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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS ASSASSINATOS DE BETHLEHEM / Anne Perry
OS ASSASSINATOS DE BETHLEHEM / Anne Perry

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

O inspetor Thomas Pitt recebeu a chamada em sua casa à uma e cinco da madrugada, e à uma e meia se achava no extremo sul do Westminster Bridge à fria intempérie, olhando o cadáver de um homem de meia idade vestido com um elegante casaco negro e um chapéu de seda. Estava amarrado pelo pescoço a uma luz mediante um cachecol branco. Tinha um corte profundo na garganta; a jugular estava cortada e a camisa empapada de sangue...

O assassinato de três membros do governo faz espalhar o pânico, e o célebre investigador da Scotland Yard deverá enfrentar um dos casos mais espinhosos de sua carreira...

Três deputados são mortos e nada há entre eles que mostre qual o móvel dos crimes. A única ligação é serem membros do parlamento  e terem certa semelhança física que à luz fraca dos lampiões de gás pode levar a confundi-los. Parece obra de um louco ou uma louca, pois um deles recebeu carta de uma mulher seriamente ferida em sua dignidade por seu marido e a  quem prejudicara numa ação contra ele.

Charlotte é convidada por sua tia Vespásia para provar a inocência dessa mulher.

Enfim, Pitt consegue elementos necessários para lançar uma isca e resolver o caso. Mas este não termina aí e Charlotte acaba pondo em perigo sua vida. Como resultado de tudo, Pitt é promovido, mas isso o afastará da resolução dos casos. E isso é o que ele mais gosta de fazer e para o que tem especial talento.. Por outro lado, poderá dar à sua família mais dinheiro e a oportunidade de viajar como está fazendo sua cunhada Emily. Aceitar ou não aceitar a promoção? Eis o dilema de Pitt e Charlotte.

 

 

 

 

De um extremo do Westminster Bridge, Hetty cravou a vista no homem que estava apoiado de um modo bastante estranho contra o formoso poste de três cabeças do lado oposto da ponte. Um cabriolé de aluguel passou estralando rumo ao norte pela escura calçada caminho do Parlamento e, do outro lado, as recém instaladas luzes elétricas que como uma fileira de luas reluzentes e polidas Vitória Embankment.

O homem não se movia desde que ela tinha chegado. Era mais de meia-noite. Impossível que um cavalheiro tão bem vestido, com seu chapéu de seda e seu cachecol branco e as flores frescas presas na lapela, rondasse por ali esperando algum conhecido. Devia tratar-se de um possível cliente. Para que ia estar ali plantado, se não?

Hetty rebolou para ele, agitando com elegância suas saias douradas e inclinando um pouco a cabeça.

—Olá, coração! Busca um pouco de companhia, né? - perguntou de modo incitante.

O homem não fez o menor gesto. Pela pouca atenção que lhe prestava, igualmente poderia estar dormindo de pé.

—É tímido, querido - disse ela. Alguns cavalheiros travavam a língua quando chegava o momento, sobretudo se não tinham costume. —Não se preocupe – prosseguiu -Não tem nada de mal conversar um pouco em uma noite fria como esta. Meu nome é Hetty. Por que não vem comigo? Podemos tomar uma taça de genebra e nos conhecer um pouquinho melhor. O que me diz?

O homem continuou sem mover-e sem falar.

—Bom, mas o que te passa? - ficou olhando-o, e pela primeira vez notou que estava apoiado de uma maneira bastante forçada, que suas mãos não estavam nos bolsos, como ela teria esperado em uma fria noite da primavera, mas sim pendiam aos lados. — Encontra-se mal? - perguntou.

Ele permaneceu imóvel.

Era mais velho do que lhe tinha parecido do outro lado da rua, teria uns cinqüenta anos; o cabelo cinza pérola brilhava a luz do lampião e seu rosto tinha uma expressão ausente, misteriosa.

—Está bêbado como um gambá! - exclamou Hetty com uma mescla de piedade e aversão. Não tinha problemas com a bebida, mas não era normal que gente de bem se embebedasse ao menos em uma rua tão transitada. — É melhor que volte para casa antes que a polícia o leve. Ânimo! Não pode passar toda a noite aqui! Adeus cliente! Contudo, não lhe tinha sido mal a noite. Os cavalheiros do Lambeth Walk tinham sido muito generosos. — Estúpido! - acrescentou baixo à figura apoiada na luz.

Então percebeu que o cachecol branco não só rodeava o pescoço do homem, mas também a forquilha de ferro forjado que decorava o poste. —Santo Deus, o homem estava amarrado ao poste pelo pescoço! E compreendeu a espantosa verdade: aquele olhar vidrado não era de estupor, mas sim de morte.

Soltou um grito que fendeu o ar noturno e a rua deserta, com seus formosos postes e seus triplos atoleiros de luz, para elevar-se ao céu noturno.

Gritou outra vez, e outra, como se agora que tinha começado tivesse que continuar até achar uma resposta ao horror que contemplava.

No lado oposto da ponte várias figuras imprecisas deram a volta; outra voz gritou, e alguém se pôs a correr para ela com passos que ressoaram ocos e metálicos.

Ao afastar-se do poste e de seu inquilino, Hetty escorregou no meio-fio, caindo estrepitosamente na calçada. Por um momento ficou confusa e zangada, e depois alguém se inclinou para ela e Hetty notou que a levantavam.

—Está bem, encanto? - Era uma voz rouca, mas não de todo desagradável. Hetty percebeu o aroma de lã úmida junto ao rosto.

Por que tinha sido tão estúpida? Deveria ter calado e seguido seu caminho, que outro imbecil descobrisse o cadáver! Agora se tinha formado um pequeno círculo de gente ao redor.

—Céus! - gritou alguém horrorizado. - Está morto! Pobre diabo!

—Será melhor que não o toquem. - Este falava com autoridade, em um tom muito diferente, culto e seguro. - Que alguém avise à polícia. Vá você mesmo. Com certeza há algum guarda no Embankment.

Outra vez som de passos apressados, extinguindo-se à medida que se afastavam.

Hetty tratou de ficar em pé, e o homem que a segurava pelos ombros a ajudou com diligência. Havia cinco pessoas, todas tremendo e horrorizadas. Hetty queria partir antes da chegada da polícia. Comportou-se como uma idiota, gritar dessa maneira! Se tivesse fechado o bico agora estaria longe dali.

Examinou os rostos de quem a rodeava, um conjunto de sombras e traços salientes à luz amarelada do lampião, envolvidos em farrapos de vapor que a respiração formava no frio da noite. Pareciam preocupados e bondosos, e de qualquer forma já não podia escapar. Mas talvez pudesse conseguir uma bebida grátis se tentasse.

—Tive um susto de morte - disse trêmula e com dignidade. — Sinto-me enjoada.

Alguém tirou um cantil prateado cujos desenhos refletiram à luz. Um objeto formoso.

— Quer um gole de brandy?

— Obrigado, acredito que me cairá bem. - Hetty o aceitou e bebeu até a última gota.

Apalpou apreciativamente o cantil antes de devolvê-lo.

O inspetor Thomas Pitt recebeu a chamada em sua casa à uma e cinco da madrugada, e à uma e meia se achava no extremo sul do Westminster Bridge na fria intempérie, olhando o cadáver de um homem de meia idade vestido com um elegante casaco negro e um chapéu de seda. Estava amarrado pelo pescoço a um poste através de um cachecol branco. Tinha um corte profundo na garganta; a jugular estava cortada e a camisa empapada de sangue. O casaco tinha oculto quase por inteiro; e o cachecol, além de sustentá-lo no alto e um pouco para trás de modo que o escorasse ao poste e suportasse parte de seu peso, tinha abafado a ferida.

Na ponte havia meia dúzia de pessoas, de pé na outra calçada. O guarda de serviço permanecia junto ao Pitt com sua lanterna de olho de boi na mão, embora os lampiões proporcionassem suficiente luz para o pouco que agora podiam fazer.

—Miss Hetty Milner o achou senhor - informou o agente. - Diz que o achou estranho e se interessou por sua saúde. Eu acredito que estava procurando um cliente, mas suponho que isso não importa ao morto. Ainda tem dinheiro nos bolsos e o relógio de ouro com sua corrente, assim não parece que lhe tenham roubado.

Pitt examinou novamente o cadáver. Apalpou as lapelas do casaco tirando as luvas para comprovar a textura do tecido. Era suave e firme, lã de qualidade. Na lapela levava umas prímulas frescas que pareciam espectrais à luz do lampião, com os tênues farrapos de névoa que acendiam como lenços de gaze do rio escuro e turbulento. As luvas do homem eram de couro, não de tricô como as do Pitt. Examinou suas abotoaduras de cornalina montados em ouro. Afastou o cachecol deixando descoberta a camisa ensangüentada com os botões ainda abotoados, e a deixou cair outra vez.

— Sabe-se quem é? - perguntou.

— Sim, inspetor. A voz do guarda perdeu um pouco de seu aprumo profissional.

Eu mesmo o conhecia de fazer a ronda por aqui. É sir Lockwood Hamilton, parlamentar. Vive ao sul do rio, assim imagino que voltava para sua casa depois de uma sessão vespertina, como de costume. Muitos deputados costumam voltar para casa andando, se vivem perto do Parlamento e faz uma boa noite. - Pigarreou um pouco, talvez de frio, talvez de piedade mesclada com horror. Embora sejam representantes de um povo que esteja no quinto inferno, têm que ter residência em Londres para quando se reúne a câmara. E os que ocupam postos importantes no governo têm que estar aqui constantemente, salvo nos dias de festa.

— Ah. - Pitt sorriu fracamente. Conhecia muito bem os costumes do Parlamento, mas o guarda tratava de ajudar falando; assim enchia o silêncio e não pensava no cadáver. - Obrigado. Qual delas é Hetty Milner?

—A do cabelo claro, senhor. A outra garota também é do ofício, mas não tem nada a ver com isto. Só está bisbilhotando.

Pitt cruzou a calçada e se aproximou da roda de pessoas. Olhou para Hetty, reparando em seu rosto maquiado e gasto, no decote baixo de seu vestido, na saia de mau gosto e espalhafatosa. Tinha rasgado-a ao escorregar, e se via o tornozelo esbelto e uma perna bem torneada.

—Sou o inspetor Pitt - se apresentou. - Você achou o corpo amarrado ao poste, não é verdade?

—Pois claro! - Hetty não gostava da polícia; todas suas relações com eles se saldaram em prejuízo para ela. Não tinha nada contra este inspetor, mas devia retificar sua estupidez anterior mostrando-se discreta.

—Viu alguém mais na ponte?

—Não.

—Aonde se dirigia você?

—Para casa. Ao sul.

—Para o palácio de Westminster?

Hetty teve a suspeita de que ria dela.

—Exatamente.

—Onde você mora?

—Perto da penitenciária do Millbank - disse Hetty levantado o queixo. - Fica perto

de Westminster, se por acaso não sabia.

—Sei. E voltava para casa sozinha? - Não havia sarcasmo em sua expressão, mas olhou-a com incredulidade.

—Mas o que você tem? É bobo ou o que? Claro que estava sozinha!

—O que disse a ele?

Ela ia perguntar a quem, mas compreendeu que não valia a pena. Acabava virtualmente de admitir que estava ali por assuntos profissionais. O maldito policial a tinha feito dizer!

—Perguntei-lhe se estava bem - respondeu com certo orgulho. - Até as prostitutas se interessam pela saúde do próximo.

—Então, parecia doente?

—Sim... Não! - Amaldiçoou em voz baixa. - Certo, perguntei-lhe se queria um pouco de companhia. - Fez um gesto que pretendia ser sarcástico. Mas ele não disse nada.

—Você tocou nele?

—Não. Acha que eu sou uma ladra?

—Mas tem certeza de que não viu ninguém mais. Ninguém que voltasse para casa, nenhum comerciante...

—A esta hora da noite? O que poderia vender?

—Tortas quentes, flores, sanduiches de presunto...

—Pois não; só passou um cabriolé que não se deteve. Mas eu não o matei. Juro o Por Deus, já estava frio quando cheguei. Para que ia fazê-lo? Não estou tão louca!

Pitt acreditou. Era uma prostituta comum, como milhares de outras que trabalhavam em Londres naquele ano de 1888. Podia ser ou não uma ladra de pouca importância, provavelmente contagiava enfermidades sem sabê-lo e ela mesma morreria jovem. Mas não mataria a um cliente potencial no meio da rua.

—Dê seu nome e endereço ao guarda - disse-lhe Pitt. - E não minta Hetty, ou teremos que vir procurá-la, o que não seria bom para sua profissão.

Hetty o fulminou com o olhar, deu meia volta e se aproximou do guarda, tropeçando de novo na calçada, mas desta vez sem cair e com o queixo ainda mais erguido.

Pitt se aproximou do resto das pessoas e falou com todos, mas ninguém tinha visto nada, pois só tinham ido ao ouvir os gritos de Hetty. Vendo que não havia nada mais a fazer indicou ao carro mortuário que aguardava no extremo da ponte que já podia retirar o cadáver. Tinha examinado atentamente o cachecol: o nó era como o que qualquer um faria sem pensar, um extremo sobre o outro e outra volta mais. O próprio peso do homem o tinha esticado de tal forma que em lugar de desfazê-lo tinham tido que cortá-lo com uma faca. Depois desceram o corpo com cuidado para colocá-lo na carruagem, que se afastou como uma sombra negra sob a luz dos postes, rangendo pela ponte até a estátua da Boadicea até virar no Embankment e perder- se de vista. Pitt voltou a aproximar-se do guarda e do segundo oficial de uniforme que acabava de chegar.

Agora tocava fazer o que Pitt mais detestava, excetuando possivelmente o desentranhar do caso, que sempre trazia consigo o conhecimento da paixão e a dor causadores de toda tragédia. Devia informar aos familiares, ver como se comportavam e tratar de perceber em suas palavras, seus gestos, nas fugazes emoções que apareceriam em seus rostos, alguma pista que pudesse lhe servir de algo. Muitas vezes era a dor de um segredo que nada tinha que ver com o crime em si, alguma fraqueza ou ato infame que os obrigava a mentir.

Não foi difícil averiguar que sir Lockwood Hamilton vivia a oitocentos metros da ponte, no número 17 do Royal Street, com vista para ao jardim do Lambeth Palace, residência oficial em Londres do arcebispo do Canterbury.

Não valia a pena procurar um cabriolé; seria um curto passeio, e muito agradável na noite limpa; sem dúvida, isso mesmo tinha pensado Hamilton ao sair do Parlamento.

Dez minutos depois estava batendo na porta de mogno com aldrava de latão.

Esperou uns momentos e voltou a bater. Uma luz se acendeu no sótão, logo outra no segundo piso e finalmente uma no saguão. Ao abrir a porta, um sonolento mordomo com a jaqueta apressadamente abotoada olhou-o entortando os olhos com ar de desagrado.

—Inspetor Thomas Pitt, da delegacia de polícia do Bow Street - disse rapidamente Pitt. Posso entrar?

A irritação do mordomo se desvaneceu.

—Aconteceu alguma coisa? Algum acidente?

—Sinto muito, mas... é mais grave que isso - respondeu Pitt, entrando na casa. - Sir Lockwood Hamilton morreu. Omitiria as circunstâncias se pudesse, mas sairão nos jornais da manhã e seria melhor que lady Hamilton estivesse preparada; ela e outros membros da família.

—Oh. - O mordomo demorou uns segundos para recuperar a compostura enquanto toda classe de horrores, escândalos e desgraças passavam por sua cabeça. Depois se ergueu e olhou Pitt, dizendo: - O que ocorreu? - Sua voz soou quase normal.

—Receio que o assassinaram. No Westminster Bridge.

—Quer dizer que o... empurraram? - O homem não podia acreditar a idéia lhe era inconcebível.

-Não. Foi agredido com uma faca ou uma navalha de barbear. Sinto muito. Foi muito rápido, não acho que tenha sofrido. Acho que o melhor será que diga a criada que avise lady Hamilton e lhe prepare algum calmante, uma infusão ou algo assim.

—Sim, senhor, é claro.

O mordomo o acompanhou ao gabinete, as brasas de cujo fogo ardia ainda, e deixou que acendesse os abajures de gás enquanto ele se dispunha a cumprir sua amarga tarefa.

Pitt examinou o gabinete; dir-lhe-ia algo sobre as pessoas que viviam aqui quando o Parlamento fazia suas sessões. Era um aposento espaçoso, muito menos lotado de móveis do que o habitual. Havia menos borlas nos sofás e poltronas, menos vidros pendentes nos spots de luz, nem toalhas nem modelos, nem retratos de família nem fotografias, salvo uma de tons sépia de uma mulher idosa com gorro branco de viúva, emoldurada em prata. Destoante com o resto da sala como uma relíquia de outra época. Se este era o estilo de decoração de lady Hamilton, então podia tratar-se de um familiar de sir Lockwood, sua mãe talvez.

Os quadros nas paredes eram frios e românticos, ao estilo dos pré-rafaelitas: mulheres de rosto enigmático e lindos cabelos, cavalheiros com armadura e flores enroscadas. Sobre as mesas junto à parede havia adornos de estanho bastante antigos.

Transcorridos dez minutos, abriu-se a porta e entrou lady Hamilton. Era de estatura um pouco maior que a média, com sugestivos traços inteligentes que em sua juventude podiam ter sido atraentes. Agora devia ter algo mais de quarenta e o tempo levou o primeiro viço lhe deixando marcas de caráter que Pitt julgava mais atraentes. Trazia o cabelo recolhido em um coque apressado, e um robe de cor cobalto.

A mulher fez um grande esforço para mostrar-se digna.

—Entendo que veio me dizer que meu marido foi assassinado disse calmamente.

—Sim, lady Hamilton - respondeu Pitt. - Sinto muito. Peço-lhe desculpas por perturbá-la com os detalhes, mas tenho certeza que preferirá ouvir de mim que por outras pessoas, ou pela imprensa.

Estava tão pálida que Pitt temeu que fosse desmaiar, mas ela respirou fundo, conseguindo manter a calma.

—Não quer sentar-se? - sugeriu ele. Estendeu-lhe a mão, mas ela o ignorou e foi para o sofá, lhe indicando que tomasse assento.

Tinha os punhos fechados e trêmulos sobre o regaço, para ocultá-los a ele e possivelmente a ela mesma.

—Continue, por favor - disse ela.

Pitt notou seu desconsolo, mas não estava em sua mão atenuá-lo.

—Pelo visto sir Lockwood voltava para casa andando depois de uma sessão vespertina da câmara. Quando chegou ao extremo sul do Westminster Bridge foi agredido por alguém com uma navalha de barbear ou uma faca. Sofreu um só golpe, no pescoço, mas foi fatal. Se lhe servir de consolo, a dor deve ter durado apenas um instante.

—Roubaram-lhe algo? - Lady Hamilton falou só para conservar a calma que lutava para aparentar.

—Parece que não, a menos que levasse consigo algo que não sabemos. Conservava seu dinheiro, o relógio e a corrente, e também as abotoaduras. Claro que o ladrão pôde ver-se surpreendido antes de apropriar-se de algo, mas não parece provável.

—Por que...? - Sua voz se quebrou; engoliu em seco. - por que não?

Pitt hesitou um momento.

—Por que não? - repetiu por sua vez.

Ela tinha que saber; se não o contasse ele, outro o faria, mesmo que decidisse não ler os jornais. Amanhã toda Londres falaria disso. Não sabia se a olhava ou desviava a vista, mas lhe parecia covarde evitar seu olhar.

—Apoiaram-no contra um poste e o amarraram com seu cachecol. Ninguém que tivesse sido surpreendido teria tido tempo para isso.

Olhou-o em silêncio.

Pitt prosseguiu porque não tinha escolha.

—Devo lhe perguntar senhora, se sir Lockwood tinha recebido alguma ameaça. Tinha algum rival político ou profissional que pudesse lhe desejar o pior? Isto poderia ser obra de um lunático, mas existe a possibilidade de que fosse alguém que o conhecia.

—Não! - A negativa brotou por instinto, coisa que Pitt esperava. Ninguém desejava pensar que semelhante atrocidade fora outra coisa que fruto de um acaso, um infortúnio de tempo e lugar.

—Costumava voltar para casa andando depois de uma sessão noturna?

Ela fez um esforço para acalmar-se, imaginando o horrível ato.

—Sim, bom, se o tempo estivesse agradável. É um curto passeio até em casa. A rua está bem iluminada, e...

—Sim, sei, eu também vim a pé. Muitas pessoas poderiam ter esperado que ele o fizesse cedo ou tarde.

—Suponho que sim, mas só um louco...

—A inveja - disse Pitt - o medo ou a avareza podem converter uma pessoa normal em algo parecido em um louco...

Ela não respondeu.

—Quer que informe a alguém do acontecido? - perguntou. Algum outro familiar? Se podemos lhe economizar perturbações...

—Não, não. Obrigado. Já disse ao Huggins que chame meus irmãos. - Seu rosto se distendeu com um estranho e inexpressivo olhar. - E a Barclay Hamilton, filho do primeiro matrimônio de meu marido.

—Chamar, você diz?

Lady Hamilton piscou antes de compreender o significado da pergunta.

—Sim, temos um desses telefones. Não é que eu goste muito. Acredito que é de má educação falar com alguém sem lhe ver o rosto. Prefiro escrever se não for possível uma visita. Mas para sir Lockwood parece... parecia-lhe conveniente.

—Guardava documentos de negócios em casa?

—Sim, na biblioteca. Não vejo porque possam lhe ser de alguma utilidade porque não há nada confidencial. Esses ele não trazia para casa.

—Tem certeza?

—Certamente. Assim me disse em várias ocasiões. Era o secretário particular do ministro do Interior e sabia ser discreto.

Nesse momento houve um ruído no saguão. A porta se abriu e se fechou, e se ouviram as vozes de dois homens sobre os murmúrios de protesto do mordomo.

Depois a porta do gabinete se abriu para dar passagem a um dos homens, cujo cabelo prateado brilhou à luz do abajur, seu rosto de aparência agradável, de poderoso nariz e fronte ampla, retesada agora pela comoção.

—Amethyst, querida. - O homem entrou ignorando Pitt e rodeou a sua irmã comum braço. - É horrível! Não posso lhe dizer o muito que o sinto. Faremos tudo que esteja em nossa mão para protegê-la, claro está. Devemos evitar um sem-fim de estúpidas especulações. Talvez fosse melhor para você deixar Londres uma temporada. Pode se hospedar em minha casa do Aldeburgh, se o desejar. Ali terá privacidade. Será uma mudança, um pouco de ar do mar. - Deu meia volta. - Jasper, Por Deus, não fique aí parado! Entre, trouxe a maleta; não tem nada em que possa ajudá- la?

—Não necessito de nada, obrigada - replicou a mulher, encurvando um pouco os ombros e afastando-se dele. - Lockwood morreu; nada do que façamos pode mudar isso. E obrigado, Garnet, mas ainda não quero ir. Talvez em breve.

Garnet Royce se dirigiu a Pitt.

—Suponho que é da polícia. Sou sir Garnet Royce, irmão de lady Hamilton. Você precisa que ela fique em Londres?

—Não, senhor. Mas imagino que lady Hamilton desejará nos ajudar se possível a apanhar ao responsável por esta tragédia.

Garnet olhou-o com seus olhos frios e claros.

—Não me ocorre como. É difícil se não impossível que ela saiba algo sobre o louco que fez isto. Se puder convencê-la de que parta de Londres, espero que você não ponha objeções. Sua voz tinha um claro tom de advertência, era a voz de alguém acostumado a que não só suas ordens, mas também seus desejos fossem obedecidos.

Pitt lhe sustentou o olhar sem pestanejar.

—Estamos investigando um homicídio, sir Garnet. Até o momento não tenho a menor ideia de quem possa ser o autor nem que motivos podem tê-lo levado a isso. Mas como sir Lockwood era uma figura pública de certo renome, é possível que alguém lhe guardasse rancor por algum motivo, seja real ou imaginário. Seria uma irresponsabilidade tirar conclusões precipitadas.

Jasper se adiantou. Era uma versão jovem e menos enérgica de seu irmão, de olhos e cabelo mais escuros e sem seu magnetismo.

—Ele tem razão, Garnet. - Pôs uma mão sobre o braço de sua irmã. - Seria melhor que voltasse para a cama, querida. Faça com que sua criada lhe prepare uma infusão com isto. Tirou um pequeno pacote de ervas. Virei vê-la pela manhã.

Lady Hamilton pegou o pacote.

—Obrigada, mas não tem por que descuidar de seus pacientes habituais. Vou estar muito ocupada arrumando coisas, escrevendo cartas e demais assuntos. Não tenho intenção de sair de Londres de momento. Suponho que mais adiante eu gostarei de ir ao Aldeburgh. É muito amável, Garnet, mas agora, se não houver mais que...

Olhou inquisitivamente ao Pitt.

—Inspetor Pitt, senhora.

—Inspetor Pitt, se me desculpar, preferiria me retirar.

—É claro. Permite-me que volte amanhã para falar com seu mordomo?

—Naturalmente, se acha necessário. - Deu meia volta e já se dispunha a sair quando se ouviu outro ruído no vestíbulo e apareceu outro homem na soleira, enxuto e moreno, muito alto e uns dez anos mais jovem que ela. Tinha o rosto contraído pela emoção e seus olhos tinham o olhar perturbado de quem está submetido a uma grande tensão.

Amethyst Hamilton ficou de pedra, balançando-se um pouco, e sua pele perdeu o último vestígio de cor. Garnet, que estava atrás, estendeu os braços e ela fez um gesto infrutífero por livrar-se dele, mas lhe falharam as forças.

O jovem também estava rígido, e parecia lutar por conter uma emoção entristecedora. A dor se apreciava no gesto de sua boca; seu rosto mostrava uma expressão intumescida, quase rota. Procurou uma frase apropriada para a situação e não pôde achá-la.

Foi ela quem se dominou primeiro.

—Boa noite, Barclay - disse com um esforço supremo. - Vejo que Huggins te informou da morte de seu pai. Foi muito amável vindo, e mais a estas horas. Temo que esta noite não se possa fazer nada, mas agradeço sua presença.

—Aceite minhas condolências - disse ele. - Se posso ajudá-la em algo, não deixe de dizê-lo. Se tiver que escrever a alguém, assuntos de negócios...

—Eu me ocuparei de tudo - interveio Garnet. Ou não se dava conta dos sentimentos do outro ou desejava ignorá-los. Manterei-o informado, naturalmente.

Produziu-se um silêncio. Jasper parecia indefeso, Garnet perplexo e impaciente, Amethyst a ponto de desmaiar e Barclay Hamilton tão angustiado que não sabia o que fazer nem o que dizer.

Por último, Amethyst inclinou a cabeça com tão fria cortesia que em outras circunstâncias teria parecido grosseira.

—Obrigado, Barclay. Deve estar com frio. Huggins lhe trará um brandy, mas se me perdoa vou me retirar.

—Certamente. Eu... eu... - gaguejou.

Ela esperou um pouco, mas Barclay não soube que mais dizer. Amethyst passou em silencio ao seu lado e se dirigiu ao vestíbulo acompanhada de Jasper. Ouviram afastarem-se seus passos na escada.

Garnet se voltou para Pitt.

—Obrigado, inspetor, por sua... amabilidade - disse, escolhendo muito bem a palavra. Suponho que terá investigações a fazer; não vamos retê-lo. O mordomo o acompanhará à porta. - Pitt não se moveu.

- Com efeito, tenho investigações a fazer, e quanto antes começarmos mais possibilidades de êxito haverá. Poderia me dizer algo em relação aos interesses comerciais de seu cunhado?

Garnet levantou as sobrancelhas desconfiado.

—Santo Deus! Agora? - Pitt agüentou o tipo.

—Se for amável, senhor. Assim evitaria lady Hamilton ter que responder perguntas amanhã pela manhã.

Garnet olhava-o com crescente desprezo.

—Não pensa que algum sócio de sir Lockwood cometeria semelhante atropelo! Deveria estar penteando as ruas, procurando testemunhas ou o que seja, e não aqui se esquentando no fogo e fazendo perguntas tolas!

Pitt recordou a emoção e possivelmente a pena que devia estar sentindo, talvez mais por sua irmã que por si mesmo, e procurou dominar seu mau gênio.

—Tudo isso está em andamento, mas esta noite pouca coisa se pode fazer. Bem, pode me falar da carreira de sir Lockwood, profissional e política? Isso nos economizará tempo, e a desagradável tarefa de ter que interrogar amanhã lady Hamilton.

A irritação abandonou o rosto do Garnet, deixando unicamente o cansaço e as sombras de uma emoção exaustiva.

—Sim, claro, como não - concedeu, tomando ar. - Era membro do Parlamento pelo distrito rural de Bedfordshire, mas passava quase todo o tempo em Londres; obrigavam-no a isso as atividades parlamentarias, embora ele preferisse muito a vida de cidade. Seu negócio era bastante comum: investia na fabricação de vagões de trem em algum ponto das Midlands, não sei com exatidão, e era um dos sócios principais de uma empresa de bens imóveis aqui em Londres. Seu principal associado é Charles Verdun, cujo endereço não posso lhe dar, embora não duvido de que lhe será muito fácil consegui-lo.

"Sua carreira parlamentaria foi meteórica. Teve êxito, e, como é lógico, tinha inimigos, mesmo que muitos deles fossem menos capazes ou afortunados que ele; mas eu ignorava que pudesse ter algum inimigo violento ou desequilibrado. - Franziu o sobrecenho olhando para as cortinas que tampavam a janela, como se pudesse ver através delas. - É verdade que neste momento existe certa instabilidade entre um setor da comunidade, e sempre há alguém disposto a fomentar a insatisfação e encher seus desejos de poder explorando pessoas com pouco sentido ético ou conhecimento do que é o melhor para elas. Suponho que poderia tratar-se de política, obra de algum anarquista que atuasse só ou como parte de um complô.

Olhou para Pitt. - Se for assim, deveriam capturá-los quanto antes, antes que espalhe o pânico nas ruas e alguém mais se aproveite da situação para semear a inquietação. Não sei se você compreende quão grave isto poderia ser, mas lhe asseguro que se tratar-se de anarquistas, há motivos para preocupar-se, e é dever de quem tem bom senso e somos responsáveis nos ocupar dos menos afortunados. Eles confiam em nós, como estão em seu direito. Pergunte a seus superiores e lhe confirmarão que estou certo. Pelo bem de todos, terá que parar isto antes que vá a mais adiante.

Pitt já tinha pensado nisso, mas lhe surpreendeu que Garnet Royce estivesse à par do mal-estar na zona portuária e nos bairros pobres do East End e dos rumores de tumulto e revolução. Tinha pensado que o Parlamento era majoritariamente alheio a estas coisas. A reforma certamente era árdua e lenta, mas talvez não fosse isso o que desejavam os agitadores aos quais se referia Royce. Uma pessoa satisfeita não aspirava a nenhum poder.

—Sim, compreendo-o - respondeu. Sondaremos a todas nossas fontes de informação. Obrigado por sua ajuda. Agora devo voltar para delegacia de polícia e ver se sabem algo mais antes de informar do assunto ao senhor Drummond.

—Refere-se ao Micah Drummond?

—Sim, senhor. - Garnet assentiu.

—Um bom homem. Ficarei muito agradecido se me manter informado, tanto por lady Hamilton como por mim mesmo. Tudo isto é muito desagradável.

—É claro. Aceite meus mais sentidos pêsames.

—Muito amável. Huggins o acompanhará à porta.

Era uma despedida e não tinha sentido tratar de tirar mais essa noite. Barclay Hamilton, pálido como a cera e desprovido de toda vitalidade, estava no sofá como um drogado e Jasper tinha descido outra vez e aguardava no vestíbulo o momento oportuno para partir. Podia receitar pastilhas para dormir, infusões para os nervos, mas não podia mitigar a pena nem a dor inevitável que apareceria pela manhã quando o corpo e a mente reagissem. Pitt agradeceu a todos e saiu ao vestíbulo, onde o mordomo, ainda com a jaqueta um pouco torcida e a camisa de dormir enfiada por dentro da calça, suspirou de alívio e lhe abriu a porta sem dizer uma palavra.

Como não havia cabriolés esta hora, Pitt voltou andando com brio, virando à esquerda pelo Stangate Road até o Westminster Bridge Road, cruzando a ponte e deixando atrás a estátua da rainha Boadicea, a enorme torre do Big Ben a sua esquerda, e a mole gótica do Parlamento. Chegando ao Embankment achou uma carruagem que o levou a delegacia de polícia do Bow Street, ao lado do Strand. Eram pouco menos de três da manhã.

O oficial de serviço levantou a vista e seu rosto adotou um ar de seriedade.

—Alguma novidade? - perguntou Pitt.

—Sim, senhor, mas até o momento nada de útil. Até agora não foi possível localizar nenhum cocheiro. As garotas da rua não dizem nada, salvo Hetty Milner, e agora não o recorda bem. Eu acredito que se pudesse o faria. Há um cavalheiro que diz ter passado pela ponte uns dez minutos antes que Hetty gritasse, e não havia ninguém pendurado no poste, ao menos que ele recorde. Claro que certamente não deve ter olhado. Outro diz que mais ou menos essa hora viu um bêbado, mas que não deu importância. Não sabe se era o pobre Hamilton ou não. E naturalmente há Fred, que vende salgadinhos junto à escadaria do rio, mas ele não viu ninguém porque sempre está na outra parte da ponte.

—Nada mais?

—Não senhor. Continuamos procurando.

—Então vou dormir em meu escritório algumas horas - disse Pitt cansado. Não tinha sentido ir para casa. Depois irei ver o Drummond.

—Quer um pouco de chá, senhor?

—Sim, estou gelado.

—Sim. E não parece que a coisa vá melhorar.

—Já sei. Traga-me o chá, por favor.

—Um momento, senhor.

Às seis e meia Pitt estava em outro cabriolé, e quinze minutos depois se achava em uma rua tranqüila do Knightsbridge onde o sol da primavera brilhava sobre o pavimento e os únicos ruídos eram os das criadas preparando café da manhã na cozinha e os lacaios que recolhiam jornais para alisá-los e apresentá-los a seus amos na mesa. Fazia tempo que tinham limpado as lareiras e acendido de novo a luz, e os tapetes estavam esfregados e varridos para que cheirassem a limpo.

Pitt subiu os degraus e bateu na porta. Estava cansado, gelado e faminto, mas a notícia não podia esperar mais.

Um criado abriu a porta e olhou Pitt sobressaltado: desalinhado, o inspetor tinha envolto no pescoço o cachecol de tricô, o cabelo revolto que não via um barbeiro desde semanas. Suas botas, de couro macio e bem lustradas, presente de sua cunhada, estavam imaculadas, mas seu casaco era horrível, com os bolsos abarrotados de corda, um apontador, cinco xelins e uma moeda de seis pennies, e quinze folhas de papel.

—Sim, senhor? - disse o criado.

—Sou o inspetor Pitt, do Bow Street. Devo ver o senhor Drummond o mais rápido possível. Um deputado foi assassinado no Westminster Bridge.

—Oh. - O homem pareceu surpreso, mas não desconfiado. Seu amo era um importante chefe de polícia, e estas coisas não eram incomuns. - Bem, senhor. Se quiser entrar, direi ao senhor Drummond que está aqui. Micah Drummond apareceu dez minutos depois, lavado, barbeado e vestido para tomar o café da manhã, embora um pouco apressadamente. Era um homem alto e magro com um rosto cadavérico no qual se sobressaía um bonito nariz e uma boca que denotava em suas rugas um vivo e delicado senso de humor. Teria pouco menos de cinqüenta anos e começava a perder um pouco de cabelo. Olhou ao Pitt com simpatia, ignorando sua torpe vestimenta e fixando-se só em seu olhar de cansaço.

—Venha tomar café da manhã comigo. - Era tanto uma ordem como um convite.

Foi à frente até uma pequena sala hexagonal com piso de taco e uma porta-janela de folha dupla que dava a um jardim onde uma velha roseira subia em uma parede de tijolo. Drummond afastou alguns dos condimentos e fez lugar para outro prato. Apontou uma cadeira e Pitt se aproximou.

—Entendeu-o bem Cobb?Drummond se sentou e Pitt o imitou. - Um membro do Parlamento foi assassinado no Westminster Bridge?

—Assim é, senhor. Tudo muito macabro. Cortaram-lhe o pescoço e depois o ataram a um poste do lado sul.

Drummond franziu o sobrecenho.

—O que quer dizer com que o ataram?

—Pelo pescoço, com um cachecol.

—Como diabos se ata a alguém a um poste?

—Os do Westminster Bridge têm forma de tridente - respondeu Pitt. - Têm uns pontos de adorno, como dentes de uma forquilha de jardineiro, e estão à altura exata para ficar ao nível do pescoço de um homem de compleição média. Certamente foi muito fácil fazê-lo, se a pessoa tinha força suficiente.

—Isso descartaria a uma mulher? - Drummond estava concentrado e tenso.

Cobb entrou com uma travessa de bacon, ovos, rins e batatas e a deixou na mesa sem dizer nada. Entregou a cada um deles um prato e foi buscar chá e torradas.

Drummond se serviu e depois a ofereceu a Pitt. O vapor fumegava quente, apetitoso e com um delicioso aroma. Pitt pegou tudo que lhe pareceu de acordo com as boas maneiras e depois respondeu:

—A não ser que fosse uma mulher corpulenta e inusitadamente robusta.

—Quem era ele? Alguém com um posto importante?

—Sir Lockwood Hamilton, secretário particular do ministro do Interior.

Drummond soltou o ar pouco a pouco, antes de falar comeu um pouco mais.

—Sinto muito, era um tipo decente. Suponho que não se sabe se foi algo pessoal ou político, ou um roubo fortuito que acabou mau...

Pitt terminou seu pedaço de rins com bacon.

—Ainda não, mas não parece provável que fosse um roubo - disse - Tudo de valor, o relógio, as chaves, o lenço de seda, as abotoaduras, uns bonitos botões de ônix, estavam em seu lugar, inclusive o dinheiro dos bolsos. Se alguém pretendia roubá-lo, por que o atou primeiro a um poste? E partiu antes de despertar a menor suspeita?

—Está claro que não - concordou Drummond. - Como o mataram?

—Tinha um talho na garganta, muito fino, suponho que o fizeram com uma navalha de barbear, mas ainda não temos o laudo do legista.

—Há quanto tempo estava morto quando o acharam? Imagino que não muito.

—Uns minutos. O corpo estava quente. Se tivesse ficado ali mais tempo, alguém

o teria descoberto antes.

—Quem o achou?

—Uma prostituta. Hetty Milner. - Drummond sorriu, e um fugaz lampejo de humor apareceu em seus olhos.

—Suponho que queria lhe propor um pequeno negócio e viu que seu possível cliente era um cadáver.

Pitt mordeu o lábio para ocultar a sombra de um sorriso.

—Sim, e menos mal. Se não se assustasse tanto não teria gritado; teria seguido andando e nós não teríamos sabido nada do morto até muito depois.

Drummond se inclinou, desaparecida a ironia de seus traços e com uma fina linha de nervosismo entre as sobrancelhas.

—O que sabemos Pitt?

O inspetor lhe fez um breve resumo dos acontecimentos, incluída sua visita ao

Royal Street e sua volta à delegacia de polícia.

Drummond se reclinou e limpou a boca com seu guardanapo.

—Que desastre - disse sombrio - O motivo poderia ser quase tudo: rivalidade profissional, inimizade política, conspiração anarquista. Ou também poderia ser obra de um demente, em cujo caso talvez nunca demos com ele. O que acha de um motivo pessoal: ciúmes, dinheiro, vingança?

—É possível - respondeu Pitt, recordando o rosto emocionado da viúva e seu valente conflito por manter a compostura, a fria amabilidade entre ela e seu enteado que podia cobrir feridas antigas. Mas parece uma maneira muito estranha de fazê-lo.

—Coisa de loucos, não é? - concedeu Drummond - Mas isso poderia não significar nada. Queira Deus que possamos solucioná-lo logo e sem ter que nos colocar em tragédias familiares.

—Espero que sim - disse Pitt. Tinha terminado seu café da manhã e de repente se sentiu terrivelmente cansado.

Cobb entrou com os jornais e os entregou ao Drummond, que abriu o primeiro, leu as manchetes, "Deputado assassinado no Westminster Bridge", e depois o segundo, "Surpreendente assassinato: um cadáver pendendo do poste". Olhou para Pitt.

—Vá para casa e durma um pouco, homem - lhe ordenou. Volte esta tarde quando tivermos encontrado testemunhas. Depois pode começar com os sócios comerciais e com os políticos - Deu uma olhada para os jornais - Estes não vão nos dar muito tempo.

 

Charlotte Pitt não se inteirara ainda do assassinato em Westminster Bridge, nesse momento estava totalmente absorta em uma reunião a que assistia. Era a primeira vez que participava de uma assembléia daquelas características. A maioria dos ali reunidos tinha pouco em comum além de estar interessados na representação das mulheres no Parlamento. A maioria não tinha pensado além da utópica possibilidade de que as mulheres pudessem chegar a emitir um voto, mas um par de seres excepcionais tinha concebido a idéia de que a mulher pudesse chegar a ser membro de tão augusto corpo. Uma mulher de fato se ofereceu inclusive para ser escolhida. É claro, afundara-se sem deixar rastro, uma brincadeira de mau gosto.

Charlotte estava sentada na fila posterior de uma lotada sala de conferências observando o primeiro apresentador, uma enérgica jovem de feições duras e mãos avermelhadas, que agora ficara em pé fazendo que os murmúrios se extinguissem.

—Irmãs! - A palavra soou estranha em meio daquele grupo tão heterogêneo. Diante de Charlotte uma mulher elegantemente vestida de seda verde encurvou um pouco os ombros, afastando do contato e a cumplicidade com aquelas mulheres cuja proximidade se via obrigada a aceitar. - Nós todas estamos aqui pela mesma razão! - prosseguiu a jovem do estrado, sua modulada voz um pouco endurecida por um forte acento do norte. - Todas acreditam que deveríamos ter voz sobre o modo de reger nossas vidas, sobre que leis se aprovam e quem as faz! Qualquer classe de homem tem a oportunidade de escolher seus deputados, e se quer ser eleito, esse deputado tem que responder ante o povo. A metade do povo, irmãs, só a metade: a metade dos cidadãos!

Continuou falando durante dez minutos, mas Charlotte só escutava pela metade. Já conhecia os argumentos e lhe pareciam irrefutáveis. Só tinha ido para ver até que ponto havia um espaldar e a classe de mulheres que assistiam mais por convicção que por curiosidade. Grande parte delas ia sobriamente vestida em tons apagados e o corte de seus casacos e saias não era elegante, mas pensado para suportar o passar de muitas modas. Algumas vestiam xales sobre os ombros, mas não como detalhe decorativo. Eram mulheres comuns cujos maridos deviam ser empregados de escritório ou comerciantes, sempre tratando de ajustar as contas no final de mês. Havia as mais elegantes; algumas jovens e bonitas outras matronas de grandes seios cobertos por peles e contas, e com chapéus com penas.

Mas o que mais interessava à Charlotte eram seus rostos, as expressões fugazes que apareciam enquanto escutavam as idéias que quase toda a sociedade considerava revolucionárias, antinaturais e ridículas ou perigosas, segundo sua percepção das mudanças que delas pudessem surgir.

Em algumas via interesse, inclusive o brilho da fé. Em outras havia confusão: a ideia era muito ambiciosa, requeria um rompimento radical com os ensinos inatos de mães e avós, um modo de vida nem sempre cômodo, mas cujas penúrias eram ao menos conhecidas. Em outras havia brincadeira e aversão, e também medo à mudança.

Um rosto em especial atraiu sua atenção, redondo, mas delicado, inteligente, curioso, muito feminino, e com um queixo forte e obstinado. Foi sua expressão que atraiu Charlotte, a mescla de maravilha e dúvida, como se novas idéias estivessem penetrando na mente daquela mulher suscitando grandes perguntas.

Tinha o olhar fixo na oradora, ansiosa por não perder uma só palavra. Parecia alheia às mulheres que se amontoavam a seu redor; com efeito, quando uma delas lhe deu um empurrão involuntário e a pena de um elegante chapéu roçou sua face, a mulher não fez mais que piscar sem incomodar-se em desviar o olhar.

Com o terceiro orador, uma mulher magra e de aspecto mais que sério, começaram as provocações. Se o tom era ainda moderadamente bondoso, as perguntas eram agudas.

—Diz que as mulheres sabem tanto quanto os homens sobre negócios? Isso não diz muito em favor de seu homem, verdade?

—Isso se o tem! - ouviram-se gargalhadas, entre azedas e compassivas: uma mulher solteira era, no julgamento da maioria, alguém que tinha fracassado em seu objetivo primitivo.

A mulher do estrado deu um ligeiro pulo, ou assim o pareceu a Charlotte. Estava habituada a esta classe de mofas.

—E você, tem marido? - replicou-lhe a oradora sabendo já a resposta. - E filhos?

—Pois claro que sim! Tenho dez meninos.

Mais gargalhadas.

—Você tem criada, cozinheiro, outros criados? - perguntou a oradora.

—É claro que não! O que pensa que sou? Tenho uma garota que deve esfregar o chão.

—Então leva a casa sozinha. - produziu-se um silêncio e Charlotte olhou à mulher de rosto notável e viu que já tinha compreendido o que pretendia a oradora.

Seu rosto expressava satisfação.

—Certamente que sim!

—As contas da casa, o orçamento, comprar a roupa, educar a dez filhos... Eu acredito que você sabe muito de negócios... e de pessoas. Até me atreveria a dizer que sabe julgar às pessoas. Sabe quando lhe estão mentindo, quando alguém trata de lhe ajustar com a mudança ou lhe vender uma mercadoria passada, equivoco- me?

—Sim, bom - concedeu a mulher. Ainda não estava disposta a render-se, ao menos diante de tanta gente - Isso não significa que saiba governar um país!

—E seu marido sim? Saberia ele governar um país? Saberia levar a casa, por exemplo?

—Não é o mesmo!

—Ele tem voto?

—Claro, mas...

—E a opinião dele não vale tanto como a sua?

—Minha querida senhora! - irrompeu outra voz, sonora e cheia de desdém. As

cabeças se voltaram para a portadora de um chapéu cor ameixa - Estou segura de que é uma perita em comprar batatas para sua família e em avaliar os gastos da semana. Mas não me diga que isso é o mesmo que escolher um primeiro-ministro!

Houve risadas abafadas e alguém gritou "Bravo, bravo".

—Nosso lugar é em casa - disse a do chapéu de ameixa, cobrando ímpeto – Os trabalhos domésticos se contam entre nossos dons, e assim que mães é claro que sabemos educar aos filhos; são instintos que nascem em nós durante a gravidez. Deus dispôs o mundo assim. Mas nossas opiniões sobre assuntos de finanças, política externa e assuntos de Estado são absolutamente negadas. Nem a natureza nem Deus pensaram que tínhamos que nos colocar nestas encrencas. E se tentássemos ir contra isso, roubaríamos a nós mesmas e a nossas filhas nosso lugar na sociedade e o respeito que nos devem nossos homens.

Houve novos murmúrios de aprovação, tímidos aplausos.

A mulher do estrado parecia exasperada pelo irrelevante da argumentação.

—Não a estou propondo para primeiro-ministro! - disse bruscamente. A única coisa que digo é que tem tanto direito como o mordomo ou o galinheiro da esquina a escolher quem vai representá-la no Parlamento! E que seu discernimento para julgar às pessoas é tão válido como o de qualquer um!

—Oh! É impertinente! - A mulher do chapéu ameixa estava escandalizada; Seu rosto se escureceu e sua grande papada vibrou enquanto tratava de achar palavras ácidas para replicar.

—Tem toda a razão! - De repente, a mulher que tinha cativado ao Charlotte rompeu o silêncio. Tinha uma voz rouca, mas agradável; tanto sua dicção como sua pose revelavam que procedia de boa família. - A opinião das mulheres sobre as pessoas é tão boa como a dos homens; em conjunto, eu diria que inclusive melhor. E não se necessita nada mais para opinar sobre quem vai ser nosso representante no Parlamento!

Todo mundo se voltou para olhá-la e a mulher se ruborizou, mas isso não a impediu de prosseguir.

—Estamos algemadas pelas leis; eu acredito que seria justo que tivéssemos voz na hora de decidir sobre o particular. Eu...

—Está enganada! - Uma voz mais profunda a interrompeu, voz de contralto de uma mulher muito corpulenta, com um colar de azeviche sobre o peito e um bonito alfinete na lapela. - A lei, pensada por homens aos quais você desdenha, é nosso máximo amparo. Como mulher a protege seu marido, ou caso de ser solteira, seu pai; ele se ocupa de suas necessidades espirituais e terrenas; ele exerce sua sabedoria para ganhar o sustento, sem o menor esforço de sua parte; encarrega-se de seu bem-estar. Se você infringir a lei ou se endivida, é ele quem responde ante os magistrados e quem dará satisfação aos credores. Parece-me justo que seja também ele quem projete as leis, ou que escolha a quem as faz!

—Tolices! - exclamou Charlotte. Não podia conter-se por mais tempo. - Se meu marido se endividar, pode ser que as pessoas em geral o olhem com maus olhos, mas com certeza serei eu quem vai ao cárcere, não ele. E se eu Mato a alguém, é a mim a quem penduram!

Foi como se todos tivessem contido o fôlego, surpreendidos ante o desnecessário daquela rudeza.

Charlotte não se arredou; tinha querido dar o golpe, e a sensação de êxito era muito estimulante.

—Estou de acordo com a senhorita Wutherspoon; as mulheres têm tanto olho para julgar às pessoas como os homens. O que pode ser mais importante na vida que decidir com quem se casa uma pessoa? E o que é o que impulsiona a um homem a decidir-se, se dele depende?

—Um rosto bonito - respondeu uma asperamente.

Outra deu uma resposta menos fina, provocando as risadas.

—Beleza, atração. - Charlotte respondeu a sua própria pergunta antes que perdesse o fio. - Freqüentemente são adulações, e a cor de seus olhos ou a forma que tem de rir. Uma mulher sempre escolhe ao homem que poderá mantê-la, a ela e a seus filhos. Deu um pequeno pulo ante sua dobra; ela tinha escolhido ao Pitt porque a intrigava, enfeitiçava-a e a assustava com sua franqueza, fazia-a rir, acendia-a com sua aversão à injustiça, e porque além de amá-lo confiava nele. Que fosse social e economicamente um desastre, e assim queria continuar, não tinha influenciado nada em sua decisão. Mas lhe constava que a maior parte das mulheres tinha mais bom senso.Tinha seguido adiante apesar de tudo, em particular de seu antigo amor por seu cunhado Dominic, pelo que se ruborizou, mas o rubor ficou oculto pelo tom subido de seu entusiasmo.

"Os homens podem embarcar em toda classe de aventuras e encarar os resultados, aconteça o que acontecer, mas as mulheres sempre procuram as conseqüências, sabendo que os filhos têm que comer e ir vestidos, e necessitam de um lar seguro não só hoje e amanhã, mas o ano que vem e dentro de dez anos. A mulher é menos imprudente. Pensou em todas as mulheres soube e valentes que tinha conhecido, e nos riscos que tanto ela como Emily tinham encarado. Quando se acabam os gritos e os heroísmos, quem é que cuida de doentes, enterra os mortos e começa do zero? A mulher! Nossas opiniões deveriam contar, nosso julgamento sobre a honestidade ou valor do homem que tem que nos representar deveria pesar também na balança.

—Tem toda a razão! - exclamou a senhorita Wutherspoon do estrado - E se os parlamentares tivessem que prestar contas às mulheres além dos homens para ser escolhidos, não haveria as injustiças que agora há!

—Que injustiças? - quis saber alguém - O que necessita uma mulher decente que não tenha já?

—Nenhuma mulher normal quer expor-se ao ridículo - disse a do chapéu ameixa com tom de indignação - desfilando para que a gente a aceite ou a rechace, implorando que a escutem, que a escolham, que acreditem em suas opiniões ou confiem em sua intuição sobre temas dos que não sabe nada de nada. A senhora Taylor é o bobo, e longe de ser amiga das mulheres, é nosso pior inimigo. Nem a doutora Pankhurst quereria deixar-se ver com ela em público! Candidatas ao Parlamento, mas bom! Qualquer dia nós acabaríamos convertidas em bruxas, como essa Ivory, que abandonou toda a decência e a contenção que são essenciais para a mulher e a sociedade, o que digo! E para a civilização também.

Ouviram-se exclamações de aprovação e também vaias e protestos. Algumas pediam inclusive que as traidoras à causa abandonassem a sala e voltassem para suas habitações de crianças ou quaisquer lugares fechados onde vivessem.

Uma mulher gorda com vestido de fustão levantou seu guarda-chuva com tanto infortúnio que o casquilho do mesmo se enganchou nas saias de uma criada de idade. Ouviu-se um grito de alarme. A criada, pensando que a agrediam por suas críticas a do chapéu de ameixa, brandiu sua bolsa golpeando a cabeça da mulher de fustão, e a confusão resultante pouco teve que ver com o exercício do direito ao privilégio ou a responsabilidade, e menos ainda com o Parlamento.

Não querendo ver-se envolvida em uma rixa, Charlotte escapou. Tinha andado uns metros para a saída posterior quando viu a mulher que lhe tinha chamado a atenção. Estava de costas e não reparou em Charlotte, atraída sua atenção por um cabriolé estacionado junto à calçada. A mulher discutia acaloradamente com um homem magro e elegante cujo cabelo loiro brilhava quase branco ao sol. Era claro que estava muito zangado.

—Querida Parthenope, isto é indecente e, para ser franco um pouco ridículo. Decepciona-me deixar-se ver em um lugar como este, e me desgosta que você não tenha se dado conta!

Charlotte não podia ver o rosto da mulher, mas sua voz refletia um conflito de emoções.

—Me dá vontade de te responder com a desculpa mais óbvia, Cuthbert, e dizer que aí dentro ninguém me conhece. Mas isso carece de importância.

—É claro. O risco...

Interrompeu-o.

—Não estou falando de riscos! Se me interessar que as mulheres tenham representação no Parlamento, o que importa a alguém?

—Já têm representação! - O homem estava exasperado, e seu rosto refletiu um brilho de impaciência. - Está excelentemente representada pelos atuais membros da Câmara! Pelo amor de Deus, não legislamos só para nós! A quem esteve escutando? Voltou a ver essa maldita Ivory? Disse-lhe claramente que eu não gostava! Por que insiste em me desobedecer? Essa mulher é uma arpía, uma desequilibrada que encarna as coisas mais deploráveis de uma mulher.

—Pois não a vi! A voz de Parthenope era grave, mas tinha a intensidade da cólera. Disse-te que iria vê-la, e não o fiz. Mas não deixarei de escutar a opinião das pessoas sobre a possibilidade de que a mulher tenha algum dia direito ao voto.

—Então fica em casa; lê artigos, se for preciso, embora isso não ocorrerá nunca. É desnecessário e improcedente. Os interesses da mulher já estão devidamente representados, e todas as mulheres de bom senso sabem muito bem!

—Claro! - respondeu ela com dureza e agudo sarcasmo. - Será que eu não tenho bom senso! Só o que é preciso para governar uma casa com oito criados, ocupar-se da contabilidade, manter a disciplina e a ordem e a camaradagem, educar e ensinar a meus filhos, receber nossos amigos negociantes e parlamentares e lhes oferecer boas comidas em um ambiente agradável, e procurar que ninguém se ofenda, encontre-se em desgosto, excluído, e manter conversas agradáveis, engenhosas mas jamais ofensivas, e nunca, nunca, aborrecer. E naturalmente estar formosa enquanto isso! Suponho que isso não me dá competência para decidir qual candidato deveria me representar no Parlamento!

O rosto do homem loiro estava contraído, seus olhos lançavam faíscas.

—Parthenope! Não diga tolices! - disse entre dentes. Proíbo que se empenhe em discutir na via pública. Vamos para casa, de onde não deveria ter saído!

—É claro - Ela não gritava ainda, mas estava rígida de furor. – Possivelmente quando me tiver ali se incomodará em fechar a porta.

Ele a pegou pelos braços, mas ela não ofereceu resistência.

—Parthenope, não tenho o menor desejo de restringir suas atividades nem de ser rude com você. Você já sabe! Além disso, é brilhante levando a casa. Sempre o disse, e agradeço profundamente tudo o que faz. É a esposa perfeita em todos os sentidos... - Mas continuava perdendo a batalha; ela não queria adulações, nem sequer reconhecimento. Maldita seja não se trata de selecionar uma criada! Nisso não tem rival, mas escolher um membro do Parlamento é absolutamente diferente!

—Seriamente? - Ela levantou as sobrancelhas - Não me diga. Você não gostaria que seu deputado fosse honrado cabalmente, de sólidas convicções morais, discreto quando é preciso, leal a sua causa e competente em seu trabalho?

—O que não quero é que saque o pó dos móveis ou corte batatas!

—Vá, Cuthbert! - Sabia que só tinha ganhado essa batalha, não a guerra. Ele não tinha mudado de parecer, nem provavelmente o faria nunca. Continuava empenhado em fazê-la subir ao cabriolé e abandonar a zona antes que chegasse alguém que pudesse reconhecê-los. Ela cedeu e deixou que a ajudasse a subir à carruagem. Charlotte viu seu rosto inteligente e obstinado, a confusão refletida em seus traços; as novas idéias não poderiam ser extintas, mas tampouco poderiam negar as velhas lealdades. Parthenope olhou a seu marido com áspera e irresoluta ansiedade.

Depois, o homem montou a seu lado e fechou a portinhola. Charlotte saiu das sombras e caminhou pela calçada como se nesse momento tivesse abandonado a sala.

 

No meio da tarde, Pitt estava de volta em Bow Street. Era um desses dias brilhantes da primavera em que o ar é nítido e o sol cai sobre a pavimentação; o vento arrastava ainda um pouco de penetrante frescor úmido procedente do rio. Uma récua de carruagens rangia pelo Strand, brunidos e sonoros os arnês, arrogantes os cavalos, e atrás iam os varredores, limpando os excrementos. Um realejo tocava uma conhecida canção de music-hall. Na lonjura um mascate apregoava seu gênero, "Pudim de ameixa quente! Pudim de ameixa!", e pouco a pouco sua voz se perdia à medida que ia para o paredão. O menino dos jornais vozeava seu extra: "Horrível assassinato no Westminster Bridge! Parlamentar degolado!"

Pitt subiu os degraus e entrou na delegacia de polícia. Havia outro sargento de serviço, mas não havia dúvida de que o tinham posto à corrente do caso.

—Boa tarde, senhor Pitt - disse jovial. O senhor Drummond está em seu escritório. Acredito que há novidades, mas pouca coisa. Acharam um par de carruagens de aluguel, se é que isso serve de algo.

—Obrigado.

Pitt se dirigiu para o corredor, que cheirava a linóleo, um invento relativamente novo. Subiu de dois em dois as escadas e bateu na porta do escritório do Drummond. Sua memória retrocedeu a uns meses atrás, quando o inquilino do escritório era Dudley Athelstan. Para Pitt tinha parecido um homem pomposo e cheio da insegurança de quem tem ambições sociais, indeciso a respeito da que amo tinha que servir. Athelstan tinha notado a insolência do Pitt, seu desalinho, mas acima de tudo seu atrevimento ao haver desposado Charlotte Ellison, socialmente muito superior a ele.

Drummond era um homem muito diferente, com a suficiente bagagem familiar e os meios econômicos para não lhe importar nenhuma das duas coisas. Pediu sua permissão para entrar.

—Boa tarde - Pitt olhou ao redor - O aposento estava cheio de lembranças de casos anteriores, em muitos dos quais tinha trabalhado ele; tragédias e soluções, escuridão e luz.

—Entre, Pitt. - Drummond lhe indicou que se aproximasse da luz. Procurou entre os papéis de sua mesa, todos eles escritos a mão em letra caligráfica de diversos graus de legalidade. - Tenho alguns informes, nada importante de momento. Um cocheiro que cruzava a ponte às doze e quinze e não viu nada, salvo possivelmente uma prostituta no lado norte, e um grupo de cavalheiros saindo da Câmara dos Comuns. Hamilton pôde ser um deles; teremos que perguntar esta noite quando a câmara suspender a sessão. Agora não vale a pena ir. Averiguaremos que deputados vivem no lado sul do rio e poderiam ter voltado para casa por esse extremo da ponte. Tenho um homem nisso.

Pitt ficou junto ao fogo, notando como o delicioso calorzinho lhe subia pela parte posterior das pernas. Athelstan costumava monopolizar a lareira.

—Suponho que terá que contemplar a possibilidade de que fosse um de seus colegas disse.

Drummond lhe olhou com certo desagrado, mas a lógica venceu sua aversão.

—Ainda não, mas pode ser que não descartemos isso - concedeu. – Primeiro procuraremos inimigos pessoais ou profissionais e, Deus nos livre, a possibilidade de que fosse um demente.

—Ou algum anarquista - acrescentou Pitt com tom sombrio, passando as mãos pela parte de seu casaco que o fogo esquentava.

Drummond ficou olhando divertido, mas não indiferente.

—Ou algum anarquista – concedeu - Embora nós não gostemos, faríamos bem em rezar para que seja algo pessoal. Que é o que você deverá investigar hoje.

—O que temos?

—Dois cocheiros, o das doze e quinze, e um por volta das doze e vinte, que viu Hetty Milner, que também nega ter visto algo; mas como Hetty reparou na carruagem imediatamente antes de ir falar com o Hamilton, isso não significa muito. O pobre diabo devia estar já ali. Mas não teria que ser difícil estabelecer a hora em que saiu do Parlamento, assim fica um espaço de uns vinte minutos. Poderia nos servir para determinar onde estavam os possíveis suspeitos, mas duvido: se foi coisa de família é muito possível que não cometessem o crime pessoalmente - Drummond suspirou - Podemos investigar movimentos de dinheiro, reintegrações bancárias, vendas de jóias ou quadros, conhecidos de caráter extravagante - Esfregou o rosto com as mãos, consciente de como o escândalo inspirava cerrar fileiras entre as classes altas - Investigue seus negócios, sim, Pitt? Logo iria bem que visse em que assunto político estava metido. Temos a autonomia da Irlanda, a limpeza do submundo, a reforma da lei de pobres; sabe Deus que outras coisas poderiam despertar sentimentos violentos.

—Sim, senhor. Era o que ele teria feito de todo modo. Suponho que haverá alguém investigando aos agitadores conhecidos.

—Sim, tudo isso está em marcha. Ao menos, o lapso de tempo a cobrir é bastante curto. Poderia sair algo das pessoas que acudiram correndo aos gritos do Hetty Milner. Até o momento não tiramos nada útil, mas a memória costuma recordar um rosto ou um som a posteriori, algo que alguém vê pela extremidade do olho. Empurrou sobre a mesa uma folha de papel com um nome e um endereço. É o sócio do Hamilton. Poderia começar com ele. E... Pitt esperou.

—Seja discreto, pelo que mais queira! - Pitt sorriu.

—Imagino que por isso me escolheu para o caso, senhor.

Drummond fez uma careta.

—Claro - resmungou.

Pitt tomou um cabriolé que lhe levou pelo Strand, Fleet Street e Ludgate Hill, passando pelo St. Paul"s até o Cheapside, e logo todo Cheapside e Threadneedle Street, deixando atrás o Banco da Inglaterra até o Bishopsgate Street Within e os escritórios do Hamilton & Verdun. Apresentou seu cartão de visita, uma extravagância que se permitiu fazia algum tempo e que resultava extremamente útil.

—"Inspetor Thomas Pitt, Bow Street" - leu o empregado com surpresa. Os policiais não costumavam usar cartões, como tampouco o desratizador ou o encanador. Como tinham mudado as coisas ultimamente! Aonde iríamos parar?

—Queria falar com o senhor Charles Verdun, se for possível - disse Pitt. É sobre a morte de sir Lockwood Hamilton.

—Ah! - O empregado pareceu alegrar-se um pouco, a seu pesar. Estar relacionado com um assassinato famoso tinha certo atrativo. Esta noite contaria tudo a Laetitia Morris tomando uma cerveja no Grinning Rat.Isso ia fazer prestar atenção nele! Com certeza já não o acharia aborrecido. Harry Parsons não parecia nem a metade interessante com suas denúncias sobre vulgares desfalques. Olhou Pitt.

—Se quer esperar aqui, verei o que decide o senhor Verdun. Não costuma receber a pessoa só porque o peçam, sabe. Possivelmente eu poderia lhe dizer algo. Espero que apanhe a esse criminoso. Pode ser que eu lhe conheça, sem saber, o que lhe parece?

Pitt o tinha calado.

—Saberei o que lhe perguntar depois de ter falado com o senhor Verdun.

—Claro. Bem, irei ver o que diz.

O empregado se retirou para voltar depois pouco tempo e fazer passar ao Pitt a uma sala grande e sem arrumar, com um fogo fumegante e várias poltronas de couro verde, cômodas e brilhantes pelo uso. Atrás de uma maltratada escrivaninha de antiquário lotada de papéis havia um homem entre cinqüenta e setenta anos, de rosto alongado, grossas sobrancelhas cinza e uma expressão bonachona e caprichosa. O homem compôs um gesto de apropriada seriedade e indicou ao Pitt que se sentasse em uma cadeira. Depois passeou um pouco, deu uma olhada à luz e agitou os braços para dissipar a fumaça.

—Maldição! - exclamou olhando o fogo. Não sei o que acontece com a lareira! Quer que abra a janela?

Pitt conteve a tosse e assentiu com a cabeça.

—Sim senhor. Boa idéia.

Verdun voltou à escrivaninha e puxou a metade inferior da janela de guilhotina.

Subiu com um ruído surdo deixando entrar uma rajada de ar fresco.

—Ah - disse Verdun satisfeito. - Bem, no que posso lhe servir? Da polícia, né? Por causa do pobre Lockwood, claro. Que coisa mais surpreendente. Imagino que não tem idéia de quem o fez. Não, claro que não; é muito cedo, né?

—Sim, senhor. Soube que sir Lockwood era sócio seu.

—De certo modo, sim. - Alcançou um humefactor e tirou um charuto puro. Acendeu-o com uma lasca do fogo e exalou uma fumaça acre que fez Pitt ofegar Verdun interpretou incorretamente sua expressão. Turco disse muito orgulhoso - Quer um?

Fezes de camelo - pensou Pitt.

—Muito amável, mas não, obrigado - respondeu. - por que de certo modo, senhor?

—Oh. - Meneou a cabeça - Não parava muito aqui. Sempre metido em política, é lógico. Era secretário do ministro e tudo isso. Cada qual sabe suas obrigações.

—Mas tinha interesses financeiros na empresa, não?

—Sim, sim. Poderia dizer-se que sim - Pitt estava perplexo.

—Não eram sócios em partes iguais? Seu nome figurava primeiro na placa da rua.

—Certamente! - concedeu Verdun. Mas ele não vinha aqui mais que uma vez por semana, às vezes nem isso. - Disse-o sem indício de ressentimento.

—Então, você faz quase todo o trabalho - insinuou Pitt. Queria ser comedido, mas com esse homem era difícil. As indiretas pareciam interpretar-se absolutamente ao reverso.

Verdun levantou as sobrancelhas.

—Trabalho, diz? Bom, sim, suponho. Nunca me tinha ocorrido pensá-lo nesses termos. A gente tem que estar ocupado em algo, sabe? Eu não gosto de ir de clube em clube com um montão de tipos falando de descarados, do tempo, de quem disse qual coisa ou de como vai vestida a gente... e de quem tem uma confusão com a esposa de quem. Sempre me é fácil estar de acordo com outros para discutir por isso.

Pitt ocultou um sorriso.

—Seu negócio é de bens imóveis, não? - replicou.

—Com efeito - disse Verdun, dando uma baforada com seu charuto. Pitt se alegrava de que a janela estivesse aberta; a coisa cheirava realmente mal. - O que tem isso que ver com fato de que assassinassem o pobre Lockwood no Westminster Bridge? - prosseguiu, enrugando o rosto. - Não acredita que teve que ver com o negócio, não é? É altamente improvável. Por que iria alguém fazer uma coisa assim?

Ocorria a Pitt vários motivos. Não seria o primeiro proprietário dos bairros pobres que cobrava exorbitantes aluguéis e colocava quinze ou vinte pessoas em uma só habitação úmida e infestada de ratos. Nem seria o primeiro que utilizava suas casas como bordéis, fábricas clandestinas ou guarida de ladrões. Havia a possibilidade de que Hamilton o tivesse feito e tivessem matado-o por vingança... ou que o tivesse feito Verdun, e Hamilton ao descobri-lo e ameaçá-lo denunciá-lo, Verdun o assassinasse para que não falasse. Ou talvez fosse alguém que o tinha feito movido pela fúria depois de ter sido expulso de uma casa ou obrigado a aceitar a pauladas um trato lucrativo. Entretanto, Pitt não mencionou nada de tudo isto.

