Criar um Site Grátis Fantástico
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS ASSASSÍNIOS DE CREDITON / Michael Jecks
OS ASSASSÍNIOS DE CREDITON / Michael Jecks

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS ASSASSÍNIOS DE CREDITON

 

Deteve a carroça, grunhiu com o esforço necessário para descer do seu poleiro e fez uma careta quando a manga se lhe prendeu numa lasca de madeira e se rasgou. Desconsolado, o homem baixo e robusto parou ao lado do cavalo para poder examinar o rasgão.

A égua pressentiu a distracção do dono, baixou a cabeça e começou a mordiscar a erva. O homem olhou-a, zangado. O som dos caules a serem cortados abafava o fraco tilintar metálico quase nos limites da sua audição. Deu uma palmada no animal mas a égua ignorou-o por já estar habituada às palmadas e às pragas.

O homem não estava excessivamente preocupado. Ao longo da movimentada estrada de Exeter para Crediton deslocavam-se toda a espécie de viajantes e aquele tilintar, muito provavelmente, anunciava mais um vendedor de peixe ou um grupo de mercadores. Encolheu os ombros, esmagou a mosca que lhe pousou no antebraço e começou a coçar uma picada de mosca no pescoço com as unhas manchadas pelo vermelho do sangue enquanto semicerrava os olhos e olhava para a estrada atrás dele.

Também havia outros sons que o distraíam: o chilrear dos pássaros nas árvores, o gorgolejar do ribeiro e o ruído das folhas por cima da sua cabeça sempre que a brisa suave agitava as ramadas. Virou os olhos para o céu e desejou que a brisa descesse até ali para o refrescar, a ele. O calor do sol de Agosto - mesmo por baixo das árvores -, era extremamente abafado.

Ajoelhou-se junto ao ribeiro, despejou água por cima da cabeça e esfregou-a no rosto, fungando e soprando ante a repentina frescura. Endireitou-se devagar, sacudindo a cabeça. Era um homem forte, no princípio da casa dos trinta, de rosto redondo, queixo pesado e com uma leve cobertura de cabelos cor de areia a rodearem-lhe a calvície crescente. A barriga demonstrava eloquentemente até que ponto era apreciador da comida e da bebida. Tinha um ar de um robusto bom humor e estava sempre pronto para atirar um sorriso e uma piada aos clientes. Eram poucos os que saíam da sua loja, o açouge, sem sorrisos estampados nos rostos. O seu negócio era ainda muito recente e mostrava-se ansioso por conseguir que todos os que o visitavam quisessem lá voltar.

Lembrou-se do motivo que o fizera parar. Ergueu a túnica, virou as costas para a estrada e ficou a contemplar calmamente o ribeiro que ondulava na sua frente enquanto despejava a bexiga com grande satisfação. Nunca deveria ter aceitado toda aquela cerveja que o agricultor me ofereceu, pensou...

Alisou os calções com um ar pensativo. Era provável que a mulher se mostrasse irritada depois de o esperar durante tanto tempo. Prometera-lhe regressar rapidamente logo que recolhesse as duas carcaças de vitelos que se encontravam agora nas traseiras da carroça. Olhou para o Sol e fez uma careta. Já devia ser meio-dia... pelo menos! A língua de Mary tornar-se-ia cada vez mais forte e amadurecida com a passagem do tempo, como um queijo bem curado... e de certeza que toda a sua amargura se iria focar nele.

- Ah! - murmurou, por entre os dentes. - Para que servirá a vida se um homem não puder tomar uma bebida com um amigo quando está cansado? - Coçou outra picada de mosca, agora no peito, voltou a trepar para o assento, pegou nas rédeas e fê-las estalar. A velha égua mordeu um último bocado de ervas, encheu a boca, inclinou-se para a frente, puxou os tirantes, obrigou a carroça a dar um solavanco e fez com que o homem soltasse uma praga.

- Deus do Céu! Diabo de besta velha, tem calma! Queres fazer-me cair?!

O rumor e o estalar da carroça à medida que avançava acabou por lhe diminuir a tensão e o homem deixou-se amolecer no assento quase sem prestar atenção à estrada. De qualquer modo, não precisava de o fazer. O velho animal conhecia de cor o caminho para Crediton e não precisava de ser incitado com as rédeas ou com o chicote para que o seguisse. As moscas largavam as carcaças dos vitelos cada vez que a carroça dava um solavanco e o homem praguejava e tentava afastá-las.

Ele, Adam, não era nenhum parvo. Sabia muito bem que não era o marido ideal e não lhe custava a compreender que Mary se tivesse mostrado nervosa quando se tinham casado, mas mesmo assim imaginara que a sua carreira sólida e que o dinheiro que esbanjava com ela fosse o suficiente para a satisfazer. Era uma mulher de pequena estatura cuja figura delgada, ossos finos e olhos brilhantes o faziam pensar num pássaro. Era ainda mais baixa do que ele, pelo menos meia cabeça, e Adam apreciava a sensação de domínio que essa diferença de alturas lhe dava, embora admitisse rapidamente, mesmo que apenas para ele próprio, que nunca a aproveitaria por recear magoar-lhe os sentimentos. Adam não era como os outros homens que conhecia e não acreditava que se devia bater nas mulheres.

A égua estava agora a trepar uma colina e só havia outra igual àquela a cerca de quatro quilómetros da cidade. A luz do Sol penetrava por entre os ramos por cima da sua cabeça para projectar lagos de luz dourada sobre o solo. Permitiu que os olhos se lhe fechassem enquanto a cabeça oscilava sob o efeito soporífico do ritmo regular dos cascos. É a cerveja, pensou para si mesmo. Não devia ter bebido tanta. Arrotou e começou a preparar as desculpas para o caso de Mary estar de mau humor. Era provável que não a convencesse se se limitasse a dizer que aceitara a oferta do agricultor para tomar uma bebida depois da quente manhã de trabalho que o deixara a suar.

A égua fez uma pausa no alto da colina. Preparava-se para fazer estalar as rédeas, irritado, quando voltou a ouvir o tal ruído e se virou no assento para olhar para trás. Daquela vez o som parecia-lhe o de uma tropa de soldados mas não conseguia avistar ninguém. A estrada contorcia-se por entre as árvores de uma maneira demasiado tortuosa para lhe permitir ver a mais do que algumas dezenas de metros. Soltou um grunhido de desconfiança, agitou as rédeas e começou a descer a colina na direcção de Crediton. Não queria deparar com homens armados enquanto se encontrasse tão longe de casa.

Agora as árvores mostravam-se um pouco mais espacejadas e já conseguia ter relances dos arredores da cidade por cima da colina seguinte, em particular de um par de quintas muito brilhantes e brancas sob a pintura a cal. Por trás delas erguia-se o fumo das dezenas de lareiras da cidade e Adam sorriu ante a visão. O seu espírito ficava sempre mais animado cada vez que via a sua terra, que de certeza era a mais antiga e a melhor de Devonshire, e que era também o local onde nascera São Bonifácio. Manteve os olhos fixos no horizonte durante a descida da colina até voltar a encontrar-se sob a cobertura das árvores e a paisagem ficar novamente oculta.

Foi ali, perto do preguiçoso ribeiro, que encontrou o sacerdote. Adam dobrou-se rapidamente e empurrou a bolsa do dinheiro para as costas, para ficar fora das vistas. Não levantava quaisquer objecções a oferecer algumas moedas para ajudar a igreja, em particular porque os cónegos eram bons clientes, mas não gostava de dar esmolas na estrada.

O homem ouviu-o a aproximar-se e virou-se para o espreitar com uma expressão de míope.

- Adam! Como estás?

- Estou bem, padre - respondeu Adam, baixando a cabeça num gesto reverente.

- Está um belo dia, meu amigo!

- É verdade, padre! - Adam suspirou. Se o sacerdote queria conversar... então não se podia afastar à pressa para não ser mal-educado. Peter Clifford era um homem importante naquela área. A seguir, contudo, alegrou-se. O encontro com o padre constituía uma boa desculpa, que a Mary não poderia ignorar.

- Por onde tens andado? - perguntou Clifford ao ver que Adam puxara as rédeas e parecia disposto a conversar. No entanto, para dentro, também ele soltou um suspiro. Era uma pessoa bondosa mas sabia que Adam era uma pessoa aborrecida e não tinha grande vontade de falar com ele. Mesmo assim forçou um sorriso e tentou mostrar-se interessado enquanto o açougueiro lhe falava da jornada à pequena quinta que ficava para leste a fim de ir buscar os dois vitelos. O zumbido

das moscas na traseira da carroça acrescentava um toque de verosimilhança à história, pensou Clifford com uma careta de sofrimento. As moscas erguiam-se em verdadeiras nuvens para voltarem a pousar sobre as carcaças.

- Pergunto a mim mesmo quem serão aqueles... - murmurou.

- Quem? - inquiriu Adam, com a sua sequência de pensamentos subitamente interrompida. Virou-se e avistou finalmente a fonte dos ruídos que escutara anteriormente.

Havia um grupo de homens a avançar para eles ao longo da estrada, mas aqueles não eram viajantes normais e Adam ficou rígido. Eram soldados!

Na frente seguiam dois homens montados em animais resistentes mas que pareciam cansados. Ambos envergavam capas axadrezadas, manchadas e sujas pelo uso prolongado, por cima de túnicas verdes.

Um deles exibia um basinete com a viseira levantada e segurava numa lança, enquanto o outro usava uma longa faca, quase do tamanho de uma espada curta. Os cavaleiros observaram os dois homens que se encontravam na estrada e o homem do elmo piscou o olhou a Adam quando passou por ele.

Atrás vinha um outro, montado num garanhão negro e maciço que ganhava um aspecto oleoso sempre que passava pelas manchas de luz do Sol. Foi ele quem chamou imediatamente a atenção de Peter.

Era enorme, com pelo menos um metro e oitenta de altura, e a sua pose revelava que estava habituado a comandar homens. Estava tudo ali, na autoconsciência e na imobilidade, no modo como quase não olhava para os estranhos à beira da estrada e continuava em frente com o rosto fixo como se andasse em busca de novas batalhas.

A túnica revelava os efeitos dos dias passados na estrada mas era feita de um tecido dispendioso e não exibia nenhum símbolo que indicasse a quem devia a sua lealdade. Crediton era famosa pelas suas lãs e Peter, como quase todos os homens da cidade, sabia reconhecer um material de qualidade. O do cavaleiro era muito bom, leve, macio e finamente tecido, com o tom avermelhado de um bom vinho encorpado a ver-se por baixo da fina camada de poeira. Fosse quem fosse, era de certeza um homem rico.

Adam pousou os olhos nos homens que seguiam atrás. Havia três outros a cavalo mas eram acompanhados pelo menos por mais vinte e havia carroças a arrastarem-se na retaguarda do grupo. Não conseguiu deixar de se encolher, uma vez que os bandos de guerreiros eram demasiado imprevisíveis para o seu gosto.

Peter Clifford avançou quando o garanhão se aproximou.

- Bom dia, senhores! A paz seja convosco.

A pequena coluna de homens e cavalos deteve-se e fez-se silêncio durante alguns instantes. A cabeça do cavaleiro virou-se para Clifford e fitou-o sem pestanejar. O sacerdote sorriu mas o seu rosto imobilizou-se lentamente sob o intenso olhar daqueles olhos cinzentos-claros. Eram olhos muito afastados, inseridos num rosto quadrado, que não mostravam qualquer tipo de compaixão mas apenas desprezo. Enervado, o padre quase bateu em retirada sob o sombrio escrutínio. Nunca lhe passou pela cabeça que o que acabara de dizer pudesse ofender alguém. Abriu a boca para dizer mais qualquer coisa mas o cavaleiro cuspiu para junto dos seus pés.

- Aí tens, padre! - exclamou. - É a minha resposta ao teu desejo de paz!

- Não pretendi insultá-lo, senhor, era apenas uma saudação...

- Não foi um insulto?! - trovejou o homem enquanto o cavalo batia com os cascos no solo e resfolegava como se também se sentisse ofendido. Dessa vez, Clifford não conseguiu impedir-se de dar um rápido passo para trás.

Adam sentiu o arrepio gelado do medo a percorrer-lhe as costas quando, de repente, o homem se baixou na sela até pousar o cotovelo na cernelha do cavalo e olhou para trás, para os soldados a pé.

- Não era um insulto, disse o padreco! Não era um insulto - troçou, virando-se novamente para Clifford. - Pensas que somos monges, padre? Parecemo-nos com frades? Ou então, talvez penses que somos moleiros ou tecelões em busca de um novo mercado! Somos soldados, homem! Combatemos para ganhar a vida! Não queremos paz! Em tempos de paz passamos fome! Queremos a guerra Para o Diabo, a tua paz!

Adam observou-o enquanto o homem furioso cravava as esporas no flanco do cavalo e endireitava a cabeça para se virar para a estrada. Os homens de armas seguiram-no, com um ou dois a lançarem olhadelas casuais e desinteressadas para Adam e para o sacerdote.

- Padre, quem pensa ele que é, para se atrever a insultar um homem de Deus? - perguntou Adam, ofegando de horror.

Clifford exibiu um leve sorriso e encolheu os ombros. Era um homem alto e ascético, com um pouco mais de cinquenta anos, e com um cabelo que não passava de um reflexo apagado da sua antiga vermelhidão. Ficou parado, a olhar em silêncio para os homens que marchavam junto dele, logo seguidos pelas oscilantes carroças carregadas com arcas e cofres.

Embora ainda fosse alto, Peter Clifford tinha já um corpo encurvado e esse facto, em combinação com os olhos em bico, fazia com que alguns dos paroquianos o receassem por pensarem que era agressivo. Na realidade, aqueles dois factores eram o resultado de demasiadas leituras sob a luz fraca das velas. A pele empalidecera até quase ganhar a cor de um pergaminho envelhecido, o que demonstrava quão pouco tempo passava ao ar livre, longe dos seus estudos. Contudo, havia na sua figura uma tensão que servia para revelar que ainda cavalgava com alguma regularidade, embora já não pudesse gozar da caça e da falcoaria tão frequentemente como durante os tempos da juventude. Os pés-de-galinha de cada lado dos olhos escuros e inteligentes sugeriam que se tratava de uma alma boa e alegre. No entanto, naquele momento encontrava-se perturbado e espreitava os homens envoltos em poeira que contornavam uma curva da estrada e desapareciam das vistas. Virou-se para Adam e sorriu com tristeza.

- São homens de guerra e de violência. Soldados... mercenários/ Não compreendem os prazeres de que gozo ao serviço de Deus. Só sabem matar. Para eles, as boas palavras são difíceis de pronunciar. - Ficou a ver a última carroça que desaparecia para lá da curva. - Pergunto a mim mesmo para onde irão... - murmurou.

- Pois é... e esperemos que não fiquem lá muito tempo, padre - declarou Adam, enfático. -Já vi gente daquela um número suficiente de vezes e não os queremos em Crediton durante muito tempo. Vamos ter sarilhos.

- Não creio. Se os arranjarem, a cidade saberá defender-se. São apenas cerca de trinta homens e a cidade pode proteger-se de tão poucos. No entanto, tens razão, são inquietantes e seria melhor que não se demorassem. - Clifford afastou-os da mente e encaminhou-se para a cidade. - De qualquer modo, tenho demasiado que fazer para ficar a interrogar-me a respeito de um grupo de viajantes grosseiros. Preciso de voltar a Crediton para me preparar para o bispo.

Adam incitou a égua e acompanhou o sacerdote durante algum tempo com a carroça a matraquear.

- Bispo? - inquiriu.

- Sim, O Walter Stapledon esteve de visita a alguém na Cornualha. Avisou-me que irá ficar aqui connosco, muito em breve, durante a viagem de regresso a Exeter. Temos de preparar as coisas para ele.

- Eu... hum... Vai precisar de carne? Tenho estes dois vitelos e...

- É possível. Direi ao cozinheiro para ir ter contigo - respondeu Clifford, distraído. Era óbvio, até para o açougueiro, que a mente do sacerdote já se virara para outras coisas. Pouco depois Adam chicoteou a égua e avançou para casa a um passo mais rápido.

As árvores deram finalmente lugar aos campos abertos e Adam pôde ver os homens e mulheres a trabalharem nos seus estreitos campos. Havia um grupo parado a um canto com as pessoas a beber cerveja e a comer enquanto descansavam, mas os restantes prosseguiam com os seus labores. Adam via que as colheitas iriam ser boas. O tempo, uma vez sem exemplo, fora simpático para com os agricultores, pelo que o trigo e a cevada se erguiam, altos e orgulhosos, nas faixas de terreno. Virou a égua, saiu da estrada principal e meteu por um atalho para evitar voltar a encontrar-se com os soldados. Momentos depois já se encontrava nos subúrbios de Crediton. Passou por alguns velhos edifícios com paredes de taipa e entrou na movimentada rua que corria através do centro da cidade. Ali, o ruído e a agitação da pequena cidade afastaram os últimos resíduos do langor provocado pela cerveja e Adam sentou-se um pouco mais direito sobre o assento.

Crediton era uma terra sempre movimentada. O local do nascimento de São Bonifácio albergava uma próspera comunidade religiosa, a abundância de quintas garantia os lucros dos mercadores e comerciantes, enquanto a proximidade de Exeter satisfazia a procura de alimentos raros e de bens preciosos que podiam ser adquiridos com o dinheiro ganho pelos tecelões.

Agora, ao fim da tarde, havia por toda a cidade uma movimentação que muitos senhores de outras áreas de certeza invejariam. Adam fora criado numa propriedade a oeste dali mas tinham-lhe permitido que se tornasse num aprendiz, pelo que conhecia bem as diferenças entre a vida urbana e a dos camponeses da região. As cidades não eram feudais nem rurais, pelo que as restrições impostas aos outros não existiam em locais como Crediton. Ali, os negócios e os ofícios podiam florescer, e as únicas regras existentes destinavam-se a beneficiar e favorecer a população.

Na verdade, as multidões comprovavam que a cidade florescia. A população de Crediton acotovelava-se dos dois lados da rua, com as pessoas a procurarem evitar os montes de esterco deixados pela passagem de cavalos ou bois, a manterem-se longe do esgoto a céu aberto que escorria pelo centro do pavimento e a tentarem não pisar as poças de urinas de animais ou de humanos. Era gente que não caminhava de uma maneira calma e tranquila, mas que se apressava para um lado e para o outro. Adam viu um homem, que deveria ser rico porque usava uma capa forrada a pele atirada casualmente por cima de um ombro não obstante o calor, que tropeçou e caiu. O açougueiro juntou-se ao divertimento geral e riu-se quando o pobre desgraçado se ajoelhou, enojado, a sacudir a porcaria das mãos. Adam não conseguiu distinguir se se trataria de porcaria humana ou animal. O homem estava fora de si de raiva e frustração.

Apenas um pouco mais adiante, Adam avistou Paul, o estalajadeiro, de pé por baixo da sua nova banca de venda de cerveja. Os dois homens, quase vizinhos, acenaram um para o outro quando Adam, ainda a rir-se, virou à esquerda, para a rua do seu estabelecimento. O aprendiz encontrava-se à entrada a tentar quebrar o pescoço a um ganso. Colocara a cabeça do animal por baixo do cabo de uma vassoura e segurava-a sob os pés enquanto puxava as patas do ganso. O sorriso de Adam ampliou-se. Não obstante todos os seus esforços, o rapaz era demasiado fraco de costas e de ombros e tinha de erguer as mãos muito acima da cabeça enquanto tentava matar a alarmada ave cujas penas se soltavam das asas que batiam precipitadamente. O açougueiro reprimiu uma gargalhada, saltou do seu poleiro e tirou as patas da ave das mãos do rapaz. O forte puxão que deu ao ganso quase fez o rapaz cair quando o resistente pescoço puxou o cabo da vassoura para cima antes de se partir com um estalo.

- Vai tratar do cavalo e trás as carcaças para dentro - disse, apontando com o polegar para trás das costas. O rapaz afastou-se rapidamente, muito satisfeito.

- Então? Que foi que andaste a fazer? Por que precisaste de um dia inteiro para ires buscar e para matares dois vitelos?

- Os mercenários estão de volta!

A mulher calou-se de repente, esquecendo-se de o repreender pelo atraso enquanto Adam lhe contava o que vira na estrada para Crediton.

 

O estalajadeiro estava muito satisfeito com o seu novo anúncio. O velho arbusto que indicara o estabelecimento - que na verdade não passara de uma pequena abrunheira-brava amarrada a um poste -, durara alguns meses mas acabara por se desintegrar. Quando alguns dos seus ramos e parte do poste tinham caído sobre Tanner, o guarda, Paul decidira que seria melhor arranjar outro muito rapidamente antes que Tanner pudesse exprimir a sua indignação. Para além disso, em vez de se servir de um novo arbusto decidiu adquirir uma tabuleta. Agora havia uma grande cruz de madeira a balouçar suavemente sob o vento por cima da sua cabeça, suspensa de pilares novos e mais fortes com a ajuda de correntes de ferro dispostas em "X". Observou-a durante algum tempo, com os braços abertos. Pensou com satisfação que ninguém deixaria de reparar na sua estalagem agora que tinha um sinal tão visível como aquele.

Preparava-se para dar meia volta e regressar ao salão quando ouviu qualquer coisa estranha no meio do bulício da rua. Os berros alegres dos aguadeiros e dos vendedores ambulantes modificaram-se e pareceram mais abafados. As pessoas paravam de repente e ficavam a olhar, as crianças estendiam os pescoços para espreitarem para lá dos adultos que tinham pela frente e esqueciam-se das brincadeiras. Uma criada da casa em frente apareceu na rua, com uma bacia na mão, e preparou-se para atirar o conteúdo da mesma para o esgoto... mas deteve-se e ficou de boca aberta.

Paul seguiu-lhe o olhar... e descobriu-se a pensar que, no fim de contas, talvez tivesse sido melhor não ter instalado uma tabuleta tão proeminente como aquela. Contudo, respirou fundo, endireitou os ombros com resolução e correu para o interior.

- Margery? Margery, onde estás? / - Que se passa? - A mulher apareceu, vinda da despensa, a limpar as mãos à túnica. Estivera a cozer o mosto para a próxima dose de cerveja... e passava muito bem sem os berros do marido.

- Vem aí uma tropa de homens de armas com o seu capitão. Depressa, chama as raparigas para nos ajudarem. São demasiados para os podermos atender sozinhos.

- Só temos espaço para cinco...

- Não podem ficar aqui mas, pelo menos, podemos fornecer-lhes comida e bebida. Comida! Pergunto a mim mesmo se o Adam terá qualquer coisa que possamos comprar... No caso contrário, teremos de contar apenas com a casa de pasto...

A mulher desviou os olhos dele para a porta, abriu a boca... e ficou imóvel.

- Bom dia, -- O tom confiante da voz do cavaleiro fez com que os pensamentos do estalajadeiro regressassem ao presente com uma espécie de choque... como um cão que tivesse corrido até ao fim da trela.

- Mestre, em que posso servi-lo? - respondeu Paul rapidamente, recuando para convidar o homem a entrar. Conduziu o estranho para o melhor lugar do salão, fazendo vénias e sorrindo durante todo o caminho enquanto a mulher o observava.

- Parece-me uma estalagem suficientemente confortável. Os meus soldados e eu vamos a caminho da Gasconha mas precisamos de descansar um pouco. Prosseguiremos a nossa marcha para a costa dentro em breve.

- Ah, vão servir algum grande senhor, suponho...?

- Espero que sim. Regressámos a Inglaterra para nos juntarmos ao Rei, no norte. No entanto, meteu-se num navio para Londres e não o encontrámos. Por isso, seguimos para Iorque e fomos ter com os recrutadores... mas eles preferiam jovens ainda verdes a homens de guerra bem treinados. Pois bem, ainda podem vir a arrepender-se dessa escolha...

- Recusaram os vossos serviços?! - perguntou o estalajadeiro com um lisonjeiro tom de surpresa na sua voz.

O capitão confirmou com um aceno seco.

- Sim, rejeitaram-nos sem justificação e viemo-nos embora. Todavia, Londres estava cheia de boatos de guerra. Não havia navios para nos levarem de volta à Gasconha porque se dirigiam todos para norte com provisões extra. Para além disso os preços eram ruinosos, pelo que decidimos vir para este lado. Apanharemos um navio na costa daqui a alguns dias.

- Receio que não tenhamos quartos suficientes para todo o seu grupo, mas há outros locais na cidade onde se poderão alojar.

- Preferia que ficassem aqui, comigo.

- Claro, claro... mas não tenho quartos para eles. Não interessa, verei o que poderemos...

Margery apercebeu-se dos olhos cinzentos e fixos com que o capitão olhava para o marido e imobilizou-se. O modo como o homem desviava a capa curta para o lado era ameaçador, bem como a mão pousada em cima do punho da espada.

- Penso que os seus hóspedes irão entender os meus desejos e ficarei feliz por permitir aos homens que ocupem os quartos deles. Agora... quero uma caneca de cerveja para mim e estou certo de que os soldados também vão querer alguma.

- Sim, senhor, é claro! - Paul hesitou. - Não entanto, receio ter de repetir que a estalagem está cheia...

- Veremos. - O capitão virou a cabeça. A conversa terminara. - Uma caneca de cerveja. Agora!

Margery deixou o marido a servir o homem, apressou-se a sair da sala, arregaçou as saias e correu através do pátio por trás da estalagem com a mente a rodopiar. Na estalagem encontravam-se a família de mercadores, o comprador de tecidos com a mulher e a filha, o ourives com o respectivo aprendiz, para além de outros. Que iriam pensar do facto de terem de partilhar os quartos com a ralé dos homens de armas? Preferia não pensar no assunto. Depois, também havia as raparigas: Cristine, Nell e a jovem Sarra. Por um instante, o sorriso amargo alterou a expressão solene do seu rosto quando pensou na Sarra. Se bem a conhecia.,, então a jovem iria sentir-se muito satisfeita com as atenções de trinta soldados carentes e em boa forma física.

Chegou ao fundo do pátio, parou junto aos degraus para recuperar o fôlego, subiu ao quarto por cima dos estábulos e bateu com o punho na porta.

- Sarra, estás aí? Sarra!

Houve um resmungo e um grunhido interrogativo. Margery praguejou por entre os dentes.

- Abre a porta! Depressa! Tens de nos vir ajudar. Sarra!

O trinco deslizou, a porta abriu-se um pouco e revelou uma figura com um aspecto empertigado. Margery escancarou a porta e entrou no quarto. Recordou-se de que Sarra se deitara tarde na noite anterior. De acordo com Paul, a rapariga estivera a servir os hóspedes até altas horas e mantivera-se por perto do aprendiz de ourives durante quase toda a noite. O estalajadeiro divertira-se a vê-la tentar entabular uma conversa com o rapaz. Fizera comentários a respeito das suas roupas, da fivela de esmalte e depois, quando as ideias se lhe tinham esgotado, falara do tempo. O infeliz jovem, de língua amarrada e muito auto-consciente, ficara vermelho de embaraço. Paul achou que o jovem era muito pouco impressionante mas, pelo menos aparentemente, Sarra chegara à conclusão de que era provável que se transformasse num ourives rico e cheio de êxito, pelo que valia a pena o investimento de um pouco do seu tempo, Quando o jovem e o mestre se tinham retirado para o quarto, quase sem lhe dizerem uma palavra, Sarra saíra do salão com uma expressão tempestuosa. A jovem nunca escondera a ambição de se casar enquanto era ainda nova.

Iria consegui-lo, pensou Margery para si mesma, olhando a rapariga. Não era do tipo que Margery em geral favorecia. Tinha as pernas demasiado compridas e seios pequenos para uma serviçal, mas não se podia negar que os seus olhos emitiam o brilho apropriado quando avistava um homem que lhe agradava. Para além disso, possuía o rosto de um anjo... embora naquele momento fosse um anjo desgrenhado com a expressão indignada de alguém que tinha sido acordado demasiado cedo.

- O que é? Amimei tudo esta manhã e cumpri as minhas obrigações. O que foi, agora? Não podemos ter um momento de descanso antes da agitação da noite?

A túnica era fina e Margery podia ver a magreza do seu corpo sob a luz do Sol que entrava pela porta. A luz, nos sítios em que lhe tocava nos cabelos, punha-lhe a juba cor de mel a brilhar como um halo. Tinha o pescoço nu e Margery ficou chocada com o aspecto vulnerável da jovem. Apesar de todo o seu desejo de casar e de não esperar até ser "velha-, tal como dizia - sem dúvida a pensar em Margery como sendo um símbolo de decrepitude -, era ainda praticamente uma criança. A mulher do estalajadeiro lembrou-se da qualidade dos homens que naquele momento se estavam a instalar no salão e sentiu uma dor de consciência. A rapariga iria ser-lhes atirada como restos a uma matilha de cães esfomeados...

- Então? - O tom de voz de Sarra era de irritação.

Margery falou-lhe rapidamente dos homens que tinham chegado à estalagem. Ainda estava a falar quando os olhos da rapariga se iluminaram e conseguiu ler a direcção dos seus pensamentos: homens, comandados por um rico capitão, um homem que seria sem dúvida detentor de influência e poder para ser capaz de controlar trinta outros... e que iria ficar impressionado com a sua natureza calma e madura. Margery suspirou.

- Sarra, não comeces a pensar que podes fugir com homens como aqueles. Não são dos que querem casar com uma mulher e ter filhos.

- Ah, não? - havia troça no tom da pergunta.

- Não! - atirou-lhe Margery. - Sei mais a respeito de homens do que tu. - A curvatura desdenhosa dos lábios de Sarra deixava implícito que, tendo em conta a diferença de idades entre elas, aquilo não era nenhuma surpresa. A mulher do estalajadeiro sentiu as faces a inflamarem-se de ressentimento. -Já vi outros como eles. São do tipo que se enrola com uma jovem... para depois se irem embora sem sequer lhe dizerem adeus. Para além disso, o capitão é tão mau como eles... ou ainda pior.

- Pior... como?

Margery fez uma pausa e fitou a rapariga.

- Não sente nada por ninguém. Tudo o que sabe é fazer a guerra. Garanto-te, Sarra, que estes homens não prestam. Serve-os mas não tentes namoriscá-los. É demasiado perigoso.

A rapariga atirou a cabeça para trás, passou os dedos por entre os cabelos para desfazer os nós e emaranhados antes de começar, distraída, a alisar as espessas madeixas. Quando falou, fê-lo com uma voz que exibia uma mansidão muito suspeita.

- Está bem, Margery, terei cuidado.

- É melhor. Não é por mim, Sarra, mas por ti. És demasiado boa para te desperdiçares com gente como aquela. Se queres casar... então passa mais tempo com o aprendiz e deixa o capitão entregue à Cristine. Ela sabe como controlar homens daqueles.

Margery afastou-se e a rapariga ficou parada por instantes, a olhar para o vazio o enquanto os dedos arrumavam os cabelos com habilidade. A seguir soltou uma pequena gargalhada, despiu a túnica e vestiu uma saia e uma camisa lavadas.

 

Sir Hector de Gorsone recostou-se e deixou que o calor do álcool lhe inundasse o seu corpo cansado. Os homens estavam sentados à sua volta, com os jarros da cerveja na frente. O Verão já ia demasiado avançado para haver vinho à disposição. Só seria embarcado mais tarde, quando o tempo arrefecesse e a bebida não se estragasse rapidamente. Ah, como ansiava por regressar à Gasconha, onde o vinho era fresco e forte! Depois de tantos anos passados no continente, o vinho já lhe agradava mais. A cerveja deixava-o inchado.

O salão era igual a qualquer outro das muitas estalagens em que já ficara. Na sua opinião, não passavam de casebres. Estava demasiado habituado aos bons edifícios franceses. O salão, comprido e desengon-çado, estava repleto do odor agridoce do álcool cediço e da comida apodrecida que jazia sobre as palhas nos locais para onde os outros frequentadores a tinham atirado. Para o cavaleiro, o local era escuro e desconfortável, mas o brilho dos braseiros e dos candelabros de parede criava ilhas de alegria. Os bancos e as mesas encontravam-se dispostos ao acaso e era à sua volta que as servas e o estalajadeiro circulavam, tentando satisfazer os hóspedes mantendo-lhes as canecas cheias de cerveja e as mesas bem abastecidas de sopa de carne com legumes e pão. As portadas estavam, bem fechadas para manterem afastado o frio da noite e só o seu matraquear revelava que lá fora soprava um vento forte.

Sir Hector bocejou e virou novamente a atenção para os seus pensamentos. Estava decidido, logo que dispusesse do poder ou da riqueza suficiente, a possuir uma propriedade no campo, longe da esqualidez da vida urbana. Queria um lugar com grandes edifícios, capazes de abrigar o seu séquito. Nas cidades, a quantidade de terra disponível era restringida pelos magistrados para que todos pudessem ter um espaço adequado. Sir Hector não queria nada disso. Procurava uma propriedade com uma mansão de bom tamanho no seu centro, onde pudesse tomar uma esposa e iniciar uma família. A estrada para o êxito e para a riqueza que percorrera até ali estava a perder o lustro. Sentia-se tentado a experimentar uma vida de paz e a começar uma nova dinastia... mas para isso precisava de mais dinheiro.

Sentara-se numa extremidade do salão, de onde podia ver tanto os homens como a entrada. Não havia chaminé. O fumo da lareira no meio da casa subia para o tecto, onde uma fresta de cerâmica o deixava escapar. O vento soprava em rajadas e acrescentava mais um elemento desagradável ao salão, uma vez que o fumo se espalhava por todo o lado e fazia com que Sir Hector tossisse.

Verificava que os homens estavam dispostos a divertirem-se. Havia ali três raparigas que tinham de suportar as piadas obscenas e as mãos que as tentavam agarrar para onde quer que fossem. Duas, via-se bem, eram criadas de estalagem já com muita experiência. Afastavam as mãos indesejáveis com palmadas e devolviam as piadas com respostas rápidas que punham os homens a rirem-se às gargalhadas, em geral à custa de um deles, De vez em quando um dos homens tentava uma nova surtida e a seguir corava ou ria-se quando era repelido. Era uma cena que testemunhara em todas as tabernas e estalagens desde Londres até Roma, mas que ainda provocava um leve sorriso na sua expressão em geral mal-humorada.

Uma das raparigas chamou-lhe a atenção. Parecia mais nova do que as outras e menos experiente nas coisas do mundo. Enquanto as outras se serviam de respostas mordentes para recusarem as propostas que lhes eram feitas em todas as mesas, aquela deslocava-se mais tranquilamente de um lado para o outro, aparentemente embaraçada com as perguntas mais pessoais que lhe eram atiradas. Também era menos experiente quando se tratava de evitar as mãos que se estendiam para ela e parecia nervosa por ter de resistir à força. Fazia com que o cavaleiro pensasse num veado encurralado, consciente de que o fim estava próximo mas sem saber qual daqueles monstros seria o primeiro a apanhá-lo.

Enquanto a observava, reparou nos dois homens que conversavam um com o outro. Henry, o Barreira, e John Smithson andavam sempre juntos e actuavam sempre de um modo concertado. Henry levantou-se quando a jovem se aproximou pelo estreito corredor formado por duas compridas mesas e avançou para ela com o apoio lascivo dos camaradas. A rapariga foi obrigada a parar e fitou-o com o medo nos olhos. Por fim, quando se virou para fugir... John já lá estava para lhe cortar a retirada.

Uma das outras raparigas tentou alcançá-la mas viu-se bloqueada por homens que se sorriam por entre as barbas, esperançados em que tentasse passar no meio deles para chegar à amiga, de modo a poderem dominá-la. Cristine foi abalada pela indecisão: devia correr em busca de ajuda ou abrir caminho à força, até Sarra, para a ajudar? Enquanto pensava no assunto, Henry afastou para o lado as canecas que se encontravam na mesa à sua frente e sorriu para a jovem. A seguir fez um gesto para o espaço vazio, convidando-a a avançar.

- Parem!

Aquela única palavra, que nem sequer foi berrada mas apenas pronunciada com autoridade, cortou o barulho e a tensão como uma espada de guerra a cortar ossos. Para Sarra foi como se ouvisse o grito de batalha de um cavaleiro andante protector, pelo que olhou para o cavaleiro sentado junto do fogo com uma esperança crescente. O coração martelava-lhe no peito quase dolorosamente e tinha a certeza de que toda a gente, no salão, o estava a ouvir. O jarro a que se mantinha agarrada tremia-lhe nas mãos pelo que o pousou com cuidado numa mesa próxima. Na sua barriga havia um vazio que em breve se tornaria em enjoo, tal era o alívio por ter sido salva. Não tinha dúvidas de que estivera prestes a ser violada.

- Deixem-na! Tu, rapariga, vem servir-me! Traz cerveja!

Sir Hector viu-a pegar no jarro para se aproximar. Estendeu-lhe a caneca de estanho com um gesto imperioso quando a jovem já se encontrava suficientemente perto e estudou-lhe o rosto enquanto lhe servia a cerveja. Viu que possuía uma muito ligeira penugem ao longo dos braços e das faces, e que os lábios, embora comprimidos com força, eram cheios e húmidos. A rapariga recuou um pouco quando acabou de lhe encher a caneca e enfrentou-lhe o olhar. O cavaleiro ergueu as sobrancelhas. Via que a jovem não tinha medo dele. Tinha-o dos homens sob o seu comando mas não dele próprio e admirou-lhe a presença de espírito. Os olhos possuíam o tom azul-acinzentado de um céu de Inverno e havia algumas madeixas douradas a escaparem-se-lhe da touca. Não era a camponesa encorpada que seria de esperar encontrar numa pequena cidade, mas sim uma jovem mulher radiante que até poderia ornamentar o salão de um qualquer homem mais rico do que ele.

- Fica aqui e serve-me - pediu, com gentileza. - Não tenhas medo dos meus homens. Vão deixar-te em paz.

A rapariga acenou uma confirmação lenta e pensativa e a seguir lançou-lhe um sorriso tão caloroso que o cavaleiro se viu forçado a retribuir-lho.

Lá fora, o estalajadeiro permitiu que a respiração se lhe escapasse por entre os lábios num assobio de alívio quando se deixou cair contra a parede. Margery apareceu a correr, ofegante.

- Que se passa? Ela está bem?

- Graças a Deus! Está, sim! O cavaleiro protegeu-a e mandou que os homens a largassem.

A mulher espreitou em volta da ombreira da porta.

- Teve sorte! Nunca se sabe até onde aquela gente poderia ter ido...

- Pois não... mas já está em segurança, pelo menos por agora...

- Bom, é melhor voltar lá para dentro.

O estalajadeiro acenou com uma expressão sombria enquanto a mulher passava por ele com jarros cheios de cerveja em cada uma das mãos. Observou-a a servir com a eficiência rápida de uma mulher de estalajadeiro, desviando-se rapidamente para evitar uma dúzia de emboscadas à medida que avançava ao longo de um dos lados do salão. Tinha pela frente dificuldades mais prementes. Sir Hector ainda insistia em manter todos os homens com ele e o facto de não saber onde os iria alojar constituía um fardo muito pesado. Para o estalajadeiro, a ideia de enfrentar o cavaleiro para recusar alojamento aos homens não o deixava inteiramente à-vontade. Em geral, Paul instalava os hóspedes adicionais no salão, onde se podiam servir dos bancos ou até dormir debaixo das mesas, enquanto os que não coubessem iriam para os estábulos. Todavia, estava certo de que essas soluções tão simples não serviriam para homens como aqueles. Os recém-chegados iriam exigir as melhores camas... e os hóspedes já instalados queixar-se-iam ao verem-se expulsos das suas acomodações.

Encostado à porta, com os olhos postos no salão enquanto se preocupava com o seu problema, não reparou nas pessoas que apareceram do lado do estábulo. O salão ocupava metade do edifício principal e o resto era preenchido pela cozinha, pela despensa, por zonas de armazenagem e pelos quartos. Ao meio havia o corredor onde o estalajadeiro se encontrava agora, com duas portas para o salão propriamente dito. De repente, para seu grande horror, reparou nos três homens que entravam naquele momento. Dois deles eram o ourives com o seu aprendiz e não reconheceu o terceiro. Estupefacto, nada pôde fazer para além de ficar parado a ver um desastre a desenrolar-se na frente dele.

Sir Hector avistou os homens ao mesmo tempo que o estalajadeiro. Imobilizou-se com a caneca estendida enquanto Sarra lha enchia e estudou os recém-chegados com interesse. O seu rosto registou apenas um leve divertimento ao aperceber-se dos ricos tecidos do traje do ourives, da capa debruada a pele e dos pesados anéis que o homem usava. Caminhava com passos firmes e a sua atitude proclamava que era uma pessoa importante e atarefada, sem tempo a perder com os prazeres acessíveis aos comuns. Logo por trás, de cabeça baixa e vestido com uns simples calções e uma camisa, vinha o aprendiz. Sir Hector esboçou um pequeno sorriso e fez um gesto na direcção de Henry, que acenou com a cabeça e avançou para os dois recém-chegados.

Sir Hector bebericou a cerveja. Tinha consciência de que os seus homens constituíam um grupo grosseiro, mas entre eles havia alguns que sabiam obedecer. Henry era um bom elemento quando devidamente orientado e conseguia resultados desde que soubesse o que se esperava dele. Como soldado era excelente, em grande parte devido à sua natureza cruel, mas também à ganância. Era um dos mercenários que mais rapidamente compreendera que a melhor maneira de enriquecer era mantendo como refém toda a área à sua volta. A extorsão e a constante ameaça de uma chevauchée que destruísse as culturas e reservas de uma povoação era um dos modos mais eficientes que Henry descobrira para espremer um lucro mesmo nos distritos com um aspecto mais desolador. Fora Henry e o seu amigo John quem mais o tinham ajudado nas últimas - poucas -, campanhas na Gasconha, por andarem sempre à procura dos melhores reféns para serem trocados por um resgate, dos mais prometedores edifícios para um assalto e dos mais ricos mercadores para serem roubados. O zelo demonstrado para aliviarem os outros das suas posses ajudara Sir Hector a aumentar a sua própria fortuna, mas não lhe invejavam as riquezas. Sabiam que eram indispensáveis para o cavaleiro e era por isso que se sentiam seguros. Não poderia ver-se livre deles enquanto continuassem a enriquecer-lhe os cofres.

Era por causa dessa dependência mútua que Sir Hector lhes confiava frequentemente tarefas especiais, tratando-os como se fossem os seus sargentos de maior confiança. Levantou os olhos e viu o ourives, agora com o rosto cor de cinza, a correr para fora da sala no meio das troças e das piadas dos homens sentados no salão. Foi uma visão que lhe provocou um sorriso seco.

O estalajadeiro foi chamado à despensa e quando saiu quase colidiu com o ourives.

- Ah, mestre, precisa de alguma...

- Quanto é que lhe devo?

O rosto de Paul revelou o seu desânimo. O ourives tentava sorrir mas a sua boca trémula revelava a mentira.

- Sente-se bem, senhor? - A voz do estalajadeiro endureceu. - Foi por causa de alguma coisa que aqueles patifes lhe disseram? Se o ameaçaram eu...

- Não, não. Não foi nada disso. Tenho de sair de Crediton. É uma questão de negócios, compreende? Preciso de seguir para Exeter. Surgiram lá uns problemas... - Interrompeu-se ao ver que o aprendiz se aproximava, mal-humorado. - Disse-te para ires buscar as nossas coisas! Trata disso imediatamente! Aprendizes! Só pensam em comida e mulheres - acrescentou, fingindo aborrecimento, numa tentativa para disfarçar a perturbação.

Paul ficou irritado com o fingimento do ourives, que queria demonstrar não recear os mercenários e dispor de tempo suficiente para discutir bagatelas com o estalajadeiro.

O homem exibiu um sorriso doentio.

- Pode não ter dado por isso, mas tem-se revelado um tolo no que se refere àquela sua jovem empregada. É uma estupidez, mas nada posso fazer a esse respeito.

Paul ainda tentou persuadir o ourives a ficar, embora sem grande entusiasmo porque receava a reacção dos mercenários se estes vissem os seus planos contrariados, isto enquanto Sarra resplandecia de orgulho instalada à direita de Sir Hector.

Não interessava que Margery lhe tivesse dito para deixar os soldados em paz. O capitão já demonstrara interesse por ela e a jovem, de qualquer modo, estava segura de que os avisos da patroa se deviam mais à inveja do que a uma preocupação verdadeira. Eram os ciúmes de uma mulher mais velha e já gasta em relação a uma rapariga jovem. Porque não haveria de merecer todas as atenções, se era de certeza a mulher mais atraente de toda a estalagem? O problema de Margery estava no facto de ser tão velha que já se esquecera do que era sentir-se jovem e desejada. Para além disso, havia um outro interesse mais terra-a-terra em todos os seus pensamentos: todas as suas amigas tinham de trabalhar até quase aos trinta anos para pouparem algum dinheiro que lhes permitisse casarem-se. Quando o faziam, já quase tinham ultrapassado a idade mais conveniente para terem filhos. Sarra não queria nada disso. Era jovem e desejava casar antes de ser muito mais velha, para poder ter montes de filhos e gozar das recompensas que um marido rico lhe poderia conceder. Aquele homem era sem dúvida o mais rico que jamais conhecera. Vira as arcas cheias de prata e baixelas que tinham sido transportadas para o quarto. Uma pessoa com tantos valores devia ser rica... muito mais rica do que alguma vez sonhara.

Se lhe tivessem dado um mínimo de educação, a vida de Sarra poderia ter sido muito diferente. Possuía um cérebro rápido e intuitivo, e ofendia frequentemente os outros, embora não intencionalmente, ao interromper-lhes os longos preâmbulos porque se apercebia onde queriam chegar ao fim de apenas algumas palavras. Para ela, o trabalho era um exercício maçador mas necessário para a manter vestida e alimentada até conseguir encontrar um marido, mas a sua mente estava constantemente em busca de diversões. Alimentava um sonho recorrente ao longo do aborrecimento dos dias em que tinha pouco que fazer: via aparecer na estalagem um grande senhor muito rico, talvez ferido por uma queda, e só ela saberia como lhe tratar dos ferimentos para o salvar. Depois, o homem mostrar-se-ia tão dedicado à sua salvadora que acabaria por lhe propor casamento. Era um tema básico sempre sujeito a infindáveis variações, tal como ver-se a protegê-lo de ladrões ou de assassinos, ou a rejeitar as suas manifestações de adoração para acabar por ser persuadida quando o homem a levasse para o seu castelo.

A habilidade para inventar e ampliar a sua reserva de fantasias constituía uma defesa contra o aborrecimento das tarefas rotineiras, e agora, de repente, ali estava a possibilidade de poder vir a realizar os seus sonhos. Fitou os olhos de Sir Hector enquanto lhe servia mais cerveja, O cavaleiro captou-lhe o olhar e sujeitou-a a um estudo sério durante alguns momentos.

Não há dúvida de que era bonita, pensou. Tem os cabelos a soltarem-se rapidamente da touca, o que dá ao seu corpo firme e jovem um aspecto deliciosamente lascivo. Os olhos eram brilhantes, de sorriso rápido, embora não atrevidos nem experientes. Não poderia desejar melhor companhia para um par de dias. Viu a jovem a baixar os olhos e a cor a subir-lhe às faces e ao pescoço ficou com a certeza de que os pensamentos dela também se tinham virado para o mesmo lado. A reacção deliciou-o e virou a cara. Ficara a saber, com toda a confiança, que naquela noite não iria ter frio na cama.

Henry ainda não regressara e o cavaleiro enrugou a testa momentaneamente. O terceiro homem que entrara com o ourives ainda se encontrava junto da entrada, olhando-o.

Não se tratava de um mercador rico ou de um burguês. Vestia uns calções curtos e uma túnica simples, ambos num tom verde já empalidecido pelo uso. Tinha uma capa de burel por cima dos ombros e um capuz a ensombrar-lhe as feições. Não usava uma espada à cintura, mas apenas uma comprida faca. Parecia hesitar e Sir Hector apercebeu-se dessa hesitação com divertimento. Tinha a certeza de que a mesma era causada pela agitação no salão e também de que o recém-chegado em breve decidiria que seria melhor ir em busca de outra taberna. Porém, para sua surpresa, o homem começou a avançar para ele, abrindo caminho por entre os soldados com uma autoconfiança casual.

- É Sir Hector de Gorsone?

 

A voz era muito mais jovem do que seria de esperar da parte de uma figura com uns ombros tão largos.

- Sim, sou Sir Hector - replicou.

O visitante atirou a cabeça para trás e deixou cair o capuz.

- Quero juntar-me ao seu bando.

O salão mergulhou no silêncio pela segunda vez naquela noite. O cavaleiro viu-se a ser enfrentado por um jovem que não teria mais de dezanove ou vinte anos, com longos cabelos ondulados da cor do barro ainda não cozido. Tinha um rosto limpo e tem barbeado, com uma testa alta e um nariz estreito, marcado por sardas. A finura da boca revelava o carácter obstinado e os olhos verdes, muito separados, mostravam que era de uma natureza séria e pouco dada a brincadeiras.

- Já tenho homens suficientes - afirmou Sir Hector, indiferente.

- Mais um pode ser útil num momento de necessidade.

- Foste treinado para combater?

- Não, senhor, mas sou jovem e forte. Pode ensinar-me.

- Por que haveria de o fazer? Há muitos por aí para eu escolher.

- Sou saudável e leal. Quero ir com o seu bando e aprender as vossas maneiras. Estou farto da quinta. Deixe-me ir consigo.

Sir Hector abriu a boca para recusar aquele cachorro insolente, mas deteve-se para reconsiderar. O jovem era uma tentadora adição ao bando, tinha uma constituição sólida e parecia capaz de se servir das mãos. Era alto e direito, com uma boa postura, e movia-se com uma facilidade e um à-vontade quase felino. Para além disso, a largura dos ombros revelava força. Naquele momento permanecia imóvel, uma das mãos no punho da adaga e a outra na bolsa. Havia à sua volta uma aura de finalidade e dignidade que muitos abades fariam bem em imitar, tal como Sir Hector sabia perfeitamente.

Vagamente interessado, deixou que o olhar percorresse os outros homens. Na sua maioria mantinham-se tranquilamente sentados, observando o capitão para verem qual seria a sua reacção. Um ou dois riam-se, provavelmente à espera de o ouvirem pronunciar uma rejeição devastadora. Isso irritou-o. Seleccionara-os a todos de um modo semelhante àquele. Nunca sentira necessidade de ir em busca de novos recrutas porque estes estavam sempre a acotovelar-se em volta de um capitão com êxito. Todos os homens que se encontravam naquela sala o tinham procurado depois de ouvirem falar nos seus triunfos, tal como aquele jovem estava agora a fazer. Por que haveria de o expulsar se aceitara os outros?

- Pareces-me suficientemente corajoso - acabou por dizer, lentamente. - É preciso coragem para entrar num salão como este e pedir um favor em frente de homens sobre os quais nada sabes.

O estranho inclinou a cabeça numa confirmação, com um sorriso cínico a contorcer-lhe a boca.

- Vem cá. - O cavaleiro entregou a caneca a Sarra, inclinou-se para a frente e fez sinal ao recém-chegado para se ajoelhar. - Jura que me serás leal e que receberás ordens de mim e de mais ninguém.

- Juro.

- Óptimo. Henry? Leva este homem contigo e mostra-lhe como estamos organizados. Fornece-lhe armas.

- Obrigado, Sir Hector - disse o jovem quando se levantou. O cavaleiro levantou uma sobrancelha.

- Não me comeces já a agradecer. Posso ser um amo muito duro, mas serei bom para ti se revelares lealdade e estiveres preparado para seguir as minhas ordens.

Sarra ficou a olhar para o estranho que se afastava com o homem que a tentara atacar. É um rapaz bem-encarado, pensou, e é uma pena que tivesse de ser doutrinado por um idiota diabólico como o Henry.

- Então, como te chamas? - Henry estava intrigado com aquele seu novo pupilo, que mal o olhou quando respondeu, - Philip Cole.

O nome provocou um qualquer eco distante que levou Henry a franzir a testa de um modo fugidio, mas já estavam na mesa e Cole manobrava para se instalar num espaço vazio, pelo que não reparou naquele breve trejeito. Henry sentou-se ao lado de Cole enquanto à direita deste ficava um fulano grosseiro, com cara de rato e um cabelo tão preto como as asas de um corvo. Os seus olhos cor de âmbar percorriam a sala como se estivessem em busca de alguém mais interessante com quem conversar, pelo que as velas, tanto das mesas como dos candelabros, se reflectiam neles. Para Cole, aqueles olhos pareciam vivos com uma inteligência brilhante e maligna. Em conjunto com os dentes enegrecidos, numa boca mole e babada, davam-lhe uma expressão que lhe provocou um sentimento de repulsa. O corpo do homem era magro e resistente como um chicote, mas havia força e crueldade nos compridos dedos que arrancavam um bocado da galinha pousada na sua frente. Henry apresentou-o.

- Este é o John Smithson. Tal como eu, é um dos mais antigos do bando.

- É verdade. Nós dois fomos os primeiros a juntarmo-nos a Sir Hector.

- Foi em 1309, na Gasconha.

Cole aceitou uma caneca das mãos de uma empregada de passagem pela mesa.

- Nesse caso, devem ter combatido em muitas batalhas? - perguntou, num tom cuidadosamente moderado.

- Sim, por todo o lado - respondeu John com um sorriso. Primeiro para um amo e depois para outro.

- É uma boa vida - suspirou Henry, que tomou um grande gole de cerveja e arrotou. - Aos outros dizem-lhes para se juntarem a um exército e combaterem, mas nós podemos ir para onde nos apetece e combater por quem quisermos. Somos mais livres do que qualquer burguês ou agricultor.

- Sim... e além disso ganhamos mais dinheiro - afirmou John num tom astuto.

O amigo soltou uma gargalhada.

- Pois é! E ficamos com ele!

- Que queres dizer?

- Olha, é assim... - começou Henry, inclinando-se para ele. - No exército de um lorde, se te chamassem para combater estarias lá por causa dele e a combater para ele. O dinheiro que pudesses ganhar também seria dele, bem como os reféns que trocasses por resgate. Não terias quaisquer direitos. Aqui, combatemos para nós mesmos. Se conseguirmos um saque... ficamos com ele. Os despojos são para os vencedores... e para o Diabo os derrotados!

- De qualquer modo, raramente ficam vivos... - acrescentou John casualmente, dando uma dentada numa coxa de galinha.

Henry reparou na expressão de Cole.

- Não te preocupes, Sir Hector é um bom amo. Nunca é derrotado e tem sempre poucos homens feridos. É mais provável que mude de facção quando as coisas ficam feias... do que deixar-se ficar no mesmo lado para ser feito em pedaços. Não há qualquer lucro num caixão.

Cole teve tento na língua e acenou como se estivesse mais descansado.

Henry virou-se para a comida e escondeu um sorriso. Philip Cole tinha o aspecto típico de um camponês, com uma expressão de excessiva boa vontade, uma lentidão de pensamentos verdadeiramente bovina e um ar estúpido. Henry soltou uma gargalhada e deu uma palmada nas costas do recruta.

- Não precisas de ficar com essa cara! Em breve serás suficientemente rico para seres feliz! - Henry possuía feições abertas e amigáveis que já haviam enganado homens muito mais experientes do que Cole, e a espessa cabeleira loura fazia-o parecer muito mais novo do que sugeriam as cicatrizes e rugas. A idade era revelada apenas pela força que demonstrava ter. Embora os seus braços fossem curtos e terminassem em pequenos dedos roliços, possuíam força suficiente para levar Cole a pensar, depois da palmada nos ombros, que tinha sido atingido por um gigante benigno mas desajeitado. - Não te preocupes. Se Sir Hector não estiver... eu e o John tomaremos conta de ti! Não é verdade, John?

- Oh, claro!

- Hum... obrigado - disse Cole, pressentindo que era necessário um qualquer tipo de resposta.

Henry olhou em volta cautelosamente e inclinou-se para mais perto.

- Bom por que foi que tu quiseste fugir?

- Hum?

- Por que quiseste ir embora? Toda a gente tem um motivo. Eu tive de fugir porque matei um homem... Foi durante uma luta justa, compreendes, mas quiseram apanhar-me...

- E eu tive de me ir embora porque a mulher do meu amo se andava a atirar a mim. Era aprendiz de ferreiro, rejeitei-a... e ela foi dizer ao marido que lhe tinha metido as mãos nas saias e tentara levá-la para a cama. Fui forçado a fugir antes que me apanhasse. Queria matar-me... com um machado - acrescentou John num tom ofendido.

- E tu, porque tiveste de fugir? Aqui, entre nós, contamos tudo uns aos outros. Não precisas de ter vergonha. - Henry sorriu, encorajador.

- Eu... ia ser pai...

- Ah! - Henry piscou o olho, compreensivo.

- ... e não queria casar-me.

- Era uma rapariga da tua terra, suponho. Onde foi isso? És desta zona?

- Não. Vim do nordeste, de perto de Exeter. De uma terra chamada Thoverton.

- Ah, sim. É muito longe daqui?

Cole lançou-lhe uma olhadela, interrogando-se sobre se a sua história estaria a ser confirmada. Contudo, antes de poder responder, o homem com cara de rato deu-lhe uma cotovelada e apontou com um osso de galinha.

- Pois bem, se quiseres tentar uma das mulheres daqui, certifica-te de que não tocas naquela.

O recém-chegado seguiu a direcção indicada pelo osso. Sarra ria-se de um comentário qualquer feito pelo cavaleiro.

- É dele, não é?

Henry respondeu com um tom de voz sombrio.

- Há uma coisa que tens de aprender rapidamente, Philip. O nosso amo é um bom guerreiro e um bom chefe, que não admite que toquem no que lhe pertence. Não interessa se se trata de dinheiro, cavalos ou mulheres. Se encontrar alguém demasiado perto de uma dessas coisas... o mais provável é que puxe imediatamente pela faca. Deixa-a em paz até que se canse dela. É o que acontece sempre, mais cedo ou mais tarde.

- Mantém-te junto de nós. Sabemos o que é ser um rapaz jovem e é por isso que Sir Hector, em geral, nos pede para tomarmos conta dos recrutas. Sabe que lhes explicamos como são as coisas.

- Sim. Por exemplo, a tua bolsa parece bem cheia. Há por aí alguns que podem tentar tirar-ta, só para verem o que lá está dentro.

- Só tem dinheiro - afirmou Cole num tom casual.

- Santo Deus! Pois bem, não digas isso a nenhum dos outros - sussurrou Henry num tom urgente. A seguir chegou-se para trás, perplexo. - Há aqui homens capazes de cortarem o pescoço apenas por pensarem que podes ter aí qualquer coisa. Se não tiveres cuidado acabarás por sair magoado.

- Ele tem razão, sabes? - murmurou John, com os olhos a percorrem as outras figuras instaladas no salão. - Não se pode confiar nalguns destes homens. Até seriam capazes de vender as mulheres - e é possível que alguns o tenham feito -, por uma bolsa como a tua. Acho melhor que fiques connosco, para podermos tomar conta de ti durante algum tempo.

- Pois é. Suponho que lá de onde vieste, ou seja, de Thorveton, nunca tinham de se preocupar com ladrões, pois não? Quando deixaste a rapariga... Como era que ela se chamava? - perguntou Henry, mas tinha a mente focada na bolsa do outro. Cole nunca poderia ter juntado tanto dinheiro se fosse um mero camponês de uma pequena aldeia.

- Quem?

- A tua rapariga, a que te fez fugir.

- Ah! - Hesitou um instante. - Era Anne. Anne Fraunceys.

Henry não deixou escapar a pequena hesitação e o seu sorriso alargou-se. Apontava para uma mentira... e se aquela parte da história era inventada então de certeza que havia um segredo muito maior, um segredo mais valioso, por trás da decisão do jovem em juntar-se ao bando. Henry pretendia arrancar-lhe aquele segredo mas já era capaz de adivinhar que havia um roubo escondido por trás de tudo aquilo. Um camponês fugitivo não tinha nenhuma maneira legal de poder lançar as mãos a dinheiro suficiente para lhe encher a bolsa de um modo tão atraente.

- Pois é, quando deixaste a Anne eras apenas um homem livre com algum medo do mundo, não é verdade? - declarou, num tom de genialidade. - Na tua terra podias andar por todo o lado sem teres de carregar com uma espada ou um machado e sentias-te seguro. Contudo, aqui estás com uma tropa de homens de armas e alguns deles são perigosos. Acenar uma bolsa dessas debaixo dos narizes deles é como mostrar um cão a uma cadela com o cio. Vão tentar tirar-ta, sabes? Contudo, tomaremos conta de ti se ficares junto de nós.

- Sim. Proteger-te-emos como se fosses da nossa própria família, - John soniu e voltou a exibir os dentes enegrecidos.

Cole olhou de um para o outro. Quando lhe deram palmadas nas costas, numa demonstração de amizade bem-humorada, sorriu-se para eles com um ar de gratidão. Alguns minutos depois debruçou-se para a frente, para comer, e os dois homens trocaram um olhar por cima das suas costas. Lentamente, John piscou um olho para Henry.

Paul, o estalajadeiro, não pôde sentar-se na sua despensa até a noite já ir bem adiantada. Os gritos e gargalhadas tinham-se apagado a pouco e pouco à medida que os homens adormeciam. Alguns, tal como o próprio capitão, cambalearam para os quartos que lhes haviam sido destinados. Sir Hector já se foi embora há pelo menos três horas, pensou Paul, preocupado, enquanto limpava a testa com uma toalha, e esse, pelo menos, já deveria estar a dormir.

Os passos que escutou por trás dele anunciaram a chegada da mulher.

- Margery? Pensava que já tinhas ido para a cama.

A mulher deixou-se cair no banco a seu lado e olhou para o pequeno compartimento com a sua confusão de barris vazios, jarros e recipientes.

- É melhor começar a fazer uma nova dose de cerveja já amanhã - disse, cansada. Tinha o rosto acinzentado mesmo sob a luz amarela da chama da vela e as linhas de cada lado da boca eram como cortes na pele. Até a túnica verde e o avental branco descaíam, amolecidos, como se estivessem demasiado fatigados. Puxou a touca e coçou os cabelos agora soltos.

Paul estendeu a mão e tocou-lhe no braço.

- Desculpa não ter conseguido que alguns deles se fosse embora, mas pelo menos não causaram sarilhos. Não houve lutas, nem nada do género.

- E os outros hóspedes? Que lhes aconteceu?

- Todos eles decidiram ir-se embora. O ourives e o aprendiz foram os primeiros, a seguir foi o burguês de Bath, logo seguido pelo mercador e a família... De repente descobriam que tinham assuntos importantes a tratar em qualquer outro lado... sempre depois de um dos homens do capitão ter falado com eles. Suponho que devemos estar gratos por ninguém se ter magoado. Não houve violência.

A mulher respondeu com um encolher de ombros, um pequeno gesto de exaustão.

- Pois não... e fizeram poucos estragos. Limitaram-se a partir alguns jarros, que substituiremos com facilidade. Esperemos que se vão embora amanhã...

- Olha que não sei... Ouvi um deles a conversar com os outros e disse que talvez ficassem mais algumas noites.

- Espero que não!

Compreendia a hostilidade da mulher. Estavam habituados a hóspedes mais pacíficos, mercadores, clérigos e burgueses. Era muito raro terem mais de dez pessoas na estalagem e um grupo de trinta, todos eles homens de armas, era algo nunca visto. O dinheiro seria bem-vindo - se não argumentassem demasiado a respeito da conta, uma vez que Paul sabia que aquele tipo de clientes tinha por hábito queixar-se do verdadeiro custo da estada. Os soldados mostravam tendência para se servirem dos receios das pessoas pacíficas para as obrigarem a grandes descontos. Paul suspirou: tinha de acrescentar bastante dinheiro às despesas feitas com a bebida para poder regatear quando o momento chegasse. Caso contrário acabaria por lhes subsidiar a estada e isso era algo que não estava em condições de suportar.

A mente da mulher estava concentrada no mesmo problema.

- Não é apenas a comida e a bebida, pois não? Também temos de pensar na alimentação dos cavalos. E se se recusarem a pagar o suficiente?

- Veremos - respondeu, num tom tranquilizador enquanto lhe dava uma palmadinha num joelho.

A mulher sorriu mas o seu rosto endureceu rapidamente.

- Sabes para onde foi a Sarra?

- A Sarra? - Não era capaz de lhe enfrentar o olhar. - Foi com ele - afirmou a mulher. - Foi para o quarto com o capitão.

Paul soltou um suspiro.

- Margery, ela já tem idade suficiente para saber o que está a fazer.

- Idade suficiente? Pode ter a idade mas é óbvio que não sabe o que faz! - protestou a mulher acaloradamente. - Sabes como ela é. Anda sempre com a cabeça nas nuvens! E então ele? Sabes que espécie de homem é. Está apenas a aproveitar-se e a Sarra não irá conseguir nada dele!

- Margery, a rapariga já tem idade para decidir por si! - repetiu. - E que podemos nós fazer se o cavaleiro se estiver a aproveitar?

- Deve ter pensado que o homem casava com ela. É uma idiota romântica!

- Nesse caso, também se estava a aproveitar dele - disse Paul, com toda a lógica.

- Pois, mas e se ficar de bebé? O cavaleiro não vai querer ajudá-la, pois não? Podemos ficar com um bebé nas mãos!

O estalajadeiro apertou-lhe a mão.

- Se chegarmos a esse ponto... então veremos o que poderemos fazer para resolvermos as coisas da melhor maneira.

- Mas... e se tiver mesmo um bebé? A Sarra não poderá tomar conta dele... e não quero vê-la na rua como a Judith e o seu pobre Rollo. - A mulher abriu muito os olhos. - Rollo! Sabes o que dizem a respeito do rapaz. Talvez...

- Já chega, Margery - disse o estalajadeiro, levantando-se. - Está na hora de irmos para as nossas camas. É tarde e de manhã vamos ter muito que fazer para arrumarmos toda esta confusão. Se houver uma criança,., logo se vê. Não vou preocupar-me com isso neste momento. Vem daí, vamos para a cama.

A mulher ergueu os olhos para ele, um pouco zangada por Paul não lhe ligar, mas depois exibiu um pequeno sorriso trocista e levantou-se.

- Muito bem, marido... mas estaria muito mais satisfeita se a estúpida da rapariga o tivesse deixado em paz.

- Talvez também venha a ter motivos para se arrepender das suas acções - murmurou Paul lançando uma olhadela na direcção do quarto onde Sarra e o capitão se encontravam naquele momento, como se pudesse ver através das paredes. Por qualquer razão, sentia um vazio no estômago. Reconheceu-a como sendo a premonição de que algo de maligno iria acontecer... e a consciência desse facto fê-lo estremecer.

 

Foi dois dias mais tarde que o cavaleiro de Furnshill, Baldwin, saiu para a luz do Sol com uma sensação de mau agoiro, de desgraça iminente. A manhã estava clara e brilhante, com pequenas nuvens que pareciam leves bolas de lã recentemente limpas suspensas num profundo céu azul. O som das cotovias a cantarem por cima da sua cabeça, o chilrear dos chapins nos arbustos e os gritos dos melros que se afastavam a voar, a apenas centímetros do solo, num pânico urgente ante o seu aparecimento, deram um alívio momentâneo à sua disposição sombria.

Baldwin, alto, com cabelos castanhos salpicados de prata e uma barba negra bem aparada que lhe seguia a linha do queixo, era uma figura anacrónica para um cavaleiro moderno. Naqueles dias já a maior parte dos homens se barbeava, tal como o seu amigo Simon Puttock, o almoxarife de Wydford, e eram muito poucos os que ainda conservavam um simples bigode. Para além disso, o seu vestuário também não seguia a tendência geral para a ostentação, uma vez que preferia aparecer com uma velha túnica manchada, que lhe pendia do corpo, muito solta, até ser apertada pelo cinto. Outros cavaleiros teriam comentado as suas velhas botas muito gastas, já quase sem biqueira, que também não acompanhavam a moda recente das biqueiras alongadas e viradas para trás, na direcção do tornozelo. Sir Baldwin tinha a face marcada por uma comprida cicatriz que se estendia da têmpora até ao queixo. Era o único vestígio de um passado muito agitado.

Tal como o traje revelava, Sir Baldwin Furnshill não era como os outros homens daquele mundo cada vez mais secular. Fora um monge-guerreiro, um dos Cavaleiros Templários, até a Ordem ter sido dissolvida.

Com essa destruição, também a sua fé na Igreja fora estilhaçada. Agora com quarenta e seis anos, estava já bem dentro da meia-idade e satisfeito por poder passar o resto da sua vida como um cavaleiro rural que levava uma existência tranquila e evitava as pompas dos torneios e de outros festivais reais. A suposta excitação de uma vida nos centros políticos aborrecia-o, não porque o poder lhe desagradasse mas porque via os que o procuravam como sendo pessoas manipuladoras e sem princípios. A sua própria experiência levara-o a duvidar da honra dos que se encontravam no topo da autoridade política e religiosa, pelo que a ideia de circular entre homens que, na sua opinião, eram corruptos e desonestos, era-lhe pouco atraente.

Numa altura em que o Rei Eduardo II era tão ineficiente, aquele não era um ponto de vista vulgar. Eram muitos os que desejavam aproximar-se do monarca, esperando que essa proximidade lhes permitisse apoderar-se de um controlo que estava constantemente a escapar ao próprio Eduardo. Baldwin Furnshill sentia-se muito mais feliz por poder deixar tais maquinações para os outros. Pela sua parte, contentava-se em permanecer em Devon e encontrar a satisfação no trabalho, deixando a administração da nação para os que sentiam ter aptidões para isso.

Porém, havia alturas em que não podia deixar de se envolver e aquela era uma delas. O seu rosto ensombrou-se logo que se recordou do encontro que iria ter e nem sequer a beleza dos campos o conseguiu aliviar do súbito mau humor.

Aquele era o seu lugar favorito, na frente da velha casa, a olhar para sul. O edifício erguia-se numa elevação e o terreno à sua frente descia uma curta distância. Para além de uma pequena colina, nada mais havia para lhe obstruir a vista e Baldwin ia frequentemente para ali, para se sentar no velho tronco e meditar sobre os problemas que tinha de enfrentar. Deixava que a sua mente cobrisse todas as questões e soluções enquanto olhava para a distância.

Naquele dia sabia que não iria ter paz. Sentou-se, pousou os braços nas coxas e ficou a olhar... mas não conseguiu arranjar uma saída.

O problema tinha raízes na sua aceitação, dois anos antes, do cargo de Guardião da Paz do Rei. Na altura tivera relutância em assumir essa responsabilidade porque sabia que a mesma o envolveria inevitavelmente nas discussões ou disputas da população local. Todavia, a detenção de poderes da magistratura significava que podia pelo menos impor alguma contenção no que se referia aos crimes mais insignificantes, e para além disso conseguiu dar uma boa ajuda em duas investigações muito sérias ao longo dos dois ou três últimos anos, investigações que acabaram por levar dois assassinos a enfrentarem a justiça. Essa era a faceta positiva. A negativa encontrava-se nas inevitáveis convocações para ir ao encontro de outros que sentiam ser suficientemente importantes para serem honrados com a sua presença.

Agora, tinham-lhe pedido que fosse ter com Peter Clifford para conhecer Walter Stapledon.

Suspirou, forçou-se a sentar-se com as costas direitas e fez uma careta para uma casa, longínqua, tão afastada e tão perto do horizonte que se parecia com uma mera mancha branca no meio da floresta que a rodeava. Talvez houvesse uma maneira de evitar o encontro... mas não a via.

Não que Stapledon lhe desagradasse - na verdade nunca conhecera o homem -, mas o Bispo de Exeter era um político astuto e não apenas um mero sacerdote. Em finais de 1316, Walter Stapledon ajudara a criar um novo movimento que se esforçava por romper o impasse entre o monarca e o primo, Thomas de Lancaster. As disputas acrimoniosas entre Eduardo II e o seu Steward de Inglaterra tinham-nos levado quase à beira de uma guerra civil, que Walter e os seus amigos tinham conseguido evitar por intermédio de habilidosas negociações. Agora, Baldwin estava convidado para ir ao encontro do homem... O cavaleiro contraiu o queixo. Só havia uma razão para o bispo o querer ver... e era para o forçar a declarar qual o seu alinhamento político. Baldwin tinha muito poucas lealdades. Em princípio, reconhecia uma lealdade para com os seus servos da gleba, mas as convicções não o levavam mais além. Graças às suas amargas experiências, sabia muito bem que prelados e reis eram igualmente capazes de esmagar pessoas com tanto à-vontade como se fossem pulgas se disso viessem a tirar algum proveito, pelo que não via necessidade de se aliar a qualquer um deles. Tinha relutância em encontrar-se com o imponente bispo para ser interrogado, mas não descobria uma maneira de fugir ao convite. Era forçado a ir.

Contudo, aquela nuvem de tempestade tinha uma faceta agradável: o seu amigo Simon Puttock também lá estaria. O mensageiro de Peter Clifford tivera um cuidado especial em informá-lo que o almoxarife de Lydford e a mulher estariam de visita a Peter ao mesmo tempo.

Esse comentário cuidadosamente acrescentado ao recado mostrava até que ponto Peter estava ao corrente da antipatia do cavaleiro pelos políticos e Baldwin quase soltara uma gargalhada quando o jovem mensageiro recitara a mensagem, com a testa franzida pela concentração:

"O seu amigo pediu-me para me certificar que lhe dizia que Simon Puttock, o almoxarife de Lydford, também lá estará com a família. Sabe que irá querer vê-los. Irão juntar-se ao meu amo para o jantar."

Baldwin soltou uma fungadela.

Sim teria de ir ao encontro daquele bispo... mas precisava de se manter atento aos riscos e de se mostrar cuidadoso, para não se envolver em quaisquer assuntos políticos.

Contudo, como acabaria por verificar, o encontro com Stapledon iria ser a menor das suas dificuldades naquela noite.

A casa de Peter Clifford era um edifício agradável e arejado, perto da nova igreja, cuja construção ainda estava a alguma distância de ser completada. As pilhas de areia e de pedras à espera de serem trabalhadas amontoavam-se em seu redor em montes irregulares, como se se tivesse verificado um bombardeamento com artilharia pesada. Baldwin chegou pouco depois do meio-dia, com o servo a seu lado, e olhou em volta com interesse.

As paredes da nova igreja pareceram-lhe os cais de um porto muito movimentado. Os andaimes erguiam-se por todos os lados como os mastros de uma esquadra ancorada. Deteve-se perante a visão e estudou a grotesca estrutura dos andaimes unidos uns aos outros com cânhamo e providos de passarelas de tábuas... e estremeceu. Baldwin não receava nenhum homem vivo - já testemunhara os piores sofrimentos que os homens podem infligir -, mas tinha um desagrado, quase um verdadeiro ódio, por tudo o que fossem alturas. Não compreendia como podia haver homens capazes de caminhar naquelas tábuas tão pouco substanciais como se fossem macacos, nem como depunham toda a sua fé em nós feitos por outros. Eram muitos os que morriam com uma certa regularidade, o que provava que se tratava de uma fé despropositada.

- Então, Baldwin... A julgar pela careta de desgosto no teu rosto, ainda não perdeste a desconfiança para com os operários ingleses...

Junto ao seu estribo encontrava-se um homem alto e de cabelos escuros, com um rosto quadrado queimado pelo sol e pelos ventos. Sorriu-se lentamente quando Baldwin se virou para ele.

- Simon! - O cavaleiro passou as rédeas a Edgar, o servo, e saltou do cavalo. Um instante depois já apertava a mão ao outro e sorria, mas a expressão no rosto do amigo fê-lo hesitar. O sorriso de Simon exibia um cansaço contraído que nunca lhe vira anteriormente. Era como se o almoxarife estivesse a esconder um segredo doloroso.

- Baldwin, é bom voltar a ver-te novamente.

- Também tenho muito gosto em ver-te.

Simon afastou-se e afirmou, numa tentativa para fazer um pouco de humor:

- Ah, sim... mas é só para que tenhas alguém com quem conversar enquanto o bom do bispo se manifesta a respeito dos assuntos do estado, não é verdade?

Baldwin fez uma careta envergonhada.

- Bom, não é inteiramente verdade, meu velho amigo, mas a tua presença talvez sirva para afastar um pouco a conversa de todos aqueles graves assuntos de estado.

- Espero que sim! - retorquiu Simon, rindo-se. - No caso contrário, a Margaret acabará por me cortar a garganta!

- A Margaret está aqui?

- Onde querias que a minha mulher estivesse, se não a meu lado? Sim, está aqui.

Edgar conduziu os cavalos para os estábulos e os dois homens avançaram para a casa de Peter. Todavia, ainda antes de chegarem à porta, Baldwin agarrou o braço do amigo e deteve-se, estudando-o. Simon perdera peso. Tinha um rosto mais magro do que Baldwin recordava e havia rugas de tensão profundamente gravadas na sua testa e nos lados da boca. Os cabelos negros tinham começado a cair, dando-lhe uma aparência distinta, mas os olhos cinzentos, outrora brilhantes de inteligência, eram agora baços e pesados.

- Simon, não quero interferir nem meter-me no que não me diz respeito... mas passa-se algo de errado?

- És o meu melhor amigo - respondeu Simon, Baldwin ficou chocado ao ver-lhe os olhos a brilharem de humidade. - Tu... nunca interferes. Não tenho segredos para ti. - Desviou os olhos e acrescentou, numa voz entrecortada: - Foi o Peterkin, o meu rapaz...

Baldwin franziu a testa de preocupação. Peterkin era o filho de Simon e Margaret, um rapazinho com pouco mais de ano e meio.

- Que se passou com ele, Simon?

- Morreu.

- Simon... lamento muito!

- Não faz mal... Já quase me recompus. No entanto, foi difícil. Sabes bem como ambos desejávamos um filho... e perdê-lo assim foi muito cruel.

- Quando? Quero dizer, como foi que morreu?

Simon fez um pequeno gesto fútil.

