa de Saquila respondia com más palavras, com queixas amargas. Então era assim, que lhe agradeciam aos tempos horríveis que passava metido numa casa com as máquinas, sem poder sair, recebendo atrasado um salário infame, sacrificando tudo pela causa, até sua saúde? Começou a deblaterar contra o Partido, contra os camaradas, nem mesmo Saquila escapava. O jornalista se encontrava entre a irritação e o medo. Sentia que a sua criatura lhe escapava, que, no caminho por onde marchava, Camaleão podia fazer qualquer coisa e se assustava. Vivia um tempo delicado, necessitava ganhar outra vez a confiança do Partido se quisesse realmente realizar seus planos. E aquele imbecil bêbedo era capaz de botar tudo a perder. Resolveu se impor:
– A verdade é que você cometeu um burrada...
– Burrada, por quê? Até você me acusa, está vendo? Não foi você mesmo que me disse que não entregasse a oficina?
– Isso era uma coisa, outra era ir embora, largar tudo, desaparecer como você fez. Os camaradas ficaram desconfiados...
– Não quero saber de mais nada... Me sacrifiquei como um desgraçado e termino recebendo um pé na bunda... Pra mim isso se acabou...
Saquila se punha de acordo:
– Está certo, não se fala mais, O importante agora é você começar a ganhar sua vida. Como lhe disse, tenho um bom lugar para você na “Gráfica Comercial”. Você pode começar dentro de dez dias, no primeiro do mês. É um lugar melhor que em qualquer jornal...
– Tá bem... Obrigado... – agora, melhor já da bebedeira, Camaleão voltava a ser humilde ante o jornalista. – Eu gosto de você Saquila, e se algum dia você precisar de mim...
– Eu também gosto de você. A turma foi injusta lhe expulsando mas isso a gente vai ver mais tarde...
Deu.lhe algum dinheiro, disse-lhe que o procurasse no fim do mês para êle o apresentar na oficina gráfica, despediu-se. Camaleão voltou a beber e, quando a mulata chegou, o encontrou caído ao lado da mesa, resmungando ameaças.
Os cochichos na rua aumentavam e, como a polícia procurava naqueles dias um ladrão que assaltara uma relojoaria numa disputa com a mulata, outra lavadeira insinuou ser talvez Camaleão o autor do furto, ninguém sabia de onde êle viera:
– Esse homem escondido em tua casa... Se não foi êle que assaltou a casa de jóias...
A mulata indignou-se:
– Ele não é um ladrão... É um homem direito que sabe uma porção de coisas, sabe que nem um doutor... É um comunista, é por isso que está escondido...
Assim a notícia foi rolando de casa em casa até chegar à do investigador de polícia. Esse se interessou pelo assunto e uma noite apareceu com mais outro e conduziu Camaleão mais embriagado do que nunca, para a polícia.
Às perguntas que lhe haviam feito no momento da prisão, Camaleão respondera com frases incoerentes, mas a mulata, assustada e ameaçada, fora mais explícita. Contara o início dos seus amores com o tipógrafo quando este habitava, sozinho, uma casa retirada, não distante dali, agora fechada, onde de quando em vez apareciam outros homens. Dissera como depois êle se mudara mas mantivera suas visitas e como aparecera um dia para se esconder. Sim, era comunista, pelo menos assim o contava e sabia dizer coisas bonitas, palavras difíceis que ela não entendia.
Barros, aquele velho chefe de investigadores da Ordem Política e Social, o mesmo que prendera há muitos anos passados, o pai de Mariana, era considerado o maior técnico da policia paulista na repressão ao comunismo. Na noite da prisão de Camaleão, êle jantara com Eusébio Lima e entre ambos tinham discutido a atuação do delegado. Também Barros o considerava fraco para o cargo, inexperiente, um advogadozinho frouxo, não era, certamente, o homem indicado para aquele posto-chave na manutenção da ordem estabelecida, Mas o Interventor o protegia e não tinha ainda sido possível demiti-lo apesar da pressão do Rio de Janeiro. Quando o investigador voltou à policia, à noite, vinha contente, antevia nas palavras de Eusébio Lima – uma pessoa diretamente ligada ao Chefe do Governo – a possibilidade de vir a ocupar o sonhado lugar de delegado. Pouco depois lhe comunicaram a chegada do preso.
Foi impossível arrancar qualquer coisa de concreto do tipógrafo no primeiro interrogatório. Ele estava bêbedo demais e tudo que dizia era incoerente e sem sentido. Mas foi o quanto bastou para que Barros ficasse certo tratar-se de alguém ligado ao Partido. Deu ordens para que o metessem sob uma ducha fria até a bebedeira passar e pela madrugada o interrogou de novo. Camaleão encontrava-se esgotado, era um trapo de gente. Barros lhe disse com sua voz rouca e pesada de ameaças:
– Ou você fala por bem e nada lhe acontece ou você vai ver o que é bom...