—Imagino que haverá bastante dinheiro em jogo disse com toda a inocência de que foi capaz.

—Não muito - replicou calmamente Verdun - Faço-o para me entreter, compreende? Minha mulher morreu faz vinte anos. Não tornei a ter vontade de me casar. Nunca poderia querer ninguém como quis a ela... - Por um momento seu olhar foi distante, aprazível, ao recordar uma felicidade passada que continuava lhe agradando. Logo se retratou. - Os filhos já são maiores. Tinha que fazer algo!

—Mas lhe dará bons ganhos - Pitt avaliou sua roupa. Estava gasta pelo uso, mas suas botas eram excelentes, sua jaqueta do Savile Row, suas camisas certamente do Gieves & São. Não se estia na moda; parecia bastante seguro de si mesmo e de seu lugar na sociedade para que não lhe fosse preciso. O seu era dinheiro velho, dinheiro tranqüilo.

—Não acredito- interrompeu as divagações do Pitt. -. Hamilton ganhava a vida com não sei que vagões de trem, em Birmingham ou algo parecido.

E você, senhor?

—Eu? - Outra vez a ascensão de sobrancelhas hirsutas; os olhos cinzas e redondos brilharam de ironia e humor reprimido. Não o necessito, tenho suficiente. Já sabe a família.

Pitt tinha imaginado isso; de fato não se teria surpreendido de um título honorífico que Verdun desdenhasse usar.

Fora se ouviu um estalo continuado, uma espécie de arrítmica matraca.

—Ouve isso? - disse rapidamente Verdun. - Que horrível artefato! Uma máquina de escrever, já vê. Comprei-a para meu empregado; o menino não sabe escrever para que o entenda todo mundo salvo o farmacêutico. Que espanto de coisa. É como um montão de cavalos dando voltas em um pátio pavimentado.

—Poderia proporcionar à polícia uma lista dos contratos efetuados nos últimos doze meses, senhor Verdun? - pediu Pitt, mordendo o lábio. Queria que aquele homem lhe fosse simpático, mas suas maneiras ligeiramente doces podiam ocultar paixões muito mais desagradáveis. Pitt tinha simpatizado com pessoas das quais depois tinha conhecido seus instintos homicidas. - E os de um futuro imediato - acrescentou. Teremos em conta que é informação confidencial.

—Meu querido amigo, acredito que se aborrecerá mortalmente. Mas como queira. Não sei como vai descobrir ao assassino do Lockwood na lista de casas encostadas de Primrose Hill, Kentish Town ou Highgate, mas suponho que sabe o que se faz.

Todos os bairros mencionados eram zonas suburbanas respeitáveis.

—O que me diz do East End? - perguntou Pitt - Não têm negócios ali?

Verdun foi mais rápido do esperado:

—Suponho que terei que pensar nisso. Não. Mas pode examinar os livros se acredita que é sua obrigação.

Pitt sabia que seria inútil, mas um auditor inteligente podia achar alguma discrepância que apontasse a outros registros, outros contratos... Malversação inclusive? Esperava que não. Preferia que Verdun fosse o que aparentava ser.

—Obrigado, senhor. Conhece pessoalmente lady Hamilton?

— Amethyst? Sim, um pouco. Uma grande mulher. Muito reservada. Despede um ar de tristeza; deve ser porque não teve filhos. Claro que Lockwood nunca o mencionou, era muito afeiçoado a ela. Não falava muito, mas se notava. Alguém se dá conta dessas coisas se alguma vez esteve apaixonado.

Pitt pensou um momento em Charlotte, na calidez de sua vida juntos.

—Certamente - Aproveitou a oportunidade que lhe brindava o tema familiar. – Mas há um filho do primeiro matrimônio de sir Lockwood, não é certo?

—Ah, sim, Barclay. Um tipo simpático. Não chegou a casar-se, não sei por que.

—Era muito unido a sua mãe?

—A Beatrice? Nem idéia. Não se dá bem com Amethyst, se referir a isso.

—Sabe por quê?

—Não. Imagino que lhe soube mal que seu pai se casasse outra vez. Que tolice. Eu acredito que deveria alegrar-se de que seu pai fosse feliz, e Amethyst é uma excelente esposa, disso não há dúvida. Sempre o apoiou em sua carreira, sabia tratar aos amigos com destreza e tato, e levava muito bem a casa. Em realidade, acredito que Lockwood era mais feliz com ela que com Beatrice.

—Pode ser que Barclay fosse consciente disso e levasse a mal isso , em nome de sua mãe. Verdun ficou boquiaberto.

—Mas homem, não estará sugerindo que Barclay esperou vinte anos para espreitar a seu pai uma noite no Westminster Bridge e lhe fatiar o pescoço?

—Não, claro que não. Era desatinado. Diria você que Barclay Hamilton tem bons recursos financeiros?

—Isso sim eu sei: herdou de seu avô materno. Não muito, mas sim suficiente. Temuma bonita casa em Chelsea, muito bonita. Perto do Albert Bridge.

—Imagino que não conhece ninguém que pudesse desejar mal a sir Lockwood. Tem notícias de que alguém o ameaçasse? Verdun sorriu.

—Sinto muito. Nesse caso o teria dito. Ao fim e ao cabo, não se pode permitir que uma pessoa vá por aí matando porque sim, não é?

—Não, senhor. Pitt ficou em pé. Obrigado por sua ajuda. Se me permite dar uma olhada a esses registros... O último ano será suficiente.

—É claro. Direi ao Telford que lhe faça uma cópia nessa máquina horrenda, se você quiser. Talvez até seja útil. Sonha como uma centena de ouriços com botas de tachinhas!

Eram seis e quinze quando Pitt pôde entrar finalmente no escritório do ministro do Interior no Whitehall. Era muito espaçoso e formal, e os funcionários com jaqueta e pescoço de pontas deixaram bem claro que era um favor concedido em circunstâncias muito especiais que Pitt tivesse passado da entrada, e não digamos já penetrado no escritório particular de um membro do Gabinete. Pitt tentou endireitar sua gravata com muito pouca sorte, e penteou o cabelo sem melhores resultados.

—Sim, inspetor? - disse cortesmente o ministro. Posso lhe conceder dez minutos. Lockwood Hamilton era meu secretário particular para assuntos parlamentares, muito eficiente e discreto. Lamento muitíssimo sua morte.

—Era ambicioso, senhor ministro?

—Naturalmente. Eu não apoiaria a ninguém que fosse indiferente a sua carreira.

—Quanto tempo fazia que ocupava esse cargo?

—Uns seis meses.

—E antes?

—Foi deputado em diversos comitês. Por que o pergunta? - Franziu o sobrecenho. - Não pensa que isto teve que ver com a política?

—Não sei, senhor. Sir Lockwood esteve envolvido em assuntos que tenham podido levantar oposição?

—Pelo amor de Deus, Hamilton era meu secretário, não ministro!

Pitt compreendeu que tinha cometido um engano tático.

—Antes de promovê-lo a este cargo, senhor – continuou - deve ter se informado a respeito dele: sua trajetória política, sua postura sobre temas importantes, sua vida privada, sua reputação, seus assuntos financeiros...

—É claro - concedeu com aspereza o ministro, antes de compreender o objetivo do Pitt. - Mas não acredito que possa lhe dizer nada de utilidade. Nunca nomeio pessoas que acredito podem ser assassinadas por sua vida privada, e ele não era bastante importante para ser um alvo político.

—Certamente não, senhor - teve que concordar Pitt. - Entretanto, estaria descuidando de minhas obrigações se não tivesse em conta todas as possibilidades. Uma pessoa o bastante desequilibrada para pensar em um assassinato como solução a seus problemas poderia não pensar com a mesma lógica que o senhor ou que eu.

O ministro olhou-o como receando um possível sarcasmo; não gostava da rabugice do Pitt ao equiparar a um ministro do governo com um policial em matéria de racionalidade, mas sustentou o olhar azul de Pitt e decidiu que não valia a pena insistir nisso.

—Pode ser que enfrentemos ao irracional - disse friamente. - De fato, assim espero. Toda sociedade está exposta a algum ou outro demente. Um crime familiar seria muito desagradável, mas o escândalo duraria uns dias e depois ficaria relegado ao esquecimento. Muito pior seria uma conspiração de anarquistas ou revolucionários cujo objetivo não fosse o pobre Hamilton em concreto, mas uma desestabilização a grande escala para provocar o alarme geral. Suas mãos se distenderam imperceptivelmente. - Devemos esclarecer este assunto quanto antes. Imagino que terá nisso todos os homens disponíveis. - Pitt entendia seu raciocínio, mas desgostava-o sua frieza em meio daquele belo escritório que cheirava ligeiramente a cera de abelha e couro. O ministro preferia uma tragédia particular, com toda sua dor, a um complô impessoal tramado por exaltados que sonhavam com a mudança de poder em um lugar qualquer, e não sentiam nenhum escrúpulo em dizê-lo.

—E então? - inquiriu o ministro, irritado - Diga algo, homem!

—A resposta é sim, senhor. Pensou em alguma outra pessoa para o cargoalém de sir Lockwood?

—Naturalmente.

—Talvez seu secretário poderia me dar os nomes. - Não era uma pergunta.

—Se acha necessário... - mostrava-se resistente, mas aceitava a sugestão - Não é um cargo que um homem cordato mataria por conseguir.

—Qual seria o cargo pelo qual uma pessoa ambiciosa o faria senhor?- perguntou Pitt, tratando de que sua voz soasse desprovida de toda insinuação.

O ministro lhe lançou um olhar de fria antipatia.

—Acredito inspetor, que deveria procurar o suspeito fora do governo de sua majestade - respondeu acidamente.

Pitt não se arredou: até certo ponto era agradável que a aversão fosse mútua.

—Pode me dizer qual era a opinião de sir Lockwood sobre alguns pontos candentes, por exemplo, a autodeterminação da Irlanda?

O ministro do Interior adiantou o lábio inferior com ar reflexivo.

—Suponho que poderia ter que ver com isso, nem tanto com o pobre Hamilton em concreto como com o governo em geral. É um tema que sempre levanta acaloradas emoções. Ele estava a favor, e não mordia a língua. Claro que se a gente tivesse que matar-se por estar em desacordo sobre a questão irlandesa, as ruas de Londres pareceriam Waterloo depois da batalha.

—E sobre outros assuntos, senhor? A reforma penal, a lei de pobres, as condições nas fábricas, a limpeza do submundo, o sufrágio universal?

—O que?

—O sufrágio - repetiu Pitt.

—Pelo amor de Deus, certo que há algumas mulheres estridentes e desencaminhadas que não sabem o que lhes convém, mas não acredito que rachassem o pescoço a um homem só para pedir o direito ao voto!

—Provavelmente não. Mas quais eram as opiniões de sir Lockwood?

O ministro se dispunha a descartar o assunto, mas pareceu compreender a contra gosto que era tão válido como qualquer possibilidade.

—Hamilton não era reformista - respondeu. - Salvo em termos muito moderados. Era um homem muito sensato! Eu não o teria nomeado secretário particular se não tivesse confiança em seus julgamentos.

—E sua reputação pessoal?

—Impecável. - Um leve sorriso apareceu nos lábios do ministro. - E não é uma resposta diplomática. Queria muito a sua esposa, uma mulher excelente, e não era desses homens que procuram... diversão. Não gostava de lisonjas e conversa corriqueira, e nunca o vi admirando a outra mulher.

Tendo conhecido Amethyst Hamilton, Pitt não custou acreditar nele. Charles Verdun tinha afirmado o mesmo.

—Quanto mais sei dele, menos provável me parece que despertasse ódios bastante violentos para incitar alguém ao assassinato. - Pitt sentiu uma ligeira satisfação ao ver que o ministro apreciava essa volta em sua argumentação, por mais que ele mesmo não gostasse.

—Então será melhor que investigue as provas que tenha e siga a pista de todos os agitadores e grupos políticos conhecidos disse o ministro. Mantenha-me informado.

—Fique tranquilo. Obrigado, senhor.

—Que tenha um bom dia.

A sessão da Câmara dos Comuns não tinha terminado; era muito cedo para tentar refazer os passos de Hamilton na noite anterior. Pitt tinha frio e fome e sabia muito pouco mais que quando tinha saído de casa aquela tarde depois de arranhar umas horas de sono. Retornaria ao Bow Street para comer algo e tomar uma xícara de chá e ver se havia notícias dos agentes que estavam procurando testemunhas.

Mas quando chegou a delegacia de polícia o sargento de serviço lhe disse que sir Garnet Royce tinha ido vê-lo.

—Diga que vá a meu escritório - respondeu Pitt.

Duvidava que pudesse ser uma visita útil, mas lhe devia a cortesia de recebê-lo. Afastou uns papéis da cadeira para que Royce tomasse assento e foi atrás de sua mesa pra dar uma olhada se por acaso havia novos informes ou algum recado. Não havia nada salvo o montão de transações do Verdun, com uma nota de um especialista em fraude, dizendo que em sua opinião os papéis eram o que aparentavam ser; o único que se deduzia deles era que a empresa levava a cabo transações bastante eficientes em diversas zonas elegantes dos subúrbios.

Bateram na porta e um guarda fez Garnet Royce entrar. Estava elegantemente vestido com um casaco de gola de veludo. Deixou o chapéu sobre a escrivaninha. Naquele escritório ordinário, sua figura era realmente imponente.

—Boa tarde, senhor - disse Pitt.

—Boa inspetor. - Royce declinou sentar-se. Empunhava ainda uma bengala com ponteira de prata que fez virar nervoso em suas fortes mãos ao falar. Vejo que a imprensa utilizou o pobre Lockwood para as manchetes. Imagino que era de esperar. Para a família é inquietante. Torna difícil solucionar os problemas com dignidade; muita gente vadiando por aí como coveiros. É repugnante! Isso traz à tona o melhor e o pior das pessoas. Será feito cargo da preocupação que sinto por minha irmã.

—É claro, senhor. - Pitt o dizia a sério.

Royce se inclinou um pouco.

—Se foi um louco qualquer, como parece o mais provável, que possibilidades têm de apanhá-lo, inspetor? Responda com sinceridade, de homem a homem.

Pitt olhou-o: a força do nariz e as maçãs do rosto, a boca ampla e a fronte pronunciada. Não era um rosto delicado, mas sim inteligente e enérgico.

—Com um pouco de sorte, muitos; sem uma testemunha à mão e se o homem não agredir a ninguém mais, poucas. Mas se trata-se de um louco, continuará atraindo a atenção sobre si mesmo, e então o acharemos.

—Ah. É claro. - As mãos se fecharam sobre a bengala. - Tem alguma idéia de quem pode ser?

—Não, senhor. Estamos trabalhando sobre as possibilidades mais claras: rivalidade profissional, inimigos políticos.

—Lockwood não era tão importante para granjear inimigos políticos – disse Royce. Naturalmente, algumas pessoas perderam ascensões quando ele ganhou, mas era de esperar, digo eu. Todos os que desempenham cargos públicos são conscientes disso.

—Havia alguém que pudesse haver tomado especialmente mal?

Royce pensou um momento, indagando em sua memória.

—Hanbury se incomodou bastante pela presidência de uma comissão parlamentar a vários anos e parece que lhe guardava certo rancor. Também discutiam pela autodeterminação; Hanbury era contrário a ela, e Lockwood estava a favor. Claro que não se comete assassinato por uma coisa assim.

Pitt estudou o rosto do outro à luz do lampião de gás. Não havia nele sombra alguma de falsidade, tampouco ironia ou humor. Queria dizer exatamente o que havia dito, e Pitt não pôde estar em desacordo. Se o móvel do assassinato era político, radicava em algo mais fundo que qualquer dos temas mencionados; tinha que tratar- se de uma rivalidade mais pessoal, algo mais amargo que a questão do autogoverno na Irlanda ou a reforma social.

Royce partiu e Pitt subiu para ver o Micah Drummond.

—Nada que nos sirva. - Drummond empurrou uns papéis para ele sobre sua escrivaninha. Parecia cansado e tinha olheiras marcadas. Era só o primeiro dia, mas já sentia a pressão das pessoas à medida que o horror se tornava medo, e o alarme de quem estava no poder e conheciam o perigo real.

—Pôde-se estabelecer a hora da morte entre as doze menos dez, quando a câmara terminou a sessão, e as doze e vinte, quando Hetty Milner lhe achou. Deveremos poder reduzir esse lapso quando falarmos com os deputados ao termo da sessão desta noite.

—Algum mascate que o visse? - perguntou Pitt. - Ou alguém que estivesse na zona e não o tenha visto, para reduzir as possibilidades?

Drummond suspirou e rebuscou entre os papéis.

—Uma florista diz que não o viu. Conhecia-o, de modo que é bastante confiável. Um que vende salgados quentes no Westminster, Freddie não sei o que, afirma que não viu nada especial: meia dúzia de homens, quaisquer dos quais podia ser Hamilton, mas não pode assegurar. Um indivíduo de aspecto diferente, com casaco escuro, chapéu de seda e cachecol branco, de estatura normal, com as têmporas prateadas; as ruas próximas à ponte estão cheias de gente assim quando terminam as sessões!

—Naturalmente, é possível que não fossem pelo Hamilton - disse Pitt.

Drummond ergueu os olhos.

—Sim, já tinha pensado nisso. Mas se o assassino procurava a outra pessoa, por onde vamos começar? Poderia ser qualquer um!

Pitt se sentou na cadeira de espaldar reto frente à escrivaninha.

—Se tratar-se de um ataque indiscriminado contra o governo e Hamilton foi vítima do azar – disse - então deve tratar-se de anarquistas ou revolucionários. Destes grupos temos bastante informação.

—Sim. - Drummond tirou um maço de papéis de uma gaveta da escrivaninha - Tenho homens investigando isso, estão tratando de averiguar os movimentos dos membros mais conhecidos. Alguns pretendem derrocar a monarquia e estabelecer uma república, outros querem o caos absoluto. São fáceis de ver: normalmente em pubs ou em esquinas fazendo discursos fanáticos. Alguns têm contatos no estrangeiro, também estamos investigando isso. - Suspirou. - O que averiguou Pitt? Há algo pessoal?

—De momento não, senhor. Parece que era um homem comum, teve êxito nos negócios, mas não vejo nada que pudesse inspirar ódio e muito menos motivar um assassinato. Seu sócio, Verdun, é um homem moderado e cortês que tem negócios imobiliários, mais para fazer algo que por dinheiro.

Drummond não parecia convencido.

—Tenho a contabilidade da empresa - disse rapidamente Pitt - Não há mais que transações normais em áreas residenciais respeitáveis. Se é que também negociam nos bairros pobres, então levam uma perfeita contabilidade clandestina.

—Acha possível?

—Não.

—Bem, investigue Verdun para ver se é o que diz ser. Averigúe se joga ou se tem amantes.

Pitt sorriu.

—Vou fazê-lo, mas com certeza não gostaria que as tivesse.

Drummond arqueou as sobrancelhas.

—E seu emprego, Pitt? Apostaria isso também? E o meu, se não solucionarmos este caso.

—Não acredito que tiremos nada do Charles Verdun, senhor.

—E o motivo político? O que lhe disse o ministro do Interior?

Pitt lhe resumiu o que tinha sabido do Hamilton por seu superior, e Drummond se mostrou cada vez mais abatido.

—Uma vítima fortuita? - murmurou. - Tomaram por outro personagem mais importante? Meu Deus espero que não; isso significaria que o assassino pode matar outra vez!

—Voltamos aos os anarquistas - disse Pitt, levantando-se. - Será melhor que vá ver o que averiguo quando os deputados saiam dos Comuns; quem falou com o Hamilton por última vez, e se viram se alguém se aproximava.

Drummond tirou um relógio de ouro de seu colete.

—Terá você que esperar bastante.

Pitt esperou ao afresco no extremo norte do Westminster Bridge durante mais de uma hora e meia até que viu os primeiros saindo da Câmara dos Comuns e virando para o rio. Tinha comido somente dois salgadinhos quentes e um pudim de ameixa enquanto contemplava inúmeros casais caminhando de braços dados pelo paredão e dois bêbados cantando fora de tempo, e tinha os dedos intumescidos.

—Desculpem senhores - Deu um passo à frente.

Dois parlamentares se detiveram carrancudos ao ver-se abordados por um estranho. Repararam em seus bolsos avultados e seu cachecol de lã e fizeram gesto de prosseguir seu caminho.

—Polícia do Bow Street, senhor - disse Pitt na hora. - Estamos investigando o assassinato de sir Lockwood Hamilton.

Ficaram pasmados ao ouvir falar de algo que tinham preferido esquecer.

—Um assunto horrendo - disse um.

—Horrendo, sim - disse o outro.

—Viu-o ontem tarde, senhor?

—Oh, sim, vi-o. Você não, Arbuthnot? - O mais alto olhou a seu companheiro - Não sei que hora seria. Quando saíamos.

—Acho que a câmara terminou a sessão por volta das onze e vinte - sugeriu

Pitt.

—Sim - concordou o mais loiro e robusto - É provável. Vi o Hamilton quando saíamos. Pobre homem. Que espanto!

—Estava só, senhor?

—Mais ou menos; vi que acabava de falar com alguém - O parlamentar lhe olhou com olhos bondosos - Sinto muito, não sei com quem. Algum outro deputado. Disse boa noite ou algo parecido e pôs-se a andar para a ponte. Vive no lado sul.

—Viu se alguém o seguia? - perguntou Pitt. O rosto do deputado pareceu contrair-se como se tivesse recebido o impacto da realidade. Aquilo já não era um exercício. Uma imagem vivida se formou em sua mente: tinha presenciado o que não demoraria para suceder um assassinato. Seus anos de segurança em si mesmo se evaporaram, e viu a vulnerabilidade do homem que estava na ponte como se tratasse dele mesmo.

—Pobre homem - repetiu com um nó na garganta. Eu diria que sim, mas não tenho a mais remota idéia de quem podia ser. Só vi uma silhueta, uma sombra, enquanto Hamilton começava a cruzar a ponte passada o primeiro poste. Acredito que somos muitos os que voltamos para casa andando se fizer boa noite e vivemos perto. Claro que alguns vão de carruagem própria ou de aluguel. É um aborrecimento quando a sessão acaba tarde. Eu só tinha vontade de ir para casa dormir. Sinto muito.

—Alguma impressão a respeito da sombra, senhor? Estatura, forma de andar.

—Sinto muito, nem sequer tenho certeza de que vi algo. Só algo que se movia a contraluz... que espanto!

— E você, senhor? - Pitt se voltou para o outro homem - Viu sir Lockwood com alguém?

—Não, não. Tomara pudesse ajudá-lo, mas foi mais uma impressão que outra coisa. É difícil ver o rosto de alguém sob um lampião e realmente não se sabe... a escuridão, compreende? Sinto muito.

—É claro. Obrigado por sua ajuda. - Pitt inclinou a cabeça e foi para o grupo seguinte, que começava já a dispersar-se em carruagens ou a pé.

Parou a outra meia dúzia de pessoas, mas não obteve nada que lhe permitisse precisar mais a hora da morte. Lockwood Hamilton tinha ido para o Westminster Bridge entre as doze e dez e às doze e vinte. Hetty Milner tinha gritado as doze e vinte e um. Nesses nove ou onze minutos alguém tinha matado ao Hamilton e o amarrado a um poste.

Pitt chegou a sua casa pouco antes de meia-noite. Entrou com sua chave e tirou as botas no vestíbulo para não fazer ruído enquanto ia para a cozinha. Ali achou um prato de carne fria, pão recém assado, manteiga e embutidos, e uma nota do Charlotte. A chaleira estava junto ao fogão e só era preciso movê-la, dentro a água já estava quente. O bule estava sobre o fogão, e junto a ele a caixinha do chá esmaltada com adornos de flores e uma colherinha.

Estava no meio da comida quando se abriu a porta e entrou Charlotte, pestanejando à luz, com o cabelo pelos ombros em uma cascata mogno. Vestia um roupão velho de lã azul com bordados, e quando beijou Pitt este notou o aroma a sabão e lençóis mornos.

—O caso é importante? - perguntou ela.

Pitt a olhou: não havia em sua pergunta nenhum indício de sua habitual perspicácia ou de sua mal dissimulada vontade de intrometer-se, processo no qual mais de uma vez tinha tido um êxito notável.

—Sim, assassinaram a um deputado - respondeu Pitt, terminando sua fatia de pão e embutidos. Não queria lhe contar os detalhes macabros, porque esta noite sua intenção era esquecer-se de tudo.

Ela pareceu surpreendida, mas menos interessada do que ele tinha esperado.

—Deve estar com frio. Averiguou algo? - Nem sequer olhou-o enquanto se servia de chá. Sentou-se em uma cadeira. Estava atuando falsamente? Em tal caso, não era próprio dela; ela sabia que não se dava bem nisso.

—Charlotte.

—Sim? - Seus olhos eram cinza escuro à luz do abajur, e pareciam inocentes.

—Não, não averigüei nada.

—Ah. - Parecia inquieta, mas não interessada.

—Ocorreu algo? - perguntou ele, subitamente nervoso.

—Esqueceu o casamento de Emily? - disse ela com os olhos muito abertos.

Então ele compreendeu toda sua excitação, a preocupação de que tudo estivesse em ordem, sua solidão ao pensar que Emily partia, a inveja pelo atraente e romântico das bodas, e a sorte que sentia por sua irmã. Tinham compartilhado muitas coisas juntas e eram mais que irmãs, complementavam-se à perfeição.

Pitt lhe pegou a mão. O gesto mesmo era uma admissão, e ela soube antes que ele falasse.

—Pois tinha esquecido, não o casamento mas sim que era esta sexta-feira. Sinto muito.

A decepção apareceu no rosto dela como a sombra de uma nuvem. Na hora o dominou.

—Virá não é Thomas?

Até esse momento ele não tinha estado seguro de que ela o desejasse assim Emily se tinha casado em primeiras núpcias muito acima inclusive da posição confortável de classe meia de seus pais, convertendo-se em lady Ashworth, com uma mais que considerável riqueza. Depois de enviuvar recentemente, agora se propunha casar-se com o Jack Radley, um cavalheiro de indubitável bom berço que não tinha um centavo Charlotte fizera algo inclassificável ao casar-se com um policial, com um nível social equiparável ao desratizador e o lacaio!

Os Ellison tinham tratado sempre ao Pitt com cortesia. Apesar de ela ter perdido todo seu antigo círculo social, sabiam que Charlotte era feliz. Emily lhe dava de presente vestidos usados (algum novo de vez em quando), comprava-lhes coisas bonitas sempre que o tato o permitia, e compartilhava com Charlotte a diversão e a tragédia, o perigo e o triunfo dos casos do Pitt.

Contudo, Charlotte poderia ter se alegrado em segredo se ele não tivesse podido assistir ao casamento temendo olhares de superioridade por suas possíveis gafes. Por outra parte, as diferenças entre o antigo mundo dela e o dele eram sutis mas incomensuráveis.

—Sim, ao menos um momento. É possível que não possa ficar muito.

—Mas pode vir!

—Sim.

Charlotte relaxou e inclusive sorriu agarrando-lhe uma mão.

—Estupendo! Significa muito para Emily, e também para mim. A tia avó Vespasia irá. Verá meu novo vestido; não é nada extravagante, mas sim muito especial.

Pitt se tranqüilizou ao fim, soltando todos os nós que sentia a medida que a escuridão se desvanecia. Era tão normal, tão incrivelmente corriqueiro: o tom de um tecido, o acerto de um vestido, o número de flores no chapéu. Era ridículo, imensamente insignificante... e o cúmulo da sensatez!

 

Pitt partiu às sete e meia da manhã, e Charlotte passou à ação tão logo ele pôs um pé na rua. Gracie, a criada que vivia na casa, ocupou-se de tudo na cozinha, incluído os cafés da manhã da Jemima, com seis anos completos e muito senhora de si mesma, e do Daniel, um pouco menor e desesperado por não ser menos. Toda a casa respirava um ar de tremenda excitação, e os dois meninos não ficavam quietos.

Charlotte fez que lhes deixassem os vestidos novos sobre a cama: babados e pontinhos creme para a Jemima, traje de veludo marrom com gola de renda para Daniel. Havia-lhe custado uma hora de persuasão e depois um descarado suborno (na próxima vez que fossem de ônibus poderia pagar ele mesmo ao condutor com seu próprio penny) convencer ao Daniel de que ia usar aquele traje.

O vestido do Charlotte era feito sob medida, coisa que antes de seu matrimônio tinha sido o normal. Agora costumava fazer os próprios vestidos, ou os adaptava dos que lhe dava Emily, ou inclusive às vezes a tia avó Vespasia.

Mas este era suntuoso, de fina seda cor ameixa com um decote que mostrava a garganta e os ombros e só um vislumbre de seios, apertado na cintura e com anquinhas deliciosamente femininas que a fazia sentir-se irresistível já antes de vesti-lo Produzia um delicioso frufru ao caminhar, e o tom realçava sua tez cor de mel e seu cabelo dourado, que ela esfregou com um lenço de seda até lhe dar brilho.

Levou-lhe uma hora e várias infrutíferas tentativas penteá-lo, frisá-lo e lhe aplicar grampos exatamente como ela queria, de forma que o rosto ficasse realçado em todas suas facetas, a falta de algo que pudesse chegar a chamar-se "cosméticos". Pintar-se seguia um pecado capital em sociedade, um luxo que só se permitiam mulheres de duvidosa moralidade.

Depois de outra meia hora longa fazendo pequenos ajustes na roupa dos meninos e as fitas do cabelo da Jemima, Charlotte pôde colocar enfim seu vestido ante os suspiros e gritos de seus filhos e a admiração de Gracie, que quase não podia conter seu deleite. Aquela era a culminação de um romance total; havia visto muitas vezes Emily e a tinha por uma autêntica dama, e pensava não perder um só detalhe quando sua senhora retornasse da cerimônia e contasse tudo. Isso era melhor que todas as fotos do Illustrated London News ou inclusive que as balidas sentimentais que ela ouvia apregoar na rua. Nem sequer as novelas que lia à luz de uma vela na despensa, debaixo da escada, podiam comparar-se a isto; além de tudo, nestes casos se tratava de gente a quem não conhecia nada.

Emily lhes mandou uma carruagem as dez, e vinte minutos depois, Charlotte, Jemima e Daniel desciam no St. Mary"s Church, Eaton Square.

Imediatamente atrás, a mãe de Charlotte, Caroline Ellison, desceu de sua carruagem e indicou ao cocheiro que procurasse um lugar adequado onde esperar. Era uma mulher formosa de cinqüenta e tantos anos e levava sua viuvez com vigor e um sentido bastante ousado da liberdade. Vestia-se de marrom dourado, tom que ficava admiravelmente, e usava um chapéu quase tão esplêndido como o de sua filha. De sua mão ia Edward, o filho de Emily, agora lorde Ashworth em lugar de seu pai, com um traje de veludo azul escuro e o cabelo perfeitamente penteado. Parecia nervoso e muito sério e pegava a mão de sua avó com seus pequenos dedos.

Atrás, e assistida discretamente por um criado, vinha a sogra de Caroline, oitenta e tantos anos a suas costas, tirando forças de achaques enquanto seus brilhantes olhos negros não perdiam detalhe e suas orelhas, adornadas com oscilantes brincos negros, selecionavam o que queria ou não queria escutar.

—Bom dia, mamãe. - Charlotte beijou com cuidado ao Caroline para que nenhum dos dois chapéus perdesse sua posição. Bom dia, avó.

—Acreditou que é a noiva? - replicou-lhe a anciã olhando-a de cima abaixo. Em minha vida nuca vi anquinhas como essa! E leva muito ruge... Como sempre!

—Ao menos eu posso ir de amarelo replicou Charlotte observando a cítrica pele de sua avó e seu vestido ocre escuro, sem deixar de sorrir com primor.

—É verdade disse a anciã olhando-a com cenho. E é uma lástima que não o tenha feito... em vez de pôr isso! Que cor mais estranha, jamais o tinha visto. Se manchar de purê de framboesa ninguém o notará!

—Você sempre soube dizer a palavra adequada para que uma pessoa se sinta bem

A velha dama inclinou a cabeça.

—Como? O que disse? Não ouço tão bem como antes! - Agarrou sua trompinha e a deixou ostentosamente perto da mão, a fim de atrair a atenção sobre seu achaque.

—E você sempre foi surda quando lhe convinha - respondeu Charlotte.

—Como? Faça o favor de não murmurar mais, menina!

—Digo que faz bom tempo. - Charlotte a olhou nos olhos.

—Mentira! - replicou-lhe a anciã. - Desde que se casou com esse tonto de policial se tornou muito presunçosa; por certo, onde está? Não se atreveu a trazê-lo, né? Muito esperta; certamente assoa o nariz na mesa e não sabe que talher usar!

Charlotte recordou pela enésima vez como não gostava de sua avó. A viuvez e a solidão a tinham feito uma mulher malévola; sempre solicitava a atenção com queixa ou tentando fazer mal a seus próximos.

Charlotte renunciou a procurar uma réplica idônea e contundente.

—Está trabalhando em um caso, vovó - disse. - Um assassinato. Thomas está no comando da investigação. Mas virá à cerimônia se puder.

A anciã fungou.

—Assassinos! Aonde iremos parar; o ano passado houve tumultos na rua, tiros e tudo isso. Nem as criadas sabem já como comportar-se; são preguiçosas, altivas e descaradas. Vive em uma época triste, Charlotte; as pessoas esqueceram qual é seu lugar. E você não colaborou, ao contrário; olhe que se casar com um policial! Não sei no que estaria pensando! E sua mãe tampouco! Eu sei o que haveria dito a meu filho se tivesse pretendido casar-se com a criada.

—Eu também! - exclamou Charlotte, dando rédea solta a seu aborrecimento. Teria lhe dito: "deite-se com ela as vezes que queira, mas se case com alguém de sua classe social ou de uma superior, sobre tudo se a garota tem dinheiro!"

A anciã brandiu sua bengala como se quisesse tocar Charlotte nas pernas; depois, compreendendo que sua neta não o teria notado com a grossura de suas saias, tratou de procurar um equivalente verbal... mas não o achou.

—Como diz? - replicou-lhe, derrotada - Não faz mais que balbuciar moça! Leva dentes artificiais ou algo parecido?

Era tão ridículo que Charlotte se pôs a rir e rodeou com o braço à anciã, que guardou silêncio de puro assombro.

Acabavam de entrar na igreja e lhes estavam indicando seus assentos quando chegou lady Vespasia Cumminggould. Era alta como Charlotte, mas de uma magreza exagerada, e permanecia extremamente rígida, vestida de renda de cor crua sobre saia cor café e um chapéu tão elegante que até Charlotte ficou boquiaberta. Tinha mais de oitenta anos; de moça tinha sido olhada entre os balaústres da escada pelos convidados que chegavam a casa de seu pai para dançar toda a noite depois de conhecer-se a vitória de Waterloo. Tinha sido a garota mais bonita de seu tempo e seu rosto, até curtido pelos anos e tragédia, conservava uma graça e uma proporção de traços que nada podia danificar.

Tinha sido a tia favorita do finado marido do Emily, e tanto esta como Charlotte a queriam muitíssimo. Era um sentimento que ela correspondia, desafiando inclusive as convenções ao incluir Pitt, sem se importar o que pensassem outros dela por receber a um policial em seu gabinete, como se Pitt tivesse sido um personagem e não uma indesejável espécie de funcionário. Ela sempre tinha tido categoria e beleza para fazer pouco caso das opiniões alheias, e ao tornar-se idosa abusava disso sem piedade. Era partidária da reforma das leis e costumes que não passava, e não tinha náuseas a intrometer-se em averiguações sempre que Charlotte e Emily lhe davam a oportunidade. A igreja não era bom lugar para saudações; Vespasia se limitou a inclinar a cabeça olhando ao Charlotte e tomar assento ao extremo do banco, esperando que chegasse o resto dos convidados.

O noivo, Jack Radley, estava já ante o altar e Charlotte começava a impacientar- se quando por fim apareceu Pitt a seu lado, com aspecto surpreendentemente elegante e um chapéu negro nas mãos.

—De onde tirou isso? - disse-lhe Charlotte baixo, alarmada pelo gasto de uma coisa que ele não ia usar nunca mais.

—Do Micah Drummond - respondeu ele, e ela viu que admirava seu vestido. Pitt se voltou e sorriu à tia avó Vespasia, a qual inclinou graciosamente a cabeça e fechou uma pálpebra.

Houve murmúrios de excitação e logo se fez o silêncio; o órgão se fez majestoso, romântico e um pouco retumbante. Charlotte voltou a cabeça para ver Emily envolta em luz de sol no pórtico da igreja, caminhando lentamente pelo braço do Dominic Corde, o viúvo de sua irmã mais velha Sarah. Charlotte se sentiu invadida pelas lembranças: o casamento de Sarah; o tumulto de suas próprias emoções naqueles anos em que se acreditou terrível e desesperadamente apaixonada por seu cunhado Dominic; a própria Charlotte avançando pela nave pelo braço de seu pai para unir-se a Pitt no altar. Então sabia que estava fazendo o que tinha que fazer, apesar dos temores que sentia, ao saber que perderia muitos amigos e a segurança de ter posição e dinheiro.

Continuava pensando que tinha feito bem apesar dos lógicos apuros, coisas que oito anos atrás teria considerado tarefas monótonas e penosas. Agora seu mundo era mais amplo e sabia que inclusive com o pagamento de polícia, mais uma pequena renda de parte de sua própria família, considerava-se uma das pessoas mais afortunadas do mundo. Raramente passava frio, fome jamais; não lhe faltava nada. Tinha tido muitas experiências, mas nunca o tédio nem o medo de estar desperdiçando a vida em coisas inúteis, nem aquelas horas intermináveis bordando coisas que ninguém gostava, pintando aquarelas insossas, visitas aborrecidíssimas, espantosos chás onde só se mexericava.

Emily estava linda. Vestia-se de seda verde clara, sua favorita, sobre um fundo marfim e recamado com pérolas. Levava o cabelo perfeitamente penteado, como uma pálida auréola, e sua bonita pele exibia o rosa da excitação e felicidade.

Jack Radley não tinha dinheiro e certamente nunca o teria como tampouco um título; Emily deixaria de ser lady Ashworth, e isso lhe havia custado seu momento de dúvida. Mas Jack tinha encanto, engenho e uma extraordinária capacidade para a camaradagem. E desde a morte do George tinha demonstrado valor e generosidade de espírito. Emily não só estava apaixonada, mas também só tinha olhos para ele.

Charlotte tomou a mão de Pitt e notou que seus dedos se fechavam sobre os dela. Enquanto olhava a cerimônia, sentiu-se feliz por Emily e nada preocupada com o futuro.

Pitt teve que partir quando a parte formal da cerimônia mal tinha terminado. Ficou só um momento para dar parabéns a Jack, beijar Emily e saudar Caroline, a avó e a Vespasia na sacristia.

—Bom dia, Thomas - disse muito séria a tia avó. Agrada-me que tenha podido vir.

Pitt afastou o chapéu do Drummond e lhe devolveu o sorriso.

—Lamento ter chegado tão tarde - disse sinceramente, e ter que ir com tanta pressa.

—É um caso urgente?... - Vespasia arqueou suas sobrancelhas prateadas.

—Muito - disse ele, sabendo que ela sentia curiosidade. - Um desagradável assassinato.

—Em Londres os há a dúzias - replicou ela. Motivo pessoal?

—Duvido-o.

—Então será um trabalho ingrato para você, não terá que utilizar seus peculiares dotes. Não será um assunto social, suponho.

—Que se saiba, não. Parece meramente político, ou talvez obra de um louco.

—Violência comum, então Pitt sabia que a decepcionava um pouco não ter oportunidade de colocar o nariz, embora fosse vicariamente através de Charlotte ou Emily; também sabia que ela não queria admiti-lo.

—Tudo muito vulgar - concedeu ele. - Se é que no final se trata disso.

—Thomas...

—Terá que me desculpar senhora. - E com uma pequena reverência sorriu uma vez mais a Emily, deu meia volta e se afastou a passo rápido pelo Lower Belgrave Street em direção ao Buckingham Palace Road.

Um bom amigo de Emily ia oferecer uma pequena recepção em uma casa do Eaton Square, e passados uns momentos todos saíram à rua, primeiro Emily pelo braço de Jack, seguidos por Caroline e Edward, e Charlotte e seus filhos. Dominic ofereceu o braço à tia avó Vespasia, que o aceitou graciosamente, embora ainda estivesse pensando em Pitt. A anciã, sem deixar de resmungar todo o momento, foi acompanhada por um amigo íntimo do noivo.

Era o início de uma nova etapa na vida de Emily. De repente, Charlotte pensou nas mulheres da assembléia, umas tão escandalosamente complacentes, tão seguras de sua comodidade, de sua posição inexpugnável, e outras se arriscando ao ridículo e a notoriedade para lutar por uma causa provavelmente perdida. Quantas delas teriam sido noivas como esta, tão cheia de esperança e incerteza, sonhando com a felicidade e a camaradagem?

E quantas teriam terminado poucos anos mais tarde como aquela Ivory de quem tinham falado com tanto desprezo; lutando por uma compensação, a infelicidade por antonomásia?

Apenas tinha mencionado a Pitt aquela reunião; havia muitas coisas em que pensar, embora continuasse tendo isso em mente.

Claro que isto era diferente. Emily estava apaixonada, como refletia seu rosto radiante, mas nunca tinha sido uma ingênua, não tinha perdido de vista o prático durante todo o romance.

Charlotte sorriu ao recordar sua infância em comum, as longas horas conversando dos planos de futuro, dos homens bonitos e galhardos que iriam conhecer. Era Emily quem nunca soltava de todo a realidade, inclusive em seus doze anos com acréscimo e um avental branco e engomado sobre o vestido. Emily sempre tocava com os pés a terra. Era Charlotte quem tinha sonhos que a transportavam fora do mundo!

Serviu-se champanha, fizeram-se torradas, houve discursos e risadas. Charlotte se somava a tudo, contente por sua irmã e à vontade entre o feitiço da ocasião, as luzes e as taças, as flores embriagadoras, o frufru do tafetá e seda.

Pôs umas massas diminutas em um prato e as levou a sua avó, que estava sentada em uma poltrona do canto.

A anciã aceitou o prato, examinou seu conteúdo e escolheu a maior.

—Aonde diz que irão? - perguntou. - Disse-me isso, mas não me lembro.

—A Paris, e depois a Itália respondeu Charlotte, procurando que não lhe notasse a inveja.

Ela só tinha desfrutado de um fim de semana longo em Margate, logo Pitt tinha tido que voltar para seu trabalho e ela tinha passado o mês seguinte mudando- se à primeira de suas moradias, cujos aposentos eram menores que o quarto da criada em sua casa paterna. Tinha tido que aprender a passar todo um mês com o dinheiro que antes teria gasto em um só vestido, e a cozinhar, quando antes bastava dar instruções à cozinha. Não tinha importância, em realidade, mas teria gostado de fazer uma viagem de navio, visitar outros países, jantar bem, nem tanto pela comida quanto pelo romântico! Gostaria de visitar Veneza, percorrer um canal à luz da lua e ouvir os gondoleiros cantarem; e Florença, essa cidade de grandes artistas; e passear pelas ruínas de Roma sonhando com a grandeza e a glória de épocas passadas.

—Muito bonito - concordou a avó, assentindo com a cabeça. - Toda moça deveria fazê- lo alguma vez em sua vida, e quanto antes melhor. É uma experiência útil, desde que se não tome tudo a peito. Terá que aprender com os estrangeiros, mas não imitá-los.

—Sim, avó - disse Charlotte distraidamente.

—Mas o que vai saber você! - prosseguiu a anciã. - Não acredito que chegue a ver nunca Calais, e muito menos Veneza ou Roma!

Era verdade, e desta vez sua neta não teve ânimo para replicar.

—Eu já lhe dizia - acrescentou a avó com tom vingativo. - Mas como nunca escuta... Nem de menina escutava. Quis escolher sua cama, pois agora dorme nela.

Charlotte se levantou e se aproximou de Emily. A parte formal da cerimônia tinha acabado e os noivos se dispunham a partir. Parecia tão feliz que Charlotte sentiu que lhe subiam as lágrimas à medida que os sentimentos entravam em conflito; alegria por Emily nesse momento e alívio pelas sombras que ficavam atrás, a angústia e o luto, o terror que lhe tinha produzido a suspeita, a esperança pelos anos vindouros, a inveja pelas aventuras e a risada compartilhada, as novas perspectivas e o feitiço do amor.

Rodeou Emily com seus braços e a estreitou.

—Me escreva. Conte-me todas as coisas bonitas que veja, edifícios e museus, os canais de Veneza. Fale-me da gente, se são graciosos ou encantadores ou estranhos. Fale-me da moda e da comida, do tempo, de tudo!

—Fique tranquila! Escreverei uma carta todo dia e a mandarei ao correio quando me for possível - lhe prometeu Emily, abraçando-a por sua vez. - Não se meta em nenhuma confusão enquanto estou fora, ou se o faz tome cuidado. Estreitou-a mais forte. Amo-a, Charlotte. E obrigada por estar aí, todo o tempo, desde que fomos pequenas.

Dito isto se foi, agarrada ao braço do Jack e sorrindo a todo mundo, cheios de lágrimas os olhos e arrastando seu precioso traje nupcial.

Transcorreram vários dias enquanto Pitt ia esgotando todas as possibilidades na investigação do assassinato de sir Lockwood Hamilton. Os detalhes de seu negócio foram examinados mais a fundo, mas as contas da compra e venda de propriedades por parte da empresa não arrojaram nada de novo. Não havia nada fora do normal, tanto no concernente a compras efetuadas sob algum tipo de coação quanto a possíveis vantagens obtidas das desgraças alheias, como tampouco se vendeu nenhuma posse de terras com benefícios imoderados. Dava a impressão de ser como Charles Verdun havia dito: um negócio de cujos benefícios, que não de sua gestão, participava Hamilton, e no que o próprio Verdun investia seu tempo para distrair-se. O negócio de Birmingham que proporcionava ao Hamilton o grosso de seus ganhos consistia basicamente em umas ações herdadas, assunto que não parecia ter nenhum gato escondido.

Barclay Hamilton possuía uma casa muito agradável em Chelsea e tinha fama de ser reservado e um pouco melancólico, mas respeitável a carta cabal. Ninguém falava mal dele, e seus assuntos financeiros estavam em perfeita ordem. Era um magnífico partido ao qual muitas senhoritas de boa família se tinham proposto conquistar sem êxito. Mas nunca se dizia nada em seu descrédito, nem sequer às escondidas.

O frio fôlego do escândalo tampouco tinha alcançado Amethyst Hamilton. Não esbanjava em trajes nem jóias, levava a casa com sabedoria, mas sem extravagâncias, recebia generosamente em interesse de seu marido. Tinha muitas amizades, mas nenhuma tão íntima que provocasse algum comentário que a Pitt interessasse analisar com atenção.

Uma investigação mais conscienciosa da carreira política do Hamilton, o resumo da qual passou Pitt muitas horas lendo e relendo, não revelou nenhuma injustiça o bastante flagrante para ter provocado um assassinato. Hamilton podia ter sido objeto de inveja ou de ressentimento por ter recebido favores, mas isso era comum a outras muitas vidas de políticos. Não parecia ter tomado posturas notáveis sobre nenhum tema que pudessem lhe indicar como objeto de sentimentos violentos. Era uma pessoa competente, querida e respeitada, mas sem a grandeza que inspira paixões.

Enquanto isso, Micah Drummond tinha a todos os efetivos disponíveis investigando aos grupos de anarquistas e pseudo-revolucionários que teriam podido chegar a esses extremos em favor de sua causa. Falou com cargos importantes de muitos distritos policiais de Londres e inclusive com o Foreign Office, para ver se estava à par de que algum país pudesse ter estado interessado na morte de um membro do Parlamento. Ao final entregou suas conclusões a Pitt e lhe disse que provasse com suas próprias fontes no submundo para tentar recolher algum possível delator.

Pitt leu os relatórios e descartou três quartas partes. Os guardas tinham feito bem seu trabalho, e seus informantes tinham esgotado as possibilidades de conseguir algum dado útil. Da quarta parte restante escolheu o pouco que pôde conseguir de receptadores, ladrões de pouca monta e falsificadores que lhe deviam algum favor, ou que procuravam algum tipo de vantagem. Trocou de roupa, deixou a um lado as formosas botas que Emily lhe tinha presenteado, e vestiu uma calça gasta e uma jaqueta velha com a intenção de não levantar suspeitas nos barracões mais pobres, os moles mais desmantelados ou os pubs mais lúgubres do East End. Depois tomou uma carruagem e três quilômetros a leste desceu a uns passos do Whitechapel Road.

Durante as três horas seguintes falou com meia dúzia de delinqüentes, sempre em direção a Mele End e logo ao sul até o rio e Wapping. Comeu um sanduíche e um copo de cidra em um pub com vista para o rio e depois seguiu entrando nos bairros pobres e as ruas estreitas e fétidas orientadas ao Limehouse Reach, a um tiro de pedra do Tamisa. Ao final tinha conseguido informação suficiente para trocá-la pelo que necessitava.

Encontrou a homem adequado no alto de uma desconjuntada escada meio podre pela umidade de anos, a uns mil metros das estacas do desembarcadouro aonde antigamente tinham amarrado piratas a mercê da maré alta. Deteve-se em um portal e bateu nos empenados painéis.

Depois de uns minutos de espera, a porta se abriu um pouco e se ouviu um grunhido surdo com um matiz de ameaça, um cão que podia atacar ao menor descuido. Pitt viu a cabeça do animal, um borrão branco nas sombras: um cruzamento desafortunado de Bull terrier e setter.

A porta se abriu um pouco mais, mostrando uma luz amarelada e um homem baixinho de grosso pescoço e cabelo cerdoso e esvaído talhado ao estilo carcerário. De rosto corado, tinha umas sobrancelhas tão pálidas que pareciam incolores, quase translúcidas. Só quando o homem abriu de todo a porta pôde ver Pitt que tinha uma perna de madeira sob a grossa coxa talhada por cima do joelho. Soube que tinha dado com o que procurava.

Pitt olhou o cão.

—Deacon Stafford? - perguntou.

—Sim, e você quem é? Que busca aqui? Não o conheço. - Examinou Pitt de cima a baixo e depois lhe olhou as mãos. Você é um policial disfarçado!

Pitt compreendeu que seu traje não tinha servido muito. A próxima vez teria que lembrar-se das unhas.

—Thin Jimmy me disse que você poderia me ajudar - disse sem alterar-se - Tenho certa informação que poderia lhe ser de utilidade.

—Thin Jimmy... Está bem, entre. Não posso ficar aqui de pé, tenho uma perna danificada.

Pitt conhecia a história de Deacon. Seu pai partira a Austrália quando a deportação ainda era uma pena comum por roubos de pouca monta, e sua mãe tinha sido enviada com seus três filhos a uma casa de caridade. O jovem William Stafford tinha começado a "recolher estopa" desfiar cordas velhas aos três anos. Aos seis escapou e, meio morto de fome depois dedicar-se a roubar e mendigar, tinha sido recolhido por um homem que se dedicava a adestrar a um punhado de meninos gatunos e ladrões de carteira, ficando-a parte do leão de seus lucros, traficando com o roubado e lhes dando em troca comida e amparo. William tinha sido um ladrão de carteira perito antes de alcançar uma forma mais elevada dessa arte, especializando- se em roubos a mulheres. Depois de uma temporada na penitenciária de Coldbath Fields, a umidade tinha feito trinca em seus ossos e seus dedos tinham perdido agilidade. Teve que dedicar-se a furtar material para tetos, sobre tudo chumbo das igrejas, o que lhe valeu seu apelido. Uma queda em uma noite de geada lhe tinha produzido uma ruptura de coxa que, ao gangrenar-se, custou-lhe a perna. Agora vivia em sua humilde habitação repleta de móveis junto às brasas de um fogo humoso, dedicado a trocar informação e influência.

Deacon ofereceu assento a Pitt em uma poltrona em frente da sua, a um passo do fogo, e o cão foi deitar-se entre os dois, observando Pitt com seus rosados olhinhos.

—O que há? - perguntou Deacon curioso. - Thin Jimmy me conhece, é mais esperto que a fome, mas se não me disser nada interessante te deixarei como um polvo antes de ir ao Limehouse.

Pitt não teve dúvida de que ganharia uma surra de mil demônios se tentasse passar a perna em Deacon. Palavra por palavra, passou-lhe a informação que tinha ido acumulando com o passar do dia. Deacon pareceu satisfeito; a luz de um profundo regozijo interior iluminou seu rosto longo, e seus lábios se separaram em um sorriso.

—Bom o que quer de mim? Não me terá contado isso por nada!

—O assassinato do Westminster Bridge - disse lentamente Pitt. - Anarquistas, irlandeses, revolucionários? O que ouviu você?

Deacon lhe olhou com surpresa.

—Nada de nada! Bom, algo sim. Dez anos atrás eu teria apostado pelo Harry Parkin. Era o principal líder anarquista, mas o carregaram no oitenta e três. Primeiro três semanas no saleiro e depois uma corda no pescoço. De todo modo, só servia para roubar a bêbados, pobre bode.

—Não penduram a ninguém por isso...

—Matou a um - explicou Deacon. - O tipo lhe tinha querido extorquir, e Parkin lhe abriu a cabeça. Que imbecil!

—Não me ajuda muito - disse secamente Pitt. - Continue experimentando.

—Perguntarei a Mary Murphy - propôs Deacon. - É puta. Vai por sua conta, não tem cafetão. Se tiverem sido fenianos, ela saberá, mas eu acredito que os tiros não vão por aí.

—Anarquistas? - insistiu Pitt.

Deacon meneou a cabeça.

—O que vai! Esses não atuam assim. Rachar a um tio no Westminster Bridge! Do que lhes serviria? Eles teriam posto uma bomba, algo espetacular. Adoram as explosões. Falar, falam muito, mas nunca fariam uma coisa tão silenciosa.

—Então onde está a chave?

—Eu acredito que o carregou um passatempo que tinha. - Deacon abriu seus olhinhos. Ganho a vida dando sopros. Já não sou bastante rápido para roubar. Teria que fazer o golpe do aleijado, e assim não se pode viver! Não; mendigar pretextando feridas falsas ou auto-infligida não encaixava no sentido que Deacon tinha de sua dignidade.

—Ah - concedeu Pitt, ficando lentamente em pé sem afastar a vista do cão. – Nem tampouco esconder-se para sempre da polícia em uma casa desabitada.

Deacon compreendeu a ameaça, mas não pareceu levá-la a mau; era uma parte do trato.

—Esse assassinato não tem nada que ver com a gente do East End disse. Do que nos ia servir? E nós sabemos de anarquistas e todo isso, porque nos convém. Terei os olhos bem abertos, já que me deu o que eu queria. Mas lhe direi algo: isto não é coisa de revolucionários, o melhor seria que procurasse entre os de sua classe.

—Possivelmente um demente... - disse Pitt com tom lúgubre.

—Ah. - Deacon suspirou. - Há muitos soltos por aí, sim, mas não no East End. Nos ocupamos desses a nossa maneira. Já o disse, procure entre os de sua classe, amigo.

Foram cinco dias depois do casamento de Emily e sua partida em transatlântico a Paris quando Pitt despertou de sua primeira noite inteira do assassinato para ouvir golpes prementes na porta de sua casa. Saiu da branda escuridão do sonho ao compreender que os golpes eram reais e exigiam sua atenção.

—O que está acontecendo? - perguntou Charlotte sonolenta. Era curioso que pudesse dormir com aquele ruído e que, entretanto se algum dos meninos sussurrava apenas, despertava e saía correndo vestindo o roube antes que ele conseguisse abrir os olhos.

—A porta - disse Pitt intumescido, tateando em busca de sua roupa. Só podia ser para ele, e certamente lhe fariam ir a alguma parte no meio da noite. Procurou as meias, mas só achou uma.

Charlotte se endireitou e tratou de riscar um fósforo para acender o abajur de gás.

—Deixa - disse ele em voz baixa. - Tem que estar por aqui.

Ela não perguntou quem batia na porta; sabia por experiência que só podia ser um policial com alguma notícia urgente. Não gostava disso, mas aceitava o fato como parte da vida de Pitt. O que mais temia eram os golpes que pudessem soar quando Pitt não estava em casa, e que a notícia fosse a mais dolorosa.

Pitt achou a outra meia, pôs ela e se levantou. Inclinou-se para beijar a sua mulher, saiu nas pontas dos pés e desceu a escada para calçar as botas e ir à porta.

No portal havia um agente, parcialmente iluminado seu rosto pela luz mais próxima.

—Houve outro! - Disse-o precipitadamente, aliviado de que Pitt estivesse ali para mitigar seu horror solitário. - Drummond diz que você vá em seguida. Tenho uma carruagem preparada, senhor.

Pitt reparou no cabriolé que havia umas portas mais à frente. O cavalo estava inquieto e o cocheiro aguardava sentado na boléia elevada com as rédeas na mão e uma manta nos joelhos. O fôlego do cavalo formava no ar uma nuvem de vapor.

—Outro o que? - Pitt estava confuso.

—Outro deputado, senhor, com o pescoço aberto e amarrado ao poste do Westminster Bridge, igual ao anterior.

Por um momento Pitt não reagiu. Deixou-se convencer pelo Deacon de que era um crime pessoal, motivado pelo medo ou a cobiça ou alguma escura vingança. Agora parecia que a única resposta era a pior: um demente estava fazendo das suas.

—Quem é? - perguntou.

—Vyvyan Etheridge. Nunca tinha ouvido falar dele - respondeu nervoso o agente. - Claro que eu não sei muito de políticos, só o que sabe todo mundo.

—É melhor que a gente vá.

Pitt alcançou seu casaco, de cujos bolsos pendiam ainda as luvas, e depois fechou a porta e seguiu o agente pelo úmido pavimento enquanto o orvalho se condensava nas paredes, reluzentes à luz dos lampiões de gás. Montaram na carruagem e partiram em direção à ponte.

Pitt foi metendo-as abas da camisa sob o casaco. Teria que ter posto mais roupa; com certeza passaria frio.

—Que mais sabe? - perguntou no negrume da noite, dando uma batida com o tabique da carruagem ao dobrar este em uma esquina. - Que horas são?

—São doze e quinze, senhor respondeu o agente, voltando a acomodar-se em seu assento só para ser arrojado dele quando viraram para o outro lado. - Acharam o pobre por volta das onze. A câmara celebrava outra sessão noturna. Devem ter o matado quando voltava para sua casa, igual ao outro. Vivia em uma travessa do Lambeth Palace Road, ao sul do rio.

—Alguma coisa mais?

—Não que eu saiba senhor.

Pitt não perguntou quem tinha encontrado o cadáver; preferia tirar suas próprias conclusões quando chegasse ao local. Percorreram em silêncio a noite primaveril, batendo um contra o outro enquanto a carruagem saltava e se escorava dobrando esquinas endireitava-se outra vez e seguia correndo.

Pararam ao final do Westminster Bridge e Pitt desceu ao resplendor do poste em questão. Havia um grupo de pessoas em pé, fascinadas e horrorizadas ao mesmo tempo. A ninguém era permitido abandonar o lugar, mas ninguém queria fazê-lo tampouco. Um horror indefinido os mantinha unidos, como se não quisessem abandonar aqueles que tinham compartilhado a notícia debaixo dessa luz, isolados entre as sombras circundantes. A enxuta figura do Micah Drummond era facilmente identificável e Pitt foi até ele. No chão, colocado de forma que parecesse decente, havia o corpo de um homem de idade entre média e avançada, vestido com sóbrios objetos de excelente qualidade, e a seu lado um chapéu de seda. Sobre seu pescoço, um tanto enviesada, um cachecol branco de seda tinha sido cortado com uma faca. Estava empapado de sangue, que também lhe manchava o peitilho da camisa, e no pescoço se via uma única, limpa e espantosa ferida de lado a lado.

Pitt se ajoelhou para examiná-lo melhor. O rosto aparecia sereno, como se não tivesse visto vir a morte. Era um rosto aristocrático e não desagradável, com seu nariz largo, uma boa fronte e a boca talvez um pouco séria, mas não cruel. O cabelo era cinza pérola, mas ainda abundante. Na lapela começavam a murchar umas flores frescas.

Pitt afastou a vista e olhou ao Drummond.

—Vyvyan Etheridge, deputado - disse este em voz baixa. Estava pálido e com olheiras.

Pitt sentiu uma pontada de piedade por seu chefe. Amanhã toda Londres, da criada até o primeiro-ministro, clamaria por uma rápida solução, assombrado de que membros da classe governante, homens considerados acima de toda suspeita, pudessem ser assassinados impunemente a umas centenas de metros do Parlamento.

Pitt ficou em pé.

—Roubaram-no? - perguntou, embora soubesse a resposta.

—Não respondeu Drummond, - meneando a cabeça. - Um relógio de ouro, muito caro, dez soberanos de ouro e uns dez xelins em moedas de prata e cobre um cantil de brandy. Visto com esta luz parece de deliciosa fatura, em prata de lei, não chapada, e com seu nome gravado. As abotoaduras de ouro e a bengala com ponteira de prata, tudo está aqui. Ah, e umas luvas francesas de couro.

—Nenhum papel?

—Como?

—Nenhum papel? - repetiu Pitt sem muitas esperanças, mas tinha que perguntar. - Possivelmente quem o fez deixou alguma nota, uma ameaça. Algum tipo de identificação.

—Não. Só estavam os do Etheridge: um par de cartas, cartões de visita, coisas assim.

—Quem o encontrou?

—O jovem que está ali. - Drummond indicou ligeiramente com a cabeça. – Acredito que andava um pouco bêbado nesse momento, mas agora já está sóbrio, pobre diabo. Chama-se Harry Rawlins.

—Obrigado, senhor.

Pitt cruzou a calçada em direção ao grupo de pessoas que aguardava sob a luz de frente. Tudo tinha um ar de sonho, como se Pitt estivesse revivendo a anterior ocasião. O céu noturno era o mesmo sobre sua cabeça, o ar cheirava a limpo sobre o rio, a água corria brilhante e acetinada mais à frente da mureta, refletindo as luzes do Embankment, o triplo globo das luzes, o perfil gótico negro do palácio do Westminster destacando-se no céu estrelado. Só o grupinho de pessoas era diferente; não estava Hetty Milner com sua tez branca e suas saias estampadas. Havia, em troca, um cocheiro livre de serviço, um garçom de taverna que voltava para casa, um empregado e sua amiga, assustados e incômodos, um moço da próxima estação do Waterloo, e um jovem com uma mecha loira caindo sobre a testa, o rosto pálido como o mármore e horrorizados olhos. Ia bem vestido, devia tratar-se de um jovem cavalheiro de visita noturna na cidade. Todo vestígio de bebedeira tinha desaparecido de sua pessoa, e apresentava-se totalmente sóbrio.

—Senhor Rawlins. - Não teve necessidade de perguntar qual deles era. - Sou o inspetor Pitt. Poderia me dizer exatamente o que aconteceu?

Rawlins engoliu em seco. A princípio não pôde articular palavra. Não era um vagabundo qualquer que tinha encontrado, mas um homem de sua própria condição, amarrado pateticamente a um poste, com o chapéu inclinado, o cachecol branco rodeado sob o queixo e a cabeça pendendo em uma paródia de embriaguez.

Pitt esperou.

Rawlins limpou a garganta.

—Saía de uma festa com uns amigos, e...

—Onde? - urgiu-lhe Pitt.

—Ora... no Whitehall Clube, é aqui ao lado. - Apontou para o outro extremo da ponte. - Junto ao Cannon Street.

—Onde mora, senhor?

—No Charles Street, ao sul do rio, saindo do Westminster Bridge Road. Ia de volta para casa. Não queria que meu pai me visse um pouco... alto. Pensei que um pouco de ar fresco...

—Então, voltava para casa pela ponte?

—Sim, com efeito. - balançou-se sobre os pés. - meu Deus! Jamais vi algo tão horrível! O pobre homem estava inclinado para trás contra a luz, um pouco de lado, como se estivesse bêbado. Não notei nada até que estive perto, e então vi de quem se tratava. Tinha-o visto em algumas ocasiões; era amigo de meu pai, para dizer de algum jeito. Então pensei: Vyvyan Etheridge nunca se embebeda dessa maneira! Assim me aproximei, pensando que devia estar doente e... - Engoliu saliva. Apesar do frio, seu rosto começava a suar - e então vi que estava morto. Naturalmente, lembrei-me do pobre Hamilton, de modo que voltei para o lado do Parlamento, acredito que me pus a correr, e então gritei algo. Bom, o caso é que veio o guarda e eu, bom, contei-lhe o que tinha visto.

—Havia alguém mais na ponte, ou vindo dessa direção quando você chegou?

—Então... - entortou os olhos. - Não me lembro bem. Sinto muito. Nesse momento eu estava um pouco... ébrio, até que vi o Etheridge e compreendi o que tinha passado.

—Tente recordar, por favor - insistiu Pitt, olhando aquele rosto de aparência agradável, sério e bastante plácido.

Rawlins ficou muito pálido. Não estava nem tão bêbado nem tão comovido para não compreender o que havia detrás da insistência do Pitt.

—Acredito que havia alguém no lado oposto da ponte. Quero dizer na outra calçada, caminhava para mim; era uma pessoa muito corpulenta. Acredito recordar um casaco bem longo, escuro, mas nada mais; como uma sombra que se movia. Sinto muito, não posso ajudá-lo.

Pitt esperou como se confiasse em que ao Rawlins lhe ocorresse alguma outra coisa. Logo aceitou que o jovem tinha passado por um estado de absoluta confusão e que não havia nada que fazer.

—E a hora, cavalheiro? - perguntou.

—O que?

—A hora. Tem o Big Ben atrás.

—Ah, sim. Bom, ouvi quando dava as onze, assim seriam onze e cinco. Mais ou menos.

—E está certo de que não viu ninguém mais. Não passou nenhuma carruagem?

O olhar do jovem registrou um breve brilho.

—Sim, sim, vi uma carruagem. Passou pela ponte e seguiu por Vitória Embankment. Recordo-o agora que você o menciona. Sinto muito, agente.

Pitt não se incomodou em lhe corrigir a respeito de seu cargo. O jovem não tinha querido insultá-lo; estava muito emocionado para reparar em sutilezas.

—Obrigado. Se recordar alguma coisa mais, estarei na delegacia de polícia do Bow Street. Agora é melhor que vá para casa, tome um chá quente e se meta na cama.

—Sim, farei isso. Boa noite... - O jovem se afastou rápida e precariamente, dando inclinações bruscas de um atoleiro de luz a outro pelo Westminster Bridge Road e perdendo-se atrás dos edifícios.

Pitt voltou onde estava Drummond, que o olhou nos olhos procurando um sinal de esperança, mas sem achar nenhum.

—É o único que temos - disse pesaroso. Tudo indica que é um crime político. Amanhã faremos com que os homens investiguem alguma eventual conspiração, mas já estamos fazendo todo o possível. Não há nenhuma prova que relacione alguém com o assassinato. Santo céu Pitt, espero que não seja um lunático.

—Eu também, senhor. Terá que dobrar os efetivos e confiar em pilhá-lo com as mãos na massa. - Disse-o com desespero, mas sabia que pouco mais podiam fazer. - Ainda restam outras possibilidades.

—Que alguém se equivocasse com a primeira vítima? - disse Drummond pensativo. - Que foram pelo Etheridge, mas mataram ao Hamilton por engano? Entre lampião e lampião há trechos muito escuros, e se estava de costas ao lampião e seu rosto em sombras quando foi agredido, seus traços são bastante parecidos e tem a mesma cor de cabelo, então uma pessoa assustada ou colérica... Não terminou a frase; a visão era bastante clara.

—Ou o segundo crime é uma imitação do primeiro. - Pitt duvidou inclusive ao dizê- lo. - Às vezes acontece, sobretudo quando há um crime se dá muita publicidade, como no caso do Hamilton. Ou poderia ser que só um dos dois crimes seja importante, e querem nos fazer acreditar que são anarquistas ou um louco solto, para mascarar um crime a sangue frio com outro.

—Qual era a vítima que procuravam Etheridge ou Hamilton? - Drummond se via cansado. Tinha adormecido pouco durante a última semana e agora o horror de tudo isso se apresentava ante ele com todas suas escuras implicações.

—Será melhor que vá contar à viúva. - Pitt estava tiritando. O ar parecia lhe haver impregnado até os ossos. - Você tem o endereço?

—Paris Road, 3. Junto ao Lambeth Palace Road.

—Irei andando.

—Há um cabriolé - disse Drummond.

—Não; prefiro caminhar - Necessitava de tempo para refletir e preparar-se.