- Há três semanas. Andou estranho durante algum tempo, a chorar e a gemer, mas não sabíamos porquê. Teve febre durante um dia e uma noite, com diarreia durante todo o tempo, não queria comer e depois... depois morreu.

- Meu amigo, eu não sei o que... - murmurou Baldwin, mas Simon abanou a cabeça.

- Está tudo bem, Baldwin.

- E a Margaret... Para ela foi ainda mais difícil. Não é de surpreender. - A voz de Simon era tensa.

- Vamos para dentro... - pediu Baldwin. A angústia de Simon, embora a tentasse manter controlada, era dolorosa de testemunhar. O cavaleiro sentia a sua infelicidade.

Avançaram para a casa. No interior, Simon viu a mulher de Baldwin sentada junto do fogo, com a filha Edith a seu lado. Por trás delas encontrava-se Hugh, o servo de Simon, enquanto Peter Clifford permanecia um pouco mais longe, sentado na sua cadeira habitual. Baldwin ficou satisfeito por ver que o bispo ainda não chegara, uma vez que a presença de um estranho inibiria Margaret. Esta, de qualquer modo, tinha pouca vontade de falar. O cavaleiro acenou para Peter, que respondeu com um sorriso contorcido. Já era um amigo íntimo de Simon antes deste ter conhecido o almoxarife, mas no entanto tornava-se-lhe difícil saber o que dizer naquelas circunstâncias. Peter nunca se casara e consolar os que tinham perdido um filho era algo, sentia, que estava para lá dos seus poderes. Por isso, para ele, foi um alívio ver a chegada de um outro amigo.

Em vez de saudar o sacerdote, Baldwin seguiu directamente para junto de Margaret e ajoelhou-se na sua frente, com a bainha da espada a embater no chão de pedra quando lhe pegou nas mãos.

- Margaret, acabei de saber o que se passou com o Peterkin. Tenho muita pena. Não há nada que eu possa fazer para te aliviar a perda, mas tens toda a minha simpatia.

- Obrigado, Baldwin - disse Margaret, lançando-lhe um pequeno sorriso frágil. - Claro que sentimos terrivelmente a falta dele. Só esperamos que Deus nos conceda outro filho para o substituir...

Peter Clifford inclinou-se para a frente e deu-lhe uma palmadinha na mão.

- Assim será, minha filha. Conserva a fé em Deus e Ele acabará por te enviar mais filhos para alegrarem a tua vida.

Margaret permaneceu imóvel, não fez nenhum comentário e aguentou o olhar de Baldwin. Para este, a mulher parecia uma figura trágica de um drama grego. Era invulgarmente alta e flexível, com a complexão clara e longos cabelos louros que Baldwin associava às mulheres do Sacro Império Romano, mas agora parecia ressequida e gasta. A pele, outrora macia como a de um pêssego fresco, parecia seca e quebradiça, e os cabelos, que sempre entrançara com cuidado e mantivera seguros por uma rede, estavam agora caídos e maltratados, fazendo-a parecer mais velha.

- Foi o nosso primeiro rapaz - murmurou. - Levámos sete anos para conseguimos um irmãozinho para a nossa filha. Agora, foi levado para longe de nós...

Baldwin queria consolá-la mas não foi capaz de pensar em nada para dizer. Levantou-se e olhou para baixo, para ela, enquanto Margaret mantinha os olhos postos no chão como se deixasse de ter consciência da sua presença. Simon permanecia do outro lado da sala, com um ar abatido. O almoxarife estava perturbado com o sofrimento da mulher mas sentia-se preso no seu próprio desgosto e não sabia como a acalmar.

O cavaleiro afastou-se de Margaret, em silêncio. Já se sentia contente por ter ido ali, mais que não fosse para proteger Margaret e o marido de quaisquer comentários que o bispo pudesse vir a fazer. Separou-se dela e viu-a a apertar a mão da filha convulsivamente. Pareceu-lhe uma tentativa desesperada para se agarrar à criança, como se ao fazê-lo pudesse proteger a preciosa vida de Edith e salvá-la de também lhe vir a ser roubada.

Walter Stapledon chegou uma hora depois de Baldwin, mas o ambiente ainda não melhorara. Peter Clifford encontrava-se fora da sala quando Baldwin ouviu o matraquear doscascos e o resfolegar dos cavalos no pátio, e reparou num jovem sacerdote nervoso que se pôs de pé num salto, alarmado ao constatar que Peter não se encontrava presente para ir receber os visitantes. Baldwin fez-lhe um sinal e disse:

- Vai chamar o teu amo. Eu receberei o Bispo Stapledon. - O rapaz correu imediatamente para fora da sala. Baldwin suspirou e deixou os Puttock e o respectivo servo a sós por instantes. O seu próprio servo seguiu-o.

Lá fora deparou com um séquito de seis homens que desmontavam dos cavalos a resmungar e a murmurar enquanto esfregavam as costas doridas e esticavam as articulações rígidas. Que Baldwin pudesse ver só havia ali um clérigo, um homem com um traje simples que descia de uma carroça, e foi a esse que se dirigiu.

- Bispo?

- Não é ele. Sou o Bispo Stapledon.

Baldwin rodopiou. Por trás dele encontrava-se um homem na casa dos sessenta, que usava uma capa simples e uma túnica, ambas de boa qualidade e corte. Tinha uma espada curta à cintura, com um punho desgastado pelo uso. O cabelo acinzentado cortado de acordo com a última moda assentava em cima do que parecia ser a cabeça de um guerreiro, e fez Baldwin recordar-se dos chefes dos Templários. Possuía a mesma altivez aristocrática, nascida de uma família com uma longa história e com consciência do seu poder. Baldwin baixou os olhos e não ficou surpreendido ao verificar que as botas do bispo eram leves e a moda, com as pontas a erguerem-se com elegância, tal como convinha a um cortesão. O facto fê-lo soltar um leve suspiro.

- Meu senhor Bispo, Deus seja convosco. - Como não conhecia o homem, Baldwin preferiu fazer-lhe uma pequena vénia e proferir a saudação tradicional.

- E convosco... - O bispo tinha olhos verde-acastanhados que pareciam estar perpetuamente à beira de um sorriso, como se se sentisse genuinamente satisfeito com a sua sorte e não visse razões para pensar de outro modo. Baldwin gostou imediatamente do aspecto do homem.. Baldwin apresentou-se e explicou que Peter se encontrava a supervisionar a comida, na cozinha, isto enquanto Stapledon acenava a cabeça com um ar distraído e emitia uma série de ordens aos seus homens. Instantes depois já os servos conduziam os cavalos para o estábulo enquanto outros pegavam nas arcas e sacos que se encontravam na carroça e as transportavam para o interior.

Foi no momento em que se preparava para os seguir que Baldwin se deteve por um momento para uma troca de palavras confidenciais.

- Com certeza, Sir Baldwin. O que deseja?

Os olhos verdes fixaram os do cavaleiro enquanto este lhe explicava:

- O meu amigo Simon Puttock, almoxarife do Castelo de Lydford, acabou de perder o filho, senhor. Receio que a reunião não venha a ser muito agradável.

- Que idade tinha o rapaz?

- Dezoito ou vinte meses.

- Santo Deus! Ah, bom, veremos o que poderemos fazer para os distrair da sua infelicidade, não é verdade, Roger?

A pergunta era dirigida a um homem jovem vestido com um traje de sacerdote, muito simples, com batina, capa e capuz. Foi apresentado a Sir Baldwin como sendo Roger de Grosse, o filho de Sir Arnold, de Exeter. Baldwin já ouvira falar de Sir Arnold de Grosse. Era patrono de um certo número de igrejas em Devon e na Cornualha. Agora, aparentemente, decidira que o filho deveria tornar-se num clérigo.

- Já tem uma igreja escolhida para si? - perguntou Baldwin.

- Hum... sim, senhor. Callington. Acabámos de a visitar, na Cornualha. Espero ser confirmado na minha posição muito em breve - declarou, nervoso, e lançou uma olhadela de esguelha para o bispo.

Baldwin indicou a porta e entraram. Ao seguir atrás do grande político e homem de Deus, Baldwin teve algumas dúvidas sobre se teria feito bem em avisá-lo a respeito de Simon e da mulher, mas os seus receios desapareceram imediatamente logo que entraram no salão,

Peter regressara e estava de pé, muito corado, quando o bispo apareceu. Trocaram saudações, após o que Walter se dirigiu directamente a Margaret.

- Minha senhora, fico muito triste por saber da sua perda. Prometo-lhe que recordarei o seu filho, e a si, nas minhas orações. É uma mulher inteligente, sabe que nada do que eu possa dizer ou fazer irá diminuir o seu desgosto, mas pense nisto: embora Deus tenha considerado apropriado tirar-lhe o seu rapaz por uma qualquer razão que ainda não podemos compreender, começou por Lhe conceder a dádiva desse mesmo rapaz. Poderia nunca o ter feito. O facto de assim ter sido significa que Ele pretende conceder-lhe outro, que poderá manter junto de si. - O bispo calou-se, os olhos de Margaret encheram-se-lhe de lágrimas e Baldwin pensou que o homem só a desgostara ainda mais, mas a seguir viu-a esboçar um sorriso e soltou um suspiro de alívio.

 

Quando o meio-dia se arrastou para a tarde encontrou Paul sentado na despensa da estalagem, a calcular os lucros com todo o cuidado. Não tinha dificuldades para fazer as contas embora não soubesse ler nem escrever, e era capaz de se manter a par das despesas de seis clientes em simultâneo quando era a isso obrigado. Agora que todo o espaço da estalagem estava ocupado pelos homens de armas do capitão, Paul previa um resultado muito satisfatório para quando estes se fossem finalmente embora. Sentia-se absolutamente exausto. As raparigas já se encontravam todas a pé, com a excepção de Sarra. Não conseguiu fazer com que a jovem se levantasse. Foi chamá-la ao quarto mas a estúpida rapariga insistira que estava demasiado cansada para se levantar e ir trabalhar... Berrara-lhe que a culpa era dela por ter acompanhado o capitão ao quarto... e a rapariga guinchara, dizendo que a deixasse em paz ou falaria com Sir Hector a seu respeito. A ameaça foi suficiente. No entanto, retorquira que o capitão e os seus homens se iriam embora em breve... e que se quisesse continuar a ter um emprego era melhor saltar da cama e arregaçar as mangas. Não resultara. Na verdade, nem esperara que isso acontecesse porque sabia até que ponto a jovem era teimosa.

Em breve teria de ir para a cozinha para tratar da comida. O capitão e os seus homens devoravam guisados, sopas e presuntos como se estivessem esfomeados há meses e era difícil acompanhar-lhes o ritmo. Porém, o que era ainda mais difícil para o esforçado estalajadeiro era tentar ajustar-se aos horários do bando. Ele, tal como a maior parte das pessoas da cidade, baseava-se nas horas religiosas para as refeições. Levantava-se de madrugada, tomava um breve pequeno-almoço, como preparativo para a refeição principal às nove e para o jantar à tarde. Os lordes rurais comiam mais tarde, mas esses não tinham que se preocupar em encaixar as obrigações do trabalho ao longo das horas do dia e podiam dar-se ao luxo de ter outros para lhes preparem as refeições. Os mercenários pareciam gostar de se levantar tarde. O capitão fazia-o por volta das nove, mas alguns dos seus ficavam na cama até às dez. Para além disso preferiam que a última refeição fosse mais substancial do que as outras e servida muito mais tarde, Se o que acontecera no dia anterior podia servir de exemplo, então essa refeição teria de ser servida a qualquer hora a meio da noite.

Ouviu passos, espreitou para o corredor e esboçou um sorriso retorcido.

- Olá, Sarra.

A rapariga não dera por ele e Paul ficou surpreendido com o salto que a viu dar quando a saudou. Estava ligeiramente oculto pela escuridão da despensa enquanto ela caminhava pelo corredor iluminado. Devia tê-la surpreendido.

- Precisava de fazer isso? - inquiriu a jovem. Para espanto do estalajadeiro, Sarra tremia de fúria, com o rosto muito branco e os olhos esbugalhados.

- Desculpa, Sarra, não pensei que te assustasses. Limitei-me a dizer-te "olá...

- Não estava à espera de o encontrar aqui.

- Pois não. Bom, desculpa.

Foi-se embora à pressa e saiu porta fora, para a brilhante luz do Sol no pátio por trás da estalagem. Atravessou-o, ignorou as graçolas de dois mercenários sentados a uma mesa e dirigiu-se para o seu quarto. Foi só depois de fechar e trancar a porta que deixou sair o ar dos pulmões num prolongado suspiro de alívio.

O estúpido quase a matara de susto ao chamá-la daquela maneira. Não se atrevia a fazer aquilo a mais ninguém, só a ela, por a considerar uma idiota apenas digna de servir os clientes e de os lisonjear. Nem sequer lhe dera qualquer outra responsabilidade.

Sentiu, a pouco e pouco, que o seu coração se acalmava e conseguiu deslocar-se da porta para o colchão, onde se deixou cair, encolhida e muito infeliz.

Aquela primeira noite fora uma longa e lenta antecipação de uma deliciosa experiência sensual. Nos seus sonhos, elevara o encontro com o homem apropriado ao nível de um caso amoroso numa qualquer corte real. Havia muitas canções a respeito de como os cavaleiros lutavam nos torneios pelo amor de uma dama, tentando ganhar fama para a honrar... pelo que imaginara situações medonhas de que Sir Hector a iria salvar, a ela, a sua dama... enquanto na realidade se mantinha a seu lado, para lhe encher a caneca. As velhas fantasias tinham sido revigoradas pela presença do capitão e salvara-o uma e outra vez de circunstâncias muito infelizes enquanto se mantivera ali, de cabeça baixa e jarro na mão, à espera que ele lhe estendesse a caneca. Todavia, em vez de descobrir o amor, fora tomada como se não passasse de um despojo de uma batalha.

Pensara que poderia ser feliz junto de Sir Hector. No salão mostrara-se tranquilo, reservado, sem demonstrações excessivas e sem tentar agarrá-la como os outros que conhecera. A certa altura chegara a interrogar-se sobre se o homem iria na realidade revelar algum interesse por ela. Todavia, tudo isso se modificara logo que tinham entrado no quarto. Esperara cumprimentos e algumas frases lisonjeiras e bem escolhidas, tal como as de um cavalheiro bem-educado à sua dama... mas não! Sir Hector atirara-se a ela como se não passasse de uma cidade a ser conquistada. Não revelara qualquer fineza nem nenhum interesse por ela. Estava ali apenas para o satisfazer... e era tudo. Uma vez, quando tentara recusar-se-lhe, Sir Hector batera-lhe, não com força mas de uma maneira dolorosa. Ainda conseguia sentir o inchaço nas costelas, onde o punho lhe acertara aquando daquele curto golpe.

De manhã foi expulsa do quarto. Anteriormente fora sempre acordada com ternura pelos amantes, que a tinham afagado e acarinhado até ficar desperta. Sir Hector levantou-se e vestiu-se enquanto ela ainda estava a dormir, a seguir bateu-lhe num pé para a acordar e riu-se da sua aparência desgrenhada. Sentiu-se usada e zangada ante um tal tratamento, e quase decidida a não voltar a conceder-lhe nenhuns favores, mas de seguida pensara melhor no assunto. Uma voz tranquila e calma, no fundo da sua cabeça, disse-lhe que não devia desistir imediatamente porque o homem ainda poderia vir a apaixonar-se por ela. Não se dizia, com muita frequência, que as mulheres eram o sexo mais inteligente? Não era verdade que, embora os homens possuíssem a força e os músculos, as mulheres os controlavam através dos seus cérebros? Se uma mulher soubesse o que queria, então de certeza que alcançaria as suas metas e ambições.

Era fácil de ver que Sir Hector não iria ser uma conquista fácil. Durante a tarde preparara-se para ele, vestiu-se com cuidado, afivelou um sorriso encantador e foi procurá-lo. Para seu espanto, o homem começou por a ignorar e depois mandou-a embora com uma expressão de repulsa. Aquela súbita rejeição confundira-a. Não pareciam existir motivos para se virar contra ela e no entanto recusara-se até a falar-lhe, preferindo sair da estalagem durante a noite. Inicialmente perguntou a si mesma se o mercenário que tentara violá-la, Henry, não o teria envenenado a seu respeito, mas o seu homem estivera fora da estalagem durante a maior parte do dia, enquanto Henry e o amigo, tal como Cristine lhe dissera, tinham permanecido no salão ou no estábulo. Nem sequer se tinham aproximado de Sir Hector e não podiam ter nada a ver com aquela mudança. Devia ser qualquer outra coisa.

Semicerrou os olhos. Devia ter uma rival. Ele próprio o afirmara, mas era difícil de aceitar, Havia uma outra rapariga que conseguira conquistá-lo e que iria fazer dele o seu marido. Seria a Cristine? A ideia era como uma adaga espetada no cérebro e levou as mãos às têmporas por causa da dor intensa. A vergonha nã.o era uma coisa a que não estivesse habituada... mas ser rejeitada por causa de uma mulher dez anos mais velha deixava-a doente por dentro.

Tinha de o reconquistar! Naquela noite vestiria o que tinha de melhor e tornar-se-ia tão tentadora que ele não seria capaz de olhar para outra.

Sarra era, sob muitos aspectos, uma rapariga simples que estava habituada a ser a mulher para quem todos os homens se viravam. Era uma posição que apreciava e sabia que conseguia fazer virar a cabeça de um homem mesmo quando este ia acompanhado pela mulher, pelo que a ideia de haver um que já gozara a sua companhia mas parecia desejar outra lhe era intolerável.

Contudo, a seguir, foi atingida por uma nova ideia. Sonhara em salvá-lo, em prestar-lhe um serviço que o libertasse de um fim vil... e se o conseguisse então de certeza que o homem sentiria uma nova paixão por ela. Olhá-la-ia de uma maneira diferente se soubesse que estava em dívida.

Enrolou os braços em volta das pernas e encostou o queixo aos joelhos enquanto pensava em como poderia reconquistá-lo. Havia uma coisa de que tinha a certeza: Henry e o amigo eram diabólicos, pelo que também deveriam ser maus para ele. O rosto iluminou-se-lhe quando recordou a conversa sussurrada que escutara por acaso... e os planos começaram a faiscar na sua mente sempre inventiva.

 

Era difícil, em especial agora que se fizera tão tarde que as portadas já se encontravam fechadas há horas, mas Margaret tentou apreciar a refeição, para bem dos outros. Peter tivera grandes cuidados com a comida e não queria ferir-lhe os sentimentos. Vestira a sua túnica verde favorita e tinha os cabelos entrançados com cuidado e decorosamente seguros por baixo da rede. Simon também tentava mostrar um rosto corajoso, mas evitava-lhe o olhar, pelo que acabou por se virar para outro lado.

Andara muito calado desde a morte do filho. Quando pretendeu conversar com ele para tirar alguma espécie de sentido daquela perda, o marido mergulhou num desespero que mantinha bem acorrentado no fundo dele próprio. O facto fazia-a sentir-se como se não tivesse apenas perdido um filho, mas também o seu melhor amigo. O rosto de Simon, tal como podia ver, tinha um aspecto retesado que a fazia lembrar-se de um couro malcurado e demasiado esticado. No passado os seus olhos cinzentos tinham sempre brilhado de amor por ela, mas essa luz fora apagada como a chama de uma vela soprada pelo vento. Por vezes, pensava que nunca mais voltaria a vê-la. A perda do herdeiro atingira-o com muita violência.

A refeição também não ajudava a aliviar os pensamentos sombrios. Era uma coisa em grande. Estavam sentados na mesa sobre o estrado e por baixo deles, à direita, encontravam-se todos os outros homens, tanto os de Stapledon como os de Peter. Hugh e Edgar tinham sido instalados numa mesa não muito distante, com a Edith. A filha preferira ficar junto do Hugh e não no estrado, sob as vistas de todos os servos, e Margaret concordara rapidamente. Ficar na cabeceira da mesa era encontrar-se em exibição e Margaret não quisera sujeitar a filha a essa provação. Para a própria Margaret, o esforço para se manter calma já era suficientemente duro.

O ruído dos servos e dos convidados tornava difícil escutar os comentários do bispo. Embora os homens não estivessem a ser barulhentos, o simples facto de haver ali mais de quarenta pessoas a comer originava barulho mais do que suficiente para abafar o que se dizia na outra ponta da mesa. As conversas e o tilintar de facas e colheres sobre as travessas e no tampo da mesa ecoavam nas traves por cima da cabeça dela. As tapeçarias que forravam as paredes, escurecidas por anos de fumo e poeira, abafavam um pouco os ruídos mas Margaret começava a sentir uma dor de cabeça e sabia que iria dormir mal, se dormisse, depois de comer tão tarde.

Em honra dos convidados, Peter destinara uma travessa para cada duas pessoas na mesa principal, mas Margaret verificava que os servos se encontravam reunidos em grupos de quatro em torno de cada uma delas. As boas maneiras eram mantidas e os homens retiravam as suas doses com toda a correcção com a ajuda das colheres e sem discussões, embora Margaret visse Hugh a escolher sub-repticiamente os melhores bocados. Ficou rígida ao lembrar-se que Simon podia sentir-se embaraçado se visse aquilo, mas depois descontraiu-se quando o viu deitar a porção que escolhera no prato de Edith.

O despenseiro voltou a aparecer, retirou-lhe o pão do tabuleiro de madeira, por já se encontrar ensopado em molhos e gorduras da carne, e substitui-o por outro. Ao mesmo tempo, o encarregado dos vinhos tornou a encher-lhe a taça. Margaret quase nem provara o vinho mas o pessoal tinha sido exortado a demonstrar as melhores maneiras enquanto o bispo permanecesse com Peter e seria um faux pas terrível deixar que a taça de um convidado se esvaziasse. Para Margaret, o sorriso no rosto do homem demonstrava que a tarefa estava a ser difícil de concretizar. Sentiu alguma simpatia por ele, habituado como estava a uma vida mais tranquila, mas depois recordou a si mesma que aquelas dificuldades eram apenas transitórias.

 

- Margaret, como tem estado a Edith?

A voz suave de Baldwin, a seu lado, era uma bem-vinda interrupção aos seus pensamentos.

- Está bem. É demasiado jovem para compreender inteiramente o que se passou. Sente a falta do Peterskin... tal como podia sentir a falta do seu animal de estimação favorito. Talvez nunca o tenha conhecido muito bem...

- Isso acabará por te passar, Margaret.

- Sim... mas de quanto tempo precisarei? - Os olhos húmidos viraram-se para o marido.

- Não muito. O Simon necessita de qualquer coisa para se ocupar - disse Baldwin, reparando no olhar e compreendendo o significado do mesmo. - Voltará a ser o homem de que te recordas.

- Espero que sim...

O cavaleiro olhou-a com ansiedade. Ao longo dos três anos em que conheceu Simon e Margaret sempre os viu como exemplo de um casal perfeito. Simon até reduzira o número de viagens para longe de Lydford que se supunha dever fazer só para não se separar muito da sua jovem família. Compreendia que aquela morte os tivesse perturbado aos dois, mas era assustador que os deixasse tão em baixo.

- Então, Sir Baldwin, o que pensa?

As palavras do bispo obrigaram-no a olhar para cima.

- As minhas desculpas, meu senhor, estava a falar com a Margaret e não ouvi o que disse.

Os olhos de Stapledon desviaram-se para ela e de volta a Baldwin e o cavaleiro pôde ver que o homem lamentava tê-los interrompido. O bispo pigarreou para limpar a garganta.

- Falava do estado do país. Acha que o povo voltará a acalmar-se agora que os Regulamentos foram confirmados?

Baldwin arrancou um bocado ao pão que tinha no prato. Era precisamente aquele o tipo de discussões que pretendia evitar.

- Penso que o povo se manterá calmo enquanto os dirigentes de Inglaterra quiserem discutir os problemas e evitar o derramamento de sangue.

- Ah! Escolhe as palavras com cuidado, Sir Baldwin! Basta de precauções, estamos entre amigos. O que é que na verdade pensa?

- Meu senhor, sou apenas um pobre cavaleiro rural. Não tenho qualquer interesse pelos assuntos do estado. Aqui, felizmente, o estado deixa-nos em paz para vivermos as nossas vidas tal como consideramos apropriado, e é assim que gosto das coisas.

- Estou a ver... - Stapledon acenou - e compreendo. Seria melhor para todos se as questões pudessem ser resolvidas de um modo que permitisse ao Rei deixar as pessoas em paz. Contudo, receio que assim não seja.

- Por que diz isso? - perguntou Peter Clifford, despejando a taça de vinho e estendendo-a para que lha enchessem.

- Thomas de Lancaster quer poder. No ano passado, ele e o monarca trocaram o beijo da paz depois do tratado que assinaram em Leake... mas só conseguiu ganhar um perdão para ele e para os amigos. Nada mais. Quando voltou ao Parlamento de Iorque, em Outubro passado, exigiu o direito de nomear os que considerasse apropriados para o cargo que considerava como o mais importante do país, o de Intendente da Câmara. Não lhe fizeram a vontade, mas este ano, quando o Parlamento voltou a reunir em Iorque, quis que o monarca o nomeasse Intendente da Casa Real.

- Não será sensato? No fim de contas já é o Intendente de Inglaterra e faz sentido fundir os dois cargos - declarou Simon.

Stapledon sorriu com gentileza.

- Pode parecer que sim... mas não é verdade. Se obtivesse os dois cargos teria um domínio completo sobre o monarca. Com efeito, teria autoridade sobre todos os conselheiros do Rei. É demasiado poder para um único homem.

- De qualquer modo - interveio Baldwin precipitadamente - já não me parece uma questão muito importante. - O Bruce tomou Berwick e o exército do Rei está ao ataque. As insignificâncias políticas não ajudarão ninguém. Há uma guerra a combater e precisamos que os escoceses fiquem com o nariz a sangrar.

- Creio que está enganado. - Stapledon mastigou cuidadosamente um pedaço de carne e exibiu um sorriso de bom humor ante a censura implícita. - O que vier a acontecer no Norte não durará muito tempo. Que se passará quando tudo terminar? Todos sabemos que o monarca se encontra numa posição muito fraca. O Tratado de Leake, que no ano passado pretendeu resolver as questões entre ele e o Lancaster, foi na realidade uma negociação entre o Lancaster e os outros barões. O monarca pouco teve a dizer em relação ao assunto! Não, isto tem de ser resolvido entre outros, mas principalmente pelo Pembroke e pelo Lancaster.

- Então vamos voltar a ter uma guerra civil - disse Baldwin, que soltou um suspiro pesado. Não se apercebera que falara em voz alta e o súbito silêncio fê-lo compreender o seu erro. Levantou a cabeça e viu o bispo a olhá-lo com um interesse atento. Baldwin enfrentou-lhe o olhar resolutamente. Sabia bem que as suas palavras podiam ter ofendido, mas não estava preparado para negar a verdade do seu ponto de vista.

- Ah, disse o que pensa, Sir Baldwin. Todavia... - a voz do bispo foi muito baixa quando pegou nas frutas da taça à sua frente - ... receio que possa ter razão.

- E que irá fazer se vier aí uma nova guerra? - perguntou Baldwin, insistente.

- Pedirei conselho a Deus... e a seguir lutarei pelo que me parecer ser melhor para a Inglaterra.

O cavaleiro preparava-se para replicar quando ouviu uma faca a tombar sobre o tampo da mesa, a seu lado.

- Meus amigos, por favor... - Margaret levantou-se, muito pálida sob a luz das velas. - Sinto-me fraca, creio que tenho...

Baldwin viu-a a oscilar, agarrou-a pelo braço e apoiou-a. Simon juntou-se-lhes, com uma expressão preocupada.

- Vou levá-la para o quarto. Provavelmente, está cansada. Não se preocupem, tomo conta dela.

Baldwin viu o almoxarife a ajudar a mulher a sair da sala, com Peter Clifford a iluminar-lhes o caminho com uma vela.

- Estão ambos a sofrer de uma grande infelicidade, não é? - perguntou Stapledon.

O cavaleiro voltou a sentar-se e não conseguiu impedir-se de dizer:

- Ouvir falar de guerra tão pouco tempo depois da morte do filho deve tê-la transtornado.

- Talvez tenha razão em censurar-me - afirmou o bispo. A seguir inclinou-se para a frente e falou com uma voz mais dura. - Contudo, olhe para mim, Sir Baldwin. Pareço-lhe um tolo insensível?

O cavaleiro ficou olhá-lo e o tom do bispo tornou-se mais calmo. Passou a falar tranquilamente e com uma grande seriedade.

- Sei que ela está triste, e se puder fazer algo para lhe aliviar a depressão... então pode ter a certeza de que o farei. No entanto, tenho outras coisas a tomar em consideração... tal como saber se este nosso país deverá mergulhar em disputas que acabem por o levar à guerra. Tome bem nota das minhas palavras, Sir Baldwin. Vai haver guerra quando o exército regressar novamente ao Sul vindo da Escócia... e quando isso acontece são muitas mais as mulheres que terão de chorar a morte dos filhos, dos pais, dos amantes e dos maridos. Pode levar um ano, ou pode levar dois... mas tem de haver guerra se quisermos restringir o poder ao Lancaster.

- E quem poria no lugar dele? - perguntou Baldwin num tom incisivo.

- O Pembroke é mais seguro - retorquiu o bispo.

- Talvez...

- Outra coisa que preciso de ter em consideração é a lealdade dos cavaleiros deste país. Talvez me possa responder a isto: em que posição se colocará um bom cavaleiro como o senhor se houver guerra?

Baldwin viu Peter a regressar à sala e ficou-lhe grato porque isso significava que aquele interrogatório teria de terminar em breve. Fora encurralado, tal como sabia que iria acontecer, mas tinha uma resposta pronta:

- Estará com o homem a quem tiver prestado juramento... e nunca com outro, seja ele o seu senhor ou o próprio Rei - disse, num tom pesado. A seguir serviu um pouco de vinho e estendeu-o a Peter. - Como está ela?

- A descansar. - O sacerdote deixou-se cair no assento com um suspiro. - Pediu que a deixássemos sozinha.

Stapledon parecia querer prosseguir com a conversa. Contudo, quando abriu a boca ouviu-se um clamor de vozes na rua, gritos, apelos, um matraquear de cascos, um berro e mais gritos.

Baldwin lançou um olhar interrogador a Peter, que se limitou a encolher os ombros, confundido. O cavaleiro sentiu uma grande gratidão por fosse o que fosse que tivesse causado a interrupção, pediu desculpa, levantou-se e encaminhou-se para a porta. Edgar seguiu-o imediatamente. O servo de Baldwin estava com ele há muitos anos, desde os dias em que fora um homem de armas dos Cavaleiros Templários, e durante esse tempo nunca perdera a sua lealdade para com o cavaleiro. Se Baldwin se quisesse envolver numa luta... Edgar lá estaria para o acompanhar.

Dois dos homens de Peter chegaram à porta antes deles. Um empunhava um cacete, pronto para proteger a casa contra a invasão de quaisquer desordeiros, pelo que Baldwin e Edgar tiveram de os empurrar para o lado para poderem passar. Lá fora depararam com uma cena de confusão. Os homens seguravam em tochas ardentes e corriam para um lado e para o outro na rua escura. Eram berradas ordens e os homens de armas marchavam para aqui e para acolá, gesticulando ameaçadoramente quando sentiam que essas ordens não eram obedecidas de um modo suficientemente rápido. Havia uma mulher magra, vestida com empoeirados trajes cinzentos, ajoelhada na estrada, a embalar uma criança que chorava, um rapazinho de cinco ou seis anos que fora derrubado, isto enquanto os cavalos, enervados, matraqueavam nas pedras com os cascos protegidos pelas ferraduras, que retiniam no pavimento. Surgiram mais pessoas vindas do interior das casas, muitas delas semidespidas, e o clamor foi aumentando. Os cavalos relinchavam, as portas batiam e voavam perguntas urgentes para um lado e para o outro enquanto as pessoas tentavam descobrir as causas de toda aquela perturbação. O ar estava repleto dos fumos de madeira e pez a arder, e cheio com os gritos ásperos de homens confusos e zangados.

O cavaleiro ficou a observar a cena por momentos e depois dirigiu-se a uma figura rotunda e silenciosa encostada a uma parede. Baldwin reconheceu o homem sob o clarão de uma tocha que passou junto dele. Era o açougueiro.

- Olá, Adam, que se passa aqui?

- Creio que houve um roubo. Roubaram uma arca a alguém que se encontrava na estalagem e levaram tudo.

Baldwin grunhiu quando o açougueiro encolheu os ombros, despreocupado, e tomou um grande gole da caneca de cerveja. A noite estava a ser muito pior do que previra. Viu um homem de armas a aproximar-se e chamou-o com um gesto.

- Tu! Quem é que foi roubado? - O homem encarou-o com um ar de desprezo, exibiu a expressão de quem se preparava para rosnar uma resposta insolente mas depois apercebeu-se da espada à cintura de Baldwin. - Então?

- Foi o meu capitão, Sír Hector de Gorsone. A sua arca foi assaltada e muita da sua prata desapareceu. A arca precisava de três homens para ser transportada, de pesada que estava, mas desapareceu tudo!

- Deus do céu! - exclamou Baldwin. Era de mais! Primeiro o filho do Simon, depois tinham querido envolvê-lo em políticas... e agora um roubo e toda a confusão levantada para descobrir o ladrão. - Sou o Guardião da Paz do Rei na cidade. Não quero ninguém magoado sem razão. Onde está o teu amo?

- O meu capitão está além.

Baldwin seguiu a direcção do dedo e viu o chefe dos mercenários. Encontrava-se sob a nova tabuleta da estalagem, com os braços cruzados, a olhar com fúria para os seus homens. Quando Baldwin se aproximou, seguido de perto por um Edgar muito desconfiado, ouviu o homem a berrar:

- Não quero saber, nem que tenha fugido para a Escócia! Quero-o apanhado e trazido de volta aqui! Encontrem-no e tragam-mo!

- Espere! - gritou Baldwin, erguendo uma das mãos.

- Quem é você?

- Sou o Guardião da Paz do Rei e não tolerarei derramamento de sangue. Quem procura? Um dos seus homens?

- Sim. Só se juntou ao meu bando anteontem à noite... e esta noite roubou-me!

- Como se chama ele? - inquiriu Baldwin.

- Philip Cole.

- Que aspecto tem?

Sir Hector forneceu-lhe uma breve descrição. Não era fácil, porque prestara atenção ao rapaz por poucos instantes, na noite em que lhe pedira para se juntar ao bando... e Sir Hector já estivera a beber durante algum tempo. Por dentro, sentia-se a ferver ao constatar que um mero campónio tinha conseguido aproveitar-se dele tão depressa e com aparente facilidade. Deu um murro na palma da mão.

- Deve ser destas bandas. O patife juntou-se ao meu bando aqui, quando estávamos na estalagem!

Outro dos homens, de pé a pouca distância, interrompeu-os:

- Thorverton. Disse que tinha vindo de Thorverton.

- Pronto, aí tem, Guardião da Paz do Rei - resmungou Sir Hector. - É um local! Um dos vossos! Fico satisfeito por conseguirem manter os vossos preciosos camponeses tão bem controlados...

- Os homens daqui irão encontrá-lo para si. - Baldwin ignorou o sarcasmo e manteve um tom de voz razoável. Não tinha qualquer desejo de antagonizar Sir Hector, uma vez que o capitão poderia provocar o caos na pequena cidade. De qualquer modo, se fora roubado... então tinha todo o direito de ver o culpado a ser apanhado.

- Os meus homens podem poupar-vos a esse trabalho.

- Ah, sim? - Baldwin avaliou os homens fortemente armados que o rodeavam. - E prometem trazê-lo de volta vivo para ser interrogado?

- Vão trazê-lo de volta... e à minha prata!

- Tenho a certeza de que o farão.

- Vão precisar de imenso tempo para organizarem um grupo de perseguição e nessa altura já o Cole se terá escapado! Será melhor que os meus homens o persigam agora mesmo!

Ia dar mais algumas ordens mas o tom calmo e firme de Baldwin fê-lo deter-se.

- Ah, sim, de certeza que os seus homens são capazes de o trazer de volta, não duvido disso. Só quero falar com ele enquanto estiver vivo. Pode afirmar que o viu a roubá-lo? Não? Nesse caso não o quero enforcado ou apunhalado antes de ter uma hipótese de se defender. Tu! - Levantou um dedo e apontou para o açougueiro ainda encostado à parede. Adam sobressaltou-se.

- Vai ter com o Peter Clifford e pede-lhe homens para nos ajudarem na busca. Vamos precisar de todos os que puder dispensar. Pergunta ao bispo Stapledon se também podemos utilizar alguns do seu séquito.

- O Cole está a escapar-se enquanto nos pede que esperemos! - grunhiu Sir Hector, furioso, enquanto o açougueiro se afastava à pressa.

- Alguém o viu ir-se embora?

- Não, não me parece.

- Levou algum cavalo?

Sir Hector fez um trejeito e apontou para um cavalariço.

- Então, levou algum?

- Não, senhor. Os cavalos estão lá todos.

- Aí tem a resposta.

- Sim... - Baldwin esboçou uma careta rápida. Um homem a pé não poderia carregar sozinho uma arca cheia de prata que necessitara de três pessoas para a levarem para o interior da estalagem. Encolheu os ombros.

- Se fugiu a pé, uma pequena demora não tem qualquer significado. Se querem apanhá-lo, vão precisar de mais homens. Há duas estradas principais que seguem para leste e oeste de Crediton, e mais outras para norte e para sul. Vamos precisar de várias equipas para o procurar e de homens para revistarem todos os caminhos de saída da cidade. Não irá muito mais longe nos dez ou quinze minutos que demoraremos para reunir os nossos homens... mas com eles temos mais probabilidades de o descobrir. Posso duplicar o número de grupos de perseguição.

Terminado o discurso, Baldwin sorriu de um modo tranquilizador.

- Não tenha receio, Sir Hector. Encontrá-lo-emos... e à sua prata.

- É melhor que o façam! Considero-o responsável por este atraso. Se o homem escapar, exigirei que me compense.

Os homens em volta de Baldwin tinham um ar ameaçador, como se também o culpassem pela demora na perseguição à presa... e aquela disposição poderia piorar de um momento para o outro. Sabia que Edgar continuava por trás dele, mas se os dois fossem atacados por tantos encontrar-se-iam numa posição muito difícil. Ficou aliviado quando ouviu o som de cavalos no pátio de Peter. Momentos depois já se escutava o tilintar dos arreios e o chiar do couro quando o grupo se aproximou.

Para sua surpresa, os homens eram liderados por Simon. Cavalgava à frente, trazendo consigo o cavalo de Baldwin. Entregou-lhe as rédeas e esboçou um sorriso retorcido ao ver a expressão no rosto do amigo. Baldwin pegou-lhe, saltou para a sela e lançou-lhe um olhar interrogativo.

- Não tens necessidade de vir connosco, velho amigo.

- Preciso do exercício.

Baldwin acenou, muito sério, e Simon soube, com toda a precisão, no que ele estava a pensar: o almoxarife deveria ter ficado junto da mulher. Todavia, não ia discutir o assunto com ele ali, no meio da rua.

Baldwin observou os homens disponíveis e começou mentalmente a dividi-los em pares. Ia começar a enviá-los para estradas específicas quando reparou que Simon já não se encontrava a seu lado. Virou-se na sela e viu o almoxarife a dirigir-se para a mulher e a criança. Soltou uma praga por entre os dentes, esporeou o cavalo e foi atrás dele.

Um homem de armas a cavalo empurrava a mulher com o cabo da lança.

- Sai da frente, cadela, antes que sejas derrubada!

A mulher lamentou-se ainda com mais força, puxando a criança para si.

- Ele está magoado... por um dos cavalos!

- Mexe-te! Sai do caminho, velha bruxa... e leva o garoto contigo ou dar-lhe-ei qualquer coisa que o faça chorar de verdade!

Simon colocou o cavalo entre os dois.

- Deixa-a em paz! - silvou.

- E quem és tu para me dizeres o que tenho de fazer? - inquiriu o homem enquanto levantava a lança com um ar agressivo, pronto para se servir dela como se fosse um pau e atingir a cabeça do almoxarife.

- É meu amigo... e eu sou o homem que te pode meter na cadeia durante toda uma semana - declarou Baldwin. Colocara-se por trás do mercenário e mantinha-se com uma pose ameaçadora, com a mão junto do punho da espada. - Vai-te embora... e deixa-a em paz.

O homem afastou-se a resmungar, com os olhos a saltitarem de um para o outro, mas Simon ignorou-o e saltou do cavalo para o chão.

- Não está muito magoado - disse, examinando o garoto. - Tem apenas uma esfoladela. Contudo, é melhor que se vão embora antes que aquele soldado regresse.

Observou-a enquanto a mulher, envergonhada, lhe retirava o filho das mãos e baixava a cabeça num gesto nervoso à maneira das camponesas que se descobrem na presença de um lorde. Aquele pequeno conflito enraivecera-o e a tensão, agora liberta, deixou-o esgotado e com um vazio na barriga. A mulher já podia ir para casa com o filho a seu lado. Baldwin examinou-o enquanto o via a trepar novamente para o cavalo e a pegar nas rédeas como um homem exausto por uma longa corrida.

Pouco depois já tinham acabado de dividir os homens. Baldwin insistira em quatro grupos principais, um para cada uma das estradas que saíam da cidade, certificou-se de que havia uma boa mistura de homens de Peter Clifford e do bispo em cada grupo. Não queria uma preponderância de mercenários em nenhum dos grupos porque tinha a certeza de que os homens de Si^r Hector desejavam matar Cole logo que o vissem para satisfazerem o seu amo, algo que o cavaleiro estava decidido a impedir. Peter e o seu hóspede não se tinham juntado a eles, mas já havia homens suficientes para conter os mercenários e isso era tudo o que desejava. Após alguma reflexão, decidiu cavalgar com Simon. Enviou os outros para as estradas que lhes tinham sido destinadas, virou-se para sul e o grupo partiu.

Simon cavalgava de um modo rígido. Hugh, o servo que seguia a seu lado, parecia exsudar desagrado. Esguio, de cabelos escuros e com as feições aguçadas de um furão, havia anos que protestava sempre que se via na necessidade de viajar e nunca apreciara a experiência. Contudo, começava finalmente a habituar-se a montar e Simon sabia que o desagrado que exibia naquela noite se devia ao facto de ter de deixar Margaret a sós com Peter Clifford. O servo fora muito dedicado ao filho do casal e sentira a perda de Peterskin tão profundamente como os pais. Vivia com eles, servia-os, comia com eles, pelo que era como se fosse um membro da família. Teria preferido ficar com Margaret para lhe aliviar a desolação que esta sentia.

O almoxarife esperara que aquela caçada o fizesse esquecer um pouco da sua infelicidade, mas tudo o que sentia era a desaprovação dos amigos e servos. Era uma censura com um tal peso que mal o conseguia suportar. Se ao menos o compreendessem, pensou. Sabia que não podia ajudar a mulher. Por muito tempo que passasse com ela não era capaz de lhe explicar os seus sentimentos, nem ouvi-la a narrar uma e outra vez como tinham encontrado o pobre Peterkin a jazer na cama, frio e azulado. Tudo isso servia apenas para aumentar a sua angústia e frustração. Sempre que passava demasiado tempo junto da mulher só tinha vontade de lhe bater, para ver se a conseguia calar. O seu próprio desespero ante a perda que sofrera já era suficientemente difícil de suportar e não tinha forças para suportar também o dela. Peterkin morrera e Simon não conseguia imaginar um futuro sem o filho. Sem um herdeiro.

Ali perto, Baldwin obrigava a mente a concentrar-se na busca. Não havia muitas probabilidades, pensou, de que o ladrão tivesse seguido por aquele caminho. Mesmo assim, tinha de cobrir todas as opções. Se o rapaz fosse um local, de Thorverton, então não tinha motivos para se dirigir na direcção das charnecas. Se tivesse algum bom senso seguiria para leste, para Exeter, onde se poderia esconder. Havia aí ourives que, se o preço fosse bom, fariam muito poucas perguntas a respeito da proveniência da prata. O cavaleiro contraiu os lábios. Sim, se se pusesse a adivinhar diria que o rapaz tinha ido para esse lado.

Todavia, Baldwin mantinha um olho em Simon enquanto cavalgavam. O cavaleiro não era capaz de compreender por que motivo Simon não ficara com a mulher. Era algo que não estava de acordo com o seu carácter - tal como a frieza que demonstrara para com ela anteriormente -, e tornava-se incompreensível. O próprio Baldwin também já sofrera perdas pessoais. De acordo com a sua experiência, isso deixava-o sempre mais dependente dos amigos e não menos, pelo que o aparente afastamento entre Simon e a mulher era ainda mais intrigante. Baldwin decidiu que tinha de permanecer perto do amigo se por acaso se envolvessem nalguma luta. Verificou que Baldwin se esquecera da espada, quer pela urgência do chamamento ou por distracção, e que só usava a velha faca de cabo de osso. Os outros membros do grupo iam melhor preparados. Roger de Grosse juntara-se-lhes num baio cheio de vivacidade e levava uma espada a seu lado. O reitor parecia corado e excitado, e Baldwin ficou divertido ao ver um tão grande entusiasmo guerreiro no rosto de um homem que dedicava a sua vida a Deus, embora pudesse compreender os motivos. Outrora ouvira alguém dizer que entre todas as presas, a mais interessante de perseguir era outro homem.

Chegaram a um ribeiro que jazia imóvel e com um aspecto estranhamente sólido, como se fosse uma fita de metal polido sob o brilhante Sol do meio-dia. Os cascos dos cavalos agitaram-no, criaram uma espuma luminosa e Baldwin pensou que destruir aquelas águas pacíficas era uma espécie de vandalismo, como se fossem cavaleiros lançados numa chevauché e deixassem o caos atrás deles. A sensação provocou-lhe um sentimento de desastre iminente, como se a destruição casual de uma tal beleza e paz viesse a lançar sobre eles uma qualquer maldição. Irritado, esforçou-se por se libertar da má disposição sombria. Era a Simon quem cabia ser supersticioso e não a ele. Não iria tolerar mais daquelas premonições estúpidas.

A pouca distância do ribeiro havia outra estrada para oeste e foi ali que Baldwin dividiu as suas forças, grato pela necessidade de acção e de pensar noutras coisas. Enviou cinco homens para leste enquanto ele próprio prosseguia para sul, mantendo Simon a seu lado.

As árvores acotovelavam-se em torno da estrada como um exército de soldados desconfiados e Baldwin descobriu-se a olhar para os grossos troncos com agitação. Nas anteriores caçadas ao homem, ele e Simon tinham podido utilizar caçadores muito hábeis no seguimento de rastos e o facto de se terem lançado à estrada sem mais nem menos levou-o compreender até que ponto dependera deles. Podiam existir ali milhares de sinais, mesmo agora, nas sombras, que os caçadores de lobos e raposas seriam capazes de distinguir para o aconselhar. Olhou para trás. Os onze membros do grupo faziam tanto barulho que um homem a pé deveria conseguir ouvi-los a léguas de distância. Precisaria de apenas alguns segundos para se esconder no meio das árvores. Soltou um grunhido quando se apercebeu da futilidade daquele exercício. Quer o homem se encontrasse naquela estrada ou não, não tinham qualquer hipótese de o descobrir. Seria preciso um milagre.

Ia levantar a mão para deter o grupo quando ouviu um grito na sua frente. Franziu a testa enquanto procurava penetrar na escuridão das sombras, esporeou o cavalo e acelerou o passo. A estrada descrevia uma curva para a esquerda e descia suavemente a vertente de uma pequena elevação. Descreveram a curva e Baldwin avistou três figuras sombrias, uma das quais jazia inconsciente no solo enquanto as outras duas se mantinham de pé a seu lado, a curta distância da beira da estrada. Abrandou o passo automaticamente e apalpou o punho da espada. Tinha consciência da presença de Edgar a seu lado. Ia berrar uma interpelação quando um dos homens deu um passo em frente.

- Graças a Deus, estão aqui! Apanhámo-lo!

Baldwin viu dois olhos receosos a fitarem-no, cravados num rosto de fuinha.

- Senhor, apanhámos um ladrão. Este homem roubou a prata de Sir Hector.

- Quem são vocês?

O outro homem avançou e Baldwin pensou que se tratava de uma pessoa forte e com um ar confiante.

- Sou Henry, o Barreira. Senhor. Este aqui é o meu amigo John Smithson e pertencemos à tropa de Sir Hector.

- E quem é esse? - perguntou, apontando.

- O Philip Cole, ou pelo menos é o que afirma, mas não tenho a certeza de ser o seu nome verdadeiro. Juntou-se a nós apenas anteontem... e agora roubou a prata do nosso amo! Olhe! Encontrámos isto nele. - O homem mostrou duas salvas e uma pequena bolsa de couro.

Baldwin pegou nas salvas de prata e sopesou-as nas mãos, pensativo.

- Por que foi que o seguiram? Sabiam que a prata do vosso amo tinha desaparecido?

- Não, senhor, mas demos com ele a caminhar pela rua com um ar muito furtivo e pensámos que era melhor segui-lo para ver o que andava a fazer. A seguir vimo-lo a examinar uma salva de prata e pensei reconhecê-la como sendo do nosso amo.

O rosto de Henry era honesto e com um olhar franco. O cavaleiro acenou encorajadoramente.

- Chamámo-lo mas começou a fugir e só o apanhámos aqui. Tivemos de o derrubar para que deixasse de se debater. - Soltou um longo suspiro fatigado. - Começávamos a perguntar a nós mesmo como iríamos voltar para a cidade, porque não temos nenhum cavalo.

- Fizeram bem. Estou certo de que o vosso amo vos irá recompensar - disse Baldwin enquanto olhava para o corpo imóvel. O homem teria de ser julgado e seria Baldwin quem o iria acusar no tribunal. No entanto, havia algo que não batia certo no que se referia ao prato roubado...

 

Em Crediton entregaram o prisioneiro na cadeia, para grande desagrado de Tanner, o guarda. Edgar, que o conhecia, exibiu um sorriso malicioso e explicou que Tanner era amigo de uma certa viúva com quem se encontrava regularmente, e aquela era uma das noites em que a mulher aguardava a sua visita.

O regresso tinha sido lento por causa dos dois homens de armas a pé. O corpo do ladrão fora amarrado e atirado para cima do cavalo de outro mercenário, que passara a conduzir a montada a pé. À chegada a Crediton já o prisioneiro se encontrava acordado e começara a gritar e a queixar-se, para logo mergulhar num silêncio horrorizado quando lhe explicaram quem o tinha capturado e porquê. O prisioneiro tinha os olhos raiados de sangue, que se agitavam de um lado para o outro como se lhe fosse difícil concentrar-se. Sir Baldwin sabia que uma violenta pancada na cabeça de um homem podia afectar-lhe a mente e teve a certeza de que seria mais útil interrogá-lo na manhã seguinte.

Os dois homens que tinham capturado Cole mostraram-se muito infelizes a esse respeito. Um deles, o soldado com rosto de fuinha, afinnou:

- O nosso amo vai querer falar com ele. Baldwin reagiu com um curto aceno de cabeça.

- Sir Hector pode querer interrogar o Cole mas terá de esperar. Este homem irá ser investigado, Se concluirmos que foi ele o ladrão, então o vosso amo irá verificar que a nossa vingança é muito rápida.

A resposta não os satisfez. Os olhares dos dois homens indicavam que a culpa do cativo era mais do que evidente, tendo em conta a sua decisão de se pôr em fuga e por ter sido encontrado com alguns dos artigos roubados. Cederam de má vontade apenas quando compreenderam que Baldwin não se deixaria demover. Hugh e Edgar foram enviados de volta a Peter Clifford com os cavalos enquanto Baldwin e Simon se dirigiam à estalagem depois de darem instruções a Tanner para manter o prisioneiro na cadeia sem nenhuma espécie de visitas. Passara pela cabeça do cavaleiro a ideia de que alguém entre os seguidores de Sir Hector poderia lembrar-se de punir o ladrão para ganhar os favores do amo.

Baldwin retirara a prata roubada aos dois homens e estudou as salvas com interesse logo que teve uma oportunidade. Fê-lo sob luz de uma gotejante vela do salão, na companhia de Simon. As salvas eram indiscutivelmente da melhor qualidade, profundas e pesadas, adornadas com folhas e com uma cena de caça. Eram ambas muito belas e valiosas. Revirou-as nas mãos, uma e outra vez, distraído. Quando o chamaram, voltou a si com um sobressalto. Chegara um mensageiro para os conduzir até junto de Sir Hector.

Baldwin atravessou o salão e ficou chocado ao verificar até que ponto se encontrava deserto. Era estranho ver que aquele espaço, em geral agitado e ruidoso, se encontrava vazio. A maior parte dos homens de Sir Hector ainda se encontrava envolta nas buscas e era improvável que regressassem antes da manhã. Deveriam querer certificar-se de que não havia sinais da presa antes de se arriscarem a sofrer a ira do amo e era impossível enviar-lhes mensageiro para os mandar regressar, uma vez que se encontravam espalhados por demasiadas estradas.

O fumo pairava junto aos barrotes do telhado e o cheiro a cerveja podre permeava toda a atmosfera. A estalagem fedia aos homens de armas do bando de mercenários, aos seus corpos por lavar, a urina e suor, Havia um par de cães a foçar como suínos no meio das palhas que cobriam o chão, em busca de ossos e de restos. Uma das servas atirou-lhes uma crosta e ficou a vê-los, rindo-se, a lutarem por ela. Para Baldwin, naquele momento, a prisão fria e húmida era mais convidativa do que a estalagem.

Atravessaram uma porta escondida por trás de uma tapeçaria, na parede dos fundos. Havia ali um compartimento com aberturas para várias câmaras, e Baldwin e Simon foram conduzidos àquela que Sir Hector tomara para si. O capitão estava só na sua câmara.

- Então, Sir Baldwin? Para começar, nem sequer precisava da sua ajuda, não é verdade?

Sir Hector olhou o cavaleiro e o almoxarife com um sorriso sardónico e pensou, com amargura, que se se tivesse aproveitado da confusão inicial mais rapidamente poderia ter tido o ladrão de volta e castigado sem atrair as indesejáveis atenções do Guardião da Paz do Rei. Ainda se sentia exasperado com o facto do homem ter aparecido para tomar conta das coisas, e era-lhe especialmente irritante que se encontrasse precisamente no grupo que descobrira o John e o Henry com o cativo. Qualquer das outras equipas teria levado Cole directamente a Sir Hector para um castigo imediato, mas aquele cavaleiro local, que parecia pouco mais do que um modesto mercador com a sua túnica velha e as botas gastas, estava demasiado interessado em defender o seu próprio poder na pequena e patética cidade. Seria por querer extorquir dinheiro a Cole para subornar os jurados aquando do julgamento? Eram coisas que já se tinham verificado muitas vezes, pensou Sir Hector com desprezo.

- Tem aqui boas salvas, Sir Hector - respondeu Baldwin num tom educado, ignorando a sugestão trocista.

- Não guardo peças de má qualidade.

- São inglesas?

- Não, ganhei-as na Gasconha.

Baldwin acenou para si mesmo. Sabia que "ganhei-as" queria dizer "roubei-as". Para um homem como Sir Hector deviam existir muitas oportunidades para enriquecimento. Poucos eram os que iam para a guerra por divertimento. Alguém como Sir Hector via-a como um negócio com uma rentabilidade única que lhe podia oferecer excelentes oportunidades em troca de riscos a curto prazo, e com potencial - desde que o capitão fosse suficientemente ousado -, para recompensas sem par. Gente daquela, por vezes, chegava ao extremo de derrubar um governante e de lhe roubar todo o seu reino. Incidentes dessa natureza não ocorriam muito frequentemente, mas fora o que acontecera com a Grande Companhia Catalã, que se virara contra o amo que lhes pagava em 1311 e instalara o seu próprio ducado em Atenas. Os trabalhadores e camponeses pobres que se encontravam no exército descobriram-se na posse de riquezas que anteriormente nem sequer tinham sido capazes de conceber. Baldwin sabia que os catalãos ainda governavam a cidade e que era provável que continuassem a fazê-lo durante algum tempo. Tinham as armas, o poder e a vontade de se servir de ambos para conservarem o que haviam conquistado. Seria preciso um exército muito forte para os desalojar... e não havia nenhum que estivesse preparado para o tentar.

- Isto foi tudo o que lhe tiraram?

Sir Hector abanou a cabeça, num gesto curto e irritado.

- Não, claro que não! - retorquiu. - O patife levou quase toda a prata da minha arca!

- No entanto, estas duas salvas foram a única coisa que encontraram nele... - murmurou Baldwin, estudando o seu reflexo distorcido na superfície do prato. - Pergunto a mim mesmo onde se terá visto livre do resto...?

- Em breve no-lo dirá, quer queira, quer não. O cavaleiro lançou uma olhadela ao capitão.

- Talvez... - afirmou, num som suave. - Suponho que não há a possibilidade de o senhor se ter enganado? A prata foi-lhe mesmo roubada?

- Veja por si mesmo. - O capitão agitou a mão, com altivez, para indicar o quarto. Baldwin teve de admitir que havia muito poucas probabilidades de a prata se encontrar escondida no quarto. A câmara de tecto baixo tinha muito poucas peças de mobiliário, para além da enxerga. Viam-se algumas pesadas arcas no chão junto à janela, com uma cadeira entre elas e um aparador na parede oposta. O chão era de terra batida e qualquer escavação tornar-se-ia imediatamente óbvia. Não, a prata tivera de ser removida.

Alguns dos tesouros do capitão ainda se encontravam na parte superior do aparador, pousados sobre uma grande peça de pano que fazia com que o jarro, um par de canecas e um saleiro parecessem solitários quando comparados com o espaço vazio à sua volta.

O saleiro atraiu a tenção de Baldwin. Era uma grande caixa de prata com a forma de uma igreja sem telhado, e as suas quatro paredes ocultavam a taça de vidro que continha o precioso mineral. Tinha uma torre numa extremidade, bem como portas e janelas definidas de um modo cuidadoso e elaborado. Foi a visão daquele objecto que fez com que Baldwin perdesse os últimos vestígios de simpatia pelo homem. Uma tal peça só podia ter sido feita para um qualquer sacerdote importante, ou para o patrono de uma ordem religiosa. Nenhum outro estaria disposto a pagar um artigo tão dispendioso. Por que razão o ladrão não o levara juntamente com o resto?

- Toda a parte de cima do aparador estava coberta com a minha prata. Pratos, salvas, taças, colheres... tudo de primeira qualidade. O ladrão levou tudo.

- Não estará nas prateleiras? - Baldwin levantou um canto do pano e espreitou para baixo dele. As prateleiras inferiores encontravam-se vazias.

- Satisfeito?

- De modo nenhum. A sua prata enchia uma daquelas arcas?

- Sim, aquela.

Sir Hector apontou e Baldwin acenou lentamente. A arca tinha uns noventa centímetros de comprimento e mais de sessenta centímetros de largura e profundidade.

- Suponho que todo o pessoal aqui da estalagem estava a par da sua existência?

- Acha que sou estúpido? - rugiu Sir Hector. - Ninguém da estalagem tinha autorização para entrar aqui e certifiquei-me de que os homens estavam sempre lá fora, no salão, para impedirem a entrada fosse a quem fosse.

- Compreendo. Diga-me, quando foi que se apercebeu do desaparecimento da prata?

Sir Hector estava a ficar rapidamente exasperado com as constantes perguntas do cavaleiro.

- Que interesse tem isso?

- Provavelmente nenhum, mas gostaria de saber.

- Esta noite, depois de ter ido comer qualquer coisa. Em geral como mais tarde, com os meus homens, mas hoje preferi jantar mais cedo.

- Ah, e tinha o saleiro consigo quando foi comer?

- Onde queria que o tivesse? Claro que o tinha na minha mesa. Depois, mais tarde, quando voltei para o meu quarto, descobri que a prata tinha desaparecido - acrescentou, num tom amargo. - Para além disso, o homem que quer proteger contra mim também tinha desaparecido.

- Como o soube?

- Perguntei se faltava alguém e descobrimos que o Cole desaparecera - retorquiu o capitão, que prosseguiu com um sarcasmo pesado: - Suponho que fiz mal em assumir imediatamente que podia ser ele o culpado... mas o facto de ter sido encontrado com a prata leva-me a crer que as minhas desconfianças tinham razão de ser.

Baldwin ignorou o comentário e pousou sobre o pano as duas salvas encontradas na posse de Cole.

- Faltava mais alguém?

- Sim. Os dois que o seguiram, Henry, o Barreira e John Smithson, mas são membros muito antigos da minha tropa. Não se atreveriam a fazer-me uma coisa destas.

- Estou a ver...

Simon levantou os olhos. Estivera preocupado, a pensar novamente em Margaret, mas houve qualquer coisa nas maneiras de Baldwin que lhe chamou a atenção. O cavaleiro mantinha-se com as costas viradas para SírHector, que continuava sentado na cadeira e o mirava com uma careta. Simon via que Baldwin sorria para si mesmo com uma espécie de divertimento de quem está fatigado das coisas do mundo. A seguir virou-se e espreitou SirHector com uma súbita dureza.

- Onde esteve antes da refeição?

- O que é isto?! O rapaz foi encontrado com a minha prata! Para que servem todas estas questões, senhor cavaleiro? -cuspiu Sir Hector, mas Baldwin continuou a fitá-lo, imperturbável.

- As questões, tal como tão elegantemente disse, servem para isto: está a pedir-me para acreditar que um único homem podia ter retirado toda a prata deste quarto sozinho, sem um cavalo ou a ajuda de outro, quando já ouvi dizer que eram precisos três homens para transportarem a arca quando se encontrava cheia? É uma história difícil de engolir. Ou as peças foram removidas uma a uma ao longo de algum tempo, ou o ladrão teve um cúmplice. Se o fez ao longo de um certo período... seria útil saber quanto tempo teve para o fazer.

- Ah...

- E isso significa que preciso de saber durante quanto tempo esteve este quarto sem ninguém antes de constatar a sua perda.

- Não interessa. Nós... O senhor já o tem. Interrogue-o... e o rapaz poderá fornecer respostas para todas as suas perguntas. - O azedume regressara à voz do capitão. Levantou-se, dando a entrevista como terminada. O cavaleiro e o amigo já não eram bem-vindos.

- Vou perguntar-lhe, é claro. - Baldwin esboçou um sorriso sem a mínima sugestão de calor. - Se as perguntas nos levarem a descobrir algo de interessante, então informá-lo-ei, tal como é natural. - Acenou para Simon e encaminhou-se para a porta.

Os homens começavam a regressar. Os menos interessados na busca tinham decidido muito rapidamente voltar para trás e o salão ressoava com as suas gargalhadas e pragas. Simon reparou numa mesa que se tornou silenciosa quando ele e Sir Baldwin saíram de trás da tapeçaria e atravessaram o pavimento, e pensou ter reconhecido os dois que tinham apanhado Cole, que se encontravam entre o grupo.

Baldwin também os vira. Estavam a ser festejados como os heróis do momento e sem dúvida que a história da captura era narrada uma e outra vez, com muitos embelezamentos, a uma audiência apreciadora. Num impulso repentino, o cavaleiro chamou uma das serviçais e pediu cerveja.

- O teu patrão está aqui? O dono desta estalagem é o Paul, não é? A rapariga lançou-lhe um sorriso brilhante. Cristine era uma mulher alegre, de seios grandes, com quase trinta anos de idade mas notavelmente poupada pela sua vida de serva e de companheira dos viajantes de passagem por Crediton. Afastou uma madeixa de cabelos soltos da testa, acenou e desapareceu na despensa. Regressou pouco depois com Paul e encaminhou-o para a mesa antes de se ir embora para encher mais jarros.

O estalajadeiro arvorara um rosto preocupado. Tivera um dia que, muito simplesmente, fora terrível. A dor de cabeça com que a mulher acordara não aliviara quando os hóspedes se tinham levantado para começarem a exigir cerveja e comida, e Paul sentira-se a ir-se rapidamente abaixo antes do meio-dia, exausto pela falta de sono e por todo aquele esforço pouco habitual. A mulher desaparecera ao princípio da tarde, dizendo-lhe que estava farta e que não poderia prosseguir sem descansar, mas Paul vira-se obrigado a continuar e alistar a ajuda de Nell e Cristine. Quanto a Sarra, ou saíra ou recusava-se a responder às batidas na porta.

Esperara que Sarra se dispusesse ajudar quando soubesse até que ponto Margaret se encontrava exausta, mas a tensão de ter de servir tanta gente em breve o levara a esquecê-la. Ocasionalmente, enquanto esperava que a cerveja escorresse do barril e enchesse um jarro, recordava-se de a amaldiçoar, mas na maior parte do tempo andava demasiado atarefado.

Brindou o cavaleiro com o seu sorriso mais servil.

- Senhor, queria falar comigo?

- Estalajadeiro, estás com um aspecto horrível! - Baldwin lançou-lhe uma breve careta de simpatia e compreensão. - Estes hóspedes estão a obrigar-te a trabalhar demasiado?

- Sim, senhor - respondeu Paul, aceitando com gratidão o convite do cavaleiro para que se sentasse. Verificou rapidamente se não havia nenhum cliente a queixar-se e observou as duas serviçais por instantes. - Contudo, finalmente, temos a estalagem cheia.

- Estiveste aqui todo o dia a servir aqueles homens?

- Oh, sim... e só agora tive uma oportunidade para me sentar. Nem sequer almocei. Tem sido uma confusão. Para além disso, na noite passada quase não consegui dormir.

- E os homens ficaram aqui todo o dia?

- Sim quase todos... e não permitiram que eu e as raparigas parássemos por um instante!

- Suponho que não tiveste tempo para reparar se houve alguém que tivesse saído da estalagem em qualquer altura? Ou terá entrado algum estranho...?

Os olhos de Paul fixaram-se no rosto do cavaleiro.

- Quer saber se vi quem entrou e roubou a prata de Sir Hector? Não, não vi.

- Há alguma outra entrada que dê acesso ao quarto dele, para além daquela porta? - inquiriu Baldwin, agitando a cabeça na direcção da tapeçaria.

O estalajadeiro encolheu os ombros.

- Há janelas em todos os quartos, mas ninguém conseguiria entrar por uma delas. São mantidas com as portadas fechadas durante o dia, por ordem de Sir Hector, que não se preocupa com o calor. Suponho que a ordem do cavaleiro se justificava, tendo em conta o que aconteceu...

- E têm grades?

- Sim, senhor, todas elas.

- As janelas abrem para a rua?

- Na sua maioria. Algumas, como a do quarto dele, estão viradas para o pátio e para os estábulos.

- Nenhuma, segundo me parece, abre para outra rua ou passagem?

- Não, a outra parte do edifício foi vendida há alguns anos, antes de eu vir para aqui. Agora pertence ao açougueiro, o Adam.

- Nesse caso, alguém teria de abrir as portadas e passar a prata para a frente ou para as traseiras da casa... ou então necessitaria de passar pelo salão...

- Sim, senhor, mas seria precisa muita coragem para passar pelo salão.

- Então porquê?

- Porque alguns dos mercenários estiveram aqui todo o dia. Seria difícil passar por eles e todos sabem que Sir Hector não deu autorização para que alguém entrasse no quarto desde que aqui chegou. Só me deixou entrar uma vez, logo depois da sua chegada, quando fui saber se estava bem instalado.

Baldwin coçou a orelha.

- Podia alguém ter passado algum tempo junto à janela dele sem ser visto? - perguntou, mais ou menos ao acaso.

- O quê? No pátio? Não! - A resposta de Paul foi definitiva. - Isso não é possível. O pátio é usado durante todo o dia e há sempre pessoas a andar para um lado e para o outro, mesmo durante a noite. As raparigas têm quartos por cima dos estábulos e passam por aquelas janelas regularmente quando vão à casa de pasto buscar empadas e outras coisas.

- Não preparas a comida aqui?

- Parte dela, mas não toda. Já é suficientemente difícil tentar fermentar cerveja para toda a gente. Aqui só fazemos uns assados, uns guisados ou uma sopa para os hóspedes, mas quando as coisas estão assim...

- fez um gesto de desespero para o salão que se enchia rapidamente - temos de ir lá fora buscar mais comida. Não há outra solução.

Baldwin acenou e inquiriu:

- Portanto, teriam de passar por aquela janela durante o dia?

- Sim... e alguém daria por isso se lá estivesse um homem sem fazer nada.

- Não era nisso que estava a pensar - murmurou Baldwin.

- Como?

- Viste a prata de Sir Hector?

- Sim. Enchia toda a parte de cima do aparador e um par de prateleiras inferiores.

- Como foi possível que um só homem carregasse tanta coisa? Não seria uma tarefa fácil mesmo que tivesse um ajudante no pátio, pois não?

- Estou a ver onde quer chegar. Precisaria de ter um par de amigos lá fora... e uma carroça, ou algo do género. - Paul olhou em volta. Uma das serviçais andava por perto e reparou no olhar do amo. Acabou de encher uma caneca de cerveja, deu uma palmada na mão que tentava levantar-lhe as saias e juntou-se-lhes.

Simon lançou-lhe uma olhadela amarga, suspirou e esfregou as têmporas. Baldwin queria continuar a interrogar o estalajadeiro e sentia-se obrigado a permanecer junto do amigo, mas de certeza que aquela infindável série de perguntas era irrelevante. O rapaz fora apanhado com alguma da prata roubada e era um recruta recente e desconhecido que se juntara ao bando, para com quem não tinha nenhum compromisso ou lealdade. Era fácil de ver que devia ter cometido o roubo e no dia seguinte começariam a interrogá-lo a respeito do cúmplice. Cole responderia ou seria punido. Não vale a pena estar a perder tempo aqui, pensou Simon, tão irascível que teve de conter algumas palavras bem escolhidas.

Cristine olhou-os, com as faces a fazerem covinhas. Era sua obrigação mostrar-se calma e feliz, para fazer com que os homens se descontraíssem e esquecessem as preocupações, e era boa nesse seu trabalho. Verificou que o cavaleiro se agitava na cadeira, incomodado sob o seu olhar, e concentrou-se nele. Parece tímido, pensou... e muito agradável.

Baldwin tossiu um pouco.

- Cristine, estamos a tentar descobrir como foi que a prata desaparecida pôde ser removida do quarto de Sir Hector, porque muitos dos seus homens estiveram aqui todo o dia e ninguém a podia ter transportado pelo salão sem ser visto. Pensamos que alguém a fez sair pela janela que dá para o pátio.

Simon pigarreou e afirmou, num tom resmungão.

- Há mais janelas daquele lado do edifício, Baldwin.

- Pois há, Simon. - Baldwin lançou-lhe uma mirada rápida. Naquele dia o amigo não estava a ser tão astuto como de costume, mas era preciso ter em conta a sua disposição. - Contudo, dão todas para a rua e de certeza que alguém repararia num homem a passar coisas por uma janela. É por isso que penso que a prata saiu pelo pátio. E tu, Cristine, que achas?

A serva fitou-o durante muito tempo. Cristine não era estúpida e estava a pensar rapidamente embora mantivesse o sorriso vazio e feliz estampado no rosto.

- Fazia sentido. Tal como disse, ninguém poderia ter transportado a prata através do salão, no meio de todos os homens que aqui estavam.

Simon serviu-se de um pouco de cerveja do jarro de Cristine.

- Por que razão não podia esse tal Cole trazê-la toda por aqui? - protestou. - Os homens podiam nem sequer dar por isso se a trouxesse escondida... e no fim de contas era um deles.

- Simon, pensa na quantidade de prata de que estamos a falar - retorquiu Baldwin com um certo grau de aspereza. - Teria de a transportar peça a peça. Lembra-te do tamanho das salvas que encontrámos. Só poderia carregar muito poucas de cada vez sem ficar demasiado pesado. E o tilintar do metal? Teria necessidade de cinco, dez ou talvez mais viagens para a levar toda. Foram precisos três homens para transportarem a arca para o quarto... e o peso não era da arca propriamente dita mas sim da prata que lá estava dentro. Como explicaria ele tantas deslocações até ao quarto do amo? Não, recuso-me a creditar que o tenha feito desse modo.

- Há mais uma coisa, senhor - interveio Cristine. Baldwin fez-lhe um aceno e a mulher prosseguiu: - Esse rapaz, o Cole, era novo no grupo... e os quartos serviam apenas a Sir Hector e aos seus homens mais chegados. Bastava que o Cole lá entrasse uma única vez para lhe perguntarem o que andava a fazer. Não me parece que aqueles soldados tenham espíritos confiantes.

- Bem-visto, Cristine. Por isso, volto à minha ideia inicial. Reparaste em alguém lá fora, à espera no exterior do quarto de Sir Hector ao longo do dia? Talvez um homem com um cavalo? Ou com uma carroça?

- Não, senhor - respondeu a serva, abrindo muito os olhos. - Passei por lá muitas vezes e nunca vi ninguém. Já o teria dito, se o tivesse visto.

- Estás a ver? - murmurou Simon, mas o amigo ignorou-o.

- Os outros quartos por trás do salão têm janelas viradas para a frente, não é verdade? Cristine, seria de admirar se vissem alguém à espera na rua, com uma carroça?

- Claro... e dir-lhe-iam imediatamente para se pôr a andar. A rua não é muito larga, pois não? Se alguém se demorasse por ali seriam muitos os que lhe diriam para se ir embora.

Baldwin preparava-se para mais uma pergunta quando se ouviu toda uma série de gritos ásperos. Virou-se e viu o capitão a emergir do seu quarto, a berrar.

- Que terá acontecido agora? - gemeu Paul.

- Baldwin, vamos embora... - murmurou Simon, endireitando-se com dificuldade. - Está na hora de voltarmos para junto do Peter...

- Sir Baldwin! - Sir Hector apontava para eles... e Paul, o estalajadeiro, viu a sua anterior premonição de mau agoiro a regressar com toda a força ante a visão do rosto pálido do homem. - Sir Baldwin, venha cá! Houve um assassínio!

 

Movimentaram-se com rapidez e passaram por baixo da tapeçaria, para a antecâmara nas traseiras do salão. Os quartos existentes de cada lado formavam um conjunto para hóspedes ricos, onde podiam descontrair-se em privado, isolados do barulho dos outros clientes da estalagem. Para a direita ficava o quarto de SírHector e do lado esquerdo existiam pequenas divisões de armazenamento. Foi para uma delas que o capitão os conduziu. Havia um servo de rosto branco à espera deles, com três velas fumegantes numa das mãos.

- Vim à procura de algumas roupas, senhor... - explicou, para Baldwin. - O meu amo pediu-me para lhe vir buscar uma camisa lavada. Quando abri a arca... havia uma capa por cima, a tapar esta serviçal! - Levantou a tampa da arca com a mão trémula e Baldwin descobriu-se a olhar para o rasto imóvel e tranquilamente belo de Sarra.

Simon sentiu falta de ar, virou-se e cambaleou para a janela. O que o incomodara não foi a visão da morte - já estava demasiado habituado a ela -, mas o rosto oval com um nariz direito, rodeado por uma massa de cabelos louros, que à primeira vista lhe pareceu ser o da mulher. Os olhos davam a sensação de estarem a olhar directamente para ele, como se o censurassem pelo seu comportamento.

Baldwin ignorou-o, estudou a arca e anotou os pormenores de uma maneira desapaixonada. Começou por observar a disposição geral daquela divisão antes de se concentrar no corpo à sua frente.

O armazém era um compartimento de tecto baixo que cheirava a humidade, com uma pequena janela para a rua. Era mal iluminado pelas velas empunhadas pelo servo, um homem trigueiro e de aspecto suspeito, com feições quadradas e uma barba grisalha. Tinha sido ali colocado um certo número de arcas que continham as posses menos valiosas de Sir Hector. Muitas delas encontravam-se abertas. Baldwin viu roupas, algumas peças de armadura, virotes para bestas, odres para vinho, selas, um elmo... o tipo de objectos que se acumulam em volta de um guerreiro depois de muitos anos de viagens.

A arca era grande. Tinha pelo menos noventa centímetros de altura por um metro e vinte de comprimento. Era feita de madeira reforçada com aros de ferro e continha as roupas do capitão. Baldwin inclinou-se para a frente para lhe estudar o interior enquanto Simon voltava a grunhir ante a visão do corpo no seu interior.

Sarra jazia contorcida, com os braços escondidos por baixo dela. Tinha os joelhos dobrados e virados para um lado de modo a permitir que a tampa se fechasse. A sua posição era a de uma jovem rapariga a dormir uma sesta, mas tinha tanta vida como uma boneca de trapos. Havia uma tira de pano verde a passar, muito apertada, desde a boca até à nuca, o que fazia com que as faces parecessem cavernosas. Baldwin apalpou-lhe a testa mas não sentiu qualquer calor, Já se encontrava morta havia algum tempo. Os seios mantinham-se imóveis, sem quaisquer movimentos de respiração, e o cavaleiro soltou um suspiro. Mais uma jovem vida desperdiçada. Sentiu uma rápida vaga de ira, puxou pela adaga, cortou a mordaça e puxou-a. Havia mais trapos no interior da boca e removeu-lhos com cuidado. Quem quer que fosse que desejara silenciá-la fizera um bom trabalho.

Estava vestida com uma túnica azul-clara, bordada com pequenas flores. Tocou-lhe, sentiu que se tratava de um tecido dispendioso e anotou o facto com uma sobrancelha levantada. Em geral, uma serva não podia dar-se ao luxo de possuir um tecido daqueles. A cabeça repousava sobre uma bela peça de tecido dourado que Baldwin pensou poder ser gaze, a que se tinha misturado os cabelos da jovem. Parecia ter acabado de acordar de um sono profundo, com os olhos recentemente abertos, e o cavaleiro quase esperou vê-la sorrir para dar as boas-vindas aos visitantes.