– Não sei nada... Juro que não sei nada... – estendia as mãos, tremia o corpo, o paletó ainda sujo da cachaça e da comida vomitada, os cabelos molhados.
– É assim? Então vamos para a outra sala, a das “sessões espíritas”... – fez um sinal aos investigadores, levaram Camaleão que se debatia.
Barros fumava um charuto, oferecido por Eusébio Lima, no fim do jantar, aspirava a fumaça cheirosa. Encostou-se na porta da sala, acabando de fechá-la. Sorria levemente. Camaleão passava os olhos assustados pelos instrumentos de tortura arrumados na sala. Barros falou:
– Bem, meu velho, vamos iniciar a festa...
Os tiras tomaram dele brutalmente, começaram a amarrá-lo. ele sentiu os primeiros socos, gritou:
– Pelo amor de Deus... Eu conto...
Foi outra vez transportado para o gabinete de Barros. Ficaram os dois sós e êle narrou a sua história. Só não falou em Saquila, mas disse tudo mais o que sabia, desde a sua entrada no Partido até a expulsão. Deu o endereço da oficina, descreveu Carlos (de quem não conhecia o nome), outros companheiros encarregados de levar e buscar material. Barros mostrou-lhe uma fotografia do Ruivo, feita numa das prisões do dirigente, perguntou-lhe se êle não o conhecia. Camaleão o havia visto uma única vez, mas não sabia onde encontrá-lo. Tampouco tinha idéia de quem se escondia sob o nome de camarada João, não reconheceu a fotografia de Zé Pedro, aquele êle nunca tinha visto.
Agora Barros estava atencioso e gentil. Logo após ter obtido o endereço da oficina dera diversas ordens para preparar a “batida”. Ria para si mesmo, agora sabia como demitir o delegado e ganhar o seu lugar. Avisara aos investigadores para nada comunicarem ao delegado sobre a prisão de Camaleão e a “batida” em perspectiva. Enquanto os investigadores preparavam os automóveis, êle continuou a conversa com Camaleão. Havia-lhe oferecido um cigano e o tipógrafo, ainda pálido, pedia-lhe agora proteção. Tinha medo da vingança dos companheiros, podiam fazer-lhe uma desfeita na rua. Barros o estudava, ali estava um bom elemento. Propôs-lhe trabalhar para a polícia. Ele seria solto, teria um bom ordenado, trataria de se aproximar outra vez dos comunistas. E informaria... E depois teria uma carreira em sua frente... Camaleão aceitou.
– Agora você vai conosco nos mostrar a casa onde está a oficina. Vamos tirar a prova do que você disse.
– E depois? Não me botem preso com eles pelo amor de Deus, não me botem... – e novamente chorava, tomado de um terror pânico, era como um resto de gente, qualquer coisa de sórdido e mesquinho e, mesmo naquele ambiente ignóbil de polícia, sua condição humana era tão miserável que o próprio Barros o pôde sentir: “esse pode nos ser muito útil...
– Não seja covarde: Não tenha medo... Nós lhe garantimos... A não ser que você tenha mentido. Nesse caso...
Mas Barros sabia que Camaleão não havia mentido. Comprovara sua história com o último número da “Classe Operária” onde figurava a notícia da expulsão do tipógrafo. Ao demais, possuía uma grande experiência de comunistas presos, êle os conhecia bem e sabia distinguir de logo os covardes e os fracos, aqueles capazes de traição. Eram bem raros, infelizmente, pensava, a maioria sabia manter-se calada, era uma espécie de gente cuja psicologia êle jamais conseguira entender direito, uma gente que resistia às maiores torturas de boca fechada. Por isso sentia-se sempre alegre e bem disposto quando algum deles, mesmo um tipo já expulso do Partido, falava. Parecia-lhe uma vitória moral, bem mais preciosa que uma batida com muitos presos, que uma descoberta sensacional de qualquer organismo subterrâneo... E agora essa alegria era multiplicada por que via a ocasião de apoderar-se da oficina ilegal, de prender tipos responsáveis, à revelia do delegado para quem isso iria significar a substituição no posto, enquanto iria lhe dar, a ele, Barros, aquele ambicionado título de “Delegado da Ordem Política e Social”. Os comunistas aprenderiam então uma boa lição, quando êle fosse delegado.. . Disse a um dos investigadores, apontando Camaleão ainda em lágrimas:
– Meta êle no meu carro, êle vai com a gente...
O policial deu um empurrão no tipógrafo, jogando-o sobre a porta. Barros recomendou:
– Não maltrate o homem. Êle agora é um dos nossos. Vai trabalhar com a gente, teve juízo...