Partiu em passo rápido, balançando os braços contra o frio, tratando de pensar em como ia contar à família.

Teve que bater cinco minutos seguidos à porta até que um lacaio acendeu a luz do vestíbulo e abriu cautelosamente a porta.

—Inspetor Thomas Pitt, da delegacia de polícia do Bow Street – disse – Lamento, mas tenho más notícias para a família do senhor Etheridge. Posso entrar?

—Sim, senhor. - O lacaio abriu mais a porta.

O vestíbulo era grande e com painéis de carvalho. Uma solitária luz mostrava imprecisos perfis de uns retratos e os suaves azuis de uma cena veneziana. Uma majestosa escada subia em espiral para as sombras de um patamar e a luz que brilhava na galeria.

—Trata-se de um acidente, senhor? - perguntou nervoso o lacaio, o rosto contraído pela espera. - Ficou doente o senhor Etheridge?

—Não; receio que morreu. Foi assassinado, da mesma maneira que sir Lockwood Hamilton.

—Oh, Meu Deus! - O lacaio ficou lívido, o que fez com que as sardas de seu nariz saltassem à vista.

Pitt temeu que fosse desmaiar. Estendeu uma mão, e esse gesto pareceu serenar ao homem. Não devia passar dos vinte anos.

—Há algum mordomo? - perguntou Pitt. O jovem não tinha por que suportar sozinho a carga de uma notícia assim.

—Sim, senhor.

—Será melhor que vá chamá-lo, e a uma das criadas, antes que o digamos à senhora Etheridge.

—A senhora Etheridge? Não existe nenhuma senhor. Ele, bom, ele é viúvo. Há muito tempo, antes que viesse a esta casa. Só está a senhorita Helen, que é sua filha; a senhora Carfax, que é ela, e o senhor Carfax.

—Então chame o mordomo, a uma criada e ao senhor e a senhora Carfax. Sinto muito, mas terei que falar com todos.

O lacaio o deixou na saleta, de um austero verde escuro, com as primeiras flores da primavera em um vaporoso vaso azul e quadros na parede, dos quais ao menos um pareceu a Pitt um Guardi autêntico. O finado Vyvyan Etheridge tinha bom gosto... E muito dinheiro com o que dar-se esse luxo.

Passou quase um quarto de hora antes que James e Helen Carfax entrassem pálidos e em camisa de dormir e roupão. A filha do Etheridge tinha perto de vinte anos e seu próprio rosto aristocrático de ampla fronte, mas sua boca era mais suave, e suas maçãs do rosto e a linha de sua garganta tinham uma delicadeza que, embora não lhe contribuísse com formosura, denotava uma imaginação e possivelmente uma sensibilidade não aparente em seu pai. Tinha cabelo espesso e de um tom indeterminável; e perturbada no meio do sono pela trágica notícia, Helen tinha ficado sem ânimos e sem cor.

James Carfax era muito mais alto que ela, magro e de talhe esbelto. Tinha uma majestosa cabeça de cabelo negro e olhos grandes. Teria sido bonito se seu rosto tivesse mostrado força em lugar de simples serenidade. Sua boca tinha uma qualidade mercurial; era uma boca tão disposta a sorrir como a fazer caretas. James permaneceu com o braço sobre os ombros de sua esposa e olhando Pitt na defensiva.

—Sinto muitíssimo, senhora Carfax - disse Pitt. Se puder lhe servir de consolo, saiba que seu pai morreu em uns segundos e que, a julgar pela placidez de seu rosto, certamente não passou medo, apenas uns instantes de dor.

—Obrigado - balbuciou ela.

—Possivelmente seria melhor sentar-se - sugeriu Pitt - e fazer com que sua criada a traga uma infusão...

—Não é necessário - lhe replicou James Carfax. - Agora que nos comunicou a notícia, minha esposa vai se retirar a seu quarto.

—Se preferirem que volte amanhã pela manhã - disse Pitt olhando Helen - então, de acordo. Entretanto, quanto antes possa nos dar toda a informação possível, mais probabilidades teremos de capturar ao responsável por isto.

—Tolices! - respondeu James na hora - Não podemos ajudá-lo em nada! É evidente que quem assassinou sir Lockwood Hamilton continua solto e matou também a meu sogro. Deveria estar procurando nas ruas. Com certeza é um louco ou um complô anarquista. Em qualquer caso, não vai achar nenhuma pista nesta casa!

Pitt estava acostumado e sabia que a primeira onda de aflição costumava exteriorizar-se em forma de ira. Muita gente combatia a dor tirando-o junto a alguma outra emoção intensa. O desejo de culpar a alguém costumava ser um dos recursos mais empregados.

—Não obstante, devo perguntar - insistiu Pitt. - É possível que a agressão tenha sido motivada por algo pessoal, possivelmente algum tipo de inimizade política.

—Contra meu sogro e sir Lockwood ao mesmo tempo? - As sobrancelhas de James se arquearam em sinal de incredulidade e sarcasmo.

—Eu tenho que investigar senhor. - Pitt sustentou seu olhar. - Não posso decidir qual vai ser a solução. Às vezes se cometem assassinatos por imitação, esperando que o primeiro assassino carregue a culpa dos dois.

James perdeu a pouca paciência que restava.

—Com certeza são anarquistas, e o que acontece é que não é bastante competente para apanhá-los!

Pitt o passou por cima e olhou a Helen, que tinha seguido seu conselho e estava sentada desconfortavelmente na borda do amplo sofá verde escuro. Estava curvada, abraçada a si mesmo como se tivesse frio, apesar da sala conservar o calor da lareira.

—Há outros membros da família a quem se tenha de informar? - perguntou-lhe Pitt.

Ela negou com a cabeça:

—Não; sou a única filha. Meu irmão morreu anos atrás, quando tinha doze anos. E minha mãe pouco depois. Tenho um tio no exército da Índia, mas eu mesma lhe escreverei, dentro de alguns dias.

Assim ela era a herdeira. Pitt o comprovaria, é claro, mas seria muito estranho que Etheridge deixasse a fortuna a alguém alheio à família.

—Seu pai era viúvo há muitos anos - disse.

—Sim.

—Alguma vez tinha pensado em casar-se de novo? - Era um modo bastante discreto de averiguar se Etheridge tinha algum vínculo amoroso. Esperava que Helen entendesse a pergunta.

Um tênue sorriso iluminou seu rosto e se esfumou imediatamente.

—Que eu saiba, não. Isso não tira que algumas damas pudessem pensar nisso.

—Imagino - concordou Pitt. Era de boa família, tinha êxito em sua carreira, uma impecável reputação, simpático e de aparência agradável, dispunha de abundantes recursos, e era bastante jovem para fundar outra família.

James ergueu rapidamente a cabeça e sua boca ficou meio aberta por um sentimento de alarme ou de perda que Pitt vislumbrou.

Os olhos da Helen procuraram o rosto de seu marido, empalidecendo primeiro e logo se ruborizando um pouco. Voltou-se para o Pitt e falou tão baixo que ele teve que inclinar-se para discernir as palavras.

—Não acredito que ele... tivesse nenhum desejo de voltar a casar-se. Estou certa de que eu teria sabido.

—Alguma das damas que mencionou tinha motivos para acalentar alguma esperança?

—Não.

Pitt olhou James, mas este evitou seus olhos.

—Você me dá o nome de seus advogados amanhã? - perguntou Pitt - E o dos sócios de negócios que pudesse ter.

—Se acha necessário... - Helen estava muito pálida. Tinha os punhos apertados e seu corpo continuava curvado à beira do assento.

—Os assuntos de Vyvyan estavam em perfeita ordem - atravessou James olhando Pitt com cenho. Não acredito que tenham nada que ver nisto. Opino que é uma intrusão injustificada de sua parte. A riqueza do senhor Etheridge procedia de ter herdado terras no Lincolnshire e o West Riding, além de ações em várias companhias da City. Suponho que a alguns descontentamentos ou revolucionários poderia ter assentado mal, mas o mesmo lhes teria assentado mal de qualquer outra pessoa. - Tinha os olhos brilhantes e a mandíbula um pouco adiantada. Estava desafiando Pitt, como se suspeitasse que este pudesse ter certa simpatia pelos que James considerava de sua própria classe.

—Estamos investigando, é claro. - Pitt sorriu também e sustentou seu olhar. Foi James quem afastou a vista. - Perguntarei deste modo por sua carreira política - continuou. - Talvez você poderia me fazer um resumo para começar.

Helen clareou a voz.

—Foi deputado pelo partido liberal durante vinte e um anos, das eleições de dezembro de 1868. Pelo distrito do Lincolnshire. Foi subsecretário do Tesouro em 1880 quando Gladstone era primeiro-ministro e chanceler do Exchequer, e da Índia Office quando lorde Randolph Churchill era secretário para a Índia, acredito que em 1885. E também foi secretário particular de sir William Harcourt quando este era ministro do Interior, mas só durante um ano, acredito que em 1883. Atualmente não tem, não tinha disse, retificando nenhum cargo em particular, mas sim muita influência.

—Obrigado. Sabe por acaso se tinha uma postura radical sobre a questão irlandesa? A autodeterminação, por exemplo.

Ela estremeceu e voltou a olhar James, mas este pareceu não dar-se conta, absorto em alguma coisa.

—Estava contra a autodeterminação - disse em voz baixa. E logo seus olhos se arregalaram e houve como um brilho, algo que ficava em marcha: ira e esperança, ou mera inteligência? . - Você acha que poderiam ter sido fenianos, uma conspiração irlandesa?

—É possível - Pitt duvidava; recordou que Hamilton estava muito a favor da autodeterminação. Mas também podia ser que Hamilton tivesse sido assassinado por engano. De noite, com a escassez de luz... os dois homens eram de estatura similar, de idades parecidas, e inclusive seus traços tinham algo em comum. Poderia ser.

—Então será melhor que comece com suas pesquisas - disse James, que parecia mais relaxado. Vamos retirar-nos. Minha esposa sofreu um grande choque. Estou certo de que poderá saber mais coisas dos colegas políticos de meu sogro. - deu a volta. Sua preocupação por Helen não o levou, entretanto a lhe oferecer o braço.

O rosto da Helen Carfax registrou uma fugaz expressão dolorida, que dominou e ocultou. Pitt hesitou um momento em lhe oferecer a mão. Desejava-o, como o teria feito com Charlotte, mas então recordou sua posição: era um policial, não um convidado. Ela o consideraria uma afronta, e, além disso, deixaria bem claro que seu marido não tinha tido o gesto. James esperava junto à porta.

—Esteve em casa toda a noite, senhor? - disse Pitt com um tom que não queria mostrar, mas aquele homem lhe provocava cólera.

James pareceu surpreso. Suas faces se coloriram um pouco, algo apenas perceptível à luz dos dois abajures, mas inequívoco para alguém que lhe estivesse observando como Pitt.

O homem hesitou. Estava decidindo se lhe mentia ou não?

—Não importa. - Pitt sorriu amargamente. – Perguntarei ao lacaio. Não preciso retê-los mais. Obrigado, senhora Carfax. Lamento profundamente ter tido que lhe dar tão dolorosa notícia.

—Não necessitamos de suas desculpas, saia de uma vez! - exclamou James. Depois, compreendendo que se estava delatando com sua desmedida grosseria, saiu da sala, deixando a porta aberta sem esperar Helen.

Ela ficou olhando Pitt, lutando consigo mesma.

Pitt esperou que falasse. Temia dissuadir disso se a coagisse.

—Eu estava em casa - disse, e na hora pareceu arrepender-se. - Quero dizer que me deitei cedo. Eu... não sei o que fez meu marido, mas meu pai tinha recebido uma carta que o inquietou. Acredito que poderiam lhe haver ameaçado de alguma forma.

—Sabe quem lhe enviou essa carta, senhora Carfax?

—Não. Era algo político, acredito. Terá que ver com a Irlanda?

—Obrigado. Pode ser que amanhã você tenha a amabilidade de ver se recorda algo mais. Investigaremos entre seus colegas. Sabe se seu pai guardou a carta?

Helen parecia a ponto de desmaiar.

—Não... Não sei.

—Não destrua nenhum documento, por favor. O melhor será que feche o estúdio de seu pai com chave.

—É claro. E agora, se me desculpa, preciso estar a sós.

Pitt ficou firme. Foi um estranho gesto, mas sentia compaixão por aquela mulher, não só porque tinha perdido a seu pai em circunstâncias violentas e públicas, mas sim por outra classe de dor que tinha detectado nela. Pensava que possivelmente lhe queria mais que seu pai a ela, e havia algo mais, outra ferida profunda sobre a qual só podia fazer conjeturas.

O lacaio acompanhou-o até a porta, e Pitt desceu os degraus para a rua silenciosa com a profunda sensação de que ficavam outras tragédias por descobrir.

 

No dia seguinte agentes da polícia começaram a procurar uma testemunha que pudesse ter visto algo a partir do qual deduzir um fato: uma hora mais exata, de que lado da ponte tinha vindo o agressor, para que lado tinha fugido se em carruagem ou a pé. Pouca coisa podiam fazer até a tarde, porque quem freqüentava aquelas ruas por volta da meia-noite agora estava em suas casas, lojas ou alojamentos, o que podia ser quase em qualquer parte, e inclusive os membros do Parlamento podiam estar em casa ou em seus escritórios e ministérios.

Na metade da semana tinham dado com quatro dos cocheiros que tinham cruzado a ponte entre as dez e meia e às onze da noite. Nenhum deles tinha visto nada fora do normal, ninguém que rondasse por ali salvo as prostitutas de rigor, e estas, como Hetty Milner, não faziam outra coisa que dedicar-se a sua profissão. Alguém tinha visto um homem que vendia pudins de ameixa, mas era um habitual e quando a polícia o interrogou o homem não soube dizer nada mais.

Outros deputados tinham falado com o Etheridge pouco antes de abandonar a câmara. Nenhum tinha visto que o abordasse alguém nem recordava que ele tivesse ido andando para a ponte. Todos tinham estado ocupados conversando, a noite era escura, e estavam cansados e com vontade de ir para casa.

O resultado de toda uma jornada de andar, interrogar e fazer deduções não foi outro que a confirmação de que tinha sido uma noite muito comum. Ninguém tinha reparado em nenhuma pessoa estranha, nada tinha parecido inquietar ao Etheridge nem ocasionar uma conduta distinta da habitual depois de uma sessão noturna da câmara. Não tinha havido rixas, mensagens repentinas, pressas ou ansiedade, nem amigos ou conhecidos além de seus colegas parlamentares.

Etheridge tinha sido encontrado morto por Harry Rawlins dez minutos depois de ter trocado suas últimas palavras com seus colegas à entrada da Câmara dos Comuns.

Pitt começou a examinar a vida pessoal do Etheridge. Quanto a seus assuntos financeiros, bastaram-lhe algumas horas para confirmar que tinha sido um homem muito rico e que não tinha outro herdeiro que sua filha, Helen Carfax. Os bens não estavam vinculados, e tanto a casa de Paris Road como suas magníficas propriedades no Lincolnshire e o West Riding careciam de hipoteca.

Pitt saiu do escritório dos advogados pouco satisfeito. Inclusive ao sol primaveril, sentiu frio. O advogado, um homem miúdo e pomposo com óculos sobre a ponte de seu estreito nariz, não tinha mencionado James Carfax, mas seus silêncios foram eloqüentes. Franziu os lábios olhando ao Pitt com tristeza em seus olhos azuis, mas sua discrição tinha sido imaculada; só lhe disse o que ao seu devido tempo ia ver a luz pública quando fora lido o testamento, embora Pitt não esperasse outra coisa. A gente da posição do Etheridge nunca contratava advogados que traíssem a confiança de seus clientes.

Pitt almoçou pão, cordeiro frio e cidra no Got & Compasses e depois alugou um cabriolé para cruzar Westminster Bridge e retornar a Paris Road. Era uma hora aceitável para uma visita, e embora Helen Carfax não estivesse em condições de recebê-lo em pessoa, isso não importaria; seu principal objetivo era investigar os papéis do Etheridge em busca da carta que ela tinha mencionado, ou alguma outra que pudesse sugerir a possibilidade de um inimigo, uma mulher que se houvesse sentido maltratada, um rival profissional ou de negócios, algo.

Ao desembarcar da carruagem achou a casa como era de se esperar, com todas as cortinas fechadas e uma coroa negra na porta. A criada que foi abrir levava uma braçadeira de luto negro no cabelo em lugar da boina branca que normalmente teria levado, e sem avental branco. A moça esteve a ponto de lhe dizer que fosse pela porta de serviço, mas uma mescla de incerteza, medo e agitação depois da notícia a fez optar pelo mais fácil e fazê-lo entrar.

—Não sei se a senhora Carfax lhe receberá - advertiu.

—E o senhor Carfax? - perguntou ele enquanto a seguia para a saleta.

—Saiu para atender uns assuntos. Acredito que voltará depois de comer.

—Poderia perguntar à senhora Carfax se posso examinar o estúdio do senhor Etheridge para ver se encontro a carta da qual me falou ontem à noite?

—Sim, senhor, perguntarei - disse indecisa, e deixou-o a sós.

Pitt inspecionou a saleta com mais vagar que na véspera. Nesse gabinete deviam receber os convidados que se apresentavam de improviso, e os residentes da casa deviam passar ali uma manhã tranqüila examinando a correspondência. A senhora da casa viria para organizar os assuntos do dia, dar instruções à governanta e a cozinheira e tratar assuntos domésticos ou da adega com o mordomo.

Em um canto havia uma escrivaninha estilo rainha Ana, e uma mesa com algumas fotografias emolduradas. Examinou-as atentamente; a maioria era obviamente do Etheridge de jovem, com uma mulher de rosto afável a seu lado. Pareciam rígidos ante o fotógrafo, mas inclusive naquela pose formal havia uma clara segurança em si mesmos, um porte que tinha mais que ver com a felicidade que com a disciplina. A julgar pela roupa, tinha sido tomada há uma vintena de anos. Havia também uma foto de um menino de uns treze anos, magro e com o olhar intenso de um inválido. Esse retrato estava emoldurado em negro.

A mulher de idade que recordava ao Pitt um cavalo bonachão e lúgubre era presumivelmente a mãe de Etheridge. Aí estava o ar de família; a mesma testa longa e a boca tenra, algo assim como a imagem de sua neta como teria sido em outra época.

À esquerda da mesa havia uma foto grande da própria Helen com o James Carfax. Ela tinha um aspecto assombrosamente inocente, o rosto muito juvenil e os olhos cheios de esperança e essa radiação própria dos apaixonados. James também sorria; seus olhos mostravam satisfação, possivelmente alivio. Parecia mais coibido pela câmara que ela.

A data estava no canto: 1883. Talvez pouco depois de casar-se.

Pitt foi à biblioteca. Uma seleção de livros dizia muito de uma pessoa, se os livros estivessem realmente lidos; mas se os tivessem só para impressionar, então revelavam algo das pessoas cuja opinião lhe interessava. Se só estavam para decorar a parede não revelavam nada, salvo a superficialidade de quem usa os livros para esse fim. Ali havia tomos de história e filosofia assim como alguns clássicos da literatura, todos lidos a julgar por seu aspecto.

Foi Helen em pessoa quem apareceu uns dez minutos depois, muito pálida e totalmente de negro, o que a fazia parecer mais jovem, mas também mais cansada, como se estivesse convalescente de uma longa enfermidade. Mas seu porte era admirável.

—Bom dia, inspetor Pitt - disse. - Acredito que veio procurar a carta que lhe mencionei ontem à noite, não é assim? Duvido que a encontre, não acredito que meu pai a conservasse. Mas, naturalmente, pode procurar.

—Obrigado, senhora Carfax. - Queria desculpar-se por incomodá-la, mas não lhe ocorria nada que não soasse corriqueiro nessas circunstâncias e se limitou a segui-la em silencio pelo saguão.

Uma criada com um montão de roupa limpa e sua ajudante, de uns quatorze anos, com um ferro na mão apareceram no corrimão do patamar. Se a governanta as pilhasse seriam repreendidas e lhes diria o que acontecia com as garotas que se intrometiam nos assuntos de seus superiores em lugar de fazer seu trabalho.

A biblioteca, um aposento igualmente espaçoso, tinha duas paredes com painéis de carvalho, uma com grandes janelas e cortinas fechadas como correspondia a uma casa de luto; as outras duas paredes tinham estantes de livros com porta de vidro. O fogo estava apagado, mas as cinzas tinham sido retiradas e a lareira estava limpa.

—Essa é a escrivaninha de meu pai disse Helen, indicando uma escrivaninha de carvalho fileteado de couro em marrom escuro e com nove gavetas, quatro a cada lado e uma no meio. Helen estendeu sua pequena mão, oferecendo-lhe uma chave esmeradamente trabalhada.

—Obrigado, senhora. - Pitt a pegou e, sentindo-se mais intruso que de costume, abriu a primeira gaveta e começou a examinar os papéis. - Imagino que tudo isto é do senhor Etheridge - disse. - Seu marido alguma vez usa este escritório?

—Não, meu marido tem seu escritório na City. Nunca traz trabalho para casa. Tem muitos amigos, mas pouca correspondência privada.

Pitt esteve examinando cartas sem responder, pequenos assuntos de limites de terras, estradas em mal estado, briga entre vizinhos, tudo muito corriqueiro comparado com uma morte violenta. Nenhuma delas estava escrita com inimizade; a simples irritação, mais que ira ou desespero, parecia ser a nota dominante.

—O senhor Carfax teve que ir esta manhã a City? - perguntou de repente, esperando surpreendê-la.

—Sim, bom... olhou-o. Não tenho certeza. Disse-me, mas me esqueci.

—O seu marido se interessa por política?

—Não. Dedica-se à edição. É um negócio familiar. Não vai todo dia ao trabalho, só quando se reúne a junta, Ele... - deixou a frase sem terminar, decidindo que não queria falar do assunto.

Pitt abriu a segunda gaveta, cheio de faturas diversas. Examinou-as atentamente, interessado ao ver que todas pareciam dirigidas ao Etheridge, nenhuma ao James Carfax. Ali havia tudo o que podia esperar-se relativo à organização da casa: compras de mantimentos, sabão, velas, limpador de metais, roupa de cama, carvão e madeira; peças de reposição de louça e vasilhames de cozinha, uniforme de serviço, librés para os lacaios; manutenção das carruagens e provisões para os cavalos, inclusive a reparação do arnês. Se James Carfax contribuía em algo, devia ser muito pouco. A única coisa que faltava era algum recibo de gastos para roupa feminina, sapatos, tecidos para vestido ou faturas da costureira, chapéus ou perfumes. Parecia que Helen tinha alguma renda ou dinheiro próprio; ou talvez fosse isso o que James se encarregava de comprar.

Continuou com a gaveta seguinte e depois outra mais. Não descobriu mais que faturas domésticas e alguns papéis relativos às propriedades rurais do Etheridge. Nada guardava a menor semelhança com uma ameaça.

—Imaginava que não a teria guardado - disse outra vez Helen quando Pitt concluiu sua busca. - Mas... alguma importância deve ter. - Olhou para as cortinas. - Tinha que dizer-lhe.

—É claro. - Pitt tinha reparado no que a tinha impulsionado a falar, embora estivesse menos seguro de sua causa do que sua educada resposta pôde fazer supor a ela. Um anarquista anônimo, saído do submundo em plena noite, já era bastante horrível, mas imensamente melhor que um impulso assassino nascido na casa, vivido ali, formado parte deles e de suas vidas, misturando-se em cada pausa da conversa, em cada silêncio da noite.

—Obrigado, senhora Carfax - disse. - Poderia ser que a carta estivesse em outro aposento? No hall, talvez, ou no salão. Não poderia seu pai havê-la subido ao andar de cima para evitar que alguém a encontrasse e se inquietasse? - Não achava possível, mas desejava estar um momento mais na casa e falar talvez com o pessoal de serviço. A criada da Helen podia lhe dizer quanto ele queria saber, mas naturalmente não o faria. A discrição era sua principal qualidade, mais ainda que sua destreza para pentear ou costurar, ou a arte de guarnecer ou engomar vestidos. Quem traísse a confiança dos amos já não voltava a achar trabalho. A alta sociedade era muito reduzida.

Pareceu que Helen tampouco queria descartar a possibilidade, por mais exígua que fosse.

—Sim, é possível que a guardasse lá em cima. Mostrarei-lhe o quarto de vestir de meu pai; é um lugar bastante íntimo para guardar algo assim. Eu não teria podido achar ali a carta e me inquietar.

Helen lhe conduziu ao vestíbulo para subir pela formosa escada e seguir até o dormitório principal e o quarto de vestir contiguo. As cortinas não estavam fechadas de todo, e Pitt pôde contemplar brevemente a vista das cavalariças e os formosos jardins do Lambeth Palace.

Ao virar-se viu Helen junto a uma penteadeira, na qual a gaveta superior tinha um olho de fechadura de latão. Sem dizer uma palavra, ela abriu a gaveta. Nela havia as jóias pessoais do Etheridge, dois relógios, vários pares de abotoaduras com pedras semipreciosas e três pares de ouro, com um brasão gravado, assim como dois anéis, um deles de mulher com uma bonita esmeralda.

—Era de minha mãe - disse Helen em voz baixa atrás de Pitt. - Guardava-o. Disse que me reservava isso para quando ele estivesse... morto. - Por um momento esteve a ponto de derrubar-se, e teve que voltar-se até recuperar a compostura.

Pitt não podia fazer nada; inclusive mostrar que o tinha notado teria sido impróprio. Eram desconhecidos, de sexos opostos, e o abismo social que havia entre eles era intransponível. Compartilhar a compaixão que podia sentir por ela teria sido imperdoável.

Ficou a revistar gavetas o mais rápido que pôde, vendo em seguida que não havia nada que sugerisse uma ameaça: uma velha carta de amor da esposa do Etheridge, uma nota de dez libras e outra de vinte, e algumas fotografias de sua família. Pitt fechou a gaveta com suavidade e ao levantar o olhar viu que Helen estava outra vez de frente a ele, dominada já a angústia.

—Não? - perguntou ela como se tivesse sabido a resposta.

—Não - confirmou ele. - Mas como diz, senhora, essa classe de cartas destrói-se.

—Sim... - pareceu que ia dizer algo mais, mas que não sabia como.

Pitt esperou. Não podia ajudá-la, embora estivesse tão consciente de seu nervosismo como do sol que penetrava na habitação. Ao final não pôde agüentar-se.

—Pode ser que esteja em seu escritório da Câmara dos Comuns disse. Ainda tenho que passar por lá.

—Sim, é claro.

—Mas se lhe ocorre algo mais que me dizer senhora Carfax, me mande uma mensagem à delegacia de polícia, e eu virei vê-la quando achar melhor.

—Obrigado, inspetor - respondeu ela, parecendo aliviada.

Enquanto voltavam para a escada, Pitt reparou em duas partes descoloridas no papel da parede, como se tivessem retirado um quadro e tivessem trocado outros dois para conservar o equilíbrio.

—Seu pai vendeu um de seus quadros recentemente - disse Pitt. - Sabe a quem?

Ela se sobressaltou, mas não recusou responder.

—O quadro era meu, senhor Pitt. Não acredito que tenha nada a ver nisto.

—Compreendo. Obrigado. - Então Helen tinha recebido recentemente certa quantidade de dinheiro. Teria que investigar para averiguar a quanto ascendia a soma.

A porta da rua se abriu e James Carfax apareceu no vão seguido de uma rajada de vento primaveril. O lacaio foi pegar o chapéu, o casaco e o guarda-chuva, e James cruzou o vestíbulo, detendo-se ao perceber movimento no alto da escada, franzindo o sobrecenho e, por último, ao reconhecer ao Pitt, esboçando uma expressão de ira.

—Que diabos faz você aqui? - inquiriu. Mas homem de Deus, minha esposa acaba de perder a seu pai! Saia à rua e procure o louco que fez isto. Não perca o tempo nos aborrecendo!

—James... - Helen começou a descer, apoiando sua impoluta mão no corrimão. Pitt se atrasou um pouco, pois mal podia ver a saia negra na escada iluminada pelo abajur de gás e temia poder pisar nela. - veio ver se podia achar uma carta ameaçadora que lhe disse que papai tinha recebido.

—Pois a buscaremos nós! - James não se aplacava tão facilmente. - Se dermos com ela o faremos saber. Agora, bom dia; o lacaio lhe indicará o caminho.

Pitt se voltou para a Helen.

—Com sua permissão, senhora, queria falar com os lacaios e os cocheiros.

—Para que? - Pelo visto, James continuava considerando-o um intruso.

—Como o senhor Etheridge foi agredido na rua, senhor, é possível que o seguissem durante um tempo para observá-lo - respondeu Pitt sem alterar-se. – É possível que algum deles possa recordar algo que possa nos ser de utilidade.

A cólera tingiu as faces do James; ele deveria ter deduzido essa contingência. Em muitos aspectos era mais jovem do que os trinta anos, mais ou menos, que Pitt lhe dava. Sua sofisticação mal encobria suas emoções. Era muito possível que o controle absoluto de seu sogro sobre a organização da casa lhe tivesse pesado mais do que ele mesmo podia reconhecer.

Helen pôs a mão ligeiramente sobre o braço de seu marido, como se temesse que ele pudesse rechaçá-la e queria poder fingir que não o tinha notado se isso ocorresse.

—Devemos ajudar James. Já sei que possivelmente não encontrem a esse louco ou a esse anarquista, seja o que for, mas...

—Isso não tem nem que dizer, Helen! - James olhou Pitt; eram quase da mesma estatura. - Interrogue à criadagem, se quiser, e depois nos deixe em paz. Permita que minha mulher guarde luto em privado e com decência. - Não tocou a mão dela, como Pitt teria feito em seu lugar.

Afastou-se de Helen e depois lhe passou um braço pelos ombros. Pitt viu que ela relaxava. Para o inspetor era um gesto mais frio e impessoal que o de pegar-lhe a mão. Mas a gente nunca sabe como são as relações de outros. Às vezes, o que parece afeto esconde vazios de solidão cuja dor os terceiros não podem imaginar; outros, que parecem distantes, seguindo seu próprio caminho sem consideração, em realidade se compreendem mutuamente, e os silêncios existem porque não há necessidade de falar, do mesmo modo que uma rixa é a estranha cobertura da calidez e a lealdade sem limites. O amor do James e Helen Carfax talvez não fosse como ele tinha imaginado não tão cheio de dor para ela nem tão formal para ele.

Desculpou-se e foi para a porta que dava aos aposentos da criadagem, apresentando-se ante o mordomo. Foi recebido com fria amabilidade.

—A senhora Carfax me disse que seu pai tinha recebido uma carta ameaçadora - acrescentou.

—Se soubéssemos algo já o haveríamos dito - começou o mordomo. - Mas se quer fazer perguntas, chamarei a todos para que respondam o melhor que possam.

—Obrigado.

Pitt tinha pensado em algumas perguntas, não porque confiasse obter respostas úteis, mas isso lhe daria a oportunidade de fazer uma idéia mais ampla da casa. O cozinheiro lhe ofereceu uma xícara de chá, que ele agradeceu enquanto calibrava pela conversa a composição da criadagem. Etheridge tinha tido dez criados em total, incluindo uma para o andar de cima, outra para o andar térreo, a moça de quatorze anos, uma criada para Helen, várias lavadeiras, uma criada para o salão, outra para a cozinha e várias mais para a copa. E é claro a governanta. Havia dois lacaios, ambos de um metro oitenta de estatura, um mordomo, um valete um engraxate e, fora, dois cavalariços e um cocheiro.

Viu que todos relaxavam enquanto lhes contava algumas histórias engraçadas sobre sua experiência como polícia e compartilhava o chá e uma parte do melhor bolo da cozinheira, que ela guardava para as criadas. Observou à criada com mais vagar que aos outros. Ela aceitou algumas brincadeiras inofensivas porque sua posição entre os criados era bastante alta, apesar de só dever ter uns vinte e cinco anos, mas tão logo Pitt começou a falar da Helen e James houve uma ligeira alteração em seu gesto, um retesar-se dos músculos de seus ombros, cautela em seus olhos. Ela sabia da dor de uma mulher que amava mais do que era amada, e não ia revelar o ao resto dos criados e menos ainda aquele policial intrometido.

Era quanto Pitt tinha querido, e quando terminou seu bolo, agradeceu-lhes e saiu em busca do cocheiro, que estava limpando arnês na cavalariça.

Pitt lhe perguntou se tinha notado que alguém se fixasse especialmente nos trajetos do Etheridge, embora não esperasse tirar nada. O que queria saber era aonde ia James Carfax e com que freqüência.

Quando partiu, no meio da tarde, pegou um cabriolé para cruzar a ponte até o St. James"s e o famoso clube Boodle"s, do qual segundo o cocheiro era membro James Carfax. O homem foi discreto, nomeando unicamente os lugares aonde o jovem cavalheiro era provável que fosse: seu clube, de vez em quando seu lugar de trabalho, teatros, bailes e jantares do círculo social, e no verão as corridas, as regatas e as festas ao ar livre as quais ia a boa sociedade, se tinham suficiente categoria e dinheiro para ser convidados.

Anoitecia quando Pitt achou ao porteiro do Boodle"s e com uma mescla de adulação e obrigação, surrupiou-lhe que James Carfax era, com efeito, um visitante assíduo, que tinha muitas amizades entre os sócios do clube e que freqüentemente ficavam até tarde jogando cartas, e que supunha que todos eles bebiam um pouco, como fazem os cavalheiros. Não, nem sempre ia em sua própria carruagem, às vezes a despedia e utilizava o veículo de algum de seus amigos. Se retornava a casa? Bom, não era sua coisa dizer aonde ia um jovem cavalheiro quando abandonava o clube. Costumava ganhar nas cartas? O porteiro não sabia, mas pagava pontualmente suas dívidas, do contrário não continuaria sendo membro do clube.

Pitt teve que contentar-se com isso, embora os pensamentos que o inquietavam começavam a abrir passagem em sua cabeça, e nada do que tinha sabido sossegava-o.

Ainda podia fazer outra coisa antes de voltar para sua casa. Pegou outra carruagem no St. James"s, descendo pelo Buckingham Palace Road e ao sul pelo Chelsea Embankment até a casa do Barclay Hamilton, próxima ao Albert Bridge. Era inútil perguntar a algum conhecido de Carfax o tipo de informação que lhe interessava. Mas Barclay Hamilton também tinha perdido recentemente seu pai do mesmo modo grotesco e violento com que Helen Carfax tinha perdido ao seu. Poderia pressioná-lo com perguntas mais diretas e talvez ele pudesse responder sem o temor à condenação social que outros podiam ter essa sensação de ter traído aqueles que implicitamente confiavam nele.

A recepção foi surpresa e cortês. Agora que tinha a oportunidade de ver o Barclay Hamilton a sós, e não depois do impacto de um fato lutuoso, Pitt julgou-o um homem de reservado encanto. A brutalidade de suas maneiras em seu primeiro encontro se evaporara, e quando convidou Pitt para entrar fez isso com toda a curiosidade que a cortesia permitia.

A sala de estar não era grande, mas estava bem mobiliada, mais para comodidade do proprietário que para impressionar a outros. As poltronas eram velhas, o tapete turco vermelho e azul estava gasto no centro, mas conservava em suas bordas a viveza da cor. Os quadros, em sua maioria aquarelas, não eram caros, talvez inclusive de aficionado, mas todos sugeriam terem sido escolhidos mais por sua delicada estética que por seu preço. Os livros da estante com vidros estavam ordenados por temas e não para agradar à vista.

—Aqui não deixo entrar minha governanta mais que para tirar o pó - disse Hamilton com um suave sorriso. - Ela protesta, mas obedece. Sente-se muito desiludida porque não a deixo adornar as cadeiras com toalhinhas nem pôr fotos de família em cima da mesa. Só tolero uma de minha mãe, nada mais. Eu não gosto de me sentir observado por uma galeria de personagens.

Pitt sorriu. Aquela era uma sala masculina, e lhe recordava seus dias de solteiro, embora seu alojamento tivesse consistido em um só aposento e nada tinha que ver com a elegância de Chelsea. Seu toque masculino o recordava, a estampagem de um só dono, de um só gosto, um homem livre de ir e vir quando quisesse, de deixar as coisas onde gostava sem ter que pensar em ninguém mais.

Aquela tinha sido uma boa época de sua vida, tempo para amadurecer, para fazer-se homem, mas agora a rememorava com uma tolerância carente de nostalgia. Nenhuma casa seria um lar para ele se não houvesse Charlotte, suas fotos favoritas com que se ele aborrecia penduradas na parede, sua costura esparramada por toda parte, seus livros deixados sobre a mesa, suas sapatilhas sempre no lugar justo para que ele tropeçasse, sua voz da cozinha, as luzes acesas, a calidez, o contato físico, familiar mas ainda excitante, necessitado ainda com urgência, e, acima de tudo, o compartilhar a vida com ela, ouvi-la explicar os acontecimentos do dia, o gracioso ou o irritante, e a infatigável curiosidade e preocupação pelo trabalho do Pitt e suas insônias profissionais.

Hamilton estava olhando-o com olhos estupefatos. Parecia risonho, mas havia uma sombra sobre a ponte do nariz, uma fragilidade, como se tivesse visto morrer seus sonhos e tido que voltar a começar sobre uma perda que ainda lhe doía.

—O que posso lhe dizer que não saiba inspetor?

—inteirou-se da morte de Vyvyan Etheridge?

—É claro. Acredito que não há ninguém em toda a cidade que não saiba.

—Conhece pessoalmente ou por referências seu genro James Carfax?

—Um pouco. Por que o pergunta? Não pensará que está vinculado a algum grupo anarquista? Outra vez aquele fugaz sorriso, a consciência do absurdo.

—Você não acha provável?

—Não.

—Por que não? - Pitt tratou de parecer cético, como se fosse nessa linha que estava investigando.

—Francamente, não tem o entusiasmo nem a dedicação para ser algo tão radical.

—Radical? - Pitt sentiu curiosidade. Não tinha esperado uma resposta assim: não uma impossibilidade ética, mas uma superficialidade emocional. Isso dizia mais de Hamilton que do James Carfax. - Você não acredita que o teria achado repugnante, pouco ético, desleal para com sua própria classe?

Hamilton se ruborizou ligeiramente, mas seus cândidos olhos não deixaram de olhar Pitt.

—Estranharia que ele considerasse a pergunta desta perspectiva. E mais, duvido que tenha pensado alguma vez na política salvo para supor que o sistema continuaria imutável e lhe garantirá o tipo de vida que deseja viver.

—Por exemplo?

Hamilton encolheu os ombros:

—Que eu saiba almoçar com os amigos, jogar um pouco, ir às corridas e a festas elegantes, ao teatro, aos bailes, alguma noite discreta de vez em quando com uma puta e possivelmente uma briga a murros se lhe sair ao passo.

— Você não tem uma boa opinião dele.

Barclay fez uma careta.

—Bem, suponho que não é pior que muitos outros. Mas não acredito que seja um anarquista disfarçado. Asseguro inspetor, não existe disfarce tão perfeito!

—Costuma ganhar quando joga?

—Em conjunto não, pelo que pude ouvir.

—Mas paga as dívidas. Goza de meios consideráveis?

—Duvido. Sua família não é rica, embora sua mãe tenha herdado algum título honorífico. Carfax se casou bem, como você já sabe. Helen Etheridge é uma mulher com muitas possibilidades, suponho que isso é já uma realidade. Imagino que é ela quem lhe paga as dívidas. Tampouco perde muito, pelo que sei.

—É você sócio do Boodle"s?

—Eu? Não me interessam essas coisas. Mas tenho alguns conhecidos que o são. A alta sociedade é muito pequena, inspetor. E meu pai vivia a menos de dois quilômetros de Paris Road.

—Mas faz muitos anos que não vive em casa de seu pai.

O humor e a tranqüilidade desapareceram do rosto do Hamilton, como se alguém tivesse aberto uma porta dando passo a uma rajada de frio invernal.

—Não. Tinha um nó na garganta. Meu pai se casou outra vez depois da morte de minha mãe. Eu já era adulto; era o mais normal do mundo que buscasse meu próprio lugar onde viver. Mas isso não tem nada que ver com o James Carfax. Referi-me a isso para que visse que na alta sociedade não se pode evitar saber coisas de outros sem se mover em círculos similares.

Pitt lamentou lhe haver feito sofrer involuntariamente. Simpatizava com Barclay, e não tinha sido sua intenção pinçar em uma velha ferida que dificilmente podia interessar à investigação.

—É claro - disse, fazendo tácitas suas desculpas; quanto menos se tocasse a ferida, mais logo se reabsorveria. - Mencionou outras mulheres como uma hipótese ou possui você algum dado concreto?

Hamilton suspirou e relaxou de novo.

—Não, inspetor. Temo que minhas conjeturas estão apoiadas unicamente na reputação do Carfax; é possível que tenha sido injusto com ele. Não simpatizo com ele; deveria você considerar quanto lhe disse desde essa perspectiva.

—Conheceu você à esposa do Carfax antes do casamento?

—Certamente.

—Gostava de Helen Etheridge? - perguntou Pitt com candura suficiente para que a frase soasse desprovida de implicações.

—Sim - disse Hamilton com a mesma franqueza. - Mas não romanticamente. Verá você, sempre me pareceu que era muito jovem. Havia nela algo infantil; era como uma menina obstinada a seus sonhos. - Sorriu tristemente. - Como se fosse a primeira vez que recolhia o cabelo e ficava de lado!

Pitt se imaginou à senhora Carfax, sua vulnerabilidade e a evidente adoração por seu marido, e compartilhou em silêncio sua opinião.

—Por desgraça, todos temos que crescer acrescentou Hamilton com um leve sorriso. As mulheres possivelmente menos, em conjunto. - Mordeu os lábios como se quisesse engolir essas palavras. - Ao menos, algumas mulheres. Receio que não posso ajudá-lo, inspetor. Não sinto simpatia pelo James Carfax, mas poderia jurar que não tem relação alguma com anarquistas ou outros conspiradores políticos, e tampouco é algum louco. Carfax é exatamente o que aparenta, um jovem bastante egoísta que se aborrece, bebe um pouco mais do devido e gosta de presumir, mas não tem meios econômicos para estar à altura de seus amigos sem se valer do dinheiro de sua mulher, o qual o aborrece, mas não até o extremo de lhe impedir de fazê-lo.

—E se sua esposa deixasse de lhe dar dinheiro? - perguntou Pitt.

—Não o fará. Ao menos - se corrigiu - eu não acredito que o faça, a menos que a danificasse com uma conduta temerária. Mas não o vejo capaz dessa tolice.

—Ah, suponho que não. Obrigado, senhor Hamilton. Agradeço sua franqueza; certamente me economizou horas de perguntas delicadas. Ficou em pé. Era tarde e fora começava a fazer frio, tinha vontade de voltar para casa. Logo teria passado outro dia sem que tivesse conseguido algo.

Barclay Hamilton se levantou também. Era mais alto do que Pitt achava, e mais fraco. Parecia envergonhado.

—Desculpe-me, inspetor. Falei com mais sinceridade do que tinha direito. Estou cansado. Sei que fui muito pouco discreto e provavelmente muito pouco caridoso com o Carfax. Não deveria ter falado assim.

Pitt sorriu.

—Você me advertiu que não simpatizava com ele.

Hamilton relaxou, e a luz que iluminou seu rosto evocou ao jovem que devia ter sido dezoito anos atrás, quando Amethyst Royce se casou com seu pai.

—Espero vê-lo de novo, inspetor, em melhores circunstâncias - disse Hamilton, e em vez de chamar o criado lhe estendeu a mão e a estreitou como se fossem amigos, não um cavalheiro e um inspetor de polícia.

Pitt saiu da casa e caminhou devagar pelo Embankment até achar uma carruagem para voltar para casa. O ar era gelado e uma bruma subia do rio. Em algum ponto água abaixo chiavam as sereias dos navios, amortecidas pela distância e umidade do ambiente.

Podia James Carfax ter assassinado o seu sogro para dispor rapidamente da herança de sua esposa? Ou, pior e mais doloroso que o anterior, podia Helen, angustiada por conservar o seu marido, ter assassinado o seu próprio pai? Por seu dinheiro, dinheiro que necessitava para dar ao James as coisas materiais que ele considerava tão importantes, Para tê-lo dependente dela, e assim pretender que isso era amor? Helen não podia tê-lo feito sozinha, mas sim ter pago a alguém para que o fizesse. O mesmo era válido para o assassinato de sir Lockwood: um capanga podia tê-lo tomado erroneamente pelo Etheridge, algo que uma pessoa que o tivesse conhecido bem não teria feito em uma ponte iluminada como o do Westminster.

Amanhã devia averiguar qual era o quadro vendido, e por qual valor. Não seria tão simples descobrir o que tinha sido do dinheiro correspondente, mas isso também era possível.

Pitt retornou para casa muito cansado, com o rosto de Helen em sua memória, sua dolorosa ternura e o temor de seus olhos.

Na manhã seguinte Pitt se levantou cedo para ir ver Micah Drummond, e Charlotte recebeu a primeira carta de Emily, com carimbo de Paris. Contemplou-a durante uns minutos sem abri-la. Em parte estava ansiosa por saber que Emily se achava bem e feliz, e em parte a roia a inveja pela aventura, a diversão, a excitação e o início do amor.

Depois de apoiá-la no bule e contemplá-la enquanto comia duas torradas com geléia, uma conserva que preparava extraordinariamente bem seu melhor lucro culinário, finalmente sucumbiu.

Estava datada de Paris, abril de 1888, e dizia assim:

 

Queridíssima Charlotte:

Ocorreram tantas coisas que quase não sei por onde começar. A travessia de navio foi espantosa! Fazia um vento gelado e havia mar forte! Mas assim que tocamos terra tudo mudou. A viagem em carruagem do Calais a Paris fez pensar em todas as aventuras que tinha lido nos livros, os mosqueteiros e Luis XVI (era o XVI, verdade?). Foi uma maravilhosa idéia por parte do Jack, e com todos os ingredientes que eu tinha sonhado: granjas onde vendiam queijo, árvores formosas, pequenas aldeias onde as camponesas discutiam tudo muito encantador e romântico. Lembrei- me dos aristocratas que fugiam durante a Revolução; com certeza passaram por ali para embarcar para a Inglaterra!

Jack tinha tudo disposto em Paris. O hotel é pequeno e muito típico, e tem vistas a uma praça pavimentada onde as folhas das árvores começam a florescer e um homem toca o acordeão de tarde sob as janelas. Sentamos a uma mesa ao ar livre com toalha com quadrados e bebemos vinho. Faz tempo fresco, reconheço-o, mas que mais fazer. Jack me comprou um xale de seda e me sinto muito francesa e elegante com ele sobre os ombros.

Andamos muitíssimo e me doem os pés, mas o tempo foi estupendo, luminoso e com um pouco de brisa, não sabe como o desfrutei. Paris é tão bonita! Lá aonde vou sinto que alguém famoso passou por estas mesmas ruas, um grande artista de original e apaixonada visão, ou um revolucionário exaltado ou um romântico como Sydney Canon, que redimiu de todas graças ao amor.

Também fomos ao teatro, é claro. Não entendi grande coisa, mas pude captar a atmosfera, que era o mais importante. E a música, Charlotte! Teria-me posto a cantar pela rua, só que então me teriam detido por alterar a ordem.

E nos divertimos muito porque Jack adora tanto como eu. É um companheiro excelente, além de terno e considerado em todos os sentidos.

E notei que as mulheres olham-no com olhos brilhantes, e não pouca inveja!

Em Paris os vestidos são maravilhosos, mas temo que passem de moda em seguida. Já imagino gastando uma dinheirama na costureira, tendo que fazer retoques constantemente para estar ao mesmo tempo da senhora do lado.

Partimos rumo ao sul amanhã pela manhã e quase não me atrevo a pensar que possa ser tão estupendo como isto. Será Veneza tão formosa como a sonhei? Tomara soubesse mais sobre sua história. Terei que buscar um livro e aprender algumas coisas. Minha cabeça está cheia de coisas românticas e, atreveria-me a dizer, de emoções bastante irreais.

Espero que você e os meninos estejam bem, e que Thomas não tenha muito trabalho. Está investigando algum caso interessante? Estou impaciente por receber suas notícias assim que retorne, mas, por favor, cuide-se e não se meta em nada perigoso! Seja curiosa, mas só mentalmente. Não estou com você fisicamente, mas tenha presente que estou no pensamento. Logo voltaremos a nos ver.

Com todo meu afeto, EMILY.

 

Charlotte guardou a carta com um sorriso e lágrimas nos olhos. Desejava à Emily toda a felicidade do mundo. Era fácil sentir um alvoroço interior ante a idéia de Emily cantando e dançando pelas ruas de Paris, sobre tudo depois da tragédia e o horror da morte do George.

Mas também lhe roia o medo de ter ficado excluída. Estava sentada na cozinha, a sós, em uma casa pequena de um bairro muito comum de Londres, onde com toda probabilidade ia estar durante o resto de sua vida. Pitt sempre trabalharia muito, por menos dinheiro ao mês do que Emily estava gastando agora diariamente.

Mas não era isso: o dinheiro não dava a felicidade, mas a inatividade tampouco! A causa da melancolia que sentia era a idéia de passear entre risadas e camaradagem por lugares formosos com tempo que gastar, e o estar apaixonada. Sim, era a magia do amor, a ternura que não era um hábito a não ser algo intenso e emocionante, cheio de descobrimentos, o não dar nada por assentado. Era ser o centro do mundo de outra pessoa, e esta do de outra.

O que era uma estupidez. Ela não teria trocado ao Pitt pelo Jack Radley nem por ninguém. E tampouco teria trocado sua vida pela de Emily... salvo possivelmente nesse momento...

Ouviu os passos de Gracie no corredor, que voltava da porta principal depois de ter tido umas palavras com o peixeiro. Gracie não tinha tempo para lojistas presunçosos.

—Sei - disse Charlotte antes que ela pudesse começar com seus impropérios. - É um impertinente!

Gracie viu que não ia tirar nada e imediatamente mudou de política. Tinha dezesseis anos completos, e muita experiência.

—No que trabalha agora o senhor Pitt, senhora?

—Em um caso político.

—Ah. Que lástima! Bom, dá na mesma, talvez da próxima vez tenha mais sorte! - E se dispôs a limpar a lareira e acender o fogo.

Pitt soube por Micah Drummond que também este tinha passado pela Câmara dos Comuns e falado com vários colegas do Etheridge.

—Não vejo nada que possa nos ajudar - disse, meneando a cabeça. Não mencionou pressão alguma por parte do chefe de polícia nem do Ministério do Interior, mas não era preciso que o dissesse. Ainda eram os primeiros dias, mas o medo estava ali, a ansiedade de satisfazer as exigências do público, de responder as perguntas, acalmar os ânimos e dar a impressão de que tudo estava sob controle. Alguns estariam temendo ser acusado de incompetência, inclusive perder o cargo, e procurariam alguém a quem jogar as culpas.

—Inimigos políticos? - perguntou Pitt.

—Rivais. - Drummond encolheu os ombros - Mas não era bastante ambicioso para ter inimigos nem bastante conflitivo para ter despertado paixões violentas. E tinha suficientes ganhos para não ser ambicioso nem ver-se tentado pela corrupção.

—E a questão irlandesa?

—Contrário à autodeterminação, mas também o eram outros trezentos e quarenta a três anos, e mais ainda no oitenta e seis. Além disso, Hamilton estava a favor. E em outros assuntos Etheridge parece ter sido moderado, humano sem chegar a radical. A favor da reforma penal, da lei de pobres... mas a mudança social deveria ser paulatina para não desestabilizar nem a sociedade nem a indústria. Tudo muito normal.

Pitt suspirou.

—Quanto mais sei do caso, mais o considero algo pessoal e que o pobre Hamilton só foi vítima de um engano lamentável.

—Mas quem? - Drummond lhe olhou com cenho. - Seu genro, por dinheiro? Parece- me um pouco histérico. Teria conseguido esse dinheiro no seu devido tempo. Não havia planos para deserdá-lo, não é? A mulher não ia abandoná-lo. Teria sido um suicídio social!

—Não. - Pitt recordou de repente o rosto preocupado e vulnerável da Helen Carfax. - Justamente o contrário, ela está muito apaixonada por seu marido. E certamente lhe dá todo o dinheiro que lhe pede; parece que para ele isso é o mais importante dela.

—Oh. - Drummond se apoiou no espaldar. Pois será melhor que continue investigando por aí. A menos que Hamilton fosse a vítima procurada e que acrescentassem ao Etheridge a fim de ocultar o motivo... Mas estou de acordo em que é um pouco rebuscado, muito risco. E não parece que na família do Hamilton nem entre seus conhecidos haja alguém com um motivo que possamos descobrir. O que me diz desse quadro da Helen Carfax? Qual era o preço?

—Ainda não sei. Pensava averiguá-lo hoje. Pode estar entre umas libras e uma pequena fortuna.

—Porei o Burrage nisso. Você volte para casa dos Carfax. Não sei que mais pode fazer, mas continue tentando-o. Veja se James Carfax está envolvido com alguma mulher, não só que a utilize. Veja se suas dívidas são importantes ou urgentes. Talvez não pudesse esperar mais.

—Sim, senhor. Voltarei ao meio-dia para ver se Burrage tem algo do quadro.

Drummond abriu a boca para protestar, mas logo mudou de opinião e se limitou a ver Pitt partir.

Mas quando Pitt retornou por volta das duas e meia, muito depois do almoço, as notícias que recebeu não tinham nada que ver com o quadro. Havia uma nota da Helen Carfax dizendo que tinha recordado exatamente no que consistia a ameaça que seu pai tinha recebido, e que se Pitt desejasse passar por Paris Road ela o contaria.

Foi uma surpresa. Pitt tinha chegado a pensar que tudo era inventado, pelo desejo de Helen de convencer a ele e a si mesmo de que o ódio que rodeava ao assassinato tinha sua origem longe da casa ou da família, era algo exterior, próprio das ruas escuras por onde ela nunca se aventurava: os bairros pobres e os moles, os botequins e ruelas dos descontentes. Ele não esperava que voltasse a mencioná-lo, salvo como uma vaga possibilidade.

De modo que deixou a delegacia de polícia e tomou uma carruagem alugada para ir a Paris Road.

Recebeu-o com o olhar abatido, suas rígidas mãos abrindo-se e fechando-se aos flancos, e se demorou um instante com a mão no atirador quando lhe conduziu ao gabinete. Mas logo ficou a falar de pessoas que podiam ser os autores do assassinato de seu pai.

—Atreveria-me a dizer que você sabe algo, inspetor Pitt, visto que é policial começou sem olhar a ele a, mas ao tapete. Faz três anos uma mulher chamada Helen Taylor tentou apresentar-se candidata ao Parlamento. Você note uma mulher! - Sua voz soava um pouco estridente, como se sob a camada de quietude aparecesse a histeria. - Naturalmente isso provocou não poucos sentimentos encontrados. Era uma pessoa muito estranha, chamá-la excêntrica seria pouco. Usava calças! O doutor Pankhurst, possivelmente tenha ouvido falar dele, decidiu acompanhá-la em público. Foi muito indecoroso e, logicamente, a senhora Pankhurst se opôs a isso; acredito que o doutor deixou de fazê-lo. A senhora Pankhurst é das que quer que as mulheres tenham acesso ao voto.

—Sim, senhora, sei algo de tudo isso. Em 1867 John Stuart Mill escreveu um folheto muito convincente sobre o direito da mulher ao voto. E em 1792 uma tal Mary Wollstonecraft escreveu sobre a igualdade política e civil das mulheres.

—Sim, suponho que sim. É algo que não me interessa muito. Mas algumas mulheres que advogam por essa causa o fazem de um modo muito violento. A conduta da senhorita Taylor é sem dúvida um exemplo de seu... de sua desconsideração para as normas da sociedade.

Pitt procurou compor uma expressão de interesse.

—Com efeito, caberia considerá-lo uma imprudência - apontou.

—Imprudência? - Helen dilatou os olhos e por um momento suas mãos, deixaram de mover-se.

—Não conseguiu nenhum dos resultados que procurava.

—Acaso tinha alguma possibilidade? Nenhuma pessoa certa receou acreditar que ia ter êxito.

—Quem pensa você que ameaçou a seu pai, senhora Carfax?

—Uma mulher... uma das sufragistas. Ele se opunha a isso, sabe você.

—Não sabia. Mas com certeza sua opinião é a da maioria do Parlamento, e do país. Uma maioria considerável.

—É claro, inspetor. - Estava tão nervosa que se se pôs a tremer. Empalideceu, e sua voz foi só um sussurro: - Senhor Pitt, eu só digo que uma pessoa capaz de... fazer o que fizeram a meu pai e a sir Lockwood Hamilton não pode considerar-se normal.

—Não, senhora. Lamento tê-la importunado. - desculpava-se por ser testemunha de sua angústia, não por lhe pedir que se explicasse, mas não importava se ela não o entendia. A única coisa que importava era que ela se desse conta de que se compadecia.

—Aprecio seu... tato, senhor Pitt. Não devo lhe entreter mais. Obrigado por vir tão depressa.

Pitt partiu imerso em seus pensamentos. Era possível que uma mulher ansiosa de justiça eleitoral pudesse cortar o pescoço a dois deputados só porque estavam entre a grande maioria que pensava que sua causa era inoportuna ou inclusive ridícula? Não parecia ter sentido. Mas como Helen Carfax tinha pontuado, um ato como aquele não era próprio de uma pessoa cuja mente funcionasse como as demais, fosse qual fosse a causa.

Pensou outra vez no James Carfax, cujos motivos eram mais fáceis de compreender, e de acreditar. Queria saber o que havia atrás do jovem mimado e superficial que segundo Barclay Hamilton era, ou do nervoso marido que ele mesmo tinha podido ver.

Pouco depois das quatro da tarde, Pitt entregou seu cartão à criada da residência de lady Mary Carfax no Kensington e solicitou meia hora de seu tempo, se tivesse a amabilidade. Era sobre a recente morte violenta do Vyvyan Etheridge, parlamentar.

Lady Mary lhe fez chegar a mensagem de que aguardasse na saleta, e que iria vê-lo quando fosse oportuno.

Isso ocorreu três quartos de hora depois, uma demora pensada para que Pitt não se desse ares ou imaginasse que ela não tinha nada melhor que fazer. Logo se rendeu a sua curiosidade e fez que a criada o fizesse entrar no gabinete, onde o esperava sentada em uma cadeira. Três cadeiras mais e uma meridiana enchiam quase a estadia. Havia um par de quadros agradáveis nas paredes e muitas fotografias e retratos de grupo. Ao menos uma dúzia delas mostrava o desenvolvimento do James Carfax desde menino até o jovem pensativo e bastante coibido passando o braço pelos ombros de sua mãe.

Lady Mary Carfax não era uma mulher alta, mas se sentava com imperiosa rigidez, e é claro não se levantou ao entrar Pitt. Levava um diadema de cabelo cinza, com cachos naturais. Devia ter sido muito bonita em sua juventude; sua pele ainda era bonita e seu nariz, reto e delicado, mas em seus olhos azuis cinzento havia frieza e sua garganta mostrava um perfil flácido. Em seus anos de moça devia ter uma boca atraente; agora era escura, o que delatava um frio interior, uma implacabilidade que a juízo de Pitt dominava todo seu rosto.

Não se incomodou em voltar o pescoço, e muito a contra gosto deu permissão para sentar-se.

—Obrigado, lady Mary - disse Pitt, sentando-se em frente dela.

—Bem, no que posso ajudá-lo? Sei bastante de política, mas duvido que possa lhe dizer algo sobre anarquistas e outra gente descontente.

—Sua nora, a senhora Carfax, acredita que seu pai foi ameaçado por uma mulher que advogava pelo direito ao voto feminino para escolher deputados ao Parlamento.

As pálpebras ligeiramente caídas de lady Mary se elevaram.

—Deus santo! Como é lógico, já sabia que eram umas descaradas, desprovidas da sensibilidade e refinamentos próprios de uma mulher. Mas reconheço que até agora não me tinha ocorrido que pudessem chegar a tal extremo de falta de prudência. Desde o começo adverti ao senhor Etheridge que não se compadecesse delas. Não é normal que as mulheres queiram dominar os assuntos públicos. Nós não temos a necessária brutalidade de caráter; nosso lugar não é ali.

Pitt estava surpreso.

—Significa isso que o senhor Etheridge chegou em algum momento a estar a favor do sufrágio universal?

—Não acredito que tivesse chegado a tanto! - disse com repugnância. - Mas sim considerava a possibilidade de que as mulheres de certa maturidade e conta corrente (não qualquer mulher) pudessem escolher vereadores e, em alguns casos, ter o direito à custódia de seus filhos em caso de separação.

—Diz você mulheres com certa conta corrente. E as que não têm recursos?

—Suponho que está brincando, senhor... como disse que se chama?

—Pitt, senhora. Pois não, só queria saber que idéias tinha o senhor Etheridge.

—Idéias equivocadas, senhor Pitt. As mulheres carecem de educação, não compreendem os assuntos políticos ou de governo, não conhecem leis e nem de finanças, além das puramente domésticas. Imagina que classe de gente votariam para o Parlamento se pudessem fazê-lo? Acabaríamos governados por um novelista romântico ou um ator! Que país nos ia tomar a sério? Isto seria o princípio do fim do Império, e todo cristão se ressentiria depois! Quem pode desejar uma coisa assim?

—Acredita que as mulheres com direito a voto fariam isso, lady Mary?

—Toda sociedade está apoiada em uma ordem. Rompê-la é pôr em perigo a sociedade.

—Mas não estava o senhor Etheridge de acordo?

Lady Mary apertou os lábios ao recordá-lo, mas só sentia irritação e impaciência por ter tido que tirar da cabeça de seu genro aquelas tolices.

—Primeiro não, mas logo viu que se ultrapassara em sua simpatia natural por certa mulher cuja conduta mais que irresponsável tinha suposto a ela um percalço familiar. A mulher recorreu a ele em sua condição de parlamentar, e durante um tempo as opiniões do senhor Etheridge ficaram afetadas pelos radicais e quase histéricos pontos de vista dela. Ele, isso sim, dava-se conta de que toda a idéia era absurda, no fim de contas tampouco podia dizer-se que fosse o desejo de muitas pessoas! Ninguém tinha sustentado jamais uma idéia tão descabelada além de um punhado de exaltadas indesejáveis.

—Foi essa a conclusão do senhor Etheridge?

—Naturalmente! - Um fugaz sorriso apareceu em seus lábios. - Não era nenhum néscio, só suscetível a sentir compaixão por gente que não a merece. E Florence Ivory não a merecia, certamente. Seu influxo durou pouco; ele se deu conta em seguida de que era uma mulher indesejável em todos os aspectos.

—Florence Ivory?

—Uma criatura estridente e nada feminina. Se procurar você um assassino político, senhor Pitt, eu investigaria a ela e a seus comparsas. Acredito que ainda vive na mesma área do outro lado do rio, perto do Westminster Bridge. Ou isso me contou o senhor Etheridge.

—Ah. Obrigado, lady Mary.

—Só cumpro com meu dever - disse ela erguendo o queixo. - Desagradável mas necessário. Boa tarde, senhor Pitt!

 

Pitt levou toda a manhã para ficar em dia com as notícias chegadas ao Bow Street referentes ao caso, concretamente que o quadro da Helen Carfax era muito bom e avaliado em quinhentas libras esterlinas, o suficiente para empregar uma criada desde menina até velha e inclusive poder economizar algo. O que tinha feito ela com tanto dinheiro? Com certeza tinha ido parar com James, de uma forma ou outra: um presente?, Uma atribuição? Para saldar suas dívidas no Boodle"s?

Soube algo mais dos cocheiros, mas nada novo que acrescentar ao que já sabiam. Ninguém havia dito nada de fenianos, anarquistas ou outros grupos violentos.

A imprensa continuava publicando a notícia em manchetes, com artigos sobre iminentes distúrbios e brigas de rua.

O ministro do Interior se impacientava e lhes tinha comunicado seu profundo desejo de que resolvessem rapidamente o caso antes que a inquietação geral desse lugar ao pânico.

Não teve que indagar muito para saber que Florence Ivory vivia no Walnut Tree Walk, uma travessa do Waterloo Road, a pouca distância de Paris Road, Royal Street e Westminster Bridge. A delegacia de polícia do distrito reagiu com sobrecenhos franzidos e ligeiros dar de ombros. Não havia dados sobre nenhuma classe de delito. O sargento que respondeu às perguntas do Pitt esboçou uma careta amistosa.

Pitt se apresentou a primeira hora da tarde. A casa era bonita, modesta para essa zona, mas bem cuidada, com as janelas recém pintadas, cortinas de cretone e um vaso com narcisos no aparador.

Uma criada lhe abriu a porta. Levava um avental em torno de sua grossa cintura, mais por utilidade que por adorno, e contra a parede se apoiava a bucha que acabava de deixar para ir à porta.

—Sim? - perguntou com cara de surpresa.

—Está em casa a senhora Ivory? Sou o inspetor Pitt, da delegacia de polícia do Bow Street; acredito que a senhora poderia nos ajudar.

—Pois não vejo como! Mas se quer irei ver. - A criada o deixou no degrau enquanto ia para dentro sem pegar seus utensílios de limpeza.

Florence Ivory demorou só um momento em aparecer. Tirou a bucha do saguão para guardá-la em um armário do corredor e depois encarou Pitt com olhar franco. Era de estatura média e sua esbelteza raiava à fraqueza. Carecia de peito propriamente dito, seus ombros eram quadrados e ossudos; entretanto, não carecia de feminilidade, e seu porte era elegante e pessoal. Seu rosto não possuía a formosura no sentido tradicional: olhos grandes e afastados, sobrancelhas muito grossas para a moda, nariz largo, reto e muito grande, linhas marcadas em torno da boca. Apesar disso, Pitt não acreditou que passasse os trinta e cinco. Sua voz era rouca, mas doce e pessoal.

—Boa tarde, senhor Pitt. Disseram-me que vem da delegacia de polícia do Bow Street e que acredita que posso ajudá-lo. Não imagino como, mas se quer entrar tentarei isso.

—Obrigado, senhora Ivory.

Seguiu-a pelo corredor a uma sala ampla onde, apesar dos painéis escuros, havia certa ilusão de luz. Sobre uma mesa brilhante descansava um prato de porcelana, gretado, mas conservando grande parte de sua frágil beleza, e sobre o mesmo havia umas flores silvestres. A parede do fundo era formada por janelas e uma porta de vidro que dava a um pequeno jardim. As cortinas eram de algodão pálido, bordadas com motivos florais, e o sofá sob as janelas estava coberto de almofadas combinando. Pitt se sentiu à vontade.

No jardim havia uma mulher curvada trabalhando nos canteiros. Não estava longe, pois o jardim era pequeno, mas através dos vidros Pitt não pôde distinguir mais que uma blusa branca e o sol refletindo-se em uma nuvem de cabelos dourados.

—E então? - disse Florence. - Suponho que seu tempo é precioso; o meu o é. O que acredita que sei que possa interessar à polícia?

Pitt tinha estado estudando de que forma enfocar o assunto, e agora que a tinha conhecido todos seus preparativos lhe pareciam inadequados. A mulher olhava-o com olhos penetrantes, sua impaciência estava à beira da aversão; procurar um modo intrincado de dizer as coisas parecia um insulto a sua inteligência, algo que ela podia levar muito mal.

—Estou investigando um assassinato, senhora.

—Não conheço ninguém que tenha sido assassinado.

—E Vyvyan Etheridge...?

—Oh. - Tinha-a pego, se não em uma mentira sim em uma inexatidão. E isso fez que a raiva aparecesse em suas faces, colorindo-as. - É claro. Possivelmente a palavra assassinato me fez pensar em algo mais... pessoal. Temo que não saiba nada sobre anarquistas. Levamos uma vida muito tranqüila, muito doméstica.

Pitt não soube por sua expressão se a palavra tinha conotações de elogio ou de azedume. Acaso Ivory se via também no Parlamento? Ou acaso lady Mary só citava alguma fofoca misturada com seus próprios preconceitos?

—Mas você conhecia o senhor Etheridge, não é assim?

—Em sociedade, não. - Sua voz dissimulou a risada. Era um bonito instrumento, apaixonado e flexível.

—Não, senhora Ivory. Mas soube que teve ocasião de ir a ele profissionalmente.

Seu rosto se endureceu, desapareceu a alegria, e algo cruzou por ela com a intensidade do medo, um ódio que ameaçava fazê-la explodir com violência.

Pitt deu instintivamente um passo à frente, mas se conteve e esperou. Aquela mulher era capaz de agarrar uma navalha de barbear e rachar a uma pessoa na garganta de orelha a orelha. Não parecia ter muita força física, mas sim uma terrível força dos sentimentos.