- Ajudem-me a tirá-la daqui - pediu, e escutou a dureza da sua própria voz. Uma coisa era descobrir o corpo de um homem, porque os homens nasciam para lutar e morrer, e outra muito diferente era deparar com o corpo de uma jovem e bela rapariga. O servo ajudou-o, agarrando-a pelos joelhos e levantando-a enquanto Baldwin a puxava pelos ombros. Pousaram Sarra ao lado da arca e Simon verificou que as mãos tinham sido amarradas com outra corda feita do mesmo material da mordaça.

- Ah, então foi assim que ela morreu... - murmurou Baldwin.

- Como? - perguntou Simon, com a curiosidade a sobrepor-se ao melindre. Espreitou por cima do ombro do cavaleiro e viu as manchas nas roupas que se encontravam na arca. - Foi apunhalada?

- Sim... e com força. Repara que a lâmina a atravessou e danificou as roupas que se encontravam por baixo. Já se encontrava dentro da arca quando a mataram.

- Mas por que a terão morto? - perguntou Simon com um estremecimento.

Baldwin olhou-o de esguelha.

- Porquê? Imagino que foi porque viu alguém. Testemunhou o roubo e teve de ser silenciada. Contudo, o que eu gostaria de saber qual o motivo que levou o assassino a amordaçá-la e a amarrá-la. Será que não tinha intenções de a matar... e houve alguma coisa que o fez mudar de ideias? Bom, não interessa, foi apunhalada e deixada a morrer, sozinha, na escuridão. - Rolou o corpo com cuidado. - Baixem essas velas. Ah, sim. Um ferimento de faca no alto do peito, no lado esquerdo... - o cavaleiro contraiu os lábios - e outro aqui, um pouco mais abaixo, logo por cima do seio. Os pontos por onde saíram, nas costas, indicam que os golpes foram desferidos em ângulo... - Estudou as roupas com cuidado sob a luz inadequada, tentando tirar algum sentido das marcas. Um ou dois minutos depois endireitou-se e soltou um suspiro. - Preciso de ver isto com mais atenção, à luz do dia. Aqui dentro não se consegue ver nada.

- Pobre rapariga! - Sir Hector encontrava-se de pé junto de Baldwin e olhava para baixo, para o corpo de Sarra. O capitão usava os calções e as botas, tinha o tronco nu mas continuava com a espada à cintura. Baldwin pressupôs correctamente que o homem raramente dava um passo sem ela. O seu torso era tão branco como um pedaço de ganso bem gordo, o que lhe dava um aspecto estranhamente jovem, mas com muitas zonas cobertas de tecido cicatricial num lívido tom rosado, testemunho da sua carreira como soldado.

- Conhecia-a? - perguntou Baldwin com frieza.

- Era uma serviçal daqui, chamada Sarra.

- Já a tinha visto hoje?

- Não que eu desse por isso.

- Quando entrou neste compartimento pela última vez?

Sir Hector olhou em volta, para o pequeno armazém, com uma expressão de desagrado.

- Não tenho o hábito de entrar em sítios como este. Verifiquei se as minhas arcas eram deixadas aqui ontem, quando chegámos, e nunca mais cá voltei.

Baldwin virou-se para o servo.

- Esteve aqui alguém ao longo do dia de hoje?

- Eu, senhor, hoje de manhã, quando o meu amo me pediu uma túnica antes de sair... e ela ainda cá não estava. Teria dado por isso se estivesse e pediria ajuda imediatamente!

- Se nessa altura ainda não estava aqui, deve ter sido morta à tarde...

- O Cole pode tê-lo feito quando me roubou. - Os olhos de Sir Hector estavam postos no cadáver mas não havia engano quanto à sua ira.

- Talvez... - murmurou Baldwin, meditativo - embora me pareça estranho...

- Senhor, eu não a matei! Tem de acreditar...

Baldwin levantou uma das mãos para tranquilizar o servo que começava a entrar em pânico.

- Não te preocupes, só estou a tentar saber quem teria sido a última pessoa a entrar neste armazém. Disseste que vieste aqui de manhã? - O homem acenou, mas o medo nos seus olhos escuros e desconfiados não diminuiu. - De manhã cedo... ou mais tarde?

- Foi de manhã cedo - interrompeu-o Sir Hector. - Logo que me levantei.

- Podia ter entrado aqui mais alguém? Se assim foi, essa pessoa poderia ter sido vista? - Perguntou Baldwin, com os olhos sempre postos no servo.

- Há muita gente que podia ter entrado, mas... - começou Sir Hector, num tom pesado.

- Sir Hector, permite que todos os seus homens tenham acesso à sua câmara privada? - inquiriu Baldwin com frieza, acicatado pela interrupção do interrogatório.

- Não. - O capitão hesitou. - Não, mas alguns dos homens em quem mais confio podem fazê-lo sempre que quiserem.

- Tais como?

- Servos, os meus sargentos.,, algumas pessoas... - respondeu SirHector com um tom reticente.

- E quem são esses servos e sargentos? - insistiu Baldwin, num tom suave.

Simon afastou-se para junto da arca enquanto Sir Hector, irritado, enumerava os homens da sua guarda privada, aqueles em quem depunha mais confiança, a começar por Henry, o Barreiras e John Smithson.

Pela primeira vez, o almoxarife começava a sentir um vestígio de interesse por tudo aquilo. No passado desagradara-lhe ter de se envolver nos inquéritos relacionados com assassínios. Por vezes, como investigador, sentia-se maculado pela maldade do acto. Fora arrancado com demasiada frequência à sua confortável e tranquila vida doméstica para se atirar de cabeça para o meio de emoções selvagens e conflituosas, isto porque, de acordo com a sua experiência, na raíz de todos os assassínios encontravam-se sempre paixões que extravasavam repentinamente por qualquer razão e se tornavam extremas. Para ele, uma tal ferocidade nunca deixara de ser um mistério, uma vez que a vida de Simon fora sempre moderada e descontraída.

Todavia, desde a morte de Peterskin que a segurança e as certezas que sentira lhe pareciam injustificadas, como se a doença que lhe matara o rapazinho estivesse agora a esgotar a vitalidade de toda a sua família. O desejo de justiça de Simon tinha como que esmorecido depois do enterro do filho, uma vez que sentia muito pouca preocupação pelos outros agora que a sua própria vida tinha sido tão cruelmente destruída.

Contudo, sentia uma emoção especial em relação àquela morte. Não se tratava apenas da aparência superficial de Sarra com a sua mulher, mas sim do modo como a jovem morrera. Aquele assassínio era mais uma prova de quão injusta e cruel poderia ser a vida. Tinha a sensação de que, se o resolvesse, esse facto podia de algum modo compensar a morte irracionalmente extemporânea do filho. Seria uma espécie de exercício catártico.

Peterkin fora-se e Simon passara a sentir a morte desnecessária de outros com mais intensidade. Se se tratasse de um homem que tivesse morrido depois de uma zaragata de bêbedos, ou tivesse sido morto por causa de uma mulher ou de um jogo, então teria ficado impávido... mas a combinação do rosto da rapariga morta e do esconderijo indigno em que tinha sido enfiada despertou a sua ira contra quem quer que pudesse ter cometido aquele crime.

Baldwin regressara ao estudo do corpo de Sarra enquanto Simon esteve a meditar. O almoxarife observou-o com olhos húmidos e viu-o servir-se da adaga para cortar a corda que lhe ligava os braços. A seguir ficou à escuta apenas com meio ouvido enquanto o cavaleiro conversava com o capitão.

- Por isso, temos de concluir que este crime foi cometido por um dos seus homens de maior confiança, por um dos servos da estalagem, ou por alguém que conseguiu entrar por uma das janelas. - Avançou para a janela e experimentou a forte tranca de madeira que mantinha as portadas bem fechadas. Deslocou-a, descobriu que era pesada e voltou a encaixá-la nos seus apoios. - Não são fáceis de deslocar... - murmurou.

- Deve ter sido alguém da estalagem - grunhiu Sir Hector.

- Duvido... - Baldwin virou-se e encarou-o. - Disse-me que nesta área só permitia a entrada às pessoas de maior confiança. Não queria estranhos a vaguearem em volta dos seus aposentos privados, pois não? Não, as únicas pessoas que podiam entrar aqui eram alguns dos seus homens.

- E ela.

- Ela? - Baldwin olhou para o corpo. - Autorizou-a a vir aqui?

- Sim, gostava dela. - Deteve-se e olhou para Baldwin como se esperasse uma censura.

- Hum... compreendo. Nesse caso, a rapariga também sabia que a prata se encontrava aqui. No entanto, a não ser que o tenha dito a mais alguém, os suspeitos mais óbvios são os seus próprios homens.

- Principalmente um deles, o Cole... - afirmou Sir Hector por entre os dentes cerrados - ou então alguém da cidade que pensou poder levar a cabo um golpe rápido.

Simon lançou-lhe um olhar de ódio, mas o capitão pareceu não dar por isso.

- O Cole... - repetiu Baldwin, pensativo.

Simon inclinou-se para a frente e viu que o tecido semelhante a gaze estava fortemente ensopado de sangue, e que as marcas das formas da rapariga eram perfeitamente visíveis: as pernas, as mãos, a cabeça. Contudo, havia uma saliência nos coágulos de sangue que perturbava aqueles contornos e que o levou a franzir a testa.

- Não poderia ter tido um cúmplice, à espera lá fora? Alguém a quem passasse as coisas depois de ter morto a pobre Sarra? - perguntou Sir Hector.

- Não vejo como. Voltamos ao mesmo, quando pensávamos que se tratava apenas de um roubo: alguém que tentasse entrar pelas janelas seria visto, porque a rua é muito movimentada a todas as horas do dia. Por outro lado, quem pairasse no exterior da janela que dá para o pátio, junto dos estábulos, atrairia as atenções de um cavalariço ou dos outros trabalhadores da estalagem. Suponho que é possível que o roubo e o assassínio acontecessem ao mesmo tempo por coincidência... mas parece-me improvável. Disse-me que gostava da rapariga... Tem consciência de alguém que a quisesse matar? Alguém que a odiasse?

- Ela? Ora, era apenas uma serviçal da estalagem, Sir Baldwin. Como podia alguém odiar uma tal criatura? - SírHector abriu as mãos num gesto de espanto.

Baldwin acenou, com os olhos a dirigirem-se novamente para o corpo na sua frente. Em vida fora bonita e não era de surpreender que o capitão tivesse "gostado" dela, um eufemismo que deixava muito pouco à imaginação do cavaleiro. Todavia, compreendia que Sir Hector achasse difícil de entender que uma jovem tão pouco importante pudesse ter inimigos que a desejassem ver morta. As razões para isso podiam ser muitas: um amante ciumento, uma mulher a querer ver-se livre da amante do marido, um homem a querer libertar-se da amante por esta se ter tornado incómoda... e assim por diante. Mesmo assim, tal como o homem disse, era mais provável que tivesse sido Cole a matá-la. Devia tê-lo descoberto a roubar as pratas e apunhalara-a para garantir o seu silêncio.

Enquanto meditava no assunto, Simon levantou cuidadosamente o tecido por uma ponta e espreitou para o que se encontrava por baixo.

- Baldwin, olha para isto!

- O que é? Ah, isto é interessante! - Baldwin baixou-se. Por baixo da peça de tecido havia uma terceira salva de prata. - O cavaleiro dobrou-se e agarrou-a. -Aqui está a prova. O assassino deve ter sido o ladrão. Matou Sarra porque esta viu o que se estava a passar... e sabia quem ele era.

- Bastardo! - Sir Hector avançou rapidamente para junto de Simon e ficou a olhar para a salva nas mãos de Baldwin, cheia de manchas nos locais onde foi atingida pelo sangue que escorrera. - Então, matou-a quando estava a roubar a minha prata.

- Sim - confirmou Baldwin num tom lúgubre. - Sim, é o que parece, não é verdade?

Não havia mais nada a dizer. Sir Hector deixou-os pouco depois, com as emoções a contraírem-lhe o rosto, e Simon sentiu uma certa simpatia pelo homem.

- Está furioso com tudo isto... - murmurou para o amigo. - Pensei que o tinha visto zangado anteriormente, quando se tratava apenas do roubo das pratas, mas agora aposto que seria capaz de enforcar o Cole sem pensar duas vezes no assunto. Devia gostar muito da rapariga.

Baldwin lançou-lhe um olhar dúbio.

- Talvez... embora me pareça despropositado... De qualquer modo, seja o que for que Sir Hector pense ou não pense, temos de agir de acordo com as leis inglesas e as suas suspeitas não têm qualquer peso...

- Não te parece que foi o Cole?

- Suponho que sim, mas continuo com o mesmo problema que já tinha anteriormente. Como foi que removeram a prata? E como foi, para começar, que ele apareceu aqui?

Foram-se embora momentos depois mas ficaram à espera no salão enquanto Paul enviava um mensageiro para ir buscar Hugh e Edgar. Os dois homens chegaram e Baldwin ordenou-lhes que guardassem o compartimento de armazenagem onde jazia o corpo da rapariga. Ninguém estava autorizado a entrar. Baldwin queria voltar a estudar o local sob a luz do dia. A seguir saiu da estalagem. Deu alguns passos ao longo da rua, deteve-se e caminhou até às portadas exteriores, fechadas, do pequeno armazém. Simon ouviu-o soltar uma breve praga de nojo, porque pisara acidentalmente uma pilha de tripas e vísceras apodrecidas, numa pungente recordação de que o açougueiro vivia na porta ao lado.

Escapavam-se alguns fios de luz por entre as fendas das madeiras velhas e não tratadas por onde o cavaleiro tentou espreitar com os olhos semicerrados. Franziu a testa, deu a volta para o pátio traseiro da estalagem e repetiu o exercício, sempre seguido por Simon.

- Há uma coisa de que podemos estar certos...

- O quê? - perguntou Simon, bocejando.

- Quem quer que tenha roubado a prata não a viu através destas portadas. Não foi um roubo ocasional e de oportunidade. Também não me passou pela cabeça que o fosse.,, pois quem iria atrever-se a roubar um capitão mercenário e os seus homens? Não, ninguém podia ter espreitado por ali e compreendido que o quarto guardava uma grande quantidade de prata.

- E então?

- Então, meu velho amigo, o ladrão deve ter sido alguém que fazia parte do grupo, ou que era amigo de um membro do grupo. As culpas parecem recair sobre o Cole... mas quem foi o cúmplice?

Na manhã seguinte Simon acordou mais tarde do que era costume e com uma vaga sensação de mau agouro. O corpo de Margaret deixara uma cova no colchão a seu lado, mas a cova já estava fria ao toque. Devia ter-se levantado há algum tempo. Suspirou e deitou-se de costas com um braço atirado para trás da cabeça.

Magoava-o muito vê-la a sofrer... mas no entanto não conseguia encontrar as palavras necessárias para a ajudar. A sua própria desolação era tão grande que não era capaz de pensar numa maneira de transpor o abismo que se abriu tão subitamente e que os separou tão eficientemente como a profunda garganta de Lydford. Não tinha meios para contrariar essa separação.

Para sua surpresa, a rapariga morta intrometeu-se-lhe nos pensamentos. O seu rosto, que parecia estar mais habituado a ser feliz e descuidado, mostrava-se agora tão violado e contraído naquele improvisado caixão, por causa da cruel mordaça em volta da boca, que sentiu a ira reavivar-se contra quem quer que fosse que lhe infligira uma morte tão indigna. A rapariga voltava a aparecer na sua mente por muito que Simon se esforçasse por a afastar, como se estivesse a exigir vingança. Fitava-o com uma expressão acusadora... e com os olhos da mulher.

Levantou-se e vestiu-se. O salão ficava no fim de um curto corredor, onde encontrou a mesa já posta. Peter, Baldwin, Margaret e Edith estavam presentes, tal como Stapledon. Peter acenou-lhe para que se sentasse mas foi o bispo quem se lhe dirigiu.

- Ah, almoxarife! Acabei de ouvir a história da rapariga morta que encontraram. É triste, muito triste. Quem diria que um jovem pôde fazer aquilo... roubar as pratas de outro e matar uma rapariga inocente... É horrível descobrir até que ponto o coração de um homem pode ser negro. - O bispo enfiou um grande bocado de pão na boca.

Simon acenou e sentou-se ao lado da mulher. Margaret estava pálida e tinha os olhos vermelhos. Simon não percebeu se isso se devia à falta de sono ou ao choro. Observou-a a concentrar-se na comida quando, por acaso, o Sol surgiu por trás de uma nuvem. As janelas no alto das paredes deixaram entrar a luz solar num ângulo muito inclinado, como uma espécie de nevoeiro luminoso onde as partículas de poeira dançavam e rodopiavam, e formaram poças de luz no solo. Um desses feixes de luz caiu por perto e iluminou-lhe o rosto com um clarão dourado que lhe deu nova vida às feições, suavizando e alisando-lhe as rugas, para além de lhe renovar ajuventude. Os seus cabelos brilharam e pareceu cinco anos mais nova. Para Simon, era como se a mulher por quem se apaixonara tivesse regressado inesperadamente. Baldwin mastigava a comida e preparava-se para perguntar a Simon se tinha algumas ideias novas a respeito da rapariga morta quando viu o amigo a olhar para a mulher. Esta virou-se para lhe observar a expressão. Muito lentamente, a sua expressão tensa abriu-se num sorriso, embora já quase se tivesse esquecido de como o fazer. Para grande delícia sua, Baldwin viu Simon a devolver o sorriso.

- SirBaldwin... - disse Stapledon, acenando com a faca, num gesto vago - que acha que o rapaz fez com a prata? Poderá tê-la escondido na estrada antes de ter sido apanhado?

- Não. Isso é inconcebível, de acordo com os homens que o apanharam. Aparentemente estavam a segui-lo já há algum tempo depois de o verem a comportar-se de uma maneira estranha - que classificaram de furtiva" - ainda na cidade.

- Talvez tenham marcado o local onde o rapaz a escondeu para que eles próprios possam lá voltar para a reclamar.

- É possível - admitiu Baldwin.

- No entanto, não pensa desse modo? O cavaleiro abanou a cabeça.

- Sir Hector de Gorsone tem cerca de trinta homens com ele. É indiscutível que combateu em diversas campanhas e que os seus soldados foram endurecidos pelas batalhas. Todos eles são capazes de matar. Também é possível que aqueles dois tivessem visto o local onde a prata foi deixada, tal como disse, mas... e depois? Não teriam deixado o Cole vivo para poder dizer onde a escondeu. Tê-lo-iam morto imediatamente. A seguir poderiam ir buscá-la quando quisessem. Se permanecessem com Sir Hector iam passar um mau bocado para explicarem a sua nova riqueza mas, por outro lado, se pensassem em fugir, para onde iriam? Para além disso, não se esqueça de que se arriscavam a sofrer a ira do capitão, que procuraria vingança, mais que não fosse para reforçar o seu poder sobre os outros homens. Os dois homens com a prata passariam a ser perseguidos por cerca de trinta homens bem motivados para onde quer que fossem. Creio que se tivessem visto o Cole a agir de uma maneira estúpida e dessem por ele a esconder qualquer coisa... então tratariam imediatamente de avisar o amo logo que soubessem do roubo.

- E se não tivessem compreendido que se tratava da prata do capitão? Não podiam ter decidido tirar algum lucro do roubo cometido por outro, escondendo-o para o irem recolher mais tarde?

- É possível... mas tinham a obrigação de avisar o amo logo que descobrissem que se tratava do tesouro de Sir Hector. Creio que não se sentiriam muito felizes por estarem a roubá-lo, mas é natural que esperassem uma recompensa pela sua devolução.

- As pessoas conseguem reagir rapidamente à mudança das circunstâncias - disse o bispo. - Talvez o tenham guardado em qualquer lado, para que possam ir buscá-lo mais tarde.

- É improvável - decidiu Sir Baldwin. - Em primeiro lugar, tal como já disse, penso que teriam morto o Cole para garantirem que o seu segredo estava a salvo. Depois... não faziam ideia de quanto tempo se iria passar até que o roubo fosse descoberto, pelo que também não saberiam de quanto tempo dispunham para esconderem a prata. Acho que tentariam capturar o ladrão para o entregar ao amo. No fim de contas, apesar de serem mercenários, continuam a ser soldados... e têm as suas vidas intimamente ligadas às dos companheiros.

- Conheci homens de armas que eram desprezados pelos companheiros e que desapareceram logo que houve uma boa soma em jogo... - comentou o bispo.

- Também eu - admitiu o cavaleiro. - Todavia, até prova em contrário, vou assumir que aqueles dois disseram a verdade. Claro que temos um suspeito na cadeia. Neste momento, é ele o culpado mais provável.

Margaret inclinou-se para a frente.

- Por que teria morto a rapariga? Não havia necessidade, pois não?

- É possível que não... e que sim. Só há uma explicação simples. Dirigiu-se ao quarto para roubar a prata... e a rapariga já lá estava ou entrou pouco depois. De qualquer modo, soube que a sua vida estaria em risco se ela dissesse que o tinha visto no quarto de Sir Hector.

Matou-a para salvar a própria pele e escondeu o corpo a fim de ter tempo para fugir.

Roger de Grosse estava sentado por perto e franziu a testa ao ouvir aquilo.

- Ora, Sir Baldwin, se pretendesse fugir, não teria planeado uma maneira mais lógica do que fazê-lo a pé?

- É um bom argumento. No entanto é possível que, ao princípio, pretendesse apenas levar a prata para a esconder e para voltar mais tarde quando a agitação já tivesse passado.

- E como foi que o fez? De acordo com o que disse, teria sido visto a sair pelo salão e as portadas das janelas estavam fechadas. Não podia ter saltado por uma janela.

Baldwin lançou uma olhadela a Simon.

- Contei-lhes as nossas conversas da noite passada - explicou o almoxarife. - Roger, essa questão é a que continua a interessar-me mais. Não sabemos, mais uma vez, mas há várias explicações possíveis.

- Sarra teria sido cúmplice? Abria-lhe as janelas e fechava-as depois do roubo.

- E a seguir, o homem voltava" para trás e matava-a? - perguntou Baldwin com um sorriso. - Não, tudo o que sei é que o ladrão deve ter tirado as pratas algum tempo depois de Sir Hector se levantar da cama e antes de o capitão regressar para a sua refeição.

O almoxarife acenou.

- Estou ansioso por o ouvir explicar como foi que o fez.

 

A cadeia era um pequeno edifício junto do mercado, quase em frente da estalagem. Em geral era utilizada para as vítimas do tribunal de Pesos e Medidas, onde os mercadores eram condenados por roubarem no peso, nas medidas ou por venderem artigos com defeitos, mas também servia para os que cometiam ofensas mais graves. Era de pedra, pequena e quadrada, e pairava malevolamente perto da cabina da portagem. Constituía um foco de medo para as pessoas da cidade uma vez que muitos dos que nela entravam só de lá saíam para caminharem para o patíbulo.

Ficava apenas a alguns minutos de caminhada desde a casa de Peter. Baldwin e Simon partiram imediatamente depois do pequeno-almoço. Roger perguntara se podia juntar-se-lhes e Stapledon concordara que seria útil para o jovem sacerdote ver como eram conduzidas as investigações.

A rua já se mostrava movimentada apesar de ser ainda muito cedo. Havia vendedores ambulantes a andarem de um lado para o outro, berrando as suas ofertas ao mundo, cavalos com os cascos a matraquearem por cima da parte empedrada, carroças a balouçarem e estalarem quando passavam por eles. Simon sorriu ao ver as crianças a correr e a saltar no meio de todo aquele trânsito. Viu a mulher de cinzento, com o filho por perto, mas ela pareceu não o reconhecer. Não a censurava. Era muito tarde quando a ajudou e a rua estava escura. Permanecia imóvel, com a tigela das esmolas na mão, e sorria tristemente para os que passavam por ela numa tentativa desesperada para conseguir uma dádiva. Simon evitou-lhe o olhar. Os que precisavam da caridade dos outros para sobreviver eram tantos, em particular depois dos anos de fome... mas mesmo assim a visão dos mendigos ainda o fazia sentir-se desconfortável.

Roger, ao longo do percurso, descobriu que as suas narinas eram assaltadas pelos fumos da cidade atarefada e em crescimento. O pano de fundo era um cheiro acre a madeira queimada, mas havia também outros odores mais persuasivos e agressivos que se erguiam do esgoto a céu aberto no meio da rua, a que os cavalos, bois, porcos e carneiros adicionavam mais alguns fedores. Porém, os cheiros foram-se alterando à medida que se aproximaram da estalagem, proclamando subtilmente a presença do açougueiro.

Pararam para olhar. O estabelecimento do açougueiro ficava na esquina formada por duas ruas, mesmo ao lado da estalagem e para lá dela. Logo a seguir ficava o caminho que levava à casa de pasto, passava pelos estábulos e dava acesso ao pátio da estalagem. Na frente da estalagem propriamente dita via-se a pequena pilha de restos de animais que Baldwin pisara na noite anterior. Agora viam-se quatro cães de volta dela, agarrando o que podiam e rosnando uns para os outros.

Roger viu, na frente do açougue, a pequena e rotunda figura de Adam, que empunhava uma grande faca vestido com um velho e pesado avental, e que se dedicava ao seu trabalho. O sacerdote não lhe prestou grande atenção, Olhava para um vendilhão que se encontrava na rua, um pouco mais adiante... e foi nesse instante que se ouviu um grito agudo e perfurante que fez com que os pêlos da nuca se lhe pusessem em pé.

Virou-se, horrorizado, e verificou que o açougueiro espetara a faca num porco. O animal estava suspenso de um tripé por intermédio de uma corda amarrada em volta dos quartos traseiros, e esperneava enquanto o sangue borbulhava e esguichava do grande corte vermelho na garganta e formava uma grande poça no solo por baixo dele. O açougueiro rasgou o animal do peito à pélvis quando as contorções começaram a diminuir e as entranhas, maciças cordas de um amarelo-acastanhado, ficaram subitamente livres e escorregaram para o exterior como outras tantas cobras a saírem de um saco. O aprendiz já estava a deitar água a ferver sobre o animal e a preparar a lâmina para lhe remover todos os pêlos do corpo, e Adam tinha as mãos dentro da carcaça para remover os pulmões e o coração.

O cheiro a carne podre invadia a rua. Embora muitas pessoas da cidade se queixassem regularmente a Baldwin por causa do cheiro e das moscas, o cavaleiro pouco podia fazer. Se as pessoas queriam comer... então o açougueiro precisava de pôr em prática a sua arte. Era uma vergonha que as fezes retiradas dos intestinos dos animais tivessem de se acumular até poderem ser transportadas para a estrumeira, uma vez que provocavam um odor desagradável, mas as tripas tinham de ser limpas para o fabrico de salsichas. Pouco era o que se desperdiçava da carcaça de um porco.

Depois de o porco ter sido descuidadamente rapado e levado dali, o ajudante trouxe imediatamente um novo porco para ser abatido no patíbulo de três pernas. Adam afiou a faca na tira de couro e esperou enquanto o animal era içado, a guinchar de raiva e de terror, com os pequenos olhos redondos a rolarem de fúria. Adam viu que os três homens o observavam, sorriu e acenou... e Roger pensou para si mesmo que o próprio açougueiro também se parecia com um porco, com os pequenos olhos brilhantes e as feições redondas.

Começaram a atravessar a rua. Encontravam-se apenas a alguns metros da cadeia e os olhos de Simon estavam postos no edifício pequeno e acachapado. Contudo, quando lançou uma olhadela a Baldwin, viu que o cavaleiro olhava para a estalagem, quase em frente.

- O que é? - perguntou-lhe Simon.

- Oh, estava apenas a pensar que pelo simples facto de se encontrar aqui, perto do mercado, deve ser frequente que haja carroças paradas no exterior. Olha, lá está uma neste preciso momento.

- Sim... - O almoxarife viu a velha carroça, com o cavalo cansado, magricela e escanzelado por causa da pouca comida e dos maus tratos.

- Pensei que daria demasiado nas vistas se o Cole tentasse retirar as pratas por uma das janelas para a rua... mas olha para aquilo! Um estranho que deixasse ali uma carroça seria imediatamente notado... mas um homem podia ficar à espera por perto e tirar as coisas pela janela, não podia? Se ali estivesse alguém neste momento, estaria completamente oculto das vistas pela carroça do açougueiro.

- Mas se a prata pesava tanto que eram precisos três homens para a carregar...

- Oh, sim, mas talvez tivesse mais do que um cúmplice... passava-a para o exterior em pequenos pacotes. Desse modo, o seu companheiro podia ter ficado ali durante alguns minutos, para depois ir esconder a prata e regressar para receber o pacote seguinte. Estaria sempre escondido, sempre fora das vistas por trás de uma carroça. Seria um arranjo perfeito...

- Há uma coisa que não compreendo.

- O que é? - Baldwin olhou-o com um leve sorriso. Simon ainda estava longe do estado normal... mas parecia que a sua disposição melhorava. Não se tratava apenas do modo como sorrira para a mulher durante o pequeno-almoço. Agora tinha também um ar diferente. Na noite anterior mostrara-se enfastiado e queixoso, mas naquele momento era óbvio que havia algo a ocupar-lhe os pensamentos e quase se transformara no homem cauteloso e pensativo de que Baldwin se recordava. Para além disso, levantar objecções às ideias de Baldwin era um claro sinal de que o almoxarife estava a melhorar.

- Digamos que tens razão e que havia um cúmplice aquí fora...

- Deve ter havido um cúmplice em qualquer lado, aqui ou lá atrás, no pátio.

- Belo! Contudo, se isso estiver certo, por que razão tinha ele duas salvas em seu poder?

Baldwin parou de repente.

- Acho que... O quê?

- Se tiveres razão, então ele deve ter passado tudo ao companheiro. Nesse caso, por que foi encontrado com duas salvas quando o apanharam?

- Provavelmente descobriu que o amigo se foi embora e teve de ser ele a transportá-las quando saiu do quarto.

- Através do salão? Não faz sentido. Se fazia parte de um grupo organizado, então tinha alguém cá fora precisamente para não ter de carregar nada. Para além disso também não deixaria ficar uma coisa como o saleiro. Se tinha de transportar alguma coisa consigo... então seria precisamente o saleiro. Contudo, em vez disso, foi apanhado com duas salvas,., exactamente o que menos seria de esperar que escolhesse...

- Seria mais fácil esconder as duas salvas. São menos volumosas... - sugeriu o cavaleiro.

- É verdade... mas também seria melhor não levar nada. Para quê arriscar-se a ser descoberto ao transportá-las consigo? Era muito melhor deixá-las para trás e fugir dali... em especial se presumes que o cúmplice tinha desaparecido. Nessas circunstâncias, não era mais natural que se fosse embora sem levar nada com ele? O seu principal interesse devia ser o de desaparecer o mais depressa possível e não preocupar-se em roubar mais qualquer coisa. É isso o que acho difícil de compreender.

- Porquê? Foi ganancioso, mais nada. É um ladrão. Muito bem, vamos supor que o cúmplice se foi embora por qualquer motivo,., ou que talvez demorasse demasiado tempo a reaparecer. O Cole já se tinha apoderado das duas últimas salvas e decidiu levá-las...

- Se fosses ele... terias levado aquelas duas salvas?

Põe-te no seu lugar. O roubo tinha sido pensado com todo o cuidado, até ao ponto de ter um cúmplice no exterior. Depois... o cúmplice desaparece. Não sabes porquê... mas é natural que desconfies que alguém o viu. Ainda tens de te escapar, o que significa que tinhas de atravessar o salão sob os olhares de cerca de trinta homens. Restam-te duas salvas, entre só Deus sabe quantas peças... e és tão blasé que decides levá-las contigo? Custa-me a acreditar!

- Os ladrões podem ser irracionais.

- Sim, mas de certeza que não tão irracionais que levem um pouco do produto do roubo com eles quando sabem que irão ser perseguidos! Livrava-se de todas as provas incriminadoras logo que pudesse!

- Podes ter razão, mas pensa nisto: também acabaste de assassinar a rapariga... e isso deu-te cabo dos planos. Escondes o corpo e foges pelo caminho mais curto. Até pode ser que o teu cúmplice não tenha desaparecido e que, agora que cometeste um crime, decidas fugir pela janela.

- Alguém veria um homem a fugir por uma janela...

- Achas que sim? Se foi possível pôr tanta prata cá fora sem que ninguém visse... então duvido. Se houvesse uma carroça no meio do caminho, ninguém o veria. O Cole podia ter saltado e permanecido oculto... para depois se afastar.

- Mas nesse caso, Sir Baldwin... - interrompeu-os Roger - quem fechava as portadas por dentro?

O cavaleiro descobriu que tinha a testa toda franzida. Apercebeu-se, pelo canto dos olhos, que um mercador parou e ficou a olhar para eles. Sorriu, apologético, e prosseguiu num murmúrio:

- Não faço ideia, mas é a melhor explicação a que consigo chegar neste momento.

- Pois eu quero saber o que foi que na realidade se passou - afirmou Simon.

Baldwin levantou um punho para bater na porta.

- Pois bem, vamos sabê-lo, em vez de continuarmos com as especulações. Simon, eu... Onde é que vais?

- Tive uma ideia, Baldwin - respondeu o almoxarife por cima do ombro.

O açougueiro parara e estava agora sentado num banquinho de três pés, com uma caneca de cerveja nas mãos. Simon reparou que o homem tinha sempre uma palavra bem-educada para com as pessoas que passavam, e que eram todas saudadas com um aceno e um sorriso. Para além disso, brindava as crianças com uma piscadela.

Simon ganhou consciência de que os companheiros se juntavam a ele quando chegou ao outro lado da rua. Naquele local o salão da estalagem corria paralelo à rua, com a entrada quase no meio. Encontravam-se em frente da cadeia e para a esquerda ficavam as janelas que davam para a área ocupada pelo capitão dos mercenários. Tendo em conta a agitação e o movimento que se verificava na rua, era evidente que ninguém poderia ter tirado fosse o que fosse da estalagem sem ser visto.

Simon caminhou lentamente para lá da casa do açougueiro, sentado no seu banquinho, e dirigiu-se à estrada que subia a colina. Apercebeu-se da paciência divertida do amigo, parou à esquina e olhou para a vertente.

O açougueiro tinha ali alguns armazéns e um pequeno cercado para animais. Logo a seguir ficava a casa de pasto e a passagem que conduzia ao pátio da estalagem. A partir daí a estrada tornava-se muito íngreme para em breve se perder no meio das árvores que salpicavam a colina.

- Já viste o suficiente? - perguntou Baldwin.

- Sim, acho que vi. - Simon lançou-lhe uma olhadela longa e pensativa, para logo de seguida sorrir para o açougueiro.

- Está uma bela manhã, não é verdade?

Adam devolveu-lhe o sorriso. As costas incomodavam-no, tinha dores nos pés e ainda por cima fizera um corte no polegar com a faca, mas o Sol aquecia-lhe o rosto, a cerveja era saborosa e naquele dia não tinha muito mais para fazer. O aprendiz podia encarregar-se do resto do trabalho.

- Sim, senhor. É bom poder sentar-me ao sol, para variar.

- Deve ser um trabalho cansativo, com este tempo - disse Simon, acenando para o pórtico onde o aprendiz suava a trabalhar no porco morto.

- Oh, não é assim tão mau, senhor - retorquiu Adam, indulgente, servindo-se de mais cerveja do jarro que se encontrava a seu lado. - Está-se bem aqui fora. Trabalhar lá dentro é pior, faz mais calor.

- Quer dizer que ficas cá fora durante a maior parte dos dias?

- Quase todas as manhãs. Passo as tardes lá dentro a cortar e a desossar. A seguir é preciso salgar o porco, tratar da carne para a tornar mais tenra, preparar o fumeiro, fazer as salsichas e todas as outras tarefas. Levam muito tempo. As pessoas pensam sempre que a matança é a parte mais difícil mas isso, para nós, é apenas o princípio.

Pelo canto dos olhos, Roger viu o aprendiz a fazer um trejeito com a boca enquanto o amo falava. O sacerdote ficou convencido de que o "nós" não indicava necessariamente uma divisão equitativa de tarefas e esforços. Conteve um sorriso com dificuldade enquanto Simon prosseguia;

- E estiveste aqui ontem à tarde?

- Sim, senhor.

Baldwin procurou conter a excitação quando Simon perguntou num tom casual:

- Aqui, na rua?

- Sim, aqui mesmo. Ali o meu rapaz.,. - agitou um polegar na direcção do aprendiz - estava lá dentro a tratar de algumas galinhas e capões, mas eu tive de descansar. O barulho que os bichos faziam estava a dar-me cabo da cabeça.

- Viste alguém ali, junto às janelas da estalagem?

- Onde, além? - perguntou Adam, apontando e semicerrando um pouco os olhos.

- Sim, no exterior dos quartos, deste lado do salão.

- Não. As pessoas mantêm-se afastadas quando há vísceras de animais caídas na estrada. Não estive aqui todo o dia... mas não, não vi ninguém.

- Terás estado aqui ao princípio da tarde?

- Estive cá fora desde... - olhou para o aprendiz com uma expressão vazia, como se estivesse em busca de inspiração - ... julgo que desde um par de horas depois do meio-día, talvez até às quatro horas. A seguir começou a fazer muito calor e refugiei-me no fresco...

- Então e tu? Viste alguém por aqui? Alguém que não devesse aqui estar ou andasse por aqui a vadiar durante algum tempo? - perguntou Baldwin, dirigindo-se ao aprendiz.

- Eu, senhor? Não, estive a trabalhar lá dentro durante todo o tempo.

- Não tem vista para a rua?

O rapaz apontou a janela perto do ombro de Adam.

- Sim, senhor, mas estive a trabalhar. Não tive tempo para olhar cá para fora.

Adam acenava, muito satisfeito, enquanto o rapaz falava, mas Simon ficou com a impressão de que o açougueiro, não obstante ter um sorriso fácil e feições alegremente rotundas, devia ser um amo difícil.

- Muito bem - comentou, desapontado. - Obrigado pela vossa ajuda.

- Esperem! - exclamou Adam, e ambos se viraram para o enfrentar. O açougueiro sorriu, entrou na loja e regressou com uma fiada de salsichas. - Provam algumas das minhas salsichas, não é verdade, cavalheiros?

Tanner, com a sua figura desgrenhada e por barbear, uma túnica acastanhada e uns calções num conjunto muito sujo, reagiu rapidamente às batidas na porta. Era um homem forte e sólido, com cabelos escuros e um maxilar quadrado, que atirou para a frente num gesto de irritação quando os visitantes passaram por ele. A seguir acompanhou-os até à cortina na traseira da sala.

Para lá dela encontrava-se um alçapão no solo, que era mantido no seu lugar por um grande fecho de ferro travado por uma cunha de madeira. Tanner aproximou-se e deu um pontapé na cunha para a soltar, antes de se dobrar para abrir o alçapão. Fez deslizar uma escada para o interior e baixou-a para as profundezas.

Roger estremeceu sob o cheiro que subia da cela subterrânea. Não se tratava apenas do ar frio e húmido, mas também do odor de corpos não lavados e aterrorizados. Em geral, a cadeia da cidade servia para guardar pessoas que esperavam por um castigo e era muito frequente que só existisse um tipo de punição. A cela cheirava ao medo das centenas de prisioneiros para ali atirados ao longo dos séculos, um cheiro que impregnara as paredes com a sua expectativa e terror.

Philip Cole era diferente. No passado, quando Simon esteve ali à espera e viu prisioneiros a treparem a escada, sentira-se invadido por alguma simpatia. Era algo de que Philip Cole não necessitava. Subiu a escada com uma agilidade tão grande que surpreendeu o almoxarife, e ficou imóvel e silencioso a seu lado, a olhar para os interrogadores.

Ao longo do tempo, Baldwin aprendera a desconfiar das primeiras impressões. A sua experiência dizia-lhe que as pessoas só muito raramente eram tão simples ou complexas como pareciam, mas no entanto... Aquele homem era suspeito de roubo e de assassínio, dois dos mais hediondos crimes possíveis de imaginar. Se fosse culpado, deveria estar a trair alguns sintomas do que lhe ia na consciência: nervoso, incapacidade para enfrentar directamente os olhos de um funcionário. Para além disso, deveria remexer-se e morder os lábios. Baldwin conhecera alguns criminosos com muita prática que conseguiam ocultar a sua ansiedade, mas era raro e em geral muito mais idosos do que aquele homem.

Philip Cole mantinha-se desafiador, com os braços por trás das costas, e enfrentava-os com uma expressão que parecia estar muito próxima da ira. Não exibia nenhum dos sinais de arrependimento que seriam de esperar num homem que assassinara uma jovem como a Sarra. Se era realmente um velhaco que matara para ocultar um roubo... então era também muito bom actor, concluiu Baldwin. O jovem não tinha rugas na testa, o que lhe dava um ar de probidade, e os olhos revelavam uma ausência de culpabilidade que condizia bem com os trajes simples, que o identificavam como sendo agricultor. Para além do mais, o modo como devolvia os olhares dos seus três captores revelava mais desprezo do que remorsos.

O cavaleiro teve de recordar a si mesmo que aquele homem, mesmo que não fosse um assassino, era quanto muito um mercenário por vontade própria que se juntara a um bando de homens que pouco melhores eram do que foras-da-lei e que detinham alguma legitimidade apenas graças à força das suas armas.

- Então? Vieram para me libertar?

Simon deslocou-se para se juntar a Roger junto de uma das paredes. Tanner encostou-se à ombreira da porta, não fosse o rapaz tentar fugir. O almoxarife de Lydford não tinha ali qualquer espécie de autoridade. A área pertencia a Baldwin e devia ser ele a conduzir o inquérito.

- Sabes por que estamos aqui? - perguntou Baldwin.

- Dois homens acusaram-me de um roubo. É estúpido! Onde está toda a prata de que supostamente me apoderei? Revistem-me os sacos, vejam todas as minhas coisas. Nada tenho a esconder!

- O ladrão estava bem preparado e até tinha um cúmplice. Um homem assim não teria dificuldades para esconder o que roubou.

- Oh? E onde iria eu deixar toda essa prata? - explodiu Philip. - Nem sequer conheço ninguém nesta terra!

Baldwin estudou-lhe o rosto e não conseguiu distinguir um único vestígio de nervosismo. Fez uma pequena pausa.

- Ontem.., estiveste todo o dia na estalagem?

- Sim! - parecia irritado, como se as perguntas fossem estúpidas.

- No entanto, na noite passada foste encontrado a alguns quilómetros da cidade, numa estrada para o sul. Que estavas lá a fazer?

- Nada. Fui atacado aqui, na cidade!

- O quê?!

- Fui atacado. Deram-me uma pancada na cabeça!

- Onde foi isso?

- No pátio por trás da estalagem. Estava sentado perto da porta das traseiras quando ouvi qualquer coisa nos estábulos. Os cavalos faziam muito barulho e fui ver o que os estava a incomodar. É tudo o que sei.

- Que se passou?

Encolheu os ombros e foi a primeira vez que pareceu pouco à-vontade, - Lembro-me de ter atravessado o pátio. Não havia ninguém por ali e não me apressei porque não me pareceu necessário. O estábulo tem uma grande porta e uma série de baias do lado esquerdo. Tinha acabado de entrar quando fui atingido por qualquer coisa. Caí e recordo-me de ficar estonteado. Fazia escuro no interior do estábulo e estava a tentar habituar os olhos à escuridão quando me bateram. Quando caí rolei para o lado e o Sol bateu-me nos olhos.

- Viste quem te bateu?

Cole levantou a mão e tocou na cabeça por cima da orelha esquerda.

- Não - admitiu, com uma careta. - Quem me dera!

- Deixa-me ver. - Baldwin avançou e espreitou a cabeça do homem. Era evidente que não estava a mentir quanto a ter sido agredido na cabeça. Por cima da orelha via-se uma massa de cabelos colados uns aos outros. Baldwin apalpou-o e o homem estremeceu e soprou. O cavaleiro verificou que havia ali uma crosta que soltou pequenos fragmentos que estudou atentamente. Na escuridão da cadeia era difícil de ter certezas, mas parecia sangue seco tanto à vista como ao tacto. Voltou a olhar para o rosto do homem.

- Estava lá mais alguém que pudesse ter visto isso a acontecer?

- Não sei. - A impaciência voltava a surgir. - Fiquei inconsciente, mas imagino que pode ter havido alguém que me visse a entrar no estábulo.

- Quando foi que tudo isso se passou? - interveio Simon de repente.

- Lá para o fim da tarde...

- Quando te encontrámos já era noite. Queres fazer-nos crer que ficaste inconsciente durante todo esse tempo?

- Tudo o que sei é isto: fui ver o que se passava com os cavalos e quando voltei a mim vi um montão de homens a olharem-me como se eu fosse algo que tivesse acabado de rastejar para fora do esgoto...

O almoxarife calou-se e olhou para Baldwin, que reconheceu a expressão do amigo, uma expressão de confusão intrigada. O cavaleiro resolveu arriscar uma nova pergunta:

- Se o que dizes é verdade, tens alguma ideia de quem terá tentado fazer com que pareças o culpado?

- Sim - retorquiu Cole, olhando em volta com um ar de fúria.

- Podes dizer-nos? - incitou-o Baldwin num tom suave.

- Quero ser eu a apanhá-lo - respondeu o homem depois de uma pequena hesitação. - O prejudicado fui eu, e quero a minha vingança.

- Será que compreendes a posição em que te encontras? - inquiriu o cavaleiro, incrédulo. - Roubaram toda a prata ao teu capitão e parte dela foi encontrada na tua posse. Para além disso, foi cometido um assassínio, provavelmente durante o roubo. Por que havemos de te dar ouvidos quando...

- Assassínio?! - O rosto empalideceu e o choque foi tão visível que Baldwin ficou convencido de que o homem não fazia ideia de que Sarra morrera. Porém, outra coisa era saber se o choque se devia ao facto do rapaz ter pensado que a jovem estava apenas ferida e que iria recuperar, ou por não ter conhecimento do ataque à jovem. - Qual assassínio? Quem é que morreu? Isto é um truque! Estão a tentar levar-me a confessar o roubo ameaçando-me com...

- Cala-te! - Interveio Tanner com brusquidão, mas Baldwin levantou uma das mãos para o acalmar. A seguir examinou o prisioneiro.

- Não se trata de nenhum truque e não estamos a tentar apanhar-te numa armadilha - explicou. - Tudo o que pretendemos é esclarecer um assassínio particularmente desagradável e neste momento és o principal, ou antes, és o único suspeito.

- Mas... nada sei a esse respeito! Quem foi que morreu? Um dos soldados? - Tinha o rosto cor de cinza e fez Roger pensar num saco repentinamente esvaziado. As faces do rapaz pareceram encovar-se e os olhos que os fitavam a todos eles revelavam a compreensão aterrorizada da situação perigosa em que se encontrava.

- Diz-nos quem poderá ter atirado tudo isto para cima de ti. Só estás com Sir Hector há pouco mais de um dia... Irritaste alguém? Ou terá sido obra de uma pessoa da tua terra?

Cole respirou fundo e encarou o olhar do cavaleiro com firmeza.

- Deve ter sido alguém do bando. Não faço ideia quem, mas deve ter sido um deles.

Baldwin acenou, encorajador, e o jovem prosseguiu num tom entrecortado e com a voz a trair as suas emoções.

- Os homens de Sir Hector passaram por aqui há cerca de cinco anos. Nessa altura eu tinha apenas catorze, mas o meu irmão Thomas tinha quase vinte e era um homem forte e endurecido. Era um bom irmão. Cuidou da família de quatro irmãos e uma irmã depois do nosso pai ter morrido quando ele tinha apenas onze anos. Trabalhava para qualquer agricultor que precisasse de ajuda. Quando a minha irmã decidiu casar-se, o Thomas trabalhou como um escravo para conseguir arranjar-lhe um dote. Porém, a seguir, a nossa mãe morreu, bem como o nosso irmão mais novo, e o Thomas não aguentou. Queria casar mas a rapariga que amava já estava noiva. No dia em que se casou, o meu irmão disse-me que se ia embora.

- Isso é tudo muito interessante, mas... - murmurou Baldwin.

- É importante, senhor. O Thomas deixou-me aos cuidados do John, o irmão que me restava, e foi-se embora. Não sabíamos para onde, mas apenas que partiu. Depois... bom, deve ter sido passado um ano... recebemos um recado. Houve alguém que passou pela nossa casa e nos visitou. Disse-nos que o meu irmão se juntara ao bando de Sir Hector e que morreu na Gasconha, durante um combate.

- Há muitas guerras na Gasconha, em particular na fronteira com a França - afirmou Baldwin e Cole confirmou com um aceno.

- Sim, senhor... e eu não teria pensado mais no assunto se o homem não nos tivesse dito que o meu irmão morrera enquanto combatia para Sir Hector como arqueiro. O Thomas era um bom lutador e todos o sabiam. Arqueiro? Nunca! Era péssimo e nem sequer conseguiria acertar num celeiro mesmo que lá estivesse dentro. Em combate, ninguém o deixaria aproximar-se de um arco. Era mais do género de empunhar uma lança para proteger os arqueiros, mas não para pegar num arco. Fiquei a pensar naquilo...

- São muitos os recados que acabam por ser deturpados, em particular depois de uma batalha - comentou Baldwin, pensativo.

- Eu sei, senhor, mas continuou a parecer-me estranho. O mensageiro foi muito claro. Quando o pressionei, insistiu que lhe tinham dito que o Thomas tinha sido arqueiro. De qualquer modo, o John morreu há dois meses, esmagado por uma carroça, na quinta. Já não havia nada que me mantivesse ali. Ouvi dizer que o bando de Sir Hector estava outra vez a passar por aqui e senti que tinha de o procurar para saber o que aconteceu ao Thomas.

- Para isso não precisavas de te juntar a eles - interveio Simon com secura.

- Não, senhor, não precisava - concordou Cole - mas quando os vi a todos na estalagem calculei que poderiam não querer contar-me o que se passou. Pensei que juntar-me a eles seria a melhor maneira de descobrir a verdade. Se não o fizesse manteriam as bocas fechadas e o silêncio... e quero saber o que realmente se passou com o meu irmão.

- E que foi que descobriste? - Baldwin acabara por ganhar interesse pela história, mesmo contra a sua própria vontade.

- Nada. Absolutamente nada. Perguntei pelo Tom junto de alguns deles, mas parecem nunca ter ouvido falar do meu irmão. Depois... aconteceu isto.

 

Simon soltou um suspiro de alívio quando se viu fora da cadeia. Era demasiado pequena, demasiado escura e sentira-se claustrofóbico enquanto lá estivera. O ar, no exterior, podia não ser melhor porque os fedores da rua se agravavam à medida que o Sol aquecia o conteúdo dos esgotos, mas pelo menos tinha a luz do dia e o ruído das pessoas livres que se atarefavam de um lado para o outro num esforço para ganharem a vida. Era infinitamente melhor do que a atmosfera da cadeia.

- Seria melhor irmos à estalagem em busca do Edgar e do Hugh - disse Baldwin, levantando os olhos para o Sol. Subia no céu e deveria ser quase meio-dia.

Atravessaram a rua, desviando-se de um cavalo e de uma carroça. Para a esquerda, o tripé ainda se mantinha no exterior do estabelecimento do açougueiro mas o almoxarife verificou que este desaparecera. Simon lançou uma olhadela ocasional através da janela e captou um relance do jovem aprendiz. Empunhava um maciço cutelo de açougueiro e golpeava a carcaça de um porco, suspensa de um gancho na parede, numa tentativa para o cortar ao meio ao longo da espinha. De vez em quando o rapaz parava para limpar a testa enquanto as moscas dançavam à sua volta. Simon sorriu. Compreendia até que ponto deveria ser cansativo levantar o enorme cutelo, semelhante a um machado, para o atirar contra a carcaça sob aquele calor. O rapaz deveria ter vários animais para esquartejar. Se não conseguisse completar o seu trabalho, então de certeza que o açougueiro não o deixaria com dúvidas quanto à sua incompetência como aprendiz. Parecia demasiado jovem para manobrar uma arma como aquela, uma vez que teria talvez treze ou catorze anos, e o almoxarife não conseguiu deixar de olhar para o rosto solene do jovem aprendiz de padre enquanto perguntava a si mesmo se Roger de Grosse compreenderia até que ponto era afortunado.

Fazia escuro na passagem para lá da entrada do mercado, o que era um conforto depois do calor de fornalha da rua, onde as brilhantes pedras da calçada pareciam mais quentes do que o próprio Sol. Não havia a mínima brisa e mesmo ali, na sombra, sentia o suor a escorrer-lhe dos sovacos e ao longo das costas. No entanto, teve de sorrir. Estava calmo, sem uma só sombra de medo a obscurecer-lhe as feições, um facto que o deixou orgulhoso.

Então, o almoxarife estava interessado no aprendiz do açougueiro? Devia possuir uma mente muito astuta! Astuta... ou vazia. De qualquer modo, era melhor do que a do amigo. Sir Baldwin de Furnshill era considerado como rápido e inteligente, como um inquisidor cauteloso mas tenaz, muito mais ameaçador do que o magistrado de Exeter que raramente se dava ao incómodo de se deslocar até Crediton. As fervilhantes hordas de marinheiros que enchiam o porto mantinham-no ocupado muito mais perto de casa e não precisava de viajar até tão longe para ver a morte sob todas as suas formas. Contudo, aquele Baldwin era considerado inteligente. O homem nas sombras troçou da ideia. Inteligente! Saíra da cadeia e dirigia-se de volta à estalagem, sem dúvida com a intenção de interrogar o capitão na sua toca para saber se este teria alguma ideia sobre os motivos para o assassínio da rapariga.

Os dois homens desapareceram na entrada e o observador voltou a sorrir. Tinha a mente novamente desanuviada, tal como estivera na noite anterior quando sentira a faca a deslizar tão suavemente no corpo dela. Foi como se estivesse a introduzir a arma numa bainha bem oleada, feita especialmente para acolher a espessa lâmina de um só gume. O modo como o seu cérebro ficara subitamente tão calmo, com pensamentos brilhantes como o cristal começara inicialmente por o surpreender, mas depois compreendeu que isso se devia ao facto de ser tão inteligente. Era impossível que os outros o descobrissem.

O rosto abriu-se-lhe num sorriso lento. Agora, iam em busca do homem que roubara o capitão. Era natural que encontrassem suspeitos porque só os homens que tinham algo a esconder se juntavam a um bando de mercenários.

Sim, concluiu. Deviam existir muitos tipos suspeitos num bando como aquele. Era bom manter o representante do Rei tão ocupado...

- Hugh, fazes o favor de acabar com isso?! - Em geral, Edgar exibia a tolerância de um irmão mais velho para com um mais novo nas suas lides com o servo de Simon, mas quando viu o homem a retirar a adaga da bainha pela sétima vez, para lhe examinar o gume como se desconfiasse que pudesse estar defeituoso, o seu temperamento começou a vir ao de cima. Quando não examinava a lâmina, o servo de Simon assobiava. Era um som oco e mortal que fazia Edgar recordar-se do vento a soprar nos ramos das árvores do cemitério da igreja no meio da escuridão da noite. Mesmo sentado, os dedos de Hugh não deixavam de tamborilar na superfície mais conveniente que se encontrasse junto dele.

- Que se passa? - perguntou irritado. - Não és capaz de estar quieto?

- Não - resmungou Hugh. - Não estou habituado a ficar de guarda a cadáveres. - O rosto do servo reflectia a sua disposição. Não se tratava apenas de sentir falta da hospitalidade de Peter Clifford, que estivera de acordo com as expectativas no que se referia à excelência da cerveja e ao conteúdo da despensa, Hugh crescera nas charnecas, um pouco a sul da floresta de Dartmoor, e a sua alma supersticiosa encolhia-se toda ante a necessidade de partilhar um compartimento com uma mulher assassinada. De acordo com o seu ponto de vista, teria sido ainda muito pior se se tivesse tratado de um suicídio, mas a vítima de um assassínio também o enchia de terrores. Permanecera acordado durante toda a noite, não propriamente por causa de um sentido do dever mas sim pelo receio de que o Diabo aparecesse para levar consigo uma alma que não fora absolvida dos seus pecados. Hugh podia não ser culto mas sabia o que os sacerdotes diziam: um homem ou uma mulher que morressem sem ter tido a oportunidade de confessarem os seus pecados não podiam ser sepultados em terreno santificado. Não podiam ir para o Céu, pertenciam ao Diabo e Hugh passou uma noite desassossegado e temeu que todos os pequenos sons que ouviu pudessem ser provocados pelo Diabo, para a levar.

Agora, sob a quente luz do Sol de um novo dia, passava por um sentimento de anticlímaxe.

- És filho de um agricultor e de certeza que já tiveste de te sentar junto de um cadáver.

Hugh olhou-o por instantes.

- Claro que sim! Contudo, o meu amo nunca me tinha dito para vigiar um compartimento com um cadáver lá dentro, para o caso de aparecer um patife qualquer que queira mudar as coisas de sítio... - Levantou-se, aproximou-se novamente da arca e olhou para baixo, para onde jazia o corpo de Sarra.

O amo e Baldwin tinham-no coberto com uma peça de pano que tinham encontrado na arca, pelo que o rosto se encontrava oculto, mas o corpo constituía um verdadeiro fascínio para Hugh. Era triste vê-la morta. Estava habituado à morte sob todas as suas formas, desde a morte por falta de alimento durante as terríveis fomes de 1315 e 1316, às mortes pelas espadas e pelos machados durante os ataques dos fora-da-lei havia uns quatro anos, mas aquela pequena figura, cujos cabelos tombavam como fios de seda por baixo do pano, parecia-lhe muito mais triste do que todas as outras.

- Deus do Céu! Senta-te e vê se paras quieto! Estás a enervar-me! Hugh grunhiu e dirigiu-se para a outra arca. Sentou-se, pousou e pousou a mão ao lado. Inconscientemente, começou a tamborilar uma rápida percussão. Edgar já tinha a boca aberta para berrar com ele quando se ouviu uma pancada na porta. Resmungou de irritação e abriu-a.

Lá fora encontrava-se um velho soldado.

- O meu amo mandou-me aqui para lhe vir buscar algumas roupas. - Edgar não respondeu e manteve a porta bem agarrada. O homem olhou para lá dele, para o corpo, e abanou a cabeça com tristeza. - Pobre moça...

O soldado entrou e começou a deslocar-se de arca em arca. Hugh viu o modo como os seus olhos se deslocavam, ocasionalmente para a figura estendida no chão. Não revelavam medo ou terror, mas apenas uma espécie de aceitação desinteressada, como se se tratasse de uma visão demasiado vulgar para justificar uma qualquer curiosidade especial. A constatação beliscou os sentimentos do servo. Sentira-se muito orgulhoso por ter aguentado a vigília e achava que os outros se deviam mostrar impressionados com a coragem de dois homens que se tinham atrevido a desafiar fantasmas e espíritos ao permanecerem ao lado de um cadáver.

O homem de Sir Hector avançou para ele e fez um gesto.

- Também tenho de abrir essa arca.

Hugh levantou-se, vexado, e esperou enquanto o homem remexia na arca. Acabou por escolher uma capa curta e um cinto decorativo com uma fivela esmaltada.

Mal o homem acabara de se ir embora quando Simon e Baldwin apareceram na companhia de Roger, Para grande desgosto de Hugh, nenhum lhe perguntou como lhe tinha corrido a noite. Limitaram-se a entrar e a retirar o pano de cima do corpo para que o cavaleiro o pudesse estudar mais atentamente. A sua atenção foi imediatamente atraída para a cabeça de Sarra.

Simon sugou os dentes, avançou para a pequena janela e espreitou para o exterior. Viu carroças e carrinhos a passarem pela rua, à mistura com homens a cavalo. Os que andavam a pé apressavam-se de um lado para o outro. Era uma rua movimentada e começou novamente a interrogar-se sobre se alguém conseguiria passar artigos a um cúmplice escondido por trás de uma carroça. Inclinou-se para a frente e tocou na estrutura da janela. Sim, havia ali espaço suficiente para que um homem se contorcesse e conseguisse sair, desde que fosse muito pequeno... e as portadas estivessem abertas.

Baldwin pediu a Edgar que o ajudasse, juntos, os dois homens rolaram o corpo com cuidado até ficar deitado de lado. Havia um alto por trás da orelha esquerda de Sarra e uma crosta de sangue. Era algo muito parecido com o ferimento de Cole, mas com uma diferença: o golpe sofrido pela jovem fora de raspão, rasgara a pele e provocara sangramento. Devia estar viva quando aquilo aconteceu, uma vez que o sangue escorrera. Isso explicava um pouco do mistério a seu respeito: estava viva mas inconsciente quando a tinham amarrado e amordaçado. A questão seguinte, sabia-o, era saber por que razão foi apunhalada. Estudou-a, aproximou-se da arca e examinou o contorno do corpo. Simon puxara um pano para o lado e Baldwin voltou a colocá-lo no seu lugar com todas as cautelas. Ali, onde a cabeça jazera, havia uma pequena mancha acastanhada, quase negra. Nesse caso, não havia dúvidas de que estivera viva quando fora metida na arca. Sabia que os mortos não sangram. Foi assassinada mais tarde.

Suspirou e levantou-se. Simon deixara de espreitar pela janela e saía do compartimento. Baldwin fez uma pausa, ajoelhou-se, serviu-se da adaga e cortou um grande bocado ao tecido da túnica. Enfiou-o na bolsa, seguiu o amigo para o quarto de Sir Hector e ficou a olhar em volta com uma expressão introspectiva enquanto Simon espreitava pela janela. Roger apareceu por trás deles.

Simon verificou que lá fora, no pátio, se encontravam vários homens sentados em volta de uma mesa, a beber. Riam-se e brincavam à sombra de um velho ulmeiro enquanto os restantes tratavam das armas. Alguns poliam elmos e escudos até ficarem tão brilhantes sob a luz do Sol que se tornava doloroso olhar para eles. Dois homens fabricavam setas e enrolavam habilidosamente fios em volta das penas para que se mantivessem no seu lugar. Outro passava uma pedra pelo gume da espada para a afiar.

Ouviu Baldwin a murmurar qualquer coisa por trás dele, mas a sua atenção estava centrada na cena que tinha lugar no pátio. Era raro ver homens de guerra num local como aquele, tratando dos seus assuntos com uma despreocupação casual que quase os fazia parecer normais. A visão não teria sido mais tranquila se se tratasse de agricultores a limparem as ferramentas e a prepararem-se para um dia de trabalho. Como que para dar ainda mais ênfase ao facto, as galinhas da estalagem debicavam e raspavam o solo em volta deles com os seus típicos movimentos sacudidos, num estranho contraste com a suavidade dos gestos dos homens a tratarem das armas. A pedra que raspava a lâmina da espada dava ao ambiente um toque rítmico, como se fosse o som de uma gadanha a ceifar cereais. Os panos com que os homens esfregavam os escudos até ficarem polidos como espelhos dava a tudo aquilo um ar doméstico que ajudava a confirmar a impressão de estar perante uma calma rústica.

- Para onde estás a olhar?

- Nunca me passou pela cabeça que fosse necessário polir as armaduras daquele modo... - respondeu Simon, apontando.

O cavaleiro exibiu um pequeno sorriso ante a ignorância do almoxarife.

- Os guerreiros profissionais fazem-no frequentemente. A maior parte dos exércitos é formada por camponeses que foram arrancados aos campos e a quem os seus amos ordenaram que combatessem por uma causa que na maior parte das vezes não compreendem. Por vezes até se portam bem quando são lançados contra outro exército semelhante. Contudo, quando se vêem a enfrentar homens envergando armaduras, homens que brilham como anjos sempre que o Sol os ilumina e que emitem reflexos tão intensos que são difíceis de suportar, os camponeses têm tendência para lhes virar as costas e fugir. Os mercenários são pessoas naturalmente aguerridas porque é desse modo que ganham a vida, de modo a que praticam e se treinam para terem mais possibilidades de vencer. No fim de contas, as batalhas não dão qualquer lucro se se morrer. Todos os soldados desejam vencer e viver, para poderem gozar os seus ganhos. Um escudo e um elmo brilhantes ajudam a colocar as probabilidades mais a favor dos mercenários.

- Quer dizer que tudo o que fazem... é com a intenção de virem a poder matar com mais facilidade...

- E não só. A ideia é vencer... - Baldwin estudou o amigo. - Tudo o que querem é fazer dinheiro, tal como qualquer outro homem de negócios. Não o podem ganhar com os mortos. Os prisioneiros com algum valor são trocados por um resgate mas, em geral, os mercenários contentam-se em pôr em fuga os seus inimigos mais pobres.

- E se falharem... e os prisioneiros tiverem pouco ou nenhum valor de resgate?

- Nesse caso, os prisioneiros são mortos - declarou Baldwin com a voz a endurecer. - Contudo, a crueldade não é exclusiva dos bandos de mercenários. São sempre os mais fracos e pobres quem mais sofre, seja qual for a guerra. É o que deve estar a acontecer na Escócia enquanto o exército de Inglaterra tenta conter o Bruce.

Simon semicerrou os olhos, num trejeito de concentração.

- Aqueles além, na mesa, não são os dois que apanharam o Cole na noite passada?

Baldwin acenou uma confirmação.

- Já que vamos ter de conversar com eles, então podemos fazê-lo agora - respondeu, Baldwin e Simon saíram do quarto com os outros a reboque.

Sir Hector estava sentado no salão e queixava-se amargamente a respeito da qualidade da comida a um Paul muito agitado. Baldwin lançou um rápido olhar de simpatia a este último e o estalajadeiro rolou os olhos. Quando chegaram à entrada viram Cristine a aparecer do outro lado, carregada com uma grande bandeja. A mulher recuou Para sair do caminho de Baldwin e baixou a cabeça numa pequena vénia de respeito, mas o cavaleiro viu-a exibir uma emoção diferente. O rosto abriu-se-lhe num sorriso brilhante que lhe transformou as feições cansadas, Baldwin olhou... e viu-a virada para o seu próprio servo. Edgar reparou na olhadela do amo e tentou adoptar a habitual máscara inexpressiva, mas não o conseguiu com a rapidez suficiente. Compreendeu que Sir Baldwin não se deixara enganar e o cavaleiro teve de se esforçar para conter um sorriso. Afinal, concluiu, o seu servo tinha profundidades ocultas que ainda o conseguiam surpreender.

Henry, o Barreira, encontrava-se estendido no assento com as costas encostadas à parede da estalagem e as mãos metidas no cinto. Arrotava suavemente, de contentamento, e mantinha os olhos meios fechados. O Sol aquecia-o, pensava que poderia estar em França... excepto quanto a preferir beber em Inglaterra. O vinho aguado era um fraco substituto para uma boa cerveja, mesmo que se tratasse de uma cerveja fraca. Margery era uma fabricante de cerveja muito capaz e a sua cerveja mais forte revelara ser suficientemente poderosa para pôr os homens a dormir quando não estavam habituados. A mais fraca, fermentada com menos cevada, possuía uma suavidade sedosa e agradável que o levara a emborcar três grandes canecas. Não gostava do hábito continental de adulterar a boa cerveja com sementes como a do lúpulo, que tornava a bebida demasiado amarga. Para além disso, toda a gente sabia que essa beberagem era má para a saúde e fizera com que os flamengos do norte de França, que a bebiam em grandes quantidades, se tornassem gordos e belicosos. Não havia cerveja tão boa como a boa cerveja inglesa.

A sensação de bem-estar foi rudemente interrompida quando John lhe enfiou um cotovelo nas costelas.

- É o Guardião, Henry! Henry, acorda! O Guardião e o amigo estão aqui. São os dois que nos encontraram na noite passada. Estão de volta!

Henry arriscou uma rápida olhadela por baixo das sobrancelhas contraídas para observar o almoxarife e o amigo. Pararam junto à porta e abarcaram a cena com três outros homens atrás deles antes de começarem a avançar na direcção da mesa. Henry espreguiçou-se, bocejou e endireitou-se com algum esforço.

- Vamos ver o que querem.

Sorriu com alegria, numa verdadeira imagem de honestidade descontraída, mas a sua mente revia apressadamente a história do que acontecera na noite anterior. Henry conhecia a reputação de que o Guardião gozava na área. A acreditar no que se dizia a seu respeito na cidade, era um homem capaz de adivinhar a verdade apenas pelo modo como as pessoas falavam. Henry não acreditava em tais poderes mas estava preparado para aceitar que Baldwin era astuto. Não queria que o cavaleiro adivinhasse o que realmente se passara na noite anterior, pelo que afivelou o sorriso no rosto com tanta firmeza como se tivesse sido colado... e aguardou.

Para Baldwin, aqueles dois, vistos à distância, não passavam de um par de homens normais a descansarem ao sol. Um deles dormitava enquanto o outro mantinha os cotovelos pousados na mesa e beberi-cava uma grande caneca de cerveja. Foi quando se aproximou e lhes viu os rostos que sentiu uma vaga de desagrado. Para ele, a primeira impressão a respeito do Cole fora boa, mas a reacção imediata àqueles dois, sob a luz do dia, foi exactamente a oposta.

Na noite anterior pensara que um deles não passava de um desgraçado pouco favorecido pela sorte, mas já o podia ver bem e concluiu que fora demasiado generoso. Sob a luz do dia, John Smithson constituía uma visão tão desagradável quanto era possível imaginar, com feições encovadas, uma testa estreita profundamente sulcada, um rosto aguçado e olhos claros e inquietantes que evitavam o olhar de Baldwin. Já mais perto, o cavaleiro foi brindado com o espectáculo de Smithson a tomar um gole da cerveja. Parte dela escorreu-lhe da boca e o homem limpou-a com as costas da mão. O cavaleiro ficou grato por ainda não o ter visto a comer.

Não havia mais ninguém naquela mesa. No entanto, os homens do bando enchiam várias das outras mesas e Simon perguntou a si mesmo por que razão aqueles dois estariam sozinhos. Tratou-se de uma ideia fugidia que afastou da mente logo que se sentou.

Hugh constatou, mal-humorado, que aquela conversa iria durar algum tempo. Instalou-se por trás do amo com uma expressão sombria logo que Baldwin, que olhava para Henry com um ar pensativo, iniciou as inevitáveis perguntas.

- Na noite passada estávamos todos muito cansados e a excitação da caçada embotou-nos os sentidos. Já quase não me recordo do que disseram a respeito do tal Cole e do modo como o apanharam. Podem contar-nos tudo outra vez?

Hugh ficou à escuta enquanto o homem explicava como ele e o amigo tinham reparado em Cole, na cidade. Inicialmente tinham ido atrás dele para o convidarem a tomar uma bebida, mas depois de se aproximarem tinham ficado desconfiados com o seu comportamento. Caminhava de uma maneira furtiva, como um homem que tem algo a esconder, pelo que haviam decidido segui-lo. Era óbvio que conhecia bem a cidade porque se enfiara por ruelas estreitas e só raramente passara por onde pudesse ser visto. Para além disso, evitara os locais para onde os homens de Sir Hector pudessem ter ido. Tinham passado por baixo de roupa a secar em cordas, que lhes pingara em cima, e rodeado montes de esterco, até ao momento em que o tinham visto a deixar cair qualquer coisa. O objecto tilintara e rodopiara no chão como uma moeda, brilhara... e tinham percebido que deveria tratar-se de uma salva ou de um prato. De súbito, horrorizados, tinham compreendido o que era provável que se tivesse passado: Cole roubara a prata do capitão e pusera-se em fuga.

Ao dobrar-se para apanhar a salva, Cole olhara para trás, por acaso - Henry exibiu um sorriso de desgosto, como se sentisse muito infeliz com a sua própria estupidez -, e vira-o. Henry deixou implícito que, se não estivesse tão interessado em descobrir o que o outro deixara cair, então teria sido provável que Cole não o visse. De qualquer modo, o fugitivo começara a correr. Tinham gritado a pedir ajuda mas não se encontrava ninguém por perto e haviam-no perseguido durante alguns quilómetros antes de o conseguirem apanhar já fora da cidade.

A atenção de Hugh começou a vaguear. Já ouvira tudo aquilo na noite anterior e não estava interessado nos pequenos pormenores sobre como os dois heróis tinham conseguido abater a presa. Numa outra mesa, a alguma distância, havia espaço para três homens, se se apertassem um pouco. Sabia que Edgar estava comprometido com a defesa do seu amo, acontecesse o que acontecesse, mas não era necessário que ficassem mesmo atrás de Simon e Baldwin. Um assento a alguns metros de distância não faria grande diferença. Indicou a mesa a Roger, que se conservava encostado à árvore, muito aborrecido, e tentou chamar a atenção de Edgar. Contudo, foi apenas quando Hugh deu um-pásso atrás que Edgar reparou nele. Hugh agitou a cabeça na direcção da mesa, num gesto silencioso, Edgar desviou os olhos do amo e acenou.

Simon teve consciência de que os três homens se tinham afastado. Viu-os sentarem-se por perto e virou a sua atenção para Henry.

- Fico surpreendido por ninguém vos ter ouvido quando pediram ajuda... - comentou Baldwin.

- Também eu fiquei, senhor. - Henry abriu as mãos, com as palmas para cima, num gesto de exaspero. - Teríamos evitado uma grande corrida se tivesse aparecido alguém para nos ajudar.

- Pois é. Contudo, o que se passou parece muito claro... - Baldwin começou a falar de um modo muito lento, que algumas pessoas poderiam confundir com sonolência, mas que Simon reconhecia como sendo a prova de uma extrema concentração em relação aos pormenores. - Andaram atrás dele durante muito tempo, não é verdade?

- Suponho que cerca de três horas - disse Henry, lançando uma olhadela para o amigo. John encolheu os ombros e acrescentou:

- Como querem que saiba? Vimo-lo ao fim da tarde e já era noite quando nos encontraram na estrada.

- Nesse caso, vamos presumir que tudo isso foi ao fim da tarde. Talvez nos possam dizer, pelo menos aproximadamente, quanto tempo levaram a segui-lo e durante quanto tempo correram atrás dele?

- Desculpe, senhor, mas não lhe sei responder, Não, não faço ideia. De qualquer modo, para que interessa isso?

- Talvez não interesse mas perguntava a mim mesmo onde teria o Cole escondido a prata que roubou... e quando, é claro!

- Quando? Simon interveio.

- Sim, quando. O quando parece ser um problema muito interessante em relação a todos os aspectos deste assunto. Quando foi que ele entrou no quarto do capitão, quando retirou a prata, quando fugiu com ela, quando a escondeu? A única outra questão com interesse, para além dessas, é saber onde a escondeu ou com quem.

- Isto, é claro - acrescentou Baldwin - porque houve mais de um homem envolvido no roubo.

- Como pode saber uma coisa dessas? - perguntou Smithson rapidamente.

Baldwin ignorou-o.

- Sir Hector é um homem cauteloso, não é verdade?

- Oh, sim. Muito! Tem de o ser... porque já aborreceu alguns homens poderosos, tanto em Inglaterra como em França. É natural que seja cuidadoso...

- Deve desconfiar dos estranhos...

- Sim.

- Para além disso, suponho que se certifica que ninguém que ele não conheça muito bem se possa aproximar da sua comida e bebida.

Henry recostou-se confortavelmente no assento.

- Sem dúvida. Alguns dos seus inimigos podem tentar fazer-lhe mal com venenos.

- Claro que só deve ter confiança num pequeno grupo de homens...

- É verdade.

- Tal como tu, por exemplo.

- Sim. Estou com ele há muitos anos. - Henry sorriu.

- Lembras-te do irmão do Cole?

- O irmão do Cole? - perguntou Henry, franzindo a testa, inseguro.

- Não te lembras dele? É estranho... Sir Hector permite que entres no quarto dele, não é?

- Sim, autoriza-me que o veja quando quero. No fim de contas, sou o seu ajudante, sabem?

- Sim, já sabia. Ontem à noite disse-me que és um dos poucos homens autorizados a entrar no seu quarto. Confia em ti. Também confiaria no Cole?

- No Cole? - Henry riu-se à gargalhada e Smithson, reconhecendo que se tratava de algo engraçado, abriu a boca num grande sorriso vazio.

- Onde está a graça?

- Nunca permitiria que o Cole se aproximasse a um metro da sua porta! Ninguém que seja novo no grupo se aproxima de Sir Hector. Como já disse, é muito desconfiado. Depois de alguns meses talvez começasse a confiar no Cole, mas seria preciso muito tempo.

- Suponho que todos os homens de Sir Hector têm consciência desse facto?

- Oh, sim!

- Quantos calculas que se encontrassem no salão ontem à tarde?

- Uns dez, ou perto disso. Há sempre homens de guarda, para o caso de...

- Para o caso de alguém tentar roubar os valores de Sir Hector - concluiu Baldwin por ele. - No entanto, houve alguém que entrou, não é verdade? Houve alguém que entrou, pela porta, e nesse caso teve de passar sob todos os olhos que se encontravam no salão, ou pela janela... onde poderia ser visto pelos que se encontravam na rua. Como pensas que foi?

- Eu? - Henry pareceu confundido. - Não sei, não estivemos lá durante todo o tempo.

- Mas estiveram lá durante algum tempo?

- Tive de falar com o capitão a respeito dos problemas com um cavalo. Fui vê-lo mas não estava no quarto, pelo que voltei a sair imediatamente. Tentei voltar a vê-lo mais tarde mas também não estava. Desisti e saí com o John.

- Já não era assim tão importante?

- Nessa altura já não. O cavalo parecera-me coxo mas à tarde, quando saímos da estalagem, já tinha recuperado.

Hugh começava a desistir. Tentara, de todas as maneiras que conhecia, estabelecer uma conversa com os outros homens em volta da mesa mas aparentemente nenhum deles queria falar. Quando os olhava os homens desviavam rapidamente as caras e via-se obrigado a conversar com Roger. Edgar ignorava propositadamente todos os que se encontravam à mesa e não desviava os olhos do amo.