Cinco carros partiram da polícia central no fim da noite. Barros recomendara aos tiras que se armassem bem, não podiam adivinhar que resistência encontrariam. Enquanto os autos atravessavam a cidade adormecida, êle continuava a interrogar Camaleão que ia a seu lado. Receava que, após o abandono da tipografia pelo traidor, os comunistas a houvessem transportado a outro local. Mas não via como o pudessem ter feito, não havia praticamente tempo. As má quinas deviam estar ali, pelo menos as máquinas, não se desmonta e remonta uma oficina em poucos dias e eles necessitavam dela para o material distribuído durante a visita de Getúlio... E estariam certamente imprimindo novo material. Barros imaginava já, que proveito não podia tirar dessa oficina, utilizando-a para imprimir falso material, para espalhá-lo nos meios operários, criando confusão, apresentando como palavras de ordem do Partido o que melhor interessasse à polícia. Riu de sua idéia, uma vez tinham feito isso no Rio de Janeiro com ótimos resultados. Seria seu primeiro trabalho como delegado: a apreensão e utilização dessa oficina. Provaria assim que não sabia apenas espancar e liquidar comunistas, que era capaz de empregar contra eles também outros métodos, mais finos, de entrelaçar uns e outros, os brutos e os engenhosos. Mostraria ser o homem capaz de lutar contra o partido em São Paulo. Disse a Camaleão, cujo corpo sentia tremer ao seu lado:
– Se pegarmos essa oficina, lhe dou um bom emprego na polícia. Palavra de Barros.
Quando deixaram para trás as últimas casas e entraram na larga estrada, Camaleão começou a indicar o caminho. Agora já estavam em pleno campo e deixaram os automóveis nas imediações da chácara. Era uma noite azulada, de suave atmosfera e um perfume de mato orvalhado se desprendia da terra. Tudo parecia dormir em torno e Barros começou a distribuir seus homens. Cercaram a casa, tomaram posição entre as árvores do pequeno terreno que a circundava. Barros recomendava:
– Evitem causar qualquer dano às máquinas... Quero aproveitar a tipografia...
Dois investigadores se adiantaram até a porta, os revólveres nas mãos. Um deles deu algumas pancadas secas e fortes, com a junta dos dedos, sobre a madeira. Como não tivesse resposta, bateu com a coronha do revólver e os sons se multiplicaram na noite perfumada e clara. Barros se aproximou:
– Vamos resolver isso com o menor barulho possível... Para não chamar a atenção dos vizinhos. Assim podemos colocar uma armadilha aqui e pegar todos os elementos de ligação com a oficina. Vamos evitar que a redondeza se dê conta e a notícia se espalhe. Vamos trabalhar com a cabeça...
E ele mesmo bateu suavemente na porta, pancadas repetidas mas pouco ruidosas.
– Logo que eles abram aqui, tratem de entrar também pelas portas do fundo. E peguem o material existente. Agora somos nós que iremos encher a cidade de material comunista... Feito na polícia...
Com as primeiras pancadas, o velho Orestes tinha se levantado, tocara no ombro de Jofre, acordando-o:
– Estão batendo na porta...
Ficaram escutando, o jovem tinha-se posto de joelhos e estendia a cabeça para o corredor.
– Estão batendo com a coronha de um revólver...
– É a polícia... – disse o velho.
Jofre concordou balançando a cabeça, já estava de pé, tomava do revólver, uma súbita maturidade cobrindo-lhe o rosto juvenil. Agora ressoavam brandas pancadas na porta mas os ouvidos de caboclo de Jofre distinguiam os ruídos de passos:
– Estão cercando a casa.
Orestes se armava também e a excitação o fazia rir. Jofre resumiu rapidamente a situação:
– O importante é não deixar cair em mãos deles nem o material impresso nem as máquinas. Eles podem utilizá-las para imprimir falso material. E fazer o máximo de barulho, atirar o mais possível, para que se saiba do acontecimento pelas imediações. Para eles não poderem se emboscar aqui à espera dos camaradas...
– Mariana costumava vir aqui... – refletiu Orestes.
– Mesmo Carlos vem às vezes... Mesmo que a gente morra, o importante é que saibam. Vá contê-los, enquanto eu trato de rebentar a máquina e de queimar o material...
– Não... – disse o velho. – Deixe isso por minha conta, vá você para a sala. Eu sei como fazer e não vai restar nada.. Se puder fugir, trate de fazê-lo porque eu vou acabar com as máquinas e até com a casa...
Jofre o olhou e riu, compreendia agora a utilidade daquelas primitivas bombas que o italiano fabricava e a respeito das quais êle sempre fizera troça. Estendeu-lhe a mão, o velho disse:
– Se você escapar, diga a Mariana que o velho Orestes não fez feio...
Saíram os dois, o italiano para o quarto onde estavam as máquinas, Jofre para a sala. Uma voz ordenava, através da porta:
– Abram, senão arrombamos...