O silêncio entre eles foi tão grande que os surdos ruídos exteriores se intensificaram; a criada ocupada na cozinha, passos de um menino pelo pavimento além das cortinas, o piar de um pássaro.

—Com efeito - disse ela por fim. Parecia falar entre dentes. - E se tratava a todo mundo como me tratou, não duvido que alguém queria matá-lo. Mas não fui eu.

—O que lhe fez senhora Ivory, que tão horrendo lhe parece?

—Provocar a confiança alheia e depois traí-la, senhor Pitt. É possível que você não se sinta traído freqüentemente. Sem dúvida tem recursos dos que lançar mão quando abusam de você, quando se sente ofendido. Não faça essa cara! - O desdém se mesclou com um furioso humor, um tipo de brincadeira que ele nunca tinha visto. - Não estou dizendo que seduzira meu coração de moça, embora Deus saiba que muitas mulheres tiveram que passar por isso. Eu não tive nenhuma relação pessoal com Etheridge, isso asseguro!

Por um momento todo lhe soou absurdo; então recordou que o amor pode ser algo inverossímil, para não falar da avidez que atrai às pessoas com o disfarce do amor. Florence Ivory era uma mulher de forte personalidade; não era desatinado pensar que seu irônico interesse por tudo pudesse ter atraído ao Etheridge.

—Se não me engano, a relação do senhor Etheridge com você foi enquanto deputado do Parlamento, e suponho que é nesse sentido que você se sentiu traída.

Ela riu.

—Você é terrivelmente discreto, senhor Pitt. A quem está tratando de proteger? A mim não, certamente. Nada do que pudesse me dizer do Etheridge seria tão grave como o que eu poderia dizer dele. Ou você é obrigado a falar bem de seus superiores?

Muitas respostas passaram rapidamente pela cabeça do Pitt, a maioria sarcásticas ou críticas, mas teve que conter-se. Não ia permitir que lhe dissesse como tinha que fazer seu trabalho, nem quais tinham que ser suas maneiras.

—Meu dever, senhora Ivory, é descobrir quem assassinou ao senhor Etheridge. O que eu penso sobre ele é irrelevante - respondeu friamente. - Muitas das pessoas que são assassinadas não me foram simpáticas por tê-las conhecido. Por fortuna, a liberdade de andar pela rua sem temor a que o assassinem não depende de que alguém seja amigo ou inimigo da polícia.

Ela se acendeu, mas na mesma hora relaxou com um sorriso repentino.

—Suponho que é uma sorte, do contrário viveríamos aterrorizados. É você muito esperto senhor Pitt. Tem toda a razão, acudi ao Etheridge para que me ajudasse, pois eu nessa época vivia no Lincolnshire, que era sua circunscrição eleitoral.

—Entendo que ele não a ajudou.

O ódio voltou a mudar seu rosto, tornando-a feia; sua boca, antes buliçosa, macia e inteligente, converteu-se em um rictus amargo.

Prometeu fazê-lo, e logo, como todos os homens, solidarizou-se com os de seu sexo. Deixou-me de mãos abanando! Estava tremendo; tenso seu magro corpo sob o vestido, os ombros rígidos.

A porta de vidro se abriu nesse instante e a outra mulher entrou. Notava-se que tinha ouvido a voz irada de Florence. Era um pouco mais jovem que esta, mal teria vinte anos. Era de constituição muito diferente, mais alta e de traços mais suaves, com peito delicado e braços carnudos. Rossetti poderia ter usado seu perfeito rosto pré-rafaelita em um de seus romances artúricos; a jovem tinha toda a candura e a força inconsciente de seus personagens. Aproximou-se do Florence Ivory e a rodeou protetoramente com um braço, olhando Pitt com desconfiança. Florence pôs uma mão sobre a dela. Não acontece nada, África. O senhor Pitt é da polícia. Está investigando o assassinato do Vyvyan Etheridge. Estava-lhe contando a classe de pessoa que era Etheridge. Naturalmente, falei de minha própria experiência com ele. Voltou a olhar Pitt. Apresento minha amiga e companheira, a senhorita a África Dowell; esta casa é dela, e teve a generosidade de me acolher nela e me dar um lar quando fiquei sem nada.

—Encantado, senhorita Dowell - disse Pitt muito sério.

— Bem, e você - respondeu ela em guarda. O que quer de nós? Desprezávamos ao senhor Etheridge, mas não o matamos nem sabemos quem o fez.

—Não tinha suposto tal coisa - disse Pitt. - Mas sim poderiam saber algo que talvez me sirva quando o juntar com o que sei ou possa averiguar breve.

—Não conhecemos nenhum anarquista. - Houve algo em sua forma de elevar o queixo, em seu olhar desafiador, que fez Pitt pensar que possivelmente mentia.

—Você acha que foram anarquistas, senhorita Dowell? Por quê?

Ela engoliu em seco, obviamente confusa.

Florence interveio:

—Bom, se o motivo foi pessoal, um assunto de herança ou de namoricos, dificilmente íamos saber algo. E se não estiver equivocada, também não conhecemos nenhum demente, por agora.

Vendo as duas fecharem a guarda, Pitt só se zangou em parte; sentiam-se doídas e tratavam de proteger-se contra novas agressões.

—Mas é possível que algumas pessoas lhe tivessem antipatia por motivos de índole política - disse Pitt.

—Antipatia é um termo muito brando - interveio Florence, outra vez com raiva. Eu odiava-o. E me atreveria a dizer que não sou a única que sofreu seu mau trato, mas não sei quem são, nem o diria se soubesse.

—Gente encolerizada o bastante para atuar de forma violenta, senhora Ivory?

—Já o disse: não tenho nem idéia. Mas há vezes em que nem todos os protestos do mundo servem de algo, quando a gente que tem poder está cômoda, quando têm comida, segurança, categoria social, famílias que lhes rodeiam e um cargo do qual procurar que tudo continue como está. Não podem e não querem acreditar que outras pessoas possam sofrer dor ou injustiça, que as coisas deveriam mudar, e mais se isso implica pôr em questão uma ordem social para eles tão satisfatória.

Pitt viu o ardor de sua expressão, a veemência de suas palavras, e soube que essa não era uma resposta a sua pergunta a não ser uma profunda convicção que aguardava o momento para emergir com a força de anos de sofrimento.

Decidiu que devia refrear seus sentimentos. Não era momento apropriado para expressar sua própria opinião, para falar das injustiças que também o punham furioso nem da complacência que ele teria podido ferir com seu desdém. E não havia tempo tampouco para filosofar. Tinha ido saber se aquela mulher podia ter abandonado o respeito à lei que impedia à comunidade cair no barbarismo, se tinha posto seu próprio sentido da eqüidade por cima de todo o resto e tinha rasgado o pescoço a dois homens.

—Segundo seu parecer, senhora Ivory, os satisfeitos não costumam desejar a mudança; são os insatisfeitos quem exige melhoras, ou acessar sem mais ao poder e suas recompensas.

O rosto dela voltou a distender-se de cólera, desta vez contra ele.

—Por um momento tinha pensado que tinha você imaginação, inclusive compaixão. Agora vejo que é tão pago de si mesmo, tão insensível e temeroso de perder seu miserável nicho na sociedade como o resto de seus congêneres!

Pitt cavou a voz:

—Meus congêneres?

—Os que têm poder, senhor Pitt! - replicou-lhe. - Homens, quase todos eles! As mulheres nascem adotando o sobrenome do pai, sua classe na vida. Ele decide onde e como vamos viver. Em casa sua palavra é lei, ele decide se nos vai educar ou não, o que vamos fazer, se nos casaremos, quando e com quem. Depois, nossos maridos decidem o que temos que dizer, fazer e até pensar. Decidem qual é nossa religião, que amigos podemos ou não freqüentar, o que será de nossos filhos. E nós temos que acatar suas palavras, pensemos o que pensemos, fingir que são mais inteligentes que nós, mais sutis, mais imaginativos... embora sua estupidez seja supina! - ofegou.

"Os homens fazem as leis e as administram; todos os policiais são homens, os juízes também; lá aonde olhou minha vida está regida por homens! Não há mulher a que possa acudir para que entenda o que realmente sinto!

"Sabe senhor Pitt, que só faz quatro anos que deixei de ser legalmente um móvel para meu marido? Uma coisa, um objeto que lhe pertencia como qualquer de seu equipamento doméstico, uma cadeira ou uma mesa, penetrada-a. A lei (a lei do homem) reconheceu ao fim que em realidade eu sou uma pessoa, um ser humano independente e com um coração e um cérebro próprios. Quando me faço mal não é meu marido quem sangra, sou eu!

Pitt não tinha pensado nisso. As mulheres de sua família eram tão independentes que jamais lhe tinha ocorrido perguntar-se por sua situação legal. Ignorava que a mulher casada tinha obtido o direito a conservar e administrar suas propriedades fazia só seis anos; de fato, quando conheceu Charlotte em 1881, por lei ele teria sido dono de seu dinheiro, inclusive de seu guarda-roupa, a partir das bodas. Não tinha refletido sobre isso até que alguém tinha feito uma cruel observação sobre sua mudança de sorte.

—E considera que os protestos e as alegações por escrito não servem para nada? - disse fatuamente, odiando ter que ser tão falso apesar de que compreendia e se solidarizava inclusive com suas palavras. Era filho de criados em uma fazenda rural; sabia o que era a obediência e a propriedade.

—Ou é você tolo senhor Pitt, ou me está tratando de propósito com uma condescendência que considero desprezível e completamente deslocada. Se tratar de me fazer dizer que as vezes a violência é o único meio que fica a quem está sofrendo o inexprimível, então considere que o disse. - Fulminou-o com o olhar, desafiando-o a fazer a seguinte e inevitável acusação.

—Não sou nenhum idiota, senhora Ivory - disse em troca Pitt, olhando-a a seus acesos olhos. - E não acredito que você o seja. Ignoro o que pediu ao Etheridge, mas não que mudasse toda a sociedade para dar às mulheres uma igualdade que não puderam gozar nestes dois mil anos de história, isso certamente. É possível que você seja muito ambiciosa, mas deve ter começado por algo mais concreto, e acredito que mais pessoal. O que foi isso?

A ira desapareceu de novo rapidamente, como uma força que de tão violenta se consumou a si mesma, deixando só a dor. Sentou-se em um banco de madeira com almofadas e contemplou o jardim pela janela aberta.

—Imagino que se não o digo eu o averiguará em alguma outra parte, talvez com menos exatidão. Faz quinze anos estive casada com o William Ivory. Meus bens não eram abundantes, mas me teria bastado para viver com certa folga. É claro, o dia de minhas bodas me converti em propriedade de meu marido, e já não voltei a ver meu dinheiro.

Tinha as mãos quietas sobre o regaço; tinha tirado do bolso um lenço de renda, mas não o estava retorcendo. Só a brancura dos dedos denunciava sua tensão.

—Mas não me queixo disso, por muito monstruoso que me pareça. Era uma maneira institucionalizada de que os homens roubassem às mulheres e fizessem o que lhes viesse na cabeça com seu dinheiro, apoiando-se em que somos brandas de cérebro e ignorantes das finanças para administrá-lo por nossa conta. Temos que ver como o esbanjam nossos maridos sem poder abrir a boca, embora tenhamos mil vezes melhor senso! E se não sabermos de finanças, de quem é a culpa? Quem impediu que nos educasse em tudo o que não fosse corriqueiro?

Pitt esperou a que reatasse suas queixas. África Dowell permanecia sentada ao extremo do banco, imóvel, como se em efeito tivesse sido um desses quadros românticos que tanto sugeria e, como neles, toda a paixão e os sonhos estavam no rosto; ela bem poderia ter visto partir-se em dois nesse instante o espelho de Salete, selando seu fado. Sabia do que estava falando Florence Ivory, e sentia a mesma ferida aberta.

—Tivemos dois filhos - prosseguiu Florence. - Primeiro um menino e logo uma menina. William se tornou mais e mais ditatorial. Nossas risadas o ofendiam. Acusava-me de frívola se eu gostava de estar com os meninos, se lhes contava contos ou jogava com eles, mas se gostava de falar de política ou de reformas legais que pudessem ajudar aos oprimidos, então me acusava de me intrometer em assuntos muito complexos para mim e alheios a minha incumbência, dizia que não tinha nem idéia do que estava falando. Meu lugar era na sala, na cozinha ou no quarto; em nenhum outro lugar.

"Ao final não pude agüentar mais e o abandonei. Soube desde o começo que não podia levar a meu filho, mas minha filha Pansy tinha então seis anos, inclusive pronunciar seu nome pareceu lhe doer e levei-a. Foi muito duro para as duas. Tínhamos pouco dinheiro e poucos meios de ganhar mais. A princípio me acolheu uma amiga de Londres que compreendia mais ou menos minha postura, suponho que teve piedade de mim. Mas ela também estava passando um mau momento, e ao final me vi forçada a não seguir afligindo-a com nossa carga. Foi então, isso faz uns três anos, quando a África Dowell nos deu proteção. - Olhou Pitt, detectando talvez sua confusão e impaciência. A história era triste, sim, mas ainda não tinha mencionado ao Vyvyan Etheridge nem podia culpar o de nada do ocorrido.

"Eu era partidária da reforma eleitoral - disse Florence com ironia. – Cheguei inclusive a aprovar que Helen Taylor tentasse apresentar-se como candidata ao Parlamento. Expressei livremente minhas opiniões sobre o tema dos direitos da mulher: que tínhamos que poder votar e ocupar cargos, tomar decisões tanto respeito a nosso dinheiro como os nossos filhos, e inclusive ter acesso a esses conhecimentos que nos permitiriam escolher o número de filhos que desejávamos em lugar de passar toda nossa vida adulta parindo um filho atrás de outro até ficar exaustas de corpo e coração, e ainda por cima na miséria.

Sua voz cobrou aspereza; a humilhação e o azedume continuavam ali como uma ferida aberta, ainda purulenta. Meu marido se inteirou e foi aos tribunais dizendo que eu não era apta para ter a custódia de minha filha. Acudi ao Vyvyan Etheridge com meu caso. Disse-me que minhas idéias políticas não influíam em minha aptidão como mãe, e que não deviam ser motivo de que me privasse de minha filha.

"Eu então não sabia que meu marido tinha amigos muito influentes que podiam pressionar Etheridge. Utilizou-os, falou com eles de homem a homem, e Etheridge me fez saber que lamentava ter interpretado mal meu problema, e que o havendo estudado com mais vagar estava de acordo com meu marido em que eu era uma mulher instável, histérica e ignorante, e que minha filha estaria melhor com seu pai. Nesse mesmo dia vieram levá-la e já não voltei a vê-la. Hesitou um instante, dominando-se com muita dificuldade, tratando de apagar as lembranças, e ao prosseguir sua voz soou monótona, quase morta. Se senti a morte do Vyvyan Etheridge? Não. Só lamento que fosse rápida e que provavelmente não chegou, a saber, quem o matava nem por que. Era um covarde e um traidor. Sabia que eu não era uma pessoa histérica nem frívola. Queria a minha filha mais que a ninguém no mundo, e ela confiava em mim. Eu teria cuidado dela melhor que ninguém, lhe teria ensinado a ter coragem, dignidade e honra. Teria lhe ensinado a amar a outros. E o que lhe terá ensinado seu pai? Que não serve para outra coisa que para escutar e obedecer, que não pode expressar seus sentimentos, pensar ou sonhar, que não pode defender o que criar justo ou bom... A voz lhe fraquejou ao falar da filha perdida e malograda, a filha que tinha parido e amado tanto.

Passaram vários minutos antes que pudesse continuar falando.

—Etheridge sabia tudo isto, mas se rendeu à pressão de outros homens, das pessoas que podiam fazê-lo passar mal se me apoiasse. Era mais fácil não lutar, assim deixou que entregassem a minha filha a seu autocrático pai. A mim nem sequer me permite vê-la. Seu rosto parecia uma máscara da angústia, e Pitt sentiu que até olhá-la era uma intrusão. As lágrimas corriam por suas faces, mas chorava sem caretas; aquela imagem tinha algo de terrível beleza pela mera força de sua paixão.

Ao final a África se ajoelhou e tomou suavemente a mão. Não abraçou Florence; talvez o momento para isso tivesse passado. Limitou-se a olhar ao Pitt.

—Homens assim merecem morrer - disse com voz calma. Mas Florence não o matou, nem eu. Se for isso que esperava averiguar vindo aqui, fez a viagem em vão.

Pitt sabia que agora tinha que pressioná-las para saber onde tinham estado no momento em que Hamilton e Etheridge tinham sido assassinados, mas não tinha forças para fazê-lo. Supunha que jurariam ter estado em casa dormindo. Onde senão ia estar uma mulher decente a essa hora da noite? E não havia modo de prová-lo.

—Confio em descobrir quem matou ao senhor Etheridge e sir Lockwood Hamilton, senhorita Dowell, mas não acredito que tenha sido você. De fato, espero que possa me demonstrar que não o fez.

—A porta está atrás de você, senhor Pitt - replicou África. - Tenha a amabilidade de nos deixar a sós.

Pitt chegou em casa ao anoitecer e tão logo esteve na porta tratou de afastar o caso de sua cabeça. Daniel já tinha jantado e ia para cama, só tinha que lhe dar um abraço de boa noite antes que Charlotte o levasse a seu quarto. Mas Jemima tinha privilégios e obrigações que correspondiam ao fato de ser a maior. Estavam sozinhas no salão junto ao fogo. A menina se agachou para recolher as peças de um quebra-cabeças, resmungando enquanto o fazia. Pitt soube que a confusão era obra de Daniel, e que ela se sentia muito virtuosa recolhendo todo aquilo. Observou sua pequena figurada dissimulando um sorriso, e quando Jemima se voltou por fim com satisfação, ele estava totalmente sério. Não fez nenhum comentário: a disciplina era território do Charlotte enquanto as crianças fossem tão pequenas. Preferia tratar a sua filha como a uma amiga muito pequena a quem queria com uma intensidade e uma doçura que ainda o pegavam despreparado.

—Já estou - disse ela solene.

—Sim, já o vejo - respondeu ele.

Jemima foi para ele e subiu em seus joelhos como teria feito a uma cadeira, deu- a volta e se sentou. Seu rostinho estava muito sério. Seus olhos eram cinza e as sobrancelhas um eco infantil das do Charlotte. Pitt raramente notava que seu cabelo tinha a textura do seu próprio, só que com a cor mais acentuada de sua mãe.

—Me conte um conto, papai - pediu ela, embora pelo modo de acomodar-se e a segurança de sua voz, mais parecia uma ordem.

—Qual?

—O que quiser.

Pitt estava cansado.

—Quer que te leia algo? - sugeriu.

Olhou-o com ar de recriminação.

—Não! Fale-me de princesas.

—Não sei nada de princesas.

—Oh. - Pareceu desiludida.

—Bom - se corrigiu ele - só de uma.

Jemima se animou. Estava visto que uma seria o bastante.

—Era uma vez uma princesa... E lhe contou o que recordava da rainha Isabel, a filha do Henrique VIII, quem apesar do perigo e das muitas tribulações conseguiu chegar a monarca da Inglaterra. Estava tão metido em seu relato que não viu Charlotte na soleira.

Por fim, quando esgotou o que recordava, olhou o rosto extasiado da Jemima.

—Que mais? - urgiu-lhe a menina.

—É tudo o que sei.

Ela arregalou os olhos.

—Foi uma princesa de verdade?

—Sim, tão de verdade como você.

Jemima olhou-o impressionada.

—Ah!

—Já é hora de dormir - interveio Charlotte.

A menina rodeou o pescoço de seu pai e beijou-o.

—Obrigada, papai. Boa noite.

—Boa noite, querida.

Charlotte lhe olhou um momento e sorriu. Depois pegou nos braços a Jemima e a levou da sala. Enquanto Pitt as via partir voltou a pensar no Florence Ivory e na filha que lhe tinham arrebatado.

Consideraria um juiz ao Charlotte pessoa "idônea"? Casara-se com alguém de condição mais humilde, intrometia-se regularmente na investigação de crimes, tinha estado em music-halls e em necrotérios, disfarçara-se de cortesã e tinha açoitado a uma assassina em uma perseguição de carruagens que terminou em briga em uma casa de duvidosa fama. E tinha feito campanha a seu modo pela reforma!

Pitt não via com clareza o que teria sentido se tivesse se apresentado alguém para levar a seus filhos se suas circunstâncias sociais tivessem sido consideradas inadequadas. Só a idéia lhe era inconcebível.

E a idéia que se seguia indevidamente disso era que não lhe custava acreditar que Florence Ivory tivesse podido odiar ao Etheridge até o ponto de lhe fatiar o pescoço, e África Dowell com ela, por ter conhecido e amado também a essa filha. Era uma conclusão que não podia evitar, por mais que o desejasse com todas suas forças.

Não comentou nada com Charlotte essa noite, mas pela manhã, quando chegou o correio, notou a carta com a letra de Emily e o carimbo de Veneza e soube que estaria cheia de notícias, entusiasmo e romance. Emily podia ter hesitado se falava ou não de todo o feitiço da viagem, já que Charlotte nunca chegaria a ver aquelas coisas, mas conhecendo Emily lhe pareceu que não a trataria com tanta condescendência. E adivinhava a mescla de felicidade e inveja, e a sensação de ter sido excluída, que sentiria Charlotte ao ler a carta.

Ela não ia dizer nada, isso sabia bem Pitt. Não lhe tinha mostrado a primeira carta nem lhe mostraria esta outra, porque queria que ele pensasse que só lhe importava a felicidade de Emily, não as coisas que Emily desfrutava, e no fundo de sua isso alma era, com efeito, o que mais lhe importava.

Pitt escolheu esse instante para lhe falar dos assassinatos do Westminster, tanto para que ela não pensasse nas notícias do Emily quanto para apaziguar certa solidão que sentia por não ter compartilhado com ela suas sensações, sua frustração, e sua profunda consciência da dor alheia.

Sentou-se à mesa do café da manhã para comer umas torradas com a azeda geléia de Charlotte.

—Ontem falei com uma mulher que poderia ter degolado aos dois homens do Westminster Bridge - disse com a boca cheia.

Charlotte deixou sua xícara no ar.

—Não me havia dito que trabalhava neste caso! - exclamou.

Pitt sorriu.

—Não tive oportunidade, com as bodas do Emily. E logo suponho que a rotina pôde comigo. Mas não há nenhum conhecido seu comprometido.

Ela fez uma cara de desculpa ao dar-se conta da tácita necessidade que Pitt tinha de falar de algo que a desconcertava ou lhe afligia. Ele se deu conta, compreendendo a doce cumplicidade que havia entre os dois.

—Uma mulher? - disse ela levantando as sobrancelhas. - Seriamente pôde fazê-lo uma mulher? Ou se refere a que pagou alguém para que os matasse?

—Acredito que neste caso pôde fazê-lo ela sozinha. É muito apaixonada, e acredita ter uma causa...

—Seriamente? - interrompeu-o Charlotte.

—Possivelmente. - A torrada se quebrou entre os dedos. Recolheu as partes e a terminou antes de agarrar outra. Charlotte esperava impaciente. Pareceria-lhe isso, acredito - disse, e lhe resumiu quanto tinha acontecido até o momento, ampliando sua opinião sobre o Florence Ivory e África Dowell, enquanto tratava de dar com as palavras mais sutis e adequadas.

Charlotte escutou-o quase sem interromper, mencionando unicamente que o nome de Florence Ivory tinha vindo à tona naquela reunião, mas como não sabia nada dela, salvo que despertava compaixão ou desdém, não disse mais, e quando ele terminou de falar não ficou tempo para continuar discutindo-o. Para Pitt era tarde, mas se sentia mais leve apesar de nada ter mudado.

Enquanto ia pela úmida rua com a intenção de alugar um cabriolé para ir ao Westminster, desejou poder levar Charlotte alguma vez a um lugar excitante e original, dar-lhe ao menos uma lembrança grandiosa que compensasse os do Emily. Mas não via a maneira de poder custear uma viagem.

Quando Pitt se foi, Charlotte ficou uns minutos pensando em Ivory, e seu ressentimento, até que abandonou seus pensamentos e abriu a carta. Estava datada de Veneza e rezava assim:

 

Queridíssima Charlotte:

Grande viagem! Longa e ruidosa. Certa madame Charles de Paris não parou de falar todo o tempo, e, além disso, ria como um cavalo assustado. Não quero voltar a ouvir essa voz! Estava tão cansada e suja quando cheguei aqui que por pouco me ponho a chorar. Era noite fechada e me deixei cair em uma carruagem para que me levasse a hotel. Só tinha vontade de tirar a imundície de cima e me colocar na cama para dormir uma semana inteira.

Depois, pela manhã, abracadabra! Abri os olhos e vi reflexos de luz em um teto delicioso e ouvi, Oh maravilha, a formosa e poesia lírica voz de um homem que cantava como um anjo, perdendo-se no ar matinal, quase como um eco!

Saltei da cama sem pensar em minha camisola nem em meu cabelo revolto, sem me importar o mínimo com meu aspecto ou o que Jack pensaria de mim, corri para a enorme janela e olhei para o exterior.

Água, Charlotte! Água por toda parte! Verde e como um espelho, lambendo a base das fachadas. Poderia ter saltado da janela, tão perto estava! Era a luz refletida em sua superfície ondulada pelo vento o que tinha visto eu no teto de meu quarto.

O homem que cantava estava de pé, gracioso como um junco, na popa de uma embarcação que se movia impulsionada por uma vara longa ou um remo, não o recordo. Seu corpo se balançava ao mover-se, e cantava para expressar sua alegria por essa manhã tão encantadora. Jack diz que o faz para que os turistas lhe dêem dinheiro, mas me nego a acreditar nele. Se eu tivesse ido de barco por esse canal também teria cantado de alegria.

Em frente de nós há um palácio de mármore, sério! Dei uma volta em uma desses barcos, que aqui chamam gôndolas, e cruzei a baía até a igreja da Santa Maria dela Salute. Charlotte, nem em sonhos nunca vi algo tão lindo! Parece flutuar sobre a superfície do mar como se fosse uma miragem. Tudo é mármore claro, ar e água azul, e luz dourada do sol. Aqui a luz é muito diferente, tem uma clareza especial; de certo modo, é de outra cor.

Eu adoro como soa o italiano, é tão musical. Prefiro-o ao francês, embora mal entenda uma palavra de nenhum dos dois.

Mas o aroma! Deus santo, isso sim é diferente, e muito ruim. Mas juro que não deixarei que isso turve um só momento de minha estadia. Parece-me que já o noto menos à medida que vou acostumando.

Também me custou um pouco me adaptar à comida, e me cansa muitíssimo levar a mesma roupa todo o dia, mas não posso levar todo o armário nas costas. Além disso, o serviço de lavagem deixa muito a desejar!

Já comprei várias pinturas, uma para você, outra para o Thomas, uma para mamãe e duas para mim, porque quero recordar esta viagem toda a vida.

Não me importo, apesar das coisas que estou vendo e de que Jack é muito doce e divertido. Mas como não sei onde vou estar, nem quanto vai demorar a me chegar suas cartas, não posso lhe mandar um endereço ao qual possa me escrever. Terei que esperar para vê-la quando retornar a casa, e então me contará tudo. Anseio ouvir o que esteve fazendo, pensando, sentindo...

Lembranças ao Thomas e às crianças. Tenho escrito por separado a mamãe e Edward, é claro. Ah, não comece nenhuma aventura sem mim.

Sua irmã que a quer, EMILY.

 

Charlotte dobrou a carta e a meteu no envelope. Colocaria na mesa de costura, um lugar onde Pitt não a acharia. Diria-lhe que Emily estava passando muito bem, claro, mas lhe doeria ler todas as coisas que Emily e Jack estavam desfrutando, coisas que eles não veriam nunca. Não podia fingir que não tinha inveja, que não desejava ir a Veneza e percorrer aquela cidade cheia de história, beleza e romances: ele não acreditaria.

O melhor era lhe dizer que Emily estava passando bem e nada mais. Ele suporia que se não lhe mostrava a carta era porque continha algum segredo entre irmãs, possivelmente inclusive detalhes de sua vida pessoal. No fim das contas, Emily estava em lua de mel.

Levantou-se da mesa e guardou a carta no bolso de seu avental. Como estavam na primavera, aproveitaria para fazer limpeza a fundo e renovar todo o possível. Já tinha pensado em algo para as cortinas do patamar.

Pitt foi à Câmara dos Comuns no palácio do Westminster e solicitou permissão para entrar no escritório do Etheridge e examinar seus papéis, em busca de cartas ou documentos que pudessem conter uma alusão ao William ou Florence Ivory. Perguntaria também se no distrito eleitoral do Etheridge havia algum escritório onde pudesse haver notas ou correspondência sobre o assunto.

Um funcionário com rígida gola de pontas e uns óculos de aros dourados olhou-o com desconfiança.

—Não me soa estranho o nome. Ao senhor Etheridge costumava acudir muitos de seus eleitores reclamando sua intervenção em assuntos muito diferentes.

—Tratava-se da custódia de uma menina.

—Já existe uma lei sobre o assunto. - O homem olhou-o por cima de seus óculos. Imagino que o senhor Etheridge terá respondido ao senhor ou a senhora Ivory lhes informando disso, e se existir esse documento, é o único que deve haver. Andamos escassos de espaço; não podemos ir armazenando correspondência corriqueira durante séculos.

—A custódia de um filho não é algo corriqueiro! - disse Pitt contendo a raiva. – Se você não pode achar essa carta, farei entrar meus homens e que revistem até o último papel, até que demos com ela ou nos asseguremos de que não está aqui. Depois procuraremos no Lincolnshire.

O homem se ruborizou de irritação.

—Está ultrapassando-se, inspetor! Não tem nenhum mandato para revistar os papéis do senhor Etheridge.

—Então busque os que falam do William e Florence Ivory lhe - replicou Pitt. Suponho que já teria deduzido que pode ter relação com um assassinato.

Os lábios do funcionário se distenderam. Deu meia volta e se afastou pelo corredor seguido por Pitt. Chegaram ao escritório que Etheridge tinha compartilhado com outro deputado, e o funcionário disse umas palavras em voz baixa a um empregado. Em pé frente a um armário cheio de pastas, o empregado olhou Pitt com alarme.

—Ivory? - Parecia confuso. - Não o recordo. Em que data foi isso?

Pitt se deu conta de que não sabia, não o tinha perguntado. Uma omissão estúpida, mas agora era tarde para retificar.

—Não sei - respondeu com toda a frieza possível. - Comece a partir de agora para trás.

O homem olhou-o com perplexidade, mas logo se aproximou de umas pastas e começou a procurar entre os papéis.

O funcionário suspirou e se desculpou, e seus passos se perderam no corredor. Pitt permaneceu no escritório, aguardando.

A espera não foi tão longa como tinha temido. Em cinco minutos o empregado tirou uma pasta fina e dela uma carta. Estendeu-a com expressão de aversão.

—Aqui está, inspetor, uma cópia de uma carta do senhor Etheridge à senhora Florence Ivory com data 4 de janeiro de 1886. Embora não me ocorre que interesse possa ter para a polícia.

Pitt a leu.

 

Querida senhora Ivory:

Lamento sua lógica inquietação no assunto de sua filha, mas tudo está decidido, e temo que não possa seguir mantendo correspondência consigo sobre o particular.

Tenho certeza de que com o tempo compreenderá que todas as ações que se empreenderam foram em interesse de sua filha, o que a senhora, como mãe, tem que querer também.

Sinceramente seu,

VYVYAN ETHERIDGE, deputado.

 

—Tem que haver mais - disse Pitt com tom peremptório. - Isto não é mais que o final de uma correspondência considerável! Onde está o resto?

—É tudo o que há - respondeu o empregado. - Suponho que se trata de um assunto relacionado com o distrito eleitoral, com o Lincolnshire.

—Então me dê um endereço. Irei investigar em Lincolnshire.

O homem escreveu em um papel e o entregou. Pitt lhe agradeceu e se foi.

Uma vez no Bow Street, dirigiu-se ao escritório do Micah Drummond e bateu na porta.

—Entre! - Drummond levantou a vista de uma pilha de papéis. Pareceu aliviado de ver Pitt. - Alguma notícia? Quanto mais investigamos aos grupos conhecidos de anarquistas, menos coisas encontramos.

—Sim, senhor. - Pitt tomou assento sem que lhe convidassem a fazê-lo; estava muito absorto em seus pensamentos para reparar nisso. - Etheridge tinha prometido ajudar uma antiga sua eleitora em um assunto de custódia, mas logo se aliou com o pai. Ela perdeu a menina e parece muito afetada por isso. Admite que haja vezes que a violência é o único recurso ante certas injustiças. Há provas de que Etheridge a traiu. Entretanto, ela nega que o tenha matado.

—Você acredita que o fez? - A alegria do Drummond ante a possibilidade de uma solução rápida estava já empanada por sua própria percepção do motivo, e por um toque de escuridão na raiva do Pitt que a Drummond pareceu não ia contra a mulher em questão.

—Não sei. Mas é muito claro para não fazer nada a respeito. As cartas devem estar no escritório do distrito eleitoral, no Lincolnshire. Terei que ir lá para investigar. Necessitarei de uma ordem de revistar, se por acaso algum empregado me nega a permissão, e também um bilhete de trem.

—Quer partir esta mesma noite?

—Sim.

Drummond estudou-o durante uns momentos.

Depois apertou uma campainha e ao cabo de um momento apareceu um guarda a quem deu as ordens oportunas.

—Vá a casa do inspetor e informe à senhora Pitt que seu marido se ausentará esta noite; lhe diga que lhe faça a mala, com uns sanduíches, e retorne aqui quanto antes. Deixe a carruagem na porta. Quando sair, diga ao Parkins que prepare uma ordem de revista na casa do Vyvyan Etheridge no Lincolnshire, papéis ou cartas que pudessem conter alguma ameaça de morte, e algo relacionada com...

—Florence ou William Ivory - apontou Pitt.

—Isso. Mova-se, homem!

O guarda obedeceu. Drummond olhou Pitt.

—Acha possível que essa pobre mulher o fizesse sozinha?

—Duvido-o. - Recordou sua esbelta figura, a virulência de sua expressão, e o braço protetor da outra mulher, mais jovem e corpulenta. Foi acolhida em casa da África Dowell, quem também conhecia a menina e parece solidarizar-se com a Ivory.

—É lógico. - Drummond parecia sério e pesaroso. Ele também tinha filhos, já maiores, e sua esposa tinha morrido. Sentia falta da vida familiar. - O que tem sobre Hamilton? Foi um engano?

—Quase com segurança, se é que o fez ela. Não sei quantas vezes se entrevistou com o Etheridge, se é que chegou a fazê-lo.

—Diz você que essa a África Dowell... Disse África, não?

Pitt sorriu.

—Com efeito; assim a chamou a senhora Ivory: África Dowell.

—Bem, pois se essa a África Dowell a acolheu em sua casa, quer dizer que ela tinha pouco dinheiro, por isso não pôde pagar a ninguém para que matasse ao Etheridge. Trata-se de uma morte muito... muito eficazmente violenta para ser coisa de uma mulher. Como é ela, que antecedentes tem? Acaso foi granjeira quando era pequena para estar habituada a fatiar pescoços?

—Ignoro-o - Outra coisa que tinha esquecido indagar. - Mas é muito apaixonada e bastante inteligente, inclusive diria que ousada. Suponho que pôde fazê-lo, se chegou a tomar semelhante decisão. Mas a julgar por onde vive uma casa muito atraente em um bom bairro, a Dowell sim tem dinheiro. Poderia haver pago a alguém.

Drummond torceu o gesto.

—Bem, em qualquer caso, isso explicaria que Hamilton fora a primeira vítima por um engano de identidade. Será melhor que vá ao Lincolnshire e veja o que pode averiguar. Traga tudo o que encontrar. - Ergueu os olhos e pareceu que ia acrescentar alguma coisa, mas deu de ombros. - Me informe a sua volta - limitou-se a dizer.

—Sim, senhor.

Pitt desceu para esperar a chegada do guarda com suas coisas para a viagem. Sabia o que Drummond tinha querido dizer: tinha que resolver o caso, e logo. O protesto público estava sendo estridente quase vizinho à histeria em alguns jornais. O fato mesmo de que as vítimas fossem representantes do povo, que os crimes tivessem escavado a base da estabilidade, a liberdade e a ordem, atemorizava a todos os cidadãos. Os assassinatos pareciam um reflexo de um espírito revolucionário escuro e inquietante, algo que só podia provocar caos e destruição. Alguns começavam a recordar a guilhotina jacobina, com o sangue correndo pelas sarjetas. Por sua parte, nem Pitt nem Drummond concebiam que uma mulher se vira impulsionada a vingar-se daquele modo pela perda de sua filha.

Pitt chegou à estação do Broad Street com o tempo justo e tomou um trem com destino ao Lincolnshire. Fechou a porta do vagão quando a máquina começava a vomitar vapor e, entre rugidos e estrépito de ferros, abandonou a enorme e imunda cúpula para iniciar o longo trajeto, deixando atrás as fábricas e as casas, passando pelos subúrbios da cidade maior, rica e populosa do mundo. Nela viviam mais escoceses que no Edimburgo, mais irlandeses que em Dublin e mais católicos romanos que na própria Roma.

Pitt sentiu uma espécie de temor reverencial ante a enormidade da metrópole enquanto contemplava pela janela fileiras e fileiras de casas, sujas do vapor e fuligem de inumeráveis trens como aquele. Quase quatro milhões de pessoas viviam em Londres, dos abatidos meninos sem casa que pereciam de fome e frio, às pessoas mais ricas, mais atraentes e com maior talento de toda uma nação civilizada. Era o coração de um império que se estendia por todo mundo, fonte de arte, teatro, ópera e music-hall, leis... abusos e uma cobiça monumental.

Comeu os sanduíches de carne com embutidos e estirou as pernas intumescidas quando por fim chegaram ao Grantham. Para chegar à casa do finado Vyvyan Etheridge teve que tomar outro trem de linha secundária e depois de hora e meia de viagem alugar um cavalo e uma carruagem. Abriu-lhe a porta um criado que fazia as vezes de vigilante. Pitt teve certas dificuldades para persuadi-lo de que sua missão ali era legítima.

Eram mais de quatro quando por fim entrou no sombrio estúdio do Etheridge, outro suntuoso e elegante aposento abarrotado de livros, e ficou a procurar entre os papéis. Lia à luz de um abajur, e estava intumescido quando uma hora depois achou o que tinha ido procurar.

A primeira carta era muito simples. Levava data de fazia quase dois anos.

 

Estimado senhor Etheridge:

Recorro a você como meu representante no Parlamento para que me ajude a resolver um problema. Minha história é muito simples. Casei aos dezenove anos, por disposição paterna, com um homem vários anos mais velho que eu e de caráter muito severo e autoritário. Empenhei-me em agradá-lo e em procurar certa felicidade durante doze anos. Nesse período lhe dei três filhos, um dos quais morreu. Aos outros dois, um menino e uma menina, cuidei-os e os quis com toda minha alma.

Entretanto, com o tempo a conduta de meu marido e seu inquebrável domínio sobre minha vida, inclusive nos mais mínimos detalhe, fez-me tão desventurada que decidi me separar dele. Quando lhe expus a questão, ele não pareceu contrariar-se, e mais, acredito que se cansou de mim e que a perspectiva de livrar-se de minha companhia sem prejuízo para ele, pareceu-lhe uma solução atraente.

Insistiu em que meu filho devia ficar com ele, sob sua custódia, e que eu não poderia opinar nem influir em seu futuro. Em troca, permitiu que ficasse com minha filha.

Não solicitei nenhum tipo de compensação econômica, e ele tampouco dispôs nada para mim nem para nossa filha Pamela, que então contava seis anos.

Encontrei alojamento e um simples trabalho em casa de uma mulher de recursos razoáveis, e tudo partia bem até que o mês passado meu marido exigiu a custódia de nossa filha, e a idéia de perdê-la é algo que não posso suportar. Ela está bem comigo e é feliz, não lhe falta nada, nem no material nem no concernente a sua educação e bem-estar moral.

Solicito sua ajuda neste assunto, pois não tenho a ninguém mais a quem acudir.

Muito agradecida, FLORENCE IVORY.

 

Seguia uma cópia da resposta do Etheridge.

 

Minha querida senhora Ivory:

Sua situação me emocionou profundamente e penso examinar seu caso imediatamente. Em minha opinião, o acordo ao que você e seu marido chegaram a princípio me parece muito respeitável, e como não lhe pediu ajuda econômica, ele atuou que modo pouco honroso e não pode lhe reclamar a nada, menos ainda separar de sua mãe a uma menina tão pequena.

Voltarei a lhe escrever quando reúna mais informação.

Até então, receba uma atenta saudação.

VYVYAN ETHERIDGE.

 

A seguinte carta era também cópia da que Etheridge tinha escrito ao Florence

Ivory, datada duas semanas depois.

 

Querida senhora Ivory:

Indaguei mais em sua situação e não vejo motivo para que se inquiete ou tema por você nem pela felicidade de sua filha. Falei com seu marido e lhe assegurei que sua demanda carece de base. Uma menina dessa idade está muito melhor aos cuidados de sua mãe natural que de uma preceptora ou babá e, como a senhora mesma dizia, não lhe falta nenhum dos aditamentos de saúde, cultura e uma sólida educação moral.

Espero que não a incomode mais com este assunto, mas se desse o caso, não vacile em me comunicar e verei que lhe atribuam um assessor legal e que obtenha uma sentença que lhe evite ser objeto de novas ameaças.

Receba uma atenta saudação.

VYVYAN ETHERIDGE.

 

A esta seguia outra carta em uma letra muito diferente.

 

Apreciado senhor Etheridge:

Abundando em nosso bate-papo do 4 deste mês, acredito que talvez desconheça a conduta e o caráter de minha mulher, Florence Ivory, quem em certo modo deu a você uma idéia errônea de si mesma quando solicitou sua intervenção para impedir que eu tivesse a custódia de minha filha, Pamela Ivory.

Minha esposa é uma mulher de emoções virulentas e caprichos imaturos. Por desgraça, tem pouco bom senso e é muito auto-indulgente com seus desejos. Dói-me dizê-lo, mas não posso considerá-la uma pessoa capaz de levar a bom termo a educação de um filho, menos ainda de uma filha, a que sem dúvida imbuiria de suas excêntricas idéias.

Não era meu desejo informá-lo disto, mas as circunstâncias me obrigam. Minha esposa defendeu várias causas socialmente radicais, entre elas o que as mulheres tenham direito ao voto, chegando ao extremo de visitar e ser vista publicamente em companhia da Helen Taylor, uma pessoa muito fanática e revolucionária, que vai pela rua vestindo calças!

Do mesmo modo, expressou grande admiração por uma tal senhora Annie Bezant, que também abandonou a casa de seu marido, o reverendo Bezant, e que se dedica a despertar o rancor entre as garotas que fazem fósforos e demais empregadas da fábrica Bryant & Mays. Está fomentando o mal-estar social e advoga pela greve!

Estou certo de que agora compreenderá que minha esposa não é uma mulher capacitada para ter a custódia de minha filha, e, portanto lhe rogo que deixe de lhe oferecer seus serviços neste assunto. Isso só pode redundar em problemas para minha filha, no caso de sua mãe conseguir seu propósito.

Seu seguro servidor, WILLIAM IVORY.

 

E a cópia do Etheridge com sua resposta:

 

Apreciado senhor Ivory:

Obrigado pela carta referente à sua esposa e à custódia de sua filha. Conheci à senhora Ivory e a considero uma mulher de grande determinação e possivelmente de opiniões um tanto equivocadas respeito a certos tema sociais, mas sua conduta foi perfeitamente decorosa, e é claro que está empenhada em sua filha, a qual goza de boa saúde e progride em sua educação satisfatoriamente.

Embora esteja de acordo com você em que o comportamento da Helen Taylor é muito excêntrico e possivelmente não ajuda a sua causa, não acredito que isso constitua motivo suficiente para incapacitar a sua esposa em relação ao cuidado de sua filha. Como você sabe, a lei permite na atualidade que uma mulher, caso de que enviúve, possa cuidar por si só de seus filhos. Assim, opino que neste caso uma menina tão pequena está melhor com sua mãe, e espero que assim siga sendo.

Saúda-lhe atentamente, VYVYAN ETHERIDGE.

 

Continuando, como evidenciava a letra da seguinte carta, uma quarta voz se somava à correspondência.

 

Querido Vyvyan:

Soube pelo William Ivory, que é um bom meu amigo, que amparou a sua desafortunada esposa no assunto da custódia de sua filha Pamela. Devo lhe dizer que temo não tenha sido bem informado a respeito. Trata-se de uma mulher impertinente que defendeu publicamente algumas causas altamente conflituosas, como por exemplo o direito ao voto das mulheres, e pior ainda, a militância industrial entre algumas das operárias menos qualificadas da cidade.

Expressou abertamente sua simpatia pelas garotas que fazem fósforos no Bryant & Mays as animando a desertar de seu trabalho!

Se apoiarmos a esta gente, quem sabe no que poderiam acabar todas estas disputas? Tenha em conta que existe já um mal-estar no país, e são muitos os que desejam o desmoronamento da ordem social, para substituir sabe Deus por que outra coisa! A anarquia, a julgar pelo que dizem.

Devo lhe recomendar encarecidamente que não continue dando apoio de nenhuma classe ao Florence Ivory, e que ajude em troca ao pobre William a obter a custódia de sua filha sem demora, antes de que ela se veja mais prejudicada pelo excêntrico e indisciplinado comportamento de sua mãe.

Seu,

GARNET ROYCE, deputado.

 

Garnet Royce! Assim que o educado e arbitrário Garnet Royce, tão solícito com os assuntos de sua irmã, tão preocupado por ajudar, era quem ficava ao lado do convencionalismo para deixar ao Florence Ivory sem sua filha. Por quê? Ignorância, conservadorismo, algum favor que devolver, ou só a crença de que Florence não sabia se ocupar do bem-estar de sua própria filha?

Leu a cópia da seguinte carta do Etheridge.

 

Querida senhora Ivory:

Lamento lhe comunicar que sigo investigando sobre a pedido de seu marido referente à custódia de sua filha. Acredito que as circunstâncias não são as que eu supus a princípio, ou as que a senhora me fez acreditar.

Por conseguinte me vejo obrigado a lhe retirar meu apoio, e pôr meu empenho do lado de seu marido para que este obtenha a custódia de seus dois filhos e possa educar a ambos em um lar decente e temeroso de Deus.

Sinceramente seu, VYVYAN ETHERIDGE.

 

Senhor Etheridge:

Quase não podia acreditar quando abri sua carta! Fui vê-lo em seguida a sua casa, mas seu criado não me deixou entrar. Estava certa de que depois das promessas que me fez, e sua visita a minha casa, não podia trair deste modo a confiança que depositei em si.

Se não me ajuda perderei a minha filha! Meu marido jurou que se obtiver a custódia não poderei vê-la mais, nem muito menos falar ou brincar com ela, lhe ensinar o que eu aprecio ou convencer a de que não é meu desejo que estejamos separadas, que a quererei com todas minhas forças enquanto viva!

Rogo. Ajude-me, por favor.

FLORENCE IVORY.

 

Não me responde! Por favor, senhor Etheridge, ao menos deixe que lhe fale. Eu posso cuidar de minha filha! Que delito eu cometi?

FLORENCE IVORY.

 

E da última, escrita em letra trêmula pela emoção:

 

Minha filha se foi. Não posso expressar minha dor com palavras, mas algum dia saberá você tudo o que agora sinto, e então desejará com toda sua alma não me haver traído assim!

FLORENCE IVORY.

 

Pitt dobrou a nota e a guardou com o resto da correspondência em um envelope grande. ficou em pé, golpeando o joelho com a escrivaninha sem notá-lo. Sua mente estava no Westminster Bridge, e com duas mulheres em uma sala do Walnut Tree Walk, uma sala cheia de cretone e luz, e de dor impregnando o recinto.

 

Um dia depois de Pitt partir para Lincolnshire, Charlotte recebeu uma carta em mão pouco antes do meio-dia. Ao ver o lacaio com o envelope soube que a carta era da tia avó Vespasia; seu primeiro temor foi que a anciã tivesse caído doente, mas logo notou que o lacaio levava uma libré usual e que seu rosto não refletia aflição alguma.

Charlotte o fez esperar na cozinha. Foi ao salão, rasgou o envelope e leu a letra miúda e um pouco retorcida da Vespasia:

 

Minha querida Charlotte:

Uma velha amiga minha, que estou certa de que gostará, receia que sua neta favorita possa ser suspeita de assassinato. Veio a mim pedindo ajuda, e eu peço isso a você. Com sua experiência e destreza possivelmente possamos descobrir a verdade, ao menos essa é minha intenção!

Se puder acompanhar meu lacaio e vir ver-me para começar um plano de ataque esta tarde, faça-o, por favor. Se não, escreve uma nota e me faça saber quando terá um momento livre. Pensa que nos acaba o tempo. Afetuosamente,

Vespasia CummingGould.

PS: Não é preciso vestir-se de gala para a ocasião. Nobby é uma pessoa muito informal e sua angústia supera qualquer outra consideração.

 

Só havia uma resposta possível. Charlotte sabia bem o que era ter um suspeito de assassinato entre os seres mais queridos, e sentir o medo à prisão, ao cárcere, ao julgamento, inclusive temer o pesadelo da forca. Tinha-o sabido recentemente com Emily. A tia Vespasia tinha estado a seu lado naquela ocasião. É claro que iria.

—Gracie! - chamou enquanto ia para a cozinha. - Gracie, eu tenho que sair para ajudar a alguém em apuros. Dê aos meninos o almoço, e o chá se for necessário. Isto é uma emergência; voltarei assim que possa.

—Certamente, senhora! Gracie afastou a vista do lacaio e do chá que lhe estava servindo. trata-se de um doente, senhora, ou de... Tratou em vão ocultar sua excitação se trata de... - Não achou a palavra idônea para a mescla de perigo e aventura que dançava em sua imaginação. Conhecia as batalhas do Charlotte contra o crime, mas não se atrevia a falar disso abertamente.

Charlotte sorriu com ironia.

—Não, Gracie, não há nenhum doente - concedeu.

—Oh, senhora! - ofegou a garota, suspirando. Por sua mente passaram maravilhosas aventuras. - Tome cuidado, senhora!

Quarenta minutos depois Charlotte desembarcou da carruagem assistida pelo lacaio e subiu os degraus da porta principal da casa da Vespasia. A porta se abriu sem lhe dar tempo a pôr a mão na aldrava, o que indicava que a estavam esperando, mas surpreendeu-a ser recebida pelo sério e elegante mordomo.

—Bom dia, senhora Pitt. Lady CummingGould está no gabinete, se quiser entrar. O almoço será servido na sala do café da manhã.

—Obrigada. - Entregou-lhe a capa e seguiu-o pelo saguão.

O mordomo abriu a porta e Charlotte entrou no salão.

Tia avó Vespasia estava junto ao fogo sentada em sua poltrona favorita. Em frente dela havia uma mulher abatida com um rosto de maravilhosa e dinâmica fealdade, mas tão cheio de inteligência que não carecia de beleza: olhos escuros, sobrancelhas aladas, nariz poderoso, boca risonha e talvez terna. aproximava-se das sessenta e sua cútis estava gasta por toda classe de intempéries, do vento oceânico ao calor do sol tropical. Olhou Charlotte com curiosidade.

—Entre, Charlotte - disse Vespasia. - Obrigado, Jeavons. Avise-nos quando estiver preparado o almoço. - voltou-se para a mulher. Apresento Charlotte Pitt. Se alguém pode nos ajudar de verdade, essa é ela. Charlotte, apresento a Zenobia Gunne.

—Como está - disse educadamente Charlotte, embora um simples olhar da mulher a fizesse ver que essa formalidade ia ser rapidamente esquecida.

—Sente-se - ordenou Vespasia com um gesto de sua mão com punho de renda. - Temos muito que fazer. Nobby te contará o que sabemos até agora.

Charlotte obedeceu, notando a urgência na voz da Vespasia e compreendendo que a outra mulher devia sentir-se incômoda por ter ido pedir ajuda a uma desconhecida.

—Estou-lhe muito agradecida - disse Zenobia à Charlotte. A situação é esta: minha neta tem uma casa ao sul do rio, herdou-a de seus pais, meu irmão mais novo e sua esposa. A morte de ambos faz agora doze anos. África (meu irmão lhe pôs esse nome em honra a esse continente porque eu passei muitos anos explorando-o e ele me queria muito), África é uma garota inteligente, de opiniões muito independentes e com uma grande compaixão, sobre tudo por aqueles que padecem injustiças.

Zenobia estudava Charlotte enquanto falava, tratando já de averiguar que impressão estava formando-se.

—Há alguns anos a África conheceu uma mulher, doze ou quatorze anos mais velha que ela, que tinha abandonado a seu marido levando consigo a sua filha pequena. Durante um tempo pôde arrumar-se com seus próprios recursos, mas em vista das circunstâncias a África ofereceu um lar a ambas, mãe e filha. Foram tomando muito carinho mútuo.

"Bem, a parte da história que nos concerne é que o cruel marido da mulher pretendia obter a custódia da menina. Ela recorreu a seu representante no Parlamento, quem prometeu ajudá-la, coisa que ao princípio fez. Mas logo mudou de parecer e decidiu apoiar ao marido, quem como resultado disso obteve a custódia da menina. A mãe não tornou a vê-la.

—E o marido foi assassinado - perguntou Charlotte, temendo o pior.

—Não. - Os olhos da Zenobia se cravaram nos seus, e Charlotte percebeu que neles havia determinação e dor ao mesmo tempo, o que justificava os temores da Vespasia. - Não, senhora Pitt, é o parlamentar quem foi assassinado.

Charlotte teve um calafrio, como se aquela trágica noite nebulosa na ponte tivesse invadido o salão. Era o caso de Thomas, que lhe tinha resumido com tanta confusão e tato. Charlotte sabia que toda Londres estava consternada pelos crimes, não só por sua natureza, mas também pela identidade das vítimas e a aparente facilidade com que homens queridos e respeitados, legisladores ambos, tinham visto a morte a um passo do Parlamento.

—Sim - murmurou sem deixar de olhá-la. - Os assassinatos do Westminster Bridge. Temo que a polícia possa suspeitar da África e sua hóspede. A pobre mulher tinha motivos, certamente, e nem ela nem África podem provar sua inocência.

A descrição feita por Pitt estava fresca na memória do Charlotte, com seu comentário sobre a aflição do Florence Ivory e a paixão que segundo ele podia induzi-la a matar. A pergunta rondava a cabeça de Charlotte. Tinham sido elas?

—Temos que fazer o possível por ajudar - disse Vespasia antes que o silêncio chegasse a ser doloroso. - Por onde sugere que comecemos?

A mente de Charlotte era um turbilhão. Até que ponto conhecia a tia avó a aquela mulher? Eram amigas de toda a vida ou só conhecidas? Separava-lhes uma geração. Se tinham sido amigas anos atrás, o que tinha passado depois entre elas? Quanto tinham mudado, quanto as tinha marcado a experiência, que coisas valorizavam de um modo diferente? Que classe de mulher se dedicava a explorar a África? Por quê? Com quem? Acaso valorizava a lealdade familiar acima das vidas de quem não era de sua classe ou parentesco? Era ridículo falar disso diante da mulher, já que não poderia fazê-lo com franqueza.

—Pelo princípio - disse muito séria Zenobia, respondendo à pergunta da Vespasia. - Eu não sei se África é inocente. Acredito assim, mas não tenho a certeza, e entendo que se tratarmos de ajudá-la existe uma possibilidade de que estejamos fazendo justo o contrário. Eu estou disposta a aceitar esse risco.

Charlotte fez um esforço por ordenar suas idéias e expressá-las de um modo coerente.

—Se não pudermos provar sua inocência - disse ao fim - , terá que ver se podemos descobrir quem é o culpado... e demonstrá-lo. Não tinha sentido ser falsamente modesta ou decorosa com aquela mulher. Tenho lido algumas coisas na imprensa. De momento não queria revelar que seu marido era o detetive encarregado do caso; Zenobia podia pensar que não era imparcial, e isso obrigaria a Vespasia a um duplo problema de lealdade.

Charlotte sabia que o próprio das senhoras bem era ler os ecos de sociedade ou, quando muito, um pouco de teatro ou críticas de livros ou de arte, mas não havia lugar para fingir que era uma mulher de delicada sensibilidade (inclusive podendo sair graciosa da prova) se pretendiam descobrir aos autores daquele crime atroz.

—O que sabemos dos fatos? - começou. - Dois membros do Parlamento são assassinados de noite no Westminster Bridge, cortam-lhes o pescoço e logo atam seus corpos ao poste do extremo sul. O primeiro é sir Lockwood Hamilton e o segundo Vyvyan Etheridge. - Olhou a Zenobia. - por que ia essa mulher... como diz que se chama?

—Florence Ivory.

—Por que ia Florence Ivory matá-los? Estavam ambos relacionados com a perda de sua filha?

—Somente Etheridge. Não tenho a menor ideia de se a polícia pensar que pôde ter matado também sir Lockwood.

Charlotte ficou perplexa.

—Tem certeza de que tem motivos para temer algo a senhorita Gunne? Não será que a polícia se limita a interrogar a todo aquele que pudesse guardar rancor a qualquer das vítimas, com a esperança de averiguar algo, e que não abrigam suspeitas sobre a senhora Ivory ou sua sobrinha?

Zenobia sorriu com uma mescla de ironia, diversão e pena.

—-É uma possibilidade, senhora Pitt, mas a África me disse que foi vê-las um policial bastante estranho. Não as ameaçou em nenhum momento, e não pareceu alegrar-se ao descobrir que tinham um poderoso motivo. - Florence lhe contou a história e não fez nenhum esforço de ocultar sua aflição pela perda de sua filha nem seu ódio por Etheridge. África teve a impressão de que o policial teria preferido descobrir uma solução alternativa ao caso; em realidade, está convencida de que a história deprimiu-o. Mas também está certa de que o policial investigará e voltará a apresentar-se. E como não há testemunhas de que estiveram aquela noite em sua casa, que cai perto do Westminster Bridge, e como têm motivos de sobra e África possui dinheiro suficiente para ter contratado ao assassino, temem ser presas.

Charlotte não pôde evitar temer o mesmo, com a condição de que não achava que tivessem matado também ao Lockwood Hamilton. E parecia improvável, mas não impossível, que houvesse outro assassino solto em Londres.

—Então, se não foram elas disse, teve que ser outra pessoa. Tratemos de averiguar quem!

Zenobia lutava contra um pânico crescente. Conseguiu-o, mas Charlotte adivinhou em seus olhos que conhecia a enormidade da tarefa, a prática impossibilidade da mesma.

Vespasia se endireitou em sua poltrona e adiantou o queixo, mas falou com mais coragem que convencimento, e as três sabiam.

—Tenho certeza de que ocorrerá algo à Charlotte.

Falemo-lo enquanto almoçamos. Passamos à sala do café da manhã? Ali estaremos bem; os narcisos estão em flor e a vista é sempre agradável.

Ficou em pé, recusando a ajuda de Charlotte, e se dirigiu para ali como se tivesse sido uma reunião fortuita, a renovação de uma velha amizade e o estabelecimento de uma nova, e não houvesse nada mais em que pensar que passar a tarde e ver quem visitariam amanhã.

A sala tinha chão de tacos, como o vestíbulo, e umas vidraças que davam ao terraço. Havia aparadores cheios de porcelana do Milton em branco e azul, e um serviço completo do Rockingham branco com cós dourados. Dispôs-se uma mesa dobrável e a criada esperava para servir a sopa.

Quando já começava o segundo prato, frango com verduras, e os criados tinham partido momentaneamente, Vespasia olhou Charlotte, e esta soube que era o momento de falar. Esqueceu-se da deliciosa comida e da doçura dos brotos da primavera.

—Se tratar-se de anarquistas ou revolucionários - disse com cuidado, enquanto tentava não pensar em Florence Ivory e sua filha, ou na Zenobia Gunne, serena, atenta, mas plenamente consciente da tragédia, - ou de um louco solto, então temos poucas possibilidades de descobri-lo. Portanto, o melhor seria dirigir nossos esforços para onde temos alguma possibilidade de êxito, o que equivale a supor que sir Lockwood Hamilton e o senhor Etheridge foram assassinados por alguém que os conhecia e tinha uma razão pessoal para desejar sua morte. Há muito poucos sentimentos bastante fortes para impulsionar a esses extremos a uma pessoa: o ódio, que ampara a vingança por injustiças passadas; a avareza; e o medo, a algum perigo físico ou perder algo muito querido, como a própria reputação, o amor, a honra, ou simplesmente a paz cotidiana.

—Sabemos muito pouco das vítimas - interveio Zenobia franzindo o sobrecenho, e tomando consciência uma vez mais de que a tarefa podia ser mais ambiciosa do que tinha pensado ao acudir a Vespasia.

Não era a dificuldade o que inquietava ao Charlotte, mas o temor de que ao final descobrissem que tinha sido Florence Ivory quem tinha cometido os assassinatos, se não diretamente, sim pelo delito ainda maior de contratar a alguém para tal fim.

—Isso é o que deveríamos começar a investigar - disse em voz alta, afastando as verduras de seu prato; de repente, seu delicioso sabor já não lhe interessava. - Estamos em melhor posição que a polícia para nos entrevistar com as pessoas adequadas de modo e maneira que possamos observá-los sem que fiquem em guarda. E como em muitos sentidos estamos em uma posição social similar, podemos compreender o que há além de suas palavras, o que realmente pensam.

Vespasia dobrou as mãos sobre o regaço e prestou atenção como uma colegial.

—Por quem deveríamos começar? - perguntou.

—O que sabemos do Etheridge? - inquiriu Charlotte. Deixou viúva, família, amante? - Viu com satisfação que o rosto da Zenobia não se sobressaltava nem dava demonstração de ter sido ofendida em sua decência. - E se disto não tiramos nada, tinha algum rival no âmbito profissional ou de negócios?

—O Time dizia que era viúvo e que deixa uma só filha, casada com um tal James Carfax - disse Vespasia. - Sir Lockwood deixou viúva e um filho de seu primeiro matrimônio.

—Excelente. Já temos por onde começar. Para nós sempre será melhor nos entrevistar com mulheres e tirar logo conclusões. Assim temos à filha do Etheridge...

—Helen Carfax - apontou Vespasia.

Charlotte assentiu.

—E lady Amethyst Hamilton. O filho está casado?

—Não mencionava nada a respeito.

Zenobia se adiantou.

—Eu conheço um pouco certa lady Mary Carfax; faz já muito tempo disso mas acredito recordar, se não me equivoco, que seu filho se chamava James.

—Terá que se pôr em contato com ela - disse Vespasia.

A sinuosa boca da Zenobia apontou para o chão.

—Não simpatizávamos uma com a outra - reconheceu. - Ela sempre criticou que eu fosse à África, entre outras coisas. Opinava que eu desonrava meu berço e meu sexo me comportando do modo mais inadequado a menor ocasião. E eu pensava dela que era vaidosa, curta de idéias e carente de imaginação.

—As duas tinham razão - disse Vespasia com acrimônia. - Mas como é improvável que ela tenha melhorado com os anos, e você quer lhe tirar informação, não ela a você, então é você quem terá que render-se a seus preconceitos sociais, o bastante ao menos para se mostrar agradável com ela.

Zenobia tinha enfrentado os insetos e o calor do Congo, os desconfortos de cruzar desertos e navegar em canoa; tinha lutado contra a extenuação, as enfermidades, as iras da família, os funcionários teimosos e os nativos amotinados. Tinha agüentado a nostalgia, o ostracismo e a solidão. Estava mais que à altura da autodisciplina requerida para ser cortês com lady Mary Carfax, já que era tão necessário.

—É claro disse. Que mais?

—Uma de nós visitará lady Hamilton - prosseguiu Charlotte. - Tia Vespasia, possivelmente deveria fazê-lo. Não a conhecemos, assim terá que inventar uma desculpa. Poderia dizer que conhecia sir Lockwood por seu trabalho em pró da reforma social, e que foi lhe dar os pêsames.

—Eu não o conhecia - replicou Vespasia, agitando uma mão. - E estou de acordo em que isso não importa. Entretanto, e como é uma mentira, igualmente poderia dizê-la você. Eu irei ver o Somerset Carlisle e me inteirarei de tudo o que possa quanto à trajetória política dos dois. Fica a possibilidade de que o crime fosse político, e faríamos bem em cobrir também essa parte da investigação.

—Quem é Somerset Carlisle? - perguntou Zenobia. Acredito ter ouvido esse nome.

—É deputado - respondeu Vespasia. - Um homem colérico e com senso de humor. Sorriu, e Charlotte adivinhou que classe de aventura estava recordando agora. O olhar azul de sua tia avó parecia distante e quase inocente. - E sente paixão pela reforma. Tenho certeza de que nos ajudará.

Zenobia tratou de parecer esperançada e quase conseguiu:

—Quando começamos?

—Quando tivermos terminado de almoçar - respondeu Vespasia, e um brilho de satisfação apareceu em seu rosto ao ver que a incredulidade dava passagem a uma súbita luz de esperança nos olhos da Zenobia.

Estiveram muito ocupadas ao terminar a comida. A roupa que vestiam para a reunião era absolutamente inadequada para os recados que se propuseram. O informal traje da Zenobia, com muito poucas coisas a jogo, seria um insulto para alguém com a suscetibilidade social de lady Mary Carfax, de modo que iria a casa e vestiria o mais de moda que tinha que era um simples vestido do ano anterior, mas melhor do que o que tinha posto. Não era que carecesse de recursos, só que julgava a roupa em função de ser ou não prática.

Perguntou a Charlotte se havia algo em concreto que devesse dizer a lady Mary, mas aquela, temendo que o encontro ia ser bastante infeliz, respondeu que de momento era suficiente reatar sua relação.

Vespasia tirou o vestido ligeiro de andar por casa e pôs um mais quente em lã azul celeste com jaqueta a jogo, para não passar frio pela rua. Acrescentou um toque de glamour porque gostava da beleza e não podia renunciar a isso em nenhuma circunstância. Se tivesse decidido algo tão extraordinário como navegar o Congo em bote de remos, o teria feito com o cabelo bem arrumado e com um vestido elegante e original. Além disso, gostava de Somerset Carlisle e ainda era bastante coquete para desejar que ele a achasse atraente. Embora tivesse uns trinta e cinco anos menos que ela, Somerset continuava sendo um homem.

E para Charlotte procurou um vestido em cor cinza pérola com deliciosas anquinhas, que era ao mesmo tempo sóbrio para dar os pêsames e elegante para proclamar que quem o levava era uma dama. Vespasia já se permitiu anteriormente o luxo de resolver crimes, e sabia quais seriam as exigências antes de enviar ao lacaio a procurar Charlotte. A criada da Vespasia tinha estado atarefada toda a manhã.

Assim, Charlotte foi na carruagem com sua tia avó, deixando-a na residência do Somerset Carlisle antes de seguir para o Royal Street.

Charlotte era valente, mas quando viu a Vespasia com as costas reta como uma baqueta e o chapéu inclinado com suprema elegância, desaparecendo na soleira, sentiu-se aflita pela loucura de sua empresa. Tinha-lhe adulado que sua tia avó fosse a ela, e tinha feito Vespasia e senhorita Gunne acreditar que era capaz de mais do que em realidade era. Acabaria fazendo uma tolice ou, pior ainda, ofendendo a uma mulher que tinha tido uma terrível perda em circunstâncias horríveis e ainda mais dolorosas, estava dando falsas esperanças a duas mulheres de idade que tinham confiado nela, quando o melhor teria sido depositar sua confiança na polícia ou em um bom advogado, coisa que elas podiam permitir-se.

A carruagem avançava a bom ritmo pelo Whitehall; a essa hora da tarde havia poucos viajantes, e o tráfego rodado era muito escasso. Alcançariam a sombra do Big Ben dentro de pouco. Mal teria tempo de serenar-se antes de chegar ao Westminster Bridge e cruzá-lo até o Royal Street. Que diabos ia dizer? Durante o almoço lhe tinha parecido uma aventura; agora lhe parecia ridículo, e de muito má educação!

Teria que ordenar ao cocheiro que desse algumas voltas ao quarteirão enquanto ela tratava de arranjar alguma história incrível? Como o que, por exemplo? "Boa tarde, lady Hamilton, não me conhece, mas meu marido é policial, na realidade está investigando o assassinato de seu marido, e acredito que eu posso averiguar algo. Vou descobrir quem o fez e por que, e começarei por travar amizade consigo. Conte-me sua vida!" Trataria de ser sutil? Ou optaria por ser sincera?

A carruagem se deteve e momentos depois a porta se abriu e Charlotte se viu obrigada a tomar a mão do lacaio e apear-se. Acabou-se o tempo!