- Ah... - declarou Hugh, num tom genial - foi uma sorte que o Henry e o John lá estivessem quando o Cole tentou roubar a prata, não foi? Pelo menos, conseguiram apanhá-lo. - Fez-se o silêncio em volta da mesa. - Sir Hector ficaria furioso se ele tivesse conseguido fugir, não é verdade? - Na sua frente, o homem que estivera no pequeno armazém para ir buscar roupas para Sir Hector pigarreou com força e cuspiu. Hugh sentiu o rosto a desmoronar-se. O homem, um velho guerreiro grisalho com fios de prata a brilhar em ambos os lados da espessa barba encaracolada, troçava dele. Hugh voltou a tentar. - Suponho que temos de esperar que o Cole diga onde escondeu a prata, não é? Foi uma pena, aquilo da rapariga...

- Bastardo estúpido! Não tinha necessidade de matar a pobre rapariga!

Hugh virou-se para o homem que cuspira. Os seus brilhantes olhos negros fitavam-no, desafiadores.

- Teve o azar de estar lá e o Cole não deve ter querido testemunhas...

- Talvez - murmurou o homem.

- Pelo menos, aqueles dois apanharam o Cole... - repetiu Hugh, num tom fraco, já a sentir a tensão de ter de manter a conversa.

- Achas que sim?

- Eu... - Hugh fitou o homem. - O quê?

- Pelo que pude ver, o Cole era um burro. Confiou naqueles dois.

- De que estás tu a falar?

- Aqueles dois bastardos passam o tempo a bisbilhotar até saberem tudo a respeito de toda a gente... e a seguir começam a chantagear as pessoas. Cole tinha dinheiro mas recusou-se a dar-lhes algum. Depois, nessa mesma tarde, é descoberto a roubar... por aqueles dois...

Roger ficou de boca aberta. Edgar continuou sentado, perfeitamente imóvel como se nada daquilo lhe interessasse, mas ouvia atentamente todas as palavras e variações no tom da voz do outro enquanto Hugh gaguejava:

- Mas que... Como podiam eles...?

- Toda a gente que vem para um bando como este tem uma história, não é verdade? Um passado. Alguns não podem ficar em casa por causa de qualquer coisa que aconteceu, como uma luta em que alguém foi ferido, por terem uma amante já casada com outro... ou por qualquer outra razão. Aqueles dois estupores certificam-se de que descobrem os segredos de um homem e depois ameaçam ir contá-lo a toda a gente. "Por que estás aqui?" perguntam, num tom muito amigável. "Toda a gente nos conta por que se juntou a nós", ou "Ninguém confiará em ti até sabermos o que foi que fizeste". - Voltou a cuspir e engoliu mais cerveja como que para lavar um sabor amargo. - Depois dizem: "Precisamos de algum dinheiro. Afinal, não temos dinheiro suficiente e queremos tomar uma bebida. Por que não nos dás algum?" Se o novo recruta não coopera, a sua história acaba por ser conhecida de toda a tropa e mais tarde até pode acabar por chegar aos ouvidos das pessoas da terra dele.

- Foi assim que enganaram o Cole?

- Não, ele enganou-os. Mentiu quando lhe perguntaram por que se tinha junto a nós. Quando tentaram espremê-lo, retorquiu que podiam ir àquele sítio...

- Vem daí, Wat, já falaste demasiado... - disse outro dos homens da mesa, que se remexia no seu lugar, incomodado. - Vais meter-te em sarilhos. Eles vêem que estás a falar.

- Julgas que me ralo? - O homem mais velho olhou com truculência para John Smithson, que o observara com os olhos semicerrados. - Não me podem fazer nada e sabem-no.

Edgar virou-se lentamente no assento, passou uma perna por cima da tábua do banco e enfrentou Wat.

- Estás a querer dizer que pensas que foram aqueles dois quem roubou Sir Hector e matou a Sarra?

O homem mais velho tomou um enorme gole e esvaziou a caneca de cerveja.

- Não sei quem roubou Sir Hector, nem quem matou a rapariga. - Edgar encolheu os ombros, esboçou um meio sorriso e começou novamente a virar-se para vigiar o amo. Wat, ofendido com o seu ar condescendente, pousou a caneca na mesa com toda a força. - Cachorro ignorante! - Inclinou-se para a frente, agressivo, e prosseguiu num tom baixo e áspero: - Pensas que sou apenas um velho idiota que bebeu demasiado numa manhã de Verão, não é verdade? Julgas que por trabalhares para um amo educado podes olhar do alto para as pessoas simples como eu, por não passarmos de escória sem importância? Somos estúpidos e não sabemos o que se está a passar, não é? Pois bem, não sei o que se passou lá dentro,., mas sei que aqueles dois entraram na câmara de Sir Hector ao princípio da tarde, está bem? Voltaram a fazê-lo mais tarde e ficaram lá dentro durante algum tempo das duas vezes.

- Só dizes asneiras - troçou o outro soldado. - Bebeste demasiada cerveja! Havia homens no salão e teriam visto...

- Aqueles bêbedos nem teriam visto nada mesmo que o próprio Rei tivesse passado por eles! Estou a dizer-te o que vi: o Henry e o John entraram lá... por duas vezes. Talvez esteja enganado e não tenham sido eles. Talvez se tenham perdido no meio de todos aqueles quartos, Podem não ter roubado a prata nem morto a rapariga... mas tiveram tantas oportunidades para o fazer como o pobre do Cole!

- Mas por que iriam atirar as culpas para cima do Cole? Nem sequer se passou tempo suficiente para terem motivos para embirrarem com ele... - comentou Edgar com um ar incrédulo.

- Homenzinho patético!- cuspiu Wat com desprezo. - Então e o irmão do Cole? Sabes que pertenceu ao nosso bando e morreu em combate... pouco depois de ter apanhado um refém? Depois dele ter morrido, o Henry e o John conseguiram lançar as mãos ao prisioneiro e apoderar-se do resgate. Se o Cole ainda não o sabia... irá descobri-lo em breve! Talvez não seja tão brilhante como tu, homenzinho, e comece a interrogar-se sobre se aquele par terá visto o seu irmão Thomas com o refém e decidisse que se tratava de um lucro demasiado grande para um rapaz tão jovem... Talvez o Cole se interrogue sobre se o irmão morreu de uma facada no peito ou de uma punhalada nas costas... ou se os seus novos amigos estariam a mentir quando disseram que gostavam do irmão dele, Já agora, talvez aqueles dois tenham concluído que as suas vidas seriam mais fáceis sem a intromissão do Cole...

 

- Também pode ser que o Cole tenha roubado a prata e tenha sido interrompido pela rapariga... Pode ter feito a primeira coisa que lhe veio à cabeça e matou-a. - retorquiu Edgar.

- Pois... e também pode acontecer que os porcos ganhem asas e comecem a voar como os corvos! Se o fez, por que se deu ao trabalho de se juntar ao bando?

- Para descobrir o que aconteceu ao irmão, tal como disseste.

- Nesse caso, por que roubou a prata antes de fazer qualquer coisa a esse respeito?

- Fazer o quê?

- Diz-mo tu, homenzinho, já que és tão esperto - troçou Wat. - Se tivesses passado anos a interrogar-te a respeito de um irmão teu... ias roubar outra pessoa precisamente quando tinhas a possibilidade de descobrir o que lhe aconteceu?

- Talvez o tenha descoberto.

- E colocou-se fora da lei antes de se poder vingar? É óbvio que não é tão esperto como tu, não achas?

- Quer dizer que pensas que não pode ter sido o Cole? Estás a dizer que foram o Henry e o John? - inquiriu Edgar. - Compete ao teu amo decidir, não é assim?

Edgar estudou Wat com os olhos semicerrados e acenou lentamente.

 

Simon estava farto. Os homens eram cautelosos nas suas respostas e Baldwin tinha de se esforçar para conseguir extrair-lhes todos os pormenores. Para o almoxarife, aquilo era aborrecido. Não havia um intercâmbio verbal, apenas um interrogatório pormenorizado com o cavaleiro a verificar a história e com os homens a darem-lhes respostas monossilábicas e não comprometedoras.

O almoxarife descobriu que a sua atenção começava a vaguear. Viu Hugh e Edgar sentado num banco próximo, a conversarem com um homem idoso enquanto os outros os olhavam com desconfiança. Os homens que poliam as armaduras tinham desaparecido. O outro continuava a afiar a espada com a pedra mas tratava-se apenas de uma actividade automática. Já não pensava no metal que se encontrava na sua frente e Simon não ficou surpreendido, tendo em conta que o Sol atingira o zénite. O ambiente estava abafado e quente mesmo debaixo do ulmeiro, sem a mínima brisa para lhe agitar as folhas.

Levantou-se e caminhou para a estalagem com a intenção de pedir uma bebida. Contudo, quando entrou na despensa descobriu a mulher do estalajadeiro adormecida numa cadeira, com a cabeça caída para trás e a boca aberta, a ressonar baixinho e a ofegar. Sorriu e deixou-a em paz. Interrogou-se sobre onde estaria o marido, encaminhou-se para o salão e espreitou para o interior. Estavam três homens sentados no estrado a jogarem aos dados. Tinham ali sido colocados por Sir Hector e não permitiriam a passagem fosse de quem fosse.

Simon não tentou pô-los à prova para ver se cumpririam essa ordem. Voltou para trás, passou para lá da despensa e encostou-se a ombreira da porta para a rua.

A visão da rua principal de Crediton nunca deixava de lhe dar prazer. Visitara muitas outras cidades e até estivera em Exeter por duas vezes mas Crediton, em comparação, parecia-lhe perfeita, Era movimentada e não intimidava os visitantes com as suas dimensões. Havia outras terras demasiado grandes, com ruelas e becos que constituíam armadilhas potenciais para os incautos, mas em Crediton toda a gente conhecia toda a gente e era seguro misturar-se com a multidão. Enquanto olhava viu passar jovens mercadores e comerciantes, a tratarem dos seus assuntos, cónegos que evitavam desdenhosamente o estrume que lhe aparecia pela frente, um caçador com uma camisa grosseira e uma jaqueta de couro que caminhava orgulhosamente com os cães a seguirem-no junto aos calcanhares, e a mulher de um rico burguês, cuja serva transportava uma pesada capa azul. Simon sorriu e acenou-lhes mas a mulher do burguês ignorou-o, pensando que talvez estivesse bêbedo. A serva mirou-o pelo canto do olho e brindou-o com um sorriso brilhante que compensou a rudeza da ama.

Cruzou os braços. Ao princípio chegara a pensar que o roubo e o assassínio iriam ser o suficiente para lhe despertar o interesse, mas a sua mente já não se interessava pelo destino do homem que se encontrava na cadeia e voltara a pensar na mulher.

Margaret fora sempre tudo o que mais desejara numa esposa. Era atraente, inteligente e tivera sobre ele uma influência calmante naqueles momentos de maior ira quando se chocara com os mineiros que tinham colonizado as charnecas. Amara-a desde o primeiro instante em que a vira e nunca se arrependera daquele casamento. Dera-lhe as duas maiores alegrias da sua vida: Edith e Peterkin. Contudo, agora, Peterkin fora-se e levara consigo uma grande parte do seu interesse pela vida. Já não tinha a paciência que tivera outrora quando Edith brincava em casa e nem sequer conseguia conversar com Margaret a respeito da sua sensação de perda.

Sentia que era mais fácil manter as emoções bem guardadas. Preferia evitar discutir o Peterkin porque sabia que a levaria a falar e o obrigaria a respostas evasivas. As coisas teriam sido diferentes se tivessem mais filhos o que para eles parecia ser difícil de conseguir, uma vez que haviam tido dois com anos de intervalo, anos em que se verificara toda uma série de abortos espontâneos. Não estava certo de que ela fosse capaz de lhe dar outro filho e era isso o que o magoava. Não que quisesse outra mulher... mas era triste não ter um filho com quem brincar e a quem pudesse educar e treinar.

Ouviu um grito muito agudo, atirou-se para a frente e a seguir esforçou-se por se descontrair. Fora apenas um garoto a rir-se. Por qualquer razão, Simon sentiu um formigueiro de antecipação no escalpe. Ouviu um segundo grito de satisfação e resolveu seguir o som quase sem se aperceber de que o fazia.

As risadinhas e os gritinhos de prazer provinham de uma ruela ao lado da cadeia, pelo que Simon atravessou a rua, dando empurrões nalgumas pessoas. Parou à entrada da ruela e espreitou para o interior. Havia roupa lavada pendurada em cordas gastas e pouco esticadas... e por baixo só se via escuridão. Depois do brilhante sol da rua principal, Simon viu-se obrigado a pestanejar. Ali, um pouco mais para diante, encontrava-se a mulher e o filho que tinham salvo do soldado.

Roger observara o almoxarife a atravessar a rua e resolveu segui-lo. Para ele, o interrogatório também se tornara muito aborrecido.

Viu Simon hesitar à entrada da ruela. O almoxarife interrogava-se sobre se se deveria ir embora antes que a mulher o visse, ou se seria melhor aproximar-se para conversar com ela. A mulher poupou-o a essa decisão. Levantou os olhos quando a sombra de Simon obscureceu a entrada, soltou um pequeno grito e estendeu os braços. O garoto precipitou-se para a protecção da mãe, rodeando-lhe o pescoço com os braços magricelas e choramingando. O almoxarife compreendeu imediatamente que devia ter parecido uma figura ameaçadora, com o Sol atrás das costas e as feições ocultas nas sombras. Sorriu e recuou para que a luz lhe iluminasse o rosto, e afastou as mãos um pouco do corpo para lhe mostrar que não empunhava qualquer tipo de arma.

A mulher usava a mesma túnica cinzenta gasta e rota, com uma corda em volta da cintura para lhe dar um qualquer tipo de forma. Os olhos de Simon começaram ajustar-se e viu que a mulher possuía um rosto magro e estragado, pouco mais do que uma caveira acinzentada de onde uns olhos muito afundados o fitavam com uma expressão de quase pânico. Tinha farrapos de cabelos claros a sobressaírem da touca e a penderem-lhe, sem força, para o rosto. Segurava a criança nos braços e olhava-o como se estivesse convencida de que Simon se preparava para a atacar... e o medo era claramente visível.

Não havia razão para que aquela mulher quisesse falar com ele. Era verdade que a ajudara durante a noite, mas não o reconhecia porque na altura fazia escuro e ele se mantivera sobre a sela do cavalo. Observar uma figura que se erguia a dois metros e meio acima dela de certeza que não lhe dera uma boa perspectiva, e estivera tão assustada com as ameaças do homem de armas que provavelmente nem lhe vira a cara.

De súbito a mulher deu um salto, puxou a criança para o peito e pôs-se em fuga ao longo da ruela. Simon deu um passo em frente, automaticamente.

- Senhor?

O almoxarife ouviu a voz de Roger e parou. Não valia a pena seguir a mulher porque só serviria para a assustar ainda mais. Deixou cair os ombros com uma pesada melancolia, formada principalmente por inveja, e virou-se para enfrentar Roger.

A mulher passou por ele a correr. Era tentador, mas matá-la naquele momento seria uma estupidez. Judith podia esperar. Não podia tratar dela enquanto o almoxarife estivesse suficientemente perto para ouvir os gritos e precipitar-se em seu socorro. Não, pensou, com pena, permitindo que a mão se descontraísse no punho da faca. Quando olhou para trás, para a entrada da ruela, já o volume do almoxarife desaparecera e o observador sentiu uma vaga de ressentimento.

Nada tinha contra o almoxarife mas estava irritado com o cavaleiro por causa da lentidão com que conduzia a investigação. Por que razão só prendera o Cole? O homem já devia ter compreendido quem era o culpado e que os dois crimes tinham sido cometidos por pessoas diferentes. Uma roubara enquanto a outra matara. Furnshill, pensou, já devia ter prendido o criminoso mais óbvio mesmo que tivesse apenas meio cérebro.

Olhou para a brilhante entrada da ruela, onde o almoxarife se detivera. Teria sido um verdadeiro golpe de sorte, é claro, se o homem não tivesse aparecido ali. O observador interrogara-se sobre como lidar com Judith e aquela teria sido a oportunidade perfeita. Odiava perder uma oportunidade. Manter-se-ia escondido na entrada, a mulher passaria por ele e iria ao encontro de um fim rápido. Bastar-lhe-ia estender o braço para lhe rodear o pescoço, detendo-a. O susto imobilizá-la-ia por um instante, o suficiente para que a mão lhe encontrasse a boca e lhe abafasse o grito enquanto a faca lhe penetrava nas costas perto da espinha, primeiro em baixo para lhe atingir um rim, e depois mais acima, no coração.

Estava irritado por ter perdido a oportunidade mas conhecia o valor da paciência. Não tinha pressa. Iriam surgir muitas outras situações capazes de lhe oferecer possibilidades semelhantes e tinha tempo. Deu uma palmadinha na faca enfiada na bainha, avançou para a rua e perdeu-se no meio da multidão.

Simon e Roger regressaram à estalagem e encontraram Baldwin e os dois servos sentados em volta de uma mesa. Os dois mercenários já não se encontravam à vista e Simon sentiu uma vaga sensação de alívio. Acabaria por ficar doente se tivesse de olhar, nem que fosse apenas por mais um segundo, para a hedionda boca de John Smithson.

Baldwin segurava numa grande caneca de cerveja fraca. Indicou-lhes o jarro com um gesto e apontou a caneca vazia que se encontrava em cima da mesa.

- Já começava a perguntar a mim mesmo se teriam voltado para junto do Peter - disse.

- Não, estivemos ali em frente... - Simon não enfrentou os olhos de Baldwin. Por qualquer razão, não queria conversar com o amigo a respeito da mulher e do garoto. Sentia-se quase como um idiota por ter querido falar com ela e por ter escutado o rapaz a brincar, como se isso pudesse sarar a dor da morte do filho.

Baldwin apercebeu-se da sua disposição e calculou que o amigo estivera novamente a pensar em Peterkin. Serviu a cerveja, num gesto diplomático, e entregou a caneca a Simon.

- Tivemos algumas informações interessantes. Hugh, conta ao Simon o que ouviste.

Hugh inclinou-se para a frente, com o rosto franzido na sua carranca habitual, e relatou os pensamentos de Wat com Edgar a interrompê-lo de vez em quando para corrigir algum pequeno pormenor.

Acabou por se calar a pouco e pouco, encarou Edgar com irritação e Baldwin recostou-se e olhou para Simon.

- Então? - inquiriu, despejando a caneca.

- Isso não nos serve para grande coisa, pois não? - murmurou Simon, deixando-se cair no banco ao lado do amigo. - De certeza que não passa de um fulano com ressentimentos contra os outros dois e que gostaria de pensar que são os culpados. Não ajuda a explicar quem roubou a prata... ou a razão por que mataram a Sarra.

- Sim, a morte dela é a parte mais confusa - admitiu Baldwin. -Tendo em conta o ferimento na cabeça, deve ter sido derrubada antes de ser amordaçada e amarrada.

- Quem quer que tenha roubado a prata encontrou-a no quarto, bateu-lhe para a deixar inconsciente e a seguir matou-a... - disse Hugh, que começava muito rapidamente a sentir a cabeça a andar à roda por causa da cerveja que bebera.

- Não, Hugh - retorquiu Baldwin. - Não me custa acreditar que a tivesse derrubado quando entrou no quarto, e que a tenha fechado na arca, em silêncio... Mas por que voltaria para a apunhalar e matar? Não faz sentido.

- Podem ter lá estado dois homens - declarou Simon, encolhendo os ombros. A rapariga viu um deles e o outro derrubou-a. O segundo amarrou-a, mas o primeiro sabia que tinha sido visto e mais tarde acabou por a matar.

- Isso pressupõe que um deles já lá se encontrava e que o segundo entrou e revelou as suas intenções... Sim, é possível, mas custa-me a acreditar. - Baldwin franziu a testa.

- Porquê? - perguntou Simon.

- Um homem entra no quarto... e a rapariga aparece. Entra um segundo homem, que a golpeia... - O cavaleiro fechou o punho e golpeou o ar com um pau imaginário. - Derruba-a, o que lhe dá uma oportunidade para a amordaçar e amarrar. A seguir carrega-a... Já experimentaste levantar um corpo inconsciente sem ajuda? Parece um saco de trigo e escorrega em todas as direcções. Seria mais provável que ambos a carregassem e a enfiassem na arca. Depois, um deles volta para trás e mata-a...

- Pergunto a mim mesmo...

- O quê, Simon?

- Pode não ser nada, mas aquela túnica... era de uma qualidade excepcional e muito dispendiosa. Como foi que...

- Senhor, posso servir-lhe mais cerveja?

Simon virou-se para o estalajadeiro com um sorriso brilhante.

- Sim, Paul, obrigado. Gostávamos de mais cerveja... mas porque não nos fazes companhia?

Paul ficou lisonjeado. Havia dois dias que corria de um lado para o outro atrás dos mercenários, sem nunca ouvir uma única palavra de gratidão. Precisou de pouco tempo para ir buscar um novo jarro de cerveja e uma caneca para ele próprio, e a seguir sentou-se confortavelmente e soltou um suspiro de alívio. Doíam-lhe as pernas e tinha os pés magoados por estar tanto tempo de pé, as costas estavam rígidas por se ter dobrado tantas vezes para encher os jarros... e para além disso sentia um desejo quase insuportável de fechar os olhos e dormitar. Margery fora para a cama. Não conseguira dormir até quase às primeiras horas da madrugada por causa do barulho no salão e também por ter medo daqueles homens.

- Foi uma pena o que aconteceu à Sarra - começou Simon.

- Pois foi. Na verdade, era uma boa rapariga... e bonita. Não merecia ter morrido assim.

- Estava a dar-se muito bem com Sir Hector, não é verdade?

- Creio que sim. Esteve com ele logo na primeira noite, quando este bando apareceu aqui, pelo que deve ter-lhe chamado a atenção. Nos seus melhores momentos era suficientemente resistente para continuar a trabalhar... mas depois daquela noite tornou-se impossível de aturar.

- Então porquê?

- Suponho que não queria ser como as outras raparigas. Desejava casar, ter filhos e todas as outras coisas normais... mas queria um homem rico para marido. Sir Hector era o ideal para ela. Tinha dinheiro, poder e tudo o mais. Era exactamente o que ela precisava.,, ou pelo menos deve ter sido o que pensou.

- Tinha algumas roupas boas, como a túnica que estava a usar quando morreu?

- A azul? Não, nunca lha tinha visto. Para que serviria uma coisa daquelas numa serva? Não, não era dela.

- Então, onde a terá ido arranjar? - perguntou Simon. Baldwin inclinou-se para a frente, com os olhos escuros muito atentos.

- Não faço ideia.

- Não era da sua mulher... ou de uma das outras raparigas?

- Não. Nunca tinha visto aquela túnica.

- Diz-me, estalajadeiro... - interveio Baldwin, pousando os cotovelos sobre a mesa - ela costumava ser popular junto dos clientes?

- Muito... quando estava interessada.- Paul sorriu enquanto as pálpebras se lhe fechavam de cansaço. Tinha dificuldades para se manter acordado sob a sombra do ulmeiro. - Era bonita e sabia-o. Bom, não é de surpreender que, com um aspecto daqueles, tivesse todos os homens a correrem atrás dela como carneiros atrás de uma ovelha... e podia dar-se ao luxo de escolher. Olhem, a Sarra, na noite anterior à chegada deste bando andou a tentar atrair um aprendiz de ourives! Contudo, pelo que me pareceu, o rapaz estava demasiado assustado...

- Pode ser que a túnica lhe tenha sido dada por um cliente mais apreciador.

- Pode ser. Pobre rapariga. Sempre desejou dinheiro e um casamento... e matam-na precisamente quando conseguiu o tipo de túnica por que sempre ansiou.

- Estava assim tão ansiosa por dinheiro? - perguntou Simon.

- Oh, sim. Via todas as suas amigas a esfalfarem-se até não poderem mais e estava decidida a ser livre e a ter um marido com dinheiro para que não precisasse de voltar a trabalhar.

- Sabe se ela era amigável para com o Cole?

- Com ele? Não, de modo nenhum. Ontem até os vi a discutir.

- A respeito de quê?

- Não sei, mas tinha a ver com o Henry e o John.

Simon pegou num raminho caído e começou a brincar com ele, pensativo.

- De qualquer modo, estava a ter êxito com Sir Hector.

- Apenas na primeira noite. Depois já não.

- Que se passou? - Simon ficou com as orelhas espetadas.

- Não sabem? Oh, tiveram uma discussão. Acordaram a Margaret e eu fiquei furioso. Era a primeira boa noite de sono que ela tivera desde a chegada desta gente... e mal acabara de adormecer quando começámos a ouvir a gritaria, as portas a baterem e tudo o mais...

- Quando foi isso?

- No dia em que ela morreu. Foi com o capitão na primeira noite mas na tarde seguinte já ele a largara como se fosse uma castanha quente. Depois, ontem, tiveram uma discussão.

- Que aconteceu? Onde estavas tu, por exemplo, quando os ouviste?

- Eu? - respondeu, abrindo um pouco os olhos perante a ansiedade de Simon. - Oh, estava a encher jarros de cerveja. A Cristine apareceu, disse-me que se passava qualquer coisa mas preferi não me meter no assunto. Não estava nada interessado em meter-me no meio de uma discussão entre dois mercenários... que muito provavelmente se virariam contra mim! Só decidi ir falar com eles depois da Margaret aparecer e me dizer que faziam muito barulho e que a discussão, afinal, era entre ele e a Sarra.

- Como era que ela estava? Preocupada? Nervosa?

- A minha mulher? Não, apenas irritada por a terem acordado e zangada por eu ter deixado que aquilo continuasse. Passei para o salão e ouvi as portas a baterem quando...

- Onde? Essas portas eram nas traseiras, onde Sir Hector tem o quarto? - inquiriu Simon.

Paul ficou a olhar para ele enquanto obrigava a mente a recuar no tempo.

- Creio que uma das portas era aí... mas a outra bateu lá para trás. Talvez fosse a porta do quarto da Sarra.

- Isso fica para além? - confirmou Baldwin, agitando a cabeça na direcção da construção do outro lado do pátio.

- Sim. De qualquer modo, entrei no salão e Sir Hector apareceu poucos minutos depois. Pediu desculpa, disse que a rapariga o tinha aborrecido.,, e foi tudo.

- Terá dito por que foi que ela o irritou? - perguntou Baldwin.

- Não, não disse... - O estalajadeiro franziu o rosto. - Disse que não se calara a respeito de um dos homens dele e que Sir Hector se encontrava em perigo... ou qualquer coisa do mesmo género.

- Qual dos homens?

- Na verdade não...

- Pensa, Paul! Isso pode ter algo a ver com a morte da Sarra!

O estalajadeiro recordou como chegara até à porta do quarto de Sir Hector mas que não tivera tempo para a abrir porque o capitão emergira do interior a tremer de raiva e com o rosto vermelho. Vira Paul e falara de um modo terrivelmente controlado, como se pesasse cada uma das suas palavras. "Aquela rameira da Sarra teve o descaramento de me avisar que os meus homens estão a preparar uma conjura contra mim. Imaginem, contra mim, como se eu fosse um insignificante barão! Disse-lhe para sair da minha vista e não voltar a aparecer.,, e ficaria grato se se certificasse que não volta a aproximar-se de mim enquanto aqui estivermos!"

Paul acenara, espantado, e virara-se para se ir embora mais ainda ouvira o capitão a murmurar uma única palavra por entre os dentes: "Henry!"

Quando terminou, Simon rolou os olhos para o céu? descrente, enquanto Baldwin fechava os dele e Edgar estremecia. Hugh ficou a olhar de um para o outro. - Que se passa?

- Deixe-me ver se percebo, Sir Baldwin: está a acusar-me de ter roubado a minha própria prata e de ter assassinado uma serva, não é verdade?

Baldwin suspirou. Soubera que voltar a conversar com Sir Hector iria ser difícil, mas esperara conseguir explicar-se antes que o capitão perdesse as estribeiras.

- Não estou a acusá-lo de nada, Sir Hector, mas contaram-nos que teve uma discussão com a Sarra na tarde em que ela morreu e isso poderá ajudar-nos a descobrir o assassino se soubermos qual foi o tema da discussão. - Baldwin deixou-se cair numa cadeira.

Estavam novamente no salão. Felizmente, a maior parte dos mercenários encontrava-se no exterior e só uns poucos se sentavam para protegerem o capitão. Simon encostou-se contra uma parede, distraído a brincar com o raminho. Roger permaneceu a seu lado, com os braços cruzados enquanto os escutava. Os servos tinham ficado no exterior, sentados no banco.

- E que tem isto a ver com a descoberta da minha prata?

- Discutiu com ela? - prosseguiu Baldwin teimosamente.

- E se tivesse discutido?

- Se o fez, por que foi?

- Porque tinha a estúpida ideia de que alguns dos homens estavam a planear um motim, mais nada.

- Quem?

- Mas que tem isto a ver com...

- Sir Hector, estou a dar o melhor das minhas capacidades para...

- Que são limitadas.

- É possível... mas estou a tentar descobrir onde está a sua prata e quem matou a Sarra.

- Então vão arrancar a verdade ao Cole porque deve ter sido ele quem fez as duas coisas - sugeriu Sir Hector, exasperado.

Simon puxou pela adaga e começou a arrancar lascas ao raminho.

- Se o interrogarmos, ele pode mentir, em especial se tivermos de usar a força para o obrigar a confessar. Também pode ter tido um cúmplice e nesse caso, mesmo que o Cole soubesse onde se encontrava a prata, a mesma pode já ter sido mudada para outro lado. Neste momento o Cole pode não saber onde ela se encontra. É muito melhor descobrirmos um pouco de tudo o que se passou ontem para percebermos se está a mentir.

Sir Hector olhou-o com desagrado.

- Se é incapaz de o persuadir a dizer a verdade, então é porque não sabe como perguntar. Se teve um cúmplice, obrigue-o a dizer quem foi. Se os mantiver fechados na cadeia não precisará de muito tempo para descobrir onde esconderam a minha prata e se não conseguir... então posso emprestar-lhes homens que sabem como extrair factos a prisioneiros recalcitrantes.

- Não será necessário - retorquiu Baldwin com secura. Os seus amigos e companheiros tinham sido torturados quando os Cavaleiros Templários haviam sido destruídos pelo monarca francês e a visão dos corpos contorcidos e mergulhados na agonia tinha-o persuadido, para sempre, que a tortura não servia de nada num inquérito. A tortura fazia apenas com que as pessoas respondessem aquilo que pensavam que os interrogadores queriam ouvir, o que nem sempre era a verdade. - Todavia, é importante que compreendamos o que ontem se passou. Não acredito que esteja a tentar esconder qualquer coisa, Sir Hector, mas a sua recusa em responder ao que me parece uma pergunta simples faz com que me interrogue sobre os motivos para as suas reticências.

- Está a ameaçar-me?

- Não... mas não tentarei descobrir o que aconteceu à sua prata antes de ter toda a sua cooperação.

- Então talvez eu deva investigar o assunto pessoalmente, com os meus homens.

- Penso... - interrompeu-os Simon, adoptando uma expressão neutra - que não lhe serviria de nada...

- Ah, sim? Pois bem, começo a pensar que pode ser a única maneira de descobrir o que aconteceu à minha prata.

- E então a rapariga? Discutiu com ela, mandou-a embora, disse a todos para a manterem longe de si... e a seguir é encontrada morta no seu quarto - trovejou Baldwin.

- Essa história nada tem a ver com o assunto.

- Deus do céu! Serei eu o juiz disso e não o senhor! Sou o Guardião da Paz do Rei nesta cidade e está a prejudicar deliberadamente a minha investigação. Tem consciência de que, até este momento e tanto quanto saibamos, é a única pessoa que discutiu com ela? Isso faz de si o único homem com um motivo para a assassinar! - Baldwin fez uma pausa. - Bom, foi a respeito do Henry que a Sarra o avisou?

Simon olhou para o amigo. A explosão do cavaleiro surpreendera-o porque sabia que Baldwin costumava manter-se calmo mesmo durante reuniões muito mais irritantes do que aquela.

- Sim - admitiu Sir Hector.

- Que disse ela, com exactidão? - inquiriu o cavaleiro, com a testa franzida.

- Acusou-o de estar a tentar virar os homens contra mim e pensava que podia constituir um perigo para a minha pessoa.

- Não acreditou nela?

- Em nome de Deus, não! A Sarra odiava o Henry. Tentou violá-la na noite em que chegámos aqui - e tê-lo-ia feito se eu não interviesse -, e a partir daí tornou-se óbvio que desejava vingar-se. Inventou aquela história para o desacreditar e eu não estava com disposição para lhe dar ouvidos, - Por isso, ignorou-a?

- Sim. Disse-lhe para sair e para não se dar ao trabalho de voltar. Henry, o Barreira, é um dos meus melhores homens.

- Ainda não lhe ocorreu que também pode ter sido o homem que lhe roubou a prata?

- É o meu principal sargento! Em quem mais poderei confiar, se não nele? Teve sempre acesso ao meu dinheiro e à prata! Não consigo imaginar ninguém com menos probabilidade de ser o ladrão. De qualquer modo, porque deveria pensar noutro homem se já tem o ladrão na cadeia?

Baldwin remexeu-se no assento.

- Nesse caso, expulsou a Sarra do quarto e ela saiu imediatamente?

- Sim. Suponho que deverá ter ido para o seu próprio quarto.

- Quando foi que voltou a vê-la?

- Quando fui chamado para ir ver o interior da arca... ou seja, quando regressámos da perseguição ao Cole.

- Não voltou a vê-la viva?

- Não.

- Só mais uma pergunta, SírHector. Já tinha visto a túnica que a Sarra usava quando morreu?

O mercenário cerrou os maxilares. Tivera a esperança de que o cavaleiro não tocasse naquele assunto, mas sabia que era uma pergunta natural. A túnica era demasiado boa para uma rameira de taverna como ela.

- Não - respondeu. - Nunca a tinha visto anteriormente. Simon levantou os olhos para ele com a adaga a arrancar outro bocado ao raminho. A voz do capitão fora tranquila, quase contemplativa, e o almoxarife teve a certeza de que o homem estava a mentir.

 

Paul estava no pátio quando eles saíram. Servia três viajantes que observavam os mercenários com tanto nervosismo que levaram Baldwin a pensar em coelhos a olharem uma raposa agachada. Hugh e Edgar juntaram-se-lhes junto à porta do salão e Baldwin colocou-se na frente do estalajadeiro quando este tentou passar por eles, a caminho da despensa.

- Paul, importas-te que dêmos uma vista de olhos ao quarto da Sarra? - O cavaleiro aceitou o encolher de ombros como sendo uma autorização e seguiu à frente do grupo. Treparam a escada até à porta e experimentaram a maçaneta. A porta abriu-se.

- Compreendo por que razão tinha tanto interesse em casar-se - comentou Baldwin.

Era um quartinho pequeno e parcamente mobilado. Para a direita havia uma enxerga a jazer no chão e uma mesa com os seus poucos pertences. Tinha algumas túnicas e um avental suspensos de cavilhas espetadas na estrutura de madeira da casa, mas uma delas tombava no chão como se tivesse sido pontapeada e havia um cinto em cima da cama.

- Deve ter sido aqui que mudou de roupa e vestiu a túnica azul - murmurou Baldwin. - Onde a terá ido buscar?

- Baldwin, começas a pensar que não foi o Cole quem a matou?

- perguntou Simon.

O cavaleiro fez um gesto com a mão, abarcando a estalagem de uma maneira vaga.

- Não sei o que pensar. Aquele Cole parece uma pessoa agradável, enquanto que os dois que o apanharam são... Bom, sentir-me-ia mais feliz se não tivesse de confiar neles. A rapariga pode tê-los irritado.

O Henry, se a ouviu dizer ao capitão que ele se estava a preparar para o depor como líder, pode ter perdido a cabeça. Derrubou-a, meteu-a na arca e matou-a... mas parece-me improvável. Para começar, porque iria metê-la na arca? E por que não a matou imediatamente?

- Talvez fosse isso o que pretendia, mas interromperam-no? Apareceu outra pessoa qualquer, viu-se forçado a meter a rapariga na arca e voltou mais tarde para a matar.

- Não. - Baldwin agachou-se junto à enxerga e olhou em volta, para o quarto. - Não pode ter sido isso. Se estava com tanta pressa para a esconder, como arranjou tempo para a amarrar e amordaçar? Não faz sentido!

 

Abriu a porta e espreitou em volta cautelosamente. Sentiu uma vaga sensação de antecipação quando entrou, como se esperasse que a mulher se atirasse a ele e o atacasse. Contudo, não o podia fazer... ou já não podia. Mesmo assim, o sonho estava sempre a voltar e a recordação pairava-lhe na memória mesmo quando estava acordado, como se fosse uma pesada rocha que ocasionalmente empurrava todos os outros pensamentos para fora do seu caminho.

Naquela noite limpou e escovou o cavalo depois da jornada. Espreguiçara-se, fazendo com que os músculos se esticassem numa tentativa para aliviar a tensão no pescoço e nos ombros. Era tarde e não quiz acordar o seu pessoal.

Fechou silenciosamente a porta do estábulo, atravessou o pátio na direcção da estalagem mas depois hesitara. Concluiu que seria reconfortante tomar uma última bebida antes de ir para a cama e foi direito à despensa, onde encontrou um barril já aberto. Encheu uma caneca de cerveja e despejara-a até à última gota antes de abrir a porta e esvaziar a bexiga no chão de terra batida do seu pátio. Voltara a ajustar a túnica com um puxão fatigado e foi incapaz de impedir mais um bocejo antes de se retirar para o quarto.

O edifício era velho e tivera de atravessar o salão para chegar ao quarto na pequena zona de alojamentos nas traseiras. Avançou com todo o cuidado e evitara acordar os homens que dormiam do outro lado. A porta abrira-se silenciosamente.

Era um homem forte e bem conhecido pela sua coragem, mas a visão com que os seus olhos haviam deparado tinham-no feito imobilizar-se, horrorizado.

O fogo na lareira morria mas o fraco clarão alaranjado chegava para iluminar a traição. Ela nem se dera ao trabalho de puxar as roupas da cama para se cobrir, pelo que o corpo esparramado de um modo pouco elegante emitia um brilho acetinado enquanto a seu lado a outra figura grunhia e ressonava como um porco em busca de trufas.

Detivera-se à entrada, olhou para as duas figuras e a sua mente funcionou com uma nova claridade. Podia ter berrado, chamado os seus para que segurassem naquele homem enquanto ele chicoteava a cabra adulta... mas já deviam ter conhecimento da traição porque aquela libertina só podia ter entrado ali pelo salão e ele devia ter sido visto por um ou mais dos servos.

Não, pensou. Havia uma maneira melhor de a punir... e a ele.

Nenhum dos servos acordara. Fechou a porta com cuidado, rígido com o medo de ser ouvido, saiu e dirigira-se ao estábulo. Ninguém o esperara ali e ninguém o viu. Afastar-se-ia a cavalgar e voltaria no dia seguinte como se nada tivesse acontecido. Ninguém saberia. Depois... Bom, depois daria início à sua vingança dando o seu acordo ao plano que lhe fora proposto naquela noite.

Acalmara o animal cansado, falara-lhe baixinho para o tranquilizar, atirara-lhe a manta para cima e apertara as correias da cilha, mas os seus movimentos eram mecânicos. A mente continuava lá atrás, no quarto. Ela pertencia-lhe... e houve outro que lha roubara. Tinham ambos de pagar, um pela desonra e o outro por lhe ter roubado a mulher.

E agora iam pagar, troçara, puxando a adaga e pousando o metal contra a face. A lâmina permanecera encostada à barriga enquanto embainhada e estava quente... tal como estivera quando a retirara do corpo dela.

Henry encaminhou-se para o pátio e dirigiu-se para uma mesa longe do salão da estalagem, de onde podia ver a porta. Passados alguns instantes John saiu dos estábulos, viu o amigo e foi ter com ele.

Os outros homens do bando estavam lá dentro, na sua maioria a dormitar depois de terem comido e bebido demasiado da cerveja forte de Margery, pelo que era a primeira vez que os dois homens se encontravam sozinhos depois de terem sido interrogados a respeito do roubo e do assassínio. Henry descobriu-se a mirar o companheiro com desconfiança.

- Andou alguém a falar contigo? - perguntou.

- Comigo? Não, porquê? Foram dizer-te alguma coisa?

- Não - murmurou Henry, olhando novamente para o salão. - Contudo, Sir Heetor quase não me tem falado... e vejo-o a olhar-me sempre que pensa que não reparo. Para além disso, vi-o a conversar com o velho Wat.

- Aquele velho estupor! Devia ter mantido a boca fechada!

- Pois, mas não o fez. Disse tudo o que lhe apeteceu ao homem do almoxarife e não deverá ser preciso esperar muito para que o Guardião saiba o que ele pensa.

- Só lhe pode dizer que de vez em quando esfolamos os novos recrutas...

- Tens a certeza?

- Olha, ninguém viu nada. Se tivessem visto, já o saberíamos.

- Ah, sim? Quantas vezes já vimos o capitão a negociar com outros que pensam que estão a ganhar... para depois o verem mudar de campo? Sabes tão bem como eu que ele é capaz de esconder os seus pensamentos.

- Sim... - disse John, olhando para a estalagem com um ar sombrio. - Que achas que devemos fazer?

- Ninguém sabe que temos a prata... e penso que devíamos fugir enquanto podemos.

- Fugir? - Havia uma inconfundível nota de horror na voz de John.

Henry dobrou os ombros e contraiu a boca num esgar de decisão.

- Que mais podemos fazer? A prata está bem escondida mas pode ser encontrada. Se alguém adivinhar que estivemos envolvidos no roubo... vão saber a quem acusar pelo assassínio.

- Suponho que sim... - murmurou John, evitando olhá-lo.

Henry deu uma mirada em volta. A fuga seria mais fácil se partissem os dois. Dois homens podiam aperceber-se de uma perseguição mais facilmente do que um, Acenou, inclinou-se para o amigo e começaram a fazer planos para conseguirem escapar-se.

Baldwin estava a pensar em farrapos. Tinham acabado a refeição que, por ser quarta-feira e portanto dia de jejum, foi de peixe. Peter era conhecido pela qualidade da sua mesa e Baldwin ficou satisfeito por ver que o anfitrião se abastecera bem numa antecipação à visita do bispo. O fumeiro e a despensa estavam cheios, e o tanque no fundo do quintal encontrava-se repleto de lúcios e bremas.

Revirou o bocado de tecido nas mãos e lançou uma olhadela a Margaret.

- Que pensas disto? - inquiriu.

- Hum? Oh! O que é? - perguntou Margaret, tirando-lhe o trapo das mãos. Quase o deixou cair quando o cavaleiro lhe disse onde o fora buscar.

- Não te preocupes! Não morreu de uma qualquer doença que te possa ser transmitida pelas roupas... a não ser que o metal contenha o seu próprio veneno. Não, estava apenas a perguntar a mim mesmo o que pensarias deste tecido.

Margaret sopesou-o na mão.

- É muito bom. A tecedura é muito fina e regular, e as cores são brilhantes e frescas. Não faço ideia onde terão ido arranjar um corante tão excelente.

- Poderá ter sido produzido localmente?

Margaret brindou-o com um sorriso fraco. Sabia que o cavaleiro não tinha qualquer interesse por roupas ou tecidos, embora fossem muito importantes para a cidade. Qualquer outra pessoa que vivesse em Crediton lhe diria o preço do tecido, quem o produzira e quem o cozera. Alguns até afirmariam serem capazes de dizer quais os carneiros que haviam fornecido aquela lã.

- Leva-o ao Tanner. Ele deve saber dizer-te a origem deste tecido.

- Porquê, é importante?

- Talvez não, mas gostaria de saber de onde veio - respondeu Baldwin, retirando-lho das mãos e dando uma olhadela casual enquanto o voltava a meter na bolsa.

O bispo Stapledon necessitava da ajuda de Roger naquela tarde, pelo que os outros partiram sem ele. Quando chegaram à cadeia encontraram o guarda sentado no banco, à entrada, com um chapéu de abas largas enfiado na cabeça e um jarro de cerveja a seu lado.

Baldwin verificou que o almoxarife recuperava um pouco da sua disposição normal sempre que se afastava da mulher e isso preocupou-o. De acordo com a sua experiência, um homem que sofria uma perda devastadora costumava virar-se para aqueles em quem podia confiar. Do ponto de vista de Baldwin, isso significava que o seu homem de armas, Edgar, que o acompanhava havia tantos anos, era simultaneamente um amigo íntimo e um servo. Outros Cavaleiros Templários igualmente carentes tinham-no ajudado a sobreviver depois da queda da Ordem, prestando-lhe a ajuda de que necessitara até ter conseguido ultrapassar o desespero inicial. No entanto, a cura só foi completa quando apanhara o homem responsável pelo fim da Ordem. No seu caso, conseguira esquecer o desgosto depois de vingar os seus companheiros. Receava que pudesse não existir uma cura semelhante para Simon. O almoxarife não tinha um inimigo para apanhar porque o que lhe roubara o filho fora uma doença. Era difícil imaginar como iria conseguir a paz se não fosse capaz de conversar com a mulher para tentar tirar algum sentido da sua vida.

A frustração ante a incapacidade para ajudar o amigo tornava-o irritável... e a sua ira explodiu quando reconheceu que os sons arrastados que estava ouvir era o ressonar do guarda. Deu um pontapé no banco e fez com que Tanner se espalhasse ao comprido no chão.

- Devias estar a guardar o Cole e não a dormir!

O guarda pestanejou, abafou um bocejo, endireitou o banquinho e esboçou um sorriso apologético. Estava surpreendido com o temperamento do cavaleiro, que no passado sempre considerara como sendo uma pessoa calma.

- As minhas desculpas, senhor. Dormitei um pouco...

- Deixa lá isso. Como está ele?

- Dei-lhe alguma comida para o almoço e pareceu-me bem. Nesta época do ano está fresco na cela e se calhar até se sente mais confortável do que todos nós.

O cavaleiro tinha de concordar com aquilo, Por cima deles o céu era tão quente como um braseiro e sentia o suor a escorrer-lhe lentamente por baixo da túnica e da camisa. Retirou o bocado de tecido de dentro da bolsa.

- Já viste alguma coisa parecida com isto anteriormente?

Tanner era um homem enorme e maciço, com um rosto que levava Baldwin a pensar na casca enrugada de um antigo carvalho. A boca era uma linha fina aberta no rosto, os lábios pareciam sempre contraídos num trejeito de desaprovação... mas os olhos eram rápidos a sorrir e brilhavam com uma luz bondosa. Pegou no bocado de pano que o cavaleiro lhe estendeu e estudou-o.

- É um tecido de boa qualidade... - disse, dando um esticão ao farrapo e puxando-lhe um fio, que rolou entre os dedos com uma expressão meditativa - e também tem uma cor muito boa.

- É um bocado da túnica da rapariga morta - explicou Baldwin. Tanner fez uma careta.

- Quer saber de onde veio? Aqui em volta só me lembro de um sítio, o do Harry Fletcher. Todas as mulheres lá vão. Em geral é ele quem tem os melhores corantes, mas nunca vi nada tão bom como isto, mesmo nos tecidos dele.

- Conheço o sítio - interveio Edgar, sem pensar.

O amo virou-se lentamente para ele e ficou a olhá-lo. Edgar corou sob aquela mirada de espanto.

- Então talvez queiras indicar-nos o caminho - disse Baldwin com suavidade.

A loja era pouco mais do que um estreito barracão na extremidade oriental da cidade e Baldwin compreendeu que devia ter passado muitas vezes por ela, mas só muito raramente prestava atenção àquela parte da estrada. Seguia por ali quando ia a caminho de Exeter e na viagem de regresso tinha em geral outras coisas em mente, tal como descobrir como sobreviver aos poucos quilómetros que faltavam até Furnshill.

Edgar deixou-se ficar um pouco para trás e Baldwin olhou-o, intrigado. Contudo, uma simples olhadela foi o suficiente para lhe mostrar que aquela loja não era do tipo que podia fornecer roupas a um servo. Havia panos de muitos tipos em exibição na mesa de cavaletes montada na rua, mas eram quase todos brilhantemente coloridos. Para além disso, os outros artigos a venda destinavam-se a atrair as mulheres: redes para os cabelos, toucas e saias bordadas com flores. Aparentemente, Edgar deixara-se fascinar por um pesado cavalo que se encontrava do outro lado da estrada. Baldwin preferiu presumir que o servo estava mais interessado nos couros intrincadamente gravados da sela do animal, ou no brilhante pano azul-escuro que o cobria, do que em evitar os seus olhos.

O proprietário era um homem baixo e atarracado, no final da casa dos vinte. Exibia um constante sorriso e Baldwin tinha a certeza de que os seus cintilantes olhos azuis eram óptimos para aumentarem significativamente o negócio. Pareciam lisonjear e convidar às confidências, pelo que o cavaleiro compreendeu muito bem que Harry Fletcher conseguisse atrair as mulheres da cidade ao seu pequeno estabelecimento.

Aparentemente, o homem também se via a si mesmo como sendo a melhor propaganda para os artigos que vendia. A túnica que envergava era volumosa, de um veludo de boa qualidade, e chegava-lhe quase aos joelhos. Usava um belo barrete de lã na cabeça, amarrado por baixo do queixo, e o capuz que lhe pendia para trás das costas terminava em ponta e era debruado a pele. Condizia com as botas de biqueira muito comprida que eram agora tão populares.

Apesar de serv roliço, o homem possuía dedos notavelmente compridos e estreitos, e brincava com o fio de medir que lhe pendia do pescoço, puxando e apertando os nós de marcação como uma mulher entretida com as contas de um colar.

- Sir Baldwin, seja bem-vindo. Olá, Edgar! Em que posso ajudá-los? - perguntou Fletcher com o seu tom de voz mais servil enquanto olhava de um para o outro. - Andam em busca de alguma coisa rara ou...

- Limita-te a escutar o meu amo e responde às suas perguntas - interveio Edgar... e Baldwin concluiu que a partir daquele momento teria de prestar mais atenção aos filhos ilegítimos que pudessem existir na área. Era provável que pudesse descobrir-lhes o pai não muito longe da sua própria casa...

Baldwin gostou da surpresa divertida no rosto do homem e na vermelhidão no de Edgar antes de sorrir e de dizer:

- Já deves ter ouvido falar da morte da rapariga, na estalagem...

- A pobre Sarra? Oh, sim, foi uma tristeza. Uma pena. Sempre a achei uma rapariga muito simpática.

- Via-la muitas vezes?

O brilho dos olhos do homem apagou-se um pouco. Baixou as pestanas e o cavaleiro viu que avaliava a possibilidade de estar a correr algum tipo de perigo. Era demasiado frequente que homens inocentes fossem levados a tribunal onde os jurados com uma fraca educação presumiam que um acusado tinha forçosamente de ser culpado. Para começar, era melhor ter cuidado para que uma pessoa não acabasse por ir parar à prisão. Fletcher pensou e respondeu:

- Apenas ocasionalmente.

- Vinha aqui pelas suas roupas?

- Por vezes.

- Não me parece que tivesses alguma coisa a ver com a sua morte, mas queria saber se te comprou um tecido destes recentemente. - Baldwin entregou-lhe o bocado de trapo.

- Isto?- Fletcher sorriu e abanou a cabeça de uma maneira enfática. - De modo nenhum! Faz ideia de quanto custa? Não, a Sarra, quando aqui vinha, era quase só para ver os tecidos. Nunca tinha dinheiro e de qualquer modo já possuía um par de túnicas. Para que iria gastar bom dinheiro na compra de outra? Não era uma mulher importante.

A atitude casual do homem em relação à morte da jovem irritou o cavaleiro, cuja voz ganhou um tom abrasivo.

- Pode não ter sido uma mulher importante -, tal como disseste, mas também não merecia ser assassinada. Há mais alguém em Crediton que lhe pudesse ter vendido um tecido destes... ou uma túnica feita deste tecido?

- Não, senhor. Não há mais ninguém na cidade que lho pudesse ter vendido. Fui eu quem o mandou vir desde Lincoln. É demasiado bom para os tecelões da cidade, digam eles o que disserem, e olhe para a cor! Há alguém capaz de pensar que isto pudesse ser produzido aqui? Estes panos são fabricados apenas pelos flamengos, e mesmo entre eles é preciso procurar muito para se encontrar uma tal qualidade...

- Sim, sim. Muito bem, já estou esclarecido. Nesse caso, a quem foi que vendeste tecido como este? Como é possível que a Sarra tivesse uma túnica deste pano?

- Não sei como o arranjou, mas vendi uma túnica. Vendi-a a Sir Hector, que está alojado na estalagem.

- Terá dito para quem era?

- Não, senhor. Talvez a tenha comprado para a Sarra. Parece que gostava dela.

- Onde foi que ouviste isso?

O sorriso do homem alargou-se.

- Aqui. São muitas as mulheres que me vêm comprar as suas toucas e outras coisas... e a má-língua aumentou dez vezes depois da chegada de Sir Hector e dos seus homens. Toda a gente sabe que se deixou encantar pela pobre Sarra, pelo menos ao princípio... até ao momento da discussão.

- Qual discussão? - Baldwin não tinha grande interesse pelos boatos fúteis, mas sabia que por vezes havia elementos de verdade até nas próprias conversas maliciosas das mulheres.

- De repente, no dia anterior à morte dela, Sir Hector pô-la fora do quarto e ordenou-lhe que não o voltasse a incomodar. Tinha perdido o interesse.

- E quem te disse isso?

- Uma amiga da Margery... ou seja, da mulher do Paul, o estalajadeiro. Ela ouviu-o a gritar com Sarra. Disse que tinha encontrado uma mulher a sério e que já não precisava de uma rameira de taverna...

- A quem se estava a referir?

- Quem sabe? Talvez seja melhor perguntar-lhe...

 

Os homens mantiveram-se em silêncio durante todo o caminho de regresso. Baldwin ia mergulhado em pensamentos sombrios e perguntava a si mesmo se alguma vez seria capaz de compreender o que se passava, isto enquanto o servo tentava esconder o alívio por se terem afastado da loja de Fletcher. Hugh arrastava-se atrás dos outros, tão pouco comunicativo como de costume.

O almoxarife enfiara as mãos no cinto. Naquele momento subiam a colina e era mais difícil abrir caminho através das multidões que enchiam a estrada. Os produtos à venda iam-se alterando à medida que avançavam para o centro da cidade. Havia peixes espalhados por cima de bancas montadas em cavaletes, com olhos embaciados e bocas abertas como se ainda se esforçassem por conseguir água, enquanto outros, já descoloridos, jaziam em barricas. A seguir vinham os padeiros, com os seus pães dispostos em pilhas perfumadas e que incluíam desde os pães moles feitos com a farinha de trigo que lhes dava um tom claro, até a outros muito mais escuros, fabricados com uma mistura de cereais, que se destinavam às pessoas mais pobres. À medida que se aproximaram das bancas onde os açougueiros exibiam as carnes depararam com os cordovaneiros, com os seus sapatos novos, logo seguidos pelos remendões que reparavam botas velhas. Os odores foram crescendo quando chegou a vez dos tanoeiros, que recebiam as peles dos açougueiros e produziam couros grosseiros que por sua vez vendiam aos surradores, que os limpavam, amaciavam e reduziam a espessuras regulares antes de os olearem, deixando-os prontos para serem trabalhados. As luvas, bolsas, odres e caixas de couro, com padrões pintados ou gravados, também ali estavam, na presença de todos, para demonstrarem a habilidade dos artífices.

Simon quase nem olhou para os produtos expostos e ignorou tanto os gritos dos vendedores como as crianças pequenas que tentavam chamar-lhe a atenção puxando-lhe pela capa. Aquelas visões e sons eram demasiado familiares e não tinha intenções de comprar fosse o que fosse.

Aproximaram-se da igreja e os seus olhos iluminaram-se ao ver a figura magra que esperava junto à porta de Peter. A figura virou-se quando os homens já se encontravam por perto... e era a da mulher de cinzento.

Dar dinheiro aos pobres era uma responsabilidade dos ricos, e todos os ricos se prestavam a contribuir para suportar os menos afortunados da paróquia. A igreja dispunha de um esmoler cuja obrigação era certificar-se do bem-estar daqueles que não conseguiam ganhar a sua própria vida. Embora fosse sabido que os demasiado preguiçosos para trabalhar deveriam ser punidos, todos aceitavam que se um homem se encontrasse ferido ou doente, incapaz de se sustentar a si mesmo ou à família, ou se morresse e deixasse a mulher e os filhos sem qualquer apoio, era apropriado que a comunidade cristã fizesse o que pudesse para dar uma ajuda a essas pessoas.

Enquanto Simon a olhava, viu o esmoler entregar algum pão e carne à mulher. Sabia que Peter era sempre generoso para com os mendigos. A sua mesa, e ainda antes de os convidados serem servidos, era hábito colocar sempre um pouco de pão e outros alimentos numa malga "para servir a Deus". O esmoler reservava esses produtos para os que tinham maiores necessidades. A mulher guardou a dádiva no avental, deu a volta na direcção da nova igreja e Simon viu-a a ajoelhar-se. A criança abandonou as suas brincadeiras junto de um andaime próximo e ambos comeram sem quaisquer sinais de prazer, apenas com uma espécie de pressa desesperada, sempre a olharem em volta como se receassem que alguém lhes pudesse roubar a comida se não a consumissem o mais depressa possível.

- Simon.., Olha, meu amigo... - murmurou Baldwin, acenando para a frente. Simon acompanhou-lhe o olhar e viu o capitão dos mercenários.

Sir Hector mantinha-se de costas para eles, perto da entrada da igreja. De vez em quando espreitava para a estalagem e depois para as árvores, como se medisse o tempo pelas sombras ou procurasse alguém que pudesse estar escondido por trás dos grossos troncos. Simon olhou para um lado e para o outro da rua.

- Anda cá fora sozinho? - admirou-se.

- Um capitão de mercenários que admite separar-se de todos os seus homens revela uma clara falta de discernimento... - comentou Baldwin. - Suponho que se sente suficientemente seguro aqui em Inglaterra. Na Gasconha, ou em França, de certeza que não se mostraria tão atrevido, tendo em conta todos os inimigos que por lá arranjou.

Prosseguiram a marcha e Simon viu, pelo canto dos olhos, que a mendiga saía da igreja com a criança. Atingiu a rua um pouco à frente dele e do amigo. O almoxarife observou-a a aproximar-se de Sir Hector e a estender-lhe a tigela das esmolas como uma suplicante.

- O quê?! - Sir Hector rodopiou e exibiu uma carranca feroz. - Quem és tu?

A voz ouviu-se claramente no meio do bulício da estrada mas a resposta da mulher foi abafada. Para surpresa de Simon, o cavaleiro recuou como se tivesse ficado espantado e olhou a mulher com horror, Ficou de boca aberta, como que hipnotizado. De repente avançou, bateu na mão da mulher com o punho fechado e empurrou-a para longe com rudeza. A tigela das esmolas saltou-lhe das mãos, rodopiou de encontro a uma parede e tilintou no solo. Um homem que ia a passar não deu por ela e ouviu-se um sonoro estalido quando a pisou por engano. A mulher soltou um guincho e levou as duas mãos à cabeça, tentando compreender aquele desastre. Simon pensou que era como se a mendiga não conseguisse entender inteiramente a sua infelicidade e o almoxarife calculou que aquela malga era não só o seu único receptáculo para pedir esmolas como também, muito provavelmente, a única hipótese para recolher líquidos. Perdê-la era uma calamidade inacreditável.

A mulher caiu de joelhos e tocou nos dois bocados de madeira com uma espécie de espanto incrédulo, com o filho a chorar a seu lado sem que ela lhe prestasse atenção. Sir Hector observou-a por instantes com um trejeito de desprezo estampado no rosto e regressou à sua vigília solitária.

Baldwin retirou algumas moedas da bolsa quando passou pela mulher e largou-lhas sobre o colo.

- Compra uma nova tigela e alguma comida - murmurou.

A mulher ficou demasiado espantada para lhe agradecer. Levantou-se a cambalear, segurou no filho e bateu em retirada para o abrigo da parede. Segurou as moedas contra o peito e fitou Baldwin com olhos enlouquecidos antes de fugir repentinamente.

- Foi uma atitude muito pouco caridosa, Sir Hector.

O capitão rodopiou ante o tom de leve censura na voz de Baldwin e Simon pensou, por uma fracção de segundo, que o homem iria atacar o cavaleiro. Tornou-se evidente que Edgar também pensou o mesmo porque se colocou imediatamente ao lado do amo.

- Sir Baldwin! O senhor aparece sempre que estou de mau humor. - O tom era de brincadeira mas Simon teve a sensação de que o mercenário se estava a controlar com dificuldade. O almoxarife não ficou surpreendido. Bater numa mendiga não era o tipo de comportamento capaz de melhorar a reputação de um homem... mas Sir Hector, de qualquer modo, era um mercenário, uma espécie de homem tida em muito pouca estima por todo o mundo. Parecia estranho que o capitão se mostrasse envergonhado por uma breve explosão de temperamento, por um incidente que não deixava de ser trivial quando comparado com algumas das suas actividades anteriores.

- O senhor comprou aquela túnica azul... e Sarra usava-a quando morreu. Por que não me disse que a tinha comprado? - O rosto de Baldwin mostrava-se fechado e zangado. Não se tratava apenas do facto de o homem ter batido na pobre mulher. Sentia-se extremamente contrariado por ter tido conhecimento, pela boca de um lojista, de algo que o cavaleiro lhe podia ter dito naquela manhã.

- Não me pareceu que o assunto lhe dissesse respeito... e continuo a pensar do mesmo modo.

- Pois eu penso que sim. Quando foi que lha deu?

- Dar-lha?! Pensa que era capaz de gastar tanto dinheiro com uma... - A voz de Sir Hector erguera-se quase ao nível de um grito e tinha o queixo atirado para a frente, numa carranca belicosa. Deslocava os olhos de Baldwin para Edgar, que dera um passo em frente de modo a que o capitão, se quisesse atacar Baldwin, teria de expor o flanco ao servo. Edgar esboçou um pequeno sorriso e o mercenário controlou-se com esforço.

- Sir Hector, obrigou-me a andar por aí a investigar quando me podia ter dito a verdade logo pela manhã. Para quem era a túnica, se não para ela... e por que motivo estava a Sarra a usá-la?

- Não faço ideia por que razão a tinha vestida. Deve tê-la encontrado numa das minhas arcas. Já lhe disse que tivemos uma discussão. Estava a tentar avisar-me contra o meu melhor homem e disse-lhe para se ir embora... Bom, não queria voltar a vê-la. Não sei como apareceu com a túnica vestida.

- Talvez tivesse pensado que o senhor a comprara para ela - sugeriu Simon.

- E por que iria pensar uma coisa dessas?

- É o costume, nas mulheres. Discutiram... e a seguir ela viu a túnica nova. Pode ter pensado que lhe comprara um presente para pedir desculpa por lhe ter gritado.

Sir Hector olhou-o com uma expressão incrédula.

- Está a falar a sério? Por que havia eu de fazer uma coisa dessas?! Era apenas uma...

- Já nos deu a conhecer muitas vezes a sua opinião a respeito da rapariga - interrompeu-o Baldwin tranquilamente. - Não precisa de se repetir. Quando foi que comprou a túnica?

- Ontem, um dia depois de ter discutido com a Sarra. Preparava-me para sair e estava cheio de pressa quando ela apareceu de repente a dizer-me que o Henry se preparava para fomentar desordens nas minhas tropas. Como se ele se atrevesse! - Virou-se e começou a caminhar para a estalagem com passos lentos, enquanto olhava em volta como que casualmente, mas com tanta diligência que levou Simon a pensar que ou o homem estava alerta para um qualquer tipo de ameaça, ou procurava alguém.

- E não é possível que tivesse razão? - murmurou Baldwin num tom meditativo.

- Não! - retorquiu o capitão. - Aqueles soldados estão muito ligados a mim. Quer gostem, quer não, sabem que sou um homem de palavra... pelo menos para com eles! Se me depusessem, a última pessoa que quereriam ver no meu lugar seria o Henry. Tem o aborrecido hábito de se encarregar dos novos recrutas até conhecer todos os seus segredos, para depois os chantagear.

- Está a par disso? - explodiu Baldwin, surpreendido.

- Claro que sim. Para mim, é óptimo saber que estou protegido. Estarei em segurança enquanto aquele idiota continuar com essas coisas. Tem os segredos dos outros bem guardados na sua bolsa... e eu tenho as suas vidas na minha mão. Faz isso constantemente e não me custa um tostão... mas os outros nem sequer pensariam em apoiá-lo numa qualquer espécie de golpe.

Mas podem dar o apoio a outro.

- Não. Não há nenhum que se atreva a tentá-lo. Para além disso, com o Henry e o John por perto, era muito provável que acabasse por vir a saber de tudo. Não, a ideia é estúpida.

Baldwin franziu a testa e deu um pontapé numa pedra do caminho.

- Que foi que ela na verdade lhe disse?

- Disse que tinha escutado o Henry a falar com o John ou com outra pessoa qualquer, e a dizer que planeava reunir o bando à sua volta. Não, um momento, não foi bem isso. Disse que o Henry afirmou a essa outra pessoa que não precisaria de se preocupar comigo durante muito mais tempo porque ele iria ter o seu próprio bando... ou algo do mesmo género.

- E o senhor, a seguir, saiu para ir comprar a túnica.

- Saí, vi a túnica, comprei-a e disse que alguém a iria buscar mais tarde.

- E quando voltou?

- Pedi a um dos meus homens para ir lá buscá-la.

- Nunca mais viu a rapariga viva, nem a túnica, até ao momento em que a descobrimos no corpo dela?

- Exactamente.

Encontravam-se a porta da estalagem e Sir Hector parou ostensivamente como se os desafiasse a entrarem com ele.

- Só por curiosidade, Sir Hector - perguntou Simon - a qual dos seus homens pediu para a ir buscar?

- Hum? Oh, ao Wat, creio.

- E a seguir, o que fez?

- Voltei a sair. Só tinha regressado ao salão por instantes. Falei com o Wat e fui-me embora imediatamente.

- Porquê? Para onde foi?

- Ver uma pessoa.

- Quem? - inquiriu Baldwin.

- Como já disse, isso não é assunto que lhe interesse.

- Pois eu penso que interessa...

- Pode pensar o que lhe apetecer.

- Sir Hector, estou a tentar descobrir quem poderá ter assassinado a rapariga e o senhor não está a ajudar.

- Não a matei e não vi quem o fez. Dizer-lhe com quem fui encontrar-me não lhe servirá de nada. Só posso sugerir que fale com outras pessoas e tente descobrir quem matou essa Sarra.

Simon remexeu na poeira do pavimento com a biqueira da bota.

- Há uma coisa que me parece muito estranha.

- Toda esta maldita história me parece muito estranha - declarou Sir Hector num tom pesado.

- Referia-me a isto: a túnica que ela vestia anteriormente estava caída no chão do quarto, como se a tivesse atirado para ali com a pressa de mudar para a nova. Foi por isso que perguntei se a Sarra poderia ter pensado que se tratava de um presente. Se se limitasse a ver a túnica no seu quarto e não pensasse que era para ela, poderia tê-la experimentado. Suponho que até a poderia ter levado para o quarto dela para o fazer... mas não permitiria que ninguém a visse.

- E então? - Sir Hector olhou-o com desdém e com os lábios contraídos numa expressão de desprezo.

- Ocorreu-me que deve ter saído do quarto, atravessado o pátio e o salão para entrar nos seus aposentos. Devia saber que alguém a veria. Se estava a experimentar a túnica clandestinamente... então escolheu uma maneira muito pública de o fazer, - E então? Talvez quisesse que as pessoas a vissem com uma túnica colorida.

- Creio que, para começar, uma mulher só se comportaria desse modo se pensasse que a túnica era para ela. A Sarra não viu necessidade de ocultar a sua posse porque pensou que a túnica era dela. Foi por isso que mudou de roupa no quarto e regressou à vista de toda a gente.

- Deus do céu! Se pensou isso, então por que se deu ao trabalho de ir ao quarto dela para vestir a túnica? Por que não o fez onde a encontrou?

- Tem toda a razão! -- Simon sorriu. - Esse é o outro problema. Seria de esperar que, quando visse a túnica a experimentasse logo ali. Não se daria ao trabalho de ir ao quarto dela para mudar de roupa. Contudo, se estivesse no quarto e alguém lhe tivesse falado na túnica... então iria aos seus aposentos para a procurar mas de certeza que a vestia ali mesmo.

- Onde quer chegar?

- A isto, Sir Hector: uma vez que a Sarra mudou de roupa no quarto dela, só há uma razão para que o tenha feito e para que tenha regressado aos seus aposentos. Pensou que a túnica era dela. Logicamente, penso que a encontrou no seu próprio quarto ou que alguém lá foi para lha dar.

Baldwin ficou a olhar para o amigo.

- Estou a ver onde queres chegar. Se pensou que era um presente... teria ido directamente ter com Sir Hector para lhe agradecer.

- Seria esse o comportamento normal de uma mulher. Vestia a túnica para lhe mostrar que estava satisfeita com o presente.

Os olhos do mercenário saltavam de um para o outro.

- Estão a sugerir, a sério, que ela encontrou a túnica no quarto e se precipitou para aqui a fim de me agradecer por lha ter comprado?

- É a única explicação em que consigo acreditar, pelo menos neste momento - retorquiu Simon, encolhendo os ombros. - Ou a encontrou ou entregaram-lha... e disseram-lhe que tinha sido comprada para ela.

- Quem lhe poderia ter dito uma coisa dessas?

- É isso o que precisamos de descobrir - respondeu Baldwin. - Entretanto, nunca chegou a responder à minha pergunta. Para quem comprou a túnica?

- Isso é comigo. O assunto não vos diz respeito.

Baldwin reparara que os olhares do capitão se desviavam constantemente para a estrada por trás dele. Tinha a certeza de que Sir Hector estivera à espera da mesma mulher, fosse ela quem fosse, quando arrancara a tigela das mãos da pobre mendiga. Todavia, pouco podia fazer para obrigar o homem a identificá-la. Por qualquer razão, Baldwin pressentiu instintivamente que não o deveria pressionar.

- Muito bem. Haverá mais alguma coisa que se tenha esquecido de nos mencionar hoje de manhã?

Os olhos do capitão eram como bocados de sílex cinzento quando rosnou:

- Não!

O Guardião da Paz do Rei e o amigo afastaram-se da estalagem e o observador teve dificuldades para conter os seus sentimentos. Já sabiam a respeito da túnica nova e isso, no mínimo, deveria pô-los na pista correcta. Viu-lhes os rostos e estes disseram-lhe tudo o que precisava de saber. O cavaleiro, Baldwin, espreitava constantemente por cima do ombro, para a estalagem, com as feições contraídas numa negra máscara de desconfiança, enquanto o amigo parecia perdido em pensamentos e franzia a testa num trejeito de perplexidade.

Os frutos do seu plano estavam finalmente a amadurecer e muito em breve já estariam prontos para serem colhidos.

Logo que os homens se foram, Sir Hector atravessou o salão de rompante e dirigiu-se ao quarto tão furioso como um urso com uma pata presa numa armadilha. Chegou à entrada dos aposentos e apontou para um dos seus homens:

- Vai-me buscar o Henry. Trá-lo aqui... já!

Estava sentado em frente da escrivaninha quando Henry entrou. Parecia nervoso mas isso não surpreendia Sir Hector, uma vez que era de esperar que qualquer um dos seus homens reagisse com ansiedade a uma convocação urgente.

- Fecha a porta - disse, acenando ao outro para se ir embora. Henry fez o que lhe mandavam, lançou algumas olhadelas à sua volta e sentou-se numa arca.

Sir Hector conhecia bem os homens. Para um líder, uma das regras básicas era a de que o pessoal sob o seu comando soubesse que o seu capitão os compreendia, tanto a eles como às suas necessidades. Ao mesmo tempo, tinham de acreditar que era infalível e detinha um poder total. Não foi a bondade que transformou Sir Hector num comandante de guerreiros, mas sim a disposição para matar impiedosamente todos os que o ameaçassem e à sua autoridade. Observou Henry e teve consciência de que o homem poderia muito bem ter pensado em derrubá-lo... e que talvez até o conseguisse com êxito. Henry era suficientemente tortuoso, embora Sir Hector duvidasse que o sargento fosse inteligente o bastante para o conseguir enganar completamente.

Todavia estava perturbado com a ideia de que até o seu homem de maior confiança poderia ter conspirado contra ele.

Não havia nada de invulgar numa potencial deslealdade, até porque era normal que um bando de mercenários escolhesse um novo capitão. O anterior era substituído por outro, um homem mais forte que fosse capaz de instilar ainda mais medo nos que se encontravam abaixo dele. Era um risco que sempre existira em qualquer grupo onde os descontentes fossem capazes de persuadir os restantes de que havia um melhor líder à disposição. Por vezes, os senhores que os contratavam fomentavam problemas no seio dos bandos por considerarem vantajoso uma mudança de comandantes de modo a poderem renegociar contratos durante os interregnos. Outras vezes, um comandante de mercenários descobria que enquanto se deslocara ao estrangeiro sem levar consigo a maior parte dos seus homens estes tinham deixado de lhe obedecer ou recebiam-no com uma emboscada. A lealdade era um bem muito raro para os guerreiros! Foi isso o que Sarra alegara, ou algo de muito semelhante, ao dizer que Henry conspirara contra ele para se apoderar do comando.

A estúpida cadela foi a responsável pela sua própria morte, pensou, de um modo selvático. Fizera aquelas alegações no meio de uma estalagem onde Henry tinha os seus espiões, pelo que era natural que o avisassem e informassem.

Henry agitou-se, à espera que o amo falasse, e esse movimento arrastou a atenção de Sir Hector de volta ao presente.

- O Wat... - perguntou - merece confiança?

- Merece tanta confiança como qualquer outro velho vagabundo que já assistiu a demasiadas batalhas. Não sei. Não há dúvida de que sempre lutou bem, mas há algum tempo que anda a remoer certas coisas...

- Que espécie de coisas?

Henry coçou a cabeça. Não conseguia perceber onde o amo queria chegar e não queria falar demasiado, não se fosse dar o caso de se ver na linha de fogo.

- Oh, em geral, sobre o modo como o grupo está organizado. Está sempre a falar de dinheiro e de outras coisas do mesmo género...

- Também se terá queixado de ti?

- De mim? - Henry concluiu que um pouco de honestidade aparente não o prejudicaria. - Não, mas nunca gostou de mim. Na verdade, são poucos os homens que gostam porque acham que interfiro demasiado. Não lhes agrada que dê ordens e que imponha a disciplina. Por esse lado, nada de novo. No entanto, já o ouvi a arengar aos outros.

- Sir Baldwin pensa que o Wat pode ter dito à Sarra para vir ter comigo vestida com aquela túnica.

- Para que faria uma coisa dessas?

- Talvez para me irritar ao ponto de eu a matar.

- E por que haveria de ficar tão irritado ao vê-la com uma túnica? - inquiriu Henry num tom de dúvida.

- Porque a comprei naquele dia para outra mulher. Se a tivesse visto a usá-la... podia tê-la morto por estar a poluí-la com o seu corpo sujo.

Henry perguntou a si mesmo se o seu amo também achou que o corpo da rapariga era sujo na noite em que tinham chegado à cidade mas manteve um rosto inexpressivo.

- Não sei como o Wat poderia ter pensado nisso. Por que haveria de pensar que o senhor ficaria tão zangado que seria capaz de a matar?

Sir Hector fitou-o sem pestanejar e Henry teve o decoro de desviar os olhos. Ao longo de muitos anos, todos eles tinham morto gente num grande número de batalhas e de fugas. O próprio Henry estivera envolvido nalgumas das piores guerras de fronteira entre a França e a Inglaterra, nos pântanos da Gasconha, e nenhum estava livre das manchas do sangue que haviam derramado durante os períodos de maior excitação. Sir Hector sabia que Henry, depois do saque de uma cidade, encontrara dois homens a discutir por causa de uma mulher capturada. Com o seu humor brutal, encontrara uma solução fácil para o problema. Brandira a enorme espada, gritara "Metade para cada um!" e cortara a mulher ao meio. Não, nenhum deles estava livre das manchas de sangue.

- Quero que mo descubras, Henry. Faz perguntas por aí. Se foi ele quem a convenceu, então não é de confiança e quero que se vá. Sabes o que quero dizer...

- Sim, senhor.

- E tu... conspiraste para me afastar, Henry?

Os olhos de Sir Hector colaram-se-lhe ao rosto e Henry sentiu-se empalidecer. Foi como se aqueles olhos o tivessem apunhalado e o sangue escorresse para as palhas que cobriam o chão. Abanou a cabeça silenciosamente, por não confiar na sua voz.

Henry saiu do quarto e Sir Hector ficou sentado durante muito tempo, mergulhado em pensamentos. Ainda tinham um longo caminho a percorrer antes de regressarem à Gasconha, onde as guerras prosseguiam e havia dinheiro para saquear... mas tinha a certeza de que necessitava de se ver livre de Wat antes de lá chegarem.

Para além disso, também tinha de afastar o Henry. Já não podia confiar nele. Sir Hector acenou para si mesmo. Precisava de pensar noutro qualquer que pudesse assumir as responsabilidades de sargento do bando.

 

Henry saiu rapidamente do quarto e atravessou o salão, passando no meio dos homens sentados que bebiam ou jogavam aos dados. Para os que reparassem nele, tinha o aspecto do costume: alegre e calmo, embora talvez mais apressado do que era habitual.

John estava a jogar um jogo chamado merrills e precisava de toda a sua concentração para ganhar. Era bom a outros jogos, mas tentar ganhar sete das peças dos seus oponentes enquanto evitava que as suas fossem capturadas deixava-o sempre muito frustrado. Para além disso, o facto de haver apostas não lhe facilitava o jogo. Avistou Henry a sair do quarto do capitão e os olhos dos dois encontraram-se. Viu Henry a fazer um gesto com a cabeça e respondeu com um aceno rápido antes de regressar ao jogo.