Jofre gritou, apontando o revólver para a porta:
– Quem entrar é homem morto...
Ouviu o baque dos corpos contra a porta, tomou posição por detrás da mesa. Do quarto onde estava Orestes começava a sair fumaça, o velho estava queimando o material. A porta cedia aos poucos. Jofre ouvia pancadas também na porta dos fundos. De repente, a uma investida mais forte, a porta da sala abriu-se mostrando a figura de um investigador ainda jovem. Jofre atirou, o homem deu um grito segurando com a mão direita o braço esquerdo, deixando tombar o revólver. E a porta ficou vazia. Uma voz dizia, lá fora:
– Atenção, que eles estão armados...
A voz de Barros se elevava:
– Entreguem-se e eu lhes garanto um bom tratamento. Se resistirem serão mortos... Larguem as armas e se rendam.
– Venha me buscar... – respondeu Jofre.
– É um só... – ouvia alguém dizer nas sombras em frente à casa.
E, quase ao mesmo tempo, sentia a porta dos fundos ser arrombada. “Não adianta ficar aqui”, pensou. Movimentou-se em direção ao corredor, rastejando pelo chão, meteu-se no ângulo formado por um armário. Policiais entravam pelo fundo, buscavam onde acender a luz. Jofre atirou outra vez, na direção de onde chegava o ruído dos passos. Sentiu-os correr ao longo das paredes.
– Ele está no corredor... – disse um.
– Não acenda a luz senão êle pode nos visar... –aconselhou outro.
Os olhos de Jofre se habituavam à escuridão e ele distinguia a sombra dos homens. Fez pontaria e atirou:
– Tou ferido no peito... – e um corpo baqueou.
– Vamos acabar com êle... – era a voz de Barros soando já na sala invadida. A luz de uma lanterna elétrica começou a buscar Jofre. Deu-lhe de cheio no rosto.
– Ele está ali, atrás do armário...
A melodia de Bandiera Rossa começou a chegar, assoviada, do quarto onde estava Orestes. Jofre sorriu: “velho batuta”. Os investigadores agora avançavam pelo corredor vindos da sala e dos fundos. Jofre levantou-se: “Mais vale a pena morrer de pé, como um homem.”
A luz da lanterna novamente o focalizou, êle novamente disparou. Caiu sob uma saraivada de balas, muitas se perderam no armário. Escorregou encostado na madeira, desequilibrou-se, a cabeça bateu no chão, o revólver soltou- se. Os investigadores pensavam que tudo tinha terminado e fizeram luz nas salas da frente e do fundo. Viram o corpo de Jofre estendido no chão, ao lado do armário o sangue correndo do peito.
Mas viam ao mesmo tempo, a fumaça saindo pela porta do quarto onde estavam as máquinas; e ouviam agora claramente uma voz cantando, sonora voz meridional:
“Bandiera rossa
triunfará...
Barros que começara a se curvar sobre o corpo de Jofre, levantou-se rapidamente, gritou para os seus homens:
– As máquinas... Ele tocou fogo no material...
Mas antes que eles se movessem, apareceu na porta do quarto o velho Orestes, o revólver alto na mão negra de cinza, cantando seu canto italiano de revolta.
“E viva il comunismo e la libertá”.
– Atenção, Barros... – avisou um policial e o chefe dos investigadores se atirou ao chão a tempo de escapar da bala do velho, caiu quase sobre as pernas de Jofre. Atirou do chão mesmo, tinha boa pontaria, acertou na testa do italiano. Orestes, após atirar, fitara o corpo de Jofre, lera nos seus olhos a pergunta ansiosa. Ia responder dizendo que êle não temesse pelas máquinas quando recebeu a bala na testa e fez um supremo esforço para disparar seu revólver. Os dedos não obedeceram, foi seu último esforço, caiu de bruços e seus revoltos cabelos brancos se tingiram de vermelho no sangue escorrido do peito de Jofre. E, quase imediatamente após, a espantosa explosão fez tremer a casa toda. Voavam pedaços de paredes do quarto, uma parte do teto abriu-se mostrando o céu azul. Uma chuva de tijolos rebentados e de ferro caiu sobre os policiais e os corpos tombados. A bomba do velho Orestes acabara com as máquinas. Jofre fechou os olhos cheios de poeira, sorriu. “Pena que o velho Orestes não pudesse ver.”
Os camponeses que habitavam as chácaras vizinhas entupiam o caminho, os investigadores os espalhavam. Barros estava enraivecido: não podia utilizar a oficina para imprimir falso material, nem podia tampouco, montar uma armadilha na casa. A notícia ia se propagar em poucas horas. Diabo de comunistas... Empurrou com o pé o corpo de Jofre:
– Esse ainda está vivo... Levem êle para o automóvel. Tinham já transportado os investigadores feridos, um estava agonizante. Barros meteu a sola do sapato sobre o rosto de Orestes:
– Velho miserável, foi êle quem rebentou as máquinas... – e calcava na sua raiva o taco do sapato na face do morto.