Falharam-lhe as pernas, como se seus joelhos não tivessem tido osso. Ao pisar na calçada, foi consciente de que o lacaio e o cocheiro a olhavam.

—Espere, por favor - disse em voz baixa, e recolheu as saias para dirigir-se à porta da casa. Nem sequer levava um cartão de visita! Agora já não tinha remédio.

Ao abrir a porta, apareceu uma criada de negro, muito bem adestrada para mostrar surpresa.

—Sim, senhora?

Não havia outra saída que lançar-se.

—Boa tarde. Meu nome é Charlotte Ellison - disse. Podia ser que recordassem o sobrenome Pitt. - Espero não incomodar, mas admirava tanto sir Lockwood que vim pessoalmente expressar minhas condolências lady Hamilton, em vez de lhe escrever uma nota, coisa que me parecia um desprezo. Ficou olhando a bandeja de prata que a criada lhe estendia em espera de um cartão, e notou que se ruborizava. Sinto muito, estive de viagem e desfiz a bagagem a toda pressa. Obrigou-se a sorrir. Diga por favor, a lady Hamilton que Charlotte Ellison só quer lhe expressar o carinho de muitas pessoas que admiravam a cortesia e a compaixão de sir Lockwood, e a sabedoria com que nos aconselhou durante nossa luta por certas reformas na lei de pobres e na educação de crianças indigentes. Isso seria suficiente; sabia algo disso por sua desesperada luta junto à Vespasia e Somerset Carlisle na época dos assassinatos do Resurrection Row. Sorriu com todo seu encanto e se manteve firme.

—É claro, senhora. - A criada deixou a bandeja vazia sobre a mesa do vestíbulo e a fez entrar. - Se fizer o favor de esperar na saleta, irei ver se lady Hamilton pode recebê-la.

Charlotte deu uma olhada rápida para fazer uma idéia da mulher em cuja casa se achava. Era uma saleta elegante, original, com poucos elementos. Tampouco via a conflito entre duas personalidades, dois gostos diferentes, nenhum sinal de que uma segunda esposa tivesse ocupado o posto da primeira. Não havia nada discordante, nenhuma lembrança que chiasse. A única coisa que lhe pareceu procedente do passado era um quadro de um jardim, descolorido e em excesso adocicado, pouco acorde com as demais aquarelas, mas não desagradável, mais um gesto sentimental que uma intrusão.

Abriu-se a porta e apareceu uma mulher de negro. Era alta e esbelta, entre quarenta e cinco e cinqüenta anos, e seu cabelo escuro tinha toques de cinza. Seu rosto tinha conhecido a tristeza muito antes deste último reverso, mas nele não havia cólera nem raiva ante a vida, como tampouco compaixão por si mesma.

—Sou Amethyst Hamilton - disse. - Minha criada me disse que se chama Charlotte Ellison e que veio me expressar sua condolência pela morte de meu marido. Confesso que ele não mencionou seu nome, mas foi muito atenciosa vindo em pessoa. Como é lógico, agora mesmo não recebo visitas, além de quem devem mostra sua compaixão, de modo que ia tomar o chá sozinha. Se quiser me acompanhar, por mim não há inconveniente. - Um leve e fugaz sorriso iluminou seu rosto. - Há muito pouca gente que se encontre à vontade em uma casa de luto; acredito que sua companhia me virá bem. Mas o compreenderei se tiver outras visitas que fazer.

A culpa Invadiu Charlotte. Conhecia o terrível isolamento que acompanha ao luto: tinha visto a solidão de Emily com a morte de George no ano anterior, que, como no caso desta mulher, agravou-se com o horror do assassinato, a carga de uma investigação policial e o escândalo, e no final o medo e a suspeita das pessoas, impregnando-o tudo de dúvida. E, além disso, ela estava mentindo àquela mulher, valendo-se da máscara da piedade para indagar os segredos da família, para conhecer fatos e emoções normalmente dissimulados na presença da polícia, e tudo porque Charlotte pensava que ela era mais capaz de penetrar na vulnerabilidade de sua classe e de seu sexo.

—Obrigado disse com um fio de voz. - Engoliu em seco; era muito possível que Florence Ivory tivesse matado o marido dessa mulher ao confundi-lo com outro homem. - Eu gostaria.

—Então me acompanhe ao salão. É melhor ali. Diga-me, senhorita Ellison, como foi que conheceu meu marido?

—Veja, há um tempo participei de um intento de modificar as leis sobre asilos. É claro, eu não era mais que uma parte minúscula desse esforço; limitava-me a reunir informação. Havia gente muito mais importante, pessoas com influência e discernimento. Sir Lockwood foi muito bom conosco nessa ocasião, e me deu a impressão de ser um homem compassivo e íntegro.

—Sim, - Amethyst Hamilton assentiu com um sorriso, passando ao salão e lhe oferecendo uma cadeira junto à luz. - Não poderia tê-lo descrito melhor - disse ao sentar-se. - Havia muitos que não estavam de acordo com ele em certos temas, mas nunca soube de ninguém que o julgasse desonesto nem egoísta.

Amethyst puxou a campainha que tinha ao lado, e quando apareceu a criada lhe pediu chá e, depois de uma olhada à Charlotte, - também pasta e sanduíches. Depois continuou falando.

—É curiosa a quantidade de gente que não quer falar da morte. Mandam flores ou cartões, mas se vêm falam do tempo ou de minha saúde, ou da deles. De tudo menos de Lockwood. É como se quisessem privá-lo da existência. Reconheço que de minha parte é muito pouco razoável; suponho que o fazem em consideração a meus sentimentos.

—E possivelmente também por problema - acrescentou Charlotte antes de recordar que estava fazendo uma visita de cortesia; não conhecia essa mulher, e ninguém lhe tinha pedido sua sincera opinião. Notou que se ruborizava um pouco. - Perdoe.

Amethyst mordeu o lábio.

—Tem toda a razão, senhorita Ellison. Raramente sabemos como ser honestos com as emoções de outros quando nós não as compartilhamos. É muito pouco patriótico dizê-lo, mas temo que seja um verdadeiro defeito nacional.

—Certamente. - Charlotte não tinha ido ao estrangeiro, de modo que ignorava se era ou não um defeito nacional, mas acabava de afirmar que voltava de uma viagem, assim não ficava outra saída que compartilhar essa opinião.

—Eu tinha uma irmã - seguiu apressadamente - que morreu em circunstâncias trágicas, e me ocorreu exatamente o mesmo. Conte-me tudo o que queira de sir Lockwood, se for seu desejo. Não acredito que isso me cause problema ou falta de interesse. Parte do respeito que sentimos por quem admiro consiste em continuar falando deles quando já não estão aqui, e elogiá-los ante outros.

—É muito amável.

—Absolutamente. - Charlotte voltou a sentir uma pontada de culpa, mas agora não podia voltar atrás. - Como se conheceram? Imagino que foi muito romântico.

—O que vai! - Amethyst quase riu, e seu rosto se abrandou com a lembrança, o eco da moça que tinha sido estava nas linhas de sua boca e a momentânea lisura de sua fronte. - Tropecei com ele em uma reunião política a que eu tinha assistido com meu irmão mais velho. Lembro que levava um chapéu creme com uma pena, e um colar de contas de âmbar que eu gostava tanto que não parava de manuseá-lo. Por desgraça se rompeu e as contas se espalharam pelo chão. Zanguei-me e me agachei para recolhê-las, mas ainda foi pior. O resto das contas caiu em cascata. Um cavalheiro pisou em uma delas e perdeu o equilíbrio, caindo sobre uma senhora corpulenta que levava um cão nos braços. A mulher gritou, o cão deu um salto e escapuliu sob as saias da que estava a seu lado. Todo o que fez perder o fio ao conferencista. Lockwood me olhou com cenho e me disse que me serenasse, porque acredito que eu estava começando a rir. Mas ao menos me ajudou a recuperar as contas de meu colar.

Amethyst serviu o chá depois de se despedir da criada, e nos trinta minutos seguintes Charlotte se limitou a escutar enquanto lhe falava de seu noivado e de alguns acontecimentos da última época de seu matrimônio. Lockwood Hamilton parecia ter sido uma pessoa gentil e bastante séria que sob sua fachada pública era um homem vulnerável, muito apaixonado por sua segunda esposa. A cada frase que ouvia, Charlotte achava mais e mais misterioso que alguém lhe tivesse talhado o pescoço amparado na penumbra do Westminster Bridge.

Tinham dado as quatro quando a criada bateu na porta para anunciar ao senhor Barclay Hamilton.

Amethyst ficou lívida. No meio daquela rememoração feliz algo doloroso penetrou sub-repticiamente em sua mente deixando uma esteira de solidão e tragédia que lhe devolvia ao presente.

—Diga que entre. - A voz soou um pouco forçada. Voltou-se para Charlotte: - É o filho da primeira esposa de meu marido. Espero que não se importe. Será uma visita de cortesia, e não quero que se sinta na necessidade de nos deixar.

—Mas se trata-se de assuntos de família... não lhes importunarei com minha presença? Se quiser...

—Não, não. De fato não somos muito amigos. E mais, acredito que sua presença tornará as coisas mais fáceis... para os dois.

Estava suplicando, apesar da formalidade de suas palavras, e Charlotte se achou obrigada a ficar até desejando não fazê-lo.

A criada retornou com um homem uns dez anos mais jovem que Amethyst, muito magro e com um rosto interessante que a tensão havia tornado quase branco. Olhou só um momento para Charlotte, mas ela soube que lhe desconcertava vê-la ali, e isso lhe tirou da boca o que tinha vindo dizer.

—Boa tarde.

—Boa tarde, Barclay - respondeu Amethyst com frieza, voltando-se para Charlotte. - O senhor Barclay Hamilton, a senhorita Charlotte Ellison, que teve a amabilidade de vir me dar os pêsames.

—Como está senhorita Ellison. - antes que ela pudesse responder, ele se voltou para o Amethyst. - Desculpa que me tenha apresentado em uma hora pouco adequada.

Trazia uns papéis referentes ao imóvel. Estendeu-os, não tanto como se os oferecesse quanto para indicar a razão de sua presença.

—É muito amável - disse Amethyst. - Mas não era preciso. Não estava nervosa por isso. Podia tê-los enviado e evitar a viagem.

Barclay pôs cara de circunstância; sua boca adotou um gesto duro.

—São papéis de caráter reservado. Acredito que não falei com clareza: trata-se de escrituras de terras e contratos de arrendamento.

Se Amethyst percebeu o tom, fingiu que não, ou não lhe importava.

—Tenho certeza de que poderá se ocupar melhor que eu dessas coisas.

No fim das contas, você é o testamenteiro. Não lhe ofereceu chá nem o convidou a sentar-se.

—E minha obrigação consiste em que você se dê conta da situação e saiba que propriedades possui neste momento.

Barclay a olhava, e ela finalmente se acendeu, mas o sangue abandonou suas faces deixando-a mais pálida que antes.

—Obrigada por cumprir com sua obrigação. - Agora se mostrava educada, mas tão distante que quase parecia grosseira. - Não esperava menos de você, é claro.

O tom dele foi igualmente agudo e gélido.

—Cumpre você com a sua e olhe esses papéis.

Ela ficou rígida e ergueu a cabeça:

—Acredito que esquece com quem está falando!

Umas linhas brancas rodearam a boca do Barclay Hamilton, tal era a intensidade de seus sentimentos e o esforço de seu autodomínio. Ao falar, a voz lhe tremeu:

—Isso não esqueci nunca, senhora. Jamais, desde o dia que nos conhecemos, esqueci nem por um momento quem é a senhora. E ponho a Deus por testemunha.

—Se tiver terminado o que veio a fazer - disse ela em voz baixa e serena, - acredito que o melhor será que se vá. Boa tarde, senhor Hamilton.

Ele inclinou a cabeça, primeiro ao Amethyst e depois à Charlotte.

—Boa tarde, senhora; senhorita Ellison... - E saiu do salão batendo a porta.

Por um momento Charlotte pensou em fingir que nada tinha passado, mas era absurdo. Antes da interrupção, ela e Amethyst estavam falando como se fossem amigas; tinha havido um fio de entendimento que descartava qualquer possível fingimento. Teria sido um desprezo, como deixá-la plantada.

Passavam os segundos e Amethyst não fazia nada. Charlotte esperou até que o silêncio se tornou insuportável e depois se inclinou para verter os sedimentos do chá de Amethyst na xícara, com efeito, e voltou a encher o do bule. Aproximou-se dela.

—Tome isto - sugeriu amavelmente. - Já vejo que a relação é muito difícil. Seria néscio que lhe oferecesse minha ajuda, certamente não há nada que eu possa fazer, mas lhe rogo que aceite minha solidariedade. Eu também tenho parentes que me parecem muito difíceis. Estava pensando na avó.

Amethyst se dominou e aceitou a taça, sorvendo o chá em silêncio.

—Obrigado - disse ao fim. - É muito atenta. Desculpe que a tenha submetido a um enfrentamento tão aborrecido. Não tinha a menor ideia de que a coisa ia ser tão... incômoda. - Mas já não disse mais, nem ofereceu explicação alguma.

Tampouco Charlotte o esperava. Ao que parecia, Barclay Hamilton tinha aceitado tão mal que ela se casasse com seu pai que ainda depois de muitos anos não a tinha perdoado. Possivelmente era uma forma de ciúmes, possivelmente sua devoção por sua mãe era tão grande que o fazia impossível admitir que alguém ocupasse seu lugar. Pobre Amethyst, o fantasma da primeira lady Hamilton devia havê-la espreitado a consciência. Nesse instante Charlotte sentiu aversão pelo Barclay Hamilton, apesar de que quanto tinha visto em seu rosto lhe tinha sido agradável.

Dispunha-se a servir-se de outro salgado quando a criada anunciou sir Garnet Royce, que a seguia tão de perto que Amethyst, se quisesse, não teria podido negar-se a recebê-lo. A julgar pela serena certeza que expressavam seus olhos, sir Garnet dava é claro que sua visita era oportuna. Ao ver Charlotte, levantou as sobrancelhas mas sem chegar a achar ruim.

—Boa tarde, Amethyst; boa tarde!

—A senhorita Charlotte Ellison - apresentou Amethyst. Teve a bondade de vir em pessoa me dar os pêsames.

—Que amável - Garnet fez uma breve inclinação com a cabeça. Tinha completado com as boas maneiras, e agora a ignorou como teria feito com o mordomo ou a governanta. - Amethyst, já está tudo preparado para o funeral. Fiz uma lista de pessoas que acredito seria oportuno convidar, e das que se ofenderão se as excluímos. Pode lê-la, claro, mas estou certo de que estará de acordo. Não fez o menor gesto de mostrá-la. - Escolhi também uma ordem de rezas e vários hinos. Pedi ao Canon Burridge se podia dirigir. Eu acredito que é o mais idôneo para a ocasião.

—Deixou algo para mim? - A voz de Amethyst teve um tom especial, mas não era de estranhar dadas as circunstâncias. Charlotte não teria gostado que alguém se ocupasse até esse ponto de tudo, mas possivelmente se tornara muito independente desde suas bodas e seu declive na escala social. Garnet Royce fazia o que julgava melhor para sua irmã (seu rosto refletia boa vontade praticamente) e Amethyst não pôs nenhuma objeção, embora por um instante uma ruga franziu sua fronte e ela pareceu disposta a protestar, mas logo trocou de opinião.

—Obrigada - se limitou a dizer.

Garnet foi para a mesa onde Barclay Hamilton tinha deixado os documentos.

—O que é tudo isto? - Examinou-os. - Escrituras de propriedade?

—Sim, Barclay trouxe-as - explicou Amethyst, e de novo uma sombra de ira e dor cruzou por seu rosto.

—Darei uma olhada. - Garnet fez gesto de metê-los no bolso.

—Agradecerei se deixar esses papéis onde estão! - replicou-lhe Amethyst. Sou perfeitamente capaz de examiná-los sozinha!

Garnet sorriu.

—Querida, você não sabe nada destas coisas.

—Pois aprenderei. Já é hora, eu acredito = replicou.

—Bobagens! - respondeu ele sem aspereza - Não precisa preocupar-se pelos detalhes e a administração do imóvel, nem aprender palavras novas. A lei é muito complexa para uma mulher, querida irmã. Deixe que seu assessor se assegure de que tudo está em ordem; eu assim acredito, havida conta de que Lockwood era meticuloso com suas coisas. Já lhe explicarei no que se traduz isso, o que é o que possui, e te aconselharei que passos tenha que dar, se fizer falta. Duvido que tenha que retocar muitas coisas. Deveria tirar umas férias, afastar-se de tudo isto, serenar-se e animar-se um pouco. Acredite-me, querida, eu ainda lembro claramente de meu próprio luto. O rosto do Garnet se escureceu com uma lembrança que não compartilhava salvo por alusão, e Amethyst não lhe disse nada. Devia tratar-se de uma perda antiga ou anulada agora pela ferida tão recente dela.

—Vá passar umas semanas em Aldeburgh. - Garnet a olhou outra vez solícito - . Passeia junto ao mar, desfruta do ar, visita gente agradável e fala das coisas do campo. Afaste-se de Londres até que tudo isto tenha terminado.

Ela afastou a vista e olhou pelo pequeno espaço que ficava na janela por debaixo da cortina.

—Acho que não quero.

—Convém-te, querida - disse ele com suavidade, guardando-os papéis no bolso. - depois do ocorrido necessita de uma mudança. Estou certo de que Jasper diria o mesmo.

—Certamente! - exclamou ela. Sempre está de acordo com você! Mas isso não quer dizer que tenha razão. Não quero ir por agora, e não quero que me coajam!

Ele meneou a cabeça.

—É muito obstinada, Amethyst. Quase diria que teimosa, coisa que em uma mulher não está bem. Faz as coisas muito difíceis aos que querem ajudá-la.

Charlotte recordou seu pai por sua firme determinação de proteger ao próximo, e ao mesmo tempo sua absoluta ignorância do que outros sentiam no fundo, pelo que podiam pensar ou desejar.

—Aprecio suas insônias, - Garnet disse Amethyst, empenhada em conservar a paciência. - Ainda não estou preparada para ir. Quando o estiver lhe direi, e se seu convite continuar em pé, aceitarei encantada. No momento penso ficar no Royal Street. E faça o favor de me devolver essas escrituras. Já é hora de que saiba como administrar sozinha as propriedades. Sou viúva, e será melhor que aprenda a me conduzir como tal.

—Conduz-te magnificamente, querida. Jasper e eu nos ocuparemos de suas casas e lhe aconselharemos, e nem que dizer sobre os s assuntos financeiros e legais, pois os levarão pessoas competentes. E se mais adiante decidisse casar-se outra vez, procuraremos pensar em alguém apropriado.

—Eu não quero me tornar a casar!

—Bom por agora não, claro. Não seria muito decoroso, embora o desejasse. Mas dentro de um ano ou dois...

Ela encarou-o.

—Garnet, faça o favor de me escutar por uma vez em sua vida! Quero me familiarizar com meus próprios assuntos!

Sua teima, essa cega negativa a ser judiciosa, exasperava-o, mas procurou manter o tom equânime e a expressão serena.

—Está em um grande engano, mas acredito que quando tiver tido um pouco de tempo se dará conta do que digo. Naturalmente, está sob os efeitos da tragédia. Sei muito bem como se sente agora, querida. Sim, sei, Naomi morreu de escarlatina - franziu o sobrecenho, - mas a sensação de perda é exatamente a mesma, seja qual for a causa.

Amethyst arregalou os olhos de surpresa, e logo algo lhe veio à memória, algo que a confundiu e instalou em seu rosto a piedade e a incredulidade. Ele não pareceu perceber nada. Estava abismado em suas idéias e seus planos.

—Virei vê-la amanhã ou depois. Voltou-se para Charlotte, recordando sua presença. - Muito amável de sua parte por ter vindo, senhorita. Ellison. Que tenha um bom dia.

—Igualmente, sir Garnet - respondeu ela, ficando de pé. - Acredito que já é hora de ir.

—Veio em cabriolé?

—Não, minha carruagem está lá fora - disse ela sem pestanejar, como acostumada a ter uma carruagem sempre ao seu dispor. Depois disse à Amethyst - : Obrigado por me conceder seu tempo, lady Hamilton. Vim lhe dar os pêsames e desfrutei de sua companhia mais que de muitas outras pessoas. Agradeço.

Pela primeira vez desde o anúncio da visita do Barclay Hamilton, Amethyst sorriu abertamente.

—Volte quando quiser se não importa.

—Será um prazer - disse Charlotte sem saber se isso seria possível, e sem a menor esperança de que pudesse ajudar em algo ao Florence Ivory e África Dowell. De fato, sua visita não tinha feito mais que confirmar que Lockwood Hamilton era justo o que parecia ser, e que deveram confundi-lo com outra pessoa, presumivelmente a segunda vítima, Vyvyan Etheridge.

Despediu-se deles e montou na carruagem da Vespasia com a sensação de não ter obtido nada, salvo possivelmente a eliminação de certo fio de pensamento. Era-lhe muito difícil acreditar que Amethyst Hamilton tivesse tido algo a ver na morte de seu marido. Pediria a tia Vespasia que indagasse mais a respeito do Barclay Hamilton; talvez pudessem tirar algo de sua mãe, embora as possibilidades fossem remotas. Mais escuro lhe parecia o personagem do Florence Ivory. Quanto antes pudesse formar uma impressão pessoal dela, melhor.

—A Walnut Tree Walk, por favor - disse ao cocheiro, antes de dar-se conta de que sobrava o "por favor"; ao fim e ao cabo estava dando ordens a um criado, não pedindo algo a um amigo. Tinha esquecido como comportar-se devidamente.

Zenobia Gunne abrigava em sua própria carruagem os mesmos receios que antes Charlotte tivera no da Vespasia. Não tinha medo de Mary Carfax, mas lhe era antipática e sabia que esse sentimento era compartilhado. Zenobia necessitava de uma razão muito poderosa para ir visitá-la sem prévio aviso, e Mary não ia acreditar em uma que não o fosse. A última vez que se viram, em um baile em 1850, Mary era uma mulher de frágil a imperiosa beleza, recém prometida ao Gerald Carfax de maneira satisfatória, mas nada romântica. Zenobia estava solteira. Ambas se tinham apaixonado cada qual a seu modo, pelo capitão Peter Holland. Com a Mary tinha sido gentil e deslumbrante, e ela de repente tinha visto como lhe escapava toda possibilidade de romance ao estar ligada ao Gerald; com a Zenobia tinha sido um homem muito pobre para ter esposa, mas sempre divertido e imaginativo, sua boca sempre disposta ao sorriso, sensível ao belo e também ao divertido, um homem valente, terno e gracioso a quem ela tinha amado profundamente. Peter tinha morrido na Crimea, e Zenobia não havia tornado a amar a ninguém com a mesma intensidade, ou sem sentir que voltavam todos seus sonhos. E com qualquer outro homem, nos momentos mais ternos, eram os olhos do Peter os que via, a risada do Peter a que ouvia.

Como resultado daquilo tinha visitado a África pela primeira vez, escandalizando. a sua família assim como a Mary Carfax. Mas o que importava, se o capitão tinha morrido? Melhor estar sozinha que viver uma ficção com outro.

Enquanto a carruagem corria pelas ruas em direção ao Kensington, Zenobia espremia os miolos tratando de achar uma história verossímil. Já era bastante difícil inclusive para uma velha amiga e confidente tirar algo útil que lançasse alguma luz sobre o assassinato do Vyvyan Etheridge; mas se não conseguisse passar da porta, nem sequer tiraria isso!

Recordava Mary aquele baile? Sabia que Peter queria a Zenobia, e que esta teria o convencido de que não lhe importava o dinheiro nem a alta sociedade, e teria sido senão porque ele morreu na batalha da Balaklava? Ou Mary seguia pensando que teria sido ela a escolhida, se ele tivesse tido a liberdade de escolher a alguém?

A chave era o desespero! Devia falar com sinceridade, dentro do possível. Devia achar um motivo sobre o qual mentir de forma convincente; as emoções eram mais difíceis de simular. Já não sabia o que fazer, precisava saber... exato!: Precisava saber o paradeiro de uma amiga comum daqueles tempos, e seu desespero a tinha feito acudir a Mary Carfax. Mary engoliria isso. Mas o que lhe diria com respeito a quem estava procurando? Não podia ser ninguém bastante fácil de achar sem recorrer a outra pessoa. Ah! Beatrice Allenby era a candidata ideal. Casara-se com um belga fabricante de queijo e vivia em Bruxelas! Não podia esperar-se que ninguém tivesse essa informação. E a Mary Carfax adoraria falar disso: era um escândalo em pequena escala, uma garota de boa família podia casar-se com um barão alemão ou um conde italiano, mas nunca com um belga e menos ainda se fabricava queijo, do tipo que fosse!

Quando chegou a Kensington, Zenobia se tinha serenado e levava a história ensaiada mentalmente em detalhes. Um menino com um aro e um pau passou por seu lado correndo, açoitado por sua preceptora. Zenobia sorriu e subiu os degraus. Entregou seu cartão à criada, olhou fixamente à moça, que era bem descarada, e viu satisfeita como se dirigia para dar a notícia a sua senhora.

A criada retornou momentos depois e levou a Zenobia até o salão. Como tinha suposto, a curiosidade da Mary Carfax era muito grande para fazê-la esperar.

—Quanto me alegro de vê-la, senhorita Gunne, depois de tantos anos - mentiu com um gélido sorriso. - Tome assento, por favor. - Sua atenção era cortês, mas também havia um excessivo interesse, uma forma de recordar que Mary era ligeiramente mais jovem que Zenobia, fato que tinha entesourado como ouro em pano durante sua juventude e que agora não ia passar por cima. Quer tomar algo? Um chá, possivelmente?

Zenobia conteve a resposta que veio aos lábios e forçou a abertura que tinha planejado.

—Obrigada, é muito amável. - sentou-se na borda da cadeira, como ditavam as normas de urbanidade, e não apoiada no espaldar, que teria sido mais cômodo. – Tem bom aspecto.

—Eu diria que é o clima - respondeu lady Mary com toda a intenção. - É bom para a cútis.

Zenobia, torrada pelo sol da África, ansiou deixá-la com a palavra na boca, mas se lembrou de sua sobrinha e o omitiu.

—Tenho certeza - concedeu a contra gosto. - Com tanta chuva...

—Tivemos um inverno bastante agradável - contradisse-lady Mary. - Mas você não terá estado aqui para desfrutá-lo, não é?

Zenobia lhe fez o gosto.

—Não; retornei muito recentemente.

As sobrancelhas de lady Mary se arquearam.

—E veio para ver-me?

Zenobia não moveu nem um músculo.

—Queria visitar o Beatrice Allenby, mas não posso dar com ela. Pelo visto, ninguém sabe onde reside atualmente. E como recordava que você e ela eram muito amigas, pensei que talvez soubesse alguma coisa.

Lady Mary lutou consigo mesma; a ocasião de falar de um escândalo se impôs.

—É claro, embora, a verdade, não sei se deveria contar-lhe disse.

Zenobia fingiu surpresa e preocupação:

—Santo céu! Alguma desgraça?

—Não é a palavra que eu teria escolhido.

—Oh! Não se referirá a um crime?

—Pois claro que não! A verdade tem você uma mente tão... - Lady Mary se conteve a tempo de não ser grosseira. Isso teria sido uma vulgaridade, e Zenobia Gunne lhe era muito antipática para ser vulgar diante dela. - acostumou-se você à conduta pouco convencional dos estrangeiros. Naturalmente que não falo de um crime, mas bem de... uma catástrofe social. Casou-se com quem não devia e agora vive na Bélgica.

—Meu Deus! - Zenobia conseguiu que seu assombro fosse perfeito. - Isso é extraordinário! Bom, na Bélgica há cidades preciosas. Pessoalmente acredito que será feliz ali.

—Com um fabricante de queijo? - acrescentou lady Mary.

—Um quê?

—Um fabricante de queijos! - replicou, deixando que as palavras despedissem toda sua fragrância comercial.

Zenobia recordou conversas parecidas anos atrás, e o rosto de Peter Holland sempre risonho. Sabia o que teria pensado ele, o que haveria dito a Mary sem lhe dar tempo a respirar. Arqueou as sobrancelhas.

—Tem certeza?

—Pois claro que tenho! - replicou lady Mary. - Não são coisas nas que alguém se equivoque facilmente!

—Caramba. A mãe de Beatrice deve estar horrorizada! - Zenobia recordou claramente à senhora Allenby, a qual se teria alegrado de qualquer marido desde que Beatrice não ficasse em casa.

—É lógico - concedeu lady Mary. - E quem não? Embora a culpa não fosse mais que dela! Não vigiava a sua filha como deveria. Deveria estar sempre de olho atento.

Era a abertura que Zenobia tinha estado esperando.

—Pelo contrário, seu filho se casou muito bem, não é certo? Claro que ouvi dizer que era um jovem muito bonito. - Não sabia nada a respeito, mas a nenhuma mãe importava que qualificassem de bonito a um filho seu; certamente assim o parecia. Havia muitas fotografias por toda a sala, mas Zenobia era muito curta de vista para apreciá-las. Poderiam ter sido de qualquer um. - E com muito encanto - acrescentou no caso. - Menos mal. Os jovens bonitos costumam ser mal educados, como se o prazer de olhá-los desse carta branca para conduzir-se mau.

—Certamente disse lady Mary. - Poderia haver-se casado com quem tivesse querido!

Era um claro exagero, mas Zenobia fez ouvidos surdos. Recordou o pomposo que tinha sido Gerald Carfax e imaginou o prolongado tédio de Mary com o passar dos anos, o breve sonho de amor que se desvanecia ao fim, porque recordá-lo fazia insuportável o presente.

—Então se casou por amor. Que bonito - observou. - Não há dúvida de que será muito feliz.

Lady Mary inspirou para declarar que assim era, mas logo recordou o assassinato do Etheridge e compreendeu que não seria afortunado dizer tal coisa.

—Sim, bom...

Zenobia esperou com a pergunta refletida em seu rosto.

—Seu sogro morreu tragicamente muito recentemente. Ele ainda está de luto.

—Oh! Meu Deus! - Zenobia fingiu dar-se conta de repente. - Mas claro! Vyvyan Etheridge, assassinado no Westminster Bridge. Uma verdadeira catástrofe. Rogo-lhe que aceite minhas condolências.

Lady Mary esticou o gesto.

—Obrigado. Para alguém que retornou dos limites do Império, está você muito bem informada. Devo dizer que eu achava que alguém estava a salvo destas coisas em Londres, mas está visto que não! Em qualquer caso, não me cabe dúvida de que tudo se resolverá logo e ficará esquecido. Não pode ter nada que ver conosco.

—Naturalmente - disse Zenobia com dificuldade. Recordou por que lhe era tão antipática Mary Carfax. - Não é como casar-se com um fabricante de queijo, claro.

Lady Mary não captou o sarcasmo; sua inteligência não dava para tanto.

—Quase tudo depende da educação - disse. - James jamais teria feito uma coisa tão egoísta e irresponsável. Eu não lhe teria permitido baralhar uma idéia semelhante quando era jovem, e agora que é um homem adulto segue respeitando meus desejos, como é lógico.

E seus quartos, - pensou Zenobia, mas não disse nada.

—E não é que não tenha gênio! - Olhou a Zenobia com um brilho de desaprovação que continha a sombra de um sorriso. - Tem muitas amizades elegantes, e certamente não permite que sua esposa se entremeta em seus... prazeres. Uma mulher tem que saber estar em seu lugar; essa é sua maior força, seu verdadeiro poder. Você também saberia, Zenobia, se tivesse se conservado em lugar de percorrer desnecessariamente países pagãos. Não há motivo para que uma inglesa vá daqui para lá, sozinha, com objetos grosseiros e metendo-se onde não lhe chamam. A aventura é coisa de homens, como outras muitas atividades.

—Do contrário acaba uma mulher casando-se com um fabricante de queijo em vez de com um herdeiro! - replicou-lhe Zenobia. - Imagino que a esposa do James terá herdado uma fortuna.

—Não tenho nem idéia. Eu não pergunto a meu filho por seus assuntos financeiros. - A voz de lady Mary soou fria, mas sua boca mostrava uma dobra de satisfação.

—Os assuntos financeiros de sua nora - corrigiu Zenobia. - O Parlamento aprovou uma lei segundo a qual os bens da esposa pertencem a esta, não a seu marido.

Lady Mary enrugou o nariz e seu sorriso permaneceu ali.

—Uma mulher que amasse e confiasse em seu marido continuaria deixando-o aos cuidados deste - replicou. - Enquanto estivesse vivo. Como você saberia se tivesse desfrutado de um matrimônio feliz. Não é próprio de mulheres envolverem-se em tais coisas. Assim que comecemos a fazê-lo, Zenobia, os homens deixarão de nos cuidar como deveriam! Pelo amor de Deus, mulher, não entenderá?

Zenobia soltou uma gargalhada. Detestava a Mary Carfax e tudo o relacionado com ela, mas pela primeira vez desde sua separação trinta e oito anos atrás, achava entendê-la um pouco, e essa sensação ia acompanhada de certa calidez.

—Eu não lhe vejo a graça! - disse lady Mary.

—Acredito - assentiu Zenobia entre risadas. - Sempre lhe aconteceu o mesmo.

Lady Mary alcançou a corda da campainha.

—Deve ter outras visitas a fazer; não quero entretê-la mais, Zenobia.

Não tinha mais saída que despedir-se. Ficou em pé. A visita tinha sido um completo desastre, mas pensava partir com dignidade.

—Obrigado por me dar a notícia do Beatrice Allenby. Sabia que você era a pessoa que podia saber o ocorrido... E que não poderia calar-se foi uma tarde encantadora. Adeus.

E quando a criada abria a porta em resposta à campainha, ela saiu, cruzou o vestíbulo e abandonou a casa tão logo a porta principal esteve aberta. Uma vez na rua amaldiçoou generosamente em um dialeto que lhe tinha ensinado no Congo um nativo. Não tinha conseguido nada que pudesse ajudar ao Florence Ivory ou a África Dowell.

Vespasia tinha a missão mais simples, mas por outro lado era a única que podia levá-la a cabo. Conhecia bem o mundo da política, a diferença de Charlotte e de Zenobia; possuía a categoria e a reputação necessárias para abordar quase a qualquer um, e graças a suas muitas batalhas em pró da reforma social tinha adquirido a experiência de saber muito bem quando lhe mentiam ou a tiravam de cima com uma versão corrigida da verdade, adequada para mulheres e aficionados.

Teve sorte de achar Somerset Carlisle em casa, mas se estivesse ausente teria o esperado. O assunto era muito urgente para adiá-lo. Logicamente, não o havia dito assim a Zenobia, mas quanto mais detalhe sabia, mais temia que a polícia pudesse apresentar excelentes acusações contra Florence Ivory, se não fosse ela verdadeiramente culpada. Se Zenobia não tivesse tido o caráter que tinha excêntrica, fogosa, solitária e de inclinações profundas e duradouras Vespasia teria evitado qualquer implicação no assunto. Mas já que tinha aceitado ajudar, a coisa menos cruel que lhe ocorria pensar era que quanto antes descobrisse a verdade, melhor para todos. Havia a remota possibilidade de que encontrassem outra solução; se não, no mínimo acabariam com a intriga que corroia a Zenobia, esse atroz vaivém entre a esperança e o frio desespero à medida que uma informação se ocultava a outra. E tão duro como qualquer revelação era o cinza silêncio da espera, não saber o que ia acontecer tratar de compor mentalmente o que a polícia podia estar pensando.

Vespasia o tinha experimentado como resultado da morte do George, e sabia o que devia sentir Zenobia como não podia fazê-lo um profano.

Por conseguinte não teve o menor escrúpulo em mandar Charlotte a qualquer recado que pudesse ser de utilidade. Faria igual com Emily se ela não tivesse estado na Itália, e, além disso, se alegrava muito de ocupar o tempo do Somerset Carlisle e utilizar seu talento, se é que podia tirar algo dele.

Carlisle a recebeu em seu estúdio. Era um aposento menor que o salão, mas muito confortável mobiliado com couro velho e de madeira bem encerada que devolvia a luz do lampião. A espaçosa escrivaninha estava cheio de papéis e livros abertos, com três penas estenográficas, meia vara de lacre e vários selos de correios.

Somerset Carlisle era um homem magro de quarenta e tantos anos, com o aspecto de quem queimou todos seus excessos de energia em uma atividade implacável, um rosto onde a emoção e a ironia estavam tão perto da superfície que só os anos de disciplina as mantinham dentro dos limites do bom gosto, não porque acreditasse ou temesse as teorias de outros, mas sim porque sabia que não era prático desconcertar às pessoas. Entretanto, como Vespasia sabia muito bem, possuía uma imaginação ilimitada e era capaz de estar à altura de qualquer circunstância, por mais estranha que fosse, desde que lhe parecesse justa.

Carlisle se surpreendeu ao vê-la. Uma dama da categoria da Vespasia não se teria apresentado em sua casa sem uma razão de peso; conhecendo-a, com certeza tinha que ver com algum crime ou injustiça.

Quando ela entrou, ele se levantou, esparramando sem querer um montão de cartas, ao que fez pouco caso

—Lady CummingGould! Sempre é um prazer vê-la. Sente-se, por favor. - Afastou um gato da cadeira e sacudiu o assento com a mão, aparando a almofada. - Quer que peça o chá?

—Possivelmente mais tarde - disse ela. - De momento só necessito sua ajuda.

—É claro. Do que se trata?

O gato se aproximou silenciosamente da escrivaninha, saltou nela e tentou subir a uma pilha de livros.

—Hamish - exclamou Carlisle. - Desça daí, tolo! - O gato ignorou-o. - ocorreu algo? - perguntou a Vespasia.

—Certamente - concedeu ela, recordando com uma agradável sensação como gostava daquele homem. - Dois deputados foram assassinados no Westminster Bridge. Degolados.

As grossas sobrancelhas de Carlisle se elevaram.

—Isso a trouxe aqui?

—Não, é claro que não. Estou preocupada porque a polícia suspeita da sobrinha de uma boa amiga minha.

—Uma mulher? - disse ele, desconfiado. - Não parece um crime próprio de uma mulher, nem pelo modo nem pelo lugar. Thomas Pitt pensa assim?

—A verdade é que não sei - confessou ela. - Mas acredito que não, ou Charlotte o teria mencionado, caso ela saiba algo. Ultimamente esteve muito absorta com o casamento de Emily.

—O casamento de Emily? - Somerset estava assombrado, e agradado também. - Não sabia que houvesse tornado a casar-se.

—Pois sim, com um jovem encantador e sem um penny no bolso. Mas não é tão catastrófico como pode parecer; eu acredito, embora nestas coisas seja difícil afirmar algo, que ele a quer muito e demonstrou sua fidelidade inclusive em momentos muito difíceis; gosta da aventura e tem um agradável senso de humor, assim que a coisa poderia sair bem. Ao menos começou felizmente, coisa que nem sempre ocorre.

—Mas a preocupa a sobrinha de sua amiga, não é? De maneira que lhe deu de assassinar deputados, em?

Ela sabia que seu tom frívolo não queria dizer que não apreciasse a gravidade da situação.

—Porque a segunda vítima lhe prometeu ajudá-la a conservar a custódia de sua filha e logo renegou sua palavra e ajudou o marido, em resultado do qual ela perdeu a menina e é provável que não volte a vê-la mais.

Ele franziu a fronte.

—Por quê? Por que uma mãe teria que perder a custódia de sua filha? - perguntou.

—Considera-a não idônea para educar a uma menina devido a suas opiniões. Por exemplo, acredita que as mulheres deveriam ter direito a votar seus representantes no Parlamento e nas prefeituras, e se relacionou com a senhora Bezant em sua luta por um salário digno e pelas melhoras das condições para as garotas que fazem fósforos no Bryant & Mays. Você sem dúvida saberá melhor que eu a quantidade de garotas que morrem de necrose de mandíbula devido ao fósforo e ficam calvas antes dos vinte anos por levar caixas sobre a cabeça.

O semblante do Carlisle se escureceu.

—Com efeito. Diga-me, - Vespasia disse, - saltando-as formalidades, você acha que essa mulher pôde matar aos deputados?

—Sim. Mas não a conheço pessoalmente. Talvez ache o contrário quando o fizer, embora duvide. Zenobia Gunne também opina o mesmo. Mas prometi ajudá-la. Por isso vim lhe perguntar se sabe algo sobre Lockwood Hamilton ou Vyvyan Etheridge que pudesse nos ajudar a descobrir quem os assassinou, tanto se foram Florence Ivory e África Dowell ou outras pessoas.

—Duas mulheres?

—Florence é a mãe que perdeu a sua filha; África é a sobrinha da Zenobia, com quem a senhora Ivory compartilha casa.

Pensativo, Carlisle se levantou, foi até a porta, pediu chá e sanduíches e voltou a sentar-se frente à Vespasia, tendo que tirar primeiro ao Hamish da cadeira.

—Naturalmente, quando me inteirei dos assassinatos o primeiro que pensei foi que era obra de anarquistas, de um lunático ou de alguém com um motivo pessoal, embora confesse que isto último me pareceu improvável depois da morte do Etheridge.

—Tinham alguma coisa em comum? - perguntou Vespasia.

—Ignoro-o, mas suponho que o mesmo poderiam ter em comum outras duzentas pessoas.

—Então terá que supor que assassinaram a um dos dois por engano - concluiu ela. - Parece-lhe possível?

Carlisle refletiu.

—Sim. Ambos viviam no lado sul do Westminster Bridge, um agradável passeio até casa em uma noite primaveril. Ambos eram de constituição média, de traços conspícuos como o cabelo cinza pérola, pálidos e de feições alongadas. Eu nunca os teria confundido, mas é possível que às escuras e alguém que não os conhecesse muito... Isso significaria que Etheridge era o objetivo do assassino e Hamilton um equívoco; não é possível que o engano fosse o segundo.

—Me diga o que sabe de Etheridge. - Vespasia se apoiou no espaldar e entrelaçou as mãos sobre o regaço.

Por uns segundos Carlisle permaneceu em silêncio, ordenando suas idéias, momento no que chegou o chá.

—Sua carreira foi sólida mas nada espetacular - começou. - Tinha propriedades em dois ou três condados, também em Londres, e recursos suficientes, mas se trata de dinheiro velho. Ele não ganhava muito.

—Política? - interrompeu ela.

—Aí está o mais difícil de entender. Etheridge nunca fez nada conflitivo, que eu saiba costumava seguir a linha do partido. Estava pela reforma, mas só ao ritmo que aprovavam seus superiores. Não era nem radical nem inovador, mas tampouco intransigente.

—Está-me dizendo que ia com o vento que corre - observou Vespasia com menosprezo.

—Não sei se o diria de um modo tão cruel. Mas seguia a corrente principal. Se tiver alguma convicção, era a mesma de seus colegas. Estava contra a autonomia da Irlanda, mas só nas votações; nunca falava disso na câmara, de modo que dificilmente pôde ter sido alvo dos fenianos.

—E seu cargo? Com certeza pisoteou a alguém em sua escalada.

—Querida Vespasia, Etheridge não chegou tão longe para fazer a ninguém nada grave; certamente nada que provocasse que lhe fatiassem o pescoço!

—Então violou a filha de alguém, seduziu à esposa de outro? Por Deus, Somerset, alguém o matou!

—Já sei. - olhou as mãos e depois a ela. - Não acredita que pôde ser simplesmente um louco solto, ou inclusive a sobrinha de sua amiga, como você teme?

—É provável, mas não certo. E enquanto existam dúvidas a respeito, continuarei investigando. Pode ser que tivesse uma amante, ou um amante. Ou talvez jogasse; talvez alguém lhe devesse muito dinheiro, ou possivelmente ele tinha dívidas. Talvez se inteirou por acaso de algo importante e mataram-no para calá-lo.

Carlisle franziu o sobrecenho.

—Inteirar-se do que?

—Eu que sei! Homem de Deus, você não nasceu ontem! Escândalo, corrupção, traição... Há muitas possibilidades.

—Sabe de uma coisa, sempre me assombrou que uma mulher de sua linhagem, com uma vida tão exemplar, possua um conhecimento tão amplo dos pecados e perversões humanos. Diria-se que nunca viu uma cozinha, para não dizer um bordel.

—É a impressão que quero dar - replicou ela. - Para uma mulher, o aspecto é sua fortuna, e o que aparenta será a medida do que outros achem que é. Se tivesse um pouco mais de prática saberia. Às vezes acredito que é você um idealista.

—Possivelmente sim, às vezes - concedeu ele. - Mas pinçarei um pouco por aí a respeito do Etheridge, embora duvide que possa averiguar algo de muita utilidade.

O mesmo pensava Vespasia, mas não queria render-se tão cedo.

—Obrigada. Seja o que for, acredito que servirá. Embora com isso só descartemos algumas possibilidades.

Carlisle sorriu, e em seu olhar houve certa ternura além de respeito. Ela se sentiu um pouco incômoda, o qual era absurdo: Vespasia estava acima de toda perplexidade. Mas lhe surpreendia ver até que ponto a agradava o afeto dele. Tomou outro canapé eram de salmão com maionese, deu um ao gato e mudou de assunto.

Charlotte apeou no Walnut Tree Walk e foi diretamente à porta. Para esta visita a única postura possível era a franqueza absoluta. Não o tinha perguntado, mas supunha que Zenobia haveria dito a sua sobrinha que ia fazer todo o possível; por que, se não, teria confiado nela sua sobrinha?

Uma criada, não de uniforme, mas com um vestido azul e avental branco, sem touca, abriu a porta.

—Sim, senhora?

—Boa tarde. Minhas desculpas por me apresentar a estas horas - disse Charlotte com aprumo, - mas é muito importante que fale com a senhorita a África Dowell. Meu nome é Charlotte Ellison e venho da parte de sua tia, Zenobia Gunne, por um assunto de certa urgência.

A criada a convidou a entrar. Charlotte gostou da casa. O saguão estava adornado com bambu e madeira encerada, e era muito luminoso. Bulbos e flores cresciam em vasos de barro de terracota verde, e viu cortinas de cretone na sala de jantar.

A criada demorou um momento e logo a acompanhou a uma sala que parecia a única sala da casa pensada para receber convidados. A parede do fundo era formada por janelas e vidraças, os assentos tinham almofadas floreadas, e sobre a mesinha de pés de bambu havia terrinas com flores. Entretanto, Charlotte percebeu uma espécie de tolice, algo que não teria esperado daquelas duas mulheres. Demorou só um instante em compreender a causa daquela sensação: não havia fotos em nenhuma parte, apesar de na cornija da lareira haver lugar de sobra, assim como no batente, na mesa e no aparador. Não havia nenhuma fotografia da menina, como as que Charlotte tinha da Jemima e Daniel em sua casa. Não havia o menor sinal.

E embora aquele fosse um quarto feminino, tampouco havia meadas de lã nem mesa de costura nem bordados. Um olhar de soslaio a estante revelou textos de filosofia e história política, mas nada de humor nem de romance, e certamente nenhuma leitura para meninas.

Era como se expurgara todo rastro de lembrança dolorosa ou de desejo de fundar um lar. Charlotte o compreendia em parte, mas a sensação foi inquietante.

A mulher que estava de pé no meio da sala era angulosa, para não dizer ossuda, e ao mesmo tempo tinha uma espécie de graça perversa. Seu simples vestido de musselina lhe sentava estranhamente bem. Um vestido de babados teria desafinado com seu surpreendente rosto de olhos muito separados, nariz dominante e boca emoldurada em rugas de dor. Aparentava uns trinta e cinco anos, e Charlotte soube que era Florence Ivory. Sentiu-se desconcertada. Uma mulher assim podia ter amado e odiado até o ponto de fazer uma loucura.

Sentada junto à janela, uma mulher mais jovem com um rosto tirado de um quadro do Rossetti olhou Charlotte com ar vigilante, disposta a defender o que amava. Era o rosto do visionário, de que persegue seu sonho e morre por uma causa.

—Encantada de conhecê-la disse depois de uma leve vacilação. Esta manhã estive em companhia de lady Vespasia CummingGould e de sua tia, a senhorita Gunne. Convidaram-me para almoçar porque lhes preocupa seu bem-estar e a possibilidade de que possa ser injustamente acusada de um crime.

—Seriamente? - Florence Ivory pareceu achar divertido. - E qual é sua implicação em tudo isto, senhorita Ellison? Não me diga que visita todas as mulheres de Londres que são objeto de injustiças!

Charlotte notou uma pontada de irritação.

—Certamente que não, senhora Ivory - respondeu com aspereza. - vim porque a senhorita Gunne se empenhou em tratar de impedir essa injustiça que ela teme, e pediu ajuda a minha tia avó Vespasia, quem por sua vez foi a mim.

—Continuo sem ver o que poderia fazer você. - Florence falava com descortesia, mas também com desespero.

—Naturalmente! - replicou-lhe Charlotte. - Se o visse, provavelmente o faria você mesma. Talento não lhe falta. - Sua mente voltou para aquela reunião de mulheres. - Só possuo certa experiência, bom senso, e um pouco de coragem. - Não falava com tanta brutalidade nem tanta arrogância desde há muitíssimo tempo, pensou. Mas tinha que defender-se da agressividade daquela mulher.

África Dowell se levantou e se aproximou do Florence Ivory. Era mais alta do que Charlotte pensava e, embora esbelta, dava a impressão de ter uma compleição atlética sob seu vestido de algodão rosa.

—Você não pode ser detetive, senhorita Ellison, se lady CummingGould for sua tia avó. O que se propõe fazer para nos ajudar?

Florence a olhou com cenho.

-Vamos, África. A polícia é composta de homens, e embora haja alguns mais ou menos educados e até com certa imaginação, é inútil supor que possam chegar a conclusão alguma que não seja a mais óbvia. Não acredito que vão suspeitar da família ou dos conhecidos da senhorita Ellison, verdade? Nossa esperança é que apanhem a algum demente antes que possam apresentar acusações contra mim!

África mostrou mais paciência do que teria tido Charlotte.

—Tia Zenobia é realmente incrível. - Adiantou levemente o queixo. – Recém completos os trinta deu de explorar. Esteve no Egito e depois no Congo. Navegou o grande rio em canoa; era o único branco da expedição. Teve a valentia de fazer coisas que você quereria fazer, assim não a desdenhe. - Absteve-se de acrescentar mais críticas aos preconceitos de Florence Ivory.

A lealdade de África, mais que os fatos em si, comoveram ao Florence. Relaxou- se e pôs uma mão sobre o braço de sua amiga.

-Eu gostaria de fazer coisas assim, é certo admitiu. Tem que ser uma pessoa extraordinária, mas não vejo de que forma possa nos ajudar.

África olhou Charlotte.

Esta não achou nada que as consolasse. Ela agia segundo o acaso e o instinto, metendo-se nos acontecimentos, observando e preocupando-se. E por cima teria sido muito má idéia dizer que seu marido era da polícia.

—Investigaremos outras alternativas - respondeu com escassa convicção. - Averiguaremos se alguma das vítimas tinha inimigos políticos ou pessoais...

—Não é isso o que faz a polícia? - perguntou África.

Charlotte viu cólera no rosto de Florence, uma emoção que parecia justificada. Sentiu compaixão: Florence Ivory já tinha perdido a um ser querido, nada menos que a sua filha. Mas sua condenação de todas as pessoas que detinham autoridade, não só de quem a tinha traído, não lhe granjeava as simpatias de Charlotte.

—O que lhe faz pensar que a polícia suspeita tanto de você, senhora Ivory? - perguntou com certa brusquidão.

—O olhar daquele policial - respondeu Florence com gesto de dor e desprezo.

Charlotte não podia acreditar.

—Como diz?

—Notei-o em seus olhos. Era uma mescla de piedade e processamento... Claro que tenho tudo contra mim: escrevi ao Etheridge ameaçando-o, e a polícia não demorará para achar essas cartas; tenho a arma, já que qualquer um pode comprar uma navalha de barbear, e a cozinha está cheia de facas! Além disso, eu estava sozinha em casa a noite em que o mataram; África foi visitar uma vizinha doente e ficou ali até a madrugada, mas a mulher estava delirando, assim não acredito que saiba se a África ficou ou não. Pode ser que você saiba resolver pequenos furtos e descobrir autores de cartas desagradáveis, mas demonstrar minha inocência é mais que uma provocação a seu talento. De todo modo, agradeço por seus bem-intencionados esforços. E diga lady CummingGould que lhe agradeço suas insônias.

Charlotte estava tão zangada que necessitou de toda sua força de vontade para recordar-se que aquela mulher já tinha sofrido muito. Só visualizando mentalmente o rosto da Jemima, recordando o peso daquele corpo delicado em seus braços, o aroma de seu cabelo, pôde Charlotte sossegar seu aborrecimento. Mas a piedade que sentiu a seguir foi tão intensa que a deixou quase sem fôlego.

—Talvez não seja você a única pessoa a que traiu senhora Ivory; e se não matou-o, então continuaremos procurando quem o fez. E penso fazê-lo porque quero. Obrigada por seu tempo. Bom dia. Bom dia, senhorita Dowell. E sem mais partiu.

Saiu ao último sol da tarde da primavera, sentindo-se extenuada e assustada. Nem sequer estava convencida de que Florence Ivory tivesse matado ao Etheridge.

O motivo estava ali, certamente, e o furor necessário!

 

Wallace Loughley, membro do Parlamento, achava-se ao pé do Big Ben. A sessão tinha sido longa e estava cansado. O debate tinha sido francamente estéril, e no final não tinham conseguido nada. A noite era linda, muito para esbanjá-la na Câmara dos Comuns escutando argumentos que já tinha ouvido uma dúzia de vezes. No Savoy representavam uma ópera muito boa do Gilbert e Sullivan, e sabia de várias damas encantadoras que assistiriam.

A brisa tinha dissipado a fumaça e a névoa, e Loughley viu o brilho das estrelas. Queria ter dito ao Sheridan... Maldição! Tinha-o tido a um passo fazia pouco. Com certeza não estaria longe, a noite se prestava para passear. Vivia perto do Waterloo Road.

Pôs-se a andar para a ponte a passo vivo, deixando atrás a estátua da Boadicea com seus cavalos e sua carruagem perfilados contra o céu, as luzes do Embankment convertidas em uma fileira de luas amarelas paralelas ao rio. Adorava a cidade, sobre tudo o centro. Ali tinha estado a sede do poder da época de Simon do Montfort e o primeiro Parlamento no século XIII, e inclusive antes, da carta constitucional de Henrique II e depois a Carta Magna. Agora era o centro de um império que nenhum deles podia ter imaginado. Céus, se nem sequer sabiam que a terra era redonda, como iriam saber que um quarto de sua esfera ia ser britânica!

Ah, aí estava Sheridan, apoiado contra o último poste, quase como se o estivesse esperando.

—Sheridan! - chamou Loughley, levantando sua elegante bengala a modo de saudação. Sheridan! Queria lhe perguntar se quer jantar comigo a semana próxima, em meu clube. Poderíamos falar de... Mas o que lhe passa? Encontra-se mau? Parece... Sua voz se extinguiu entre blasfêmias de horror.

Cuthbert Sheridan estava meio dobrado para trás contra o poste, a cabeça inclinada e uma mecha sobre a fronte, lívida à luz artificial. O cachecol branco estava tão apertado em torno do pescoço que seu queixo apontava para cima, e o sangue tinha manchado a seda e o peitilho de sua camisa. O rosto parecia fantasmagórico, com os olhos fixos e a boca meio aberta.

Loughley viu que o céu e o rio giravam a seu redor e notou uma vertigem no estômago; ao perder o equilíbrio, segurou-se à mureta da ponte. Havia tornado a passar, e ele se achava a sós no Westminster Bridge com o cadáver. O horror impediu-o de gritar.

Cambaleou de volta para o extremo norte e o palácio do Westminster, escorregando no pavimento úmido e com as luzes dançando confusamente ante ele.

—Encontra-se bem, senhor? - disse uma voz.

Loughley ergueu os olhos e viu uma luz que brilhava sobre botões prateados e o uniforme de um policial.

—Meu Deus! Ocorreu outra vez! Ali... É Cuthbert Sheridan.

—O que aconteceu, senhor? - A voz soava receosa.

—Outro assassinato. Cuthbert Sheridan... Cortaram-lhe o pescoço, pobre diabo! Faça algo, pelo amor de Deus!

Em outro momento o agente Blackett teria pensado que o homem que tremia ante ele e dizia coisas incoerentes era um bêbado com alucinações, mas tudo aquilo tinha algo de espantosamente familiar.

—Me acompanhe e me diga onde, senhor. - Não queria perder ao homem de vista. Acaso tinha pegado ao misterioso assassino do Westminster? Duvidava-o. O homem parecia verdadeiramente emocionado. Mas era uma testemunha, sem dúvida.

Loughley retornou a contra gosto, entre náuseas de horror. Tudo o que tinha imaginado se convertia agora em pesadelo.

—Oh... - disse o agente Blackett. Olhou o Big Ben, anotou a hora, tirou seu apito e o fez soar com aguda intensidade.

Quando Pitt chegou, Micah Drummond já estava ali, vestido como se acabasse de levantar-se de junto a sua lareira, entre transtornado e pesaroso. Seus olhos tinham um olhar vazio inclusive à luz do lampião, e seu nariz estava mais franzido que de costume.

—Ah, Pitt. Afastou-se dos homens em cachos junto à carruagem fúnebre. Outro mais, exatamente igual aos outros. Eu achava que Etheridge seria o último. Bom, parece que no final não foi a mulher que você dizia. Isto é obra de um demente.

Pitt sentiu alívio entre o horror crescente. Não queria que Florence Ivory fosse culpada. Seu rosto lhe veio à memória como se a tivesse visto um momento antes. Um rosto apaixonado, capaz da violência suficiente para cometer um crime, e também uma inteligência sutil, suficiente para ter previsto esta mesma conversa.

—É provável - disse.

—Provável!

—Há muitas possibilidades. - Pitt olhou o poste. O corpo tinha sido depositado no chão. Observou-o, tomando mentalmente nota da roupa, das mãos, da ferida igual à dos outros dois, o rosto pálido com seu largo nariz e seus olhos afundados, o cabelo que aparecia prateado à luz artificial. - Pode ter sido um louco - prosseguiu, - ou uns anarquistas, embora duvide; ou possivelmente se esteja tramando uma conspiração política da qual não temos notícia. Ou talvez isto não tenha nada que ver com os casos anteriores, e alguém se limitou a imitá-lo. Ou poderiam ser três assassinatos, dos quais só uma pessoa interessa ao assassino e os outros dois são um estratagema para nos despistar.

Drummond fechou os olhos como se suas pálpebras quisessem impedir a passagem a uma idéia tão horrível. Esfregou o rosto com suas longas mãos e depois suspirou.

—Deus santo! Espero que não! Ninguém pode ser tão... Mas não achou a palavra.

—Quem é? - perguntou Pitt.

—Cuthbert Sheridan.

—Deputado?

—Sim, certamente, outro parlamentar. Quarenta anos, casado, três filhos. Vivia no lado sul do rio, no Baron"s Court, junto ao Waterloo Road. Um deputado jovem e promissor, pelo distrito do Warwickshire. Era um pouco conservador, contrário à autonomia da Irlanda e à reforma penal; partidário de melhorar as condições trabalhistas em minas e fábricas, assim como a lei de pobres e a do trabalho infantil. Absolutamente contrário ao voto da mulher. - Olhou Pitt fixamente. - Qualquer um pôde fazê-lo.

—Sabe muitas coisas dele - disse Pitt com surpresa. - Achava que o tinham encontrado faz só meia hora.

—Encontrou-o outro membro do Parlamento. Vinha seguindo-o para convidá-lo para jantar. Reconheceu-lhe em seguida e nos disse isso. O pobre está muito abalado. Chama-se Wallace Loughley, está sentado lá, junto ao carro fúnebre. Alguém lhe deu um gole de brandy, mas mais valeria interrogá-lo quanto antes e deixar que vá para casa.

—O que disse o médico?

—Igual aos anteriores; ao menos, parece à primeira vista. Uma só ferida, quase com segurança feita por trás. A vítima não parece ter oferecido resistência.

—Que estranho. - Pitt tratou de imaginar. - Se ia andando pela ponte de volta para casa depois de uma sessão, provavelmente caminharia a bom ritmo. Alguém teve que correr para se adiantar a ele. Não lhe parece que um homem só, aqui na ponte e, sobretudo depois de dois assassinatos, viraria-se ao menos ao ouvir uns passos aproximando-se rapidamente por trás? Eu o teria feito!

—E eu - concedeu Drummond franzindo ainda mais o sobrecenho. - E teria gritado e posto-se a correr. A não ser, claro, que esse alguém corresse em direção a mim do lado sul. Em qualquer caso, eu não teria ficado quieto esperando que alguém se aproximasse o bastante para me esfaquear de frente ou por trás. - Soprou. – A noite era tão silenciosa que a água se ouvia formando redemoinhos em torno dos pilares da ponte, e mais à frente, seguindo o Embankment. A menos, é claro - concluiu Drummond, - que fosse um conhecido meu. Mordeu o lábio. Mas não uma dama desconhecida, isso com certeza.

—O que me diz do Wallace Loughley? - Pitt arqueou as sobrancelhas. - O que se sabe dele?

—Ainda nada. Mas não será difícil averiguar. De entrada deve ver se é quem diz ser. Poderia nos ter enganado. Eu não conheço de vista os seiscentos e setenta deputados! Acredito que será melhor não deixar ir para casa até que alguém o identifique.

—Irei vê-lo. - Pitt afundou as mãos nos bolsos. Deixou Drummond e se aproximou do carro mortuário e do grupo de seis ou sete homens que o rodeavam. Um deles devia ser o cocheiro; seguia pendente do cavalo, embora as rédeas estivessem enganchadas no carro. Um homem de uns quarenta anos, com olheiras e visivelmente assustado, com o cabelo desalinhado sobre a fronte, devia ser Loughley. Estava sentado no meio-fio, e ao ver aproximar-se Pitt ficou em pé, esperando. Sem dúvida tinha sofrido uma comoção, mas Pitt não o achou histérico nem arrogante nem preso do pânico. Se o homem tinha seguido ao Sheridan para matá-lo, possuía um extraordinário domínio de si mesmo, um cérebro tão frio como a água do Tamisa.

—Boa noite, senhor Loughley - disse Pitt. - A que hora viu pela última vez ao senhor Sheridan com vida?

Loughley engoliu em seco.

—Seriam pouco mais das dez e meia, acredito. Saí da câmara a dez e vinte e falei com algumas pessoas. Não estou certo de quanto tempo passou, mas foi pouco. Vi Sheridan e lhe dei boa noite; depois o coronel Devon me disse algo referente à sessão. Então recordei que queria falar com o Sheridan; como fazia só uns minutos que se fora, fui atrás dele e... e já sabe você o que encontrei.

—O coronel Devon é também deputado?

—Sim. Santo Deus! Não pensará que...! Pode comprová-lo se quiser. Com certeza ele recorda o que falamos; era sobre o debate desta noite.

—Viu alguém mais na ponte, senhor Loughley?

—Não, não vi ninguém. Isso é o mais estranho: não recordo ter visto ninguém mais! E, entretanto devia fazer só... Inspirou fundo e acrescentou: Uns minutos depois de...

No extremo norte da ponte se produziu um ligeiro alvoroço e se ouviu alguém gritar que era retido pela polícia. Uma mulher começou a gritar e alguém a levou. Ouviram-se passos rápidos, e em seguida viram aproximar-se uma figura de negro. Ao passar sob a luz, Pitt reconheceu ao homem: era Garnet Royce.

—Boa noite, senhor - disse Pitt.

Royce olhou Loughley e lhe saudou pelo nome. Depois olhou Pitt e Drummond, que se tinha aproximado.

—Isto começa a ser grave! - disse inexorável. Tem idéia do perto que está a gente de perder o controle? Pelo visto estamos à beira da anarquia. As pessoas normais têm pânico, todo mundo fala de conspirações para derrocar a monarquia, de operários revoltados, de greves, até de revolução! - Meneou a cabeça, desdenhando a histeria coletiva mais que as idéias em si mesmas. - Certamente é um louco solto e nada mais, mas terá que detê-lo! Isto não pode continuar assim! Por Deus, cavalheiros, ponhamos toda a carne no forno e acabemos com este pesadelo de uma vez! É nossa responsabilidade. Os fracos e menos favorecidos confiam em nós para que os defendamos dos estragos do delito e de dos anarquistas que procuram destruir os fundamentos do Império. É nosso dever! - Falava muito a sério; seus olhos despediam um fulgor de sinceridade que nem Pitt nem Drummond punham em dúvida. - Se houver algo que eu possa fazer o que seja, diga-me. Tenho amigos, colegas, influência. O que necessitam? Olhou premente a um e ao outro. Vamos, fale!

—Se eu soubesse sir Garnet, asseguro-lhe que o pediria – replicou cansativamente Drummond. - Mas não temos idéia sobre o motivo.

—Não pretende que compreendamos os motivos de um demente, não é? - argumentou Royce. - Ou está sugerindo que se trata de algo pessoal, que os três homens tinham um inimigo comum? - Seu rosto refletiu incredulidade, e em seus olhos houve um brilho de áspero humor.

—Os três talvez não - disse Pitt, observando sua expressão de surpresa e logo depois de compreensão e horror. O inimigo de um deles, possivelmente.

—Então não é um louco, mas um fanático - disse Royce quedamente, trêmula a voz. - Quem a não ser um lunático faria uma coisa assim a dois estranhos, a sangue frio, para mascarar a morte que lhe interessava?

—Não sabemos - respondeu Drummond. - É só uma possibilidade. Mas estamos investigando a todos os grupos anarquistas ou revolucionários. Consultamos a todos os informantes.

—Uma recompensa! - disse de repente Royce. - Eu e outros empresários poderíamos oferecer uma grande recompensa para que quem saiba alguma coisa queira informar à polícia. Farei-o amanhã, tão logo a notícia saia nos jornais. - Passou a mão pela fronte para afastar uns cabelos. - Temo que o pânico se estenda, e não se pode culpar às pessoas. Minha pobre irmã se sente obrigada a permanecer aqui por uma questão de honra até que o caso se resolva. Rogo, cavalheiros, façam tudo o que possam. Considerarei um favor que me tenham à corrente, para saber se posso ajudar em algo. Trabalhei uma vez no Ministério do Interior e conheço os procedimentos policiais. Acreditem-me, estou com vocês. Não espero nenhum milagre.

Drummond olhou para o final da ponte, onde se tinha congregado uma multidão cada vez mais inquieta e assustada, que contemplava agora o carro de policiais e o silencioso carro mortuário esperando sua macabra carga.

—Obrigado, sir Garnet. Sim, acredito que uma recompensa poderia funcionar. Desde o Judas até hoje não houve causa que não tenha sido traída por dinheiro. Agradeço.

—Terão amanhã de noite - prometeu Royce. - E agora lhes deixo com suas coisas. Pobre Sheridan, que Deus lhe acolha! Por certo, querem que o comunique a sua esposa?

Pitt teria se encantado, mas essa era tarefa sua, não do Royce.

—Obrigado, mas tenho que fazê-lo eu. Devo lhes fazer algumas perguntas.

Royce assentiu com a cabeça.

—Vá..

Voltou a colocar o chapéu e pôs-se a andar para o sul e logo costa acima em direção ao Bethlehem Road.

Drummond permaneceu um instante em silêncio, contemplando a escuridão.

—Royce parece compreender muito bem a situação - disse pensativo. - E parece muito preocupado... O que sabe você dele?

—Foi deputado durante mais de vinte anos - respondeu Pitt - Muito capaz, dotado inclusive. Como ele mesmo disse, teve um cargo importante no Ministério do Interior. Sua reputação é irrepreensível, tanto no pessoal como no profissional. Sua mulher morreu faz uns anos; continua viúvo. Era cunhado do Hamilton, mas suponho que isso já sabia.

Drummond inclinou a cabeça.

—Imagino que investigou sua relação com a vítima - perguntou.

Pitt sorriu.

—Assim é. Não eram íntimos. E não se pôde achar nenhuma relação financeira entre ambos, salvo que Royce parece ocupar-se dos assuntos de sua irmã agora que ela enviuvou. Claro que é seu irmão mais velho...

—Rivalidade profissional com o Hamilton?

—Não. Trabalhavam em campos diferentes. E em todo caso, aliados.

—Algo pessoal? - insistiu Drummond.

—Não, e tampouco político; claro que não se assassina a ninguém por defender causas distintas à própria. Pelo que pude saber do Royce, é um homem muito tradicional e caseiro, de sólidas convicções sobre a responsabilidade dos fortes para com os fracos... pelo próprio interesse destes.

Drummond suspirou.

—Isso é típico de qualquer membro da câmara... e de qualquer cavalheiro inglês, rico e de meia idade.