Lá fora, Henry esperou o cúmplice com grande nervosismo. Pareceu-lhe terem-se passado horas antes de John concluir o jogo e sair do salão, e Henry passou todo esse tempo a sobressaltar-se com o mais leve dos sons enquanto caminhava no pátio, de um lado para o outro, tentando parecer despreocupado.

- Em nome de Deus, que estiveste a fazer? Não percebeste que precisávamos de falar?

- Qual é o problema? Não podia abandonar o jogo com dinheiro em cima da mesa porque todos perceberiam que se passava qualquer coisa. Vim logo que pude.

- Não o fizeste suficientemente depressa - retorquiu Henry. Era a primeira vez que John lhe via o medo nos olhos.

- O que é? Que se passou?

- Não podemos falar aqui. Vem comigo. - Henry pegou-lhe por um braço e conduziu-o para trás dos estábulos, para um ponto sombrio na passagem das traseiras onde podiam falar sem serem vistos.

- Sír Hector mandou-me chamar e fez-me perguntas sobre o Wat.

- Será que pensa que foi o Wat quem lhe roubou toda a prata? O velho bastardo não tem esperteza suficiente...

- Não, não pensa isso. Está convencido de que o Wat pegou na túnica que foi buscar, entregou-a à Sarra e disse-lhe que se tratava de um presente para ela. O Wat ter-lhe-á dito para a vestir, na expectativa de que Sir Hector a matasse quando a visse a usá-la. Se calhar pensa que foi o Wat que a matou quando o seu plano original falhou.

- Achas que acredita mesmo que o Wat a matou?

- Sim... pelo menos por enquanto. Contudo, estaremos mortos se ele falar com o Wat.

- Sir Hector nunca...

- Está mais perto do que julgas. Acabou de me perguntar se terei conspirado contra ele.

- Jesus Cristo!

- Pois...

Ficaram ambos a contemplar o futuro imediato durante um minuto.

- É melhor procurarmos o Wat para o silenciarmos antes que possa dizer qualquer coisa.

- Foi o que Sir Hector me ordenou que fizesse. Matá-lo... Para que nos serviria? Viste-o a conversar com o servo do almoxarife e houve outros que escutaram tudo o que o idiota disse. Se morrer de repente, as pessoas irão somar dois e dois... O facto de SírHector nos ter dito para o fazermos não nos protegerá. De qualquer modo, viram-nos entrar no quarto de SírHector e não precisarão de se porem a adivinhar para pensarem que podemos tê-la morto. Não, temos de nos ir embora... agora mesmo!

- O quê, queres deixar o bando agora? Para sempre?

Henry acenou, lúgubre. Se John não tivesse morto a rameira não teriam surgido problemas, mas as coisas estavam a complicar-se. John derrubara-a logo que a viu no compartimento de armazenagem vestida com a maldita túnica e a partir daí todo o plano se começou a desfiar gradualmente como uma camisa barata. Apunhalá-la fora desnecessário. A rapariga não os vira... e teriam podido deixá-la na arca durante todo o tempo que desejassem sem que ninguém se preocupasse.

Porém, depois de John a apunhalar, as hipóteses de poderem gozar as recompensas do roubo estavam reduzidas a nada. O problema não era com Sir Hector, porque este não se ralava com a morte de uma simples serva e preocupava-se muito mais com a perda da prata. Não, o problema era o Guardião local, aquele maldito intrometido! Parecia decidido a descobrir quem roubara a vida à rapariga. Lançou uma olhadela ao amigo e teve de conter a amargura. John só fizera o que ele deveria ter feito. Era melhor não deixar testemunhas. Todavia, lamentavelmente, daquela vez teria sido melhor deixar a rapariga com vida... - Vem daí - disse. - É melhor fazermos uma coisa...

Naquela noite, Simon teve dificuldade para se descontrair. A refeição era demasiado pesada para um dia de jejum e incluíra peixe fresco dos lagos e um ganso assado com ervas aromáticas e especiarias. Peter Clifford não se poupara a esforços para que o bispo o encarasse sob a melhor luz possível.

- Ganso? - perguntou Stapledon, farejando o aroma enquanto um servo cortava fatias da carne gorda e tenra. O bispo acenou e sorriu para o pajem que lhe estendeu a taça com água quente e perfumada para lavagem das mãos, mãos que a seguir secou na toalha enquanto Peter se lavava. - Ganso-bernaca... - admitiu Peter.

- Há quem diga que não são peixes... - comentou Stapledon, facto que deixou Peter muito chocado.

- As minhas desculpas se não lhe agrada, meu senhor, mas os gansos-bernaca são peixe. Vivem no mar e nascem de um verme. Se quiser, mando-o retirar da mesa e...

- Seria um cruel desperdício das dádivas de Deus. Tal como dizes, a maior parte das pessoas considera-os peixes. Cheira demasiado bem para ser deitado fora... - Virou-se para Baldwin. - Teve um dia produtivo, meu caro amigo? Está mais perto de descobrir quem tirou a vida à pobre rapariga?

Baldwin secou as mãos que estivera a lavar e recostou-se.

- Não sei quem a matou... mas tenho desconfianças a respeito de Sir Hector.

- Ah, sim, Sir Hector... - murmurou o bispo com um suspiro. - Pergunto a mim mesmo se terá sido armado cavaleiro por um homem de honra. É muito frequente que esses chefes de soldados vagabundos adoptem o título de cavaleiros quando muito bem lhes apetece. Receio que a única prova de autoridade desse homem esteja na sua habilidade para matar. - Interrompeu-se enquanto um dos sacerdotes proferia a oração de graças. - Para além disso, é perfeitamente natural suspeitar de alguém que trata a vida como algo a que pode pôr fim quando lhe dá na gana e não como uma dádiva de Nosso Senhor, que deve ser honrada e respeitada.

Baldwin descobriu-se a simpatizar com o bispo mas Margaret interveio antes dele poder falar.

- Não percebo o que estão eles a fazer aqui. Por que vieram para Crediton?

- Aparentemente pensaram em juntar-se ao exército do Rei, mas o pagamento não os satisfez - disse Peter. - Ouvi dizer que estiveram com os representantes do monarca mas que decidiram não seguir para o Norte. Creio que lhes disseram que não eram desejados.

- Duvido que o monarca ou os seus homens sentissem a falta deste bando... - afirmou Stapledon com um sorriso, mas Baldwin não teve tantas certezas.

- Estou certo de que o monarca se podia ter servido da habilidade daqueles homens para a luta e para incutirem o medo nos corações dos Escoceses...

independentemente da moralidade ou da complexidade das suas almas. Podem não

ser bondosos ou amáveis, mas são indiscutivelmente soldados, enquanto a maior parte dos exércitos reais é formada por camponeses pouco habituados a matar. Quando as batalhas se tornam mais ferozes são mais propensos a meter o rabo entre as pernas e a fugir do que a combater.

- Sim... se não pudessem ser subornados num momento inoportuno, para mudarem de campo... - comentou Stapledon com ligeireza. - Até parece que tem alguma espécie de estima por eles, Sir Baldwin.

- Não propriamente, mas já participei em guerras onde homens daquele tipo demonstraram ser tão valentes como qualquer outro, e com um comportamento tão honroso como deveria de ser o de muitos dos seus superiores. Uma das coisas que aprendi foi que não devemos considerar tais homens como sendo cobardes ou tolos. Muito frequentemente, são forçados a seguir aquela vida mesmo contra a sua própria vontade.

- De certeza que não podem ser melhores do que uma tropa de homens com uma melhor moral e com os corações puros - afirmou Stapledon.

- Meu senhor bispo, receio que se algum dia tiver de enfrentar uma batalha ao lado de um certo número de homens bons, todos puros de coração e com vidas de acordo com os princípios do próprio Cristo, e do outro lado se encontrar um igual número de mercenários tão bem treinados como os homens de Sir Hector, todos versados nas artes da guerra e do combate... então será melhor que envergue uma boa armadura e que se certifique que tem uma montada bem rápida por perto... porque não tenho dúvidas de que os mercenários, não obstante a sua vida devassa, irão certamente vencer.

- Também eu já combati, Sir Baldwin - declarou o bispo com frieza. - Pode ser que tenha razão, mas por vezes é melhor morrer por uma boa causa do que viver por uma má.

- Sem dúvida - concordou Baldwin. - Todavia, por muito boa que considere a sua causa, terá muito mais probabilidades de vencer as batalhas com soldados treinados e hábeis.

- Baldwin! - exclamou Peter. - Estás a tentar negar as realizações de séculos de cavalaria? Toda a nossa sociedade depende da virtude e daí o poder dos nossos cavaleiros. Sempre assim foi, desde os tempos do reinado do Rei Artur.

- O que é a cavalaria? É um método de fazer a guerra que por vezes nem sequer funciona. Aprendemos isso Além-mar, no Reino de Jerusalém, onde os Sarracenos nos venceram com demasiada frequência mesmo quando éramos

fortes...

- Ah, Sir Baldwin, creio que talvez não esteja a compreender muito bem todos os problemas que aí se verificaram - disse o bispo num tom grave. - Muitos desses cavaleiros eram ímpios e estavam motivados pelas razões erradas.

- Tais como? A motivação de um cavaleiro deve ser a glória, combatendo honrosamente para defender os pobres e os fracos. Talvez pudéssemos alcançar o mesmo com um menor número de homens mais versados nas coisas da guerra... e com menos custos. Olhe para a guerra na Escócia. Vamos ganhá-la? Não faço ideia... mas há uma coisa de que estou certo; quase nenhuns dos nossos homens são verdadeiros guerreiros. Há alguns cavaleiros bem-nascidos no séquito do monarca mas a maior parte dos restantes são arqueiros e soldados a pé. É precisamente sobre estes que recairá o grosso dos combates... e quantos deles foram treinados em algo mais do que o arado e a gadanha? É possível que os poucos homens de Sir Hector valham o equivalente a trezentos camponeses vulgares...

Simon ouviu a discussão em silêncio. Não tinha vontade de se lhe juntar e de falar de coisas que conhecia mal para não exibir a sua ignorância a respeito de guerras e combates. Os seus conhecimentos estavam limitados às confrontações com os bandos de foras-da-lei e à necessidade de manter os mineiros afastados dos habitantes locais das charnecas... e isso nada tinha em comum com as experiências de um homem como Baldwin, que passara a sua juventude a combater os Sarracenos.

Contudo, houve algo mais que o forçou a manter a boca fechada. Sentia uma ansiedade crescente e havia uma incomodativa sensação de inquietação no fundo da sua mente, o pressentimento de que algo estava errado.

No fim da refeição, depois da água morna ter sido trazida para que todos lavassem as gorduras e molhos dos dedos, Simon desculpou-se e saiu para a rua, argumentando que tinha o estômago demasiado cheio.

O Sol afundara-se para lá da colina distante e a rua estava quase deserta. Os edifícios erguiam-se à sua volta como os flancos do Vale de Teign, irregulares e disformes como falésias de pedra. As lojas estavam vazias e com um aspecto morto, as casas tinham as portadas das janelas bem fechadas contra o pouco saudável ar nocturno e as únicas luzes provinham das aberturas de ventilação e dos alçapões nos telhados, todos abertos para deixarem escapar o fumo dos lumes onde se cozinhava.

Havia um curioso ambiente de expectativa. Ouviu uma porta a bater, uma explosão de gargalhadas e risadinhas, o latido de um cão a ecoar ao longo de uma rua, um homem a praguejar e o som da agitação numa taberna. Eram os sinais normais de uma noite numa grande cidade. Uma galinha murmurou para si mesma do outro lado de uma parede quanto Simon passou, incomodada por ter sido perturbada, e um cordeiro baliu, ensonado. Contudo, Simon pensou que por cima de todos aqueles sons perfeitamente normais e sem nada de invulgar havia uma espécie de imobilidade, como se toda a cidade estivesse à espera que acontecesse qualquer coisa.

já perto da prisão, Simon deteve-se e observou a estalagem. Ouviu-se uma rajada de gargalhadas roucas vindas do salão e o almoxarife teve pena dos que viviam ali perto. De certeza que se arrependiam de viver tão perto de um sítio onde se vendia cerveja, pelo menos quando os hóspedes eram tão barulhentos como aqueles soldados. Por instantes sentiu-se tentado a juntar-se-lhes e a perder-se na bebida na companhia de homens que não receavam o futuro e se limitavam a viver para o presente, mas acabou por ficar no exterior a olhar, com alguma ansiedade, para o brilho que se filtrava através das portadas fechadas.

Um mugido suave vindo do matadouro e um balido fizeram-no regressar ao presente. Não valia a pena juntar-se aos soldados, Não eram o seu tipo de gente. Se entrasse far-se-ia o silêncio, para logo depois, e muito rapidamente, todos eles lhe voltarem as costas. Era um almoxarife, um homem habituado a dar ordens, mas não tinha nenhuma autoridade sobre eles. Tratava-se de homens livres, libertos das coibições que outros poderiam sentir ao vê-lo. De qualquer modo, também sabia que a sua negra disposição não melhoraria se entrasse num salão repleto de alegres bebedores. Tratava-se de uma disposição para a qual o álcool não fornecia qualquer espécie de cura.

Foi com uma careta de amargura que aceitou o facto de também poder não se encontrar em segurança junto dos membros do bando de Sir Hector, que cantavam e praguejavam.

Simon começou a andar na direcção da extremidade ocidental da cidade, mas os seus passos perderam a força quando passou em frente da entrada da ruela onde vira a mulher de cinzento. Havia ali qualquer coisa que o fez parar e franzir a testa.

A entrada da ruela abria-se como a boca de uma criatura maligna, e era tão longa e malcheirosa como a goela de um dragão. Todavia, tal como uma presa atraída por um isco tentador, Simon demorou-se. A ruela era um serpenteante túnel negro onde os sons se alteravam e os sentidos ficavam embotados. Era ali que viviam as pessoas mais pobres da cidade, aquelas que não se podiam permitir o estilo de vida mimado de mercadores e sacerdotes, mais afastados do centro. Os comerciantes tinham os seus alojamentos por trás ou por cima das lojas, mas ali, naquele corredor fedorento de casas todas em cima umas das outras, encontravam-se as famílias dos que faziam com que a cidade fosse o que era: tecelões e tintureiros, cozinheiros e servos das casas dos mercadores, todos a viverem à menor distância possível uns dos outros, em busca de calor e de defesa. O cheiro a corpos por lavar, a urina, a carnes e vegetais podres proveniente do esgoto misturava-se com odor dos assados e guisados e formava um fedor que lhe assaltou as narinas e que lhe provocou uma repulsa que o fez comprimir os lábios.

Depois, de repente, imobilizou-se e ficou a espreitar intensamente para o interior. Ouviu um movimento e um grito abafado. Não foi o roçagar rápido de uma ratazana assustada, mas sim um movimento arrastado e deslizante. Lambeu os lábios num gesto de nervosismo e entrou na ruela.

No ambiente morto do interior, o som dos seus passos modificou-se. Em vez do ressoar sólido e confiante que as suas botas tinham provocado no empedrado junto do mercado, os seus pés patinhavam agora nas poças deixadas pelas pessoas que ali tinham despejado tigelas e penicos. Aquela hora da noite já todos os que viviam na ruela se encontravam nas suas camas e Simon não avistou vivalma. Tinha consciência apenas da claridade por cima dele, onde a Lua e as estrelas se destacavam com uma luminosidade bem definida no profundo céu azul-negro, em contraste com a escuridão acinzentada das casas dos dois lados.

Os passos aproximaram-se, Ainda não conseguia distinguir ninguém com clareza, encolhido como estava no vão de uma porta, a sentir-se muito incomodado por causa dos pingos da roupa a secar que estava pendurada sobre a sua cabeça e que lhe tinham caído em cima até sentir a água a escorrer pelas costas como um rio. Agora, naquele vão, encontrava-se protegido contra uma tal irritação.

As passadas continham em si uma lentidão que o aborrecia. Quase tinha vontade de gritar ao homem, de lhe dizer que se aproximasse mais depressa e deixasse de o atormentar. Os seus nervos encontravam-se tão tensos como a corda de um carrasco com o corpo já suspenso da forca. O som lento e metódico aumentava-lhe a tensão, como se o escutasse não apenas com os ouvidos mas sim com todo o corpo. Os passos atingiam-lhe o peito e as entranhas como golpes.

Depois... o homem passou. O observador oculto soltou a respiração com alívio. Em breve se iria escapar dali, precipitar-se-ia para a cidade e desapareceria enquanto aquele tolo se arrastava ao longo da ruela.

Todavia, o lamento sobrenatural deteve-o. Começou por ser um gemido baixo e passou a um grito de indiscritívei sofrimento que se erguia em rajadas para logo voltar a descer. Prosseguiu, subindo e descendo com cada vez mais regularidade até ganhar uma cadência estável que se erguia ao nível de um guincho e baixava até se transformar num estremecimento de horror.

Simon imobilizou-se de repente. O ruído abafara tudo, até os sons tranquilos da ruela e toda a área ficou como que parada, ou como se as próprias casas estivessem à escuta da infelicidade daquela voz.

A seguir, as pernas propulsionaram-no para a frente. A mão agarrou a espada, puxou-a e a seguir brandiu-a quando se lançou para uma ligeira curva naquele túnel de escuridão enquanto sentia o sangue a subir-lhe à cabeça, as entranhas esvaziadas por um medo súbito e um formigueiro de mau agoiro no escalpe.

A curva surgiu, ficou para trás e ninguém saltou para o atacar. Continuou em frente e o lamento transformou-se num guincho... mas agora soava por trás dele. Parou a derrapar, virou-se, voltou para trás e viu uma passagem ainda mais estreita e negra: era a abertura de outra ruela. Tê-la-ia visto à luz do dia mas, na escuridão, era praticamente invisível. Diminuiu a corrida, estendeu a mão para amortecer a velocidade contra uma parede, conteve a respiração e entrou.

Tratava-se de um pequeno beco sem saída. No outro extremo havia uma habitação com uma nesga de luz a escoar-se pelas portadas estaladas e partidas e foi graças a essa magra iluminação que confrontou a negra tragédia.

A mulher estava toda encolhida, como se, até na morte, procurasse ocupar o mínimo de espaço possível e estivesse ansiosa por se conformar às leis que exigiam que os pobres e as viúvas se tornassem inconspícuos e saíssem do caminho dos outros. Ao princípio Simon pensou que a mulher estava simplesmente ajoelhada a procura de qualquer coisa, uma vez que tinha os braços no chão e a cabeça suavemente pousada entre eles. Todavia, logo de seguida verificou que a almofada em que a cabeça repousava era feita das fezes lançadas dos andares superiores.

A criança encontrava-se a seu lado, como um querubim imundo de cabelos espetados a que sujidade dera a consistência de madeira. O rosto encardido era só boca, uma boca que berrava a ferocidade do seu desgosto. Simon sentiu que o seu coração se iria despedaçar ante aquela visão de perda absoluta.

Estendeu a mão, com o rosto a desfazer-se-lhe sob o peso maciço do desgosto do rapaz, e disse qualquer coisa - embora nunca mais viesse a recordar-se do que foi que dissera -, e viu a criança a virar-se para ele.

A seguir verificou que o pequeno rosto se abria num novo terror. A boca do rapaz escancarou-se ainda mais e o almoxarife ainda escutou o seu horrível lamento.

O golpe atingiu-o e caiu para a frente. Tentou futilmente agarrar-se à consciência como um homem a afogar-se que se estica para uma corda fora do seu alcance mas as vagas negras da inconsciência precipitaram-se sobre ele para o engolirem.

 

Naquela noite, Roger de Grosse não era o homem mais feliz de Crediton. A missão em que o tinham enviado para oeste da cidade foi aborrecida e requerera que confirmasse entregas de vinho e de especiarias na catedral. Isso quisera dizer que teve de ficar cinco horas fechado com o ajudante do mercador enquanto este verificava todos os artigos da lista que o bispo lhe dera, para depois a confirmar por comparação com a sua própria cópia. A seguir teve de vaguear no meio de embalagens e de barris, de provar alguns dos barris de vinho, numa escolha ao acaso, de abrir caixotes e de investigar o seu conteúdo, caixotes esses que tinham sido novamente fechados e marcados com o selo de cera do bispo para evitar que voltassem a mexer-lhes.

Cinco horas num armazém gelado sem que lhe tivessem oferecido comida ou bebida tinham dado cabo da habitual boa disposição do jovem. Esperou estar de volta ao salão de Peter Clifford muito antes, ainda a tempo de poder beber uma cerveja com especiarias e deliciar-se com comida quente, mas agora já se resignara à ideia de que só iria encontrar pão seco e carnes frias.

Apenas quatro meses antes teria ficado espantado se o incumbissem de uma tal missão, uma vez que o filho de Sir Arnold de Grosse estava mais habituado a dar ordens e a ver os outros a correrem para as cumprir. Era humilhante ordenarem-lhe que fosse a qualquer lado contar barris como um vulgar servo, mas sabia por que razão o encarregavam daquelas tarefas. Walter Stapledon deixara bem claro, logo no princípio, que o iria encarregar de muitas das tarefas mais pesadas e aborrecidas, não por que não gostasse dele mas sim porque o bispo tinha de ser convencido de que o novo sacerdote era capaz de humildade e dedicação. O bispo, sempre astuto, queria certificar-se de que o jovem Grosse estaria preparado para servir os paroquianos e punha à prova a dedicação de Roger entregando-lhe as tarefas insignificantes a que os outros procuravam esquivar-se.

A lógica era simples. Roger tinha a possibilidade de conseguir uma boa vida e depois de ser empossado seria muito difícil removê-lo, e isto não apenas por o pai ser um importante patrocinador de Stapledon que contribuía para muitos serviços e trabalhos de construção. Para Stapledon teria sido fácil aceitar o filho de Grosse e ignorar os apelos dos paroquianos, mais que não fosse apenas por causa do dinheiro. Contudo, o bispo era um homem cauteloso que levava muito a sério as suas responsabilidades para com as almas mesmo nas áreas mais longínquas da diocese, e não se sentia muito feliz com a posse daquele rapaz. Queria pô-lo à prova para ter a certeza de que era apropriado para o lugar que o pai lhe queria comprar.

Roger tropeçou numa pedra mal colocada na calçada, torceu o tornozelo, cerrou os dentes contra a vontade de soltar uma praga e fez uma careta de dor enquanto dava pulinhos sobre o outro pé e segurava no membro ofendido.

- Ufff... - acabou por suspirar quando o primeiro choque e a dor diminuíram um pouco. Sentiu-se em condições de coxear até à parede mais próxima, encostou-se e tentou adivinhar quanto ainda teria de andar.

Aceitava o modo de pensar de Stapledon mas ter de agir como um vulgar servo era algo difícil de engolir. Seria diferente se se tratasse de um serviço regular, se se tivesse tornado no escudeiro de um amo importante e cumprisse o período de aprendizagem antes de poder ganhar as esporas douradas e o cinturão de espada de um cavaleiro, mas tudo o que agora podia esperar era a pequena igreja que Stapledon seleccionara para ele em Callington... e não tinha a certeza de a querer aceitar.

Voltou a pousar o pé no chão e interrogou-se mais uma vez a respeito dos planos que o pai fizera para ele. Era o mais novo dos irmãos, pelo que também era natural que o pai tentasse arranjar-lhe um modo de vida razoável. Por que razão haveria um homem de investir tanto nos patrocínios se no fim não viesse a ter uma recompensa qualquer? Sir Amola esperava que essa recompensa fosse um lugar para cada um dos filhos machos que não iriam herdar, para que pudessem ter um lugar onde viver. Tendo em conta que o mais velho iria ficar com todas as propriedades, com a casa e com as riquezas acumuladas ao longo dos anos, era essencial encontrar qualquer coisa para os outros, se por acaso sobrevivessem.

Inicialmente, Roger não se interessou pela igreja nem por um lugar de sacerdote. Queria ser um cavaleiro.

O irmão Geoffroy fora armado cavaleiro cerca de dois anos antes e desde esse momento só muito raramente se dignara a falar com ele por ter consciência da sua elevada posição na vida e por saber que herdaria as propriedades enquanto o "pequeno Roger" não passaria de um pobre sacerdote de aldeia. Para além disso, Geoffroy tinha a firme convicção, embora um pouco paternalista, de que o irmão era de tal modo incompetente que de nada serviria ensiná-lo ou treiná-lo para as artes da guerra. Do ponto de vista de Geoffroy, qualquer homem que não possuísse propriedades era fraco e existia apenas para suportar aqueles que tinham dinheiro. Geoffroy ia ser rico, e Roger não. Portanto, Roger tinha de aceitar o seu estatuto secundário na vida.

Roger tinha muito poucos apoios no lar dos Grosse. Desde que a mãe morrera que tivera de confiar em amigos no meio dos servos, mas isso modificara-se ao longo dos anos. Quando fez oito anos o pai obrigara-o a desistir dos companheiros de infância. Foi a partir dessa idade que se viu obrigado a esquecer as brincadeiras e começar a aprender a sua arte. A maior parte dos escudeiros eram aceites como pajens pelos seus senhores quando tinham apenas cinco anos, de modo a serem devidamente preparados nas artes que precisavam de adquirir para se tornarem bons cavaleiros. Os pajens tinham de ser ensinados a servir as pessoas correctamente, a comportar-se com boa educação, a cantar, a tocar música e a lutar com os punhos e com as espadas, até chegar a altura de aprenderem a mais crítica de todas as artes, a equitação.

Geoffroy foi levado aos seis anos para viver com a família Courtenay, onde em breve se tornou num favorito entre os seus pares. Para Roger foi um choque quando também o tinham enviado para longe, para aprender letras e ser educado para o sacerdócio. Foi um rapaz triste, sempre consciente das suas fraquezas e inadequações, isto porque os seus pares não hesitavam em maltratá-lo e provocá-lo sem piedade. Iriam ser soldados, homens de guerra fortes e ousados, enquanto ele permaneceria em casa a pregar aos estúpidos paroquianos.

Se tivesse permitido que essa situação se mantivesse, Roger talvez se tivesse transformado em mais um sacerdote solitário numa área provincial, mas o sangue do pai fluía-lhe nas veias, e também lhe escorria do nariz com muita frequência. Era um lutador incorrigível. A menor sugestão de insulto fazia-o reagir, e a mais remota insinuação de que era mais fraco do que os outros conduzia inevitavelmente a uma luta. Os professores assistiam a essas cenas com indulgência porque achavam bem que os rapazes aprendessem a defender-se, e também porque era natural que os mais fortes liderassem os outros, mesmo os futuros sacerdotes, de quem se esperava que organizassem as defesas em tempo de guerra. Um dos rapazes, muito em particular, foi um inimigo declarado de Roger. Tratava-se de um garoto encorpado e cerca de dois anos mais velho, mas quando Roger foi descoberto por um bispo a rolar na lama e a esmurrar as orelhas do outro, acabou por levar uma grande tareia.

O facto deixara-o dorido mas não derrotado. Os seus atormentadores tinham deixado de o perseguir e de fazer troça dele, e passaram a comportar-se com cuidado quando Roger se encontrava por perto.

Sabia, no fundo do coração, que os outros tinham razão. Enquanto eles se tornariam escudeiros aos catorze ou quinze anos, montariam cavalos cada vez maiores e mais velozes, praticariam com a lança e a espada... ele tinha de ficar em casa a escrevinhar pergaminhos com uma bonita caligrafia, a aprender como misturar os pós para conseguir as cores apropriadas para as imagens, ou a estudar aquela estranha língua que aparentemente foi a do próprio Deus e que permitia que os padres de todas as nações conversassem com facilidade.

O pé melhorou e Roger coxeou na direcção da igreja e da casa de Peter Clifford. Os estudos tinham sido duros. Cada falhanço na compreensão do seu trabalho, cada erro de pronúncia e cada tradução pouco precisa tinham resultado em sovas, até atingir a perfeição. Não era um orador natural e a ideia de ter de pregar perante a população de Callington enchia-o de terror, mas o posto, no mínimo, oferecia-lhe a liberdade, uma doce recompensa que tinha a certeza de poder gozar porque quem quer que fosse que desejasse controlá-lo teria de se sujeitar a uma viagem de vários dias. Para além disso, o posto tornava-se cada vez mais atraente pelo facto de estar a gostar, muito rapidamente, de Stapledon, que até àquele momento revelara ser um homem bondoso e honrado, muito diferente de alguns dos que o tinham ensinado.

Contudo, iria sentir-se solitário e Stapledon sugerira que talvez viesse a precisar de ajuda. Em geral, um novo reitor de paróquia tinha mais pessoal para o ajudar, mas em Callington não haveria ninguém. Teria de ser apenas ele, Roger, a debater-se para manter a congregação unida.

Teve de se deter junto da cadeia para descansar o pé, uma vez que o tornozelo estava a inchar e o dedo grande lhe doía terrivelmente. Encostou-se contra a parede e olhou em volta fleumaticamente. Ouviam-se gargalhadas de divertimento através de uma portada partida da estalagem, bem como o som de alguém a cantar. A dor voltou a diminuir e Roger pôs o pé à prova, olhando-o com dúvidas, Talvez aguentasse...

O som abafado de cascos a ressoarem na terra fê-lo levantar os olhos. Da rua ao lado da casa do açougueiro surgiram dois homens a cavalo que conduziam uma mula de carga. Abrandaram quando entraram na rua principal e a seguir afastaram-se lentamente pela estrada para Exeter. Aumentaram a velocidade a pouco e pouco, pelo que quando chegaram ao fundo da colina já seguiam num trote suave.

Roger observou-os, impassível. Era uma hora estranha para iniciar uma jornada, mas não estava particularmente interessado no assunto. Preocupava-se mais em conseguir chegar a casa de Peter Clifford. Suspirou, endireitou-se com esforço e prosseguiu. Voltou a parar na entrada de uma ruela. Havia um pesado pau encostado à parede. Pegou-lhe e experimentou-o. O pau ia aguentá-lo e preparava-se para continuar o seu caminho quando ouviu os ruídos.

Não havia luz na ruela e a escuridão só lhe permitia ver a alguns metros, mas tinha a certeza de estar a ouvir movimentos. Havia um sussurro baixo, como se um grupo de pessoas falasse em murmúrios e tivesse medo de ser descoberto,

Fez uma pausa e concentrou-se intensamente, tentando ver através da escuridão, mas esta era ainda mais espessada pelos fumos de um sem-número de lareiras, fumo que pairava em finos farrapos que eram como espectros vigilantes.

De súbito sentiu um frio que nada tinha a ver com a frescura da noite e coxeou de volta à casa de Peter Clifford tão depressa quando o tornozelo magoado lho permitiu.

Margaret observou, fascinada, quando Walter Stapledon voltou a colocar os vidros nos olhos e começou a ler o documento com todo o cuidado.

Ela nunca soube ler. Como filha de um agricultor não houve razões para que o pai investisse na sua educação, uma vez que casaria logo que atingisse a idade apropriada e tornar-se-ia numa mãe. O treino ficara completo aos catorze anos, idade em que já sabia fabricar a cerveja e cozinhar, e em que aprendera os rudimentos básicos dos cuidados para com os filhos. Simon sabia ler e escrever, pelo que o que a espantava não era essa capacidade, mas sim a forquilha de metal que Stapledon mantinha no nariz enquanto escrutinava a página.

Stapledon apercebeu-se da sua expressão, sorriu e pousou o documento.

- Uma das fraquezas dos velhos é o facto de necessitarem de ajuda para aquelas partes do corpo que já não funcionam tão bem como antigamente.

- Mas para que serve isso? - perguntou.

- Foram feitos para os homens fracos e velhos como eu, cujos olhos já não são muito eficientes. Costumava ver tão bem como tu, mas agora preciso destes dois vidros montados numa estrutura para que as letras pareçam maiores.

- Como funcionam?!

O bispo riu-se e passou-lhe os óculos.

- Encaro-os como uma dádiva de Deus, um milagre que me torna a vida mais fácil. Não pretendo compreender como funcionam e limito-me a aceitá-los!

A porta bateu quando Baldwin e Edgar entraram depois de terem ido verificar os cavalos.

- Simon ainda não voltou? - perguntou o cavaleiro, olhando para Stapledon com as sobrancelhas levantadas numa expressão de ligeiro alarme.

O bispo abanou a cabeça.

- É assim tão grave? Parece-me ser um homem suficientemente forte, capaz de enfrentar qualquer salteador.

- Pois é... Deve estar bem... - Baldwin instalou-se num assento e observou Margaret a brincar com os óculos com a delícia de uma criança, estudando a madeira da mesa, a página em frente do bispo e até a pele das costas da mão enquanto o bispo a fitava com um ar indulgente.

Todavia, apesar da confiança que exprimira, o cavaleiro estava preocupado. Simon andava tão mal-humorado nos últimos dias que o seu desaparecimento depois da refeição era causa para preocupações. Não que Baldwin esperasse que o amigo fizesse mal a si mesmo intencionalmente. Simon não era de modo nenhum capaz de um acto tão estúpido e o suicídio era impensável para alguém relativamente temente a Deus. Não, Baldwin não estava ansioso sobre esse aspecto... mas não deixava de se sentir inquieto. Eram muitos os perigos existentes numa cidade durante as horas de escuridão, que até podiam incluir uma queda na rua. Houve uma vez em que Baldwin encontrou um homem caído numa sarjeta. De acordo com as indicações existentes, o que lhe acontecera tornara-se claro: o homem tropeçara num bêbedo caído na estrada, mas infelizmente batera com a cabeça no chão e rolara para uma sarjeta cheia de água enlameada. Inconsciente, acabou por se afogar. O bêbedo nem chegou a acordar.

 

Depois, havia os ladrões. Até uma pequena cidade como Crediton possuía os seus elementos indesejáveis, agora aumentados por causa da presença dos mercenários, um grupo para quem a morte era um modo de vida.

Pobre Simon. Gozara uma vida cheia de êxitos e recompensas mas o gosto de todas essas coisas tornara-se-lhe amargo depois da morte do filho. Baldwin já vira isso acontecer a outros, mas nunca tão intensamente como ao amigo. A maioria, quando um filho lhes morria, livrava-se do desgosto e tentava produzir um substituto. Não valia a pena preocuparem-se muito com os que morriam, pelo menos quando existiam tantos outros a necessitarem de ajuda para sobreviverem.

Todavia, Simon colocara todas as suas esperanças no rapaz. Depois de tantos anos à espera de um filho que pudesse viver mais do que algumas semanas ou dias, porque todos eles, para além de Edith e Peterkin, tinham morrido muito jovens, sofria agora a dupla agonia de saber que o seu único herdeiro também se fora. Simon precisava de ter um filho varão para que a família pudesse continuar, e Baldwin compreendia com toda a facilidade o desgosto de não ter quem lhe preservasse o nome, uma vez que ele próprio sofria da mesma dor.

- Meu senhor! Senhor bispo! - A porta abriu-se de repente e Roger entrou de rompante, de olhos muito abertos e a ofegar.

- Acalma-te, rapaz! - ordenou Stapledon, olhando para o seu jovem sacerdote. Em nome do Senhor, que se passa?

- É... é o meu marido? - gaguejou Margaret, sujeita a uma rápida intuição. - O que é? Onde é que ele está?

- O seu marido? Baldwin abanou a cabeça.

- Simon saiu para digerir o jantar, mais nada. O que foi que viste?

- Senhor, não sei... mas tenho a certeza de que se passa qualquer coisa na ruela junto à cadeia. Ouvi um som como o de muitos homens a falarem baixinho. Acho que deviam mandar lá alguém para investigar.

- Porquê? - perguntou Baldwin. - Talvez seja um grupo a caminho de casa depois da taberna...

- Não, senhor, não estavam a andar, mantinham-se muito quietos, como homens a planear um motim. - Roger falou-lhes dos sons que ouviu perto da entrada da ruela e o rosto de Baldwin endureceu.

- Bispo, acho que devíamos ir ver o que se passa. Não podemos ter a certeza, é claro, mas já hoje ouvi dizer que alguns dos mercenários podem estar envolvidos numa conjura para afastarem o seu capitão. Se estão... não quero que o matem aqui, em Crediton.

- Pois, claro que não... - Stapledon deu uma palmadinha na mão de Margaret. - Vês? Não tem nada a ver com o teu marido.

A mulher exibiu um sorriso vago e desviou a cara, mas não antes de Baldwin lhe ver o medo nos olhos.

- Edgar? Vai chamar o Hugh. Creio que está outra vez a dormir na despensa. Diz ao Peter que vamos sair, pede-lhe dois dos seus homens para o caso de precisarmos de ajuda... e eles que tragam armas. A seguir volta para aqui. - Edgar desapareceu mal o cavaleiro acabou de falar e ouviram a voz ensonada de Hugh a queixar-se por ter sido acordado. - Tu, Roger, vens connosco e mostra-nos onde ouviste esses barulhos.

O que incitava o cavaleiro era uma vaga consciência de que algo poderia não estar bem. Não tinha dúvidas de que o amigo era capaz de se proteger a si mesmo e sabia que Simon Puttock era um homem capaz de lutar. Baldwin já vira provas desse facto com muita frequência e em geral era ao cavaleiro que cabia a tarefa de controlar o amigo porque Simon tinha tendência para perder a cabeça, tal como aqueles homens do norte que Baldwin considerava loucos. O almoxarife era um forte aliado para uma luta, mas era verdade que já saíra há muito tempo e o cavaleiro começava a sentir um nervosismo semelhante ao de Margaret.

Precisaram de muito pouco tempo para chegarem à ruela, que Roger apontou com o pau. Via que o cavaleiro estava preocupado e o silêncio em que mergulhara indicava até que ponto o perturbava o desaparecimento do amigo.

Baldwin parou, franziu a testa para a ruela e a seguir avançou sem mais uma palavra. Os outros seguiram-no em silêncio mas pararam pouco depois. A alguma distância ouviu-se o som de um choro abafado, que ganhou força e foi silenciado.

Rollo estava petrificado de horror quando os seus choros e lamúrias se apagaram num murmúrio. Endireitou-se, olhou para os dois corpos, mexeu no da mãe e evitou o contacto com o do homem que caíra ao lado dela. O homem era um estranho e a mãe sempre lhe disse para ter cuidado com as pessoas que não conhecia.

A mãe jazia no chão há algum tempo e não acordava por muito que lhe tocasse e a empurrasse. Rollo já assistira à morte de outros mas recusava-se a aceitar a possibilidade de que tal tivesse acontecido à mãe porque esta nunca o deixaria sozinho.

A ruela era escura mas estava habituado. Ele e a mãe nunca tinham vivido numa casa e estava acostumado a viver no exterior com ela. A capa dela fornecia-lhes uma magra protecção contra os elementos quando a penduravam num prego de modo a formar uma tenda improvisada, sob a qual se aconchegavam mesmo quando o tempo era muito mau. Contudo, o mais vulgar era ver-se sozinho num quarto enquanto a mãe conversava com um homem no quarto ao lado. Observava frequentemente e com inveja o modo como as outras crianças da cidade brincavam e gritavam. Rollo nunca conheceria esses prazeres porque a mãe fizera qualquer coisa errada.

Não compreendia por que motivo estavam a ser punidos. Eram ambos culpados de um grande crime e isso fazia com que vivessem separados das outras pessoas da cidade e sujeitos a um medo constante. Rollo tinha seis anos. Se tivesse nascido filho de um mercador estaria a aprender a profissão para que nascera, ou então a descobrir as capacidades de um cavaleiro se o pai tivesse ganho muito dinheiro e mantivesse os olhos bem abertos quanto ao futuro. No mínimo, podia esperar que o aceitassem numa comunidade agrícola. No entanto, ele e a mãe eram obrigados a mendigar e a evitar os outros para que estes não os considerassem como um aborrecimento.

Agora a mãe adormecera com o estranho a seu lado e o outro homem fora-se embora.

O som de passos furtivos fê-lo levantar os olhos, desconfiado. Sabia que se devia manter afastado dos homens da cidade. Foi a mãe quem lho disse. Avisava-o para evitar as pessoas que ali viviam, mas na verdade nem sequer necessitara que ela lho dissesse. Sempre soube que era diferente. Quando davam pela sua presença, as pessoas olhavam-no com uma espécie de desagrado, de ódio. Assustavam-no. Sabia que se encontrava seguro junto da mãe mas não tinha certezas a respeito de mais ninguém em Crediton... e não fazia ideia do porquê.

Os ruídos aproximaram-se de um modo lento e cauteloso, e o rapaz ficou com os olhos muito abertos.

O homem, aquele estranho que soltara risadinhas, abraçara a mãe e depois derrubara o outro, também se movera lentamente. Rollo vira-o. Quando o desconhecido caído no chão se estendeu para ele, o das risadinhas bateu-lhe e o homem simpático caíra. Rollo viu o rosto do homem esquisito e ficou assustado, Não queria voltar a vê-lo. Virou-se e olhou em volta com um medo selvagem. As paredes amontoavam-se em seu redor, negras e agoirentas, mas havia um buraco na base de uma delas. Era o caminho de fuga para os ratos que viviam lá dentro.

Precisou de apenas um momento para dar um salto, deitar-se no chão, contorcer-se e enfiar-se no buraco. O grupo de homens nervosos, das casas próximas, apareceu junto da entrada apenas alguns momentos depois.

Mais tarde, foi Baldwin quem espreitou, com a mão na espada. Estava perplexo. Quase não conseguia ver nada na escuridão ainda mais profunda da ruela secundária e decidiu investigar. Fez sinal aos outros para ficarem ali e avançou com cuidado. Não precisou de olhar para saber que Edgar se encontrava mesmo por trás dele. Edgar raramente deixava o seu amo sem protecção e ocupava sempre um lugar atrás e à esquerda de Baldwin, de onde podia proteger o cavaleiro de um ataque súbito. Isso já acontecia há mais anos do que aqueles que Baldwin queria recordar, desde os tempos em que tinham estado juntos nos Cavaleiros Templários e Edgar era o seu homem de armas. Baldwin nunca escolheria outro para ter a seu lado durante uma luta.

A luz das estrelas dava um brilho prateado à terra espezinhada da ruela. Tratava-se de uma área pobre e a cidade não estava disposta a gastar dinheiro em pavimentos para as pessoas que ali viviam. Não valia a pena fazê-lo uma vez que nenhum dos residentes podia sustentar um cavalo, e muito menos uma carroça. Havia lixo por todo o lado: velhas aduelas de barris empilhadas num monte para servirem de lenha, bocados de trapos e farrapos de roupas demasiado velhas e gastas, um montão de ossos e de palhas vindos de uma taberna qualquer, bem como bocados de couros postos de parte pela oficina de um curtidor.

Edgar franziu o nariz num elegante gesto de desagrado.

- Espanta-me que as pessoas consigam viver no meio desta miséria - comentou.

Baldwin olhou para baixo, para qualquer coisa que pisou, e acenou. Era um rato morto. Ouviu ruídos um pouco mais adiante, de um buraco por baixo de uma casa e o cavaleiro perguntou a si mesmo, irritado, por que seria que aquelas pessoas não destruíam as criaturas que provocavam tantos prejuízos nas casas e armazéns roendo os sacos de cereais e arruinando valiosos alimentos armazenados durante os meses de Verão. Os ratos não deviam andar por ali à-vontade, dando cabo de tudo para onde quer que fossem. Sentiu-se tentado em aproximar-se do buraco e enfiar a espada lá dentro, só para verificar quantos daqueles vis animais se encontrariam escondidos no seu interior.

- Senhor!

A exclamação quase soprada de Edgar fez com que Baldwin rodopiasse e levou-o a esquecer os ratos muito rapidamente. Correu para os dois corpos caídos e agachou-se junto deles. Procurou um pulso e mordeu os lábios. Já a reconhecia, era a pobre mulher que pedira esmola a Sir Hector.

- Quem te fez uma coisa destas? - murmurou. - Terá sido outro a quem tenhas pedido esmola? Um homem que se quis vingar de uma qualquer afronta imaginária? Ou um que esperou que uma mulher que não apareceu e que descarregou as frustrações em ti? Viveste numa pobreza miserável e morreste nela...

- O quê, senhor?

Baldwin despertou das suas meditações e deslocou-se para a figura seguinte.

- Deus do céu! Simon, que vieste tu aqui a fazer?! E por que razão... - os olhos deslocaram-se-lhe para a mulher - estavas com ela?

 

Hugh praguejou quando tropeçou numa pedra solta. Transportavam Simon em cima de uma escada surripiada de um pátio próximo. No entanto, embora desse uma boa padiola, era pesada e os apoios, formados pelas duas metades de um tronco serrado ao meio a cujas faces achatadas tinham pregado os degraus, eram irregulares e incómodos de segurar. Havia um homem em cada canto da padiola improvisada e Baldwin caminhava ao lado e de vez em quando olhava para Simon.

Um dos homens de Peter ficara de guarda à mulher. Já não podia ser ajudada e enviariam outros para recolherem o corpo, mas Simon ainda respirava e Baldwin queria-o de volta à casa de Peter o mais depressa que fosse possível.

Pela sua parte, Hugh ganhou consciência de até que ponto o amo era importante para ele e ficou surpreendido com a força das suas emoções ao ver Simon a jazer na escada, com um braço a oscilar de cada lado.

Não era o medo do desemprego. Essa era uma preocupação para todos os homens, mas Hugh sabia que conseguiria ganhar o sustento mesmo que para tal necessitasse de regressar à velha aldeia e refazer uma nova vida com os familiares, apanhando coelhos e caça para se alimentar e dormindo num celeiro. Para ele, havia sempre um lugar onde poderia viver. Não era isso o que o deixava silencioso, com os olhos postos na figura imóvel na sua frente enquanto evitava cambalear e tropeçar enquanto se esforçava por levar o amo para a segurança da casa do sacerdote. Tratava-se antes da compreensão de que o almoxarife era mais um amigo do que um patrão. O servo compreendia, pela primeira vez, que a sua existência, sem Simon, perderia todo o sentido. O seu ser girava em volta de Simon e da respectiva família... e sem o homem nada mais restaria.

Naquele momento, Edgar hesitou, perdeu o equilíbrio numa pedra solta e fez com que a escada balançasse. Hugh mal conseguiu conter uma praga de impaciência por o homem ser tão desajeitado. Todos eles se estavam a ressentir do peso da carga.

Baldwin viu-lhe o rosto, aproximou-se e deu-lhe uma palmada no ombro.

- Simon vai ficar bem, Hugh - declarou, tentando parecer mais confiante do que se sentia. - É forte e irá recuperar depressa.

- Pois, mas que se passa com ele? - explodiu Hugh. - Está a respirar mas não acorda. Terá sido apunhalado, como aquela mulher?

- Não me parece. Está inconsciente, deve ter sido agredido por alguém.

- Quem?

Baldwin olhou-o com um sorriso cansado.

- Creio que estaremos mais perto da resposta a essa pergunta quando soubermos quem matou a Sarra e aquela pobre mulher, esta noite. - Tinham chegado ao portão de Peter. - Alguém devia odiar a pobre infeliz o bastante para a matar e largar ali como... Mas quem? Quem poderia ter tanto ódio por uma mendiga?

Simon despertou muito lentamente, como uma criança a quem tivessem acordado sem a deixar dormir o suficiente, e igualmente ressentido e irritadiço. Sentia a cabeça como se a tivessem arrastado pelo chão e a mesma tivesse saltitado por cima de uma série de pedras. Para além disso, o pescoço doía-lhe tão horrivelmente como naquela altura, ainda rapaz, em que andara a brincar aos torneios com um amigo. Caíra do cavalo e o estalo seco - como um raio a explodir-lhe no crânio -, quando a cabeça foi atirada para trás pela queda, acabara por lhe dar o mesmo tipo de dor e de sensação de calor.

Por momentos, limitou-se a gozar o conforto da cama com os olhos fechados. Sabia, por qualquer razão, que aquele conforto não iria durar muito mas teve de obrigar a mente a pensar no que havia ali de errado. Os olhos abriram-se-lhe de repente quando se lembrou. A mulher que jazia no chão, o filho de olhos esbugalhados e depois... nada. Alguém o golpeara e o deixara inconsciente. Quem?

A sua ira cresceu. Alguém o atacara... a ele, um almoxarife! Atrevera-se a atacá-lo! Quem fizesse uma coisa daquelas seria capaz de tudo!

- Sentes-te bem?

Olhou para o lado e viu a mulher. Margaret estava sentada com a cabeça pousada nas costas da cadeira. Parecia exausta. Sentia a cabeça demasiado pesada para a conseguir levantar e o pescoço demasiado fraco para a sustentar depois de ter passado toda a noite com o marido, esperançada e a rezar pela sua recuperação. Toda a gente sabia até que ponto os ferimentos na cabeça podiam ser perigosos. Por vezes pareciam pouco mais do que pequenos galos mas depois começavam com ataques e podiam matar. Aparentemente, o ferimento de Simon não passava de um arranhão, mas esteve a dormir tão profundamente que Margaret se interrogou sobre se o marido voltaria a acordar.

Ao princípio da madrugada começou a murmurar no sono, chamando por ela e pelo filho. Repetiu o nome de Peterkin uma e outra vez e Margaret, se quisesse ser fantasista, poderia afirmar que Simon tivera um tom cada vez mais desesperado, como se estivesse a tentar chamar o filho para o afastar de um perigo... ou para o trazer de entre os mortos.

Depois, os murmúrios tinham-se modificado. Continuara a servir-se do nome de Peterkin mas começara a gritar: "Afasta-te! Rapaz, vem para aqui. Vem ter comigo, ficarás em segurança. Não! Afasta-te dela!

Baldwin falara-lhe da mulher na ruela, pelo que Margaret compreendeu imediatamente que o marido estava a sonhar com o corpo. Quanto ao resto, não fazia ideia do que dizia enquanto agitava a cabeça de um lado para o outro e gemia. Por fim, para o acalmar e para o impedir de se magoar, acabou por se deitar ao lado dele e passou-lhe os braços em volta do corpo, embalando-o tal como embalara o filho e chorando quando ele chorava.

- Como vim aqui parar?

- Os homens encontraram-te. Ela está morta.

- Não me refiro à mulher! O rapaz! Encontraram o filho?

- Filho? Qual filho?

- Chama o Baldwin! - A seguir, quando a viu a esforçar-se por se pôr de pé, com a fadiga a emagrecer-lhe as feições e a repuxar-lhe a pele, Simon lançou-lhe um sorriso fraco. - Estiveste aqui comigo toda a noite, não foi, Meg? Não te mereço. Chama o Baldwin e vai dormir um pouco. Amo-te.

O sorriso do marido foi o suficiente para lhe eliminar uma grande parte da fadiga. Apressou-se para o salão, onde encontrou Baldwin já a pé, a conversar com Peter Clifford. Ambos se precipitaram para junto de Simon logo que souberam que estava acordado.

Baldwin ficou surpreendido ao verificar que o amigo parecia tão recuperado. Estava à espera de o ver abatido, com uma expressão febril nos olhos claros e com uma pele pálida e cerosa. Em vez disso, deparou com um almoxarife que, sob todos os aspectos, era igual ao do dia anterior.

- Como te sentes?

- Irritável... e estúpido, por me ter deixado apanhar com tanta facilidade!

- Acontece. Até os melhores cavaleiros são atacados de vez em quando.

- Isto foi diferente. - Simon explicou-se e contou-lhes tudo aquilo de que se recordava. - Para onde foi o rapaz? - perguntou, impaciente. - É o que quero saber. O assassino também o terá apanhado?

Peter deixara-se cair na cadeira de Margaret.

- Também lá estava um garoto? Meu Deus! Que espécie de homem é capaz de matar assim, na frente de uma criança?!

- Muitos, Peter... - suspirou Baldwin.

- Sim - concordou Simon com firmeza. - Neste momento, há trinta e tal homens desse tipo na estalagem.

- O quê? Pensas que foi um dos soldados?

- Quem mais poderia ter sido?

Peter Clifford inclinou-se para a frente na cadeira.

- Ele tem razão, Sir Baldwin. Quem mais, se não um homem acostumado a assassinar e a pilhar, poderia ter feito algo de tão maléfico e desumano?

- A mulher é pouco mais do que uma rapariguinha - declarou Baldwin, pensativo, - Por que havia um homem de matar alguém que nem sequer conhecia? Não faz sentido.

- Um deles gosta de matar... É o que penso - disse Simon num tom definitivo, - Matou a pobre Sarra e agora esta mulher. Provavelmente. Fez o mesmo ao filho dela...

- Receio que possas ter razão. - Peter soltou um suspiro. - Pobres mulheres... e pobre criança.

Baldwin olhou de um para o outro.

- Não - acabou por dizer. - Não acredito nisso. Vamos supor que Sarra foi morta por um deles. Por que haveria o mesmo homem de matar aquela pobre mendiga? Não vejo nenhuma ligação. É possível que um homem do bando tenha morto a Sarra. Aceito essa hipótese... mas não vejo motivos para que matasse a mulher na noite passada.

- Estás a dizer que podem existir dois assassinos à solta na cidade? - inquiriu Peter, horrorizado.

- É possível.

- E quanto a Sir Hector? - perguntou Simon. - Pode ter morto a Sarra e sabemos que foi violento com a mendiga ontem à tarde. Talvez tenha voltado a sair, encontrou-a e...

- Que motivo teria para se meter naquela ruela e para a matar? Não, penso que precisamos de mais factos, tal como saber se ele saiu ontem à noite, antes de começarmos a especular. De qualquer modo... - Baldwin avançou para a porta - tenho de tentar encontrar o garoto.

Hugh e Edgar estavam à espera no salão. O servo de Simon brincava com Edith e Baldwin deixou-o ficar e foi falar com Edgar.

- Temos de falar com Sir Hector. Depois do seu comportamento de ontem para com a mulher morta, necessitamos de saber se terá tido uma oportunidade para a matar... embora só Deus saiba qual poderia ser o motivo. A mulher tinha uma criança, um rapazinho. Precisamos de o procurar. Estava lá quando o Simon foi atacado e é possível que tenha visto o assassino - se é que foi o mesmo homem - que derrubou o almoxarife.

Edgar acenou e saiu da sala sem uma palavra. Baldwin sabia que o servo iria buscar as espadas e ficou à espera junto da janela, a olhar para a cidade.

O ataque a Simon preocupava-o mais do que gostava de admitir, até ao próprio Edgar. O facto de se encontrarem ali tantos homens que eram, pela sua própria natureza, incontroláveis, levava-o a duvidar que pudesse prender algum mesmo que descobrisse provas irrefutáveis contra ele, muito em especial se se tratasse de Sir Hector... que dispunha de uma força de trinta homens para o proteger, os suficientes para repelir, se necessário, todos os homens da cidade. Baldwin virou as costas à janela com a testa franzida pela concentração. Tinha de evitar uma batalha, custasse o que custasse.

- Senhor?

- Sim, Hugh? - O cavaleiro ergueu uma sobrancelha na direcção do servo.

- Senhor, gostaria de ajudar, hoje de manhã.

- Creio que Margaret vai precisar de toda a ajuda que conseguir arranjar... e a Edith precisa de ser vigiada.

- Um dos servos de Peter pode tomar conta dela. A minha ama irá dormir dentro em pouco, tal como o meu amo. Não sou preciso aqui... e quero ajudar a encontrar quem fez aquilo na noite passada.

Baldwin contraiu os lábios. Era óbvio que Hugh ficara profundamente perturbado com os acontecimentos da noite anterior. Quando o observara, Baldwin ficara com a sensação de que o homem se encontrava perto das lágrimas e que quase nunca tirara os olhos do corpo do amo. O cavaleiro pressentia a sua necessidade de fazer algo que pudesse levar o atacante do almoxarife perante a justiça.

- Está bem. És bom a lidar com crianças e podes ser muito útil se tentares encontrar o filho da mulher. Volta ao local onde encontrámos o Simon e vê se consegues descobrir sinais do rapazinho.

No exterior fazia um calor pesado e húmido. Baldwin contorceu a boca de desagrado quando ajeitou a túnica de modo a ficar mais solta sobre os ombros. Sempre odiara aquele tipo de clima desde os tempos que passara em Acre e em Chipre. Eram terras onde, de acordo com as suas recordações, o ambiente era sempre húmido, algo que detestava intensamente. Preferia o calor seco de Auvergne e Borbonnais, O ar quente assaltou-os logo que saíram da frescura do edifício de pedra, fazendo com que o suor lhe fizesse comichão debaixo dos braços e lhe escorresse pela espinha. Ainda nem sequer se tinham afastado muito quando o cavaleiro começou a sentir as roupas a colarem-se-lhe às costas.

Lançou uma olhadela por cima do ombro, olhou para leste, para fora da cidade, e constatou que o céu era tão cinzento como o mar e igualmente intimidante. Havia um subtil tom mais claro no horizonte mas por cima deles era tudo cor de chumbo, o que, combinado com a humidade, só podia querer dizer que o mau tempo se aproximava.

A estalagem parecia muito movimentada para uma hora tão matinal. Quando Baldwin e Edgar apareceram viram homens a saírem apressadamente, com vários a apontar e a murmurar entre si. Um que Se parecia com Wat, sorriu e encostou-se à ombreira, mas os outros mostraram-se subitamente embaraçados e nenhum deles quis enfrentar os olhos do Guardião. O cavaleiro fez um gesto para Hugh, para que fosse fazer a sua busca à ruela e a seguir acenou para o seu próprio servo À entrada. Wat bloqueou-lhes a passagem.

- Vêm ver alguém? - troçou.

- Queremos ver o teu capitão - admitiu Baldwin.

- Duvido que vos queira ver.

- Que quer isso dizer?

- Vão sabê-lo em breve! - Wat riu-se e chegou-se para o Baldwin hesitou mas a expressão no rosto do mercenário disse que se passava qualquer coisa, pelo que avançou e entrou na estalagem.

O salão era uma grande agitação de homens que resmungavam com alguns deles a enrolarem cobertores e a enfiarem camisas e outros artigos em pequenos sacos. A seguir, os homens passaram por eles e transportaram os seus bens para o pátio. Baldwin espreitou pela porta aberta e viu mais homens no exterior, a apertarem cilhas e a ajudarem os arreios nos cavalos de Sir Hector.

- Vem daí - ordenou, para Edgar, já com uma expressão sombria. Ouviram-no ainda antes de chegarem à zona dos quartos.

- Cretino! Estúpido! Disse-te para o meteres naquela arca.,. Lá, além! Serás burro? Ou surdo? Deus do céu, maldito sejas!

De súbito, Baldwin sentiu que a sua disposição melhorava repentinamente.

Não bateu à porta, levantou o trinco de madeira e entrou. O capitão estava de pé junto de um servo, um dos rapazes que Paul, que o estalajadeiro, contratara para ajudar os hóspedes. O jovem encontrava-se ajoelhado junto de uma arca, com o rosto vermelho e os olhos húmidos, e parecia prestes a rebentar em lágrimas de um momento para o outro. Provavelmente até o teria feito se não fossem os berros e pragas do capitão.

- Que querem? - rosnou Sir Hector.

- Ora, conversar consigo. - Baldwin sorriu e sentou-se no rebordo de uma arca já fechada.

- E se eu não quiser falar convosco?

- Tem pouco a perder. Só preciso de lhe fazer um par de perguntas.

- Pode ser que sim mas, entretanto, tenho de supervisionar isto - retorquiu, dando um pontapé no rapaz enquanto falava.

- Onde esteve a noite passada?

- O quê? - o capitão fitou-o e passado um instante os olhos transformaram-se-lhe em fendas desconfiadas. - Porquê?

- Esteve no salão durante toda a noite?

- Já lhe perguntei: porquê?

- Mataram uma mulher. Foi apunhalada, tal como a Sarra... naquela arca. - Para dar mais ênfase à afirmação, Baldwin ficou a olhar para a arca aberta na frente do rapaz, que afastou imediatamente a mão, com um medo supersticioso.

- Uma mulher? Que mulher? Mais uma rameira de taverna? Que tem isso a ver comigo?

- Depende de onde esteve a noite passada.

- Saí.

- Para onde?

Sir Hector fitou-o com fúria.

- Não tenho motivos para não lho dizer. Estive à espera de uma pessoa, mais nada.

- E a mulher apareceu?

- Como soube que se tratava de uma mulher?

- Quem mais poderia ser? - retorquiu Baldwin com aspereza, repentinamente cansado das constantes discussões com o capitão. - Sir Hector, a mulher em que o senhor bateu ontem, a mendiga que lhe pediu uma esmola... foi assassinada na noite passada. Encontrámos o corpo numa ruela. Nem sequer se encontrava escondido, apenas caído no lugar onde a mataram. Sabe alguma coisa a esse respeito?

- Não.

Os olhos do capitão fitaram resolutamente os de Baldwin e a convicção que revelavam, bem como a certeza no tom da voz do homem, teriam sido suficientes para que o Guardião saísse imediatamente... se não se tratasse de um líder de mercenários.

- Poderá ter sido um dos seus homens?

- Não.

- Parece muito certo disso.

- Guardião, os meus homens e eu estamos a prepararmo-nos para uma grande viagem de volta à Gasconha. Anteriormente só aqui estivemos uma vez, há muitos anos, e neste momento só quero voltar para a Gasconha para ganharmos algum dinheiro.

- Então e a prata? - perguntou Baldwin, surpreendido por o capitão aceitar ir-se embora sem a recuperar.

- Eu... - lançou uma olhadela ao rapaz. - Vai-te embora daqui! - O rapaz não se fez rogado e precipitou-se para fora do quarto. O capitão sentou-se numa arca e olhou para o outro homem. - A prata foi-se, Sir Baldwin... mas suponho que sei onde pode estar...

- Explique-se, por favor.

O capitão pousou os olhos no chão e fez uma careta.

- Na noite passada, dois dos meus homens decidiram partir. O Henry e o John... aqueles bastardos!- Cuspiu a palavra com virulência mas acalmou-se e continuou num tom mais firme. - Abandonaram-nos e ninguém deu por isso... embora tivessem cavalos. Não tenho dúvidas de que também tinham a minha prata. Devem ter visto o Cole a escondê-la e retiraram-na do esconderijo.

- Por que supõe uma coisa dessas?

- Porque desapareceram... e porque é a única coisa que faz sentido! Viram-no a roubar a minha prata, deram-lhe uma pancada na cabeça, tiraram-lhe a prata e voltaram a escondê-la. Sabiam que se dissesse onde a tinha guardado e o local estivesse vazio presumiríamos que estava a mentir e que ainda a tinha em qualquer lado.

- Há outra possibilidade... a de que o Cole nada tivesse a ver com o assunto - recordou-lhe Sir Baldwin. - Inclino-me mais para esse lado.

- Porquê?

- Porque se deram ao trabalho de tentar provar que foi ele e até levaram duas salvas para nos convencerem.

- Isso não quer dizer nada. Podem tê-lo feito para mostrarem quem foi o verdadeiro ladrão.

- Duvido. Porém, por que razão decidiram irem-se embora agora? Para onde pensa que podem ter ido? - perguntou Baldwin ao irritado capitão.

- Quanto ao porquê... suponho que foi porque mataram a rapariga e recearam que o senhor estivesse prestes a apanhá-los - disse Sir Hector, sem fitar os olhos de Baldwin. Não via motivos para explicar ao Guardião o risco que Henry e John correriam se ainda se encontrassem na companhia de Sir Hector quando este regressasse a França. O cavaleiro tinha uma boa memória para os actos de deslealdade e a sugestão de que os dois tinham conjurado contra ele era suficiente para lhe mostrar até que ponto podiam ser perigosos. Nunca teriam chegado vivos à costa de França, à Gasconha inglesa. O Canal oferecia inúmeras possibilidades para o desaparecimento de alguém.

- Não há dúvida de que a fuga faz com que pareçam culpados - murmurou Baldwin. Era possível, pensou. Tratava-se do tipo de pessoas de mau carácter que se encaixava com facilidade na categoria dos ladrões. Soltou um suspiro. Acontecera tanta coisa, tão depressa, que sentia estar a perder de vista o que era essencial. Seguia uma linha de interrogatório e era assaltado por vagas de irrelevâncias.

- Que planeia fazer? - inquiriu.

- Foram-se... e não os conseguirei encontrar. Conheço muito mal esta parte do país. Irei para a costa e procurarei um novo amo na Gasconha.

- E deixa a sua prata para trás? - Baldwin foi novamente assaltado por dúvidas. Havia algo nas atitudes do homem que não batia certo. Tinha todo o direito a estar zangado mas a precipitação com que decidira partir era, por si só, muito suspeita... e se lhe acrescentasse a quantidade de prata que lhe fora roubada, então tratava-se de uma decisão positivamente inacreditável. Não era possível que o capitão aceitasse a perda e se fosse embora sem mais nem menos. Nenhum líder como ele conseguiria conservar a lealdade dos homens se estes vissem camaradas seus a roubarem-no daquele modo e a conseguirem fugir com êxito. Baldwin acenou lentamente. Era óbvio que Sir Hector estava decidido a ir ele próprio à caça dos dois homens... sem a interferência de um Guardião da Paz do Rei a reclamar clemência.

- E que posso eu fazer para a encontrar?

A pergunta algo cínica do capitão confirmou a convicção de Baldwin.

- Deve esperar aqui. O bispo Walter Stapledon, de Exeter, encontra-se na casa do meu amigo Peter Clifford. De certeza que conhece todos os artífices da prata existentes na cidade e tem o pessoal necessário para uma investigação. Terá os seus homens de volta no prazo de dois dias.

- Não, irei agora!

- Ah, sim? Pergunto a mim mesmo o que poderá haver de tão urgente para o fazer deixar tanto dinheiro para trás?

- Aqueles dois bastardos têm a minha prata e quero-a de volta! Para mim, não há nada mais urgente de que voltar a recuperá-la!

- Então peço-lhe que fique, SirHector - declarou Baldwin com firmeza. - Não tenho dúvidas quanto à sua honra e à verdade das suas palavras, mas devo salientar que outros poderão suspeitar dos motivos para uma partida tão apressada quando muito provavelmente um simples atraso de dois dias lhe permitirá recuperar a sua prata.

- Provavelmente, diz! Até que ponto é "provável" que recupere a prata? Quais são as possibilidades de terem ido para Exeter? Podem ter seguido numa direcção completamente diferente! E se forem para Bris-tol? Nunca mais os apanharia!

- Também não os apanhará se prosseguir a sua jornada. SirHec-tor, Exeter fica a poucos quilómetros daqui, talvez quinze ou dezasseis. Se só cá estiveram uma vez, há muito tempo, esse deve ser o único caminho que conhecem. Em Exeter há muitas ruas e becos com artífices da prata. Ser-lhe-ia muito difícil investigá-los a todos... e primeiro ainda teria de os descobrir. Stapledon conhece-os. Pode servir-se da persuasão para se certificar de que a prata será recuperada se os seus homens lá estiverem. É a sua melhor hipótese de conseguir isso. Tem alguns motivos para supor que estejam a caminho de Bristol?

- Não! É apenas a única cidade grande, relativamente perto, que conheço.

- Ficou muito devastada depois do cerco de há alguns anos... e não sei se existirão lá artifícies que se possam dar ao luxo de comprar a quantidade de prata que o Henry e o John lhe tiraram. Além disso, como é muito mais longe, também eles se arriscavam a ser roubados. Apercebe-se a que distância fica a cidade? Se permanecer aqui dois dias e partir a seguir, então poderá enviar alguns cavaleiros mais rápidos à frente e não lhe será difícil alcançar dois homens a cavalo.

- Os cavalos deles podem ser rápidos...

- Pois podem - concordou Baldwin - mas também levam uma pesada carga de prata. Será um fardo que os irá atrasar.

Sir Hector ficou a olhá-lo. Não conseguia pensar em nenhuma desculpa convincente para abandonar a cidade. Baldwin tinha razão em tudo o que disse e seria melhor ficar ali um pouco mais. Considerou as alternativas mas sabia muito bem que recairiam demasiadas suspeitas sobre a sua cabeça se saísse dali à pressa com os seus homens. Devagar, e muito relutante, acenou a sua concordância.

 

Hugh fungou desdenhosamente perante a sujidade e avançou cautelosamente ao longo da ruela. Ali, não havia a mínima noção a respeito de limpeza. Mesmo quando vivera com os pais estes sempre tinham mantido a regra da utilização da estrumeira e ninguém se atrevia a urinar contra as ombreiras da porta. Aparentemente, quem vivia naquelas casas não se preocupava com essas coisas. Os esgotos e estrumeiras ficavam tão distantes que as pessoas se serviam do que tinham à mão. Para um agricultor, o objecto mais próximo era em geral uma árvore e não a casa do vizinho, pensou Hugh para si mesmo enquanto evitava um monte de excrementos.

Hugh virou para a ruela lateral com uma careta de concentração. O corpo da mulher fora removido ainda durante as horas de escuridão e não havia nada que revelasse o horror da noite anterior. A pequena passagem que se abria para a ruela seguia para leste e a luz das neblinas matinais era caridosa para com os edifícios sujos, uma vez que escondia a cal gasta e manchada. Para além disso dissipava a luminosidade do Sol de final do Verão de modo a que as fendas e os buracos não provocavam sombras muito pronunciadas.

Parou com as mãos nas ancas, semicerrou os olhos e examinou o espaço que o rodeava. Já observara Baldwin um número suficiente de vezes quando o cavaleiro investigava o local de uma tragédia, mas os seus olhos rápidos e atentos não eram transferíveis para Hugh e este sabia-o, pelo que só via sujidade onde Baldwin poderia ter visto uma dúzia de pistas para a localização do rapaz.

Cruzou os braços, encostou um ombro contra uma parede e espreitou o solo. O amo dissera-lhe que a criança estava na frente da mãe e que vira o atacante a surgir por trás de Simon quando este chamara o rapaz.

Hugh obrigou a mente a lembrar-se e recordou o local onde os corpos tinham jazido na noite anterior. Estava certo de que Simon, que permanecera inconsciente durante tanto tempo, devia ter caído precisamente no local em que foi atingido. Avançou para o local onde, tanto quanto era capaz de recordar, os pés do seu amigo tinham ficado imobilizados. Havia um par de marcas de raspagem no chão e pensou que podiam ter sido provocadas pelos pés do almoxarife a escorregarem quando o tinham derrubado.

Hugh acenou para si mesmo com uma expressão sombria, agachou-se e olhou em frente. A terra tinha sido alisada nalguns pontos. A toda a sua volta via-se uma leve camada de cinzas, proveniente dos muitos fogos de lenha que tinham afastado o frio da noite para as pessoas da cidade. Embora por trás dele tivesse sido tudo perturbado pela passagem dos homens que tinham ido buscar os dois corpos, ainda podia ver com nitidez as marcas deixadas pelos pés do homem que ficara ali à espera, de guarda ao cadáver da mulher. Hugh também pensou distinguir o local onde esta jazera. Debruçou-se ainda mais e conteve a respiração.

Captara as pegadas do guarda pelo canto dos olhos. Eram muito mais fáceis de ver a partir daquele ângulo tão baixo. Numa experiência, pousou as mãos no chão, baixou a cabeça quase ao nível do solo.., e descobriu que conseguia ver as marcas de um modo muito mais distinto. Arrastou-se e contorceu-se até se encontrar no local onde a cabeça da mulher estivera pousada e soltou uma curta exclamação de satisfação. Estava a ver toda uma série de pequenas pegadas de pés descalços.

As mais próximas eram surpreendentemente claras. Conseguia distinguir os dedos individualmente como se o rapaz tivesse ficado ali à espera durante algum tempo. Talvez fosse isso o que aconteceu, pensou Hugh. No fim de contas, Simon apareceu depois de ouvir a criança a chorar. Podia ter lá estado, ao lado da mãe morta, durante uma hora ou mais. Tinha a certeza de que as pessoas que moravam ali em volta não sairiam das suas casas à noite, pelo menos para irem ajudar um garoto que talvez não conhecessem, e muito menos quando os sons da sua infelicidade sugeriam a possibilidade de um perigo oculto.

Hugh pensou distinguir marcas confusas, como se a criança tivesse recuado, e depois outras mais indistintas quando começara a correr. Havia ainda algumas que pareciam conduzir a uma parede. Levantou-se e seguiu-as, baixando-se de vez em quando para verificar se continuava na direcção correcta, até chegar a uma grande zona onde a porcaria e a terra tinham sido pisadas. Assentou um joelho no chão e olhou para as marcas, intrigado. Ficavam mesmo junto de uma parede, à entrada de um buraco. Sentiu uma onda de excitação, baixou-se junto do buraco e espreitou para o interior. Era pequeno e escuro. Deitou-se no chão sem se preocupar com a porcaria malcheirosa e meteu a mão lá dentro. Apalpou-lhe os lados e a parte exterior, Esticou-se todo e conseguiu atingir o fundo. Não havia ali nenhuma criança.

Hugh levantou-se, sacudiu a porcaria dos ombros e sentiu um impulso de compaixão quando se interrogou se teria sido ali que o rapaz fora apanhado pelo atacante. Talvez, pensou, que aquela zona de chão pisado fosse o local onde se tivessem debatido e onde o homem apanhou o rapaz que era a única testemunha do ataque ao almoxarife e também, muito possivelmente, do cruel assassínio da mãe.

Se fosse esse o caso, concluiu, pousando as mãos nas ancas com uma nova determinação, as pessoas que viviam mais perto deviam ter ouvido os gritos da criança. Olhou para as paredes em volta. Não havia nenhuma porta a que pudesse bater, mas havia várias na ruela. Avançou, virou à direita e bateu nas tábuas da mais próxima.

O trinco deslizou e abriu-se uma nesga da porta. Surgiu uma rapariga pequena, suja e ansiosa, a espreitar pela fenda. A rapariga viu-lhe a expressão feroz, abriu muito os olhos, em pânico, e Hugh compreendeu que a porta estava prestes a ser-lhe fechada na cara. Sorriu imediatamente e além disso precaveu-se e meteu a pesada bota na abertura.

- Olá! - disse. A criança gorducha olhou para a bota com um alarme perceptível e abriu a boca para gritar. Contudo, Hugh agachou-se, para a tranquilizar antes que conseguisse soltar um som. - Quero falar com a tua mãe. Ela está?

O pequeno rosto olhou por cima de um ombro e acenou. A mulher adulta apareceu pouco depois, para grande alívio de Hugh.

Era um pouco baixa de mais para o seu peso e tinha a pele doentia e acinzentada dos pobres. Parou à entrada e até poderia ser irmã da mulher assassinada. A touca e o avental que usava, numa tentativa para ser respeitável, só serviam para ampliar ainda mais a impressão de triste delapidação que permeava os edifícios da pequena ruela.

- Mataram aqui uma mulher, na noite passada...

- Eu sei. Pobre Judith.

O nome não tinha qualquer significado para Hugh.

- Foi morta na passagem ao lado desta casa. Ouviram alguma coisa?

- Há sempre barulhos num sítio como este. Ouvimos muitas coisas.

- Um grito?

- Só do rapazinho. A ela nunca a ouvimos.

- Ouviram o rapaz?

- O Rollo? Sim. Fez uma barulheira mais do que suficiente para nos fazer cair o telhado em cima das cabeças.

- Ouviram-no e não fizeram nada?! - inquiriu, espantado. - A criança pode estar morta. O homem que lhe matou a mãe provavelmente também a levou para a matar. Podiam ter-lhe salvo a vida se tivessem ido ter com ele quando chorou!

- Pois... e também eu podia ter sido morta - retorquiu a mulher, passando a mão suja sobre a testa.

Tanto quanto Hugh se conseguia aperceber não havia ali remorsos, mas apenas uma aceitação fatigada. - O rapaz ganhava alguma coisa com isso? Ou ela, por exemplo? Tenho cinco crianças pequenas a meu cuidado agora que o meu marido morreu. Que esperava que fizesse? Que saísse de casa a correr para ser morta ao primeiro alarme?

Hugh não conseguiu impedir-se de recuar um passo. Não era conhecido pela sua coragem mas sentia-se repelido pela obstinada cobardia daquela mulher. Compreendia que as pessoas nervosas se mantivessem por trás das suas portas fechadas depois de ouvirem um grito... mas não quando se tratava de uma criança a ser atacada! Na sua terra natal era normal que todos fossem em auxílio de um vizinho com problemas, fosse qual fosse a causa, Se um homem era atacado, então todos os outros o iam ajudar.

- Então? - acabou a mulher por perguntar. - Quer vê-lo, ou não?

- Sabe onde ele está?!

A mulher olhou-o com exaspero, deu uma pancada na cabeça da filha e mandou-a de volta para o interior da casa. A rapariga apareceu pouco depois a arrastar atrás de si um rapazinho muito relutante, que recuou de medo ao ver um homem à porta.

- Que está ele a fazer aqui? - perguntou Hugh, confundido.

- Não podia deixar o pobre desgraçado lá fora, ao frio, durante toda a noite.

- Viu o assassino?

- Não. Vi apenas aqueles dois corpos estendidos no chão e o Rollo junto deles, a chorar de tal modo que nos desfazia o coração, pelo que o trouxe para aqui e lhe dei um pouco de sopa quente. Enquanto o fazia, apareceram uns homens que começaram a tratar dos corpos.

- Podia ter-nos dito que o rapaz estava aqui!

- Não resmungue comigo! Fiz o que pude, e foi muito mais do que muitos outros fariam. Até dei de comer à criança e quase não tenho comida para os meus... Por isso, não tente dizer-me que procedi mal. Não ia voltar a sair para falar com estranhos depois do anoitecer. Como podia saber que não eram alguns daqueles homens que estão na estalagem? Até podiam ser amigos do que matou a Judith e o outro.

- O outro não estava morto. É o meu amo, o almoxarife de Lydford.

- Oh? Bom, e que vão vocês fazer com esta criança? Não pode ficar aqui. Mal temos comida que chegue para nos alimentarmos e muito menos para sustentar mais uma boca.

- Vou levá-lo ao meu amo.

A mulher acenou e pegou na mão do rapaz. Contudo, logo que tentou empurrá-lo para Hugh, Rollo abanou a cabeça com violência, com os olhos esbugalhados na sua pequena face. Hugh estendeu os braços para ele mas o garoto resistiu, com os lábios a começarem a tremer.