– Pelo menos esse está bem morto...
Tirou o pé para que os tiras levassem o cadáver. Do automóvel onde tinha ficado, Camaleão viu os corpos sendo arrumados noutro carro. Um frio o invadiu, um medo pavoroso, um desejo de fugir. Foi preciso que um investigador o contivesse com violência:
– P’ra onde vai, cretino?
Na polícia, após terem entregue os investigadores feridos aos cuidados do médico de plantão, deitaram Jofre sobre uma mesa nua, num dos gabinetes da Ordem Política e Social. Estenderam o cadáver de Orestes no chão. Jofre respirava com dificuldade, o sangue continuava a correr incessantemente das feridas do peito, um filete róseo aparecia em seus lábios cerrados. Seu rosto voltara àquele ar juvenil, de quase menino.
Barros entrou, fitou-o e só então se deu conta de sua extrema mocidade. Anunciou aos três investigadores que haviam permanecido na saleta:
– É Jofre Ramos, está condenado a oito anos pelo Tribuna! de Segurança. – Demonstrava aos seus homens a sua capacidade: – Eu o reconheci lá mesmo, na oficina. Fui agora no meu gabinete comprovar com as fotografias recebidas do Rio... É ele mesmo... Com essa cara de menino, capaz de enganar a gente.
Ficou parado ao lado de Jofre, com os dedos abriu-lhe os olhos, falou: – Pois bem, seu Jofre, você agora vai morrer. É pena, ainda tão jovem... E um sujeito decidido como você...
Barros estava agora convencido que Jofre sabia muito, que poderia lhe entregar o Partido em São Paulo, talvez mesmo muita gente do Rio. Ele estava ali quase morrendo e mesmo os homens mais valentes podem vacilar no momento da morte, pensava Barros, disposto a fazer um derradeiro esforço que talvez lhe compensasse a explosão provocada por Orestes, as máquinas destruídas, a perdida possibilidade de aproveitar a chácara como uma armadilha. Sua voz rouca fez-se gentil:
– Eu gosto de gente decidida como você... Admiro, admiro mesmo. Mas, rapaz, você está aí, está morto. Eu lhe proponho um acordo. Você fala, conta o que sabe, eu faço subir o médico de plantão, êle trata de você, depois lhe mandamos para um hospital, você se salva. E depois...
– Cão! – disse Jofre; e uma golfada de sangue saltou de sua boca, sua cabeça tombou outra vez sobre a tábua dura da mesa.
Barros se conteve, continuou, a voz ainda mais amável:
– Se quiser falar eu mando buscar o médico, êle lhe salva a vida, com certeza. Nós lhe fazemos as perguntas, você responde. É fácil e você não morre. Porque, se não falar nós lhe deixamos aí botando sangue até morrer... Ainda está em tempo... É viver ou morrer, não seja tolo, não queira bancar o valente... E’ só eu dar uma ordem e o médico vem. Você ainda é moço, certamente tem mãe e noiva... Pense nelas, na dor que você vai lhes causar com sua morte. Quer falar?
Jofre reunira suas forças, levantava outra vez a cabeça:
– Cadela! – a voz saía num borbotão de sangue.
Barros apertou os punhos, andou pela sala para melhor se conter. Ah! esses êle não compreendia, esses que preferiam morrer antes que falar... Como existia gente assim, tão obstinada, por que o faziam, como tal coisa era possível? Barros não o entendia. Teve uma idéia, deu ordem para que trouxessem Camaleão. Puxou-o para junto da mesa, mostrou-o a Jofre, a voz convincente:
– Esse já nos contou tudo, tudo que sabia, nos entregou o Partido todo. Já sabemos tudo, queremos só que você confirme. Quem é João? Onde moram o Ruivo e José Pedro? Quem lhe mandou do Rio para aqui? Quem são os elementos da direção nacional? Vamos, fale enquanto é tempo, mesmo porque não adianta ficar calado, nós já sabemos de tudo, queremos só a confirmação... Eu mando chamar o médico... E depois trataremos da revisão do seu processo. Palavra de honra.
Os olhos moribundos de Jofre fitaram a face esverdeada de Camaleão. E continham um tão profundo desprezo que o ex-tipógrafo recuou, pedindo:
– Me levem embora daqui... Me levem daqui... Ele pode...
Barros voltou contra êle sua irritação:
– Basta de ser covarde, seu merda! Está com medo de fantasmas... – empurrou-o para a porta. – Levem esse idiota...