Pitt soprou e pôs-se a andar na mesma direção por onde tinha partido Royce, mas ao chegar ao extremo da ponte virou para o Baron"s Agrada e a residência do finado Cuthbert Sheridan.

Foi o mesmo que as outras vezes: subir os degraus às escuras, bater várias vezes à porta para despertar à criadagem e depois esperar que acendessem a luz e vestissem uma jaqueta em cima para ver a quem ocorria bater a essas horas. A mesma expressão de horror, o pedido de que esperasse um momento, o esforço por não perder a compostura, o longo silencio enquanto se desvelava a horrível noticia, e Pitt se achou uma vez mais em uma fria saleta frente a uma mulher pálida como a cera que tratava com todas suas forças de não chorar nem desmaiar.

Parthenope Sheridan aparentava ter uns trinta e cinco anos, era miúda e de costas muito retas. Seu rosto era muito bicudo para ser bonito, mas seus olhos e seu cabelo eram agradáveis, e seus dentes ligeiramente tortos lhe davam um toque singular que em outro momento teria podido ser atraente. Agora olhava Pitt com olhos abismados.

—Cuthbert? - Repetiu o nome como se precisasse dizê-lo outra vez para captar o significado. - Assassinaram Cuthbert no Westminster Bridge? Como os outros dois? Por quê? Ele não tem nenhuma relação com... com... o que? O que acontece, inspetor? Não entendo nada. - Alcançou a cadeira que tinha atrás, sentou-se e se cobriu o rosto com as mãos.

Pitt desejou poder rodeá-la com seus braços e deixar que chorasse em seu ombro, evitar que ela fosse incapaz de compartilhar sua emoção, porque na casa não havia nada mais que criados, crianças e um policial.

Mas Pitt não podia fazer nada. Nem toda a compaixão do mundo podia salvar o abismo social que os afastava. A familiaridade não fez senão incrementar a pena daquela mulher. De modo que rompeu o silêncio com palavras formais e a necessidade de cumprir com sua obrigação.

—Nós tampouco, senhora, mas estamos trabalhando com consciência. Poderia tratar-se de um assassinato político, ou alguém tinha uma inimizade pessoal por um dos três, ou pode tratar-se de um louco; não encontramos uma razão que nos convença.

A mulher fez um esforço por falar com clareza, sem lágrimas, sem fungar.

—Político? Quer dizer anarquistas? Fala-se de um complô contra a Coroa ou o Parlamento. Mas por que Cuthbert? Ele só era um funcionário do Tesouro.

—Sempre esteve no Tesouro, senhora?

—Não, não; os deputados vão mudando de cargo. Também esteve no Interior, e uns meses no Foreign Office.

—Tinha uma postura clara em relação à autodeterminação da Irlanda?

—Não... quer dizer, acredito que votava a favor, não estou certa. Não falava dessas coisas comigo.

—E a reforma, senhora; apoiava a reforma social e industrial ou estava contra?

—Desde que estivesse bem dirigida e se fizesse sem pressas, Cuthbert estava a favor. - de repente, uma expressão de ira e dor cruzou por seu rosto.

Pitt fez a pergunta que menos desejava formular.

—E a reforma eleitoral, era favorável ao voto da mulher?

—Não - resmungou. - Absolutamente.

—Sua postura era conhecida?

Ela arqueou as sobrancelhas.

—Bom, sim, suponho. Às vezes a expressava com muita veemência.

Não escapou a Pitt a inquieta surpresa que aparecia em seu rosto.

—Pensava o mesmo, senhora Sheridan?

Empalideceu tanto que suas olheiras se tornaram quase cinzas inclusive à amarelada luz de gás.

—Não - sussurrou. - Eu sustento que a mulher deveria ter o direito de votar em seus representantes no Parlamento, e também a apresentar candidaturas aos consistórios locais. Eu pertenço a um grupo que advoga pelo sufrágio da mulher.

—Conhece Florence Ivory ou África Dowell?

Sua expressão não registrou mudança alguma, nem medo nem nervosismo.

—Sim, conheço-as, embora não muito bem. Não somos muitas, senhor Pitt; é lógico que nos conheçamos, sobre tudo se trata-se de mulheres dispostas a correr riscos, a lutar por sua causa em vez de seguir implorando a um governo de homens que se negam a nos escutar. Quem detém o poder jamais se sentiram inclinados a renunciar a ele de boa vontade. Quase sempre lhes foi arrebatado pela força, ou escapou-lhes das mãos por debilidade ou excesso de corrupção.

—Qual das duas coisas acha a senhora Ivory que ocorrerá aqui?

Um leve rubor coloriu as faces da mulher. Endureceu o gesto.

—Será melhor que o pergunte a ela, senhor Pitt, mas antes descubra quem assassinou meu marido!

A ira se dissolveu em um nervosismo agônico e a mulher se reclinou contra o espaldar da cadeira, chorando silenciosamente e tremendo.

Pitt não podia pedir desculpas. Teria sido ridículo; ele não tinha parte naquele sofrimento; qualquer comentário teria servido somente para mostrar sua falta de compreensão. Assim, dirigiu-se para o saguão, passando junto ao lívido mordomo, e abriu ele mesmo a porta da rua. Desceu os degraus para a escura noite da primavera; uma bruma subia agora do rio trazendo o aroma da maré ascendente. Ela continuaria chorando quando a luz da manhã lhe devolvesse a realidade, as lembranças, a solidão.

Quando Pitt chegou a sua casa foi à cozinha e preparou chá. Passou mais de uma hora sentado à mesa, bebendo a infusão e esquentando as mãos na xícara. Sentia-se cansado e impotente. Tinha havido três assassinatos e não dispunha de nenhuma prova. Tinha sido realmente Florence Ivory, desajustada pela perda de sua filha?

Mas e Cuthbert Sheridan? Mero ódio porque ele também era contrário a dar mais poder e influência às mulheres no governo, na justiça, medicina, ou seja, que outras coisas mais? Fazia só doze anos que as faculdades de medicina abriam suas portas às mulheres, seis anos que a mulher casada podia administrar e ser proprietária de seus próprios bens, quatro desde que tinham deixado de ser um móvel que pertencia ao marido.

Mas quem a não ser uma louca ia assassinar a aqueles que não estavam dispostos a mudar? Isso incluía a todo mundo exceto um punhado de pessoas! Não tinha sentido, mas devia buscá-lo nestas mortes?

Decidiu deitar-se; tinha lhe passado o frio e tinha sono, mas sua mente continuava turva.

Partiu muito cedo de manhã depois de cruzar umas palavras com Charlotte sobre o achado do Sheridan, o horror e a crescente sensação de pânico entre as pessoas.

—Isto não pode ter feito Florence Ivory - disse ela.

Pitt queria dizer: não, é claro, isto o muda tudo. Mas não mudava nada. Uma sensação tão grande de injustiça não tem em conta a sensatez, nem sequer a própria conservação. A razão não era um critério aplicável a este caso.

—Thomas?

—Sim. - Pitt pegou seu casaco. - Sinto muito, mas ainda poderia ser ela.

Micah Drummond estava já em sua escrivaninha e Pitt subiu diretamente. Os jornais se amontoavam sobre sua mesa e o que estava em cima proclamava em suas manchetes: "Terceiro assassinato no Westminster Bridge" e "Outro deputado degolado perto da Câmara dos Comuns".

—O resto é mais ou menos igual, ou pior - disse Drummond. - Royce tem razão; começa a estender-se o pânico. O ministro do Interior me chamou; não me ocorre o que posso lhe dizer. Temos alguma novidade?

—A viúva de Sheridan conhecia a senhora Ivory e a África Dowell - respondeu Pitt. - É membro de uma organização local em pró do sufrágio feminino, e seu marido era muito contrário a isso.

Drummond permaneceu imóvel uns momentos.

—Ah - disse ao fim, mas sem convicção nem certeza. - Acredita que isso pode ter algo que ver? Uma conspiração de sufragistas...?

Dito nesses termos parecia absurdo, mas Pitt não podia esquecer a paixão de Florence Ivory, a perda que o tempo tinha agravado. Florence era uma mulher que não se deteria por medo, por correr um risco pessoal nem pelas crenças ou dúvidas de outras pessoas. Pitt tinha certeza de que era capaz de fazê-lo, tão emocional como fisicamente, contando com a ajuda da África, uma moça cheia de idealismo, que reagia com ardor ante as amargas injustiças das quais achava que tinham sido objeto Florence e sua filha. Tinha o olhar do visionário ou do revolucionário.

—Pitt? - Drummond interrompeu seus pensamentos.

—Não, não acredito - disse, medindo suas palavras. - A menos que duas pessoas formem uma conspiração. Mas poderia tratar-se de uma série de coincidências...

—Explique-se. - Drummond também começava a ver o perfil de uma pauta, mas havia muitas incógnitas. Ele não tinha entrevistado aos implicados e não podia julgar, e no fundo de sua mente havia as manchetes da imprensa, os rostos assustados dos altos funcionários do governo que se sentiam responsáveis e que agora o assediavam. Drummond não tinha medo; não era dos que evitavam o desafio ou o dever, nem culpava a outros se não sabia por onde sair. Mas tampouco evitava a gravidade de uma situação. - Por Deus, Pitt, eu quero saber o que está pensando!

Pitt foi sincero.

—Temo que possa ter sido Florence Ivory com a ajuda da África Dowell. Penso que ela é bastante apaixonada e radical para fazê-lo. Certamente tinha um motivo, e é muito possível que confundisse ao Hamilton pelo Etheridge. O que não sei é por que depois matou ao Sheridan. Isso parece obra de alguém com um sangue-frio pasmoso. Foi algo gratuito. Claro que pode havê-lo feito outro, talvez um inimigo do Sheridan que tirasse partido de uma espantosa oportunidade.

—E lhe saberia mal que tivesse sido Florence Ivory - acrescentou Drummond com suspeita.

—Sim. Era certo. Tinha- simpatizado com ela e lhe tinha afetado muito sua dor, talvez muito, pensando em seus próprios filhos. Mas não era o primeiro assassino com quem simpatizava. O que não podia suportar era os hipócritas, os santarrões, os que se cevavam na humilhação e a dor alheia. Mas também acredito que estamos muito longe da resposta.

—Uma conspiração política?

—Talvez. - Mas Pitt duvidava; porque se trataria de um complô de dimensões monstruosas, obra de loucos.

Drummond ficou em pé e se aproximou da luz, esfregando-as mãos como se tivesse frio, embora o escritório estivesse quente.

—Temos que resolver isto, Pitt - disse sem condescendência, olhando-o no rosto; por um momento, a diferença de cargo entre os dois deixou de existir. - Tenho todos os homens disponíveis rastelando os arquivos de todos os descontentes políticos, os neo revolucionários, os socialistas radicais, os ativistas irlandeses e galeses. Você concentre-se em tudo o que sejam motivos pessoais: cobiça, ódio, vingança, luxúria, chantagem; o que lhe ocorra como móvel para que um homem assassine a outro; ou uma mulher, se você acha possível. Neste caso sobram mulheres com dinheiro para contratar a alguém que fizesse o trabalho sujo.

—Investigarei mais de perto o James Carfax. E acredito que terá que indagar a fundo na vida pessoal do Etheridge. Embora não é provável que um marido ou um amante ultrajado seja capaz de matar três vezes.

—A verdade é que nada parece provável, como se tratasse de um ardiloso lunático que odeia todo deputado que vive no lado sul do rio. - Drummond o disse com um sorriso enviesado. - dobramos as patrulhas nessa zona. Os parlamentares estão de sobreaviso; estranharia muito que algum deles cometesse o descuido de cruzar a ponte para voltar para casa. - ajustou a gravata-borboleta e a jaqueta, e seu rosto perdeu o pingo de humor que tinha mostrado. - Será melhor que vá ver o ministro do Interior. - Ao chegar à porta se virou e acrescentou: - Quando terminarmos com o caso, Pitt, indicar você à ascensão. Tem minha palavra de que o tentarei. Faria-o agora mesmo, mas necessito de você na rua até que isto termine. Você o merece mais que de sobra, e seu salário vai notar muito. - Dito isto saiu fechando a porta, deixando Pitt junto ao fogo, surpreso e perplexo.

Drummond tinha razão, sua ascensão se fora adiando; o próprio Pitt tinha sido o causador por sua atitude para com seus superiores, por uma insubordinação não de fato, mas sim de maneira de ser. Estaria bem que lhe reconhecessem seu talento; inclusive ter mais autoridade. E o aumento de ganhos significaria muito para Charlotte, não regular tanto em roupa, uma viagem ao campo ou à costa, inclusive com o tempo umas férias no estrangeiro. Talvez Charlotte pudesse conhecer Paris.

Claro que isso significaria trabalho de escritório. Teria que encarregar a outros que saíssem à rua a interrogar às pessoas e sopesar suas respostas; seria outro o que teria que cumprir a ingrata tarefa de informar aos aflitos, examinar mortos, praticar prisões. Ele se limitaria a dirigir, tomar decisões, dar conselhos, represar as investigações.

Não gostaria; às vezes odiaria seu trabalho e distanciar do trabalho de rua com toda sua crueldade, humanidade e paixão. Seus homens lhe informariam dos fatos candentes, já não estaria em contato com a realidade das pessoas.

Mas então pensou em Charlotte com a carta de Emily metida no bolso de seu avental, esperando a que ele se fosse para que não a visse ler os detalhes de Veneza e Roma, todo o encanto dos lugares que Emily estava visitando.

Aceitaria a promoção, é claro que sim. Tinha que fazê-lo. Mas antes tinham que apanhar ao assassino do Westminster.

Podia ser James Carfax? Não conseguia ver naquele rosto bonito, atraente e um tanto superficial a crueldade necessária para matar a três homens só para cobrar a herança de sua mulher, por muito que a desejasse.

E Helen? Queria o bastante a seu marido, desejava conservá-lo até o ponto de cometer esses crimes, primeiro por ele e logo para proteger a si mesma? Ou a ele?

Passou todo o dia investigando assuntos financeiros. Primeiro achou o registro pela venda do quadro da Helen Carfax, depois retrocedeu no tempo para ver se tinha vendido outros bens e descobriu que assim era pequenos esboços, quinquilharias, um par de tralhas, antes de vender o quadro cuja ausência ele tinha notado. Não havia modo de demonstrar no que tinha empregado o dinheiro resultante sem investigar suas contas privadas, e possivelmente nem sequer então. Podia ter sido em vestidos e perfume, para fazer-se mais atraente a olhos de um marido distraído, ou em jóias, ou talvez em gastos de remédios ou presentes para o James ou outra pessoa. Ou possivelmente jogando... algumas mulheres o faziam.

Chegou em casa cansado e deprimido, pouco depois das seis. Não era somente pela dificuldade do caso, era a idéia da promoção, de encarregar a outros o trabalho em vez de fazê-lo ele. Mas não podia deixar que Charlotte conhecesse seus sentimentos ou isso a privaria de gozar das recompensas que isso traria consigo. Teria que dissimular como puder.

Charlotte estava na cozinha terminando o chá dos meninos e preparando o seu. O aposento estava quente e tinha o suave brilho dos abajures de gás da parede enquanto fora anoitecia. Tinha esfregado a mesa de madeira, e se notava aroma a sabão e pão quente e a algo cuja fragrância Pitt não conseguiu identificar.

Aproximou-se dela em silêncio, estreitou-a e a beijou, fazendo pouco caso de suas mãos molhadas e da farinha que manchava seu avental. Passada a primeira surpresa ela reagiu calorosamente, inclusive com paixão.

Pitt foi direto ao ponto.

—Vão me promover assim que se solucione este caso! Isso significará muito dinheiro, influência e posição!

Abraçou-o com mais força, afundando o rosto em seu ombro.

—Thomas, é maravilhoso! Merece isso, faz séculos que lhe merece isso! Seguirá investigando pessoalmente seus casos?

—Não.

—Então também será mais seguro!

Tinha-o feito, o havia dito sem uma sombra, sem que ela suspeitasse nada, além da alegria e do orgulho inerentes à promoção. Sentiu-se repentinamente só. Ela nem sequer sabia o que lhe ia custar; não tinha idéia do muito que ele preferia estar na rua, com as pessoas, apalpando a sujeira e a dor da vida cotidiana. Era o único modo de entender as coisas. Mas isso eram tolices. Por que o estava dizendo assim, a não ser justamente porque não queria que ela notasse seus receios? Não podia estragar agora. Afastou-a um pouco e sorriu.

Ela escrutinou seu rosto, e algo a fez perguntar:

—O que acontece?

—Nada, este caso - respondeu ele. - quanto mais indago, menos o entendo.

—Me conte mais coisas. Fale-me da última vítima. Servirei o jantar. Gracie está em cima com as crianças. Pode me explicar isso enquanto comemos.

E dando por assentado seu consentimento, Charlotte levantou a tampa da frigideira e mexeu algumas vezes, enchendo a cozinha de um delicioso aroma. Depois pegou os pratos que tinha posto a esquentar no forno e serviu guisado de cordeiro com alho poró, rodelas de batata e nabos doces e um pingo de salvia que lhe dava sabor.

Pitt lhe contou tudo que tinha omitido em seus dispersos resumos anteriores, que tinham sido mais emocionais que lógicos, além do pouco que tinha averiguado após e o muito pouco que tinha sobre o Cuthbert Sheridan.

Ela guardou silêncio com a vista fixa em seu prato. Quando por fim levantou os olhos, suas faces tinham corado e a expressão de vergonha e desafio que lhe tinha visto já outras vezes.

—Bem - disse ele, - até que ponto está metida nisto? Sua expressão não tem que ver conosco e Emily está na Itália, não é verdade?

—Certamente! - Charlotte parecia quase aliviada. Emily está em Florença. A carta que recebi esta manhã vinha dali. Claro que agora pode estar em outra parte.

—E bem?

—Foi tia avó Vespasia...

Ele arqueou as sobrancelhas.

—Chamou-a para descobrir o assassino do Westminster? - disse com incredulidade.

—Bom, sim, de certo modo...

—Explique-se, Charlotte.

—Veja, África Dowell é sobrinha de uma amiga íntima da Vespasia, Zenobia Gunne. Acreditam que a polícia suspeita dela, pelo visto com razão. É claro, eu não lhes disse que foi você!

Pitt ficou olhando, mas ela não pestanejou. Sabia guardar um segredo, às vezes, e podia ser esquiva, com esforço, mas a ele não sabia lhe mentir, e ambos eram conscientes disso.

—E o que descobriu? - perguntou por fim.

Charlotte mordeu o lábio.

—Nada. Sinto muito.

—Nada de nada?

—Bem, fiz-me amiga de Amethyst Hamilton...

—Como diabo o conseguiu? Tia Vespasia a conhece?

-Não... Disse-lhe uma mentira. - Baixou a vista, envergonhada, e logo voltou a olhá-lo. - Ela e seu enteado se odeiam mutuamente, mas eu não vejo que isso possa havê-los impulsionado ao assassinato. Ela estava casada há muitos anos, e não houve ninguém novo...

—E? - insistiu ele.

—Herdou muito, mas isso não é razão suficiente, sobretudo para... - Voltou a calar.

—Para que?

—Ia dizer que para matar também ao Etheridge e Sheridan, mas imagino que uma coisa não vai necessariamente com a outra.

—Não necessariamente. Pode ser que os dois últimos assassinatos pretendessem dissimular o único que importa, ou poderia havê-los feito um imitador. Não sei.

Charlotte apoiou uma mão sobre a dele.

—Mas saberá - disse com convicção, e ele não soube se falava com a mente ou o coração. - Saberemos - acrescentou ela como se tivesse pensado melhor.

 

Na manhã seguinte, Charlotte foi de ônibus ver tia avó Vespasia. Fazia um lindo dia da primavera, o ar estava limpo e o sol esquentava. Teria gostado de estar no campo ou em um lugar com todas as folhas novas brotando e o gorjeio dos pássaros. Talvez ela e Pitt pudessem ir este verão ao campo um fim de semana. Ou mais... uma semana inteira?

Pensou nas pequenas coisas que poderia comprar com o dinheiro extra que Pitt ia ganhar. De entrada não estaria mal um chapéu novo, de aba muito grande e fita rosa, e flores, ficavam tão bem! Um chapéu assim deveria levá-lo um pouco inclinado sobre o lado direito.

E poderia comprar dois ou três vestidos de musselina para a Jemima. Ficaria bem o azul pálido, ou melhor, um verde claro? É claro, as pessoas diziam que azul e verde não casavam bem, mas gostava dessa combinação de cor, como de folhas contrastando com o céu.

Esteve tão absorta durante todo o trajeto pensando coisas agradáveis que quase passou do ponto, coisa que teria sido um aborrecimento, pois a distância era considerável para fazê-la a pé. Gente como sua tia avó Vespasia não vivia na rota do ônibus público.

Desceu com indecorosa presteza e cambaleou no meio-fio. Fez pouco caso dos comentários críticos de duas senhoras gordas de negro e partiu em passo rápido em direção à casa de sua tia avó.

Fizeram-na entrar a saleta, onde Vespasia estava sentada com uma pena na mão e papel de escrever. Ao entrar Charlotte, afastou rapidamente suas coisas.

—averiguou algo? - perguntou esperançosa, economizando as formalidades da recepção.

—É como temíamos. - Charlotte se sentou. - Não lhe tinha contado que é Thomas quem leva este caso. Tive medo de que Zenobia não me considerasse imparcial, e pensei que se você soubesse disso poderia se pôr em uma situação embaraçosa. Mas é Thomas quem foi ver a senhora Ivory, e ele acredita que pôde ter sido ela. Têm a todos os efetivos possíveis procurando anarquistas, revolucionários, fenianos e qualquer outro possível suspeito de ordem política, mas ninguém descobriu nada. O único raio de luz, se algo tão trágico pode ser chamado assim, é que a senhora Ivory não tinha nenhum motivo para matar ao Cuthbert Sheridan.

—Eu não gosto dessa luz disse Vespasia.

—E vão promover Thomas assim que resolva o caso.

—De verdade? -- As sobrancelhas prateadas da Vespasia se arquearam com satisfação. - Tem que me avisar quando for oficial, e lhe enviarei uma carta de parabéns. Enquanto isso, o que podemos fazer para ajudar a Zenobia?

Charlotte notou que havia dito Zenobia, não Florence Ivory. Olhou-a e por sua expressão soube que a escolha era deliberada.

—Acredito que chegou o momento de raciocinar com frieza - disse com toda a suavidade de que foi capaz. - Thomas diz que têm feito o possível por descobrir uma conspiração de caráter revolucionário ou político, mas não acharam nada. Para falar a verdade, prefere imaginar que um objetivo político se sirva de atos cruentos sem acompanhar os de algum tipo de exigência de mudança ou reforma. Salvo, é claro, a anarquia, que sempre me pareceu uma coisa de loucos. Quem pode beneficiar-se de algo assim?

Vespasia a olhou com impaciência.

—Olhe Charlotte, se acredita que os objetivos políticos devem sua concepção ou sua execução a uma planejada sensatez, então é mais ingênua do que eu supunha!

Charlotte notou que o sangue subia às faces. Possivelmente fora uma ingênua. Certamente não tinha freqüentado os círculos do governo, como Vespasia, nem conhecia os sonhos de quem ostentava o poder ou aspiravam a ele. Só os tinha imaginado com certo grau de bom senso, o que com os fatos bem podia ser uma conclusão infundada.

—Às vezes, os que não podem criar desfrutam do poder para destruir - prosseguiu Vespasia. - Não têm outra coisa. Pensa se não, nos crimes que você mesma ajudou a resolver. Note o domínio de umas pessoas sobre outras: a peixeira ou a lavadeira poderia haver dito a essas pessoas que com isso não conseguiriam a admiração ou o amor ou a paz que desejavam, mas cada qual ouve o que quer ouvir.

—Os anarquistas são perigosos, tia Vespasia. Mas Thomas diz que a polícia controla a muitos deles, e nenhum parece envolvido nos assassinatos do Westminster Bridge. Além de tudo, os atos anônimos carecem de poder político. A gente tem que confessar isso em algum momento se quer colher benefícios.

—Ah - concedeu Vespasia, contrafeita - me parte a descartar a idéia de um agressor desconhecido golpeando a torto e à direita por uma causa. - Para ela era menos horrível que a possibilidade de um amigo, ou inclusive um parente, da vítima disposto - Há assassinar a três pessoas a fim de mascarar um único assassinato. Há a possibilidade de existir uma conexão entre os três que não tenhamos conseguido ver... - insistiu.

—Os três eram deputados - disse Charlotte. - Thomas não pôde averiguar nada mais. Não estão relacionados por negócios, não são parentes, não compartilham uma mesma postura, e nem sequer são do mesmo partido! Há dois liberais e um Tory. E não compartilham opiniões políticas ou sociais, nem em relação à autonomia da Irlanda nem à reforma penal, industrial, etcétera, à exceção de que todos estão contra permitir às mulheres o direito ao voto.

—Como a maioria das pessoas. - Vespasia estava pálida, mas sessenta anos de treinamento se refletiam em suas mãos, que descansavam elegantes sobre seu regaço apoiadas em seu lenço de renda. - Se alguém planeja matar membros do Parlamento por essa razão, com certeza dizimará as duas câmaras.

—Se tratar-se de algo pessoal, terei que pensar seriamente em quem pode ter um motivo. Tenho-me feito amiga de lady Hamilton, e embora me resulte muito difícil acreditar que tenha sido ela, poderia haver certa conexão. - Veio-lhe à cabeça uma lembrança desagradável. - E às vezes a verdade é dura de acreditar. Gente com quem se simpatizou , que ainda simpatiza, pode ter obsessões terríveis, medos irracionais que geram violência, ou velhas feridas que não cicatrizam. Acima de tudo, eles pensam na vingança.

Vespasia guardou silêncio; possivelmente ela estava pensando nas mesmas pessoas, ou em uma pessoa concreta da qual também ela tinha estado afeiçoada.

—E depois temos ao jovem Barclay Hamilton - disse Charlotte. Algo relacionado com o segundo matrimônio de seu pai parece lhe preocupar muito, mas não acredito que ao extremo de impulsioná-lo a matar.

—Nem eu - concedeu em voz baixa Vespasia, com um cansaço que com muita dificuldade conseguiu vencer. - O que me diz do Etheridge? Aí há muito dinheiro em jogo.

—James Carfax - respondeu Charlotte. - Ou sua esposa, a fim de evitar que fosse infiel ou a abandonasse.

—Que trágico - suspirou Vespasia. - Pobre criatura, pagar um preço tão horrível por algo que no fundo é só uma ilusão, e que, além disso, não dura muito. Essa mulher se destruiu por nada.

—Ou no caso de que James tenha tido outras relações - prosseguiu Charlotte, pensando em voz alta - outro amor possivelmente...

—É provável que tivesse outras confusões - disse Vespasia com severidade. – Mas inclusive no caso de que essas mulheres tivessem maridos ofendidos, degolar a três deputados e pendurá-los em Westminster Bridge me parece um pouco grotesco e até certo ponto desmesurado.

Charlotte ficou aniquilada. Aquilo era absurdo. Se tivesse sido somente Etheridge, a coisa teria tido sentido.

—Não tem traços de um crime passional disse. A verdade é que eu não lhe vejo lógica alguma.

—Então só há uma conclusão possível - disse Vespasia com tom lúgubre: - há algo que não sabemos. Se tratar-se de uma paixão não foi temporária mas extraordinariamente arraigada, por isso suponho que estamos ante algo muito profundo.

—Quer dizer - sugeriu Charlotte, que alguém foi objeto de uma dolorosa infâmia, e isso lhe corrói a alma.

Vespasia a olhou. Ia dizer lhe que não fosse tão melodramática, mas de repente imaginou o horror de uma coisa semelhante e preferiu calar.

Charlotte ampliou sua teoria.

—Possivelmente há um motivo que não soubemos ver, talvez por desconhecimento dos fatos ou das pessoas, ou porque é muito feio para nós e declinamos vê-lo. Tudo o que havia em comum entre as três vítimas é que se opunham energicamente ao movimento em pró do voto feminino.

—A postura do Hamilton não era enérgica - lhe corrigiu Vespasia - entre elas não era preciso dizer que a morte do Hamilton podia haver-se tratado de um engano ao supor, devido à escassa luz na ponte, que ele era Etheridge. Poderia ser que alguém tratasse de manchar a reputação das que advogam pelo sufrágio, sabendo de que a culpa recairia nelas.

Grotesco e até certo ponto desmesurado. - Charlotte empregou as mesmas palavras da Vespasia, mas na hora lamentou sua rabugice. - Perdoe.

Sua tia avó relaxou as feições, admitindo a emoção do momento.

—Tem razão - reconheceu. - Embora sua maneira de mostrá-lo tenha sido um tanto cruel. - aproximou-se da janela para contemplar o jardim, o sol enviesado que iluminava os troncos das árvores e os primeiros brotos das roseiras. O melhor seria seguir com o que temos. Já que pensamos que Florence Ivory poderia ser culpada, seria conveniente que pudesse formar uma mais ampla opinião de sua personalidade. Se quiser, poderia ir vê-la outra vez.

Charlotte olhou as esbeltas costas da Vespasia, rígida sob o vestido de bordados, os ombros que de tão magros lhe recordaram dolorosamente sua provecta idade e sua fragilidade; recordou que com a idade não se deixa de amar nem de sofrer, nem de sentir-se menos vulnerável. Sem esperar que seu acanhamento o impedisse, aproximou-se, rodeou-a com seus braços e a estreitou como teria feito a uma irmã ou uma filha.

—Quero-a, tia Vespasia, e nada eu gostaria tanto como chegar a me parecer um pouco com você.

Vespasia demorou uns segundos em reagir, e quando o fez sua voz soou um pouco rouca:

—Obrigada, querida. - Aspirou suavemente. - Acredito que começou muito bem, com o bom e com o mau. E agora, se fosse tão gentil de me soltar, tenho que pegar meu lenço. - Fez isso e assoou o nariz de um modo menos senhorial que de costume, dando as costas à Charlotte. - Bom! - disse, guardando o lenço em uma de suas mangas. - Usarei esse telefone para falar com Nobby e lhe direi que volte a visitar lady Mary Carfax; eu por minha parte renovarei certas amizades do âmbito político para ver se averiguo algo; você irá ver Florence Ivory. E amanhã nos encontraremos aqui às duas para ir dar os pêsames à viúva do Cuthbert Sheridan. Poderia ser inclusive que a vítima principal tivesse sido ele. - Procurou ocultar em sua voz um raio de esperança (era quase indecente), mas não o obteve.

—Sim, tia - disse Charlotte. - Amanhã às duas.

Charlotte se pôs a caminho para visitar Florence Ivory com escassa satisfação. Temia que, ou não tiraria nada novo da entrevista ou sua atual ansiedade se veria reforçada e sairia com a convicção ainda maior de que Florence não só era capaz, mas também provavelmente tinha cometido aqueles assassinatos, possivelmente com ajuda da sobrinha da Zenobia, África Dowell. No fundo esperava que não estivessem em casa.

Não teve sorte. Estavam em casa e dispostas a recebê-la; de fato lhe deram as boas-vindas.

—Adiante, senhorita Ellison - disse África. Estava pálida, mas suas maçãs do rosto mostravam um toque de cor e tinha sombras sob os olhos, de medo e de cansaço. - Me alegro de vê-la outra vez. Preocupava-nos que este último assassinato pudesse havê-la afastado de nossa causa. Tudo isto é um verdadeiro pesadelo.

Levou Charlotte à acolhedora saleta, com suas cortinas floreadas e suas plantas. O sol entrava pelas janelas, e três jacintos azuis enchiam a habitação de um aroma embriagador que em outro momento teria podido distrair sua atenção.

Agora, entretanto, Charlotte só tinha olhos e pensamentos para Florence Ivory, que estava sentada em uma cadeira de junquilho com almofadas verdes e brancas, e segurava uma cesta de ráfia que estava remendando. Olhou Charlotte com uma expressão mais na defensiva que sua companheira.

—Boa tarde, senhorita Ellison. É muito amável vindo nos ver. Devo supor que continua comprometida com nossa causa? Ou veio nos dizer que isso é água passada?

Aquilo assentou um pouco mal à Charlotte; a maneira de falar de Florence era ofensiva.

—Não me renderei até que o assunto esteja ganho ou perdido, ou até que encontre alguma prova de sua culpa que faça moralmente impossível seguir investigando - respondeu friamente.

O peculiar rosto de Florence, com seus inteligentes olhos, pareceu por um momento à beira da risada; mas a seguir Florence a convidou a tomar assento.

—Que mais lhe posso dizer? Conhecia o Cuthbert Sheridan somente de nome, mas falei com sua esposa em várias ocasiões. De fato, pode ser que minha intervenção fosse decisiva para que ela se apontasse ao movimento sufragista.

Charlotte observou a dor refletida naquele rosto; a ironia de seu olhar, o azedume da boca.

—Devo supor que o senhor Sheridan não gostava? - perguntou.

—-Deve - respondeu Florence com secura. Estudou Charlotte, e seu rosto adotou uma expressão de mal dissimulado desdém. Só sua necessidade de ajuda e um resto de boas maneiras conseguiram ocultá-la. - É um tema que acorda intensas emoções, senhorita Ellison, embora pareça que não está à corrente. Ignoro como foi sua vida até agora. Imagino que você é uma dessas mulheres satisfeitas que têm tudo o que necessitam e sentem prazer em dar em troca um temperamento dócil e muita destreza para levar a casa, ou fazer que outros o façam por você, e que se considera afortunada de estar nessa posição.

—Tem razão, não sabe nada de minha vida! - respondeu Charlotte zangada. – E suas hipóteses são uma rabugice!

Tão logo o disse, recordou o muito que aquela mulher tinha sofrido, e se deu conta com repentina vergonha de que possivelmente ela era precisamente como Florence a acusava de ser. Tinha pouco dinheiro, por descontado, mas até que ponto definia isso a alegria de uma vida? Tinha suficiente. Jamais tinha passado fome, e poucas vezes passava frio. Tinha seus filhos, e Pitt não a tratava como uma posse, mas sim como uma amiga. Enquanto continuava sentada na cadeira verde e branca com o sol entrando pelas janelas do jardim e o ar impregnado de aroma a jacinto, compreendeu com gratidão que desfrutava de uma liberdade que inumeráveis mulheres teriam trocado por todas suas sedas e seus criados.

Florence a estava olhando, e seu rosto refletia confusão pela primeira vez desde que se conheciam.

—Desculpe-me - disse Charlotte com dificuldade. - Minha grosseria era desnecessária, e em certo sentido está certa. Realmente não compreendo sua ira, porque eu não fui vítima das injustiças das que fala. Explique-me isso.

Florence arqueou as sobrancelhas.

—Santo Deus, que lhe explique o que? A história social da mulher?

—Se se tratar disso... É por isso que morreram três homens?

—Eu que sei! Mas se o tivesse feito eu, sim!

—Por que razão? Para ter direito ao voto?

Florence ficou em pé de repente; a cesta de ráfia e a agulha caíram sobre o tapete. Encarou Charlotte com aguda condescendência.

—Acha-se inteligente? Capaz de aprender coisas? Você tem emoções, inclusive paixões? Sabe algo das pessoas, dos filhos? Sabe o que quer para si mesma?

—É claro que sim.

—Tem certeza de que não é uma menina muito grande para sua idade?

Charlotte voltou a zangar-se. Levantou-se também, as faces ardentes.

—Sim, tenho muita certeza! - resmungou. - Sou muito perspicaz para julgar as pessoas, aprendi muitas coisas e sou perfeitamente capaz de emitir julgamentos inteligentes e sensatos. Cometo enganos, como todo mundo. Ser adulto não faz ninguém imune ao engano, só contribui mais importância aos enganos e também dá mais poder para emendá-los!

Florence não relaxou sua expressão.

—De acordo. Estou tão certa como você de que não sou nenhuma menina, e eu não gosto que me tratem como tal e que sejam outros quem tome as decisões por mim, trate-se de meu pai ou de meu marido, como se o que eles querem fosse sempre o mesmo que eu quero ou dessem por sentado que é em meu próprio benefício. Deu meia volta e rodeou a cadeira, inclinada sobre o espaldar, com o vestido de musselina tenso sobre seu corpo enxuto. Acaso supõe que a lei seria como é se quem a faz fosse responsável também ante nós, em vez de só ante os homens? Responda.

Charlotte abriu a boca, mas Florence lhe impediu de falar.

—Dá de presente você algo a sua mãe por Natal ou o dia de seu aniversário?

—Como diz?

Florence repetiu a pergunta com um tom de zombadora impaciência na voz.

—Sim. Mas o que tem isso que ver com o sufrágio?

—Sabia que por lei não pode dar um presente a ninguém, a ninguém absolutamente, desde o dia em que se comprometeu, não digo casou, mas comprometeu, sem a autorização de seu marido?

—Pois não, eu...

—E que até há quatro anos inclusive sua roupa e suas coisas pessoais pertenciam a ele? E que se você herdava algum dinheiro, jóias de sua mãe, o que for, também pertencia a seu marido? Se você trabalhava e ganhava algum dinheiro, isso também era dele, até o ponto de que podia lhe exigir cobrá-lo e você não podia tocá-lo sequer. Acredita que pode redigir um testamento para deixar suas coisas a sua filha, sua irmã, uma amiga, ou recompensar a uma criada? Pois sim... Sempre que seu marido o aceite! E se em algum momento ele muda de opinião ou outros o fazem ver assim, então você já não pode fazê-lo! Sabia? Ou pensava que seus vestidos, seus sapatos, seus lenços, suas forquilhas eram seus? Pois não! Você não possui nada. Nem sequer seu corpo lhe pertence! Sua boca se franziu em lembrança de algum velho calvário que nenhum bálsamo tinha conseguido suavizar. Você não pode repudiar a seu marido, não importa o tratamento que receba nem que se deitou com muitas outras, seja por amor ou por luxúria. Nem sequer pode abandonar seu teto a menos que lhe dê permissão! Se se for, ele pode obrigá-la a voltar e demandar a quem lhe dê proteção, embora seja sua própria mãe!

"E se lhe dá permissão para ir-se, seus bens continuaram sendo dele como o será tudo o que você ganhe, e ele não tem obrigação de dar a você nem a seus filhos, caso não autorizar levar nem um só penny para não morrer de fome ou de frio.

"Não! Não me interrompa! - gritou Florence quando Charlotte abriu a boca para replicar. - Ao diabo sua suficiência! imaginava que tinha voz no que possa acontecer a seus filhos, embora sejam meninos de peito? Pois se equivoca! Os filhos são dele, e pode fazer com eles o que lhe agrade, educá-los ou não, ensinar-lhes o que lhe tiver vontade ou não lhes ensinar nada, ocupar-se de sua saúde e bem-estar com inteira autoridade. Quando faz testamento pode dispor dos bens que você tinha antes de casar-se. Se tiver vontade, pode deixar suas jóias a qualquer amante. Não sabia disto, senhorita Ellison? Acredita que o Parlamento aprovaria leis como estas se também tivesse que responder ante votantes femininas? Acredita assim?

Charlotte abriu de novo a boca para replicar, mas estava aflita por aquela chuva de injustiças, e mais que isso pelo sentimento de ultraje que fervia no magro corpo de Florence. Charlotte se afundou no braço da poltrona. Florence não só estava enumerando as desigualdades da lei, mas também expressando a gritos sua própria dor. Isso era evidente, inclusive se Charlotte não tivesse sabido por Pitt como tinha perdido sua casa e depois a seus filhos. Nunca se tinha detido a pensar em um divórcio ou em uma separação porque isso não se dera em sua família nem entre suas amigas. É claro, sabia desde fazia tempo que era uma falácia acreditar que os homens tinham apetites naturais que deviam ser satisfeitos e que as mulheres honradas não, e que, portanto era de esperar que um homem cometesse adultério e que a mulher se comportasse como se não soubesse. O adultério do homem não era causa de divórcio para uma mulher e, em qualquer caso, uma divorciada deixava de existir para a sociedade, e uma mulher podia ficar na rua com suas escassas habilidades para ganhar a vida... Ninguém contratava a uma divorciada.

—Isso, senhorita Ellison, é só uma parte dos motivos pelos quais quero que a mulher tenha o direito de voto!

Florence a estava olhando, pálida, exausta por suas emoções liberadas e as batalhas que tinha perdido. Havia nela ódio suficiente para sufocar qualquer escrúpulo de dúvida ou de piedade. Se ela tinha matado a três homens no Westminster Bridge, Charlotte o ignorava, mas sentada naquela sala ensolarada que cheirava a jacintos, voltou a sentir a amarga convicção de que Florence era capaz de fazê-lo.

As três estavam imóveis. Florence permanecia agarrada ao espaldar da cadeira, o tecido de seu vestido puxado nos ombros. No jardim, um pássaro saltou ao batente do ramo baixo de um lilás.

África Dowell se afastou do lugar de onde tinha estado escutando. Fez gesto de tocar Florence, mas algo na rígida figura desta a dissuadiu, e então se virou para Charlotte com olhar de medo e desafio.

—Florence fala por um grande número de mulheres, mais do que você imagina. A senhora Sheridan tinha entrado recentemente em um grupo que defendia o sufrágio feminino, e há outros por todo o país. Gente famosa advogou por isso. John Stuart Mill escreveu um ensaio faz anos... - interrompeu-se, consciente de que nada do que dissesse poderia apagar a constatação de uma paixão que podia, e talvez havia, impulsionado Florence Ivory a matar.

Charlotte contemplou o tapete e mediu suas palavras.

—Diz que muitas mulheres têm a mesma opinião - começou.

—Sim, muitas - respondeu África.

Charlotte a olhou nos olhos.

—E por que não todas? Por que há as que estão contra ou as que não se importam?

A resposta de Florence foi áspera e disposta.

—Porque é mais fácil! Desde o berço nos ensinam a ser ignorantes, encantadoras, obedientes; a depender completamente de alguém que nos mantenha. Dizemos aos homens que somos frágeis de corpo e de mente e que necessitamos amparo ante os perigos da vida, que necessitamos que nos cuidem, que não nos pode culpar de nada porque somos irresponsáveis! E, com efeito, eles nos cuidam. Fazem por nós o que uma mãe com o filho que não sabe andar: levar-nos em braços! Eu não quero que me levem nos braços toda a vida! Golpeou o peito com violência. Quero ser eu quem decide meu caminho, não que me levem aonde quiser meu marido. Mas tanto disseram às mulheres que não sabem andar sozinhas que agora acreditam, e não têm a valentia necessária para prová-lo. Outras são muito preguiçosas; é mais fácil que as levem nos braços.

Era uma verdade pela metade. Charlotte conhecia outras razões: o amor, a gratidão, a culpa, a necessidade de ser querida com ternura e sem rivalidade, a profunda satisfação de ganhar o respeito e alimentar o melhor de um homem, e, talvez a razão mais poderosa, a necessidade de dar amor, de mimar aos pequenos e os fracos, de dar apoio a um homem, que aos olhos do mundo parecia o membro mais forte do casal e que, entretanto era vulnerável, tanto ou mais que a mulher. O mundo esperava muito dos homens e não lhes permitia debilidades nem lágrimas nem falhas. De repente recordou coisas de Pitt, de George, de Dominic, inclusive de seu próprio pai, vistos agora com serenidade retrospectiva, e de outros homens a quem o banho adstringente de uma investigação tinha despojado pouco a pouco de todo amparo. Suas personalidades tinham resultado tão frágeis, tão cheias de medos, debilidades, pequenas vaidades e decepções como as de uma mulher. Só a aparência externa era diferente e seu poder, de portas fora.

Mas não tinha sentido explicar tudo isso à Florence Ivory. Suas feridas eram muito profundas, e justa sua causa. Charlotte pensou em como se teria sentido se tivesse perdido seus filhos, e soube que a lógica teria saído mal parada. Mas a lógica era a única coisa que podia ajudá-la. Mudou de assunto e olhou à Florence com uma serenidade que não sentia.

—Onde esteve você quando Sheridan foi assassinado? - perguntou.

Florence se sobressaltou e logo sorriu sem humor.

—Aqui, só - disse quedamente. - África tinha ido visitar uma amiga que não se achava bem. Mas por que ia eu matar Sheridan? Ele não me fez nada, não mais que qualquer outro homem que nos negue o direito a ser pessoas e não meros apêndices. Sabia que por lei não pode fazer um contrato? E se a roubam é seu marido quem sofre a afronta, não você, embora a bolsa seja sua. – Riu secamente. - A você não podem nem sequer processá-la! Nem fazê-la responsável por suas próprias dívidas. Por desgraça, se cometer um assassinato, a culpa sim é sua, a seu marido não pendurarão por isso! Mas eu não matei ao Sheridan nem ao Etheridge nem ao Lockwood Hamilton. Embora duvide que possa demonstrá-lo. Perde você o tempo com sua boa vontade, senhorita Ellison.

—É possível. - Charlotte ficou em pé e a olhou com frieza. - Mas se quero perder tempo é meu assunto.

—Duvido - respondeu Florence. - Se aprofundar no assunto acredito que descobrirá que seu tempo pertence a seu pai ou a seu marido, se o tem - concluiu. Inclinou-se para recolher a cesta de ráfia, como se Charlotte já se fora.

África a acompanhou à porta com o rosto lívido, procurando as palavras e descartando-as à medida que apareciam em seus lábios. As linhas de seu corpo, seus rígidos movimentos, delatavam seu temor. Queria ao Florence, tinha piedade dela, queimavam-lhe suas feridas e as injustiças sofridas, e temia que a tortura de perder a sua filha a tivesse impulsionado a sair de noite com uma navalha para matar, uma vez, e outra, e outra.

O mesmo pensava Charlotte. Olhou a jovem de rosto pré-rafaelita, forte, jovem e assustado, cheio de determinação para lutar por uma causa perdida, e lhe apertou as mãos fugazmente. Não havia nada que dizer.

Depois deu meia volta e pôs-se a andar rua abaixo para o lugar onde tomaria o ônibus para o trajeto de volta.

Zenobia Gunne enfrentou à perspectiva de visitar pela segunda vez lady Mary Carfax com o mesmo arrojo que tinha necessitado para navegar o rio Congo em uma canoa descoberta, só que a tarefa de agora prometia menos compensações. Não haveria entardeceres abrasadores, nem raízes de mangue aparecendo do rio iluminado pela aurora, nem aves coloridas como jóias lançadas ao céu. Aqui só lhe esperava o desdém e os velhos rancores acumulados durante trinta anos pela Mary Carfax.

Com grande receio, um nó no estômago e sua própria sensação de estar fora de lugar, fez chamar a sua carruagem e obedeceu as instruções da Vespasia. Não tinha em comum com a Mary Carfax mais que velhas lembranças.

Ela também temia que Florence Ivory pudesse ser culpada e que a piedade de África pudesse havê-la impulsionado, se não a ajudar exatamente Florence, ao menos protegê-la uma vez cometido o crime.

E então um pensamento mais funesto abriu espaço em sua mente. Acabou-se, ou a coisa ia continuar? Sheridan tinha sido assassinado depois que as injustiças do Etheridge tivessem sido mais que vingadas. Sabia a África que tinha sido Florence, ou sua solidariedade a impedia de ver os fatos?

Zenobia lhe teria devotado sua amizade, lhe teria impedido de intimar até esse ponto com uma mulher tão impulsiva, tão apaixonada com respeito às injustiças, tão próxima a perder o equilíbrio emocional e a prudência. África era filha de seu irmão mais novo; Zenobia deveria tomar mais a sério suas obrigações à morte de seus pais. Mas tinha percorrido o mundo seguindo egoistamente seus próprios interesses.

Agora era muito tarde para oferecer tempo e amizade; a única saída seria demonstrar a inocência de Florence e, como Charlotte tinha dito... que mulher tão curiosa, essa Charlotte, tão dividida entre dois mundos e entretanto tão a gosto em ambos, isso só podia obter-se demonstrando que o culpado era outro.

-—Depressa, por favor! - gritou ao cocheiro. - Vai muito devagar! O que está esperando?

Ao chegar, entregou seu cartão à criada de lady Mary e esperou que levasse a sua senhora. Zenobia não pretendia mentir sobre o motivo de sua visita; não era das que diziam embustes, não se dava bem com isso, e tampouco lhe ocorria uma mentira acreditável.

A moça retornou e a acompanhou ao salão, onde um fogo ardia em contraste com a clemência do tempo. Mary Carfax estava erguida em sua cadeira francesa com dourados. Dissimulou sua surpresa porque a curiosidade a vencia, e como esta era uma emoção que era má vista, fez o possível por ocultá-la também.

—Quanto me alegro de vê-la outra vez... - tão logo disse com voz vacilante, como se não tivesse decidido que atitude tomar. - Temia que... Mas trocou de parecer, isso era rebaixar-se muito. - Pensava que a tarde ia ser aborrecida - disse em troca. - Como vai? Sente-se e fique à vontade. Faz um tempo esplêndido, não lhe parece?

Zenobia mal o tinha notado, mas tinha que levar a conversa com civilidade, custasse o que custasse.

—Encantador - concedeu, optando pelo assento mais afastado do fogo. – saíram muitos casulos e o ar está aprazível. Cruzei-me com gente que passeava pelo parque e na rotunda tocava uma orquestra alemã.

—Dá vontade de que chegue o verão. - Lady Mary fervia de curiosidade por saber o motivo de que Zenobia, que sem dúvida a detestava, visitasse-a nada menos que duas vezes em menos de quinze dias. - Pensa ir ao Ascott ou ao Henley? Cansam-me as corridas, mas terá que deixar-se ver, não acha?

Zenobia engoliu sua resposta e se obrigou a mostrar uma expressão afável.

—Estou certa de que suas amigas terão um desengano se você não for, mas temo que não resulte apropriado para mim. Um membro de minha família está passando uma tragédia, e se as coisas pioram não acredito que eu esteja com disposição de desfrutar dessa classe de eventos sociais.

Lady Mary se reanimou em sua poltrona e seus dedos se fecharam em torno das complicadas volutas que rematavam os braços da poltrona.

—Seriamente? Sinto muito. - Hesitou um pouco e depois se lançou. - Posso ajudá-la em algo?

Zenobia engoliu o nó que tinha na garganta. Pensou no Peter Holland a véspera de zarpar rumo à Crimea. Quanto se teria rido dessa situação! Teria visto o perigo, e o ridículo da mesma.

—Possivelmente poderia me dizer algo sobre essas mulheres que se empenham em obter o direito ao voto. - Lady Mary esticou os músculos, juntou as sobrancelhas e endureceu seu olhar de olhos azul claro. - Que tipo de pessoas são? Em concreto, quais são?

—O que são é muito fácil de dizer - respondeu lady Mary. - São mulheres que não souberam fazer um bom matrimônio, ou que têm uma mentalidade masculina e desejam dominar em vez de serem criaturas coquetes, domésticas e sensíveis como Deus e a natureza as conceberam. São mulheres que não conseguiram ser atraentes nem adquiriram as artes que tão úteis nos são em nossa função de ter e criar filhos e organizar a casa de forma que seja o refúgio de paz e decência para o marido, longe da maldade do mundo. Ignoro por que há mulheres que desejam outra coisa, como não seja claro está, em vingança contra as que somos normais e às que não podem ou não sabem simular. Por desgraça cada vez são mais, e estão pondo em perigo os fundamentos da sociedade. - Arqueou as sobrancelhas. - Espero que não tenha nada que ver com elas, por mais que seus instintos e o fato de ser solteira possam tentá-la. - Por um momento a malícia brilhou em seus olhos, levada por velhas lembranças. O pretexto da piedade era uma farsa: Mary Carfax não tinha esquecido nem perdoado nada.

"Deus sabe - continuou com sua voz fina - que já há suficiente inquietação no país. As pessoas chegaram a criticar a rainha e acredito que se fala de revolução e anarquia. O governo recebe ameaças de todas as direções. - Suspirou. - Só terá que pensar nesse horror do Westminster Bridge para perceber de que a sociedade está em perigo.

—Acredita assim? - Zenobia simulou uma mescla de dúvida e respeito, mas por dentro sorria.

—Tenho certeza! - exclamou lady Mary. Que outra interpretação daria você aos fatos?

Agora tocava mostrar-se inocente.

—Suponho que as tragédias das que fala são causa de algum motivo pessoal: inveja, avareza, medo, ou possivelmente vingança por algum desprezo...

—Vingança contra três homens que, além disso, são membros do Parlamento? Lady Mary estava interessada. Inspirou lentamente, olhou as fotografias de Gerald Carfax e de James no alto do piano e soltou um suspiro. - Um deles era o sogro de meu filho.

—Sim, terá sido uma verdadeira tragédia - murmurou levianamente Zenobia. – Para você e para seu filho, é claro. - Não sabia como agir. Precisava conhecer mais coisas de James e sua esposa, mas perguntando diretamente só obteria a opinião pessoal de lady Mary, que indevidamente seria parcial. Mas não lhe ocorria outra maneira de enfocá-lo. - Imagino que estará muito abalada.

—OH, sim, é claro. Claro que o está. - Lady Mary pôs triste.

Zenobia tinha conhecido gente de todas as classes, cavalheiros e trabalhadores, artesãos, jogadores, marujos, aventureiros e selvagens, e tinha aprendido o muito que tinham em comum. Percebeu que lady Mary estava desconfortável sob sua ligeira indecisão e o superficial toque de cor que iluminava suas pálidas faces: Mary era das que não se rebaixava a maquiar-se. Assim ao James Carfax não doía muito ter perdido a seu sogro.

Zenobia provou por outra via, pressentindo ter encontrado uma brecha.

—O luto é uma coisa muito dura para os jovens, e a senhora Carfax deve sentir- se muito aflita.

—Muito - concedeu lady Mary. - Ele tomou muito a peito, o que é lógico, acredito eu. Mas isso faz que James esteja passando mal.

Zenobia não disse nada, convidando-a com seu silêncio a prosseguir.

—Ela depende muito de meu filho - acrescentou sua anfitriã. - E é muito exigente.

Zenobia percebeu uma vez mais sua indecisão, e as evocações que a motivavam. Recordava como tinha sido Mary Carfax trinta anos atrás: orgulhosa, dominante, convencida de saber o que era o melhor para todos e resolvida, em seu próprio interesse, a consegui-lo. Sem dúvida, James tinha sido seu objetivo prioritário, e lady Mary não devia passar nas exigências de uma esposa.

Toda idéia ulterior neste sentido foi interrompida pela entrada da criada, que voltava para anunciar que tinham chegado os Carfax, que estavam atrás dela. Zenobia os estudou com interesse quando lhe foram apresentados. James era bastante alto, de uma esbelteza elegante e com esse sorriso fácil que nunca tinha gostado. Mas estava julgando a ele ou a si mesma? Não era um homem forte, disse-se, e ela não o teria escolhido como companhia para sulcar os grandes rios da África; teria se assustado ao menor perigo.

Helen Carfax era outra coisa. Seu rosto refletia fortaleza, não formosura, e um equilíbrio de feições que era agradável e que podia sê-lo mais com o passar do tempo. Mas era uma mulher submetida a grandes tensões. Zenobia conhecia os sintomas: não fez nada tão claro como retorcer as mãos ou espremer o lenço, puxar as luvas ou dar voltas a um anel; tudo estava em seus olhos, um espaço branco entre a pupila e a pálpebra inferior, e uma forma de andar rígida como se lhe doesse a musculatura. Era algo mais que dor pela perda de um ser querido; era medo a uma perda que ainda estava por vir. E seu marido parecia alheio a isso.

—Como está senhorita Gunne. - James fez uma pequena reverência. Era atraente, direto, tinha olhos bonitos e olhou os dela com um sorriso cândido. – Espero que não as interrompamos. Devo ver mamãe muito freqüentemente, não tenho nada urgente que lhe dizer. Em época de luto não se tem muitas visitas que fazer, e pensei que seria agradável sair um pouco de casa. Por favor, não abrevie sua visita por nós.

—Encantada, senhor Carfax - disse Zenobia, estudando-o. Levava um traje bem talhado, camisa de seda, o anel de selo era de um gosto delicioso. Inclusive suas botas eram feitas à mão e, supunha ela, de couro de importação. Alguém lhe estava passando uma bonita atribuição, e não era lady Mary, não seria que tivesse mudado de personalidade! Teria lhe dado dinheiro conta-gotas, com cuidado, vigiando no que gastava até o último penny: era seu estilo de poder. - É muito amável - acrescentou, por hábito, não porque tivesse simpatizado com ele.

James indicou Helen.

—Permita que apresente a minha esposa.

—Como está senhorita Gunne - disse cortesmente Helen. - Me alegro de conhecê-la.

—E eu a você, senhora Carfax. - Zenobia sorriu um pouco, como se faz com uma mulher a que se acaba de conhecer. - Receba minha mais profunda condolência por sua recente perda. Qualquer pessoa sensível tem que acompanhá-la no sentimento.

Deu a impressão de que Helen se desconcertava; estaria pensando em outra coisa.

—Obrigada... - murmurou. - Muito amável de sua parte... - Ao que parecia tinha esquecido o nome da Zenobia.

A seguinte meia hora transcorreu entre conversas irrelevantes. James e sua mãe tinham muito em comum, socialmente, embora não emocionalmente. Zenobia os observou com interesse, fazendo alguma cortês observação a Helen, e indagando em seu rosto quando ela olhava a seu marido. A partir das trivialidades, da fofoca social, das pausas, da piscada de ressentimentos e dor reprimida, dos hábitos da cortesia tão bem inculcados que uma pessoa não se dava conta dos ter, e pelo ar de temor ignorado pelos outros, Zenobia pôde compor uma história completa de desejos insatisfeitos.

Conhecia a Mary Carfax e não lhe surpreendeu que mal criasse e dominasse ao mesmo tempo a seu filho, adulando-o e alimentando sua vaidade e seus apetites, sem deixar de apertar a bolsa com seus dedos com jóias. Era inevitável, pois, que ele estivesse educadamente ressentido, que passasse da gratidão ao rancor, que estivesse acostumado a depender dela, que no fundo soubesse que o achasse um homem estupendo, o melhor, e que ele mesmo duvidasse de ter justificado essa apreciação. Zenobia não teria duvidado a quem olhar se a vítima tivesse sido Mary Carfax.

Mas tinha sido Etheridge. Pensou no dinheiro, o muito que James Carfax podia necessitar para obter sua apreciada liberdade. Mas dinheiro de quem? Só da Mary; e isso não ataria a Helen, com a lei de propriedade das mulheres casadas recém aprovada pelo Parlamento.

Ou sim? Só devia olhar o semblante pálido da Helen, seus olhos posados em James ou olhando pela janela para o céu, para dar-se conta de que amava a seu marido muito mais que ele a ela. Helen elogiava-o, protegia-o, uma suave vermelhidão acendia suas faces quando lhe falava com doçura, sua dor se mostrava ao nu quando a tratava com condescendência ou a utilizava como alvo de suas piadas ligeiras, desagradáveis em toda sua sutil crueldade. Ela era capaz de lhe dar algo para obter seu amor, e Zenobia começava a sofrer por ela ao compreender que sua dor não ia ter fim. Estava procurando algo que James não possuía e não podia dar. Para que James Carfax tivesse a força interior que lhe permitisse ser generoso e limpo no amor teriam que acontecer muitas coisas, mudanças inimagináveis. Zenobia tinha amado a homens débeis estando sozinha na África, e as lembranças foram a sua mente. Tinha caído na dolorosa conta de que seu amor nunca lhe seria devolvido. De onde não há, pouco pode tirar-se; a qualidade dos sentimentos reflete a qualidade do homem... ou da mulher. Uma alma com pouca coragem, honra ou compaixão pode dar o que tem, mas nunca poderá satisfazer a um coração grande.

Helen Carfax saberia com o tempo, compreenderia que nem do James nem de ninguém mais obteria o que eles não podiam lhe dar.

Zenobia recordou algumas de suas aventuras românticas, a temeridade da entrega, o aferrar-se à esperança, e se perguntou com um temor frio se Helen teria pago já o preço mais alto, dar morte a seu pai com suas próprias mãos, pelo dinheiro com o qual comprar a fidelidade de seu marido.

Voltou a olhar seu pálido rosto de olhos debruados em branco, posados agora na elegante figura do James, e pensou que o medo era por ele, não por ela. Helen tinha medo de que ele tivesse cometido o crime ou que tivesse tramado sua execução.

Zenobia se levantou um tanto rígida depois de ter estado sentada tanto tempo.

—Estou certa, lady Mary, de que terá assuntos familiares que tratar e necessitará um pouco de intimidade. Faz um dia tão bonito que quero passear um pouco ao sol. Senhora Carfax, queria me acompanhar?

Helen pareceu sobressaltar-se, quase como se não tivesse compreendido o oferecimento.

—Podemos ir andando até o fim da rua insistiu Zenobia. Com certeza o ar nos fará bem e assim eu poderei desfrutar de sua companhia, e possivelmente até de seu braço.

Era ridículo; Zenobia era muito mais forte que ela e não precisava apoiar-se em ninguém, mas Helen não podia declinar um convite expresso naqueles termos sem ser descortês. Pediu desculpas a seu marido e sua sogra e em cinco minutos ela e Zenobia estavam na rua.

O assunto em nenhum caso podia abordar-se diretamente, mas Zenobia se sentiu impelida até ao risco de causar uma grande ofensa ao falar com a Helen como teria feito a uma filha. Estava disposta a combinar emoções sinceras com coisas inventadas para consegui-lo.

—Compadeço-a querida - disse tão logo estiveram a uns passos da casa. – Eu também perdi a meu pai em circunstâncias violentas e inquietantes. - Não tinha tempo para perder em relatar essa ficção; só era um preâmbulo. A história importante eram os intentos da Zenobia para obter de um homem um amor do que ele não era capaz, e como ao final tinha perdido sua integridade, pagando uma fortuna por algo que não existia, nem para ela nem para ninguém mais.

Começou devagar, ampliando suas inventadas angústias as suas viagens pelo continente negro, e evitando a anestesiante realidade de Balaklava e a morte do Peter Holland. Zenobia decidiu criar um pai imaginário que morria estando na flor da vida, e depois um pretendente, mescla de homens que tinha conhecido e querido de uma forma ou outra... mas não Peter. Meu Deus queria-lhe tanto... suspirou olhando para uma sebe de espinheiro. Era bonito e atencioso, um companheiro encantador e interessante.

—O que ocorreu? - perguntou Helen por mera cortesia, pois o silêncio parecia exigi-lo.

Zenobia mesclou desilusão e uma pequena dose de licença poética.

—Proporcionei-lhe dinheiro para sua viagem e muitas outras facilidades.

Pela primeira vez, Helen pareceu prestar toda sua atenção.

—Bom, é lógico; você amava-o.

—E desejava que ele me amasse - prosseguiu Zenobia sabendo de que ia colocar o dedo na chaga. - Inclusive fiz coisas que agora me dou conta que foram desonrosas. Suponho que já sabia então, só que não tive a valentia de aceitá-lo. - Dirigiu a vista para as brancas nuvens que sulcavam o céu. - Levou-me muito tempo e muitas coisas insípidas compreender que tinha pago um preço muito alto por algo que não era real, algo que nunca podia esperar alcançar.

—O que? - Helen engoliu em seco, mas Zenobia seguiu sem olhá-la. - A que se refere?

—A uma ilusão que compartilhamos muitas mulheres, querida: que todos os homens podem dar esse amor que nós desejamos, e que sendo fiéis, generosas e pacientes eles no final nos darão isso. Há pessoas que não são capazes de um compromisso semelhante. Não se podem pedir peras ao olmo, e persistir nisso só redunda em prejuízo da prudência, a saúde e inclusive a auto-estima, destrói a integridade de ideais que subjazem a toda felicidade duradoura.

Helen guardou silêncio durante um momento. Não se ouvia outra coisa que o ritmo estável de seus passos sobre a calçada, um pássaro piando na copa de uma árvore, e na estrada o ruído de cascos de cavalo e de rodas de carruagens.

Finalmente, Helen apoiou uma mão no braço da Zenobia.

—Obrigada disse com aflição. - Acredito que me aconteceu o mesmo. Possivelmente você sabia? Mas eu saberei achar forças para pôr fim a esta situação. Já causei muito dano. Joguei a culpas às mulheres que lutam pelo voto no Parlamento, porque precisava afastar à polícia de minha própria casa, quando na verdade não tenho a menor ideia de quem possa ter assassinado o meu pai. De minha parte foi muito mal. Espero que ninguém tenha saído prejudicada, salvo eu mesma, por ser tão pobre de espírito. É uma verdade difícil de confrontar, mas... mas acredito que é um pouco tarde para... - Calou-se, incapaz de prosseguir, vendo que as palavras sobravam.

Zenobia a entendia muito bem. Apoiou uma mão na dela e seguiram andando em silencio pela luminosa e ensolarada rua ladeada de sebes.

 

Charlotte voltou para casa com certa sensação de fracasso. A visita a Parthenope Sheridan não tinha dado frutos. Era exatamente o que parecia: uma mulher profundamente compungida pelo acontecido e sensibilizada como é habitual quando um membro da família morre de repente e não houve tempo de falar de amor, de estancar velhas feridas, de pedir desculpas por mal-entendidos e rancores superficiais a respeito de coisas que a morte privou que importância.

Não tinha forma de adivinhar se debaixo daquela emoção se escondia outra coisa, algo mais profundo. Se tinha havido ciúmes, cobiça, amantes, Charlotte não o tinha percebido, nem sequer se tinha formulado perguntas mentalmente.

O único passo adiante que tinham dado esse dia era que Zenobia estava certa de que Helen Carfax não era suspeita, nem direta nem indiretamente. Ficava James Carfax, embora ela não achasse que tivesse coragem para havê-lo feito ele mesmo, nem a habilidade para procurá-los serviços de outro. Tanto Charlotte como Vespasia estiveram de acordo com ela.

Charlotte lhes tinha contado suas impressões a respeito do Florence Ivory, a piedade que tinha sentido por ela, sua impotência ante a cólera do Florence, assim como a profunda ferida que a injustiça tinha infligido a aquela mulher, envenenando tudo o que de outro modo teria sido amor. Charlotte concluiu a contra gosto que não podia desprezar a idéia de que Florence pudesse ser culpada e que deviam preparar-se para essa eventualidade. Não tinha averiguado nada em favor da causa que as ocupava.

Distintas idéias iam a sua mente, feias e horríveis, de planos sutis para desenhar não só a morte de alguém conhecido e próximo a elas, mas a corrupção de uma alma alheia, o caminho que levava a assassinato e o pesadelo subseqüente. Era possível que todos os motivos fossem pessoais e independentes, que o vínculo entre eles fosse uma conspiração deliberada, procurando cada qual satisfazer a necessidade do outro? A idéia era monstruosa, mas também o tinham sido as mortes, e ao que parecia não havia mais conexão entre as vítimas que sua pertença ao Parlamento, coisa que compartilhavam com outros seiscentos homens...

Estava Florence Ivory bastante perturbada para matar, e para continuar matando uma vez morto Etheridge? Em tão pouca estima tinha a vida, inclusive a sua própria? Charlotte não sabia o que responder.

Deu instruções à Gracie na cozinha e à senhora Phelps, a mulher que ia duas vezes por semana para fazer o trabalho pesado, e ficou a ordenar roupa limpa e a engomar. Enquanto o fazia, repassou quanto tinham averiguado tia Vespasia e Zenobia Gunne, e tudo o que lhe havia dito Pitt; mas a confusão resultante não conseguiu contribuir nenhum raio de esperança. Se não tinha sido Florence, então quem? Acaso a profunda aversão do Barclay Hamilton por sua madrasta tinha que ver com a morte de seu pai? Sabia ou suspeitava ele algo? Esse pensamento tampouco era agradável; os dois lhe tinham sido simpáticos, e que motivo podia haver para sustentar uma antipatia capaz de alimentar o instinto assassino? Pitt tampouco tinha descoberto se o assassino era um inimigo político ou de negócios.

Possivelmente James ou Helen Carfax? Nobby Gunne pensava que não, e sua opinião parecia boa. Se algum valor tinha as investigações das três, coisa cada vez mais duvidosa; Charlotte jamais se havia sentido tão insegura, seria puramente pelo fato de ser mulheres e poder julgar o caráter de outras mulheres, sua estreita relação com a boa sociedade, coisa que a polícia não podia ter; aí estava a diferença. Tinham planejado observar aos implicados quando não podiam estar em guarda, obtendo confidências porque aqueles não suspeitavam seu interesse. Descontando essa vantagem, não ficava nada.

E Cuthbert Sheridan? De momento não sabiam nada dele, além de que sua família parecia muito normal, e ninguém parecia ter motivo para desejar sua morte. Sua viúva era uma mulher que começava a descobrir suas próprias aspirações e que pela primeira vez na vida tinha opiniões independentes. Talvez houvessem brigado, mas ninguém contrata a um assassino para que mate ao marido só porque este não está de acordo com certos julgamentos políticos novos, inclusive se estiver totalmente contra. E nada sugeria que Cuthbert Sheridan tivesse sido assim.