Hugh sentou-se sobre os calcanhares e observou-o com uma expressão especulativa.

- Tem medo de mim... - comentou.

- Pergunto a mim mesma por que será! - A troça deu um tom irritadiço à voz da mulher. - Viu a mãe ser morta na noite passada e está surpreendido por ele ter medo dos homens! Tome... - Agarrou no braço da criança e arrastou-a para a frente. - Leve-o. Fui buscá-lo porque pensei que poderia ajudar, mas ele não quer ficar aqui. Nem sequer fala. Leve-o e espero que vos possa ajudar.

A porta fechou-se com estrondo e Hugh ouvivi o barulho do trinco de madeira a ser corrido. Não voltaria a falar com aquela mulher. Rollo permanecia como que petrificado, com os enormes olhos repletos de medo.

O servo sorriu alegremente.

- Não te preocupes. Acho que fiquei quase tão assustado como tu. Tens fome? Queres comida? - Não houve resposta. O rapaz permaneceu tão imóvel como uma estátua de pedra. - Pois olha, eu tenho. Vamos até à casa do sacerdote e veremos o que conseguimos arranjar...

Começou a andar mas a criança era como um peso morto, que o puxava para trás como um coelho preso num laço, com um rosto que era a verdadeira imagem da miséria aterrorizada.

- Olha, sou um amigo. Só quero ajudar-te e certificar-me de que ficas em segurança. Está bem? Agora... quando foi a última vez que comeste carne?

Os olhos do garoto enfrentaram os dele pela primeira vez. O pequeno corpo magricela irradiava fome.

- Sei onde te podemos arranjar uma grossa fatia de carnes frias. Queres um bocado?

Ainda hesitante, a criança permitiu que Hugh a conduzisse para a rua principal. Hugh caminhava com satisfação, confiante de que iria descobrir quem foi que atacou o seu amo. Aquele rapazinho viu o golpe a ser desferido. Não teriam de esperar muito para apanharem o assaltante.

 

Baldwin estava parado à entrada da estalagem, a despedir-se do capitão.

- Enviarei um mensageiro logo que possível - prometeu. - Os dois homens já têm um bom avanço. Sabe se algum deles conhece bem Exeter?

Sir Hector encolheu os ombros com um ar pedante.

- Não faço ideia, mas duvido. Não são destes lados. O John vSmithson veio de uma aldeia do norte, algures perto de St. Albans, e o Henry é de uma localidade perto de Londres, creio que Wandsworth.

- Óptimo. Desse modo, é provável que tenham algumas dificuldades para encontrarem o homem apropriado para venderem a prata. Perderão rapidamente a vantagem que conseguiram por terem partido cedo, uma vez que vão perder tempo quando tiverem de procurar um artífice da prata.

- Se foram para Exeter... - interrompeu-o o capitão, no momento em que um guincho fantasmagórico ressoava nos ares. Quando prosseguiu tinha o rosto vermelho e a voz tremia-lhe de ressentimento belicoso. - Deus do Céu! Têm de fazer aquilo no meio da maldita rua?!

Baldwin acenou. O som do porco a ser abatido não o incomodava grandemente e não passava de um habitual ruído de fundo naquela época do ano, mas compreendia que pudesse ser irritante. O porco agitava-se nas convulsões da morte quando o cavaleiro olhou e acenou para o açougueiro, que se mantinha afastado, com os polegares enfiados no cinto, a observar o aprendiz. Adam devolveu-lhe o aceno, muito satisfeito.

Foi naquele momento que Baldwin se sobressaltou com um segundo grito agudo, de horror. Olhou e viu Hugh à entrada da mela em frente, agarrado ao braço de um rapazinho. Este emitia uma espécie de uivo constante enquanto tentava desesperadamente libertar-se e fugir de volta para o interior da ruela.

Baldwin lançou uma olhadela ao capitão e ofegou.

Sir Hector mantinha os olhos fixos no rapaz. Tinha o rosto pálido de medo e havia um nervo a estremecer por baixo de um dos seus olhos enquanto o estridente guincho subia e descia de tom. Soltou uma praga por entre os dentes, deu meia volta e desapareceu no interior da estalagem.

Encostou as costas à parede fria e ficou a espera que as batidas precipitadas do seu coração abrandassem um pouco.

O rapaz vira-o e reconhecera-o como tendo sido o homem que lhe apunhalara a mãe! Devia ter morto o pequeno estupor quando tivera a oportunidade! Fora uma estupidez deixá-lo vivo, uma vez que testemunhara o crime... Preparara-se para o apanhar mas o amigo do cavaleiro, aquele maldito almoxarife de Lydford, aparecera de repente e só tivera tempo para se esconder no vão de uma porta. Na altura o rapaz até fora útil porque atraíra a atenção do homem durante o tempo suficiente... Depois, o almoxarife caíra e perdera demasiado tempo a congratular-se com a visão do homem estendido no chão antes de tentar apanhar o rapaz... que desaparecera! Evaporara-se com os restos de vinho deixado numa taça durante a noite, mas com uma diferença: o rapaz não deixara resíduos. Sumira-se completamente!

Procurou. Oh, se o procurou! Revistou os montes de lixo, praguejando constantemente, remexendo nos amontoados de farrapos e de madeiros, murmurando para si mesmo numa raiva fútil enquanto tentava descobrir aquele rosto trágico com uns olhos enormes, para os poder fechar e apagar a pequena chama da vida que brilhava neles tão profundamente... Todavia, não viu o mínimo vestígio do garoto.

Depois... tinham começado os barulhos. Murmúrios subtis, pés a arrastarem-se, sussurros sibilantes à medida que as pessoas acordadas pela perturbação começavam a interrogar-se ante o súbito silêncio. Ouviu uma porta a ser aberta de uma maneira hesitante e imobilizara-se, alarmado. Se alguém saísse para investigar, não tinha nenhum lugar onde se esconder. Nenhum!

A seguir estalara uma porta, escutara vozes baixas, de pessoas que falavam em tons abafados e cheios de horror. Havia uma pilha de sacas rasgadas por perto, saltara para ela sem pensar duas vezes e cobrira-se com os panos sujos.

Os passos haviam-se aproximado, com os habitantes do local a caminharem na sua direcção, a soltarem exclamações ao verem os corpos e a voltarem para trás. As pessoas pareciam ter ficado aterrorizadas com a enormidade do que tinham descoberto... e tinham-se ouvido passos mais rápidos quando as mesmas pessoas regressaram à segurança das casas e esperara até ter a certeza de estar novamente sozinho.

Espreitou cautelosamente por baixo das sacas e viu que a ruela estava novamente vazia. Saíra e apalpara rapidamente a mulher. Arrefecia rapidamente e devia estar morta, porque nos seus tempos já apalpara muitos corpos mortos.

O almoxarife continuava vivo e a respirar... quase a ressonar, como se estivesse pura e simplesmente a dormitar depois de uma boa refeição. O ruído enfurecera-o. Foi suficientemente forte para acordar toda a cidade/, pensou, zangado. Retirara a faca da bainha, pronto para golpear, quando um novo ruído o fizera deter-se. Mais portas a abrirem-se furtivamente, mais vozes. Não tinha tempo, precisava de fugir dali. Pelo menos, o almoxarife não o vira. Não tivera a oportunidade de olhar para o seu atacante antes de cair. Ainda agarrado à faca, o assassino deu um salto, movendo-se silenciosamente sobre as suas macias botas de pele de porco que faziam muito pouco ruído sobre o solo de terra batida. Só depois compreendera que ainda mantinha a adaga segura no punho. Enfiou-a na bainha com dedos subitamente nervosos e cambaleou, meio agachado, para a parede mais próxima, onde ficou com as mãos penduradas junto aos flancos, a olhar, do outro lado da rua, para o local onde matara a mulher.

Ela merecera-o, tal como ele, o bastardo, reflectira com satisfação. A seguir o lento sorriso atravessara-lhe as feições enquanto analisava o modo como o seu plano estava a decorrer.

Era o mesmo sorriso que exibia agora, depois da leve expressão de tensão lhe ter desaparecido da face. Ela merecera-o e ele também. Muito em breve, de certeza, ele pagaria o preço completo pelos seus actos. A não ser... a careta contorceu-lhe o rosto... que aquele cretino do Guardião da Paz do Rei percebesse... Era conhecido por ser inteligente...

E se adivinhasse a verdade? Encolheu os ombros e afastou a ideia da mente. O cavaleiro de Furnshill tinha muitas provas à sua disposição. Muito em breve, o Guardião da Paz iria compreender o que se passara.

Baldwin caminhou através da cidade sem se preocupar grandemente com os dois homens e a criança que o seguiam. A sua expressão fechada estava de acordo com a disposição sombria enquanto repensava tudo. Sarra fora morta depois de uma discussão com o capitão. Judith fora apunhalada de morte depois de lhe ter tentado pedir uma esmola, que lhe fora recusada com violência. O homem perdera toda a sua prata mas isso, agora, parecia ter sido da responsabilidade de dois dos seus próprios homens, que tinham fugido com o produto do roubo antes que o instável líder do bando lhes impusesse o seu próprio castigo. Tomou um apontamento mental para mandar libertar Cole: se os dois homens tinham sido os ladrões da prata, então de certeza que também deviam ter morto a Sarra. Todavia, embora abrandasse o passo, não voltou para trás para se dirigir à cadeia. Era melhor manter o Philip bem fechado até ao momento em que os mercenários saíssem da cidade. Talvez ainda existisse algum preparado para o executar, num mal orientado acto de lealdade para com Sir Hector. Baldwin recordou que Wat sugerira que Cole se mostrara amigável para com Henry e John. Por isso, era possível que o Cole também tivesse estado envolvido, que fosse um dos cúmplices do roubo. Decidiu deixar o homem na prisão durante mais algum tempo.

Por que foi que o homem derrubara Simon era algo que ninguém sabia, mas Baldwin, naquele momento, tinha tendência para pensar que ou o assassino de Judith não pretendera matar o almoxarife mas tinha sido perturbado pelo seu aparecimento, ou então também pretendera matá-lo mas foi interrompido por outra pessoa qualquer. Fosse qual fosse a verdade, Baldwin tinha a certeza de que Sir Hector não teria hesitado em matar o Simon... ou até mesmo a ele.

- Hugh, podes afastar o rapaz por um minuto?

Baldwin viu Hugh a conduzir Rollo para alguma distância e a seguir enfrentou Edgar, parado no meio da rua. Um cavaleiro passou e praguejou por estarem a bloquear o caminho, mas Baldwin ignorou-o.

- Edgar, quem quer que seja o assassino, é provável que tenha morto as duas mulheres e que também pretendesse matar o garoto. - Baldwin estudou atentamente a pequena figura que permanecia junto de Hugh. - O nosso Rollo foi muito valente. Esperemos que seja capaz de ser ainda mais valente e nos diga o que viu naquela noite. Simon escapou por milagre. Para a próxima, o assassino pode ter mais sorte... se na verdade o quer ver morto.

- Ora, se quisesse matar o Simon, tê-lo-ia apunhalado em vez de o deixar inconsciente - sugeriu Edgar.

- É possível... mas presumo que derrubou o Simon depois de ter morto a mulher. Estava fria ao toque, pelo que já devia estar morta há algum tempo. É provável que só abatesse o Simon para o silenciar. Talvez também acabasse por o apunhalar mas pode ter sido impedido de o fazer por causa de alguém que se aproximou.

- Então, pensa que ainda o pode tentar matar? Seria um pouco irracional, não acha, senhor?

- Matar duas mulheres não é o comportamento de um homem racional, pois não? Tanto quanto eu saiba, não havia nada que as ligasse: uma rapariga de estalagem e uma mendiga. Se não for racional, talvez conclua que Simon o pode ter visto. Por isso, poderá vir a decidir que é melhor certificar-se do seu silêncio... e é por isso que quero que trates da protecção do nosso amigo. Não deixes que ninguém se aproxime dele enquanto não estiver bom.

Edgar acenou uma confirmação e Hugh regressou para junto deles quando Baldwin o chamou.

- Hugh. quero que fiques junto do teu amo durante todo o tempo em que estiver doente por causa da pancada na cabeça. Penso que pode estar em perigo... e o Edgar irá ajudar-te.

O servo de Simon exibiu uma expressão truculenta. Agitou um polegar na direcção de Rollo e ia começar a falar mas Baldwin interrompeu-o apressadamente.

- Muito bem, vamos embora antes que aconteça mais qualquer coisa.

A última coisa que desejava era que o rapaz ficasse ainda mais assustado do que já estava. Baldwin não queria que Hugh salientasse que, de todos eles, era o próprio Rollo quem corria um maior perigo.

Walter Stapledon tirou os óculos do nariz com um sorriso retorcido e suspirou. Não havia dúvidas de que aqueles dois discos de vidro o ajudavam enormemente e que com eles podia ver tão bem como sempre vira, mas eram cansativos para os olhos. Roger encontrava-se a ler noutra mesa e levantou a cabeça quando ouviu a exalação de desespero do bispo. Stapledon olhava para uma das janelas como se procurasse inspiração e tinha a testa contraída por assuntos de que Roger nem sequer tinha a mínima noção.

O que causava tantas preocupações ao bispo não eram simples assuntos a respeito da catedral, ou da criação da Faculdade Stapledon em Oxford, nem sequer tinham nada a ver com a escola que estava a tentar criar. Eram assuntos de estado.

Aquela carta era do seu amigo John Sandale, o Bispo de Winchester e também, mais recentemente, Tesoureiro do Rei. John escrevera-lhe para lhe falar da terrível situação dos arquivos do tesoureiro. Não havia uma classificação dos registos e muitos deles nem sequer estavam datados. O pessoal estava a ser sufocado pelo trabalho e tinha muito poucas instruções, quando as tinha, sobre o que se esperava que realizasse.

Stapledon pôs-se de pé, espreguiçou-se e dirigiu-se à entrada. Deteve um servo que ia a passar, pediu-lhe vinho e regressou à sua mesa. Pouco depois entregaram-lhe um jarro e uma grande taça e bebericou o vinho com moderação.

O problema estava no facto de o Rei ser fraco e ineficaz. Podia ser facilmente influenciado por um qualquer homem que soubesse proferir uma frase persuasiva... ou que fosse demasiado bonito, admitiu, olhando para a bebida com amargura. Essa era uma informação que o país ficaria muito feliz por não conhecer. Em geral, as amizades do monarca eram encaradas como tratando-se do desejo natural, num homem, de se encontrar com outros da mesma idade, mas não havia maneira de ocultar os casos mais flagrantes aos olhos dos membros mais íntimos da sua casa. Para além disso, lendo entre as linhas da carta de Sandale, Stapledon ficara a saber que o monarca virara as suas atenções para mais um homem. Como era que a Rainha tolerava um tal comportamento era algo de que não fazia ideia.

Se o monarca não tivesse cuidado podia acabar por perder o trono... e a cabeça. Não seria fácil forçar alguns dos seus mais violentos críticos, em especial os que também gozavam posições de poder, a conterem as condenações públicas em relação ao monarca. Não, como era que a pobre da Rainha suportava estar perto dele era algo que estava para lá da compreensão do bispo... e o destino do Rei estaria selado se ela decidisse pôr fim à sua posição de contenção.

Ouviu o barulho de pés que se aproximavam e olhou para cima. pouco depois, a porta abriu-se para deixar passar Baldwin e os outros. Stapledon exibiu um sorriso de boas-vindas, pôs as cartas de lado, dobradas, a fim de evitar olhos mais curiosos e a seguir imobilizou-se ao ver a expressão no rosto do cavaleiro.

- Hugh - disse o Guardião, fazendo um gesto breve - tenho a certeza de que o rapaz gostaria de ver o jardim e talvez lhe agrade brincar com a Edith... mas só depois de bem lavado. Oh, dá-lhe de comer e certifica-te de que fica confortável.

Stapledon observou o servo a levar o rapaz e a seguir virou-se para o cavaleiro com um ar inquiridor. Baldwin sentou-se num dos bancos da mesa, explicou quem era o rapazinho e expressou os seus medos em relação ao mesmo depois do ataque de gritos em plena cidade.

- Para além disso, temos mais novidades - continuou Baldwin. - Dois dos mercenários fugiram...

Roger ficou sentado, de boca aberta enquanto o cavaleiro lhes contava a sua discussão com o capitão, até ao momento em que não conseguiu conter-se e explodiu:

- Devem ter sido os homens que vi na noite passada!

- O quê?! Onde? - inquiriu Baldwin, com a testa franzida.

- Eram dois homens a cavalo, com um animal de carga a reboque. Vi-os momentos antes de ouvir a agitação na ruela e nunca mais me lembrei deles.

- Em que direcção seguiram? - perguntou Baldwin, ansioso e a tentar suprimir a sua excitação. Soltou um grunhido de satisfação quando Roger respondeu. - Então, eu tinha razão! Vão a caminho de Exeter! Bispo, pode enviar um mensageiro para alertar os seus homens, na catedral? Poderão contactar com todos os artífices da prata e perguntar-lhes se alguém propôs a venda de uma grande quantidade desse metal? Na sua maior parte, se não toda, deve ser estrangeira e é fácil de distinguir.

- Posso tentar - respondeu o bispo - mas tem a certeza? Podem ter-se limitado a seguir nessa direcção até à povoação mais próxima, para depois virarem para o norte. Não há nada que sugira que tenham realmente ido para Exeter.

- Pois não, mas mesmo assim estou certo de que o fizeram. Não conhecem a área e devem esperar que o capitão vá atrás deles à primeira oportunidade. Para onde mais poderiam ir, se não para a cidade mais próxima, onde podem pelo menos esconder-se no meio da multidão e onde haverá muitos navios e muitas outras estradas? Aqueles homens, pelo que pude ver, têm uma certa astúcia Mas duvido que sejam capazes de pensar num plano mais pormenorizado.

- No entanto, podem ter planeado tudo isto durante meses.

- É possível, mas duvido. Sir Hector e os seus homens estiveram no norte, a tentarem ser recrutados pelo exército. O John Smithson é de algures perto de St. Albans, e Henry, o Barreiras, é do Surrey, de perto de Londres. Os mercenários passaram perto desses dois lugares quando seguiram para o norte a fim de oferecerem os seus serviços ao Rei. Se iam roubar toda aquela prata, não é natural que o fizessem perto das suas casas? Nesse caso conheceriam pessoas- a quem a vender e que os esconderiam até a agitação passar e o capitão se ir embora. Não, o roubo foi perpetrado aqui por causa de -qualquer coisa a respeito deste lugar. Quem me dera saber o que foi. ..

- Roger... podes ir buscar o Stephen, por favor? E diz ao cavalariço para lhe preparar a égua. Irá partir logo que possível. - O bispo virou-se para Baldwin. - Bom, vai um pouco de vinho?

- Não, muito obrigado, meu senhor. Tenho de ir ver a criança para ter a certeza de que está bem, e também quero ver o Simon.

- Bom, suponho que devo voltar ao meu trabalho.., - murmurou o bispo, lançando uma mirada de repugnância tão virulenta para os papéis que Baldwin teve de se rir.

- O trabalho é um nosso dever, senhor.

- Sim. Contudo, estranhamente, por vezes pergunto a mim mesmo o porquê da razão que o Bom Senhor decidiu afligir-nos com papéis. Devemos ter feito algo de horrível para merecermos um tal castigo.

Simon não estava na cama. Baldwin saiu do quarto e só o descobriu quando chegou ao jardim.

Peter criara, num terraço encostado à casa, toda uma agradável exibição de ervas medicinais e culinárias. Por baixo do terraço, para lá de um grupo de maciços carvalhos, existia um grande prado e foi aí que Baldwin viu Margaret a brincar com Edith. O filho de Judith encontrava-se por perto, sentado num banco com Simon, enquanto Hugh pairava por ali fazendo caretas de desconfiança para o mundo em geral.

Para alívio de Baldwin, Simon parecia estar bem não obstante ainda exibir alguma palidez. Enquanto Baldwin permanecera na estalagem. Peter pedira a um dos cónegos, muito prático em medicina, que fosse ver Simon e o homem impressionara o sacerdote com uma verdadeira exibição profissional. Levantara um certo número de dedos na frente de Simon, pedira-lhe para confirmar quantos eram> examinara-lhe o ferimento, besuntara-o com clara de ovo e certificara-se de que a língua do almoxarife não se tornara preta. Peter não fazia ideia do significado deste último exame mas mostrou-se disposto a aceitar a palavra de um homem treinado quando este lhe disse que Simon estava óptimo, embora pudesse vir a ter dores de cabeça durante algum tempo.

Baldwin sentou-se ao lado do amigo.

- Como te sentes?

- Pesado - respondeu Simon, estremecendo - e este tempo não ajuda.

Baldwin acenou. O calor húmido cobria tudo como um cobertor e já estava a suar profusamente depois da frescura do salão.

- Como está a tua cabeça?

- Sinto-me como se tivesse passado toda a noite de ontem a beber na companhia dos homens de Sir Hector, acompanhando-os caneca a caneca... para depois se servirem de mim como bola de futebol. Para além disso, sempre que falo parece que há alguém a bater-me outra vez na cabeça.

- Descansa, vais melhorar. - Baldwin sorriu. Era muito pouco compreensivo para com as pequenas pancadas e agora que tinha a certeza de que Simon ia recuperar não via necessidade de demonstrar uma compaixão excessiva. Já outros tinham sofridos danos piores e era assim que as coisas continuariam.

- Estou muito grato pela tua compreensão - declarou Simon, irónico. - A Margaret contou-me o que se passou na noite de ontem. Obrigado por me teres ido buscar. Então! Que aconteceu hoje de manhã?

Baldwin disse-lho, explicou que Hugh encontrara o garoto e narrou a sua entrevista com o capitão.

- Para além disso, o Roger viu-os partir, pelo que agora já sabemos onde procurar... - concluiu.

- Não deve ser preciso esperar muito - murmurou Simon, especulativo. - Não há assim tantos artífices da prata em Exeter...

- Pois não. Devemos ter uma resposta e u um par de prisioneiros - amanhã ao fim da tarde.

- Com sorte, poderemos colocá-los imediatamente no buraco da cadeia!

- E que vamos fazer quanto ao outro? O rapaz identificou claramente o capitão, embora não intencionalmente.

- Os dois que foram para Exeter devem ter roubado a prata.

- Devem ter? Será mais apropriado dizer que provavelmente roubaram a prata... No fim de contas, até pode ter sido o Cole quem a tirou e eles viram onde a escondeu...

- É verdade. Nesse caso, também foi o Cole, ou aqueles dois, quem matou a Sarra...

- Sim...

- Baldwin, começaste com uma das tuas ruminações. Estás a olhar para o prado e a fazer caretas, o que quer dizer que achas que há algo que não bate certo...

- Estava apenas a pensar numa coisa: parece-me improvável que andem dois assassinos a passear pela cidade... e no entanto o rapaz demonstrou um grande terror quando viu Sir Hector. Se a Sarra foi morta por que roubou a prata, então não foi por Sir Hector, que não ia roubar a sua própria prata... Por isso, se matou a Judith, então os dois assassínios não estão relacionados. No entanto, que motivo teria Sir Hector para matar a tal Judith? Os suspeitos mais óbvios para a morte de Sarra eram o John e o Henry. tal como o demonstraram com a sua fuga apressada. No entanto...

- Poderiam ter sido eles a matar a Judith e a derrubarem-me?

- Não sei. É possível. Não sabemos durante quanto tempo estiveste inconsciente. É possível que te tenham abatido, para depois verem quem tu eras e fugirem rapidamente da cidade...

- Nesse caso, por que teria o rapaz reagido daquele modo quando avistou Sir Hector, a não ser que tivesse visto o assassino da mãe?

Baldwin suspirou, exasperado.

- Talvez os assassínios não tenham nenhuma relação com o roubo. Pode ter-nos escapado algo. De qualquer modo, devemos manter o capitão sob vigilância. Não há dúvidas de que o rapaz gritou quando o viu e isso parece implicar que o homem teve alguma coisa a ver com a morte de Judith.

- Isso é fácil de conseguir. Diz ao Paul, em segredo, que queremos saber se o patife decide ir-se embora à pressa. O Paul contratou rapazes para ajudarem a servir os clientes e fazerem pequenos trabalhos. Um deles estava a fazer as malas de Sir Hector hoje de manhã.

- Pergunto a mim mesmo porquê... Tem todos aqueles homens com ele. O Hugh não disse que o Wat era um dos servos dele? Parece-me recordar que o Hugh afirmou que foi o Wat quem entrou no quarto quando estavam a olhar para o corpo de Sarra...

- Talvez Sir Hector tenha perdido a confiança em Wat... ou achasse que os rapazes da estalagem estariam melhor preparados para essas coisas do que um soldado. Para além disso, duvido que uma das outras raparigas quisesse ficar a sós com o capitão. Tenho a impressão de que desconfiam dele desde a morte da Sarra.

- Não me surpreenderia...

- Depois da reacção de Rollo ao vê-lo... sinto-me inclinado em concordar com as raparigas. O choque que o rapaz sofreu foi terrível... e a reacção do capitão foi igualmente violenta. Voltou imediatamente para o interior e vi-o encostado a uma parede como se estivesse prestes a morrer.

- Espero que não... - declarou Simon, tocando ao de leve no galo por cima da orelha. - Se foi ele quem fez isto e matou as raparigas... então quero vê-lo enforcado!

- Bom, saberemos o que se passou quando trouxerem aqueles dois de Exeter.

- Sim... se os trouxerem.

 

Aquela noite foi muito comprida para Sir Hector. Não tinha qualquer desejo de permanecer no salão depois de saber que os dois homens em quem mais confiava, embora por razões de interesse próprio, o haviam deixado, em especial por ter a certeza de que tinham sido eles quem lhe roubara a prata. Henry e John tinham-no roubado. Era impossível de acreditar, mas também era fútil tentar negá-lo. O desaparecimento dos dois homens era uma confissão.

À mesa, enquanto estava a ser servido, captou uma olhadela significativa da parte de Wat. Quando o cavaleiro o fitou, o homem de armas sorriu e desviou a cara. Sir Hector sabia o que aquilo significava, Wat pertencia ao bando quase desde os tempos em que Sir Hector começara a controlá-lo e era um pouco mais antigo do que Henry ou John. Estes tinham demonstrado ser desleais e agora Wat também o estava a ser. Sir Hector acumulara dentro dele todos os boatos e comentários desagradáveis que ouvira, tal como um avarento agarrado ao seu dinheiro, e tinha a certeza de que Wat planeava qualquer coisa contra ele. O idiota pensava que conseguia liderar tanto o bando como o ano. No entanto, o cavaleiro manteve o rosto impassível, como se não estivesse preocupado. Wat também não iria sobreviver à viagem marítima até à Gasconha. Isso era algo que já estava decidido.

Era sempre assim que as coisas aconteciam nos bandos de mercenários. Sir Hector ocupou a liderança no momento propício. O velho Raymonnet encontrava-se exausto depois de dirigir as coisas demasiado tempo. Tornara-se frouxo e permitira que a ganância levasse a melhor sobre o bom-senso, pelo que começara a aceitar as ofertas mais prometedoras mas esquecera-se de verificar qual era o lado com mais probabilidades de ganhar. Numa certa ocasião até chegara a cometer o pecado mortal de ficar à espera até ser demasiado tarde antes de mudar de lado! O preço pago pelo bando foi muito elevado.

Não, foi claro que Raymonnet tivera de desaparecer. Em 1295, depois do infeliz caso entre os franceses e os ingleses, Raymonnet passara a ser tão útil como brandir um junco quebrado numa batalha. Na altura, os franceses e os ingleses discutiam - mais uma vez -, sobre quem controlaria a Aquitânia. Os franceses tinham ocupado grandes áreas da região e o velho guerreiro Eduardo, pai do actual Rei, enviara para lá os seus homens em 1294. Raymonnet e o bando tinham-se junto a ele e ajudado na tomada de Rions. Depois, ao verificarem como a terra era fértil e até que ponto as cidades eram ricas, haviam decidido ficar em troca de um pagamento para ajudarem a proteger a cidade e para exercerem funções de guarnição.

Os exércitos enviados para o outro lado do mar pelo Rei Eduardo eram grandes mas a terra que tinham de proteger também era muito vasta. Enquanto os franceses podiam concentrar rapidamente as suas forças onde quisessem junto à fronteira, os ingleses tinham de se basear na chegada de homens de Inglaterra para a defender. Tratava-se de um exercício dispendioso, a que os ingleses respondiam muito lentamente. O dinheiro escorria com dificuldade dos bolsos dos mercadores com pouca vontade de pagar impostos e em breve se tornara óbvio para Sir Hector que os franceses tinham mais possibilidades de pagar a aliados úteis do que o seu próprio monarca.

Raymonnet não foi capaz de se aperceber disso. Estava convencido de que os ingleses eram os mais seguros dos dois porque, no fim de contas, as terras inglesas se encontravam sob o controlo directo do Rei enquanto o monarca francês dependia de todos os aliados e vassalos uma vez que o seu próprio território era pequeno. Fora em vão que Sir Hector, cada vez mais desesperado, argumentou que os franceses possuíam o necessário músculo militar enquanto os barões ingleses não tinham vontade de lutar. O resultado só podia ser uma vitória francesa, uma vez que estes tinham os soldados e o mais eficiente e poderoso exército do mundo.

Em Março de 1295 os franceses encontravam-se às portas da cidade. Depois de subornar cuidadosamente alguns membros da guarnição, Sir Hector apoderara-se do comando. Houve um motim, os Soldados ingleses haviam sido mortos e o monarca francês pudera entrar na cidade no Domingo de Ramos.

Raymonnet nunca mais foi visto. Fora apunhalado pelas costas no início do motim e Sir Hector lançara o seu corpo por cima das muralhas para ir jazer entre os mortos dos sitiantes. A partir daí, Sir Hector foi o líder do bando.

Agora, perguntava a si mesmo durante quanto mais tempo o conseguiria ser. O cavaleiro não era estúpido e sabia que talvez nunca conseguisse chegar às províncias inglesas se alguém começasse a falar. Que contara Wat? O homem parecia muito convencido e arrogante na sua mesa, servia-se de generosas porções de sal e aceitava os comentários dos companheiros como um lorde a receber louvores dos súbditos... Ou seja, os outros tinham para com Wat o comportamento que Sir Hector esperava que tivessem para com ele próprio. Ser tratado com todas as honrarias era um direito do líder, uma vez que era ele o governante daquele pequeno feudo móvel. Viviam numa lei marcial e a sua palavra era a única que contava.

Por agora... mas talvez não por muito tempo se Wat falasse com o Guardião...

Sir Hector voltou a fitar os olhos de Wat e daquela vez nenhum deles desviou a cara.

Paul esteve consciente, durante toda a noite, das correntes de tensão latente. Havia ali algo de errado e não sabia muito bem como era que aquela noite iria terminar. Se as coisas se agravassem teria de chamar o Guardião e o guarda, uma vez que não queria derramamento de sangue na sua estalagem.

As conversas eram abafadas e o ambiente era diferente do das noites anteriores, em que os homens se tinham mostrado alegres durante todo o tempo. Naquela noite as disposições pareciam sombrias, tal como o céu estivera durante todo o dia, cinzento e ameaçador.

Via que as raparigas também o sentiam. Cristine abria caminho por entre as mãos que se estendiam para ela com a sua liabilidade habitual, mas até ela mostrava um rosto tenso e fechado, sem sinais do costumeiro sorriso. Paul regressou à despensa e encheu mais jarros. Tinha a esperança de que todos os homens se embebedassem rapidamente para se limitarem a adormecer tal como acontecera nas duas noites anteriores.

O jovem Hob estava ali a dormir, enrolado a um canto, e Paul sentiu-se tentado a dar-lhe um pontapé para o acordar, mas isso era apenas um reflexo da sua própria tensão e ansiedade. O rapaz não estava menos exausto do que o próprio Paul, em especial porque ainda nem sequer fizera dez anos e estava acordado desde a madrugada. Encheu os jarros tão silenciosamente quanto possível e regressou ao salão. Paul recebera instruções para enviar Hob a casa do sacerdote, a fim de avisar o Guardião se visse sinais de o capitão se querer ir embora. Era melhor que o rapaz dormisse até vir a ser necessário. Com um pouco de sorte, tal nunca chegaria a acontecer.

Wat aceitou outra dose de cerveja e reconheceu a dádiva com um aceno e um sorriso de agradecimento. Estava concentrado nos homens em seu redor e nem sequer valia a pena olhar para Sir Hector porque ambos sabiam que a batalha começara. A questão, agora, era outra: quem seria suficientemente forte para a vencer? Wat estava decidido a que não fosse o homem instalado na mesa sobre o estrado.

Não sentia qualquer desagrado pessoal em relação a Sir Hector. Aquilo era meramente uma questão de negócios. Sir Hector conseguira bons contratos para eles ao longo de vários anos, mantivera-os bem-vestidos e alimentados, e bem abastecidos de mulheres. Não havia razões de queixa da parte dele ou de qualquer dos outros, porque todos haviam compartilhado das riquezas que tinham sido conseguidas.

Todavia, Sir Hector já não era o homem capaz e astuto que fora. Uma coisa que nunca conseguira compreender era o modo como se fundia um grupo de soldados, como se lhes dava a sensação de pertencerem todos à mesma família. Claro que o esprit de corps ajudava muito, mas para que o mesmo funcionasse devidamente era preciso que o líder fosse forte e parecesse justo. Sir Hector demonstrara um péssimo julgamento nas suas lides com Henry, o Barreiras e com John Smithson. Devia tê-los punido por se aproveitarem dos companheiros antes que as coisas ficassem fora do controlo. Desse modo, seria natural que o bando se mantivesse unido e os homens continuassem a ser leais. Sir Hector esquecera-se que dependia de todos os homens do bando. Pensou que podia basear-se em dois para manter os outros na linha e foi insensato ao não dar ouvidos aos murmúrios de desagrado dos outros. Wat sabia que, para um líder, era estúpido confiar apenas num pequeno número de conselheiros, isto porque aqueles que estivessem a preparar um motim evitariam falar com esses homens e garantiriam que os relatórios que chegavam aos ouvidos do líder através dos seus sargentos seriam sempre favoráveis. A credulidade custara-lhe a fé dos membros do grupo.

As coisas tinham atingido um extremo logo após o roubo. Depois de verem que Henry e John eram sujeitos apenas a um leve inquérito e que, pelo menos sob o ponto de vista do bando, tinham sido inadequadamente interrogados, os homens haviam começado a olhar de soslaio para o líder. Um homem não podia depor a sua vida nas mãos de um capitão que nem sequer era capaz de proteger os seus próprios bens. Wat não compreendia como era que Sir Hector esperava que confiassem nele quando não era capaz de controlar dois mesquinhos ladrões que ganhavam dinheiro a fazer chantagem. Para além disso, ainda havia mais coisas. O capitão parecia ter-se retirado para dentro de si mesmo desde que perdera a prata, como se já tivesse aceite a derrota. Os homens tinham dado por isso... e tirado as suas conclusões. O chefe tornara-se insípido e já não possuía a firmeza e a capacidade de decisão que demonstrara outrora.

Naquele momento, Wat tinha a confiança de todos os homens e o' apoio de mais de metade naquela batalha pela liderança. Sempre se erguera contra os dois chantagistas e dera o seu apoio a todos os novos membros que tinham sido perseguidos por eles. Gradualmente foi encontrando seguidores entre os companheiros porque era um homem que tinha tento na língua quando lhe contavam um segredo. Possuía as capacidades de um guerreiro, podia combater com o arco ou com a espada e sabia como motivar homens que já quase se sentiam preparados para se erguerem em uníssono e partirem para o ataque.

Bebeu um grande gole e lançou um olhar cauteloso para o homem no estrado. Sir Hector já tivera os seus dias de glórias mas agora era um homem do passado. Até o título era uma ficção. Sir" Hector, pensou Wat, com os lábios a encurvarem-se de desprezo. A maioria dos outros membros do bando não se apercebia que o homem concedera a si mesmo o título depois de um confronto em Bordéus. Um cavaleiro recusara-se a combater contra ele e dissera que desembainhar a espada contra um comum seria um insulto para a cavalaria e para a sua honra. Sir Hector montara-lhe uma emboscada no dia seguinte, matara o cavaleiro e apropriara-se do seu cinto e esporas. Tinha tanto de cavaleiro como Wat!

Agora, Sir Hector ia reformar-se... quer o desejasse, quer não.

Sir Hector olhou em volta da sala e teve consciência dos olhos postos nele. Por instantes, nem sequer conseguiu pensar no que aquilo o fazia recordar. Estava tão habituado à sua autoridade absoluta em todos os assuntos que há muito deixara de prestar atenção às opiniões dos homens.

Reparou que agora havia uma uniformidade entre eles. Ocasionalmente observava uma mirada às escondidas ou uma expressão fugidia num rosto encardido que tinha a certeza não agourarem nada de bom para o seu futuro. Foi quando chegou a essa conclusão que conseguiu dar um nome às expressões que lhes via nos rostos: especulação.

Notou, com uma satisfação interior, que a mão que estendeu para a caneca estava firme, e levou o estanho frio aos lábios sem revelar nada do choque súbito que sofrera.

Havia muitos anos que não via uma expectativa tão animalesca. Os seus homens exibiam o mesmo interesse impassível que uma matilha de lobos mostrava para com a vítima pretendida quando a presa já perdia as forças por causa do frio, do temor e da fome e se imobili- zava num langor petrificado a espera do ataque final, do avanço súbito que a levaria à morte.

Voltou a pousar a caneca na mesa. Estava exteriormente calmo mas o seu cérebro debatia-se com o pânico. Não iria ter de enfrentar apenas o Wat mas sim todo o bando. Tinha de lhes mostrar quem mandava e bem depressa... ou então nem valeria a pena planear campanhas futuras.

Ah, se ela ainda ali estivesse, pensou, com desgosto. Talvez o conseguisse ajudar a tirar um sentido de tudo aquilo. Todavia, não estava... e ponto final.

Levantou-se, encaminhou-se para a área dos aposentos e fechou a porta, travando-a firmemente com o pesado trinco. Olhou para aquele símbolo de segurança com uma contorção dos lábios que era quase um sorriso. Anteriormente sempre se sentira a salvo por causa da força do seu pequeno exército, porque qualquer ataque teria de passar primeiro pelos seus homens até chegar à sua porta. Agora, a sua segurança dependia de uma porta fechada a separá-lo das suas próprias tropas.

Margaret endireitou-se de repente com os olhos escancarados pelo alarme quando o primeiro raio estrondeou por cima da sua cabeça. Nunca se conseguira habituar às ferozes demonstrações dos elementos. Edith, que dormia na sua própria cama, começou a chorar e Margaret esqueceu o suficiente dos seus medos para sair da cama e avançar cautelosamente sobre as palhas que cobriam o chão para ir buscar a filha, que apertou contra o peito enquanto se arrastava de volta aos lençóis que enrolou em volta do corpo da criança com todo o cuidado, numa tentativa para não acordar o marido.

Houve um novo clarão azul-esbranquiçado que brilhou por entre as frestas das portadas de madeira, seguido de perto por outro estrondo, e Margaret ouviu um cão começar a uivar de uma maneira lamentosa. Aquele som lúgubre fê-la estremecer. Fazia-a recordar os lobos das charnecas e recordou as histórias em que se dizia que o Diabo cavalgava no meio dos lobos e apontava as casas onde existiam crianças mais pequenas para os lobos devorarem enquanto ele levava consigo as almas inocentes.

Edith murmurou qualquer coisa, ensonada, reconfortada pelo calor da mãe, mas soou o estrondo de um novo raio e a criança enfiou um polegar na boca e agitou-se furiosamente.

- Ela acordou? - perguntou Simon.

- Sim. Tentei mantê-la quieta para não te incomodar, mas...

- Não te preocupes, Meg - disse, e a mulher quase soltou um grunhido de alívio porque era bom voltar a escutar a gentileza na voz do marido. O relâmpago brilhou, iluminou o quarto com a sua fria luz branca-azulada e Margaret conseguiu ver-lhe o rosto.

Ao ouvir um gemido baixo, que se transformou num grito agudo, Simon ergueu-se parcialmente da cama e só voltou a deitar-se quando a mão dela o segurou pelo ombro.

- Não podes fazer nada para o ajudar, Simon. Deixa-o.

Foi forçado a admitir que Margaret tinha razão. O rapaz estava inconsolável... e ver o almoxarife, um homem que associava à morte da mãe, de certeza que não o ajudaria. A seguir Simon ouviu uma porta a abrir-se furtivamente e um estalido fraco quando alguém entrou no salão... logo seguido pelo barulho da queda de qualquer coisa e por uma praga murmurada. Reconheceu a voz do reitor de Stapledon. Era típico do jovem querer ir em auxílio de uma criança assustada, e era igualmente típico que o desajeitado fizesse barulho suficiente para acordar toda a casa.

- Será que acabará por se recompor? - interrogou-se Simon em voz alta.

- Claro que sim. Todos o fazemos.

O almoxarife estudou-lhe o perfil. O rosto da mulher brilhava sob o clarão benigno do fogo que morria na lareira, dando-lhe um tom alaranjado, e Simon sorriu quando ela o olhou com toda a confiança feminina.

- Tens grande fé nos seus poderes de recuperação... mas eu não estou assim tão certo. O garoto viu a mãe a ser assassinada em frente dos seus olhos... e não me parece que haja muitas crianças capazes de lidar com uma coisa dessas.

- Ah, sim? E sabes que todas as pessoas daquelas ruelas são tão pobres como mendigos? Quantas delas já tiveram de assistir à morte de mães, pais, crianças, mulheres e maridos?

- Não é a mesma coisa! É duro assistir à morte natural de alguém, mas não é o mesmo que ver uma pessoa a ser apunhalada no meio da rua!

- Pois não. Se o rapaz tivesse visto a mãe a ir-se abaixo lentamente, se a visse a enfraquecer ao longo de semanas em vez de cair repentinamente, então talvez ficasse assolado pelo desgosto. Poderia até vir a odiá-la se precisasse de lhe limpar os ferimentos, de a lavar, de lhe dar de comer, de lhe limpar os lençóis sujos... e de ainda por cima ter de arranjar comida para se alimentar. Ficaria a odiá-la ainda mais pela comida e água desperdiçada nela só para a manter viva por mais um ou dois dias, quando essa mesma comida o poderia ter alimentado... em vez de à doença da mãe.

- Pensas que foi melhor que visse a mãe a morrer de repente? - perguntou Simon com uma careta.

- Sim. Com o tempo, descobrirá que nada do que pudesse ter feito a salvaria. Não irá odiá-la, irá recordá-la como uma mãe carinhosa que nunca lhe recusou um pouco da sua própria comida ou um gole de água. AJudith deu-lhe a vida e ficar-lhe-á grato por isso para sempre. Agora, precisamente porque a morte dela foi desnecessária, irá gozar a satisfação de a ver vingada... e não só, porque poderá participar na condenação do assassino. - A voz era tranquila mas absoluta na sua convicção. - Em anos futuros irá sentir-se mais forte por ter ajudado a levar o assassino perante a justiça. Começará a recompor-se quando vir o assassino enforcado e souber que os medos da sua infância eram infundados.

- Achas que vai esquecer a dor e a mãe tão rapidamente? - perguntou Simon com um ar paternalista, o que levou a mulher a responder como se tivesse sido picada.

- Não, claro que não! Sentirá sempre a falta dela e lamentará não a ter tido junto de si durante mais tempo. Nenhum homem é capaz de perder a mãe sem sentir a infelicidade dessa perda. Contudo, isso não lhe tirará a força interior que vai ganhar com a provação. Eu só disse que foi melhor que ela tivesse morrido assim.

- E com os outros, passa-se o mesmo?

A mulher virou a cara para o outro lado. A mágoa na voz de Simon disse-lhe, com toda a clareza, para que lado se tinham virado os pensamentos do marido.

- Simon, como te sentirias se o Peterkin tivesse sido assassinado e soubesses quem era o assassino? Como te sentirias se o pudesses capturar, para o meteres na prisão e levares a tribunal para ser acusado? Quando o visses enforcado, então saberias que tinhas feito tudo o que podias pelo teu filho...

- Nós fizemos tudo o que pudemos... Então, por que dói tanto?

- Porque não pudemos fazer o suficiente... e porque não o podemos vingar. Tudo o que podemos fazer é tentar conseguir outro Peterkin.

- Não! Outro Peterkin... não!

A firmeza do marido fê-la olhá-lo mas não havia dureza na voz de Simon.

- Outro filho, sim, mas não outro Peterkin. Talvez... - acrescentou, com uma risadinha autoconsciente - ... um Baldwin. Ah, estás cansada! Dá-me a Edith por um bocado e tenta descansar.

- Ela está bem aqui.

- Meg, passaste a última noite comigo -- recordou-lhe, sorrindo. - Agora, deixa-me ajudar-te. No mínimo, sempre posso tomar conta da nossa filha!

A trovoada já estava a abrandar quando lhe passou a rapariga adormecida e tentou controlar a súbita vaga de ardentes esperanças. Foi a primeira vez que o marido lhe falara de Peterkin desde a morte do filho, foi a primeira vez que mencionara a dor perante aquele vazio na família... e foi também a primeira vez que encarara a possibilidade de um novo filho.

Quando se enrolou languidamente e deslizou para o sono ainda sentiu a cama a estremecer com os suaves soluços do marido mas não conseguiu impedir o sorriso de alívio que lhe aflorou ao rosto. O marido voltara para ela, finalmente...

 

O ruído de raspagem, nos limites da audição de Sir Hector, era uma irritação. Escutava-o através das profundas neblinas do sono e embora a sua mente tentasse afastá-lo para regressar à inconsciência, atribuindo o ruído às patas de um rato ou a outra criatura nocturna, houve um qualquer sentido especial que o levou a acordar.

O quarto estava mergulhado na escuridão e os olhos abriram-se-lhe de repente quando a trovoada rebentou. O estrondo do trovão descontraiu-o por instantes, levando-o a pensar que fora aquilo que o acordara, mas a seguir voltou a ouvir o ruído, o pequeno som lento e guinchante que os seus ouvidos sempre desconfiados tinham captado.

Moveu-se com a paciência furtiva aprendida ao longo de muitas campanhas e rolou lentamente para um lado até os joelhos estarem fora da enxerga e pousados no chão. A sua espada maior encontrava-se na arrecadação, mas a mais pequena, de viagem, fabricada para ser manobrada apenas com uma das mãos, permanecia na cama. Pegou nela, ainda embainhada, segurou-a com a mão esquerda, pronta para ser desembainhada e virou-se para a porta.

Antes de adormecer tomara a precaução de empurrar uma pesada arca para junto da porta, arca que agora içou por uma ponta e afastou com uma dolorosa lentidão, fazendo o menor ruído possível. A raspagem continuava, pelo que levantou o trinco da porta com todo o cuidado e avançou para o corredor antes de se imobilizar de repente.

Viu a lâmina a sobressair por entre as portadas, a madeira lascada e o brilho extremamente fraco de uma vela. Um clarão azul-eléctrico desenhou os contornos da janela e o trovão fez estremecer as portas... mas continuou a ver a fina lâmina a oscilar para um lado e para o outro, tentando forçar a tranca de madeira que mantinha as portadas fechadas.

A tranca deslocou-se um pouco e o capitão arrastou-se para a frente em silêncio. Se fosse suficientemente rápido e conseguisse afastar a tranca do caminho... então poderia matar o primeiro assassino e também, muito provavelmente, defender a janela. Interrogou-se desapaixonadamente sobre quantos poderiam estar lá fora, mas concluiu que seriam apenas três, no máximo. Era provável que o Wat lá estivesse, mas era improvável que tentasse matar Sir Hector sozinho. No entanto não devia poder contar com a ajuda dos camaradas para o assassínio do seu capitão. Por outro lado, mais do que dois seria um grande risco porque havia sempre a possibilidade de alguém decidir que Sir Hector era um amo mais seguro do que Wat e decidisse avisá-lo à última da hora. Não, se era o Wat, então deveria ter arranjado apenas dois cúmplices e não mais.

A lâmina contorceu-se, surgiu uma fenda na portada, ao correr do grão da madeira... e Sir Hector decidiu agir. Entrou na arrecadação e escolheu uma besta. Ergueu-a com as duas mãos, apoiou o punho de madeira contra a barriga até ter a sensação de que o mesmo lhe iria perfurar a pele e as tripas, mas conseguiu puxar a corda até prender e ficar fixa no seu lugar.

Ouviu outro estalido de madeira vindo da portada. Sir Hector pegou num pesado virote de metal, encaixou-o na calha da arma e saiu da arrecadação. Apontou com cuidado e disparou.

O virote de ferro atingiu a madeira à direita da lâmina que se agitava para cima e para baixo e desapareceu do outro lado. Simultaneamente ouviu-se um grito agudo de dor e a lâmina foi puxada para trás. Sir Hector ouviu alguém a soluçar de medo e dor, e sorriu para si mesmo, voltando a armar a besta e pegando noutro virote. Tinha a certeza de que naquela noite não haveria mais tentativas contra a sua vida, mas mesmo assim limitou-se a dormitar numa cadeira com a besta atravessada no colo.

Era impossível permanecer no interior. Quando a chuva começou a cair teve de sair e de ir para o pátio, com as gotas a baterem-lhe com tanta força no rosto virado para o alto que era como se estivesse a ser atingido por gravilha. Soltou risadinhas, levantou as mãos acima da cabeça e a seguir desceu-as lentamente numa reverência à chuva purificadora.

A sua mente estava agora perfeitamente clara. A leveza de cabeça que sentira nos últimos dias desaparecera, como se a morte dela e da pobre Judith o tivessem curado finalmente de uma febre. Sentia-se como se tivesse sofrido de uma qualquer espécie de enfermidade e agora, sob a chuvada, tivesse sido redimido, absolvido e fortalecido de uma só vez.

Com o desaparecimento das outras duas podia finalmente levar o seu plano até ao fim. Chegara o momento da última jogada. Depois... iria ver se tinha sido sensato pôr-lhe os cornos.

 

Baldwin grunhiu, bebericou um pouco de água e soltou um arroto verdadeiramente vulcânico. Peter Clifford lançou-lhe uma mirada de censura.

- Eu sei, Peter, peço desculpa... mas a refeição da noite passada foi demasiado rica para a minha constituição - disse o cavaleiro, voltando a soltar um arroto. Sentou-se com uma expressão irritada. - Mostra-te grato... porque podiam estar a sair pelo outro lado!

- Agora já não me sinto tão surpreendido por na outra noite te teres mostrado tão precipitado a respeito dos cavaleiros e do próprio conceito de cavalaria, SirBaldwin... - admoestou-o o sacerdote com firmeza.

Baldwin sorriu mas as suas feições fixaram-se rapidamente numa carranca de concentração e o sacerdote suspirou. Crediton era uma cidade importante para a diocese e que dava bons rendimentos todos os anos, e Peter desejara ter sido capaz de impressionar o bispo durante a sua visita. Em vez disso, as conversas tinham invariavelmente girado em torno dos assassínios na cidade. Os planos que Peter preparara para impressionar tinham ido por água abaixo, tal como a visita ao hospital, uma volta em torno dos últimos trabalhos na igreja e a celebração do aniversário de São Bonifácio, uma vez que tudo foi ensombrado por aquelas mortes misteriosas.

Embora Exeter ficasse perto, era raro que Stapledon passasse por ali. Os seus assuntos levavam-no mais frequentemente a Londres, Winchester e Iorque, onde quer que o Parlamento se reunisse ou às belas residências dos outros bispos. Stapledon não era. por natureza, um homem ganancioso e acreditava que deviam tentar ajudar as almas da sua diocese, mas Peter sabia que o estado intervinha com demasiada frequência e obrigava-o a afastar-se das responsabilidades religiosas para carregar com o fardo das obrigações civis.

Para muitos, o envolvimento na política era apenas um meio de autopromoção e Peter, para ser realista a respeito dos seus colegas da Igreja, apercebia-se de que o bispo não era avesso a um aumento do seu poder e autoridade, mas Stapledon não tinha tendências para procurar o poder apenas pelo poder. Dirigia muitos dos seus esforços para a estabilização do estado e era com esse fim que passava semanas em negociações e discussões, tentando que tanto o monarca, como os seus inimigos, tomassem posições de bom-senso.

Peter supunha que, para um homem envolvido em assuntos de tanto peso, aquele desagradável e até banal par de assassínios constituía quase um bem-vindo alívio para as mesquinhas disputas e discussões que, se os medos do bispo se concretizassem, poderiam vir a envolver milhares de pessoas. Não havia dúvida de que o interesse que mostrara pelas duas mortes fora surpreendente; um clérigo rico não era em geral o tipo de homem que se deixava fascinar pelos assuntos e pela morte dos pobres.

Ouviu-se uma pancada na porta e Peter viu Baldwin rodopiar para a enfrentar. O servo abriu-a e o sacerdote ficou espantado ao ver Wat, o velho mercenário.

Peter murmurou um pedido de desculpas e saiu da sala enquanto Baldwin convidava o homem a sentar-se.

Ao examiná-lo, o cavaleiro ficou admirado com o comportamento do seu visitante, Wat perdera toda a frieza e truculência. Entrara de um modo que o fizera parecer quase manso, com os olhos postos no chão como uma jovem virgem.

A cortina da entrada agitou-se, Baldwin levantou os olhos e viu aparecer Simon. O cavaleiro ficou satisfeito ao verificar que o amigo parecia completamente recuperado e que caminhava com passadas firmes, acabando por se sentar a seu lado.

- Querias falar connosco, Wat? - perguntou Baldwin.

- Sim, senhor. Pensei que gostariam de saber...

- Saber o quê?

O soldado levantou a cabeça e fitou os olhos de Baldwin.

- É a respeito do meu amo... - declarou, com simplicidade. - Penso que pode ter sido ele quem matou aquelas mulheres.

Baldwin ignorou o facto de Simon ter aspirado uma repentina golfada de ar, inclinou-se para a frente a acenou, encorajador. Wat fez uma careta, como se qualquer conversação com representantes da Lei lhe fosse odiosa, mas começou a falar.

- Sabem, estou com ele há mais tempo do que a maioria. Conheço todos os seus hábitos e sei como funciona. Não é apenas um lorde vulgar, porque está demasiado habituado a matar. No que lhe diz respeito, a única coisa que lhe interessa é ele próprio. Não se preocupa com mais nada, nem com mais ninguém.

- Isso tudo é muito bonito, Wat... mas não me tinha apercebido de que eras um monge,.. - interveio Simon num tom cáustico.

Os olhos velhos e cansados viraram-se para ele.

- Não o sou, mas quando mato é por uma razão. Por dinheiro, por ouro ou por comida. Não mato sem motivo.

- Continua, Wat - pediu Baldwin num tom baixo.

- Bom, senhor, como já disse, eu conheço-o. Estou com ele há tanto tempo, há mais de dez anos, que sei algumas coisas a seu respeito. Ter-vos-á dito que passámos por esta cidade anteriormente? O irmão daquele rapaz, o Cole... juntou-se ao nosso bando há uns cinco ou seis anos, quando aqui estivemos pela última vez. Foi nessa altura que Hector conheceu a Judith.

Aquelas poucas palavras fizeram com que Baldwin se endireitasse e o escutasse com mais atenção.

- Conheceu a Judith? Estás a querer dizer que o teu capitão já a conhecia?

- Oh, sim! Naquela altura era uma rapariga de taberna, tão jovem e fresca como uma rosa! Era muito parecida com a Sarra. Tomou-a na segunda noite e ela acompanhou-o para o quarto como se fosse a caminho da cama nupcial. Vaca estúpida! Duas manhãs mais tarde dei com ela a chorar como uma criança. Não sei porquê, mas ele batera-lhe. Parecia que tinha sido chicoteada antes de ser posta na rua.

- E foi nesta mesma estalagem? - perguntou Simon.

- Sim, senhor, mas o dono era outro.

Baldwin acenou com a cabeça. Paul comprara a estalagem havia pouco mais de quatro anos, mas o cavaleiro não sabia quem a dirigira até essa altura.

- Pensas que matou a Judith?

- Não lho sei dizer... mas sei que a Sarra o incomodou, e morreu. A seguir volta a ver a Judith... e ela morre.

- Por que haveria de a matar? Não faz sentido.

- Para mim, faz muito sentido.

- Porquê?

- Ela foi morta mas o filho ficou vivo, não é verdade?

- Sim.

- Tal como disse, estivemos aqui há cinco ao seis anos. Quantos anos tem o garoto?

Simon ficou a olhá-lo, espantado.

- Não podes querer dizer que... Se era mãe do filho dele, então de certeza que não a mataria! Como pode um homem, muito em especial um cavaleiro...

- Oh, o Hector não é um cavaleiro. Nunca lhe deram as esporas e o cinto. Tirou-os a um homem que matou.

- Não é cavaleiro?! - explodiu Simon. - Deves estar a delirar! Claro que é! Tem de ser! Um homem não pode usar as armas de cavaleiro sem poder provar que possui o direito de o fazer!

- E como é que se prova esse direito, senhor?

- Pela força das armas... - respondeu o almoxarife, mas a voz morreu-lhe enquanto olhava com espanto para o calmo soldado na sua frente. - No entanto, devem existir outras maneiras. Alguém pode tentar descobrir onde foi armado cavaleiro e por quem...

- Dificilmente - interveio Baldwin, conservando os olhos postos em Wat. - O homem já pode ter morrido... ou o Hector pode dizer que foi armado por um cavaleiro francês, ou teutónico. Quem pode saber se é verdade ou não?

Wat confirmou com um aceno.

- E agora, com os franceses a tentarem enfraquecer o monarca para lhe tirar mais algumas das suas terras, onde iríamos encontrar um francês que confirmasse que o Hector foi armado cavaleiro? Está em perfeita segurança.

- Mas... isso é ultrajante! - explodiu Simon. - Um homem não pode intitular-se cavaleiro sem mais nem menos!

- Claro que pode... e são frequentes os que o fazem - declarou Baldwin tranquilamente.

- Em especial num bando como o meu - acrescentou Wat.

Simon olhou de um para o outro com a descrença a toldar-lhe as feições, mas os seus tons calmos e factuais desconcertaram-no.

- Muito bem, mas mesmo assim... como é possível que alguém matasse uma mulher depois desta lhe dar um filho?!

Wat tinha os olhos semicerrados quando observou o almoxarife.

- São coisas que já têm sido feitas, às vezes por reis, e outras vezes por homens vulgares.

- Compreendo... - Baldwin pousou o queixo na palma da mão. - Então, achas que ele as matou às duas, embora não faças ideia das razões...

Wat remexeu-se no assento, incomodado.

- Creio que a Sarra estava a tentar recuperá-lo. Usava aquela túni­ca... e eu sei que o capitão a comprou para outra pessoa.

- Quem?

- Não faço ideia... mas era alguém da cidade.

- Por que dizes isso?

- Foi na manhã de segunda-feira, depois dele ter passado a pri­meira noite com a Sarra. Deixou-a e foi à cidade. Quando regressou vinha realmente feliz, a rir-se e a brincar. Comprou a túnica no dia seguinte. Disse-me para a ir buscar à loja porque ainda estavam a ter­miná-la. Voltou a sair e só regressou à tarde. Penso que encontrou a Sarra no quarto com a túnica nova e que a matou por estar a usá-la.

- Apenas por a usar? - inquiriu Simon, duvidoso. - Era capaz de matar só por causa disso?

Wat ignorou a interrupção.

- Suponho que conheceu uma mulher enquanto esteve fora. Era alguém de quem gostava e comprou a túnica para lha oferecer quan­do voltasse a vê-la mais tarde.

- Mais tarde? - Baldwin franziu a testa.

- Esteve fora quase toda a noite, depois do jantar. Creio que deve ter estado com ela.

- Quem? A Judith? - Simon começava a ficar confuso. O soldado lançou-lhe uma olhadela fulminante.

- Não, com a terceira mulher, quem quer que ela fosse.

- E quem era a terceira mulher? - perguntou Baldwin, beberi-cando a água e estremecendo para conter um novo arroto.

- Não sei, mas penso que foi alguém que conheceu quando pas­sámos por aqui pela última vez. Encontrou-se com outra depois de

expulsar a Judith... e também não nos quis dizer quem ela era.

- Normalmente, era assim tão reticente?

- Não.

- Então por que terá mantido o nome em segredo?

- Não faço ideia. Talvez fosse uma mulher importante, ou tivesse amigos poderosos...

Baldwin coçou a cabeça.

- E acreditas que também matou a Judith? Por que haveria de o fazer?

- Oh. penso que ela lhe pediu dinheiro... e o meu capitão não gosta de dar, tal como já devem ter reparado.

Baldwin concluiu que as notícias a respeito do ataque de SirHec-tor a Judith já se tinham espalhado. Recostou-se e cruzou os braços.

- Pergunto a mim mesmo por que nos vieste dizer tudo isso. Já sabias dessas coisas há algum tempo. Porquê só agora?

Wat levantou-se e sorriu pacientemente.

- Porque não fazia ideia de que ele era tão perigoso. Como é que nós, os seus homens, podemos confiar em alguém capaz de sair de noite para ir assassinar uma mulher apenas porque lhe pediu uma esmola? Ou que matou outra por ter vestido uma túnica que não lhe era destinada? O comportamento do homem tornou-se errático e não podemos confiar nas suas decisões.

- Achas-te em condições de o acusares?

- Oh, não, não o posso acusar porque não o vi a cometer os crimes, mas tive a certeza de que gostariam de saber estas coisas a seu respeito. - Wat sorriu para ambos, fez uma vénia e foi-se embora.

Já no exterior, Wat deteve-se. Tinham parecido escutar com cuidado tudo o que disse, e esperava que fosse o suficiente. Amaldiçoava o Will pela sua estúpida tentativa de assassínio. Não havia necessidade de matar o homem porque Hector já estava arrumado! O par de assassínios que tivera lugar era mais do que suficiente para lhe selar o destino. Se o assassinassem era possível que todo o bando ficasse detido na cidade enquanto o Guardião tentava descobrir o responsável. Foi uma estupidez tentar entrar no quarto daquele modo. Wat precisou de todo o seu autodomínio para não esmurrar o homem que jazera sobre um cobertor a gemer por causa da dor no flanco... e teve algum gozo com a agonia do rapaz na altura em que o velho virote lhe foi arrancado da ferida e o brilhante sangue vermelho lhe escorreu pelo corpo.

Wat sorriu para si mesmo e encaminhou-se de volta à estalagem. Os seus planos estavam quase completos. Ficaria surpreendido se não fosse capitão no prazo de uma semana.

Simon ficou de cara franzida quando o mercenário saiu da sala. Encarou o amigo quando ouviram a porta a bater e a sua perplexidade levou-o a manifestar-se com um tom irritado.

- Que está ele a tramar? Pensará, na realidade, que foi Sir Hector quem o fez?

- Sim, estou relativamente seguro que pensa que o amo matou as mulheres, mas isso tem muito pouco a ver com a razão que o fez vir até aqui.

- Então que veio ele cá fazer?

- Estava a forçar-nos a prendermos o seu amo.

- Baldwin, talvez seja da minha cabeça, mas não percebo de que estás a falar...

- Desculpa, Simon, estava a pensar em voz alta. - Baldwin sorriu para o amigo. - No passado, conheci outros bandos de soldados errantes como estes, em Roma e em França. Têm uma norma que parece ser comum a todos eles: há uma espécie de eleição para o líder. O homem que comanda é sempre o mais forte, aquele que tem mais possibilidade de conseguir dinheiro e mulheres para os restantes.

- Então, Sir Hector é o mais forte entre eles?

- Era... e muito em breve será esse o seu maior problema. Era o mais forte e o mais impiedoso, e era por causa disso que os homens o temiam e respeitavam. Agora, contudo, parece ter perdido a estima do Wat, que se sentiu preparado para nos vir dar algumas sugestões a respeito do amo poder ser responsável pelas duas mortes. Para além disso, também nos forneceu os motivos para ambas. Será melhor que Sir Hector tenha muito cuidado quando andar por aí a passear nas ruas mais tranquilas. Pode vir a descobrir alguém à espera dele com uma adaga desembainhada.

Simon encheu as bochechas de ar.

- O que levará os homens a procurarem o poder desse modo? Ouviu-se uma risadinha por trás deles.

- Estão a referir-se a mim?

- Senhor bispo, claro que não! As minhas desculpas, se por acaso pensou que... - gaguejou Simon.

- A culpa foi minha por ter estado à escuta sem autorização. Confesso o meu pecado - declarou Stapledon com nova risadinha e olhando-o com uma expressão míope. Fez sinal a Roger para ir buscar vinho e sentou-se junto deles. - Parecem preocupados, meus amigos. Posso ajudar? O assunto tem alguma coisa a ver com os dois homens de Exeter?

- Se... - afirmou Baldwin num tom pesado - eu tiver razão, foi para lá que eles fugiram. Tem razão, meu senhor, pelo menos em parte. Tem a ver com eles e com os do seu género.

- Os assassínios?

- Sim. - Baldwin suspirou. - Naquele pequeno bando existem tantos homens capazes de matar, bem como vários que podem ter estado envolvidos... Agora, para piorar ainda mais as coisas, parece que surgiram algumas rivalidades e um deles veio aqui para denunciar o líder.

- Ah, estou a ver! Estão à procura de um assassino e em vez de depararem com uma situação normal, com um corpo e um conjunto de possíveis assassinos... foram presenteados com um par de mulheres mortas e uma grande confusão de assassinos em potência. Isto para não mencionar,,. - acrescentou, pensativo - um pobre rapaz que está sem ninguém que o proteja.

Simon esfregou os olhos. Sentia-os o arder por causa da falta de sono na noite anterior, - E um roubo - declarou.

- Pois é. - Baldwin olhou para Simon. - Agora que pensamos que os ladrões foram os dois mercenários, suponho que deveríamos libertar o jovem Cole. No entanto, também podemos esperar até termos uma oportunidade para conversarmos com os outros dois.

- Sim, eu deixava o Cole na cadeia durante mais algum tempo. Para além do mais, está a salvo dos homens de Sir Hector. Ainda pode haver um ou dois que o queiram apanhar para ganharem os favores do amo.

- Que irá acontecer se os meus homens trouxerem o Smithson e o outro da cidade? - perguntou Stapledon. - Vão prendê-los pelo assassínio e também pelo roubo?

- Suponho que sim - respondeu Baldwin, duvidoso.

- Também terão matado a Judith?

- Não vejo razão para que o fizessem. Que ligação poderia existir entre eles e a mulher?

- Haverá necessidade de alguma ligação? De certeza que homens como aqueles não precisam de desculpas para matar... - comentou Stapledon.

- Há sempre uma razão para matar, nem que seja um ataque de fúria. Não acredito que aqueles dois homens a vissem na ruela por acaso e decidissem assassiná-la.

- Nesse caso, precisam de procurar homens que a conhecessem e tivessem uma razão.

- Já temos um - disse Simon. - Sir Hector. - A seguir explicou ao bispo o que tinham sabido por intermédio de Wat.

- Compreendo. - Stapledon comprimiu os lábios. - Seria de pensar que isso fosse suficiente para o prender. Uma mulher, que foi uma amante, aparece morta no seu quarto. Pelo que me acabaram de dizer, usava uma túnica comprada especialmente para outra. Depois, uma segunda mulher exige-lhe dinheiro porque lhe deu um filho ilegítimo... e também aparece morta. Para mim, parece-me mais do que uma coincidência.

- Pois é... - admitiu Simon, com os olhos postos em Baldwin. O cavaleiro olhava para o vazio com a boca contorcida num sorriso sardónico. Voltou a prestar atenção ao que o rodeava e levantou-se.

- Bispo, o senhor tem razão. Temos de descobrir quem tinha ligações com as duas mulheres e de deixarmos de dar ouvidos às opiniões dos outros. É por isso que não chegamos a lado nenhum. Aceitamos as palavras de um homem como sendo verdadeiras, para logo aceitarmos as de outro.

Havia nele uma animação que sugeria, pelo menos a Simon, que o cavaleiro tinha uma ideia e queria pô-la à prova.

- Que queres dizer?

- Quer dizer que já foram vários os homens que tentaram influenciar-nos. Chegou o momento de descobrirmos aquilo de que precisamos... em vez de ficarmos à espera que os outros nos digam o que querem que saibamos.

- Belo! - exclamou Simon, trocista. - E por onde começamos?

- Primeiro... pelas pessoas na rua da Judith. Desta vez, quero saber coisas a respeito dela. Até agora temos andado entretidos a pensar nos assassinos existentes na cidade, mas as pessoas que a conheciam, e à Sarra, vivem aqui em Crediton. O motivo para os assassínios está aqui. O roubo da prata foi aqui, as mulheres viviam aqui, os crimes foram cometidos aqui. Se encontrarmos uma ligação entre tudo isso... então tudo se tornará claro e descobriremos quem foi o assassino.

Hugh não ficou satisfeito por deixar o amo sob os cuidados e protecção de Sir Baldwin e Edgar. Porém, quando viu até que ponto Mar-garet parecia cansada, compreendeu que esta precisasse de descansar da sua turbulenta filha.

Contudo, embora Hugh fosse forçado a ficar para trás, deixou bem claro que pensava que Simon também deveria ficar. O servo achava que não havia necessidade de que ele também fosse e observou a partida dos três homens com um ressentimento irritado.

Roger também não podia sair da casa porque sempre que se afastava do órfão este começava imediatamente a berrar que o queria de volta. Rollo não aceitava mais ninguém por perto a não ser que Roger se encontrasse presente, situação essa que parecia ter sido reforçada pelo facto de o jovem sacerdote ter ido acalmá-lo na noite anterior. O pânico louco e aterrorizado fizera com que a criança abandonasse a sua confortável enxerga e quando Roger entrou no quarto descobriu-o enrolado numa bola de medo, a um canto do quarto, o mais longe possível da janela. Roger ouviu um relâmpago a estalar e a ribombar e virou os olhos para o céu. A tempestade tinha um som semelhante ao de dez mil rochas da charneca a partirem-se ao mesmo tempo e teve a certeza de que o telhado iria cair. O jovem sacerdote escutara o imenso poder da tempestade e recordara-se das muralhas de Jericó. Rollo choramingara e tentara afastar-se ainda mais quando Roger se aproximou. Porém, quando este se agachara junto dele ouviu-se um súbito estrondo por cima das suas cabeças e o garoto atirara-se-lhe para o colo.

 

Pouco depois já se encontravam na ruela onde Simon tinha sido atacado e não precisaram de muito tempo para localizarem a porta a que Hugh se dirigira para encontrar Rollo. Baldwin bateu e recuou.

Foi a mãe quem a abriu. Ficou parada, a limpar farinha das mãos enquanto os examinava com a truculência nascida da pobreza. Baldwin notou que a mulher era alta e até poderia ter sido bonita se não fossem as rugas provocadas pelas preocupações e por uma má dieta. Contudo, as linhas verticais nas duas faces, as manchas escuras por baixo dos olhos e o tique nervoso eram a prova de uma existência precária.

- A senhora é a mulher que tomou conta do Rollo, o filho da Judith, na noite de anteontem - disse Baldwin. Era mais uma afirmação do que uma pergunta. A mulher parou de limpar as mãos e ficou a olhar para ele, subitamente imóvel. O cavaleiro prosseguiu com delicadeza.

- Estamos a tentar descobrir o que se passou naquela noite, para encontrarmos o assassino. Poderá ajudar-nos?

Lentamente, a mulher acenou sem desviar os olhos dele. Ouviu gritos mas ficou demasiado assustada para ir ver o que se estava a passar. Algumas outras pessoas da rua tinham-no feito e ouvira-as murmurar ansiosamente e a falar sobre um corpo. Isso levou-a a decidir que estaria mais segura dentro de casa. Ouviu passos a fugir e a chegada de um grupo de pessoas. Baldwin concluiu que deveriam ter sido os dele e o do resto do grupo. Bastante mais tarde escutara soluços terríveis e atrevera-se a sair porque já não havia mais ruídos de qualquer espécie.

Encontrara o Rollo sozinho, de punhos cerrados, a olhar para o chão. Pelo que a mulher disse, o garoto devia estar a olhar para o local onde a mãe caíra. Levara-o para casa mas não conseguiu arrancar-lhe uma palavra. O rapazinho sentara-se, chorara silenciosamente e ficara sobressaltado sempre que escutava um som. Permitira que ela lhe desse um pouco de sopa, sucumbira gradualmente à exaustão e acabara por adormecer no seu colo.

- Não vejo o homem que o levou daqui - concluiu, desconfiada, com os olhos a saltarem de um para o outro em busca de Hugh.

- Está com o Peter Clifford. Diz-nos, até que ponto conhecias bem a mãe do rapaz?

- A Judith? Não muito bem. Andava sempre por aí, sabem? A pobre rapariga ficou grávida quando tinha apenas dezoito anos, ou perto disso, e foi tudo... O estalajadeiro, o anterior a este, era uma pessoa de trato difícil. Esforçava-se para que as raparigas fossem amigáveis para com os clientes mas pôs a Judith na rua. Chamou-lhe rameira... pouco melhor do que uma Porca de Winchester.

Baldwin acenou. A prostituição era vulgar, porque uma mulher sem um homem que tomasse conta dela não tinha outra maneira de sobreviver. Se não tivesse tido a sorte de aprender a tecer ou a bordar, e não conseguisse um trabalho como vendedora ambulante, essa era a única solução para conseguir o sustento. Em Londres todas as prostitutas eram obrigadas a viver no interior de Cock Lane, que fazia parte das propriedades do Bispo de Winchester. Este beneficiava das rendas e era por isso que aquelas mulheres eram em geral conhecidas pelas Porcas de Winchester.

- E que fez ela a seguir?

- Ora, viveu de acordo com a opinião dele - respondeu a mulher com secura. Que mais poderia fazer?

- Tinha alguns amigos? Família?

- Se tivesse família talvez a sorte dela fosse outra. Não, não tinha. Havia muita gente que a conhecia mas não diria que se tratava de amigos. Talvez apenas aqueles de nós que lhe davam uma côdea de vez em quando, sempre que a podíamos dispensar. Em geral, era por causa do rapaz. O Rollo estava sempre com fome e o pobrezinho nunca conseguia comer o suficiente.

- Sabe se poderia ter alguns inimigos?

- O estupor que a pôs onde ela estava, o da estalagem. Espero que apodreça por causa do que lhe fez!

- Sim, mas quanto a outros? Havía por aí quem tivesse ressentimentos ou lhe desejasse mal?

A mulher pensou por instantes.

- Várias esposas. Viravam-se contra a Judith sempre que os maridos chegavam tarde a casa. Em geral, eram homens que tinham bebido de mais e adormeciam em qualquer lado, ou que ficavam caídos numa sarjeta. A culpa não era da Judith.

- Havía alguma mais assanhada contra ela? - inquiriu Baldwin tranquilamente.

- Hum... não sei. Talvez a viúva Annie, de New Barton. Sempre se mostrou ressentida com a Judith... mas isso era porque tinha um caso com o guarda e nunca acreditou nele quando este chegava tarde por qualquer razão. A Annie foi sempre muito ciumenta.

Baldwin pensou na viúva - que já encontrara algumas vezes -, e abanou a cabeça. Era uma mulher demasiado respeitável para pensar em assassínio, embora a sua língua afiada e a tendência para a má-língua e para os boatos maliciosos por vezes pudessem ser chocantes.

- Ah... - a mulher calou-se e fez uma careta. -A Mary do açougueiro, suponho. Estava sempre a contar histórias desagradáveis a respeito da Judith. Sabe o que se diz, é claro...

Foi um comentário confiante, proferido com uma careta significativa e com um piscar de olhos, mas Baldwin não percebeu.

- Não, não sei - retorquiu, com toda a franqueza.

- Oh! Bom, o capitão, o que fez aquilo à Judith.., dizem que também andou com a Mary e que foi por pouco... O filho poderia ter sido da Mary e não da Judith...

- Ah, sim?!

 

Mais tarde, quando voltaram a percorrer a ruela suja na direcção da bem-vinda luz da rua principal, Baldwin lançou um olhar pensativo para o amigo.

- Por que seria que todas as mulheres a odiavam tanto?

- Talvez em parte por causa da possibilidade dos maridos poderem levar doenças para casa, mas também porque as prostitutas são vistas como sendo maléficas. Haverá outra razão para que não possam ser sepultadas em terrenos consagrados? Esta pobre mulher irá ser enterrada algures fora da cidade. Toda a gente tem um pouco de medo delas numa terra tão pequena como esta porque representam algo de diferente.

- Ora, não são assim tão diferentes, pois não? - Baldwin estava intrigado. - Devem ser muitas as mulheres capazes de compreender que a rapariga não tinha outra maneira de se sustentar...

- Teriam preferido que se deixasse morrer à fome.

- E o rapaz também?

- Sim. Essas pessoas - disse Simon, parando e olhando em volta - têm tantos filhos que dão pouco ou nenhum valor a mais uma boca. Uma morte significa mais comida para os sobreviventes e os seus corações acabam por se tornar empedernidos. É a vida dos pobres...

- Bom, suponho que sim...

Tinham chegado à rua. Começaram a descê-la, atravessaram-na e encaminharam-se para a loja do açougueiro. O aprendiz encontrava-se à entrada, sentado num banco, a depenar galinhas e a enfiar as penas num pequeno saco. Levantou a cabeça quando se aproximaram. Pegou numa faca, quebrou as patas ao animal que tinha no colo e cortou-as em volta antes de as puxar, fazendo com que levassem atrás de si os longos tendões brancos. A seguir cortou a cabeça à galinha e puxou-lhe a pele para trás para lhe deixar o pescoço exposto.

- Onde está o teu amo? - perguntou Simon quando chegaram à entrada.

O rapaz olhou-os.

- Saiu, senhor - respondeu. Voltou a dedicar-se à sua tarefa, dando um corte rápido em torno da cloaca da galinha.