Voltou-se para Jofre de cujo rosto a vida ia desaparecendo. Olhou o relógio de ouro no pulso:
– São quase quatro e meia da manhã. Se eu não chamar logo o médico você não dura mais nem uma hora. Não vê que você está morrendo? Por que não fala? Não seja idiota...
Jofre dobrava a cabeça, olhava o cadáver de Orestes, tinha a impressão de enxergar um sorriso feliz em sua boca coberta de ásperos bigodes brancos. Fez novo esforço, há pouco não conseguira gritar “traidor” a Camaleão como desejara, será que vai poder agora dar seu viva final ao Partido Comunista do Brasil, ao camarada Prestes? Seus olhos estavam cada vez mais embaciados, suas forças o abandonavam com o sangue que fugia das feridas, seus lábios começaram a murmurar. Barros percebeu o movimento desses lábios ensangüentados, sua face iluminou-se de contentamento vitorioso.
– Ele decidiu falar...
E baixou a cabeça para melhor ouvir, para não perder nenhuma sílaba e entendeu a voz do moribundo entrecortada; bradou, elevando a mão grossa e bruta:
– Fala, cachorro, fala enquanto é tempo, não queira bancar o duro porque eu sei dobrar os duros... – baixou a mão com força.
Só depois de ter aplicado a segunda bofetada sentiu que estava espancando um morto. Afastou-se, limpou a mão suja de sangue numa cortina da janela, anunciou numa voz derrotada:
– Morreu. Preferiu morrer do que falar, o desgraçado...
A madrugada entrava pelas grades das janelas; cobria os cadáveres com um manto de luz esbranquiçada.
Desceu o rio, em busca da cabana de Gonçalo, na canoa do sírio e seus olhos citadinos abriam-se num espanto para a selvagem natureza em torno. O sírio lançava-lhe de quando em vez uma furtiva olhadela desconfiada. Carlos sentia-se quase oprimido com a colossal grandeza que o cercava: as águas caudalosas do rio, a densa floresta fechada em árvores e animais. Ali só o homem era infeliz e miserável, esses caboclos verdes de impaludismo, vestidos de trapos, tremendo de febre, parecendo estranhas visões fantasmagóricas da selva. Carlos se perguntava a si mesmo quando chegaria finalmente o dia da vitória, quando pudessem libertar esse homem brasileiro das grilhetas da miséria e fazer dele o poderoso senhor daquela natureza indomável.
Essa viagem de São Paulo para Mato Grosso, andando de trem, de caminhão, a cavalo, era um curso político, valia como uma experiência sem preço: vira a miséria sem limites dos trabalhadores do campo. E a vira ir crescendo, cada vez maior e mais dramática à proporção que êle avançava para o Interior. Vira os colonos das plantações de café de São Paulo, depois os trabalhadores como escravos das fazendas e dos criatórios do ex-senador Venâncio Florival, nas terras férteis de Mato Grosso. Vira aquele espetáculo da inacreditada crueldade, era como se houvesse recuado no tempo e chegado não a outro Estado da Federação Brasileira mas, sim, a uma página anterior da história do homem, à era feudal. Os homens como servos, trabalhando a terra sem outros instrumentos que os seus pobres braços e sem nenhum direito possuir sobre os frutos da terra. Melhor que eles, viviam os animais do campo, as bestas imundas, porque essas representavam um valor para os fazendeiros. Era uma miséria de espanto, indescritível tragédia. Os olhos do jovem comunista se faziam sombrios ante o espetáculo repetido em tons cada vez mais brutais. Depois de ter visto os trabalhadores das fazendas de Venâncio Florival, êle pensara ter tocado todos os limites da miséria, ser impossível enxergar realidade mais terrível.
Fora hóspede do ex-senador durante um dia e uma noite. Dera um daqueles golpes em que era fértil a sua imaginação de mestiço. Chegara à fazenda num caminhão vindo de Cuiabá carregado de produtos para o armazém onde se abasteciam, por preços absurdos, os trabalhadores e colonos. Apresentara-se ao latifundiário como um jornalista de São Paulo, encarregado por Costa Vale de uma reportagem sobre as condições atuais do Rio Salgado. Venâncio Florival, sempre respeitoso para com os jornalistas (para os quais pagava almoços, jantares e aperitivos no Rio e em São Paulo), acolheu-o com grande cordialidade. Disse-lhe estar realmente esperando não um jornalista, mas toda uma caravana de jornalistas, enviada pela “A Notícia”, para contar, numa série de reportagens ao país, o estado atual do Vale onde se ia erguer uma poderosa empresa industrial. O próprio Venâncio Florival estava associado à nova empresa e tinha um particular interesse por aquelas terras mais além das montanhas. Viera de São Paulo, logo após a visita do ditador e o término da negociata do café, a pedido de Costa Vale, para preparar em sua fazenda acomodações para os jornalistas e técnicos da caravana. Até o poeta César Guilherme Shopel (aquele gordíssimo, que parece um porco cevado, o senhor certamente o conhece... – explicava a Carlos) viria e lhe prometera escrever um poema sobre as terras de sua fazenda...