Pitt estava na rua tratando de averiguar algo mais da vida privada e política de Sheridan. E o que tinha este em comum com os outros que lhe tivesse feito merecedor da morte? Charlotte não tinha a menor ideia.

Seus pensamentos foram interrompidos pelo carteiro, que lhe trazia a fatura do açougue, a conta do carvoeiro e uma longa carta de Emily. As faturas eram um pouco menos elevadas do que ela tinha esperado, o que a animou. Deixou as faturas sobre o aparador da cozinha e abriu a carta de Emily.

 

Florença, sábado

Queridíssima Charlotte:

Que encanto de cidade! Palácios com nomes que lhe desfazem na língua, estátuas por toda parte, e uma beleza tão assombrosa que fico embevecida em plena rua até que algum transeunte tropeça comigo e então me sinto como uma idiota, mas não importa. Acho que Jack faz como se não estivesse comigo! E a gente! Eu pensava que esses rostos que pintava Leonardo viviam somente em sua imaginação, ou que tinha fixação por uma só família e os pintava uma e outra vez. Mas Charlotte, aqui há pessoas com esse mesmo aspecto! Vi uma perfeita Madona das rochas ontem na piazza, dando de comer aos pássaros enquanto sua carruagem aguardava e o lacaio ficava nervoso.

Eu acredito que a mulher tratava de ver um de seus amantes, ou possivelmente esperava que Dante cruzasse a ponte. Sei que me equivoquei de século, mas o que importa isso. Tudo é como um magnífico sonho poético convertido em realidade.

Eu pensava que essa luz dourada sobre as colinas nos quadros renascentistas era uma mescla da imaginação dos artistas e a capa de verniz velho. Pois não: o ar aqui é realmente diferente, sua cor tem uma calidez especial, o céu, as pedras e até as árvores têm uma pátina dourada. Nada que ver com Veneza, com toda sua cambiante atmosfera, seu céu e água azuis, mas igualmente encantador.

Acredito que minha estátua favorita é o São Jorge de Donatello. Não é muito grande, mas é tão jovem! Seu rosto sugere tanta esperança e coragem, é como se acabasse de ver Deus e estivesse disposto a vencer todos os males do mundo, a lutar contra todo dragão mísero e egoísta, toda idéia escura do homem, sem reparar em longa ou horrível que a luta possa chegar a ser. Meu coração chora por ele, porque vejo o Edward e também ao Daniel em sua inocência, e, entretanto me levanta o ânimo também, devido a sua valentia. De pé junto ao Bargello, as lágrimas banham minhas faces. Jack acredita que me estou tornando uma excêntrica, ou que o sol me afetou, mas eu acredito ter descoberto o melhor de mim mesma.

A verdade é que estou passando maravilhosamente e conhecendo muita gente interessante. Há aqui uma mulher que esteve duas vezes noiva e nas duas ocasiões lhe deram o fora. Terá uns trinta e cinco anos, mas ainda enfrenta à vida com uma espera tal que é um prazer estar com ela. Estou certa de que quem a abandonou por outras não a merecia. Que pouco critério tem algumas pessoas, escolher uma mulher por ser bonita ou dócil; deveriam acabar casando-se com alguém de mau temperamento e língua viperina. Assim o espero! Tem um tipo de coragem que me admira cada vez mais. Está decidida a ser feliz, a ver as coisas boas e tirar partido das que não o são. Que diferença de alguns de nossos companheiros de viagem!

E em meio da música e do teatro, os passeios em carruagem, os jantares inclusive os bailes, houve algumas catástrofes. Roubaram-nos, embora por sorte não levaram coisas de valor, e um dia saiu uma roda da carruagem e não pudemos achar ninguém que a reparasse. Tivemos que passar a noite em um lugar frio e ruidoso entre Pisa e Siena, onde como é lógico nos receberam mau, e juro que até havia ratos!

Mas Jack é um encanto. Estou certa de que continuarei sendo feliz com ele inclusive quando se acalmarem os primeiros ânimos e comecemos uma vida normal, nos vendo a hora do café da manhã e no jantar. Devo lhe persuadir de que busque uma ocupação, porque não poderia suportar lhe ter todo o dia rondando pela casa, acredito que nos cansaríamos um do outro. Claro que tampouco eu gostaria de passar o tempo preocupada porque possa estar em má companhia. Observou que tediosa é a pessoa quando se aborrece muito?

Sabe, eu acredito que em certo modo a felicidade é uma questão de escolha. E eu optei por ser feliz e que Jack contribua a isso, ou para dizê-lo em outros termos, que penso aproveitar todas as oportunidades que me agrade.

Espero estar de volta dentro de duas semanas, e em muitos sentidos o desejo, sobretudo para ver-te outra vez. Sinto muito sua falta, e como não pude receber cartas suas, desejo mais que nunca saber o que esteve fazendo, você e Thomas. Sabe, acredito que sinto falta de Thomas tanto como ao que mais! E é claro ao Edward.

Irei visitá-la no dia de minha volta. Até então, cuide-se e recorda que a quero.

EMILY.

 

Charlotte ficou um momento com a carta na mão e uma crescente sensação de calidez. Sem dar-se conta, estava sorrindo. Teria se encantado em ver Florença, com todo seu colorido, as coisas formosas, sobre tudo o São Jorge, e todo o resto. Mas Emily tinha razão: a felicidade era em boa parte escolha, e ela podia optar por olhar com inveja o périplo do Emily ou considerar a estranha e preciosa relação que tinha com o Pitt, a tolerância de este para com suas aventuras, a disposição que tinha a compartilhar com ela suas idéias e suas emoções. Com surpresa e gratidão compreendeu que desde que tinha conhecido ao Pitt jamais se havia sentido realmente sozinha. O que era uma vida de grandes viagens comparada com isso?

Passou o dia trabalhando na casa, falando consigo mesma enquanto limpava, ordenava e dava cera aos móveis. Mandou Gracie por flores, e carne para preparar o prato favorito do Pitt, pudim de carne e rins. Pôs a mesa e fez que os meninos se lavassem e pusessem a camisa de dormir para quando ele chegasse.

Deixou-os correr à porta para saudá-lo e que os abraçasse e os levasse a cama; depois jogou os braços ao pescoço e abraçou-o com força sem dizer uma palavra, só contente de tê-lo ali.

Pitt reparou na toalha branca e nas flores, viu que Charlotte tomara especial interesse nos detalhes. Ao ver o pudim dourado e as verduras frescas e perceber o delicioso aroma que emanava do prato, interpretou-o da maneira mais equivocada. Pensou no Micah Drummond e na ascensão prometida, nas cartas de Emily, que não tinha lido, e em todas as coisas novas que um pouco mais de dinheiro significaria para Charlotte.

Quanto mais pensava no trabalho de mesa, mais odiava essa idéia, mas ao ver o rosto risonho de sua mulher e os toques femininos que havia na casa as flores, as telas pintadas à mão, a toalha com bordados, a mesa de costura cheia de tecido para a roupa dos meninos pensou que era um preço muito baixo pela felicidade dela. Pitt estava decidido a fazê-lo e a tentar que ela nunca soubesse o que isso ia custar lhe.

Sorrindo, começou a lhe falar de como lhe tinha ido o dia e o pouco que tinham obtido sobre Cuthbert Sheridan e sua família.

Charlotte assistiu com Vespasia e Zenobia ao funeral do Cuthbert Sheridan. O tempo tinha mudado e o sol e o vento suaves tinham sido substituídos por chuvaradas que os deixaram empapados para logo deixar uma pátina de luz fria sobre as superfícies molhadas, os frisos pingantes e as folhas que gotejavam.

Tinham ido as três na carruagem da Vespasia, por comodidade, mas também para trocar observações, se houvesse lugar, embora nenhuma das três tivesse muitas esperanças de tirar algo novo. A investigação parecia em ponto morto. Segundo Pitt, explicou-lhes Charlotte, a polícia tampouco tinha avançado muito. Se Florence Ivory tinha matado ao Sheridan, não tinham descoberto um motivo aparente e tampouco havia alguma testemunha que soubesse de uma conexão entre ambos, não digamos situá-la a ela na cena do crime com meios para levá-la a cabo.

Vespasia ia muito ereta em seu assento, vestida de renda azul e lavanda; Zenobia em frente dela, viajando de costas. Levava um elegante e fino vestido azul escuro com uns desenhos em negro que semelhavam uma flor de lis, pontuado no peitilho com contas negras e as mangas franzidas à altura do ombro. Como complemento levava um chapéu negro alarmantemente inclinado que parecia ameaçar sair voando cada vez que soprava uma rajada para o este.

Como era seu costume, Charlotte tinha pedido emprestado um velho vestido a Vespasia, um cinza escuro, além de chapéu e capa negros, e com seu formoso cabelo e sua pele cor de mel o efeito era realmente favorecedor. A criada de Vespasia lhe tinha feito uns retoques consistentes em eliminar do vestido os sinais da moda de cinco anos atrás, e agora era simplesmente um bonito vestido com o qual assistir a um funeral distinta, mas não ostentosa.

Chegaram pontualmente, atrás da família, outros membros do Parlamento e suas esposas, e do Charles Verdun, a quem Vespasia conhecia e fez notar Charlotte em voz baixa enquanto desembarcavam da carruagem e percorriam a pé a curta distância desde o Prince"s Road até a sacristia do St. Mary"s Church.

Do banco em que se sentaram observaram a chegada de Amethyst Hamilton, andando reta um passo adiante de seu irmão, sir Garnet Royce, e negando-se a aceitar o braço que este lhe oferecia. Algo mais atrás, com o chapéu na mão e aspecto oportunamente melancólico e mais que doído, vinha seu irmão menor Jasper, com uma mulher loira que devia ser sua esposa. Charlotte o mencionou a Vespasia e observou com discrição enquanto eram acompanhados a um banco três filas mais adiante, o que a privou da oportunidade de ver seus rostos. Sir Garnet chamava muito a atenção com sua fronte alta e seu nariz aquilino. A luz das janelas da ala sul brilhou um momento sobre sua cabeça prateada antes que as nuvens voltassem a varrer o céu e o sol se desvanecesse. Charlotte notou que muitos olhos estavam pendentes dele, e que sir Garnet saudava de vez em quando com a cabeça a algum conhecido, mas parecia mais preocupado pelo bem-estar de sua irmã, coisa que esta dava a impressão de aborrecer-se inexplicavelmente.

Junto a eles, Jasper guardava silêncio enquanto manuseava seu missal.

Produziu-se certo revôo ao aparecer um conhecido personagem do governo em representação do primeiro-ministro; se o governo e a polícia não podiam resolver o crime e capturar ao assassino, ao menos que lhes visse dando os devidos respeitos.

Micah Drummond chegou com mais sigilo e foi sentar se no último banco, observando, embora tivesse renunciado a esperar algo da visita. Nem Charlotte nem Vespasia viram Pitt, de pé no fundo da igreja, como se fora um guarda mais, salvo pelo atoleiro de água que o casaco molhado tinha formado a seus pés; mas Charlotte sabia que estaria ali.

Ao fundo, entre outros membros do Parlamento, Charlotte viu o gracioso rosto de grossas sobrancelhas do Somerset Carlisle. Olhou-o um instante antes que ele reparasse em Vespasia e inclinasse a cabeça a modo de saudação.

Depois chegaram os Carfax. James, de negro, estava muito elegante, mas mais pálido que de costume; cabisbaixo, procurava não olhar a ninguém. Parecia lhe faltar a confiança em seu atrativo pessoal, a naturalidade brilhava por sua ausência. Helen caminhava por seu braço, e seu rosto tinha uma paz que realçava seu porte digno. Soltou a mão de James antes que ele o fizesse e se sentou com muita compostura no banco à direita do Charlotte.

Lady Mary foi a última a chegar. Estava majestosa, inclusive régia. Seu vestido era de última moda; azul escuro debruado de flor de lis negra e pespontado de contas negras na garganta e no peito, com franzidos nas mangas. Um chapéu negro adornava sua cabeça com elegância, em um ângulo precário e atrevido. Ao chegar à altura de Charlotte, seus olhos se dirigiram ao suntuoso chapéu da Zenobia, e então ficou gelada. Sua mão enluvada em negro aferrou a manga do guarda-chuva negro.

A suas costas um guarda sussurrou "Desculpe milady", insistindo para que ocupasse seu lugar. Tremendo de fúria, lady Mary não pôde fazer outra coisa que obedecer.

Zenobia procurou um lenço em sua bolsa, mas não achou nenhum. Vespasia, que tinha visto chegar lady Mary, passou-lhe um com um sorriso, e Zenobia passou a dar rédea solta a um ataque de tosse... ou de risada.

O órgão interpretava uma música lúgubre em tom menor. Finalmente apareceu a viúva do Sheridan, com véu e de rigoroso luto, seguida de seus filhos, que pareciam diminuídos e como desamparados. Uma preceptora vestida de negro foi ajoelhar se no banco de trás.

Começou o sermão. A música e as orações acompanharam a monótona e oca voz do vigário em seu ritual de dar expressão digna e formal à aflição. Charlotte prestou pouca atenção às palavras, dedicando-se a observar aos Carfax com toda a discrição que lhe permitia seu livro de rezas.

Lady Mary olhava à frente fixamente, evitando olhar a Zenobia, que estava a sua esquerda. Se tivesse tirado o chapéu teria podido fazê-lo, mas isso era impossível na igreja; inclusive alterando seu ângulo teria chamado a atenção dos pressentes.

A seu lado, James participava da liturgia, levantando-se quando outros o faziam, ajoelhando-se em atitude de oração, e sentando-se solenemente com o olhar fixo no vigário quando este começou seu discurso breve. Mas seu gesto cansado, o esforço e a lenta absorção do lutuoso sucesso não respondiam à dor. Nada tinha permitido supor que conhecesse o Cuthbert Sheridan, e Zenobia havia dito dias atrás que o tinha visto bastante animado dentro do que cabia depois da morte de seu sogro. De fato, tinha tido a impressão de que James gotejava uma espécie de segurança em si mesmo, a certeza de satisfações futuras.

Charlotte cantou o hino mecanicamente e continuou olhando James Carfax. Seu entusiasmo o tinha abandonado: nos últimos dias tinha sofrido uma perda genuína.

O vigário tinha começado seu elogio; Pitt estaria escutando para ver se captava algo que resultasse útil à investigação, coisa muito improvável. Charlotte se dedicou a olhar Helen Carfax.

A voz do vigário subia e baixava com regularidade, afundando-se ao final de cada frase; era curioso que esse ritmo lhe fizesse parecer muito pouco sincero ou emotivo. Mas a liturgia era a liturgia, e isso dava certa familiaridade à cerimônia, o que, supunha ela, devia ser alentador para aqueles que procuravam consolo.

Helen estava erguida, retos os ombros, olhando à frente. Durante todo o serviço tinha participado com algo parecido ao primeiro germe do entusiasmo. Havia nela uma determinação que contrastava com a inquietação e ansiedade descritos pela Zenobia e Pitt. Não obstante, enquanto Charlotte a observava sustentar com sua mão enluvada o livro de cânticos sobre o regaço, suas pálidas faces e o ligeiro movimento dos lábios, teria apostado que se Helen achava consolo em algo era unicamente no fato de ter tomado uma decisão, não em que seu medo tivesse desaparecido. Charlotte compreendeu que o que estava vendo não era alegria a não ser arrojo.

Teria chegado Helen ao convencimento de que seu marido não tinha intervindo na morte de seu pai? Ou acaso o verdadeiro peso que a afligia era a mera dor de saber que ele não a queria com a intensidade que ela desejava algo que James era incapaz de fazer? E agora que tinha aceitado a verdade, moderada pelo fato de que fosse uma fraqueza dele, não dela, Helen tinha deixado de perseguir esse amor empenhando sua auto-estima, sua dignidade e sua idéia do justo. Talvez o que tinha recuperado era sua própria integridade.

Em três ocasiões viu Charlotte James falar com ela, e em cada uma lhe respondeu educadamente em voz baixa; mas não parecia uma mulher desesperada por achar amor, mas uma mãe paciente ante um menino tolo. Agora o surpreso era James. Estava habituado a ser pretendido, não a ser o pretendente, e a mudança lhe era muito desagradável. Charlotte sorriu e pensou em Pitt de pé ao fundo da igreja com o casaco molhado, observando e à espera, e mentalmente ficou a seu lado e imaginou que lhe pegava a mão.

Depois do último hino e o último amém, muita gente se dispôs a partir. Só a viúva e os mais íntimos seguiram aos portadores do féretro até a tumba.

Era um ato sombrio; nada da música e a pompa anterior, nada de sermões sobre a ressurreição, a não ser a devolução a sua origem dos restos mortais, o ataúde e a fria terra da primavera.

Aqui as emoções estariam em carne viva, algum rosto ou algum gesto delataria as paixões que moviam às pessoas sob a seda e o fustão, a reza e o velar.

Fora o sol brilhava com força sobre a fachada de pedra da igreja e a espessa erva verde que rodeava as lápides. Nelas tinha gravados velhos nomes e lembranças. Charlotte se perguntou se algum teria sido assassinado, mas dificilmente o teriam feito constar no mármore.

O chão estava molhado e as nuvens, cinzas. O vento cortava e a qualquer momento podia começar a chover outra vez. Os portadores do féretro mantiveram seu passo moderado, balançando a carga, enquanto a brisa empurrava, batendo, as abas das braçadeiras de luto de seus chapéus negros. Foram olhando ao chão, certamente por medo a escorregar mais que por recatada piedade.

Charlotte seguiu à viúva a uma distância prudente, procurando ficar à altura do Amethyst Hamilton. Sorriu-lhe brevemente a modo de saudação - não era este o lugar para cultivar uma amizade e se manteve ao seu lado enquanto Amethyst seguia a seus irmãos para a grande cova aberta na terra, com suas escuras bordas precipitando-se a um fundo invisível.

Rodearam a cova enquanto os portadores baixavam o ataúde, e o lúgubre ritual se viu adornado por um vento que levantava saias e fazia ondear braçadeiras de luto negras. As mulheres levantaram mãos enluvadas em negro para segurar seus chapéus. Lady Mary e Zenobia o fizeram exatamente no mesmo momento, inclinando suas enormes asas em um ângulo ainda mais atrevido. Alguém sufocou uma risada e teve que dissimulá-la com uma tosse fingida. Lady Mary procurou em vão ao culpado com o olhar. Depois incrustou a ponteira do guarda-chuva no chão de um golpe e ergueu o queixo, olhando fixamente à frente.

Charlotte observou Jasper Royce e esposa. Ela ia bem vestida, mas desgraciosa, e parecia estar ali por obrigação. Jasper era uma versão suavizada e menos enfática de seu irmão mais velho. Tinha a mesma fronte, mas sem o gênio do viúvo Royce; suas sobrancelhas eram respeitáveis, mas mais retas e não tão grossas; sua boca era mais volúvel, o lábio inferior mais grosso. Não era tão singular nem tão impressionante, e, entretanto a Charlotte pareceu que devia ser mais agradável como companheiro.

Agora parecia aborrecido; olhava ociosamente a quem tinha diante ao outro lado da sepultura, mas ninguém parecia dar-se conta. Podia ter estado pensando no jantar ou nos pacientes, em algo salvo no que lhes tinha convocado ali.

Sir Garnet, em troca, estava de olho atento; de fato, parecia estudar a outros com a mesma diligência que Charlotte, que se cuidou para que ele não percebesse que estava sendo observado. Olhar para ele com a fixidez com que o estava fazendo; se ele percebesse, teria parecido chocante e exigido uma oportuna explicação.

O ataúde foi baixado à cova e as primeiras gotas de chuva salpicaram os chapéus e as saias das damas e as cabeças dos homens; abriram-se guarda-chuvas rapidamente. Só uma pessoa alterou sua postura o bastante para olhar ao céu.

A voz do vigário soou um pouco mais apressada.

Garnet Royce estava tenso; havia em seu rosto umas rugas de insônia mais patentes que depois da morte de Lockwood Hamilton. Não parava de mover-se, de vigiar, de olhar em torno como se qualquer movimento pudesse ter importância, como se através disso pudesse conseguir uma resposta que necessitava até o ponto de que sua busca o nublara por completo.

Conhecia ele algum fator que Charlotte ignorasse?

Ou era só que sua inteligência o fazia ver aqueles horrores em toda sua magnitude, mais que a quem tinha ido por motivo pessoal ou solidariedade? E os outros membros do Parlamento? Não sabiam que a imprensa estava clamando por uma detenção, que as pessoas escreviam cartas exigindo uma solução, mais polícia nas ruas, mais segurança para os cidadãos honrados? Falava-se de traição, de rebelião, de críticas ao governo e à aristocracia, até à rainha! O medo à anarquia e a revolução era muito real! O próprio trono estava em perigo, se devia se acreditar nos rumores mais pessimistas.

Acaso Royce podia ver o que outros só imaginavam? Ou especulava sobre uma conspiração de caráter privado, um pacto secreto para assassinar por dinheiro, ou quaisquer fossem os motivos que podiam impulsionar a três pessoas a aliar-se para fazer que todos os crimes parecessem obra de um mesmo e temível maníaco?

Estaria Amethyst Hamilton, depois de tudo, na origem da morte de seu marido, já como autora ou como causa?

A cerimônia chegou ao fim e todos retornaram andando à sacristia. A chuva aumentou em rajadas que brilhavam prateadas à luz. Não era bem visto correr. Lady Mary Carfax abriu seu guarda-chuva descuidadamente, atirando um golpe à saia da Zenobia com a bicuda ponteira. O guarda-chuva se enganchou em um babado e rasgou um pedaço de seda.

—Oh, quanto o sinto - disse lady Mary com um direto sorriso de triunfo.

—Não é nada - replicou Zenobia inclinando a cabeça. - Posso lhe recomendar um bom oculista se...

—Vejo perfeitamente, muito obrigada! - replicou-lhe lady Mary.

—Talvez uma bengala, então - sorriu Zenobia, - para manter melhor o equilíbrio...?

Lady Mary colocou o pé em um atoleiro, salpicando as duas, e se dirigiu para a esposa do ministro do gabinete.

Todo mundo se apressou para a igreja, encurvados os ombros e recolhidas as saias para evitar a erva molhada. Os homens tratavam de avançar tão depressa quanto era compatível com a dignidade.

Charlotte percebeu com irritação que lhe tinha caído o lenço, que tinha tirado de vez em quando para levá-lo nos olhos e assim poder observar, sem ser vista, Garnet Royce. Era um dos poucos lenços com cós de renda que ficavam e muito precioso para perdê-lo só para não molhar-se. Desculpou-se com a Vespasia e voltou seus passos para o cemitério.

Acabava de dobrar a esquina da igreja e se aproximava de uma grande lápide estilo rococó quando viu um homem e uma mulher frente a frente como se tivessem acabado de encontrar-se. Ele era Barclay Hamilton, o rosto molhado e o cabelo grudado à cabeça. A áspera luz do dia mostrava a dor de seu rosto; parecia um homem afligido de uma longa e penosa enfermidade. Ela era Amethyst. Primeiro se ruborizou, mas logo o sangue abandonou seu rosto e a deixou tão pálida como ele. Moveu as mãos para afastá-lo, um gesto fútil que se extinguiu rapidamente. Não o olhou.

—Eu... pensava que tinha que vir - disse ela fracamente.

—É claro - disse ele. - Lhe deve respeito.

—Sim, eu... - mordeu o lábio e olhou o botão central de seu casaco. - Suponho que não serve de nada, mas...

—Quem sabe. - Ele a olhou, absorvendo cada fugaz expressão como se quisesse gravá-las a fogo em sua memória. - Pode ser que com o tempo ela compreenda... que esteve bem que viesse gente.

—Sim. - Amethyst não fez gesto de mover-se. - Eu, bom, acredito que me alegro de que viesse gente ao... ao... estava a ponto de chorar ao funeral do Lockwood. - Inspirou fundo e depois olhou seu rosto. Eu o queria muito, sabe.

—Claro que sei - sussurrou ele. - Acha que o pus em dúvida alguma vez?

—Não. - Engoliu em seco enquanto a emoção e os anos de dor se uniam para vencê-la. - Não! - Seu corpo estremeceu com os soluços.

Com uma ternura tão funda que ao Charlotte lhe partiu o coração de vê-los, ele a estreitou entre seus braços enquanto ela chorava, com a face junto a seus cabelos e depois aos lábios, em um instante de breve e incomensurável intimidade.

Charlotte se escondeu atrás da recarregada lápide e se afastou sob a chuva. Por fim entendia a gélida cortesia, a tensão entre os dois e a honra que lhes impedia de estar juntos, sua terrível lealdade para com o homem que foi marido para ela e filho para ele. E sua morte não lhes tinha contribuído com liberdade alguma: a proibição que pesava sobre seu amor era simplesmente eterna.

Pitt assistiu ao funeral sem esperanças de obter nenhuma informação valiosa. Durante o serviço permaneceu na parte de trás observando aos que foram chegando. Viu Charlotte com Vespasia e uma mulher de aspecto imponente e muito mais elegante do que Charlotte lhe tinha feito supor, certamente Zenobia Gunne.

Logo viu lady Mary Carfax entrar majestosamente com um vestido quase tão idêntico que parecia uma cópia, e soube que não se equivocara a primeira vez.

Também percebeu a nova calma interior da Helen Carfax e a segurança que tinha abandonado ao James, recordando o que Charlotte lhe tinha contado sobre a visita da Zenobia. Um dia, se isso fosse possível sem o desconforto das convenções sociais, gostaria de conhecer a Zenobia Gunne.

Tinha notado que Charles Verdun era dos primeiros em chegar, e recordou como lhe fora simpático aquelehomem. Não tinha descartado, porém, uma possível rivalidade entre o Verdun e Hamilton. Bem sabia Deus que ainda não havia uma pauta a não ser só elementos isolados, paixões, injustiças, terríveis perdas e ódios, possibilidades de engano na escuridão e sempre no fundo o murmúrio da anarquia nas feias ruas detrás do Limehouse e Whitechapel e St. Giles. Ou a loucura, que podia estar em qualquer parte.

Hamilton e Etheridge se pareciam fisicamente em estatura e compleição, ambos de rosto alongado, pálido e bem barbeado, e cabelo prateado. Sheridan era mais jovem, e loiro, mas quase da mesma estatura. E lá na ponte, sob as pequenas esferas de luz em meio da escuridão circundante, que diferença havia entre o cabelo cinza e o loiro?

Tinha sido um grotesco engano, ou o assassino era perfeitamente sensato em seu propósito e havia nisso uma chave que Pitt ainda não tinha adivinhado?

Observou aos atores enquanto fingiam devoção durante o tedioso ritual. Fixou-se no Somerset Carlisle e recordou a estranha e apaixonada moralidade que o tinha levado a tão inexplicável conduta no dia em que se conheceram, anos atrás. Viu a viúva e lhe pareceu uma grosseria lhe perguntar por sua aflição. Observou Jasper e Garnet Royce, Amethyst Hamilton. Viu que Barclay Hamilton se sentava deliberadamente longe deles, mas sem chamar a atenção pedindo a outros que se movessem de lugar.

Ao concluir a cerimônia, Pitt não os seguiu ao cemitério. Teria se deixado ver muito e ninguém o teria tomado por um parente ou um sócio. Além disso, pouco resultado podia esperar ali.

Assim, permaneceu perto da sacristia, observando. Viu que Charlotte se voltava, olhava em sua bolsa e corria de novo para o exterior.

Micah Drummond entrou um momento depois, sacudindo a água de seu casaco e seu chapéu. Parecia ter frio, e seu rosto refletia uma crescente ansiedade. Pitt imaginou olhares acusadores que seu chefe teria tido que suportar dos parlamentares, dos membros do gabinete, os comentários sobre a ineficácia policial. Pitt lhe sorriu desolado. Não tinham adiantado nada, e ambos eram conscientes disso.

Não havia tempo para falar, e fazê-lo teria comprometido o anonimato do Pitt. Ao cabo de um momento chegou Garnet Royce, alheio à chuva que lhe corria pelo rosto e gotejava de seu casaco. Não observou Pitt, mas imediatamente se aproximou de Micah Drummond, com a seriedade refletida em seu rosto.

—Pobre Sheridan – disse - Uma tragédia para todos. E um drama para sua viúva. Que maneira tão... tão violenta de morrer. Minha irmã ainda está sofrendo pelo pobre Hamilton. É natural.

—É claro - disse Drummond tensa a voz pela culpa que conduzia o não poder fazer nada a respeito, o não poder afirmar que a investigação tinha progredido algo. Não tinha nada que oferecer, e era incapaz de mentir.

Royce não teve dificuldade para formular a seguinte pergunta. O silêncio convidava a fazê-lo.

—Você acha realmente que são anarquistas ou revolucionários? Bem é certo que os há por toda parte! Nunca tinha ouvido tantos rumores sobre a queda da monarquia e a nova ordem violenta. Sei que sua majestade não é jovem e que sem dúvida leva mal sua viuvez, mas as pessoas esperam certas coisas de uma rainha, independentemente de suas desgraças pessoais. E a conduta do príncipe do Gales não ajuda ao brilho da coroa, certamente. E ainda por cima o duque do Clarence está provocando fofocas com sua vida dissipada e irresponsável. Diria-se que tudo o que nos há custado meio milênio construir está agora em perigo, e parecemos incapazes de frear aos assassinos que espreitam no coração mesmo da cidade! – Parecia assustado, não com o pânico da histeria ou da covardia, mas com a consciência de que vê as coisas claras e está resolvido a liberar uma batalha perdida.

Micah Drummond lhe deu a única resposta que podia, mas sua seu enxuto não pareceu temperada ao falar.

—investigamos aos descontentamentos, os pseudo revolucionários e os insurrecionistas de todas as pelagens, e é claro temos agentes e informantes trabalhando. Mas não existe rumor algum que os relacione com o assassino do Westminster, inclusive parece que isto lhes desgosta! O que querem é ganhar ao povo, ao homem a quem a sociedade rechaça ou oprime, ao homem subjugado pelo excessivo trabalho e o pagamento exíguo. Estas mortes não favorecem a causa de ninguém, nem sequer a dos fenianos.

Royce ficou tenso como se algum temor tivesse sido confirmado.

—Então não acredita que tenham sido anarquistas?

—Não, sir Garnet, tudo aponta em outras direções. - Drummond olhou as botas empapadas. Mas não sei qual.

—Mas é terrível - Royce fechou os olhos com profunda inquietação. - Estamos aqui, você e eu, o governo e a lei da nação, incapazes de proteger às pessoas comuns no coração da capital! Quem será o próximo? - Levantou a vista e olhou Drummond com olhos brilhantes, quase prateados agora que a chuva tinha cessado. - Você, eu? Direi-lhe uma coisa, por nada do mundo iria a casa andando ao anoitecer se tivesse que passar pelo Westminster Bridge. E sinto culpa, senhor Drummond! Toda a vida me esforcei por tomar decisões equânimes, por desenvolver uma vontade forte a fim de proteger aos mais débeis, aqueles por quem devo me preocupar. E já vê, sou incapaz de exercer meus próprios privilégios e obrigações porque um demente anda solto cometendo assassinatos!

Drummond fez cara de ter sido esbofeteado, mas não moveu um só músculo. Royce prosseguiu antes que pudesse achar as palavras adequadas.

—Mas não culpo a você, homem de Deus! Como vai achar alguém a um louco solto? Poderia ser qualquer um! Estou certo que à luz do dia tem o mesmo aspecto que nós. Ou possivelmente é um mendigo que dorme em qualquer portal entre aqui e Mele End ou Woolwich. Somos quase quatro milhões na cidade. Mas temos que dar com ele! Averiguou alguma coisa?

Drummond suspirou lentamente.

—Sabemos que escolhe o momento com cuidado, porque apesar de toda a gente que há no Embankment e à entrada das câmaras, vendedores ambulantes, prostitutas e cocheiros, ninguém o viu.

—Ou alguém está mentindo! - respondeu Royce. Possivelmente tem um cúmplice.

Drummond olhou-o.

—Isso suporia certo grau de prudência, ao menos por parte de um deles. Por que ia alguém cooperar em tão grotesca e infrutífera maldade se não for por dinheiro?

—Não sei - admitiu Royce. Pode ser que o cúmplice seja o verdadeiro instigador, e encomenda os assassinatos a um louco.

Drummond estremeceu.

—É grotesco, mas suponho que possível. Alguém cruza a ponte conduzindo um cabriolé, de noite, com um louco como passageiro, o solta o tempo justo para que mate e logo o tira da cena do crime antes que descubram o cadáver... Em um momento, andando a bom passo, poderia confundir-se entre a gente que vai pelo Embankment, ou para o sul pelo Waterloo Road... É espantoso.

—Certamente - assentiu sombriamente Royce.

Guardaram silêncio. Fora, os beirais gotejavam e as sombras dos que partiam cruzaram a soleira da igreja.

—Se posso ajudar em algo - disse por fim Royce - seja o que for, venha ver- me. Digo-o a sério, Drummond. Terá que apanhar a esse monstro antes que mate outra vez.

—Obrigado. Se me ocorrer algo, irei vê-lo.

 

Pitt abandonou o funeral e andou sob a chuva até o Albert Embankment. Estava na metade do Lambeth Bridge quando por fim conseguiu um cabriolé para voltar para a delegacia de polícia do Bow Street. Isso lhe permitiu refletir antes de sua próxima visita ao Micah Drummond. O que Garnet Royce havia dito era espantoso, mas não se podia descartar. Existia a possibilidade de uma conspiração, que alguém estivesse utilizando a um louco para conseguir seus fins, que o levasse a ponte, indicasse-lhe a vítima e depois o levasse consigo. Já tinham interrogado a todos os cocheiros com licença para conduzir carruagens de todo tipo, sem tirar nenhuma informação de proveito. A princípio se podia ter pensado que algum mentisse, por medo ou sob coação, mas isso já não podia sustentar-se depois de três assassinatos.

Os esforços por descobrir um motivo concreto e comum aos três crimes tinham fracassado. Nenhum conflito de dinheiro ou poder, nenhum motivo de vingança, amor ou ódio ligava às três vítimas ao menos, que ele ou Drummond tivessem sido capazes de imaginar. Inclusive Charlotte, sempre tão perspicaz, não tinha nada que oferecer, além de seu temor de que Florence Ivory abrigasse paixão e ódio suficientes para decidir-se a matar, e a coragem para atuar uma vez tomada a decisão.

Mas uma vez morto Etheridge, que motivo tinha ela para assassinar ao Sheridan? Salvo precisamente esse, que não havia motivo algum, e possivelmente desta forma provar sua inocência. Pôde ter matado ao Hamilton por equívoco, tomando pelo Etheridge, e depois matar ao Sheridan só porque não tinha sentido, para livrar-se das suspeitas? Para isso se necessitava não só uma mulher apaixonada, mas também de uma frieza estremecedora. Pitt não acreditava assim. Sua mente aguda, não influenciada pela culpa ou os pretextos, compreendia a dor de uma mulher que tinha perdido a sua filha.

Não se podia fazer nada salvo voltar para a básica e prosaica rotina policial: revisar tudo, procurar as incoerências, a pessoa que tivesse visto ou recordado algo.

Micah Drummond estava já em seu escritório quando Pitt bateu na porta.

—Entre - disse em voz baixa.

Esperava junto à luz, esquentando-se e secando sua roupa úmida. Suas botas estavam escuras de água e a calça lhe fumegava um pouco. Afastou-se para que parte do calor chegasse também a Pitt. Foi um gesto ínfimo, mas ao Pitt emocionou muito mais que qualquer palavra de elogio ou compaixão que Drummond tivesse podido lhe oferecer.

—E então? - perguntou Drummond.

—Começar do zero. Interrogar outra vez às testemunhas, aos guardas que fazem a ronda na zona, procurar outra vez aos cocheiros e a tudo o que passou pela ponte ou seus arredores uma hora antes ou depois do crime. Eu falarei com todos os deputados que estiveram nessa câmara três noites. Perguntaremos outra vez aos vendedores ambulantes.

Drummond olhou-o esperançado:

—Acredita que ainda podemos descobrir algo?

—Não sei. - Pitt não queria aparentar um otimismo infundado. - Mas não temos nada melhor.

—Necessitará de outros seis guardas; é o máximo que posso lhe dar. Onde os quer?

—Poderiam interrogar aos cocheiros, os guardas de ronda, às testemunhas, e dar uma mão com os deputados. Começarei esta tarde.

—Eu me ocuparei de alguns parlamentares. - Drummond se afastou do fogo e desprendeu seu casaco molhado do cabide. - Por onde começamos?

A longa e fria tarde não contribuiu com nenhum fruto. No dia seguinte Pitt começou outra vez, com a diferença de que Charlotte lhe havia dito com tristeza que o sentimento entre o Barclay Hamilton e a mulher de seu pai não eram ciúmes ou aborrecimento como supunham, mas um profundo e desesperado amor. Pitt não sentiu satisfação, mas respeito e compaixão pela atitude honrosa que os tinha mantido separados durante anos. Sentiu-se de repente tão agradecido por sua própria sorte que foi como uma explosão de alegria.

Encontrou a florista perto da ponte. Era uma mulher de quadris largos e rosto curtido à intempérie. Não havia forma de adivinhar sua idade, entre uns cinqüenta bem levados e uns desperdiçados trinta. Vendia violetas azuis, vermelhas e brancas, e o olhou esperançada quando o viu aproximar-se. Então o reconheceu como o policial que já a tinha interrogado, e o fulgor desapareceu de seu rosto.

—Não tenho nada que lhe dizer afirmou antes que Pitt abrisse a boca. Eu vendo flores a todos que me pedem isso e converso um pouco com os cavalheiros, mas nada mais. Ouça, não vi nada quando assassinaram a esses homens, além do de sempre, nenhuma carruagem parou, nenhuma garota trabalhava, além das que já lhe disse.

E Freddie, que vende salgados, e Bert o dos sanduíches.

Pitt pinçou em um bolso, tirou umas moedas e as ofereceu à mulher.

—Violetas azuis, por favor, O... e as brancas?

—São mais caras, porque cheiram melhor. Costuma passar com as flores brancas. Será pela cor...

—Então dê me variadas, por favor.

—Aqui tem encanto, mas não acredite que vi algo. Não posso ajudá-lo. Tomara pudesse!

—Mas se lembra de que vendeu flores a sir Lockwood, não é?

—Como não! Comprava-me isso muito freqüentemente. Era um cavalheiro muito simpático, o pobre. Nunca regateava, como alguns que eu sei. Os mais ricos são capazes de regatear por um quarto de penny!

Pitt se imaginou sua vida; para ela uma quantidade mísera em troca de umas flores era muito importante, e aquela mulher só se indignava um pouco de que homens que estavam acostumados a jantar cinco pratos pudessem lhe discutir o preço de uma flor.

—Recorda você essa noite? A sessão da câmara durou até muito tarde.

—E que o diga, há sessões e sessões - disse quase com uma piscada. - Do que estariam falando, pergunto-me eu? Da insignificância de uma nova lei para nós os pobres, ou provando um bom Porto?

—Estava sereno, o bastante para voltar para casa andando. Por favor, trate de recordar tudo outra vez. Havia você jantado? O que comeu? Comprou-o em algum lado?

—Isso! - disse ela. - Tomei umas enguias em escabeche e uma fatia de pão quente no posto do Jacko, no Embankment.

—E depois o que? A que hora foi isso?

—Nem idéia, encanto.

—Impossível. Teve você que ouvir o Big Ben; pense!

Devia estar esperando a que os deputados saíssem da câmara.

A mulher enrugou o rosto.

—Ouvi dar as dez, mas isso foi ao ir ao Jacko"S.

—Recorda se ouviu as onze? Onde estava quando o Big Ben deu as onze?

Um viajante lhe comprou um ramo de violetas vermelhas antes que ela respondesse.

—Estava falando com o Jacko. Disse que era uma boa noite para o negócio, que ainda havia gente na rua. E eu lhe respondi que sim, porque tinha ido por mais flores e mal restavam.

—E depois voltou aqui antes que levantassem a sessão - insistiu Pitt.

—Não disse ela, - muito concentrada e com cenho. - Nada disso! Fartei-me de esperá-los e fui para o Strand e os teatros. Nenhuma só flor ficou.

—Isso não pode ser. Com certeza foi outra noite. Você vendeu umas flores a sir Lockwood Hamilton. Prímulas. Quando o mataram levava flores frescas, e não as tinha ao sair da câmara uns minutos antes de cruzar a ponte.

—Prímulas, diz? Eu não tenho prímulas. Nesta época sempre levo violetas. Depois levo de tudo, mas agora só violetas.

—Prímulas não? - recalcou Pitt, vendo abrir-se em sua mente uma estranha e terrível ideia. - Jure.

—Será possível! Acha que levo vendendo flores desde os seis anos e não sei diferenciar uma prímula de uma violeta? Por quem toma?

—Então quem lhe deu prímulas a sir Lockwood Hamilton?

—Alguma que tomou a dianteira! - disse ela asperamente. Logo seu rosto se suavizou. - Claro que eu não deveria ter ido para o Strand, esse não é meu lugar habitual, mas... - deu de ombros. - Sinto muito, riqueza.

—Suponho que tampouco lhes vendeu prímulas ao Etheridge nem ao Sheridan...

—Já lhe disse que não vendo prímulas a ninguém!

Pitt afundou as mãos nos bolsos e tirou uma moeda de seis pennies. Deu-a e pegou dois ramos mais.

—Vá, e quem pôde ser?

—Droga! - A mulher arregalou os olhos. - O assassino do Westminster! Ele as vendeu! Não lhe gela o sangue? Pois a mim sim!

—Obrigado! - Pitt se afastou a passo rápido, pedindo a gritos uma carruagem de aluguel.

—Uma florista? - repetiu Micah Drummond com perplexidade. Sopesou a idéia, estudando-a a fundo e achando-a aceitável.

—Ao menos tenho algo que procurar - disse Pitt. - De certo modo, as floristas são invisíveis até que se procura por elas. Então formam um corpo muito definido. Têm seu próprio território, como os pássaros. Não verá dois iguais na mesma rua.

—Como os pássaros?

—O lado do Westminster Bridge que dá ao Parlamento é terreno do Maisie Willis; na noite em que mataram ao Hamilton, como sabemos, ela decidiu experimentar o Strand. Mas nosso assassino não podia sabê-lo. Ele, ou será melhor dizer ela, aproveitou a oportunidade, e o mesmo com o Etheridge e Sheridan. Devia estar alerta, esperando a ocasião. É possível que fosse ali várias noites antes que a câmara terminasse sua sessão. Quando Maisie não estava na ponte, teve ao homem que procurava para ela sozinha. A vítima deve ter comprado flores, sem prestar atenção à vendedora na penumbra. - inclinou-se com ânsia, cada vez mais clara a imagem em sua mente.

—Ela, ou ele, pegou o dinheiro, deu-lhe as flores, depois simulou que lhe prendia uma na lapela... fechou a mão direita como se empunhasse uma navalha e lhe cortou o pescoço. Depois, enquanto ele desabava o apoiou contra a luz e o atou com seu próprio cachecol, sem tocar as flores. Deve ter escondido a navalha na bandeja e afastar-se andando como se tal coisa fosse comum. Ninguém repararia nela: era uma florista que tinha feito uma venda e levado as flores na casa de seu cliente.

—Deve ser uma mulher muito robusta! - disse Drummond com um calafrio. - Ou pode ser que fosse um homem; é muito fácil disfarçar-se de florista, bem agasalhado contra o frio da noite, o chapéu bem enfiado e um xale em torno do pescoço e queixo. Como vamos achá-lo, Pitt?

—Agora há uma pessoa sobre a qual fazer perguntas! Começaremos de novo com os outros deputados. Não pôde ter vendido só esse ramo, com certeza outros lhe compraram flores. É possível que alguém recorde algo da florista. Ao fim e ao cabo, não era normal que não fosse Maisie, e tampouco que vendesse prímulas e não violetas. Ao menos saberemos que estatura tinha isso não é fácil de dissimular. E acrescentar peso com roupa é bastante fácil, mas não tirar-lhe. Um homem pode passar por uma anciã, mas é mais difícil parecer uma jovem; a pele e o esqueleto não acompanham. Possivelmente alguém observou as mãos. Com certeza levava luvas, mas de que tamanho? Um homem robusto não pode fazer que suas mãos pareçam de mulher.

—Talvez o fizeram entre dois. - Drummond o olhou com olhos brilhantes e as feições enrugadas. - Talvez as flores fossem um chamariz para chamar a atenção da vítima enquanto o outro a atacava por detrás...

Pitt sabia no que estava pensando: África Dowell com as flores enquanto Florence Ivory se aproximava por detrás com uma navalha, a vítima virando-se no último instante e logo as duas mulheres atando-o ao poste da luz. Era mais perigoso; e mais fácil que alguém reparasse em duas mulheres abandonando a cena. Mas não impossível.

—Tem que haver roupa - disse. - Uma florista vestida como uma dama seria notada muito, e nenhum deputado disse que não fosse a mulher de sempre, portanto devia ter um aspecto similar, estatura parecida, peito e ombros grandes, quadris largos. Roupa simples, chapéu e xale, e provavelmente um segundo xale para proteger-se do vento que sopra do rio. E o mais importante, uma bandeja de flores. Teve que comprar algumas, não muitas. Queria dar a impressão de que estava ao final de uma frutífera jornada: bastaria quatro ou cinco buquês. Mas teve que comprá-los em alguma parte.

—Não disse você que Florence Ivory tinha um jardim? - perguntou Drummond, aproximando-se da luz e olhando Pitt ao inclinar-se para jogar mais carvão. O dia tinha refrescado e uma fina garoa molhava a janela. Ambos tinham frio.

—Assim é, mas um jardim particular não dá tantas prímulas de uma vez.

—Ah, não? Como sabe tanto de jardinagem, Pitt? Você não tem jardim. De onde tira o tempo? Bom, não se preocupe, terá mais quando o promoverem depois deste caso.

Pitt sorriu brevemente.

—Certamente. Em realidade sim temos jardim; é muito pequeno, mas é Charlotte quem se ocupa mais de cuidá-lo. Eu me criei no campo.

—Seriamente? - Drummond arqueou as sobrancelhas. - Não sabia. Eu pensava que era londrino. É curioso o pouco que sabemos de outros, embora os vejamos dia após dia. Assim comprou as prímulas...

—Sim, certamente no mesmo lugar onde as compram as demais floristas. Algum mercado. Podemos investigar.

—Bem; dê as instruções oportunas. Eu voltarei sobre o assunto quando interrogar aos deputados. Quem poderia passar por uma vendedora ambulante? Lady Hamilton não, certamente.

—-Duvido-o, e não acredito que Barclay Hamilton pudesse disfarçar-se com êxito de mulher; é muito alto, entre outras coisas.

—A senhora Sheridan?

—Possivelmente.

—Helen Carfax?

Pitt deu de ombros, a pergunta era difícil. Não podia imaginara aquela mulher pálida e desventurada que tinha visto depois de morrer seu pai, arrasada em lágrimas, loucamente apaixonada por seu marido, ferida por toda sua indiferença, com a confiança para adquirir umas flores e logo apostar-se em uma esquina para vender-lhe aos transeuntes a fim de cometer um assassinato. Recordou a voz do Maisie Willis, informal, grosa, idiossincrásica.

—Duvido que ela pudesse fazê-lo - disse. - E ao James Carfax acontece o mesmo à Barclay Hamilton, sobra-lhe estatura.

—-Florence Ivory?

Florence tinha abandonado seu marido e finalmente tinha sido acolhida em casa da África Dowell. Possivelmente também tinha trabalhado em algo.

—Suponho que pode ser ela. Sobra-lhe imaginação e inteligência para fazê-lo, e tem suficiente força de vontade.

—Temos que apanhá-la, Pitt. Agora temos um motivo para revistar sua casa. Pode ser que encontremos a roupa; se é que pensa atuar de novo sem dúvida deve guardá-la. Deve estar louca, santo Deus!

—Sim - concedeu Pitt com desdita. - Atreveria-me a dizer que o está, pobre mulher.

Mas uma minuciosa revista não deu outro fruto que roupa de tarefa muito remendada, luvas de jardinagem e aventais de cozinha nada apropriado para disfarçar-se de florista e só cestos de flores, mas nenhuma bandeja como as utilizadas nos postos de ruas.

O terceiro interrogatório aos membros do Parlamento serviu de pouca coisa. Vários homens, ao serem pressionados, puderam recordar uma florista diferente nas noites dos crimes, mas mal puderam descrever detalhes: um pouco mais gorda que Maisie Willis, inclusive mais alta, mas pouco mais. O que recordavam era que não vendia violetas mas prímulas.

Ia muito embuçada com xales ou cachecóis?

Não especialmente.

Era jovem ou velha, loira ou morena?

Jovem não, isso com certeza, mas tampouco parecia muito velha. Uns quarenta anos, cinqüenta no máximo. Pelo amor de Deus, quem ocupa o tempo calculando a idade das floristas?

Uma mulher corpulenta, nisso estavam todos de acordo, mais que Maisie Willis. Então não podia ser Florence Ivory. África Dowell um pouco torcida, o rosto sujo para dissimular sua bonita cútis, o cabelo oculto sob um chapéu ou um lenço, com um pouco de imundície acrescentada para lhe dar mais credibilidade?

Pitt retornou ao Bow Street e se reuniu com o Drummond para informar de suas pesquisas e planejar o seguinte movimento.

Drummond parecia cansado e vencido. Tinha as bainhas das calças molhadas, os pés frios, e estava exausto de falar, de procurar uma maneira educada de fazer uma e outra vez pergunta que já tinham sido respondidas com negativas, esgotado de sopesar e medir e peneirar cada lembrança, fato e sugestão, para ao final não saber mais do que sabia ao princípio.

—Acredita que voltará a atuar? - perguntou.

—Sabe Deus - respondeu Pitt, não com intenção de blasfemar, mas sim porque assim achava. - Mas se ocorrer, esta vez sabemos o que devemos procurar. - Drummond afastou o secante e o tinteiro e se sentou no canto da escrivaninha. Poderiam passar semanas, ou meses, se é que chega a produzir-se.

Olharam-se. Ambos os rostos refletiram o mesmo pensamento.

Drummond o expressou com palavras:

—Temos que provocá-la. Faremos que alguém cruze a ponte a sós depois de uma sessão noturna na câmara. Nós estaremos preparados; podemos nos disfarçar de vendedores ou de cocheiros.

—Não há nenhum policial que possa passar por deputado.

Drummond torceu o gesto.

—Não, mas posso fazê-lo eu mesmo.

E durante oito noites consecutivas Micah Drummond teve que penetrar na galeria e esperar a que a sessão se levantasse, para logo mesclar-se com os deputados à saída. Depois saía dali e ia andando para o Westminster Bridge. Por duas vezes comprou violetas ao Maisie Willis, e um pastel quente ao vendedor apostado no Embankment, mas não viu ninguém com prímulas nem ninguém se aproximou.

Na nona noite, desanimado e exausto, estava subindo a gola do casaco porque fazia frio e a névoa subia do rio, quando Garnet Royce chegou a sua altura.

—Boa noite, senhor Drummond.

—Ah, sir Garnet, boa noite.

O rosto do Royce estava tenso. A luz do lampião brilhava em sua fronte ampla e refletia a pálida cintilação de seus olhos.

—Sei o que está fazendo, senhor Drummond - disse quedamente - e que não está tendo êxito. Desta maneira não obterá nada. Já lhe ofereci minha ajuda antes, e o dizia a sério. Deixe que eu cruze andando a ponte. Se esse louco pensa atuar outra vez, sou um alvo legítimo: um verdadeiro membro do Parlamento... Fez uma pausa, limpou a garganta e fez um esforço para que não lhe tremesse a voz. Um deputado de verdade, que vive no lado sul do rio e que poderia voltar para casa andando se fizer uma noite serena.

Drummond duvidou. Todos os riscos apareceram ante seus olhos: sua própria culpa se algo ocorresse ao Garnet Royce, as acusações de que seria objeto. Encolheu-se pensando com que facilidade poderiam lhe chamar covarde. E, entretanto tinha abandonado durante oito noites o palácio do Westminster e cruzado a sós a ponte, sem conseguir nada. O que Royce dizia era certo: o assassino podia estar louco, mas não era nada fácil enganá-lo, ou enganá-la.

Sabia que Royce tinha medo; podia vê-lo em seus olhos, nos sulcos nervosos de sua boca e a rigidez de seu porte, em sua maneira de parecer alheio ao frio e às pessoas que estavam a escassa distância deles.

—É muito intrépido, sir Garnet - disse sinceramente. - Aceito seu oferecimento. Tomara pudéssemos fazê-lo sem você, mas parece que não é possível. Viu que Royce levantava um pouco mais o queixo e que seu pescoço se esticava. A sorte estava lançada. Estaremos perto de você em todo tempo; cocheiros, vendedores, bêbados. Tem minha palavra de que não sofrerá dano algum. - Tomara pudesse cumprir sua promessa!

Contou a Pitt no dia seguinte, sentado em sua escrivaninha junto a um fogo que crepitava. A vista das chamas subindo para a lareira e o chiado lhe pareceu uma ilha segura, uma boa companhia enquanto pensava na noite na ponte. Tinha tido que cruzá-la de novo depois de falar com o Royce, percorrendo a penumbra entre luzes, ouvindo o eco de seus próprios passos no pavimento úmido, enquanto a bruma surgia em véus da sombria superfície do rio e as luzes e as vozes da borda pareciam remotas e distorcidas.

Pitt estava olhando-o.

—Há alguma alternativa? - perguntou-lhe impotente Drummond. - Temos que impedir que atue!

—Sei -disse Pitt - Se houver alternativa, desconheço-a.

—Eu estarei ali. Posso me fazer passar por um bêbado que volta da ópera...

—Nem pensar... senhor! - Pitt se mostrou firme; em outra ocasião e com outra pessoa, teria podido considerar uma grosseria. - Se necessitarmos ao Royce, é só porque o assassino sabe que você não é um membro do Parlamento. Para que isto surta efeito, Royce tem que parecer vulnerável, uma vítima e não um chamariz da polícia. Você não deve aproximar-se além de Vitória Embankment. Poremos três agentes ao fundo, de modo que não possa escapar por ali, e falaremos com a polícia do rio para que não possa saltar da ponte e mergulhar na água, embora saiba Deus como ia poder fazê-lo. Teremos dois agentes disfarçados de vendedores ambulantes no lado do Parlamento, e eu conduzirei um cabriolé quando Royce for para lá. Se me atrasar um pouco, poderei vigiá-lo; manterei-me tão perto quanto possa sem afugentar a alguém. A gente sempre supõe que os cocheiros estão vigiando a rua.

—E não poderíamos pôr a um homem na ponte mesmo? Fazendo-se de bêbado ou de mendigo... - Drummond estava pálido.

—Não. - Pitt foi incisivo. - Se vai alguém mais ali, o assassino se assustará.

Drummond fez uma última tentativa.

—Dei minha palavra ao Royce de que estaria protegido! - Não havia nada que dizer. Conheciam os riscos, e lhes constava que não podiam fazer nada mais.

Nas três noites seguintes a câmara terminou cedo suas sessões, e a polícia vigiou com escassas esperanças de que ocorresse algo. A quarta noite o céu apareceu carregado de chuva. A escuridão caiu rapidamente. As luzes do Embankment semelhavam uma réstia de luas baixas. O ar cheirava a umidade e com o passar do rio as barcaças se moviam como cunhas de escuridão cortando a sussurrante superfície da água, com seus reflexos quebrados.

Ao pé da estátua da Boadicea e seus esplendorosos cavalos, com seus cascos ao ar e o carruagem correndo eternamente em sua heróica luta contra o invasor romano morto dois mil anos atrás, um agente vigiava disfarçado de vendedor de sanduíches com o carrinho diante, o pescoço resguardado do frio, os dedos azuis apesar das luvas, esperando a chegada do Garnet Royce e disposto a seguir seus passos tão logo alguém lhe aproximasse. Levava o porrete oculto sob o casaco.

À entrada da Câmara dos Comuns um agente disfarçado de lacaio permanecia firme como esperando que seu amo se aproximasse com algum recado, mas seus olhos vigiavam a chegada do Royce... e de uma florista.

Ao fundo da ponte, na borda sul, aguardavam outros três agentes; dois a pé, vestidos de cavalheiros sem nada melhor que fazer que procurar companhia feminina. O terceiro polícia conduzia uma carruagem de aluguel, que mantinha a uns vinte metros do extremo da ponte frente à primeira casa do Bellevue Road, como se esperasse a um cliente que estivesse visitando alguém.

Micah Drummond estava em um portal longe das luzes de Vitória Embankment e forçava a vista para New Palace Yard e quais deputados saíam. Não podia distingui-los individualmente, mas estava tão perto quanto lhe parecia oportuno. Levava o chapéu jogado para frente e o cachecol subido até o queixo. Qualquer transeunte o teria tomado por um cavalheiro que tinha festejado algo com excessiva prodigalidade e se deteve para limpar a cabeça antes de voltar para casa. Ninguém parou para olhá-lo.

Rio abaixo, as sereias estavam soando, pois a maré alta tinha espessado a névoa.

Na borda norte de Vitória Embankment, Pitt ocupava o assento de um segundo cabriolé, mais acima dos degraus que conduziam à água. Podia vê-los todos: a altura do boléia lhe dava um bom ponto de observação e de passagem fazia que sua rosto fosse mais dificilmente reconhecível para alguém que passasse a pé. Sustentava as rédeas frouxas na mão enquanto o cavalo trocava o peso de patas, impaciente. Alguém lhe fez gestos, e Pitt respondeu:

—Sinto muito, chefe, tenho um passageiro. - O homem resmungou que ele não via nenhum, mas prosseguiu seu caminho.

Os minutos foram passando e os membros do Parlamento começaram a dispersar-se. O agente vendeu alguns sanduíches. Pitt confiou em que não os esgotasse, porque isso lhe privaria da desculpa para estar ali. Um mascate em uma noite assim e a essa hora, sem nada que vender, teria levantado suspeitas.

Onde estava Royce? Que diabos estava fazendo? Pitt não poderia culpá-lo se no final voltou atrás; nessa noite era preciso um homem valente para cruzar Westminster Bridge a sós. O Big Ben tocou às onze e quinze. Pitt ansiava descer da carruagem e ir em busca do Royce.

Se tinha saído por outro lado em direção ao Lambeth Bridge em carruagem, podiam estar esperando até a madrugada.

—Chofer! Ao vinte e cinco do Great Peter Street. Venha, homem! Está adormecido ou o que!

—Perdoe senhor, espero a um passageiro.

—Bobagens! Faça o favor de se pôr em marcha! - Era um homem de meia idade, enérgico, de cabelo cinza belamente ondulado e expressão irritada. Estendeu uma mão para abrir a portinhola.

—Digo-lhe que espero a um passageiro, senhor! - repetiu Pitt; os nervos estavam traindo-o. - Está ali dentro! Assinalou com um dedo enluvado em direção aos edifícios que ladeavam Embankment. – Disse que retornaria em seguida.

O homem praguejou baixo. Era um deputado. Pitt recordou tê-lo visto fotografado no The Illustrated London News; um homem de aspecto imponente, bem vestido e... de repente, Pitt sentiu um calafrio. Voltou a ver mentalmente as pálidas flores que o homem levava na lapela: prímulas!

Fechou a mão com tal força que o cavalo se sobressaltou, fazendo tilintar o arnês.

Micah Drummond ficou alerta em seu portal, mas não pôde ver nada mais que ao Pitt, rígido na boléia.

O ulular de uma sereia de névoa soou rio acima, e as luzes refletidas na água dançaram pela borda.

Garnet Royce descia pela rua. Gritou algo a alguém com voz rouca; evidentemente estava assustado. Seus passos vacilaram ao passar junto ao vendedor de sanduíches e dirigir-se à ponte. Levava as costas muito erguidas e nenhuma só vez se voltou para olhar atrás.

Pitt fez avançar uns passos ao cavalo. Um homem que empunhava um guarda- chuva passou entre ele e Royce. O vendedor abandonou seu carrinho e o lacaio se dirigiu à ponte como se tivesse decidido deixar de esperar.

Da sombra negra da Boadicea apareceu outra figura: fornida, de costas longas, um grosso xale em torno dos ombros e levando uma bandeja de florista. A mulher ignorou ao lacaio os lacaios raramente compravam flores e se dirigiu a passo surpreendentemente rápido para o Royce. Este ia andando a passo regular pelo centro da calçada, sem olhar nem a direita nem a esquerda, absorto nas luzes. Estava exatamente na metade da ponte.

Micah Drummond deixou seu portal.

Pitt açulou ao cavalo e o fez virar para a ponte. Achava-se a escassa distância da florista. Pôde ver sua silhueta destacando-se contra a névoa. Andava com pés ligeiros, recortando a distância que a afastava do Royce, quem não parecia haver-se percebido de sua presença.

Deixou a bruma leitosa de uma das luzes e penetrou na escuridão. A névoa parecia de prata em torno das luzes, e as gotas brilhavam no ar formosas e estranhas. Tinha as costas iluminadas, mostrando a largura de seus ombros, o ângulo ajustado da aba de seu chapéu, e seu rosto era uma mera redução da sombra, anônima enquanto entrava no vazio de noite que mediava entre uma luz e a seguinte.

Pitt pegou as rédeas com tal força que as unhas lhe cravaram nas Palmas através da lã úmida de suas luvas. Tinha o corpo banhado em um suor frio.

—Flores, senhor? Compra-me você umas prímulas? - A voz era apenas audível, aguda, como de moça.

Royce se voltou. Estava bastante próximo à luz para que seus traços fossem patentes. Viu a mulher com sua bandeja de flores. Viu que ela pegava um ramalhete de prímulas em uma mão enquanto com a outra tirava algo de debaixo. Royce abriu a boca em uma exclamação surda de terror... e de suprema vitória.

Pitt soltou as rédeas e saltou da boléia, aterrissando sobre o escorregadio meio- fio. A mulher ergueu o braço com a navalha na mão, a folha brilhante à luz.

—Já o tenho! - gritou a mulher, arrojando a bandeja das flores ao pavimento. - Por fim o tenho, Royce!

Pitt caiu sobre ela, descarregando seu porrete sobre o ombro da mulher. O golpe a imobilizou e a fez virar-se rapidamente, o rosto branco de surpresa, empunhando ainda a navalha.

Por uns segundos os três ficaram imóveis: a mulher com seus olhos negros e sua boca aberta, a navalha no alto, Pitt com o porrete na mão e Royce a um passo deles.

Então Royce pôs mão no bolso e antes que a mulher pudesse mover-se, atirou e ela cambaleou para Pitt. Houve outro disparo, e outro mais, e a mulher caiu de bruços ao meio-fio, o xale empapado em sangue, a navalha tilintando fracamente sobre as pedras e os casulos de prímula espalhados ao redor.

Pitt se inclinou um momento. Não havia nada que fazer. Estava morta: uma bala lhe tinha transpassado o coração por trás, outra o ombro e a terceira o peito.

Levantou-se lentamente e olhou Royce, que continuava em pé com a arma um revólver negro e brilhante na mão. Tinha o rosto branco e desprovido de expressão; mas o medo o tinha abandonado também.

—Homem de Deus! Um pouco mais e o Mato a você também! - disse com voz rouca. Depois passou a mão pelos olhos e pestanejou como se estivesse enjoado - Está morta? - disse olhando à mulher.

—Sim.

—Sinto muito. - Royce foi para ela, mas se deteve dois passos. Entregou o revólver a Pitt e ficou olhando o cadáver. - Possivelmente tenha sido melhor assim. Agora a pobre poderá descansar em paz. Isto é mais limpo que a forca.

Pitt não encontrou objeções. A forca era uma coisa terrível e grotesca, e para que submeter a um longo processo a uma mulher tão desequilibrada? Olhou Royce e tratou de pensar em umas frases adequadas.

—Obrigado, sir Garnet. Apreciamos muito sua coragem, sem ela não teríamos conseguido apanhá-la. - Estendeu-lhe a mão.

Os agentes tinham acudido do lado sul da ponte, e o vendedor de salgados e o lacaio se aproximavam desde mais à frente do círculo de luz. Micah Drummond se deteve e olhou à mulher e depois ao Pitt e ao Royce.

Royce estreitou a mão do Pitt com força.

Micah Drummond se ajoelhou para afastar o xale do rosto da mulher

—Conhece-a você? - perguntou ao Royce.

—Conhecê-la? Não, Por Deus!

Drummond voltou a olhá-la e quando se deu a volta sua voz soou frouxa, entre compassiva e horrorizada.

—Parte da roupa procede do Bedlam. Diria-se que esteve recentemente no manicômio.

Pitt recordou as últimas palavras da mulher. Olhou Royce.

—Conhecia-o - disse. - Chamou-o pelo nome.

Royce permaneceu imóvel, arregalados os olhos; depois, lentamente, olhou à mulher. Ninguém disse nada. Rio abaixo soou outra sereia.

—Bem, não estou certo, mas se realmente vem do Bedlam, então poderia ser Elsie Draper, pobrezinha. Foi criada de minha esposa faz dezessete anos. Procedia do campo, veio com Naomi quando nos casamos. Elsie a adorava, e a morte de Naomi a afetou muito. Vendo que estava perturbada, decidimos levá-la a um manicômio. Eu... não imaginava que fosse uma homicida. O que estranho é que pudesse sair dali.

—Ninguém nos notificou uma fuga - respondeu Drummond. - Certamente foi posta em liberdade. Deveriam ter pensado que depois de tantos anos já não era perigosa.

Royce afogou uma exclamação.

—Vamos. - Drummond se endireitou. - Faremos que a leve um carro mortuário. Pitt traga sua carruagem e leve sir Garnet a... qual é sua endereço?

—Bethlehem Road disse Royce. Obrigado. Reconheço que de repente estou muito mais cansado do que pensava.

—Estamos muito agradecidos, é claro. - Drummond lhe ofereceu a mão. - Toda Londres está em dívida com você.

—Preferiria que não mencionasse minha intervenção - disse Royce. Poderia parecer... E outra coisa: queria lhe custear um bom enterro. Elsie era uma boa criada antes... antes de perder a razão.

Pitt subiu à boléia da carruagem. Drummond abriu a portinhola para que subisse Royce, e Pitt açulou ao cavalo.

Charlotte dormia quando Pitt chegou a sua casa, e ele não quis despertá-la. Não se sentia nada eufórico por ter fechado um caso longo e tenebroso. O fim da tensão não lhe tinha suposto mais que cansaço, e no dia seguinte ficou adormecido e teve que sair sem tomar o café da manhã.

A Charlotte não disse nada. Primeiro se asseguraria de que o que tinha visto claramente a véspera fosse realmente a verdade. Já haveria tempo de lhe enviar uma mensagem para que pudesse dizer à tia avó Vespasia que Florence Ivory já não era suspeita de nada. Limitou-se a dizer que o caso havia chegado a seu fim, deu- lhe um beijo e saiu a toda pressa enquanto lhe gritava que o explicaria melhor.

Micah Drummond estava já no Bow Street. Pela primeira vez em várias semanas parecia ter adormecido sem pesadelos nem interrupções freqüentes.

—Bom dia, - Pitt disse lhe estendendo a mão. - Parabéns, inspetor chefe. O caso está encerrado. Não há dúvida de que essa pobre mulher era a assassina. Havia outras manchas de sangue na roupa, velhas manchas no avental e nas mangas. E a navalha tinha manchas de sangue na folha e no cabo. Fizemos uma verificação no manicômio do Bethlehem Road: confirmaram-nos que é Elsie Draper, diagnosticada de melancolia aguda faz dezessete anos e posta em liberdade duas semanas antes do assassinato do Lockwood Hamilton. Nunca lhes tinha dado problema algum; parece que era um pouco simples, mas não violenta. Uma decisão tragicamente errônea, mas já ninguém pode fazer nada. O caso está encerrado. O ministro do Interior fez chegar sua felicitação esta manhã. Os jornais tiraram edições especiais. - Sorriu. - Bom trabalho, Pitt. Pode ir para casa e tomar uns dias livres; Ganhou isso. A semana que vem começará como inspetor chefe, com um escritório no piso de cima. - Drummond lhe estendeu de novo a mão.

Pitt a estreitou com firmeza.

—Obrigado, senhor - disse... mas não era isso o que ele queria.

 

Pitt retornou a casa com uma sensação de alívio ligeiramente empanada por uma pequena pergunta que o incomodava como um mosquito. O assunto estava encerrado. Não existia a menor duvida de que Elsie Draper era uma demente com instintos criminosos. Tinha matado a três homens no Westminster Bridge e tentado assassinar a um quarto. Só a valentia do Royce ao oferecer-se como chamariz, e a polícia que a tinha vigiado de perto, tinha impedido que a assassina tivesse êxito. E se não tivesse sido Royce, teria sido qualquer outro.