- Quando é que volta?

- Não sei, senhor. Sai frequentemente para ir buscar animais e às vezes regressa muito tarde. - O rapaz enfiou um dedo pela cavidade do pescoço, soltou os órgãos internos, meteu dois dedos na parte traseira da galinha, puxou-lhe as entranhas para o exterior e atirou-as para o chão. - Hoje, anda nas entregas.

- E a mulher dele... A seguir, vais limpar esta porcaria? - Baldwin não resistiu a fazer a pergunta. As moscas estavam a enlouquecê-lo.

- Está com a irmã, em Coleford. Foi-se embora na terça-feira.

- Na terça-feira? - Baldwin franziu a testa.

- Sim, senhor. Teve uma grande discussão com o amo e foi-se embora logo a seguir.

- E quando volta?

- Não sei, senhor.

- Não sabes grande coisa, pois não? Saberás que vais ter de limpar esta porcaria? - insistiu Baldwin teimosamente.

- Sim, senhor.

- Para além disso, devias meter essa carne num sítio fresco. Vai estragar-se aqui fora, ao calor.

- O meu amo irá guardá-la no armazém logo que regresse.

- E por que não o fazes tu? - inquiriu Simon.

- O meu amo pensa que, nos últimos tempos, o andam a roubar. Desapareceu carne. Acho que julga que fui eu porque passou a manter o armazém fechado à chave. Não posso entrar.

- Bom, quando o teu amo voltar... diz-lhe que queremos falar com ele - pediu Baldwin. - Estaremos na casa de Peter Clifford.

Deixaram o aprendiz a estender languidamente a mão para o cadáver de outra galinha e voltaram a atravessar a rua na direcção da cadeia. Caminharam em silêncio, a meditar nas palavras do rapaz. Daquela vez Tanner estava acordado e pôs-se de pé rapidamente quando percebeu que iam entrar.

- Como está ele, Tanner?

- Está bem, senhor. Nervoso, mas isso não é de admirar. Querem vê-lo?

Cole emagrecera. O seu corpo, outrora largo e poderoso, como que encolhera, e para além disso tinha os ombros dobrados como se estivesse a fazer um grande esforço. Os olhos que tanto haviam impressionado Simon estavam agora encovados e tinham perdido o brilho.

Ao ver aquele aspecto enfraquecido, Simon lançou uma olhadela a Tanner mas o ar de compaixão no rosto deste mostrou-lhe que o estado do prisioneiro não se devia aos maus tratos. Era o resultado de dias sem saber o que lhe iria acontecer, e do medo da dor e da morte.

O cavaleiro reconheceu aquela aparência abatida sem dificuldade. Muitos dos seus antigos camaradas tinham exibido o mesmo tormento intolerável nas feições ao serem submetidos à agonia de verem os amigos sujeitos à tortura, sabendo que o mesmo lhes iria acontecer quando os inquisidores perdessem o interesse pela vítima que tinham entre mãos. Baldwin esperara nunca ter de voltar a ver uma tal angústia.

- Senta-te, Cole - murmurou. - Temos algumas perguntas para te fazer.

- Isto é um julgamento? - Os olhos do jovem saltitaram de um rosto para o outro, numa desesperada busca por um sinal tranquilizador.

- Não. Estamos apenas a prosseguir com o nosso inquérito. Ouviste falar na Judith?

- Em quem?

- Outra mulher que foi assassinada.

- Mas... eu estava aqui! Não podia...

- Cala-te! Pode querer dizer que estás livre de suspeitas quanto à morte da Sarra, mas não significa que estejas inocente em relação ao roubo das pratas de Sir Hector. Responde às nossas perguntas com honestidade e conta-nos tudo o que sabes.

- Contar-vos-ei tudo - anuiu Cole com uma expressão sombria.

- Óptimo. Juntaste-te ao bando no domingo, não foi?

- Sim. Descobri-o na estalagem quando aqui cheguei ao fim da tarde.

- Era terça-feira quando foste atacado, e foi nessa noite que te encontrámos com o Henry o Barreiras e o John Smithson?

- Sim.

- Que estiveste a fazer nessa manhã?

O jovem contraiu o rosto. Entre todas as coisas em que pensara durante as longas horas de escuridão na pequena e húmida cela subterrânea, aquelas últimas e preciosas horas de liberdade antes do momento da sua prisão não tinham ocupado um lugar de destaque. Concentrara-se principalmente nos acontecimentos da tarde. Agora, tentava recordar-se do que se passara antes.

- Acordei cedo - ou antes, o Henry acordou-me -, e passei algum tempo com ele depois do pequeno-almoço, a familiarizar-me com as armas à disposição do bando. A seguir, o Henry enviou-me para o estábulo para ajudar a tratar dos cavalos. Disse: "Um bom soldado trata melhor dos seus cavalos do que dele próprio, em especial quando esses cavalos pertencem a Sir Hector." Fiquei lá durante quase todo o tempo.

- Não fizeste um intervalo?

- Sim, um par deles.., e estávamos a almoçar quando Sir Hector saiu.

- Já saíra anteriormente?

- Hum? Oh, sim, da primeira vez voltou a aparecer e trocou algumas palavras com o Wat.

- Onde estava quando ele se foi embora?

- Na despensa. Vi-o sair.

- E viste-o na rua?

- Apenas por momentos.

- Que foi que o viste a fazer?

- Afastou-se para oeste - respondeu Cole encolhendo os ombros.

- Sozinho?

- Não tinha soldados com ele, se é isso o que quer saber.

- Não, não é isso. Viste-o com mais alguém?

- Como já disse, só o vi por momentos... Simon pigarreou para limpar a garganta.

- E quanto aos outros soldados? Fizeram alguns comentários por ele se ter afastado?

- Os do costume, suponho. Fiquei com a impressão de que não era um dos homens mais populares do mundo. - Cole calou-se mas depois acrescentou: - Estavam todos a dizer que tinha batido na serva, a tal Sarra. Na sua maioria não se mostraram surpreendidos. A sova que a rapariga levou não era algo que os preocupasse mas apenas um tema para conversa.

- Houve algum que dissesse por que razão tratara tão mal a rapariga? - insistiu Baldwin.

- Alguém disse que ele tinha encontrado outra mulher.

O súbito silêncio fê-lo olhar para cima, intrigado, Baldwin disse-lhe;

- Tenta lembrar-te de tudo o que puderes a respeito dessa mulher, Cole. Terás ouvido alguém a dizer quem era, de onde veio, como foi que o capitão a conheceu? Qualquer coisa...

- Era da cidade. Sei-o porque um deles afirmou que já a vira da outra vez em que tinham ficado na estalagem. Houve outro que se riu e murmurou qualquer coisa, mas não consegui ouvir. Depois, um dos do bando afirmou que a mulher estava casada com um homem da cidade, piscou um olho... e todos se riram às gargalhadas.

- Era uma mulher casada? - insistiu Simon, com os olhos escuros muito atentos. - Tens a certeza?

- Sim. Eles pareciam convencidos disso. Ah... houve um que disse que ela não gostava da carne que tinha em casa... e que preferia bifes a bacon.

Baldwin estudou-o. Tal como interiormente, ficou impressionado com a expressão de honestidade do jovem.

- Só mais uma coisa. Ouvimos dizer que discutiste com a Sarra. Por que foi isso?

- Queria que eu cometesse perjúrio - retorquiu Cole, que corou. - o Henry e o John tinham-na incomodado e queria que eu jurasse que estavam envolvidos numa conjura contra Sir Hector.

- Recusaste?

- Claro que sim! Não vi nada que sugerisse que planeavam afastar Sir Hector. Ela queria que mentisse para recuperar as boas graças do homem e disse-lhe que não.

Tanner voltou a meter o prisioneiro na cela e os três homens amontoaram-se junto à porta, a olhar para a loja do açougueiro. O aprendiz continuava imperturbavelmente a depenar galinhas, com uma pequena nuvem de minúsculas penas a rodopiar ocasionalmente à sua volta quando a brisa as apanhava. Flutuavam no ar até tocarem no solo húmido da estrada, onde ficavam agarradas a ensopar-se de porcaria e a tornarem-se em parte do pavimento.

- Que fazemos agora? - perguntou Edgar.

Simon levantou uma sobrancelha na direcção do servo.

- Agora... vamos descobrir para onde terá ido a mulher do açougueiro.

- Sim, mas como? - Baldwin observou a rua na direcção de Cole-ford e do oeste. - Edgar, pareces conhecer muitas das mulheres desta área. Conseguirás descobrir de onde ela veio quando se mudou para aqui?

- Suponho que sim. - Edgar tossiu ligeiramente. - O Tanner talvez saiba mais qualquer coisa. Também veio desses lados.

- Então, pergunta-lhe. Entretanto, iremos buscar os cavalos a casa do Clifford. O tempo parece bom e chegou o momento de fazermos um pouco de exercício - afirmou Simon.

Era verdade que Tanner conhecia a família de Mary. Possuíam uma pequena propriedade que tinham recebido do senhor feudal local há já várias gerações, quando um dos antepassados lhe prestara alguns serviços valiosos. Tratava-se, tal como Tanner explicou, de uma bênção e de uma infelicidade. Os outros habitantes da localidade continuavam a ser servos da gleba que obtinham o sustento do amo, que lhes garantia a alimentação e o trabalho, enquanto aquela família de homens livres por vezes sofria por falta de protecção e de apoio quando as colheitas eram más. Eram muitos os que pensavam que teriam feito melhor em continuar servos, tal como os restantes vizinhos.

A estrada trepava uma ligeira elevação logo à saída da cidade e Simon apreciou o passeio a cavalo. O seu baio era um animal bom e resistente, construído para cobrir longas distâncias, e que para além disso tinha um temperamento agradável e manso. Reparou que Baldwin montara o seu cavalo árabe, um belo animal branco com uma passada muito viva, que o almoxarife considerava ser capaz de velocidades incríveis.

O Sol espreitou por entre as nuvens quando chegaram ao topo da primeira colina e a começaram a descer pelo outro lado. De repente, o céu aclarou e tornou-se azul nos espaços entre as nuvens e os homens começaram a sentir o calor. Ali, no lado ocidental da cidade, as árvores eram densas e cobriam uma grande parte da paisagem, excepto para a esquerda onde Simon podia ver as manchas azuladas dos montes de Dartmoor, que pareciam agachados no horizonte. Por cima deles amontoavam-se espessas nuvens de tempestade e a neblina que pairava no ar deixou o almoxarife com a certeza de que iria chover com intensidade dentro de muito pouco tempo. Nunca conseguiu compreender por que motivo as charnecas possuíam o seu próprio clima e naquele dia sentiu-se satisfeito por se encontrar longe delas.

O Sol tocou no solo, aqueceu-o e fê-lo soltar um odor refrescante. Era o cheiro de uma terra vigorosa e saudável, rica e argilosa, repleta de vegetação já decomposta. Para Simon, era impossível não a comparar com as terras desoladas onde era almoxarife. Aí, a terra estava tão cheia de pedras das charnecas e turfa que só permitia a sobrevivência de árvores retorcidas e de ervas daninhas. Fora criado na área de Devon onde se encontrava agora e parecia-lhe que estava tudo repleto de energia e de vitalidade. Até a própria cor do solo era diferente. Nas charnecas era quase negra, enquanto noutras áreas ficara surpreendido ao vê-la ganhar um tom castanho muito baço, em especial durante o tempo quente, quando ganhava uma aparência anémica.

Ali, perto de Crediton, era de um vermelho-brilhante e uniforme, onde as plantas floresciam. Quer se tratasse de árvores, de vegetais ou de ervas, tudo crescia e florescia com uma vitalidade que era rara em muitos outros locais, mesmo em Inglaterra.

Quatro ou cinco quilómetros depois a estrada descrevia uma curva para a esquerda e iniciava a longa mas suave descida até Coleford. Simon lembrava-se do local como sendo um povoado pequeno e agradável, com quatro ou cinco casas ao longo da movimentada estrada para Plymouth. Recordou que havia também um local gerido por alguns monges que ofereciam sustento aos viajantes, mas naquele dia nem sequer iriam tão longe quanto o povoado. Quando atingiram a parte mais íngreme da colina viraram à esquerda, para um pequeno lugarejo, e foi aí que encontraram a irmã da Mary do açougueiro.

Ellen, que estava casada com Hal Carpenter, era uma mulher roliça e com um aspecto feliz, no final da casa dos vinte. Quando os três homens cavalgaram pelo caminho de acesso e penetraram no pátio, espantando as galinhas e pondo a cabra a berrar de irritação, a mulher encontrava-se ajoelhada junto de uma grande pedra e amassava a farinha para o pão. Ouviu-os, sentou-se sobre os tornozelos e puxou algumas madeixas de cabelos para debaixo da touca enquanto observava os recém-chegados.

Simon sorriu, desceu do cavalo e a mulher pôs-se de pé e devolveu-lhe o sorriso.

- Estão perdidos, senhores? Este não é o caminho para Plymouth.

- Não, andamos à procura de Ellen Carpenter.

- Sou eu - declarou, com um sorriso tão acolhedor que Simon se sentiu como se a conhecesse havia anos. - Posso oferecer-lhes qualquer coisa para beberem? Tenho cerveja.

A mulher foi buscar um jarro e três taças de madeira, e os homens agacharam-se com ela em volta da pedra enquanto Ellen continuava a trabalhar. As crianças, que eram cinco de acordo com a contagem de Simon, embora andassem sempre de um lado para o outro e pudessem ser mais, espreitaram por trás dos troncos das árvores para aqueles três hóspedes importantes.

- És a irmã da Mary do açougueiro, que vive em Crediton? - perguntou Simon, depois de trocadas as saudações preliminares.

- Sim, senhor.

Tinha a complexão mais rosada, pensou Simon, que ele alguma vez vira. Os olhos cor de avelã com cintilações verdes brilhavam ao sol e os tons acobreados do cabelo reluziam como ouro.

- A tua irmã está aqui? Gostaríamos de conversar com ela. A mulher sorriu-se para ele, um pouco intrigada.

- Não, a Mary não está aqui. Porquê? Não está em casa, em Crediton?

- Não - retorquiu Simon, desconcertado. - Fomos informados de que tinha vindo ter contigo.

- Deveria ter vindo visitar-te esta semana? - inquiriu Baldwin.

- Não, de modo nenhum. Em geral só vem quando lhe apetece. Nunca o sei de antemão, Não é fácil mandar um recado de Crediton até aqui.

- E vem cá muitas vezes? - perguntou Simon.

- Oh, sim, com muita frequência. Não posso ir visitá-la porque tenho de tomar conta de tudo isto... - Fez um gesto de proprietária para os animais e as crianças que a rodeavam. - A Mary gosta de fugir aos cheiros e ao barulho da cidade, e de voltar ao campo de tempos a tempos. Vem até cá sempre que tem uma oportunidade. O marido não se importa.

- O Adam?

- Sim. O Adam casou com ela há quatro anos, quando o seu negócio começou a crescer. Posso afirmar que, para nós, foi um alívio. Já tinha vinte e três anos. Eu casei-me com dezoito, o que é uma idade muito melhor. Aos vinte e três anos já tinha quatro filhos.

- Disseram-nos que a Mary tinha vindo para aqui na terça-feira, mas dizes que não a viste?

Os olhos da mulher tornaram-se ansiosos.

- Quer dizer que desapareceu? Ninguém sabe onde ela está?

- Duvido que tenha desaparecido - afirmou Baldwin, tranquilizador. - É mais provável que o aprendiz - foi ele quem nos mandou para aqui -, tenha feito alguma confusão. Não me pareceu ser muito inteligente. Não te preocupes. Pode ter ido para junto de uma amiga, ou de outra irmã?

- Não, sou a única irmã - disse Ellen, cujos olhos já tinham uma expressão assustada.

- Compreendo que gostasse de vir para aqui - comentou o cavaleiro. - É uma bonita propriedade.

- Não é má, senhor. - Os feijões são bons e as ervilhas produziram bem. Melhor do que no ano passado. O meu marido é um bom trabalhador e está frequentemente ocupado na mansão, a reparar carros e barris. O senhor paga-nos em trigo e cevada.

Baldwin acenou. Naquela época do ano havia fartura de feijões e de ervilhas, e as galinhas que esgravatavam na terra a seus pés eram quase todas jovens, na sua maioria apenas com alguns meses. O ano fora bom pelo que a mulher e o marido sobreviviam bem como pessoas livres.

- Diz-me, Ellen, há quanto tempo vive a Mary em Crediton? Houve alguém que me disse que esteve lá cinco ou seis anos antes de se casar.

- Sim, senhor. Esteve no comércio dos tecidos, tecia e fazia algum trabalho de agulha. Acabou com tudo isso quando se casou, é claro.

- Claro. Então, vivia na cidade há mais de seis anos?

- Acho que foram quase oito... desde os seus dezoito ou dezanove anos.

- Como foi que o Adam a conheceu? - Simon reparou que Baldwin lhe observava o rosto com atenção e perguntou a si mesmo qual seria a ideia do cavaleiro.

Era óbvio que Ellen não tinha segredos. Soltou uma gargalhada e explicou:

- Não foi ele, foi ela! Segundo a história que a Mary conta, ia a passar em frente da porta, um dia. quando ele atirou restos de entranhas para a rua e a salpicou toda. Bom, a minha irmã ficou zangada, entrou na loja e disse-lhe o que pensava. Ameaçou-o com tudo o que se conseguiu lembrar, disse-lhe que iria chamar o guarda, o Guardião da Paz e todas as outras autoridades do reino! A Mary, quando se irrita, é uma fera... mas fica muito bonita! O pobre Adam ficou arrumado e não se conseguiu escapar! Apaixonou-se e ficou imediatamente de cabeça perdida por ela!

Baldwin sorriu e continuou:

- Queres dizer que o Adam está muito mais apaixonado por ela do que a Mary por ele?

- Oh, claro... - respondeu a mulher, distraída, ainda a pensar no tempestuoso romance e no casamento. Contudo, logo de seguida, os seus olhos semicerraram-se e Ellen lançou-lhe uma mirada que o cavaleiro não conseguiu interpretar.

- Achas que ela o ama?

Pensou na pergunta com o sorriso ainda a bailar-lhe nos lábios, mas enfraquecera e tinha um toque de tristeza quando acenou.

- Um pouco... mas não o suficiente. Teria sido melhor que ele não a amasse tanto. Nesse caso, pelo menos, haveria um pouco de igualdade naquela casa. O problema está em que ela não é o tipo de mulher capaz de se excitar por viver com um homem como o Adam. Ele adora-a... mas a Mary aborrece-se com facilidade e isso torna-a rabugenta.

- Quer dizer que a Mary é muito rabugenta?

- Sim, para com o pobre do Adam, mas ele é capaz de o negar. Foi sempre um parvo. A Mary até lhe diz onde arrumar as coisas - incluindo as ferramentas da loja - e ele nunca protesta. Não a quer perturbar.

- Não se pode dizer que seja um casamento com bases sólidas...

- comentou Baldwin.

- Não, senhor, de modo nenhum. No entanto, para ser justa, ambos parecem suficientemente felizes.

- Sim, é claro. Diz-me, manténs um bom relacionamento com a tua irmã?

- Não poderia ser melhor. Quando uma de nós tem problemas, vira-se imediatamente para a outra.

- E não para os maridos... - adivinhou Baldwin, num tom de conspiração.

- Ora, nunca para os maridos! - A mulher riu-se alegremente.

- Há coisas que só as mulheres conseguem compreender.

- E segredos que só podem ser partilhados com outra mulher.

- Oh, sim!

- Tais como os homens.

A mulher imobilizou-se repentinamente. As mãos continuavam a virar e a amassar, mas o resto do corpo manteve-se parado. Baldwin olhou para o chão, pensativo.

- Ouviste falar do grupo de mercenários que está em Crediton?

Ellen olhou para cima. Simon verificou que o sorriso não se alterara minimamente mas que no seu rosto, enquanto fitava o amigo, havia agora uma certa rigidez. Para além disso, parte da expressão amigável também desaparecera.

- Mercenários?

- Sim. O mesmo grupo em que a tua irmã reparou há muitos anos, com o mesmo capitão, Sir Hector de Gorsone, e os mesmos homens. Ela conheceu-os na altura, não foi? E conheceu Sir Hector melhor do que a qualquer um dos outros, não é verdade?

- Não sei de que está a falar.

- Sabes, sim. Foi por causa dela que Sir Hector expulsou outra, a Judith. Já agora, ficas a saber que a mataram, tal como aconteceu com a mais recente substituta da tua irmã, uma pobre rapariga chamada Sarra. Estão ambas mortas sem qualquer razão. - Baldwin soltou um suspiro pesado, Ellen, manda-nos um recado se a tua irmã aparecer aqui nos próximos dias. Precisamos de falar com ela. No caso contrário... receio que possa estar em perigo.

- Perigo! - exclamou a mulher num tom trocista. - Que espécie de perigo?

Baldwin olhou-a durante muito tempo e intensamente.

- Não ouviste nada do que te disse? Este cavaleiro teve três amantes em Crediton: a primeira morreu, a segunda morreu... e a terceira é a tua irmã. Avisa-me logo que tiveres notícias dela.

 

De regresso a Crediton, Baldwin cavalgou mergulhado em pensamentos. Atingira o topo da colina que dava directamente para a cidade e Simon virou-se para ele.

- Disseste que a irmã pode estar em perigo, Baldwin, mas... porquê? Por que iria aquele homem sanguinário desejar matar todas as mulheres que conheceu nesta cidade?

- Talvez não seja essa a melhor maneira de ver as coisas, Simon - disse Baldwin. Deu uma palmada no cavalo e fez um gesto para afastar a pequena nuvem de moscas que o incomodara. A seguir continuou. - Aquele cavaleiro pode não ter feito mal a nenhuma delas. As ligações com Sir Hector são surpreendentemente claras, não são? Morrem duas mulheres... e ambas foram amantes do cavaleiro, embora por pouco tempo. Para além disso, acontece que ambas tiveram conflitos com ele. A Sarra teve uma discussão com Sir Hector na estalagem e pouco depois apareceu morta numa arca, no quarto do homem. A Judith tropeçou nele na rua... e foi apunhalada.

- Sim, as ligações são claras.

- É verdade. Contudo, se inverteres a perspectiva, quem beneficiaria com o facto de as duas mulheres terem aparecido mortas e com ligações a Sir Hector?

- Ora, ninguém!

- Pois eu estou a lembrar-me de várias pessoas. Por exemplo, os próprios mercenários. O Wat quer ver-se livre do amo e acho que isso é suficientemente óbvio, No caso contrário, não teria sido tão franco a respeito do relacionamento de Sir Hector com a Judith.

- Talvez quisesse que fosse feita justiça.

Baldwin lançou-lhe um olhar prolongado e intenso.

- O Wat a querer que fosse feita justiça? Simon, acho que estás a confundi-lo com um homem decente, com um cavalheiro. Não é. Não passa de um mercenário, de um assassino impiedoso e de um saqueador. Um cavaleiro deve lutar pela Cristandade, e por uma maior glória do seu nome e reputação, neste mundo e no outro. Deve defender os fracos e os infelizes, mostrar cortesia e bondade. Viste algum desses atributos no Hector ou nos seus homens? No Wat, por exemplo?

- Estou certo de que...

Baldwin deixou-se levar por uma explosão de ira, coisa que nele era muito invulgar, e puxou as rédeas ao cavalo.

- Simon, não tentes ser um apologista daquela gente. São maléficos e nada mais. Homens como eles cavalgam para onde lhes apetece, oferecem os seus serviços aos que pagarem melhor e a mais ninguém, mas só enquanto isso lhes convier. Não têm nenhuma concepção de honra ou de bondade. Tudo o que querem é a próxima soma de dinheiro e não se preocupam sobre como a irão obter.

- Acalma-te, Baldwin - pediu Simon num tom tranquilo. Aceito que sabes mais sobre aquela gente do que eu, porque nunca tive antes de lidar com eles.

- As minhas desculpas, Simon. Este assunto começa a irritar-me e sou como um urso preso a um poste: atiro-me a tudo o que mexe.

- Hoje, quando saímos de casa, pensavas que a questão poderia ser resolvida se olhássemos para a situação local. Não achas que deu resultado? Agora já sabemos que a mulher do açougueiro também era conhecida de Sir Hector. Parece claro que correu com a Judith por causa dela, e que muito provavelmente fez o mesmo à Sarra quando voltou a encontrar a Mary na cidade.

- Sim.,, e agora também ela desapareceu... - murmurou Baldwin num tom pesado.

- Pode não estar morta, Baldwin. Pensa nisto: se era inteligente, pode ter somado dois e dois logo que ouviu falar nas mortes da Sarra e da Judith. Não terá fugido para se proteger?

- Sim, é uma possibilidade.

- Tendo em conta tudo o que se passou, esperemos que os homens do Stapledon apanhem aqueles dois ladrões. Pelo menos, sempre poderão lançar alguma luz sobre esta história.

O Bispo Stapledon vagueava no jardim na companhia de Peter Clif-ford e expressou o seu encanto ante a mistura de plantas. Sabia que Peter era um grande entusiasta das suas ervas aromáticas e especiarias, e que algumas daquelas plantas tinham vindo de locais muito distantes.

As íris encontravam-se entre as favoritas de Peter. Explicou - de um modo algo demorado -, que aquela planta era um exemplo quase perfeito da generosidade de Deus. As raízes podiam ser esmagadas para o fabrico de tinta, a flor continha um suco que podia ser usado como bálsamo para os dentes e gengivas, as folhas davam para tecer tapetes ou para remendar os telhados de colmo. Para além disso, se não fosse necessária para nenhuma dessas finalidades, as flores não deixavam de ser belas e docemente perfumadas.

O bispo sorriu e acenou enquanto Peter o guiava através do jardim, e esforçava-se por não revelar o seu aborrecimento para não ofender os sentimentos do anfitrião. Foram-lhe mostrados os lírios e as rosas - que ocupavam um canteiro perto da casa -, enquanto um pouco mais adiante, na direcção do pomar onde cresciam macieiras, pereiras, cerejeiras e castanheiros, florescia o jardim de ervas aromáticas. Havia ali arruda - cujo cheiro o bispo detestava -, mas também salva, camomila, alfazema e outras plantas com odores atraentes. Uma hora depois até o entusiasmado Peter começou a ver que a atenção do bispo se desvanecia, pelo que atravessaram o relvado, cheio de margaridas, violetas e primaveras, de modo a formaram uma aromática e atraente cobertura, e dirigiram-se até ao abrigo de um grande carvalho, onde havia um banco.

Foi aí que encontraram Margaret e Hugh. Edith encontrava-se por perto, na companhia de Rollo, e as duas crianças estavam entretidas com uma brincadeira que parecia envolver o arranque de flores do relvado. Hugh levantou-se quando os dois homens e aproximaram mas o bispo fez-lhe sinal para se voltar a sentar.

- Podemos fazer-vos companhia?

- Claro, meu senhor. - Margaret chegou-se para um lado do banco e Hugh voltou a levantar-se, resignado, para se ir colocar por trás dela, numa posição de onde podia vigiar as crianças. Rollo imobilizara-se ao ouvir as vozes masculinas mas reconheceu os dois homens, lançou um breve olhar de confirmação para Hugh e voltou às suas brincadeiras. Hugh suspeitou que o rapaz estava tão habituado a ver o sacerdote a dar esmolas que sabia nada ter a recear de homens vestidos com os trajes da igreja.

Os homens sentaram-se e Stapledon olhou para Margaret.

- Espero que não se importe que lho diga... mas está com um aspecto muito agradável. Já se sente um pouco melhor?

Margaret não conseguiu ocultar a sua satisfação.

- Não sou apenas eu... - confidenciou. - O meu marido estava muito abalado com a morte do nosso filho, mas já quase recuperou. Estas últimas semanas foram difíceis mas creio que ultrapassámos a nossa dor. A bondade do Peter foi uma grande ajuda...

O bispo acenou, muito sério.

- Sim o seu marido estava extremamente perturbado. Sei como pode ser difícil. Acho que todos nós, na Igreja, temos consciência disso porque vemos muitos pequenos caixões a serem enterrados e porque a morte pode atacar tanto os mais ricos como os mais pobres desta terra.

- Se Deus quiser, iremos ter outro filho - afirmou Margaret.

- Sim... - Stapledon observava o jovem Rollo. - O rapazinho gosta de brincar com a vossa filha.

- A Edith também gosta de ter companhia. As idades não são muito diferentes e ela não tem muitos amigos no local onde vivemos. Para a Edith, é agradável encontrar alguém com quem possa brincar.

- Sim... - repetiu o bispo, perdido em pensamentos.

- Senhor bispo? Senhor bispo!

Stapledon levantou os olhos, voltou ao presente e viu Roger a correr por cima da relva. O bispo ocultou o seu aborrecimento. Começara finalmente a descontrair-se e o facto de Roger aparecer de repente para lhe perturbar aquele momento de calma agradável era incomodativo. Contudo, quando o jovem sacerdote se aproximou já se libertara do exaspero e recuperara a sua equanimidade.

- Que foi que aconteceu, Roger? A casa está a arder?

- Não, senhor... mas chegou um mensageiro de Exeter. Encontraram e prenderam os dois mercenários fugitivos e estão a trazê-los para aqui.

- Excelente! - exclamou Peter, esfregando as mãos de satisfação. - Nesse caso, vamos poder pôr este infeliz assunto para trás das costas de uma vez por todas!

- Sim... - disse Stapledon, mas os seus olhos deslocaram-se novamente para a pequena figura a alguns metros de distância. - A maior parte de nós vai poder fazê-lo...

Quando Simon e os outros conseguiram regressar a Crediton já se sentiam encalorados e sujos. A humidade da estrada, por causa do dilúvio da noite anterior, salpicara-lhes as pernas durante o percurso para Coleford, pelo que tinham os calções e as túnicas cobertas de manchas castanhas-avermelhadas. Depois, durante a viagem de regresso, quando o Sol já secara a humidade, tinham sido incomodados por uma espécie de nevoeiro provocado pela fina poeira vermelha que os cascos dos cavalos tinham feito saltar da estrada e que se agarrava a tudo. Agora, ao olhar para Baldwin, Simon verificava que os seus cabelos tinham uma rigidez semelhante à de arames, que o rosto escurecera e ficara manchado por riscas mais claras por onde o suor escorrera, e que a túnica, em vez de ser branca, era de um baço tom ocre nos ombros e castanha-alaranjada na bainha. Parecia que a cor lhe escorrera de cima para baixo sob uma chuvada, pensou o almoxarife com um sorriso... que se apagou logo que olhou para o estado dos seus calções.

A fina poeira não lhes afectara apenas as roupas. Simon sentia-se como se tivesse areia dentro dos olhos e a garganta tão áspera como se tivesse engolido meio quilo de gravilha. Passaram pela estalagem e o almoxarife grasnou:

- Vamos lavar a poeira do caminho com um pouco da cerveja do Paul. A mulher dele faz uma cerveja melhor do que a do cervejeiro do Peter!

Baldwin acenou uma confirmação e pouco depois já se encontravam no pátio das traseiras, agarrados a canecas de cerveja.

Simon bebeu um grande gole da sua cerveja e olhou em volta. Numa outra mesa encontrava-se um grupo de soldados de Sir Hector, que faziam um grande esforço para evitar os olhos do almoxarife. Não reconheceu nenhum deles e preparava-se para virar a cara quando viu Wat.

O mercenário estava de pé, nos fundos o pátio, perto dos estábulos, a falar com alguém que o almoxarife quase não conseguia ver. Só distinguia um par de botas a sobressaírem para lá da parede do estábulo, bem como a mão do desconhecido, que subia e descia, para dar ênfase às palavras. Wat olhava o outro com o que parecia ser um fascínio horrorizado e abanava a cabeça ocasionalmente, num rápido gesto de negação ou numa confirmação muito séria.

- Baldwin - disse Simon, escondendo a boca por trás da caneca - o Wat está além, num animado debate com alguém e o assunto parece sério...

- Achas? - Baldwin espreitou por cima do ombro sem dar nas vistas.

Vendo que estavam a olhar para ele, o mercenário fez um gesto rápido para silenciar o seu cúmplice. Não sabia se deveria falar imediatamente com o Guardião a respeito daquela última descoberta, mas não via como poderia evitar uma revelação tão desagradável. A novidade iria saber-se em breve e não via maneira de poder ganhar qualquer coisa com o assunto. Nada do que pudesse fazer reduziria o impacte da notícia.

De repente sentia-se muito cansado, fatigado por causa de todos os seus mais recentes planos e manipulações, bem como com os acordos que levara a cabo numa tentativa para ganhar os favores dos elementos mais fortes do bando. O palco estivera ser preparado desde que Hector não obtivera êxito nos esforços para se juntar às forças do monarca. Pela primeira vez, a tentativa para conseguir um novo contrato fora sumariamente rejeitada e tornara-se óbvio para todos os outros que a sua liderança era questionável. As capacidades de combate do capitão nunca tinham sido postas em causa, mas a sua principal responsabilidade era conseguir contratos e dinheiro para os homens, e foi sob esse aspecto que não satisfizera as expectativas. Tornou-se claro que era malvisto pelos recrutadores. Mudara de lados com demasiada frequência e nem sequer um monarca desesperado por conseguir ajuda queria contratar Sir Hector e os seus homens.

Os membros do bando tinham discutido o assunto logo que haviam sido informados da falta de êxito. Alguns tinham-se mostrado a favor de o manterem, por pensarem que os poderia levar de volta a França e a um novo contrato, mas os outros encontravam-se tão desanimados com a sua organização e reputação que desejavam uma mudança.

Fora isso o que incentivara Wat a avançar e a sondar os colegas para ver se conseguia desequilibrar os pratos da balança e fazer com que todos perdessem a confiança em Hector, mas não pretendera que as coisas acontecessem daquele modo. Desde o início que preferira evitar que o bando se visse associado a quaisquer casos de assassínio em Inglaterra. Seria diferente se se encontrassem em França, onde os assassínios eram sancionados pela autoridade e pela severidade do poder de que o grupo podia gozar, mas em Inglaterra deveriam viver de acordo com a Lei e sem incomodarem demasiadas pessoas, pelo que uma enxurrada de assassínios era impossível de ignorar até pelo mais incompetente e corrupto dos funcionários. Na opinião de Wat, a maioria dos funcionários era corrupta, mas não tinha a certeza de que Baldwin fosse incompetente.

Os olhos escuros do Guardião estavam fixos nele e observavam-no atentamente com aquele pequeno franzir de testa que Wat já reconhecia como sendo de curiosidade. Não gostava de merecer as atenções do homem pela segunda vez num só dia. Porém, não tinha muito por onde escolher.

- Vem comigo - disse. Dirigiu-se para a mesa onde o Guardião se encontrava e fez um gesto com o polegar, por cima do ombro. - Este homem encontrou uma coisa que deveriam ir ver.

- O quê? - perguntou Baldwin, virando o rosto para o recém-chegado. Era outro mercenário, mas um com quem ainda não falara. O homem chamado Will era baixo, corpulento, e possuía um pescoço de touro. O rosto redondo exibia marcas de cicatrizes, e as queixadas estavam cobertas pelo restolho de uma barba que, muito provavelmente, raramente barbeava. No entanto, era surpreendentemente bem-falante. Parecia ter magoado o braço direito porque o mantinha apoiado numa funda, mas o cavaleiro reparou que o corpo do homem também se mostrava rígido, como se tivesse sido apunhalado ou ferido de qualquer maneira.

- Senhor, encontrei um corpo no estábulo. É um corpo de mulher. Baldwin e Simon ficaram a olhá-lo mas depois puseram-se de pé num salto e precipitaram-se para o estábulo.

Simon teve consciência de desejar, numa espécie de ansiedade desesperada, que o homem estivesse enganado. Já vira demasiadas mortes ao longo da semana. Duas mulheres mortas, ambas apunhaladas por razões insignificantes ou sem qualquer razão aparente, eram demasiado para ele. O aparecimento de mais uma era algo perfeitamente incompreensível.

Quando entraram, Simon escorregou sobre o piso de terra batida do estábulo e quase caiu. O feno encontrava-se armazenado num piso elevado e os cavalos ficavam por baixo, nas suas baias. Para chegarem ao feno tinham de subir uma escada. Simon esperou enquanto Baldwin, com um aspecto mais cansado do que alguma vez o vira, trepava os degraus lentamente atrás de Wat e Will. O almoxarife foi o último a subir.

Quando chegaram lá acima ouviram correrias e agitação no meio das palhas. Wat encurvou os lábios.

- Ratos - disse. - Metem-se em todo o lado.

O feno jazia em volta deles numa grande confusão, misturado com as roupas e o equipamento dos mercenários, isto porque os que não conseguiam arranjar lugar no salão da estalagem estavam acostumados ao calor e ao conforto que a palha lhes podia fornecer.

- Estava a preparar o equipamento para o limpar - explicou Will numa voz abafada. Simon olhou-o e verificou que o homem estava tão chocado como ele próprio. O mercenário deu um passo em frente e apontou.

Ao princípio, tudo o que o almoxarife conseguiu ver foi a parafernália de guerra. Por cima de um pesado cobertor jazia uma espada curta, um feixe de virotes para as bestas, uma resistente boina de couro e uma cota de malha. Por perto via-se uma taça tombada. A cerveja que a taça contivera escorrera para a palha e o seu cheiro misturava-se com o odor do feno seco.

O motivo do choque do homem estava ali mesmo, na frente deles. O cobertor, que parecia ter servido de cama ao mercenário, tinha uma ponta levantada e atirada para um lado. Por baixo dele fora escavado um buraco no feno e via-se um bocado de tecido escarlate.

- Quando me sentei achei a palha dura e incómoda, pelo que comecei a afastá-la. A seguir senti qualquer coisa e perguntei a mim mesmo o que poderia ser - explicou Will. - Levantei a palha, puxei-a para fora e encontrei... aquilo.

Baldwin ajoelhou-se e afastou cuidadosamente a palha do vestido escarlate. Os olhos da mulher eram baços enquanto olhava para o alto através de uma película de pó do feno. Tinha uma espessa camada do mesmo pó a cobrir todo o corpo, mas aquelas pequenas partículas de palha e de sementes não se deslocaram quando o cavaleiro tocou no vestido, porque havia sítios em que o tecido estava húmido.

- Devo ter dormido mesmo ao lado dela durante a noite - murmurou o mercenário num tom chocado.

- Mais do que uma noite - comentou Baldwin friamente. - Esta mulher está morta há vários dias.

Simon fitou os horrorizados olhos do mercenário por instantes antes de o homem começar a vomitar.

Paul levou-lhes a cerveja e ficou junto deles enquanto todos olhavam para o corpo. Tinham colocado a mulher na escada, que servira como maca, de modo a poderem transportá-la para o salão. Baldwin passou algum tempo a escavar no feno mas não encontrou mais nada. Não havia qualquer sinal de quem a poderia ter morto.

- Tens a certeza?

O estalajadeiro lançou um olhar irritado ao cavaleiro.

- Claro que tenho a certeza! Era minha vizinha. É a Mary do açougueiro, sem qualquer espécie de dúvidas!

- Tinha de perguntar. Quando foi que a viste pela última vez?

- Oh, na segunda-feira, creio... Estava na rua quando Sir Hector saiu e afastaram-se juntos.

Baldwin suspirou e olhou para Simon.

- Parece-me consistente...

Simon acenou no momento em que o estalajadeiro se afastou.

- Consistente com a possibilidade de Sir Hector a ter morto? Sim, tal como as outras.

- Os ferimentos são iguais aos que mataram a Judith. Duas punhaladas nas costas.

- E iguais aos que mataram a Sarra. Também tinha dois cortes, não é verdade?

- Sim, mas foi apunhalada pela frente, no peito.

- O assassino só teve de abrir a tampa da arca para a apunhalar... - comentou Baldwin, fazendo um movimento com o punho, mas a seguir parou e ficou novamente a olhar para o corpo.

- Descobriste alguma coisa?

- Hum? - Baldwin abanou a cabeça. - Não, estava apenas a pensar. AJudith e esta mulher foram atacadas por trás. Atrevo-me a dizer que o assassino lhes tapou a boca com as mãos para abafar os gritos e depois... - As mãos executaram os movimentos como se estivesse a ensaiar a sequência de acontecimentos que tinham conduzido à morte da mulher. Deixou cair as mãos e olhou para o corpo com uma expressão meditativa. - Pergunto a mim mesmo por que razão isto me parece importante...

- O que não compreendo - disse Simon, pensativo - é outra coisa: de quem estaria ele à espera?

- O quê? - Baldwin mirou-o com interesse.

- No dia em que o vimos com a Judith. Pensámos que estava à espera de alguém e a partir de hoje presumi que devia ter sido da Mary. No entanto, já estava morta há alguns dias...

- Sim, já estava morta há algum tempo - murmurou Baldwin. - É verdade que parece estranho... a não ser que estivesse a tentar estabelecer um álibi, fingindo estar a esperá-la quando já a tinha morto. Outra coisa, havia ratos por todo o lado... mas o corpo quase não tem uma única marca.

Simon ergueu as sobrancelhas e espreitou o corpo.

- Tens razão. Quase não tem marcas, excepto os dedos dos pés e das mãos.

- Nunca vi ratos que não gostassem de carne fresca - comentou Baldwin. - Seria de esperar que estivesse mais mordida.

- Para além disso... por que haveria Sir Hector de a colocar no meio da palha?

- Sim, é incrível.

- Incrível? É bizarro. O homem escondeu um corpo numa arca, deixou um segundo numa ruela e depositou este sob uma fina camada de palha, precisamente onde os seus homens dormiam. É realmente bizarro.

- Pois é... - admitiu Baldwin, que virou novamente os olhos solenes para a mulher estendida na sua frente. - Não pode ter estado no feno durante muito tempo. Apalpa-lhe o vestido... Está húmido. Deve ter sido levada para o estábulo algum tempo depois de ter morrido. Antes disso, esteve guardada em qualquer lado.

- Por que razão estará húmida? - perguntou Simon, tocando nos tecidos.

- Porque choveu na noite passada. Choveu muito. Não é difícil de concluir que esteve escondida em qualquer lado e que a levaram para o novo esconderijo ontem à noite, durante a tempestade. - Os olhos do cavaleiro percorriam o corpo mesmo enquanto falava, procurando mais pistas a respeito da morte da mulher. Pensou que Mary, em vida, deveria ter sido atraente, Era delgada e bem formada, com grandes olhos azuis e espessos cabelos castanhos. Tinha pulsos e tornozelos finos, e uma cintura tão estreita que Baldwin poderia tê-la rodeado com as duas mãos. Na frente do corpo não existiam marcas, excepto as mordidelas dos ratos nos dedos das mãos e dos pés. As costas também revelavam poucas marcas, mas podiam ver os locais onde o tecido do vestido fora cortado pela lâmina que a matara.

Baldwin suspirou. Era incompreensível que alguém pudesse tirar a vida daquele modo a uma jovem tão bonita... e também que tivesse sido a terceira em toda uma sequência de mortes.

- Onde a teriam guardado?

- Quando o soubermos, Simon, então também saberemos quem a matou e porquê!

- Achas que ele vai confessar? - Simon ignorou a breve exibição de irritação do amigo e deixou-se cair num assento. Inclinou-se para a frente e estudou Mary.

- Não vejo motivo para que o faça. Temos alguma prova em como é o assassino? Sabemos apenas que foram vistos juntos antes dela morrer... e isso é uma ligação muito ténue a este cadáver. Pelo mesmo padrão, quase toda a gente podia ser acusada do assassínio.

- Talvez, mas creio que temos de o prender. E se foi ele e sai para matar outras? Já matou três e não podemos correr o risco de que mate uma quarta.

- Ah, não?

Simon rodopiou de repente. Sir Hector entrara no salão por trás deles e até Edgar fora apanhado de surpresa. O soldado caminhou lenta e deliberadamente para eles, com a mão pousada no punho da espada, mas não de um modo ameaçador. Mal olhou para os homens e seguiu directamente para a mesa onde Mary repousava. Parou e olhou-a com o que Simon só pôde classificar como sendo tristeza.

- Pobre Mary. Pobre infeliz e insatisfeita Mary - murmurou, para logo de seguida enfrentar Baldwin. - Não fui eu quem fez isto. Não me passaria pela cabeça fazer-lhe mal, nem sequer a sonhar. Era o meu amor, a mulher que eu queria levar comigo.

- Estava a ter um caso consigo. - Não havia necessidade de fazer a pergunta e Baldwin limitou-se a constatar um facto.

- Conhecemo-nos anos atrás - admitiu o capitão. - Quis que se juntasse a mim mas não aceitou. Mary sabia pouco da vida dos mercenários e sempre gostou do seu conforto. Queria poder escolher as melhores roupas, as mais finas peles e eu podia dar-lhe fartura dessas coisas... mas ela também as tinha aqui, do marido, sem o risco de me perder durante um combate, sem a necessidade de viajar constante-mente, sem o medo de ser perseguida por inimigos nem de perguntar a si mesma se os aliados de um dia não serão os inimigos do dia seguinte.

- Não quis ir consigo.

- Não - respondeu o cavaleiro com rudeza.

- Nesse caso, por que voltou aqui?

O capitão virou os desconcertantes olhos cinzentos para Baldwin.

- Porque pensei nela todos os dias ao longo destes últimos anos. Porque tinha saudades dela e desejava-a desde a última vez que a vi. Porque sentia que tinha perdido uma parte de mim desde que a deixei para trás. Precisava de a exorcizar da minha alma e pensei que talvez ficasse curado se voltasse a vê-la.

- Foi por isso que veio por este caminho depois de lhe recusarem um contrato com o Rei?

- Sim. Achei que talvez conseguisse esquecê-la e até tomei a serva para me divertir... mas não serviu de nada. Uma serva não passa disso mesmo, de uma serva. Quem eu queria era a Mary.

Baldwin acenou, perguntando a si mesmo como era que um homem podia tomar uma mulher para tentar esquecer outra. Se o pudera fazer, então ter-lhe-ia sido assim tão difícil matar aquela que não correspondera às suas expectativas?

O rosto do cavaleiro devia ter traído dúvida porque o mercenário contraiu os lábios.

- Pensa que seria capaz de matar a rameira da taverna por não ser a Mary? A rapariga não significava nada para mim! Mato aqueles que me prejudicam ou ameaçam, os que me contrariam ou atraiçoam. A rameira não merecia morrer por não ser a mulher que eu desejava. Para além disso, também nunca poderia matar a minha pobre Mary, fizesse ela o que fizesse. Amava-a com todo o meu coração.

- Quando foi a última vez que a viu?

- Na segunda à noite. Os servos dela e o aprendiz do marido sabiam que eu estive lá, mas não se preocuparam. Viram-me entrar no quarto dela e também me viram sair de manhã. Todos pensaram que eu era melhor para ela do que o marido.

Simon tinha dúvidas. Era mais provável que os servos tivessem mantido as bocas fechadas porque falar no assunto só serviria para irritar um capitão de mercenários.

- Tem a certeza de que foi essa a última vez que a viu? - insistiu Baldwin.

- Sim. Tentei muitas outras vezes... Viram-me numa dessas ocasiões, na cidade. Esperava-a e foi por isso que fiquei tão irritado com a outra rameira.

- A Judith? - perguntou Baldwin.

- Era esse o nome? A mendiga!

- Lembrou-se dela?

- Lembrar-me dela? - O rosto de Hector não revelou qualquer emoção mas Simon viu que o homem empalidecera.

- Sim, Sir Hector, lembrou-se dela? Foi a mulher que o senhor tomou da última vez que esteve em Crediton, não foi? Antes de conhecer a Mary.

- Eu... Não me parece. - O homem lambeu os lábios repentinamente secos.

- já se tinha esquecido? Foi a mulher com quem se divertiu por uma ou mais noites, mas que mandou embora logo que conheceu a Mary pela primeira vez.

- Não. Eu... Não!

- Depois... há também o filho, é claro... que nasceu algum tempo depois.

- Não! - As feições do capitão tinham empalidecido até ganharem o aspecto translúcido da cera, e mordia o lábio inferior como que numa tentativa para se recordar.

- Era o seu filho? - Baldwin atirou-lhe a pergunta rapidamente e com secura.

- Não, não pode ter sido. - A angústia na voz do homem era quase tangível.

- Pergunto a mim mesmo se o seria. De qualquer modo, Sir Hector, creio que tenho razões mais do que suficientes para suspeitar de si no que se refere ao assassínio destas mulheres.

- Por que as mataria? Qual o motivo que poderia ter?

- A primeira porque roubou uma túnica nova que se destinava à sua amante, e a segunda porque o envergonhou na rua ao dizer-lhe que tinha dado à luz um filho seu. Baldwin observava o capitão atentamente enquanto se punha a adivinhar e ficou satisfeito ao ver que os dardos tinham acertado no alvo. Sir Hector estremecera. - Depois, a Mary... porque suponho que se recusou a abandonar o marido e a casa para fugir consigo.

- Não, não, de modo nenhum! Está enganado, completamente enganado!

- A Mary não o quis acompanhar, não é verdade?

- Se fosse esse o caso, matava-o a ele e não a ela. Não tive nada a ver com...

- Não quis fugir consigo e o senhor decidiu matá-la. Concluiu que, já que não a podia ter, então ninguém a teria... nem sequer o marido!

- Isso é estúpido! Por que iria fazer uma coisa dessas? Amava a Mary e nunca lhe faria mal...

- Pois é... - disse Baldwin, encostando-se contra a mesa e cruzando os braços - mas tenho de perguntar a mim mesmo qual será o significado que essa palavra tem para si. É um soldado, Sir Hector. Está habituado a apoderar-se do que quer. Quis a Mary,.. e tomou-a. Não pensou nem no marido, nem na reputação dela, nem em mais nada. Queria-a... tomou-a!

- Isso é mentira!

- Será? Saberá realmente o que é a verdade? A sua vida foi apenas toda uma série de roubos. Chega a acordo com um lorde ou barão e a seguir saqueia toda uma área. Apodera-se do que quer... Não é assim que o seu bando sobrevive? Depois, vem para aqui e tenta comportar-se da mesma maneira Uma mulher aqui, uma mulher ali. Sarra, Judith e Mary. Foram todas suas até se ter aborrecido delas, A seguir matou-as Foram todas apunhaladas duas vezes, foram todas assassinadas da mesma maneira.

- A Mary também...? - A voz do capitão estava carregada de horror.

- A Mary também - confirmou Baldwin, impiedoso. - Matou-as a todas, não é verdade? Por que o fez?

Simon limitava-se a observar a confrontação entre os dois homens. Sir Baldwin parecia tornar-se cada vez mais alto à medida que falava. Era como se estivesse a tentar convencer-se a si mesmo de que não acreditava verdadeiramente nas suas próprias palavras, e como se o conceito por trás de crimes tão hediondos fosse tão terrível que não conseguisse admitir a existência de alguém com a capacidade necessária para os cometer. Exibia uma expressão dura, com uma espécie de urgência desesperada, como um homem que pretendesse demonstrar que estava errado mas mesmo assim continuasse convencido de que as suas piores expectativas em breve seriam confirmadas.

Todavia, enquanto falava, Baldwin descobria que se sentia cada vez mais compreensivo para com o capitão. Não que o Guardião fosse crédulo, ou não estivesse preparado para condenar a vida do mercenário, mas a verdade era que o homem parecia mais encolhido à medida que Baldwin, revigorado por uma nova força, pelo desgosto e repulsa perante os crimes, arremetia contra ele.

Para Simon, Sir Hector parecia estar a encolher para dentro de si mesmo e a reduzir-se à escala de um dos camponeses das colinas que o almoxarife via todos os dias: velhos, gastos e destruídos pelas preocupações e pela pouca saúde. Simon acenou para si mesmo. Era demasiado frequente que não houvesse maneira de provar quem cometera um determinado crime, mas naquele caso estava convencido de que ele e o amigo tinham apanhado o homem certo, pelo que o efeito das palavras de Baldwin lhe dava uma satisfação feroz.

Houve algo na expressão abatida que fez com que Baldwin o estudasse atentamente enquanto falava, e nos modos do homem também havia qualquer coisa que o fez suavizar um pouco o tom de voz. Não se tratava da simpatia imediata que um homem sentia por outro que era acusado de ofensas hediondas, porque o Guardião já estava mais do que endurecido para com os criminosos que compreendiam subitamente o grau dos seus crimes quando o fim se encontrava próximo. Baldwin já pensara várias vezes que não havia nada melhor para avivar uma má memória e para induzir à contrição do que a ameaça de uma corda. Contudo, embora a sensibilidade se tivesse embotado ao longo de anos de julgamentos, a sua empatia permanecia e tinha a certeza de que aquele capitão revelava verdadeiros sinais de dor.

Contudo, por si só, isso não era prova de inocência. Baldwin conhecera casos em que homens tinham morto as mulheres que amavam, por ciúmes, por súbitos ataques de raiva, por um grande número de razões, Todos eles haviam expresso arrependimento e tinham parecido honestamente devastados pelo resultado das acções cometidas. Não era raro. Porém, quando mencionara o nome da última vítima, foi assaltado por dúvidas. O capitão permanecia de pé, de cabeça baixa, ombros abatidos, mãos caídas ao longo dos flancos... e era a verdadeira imagem da infelicidade. O que ali estava não era o arrogante lorde-guerreiro, pronto para uma discussão fosse com quem fosse e para apoiar os seus argumentos com a ponta da espada, mas sim um homem que perdera tudo o que considerara mais querido. A sua vida, tal como a expressão corporal sugeria, chegara ao fim. Para ele não existia mais nada.

Baldwin calou-se de repente e examinou Sir Hector pensativamente, com a cabeça inclinada para um lado. O capitão não fazia qualquer gesto, não proferia uma palavra de negação, não proclamava uma inocência ultrajada... e o cavaleiro, de súbito, sentia-se assaltado pelas dúvidas. A sua mente voltou a rever as provas e foi obrigado a admitir que os únicos laços que ligavam o capitão às mulheres mortas eram muito ténues.

- Sir Hector, o senhor está livre, pelo menos por enquanto, mas exijo-lhe que não saia desta estalagem. Falarei com os seus homens e certificar-me-ei de que não o ajudam a fugir. No entanto, não vejo motivos para o encerrar numa cela. Por isso, pode continuar aqui.

O homem acenou e afastou-se na direcção dos quartos. O olhar de Baldwin acompanhou-o até a porta se fechar por trás dele.

- Edgar, vai buscar o Wat e aquele tal Will que descobriu o corpo desta mulher.

 

Wat caminhava de uma maneira bamboleante que fez com que Simon se recordasse dos marinheiros que vira em Plymouth e Exeter. O velho mercenário ostentava uma expressão grave, mas Simon ficou convencido de que no seu rosto também havia um sorriso de alegre exaltação que procurava sobrepor-se, o que não constituía uma grande surpresa. Pretendera apoderar-se da liderança do bando e o capitão permitira que a mesma lhe escorregasse por entre os dedos e fosse cair no colo de Wat quase sem se dar por isso. Os olhos de Simon brilharam de desaprovação ao ver um homem tão satisfeito com o resultado de três mortes.

- Wat - disse Baldwin, logo que o homem entrou e Edgar fechou a porta atrás dele - temos o teu capitão detido aqui na estalagem. Vou colocá-lo sob a tua vigilância. Não quero que tu, nem qualquer homem do grupo, tentem abandonar Crediton, nem que permitam a fuga de Sir Hector. Fica à tua responsabilidade e responderás por isso se ele conseguir escapar. Fui claro?

- Perfeitamente claro.

- Agora, tu... - continuou Baldwin, virando-se para o homem chamado Will, que o encarou com truculência. - Como foi que descobriste o corpo?

- Já lho disse. Sentei-me, senti qualquer coisa dura e incomodativa por baixo de mim e fui ver o que era.

- E puseste a túnica dela à vista?

- Sim, senhor.

Baldwin acenou como que para si mesmo.

- Isso foi precisamente no sítio onde estavas a dormir há quanto tempo?

Will engoliu em seco e ficou um pouco acinzentado quando respondeu:

- Desde que chegámos aqui.

- Por isso, pensas que dormiste em cima dela todas as noites? O homem acenou, consciente de que as náuseas estavam a regressar.

- Não me parece. Se lá estivesse, já terias dado por ela. - Baldwin suspirou. - Parece-me que alguém a escondeu ali apenas muito recentemente, mais precisamente na noite passada.

- Eh? - exclamou Wat, sobressaltado. - Que quer dizer? Ninguém ia largar um corpo daquele modo, como se quisesse que o encontrassem! Ninguém iria cometer um assassínio e fazer o possível para que o crime fosse descoberto!

- Saíste da tua cama na noite passada? - perguntou Baldwin. O homem lançou uma olhadela a Wat e acabou por encolher os ombros.

- Sim. Estive lá até à tempestade, mas depois levantei-me quando a chuva começou.

- Quando foi que voltaste para a cama?

- Não voltei. Eu.,, magoei-me e houve um par de homens que me levou para o salão.

Baldwin acenou, desviou os olhos para o ferimento do homem e Wat corou.

- Isto é de loucos! - explodiu Wat.

- Pois, há quem diga que qualquer homem que decide matar tem de estar louco... - comentou Baldwin calmamente. Tinha a impressão de que o mercenário tentava distraí-lo do seu exame ao mercenário ferido - mesmo que seja por dinheiro.

Wat fez um gesto de rejeição.

- Isso nada tem a ver com o assunto. Por que iria Sir Hector largar o corpo aqui? Sabia que o encontraríamos... e a pista apontaria directamente para ele.

- Talvez não fosse Sir Hector quem o colocou na palha.

- Nesse caso, quem foi?

- É o que vamos ter de descobrir. Presumo que o corpo não se encontrava lá ao anoitecer da noite passada, porque não deste pela sua presença. Se um homem a podia sentir quando se sentou... então ainda mais a sentiria se estivesse deitado. O vestido estava molhado nalguns sítios, o que talvez queira dizer que foi transportada de um lado para a outro a noite passada.

Simon levantou-se e começou a andar pela sala. A seguir parou e voltou a encarar Baldwin.

- Há apenas duas explicações para que alguém a colocasse ali. A primeira, porque o outro esconderijo era pouco satisfatório, e a segunda porque, como já foi dito, pretendiam que o corpo fosse descoberto.

- Sim, não vejo outra razão.

- Contudo, a primeira é inconcebível.

- Porquê? - inquiriu Wat, irritado. Simon lançou-lhe um olhar de desprezo.

- Porquê? Pensa, homem! Se matasses alguém, deixavas o corpo num local acessível? - O mercenário ficou calado e Simon compreendeu subitamente que o homem já poderia ter estado numa situação semelhante, no passado. - De qualquer modo, quando alguém comete um assassínio procura esconder o corpo dos olhos dos bisbilhoteiros. De certeza que o criminoso não manteria o corpo na cidade. Levava-o para os campos, se tivesse a oportunidade, e largava-o num qualquer sítio isolado. Oh, os assassínios ocasionais, como os que têm lugar por causa da cerveja ou do jogo, são resolvidos num instante. Dois homens lutam, há um morto e o assassino é descoberto rapidamente. Contudo, num caso como este, em que parece ter sido seguido um qualquer tipo de plano, pelo menos a julgar pelo facto de terem morrido três mulheres, a principal preocupação do assassino é encobrir as pistas e isso significa ocultar o corpo. Um homem não pode ser julgado se o corpo não for encontrado.

Will esboçou uma careta intrigada.

- Pensam que SírHector a matou, e que depois a levou para a minha cama no feno? Não pode ser, passou toda a noite no quarto dele.

Baldwin olhou para o confuso mercenário e a seguir para Wat, que estudava o solo com uma expressão fechada.

- É verdade?

- Sim, tive alguém junto da porta dele toda a noite - admitiu Wat com alguma rudeza, enquanto amaldiçoava Will mentalmente. Não tinha qualquer desejo de que Baldwin viesse a saber da tentativa de assassínio. - Pareceu-me uma boa ideia depois de saber que a Judith tinha sido encontrada. Se tivesse tentado ir buscar o corpo desta mulher para o esconder no feno... então teria sido visto.

- Ah... - murmurou Baldwin num tom baixo. Simon aproximou-se de um banco e deixou-se cair nele a olhar para Wat.

- Isso, Wat, era precisamente o que eu esperava - afirmou. - A não ser que possamos provar que Sir Hector tinha um cúmplice, então creio que seremos forçados a admitir que está inocente.

Wat olhou de um para o outro com a boca aberta de espanto.

- Estão ambos loucos!

Simon pousou o queixo nos punhos.

- Não - retorquiu, num tom cansado - mas acho que há alguém que o está.

De súbito, sentia-se exausto. O dia começara de um modo tão esperançoso, com o interrogatório da mulher na ruela, para logo de seguida dar uma reviravolta positiva quando haviam descoberto a identidade da amante de Sir Hector... e agora todas essas esperanças tinham ido por água abaixo. Aquela era a coisa mais intrigante a respeito dos assassínios: quando pensavam estarem perto de descobrirem um padrão e de poderem lançar as mãos sobre o assassino... acontecia mais qualquer coisa que os deixava desorientados. O roubo começara por parecer um caso muito simples até ao momento em que tinham descoberto a Sarra. O assassínio de judith lançara firmemente as suspeitas sobre sir Hector e a descoberta de Mary debaixo da palha parecera, pelo menos inicialmente, confirmar as culpas do capitão.

A porta bateu quando Wat e o companheiro saíram da sala. O mercenário mais velho fora-se embora zangado, muito provavelmente, pensou Simon, por estar a ver o comando do grupo a ser-lhe roubado precisamente quando se preparava para o agarrar.

- Poderá ter sido ele? - interrogou-se.

- Quem? O Wat? É possível. Não há dúvidas de que tem um grande desejo de ver o capitão pelas costas... - disse Baldwin, espreguiçando-se e gemendo antes de voltar a descontrair-se no assento. - As suas ambições estão intimamente ligadas à possibilidade de conseguir a liderança do bando.

- É estranho como tudo parece apontar para Sir Hector. O Wat podia ter morto a mulher para depois tentar fazer com que as culpas parecessem ser do capitão, a fim de se apoderar do seu lugar.

- Sim, mas há tantos no bando. Terá sido um dos outros?

- O Wat era o servo pessoal de Sir Hector quando a Sarra foi morta. Podia ter-lhe dado a túnica e apunhalado-a, para a seguir a esconder na arca para parecer que o amo foi o responsável.

- É possível mas custa-me a acreditar. O Wat podia ter-lhe dito para usar a túnica, confiando em que a ira do amo acabasse por a conduzir à morte, mas duvido que ele próprio a tenha morto e escondido. Para que correria esse risco? Depois, temos a segunda mulher, a Judith. Que poderia o Wat saber a seu respeito? Suponho que SírHector poderá ter mencionado que a vira naquele dia, mas é improvável. Sir Hec-tor nunca me pareceu o género de pessoa que necessite de um confidente, e com a disposição com que estava na altura - depois de ter ficado horas à espera da Mary -, duvido que tenha feito mais do que l>errar com os homens por serem desleixados, ou qualquer outra coisa.

- Se for verdade o que disse a respeito da Mary ter combinado encontrar-se com ele... Tenho que confessar que acreditei nele quando o disse.

- Sim, também eu.

- Achas que a mulher o estava a evitar? Sir Hector podia ter-se tornado tão incomodativo para a Mary do açougueiro que a levasse a manter-se afastada. Isso, só por si, talvez o irritasse o suficiente para a matar quando teve uma oportunidade de a encontrar a sós.

Baldwin olhou para o corpo estendido na mesa, à sua frente.

- É possível... - admitiu - mas toda a gente pode ver que ficou muito afectado com a morte da mulher.

- É verdade, também pensei nisso. A sua dor era perfeitamente visível.

Baldwin levantou-se, irritado, e deu um murro na palma da outra mão.

- Isto é ridículo! Morreram três mulheres, foi cometido um roubo grave... e ainda nem sequer estamos perto de resolver nenhuma dessas coisas!

Saíram da sala depois de darem instruções para que o corpo ali ficasse até que o sacerdote o pudesse mandar buscar, e fizeram uma pausa no exterior enquanto olhavam para a loja do açougueiro. Baldwin esboçou uma careta.

- Temos de ir ver se o Adam já voltou. Será melhor que um de nós fale com ele antes que saiba do assassínio da mulher pela boca de outro.

Simon concordou. Aproximaram-se da loja mas o aprendiz, que naquele momento se encontrava a preparar presuntos, disse-lhe que o amo ainda não regressara. Baldwin pediu-lhe para se certificar que o açougueiro seguia directamente para casa de Peter Clifford logo que chegasse, após o que os dois homens foram buscar os cavalos e voltaram para a casa de Peter.

 

Esfregou as têmporas com vigor. Era incompreensível. Tinham-na encontrado mas o homem continuava livre, De certeza que lhes era fácil de ver que era ele o culpado, ou não? Quem mais tinha uma qualquer espécie de ligação com as três mulheres? O Guardião e o amigo... ou eram cegos, ou incompetentes.

Os olhos clarearam-se-lhe e o nevoeiro no seu cérebro começou a dissipar-se quando compreendeu finalmente o que aquilo significava. Lentamente, levantou a cabeça e olhou para a parede oposta. Foram subornados.

Era um acontecimento demasiado vulgar. Por todo o país, os homens envolvidos no sistema legal recebiam dinheiro para encherem os bolsos. Os xerifes, almoxarifes e magistrados eram saneados regularmente para controlar os seus piores excessos. Era sempre possível, em troca de um pagamento, encontrar as testemunhas apropriadas para solucionar qualquer disputa, e se o preço fosse suficientemente elevado até se podia garantir que todos os jurados chegariam à conclusão pretendida.

Devia ter sido isso, pensou, e os seus olhos brilharam com a fúria dos justos. Negar-me a justiça era um insulto.,, e ainda por cima depois de ter feito tantos planos. Os lábios contraíram-se-lhe num trejeito de indignação. Tudo por causa do Guardião ser um corrupto.

Todavia, sabia que o Guardião tinha uma reputação de honestidade pelo que a expressão rabugenta do seu rosto foi substituída por uma outra, de perplexidade. Toda a cidade falava da determinação do Guardião em conseguir justiça para os queixosos.., Se fosse assim tão corrupto, de certeza que isso já deveria ser do conhecimento público. O Guardião estava envolvido em quase todos os casos importantes, mas no entanto não havia calúnias a respeito do seu carácter ou honestidade. Fora sempre considerado razoável e sábio na busca de um campo de entendimento comum entre as partes, e haviam sido muitas as vezes em que resolvera as questões sem ser necessário o envolvimento dos advogados. Então, como fora que, de repente, se tornara numa pessoa desonesta?

Susteve a respiração quando compreendeu quem o deveria ter traído. O Guardião era justo e honesto, um homem bom, conhecido pela sua correcção... mas talvez fosse demasiado crédulo. Um homem manhoso e pouco escrupuloso poderia atirar-lhe areia para os olhos com grande facilidade, em especial se estivesse habituado a manipular o sistema e outras pessoas. Um homem que também estivesse envolvido na lei, que soubesse alterar os factos ou, pelo menos, alterar a maneira como os mesmos eram encarados, podia facilmente confundir o Guardião o suficiente para que este deixasse livre o homem errado.

O seu rosto ficou branco quando compreendeu o erro que cometera. O seu inimigo não era o Guardião! Era o amigo do Guardião, o almoxarife do castelo de Lydford!

Rapidamente, reviu o modo como Simon Puttock podia ter deliberadamente enganado o Guardião. Em primeiro lugar devia ter recebido dinheiro do capitão, porque ninguém alterava deliberadamente o resultado de um julgamento a troco de nada. Sir Hector subornou-o e o almoxarife aceitou o dinheiro para proteger o mercenário, A partir daí incitara as pessoas a modificarem os seus testemunhos fazendo-as pensar que estavam a ajudar a justiça quando tentavam agradá-lo, mentindo... Não era necessário que mentissem. Provavelmente, algumas até pensavam que o almoxarife tinha razão e que elas se tinham enganado. Um homem não educado deixava-se confundir tão facilmente com todo aquele paleio legal...

Sem dúvida que alguns tinham sido subornados para mentirem. Sempre achara que aquele Wat não era de confiança. O mercenário parecia um velho amigável até uma pessoa o fitar atentamente... e só então via o ressentimento que cintilava e ardia nos seus olhos. Claro que o homem conseguia enganar a maioria, mas não alguém que compreendesse até que ponto a alma humana podia ser negra, alguém que aprendera à sua custa que até as pessoas em quem se confiava completamente podiam ser diabólicas. Não era possível confiar em ninguém... excepto nele próprio e na sua adaga.

Que poderia fazer a esse respeito? Os seus olhos pareciam enlouquecidos enquanto considerava a provação em que se encontrava. Era claro que o principal obstáculo à justiça era o almoxarife. Simon Puttock tinha de ser forçado a confessar a cumplicidade com o capitão... ou sofrer.

Então, a sua mente, com uma maravilhosa clareza de visão, focou-se no modo como podia obrigar o dúplice almoxarife a confessar as suas culpas... e sorriu.

 

Peter Clifford observou os dois homens a serem ajudados a descer dos cavalos. Amarrados pelos pulsos, mostravam-se desconfortáveis e mal-humorados. Contudo, embora parecessem irritados, nenhum deles tentou negar a sua culpa. A mula carregada com as três pesadas sacas contava tudo o que havia para contar.

Peter suspirou e regressou ao interior para esperar. Baldwin e Simon tinham chegado um pouco antes e o almoxarife estava lá fora no jardim, com a filha e a mulher, enquanto Baldwin se instalara num cadeirão semelhante a um trono, com os dedos entrelaçados e a cabeça baixa como se estivesse a rezar.

O cavaleiro ouviu o sacerdote a entrar e levantou a cabeça.

- Já chegaram?

- Sim. - Peter atravessou a sala na direcção de outra cadeira. Acabara de se sentar quando os homens de Stapledon entraram com os prisioneiros, Eram seguidos por outros, que pousaram os sacos no chão com um alegre tilintar semelhante ao som de centenas de ferraduras a embater no solo coberto de palha.

Baldwin estudou os dois homens por instantes e a seguir fez um gesto para os sacos.

- E agora, ainda negam o roubo?

Henry levantou os olhos, com uma expressão sombria. Tinha um olho negro e os cabelos empastados na testa, onde fora atingido com um cacete quando tentou fugir. Enfrentou a mirada do Guardião com toda a dignidade que conseguiu arranjar.

- Olhe para nós, senhor. Fomos espancados, amarrados e arrastados até aqui contra a nossa vontade...

- Silêncio! Ainda pensam que se escapam desta?! Foram apanhados com os bens roubados, a tentar vendê-los pelo melhor preço possível. Sinto-me muito tentado a entregar-vos ao capitão para ser ele a fazer justiça, porque me parece que deve estar muito interessado em fazer-vos pagar o preço da vossa deslealdade. Agora, contem-me o que se passou no dia em que roubaram toda esta prata.

Foi naquele instante que Simon apareceu. Entrou com Hugh e os dois homens avançaram silenciosamente ao longo da parede para se irem sentar num banco, um pouco atrás de Baldwin.

Simon ficou surpreendido com a ira na voz do amigo. Já vira frequentemente Baldwin a interrogar pessoas mas nunca num tal estado de fúria, fria e total. De onde se encontrava sentado não podia ver o rosto do cavaleiro, mas era óbvio que os tons gelados reflectiam perfeitamente a sua disposição.

Era raro que Baldwin se sentisse daquele modo e até ele se chocava um pouco com as suas próprias emoções. Contudo, do seu ponto de vista, era precisamente aquele roubo o que desencadeara toda a sequência de assassínios. Tinha vontade de descarregar toda a sua amarga ira, ante tantas mortes sem sentido, sobre os dois homens que tinham dado início à cadeia de acontecimentos.

- Senhor, tudo o que fizemos foi tirar coisas ao nosso capitão porque ele nos devia dinheiro.

- Roubaram as posses de um homem... e mataram uma rapariga, uma jovem inocente que não vos tinha feito qualquer mal...

- Isso é mentira! Exclamou John Smithson, acalorado. - Não lhe fizemos nada! Ela...

- Cala-te, idiota! Queres sentir uma corda de cânhamo em volta do pescoço? - rosnou Henry.

- Cala-te tu! Não vou ser enforcado por aquilo que o Hector fez!

- Conta-nos o que aconteceu. Estou mais que farto das mentiras e insinuações de vocês dois e de outros do bando. Agora já vamos em três mortes e quero saber o que se está a passar.

- Três mortes? - repetiu Henry, num tom mais baixo e com os olhos escancarados de horror. - Não temos nada a ver com isso. - A seguir acrescentou, num tom mais atrevido: - Devem ter acontecido depois de partirmos. Não podem dizer que fomos nós!

- Posso dizer muita coisa! - retorquiu Baldwin com firmeza. - Posso dizer que uma das mortes ocorreu durante o vosso roubo e outra na noite em que saíram da cidade. Não sabemos quando teve lugar o terceiro assassínio, mas é provável que tenha sido quando vocês ainda aqui estavam.

- Quem? Quem foi que morreu?

- Já sabem da morte da Sarra. Na noite em que se foram embora houve uma pobre mendiga chamada Judith que foi assassinada numa ruela... e hoje encontrámos o corpo da Mary do açougueiro.

- Por que iríamos nós matar mulheres que nem sequer conhecíamos?

- Conheciam a Sarra - interveio Simon. - Tentaram violá-la na noite em que chegaram aqui.

- Isso não era uma violação! Pensámos que se tratava apenas de uma rameira de taberna e nunca imaginámos que se ofendesse. De qualquer modo, deixámo-la em paz quando Sir Hector o ordenou.

- Mas queriam-na, não é verdade? - continuou Baldwin. - Mataram-na mais tarde... talvez por ciúmes, ou apenas porque estava lá e vos viu a roubar as pratas.

Smithson lançou uma olhadela ao cúmplice.

- Não - declarou, numa voz fatigada. - Não foi assim que as coisas aconteceram.

Os seus tons tranquilos faziam um grande contraste com os protestos ultrajados de Henry e Simon respirou com um pouco mais de facilidade. Enquanto Baldwin examinara os homens, Simon sentira-se inseguro sobre o modo como ambos iriam reagir, mas a mudança de comportamento de John Smithson anunciava uma mudança nos ventos.

- Não foi de modo nenhum assim... - repetiu, com a cabeça baixa. - Não tivemos nada a ver com o assassínio. Olhe, foi assim... Estivemos aqui há cinco anos, ou perto disso, e ficámos na mesma estalagem durante algum tempo. Eu e o Henry conhecemos o Adam nessa altura e demo-nos bem. Era um homem animado, sempre pronto para uma brincadeira e para se divertir, que possuía uma grande reserva de anedotas. Era agradável sentarmo-nos com ele, à noite, em frente a uma caneca de boa cerveja. Claro que na altura era o aprendiz do seu velho amo, que ainda está estabelecido no matadouro com os outros açougueiros. O Adam conseguiu esta loja há cerca de três ou quatro anos.

- Sabes onde conseguiu o dinheiro para a obter? - interrompeu-o Simon.

- Não, senhor, mas calculo... o Adam nunca teve medo de correr riscos sempre que o dinheiro valia a pena. Estava sempre pronto para um jogo se visse que podia tirar lucro, e suponho que foi assim que arranjou o dinheiro...

- Ou então enganou alguém para que lho desse... - comentou Baldwin.

- Pode ter sido, senhor. De qualquer modo, o Henry e eu estamos com Sir Hector já há muitos anos. Ao princípio correu tudo bem, com bons lucros e a possibilidade de nos governarmos como queríamos, mas recentemente as coisas têm andado mal. Sir Hector tornou-se mais fraco. Costumava ser um homem forte, capaz de vergar quem quer que fosse à sua vontade, mas os tempos mudaram. Durante todo o ano passado não conseguimos um único contrato e o dinheiro tornou-se difícil de arranjar. Foi em finais do ano que decidimos que já não valia a pena continuarmos na Gasconha. Ouvimos dizer que havia boas somas a ganhar em Marrocos, a combater ao lado dos Mouros para proteger as suas terras contra os vizinhos orientais, mas Sir Hector foi contra a ideia e houve outros que o apoiaram. Por isso, decidimos regressar a Inglaterra.

"O descontentamento começou logo que desembarcámos em Londres. Os preços, em Londres, são de enlouquecer. Admira-me que haja pessoas que consigam viver ali, por causa do modo como os cidadãos forçam toda a gente a pertencer a corporações e clubes. De qualquer modo, não tivemos de esperar muito para ouvirmos falar na guerra no norte e no novo exército do Rei, e partimos para nos juntarmos a ele.

"Todavia, até ele nos recusou. Eduardo não podia exigir melhores soldados, com experiência, determinação e treino, mas também não nos quis.

- Talvez - comentou Baldwin - tivesse ouvido dizer que vocês já tinham mudado de lado anteriormente.

John olhou-o com um espanto óbvio.

- Ora, qualquer pessoa o faria quando o seu lado começasse a perder! É apenas uma questão de bom-senso!

Baldwin olhou-o com desagrado mas não fez comentários, pelo que o homem prosseguiu, na defensiva.

- Quando os comissários de Eduardo nos recusaram, as queixas entre os homens chegaram quase ao nível da rebelião. Alguns dos rapazes sugeriram que o capitão devia ser expulso. Era da sua responsabilidade manter os homens unidos e arranjar-nos novos contratos, porque o nosso estilo de vida não serviria para nada se não encontrássemos ninguém que nos quisesse, ninguém que nos pagasse. Nesse caso, mais valia sermos servos nos exércitos de outros. O problema estava em que tínhamos sempre sido considerados como leais a Sir Hector... e nenhum dos outros homens do bando confiava em nós por pensarem que continuávamos do lado dele.