Carlos afirmou-lhe tranqüilamente ser um querido amigo do poeta Shopel (de quem conhecia apenas o nome, vagamente) e fazer parte da caravana, ser sua solitária vanguarda, devendo ir na frente para preparar o terreno. Venâncio Florival tratou-o com magnificência: deu ordens na cozinha, abateram vários animais, o ex-senador tinha uma grande vaidade de suas fazendas, fez questão de mostrá-las a Carlos. Ele viu as plantações imensas de café e as pastagens a perder de vista onde o gado preguiçoso engordava. Mas viu também as choças imundas dos trabalhadores, os homens esqueléticos, as crianças exercendo misteres de adultos, as barrigas empanzinadas, o rosto pálido, viu as mulheres envelhecidas aos trinta anos de idade, aquela humanidade sem nenhum direito. Ouviu o fazendeiro gritar-lhes nomes, tratá-los como a escravos. E as palavras do Ruivo sobre a necessidade de trabalhar com os camponeses, conforme pronunciado na última reunião do regional, voltavam-lhe à memória. Sim, era urgente ganhar essa massa, despertar-lhe a consciência política, construir a sua aliança com o proletariado. Sem isso todo o esforço era inútil, toda luta era vã...
No dia seguinte, Venâncio Florival emprestou-lhe cavalos nos quais ia transpor as montanhas e mandou que dois homens o acompanhassem. Com eles, Carlos conversou durante toda a larga travessia, aprendendo deles o terrível significado daquelas existências.
Foi assim que atingiu a pequena venda do sírio, às margens do rio. Ali tinham ficado os dois homens, com os animais, à sua espera, êle deveria retornar em dois dias. Contou ao comerciante uma série de mentiras sobre sua missão de jornalista e os motivos imperiosos devido aos quais necessitava ver e falar com Gonçalo. O sírio ouvia de cabeça baixa, estava certo ser Carlos um agente de polícia encarregado de prender Gonçalo. Há muito já o sírio se convencera de que Gonçalo devia estar condenado por algum crime, não podia crer que nenhum homem viesse se meter naquele fim de mundo se não fosse pelas mesmas razões que o haviam trazido ali, a êle mesmo. Não fez dificuldades para levá-lo à cabana do gigante mas exigiu que ele fosse só. E durante a viagem não falava, apenas mirava furtivamente o jovem.
Carlos pensava ter tocado, na fazenda de Venâncio Florival, as fronteiras últimas da miséria. Mas era ainda mais terrível ali, em meio àquela natureza exuberante dos trópicos, a visão alucinante dessa população ribeirinha, desses fugidos do mundo, dessa gente subalimentada, doente e triste. Os pedaços de terra, roubados à floresta, cultivados com a força única dos seus braços, magras roças de milho, mandioca e feijão, não lhes davam sempre o necessário para comer. E, nem essa terra teriam em breve, mesmo essa extrema miséria, o único bem que possuíam, estava ameaçada...
Chegaram à cabana de Gonçalo no meio da tarde, sob um sol ardente. O fugitivo estava preparando a canoa para uma das suas habituais viagens pelo rio, de casa em casa de caboclo, visitas que êle tornara mais repetidas desde que o sírio lhe trouxera os jornais com as notícias da constituição da Empresa do Vale do Rio Salgado. O sírio saltou da canoa, andou para Gonçalo, apontou Carlos que galgava o barranco:
– Esse aí diz que é jornalista e quer falar com você, Amigão...
Estavam os três, sós, nos barrancos do rio onde as piranhas saltavam eternamente esfomeados, atrás a floresta se emaranhava em cipós inúmeros. A voz do sírio era decidida:
– Mas eu penso que êle é da polícia e que veio buscar você. Fez mal em vir sozinho... C’est ça... A gente acaba com ele agora mesmo. Eu digo aos cabras que vieram com ele que já se afogou e que as piranhas comeram ele... – tinha já o punhal na mão.
Carlos andou rapidamente para Gonçalão:
– Venho de parte de Vítor.
O gigante sorriu para o sírio, agradecido:
– Pode deixar, eu conheço ele, é um jornalista mesmo. Eu levo êle amanhã na minha canoa. Mas venha beber um trago ante de voltar...
Pôs a mão no ombro do sírio:
– Muito obrigado...
Depois que a canoa do sírio tinha-se perdido ao longe, os dois começaram a conversar. Para Gonçalo aquela conversa tinha o sabor de uma ressurreição e êle não podia sequer esconder a alegria que subia do seu peito para umedecer-lhe os olhos, que se espalhava em riso por toda a sua face. Olhava Carlos como para se convencer que tinha em sua frente um companheiro do Partido, alguém chegado diretamente da luta, alguém que era como uma parte do seu próprio ser.