Agora Pitt teria tempo para estar com Charlotte e as crianças. Talvez pudesse ocupar-se um pouco do jardim. Poderiam trabalhar todos juntos, ele com a pá, Jemima arrancando ervas daninhas, Daniel conduzindo lixo e Charlotte fiscalizando. Ela era a única que sabia como tinha que ficar. Sorriu ao pensar nisso, como se seus dedos estivessem já tocando terra, o sol lhe esquentasse as costas e sua família estivesse rindo e conversando a seu lado.

Primeiro Charlotte iria dizer a tia Vespasia que Florence Ivory e África Dowell estavam livres de toda suspeita. Seria uma das poucas satisfações do caso: ver como desapareciam o medo e a ira, saber que as duas mulheres poderiam refazer suas vidas, isto é, se decidissem fazê-lo e se Florence Ivory era capaz de livrar-se de sua cólera.

Entrou na casa e foi para a cozinha, onde Charlotte estava amassando com as mangas subidas e Gracie de gatas, esfregando o chão. Toda a peça estava impregnada do aroma a pão recém feito. Daniel estava no jardim brincando com um aro e Pitt ouviu seus gritinhos de júbilo pela janela aberta.

Rodeou Charlotte com o braço e lhe beijou a face, a nuca e o pescoço, sem prestar atenção à farinha e fazendo pouco caso de Gracie.

—Resolvemos! - disse. - Ontem à noite pilhamos à mulher em flagrante. Garnet Royce nos serviu voluntariamente de chamariz. Atacou-o com uma navalha, eu saltei da carruagem para impedi-la e Royce a matou, mais ou menos para me salvar.

Charlotte ficou rígida e tentou afastar-se, notando que o medo crescia em seu interior.

—Não - disse ele. - Não me teria feito nada; eu já a tinha golpeado com um porrete, e vinham mais agentes. Mas Royce deve ter temido por mim. Enfim, a pobre estava completamente louca, e assim é melhor que um julgamento e depois a forca. acabou- se. Ah, já sou inspetor chefe.

Desta vez Charlotte escapou. Olhou-o de cima abaixo, ruborizada, inquirindo com o olhar.

—Estou orgulhosa de você, Thomas; fazia tempo que o merecia - disse. - Mas é o que quer?

—Por que diz isso? - Tinha conseguido dissimular sua relutância, seu desgosto por ter que abandonar a rua.

—Poderiam perguntar-lhe e você poderia se negar - disse ela. - Não há necessidade de que aceite essa nomeação se significa estar sentado na delegacia de polícia dando ordens a outros. - Seus olhos não mostravam sombras de vacilação nem indício de lamentar o que dizia. - Não nos faz falta o dinheiro. Pode ficar onde está fazendo o que sabe fazer. Se tivesse estado dando ordens a outros em lugar de falar diretamente com as pessoas, teria resolvido este caso?

Pensou no Maisie Willis e as violetas, nas longas horas passadas na boléia e o instante decisivo em que tinha percebido que o deputado que tentava subir ao cabriolé levava prímulas na lapela.

—Não sei - admitiu. - Possivelmente sim.

—Ou possivelmente não! Thomas - respondeu ela sorrindo - quero que faça o que mais goste e o que se dá melhor. O contrário seria pagar um preço muito elevado por um pouco mais de dinheiro, que tampouco nos faz falta. Podemos confrontar os gastos, e com isso basta. O que faremos com mais? O que há mais valioso que fazer o que alguém quer?

—Já aceitei - disse ele.

—Pois volta para a delegacia de polícia e diga que trocou de parecer. Por favor, Thomas.

Pitt não discutiu simplesmente a abraçou com força, sentindo que em seu interior a felicidade abria suas asas como uma pomba.

Gracie pegou seu balde e cantarolando saiu pela porta de trás para esvaziá-lo pelo bueiro.

—Me conte - disse Charlotte. - Como a apanhou como se chamava? Por que o fez? E por que matava membros do Parlamento? Contou à Florence Ivory? E a tia Vespasia?

—Não o disse a ninguém; pensava que quereria fazê-lo você.

—Oh, sim, certamente. Tomara tivéssemos um telefone desses! Quer que vamos de ônibus para contar-lhe? Prefere tomar antes uma xícara de chá, ou tem fome? Quer almoçar?

—Sim, sim, não, e é muito cedo respondeu ele.

—O que?

—Sim vamos ver tia Vespasia, sim eu gostaria de tomar um pouco de chá, não tenho fome, e é muito cedo para almoçar. Além disso, o pão está levedando.

—Oh. Então ponha a água a ferver. Enquanto acabo de amassar, pode me contar quem era essa mulher e como a apanhou... e por que o fez.

Charlotte foi à pia, lavou as mãos e começou a esmurrar outra vez a massa, espalhando mais farinha sobre a mesa. Pitt encheu a chaleira, pô-la sobre o fogão e começou a lhe relatar a história do oferecimento do Royce e como o tinham levado a cabo. Ela, é claro, já conhecia os abortados intentos do Micah Drummond.

—Então não ia às cegas - disse quando ele terminou. - Quero dizer, não ia atrás de qualquer deputado. Ela conhecia o Royce, disse que o chamou pelo nome.

Pitt recordou a labareda de ódio na voz da mulher, o triunfo ao reconhecer Royce. "Ao fim o tenho", havia dito e, ignorando a carruagem que se aproximava por detrás e Pitt saltando da mesma, tinha levantado a navalha para assassinar. Estava louca, era uma criatura privada do uso de razão, um ser destrutivo... e entretanto aquele ódio tinha algo de profundamente humano.

Charlotte interrompeu seus pensamentos.

—Você acha que só ia atrás de Royce, e que confundiu aos outros três com ele? Todos viviam na parte sul do rio, todos retornavam andando a casa, e todos tinham o cabelo loiro ou cinza.

—Todos foram secretários privados do ministro do Interior em algum momento de suas carreiras. Salvo possivelmente o próprio Royce, isso não sei - respondeu Pitt devagar. - Pergunto a que se dedicava há dezessete anos...

Charlotte partiu a massa, meteu-a em três latas e a deixou a levedar.

—Você também acha! Mas por que odiava tanto ao Royce? Porque ele a internou no Bedlam?

—Talvez. Sua insatisfação se converteu em uma ardência. Elsie Draper tinha atacado ao Garnet Royce, não ao Jasper, o médico. Era só porque ele era o irmão mais velho, o forte, aquele em cuja casa tinha servido? Por que a melancolia produzida pela morte da senhora se converteu em uma mania homicida como a do Westminster Bridge?

Pitt terminou o chá e se levantou.

—Você vá dizer a tia Vespasia. Acho que irei falar com o Drummond.

—Sobre Elsie Draper?

—Sim, acho que sim.

No caminho do Bow Street viu os vendedores de jornais com seus letreiros anunciando edições especiais. As manchetes proclamavam: "Descoberto o assassino do Westminster!" "O Parlamento outra vez a salvo!" "Louca abatida a tiros no Westminster Bridge!" Comprou um jornal antes de entrar na delegacia de polícia. Debaixo das manchetes havia um artigo comentando o fim da ameaça anarquista e a vitória da lei graças à destreza e dedicação da Polícia Metropolitana e à intrepidez de um parlamentar anônimo. A capital da nação celebrava a volta à ordem e a segurança cidadã.

Micah Drummond se surpreendeu ao ver o Pitt, mais tendo em conta que com o dia que fazia tivesse podido estar desfrutando de seu jardim.

—O que acontece, Pitt? - Seu rosto refletiu uma sombra de alarme.

Pitt fechou a porta ao entrar.

—Antes de tudo, senhor, agradeço-lhe a promoção, mas eu gostaria de ficar no posto que ocupo, pois me permite fazer as investigações pessoalmente em vez de fiscalizar a outros. Eu acredito que me dou melhor, e, além disso, o prefiro.

Drummond sorriu; seus olhos tinham uma expressão muito triste e aliviada ao mesmo tempo. Ou esperava algo menos agradável ou em parte o compreendia.

—Não me surpreende - disse com inocência. - Nem o lamento de tudo. Você teria sido um bom inspetor chefe, mas teríamos perdido um grande elemento tirando-o da rua. Admiro-o por sua decisão, Pitt; não é fácil recusar o dinheiro e a hierarquia.

Pitt se ruborizou. A admiração de um homem a quem respeitava e queria era algo valioso. Detestava ter trazer à tona de novo o assunto de Elsie Draper em lugar de agradecer e partir. Mas aquela pergunta seguia clamando por uma resposta.

—Obrigado. - Suspirou lentamente. - Senhor, queria continuar indagando sobre Elsie Draper. Veja, antes de golpear ao Royce chamou por seu nome. Não estava matando ao acaso; essa mulher odiava-o pessoalmente. Eu gostaria de saber por que.

Drummond ficou quieto, contemplando sua escrivaninha, a pena e o porta tinteiro de escura ardósia de Gales.

—Eu também queria sabê-lo - disse. - Perguntava-me se o verdadeiro alvo tinha sido sempre Royce, se os outros três foram meros equívocos. Não via que tivessem nada em comum, salvo que viviam no lado sul do rio perto do Westminster Bridge, e que tinham certa semelhança física. Não pode dizer-se que compartilhassem opiniões políticas, embora uma louca que passou dezessete anos no Bedlam tampouco teria em conta essas coisas. Mas averigüei o que fazia Royce dezessete anos atrás.

—Seriamente?

O sorriso do Drummond foi desanimado.

—Era secretário privado do ministro do Interior. Seus olhos acharam os do Pitt.

—Assim que todos tiveram esse cargo! Possivelmente por isso morreram. Ela procurava o Royce, e ainda o relacionava com o cargo que tinha ocupado quando ela servia em sua casa. Certamente perguntou por aí e se inteirou de outros três homens residentes ao sul do rio, nessa mesma zona, que tinham ostentado o cargo antes de dar com o que procurava. Mas por que o odiava até esse ponto, depois de tantos anos?

—Porque ele a tinha internado no Bedlam!

—Talvez. Permite-me ir ao Bedlam a ver o que posso averiguar sobre ela?

—Sim. Claro, Pitt. E logo me informe.

O hospital Bethlehem Royal era um enorme edifício do Lambeth Road, na borda sul do rio, a uma quadra do Westminster Bridge Road onde a rua girava costa acima se afastando da água e dos jardins do Lambeth Palace, residência oficial do arcebispo do Canterbury, primaz da Inglaterra. Bedlam, como se conhecia popularmente ao hospital, era um mundo à parte, encerrado em si mesmo, tão longe do cômodo e o amável como os pesadelos dos sonhos dos cordatos.

No Bedlam todo eram loucura e desespero. O manicômio tinha sido durante séculos lugar de reunião para os privados de razão. A princípio os algemava noite e dia e os torturava para exorcizá-los dos demônios. As pessoas que gostavam de presenciar estas coisas costumavam ir para entreterem-se insultando aos loucos, igual a gerações mais tarde quando as pessoas iam ao carnaval, ao zoológico ou presenciar um enforcamento.

Agora os tratavam com mais indulgência. A maioria dos artefatos de tortura tinha desaparecido, salvo para os mais violentos; mas existia ainda o terror e a miséria, o isolamento sem esperança: a tortura mental.

Pitt tinha estado no Newgate e Coldbath Fields, e apesar dos superintendentes com jaqueta e o pessoal médico, as paredes cheiravam ao mesmo e o ar tinha um ar fétido. Pitt teve que esperar que examinassem seus créditos antes de lhe tratar com o mínimo de cortesia.

—Elsie Draper? - perguntou o superintendente. - Terei que consultar os arquivos. Que deseja saber? Asseguro-lhe que quando a soltamos levava nove ou dez anos comportando-se devidamente. Em nenhum momento deu amostras de conduta violenta. - O homem ficou na defensiva. - Não podemos os ter aqui toda a vida, a menos que não haja outro remédio. Nossas instalações não são nada do outro mundo!

—Qual era sua doença?

—Doença, diz? - O superintendente parecia muito sensível às críticas.

—Por que a internaram?

—Melancolia aguda. Era uma mulher do campo, muito simples, e tinha seguido a sua senhora quando esta se casou. Conforme soube, a senhora morreu... de escarlatina. Elsie Draper se perturbou e como resultado disso seu amo se viu na obrigação de encerrá-la. Foi muito caridoso de sua parte, acredito dadas as circunstâncias. Podia havê-la despedido sem mais.

—Melancolia?

—O acabo de dizer, sargento...

—Inspetor Pitt.

—Muito bem, inspetor! Não sei que mais quer que lhe diga. Cuidamo-la durante dezessete anos, e nesse tempo não deu nenhum indício de instintos homicidas. Era perfeitamente capaz de cuidar de si mesma quando a pusemos em liberdade, e já não necessitava atenção médica nem tínhamos motivos para temer que pudesse ser uma carga para o resto da comunidade.

Pitt não discutiu; era um ponto duvidoso, mas não era isto o que tinha vindo averiguar.

—Posso falar com os que a cuidavam? Há algum paciente com quem ela estivesse acostumada falar? Alguém que a conhecesse bem?

—Não sei que espera tirar! Não é você o único com perspicácia, sabe!

—Não estou procurando provas de que fosse uma homicida - disse Pitt. – Preciso saber outras coisas: seus motivos para atuar como o fez, ou o que ela considerava seus motivos.

—Pois não vejo que importância pode ter isso agora.

—Ninguém põe em interdição sua competência, senhor replicou Pitt. Rogo-lhe que não ponha em interdição a minha. Se não pensasse que é necessário, voltaria para minha casa e me sentaria no jardim.

O rosto do homem se franziu ainda mais.

—Está bem. Tenha a bondade de me seguir.

E deu meia volta para dirigir-se por um frio corredor de pedra, subir umas escadas e avançar por outro passadiço até uma porta que dava a uma sala grande com dez camas. Havia cadeiras junto às camas e em outros lugares. Era a primeira vez que Pitt via por dentro um manicômio, e sua primeira sensação foi de alívio. Havia jarros esmaltados com flores, e alguma ou outra almofada ou manta que não era do hospital. Uma das mesinhas estava meio coberta por uma toalha amarela.

Depois olhou às pessoas. A enfermeira chefe estava de pé junto à janela com o sol da primavera que penetrava por entre os barrotes e caía sobre seu vestido cinza e a touca branca. Seu rosto refletia a tensão de conviver com a miséria humana e seus olhos careciam de brilho. Tinha as mãos grandes e avermelhadas, e do cinturão lhe pendia uma corrente com chaves.

A sua esquerda, no chão, havia uma mulher de idade indefinível. Tinha os joelhos contra o queixo e se balançava sem parar, sussurrando para si mesma. O cabelo lhe caía sobre o rosto, condensado e sujo. Outra mulher com a pele cheia de manchas e o cabelo recolhido em um coque olhava ao vazio, alheia aos outros. O que via excluía todo o resto, e quando outras duas lhe dirigiram a palavra ela pareceu não ouvi-las.

Sentadas a uma mesa, três mulheres de idade jogavam cartas com veemência, apesar de tirar cada vez uma carta distinta e sempre a chamavam do mesmo modo: o três de paus.

Havia outra com um jornal velho, que segurava de barriga para baixo enquanto repetia uma e outra vez: "Não o encontro! Não o encontro!"

—O inspetor quer falar com alguém que conhecesse Elsie Draper - disse o superintendente.

—Valha-me o céu, e para que? - respondeu de mau humor a enfermeira chefe. – Eu gostaria de saber do que lhe vai servir agora!

—Há alguém? - perguntou Pitt, procurando sorrir. Aquele antro de desespero começava a impregnar-se em sua pele: a confusão, os rostos impotentes que o olhavam, as piscadas dando a entender que as traía. - Preciso saber! - Queria manter o tom comedido, mas um agudo delatou o que sentia.

A enfermeira chefe sabia a lista completa de horrores conhecidos; nada a emocionava já.

—Polly Tallboys - disse resignada. - Acredito que saberá algo. Polly vem aqui! Vem falar com este cavalheiro. Não tema, não lhe fará nenhum mal. Você só responde corretamente.

—Eu não fiz nada! - Polly era uma mulher miúda de olhos pálidos, e enquanto se aproximava obediente não deixou de retorcer seu vestido de algodão cinza. - Juro!

Pitt se afastou da enfermeira e se sentou em uma cadeira, indicando a Polly que fizesse outro tanto.

—Já sei - disse com tom afável. - Você não o fez. Acredito em você.

—Sim? - Polly não sabia que atitude tomar.

—Sente-se, por favor. Necessito sua ajuda.

—A minha?

—Sim. Você conhecia Elsie, não é? Eram amigas?

—Elsie? Claro que conhecia Elsie. Foi-se.

—Assim é. - Aquela elementar verdade fez que Pitt lhe encolhesse o coração. Elsie tinha sido criada - afirmou; parecia-lhe que Polly não podia confrontar perguntas. - E lhe contou algo a respeito.

—Certamente! - O rosto ausente de Polly se iluminou. Era criada... e das boas. Contava-me que sua senhora era a dama mais elegante do mundo. - A luz se foi extinguindo em seus olhos, que se umedeceram.

Pitt tirou um lenço e se aproximou para lhe enxugar as lágrimas. Foi um gesto inútil ela continuou chorando mas se sentiu melhor assim. De algum modo isso fazia que parecesse mais uma mulher e nem tanto um objeto velho que alguém abandona no sótão.

—A senhora de Elsie morreu faz muito tempo - insistiu Pitt. -Elsie ficou muito triste.

A mulher assentiu lentamente.

—Pobrezinha esfomeada estava; morreu de fome, santo céu.

Pitt estava estupefato. Talvez tivesse sido uma idiotice vir ao Bedlam em busca de uma resposta quando nem sequer sabia qual era a pergunta, e ainda por cima perguntar a uma louca.

—De fome? - repetiu. - Eu achei que tinha morrido de escarlatina.

—Morreu de fome - disse com cuidado, mas sua voz soou vazia, como se ela não soubesse o que queriam dizer as palavras.

—Isso lhe disse Elsie?

—Isso me disse Elsie. Por Cristo.

—E lhe explicou o motivo? - A pergunta era muito otimista. O que ia saber aquela pobre mulher, e o que podia significar, vindo da perturbada mente do Elsie?

—Por Cristo - repetiu Polly, olhando-o com olhos afundados.

—E por que por Cristo? - Valia a pena perguntá-lo?

Polly pestanejou e Pitt procurou sorrir. Ela pareceu despistar-se.

—Como é que morreu de fome por Cristo? - insistiu ele.

—A igreja - disse ela, recuperando subitamente o interesse. - A igreja que havia em uma sala do Bethlehem Road. Ela sabia que era verdade, e ele não quis deixá-la ir. Isso me dizia Elsie. Eram estrangeiros. Ele tinha visto Deus... e a Cristo.

—Quem, Polly?

—Não sei.

—Como se chamavam?

—Não me disse isso. Ou eu não me inteirei, vá.

—Mas se reuniam em uma sala do Bethlehem Road. Tem certeza?

Polly fez um supremo esforço, franziu a frente, fechou os punhos sobre o regaço.

—Não - disse ao fim. - Não sei.

Pitt estendeu a mão e a acariciou.

—Não importa. Ajudou-me muito. Obrigado, Polly.

Ela sorriu cautelosa, e então uma parte dela percebeu que Pitt estava contente, e o sorriso se alargou.

—Opressão, isso disse Elsie. Opressão... maldade, uma terrível maldade. – Olhou Pitt para ver se tinha entendido.

—Muito obrigado, Polly. Agora devo ir investigar sobre o que me contou. Adeus, Polly. Vou ao Bethlehem Road.

Ela assentiu.

—Adeus, senhor... Tratou de achar um nome, mas não pôde.

—Thomas Pitt - lhe disse ele.

—Adeus, Thomas Pitt.

Pitt agradeceu à enfermeira chefe e um zelador o acompanhou à saída.

Deixou o hospital Bethlehem Royal com um sentimento de piedade que lhe deu vontade de pôr-se a correr, não só para afastar do lúgubre edifício, mas também de todas suas lembranças. Apesar disso, os pés se pegavam ao úmido pavimento; aqueles rostos estavam muito nítidos em sua mente para deixá-los atrás como pessoas anônimas.

Foi andando até o Bethlehem Road; demorou menos de quinze minutos. Não queria achar Royce em casa, mas dar com alguém que soubesse algo da ordem religiosa que se reunira em uma sala dezessete anos atrás. Com certeza alguém se lembraria da senhora Royce e saberia algo dela. Estava desorientado. Só contava com as lembranças de uma desequilibrada a respeito das divagantes palavras de uma demente.

Continuava havendo uma sala, e segundo o letreiro que havia fora podia ser alugada pelo público. Anotou os gestos do zelador e ao cabo de dez minutos se achava em uma fria saleta sentado frente a um homem idoso e rechonchudo com uns óculos no nariz e um lenço na mão com o que se cobria os espirros que o assaltavam.

—No que posso lhe servir senhor Pitt? - disse, e espirrou.

— Era você zelador do Bethlehem Road Hall há dezessete anos, senhor Plunkett?

—Sim, senhor, era. Há algum problema?

—Fique tranquilo. Alugava você regularmente a sala a uma organização religiosa?

—E que o diga; sim, senhor. Uns excêntricos. Tinham umas crenças muito estranhas. Não batizavam as crianças porque diziam que todos vamos ao mundo puros e que as crianças não podiam pecar até os oito anos. Eu não estou de acordo, não senhor. O homem nasce pecando. Eu fiz batizar a meus filhos quando tinham dois meses, como bom cristão. Isso sim eram todos muito educados e sóbrios, vestiam modestamente, trabalhavam muito e se ajudavam entre si.

—Ainda se reúnem ali?

—Não, não. Ignoro onde terão ido parar. Cada vez eram menos, isso faz uns cinco anos, até que o último deles desapareceu.

—Recorda tal senhora Royce, faz dezessete anos?

—Royce? Não, senhor, não me soa. Havia umas quantas senhoritas. Bonitas e muito educadas, todas elas, mas se foram. Não sei aonde. Possivelmente se casaram e decidiram levar uma vida decente, esquecer-se daquelas tolices...

Pitt não podia render-se agora.

—Recorda a alguém dessa época? É importante, senhor Plunkett.

—Estou disposto a recordar tudo o que possa senhor. Como era essa lady Royce?

—Pois receio que não saiba. Morreu por esses anos, acredito que de escarlatina.

—Oh! Oh, Meu Deus! Não seria a amiga da senhorita Forrester? Lizzie Forrester. Lembro que sua amiga morreu a pobre.

Pitt tratou de dissimular sua excitação. Não era mais que um fio, talvez nada, e lhe podia romper nas mãos.

—Onde posso achar Lizzie Forrester?

—Isso não sei, senhor. Acredito que seus pais ainda vivem no Tower Street. Se não recordo mal, era o número 23. Mas alguém o dirá se for ali e perguntar.

—Obrigado, senhor Plunkett! - Pitt se levantou, deu a mão ao zelador e se despediu.

Passou em frente a um pub, e o aroma dos bolos recém assados não lhe tentou sequer, tão ansioso estava por achar Lizzie Forrester e saber outra versão da verdade, algo no passado de Elsie Draper que tinha produzido em sua mente a semente de uma loucura homicida.

Não lhe custou dar com o Tower Street: algumas perguntas a um transeunte e logo estava frente ao número 23. Era uma porta típica de classe média, com sua aldrava de latão em forma de cabeça de cavalo. Pitt a levantou e a deixou cair. Afastou-se um passo e esperou até que apareceu uma pouco atraente criada, bastante parecida com a mulher da limpeza em casa de Pitt.

—Sim, senhor? - disse.

—Boa tarde. É esta a casa dos senhores Forrester?

—Sim senhor, assim é.

—Sou o inspetor Pitt, da delegacia de polícia do Bow Street. - Viu que ela empalidecia e lamentou sua estupidez. - Não aconteceu nada, senhora, nenhum crime que concirna a esta família. É só que uma destas pessoas poderia ter conhecido a uma senhora da qual queríamos saber algo; investigamos uns fatos que não guardam nenhuma relação com os Forrester.

A mulher continuava receando. A polícia não costumava ir a casa da gente respeitável.

Pitt experimentou de novo.

—Era uma mulher muito distinta, mas morreu faz já muitos anos; por isso não podemos perguntar a ela.

—Bom, será melhor que entre. Eu irei perguntar. Fique aí! - A mulher indicou um ponto do gasto tapete turco perto do aparador e o vaso de barro com aspidistras.

Pitt obedeceu, enquanto ela desaparecia pelo corredor de linóleo. Uns bordados rezavam "DEUS LHE VÉ" e "EM NENHUM SÍTIO COMO EM CASA" e um retrato da rainha Vitória. Ouviu a criada batendo a uma porta e depois uma maçaneta que se abria e fechava. Agora devia estar explicando a alguém quem era ele e o que procurava ali.

Passaram mais de cinco minutos antes que aparecesse um casal de meia idade, com roupa limpa e gasta, ele com uma corrente de relógio na cintura e ela com um lenço de renda no pescoço e um bonito azeviche do Whitby.

—Senhor Forrester? - perguntou Pitt.

—Com efeito. Jonas Forrester, para lhe servir. Esta é minha esposa. O que podemos fazer por você? Martha diz que está investigando sobre uma mulher que morreu faz anos.

—Soube que era amiga de sua filha Elizabeth.

Forrester ficou tenso e sua esposa lhe pegou pelo braço.

—Não temos nenhuma Elizabeth disse ele. Nossas filhas se chamam Catherine, Margaret e Anabelle. Sinto muito; não podemos ajudá-lo.

Pitt contemplou o simples casal de pé no saguão, o rosto idoso, as mãos limpas, o cabelo arrumado, os bordados nas paredes que falavam de uma família temerosa de Deus, e se perguntou por que diabos mentiram lhe. O que tinha feito Lizzie Forrester para que dissessem que não existia tal filha? Estavam-na protegendo ou desentendendo-se dela?

Decidiu apostar forte.

—Segundo os registros, vocês tiveram uma filha chamada Elizabeth.

A esposa de Forrester deu um pulo.

—Seria menos doloroso que me contassem a verdade - disse Pitt. - Muito melhor que se eu tiver que fazer perguntas a outras pessoas. Não lhes parece?

Forrester olhou-o com hostilidade.

—Muito bem, já que insiste. E nós não fizemos nada para merecer isto, nada! Mary, querida, você não tem por que agüentá-lo. Espere-me na saleta. Irei dentro de um momento.

—Mas eu... - começou a dizer ela, dando um passo à frente.

—Está decidido, querida - disse ele sem emocionar-se, mas em seu tom cortês soou cortante. Não queria que o contrariasse.

—De verdade, acredito que...

—Não me faça repetir, querida.

—Está bem, como diz. - E a mulher se retirou obediente, saudando desconsoladamente Pitt com a cabeça, como reconhecendo sua presença só pela metade. Voltou por onde tinha vindo e de novo se ouviu a maçaneta que se abria e fechava.

—Não é preciso que ela sofra - disse Forrester olhando Pitt com dureza. - A pobre já suportou bastante. O que quer saber? Não vimos a Elizabeth há dezessete anos, nem acredito que voltemos a vê-la. Deixou de ser nossa filha, e por mais que diga a lei, nós já não a consideramos como tal. Mas não vejo o que pode interessar a você! - Abriu a porta do salão dianteiro e o fez passar a uma estadia fria com excesso de móveis, todos imaculados. As mesas estavam abarrotadas de fotografias, figurinhas de porcelana, estojos de laca japonesa, dois pássaros dissecados, uma doninha, também dissecada e dentro de um cristal, e numerosas plantas em vaso de barro. Forrester não se sentou nem lhe ofereceu assento, embora houvesse três cadeiras com toalhinhas bordadas no espaldar. - Não me cabe na cabeça! - repetiu em tom acusador.

—Talvez pudesse falar pessoalmente com a Elizabeth - sugeriu Pitt.

—Impossível! Elizabeth partiu para a América faz dezessete anos. Fez bem. Não sabemos o que foi dela nem onde vive agora. Em realidade, para mim é como se estivesse morta! - disse com o queixo alto e os olhos brilhantes, mas Pitt percebeu um tremor na voz, o primeiro indício de que além da ira havia também dor.

—Acredito que pertenceu uma temporada a uma seita religiosa um tanto insólita - provou Pitt.

A dor se esfumou do rosto do Forrester, ficando só a raiva e a perplexidade.

—Uns malfeitores e uns blasfemos! - disse tremendo de raiva. Isso é o que eram. Não sei como lhes permitiram vir a um país temeroso de Deus como este e que contagiassem com sua perversidade pessoas inocentes. A polícia deveria dedicar- se a pôr fim a estas coisas. Que sentido tem que venham depois de dezessete anos? Veja, diga. Do que nos serve agora? Lizzie se foi com essa gente malvada e não soubemos nada dela. Somos uma família cristã; dissemos-lhe que não queríamos saber mais dela até que voltasse para redil e renegasse dessa gente.

Não tinha que ver com o caso, mas Pitt o perguntou a seu pesar:

—Qual era sua religião, senhor Forrester?

—Pura blasfêmia e nada mais - replicou o homem, acalorado. - Uma blasfêmia contra o Criador e contra todo bom cristão. Havia um enganador que jurava ter visto Deus, nada menos! Dizia que tinha visto Deus e Jesus Cristo, em separado! Nesta casa acreditam em um só Deus, como a gente decente, e ninguém me vai dizer que um tipo ignorante que pretende fazer milagres vai ter que ver comigo ou com minha família. Proibimos a Elizabeth assistir a suas reuniões. Advertimo-lhe o que ia passar! Deus sabe as horas que passou sua mãe falando com ela. Mas Elizabeth não quis escutá-la! Afinal foi para a América com todos outros embusteiros que caíram como ela, ou que viram a oportunidade de tirar proveito de mulheres confiantes. A gente faz tudo o que pode para manter uma família cristã, e já vê como o agradecem! Minha mulher e eu dizemos que não temos uma filha chamada Elizabeth, e não há mais que falar.

Pitt compreendia a dor e a raiva daquele homem: sentia-se traído por sua filha e pelas circunstâncias e, apesar dos protestos, era evidente que a ferida estava ainda aberta.

Mas Pitt tinha que continuar perguntando.

—Conheceu sua filha a uma tal senhora Royce antes de deixar a Inglaterra?

—É possível. Sim, acredito que sim. Outra jovem enganada que não quis seguir o conselho de seus pais. Mas se não recordo mal morreu de tifo ou difteria.

—De escarlatina. Faz dezessete anos.

—Não me diga! Pobre criatura. Morrer sem poder arrepender-se. Uma tragédia. De qualquer modo, a culpa recairá sobre a cabeça de quem a induziu à idolatria e a blasfemar contra Deus.

—Sabia você algo da senhora Royce?

—Não. Nunca permiti que entrasse em minha casa nenhuma dessas pessoas. Perdi uma filha, com isso tive mais que suficiente. Mas Elizabeth falava dela freqüentemente, como se a tivesse em grande estima. Suspirou. Embora imagine que ser de nobre berço não ajuda nada a uma mulher, se estiver delicada e tem pouca força de vontade. As mulheres devem precaver-se dos enganadores, senhor, dos blasfemos como aquele.

Pitt não queria renunciar ainda.

—Conhece alguém que possa me falar da senhora Royce? Escreveu-lhe alguma vez a sua filha? Tinham algum amigo comum, alguém de por aqui que ainda pertença a essa religião?

—Se houver, eu não o conheço, nem vontade tenho! São emissários do diabo, isso é o que são.

—É importante, senhor Forrester.

—Qual era a verdade? A quem importava, depois de tantos anos? Só a ele, porque queria saber por que a mente doente de Elsie Draper se obstinado todos esses anos no Bedlam a seu ódio para o Garnet Royce? O que importava isso agora?

Forrester parecia incômodo, olhava Pitt sem vê-lo.

—Bom, verá...

—Sim?

—A senhora Royce escreveu várias cartas ao Lizzie, depois que ela partiu para a América. Nós não as mandamos. Não sabíamos aonde, e tínhamos jurado não voltar a falar dela jamais, como se tivesse morrido, de fato assim era para sua mãe e para mim. Mas como as cartas não eram nossas, tampouco podíamos destruí-las. Ainda as guardamos em alguma parte, no quarto dos trastes.

Pitt tremeu de excitação, como se de repente tivesse espionado um raio de esperança.

—Posso vê-las?

—Como quiser. Mas lhe rogo que não o diga a minha mulher. Leia-as no quarto de despejo, é a condição que lhe ponho. - Parecia indeciso sobre a possibilidade de impor condições a um policial, mas sua firmeza era grande e seu olhar desafiador.

—É claro - concedeu Pitt. - Não queria causar nenhum problema. Diga-me onde é.

Quinze minutos depois Pitt estava acocorado sob as vigas do teto em um pequeno, desarrumado e gélido sótão onde havia três grandes baús abertos, uma pilha de caixas de chapéus, e frente a ele por fim as seis cartas dirigidas a Lizzie Forrester e datadas entre em 28 de abril e em 2 de junho de 1871. Todas estavam tal qual tinham chegado: sem abrir.

Abriu o primeiro envelope. A carta estava escrita com uma letra juvenil e feminina, um tanto apressada, como se a remetente tivesse temido ser interrompido.

 

Bethlehem Road, 19

28 de abril de 1871

Minha querida Lizzie:

Experimentei com todas as argúcias que conheço, mas é inútil, Garnet não dá seu braço a torcer. Nem sequer se digna me escutar. Cada vez que menciono a igreja me proíbe continuar falando. Nos dois últimos dias me mandou três vezes a meu quarto até que recupere o juízo e me esqueça para sempre deste assunto.

Mas não posso. Não conheço outra verdade frente ao mundo! Repassei tudo que dizem os irmãos, repeti-me isso mentalmente um milhar de vezes, e não lhe vejo nenhuma falha. Claro que a princípio algumas coisas soam estranhas, e estão muito longe do que me inculcaram em pequena, mas se o penso à luz do que me dita o coração, tudo me parece justo e correto.

Espero poder lhe convencer; Garnet é um homem bom e justo, e só deseja o melhor para mim. Sei por minha experiência como noiva e depois esposa sua que ele deseja me proteger e me guardar de todo mal.

Reza por mim, Lizzie, que encontre a forma de aplacar seu coração para que me permita voltar para o seio da igreja, compartilhar a doce companhia de minhas irmãs e aprender os verdadeiros ensinamentos do Salvador de toda a Humanidade.

Sua amiga da alma, NAOMI ROYCE.

 

A seguinte carta era de uma semana depois.

 

Querida Lizzie:

Quase não sei como começar! Meu marido e eu tivemos uma briga espantosa. Garnet me proibiu pisar outra vez na igreja, e nem sequer me deixa falar do Evangelho em casa. Não devo mencionar os ensinamentos ou nada que tenha que ver com os irmãos, nem tratar de lhe explicar por que me consta que a igreja é a verdade ou por que me acredito assim.

Sei que para ele é duro! Consta-me, me acredite. Eu também fui educada na fé cristã e acreditei até que completei os dezoito; então comecei a ver que algumas de suas doutrinas não respondiam as perguntas que brotavam em meu coração.

Se Deus for um ser tão maravilhoso e santo como nos dizem e eu acredito que o é, e se Ele for nosso pai como nos ensinaram, por que então somos criaturas tão imperfeitas, sem esperanças de crescer, meros filhos espirituais, pigmeus de alma tão disforme? Custa-me acreditar que Deus nos criasse assim! Há esperança para nós, só temos que nos esforçar mais, aprender quem somos aprender as coisas boas, procurar o conhecimento com humildade para deixar que nos ensinem. E com o tempo, e pela graça de Nosso Senhor, chegaremos a ser dignos de sermos chamados seus filhos.

Garnet diz que blasfemo, e me ordenou que me arrependesse do que digo e que vá com ele aos domingos a uma igreja "decente", como é meu dever para com Deus, a sociedade e ele mesmo.

Não posso fazê-lo! Lizzie, como vou negar o que acredito que é verdade? Mas ele não quer nem me escutar. Reza para me dar coragem, Lizzie!

Que Deus a guarde.

Sua querida amiga, NAOMI ROYCE.

 

A terceira carta tinha sido escrita só três dias depois da segunda.

 

Queridíssima Lizzie:

Hoje é domingo e Garnet foi a sua igreja. Eu estou em meu quarto e a porta está fechada com chave... por fora. Disse-me que se não pensar ir a sua igreja, como deveria fazer uma cristã, então não vou a nenhuma parte.

Devo me alegrar por isso. Se não tenho liberdade para escolher onde e como posso adorar a Deus, como acreditam que todas as pessoas deveriam fazer, prefiro ficar aqui. Estou decidida. Não penso ir a sua igreja nem abjurar de minha própria consciência.

Elsie, minha criada, é muito boa comigo e me traz a comida ao quarto. Não sei o que faria sem ela; Elsie veio comigo quando me casei e parece não ter medo ao Garnet. Sei que ela enviará esta carta. Só ficarão três selos quando tiver mandado esta; Elsie me jurou que procurará evitar ao mordomo e lhe enviar as cartas que eu vá escrevendo.

Espero que na próxima vez que escrever, tenha melhores notícias.

Enquanto isso, não desespere e confia em Deus; ninguém confiou nele em vão. O nos cuida de todos e não nos dará uma carga mais pesada do que possamos agüentar.

Sua amiga de sempre, NAOMI.

 

A seguinte carta não levava data, e a letra era mais desajeitada e irregular.

 

Queridíssima Lizzie:

Parece que chegou o momento de tomar a decisão mais importante de minha vida. Ontem rezei todo o dia para fazer um rigoroso exame de minhas crenças à luz de quanto Garnet disse sobre que nossa fé é blasfema, antinatural e apoiada nas divagações de um enganador. Ele diz que a Bíblia é suficiente para todos os cristãos, e que quem acrescenta coisas em um sentido ou outro é perverso e deveria ser denunciado como tal, que não há mais revelação que a que existe, nem nunca a haverá.

Mas quanto mais rezo, mais claro vejo que isto não é assim. Deus não fechou o reino dos céus, a verdade foi restaurada, e não sou quem para negá-lo. Até arrisco de perder minha alma, não posso! Que terrível prova estou passando, Lizzie! Ah, tomara estivesse aqui para ao menos não me sentir sozinha um momento. Só tenho ao Elsie, e a pobre não entende nada, mas me quer e sempre me será fiel. E isso o agradeço mais do que posso expressar com palavras.

Tive uma horrível briga com o Garnet. Disse-me que até que não abjure de minha blasfêmia terei que ficar em meu quarto! Farei-o, disse-lhe que sim, mas não penso comer até que me permita escolher por mim mesma, seguindo os ditados de minha consciência, a religião que eu deseje e o que eu queira acreditar de Deus!

Garnet não se zangou. Eu diria que realmente acredita que atua por meu bem, mas Lizzie, sou uma pessoa, tenho minhas próprias idéias e meu próprio coração! Ninguém tem direito a escolher por mim! Ninguém pode sentir minha dor ou minha alegria, nem ser culpado de meus pecados. Minha alma é tão preciosa como a de qualquer um. Tenho só uma vida e quero escolher eu!

Se Garnet não me deixa sair de meu quarto, negarei-me a comer. Ao final terá que me dar a liberdade para que professe a fé que eu escolhi. Então serei para ele uma esposa obediente, levarei a cabo todas minhas obrigações, sociais e domésticas, serei modesta e educada e tudo o que ele queira. Mas não renunciarei para mim mesma.

Sua irmã na palavra de Cristo, NAOMI.

 

A seguinte carta era muito mais curta. Pitt a abriu sem reparar em que tinha os dedos gelados nem que as cãibras começavam a apoderar-se de suas pernas.

 

Queridíssima Lizzie:

A princípio foi muito difícil cumprir minha palavra. A fome era cada vez mais espantosa! Todos os livros que pegava pareciam falar de comida. Tinha muita dor de cabeça e a cada momento me entrava frio.

Agora não me custa tanto. Transcorreu uma semana e me sinto cansada e muito fraca, mas a fome já passou. Continuo tendo muito frio, e Elsie me põe mantas e colchas em cima como se eu fosse uma menina. Mas não vou ceder.

Reza por mim!

Confia em Deus, NAOMI.

 

A última eram apenas duas linhas, rabiscadas em letra frágil e muito difícil de ler.

 

Queridíssima Lizzie:

Temo que se ele cede será já muito tarde. Estou perdendo toda a força e não acredito que dure muito mais.

NAOMI.

 

Pitt permaneceu no frio sótão alheio às vigas do teto, ao frio e ao silêncio da casa sob seus pés. Elsie tinha razão; todos esses anos seu cérebro enlouquecido se obstinara a um pedaço de verdade. Naomi Royce tinha preferido morrer de inanição antes de abjurar da fé em que acreditava. Não houve tal escarlatina, a não ser uma ordem religiosa que a sociedade não teria tolerado uma nova fé que teria podido escandalizar aos eleitores de um membro do Parlamento fazendo-o ficar em ridículo.

Assim, ele a tinha encerrado em seu quarto até que recuperasse o juízo.

Mas tinha interpretado mal a paixão de sua fé e a força de seu coração. Ela tinha preferido morrer de fome que renunciar a seu Deus. Isso sim teria sido um grande escândalo, muito mais que uma seita religiosa pouco convencional! O deputado teria perdido seu banco e sua reputação. A esposa encerrada em seu quarto e morrendo de fome: opressão, loucura, suicídio.

Assim tinha ido ver seu irmão Jasper para declarar que a causa da morte tinha sido a escarlatina. O que aconteceu depois? A fiel Elsie tinha contado a verdade. Não podiam deixar que se soubesse aquilo; os rumores podiam significar a ruína. Melhor encerrá-la no Bedlam, onde seria silenciada para sempre. Que Jasper preenchesse os formulários, o assunto ficaria solucionado nessa mesma noite: melancolia pela morte de sua querida senhora. Quem saberia a verdade? Quem sentiria falta dela? Suas histórias ficariam como os desvarios de uma demente.

Pitt dobrou as cartas e guardou os envelopes no bolso. Quando ficou em pé sentiu pontadas de dor nas pernas. Cambaleou pela alta escada que descia ao patamar.

A criada o esperava no saguão, parecia fatigada e um pouco atemorizada. A polícia sempre a assustava, e não lhe parecia respeitável tê-la em casa.

—Achou o que procurava senhor?

—Sim, obrigado. Diga ao senhor Forrester que levo as cartas, e lhe agradeça de minha parte.

—Sim, senhor. Obrigada. - E lhe abriu a porta da rua suspirando de alívio.

Micah Drummond olhou ao Pitt com semblante pálido.

—Não podemos fazer nada! Não houve nenhum crime. De acordo, esteve mau, mas a quem acusamos? E do que? Garnet Royce fez o que lhe parecia melhor para sua esposa; equivocou-se. Ela morreu de fome por vontade própria; também se equivocou. E logo ele fez o possível por proteger sua reputação.

—A dele!

—Sim, a dele também, mas se acusássemos a todos os homens da cidade que o fazem, a metade da boa sociedade estaria no cárcere.

—E a metade da classe média seria aspirante a subir de categoria - disse Pitt. Mas não encerraram suas esposas até morrerem de fome para impedir de ir a uma igreja má vista! E como pode alguém decidir se uma pessoa está louca e encerrá-la no Bedlam para o resto de seus dias? Isso é como uma morte em vida! - Em alguma parte deve-se ter aos loucos, Pitt. - Pitt descarregou um murro sobre a escrivaninha, encolerizado pela injustiça cometida.

—Essa mulher não estava louca antes de ser encerrada! Santo Deus, quem não perderia a cabeça encerrado no Bedlam durante tantos anos? Esteve ali alguma vez? faz uma idéia? Pense no que Royce fez a essa mulher. Como podemos permitir uma coisa assim? Não é estranho que queria assassiná-lo; rachar-lhe o pescoço teria sido uma morte plácida comparada com a lenta tortura a que ele a submeteu.

—Já sei! - A voz do Drummond se quebrou sob a tensão emocional. - Sei Pitt! Mas Naomi Royce está morta, Elsie Draper também, e não podemos acusar de nada a ninguém. Garnet Royce só exercia os mesmos direitos e responsabilidades que qualquer homem a respeito de sua mulher. Marido e mulher são um ante a lei: ele vota por ela, responde financeira e legalmente por ela, e sempre determinou qual tinha que ser a religião de sua parceira, e seu status social. Ele não a assassinou.

Pitt se afundou em sua poltrona.

—E ao Jasper só poderíamos acusar o de falsificar o certificado de falecimento de Naomi Royce. Depois de dezessete anos seria difícil prová-lo, mas embora o conseguíssemos nenhum jurado o condenaria.

—E de encerrar Elsie Draper?

Drummond lhe olhou pesaroso.

—Você e eu acreditamos que ela estava lúcida quando a encerraram, mas é só nossa palavra contra a de um médico respeitável. E Deus sabe que estava bem louca quando morreu!

—E a palavra de Naomi Royce? - Apoiou a mão em cima dos envelopes que tinha espalhado sobre a mesa. Temos as cartas!

—A opinião de uma mulher que tinha abraçado uma estranha religião e que preferiu morrer de fome antes que obedecer ao marido e voltar para a fé ortodoxa? Quem vai condenar a um homem em apoio a isso?

—Ninguém - disse Pitt, cansado. - Ninguém.

—O que pensa fazer?

—Não sei. Posso ficar com isto?

—Como quiser, mas já sabe que não lhe servirão de nada. Não pode acusar Royce.

—Sei. - Pitt pegou as cartas, dobrou-as e depois de guardá-las em seus envelopes meteu-as em sua jaqueta. - De qualquer modo, quero ficar com elas, Prefiro não esquecer.

Drummond sorriu amargamente.

—Não esquecerá. E eu tampouco. Pobre mulher... Pobrezinha!

Charlotte ergueu a vista com os olhos cheios de horror. Tinha o rosto inundado em lágrimas e as mãos lhe tremiam segurando as cartas.

—Oh, Thomas! Isto é infame! Como deveram sofrer; primeiro Naomi e depois Elsie. Como deve ter se sentido essa pobre criatura! Ver como sua senhora morria lentamente, debilitando-se dia a dia, sem por isso trair sua verdade, e a pobre Elsie sem poder fazer nada. E quando a coisa chegou muito longe e ela já não podia comer, ver como ia perdendo o conhecimento e finalmente a vida. E quando Elsie se opôs a que certificassem que tinha morrido de escarlatina, disseram-lhe que estava louca e a encerraram para o resto de seus dias em um manicômio. - Tirou o lenço e assoou com fúria. - O que vamos fazer, Thomas?

—Nada. Não podemos fazer nada - respondeu lúgubre.

—Mas isso é absurdo!

—Não se cometeu nenhum crime. E lhe contou o que Drummond lhe havia dito.

Charlotte ficou estupefata, sem fala e sabendo que todo aquilo era verdade, que discutir não tinha sentido. Ao olhá-lo nos olhos, foi tão consciente da dor e da ira de Pitt como o era das suas próprias.

—Muito bem - disse por fim. - Isso entendo. Estou certa de que o perseguiria se houvesse uma base, claro que o faria. Mas não tem sentido recorrer à via judicial por um assunto como este. Se não se importar, acho que amanhã irei mostrar as cartas à tia Vespasia. Estou certa de que gostará de saber a verdade do caso. Posso?

—Como quiser. - Pitt era resistente, mas por que não tinha que inteirar-se Vespasia? Possivelmente poderiam consolar-se uma à outra. Talvez ela quisesse dar voltas ao assunto, e ele estava muito fatigado para reviver as emoções do dia. Por que não.

—Está cansado - disse ela enquanto guardava as cartas no avental. - vá sentar-se junto ao fogo e eu lhe prepararei o jantar. Quer arenque defumado? Hoje comprei dois na peixaria. E há pão quente.

No dia seguinte, à tarde, Charlotte tinha já uma idéia clara do que ia fazer e como ia fazê-lo. Ninguém a ajudaria, de um modo consciente ao menos, mas Vespasia faria quanto fosse preciso, sempre e quando ela o pedisse corretamente. Pitt tinha passado a manhã no jardim, mas às cinco da tarde o tempo tinha mudado de súbito, um vento gelado se levantara do este cobrindo o céu de nuvens ameaçadoras, e a névoa prometia ser muito fria ao anoitecer. Pitt tinha entrado em casa e dormiu frente à luz.

Charlotte não o incomodou. Deixou um bolo de alho porró e batata no forno e uma nota na mesa da cozinha lhe dizendo que tinha ido ver tia Vespasia. Como fazia muito frio e a névoa tinha o rio amortalhado, Charlotte optou pela cara alternativa de alugar uma carruagem que a levasse a seu destino. Vespasia a recebeu com surpresa.

—Passa-se algo mau, querida? - perguntou. - Do que se trata? O que aconteceu?

Charlotte tirou as cartas que levava na bolsa e lhe explicou como as tinha conseguido Pitt.

Vespasia abriu os envelopes, ajustou os óculos no nariz e as leu devagar e sem fazer comentários. Ao terminar a última, suspirou fundo.

—Que desgraça. Duas vidas malogradas, e tudo pelo horrível domínio de uma pessoa sobre outra. Ainda está longínquo o dia em que aprenderemos a nos tratar os uns aos outros com dignidade. Obrigada por me mostrar isso Charlotte, embora esta noite deseje que não o tivesse feito. A próxima vez que veja o Somerset tenho que lhe falar da lei sobre manicômios; estou me tornando velha para defender causas das quais não sei nada, mas isto me vai obcecar. O que há pior que a alienação, como não seja passar-se anos sendo a única pessoa lúcida em um castelo de loucos?

—Perdoe. Não deveria lhe ter mostrado essas cartas.

—Engana-se, querida. Era lógico. - Pôs sua mão sobre a de Charlotte. – Queremos compartilhar nossa dor. E é melhor que tenha ido a mim que ao pobre Thomas. Ele já viu mais que suficiente em poucas semanas, e com certeza sua impotência tem que lhe doer.

—Sim - concedeu Charlotte; sabia que era assim. Mas eram quase as seis e tinha que pôr em prática seu plano. - Tenho intenção de ir ver sir Garnet Royce, inclusive lhe entregar estas cartas. Viu que Vespasia ficava rígida. Depois de tudo são suas, conforme se olhe.

—Bobagens! Querida Charlotte, não nego que possa mentir a outras pessoas, embora o duvido, mas por favor não o tente comigo. Você não acha que essas cartas sejam propriedade de sir Garnet Royce. Escreveu-as sua esposa a uma tal senhorita Forrester, e se não puderam fazê-las chegar, então não há outro proprietário que o Serviço de Correios. Além disso, lhe importaria um nada que fossem de sir Garnet! O que se propõe fazer? - Mentir já não tinha sentido; tinha-lhe falhado.

— Quero obrigá-lo, a saber, a verdade, e que saiba que eu sei - respondeu Charlotte. Não era todo seu plano, mas sim uma parte. - É perigoso.

—Não se me emprestar sua carruagem e seu cocheiro para ir a sua casa. Pode ser que sir Garnet se zangue, mas não me fará nada. Não se atreveria a tanto. E só levarei duas cartas, o resto guardarei aqui. Observou a Vespasia, que duvidava, discutindo consigo mesma os prós e os contra. - Merece saber a verdade! - apressou-se a dizer. – A lei não pode lhe fazer nada, mas eu sim. E penso fazê-lo, por Naomi e por Elsie Draper. Apresentarei-me em uma carruagem apropriada, com lacaio, e os criados me deixarão entrar. Royce não pode me fazer nada! Por favor, Vespasia. Só quero que me empreste sua carruagem algumas horas. - Pensou em acrescentar: "Se não, terei que ir em um cabriolé de aluguel", mas lhe pareceu que era pressioná-la muito, e Vespasia não teria gostado.

—Muito bem. Mas enviarei também Forbes, para que vá na boléia. É minha condição.

—Obrigado, tia Vespasia. Sairei por volta das sete, se lhe parecer bem. Desse modo certamente acharei-o em casa, já que hoje a Câmara dos Comuns não tem nenhum assunto importante que tratar, conforme me disseram.

—Então será melhor que coma algo. - Vespasia arqueou suas prateadas sobrancelhas. - Oh, suponho que lhe terá deixado ao pobre Thomas algo de comer.

—É claro. E uma nota dizendo que vinha vê-la e que estarei em casa às oito e meia ou as nove.

—Claro - disse Vespasia, lacônica. - Então pedirei à cozinha que nos subam algo.

Gostaria de um pouco de guisado de coelho?

Uma hora depois Charlotte se encolhia na carruagem de Vespasia enquanto os cavalos puxavam devagar pelas nebulosas ruas, da Belgravia ao palácio do Westminster, cruzando a ponte e seguindo a borda meridional do rio para o Bethlehem Road. Fazia um frio cortante, o ar estava imóvel e a umidade gelava ao contato com as frias pedras. Charlotte temia em parte chegar à casa de Royce, mas estava tão imbuída e sua determinação era tal que já não havia nada que pudesse fazê-la mudar de opinião ou demorar a visita. Não permitiria que Garnet Royce fechasse os olhos ao ocorrido ou se convencesse de que tinha atuado corretamente. A carruagem se deteve e Charlotte ouviu que o lacaio descia e momentos depois lhe abria a portinhola. Aceitou a mão que lhe oferecia. A névoa era agora tão densa que quase não podia ver as casas ao extremo da rua.

—Obrigada. Sinto ter que lhe pedir que espere aqui, mas confio em que não demorarei.

—Não se preocupe senhora - respondeu Forbes da penumbra. - Sua senhoria disse que a esperássemos frente à casa, e isso faremos.

Garnet Royce a recebeu com bastante cortesia, mas com maneiras distantes e não isentas de surpresa. Era evidente que não recordava tê-la visto em casa do Amethyst Hamilton depois da morte de sir Lockwood, o que não era estranhar, e não tinha idéia de quem podia ser. Charlotte não perdeu o tempo com frivolidades.

—Vim vê-lo, sir Garnet, porque pretendo escrever um livro a respeito de certa seita religiosa a que sua esposa, Naomi Royce, pertenceu antes de morrer. - Royce ficou lívido.

—Minha esposa sempre foi da igreja anglicana, senhora. Acredito que a informaram mal.

—Suas cartas o provam replicou Charlotte com a mesma frieza. Escreveu várias, muito pessoais e trágicas, a uma tal Lizzie Forrester, que era membro da mesma seita. A senhorita Forrester emigrou a América e as cartas nunca chegaram a ela. Permaneceram aqui, e agora estão em meu poder. - Royce estava estupefato.

Charlotte devia apressar-se não quisesse que a expulsassem. Abriu sua bolsa e tirou as cartas. Ficou a ler, começando pelas explicações do Naomi sobre a proibição de seu marido de ir à igreja que ela queria e a reclusão em seu quarto até que se rendesse a seus desejos, e depois a promessa de que ela se negaria a comer até que lhe desse liberdade de consciência. A ponto de chegar ao final, Charlotte olhou ao Royce: a raiva o tinha feito apertar os punhos, e seu olhar expressava desdém.

—Só me ocorre pensar que me está ameaçando provocando um escândalo se não lhe der dinheiro. A chantagem é uma argúcia perigosa; aconselho-lhe que me entregue as cartas e parta antes de buscar a ruína.

Charlotte viu que estava assustado, e sua própria aversão aumentou. Veio-lhe à cabeça a meia vida que Elsie Draper tinha passado no Bedlam.

—Não quero nada de você, sir Garnet - disse com voz áspera - salvo lhe dizer o que é o que fez: negou você a uma mulher o direito a procurar Deus a sua maneira e a seguir sua própria consciência segundo o que a fé lhe ditava. Teria lhe obedecido no resto! Mas você queria tudo, queria possuir sua mente e sua alma. Teria sido um escândalo, não é? "Esposa de parlamentar entra em uma seita religiosa." teria ficado você sem amigos, e sem um posto no partido. De modo que a encerrou em seu quarto até que se mostrasse cordata. Mas não tinha tido em conta o ímpeto de suas crenças, sua fortaleza; que preferiria morrer antes que renunciar a sua verdade. E assim foi: morreu!

"Quanto pânico deve ter sentido você então. Fez que seu irmão escrevesse um certificado de falecimento por escarlatina, e ele aceitoufazê-lo para evitar o escândalo. "Esposa de parlamentar se suicida encerrada sob chave. Impulsionou-a a isso seu marido ou se trata de um caso de alienação mental?"

"Só que Elsie, a sempre leal Elsie, não passou pelo aro; ela queria contar a verdade, e você teve que encerrá-la no Bedlam! Dezessete anos em um manicômio, dezessete anos morrendo em vida. Não é de estranhar que ao sair fosse caçá-lo com uma navalha! Embora não estivesse louca quando a internaram, o estava, e como, quando a deixaram sair.

Durante quase um minuto de espantoso silêncio se olharam com mútua animosidade. Depois, pouco a pouco, o rosto dele mudou ao captar nas palavras de Charlotte algo que soava a heresia, pois desafiava todas as normas que ele conhecia, subvertendo a ordem referente aos direitos e obrigações dos fortes para com os fracos a quem devia governar e proteger por seu próprio bem, fossem quais fossem seus desejos. Mas enquanto a olhava, essas idéias passaram ao longe. Charlotte se dava conta de que lutava com um conflito interno.

—Minha esposa era uma mulher de mentalidade frágil, senhora. Você não a conheceu. Costumava ter caprichos repentinos, e se deixava convencer facilmente por enganadores e gente de febril imaginação. O que procuravam era seu dinheiro. Isso talvez não saia em suas cartas, mas é assim, e eu temia que se aproveitassem dela. Nunca deixei que entrassem em casa, como teria feito qualquer homem responsável.

Royce engoliu em seco, tratando de serenar-se e de se separar de sua mente o horror que durante breves momentos tinha bloqueado a passagem às palavras.

—Julguei-a mau. Era mais vulnerável a suas lisonjas do que eu pensava, e nisso teve que ver também sua má saúde. Agora me dou conta de que deveria ter pedido ajuda médica muito antes do que o fiz. Imaginei que simplesmente era teimosa, quando em realidade estava sofrendo os estragos da febre e os efeitos que lhe causavam umas pessoas intrigantes. Arrependo-me do que fiz; você não sabe até que ponto o lamentei todos estes anos.

Charlotte viu que estava tergiversando quanto lhe havia dito.

—Mas você não tinha nenhum direito a decidir sobre suas crenças! – exclamou - Ninguém tem direito a escolher por outros! Como se atreveu? Como se atreve a julgar o que outras pessoas querem? Isso não é amparo, é... é... - Tratou de dar com a palavra. - Isso é domínio! E não está bem!

—É obrigação dos fortes proteger aos fracos, minha senhora, especialmente aos que alguém tem a seu cuidado. E se dará conta de que a sociedade não lhe vai agradecer que trate de tirar partido da desgraça de minha família.

—O que me diz de Elsie Draper? Você a condenou de por toda vida encerrando-a em um manicômio!

Um breve sorriso iluminou a expressão do Royce.

—Sustenta você, senhora, que ela não estava louca?

—Não o estava quando você a encerrou! - Charlotte ia perdendo a partida, e pôde vê-lo no rosto dele, no tom mais firme e sereno de sua voz.

—Será melhor que parta senhora. Não tem nada que fazer aqui. Se escrever esse livro e mencionar nele a alguém de minha família, processarei-a por calúnia e a sociedade a rechaçará por aventureira. Boa noite. Meu lacaio a acompanhará até a porta.

Cinco minutos depois Charlotte se achava na carruagem da Vespasia enquanto os cavalos avançavam devagar através da névoa, descendo pelo Bethlehem Road de volta ao Westminster Bridge e à escuridão do rio. Tinha falhado. Não tinha feito mais que sacudir um pouco a auto-suficiência do Royce, esse breve lapso em que ele tinha vislumbrado a idéia de ter sido culpado de uma monstruosa opressão. Mas logo se justificou a si mesmo e tudo tinha ficado como antes; era poderoso, suficiente, seguro de si mesmo. E pensar que ela inclusive se assustara. Que tolice; ele a tinha desdenhado sem outra coisa que aversão. Nem sequer lhe tinha pedido as cartas!

Agora se aproximavam da ponte; Charlotte o notou pelo ruído dos cascos. A névoa era muito densa e o pavimento estava escorregadio de gelado. Teve um sobressalto quando um cavalo cambaleou. Por que se detinham?

Forbes lhe abriu a portinhola.

—Senhora, há um cavalheiro que deseja falar com você.

—Um cavalheiro?

—Sim. Diz que se trata de algo confidencial, se não tem inconveniente em descer um momento; seria mais decoroso que se subir ele à carruagem.

—Quem é?

—Não sei senhora. Não o reconheci, e para falar a verdade, em uma noite como esta não poderia reconhecer nem a meu próprio irmão. Mas ficarei aqui mesmo, senhora, a uns passos da senhora. Disse que era sobre a aprovação de uma lei que garante a liberdade de consciência.

Liberdade de consciência? Acaso algo do dito tinha chegado a comover ao Garnet Royce?

Desembarcou da carruagem valendo-se da mão do Forbes e pisou com cuidado o escorregadio pavimento da ponte. Viu uma figura imprecisa, a só uns passos dali. Era Garnet Royce, abrigado contra a inclemência da noite. Devia ter reconsiderado ao sair ela e depois seguido a carruagem; faziam o trajeto a passo de caminhada.

—Sinto-o - disse Royce. - Acredito que a interpretei mal. Seus motivos não eram egoístas, como eu supunha. Se pudesse me dedicar uns minutos de seu tempo... afastou-se um pouco da carruagem para ficar fora do alcance do ouvido do Forbes e do cocheiro.

Seguiu-o, compreendendo que desejava privacidade. O assunto era muito delicado.

—Confesso que me excedi em meu zelo. Tratei a Naomi como se fora uma menina. Tem toda a razão. Uma mulher adulta, seja casada ou solteira, deveria ter a liberdade de fazer o que lhe dita a consciência e abraçar qualquer religião, se tal for seu desejo.

—Queria você falar de uma lei. - Finalmente sairia algo bom de tudo aquilo? - Existe alguma possibilidade de que semelhante lei chegue a ser passada em algum dia?

—Não sei - disse ele quedamente. - Mas sem dúvida estou em posição de averiguar o que se pode fazer, e de apresentar um projeto. Talvez se você me dissesse o que considera benéfico para as mulheres, desde que não vá em detrimento da ordem estabelecida e de proteger ao fraco e ao ignorante da exploração. O que não é simples.

Charlotte pensou nisso, tratando de achar uma resposta sensata. Uma lei? Nunca tinha pensado em termos legais. Mas ele parecia falar a sério, seus olhos brilhavam à luz do lampião e o halo da névoa. Apenas se distinguia o contorno da carruagem a uns metros dali.

Voltou a lhe olhar, e foi então quando viu a súbita mudança de sua expressão, o fulgor do frenesi quando seus lábios descobriram os dentes e a mão enluvada lhe tampou os lábios antes de que pudesse gritar. Estava-a empurrando para a mureta da ponte!

Charlotte se defendeu a chutes, mas era inútil. Tratou de lhe morder, mas só se machucou a boca. O corrimão lhe estava cravando nas costas. Não demoraria a ser lançada ao vazio, e logo a escuridão e a água gelada a tragariam. Esta noite ninguém podia sair vivo do rio.

Com um rápido movimento da outra mão, tratou de lhe alcançar os olhos com os dedos. Ouviu-se um grito de dor, abafado pela névoa. Royce se precipitou sobre ela para golpeá-la, mas seus pés escorregaram no gelo e por um segundo ficou dobrado sobre a mureta, agitando os braços e as pernas. Logo, qual pássaro ferido, a cabeça venceu-o e Royce caiu ao longo do abismo da noite e do rio. Ela não ouviu o chapinhar do corpo ao se chocar com a água; a névoa o tinha apagado em seu silêncio.

Charlotte permaneceu apoiada na mureta, enjoada e tremendo. O suor de uns momentos atrás lhe estava gelando na pele. O medo e a culpa a tinham privado de forças.

—Senhora!

Ficou rígida, contendo a respiração.

—Senhora, encontra-se bem?

Era Forbes, que se aproximou invisível até estar quase a seu lado.

—Sim. - Sua voz soou quase irreconhecível.

—Tem certeza, senhora? Tem má cara. Esse cavalheiro a.. incomodou? Se for assim...

—Não! - Charlotte engoliu com força. Sentia um nó na garganta, e os joelhos lhe fraquejavam. Como explicar o acontecido? Pensariam que o tinha empurrado ao vazio, que o tinha assassinado? Quem iria acreditar nela? Acreditariam que ela não tinha pretendido chantageá-lo, acreditariam que o tinha feito cair no rio ao ameaçá-lo chamar à polícia?

—Senhora, se me permitir, acho que deveria voltar para carruagem e deixar que a leve a casa de lady CummingGould.

—Não, obrigado, Forbes. Pode me levar a delegacia de polícia do Bow Street? Tenho que dar parte de um... incidente.

—Sim, senhora, como quiser. - Charlotte se apoiou agradecida no braço do lacaio e, cambaleando no estribo, meio caiu no interior da carruagem e ficou tiritando, enquanto cobriam a curta distância até o fundo da ponte e logo ao norte até o Bow Street.

Uma vez ali, Forbes a ajudou outra vez a descer, muito nervoso por seu estado, e a acompanhou até o escritório de Micah Drummond, no primeiro piso da delegacia de polícia.

Drummond a olhou alarmado e depois olhou Forbes.

—Vá procurar ao inspetor Pitt! - ordenou-lhe. - Mova-se, homem!

Forbes virou sobre seus calcanhares e desceu as escadas de dois em dois.

—Sente-se, senhora Pitt. - Drummond quase teve que sentá-la na cadeira. - E agora me conte o que aconteceu. Encontra-se mau?

Ela o que queria era lançar-se nos braços de Pitt e que a estreitasse chorar até cansar-se e dormir, mas tinha que explicar o acontecido antes que ele chegasse. A culpa era dela, e o menos que podia fazer pelo Pitt era não envolvê-lo e lhe economizar a tortura das explicações.

Lenta e cuidadosamente, entre goles de brandy, que ela detestava, e olhando o rosto bondoso do Drummond, relatou com detalhe tudo que tinha feito, e a reação do Garnet Royce. Viu o medo e a ira nos olhos do Drummond, sua percepção do que tinha passado antes que ela chegasse a essa parte do relato, e uma fugaz piscada de admiração por ela.

Charlotte balbuciou ao lhe contar como Royce tinha escorregado no gelo caindo ao rio da mureta, mas pouco a pouco e com os olhos fechados achou as palavras, embora não as adequadas para expressar todo o horror e a culpa que sentia.

Depois abriu os olhos e olhou ao Drummond. O que seria dela? E de Pitt? Teria posto em perigo também a ele? Estava envergonhada, e ao mesmo tempo assustada.

Drummond lhe pegou as mãos.

—Não há dúvida de que morreu - disse. - Ninguém pode sobreviver no rio com este tempo, inclusive se tivesse saído bem parado da queda. A polícia do rio o terá encontrado já; ou possivelmente amanhã, depende da maré. Podem chegar a três conclusões: suicídio, acidente ou assassinato. Você foi a última pessoa que o viu com vida, assim irão interrogá-la.

Charlotte quis dizer algo, mas não lhe saiu a voz. A coisa era pior do que tinha suposto! Apertou-lhe as mãos.

—Foi um acidente que ocorreu quando ele tentava cometer um assassinato. Seu terror ao escândalo era tão grande que podia matar só por conservar sua posição. Mas não podemos demonstrá-lo, e possivelmente é preferível não tentá-lo. Seria uma tragédia para sua família e não obteríamos nada. O melhor será dizer à polícia do rio que Royce recebeu umas cartas escritas por sua defunta esposa que o inquietaram profundamente, e que tememos que o perturbaram, o qual é absolutamente certo. Que eles tirem as conclusões que queiram, embora eu acredite que optarão pelo suicídio. Seria o melhor para todos, dadas as circunstâncias. Não há necessidade de sujar seu nome com acusações indemonstráveis.

Charlotte indagou em seu rosto e só achou compreensão. Seu alívio foi imenso e não pôde conter as lágrimas por mais tempo. Ocultando o rosto entre as mãos soluçou de compaixão, cansaço e infinita gratidão.

Nem sequer reparou que entrava Pitt, lívido de rosto, com o Forbes a seu lado, mas notou que a rodeava com seus braços enquanto ela aspirava o aroma familiar de seu casaco, notando a textura do tecido contra a face.

 

 

1 - Emmeline Pankhurst (1858-1928), famosa sufragista inglesa. (N. do T.)

2 - Lugar de veraneio na costa sudoeste da Inglaterra. (N. do T.)

3 - Deacon significa "diácono" em inglês. (N. do T.)

 

                                                                                                    Anne Perry

 

 

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