– E Vítor, como está?
– Penso que bem. Mas eu venho é de São Paulo, foram os companheiros de lá que me mandaram, Vítor informou que você estava aqui. Eu mesmo nem o conheço pessoalmente. Sei apenas que é um camarada responsável no Nordeste.
– Um camarada e tanto.
Carlos começou a expor o assunto da Empresa. Gonçalo, acocorado à moda dos tabaréus nordestinos, escutava:
– Eles estão falando muito em nacionalismo, a imprensa que agora é controlada pelo governo vive batendo nessa tecla: empresa nacional, capital nacional. Conversa para boi dormir. São os americanos que estão por detrás de tudo. Querem o manganês, a matéria-prima escondida por aqui. E o resto vai ser a divisão dessas terras por uns quantos tubarões... Vão é tomar as terras dos caboclos, e entregar aos ianques esse pedaço do país. Essa é a realidade do nacionalismo deles...
Discutiram longamente o assunto. Carlos explicava:
– Devemos aproveitar o conflito que vai travar-se certamente com toda a população das margens do rio. Eles vão querer botar todo mundo para fora. É preciso que a luta a travar-se aqui seja um exemplo para todos os camponeses. Dentro de pouco tempo vão chegar os primeiros técnicos para iniciar os estudos. Virão trabalhadores também. Nós vamos meter gente nossa no meio. Mandaremos alguém responsável para lhe ajudar. Vamos combinar depois uma senha para eles lhe trazerem.
Olhava o homem gigantesco ao seu lado, aquele companheiro meio legendário sobre o qual tanto ouvira falar:
– Nosso problema é penetrar entre os camponeses. A luta dos índios que você chefiou abriu grandes perspectivas em toda aquela zona. Enquanto não tivermos estabelecido uma verdadeira aliança entre os operários e camponeses, não podemos sequer pensar num movimento sério. Daqui deve sair alguma coisa que faça mais barulho do que a luta dos índios. Alguma coisa que seja contada de fazenda em fazenda, que a gente possa utilizar para educar os camponeses, que os faça enxergar em meio a essa miséria em que vivem. Eu mesmo não tinha idéia que fosse tão grande a miséria no interior... É preciso vir ver com os próprios olhos...
Ficaram conversando até que a noite tombou, a morna noite dos trópicos, de negro céu rutilante de estrelas. Nuvens de mosquitos voavam em torno deles, Gonçalo não os parecia sentir sequer. Comeram uma frugal refeição, assada sobre as brasas no fogo aceso em frente à choupana, Carlos contava agora coisas do Partido e da vida política, falava de companheiros, relatava detalhes do golpe de Estado, descrevia os acontecimentos da vinda de Vargas a São Paulo. Depois escutou Gonçalo, e o gigante lhe falava do Vale do Rio Salgado. Estudara-o durante aquele tempo ali vivido, sabia das suas possibilidades, da sua incomensurável riqueza e sua voz se elevava apaixonada para dizer sobre aquela terra e aquele rio.
– Isso aqui pode vir a ser um paraíso. No tempo do socialismo...
Carlos o interrompia:
– Mas é preciso fazer antes a revolução... E para fazê-la precisamos dos homens. Precisamos transformar esses caboclos, esses escravos de Venâncio Florival em revolucionários...
O olhar de Gonçalão se perdia no céu de mil estrelas, abarcava a floresta e o rio, demorava-se no vulto indistinto das cabanas dos caboclos:
– Ah! companheiro, você não conhece ainda esses caboclos, você não sabe o que eles valem. Esses mesmos que aí estão, doentes e humilhados, são uns tipos formidáveis, são corajosos e bons, são generosos e leais. No dia em que a gente lhes der o conhecimento da miséria e exploração em que vivem, nesse dia teremos os soldados da revolução. Eles mostrarão do que são capazes. Porque, deixe que eu lhe diga, só viver aqui já representa um heroísmo, um verdadeiro milagre.
O ronco do jaguar cortava a noite, acordava os macacos em gritos amedrontados. Gonçalo se levantava, seu talhe gigantesco parecia feito à medida da floresta virgem.
– Companheiro, você vai ter uma idéia do que vale essa caboclada quando chegar a hora do barulho por aqui. Volte descansado, deixe os gringos por nossa conta. Vou levantar até as onças e as cobras contra eles... P’ra ensinar que o povo brasileiro não são esses vendidos do governo. Que essa terra é da gente.
Fazia um gesto amplo com os braços como para proteger a floresta e o rio, os minérios adormecidos sob a terra, os animais na selva, os caboclos em suas choupanas primitivas.
Jorge Amado
O melhor da literatura para todos os gostos e idades