"Tudo se precipitou a alguns quilómetros de Winchester, quando regressávamos à costa. Abordámos o Wat para nos juntarmos a ele. A última coisa que desejávamos era que nos matassem por sermos demasiado leais a Sir Hector. Contudo, Wat recusou-se a ouvir-nos... e negou a existência de qualquer plano para expulsar o capitão. Assim, tornou-se óbvio que já não nos encontrávamos em segurança no bando. Pensámos que seria melhor fugirmos... e que a prata nos iria tornar a vida mais fácil.

- Quando chegámos aqui e voltámos a encontrar o Adam já a ideia da fuga nos parecia ser a melhor. Se ficássemos, acabaríamos por sermos mortos. Se partíssemos, poderíamos encontrar um novo bando, ou qualquer outra coisa. Até podíamos tentar a agricultura e recomeçar tudo de novo.

"Vimos o Adam quando ainda íamos a caminho da cidade. A seguir, naquela tarde, foi ter connosco à estalagem e sugeriu que nos encontrássemos na noite seguinte, quando os homens estivessem mais sossegados. Contudo, não o pudemos ver naquela noite porque Sir Hector estava com disposição para um grande banquete. Como sabem, o nosso capitão saiu na manhã seguinte e mais tarde disse-nos que iria ter outra vez com a tal mulher...

- A Mary do açougueiro - comentou Baldwin.

- Sim, senhor, Tal como disse, era a Mary, a mulher do Adam. Ficámos horrorizados.

- E avisaram o Adam?

- Deus do céu, não! - A exclamação foi demasiado enfática para ser falsa. - Não conhecem o temperamento do homem? Se o fizéssemos, o Adam teria seguido directamente para lá com um cacete! Não, nem sequer o mencionámos.

- No entanto, suponho que o vosso amo ficou satisfeito quando soube que vocês iriam beber com o marido da amante dele?

John mordeu os lábios e exibiu uma expressão envergonhada.

- Pediu-nos para o afastarmos durante um bocado,., e disse que seríamos bem recompensados se o Adam sofresse um acidente... mas recusámos.

Henry interveio naquele momento.

- Não estávamos dispostos a matar um homem por causa da paixão de outro.

- Pois, claro que não... - disse Baldwin, pensativo - em especial depois de terem imaginado uma maneira de ficarem com todo o dinheiro de Sir Hector sem se arriscarem à corda.,.

- Nunca nos arriscámos à corda! - declarou Henry com paixão. - Olhe, saímos com o Adam e conversámos. A princípio, ele recusou-se a considerar a ideia. Cavalgámos para a velha estalagem na direcção de Sanford e passámos lá a maior parte da noite a conversar a respeito de coisas. Foi aí que expusemos a ideia de tirarmos as pratas de Sir Hector, mas o Adam não quis ouvir falar no assunto. Deixou-nos para regressar a casa ao princípio da manhã, mas depois mudou de ideias, foi ao nosso encontro e concordámos que...

- Mudou de ideias? - interrompeu-o Baldwin.

- Sim, senhor. Saiu da estalagem antes de nós para voltar à cidade. Contudo, voltou a aparecer à pressa quando nos encontrávamos no cruzamento da estrada de Barastaple. Disse que tinha pensado no assunto e que fora louco em não aceitar. Afirmou que era muito raro que surgisse a oportunidade de lançar a mão a tanto dinheiro de uma só vez e que não podia desperdiçar a oportunidade.

- Compreendo. Continua.

- Foi fácil - afirmou John. - Sir Hector saiu logo de manhã e regressou à tarde, para voltar a sair algum tempo depois. O nosso único receio era o Wat, que talvez gostasse de nos ver chicoteados, mas Sir Hector mandara-o buscar uma túnica nova. Sabíamos que tínhamos muito tempo sem interrupções - tudo o que precisávamos de fazer era certificar-nos que estaríamos fora dali antes que o Wat fosse buscar o sal para a refeição do Hector -, pelo que fomos ao quarto do capitão fingindo que o queríamos ver. Sabíamos que não estava lá mas isso deu-nos tempo para abrirmos as portadas que dão para o pátio. A seguir saímos e eu mantive-me de vigia enquanto o Henry entrava pela janela. Fechou as portadas e eu dei a volta para a frente da estalagem, onde ele me começou a passar as coisas.

Henry interveio num tom pesado.

- O John fingiu que estava a ajudar o Adam. O açougueiro mandara o aprendiz para dentro, para tratar das carnes no interior da loja, Passei as pratas para o John e ele enfiou-as numa saca, na traseira da carroça do Adam. Este observava a rua principal para o lado da colina, e o John vigiava-a na outra direcção.

- Porque passaram pela charada de entrarem para abrirem as portadas, para depois voltarem a sair e treparem à janela pelo pátio? Para que foi isso, se já estavam lá dentro? - perguntou Simon.

Henry olhou-o com espanto.

- Entrámos para ver o capitão, fingindo que pensávamos que estivesse no quarto. Se demorássemos muito, quanto tempo se passaria até que um dos outros fosse ver o que estávamos a fazer? Foi por isso que entrámos para abrirmos as portadas. Desse modo podíamos entrar pelo pátio e ficar no quarto o tempo que fosse preciso.

- Os homens que estavam no salão não desconfiaram? - inquiriu Baldwin.

- Bom, nós não falamos muito com eles. Não, não disseram nada. Alguém troçou quando saímos do quarto, como se achasse divertido andarmos à procura do capitão. Mais tarde, quando a prata já estava toda cá fora, voltámos a fazer o mesmo. O John deu a volta e bateu na madeira da janela quando não havia ninguém no pátio, e eu saí. A seguir entrámos novamente no salão fingindo que não sabíamos se Sir Hector já tinha regressado e voltámos a fechar as portadas.

- Não recearam que passasse alguém pela rua e vos visse durante esse exercício?

John Smithson sorriu astutamente.

- Tínhamos pensado nisso. O Adam esventrara algumas vitelas naquela manhã e deixou as entranhas espalhadas por todo o lado, como cordas, no pavimento. Ninguém se aproximou por causa do cheiro daquelas coisas a apodrecerem ao sol durante cinco horas... e até os cavalos passavam pelo outro lado da rua!

- Nesse caso, retiraram toda a prata?

- Sim... e depois o Adam levou a carroça de volta até ao seu telheiro e escondeu-a no sótão do feno. Isso foi quando o Henry saiu do quarto e voltámos a entrar pelo salão a fim de fecharmos a janela.

- A rapariga... - murmurou Simon. - Então e a rapariga? John olhou para Henry, que empalidecera e tinha uma fina película de suor a cobrir-lhe as feições.

- Juro... - declarou, numa voz que parecia um grasnido - que não a matei.

- Mas derrubaram-na? E meteram-na na arca? - insistiu Simon, levantando-se e colocando-se ao lado de Baldwin. - Porquê?

- Quando trepei lá para dentro, pela janela, o quarto estava vazio. A seguir ouvi-a a aproximar-se. Chamava-o e parecia muito feliz. Só tive tempo para me esconder por trás da porta... A rapariga entrou e derrubei-a com o cacete. Foi-se abaixo como um esquilo abatido de uma árvore pela pedra de uma fisga. Naquela altura, o John estava à janela e não sei se ela o viu antes de cair. Amarrei-a e atirei-a para dentro da arca mais próxima. Foi tudo... e posso jurá-lo pela Bíblia!

- Podes vir a ter que o fazer... - afirmou Baldwin baixinho - e na frente de um bispo.

- É a verdade! - declarou Henry, endireitando os ombros. Simon olhou para John e viu-o a contrair os lábios.

- Então e tu, John?

- Eu?

- Alguém regressou para junto do corpo e apunhalou a Sarra por duas vezes. Quando a tampa se levantou deve ter pensado que se tratava de alguém que a ia libertar... e em vez disso viu a pessoa a atacá-la com uma faca. Nem sequer pôde gritar porque estava amordaçada. Foste tu?

- Já disse que estava lá fora, na rua.

- Sim, mas o Henry acabou de salientar que te encontravas na janela quando ela entrou e que pode ter-te visto.

- Não me parece. Eu...

- Estavas preparado para aceitar esse risco? Se ela te tivesse visto, podia ir dizer ao amo o que tinhas feito, não achas? Não podias permitir que continuasse viva. Era uma testemunha do vosso roubo.

John ficou a olhar para Henry.

- Terei lá estado sozinho nem que fosse por um instante? - perguntou.

- Não. - A voz do outro não admitia dúvidas. - Nenhum de nós lá esteve sozinho. Mantivemo-nos sempre juntos durante todo o tempo.

- Então como? E na altura em que tu, Henry, te encontravas no interior e o John estava lá fora? Quando acabaste de passar a prata e voltaste à estalagem, o John podia ter entrado rapidamente e morto a rapariga, não é verdade?

- Não, senhor - afirmou Henry. - Cheguei a pensar que o tivesse feito, mas não podia. Tranquei as portadas quando saí do quarto. As únicas entradas eram a janela das traseiras ou a porta. Ninguém lá pode ter entrado pela frente.

Baldwin como que despertou.

- Suponho que estás a compreender a dificuldade - comentou. - Confessam que derrubaram a rapariga e que a meteram na arca... e agora esperam que acreditemos que nada tiveram a ver com a sua morte. Ninguém, além de vocês os dois, sabia que ela lá estava.

- Havia um homem que sabia... - murmurou Henry e Baldwin grunhiu quando compreendeu de quem se tratava.

- Claro! - exclamou.

- Estava lá quando informei o John a respeito da rapariga e ficou aqui, na cidade, depois de partirmos. Não sei por que razão pensam que as outras mulheres foram assassinadas... mas estou disposto a apostar que foi ele quem as matou a todas.

Simon enfrentou o olhar de Baldwin com uma expressão perplexa.

- Adam... o açougueiro?

- Era o único - respondeu Baldwin lentamente enquanto perguntava a si mesmo por que razão nunca pensara seriamente naquele homem.

- Mas... por que iria ele matá-las a todas?!

- Porque sabia que cada uma daquelas mulheres tinha uma ligação com Sir Hector. Estavam todas associadas a ele de uma ou outra maneira: a serviçal, Sarra, a Judith, porque também servira na estalagem anos antes, e a Mary porque foi amante dele. Talvez a tivesse morto apenas por ciúmes e mais nada. Já estava morta havia alguns dias e suponho que a assassinou logo que descobriu a sua infidelidade. Soube da Sarra pelo Henry e apunhalou-a...

- Senhor, não pode ter sido assim... - disse Henry.

- Por que não?

- Porque não podia ter entrado no quarto. Nós fizemo-lo porque éramos conhecidos dos outros. Um estranho como ele teria sido detido no salão.

- A Sarra entrou - disse Simon - e é óbvio que não voltou a sair. Os guardas não a detiveram, nem a procuraram quando não a viram aparecer.

- Isso é diferente! Todos sabiam que ela dormiu com Sir Hector. Devem ter pressuposto que o ia esperar lá dentro, no quarto. O Adam nunca conseguiria passar.

- Creio que estás a esquecer-te de uma coisa - interveio Baldwin languidamente enquanto bebericava da sua taça de vinho com água. - Saíste pela janela e depois voltaste lá dentro para a fechar, para fazeres crer que ninguém poderia ter entrado por ali, não é verdade? Já tinhas informado o Adam a respeito da rapariga. Então... creio que se apercebeu de que tinha uma magnífica oportunidade. Disseste-lhe da rapariga... e foste-te embora para entrares no quarto através do salão. Entretanto, trepou pela janela que dá para o pátio, abriu a arca, apunhalou a Sarra, fechou a arca e saiu antes que tivesses tempo de dar a volta pelo salão.

- Pode tê-lo feito, Henry - disse Smithson com tons horrorizados.

- Pelo menos, bate certo com os factos que conhecemos - declarou Baldwin. - No entanto, ainda temos outra coisa. O homem que quiseram que fosse capturado... Que aconteceu ao Cole?

Os olhos de Smithson desviaram-se nervosamente e Henry soltou um suspiro. Quando falou foi com uma espécie de tom de derrota, como se tivesse finalmente aceite que estava condenado e que mais valia confessar tudo, na esperança de um pouco de misericórdia.

- Fui eu... Andou a fazer perguntas a nosso respeito durante todo o dia, tentando saber se lhe tínhamos morto o irmão. Não tínhamos e nem sequer, levámo-lo para o sul e deixámo-lo amarrado a uma árvore. Mais tarde, eu e o John fomos a pé até lá. O John foi buscar um par de peças de prata do nosso saque para deixarmos junto dele... e esperámos. Não recuperou a consciência enquanto lá estivemos.

Baldwin pousou o queixo no punho e olhou de um para o outro.

- Compreendo. A vossa franqueza dá-vos algum crédito, suponho. Agora, pelo menos, já sabemos que o Cole pode ser liberto.

- Sim, e o Adam deve ser apanhado imediatamente - concordou Simon.

- Tenham cuidado - interveio Henry. - Foi sempre um homem duro mas agora, desde que sabe o que a mulher andou a fazer, creio que deve estar mais do que furioso...

- Vem, Simon - disse Baldwin, levantando-se. - Vamos fazer uma visita ao açougueiro e veremos o que tem para nos dizer.

Dirigiram-se para a porta com Hugh e Edgar a reboque enquanto os homens de Stapledon permaneciam com os dois prisioneiros. Baldwin preparava-se para sair quando ouviu o grito.

 

Havia semanas que Margaret não se sentia tão feliz. Simon parecia estar a recuperar do choque por causa da morte do pobre Peterkin e o regresso a Crediton depois de tantos meses no árido território das charnecas parecia ter-lhe feito bem. Esperava que pelo menos uma parte das cores que lhe tinham regressado ao rosto não se devessem à excitação de ter outro assassínio, ou toda uma série de mortes, para investigar. Era mais reconfortante ignorar essa faceta da sua natureza, embora tivesse plena consciência de até que ponto gostava de se envolver naqueles inquéritos. Quase parecia um homem diferente quando havia um caso grave para ser julgado ou era preciso fazer justiça.

Na sua mente não existiam dúvidas: Simon melhorara, Via-o na maneira como voltara a sorrir para ela, coisa que deixara de fazer após a morte de Peterkin. De certo modo, também sabia que parte daquilo se devia ao rapaz.

Rollo e Edith estavam a brincar com as cabeças tão juntas que pareciam uma única criatura. De vez em quando o garoto espreitava por cima do ombro para se certificar de que Roger não o abandonara. As duas crianças estavam sentadas num tronco baixo que tinha sido cortado de um carvalho e que aguardava ser transformado em lenha para a lareira, e pareciam-se com dois pequenos anjos. O Sol brilhava através dos seus cabelos e punha-os a flamejar como halos avermelhados com franjas iridescentes. Só lhes faltavam as asas.

Pensou que o rapaz, pobre como era, iria ter muito poucas possibilidades ao longo da vida. Era demasiado frequente que os órfãos como ele não pudessem ter grandes esperanças e tivessem de se apoiar na caridade da paróquia para sobreviverem. Até as necessidades mais básicas da vida eram normalmente recusadas a um rapaz sem família. As pessoas concluíam, e com alguma razão, que o custo representado por uma boca extra não era compensado por uma possível recompensa posterior. Os que se podiam permitir adoptar uma criança abandonada preferiam dar dinheiro a instituições que trabalhavam para o bem comum em vez de o gastarem em cuidados com uma única pessoa que, de qualquer modo e muito provavelmente, acabaria por morrer. Para que servia satisfazer as necessidades mundanas de uma única criança quando o mesmo dinheiro era mais útil numa igreja ou abadia, onde os monges rezavam orações que protegiam as almas de centenas ou milhares?

Margaret meditava sobre este problema enquanto observava as crianças a tecerem colares de margaridas, com Edith a soltar risadinhas para si mesma enquanto o rapaz, muito sério, entrelaçava os caules uns nos outros. As crianças deviam ser protegidas e cuidadas, tal como qualquer outro bem precioso, mas o seu valor era em geral ignorado. Quando a família de um servo da gleba sofria de falta de comida era frequente que as crianças tivessem de passar sem ela porque o pai necessitava do sustento para poder trabalhar a terra e produzir alimentos para o futuro. Por vezes as mães quase morriam de fome num esforço para manterem os filhos vivos, mas isso não era bem-visto. Se as crianças não podiam sobreviver então era essa a vontade de Deus e a mãe devia manter-se em forma para poder tratar das outras e para poder produzir mais. Não fazia sentido que se matasse €0ara cuidar dos que não eram produtivos.

Margaret sabia que se tratava de uma posição sensata, mas a mesma não lhe agradava.

Conseguiam produzir fortes manadas e rebanhos de vacas e ovelhas, os cães e gatos multiplicavam-se com facilidade, mas debatiam-se muitas vezes com uma fraqueza fundamental: a falta de filhos varões para darem seguimento ao nome da família.

Rollo era um rapazinho agradável e Edith considerava-o como o parceiro de brincadeiras ideal, mas Margaret não o podia aceitar na família. Estaria sempre à espera que o rapaz satisfizesse os seus próprios exigentes padrões. Se não o conseguisse, era muito provável que acabasse por perder a paciência e lhe recordasse que não passava de um órfão. De qualquer modo, se mais tarde, tal como esperava, fosse capaz de conseguir conceber um filho para Simon, o garoto sentir-se-ia novamente abandonado. O cuco seria suplantado.

- Posso fazer-lhe companhia?

- Claro! - Margaret sorriu e deu uma palmadinha no banco a seu lado. Stapledon deixou-se cair no tronco com gratidão e estudou as crianças com interesse.

- Parecem dar-se muito bem um com o outro - comentou.

- Sim... e para a Edith é bom ter uma criança da sua idade com quem brincar. Creio que, anteriormente, andava muito aborrecida.

- Como vai ele?

- É óbvio que ainda não recuperou, e também não esperava que o fizesse, mas parece suficientemente calmo desde que esteja na companhia de alguém. Os medos só regressam quando volta a sentir-se sozinho.

- Pois é... - Stapledon fez uma careta. - Estremeço só de pensar no que viu. Deve ter sido o suficiente para destruir a mente de muitos...

- É jovem e isso ajuda. As crianças têm uma resistência que não se encontra em muitos adultos - respondeu Margaret, indulgente. - Talvez... mas não posso deixar de me interrogar sobre qual irá ser o seu futuro...

Margaret sentiu um tremor de nervosismo na boca do estômago. Não se atreveu a olhar para o homem, por medo que os olhos revelassem os seus pensamentos íntimos.

- Hum... Também me interrogo...

- Suponho que o melhor seria que uma família tomasse conta dele.

- Sim... pelo menos de um ponto de vista ideal...

- Contudo, teria de ser uma família apropriada. É difícil encontrar pais capazes...

- Sim, muito difícil...

- Não que nesta cidade não existam pessoas merecedoras. Muito merecedoras, na verdade... mas podia ser feita tanta coisa pelo garoto...

- Hum...

- Depois, temos os aspectos financeiros. Imagino que em Crediton sejam poucos os que se podem permitir uma boca extra...

Margaret acenou, sombria, a ganhar forças para rejeitar a sugestão.

- Então, diga-me, Margaret, o que pensa desta ideia? - Staple-don virou-se para ela com a testa franzida pelos pensamentos.

Foi nesse momento que o bordão o atingiu e que Stapledon caiu aos pés dela.

A mão de Baldwin já desembainhava a espada quando o grito ainda estremecia e morria no ar do fim da tarde. Os seus olhos desviaram-se para Simon e o almoxarife empurrou-o para o lado quando começou a correr para o jardim.

- Foi a Margaret!

Ele e Hugh precipitaram-se para o jardim. Simon sentiu o coração a martelar quando a espada se libertou da bainha e emitiu um brilho de aço. A mulher precisava dele e não iria desapontá-la. Não pela segunda vez. Evitara-a durante semanas quando ela necessitara dele. Tentara fugir à própria tristeza excluindo-a e evitando que Margaret o recordasse da sua perda. A vergonha pelo seu comportamento ao não ligar à mulher que dependia apenas dele para viver - quando tudo o que desejava era apoiá-lo e oferecer-lhe conforto -, ardia-lhe nas veias como chumbo derretido.

Ouviu-se outro grito agudo, de medo, logo seguido por um lamento guinchado de terror absoluto e gelado, ao ponto de Simon sentir o escalpe a contrair-se, numa reacção. Agarrou no punho da espada e seguiu à frente ao longo do curto lanço de escadas até ao jardim das plantas aromáticas, para lá da treliça onde cresciam as roseiras e através do relvado com vista para o prado.

Foi aí que encontraram as crianças. Stapledon jazia caído ao lado do tronco e Baldwin correu para junto dele. Olhou para Simon com o alívio estampado no rosto. O bispo estava vivo.

Simon encaminhou-se para Edith. A criança levantou-se, chocada, olhou para o companheiro de brincadeiras e ficou muito contente por poder esconder a cara na túnica do pai para não ter de ver o choro do rapaz.

Rollo permanecia de pé, com os olhos esbugalhados, a boca escancarada, e com o frágil corpo a emitir grito após grito. Estava incapaz de falar e não tinha consciência das pessoas que o rodeavam. Todo o seu ser era um único longo e solitário lamento de perda e desespero. Primeiro, o homem matou a sua mãe e agora a senhora bondosa que tratou dele também foi levada. Roger mantinha-se por perto, a contorcer as mãos, sem saber como acalmar a criança.

Simon passou a filha a Hugh, aproximou-se do rapazinho, apertou-o com força nos braços e tentou controlar-lhe o choro com a força do seu próprio corpo, como se desse modo pudesse transmitir-lhe um pouco da sua própria autocontenção. A pouco e pouco, os soluços foram enfraquecendo até ao momento em que o rapaz, a tremer e a gemer de infelicidade, permitiu que o jovem sacerdote o levasse dali.

Todavia, Simon não sentiu a angústia a dissipar-se. A mulher estava ali e agora desaparecera. Stapledon, que gemia para si mesmo enquanto tentou levantar-se, fora derrubado com tão pouca piedade como seria de esperar de um homem a esmagar uma mosca, e não tinha sido tratado com o respeito devido a um homem de Deus.

- Roger, em nome de Deus, que se passou aqui?

- Almoxarife, eu...

- Onde está a Margaret? Estava aqui, não estava? Para onde foi?

- Almoxarife, foi o açougueiro, o Adam! Bateu no bispo e levou a sua mulher...

- Para onde, homem? Para onde é que ele foi? O jovem sacerdote levantou a mão e apontou.

- Para além, na direcção da igreja. Vi-o levá-la para ali, para a igreja.

- Paizinho!

Simon ouviu o terror na voz da filha.

- Vem cá, Edith. Está tudo bem...

A rapariga precipitou-se para os seus braços e Simon apertou-a por instantes, mas a seguir pousou-a no chão.

- Ficas aqui, meu amor, está bem? Eu vou buscar a mamã e viremos ter contigo.

Simon lançou-se numa corrida. Não tinha consciência da presença dos outros, do modo como Hugh colocara Edith nos braços do confuso Peter Clifford antes de começar a correr atrás dele, nem de Baldwin se ter apressado a segui-lo. Só tinha consciência de que Margaret corria um perigo mortal nas garras de um assassino que parecia ser capaz de matar sem piedade e sem qualquer motivo. Simon estava decidido a salvá-la custasse o que custasse.

Percorreu o jardim a correr, atravessou o salão de Peter e seguiu pelo corredor com as botas a bater com força nas lajes do pavimento. Se Adam ia para a igreja, então aquele era o caminho mais curto. Precipitou-se para o pátio, assustou um cavalo e obrigou-o a recuar de tal modo que o moço de estrebaria praguejou enquanto tentava dominar o animal. Deslizou sobre as pedras do pátio exterior, atravessou a relva do velho cemitério e seguiu na direcção dos andaimes que rodeavam a nova construção como uma vedação irregular.

Tinha uma vaga noção de que havia figuras a correrem por trás dele, mas a sua concentração estava posta no edifício de pedra vermelha que tinha pela frente. Saltou por cima da turfa e do entulho das obras até ao momento em que um par de figuras no topo dos muros lhe chamou a atenção e o fez parar de repente.

Reconheceu imediatamente uma delas. Margaret subia cautelosamente uma das escadas mais altas com os cabelos dourados tingidos de rosado pelo pôr do Sol a penderem-lhe para as costas, e com a touca pendurada por um único fio. Por trás dela, perfeitamente à-vontade sobre as estreitas tábuas, com passadas tão seguras como um gato, seguia o açougueiro com uma longa adaga numa das mãos.

Iria obrigá-los a arrependerem-se da sua corrupção. A partir daquele momento iriam saber que, se havia um homem a quem não conseguiam enganar, então esse homem era ele. Faria com que compreendessem que não podiam desviar-se das suas obrigações. Tinham de prender o capitão dos mercenários. O homem era obviamente culpado. Adam certificara-se de que as provas apontavam para ele e era impossível que não as tivessem descoberto.

Deteve-se no topo da escada mais alta, a ofegar. Era estranho como sentia tão pouco medo. Em geral ficava nervoso quando tinha de subir a um pequeno banco mas naquele dia estava ali, no cimo de um alto andaime, de onde a vista abarcava, tanto quanto soubesse, todo o condado. Para oeste ficavam as colinas que ondulavam na direcção de Barnsdale e do mar, enquanto a estrada, para leste, desaparecia a caminho de Exeter.

Suspirou de contentamento. Era maravilhoso. Maravilhoso! Sentia-se sobre-humano, capaz de tudo. A adaga que tinha na mão era tão leve como a mais pura das penugens, os pés mantinham-se firmes nas estreitas tábuas de que os construtores se serviam e tinha a mente perfeitamente clara. Estava mais racional e mais consciente de si mesmo do que jamais estivera.

Um trabalhador apareceu no andaime vindo do outro lado da construção e parou, de boca aberta, ao ver os dois.

- Que estão aqui a fazer? - inquiriu, mas a seguir reparou na adaga, Fechou a boca de repente, deu meia volta e fugiu.

Adam sorriu para a cativa, amarrou-lhe as mãos com força e a seguir fez um gesto vago, com a lâmina, na direcção dos homens que estavam lá em baixo.

- Sabes quem são? - perguntou. - Eles sabem quem eu sou, mas até agora só conheci um par deles. É curioso como as vidas se podem entrelaçar. As deles e a minha... e tudo por causa de um homem que estava disposto a roubar-me a mulher. Não havia qualquer razão para que o fizesse e tomou-a apenas porque o podia fazer. E ela, para que o queria? Não resistiu, sabes, limitou-se a aceitá-lo na cama - a minha cama! -, quando pensou que eu estava fora. No entanto, apanhei-os de surpresa! - Soltou uma risadinha. - Oh, sim, apanhei-os de surpresa!

Margaret olhou-o e conseguiu balbuciar:

- Mataste-os...?

- Se os matei? Não, isso seria estúpido. Se o fizesse teria a minha vingança... mas onde estaria a justiça? Não, quis que ele sofresse por aquilo que fez. Podia tê-lo apunhalado logo ali, quando jazia na minha cama, mas não teria de sofrer as expectativas da agonia, Seria uma morte rápida e fácil e eu não queria isso para ele, para o homem que me destruiu e à minha Mary. Pobre Mary... - Interrompeu-se, fez um trejeito para a longa adaga e prosseguiu com uma tranquilidade contemplativa. - Ela era a minha vida, era toda a minha vida. Era tudo o que eu desejava. Teria feito tudo para que fosse feliz, mas no entanto traiu-me. Dei-lhe presentes e brinquedos, mas foi para os braços de outro homem. Nunca sugeriu que eu falhara, nunca houve uma troca de palavras zangadas entre nós... mas preferiu aquele mercenário.

Lá em baixo, Margaret via o pequeno grupo de homens a aumentar à medida que outros se lhe juntavam, todos a apontar para ela e a conversar. Conseguia distinguir o marido e imaginou o seu horror ao ponto de se convencer que lhe distinguia a expressão no rosto. Ficaria aterrorizado se também a perdesse. A morte de Peterkin fora suficientemente má, pensou, mas se também a perdesse era muito provável que a mente de Simon ficasse desequilibrada. Queria beijá-lo, queria sorrir mais uma vez para os seus olhos cinzentos tão sérios e abraçá-lo... e perguntou a si mesma se alguma vez o poderia voltar a fazer.

- Lá em baixo, todos eles pensam que enlouqueci. Pensam que matei as mulheres sem nenhuma razão. Que sabem eles do amor e da perda? - troçou, gesticulando. A seguir gritou enquanto agitava a lâmina de um modo escarninho;

- Para onde estão vocês a olhar? Venham cá acima se quiserem falar, cobardes! Eu não sou corrupto. Eu não sou falso ou manhoso. Eu não sou um funcionário mentiroso a encher os próprios bolsos à custa da justiça.

Margaret permaneceu em silêncio, a olhar para baixo, para o marido, com uma estranha sensação de segurança. Tinha as mãos amarradas e não podia tentar fugir daquele homem pequeno e estranho, com o seu paleio aterrador, inconsequente mas mortífero. Não valia a pena tentar escapar uma vez que de certeza cairia logo que se libertasse das mãos dele. As tábuas, ali, no nível mais alto dos andaimes, não passavam de pequenas tiras arrancadas a troncos com a ajuda de cunhas cravadas ao correr do veio da madeira, que tinham ficado contorcidas quando o Sol as secara. Algumas tinham sido amarradas aos andaimes mas eram muitas as que estavam soltas. Era óbvio que os operários se baseavam na sua própria habilidade e na firmeza dos pés para se manterem em segurança.

Deixou-se deslizar para baixo até ficar agachada sobre uma tábua, com as mãos agarradas a um dos barrotes verticais do andaime, e começou a rezar. Só lamentava uma coisa: a de não ter tido uma última oportunidade - se morresse ali, naquela tarde -, para dizer ao marido até que ponto o amava.

Baldwin pousou a mão no ombro de Simon. - Meu amigo, vem daí. Já não há nada que possas fazer. Por que não...

- Deixa-me, Baldwin. De certeza que não queres que abandone a minha mulher quando ainda há uma hipótese de poder fazer qualquer coisa!

- Seria melhor que te fosses embora.

- Porquê? - Simon sacudiu a mão do ombro mas virou-se. No seu rosto não havia zanga mas apenas tristeza e ansiedade. - Se a Margaret tiver de morrer... queres poupar-me à visão? Então e ela? Achas que se sentiria mais feliz se me visse a ir embora... ou será melhor que saiba que estou aqui e que farei tudo o que estiver ao meu alcance para a salvar? Pode ser que não queira que a veja morrer... mas ficaria devastada se me visse desaparecer. Ver-me a fugir quando talvez ainda a possa ajudar seria a última indignidade.

Baldwin sentiu uma pouco familiar sensação de humidade nos olhos, pousou o punho no ombro do amigo sem proferir uma palavra e acenou.

- Entretanto - murmurou Simon - diz a alguém para mandar sair daqui todos os trabalhadores. A última coisa que queremos é que aquele louco se assuste e acabe por se matar e à Meg.

- Senhor? - Hugh aproximou-se e parou junto deles, com os olhos semicerrados para as figuras lá no alto. Tinha uma voz calma e tranquila. - Há um segundo conjunto de escadas do outro lado da igreja. Creio que consigo subir até lá.

- Tens a certeza? - O rosto de Simon revelou a sua esperança desesperada e o servo acenou uma confirmação.

Desde que Simon o salvara do tédio de uma vida como criador de ovelhas nos limites nordeste das charnecas, para os lados de Drewsteignton, que Hugh se devotara ao seu amo. Quando este casara, Hugh aprendera rapidamente a adorar Margaret e os seus sentimentos por Edith e por Peterkin tinham andado perto da adulação. Para ele, era impossível ficar ali parado a ver a mulher a morrer e depois, como inevitavelmente iria aconteceria, a assistir à destruição do seu amo. A ideia era inimaginável.

- Eu consigo - declarou, confiante.

- É uma longa subida - comentou Baldwin, inseguro. Sabia demasiado bem que Hugh tinha o terror das alturas e só recentemente dominara o receio de se encontrar num sítio tão alto como o dorso de um cavalo.

- Eu consigo - repetiu Hugh, teimosamente.

- Muito bem - disse Simon. - Mostra-me onde é. Eu...

- Simon, não! - interrompeu-o Baldwin. Tens de ficar aqui e falar com o Adam. Tenta distraí-lo para que não dê pela nossa aproximação.

- Senhor, Sir Baldwin tem razão - acrescentou Hugh num tom urgente. Tem de estar aqui, onde a sua mulher o possa ver. Tal como disse, como se iria ela sentir se o visse a ir embora?

- E como irei viver comigo mesmo se não tentar? - retorquiu Simon, mas foi interrompido pelo açougueiro, que começou a agitar os braços e a berrar. Simon olhou, quase sem lhe prestar atenção porque estava a ver a mulher a deslizar para se sentar, exausta pelo esforço e pelo medo.

- Almoxarife? Está a ouvir-me, não está? Como se sente ante a possibilidade de a sua mulher ser morta, heim? Quer vê-la aí em baixo imediatamente? Devo empurrá-la, para a fazer cair? Ou devo começar por a apunhalar, para que já esteja morta antes de embater no chão? O que prefere?

- Baldwin... - murmurou Simon - tenho de ir lá acima...

- Não podes. Irei no teu lugar. Não, Simon, não discutas. Tens de ficar aqui. É claro que o homem te conhece e está a tentar chamar-te a atenção por qualquer razão. Escuta-o... Está louco mas não é estúpido. Dará por isso se desapareceres nem que seja por um momento... e nesse caso o que acontecerá à Margaret? Isto não é uma questão de honra, tal como discutir o direito de passagem com um lobo raivoso também não o é. São situações que exigem acções drásticas. Com um lobo, matamos ou morremos... Aqui, temos de matar o açougueiro antes que possa fazer mal à Margaret... Simon, tens de ficar aqui em baixo! Conserva-o entretido e a falar. Hugh, tu vens comigo - ordenou o cavaleiro.

Avançou na direcção da estrada, seguido por Hugh e Edgar. Uma vez na estrada, continuaram para oeste por pouco tempo, até ficarem ocultos por uma alta sebe.

- Agora, Hugh, indica-nos o caminho... e depressa!

 

Margaret estremeceu, mas não por causa de qualquer inclemência do tempo uma vez que sentia o calor do sol do fim da tarde sobre o ombro esquerdo. Na sua frente havia uma alta colina, porque Crediton e a sua igreja jaziam num vale, e tudo o que podia ver eram os topos das árvores a treparem pelas vertentes e a passarem para o outro lado do cume. A estação já ia avançada, pelo que as folhas estavam coloridas de amarelo, castanho ou vermelho, a que o tom dourado do Sol poente tingia com um tom rosado. Cada uma daquelas plantas, individualmente, parecia brilhar com uma glória interior e Margaret descobriu que se deixara maravilhar perante uma tal beleza. Era como se tivesse passado toda a sua vida sem que anteriormente reparasse naquelas coisas, pelo que ver semelhantes cores pela primeira vez levou-a a aperceber-se de quão preciosas eram visões tão simples como aquelas. O rico encanto da paisagem tocou nas cordas do seu coração e o soluço que soltou surpreendeu-a, por ter surgido tão inesperadamente como um espirro repentino.

Endireitou os ombros e olhou para outro lado. Recusava-se a permitir que o açougueiro pensasse que estava assustada.

Todavia, Adam não lhe prestava atenção. Estava inclinado sobre o parapeito baixo, a olhar para o solo.

- Pensou que me conseguia enganar, não é verdade, almoxarife? Pensou que me atirava areia para os olhos. Contudo, não sou um cretino, vejo o que se passa na frente do meu nariz e percebi que recebeu dinheiro do mercenário para evitar que o prendessem!

- Não recebi nenhum dinheiro! - protestou o espantado Simon, mas Adam rosnou de incredulidade.

- Nenhum dinheiro? Nenhum suborno? O senhor, um funcionário, recusou dinheiro para obstruir a justiça? Deve ser um homem muito honrado e virtuoso, almoxarife, um perfeito cavalheiro! Espera que acredite nisso, quando se recusou a prendê-lo não obstante todas as provas? É culpado de adultério, de assassínio... e todas as mulheres que morreram estavam associadas a ele, não é verdade? Quem mais poderia ser o suspeito?

Simon olhava para cima, para o homem. A pequena face rotunda que o almoxarife anteriormente considerara de um bom humor quase cómico estava agora tensa e as feições contraíam-se de um modo incontrolável.

- Por favor, Deus, escuta as minhas orações e permite que Baldwin chegue junto dele antes que possa fazer algum mal à Meg... - murmurou.

O muro rodeava o perímetro da igreja e dava para um caminho nas traseiras. Foi aí que os três homens fizeram uma pausa. Ouviam os gritos vindos da frente mas ali atrás não havia um único som. Baldwin esboçou um aceno curto e começou a correr. Passaram por baixo de algumas enormes árvores e entraram no pátio por trás da igreja.

Ali, os maciços blocos de pedra vermelha jaziam em pilhas ordenadas, enquanto os fragmentos e lascas espalhados por todo o lado, tão liberalmente como o cascalho das charnecas, estalava debaixo das botas. Havia ferramentas espalhadas por todo o lado: maços e cinzéis, serras e brocas, baldes e cordas, bigornas e braseiras, tudo coisas abandonadas nos locais onde os surpreendidos trabalhadores as tinham largado.

A primeira escada ficava para a esquerda. Baldwin olhou-a com apreensão. Pareceu-lhe forte e pesada, construída para suportar o peso de muitos homens e das suas cargas. Os sólidos degraus quase não mostravam sinais de desgaste, pelo que o cavaleiro concluiu que a escada deveria ser de fabrico recente. Contudo, quando os seus olhos a acompanharam até ao alto, viu-se forçado a engolir em seco. Era uma grande subida...

Dominou o medo à força e avançou cautelosamente para a base da escada. Parou com as mãos pousadas nos apoios laterais, ganhou coragem e começou a subir.

O primeiro quarto da escada não constituiu nenhum problema. Recusou-se a olhar para baixo, manteve os olhos firmemente postos na parede em frente e descobriu que o esforço mecânico de levantar uma bota, pousá-la num degrau e repetir a operação para o outro pé era relativamente simples e indolor. Depois, contudo, aproximou-se do meio das escadas e as coisas pioraram muito.

A culpa era das pancadas rítmicas, pensou enquanto se agarrava aos paus oscilantes com os olhos escancarados de horror. Sentia-se como se se estivesse a deslocar metros de cada vez, primeiro para o lado da parede e depois para longe dela, e tudo aquilo com uma força que o convenceu que a extremidade da escada deveria ter-se solto do andaime e se afastava do mesmo... e que iria prendê-los por baixo dos degraus, a ele e aos outros dois, à medida que caía.

- O que foi? - perguntou-lhe Edgar num sussurro e foi com um esforço supremo que conseguiu erguer um pé com todo o cuidado para o pousar no degrau seguinte. Não se atrevia a olhar para o servo nem a falar, não fosse a voz ouvir-se do outro lado da igreja. Baldwin odiou Edgar desde aquele momento até conseguir atingir o topo da escada.

Já no cimo, deslizou para um lado para se apoiar numa tábua, e foi aí que se permitiu um instante para recuperar o fôlego, sempre a olhar para a parede da nova igreja. Ganhou consciência dos dois homens que o seguiam e em breve sentiu o coração novamente aos pulos quando as tábuas oscilaram sob o peso dos outros. Abafou uma praga, virou-se para lhes fazer sinal para estarem quietos, captou um relance da paisagem.., e a altura a que se encontrava mergulhou-o imediatamente num terror fascinado. Sentiu-se paralisado, tal como um rato imobilizado pelos olhos de um gato, Foi apenas quando Edgar lhe tocou no ombro que voltou a si e se preparou para a fase seguinte da subida.

A base daquela segunda escada encontrava-se amarrada, embora não muito firmemente, à estrutura do andaime, o que pelo menos oferecia algum grau de segurança ao trémulo Guardião. Mais uma vez, a secção central da escada oscilou para um lado e para o outro, enchendo-o de medo e deixando-o convencido de que toda a estrutura, não apenas a escada mas todo o andaime, estavam prestes a cair. Cerrou os dentes quando atingiu as fronteiras do pânico e continuou a subir.

Só havia mais uma escada, mais curta mas também de menores dimensões, para além de ser muito mais antiga. Hugh, que ia logo atrás dele, puxou a adaga para fora da bainha e experimentou a lâmina com uma expressão meditativa enquanto esperava por Edgar.

Hugh nunca anteriormente se sentira com uma disposição tão fria e impiedosa. Já estivera envolvido em lutas um número de vezes mais do que suficiente, em especial quando fora rapaz e os ladrões tinham tentado roubar-lhe os borregos para os meterem na panela, mas o que sentia agora não era a antecipação de uma luta mas sim a firme decisão de fazer justiça. Ninguém possuía o direito de tomar cativa a sua ama, mas aquele homem pequenino tinha-a em seu poder e ameaçava matá-la. Hugh estava decidido a protegê-la. Ao fazê-lo, estava também a proteger a família do seu amo, Se estivesse ao seu alcance, então Margaret ficaria a salvo e o açougueiro morreria por causa do que fizera.

O que lhe dava a disposição assassina não era nada que lhe corresse no sangue, mas sim a recordação do que acontecera a Rollo depois da morte da mãe e a ideia de como a pobre Edith iria reagir ao saber que a mãe, a sua dedicada mamã, tinha morrido. Aquilo punha-o a ferver com uma antecipação animal enquanto experimentava a ponta da lâmina com o polegar para verificar se estava bem aguçada.

Edgar desviou os olhos dele para o amo com uma expressão vazia. Era-lhe fácil de ver que Hugh se encontrava com uma disposição assassina, enquanto Baldwin quase tremia de medo. Avançava tão devagar e com tanto cuidado que parecia recear que pudesse cair através de uma tábua de um momento para o outro. Ao ver aquilo, Edgar quase teve vontade de rir... ou de chorar de frustração.

- Por que não o prenderam? - a voz esganiçada flutuava para o solo com uma estranha calma, na tranquilidade antes do crepúsculo. - Tentei ajudar-vos, sabem? Tentei mostrar-vos o que ele fez. Primeiro o adultério e depois a rapariga na arca. A pedinte era uma velha paixão sua e depois a minha mulher também foi uma das suas amantes. Não podia ter sido mais óbvio, pois não? No entanto, ignoraram todas as sugestões. Deve ter pago uma fortuna para se manterem afastados dele! É o que vocês fazem, não é? Recebem dinheiro para se certificarem de que os que podem pagar fogem à corda. Como justificam a vossa corrupção?

- Não sabíamos, Adam - gritou Simon, consciente do desespero na sua voz. - Pensámos que a primeira rapariga tinha morrido durante o roubo e não sabíamos o que se passara com a segunda. A seguir, quando encontrámos a tua mulher, tivemos razões para pensar que não tinha sido ele, não é verdade? Foste sempre tu, durante todo o tempo. Contudo, isso não tem nada a ver com a minha mulher. Por que não a deixas sair daí?

- NÃO!- o grito fez com que o sangue se tornasse em gelo nas veias de Simon. - Por que haveria de o fazer? Por que haveria de deixar que tenhas uma vida outra vez? Por que razão hás-de gozar novamente a tua mulher quando a minha me foi tirada? Por que razão a mereces quando o meu anjo, a minha preciosa querida, está morta? Por que devo deixá-la viver quando arruinaste a minha vida?

- Não fiz nada disso! - protestou Simon, desesperado e com as mãos levantadas. - Tudo o que tentei fazer foi ajudar o meu amigo a descobrir a verdade. Não foi uma tentativa deliberada para te magoar, mas apenas uma busca dos factos...

- Mentiroso! Recebeste o dinheiro dele para o protegeres e não me consegues enganar! - Para horror de Simon, Adam começou a aproximar-se lentamente de Margaret. - O Guardião é conhecido como sendo justo e decente e não acredito que tenha tentado impedir que me fosse feita justiça. Então, quem mais poderia ter sido? Quem mais esteve com ele dia após dia, investigando o assunto, envenenando-lhe a mente com mentiras e traições? Não havia mais ninguém... para além de ti! Levaste-o a acreditar que Sir Hector está inocente, que não é ele o assassino e que não se aproveitou da minha mulher. Foi tudo por tua culpa!

- Adam, por que não me deixas explicar? Deixa-me contar-te como as coisas foram na realidade... - implorou Simon.

- Tu... explicar? És um mentiroso! Como poderei acreditar numa única palavra tua? - troçou Adam. - A única pessoa em que posso acreditar é no Guardião! Esse, pelo menos, é honrado e talvez seja melhor que conheça a verdade para ver como tu... - A voz apagou-se-lhe quando observou a área em frente à igreja. - Onde é que ele está? - gritou de repente. - Onde está o Guardião? Estava aí há pouco, eu vi-o. Para onde foi?

- Para lado nenhum. Foi apenas...

- Estás a mentir outra vez! Mentes sempre.., És um corrupto! Foi-se embora, não foi.., mas para onde? - O tom da voz subira e o açougueiro já guinchava como uma mulher histérica. - Também é corrupto? É corrupto, não é?

Foi com um desespero crescente que Simon viu a mulher esboçar-lhe um leve sorriso quando Adam se colocou por trás dela e lhe encostou a ponta da lâmina à garganta.

- Por favor, não lhe faças mal! Olha, eu mesmo irei aí acima e troco de lugar com ela. Não lhe faças mal! Não te fez nada, é a mim que queres! Deixa-me subir! Não irei armado e poderás fazer o que quiseres!

- Não! Não! Não! - Quero ver-te a rastejar, quero assistir à tua agonia. Quero que percebas no que se tornou a minha vida e que sofras como estou a sofrer. A minha vida está arruinada e morta, o homem responsável continua livre e a culpa é tua... toda tua! Pois bem, vê isto, almoxarife. Vamos ver se tua mulher morre com coragem!

Hugh ouviu a conversa da base da última escada. Ignorou os outros, subiu-a precipitadamente, atingiu a tábua do andaime e atirou-se para a frente com a adaga firmemente presa no punho. Abarcou a situação num relance: o açougueiro estava na parede oposta, de costas viradas para ele. Hugh correu para a esquina e depois aproximou-se seguindo ao longo da parede mais curta. Ainda se encontrava demasiado longe para tentar atirar a adaga, pelo que agarrou na sua bolsa, cortou os cordões que a seguravam ao cinto e atirou-a com toda a força contra as costas de Adam.

Adam rosnou como um mastim distraído da sua presa e virou-se com os dentes arreganhados. Agitou um punho e preparou-se para se virar novamente para Margaret. mas Hugh já se encontrava suficientemente perto. Fez saltar a adaga com ligeireza, apanhou-a pela ponta, lançou-a e rugiu enquanto corria pelas tábuas pouco firmes.

Adam largou a sua própria adaga e fitou com raiva o cabo de osso que lhe sobressaía do peito. Murmurou qualquer coisa e agarrou o cabo, como que para libertar a adaga, mas os seus lábios deixaram escorrer um fino fio de sangue e o homem pareceu perder toda a energia. Tinha os dedos pesados, muito pesados, e tornara-se-lhe muito difícil segurar no cabo da lâmina. Emitiu alguns sons incompreensíveis, numa raiva impotente, deixou cair os braços quando Hugh se aproximou e deu um passo atrás. Cambaleou, recuou demasiado, soltou um hediondo grito de horror e caiu.

Margaret viu o corpo a cair. Reparou, sem qualquer emoção, que levou muito tempo até atingir o solo e que o grito se prolongou por muito tempo até terminar repentinamente com um estrondo abafado.

Tinha consciência da presença de Hugh a seu lado, com as mãos a segurarem-na pelos ombros e a virarem-na para ele enquanto lhe examinava a garganta com ansiedade. Acabou por soltar um grande suspiro de alívio ao verificar que não havia estragos. Olhou-o letargicamente, querendo pôr-se de pé, mas o esforço era demasiado, ao ponto de mal conseguir agarrar a mão de Hugh quando este lha estendeu. Teve de a puxar para a pôr de pé e mesmo assim Margaret descobriu que as pernas pura e simplesmente não a sustentavam. Acabou por se apoiar a Hugh com medo de poder ir atrás de Adam.

Edgar e Baldwin juntaram-se a eles instantes depois. Baldwin cortou as tiras de couro que lhe amarravam os pulsos e os três homens conseguiram, entre eles, levá-la até à escada, que desceu com a ajuda de uma corda.

No solo, Simon gemeu quando a tomou nos braços e Margaret enterrou a cabeça no seu ombro. Baldwin e os outros preferiram deixar o casal sozinho por instantes.

 

- Quanto ao motivo por que as matou.., suponho que nunca o saberemos - disse Baldwin.

Estavam de volta ao salão de Peter Clifford, a beber vinho quente com açúcar, canela e outras especiarias, cujos fones vapores soltavam um odor que lhes afastava os medos e acalmava os nervos.

Simon bem precisava. Sentara-se junto do amigo mas continuava agarrado à mão da mulher com toda a firmeza. Naquele momento, sentia que nunca mais se atreveria a largar-lha. Descobrira, num muito curto espaço de tempo, até que ponto a adorava. Os acontecimentos da tarde quase lhe tinham destroçado a mente, tal como o açougueiro esperara. Olhou para Margaret, apertou-lhe os dedos com afecto e reparou nas rugas na sua testa, nas manchas escuras por baixo dos olhos e na palidez do rosto. Foi apenas com um grande esforço que se impediu de a beijar.

Stapledon franziu a testa.

- Pelo que dizem, foi tudo feito para   culpar o mercenário.

- Sim, tanto quanto saibamos. Por aquilo que disse, o Adam assassinou as mulheres, incluindo a própria mulher, numa tentativa para lançar as culpas directamente sobre Sir Hector.

- Um acto hediondo.

- Sim, foi um feito horrível. Segundo todos afirmam estava muito apaixonado pela Mary e enlouqueceu quando soube que ela tinha um amante. Parece não existirem dúvidas quanto a isso. Matar duas inocentes e a própria mulher... Bom, é difícil de acreditar...

Simon acenou. O pequeno açougueiro deveria encontrar-se completamente louco. Pegou na taça, bebericou um gole e imobilizou-se.

- Baldwin, já deste instruções para libertarem tanto o Cole como Sir Hector?

- Oh... - Baldwin encarou Peter Clifford com uma expressão envergonhada e decidiu não soltar uma praga. O sacerdote ficava sempre ofendido. Esboçou um leve sorriso e respondeu:

- Não... Obrigado por me lembrares.

- Devíamos enviar alguém para os trazer a ambos aqui, para celebrarem com uma bebida. O Wat continua a vigiar Sir Hector, não é verdade? Manda-lhe um recado... e digam-lhe para trazer o capitão sob guarda...

- Simon, estás a planear alguma coisa? - perguntou Baldwin, desconfiado.

- Eu? Claro que não! Olha que ideia!

Stapledon olhou-os, divertido. Que estariam eles a tramar? Era difícil de dizer mas pensava poder distinguir qualquer coisa nos tons das suas vozes, embora estivesse demasiado afastado para lhes observar bem as expressões.

Espantava-se com o facto de Margaret Puttock ter decidido ficar junto do seu homem. Tinha a certeza de que, no seu caso, ter-se-ia retirado imediatamente para o quarto para dormir, isto porque a história sobre como tinha sido capturada e arrastada para o alto do andaime fora contada e recontada inúmeras vezes e todos os servos da casa a tratavam com um grande respeito depois daquela provação. Surpreendia-se por Margaret não ter perdido a cabeça depois de tudo aquilo, e sentia-se incomodativamente consciente de que a sua própria conduta, em circunstâncias semelhantes, poderia não ser tão digna de louvores.

Os dois homens conversavam em tons baixos e acenavam sempre que cada um confirmava qualquer coisa com o outro. Stapledon forçou os ouvidos, não por que estivessem a falar suficientemente baixo para esconderem fosse o que fosse, mas sim porque o que diziam era uma extensão dos pensamentos de cada um deles. Stapledon pensou para si mesmo que, no caso daqueles dois homens, falar um com o outro em voz baixa era algo difícil de distinguir de uma sequência lógica de processos mentais. Eram quase tão unidos como marido e mulher no modo como pareciam antecipar as palavras do outro e rebater um argumento antes deste ter sido completamente expresso.

Aceitou uma nova taça da bebida e afundou-se na cadeira, fatigado. A cabeça doía-lhe abominavelmente mas não sofreria danos a longo prazo, conforme lhe garantira o cirurgião. Não havia nenhum osso solto onde lhe tinham batido e o cirurgião deixara implícito que, para um homem com uma idade tão avançada, fora quase um milagre que o ataque não tivesse resultado num ferimento muito mais grave. Contorceu os lábios ao recordar-se das palavras altamente ímpias com que expulsara o cirurgião magricela por se ter atrevido a dizer-lhe que era um velho.

Dos dois homens, o primeiro a chegar foi Cole. Tinha um aspecto terrível, com os cabelos engordurados a caírem para um dos lados da cabeça e quase verticais no cimo do crânio, onde os penteara com os dedos. A pele mostrava-se pálida e parecia ter sofrido de uma febre por causa do tom ceroso. A impressão geral de doença era ainda aumentada pelo tique nervoso que lhe contraía um canto da boca. Tanner encontrava-se a seu lado, à espera de uma confirmação de Baldwin para poder libertar o prisioneiro. Cortou as tiras de couro que ligavam as mãos de Cole logo que Baldwin lhe fez um aceno. Grato, e pela primeira vez em muitos dias, Cole deixou-se cair num banco enquanto perguntava a si mesmo o que teria acontecido para dar origem àquela libertação miraculosa.

Sir Hector apareceu menos de um quarto de hora depois com Wat e outro guarda. A sua aparência era completamente oposta à de Cole, o que fazia com que as diferenças entre os dois fossem ainda mais marcadas.

- Pediu-me para vir celebrar. Suponho que este infeliz assunto já chegou ao fim e que o Adam está morto?

- Sim - Baldwin sorriu, - Caiu dos andaimes da igreja... - Olhou para Margaret e preferiu não prosseguir com uma descrição mais precisa dos acontecimentos da tarde.

- É bom sabê-lo. Beberei para celebrar convosco. Cá vai... ao fim de um assassino!

Simon observava-o com uma expressão especulativa.

- Faria a mesma saúde por qualquer assassino? - perguntou.

- Claro! Uma pessoa assim é como um tijolo solto nas paredes da nossa sociedade... e pode fazer com que todo o edifício se desmorone à nossa volta. A sociedade precisa de protecção contra gente como essa.

- Sabem por que razão esse louco decidiu matar as mulheres? Já descobriram?

- Ah, pois é... - Simon limpou a garganta. - Esqueci-me de que não ouviu falar no assunto. No fundo, estava a servir-se de si como bode expiatório...

- Ah, sim?

Baldwin acenou uma confirmação.

- Definitivamente. Queria certificar-se de que era preso e enforcado.

- Sabe... - prosseguiu Simon antes de o amigo poder continuar - o Adam sabia que o senhor tinha um caso com a mulher dele e queria vingar-se.

- E matou todas aquelas mulheres só para me apanhar? É difícil de acreditar!

- De qualquer modo, é verdade. Matou a Judith porque sabia que o senhor tinha,., bom, que foi sua amante da última vez que aqui esteve.

- É verdade - admitiu Sir Hector. - Ela até alegou que o rapaz era um meu bastardo! - Riu-se mas ninguém o acompanhou no divertimento.

- Pois... - disse Baldwin. - De qualquer modo, pensamos que o açougueiro o viu a ter uma discussão com a mendiga e que compreendeu que nós também a tínhamos testemunhado. Apunhalou-a sabendo que esse segundo assassínio nos levaria a pensar que o senhor era o culpado. No fim de contas, a maior parte dos assassínios são cometidos por homens que matam as amantes ou as esposas... tal como o Adam fez com a sua própria mulher.

Sir Hector sorveu a bebida e acenou.

- Compreendo... e sabia que não me encontrava na estalagem porque esperava pela mulher dele. Deve ter descoberto que tínhamos marcado um encontro. Aquele diabo deve tê-la obrigado a dizer onde e quando, para que as suspeitas recaíssem sobre mim.

- Muito provavelmente - admitiu Baldwin. - Penso que o assassínio da própria mulher pretendia ser cereja sobre o bolo, a prova decisiva que nos levaria a prendê-lo, a si. Deveria ser a prova definitiva... e não há dúvidas de que foi convincente. No entanto tivemos dúvidas porque a mulher já morrera há alguns dias e tínhamo-lo visto a espera dela. Podia tratar-se de uma tentativa sua para provar inocência, mas pareceu-nos estranho. Ter-lhe-ia sido mais útil certificar-se de que toda a gente sabia onde estava, a todo o momento.

- Ainda bem que se aperceberam disso - disse Sir Hector com um tom sério. - Saber que desconfiavam que fui eu quem matara a minha Mary fez com que uma situação já de si má se tornasse ainda mais difícil de suportar.

- Então e eu? - perguntou Cole. - Estive fechado durante dias, mantido sob suspeita tanto do assassínio como do roubo. O que vai acontecer agora? Estou na verdade livre?

- Oh, sim! - Simon sorriu. - As minhas desculpas pelo teu confinamento, mas as provas contra ti eram muito fortes. Eras novo no grupo e ao princípio todos sabíamos que tinhas sido apanhado com artigos que te incriminavam. Era natural que suspeitássemos. A seguir soubemos que os homens que te tinham apanhado eram os dois de quem o grupo mais desconfiava e que desprezava, pelo que nos pareceu ser melhor deixar-te na cadeia para bem da tua própria segurança. Tinhas sido escolhido, por assim dizer, por dois homens capazes de acicatar os outros contra ti e de te causar a morte.

- Claro que nos interrogámos se terias morto a Sarra - murmurou Baldwin, deitando mais bebida para a taça. - Não havia razões para suspeitarmos de ti em particular, excepto quanto ao facto de termos ouvido dizer que discutiste com ela. Similarmente, a única prova inicial contra Sir Hector foi também o ter discutido com a Sarra e tê-la expulso da sua presença.

Stapledon sentiu as sobrancelhas a erguerem-se. Era demasiado míope para distinguir as expressões das pessoas e tinha frequentemente de se basear nas suas impressões... e pressentiu que houve uma certa tensão na sala depois daquelas palavras. Por instantes não percebeu o que a causara, mas a seguir olhou para Sir Hector. As palavras de Sir Baldwin implicavam que talvez existissem outras provas.

- Havia a questão da túnica azul, por exemplo - declarou Simon calmamente, voltando a assumir a conversa. - O Wat sempre disse que o senhor tinha um mau temperamento e que a poderia ter morto se visse a Sarra a usá-la sem autorização. Pensamos que poderia ter tentado retirá-lo da liderança pedindo à rapariga para a vestir. De acordo com Henry e John, já há algum tempo que planeava roubar-lhe o comando...

- E teria sido capaz disso - admitiu Sir Hector, olhando de esguelha para o seu guarda. Wat encolheu os ombros.

- Todavia, mesmo que o tenha feito, teria sido errado matá-la só por causa disso. Não, não foi o que se passou. Os dois homens, Henry e John, roubaram a prata. Henry encontrava-se no quarto e a Sarra apareceu quando o roubo ia a meio. Ouviu-a aproximar-se, escondeu-se, derrubou-a e deixou-a inconsciente. Acabou por a enfiar na arca por não ter outro sítio onde a esconder e prosseguiu com o seu trabalho. Depois, foi-se embora.

- Pensámos... - reflectiu Baldwin - que Adam conseguiu trepar pela janela e matá-la antes de John e Henry poderem voltar ao quarto para fecharem as portadas, mas há outra possibilidade...

Simon inclinou-se para a frente com as mãos nos joelhos e sorriu, com a taça negligentemente segura na mão.

- E a possibilidade é esta: alguém mais regressou ao quarto e Adam, à espera no exterior, ouviu essa pessoa. Ouviu a tampa da arca a ser levantada e o crime a ter lugar.

- Se assim fosse, o Adam ter-lhe-ia dito - objectou Sir Hector.

- Talvez não. No fim de contas, tinha um desagrado pelos funcionários que andava muito perto da loucura. Desconfiava de qualquer homem numa posição de autoridade, tal como viemos a descobrir. Para além disso, suponho que pode muito bem ter pensado que o senhor o podia acusar a ele de estar a querer vingar-se por causa do seu caso com a Mary. Seria a resposta perfeita para qualquer acusação que o Adam fizesse. Creio que foi isso, mais do que o próprio adultério, o que lhe deu a volta à cabeça. O conhecimento de que não havia ninguém para defender os seus interesses fê-lo procurar um meio de compensação mais drástico. Matou a mulher - de qualquer modo, talvez acabasse por fazer -, provavelmente durante um acesso de raiva de que mais tarde se arrependeu. Contudo, matou a Judith apenas para dar mais força às nossas suspeitas a seu respeito. O mais triste é o facto de ter desperdiçado uma vida sem qualquer motivo. Tudo o que conseguiu foi que desviássemos as atenções de si. Depois, quando também encontrámos o corpo da Mary, tornou-se claro que estava em curso um qualquer plano tortuoso.

- Pretendem acusar-me? - trovejou Sir Hector, pondo-se de pé de repente. - Atrevem-se a sugerir que matei a rameira?!

Baldwin olhou-o com frieza, para logo em seguir voltar a encher a taça com um ar meditativo.

- O Adam estava certo de que o senhor tinha lá voltado e apunhalado a rapariga. Porquê? Reconhecia-o se o visse, não é verdade? Todavia, se estava no exterior, o Henry e o John já tinham fechado as portadas que dão para a rua. Portanto, o Adam não pode ter visto nada do que se passava no interior. Só sabia que estava lá alguém e ouviu dizer que só o senhor, Sir Hector, e alguns dos seus homens de maior confiança, podiam entrar no quarto. Ouviu um ruído - quando o Henry e o John tinham ido dar a volta mas ainda lá não estavam dentro -, e fosse quem fosse... só podia ser o senhor!

- Isso é estúpido!

- Pois é... - concordou Simon.

- O quê?

- O Adam não sabia que havia mais alguém que também podia entrar no seu quarto... o homem que lhe ia buscar o sal para as refeições. Ou seja, Wat, o seu servo.

Sir Hector ficou de boca aberta e a seguir virou-se para enfrentar o velho mercenário.

Wat ficou imóvel por momentos. Humedeceu os lábios, rodopiou e deu meio passo em direcção à porta, mas tinha o caminho barrado por três homens de Peter Clifford, todos com cacetes nas mãos. Tanner encontrava-se junto deles, a sorrir, com as mãos no grosso cinto de couro.

- Wat - declarou Baldwin com solenidade - acuso-te da morte de Sarra, uma serviçal da estalagem. Serás levado para a cadeia até poderes ser julgado. Se resistires... Bom, quase desejo que o faças!

O agitado mercenário teve de ser amarrado e levado dali enquanto rejeitava furiosamente qualquer responsabilidade. Para o dominar foram necessários os esforços combinados dos homens de Stapledon e de Tanner - com Hugh a encorajar os outros nas franjas da confusão mas evitando ter de participar -, mas por fim acabou por ser removido do local por um muito satisfeito Sir Hector. Baldwin acompanhou-os até à cadeia enquanto Simon e a mulher se retiravam para o quarto.

- Como te sentes? - perguntou o almoxarife logo que ela se sentou na berma do colchão. Parecia terrivelmente pálida e tinha os olhos meio fechados, embora o quarto estivesse escuro e tivesse as portadas fechadas contra o negrume frio do exterior. Agachou-se junto dela e tomou-lhe o rosto nas mãos com gentileza.

- Agora já me sinto bem. A sério.

- Estás em segurança e isso é tudo o que interessa.

- Durante um bocado, cheguei a pensar que ia morrer...

- Também eu. Odiei ter de ficar lá em baixo. O Baldwin não me permitiu que tentasse ajudar-te e eu...

Margaret fechou-lhe a boca com um dedo.

- Já acabou tudo...

- Pensei que não poderia voltar a abraçar-te. Pensei que ia perder-te. Amo-te...

A mulher sorriu ante as palavras sussurradas.

- Também te amo. Prometo que não te deixarei até teres um filho.

- Neste momento não me preocupo com isso. Tudo o que quero é voltar a ver-te bem outra vez.

Margaret fechou os olhos mas a seguir lembrou-se da conversa no jardim e suspirou.

- O que foi?

- O bispo estava a conversar comigo a respeito do Rollo quando aquele homem nos atacou. Simon, quero que tenhamos o nosso próprio filho e não o de outros. Será egoísmo?

- Egoísmo? Talvez... mas se pensas que desejo uma recordação desta tarde então estás completamente enganada. Também não suportava tê-lo na nossa casa. Não te preocupes, falarei com o bom do bispo.

Quando regressou ao salão já Baldwin lá se encontrava, sentado perto de um Stapledon de testa franzida. Peter fora à igreja exortar os trabalhadores a continuarem e os três homens ficaram sós durante algum tempo. O bispo espreitou-os depois de alguns minutos de silêncio.

- Sir Baldwin, Simon, devo ser menos esperto do que imaginava porque ainda não consegui perceber como chegaram a esta conclusão.

Baldwin sorriu-se para o bispo.

- Agora é muito mais simples lidar com o assunto em retrospectiva, porque já estamos a par da sequência dos acontecimentos.

- Não é fácil - disse Simon - quando se inicia uma investigação como esta. Ao princípio toda a gente procura ajudar mas isso só significa que temos de tentar isolar o que é importante no meio da massa de pormenores que vamos descobrindo. Em geral, há demasiados factos irrelevantes.

Baldwin pousou a mão sobre a taça quando Simon se propôs encher-lha. Já bebera mais do que era habitual.

- Como sabe, as coisas pareciam feias para o Cole logo desde o princípio... - começou.-Era novo no bando e um par de dias depois foi encontrado com peças da prata roubada a Sir Hector. A seguir descobrimos a rapariga... Era aparente que devia ter sido apanhado a meio do roubo e que matara a Sarra antes que esta pudesse dar o alarme.

- Contudo... - interrompeu-o Simon, agitando a taça tão à-vontade que derramou algum vinho para o chão - como poderia o Cole saber que iria ter tempo para roubar Sir Hector? Era demasiado novo no bando para que a maior parte dos outros homens confiasse nele. Para além disso, como podia um só homem carregar tanto metal? Se estava envolvido, então precisara de cúmplices.

- O Simon tem razão. Era óbvio que tínhamos de procurar outros. Para além disso, havia o facto de a rapariga ter sido metida na arca inconsciente e morta mais tarde. Era uma indicação de que o assassínio e o roubo não estavam necessariamente ligados. Por isso, embora Sir Hector só dificilmente pudesse ser implicado no roubo das suas próprias pratas, podia ter estado envolvido na morte da Sarra.

- Depois havia a questão de saber se o Cole teria roubado o mercenário - declarou Simon com um sorriso.

Stapledon inclinou a cabeça para um lado.

- Que querem dizer?

- Se estivesse desesperado, iria roubar alguma coisa a um guerreiro mercenário? Ainda por cima a um capitão? - inquiriu Simon. Viu o bispo a abanar a cabeça com um ar pesaroso e exclamou, triunfante: - Claro que não! Porquê? Porque um homem daqueles mete medo a qualquer pessoa, excepto ao mais calejado dos guerreiros. Acha provável que um jovem acabado de sair de uma quinta se atrevesse a desafiá-lo?

- Talvez se não tivesse consciência dos perigos...? - murmurou o bispo, mas Baldwin sorriu e abanou a cabeça.

- Não, bispo. Conviveu com Sir Hector de perto durante mais de um dia e de qualquer modo já conhecia aquele tipo de homens- O irmão morreu no meio deles e um que o conhecera foi contar ao Cole como isso aconteceu. Cole não podia ser tão estúpido ou inocente Para não perceber que Sir Hector era um homem perigoso. Depois, surgiu uma prova final que acabou por me convencer.

- Qual foi?

- Quando pensei no assunto, verifiquei que tinham tido lugar dois pares de assaltos. O Cole e a Sarra tinham sido atacados por alguém com um cacete ou algo de semelhante, e ambos foram atingidos no mesmo lugar. Por outro lado, tanto a Judith como a Mary apareceram com punhaladas nas costas. O único ferimento diferente era o da jovem Sarra, que foi apunhalada no peito com tanta força que a faca penetrou nas roupas por baixo dela. O Cole e a Sarra tinham ambos sido derrubados por pancadas no lado esquerdo da cabeça. Por si só não se tratava de uma prova definitiva, mas tornava-se conclusiva quando se tomava em consideração os outros pormenores.

Simon pousou os cotovelos nas coxas.

- Era improvável que o Cole tivesse sido o ladrão, e era igualmente improvável que tivesse morto a Sarra. Se aceitarmos que as pessoas preferem roubar seja quem for, excepto a um capitão de mercenários, quem se teria atrevido? De certeza que só outro mercenário!

- Agora, é claro o que aconteceu - disse Baldwin. - O Henry e o John conheceram o Adam da última vez que aqui estiveram. Quando voltaram a encontrar-se para beber, os dois mercenários contaram ao açougueiro que estavam fartos dos modos despóticos do capitão. Já tinham planeado antecipadamente os pormenores do roubo e pediram ao Adam que os ajudasse, mas este recusou. Contudo, os dois mercenários sabiam algo que o açougueiro desconhecia: a mulher deste tinha um caso com o capitão deles. Talvez lho tenham dito, ou talvez não. De qualquer modo, o homem voltou para casa e encontrou a mulher na cama com SirHector, e isso selou o pacto. Adam voltou para trás, falou novamente com Henry e John e concordou em ajudá-los.

- Suponho que pensaram que se limitara a dar uma sova na mulher - deviam achar que ela o merecia por andar com outro homem -, e que concordara em ajudá-los para se vingar do capitão - acrescentou Simon.

- Aqueles dois eram os homens em que Sir Hector mais confiava - explicou Baldwin. - Disse-lhes que tinha um encontro com a Mary durante a tarde e eles fizeram os seus planos de acordo com isso. O capitão saiu, tal como puderam verificar, e fizeram uma visita ao seu quarto um pouco mais tarde com o pretexto de falarem com ele a respeito de um cavalo. Abriram as portadas das traseiras - que davam para uma zona mais sossegada do que as da frente -, e voltaram a sair. Uma vez cá fora, John ficou de sentinela enquanto Henry trepava para o interior, abria as portadas da frente e começava a passar a prata aos outros. O Adam era necessário para afastar testemunhas inoportunas e conseguiu-o espalhando as vísceras de alguns animais. Sob o calor da tarde, eram o suficiente para manter as pessoas afastadas e estas, quando na rua, tendem a manter-se em movimento. Não se detêm muito tempo no mesmo sítio porque têm coisas para fazer, recados para entregar ou qualquer outra coisa. Os homens podiam passar as pratas para o exterior para as meterem na carroça debaixo de sacas sem ninguém dar por isso.

- Quando terminaram, o John ajudou o Henry a sair... - disse Simon - antes de voltarem a entrar pelo salão para irem fechar as portadas.

- Entretanto... - prosseguiu Baldwin - enquanto tudo isto se passava, o Wat dera a túnica à Sarra para que a experimentasse. Tinha a esperança de que Sir Hector ficasse tão zangado que a matasse - os seus ataques de fúria eram bem conhecidos de todos -, mas a jovem apareceu no quarto demasiado cedo. Henry derrubou-a e enfiou-a na arca para a esconder.

Simon confirmou com um aceno.

- Porém, enquanto ainda se encontravam na rua, antes de poderem voltar ao quarto para fecharem a portada, o Wat entrou no quarto. Esperava que a Sarra já estivesse morta. Levara a túnica ao quarto da rapariga e deixara-a pensar que se tratava de um presente do amo, sabendo muito bem que Sir Hector ficaria enraivecido ao vê-la noutra mulher.

- Na altura estava a ocupar as funções de servo de Sir Hector, pelo que entrava e saía do quarto com frequência para ir buscar coisas às arcas. Naquele dia foi mexer na arca e encontrou a rapariga. Suponho que inicialmente deverá ter ficado confuso, a olhar para baixo, Para ela e a perguntar a si mesmo o que estaria a fazer ali... mas deve ter concluído rapidamente que o amo a enfiara na arca por qualquer razão. Era uma verdadeira oportunidade. Sir Hector não a matara... mas toda a gente iria pensar que tinha sido ele! Para se certificar, Wat estava Pronto a divulgar a história de que o amo ficaria furioso se a visse com as roupas de outra mulher. Por isso, apunhalou-a e voltou a fechar a arca Baldwin continuou:

- Durante todo este tempo, o Adam estava lá fora a tomar conta das coisas, para ter a certeza de que os amigos se encontravam bem. Ouviu o Wat no quarto antes do Henry e do John fecharem a portada das traseiras, e presumiu que se tratasse de Sir Hector. Depois, quando soube do crime, teve a certeza de que fora o capitão quem o cometera.

- Nesse caso, por que não se limitou a dizer-vos isso? - perguntou Stapledon com a testa franzida.

Baldwin encolheu os ombros.

- Penso que se apercebeu de um modo de se livrar da mulher. Que outra maneira teria de se ver livre da mulher que o atraiçoara? Matar a Mary e atirar as culpas para Sir Hector deve ter-lhe parecido um plano inspirado.

- Quando foi que matou a mulher?

- Não faço ideia. Provavelmente na terça-feira, dia em que teve uma grande discussão com ela. Quando a encontrámos já estava morta há alguns dias.

- Onde a teria escondido? - interrogou-se Stapledon. - Não é fácil esconder um corpo durante muito tempo.

- É mais fácil para uns do que para outros - retorquiu Baldwin com um sorriso seco. - Por exemplo, o Adam tinha um quarto frio para armazenar a carne e as carcaças dos animais. Ultimamente, o aprendiz não tinha autorização para lá entrar. Creio que podemos presumir que o corpo esteve lá guardado durante alguns dias, - A única questão que resta é esta: quem matou o irmão do Cole? - perguntou o bispo.

Baldwin deixou-se afundar um pouco mais no seu assento.

- Ainda bem que não tenho jurisdição sobre esse assunto. A morte, se foi um assassínio, ocorreu do outro lado do mar.

- Mas sabe quem o matou?

- Tenho poucas dúvidas de que foram o Henry e o John. De acordo com outros, esses dois lucraram com a sua morte. No entanto, também pode ter caído no campo de batalha. Receio que o assunto não me interesse. Era um mercenário e sabia quais os riscos que corria ao juntar-se a uma tal companhia.

- Assim,.. - disse o bispo, com um suspiro - ficamos apenas com as pobres vítimas desta série de tragédias.

- Está a pensar no Rollo? - inquiriu Simon, hesitante.

- Sim. O rapaz precisa de quem tome conta dele. Baldwin franziu a testa e comentou:

- Suponho que poderemos descobrir um sítio onde possa ficar...

- Ah, mas nós temos aqui uma solução! - exclamou Stapledon. Simon aspirou o ar com força.

- Receio que não, bispo. Por muito que gostasse de ajudar, não posso ficar com o rapaz.

- Mas...

- Não, perdemos um filho e seria cruel esperar que um rapaz adoptado ocupasse o lugar do Peterkin. Perturbar-nos-ia sempre que se portasse mal ou fizesse algo de errado. Por outro lado, se fosse bom e obediente não estaria a fazer mais do que seria de esperar. A sua vida tornar-se-ia infeliz, sem conforto nem alegria...

- Simon, creio que...

- Para além do mais, não estou preparado para que a Margaret sofra com isso. Cada vez que olhasse para a cara dele iria recordar a sua provação de hoje... e seria uma tortura lenta a que não quero expô-la.

- Almoxarife, permita-me que fale, por favor... - Stapledon sorriu. - Nunca me passou pela cabeça impor-lhe o rapaz. Pensei numa solução muito mais simples: vou levá-lo comigo para Exeter. Pode ser útil na cozinha ou nos estábulos. Se mostrar aptidões, poderemos ensiná-lo. Quem sabe? Dentro de alguns anos, se for prometedor, poderá seguir para a minha faculdade em Oxford. De qualquer modo, terá sempre comida, bebida e abrigo.

Simon quase cambaleou de alívio.

- Sim, sim, isso seria perfeito!

Stapledon acenou de satisfação mas a seguir franziu ligeiramente a testa.

- Para começar, quem me dera saber por que motivo aquele louco assassino teve de matar a Judith. Foi um acto tão diabólico... Como foi capaz de privar o Rollo da mãe, só para criar uma ligação espúria com Sir Hector, na esperança que tal nos levasse a prendê-lo?

- Penso que pode ter sido mais simples do que isso - afirmou Sir Baldwin com suavidade. - Lembra-se de lhe ter dito que as pessoas têm tendência para se apressar quando estão na rua? Pois bem, há um tipo de pessoas que não o faz.

- Que quer dizer?

Baldwin pegou no jarro e encheu a taça.

- Há um grupo em particular que fica todos os dias num determinado sítio durante muito tempo: os mendigos. A Judith pode ter visto algo de estranho na tarde do roubo. Quando ouviu falar no assunto, talvez tenha compreendido que sabia quem estivera envolvido. Nunca teremos a certeza... mas é possível que tenha mencionado o açougueiro a Sir Hector quando o vimos a atirá-la ao chão. Este pode ter pensado que a rapariga estava a ameaçá-lo. Já notei frequentemente que os culpados só ouvem o que esperam ouvir, e não o que lhes é realmente dito. Neste caso, qualquer referência ao marido da sua amante pode tê-lo levado a precipitar-se e a chegar à conclusão errada. Todavia, tudo o que a Judith fazia era tentar agradar-lhe depois de a ter negligenciado durante tantos anos... em especial porque a maior parte das pessoas pensava que o Rollo era filho dele.

- A propósito do Rollo... Não me disseram que o garoto gritou logo que viu o cavaleiro quando o Hugh o trazia para aqui?

- Sem dúvida - respondeu Baldwin com um sorriso. - Contudo, a porta do açougueiro fica mesmo ao lado da estalagem e o Adam estava lá na altura. Creio que o Rollo o viu quando entrou na rua. Para Sir Hector, era a primeira vez que reparava no rapaz e ficou um pouco chocado ao ser confrontado com um filho que guinchava daquele modo quando o via. Não sei se também não empalideceria se isso me acontecesse. De qualquer modo, voltemos à Judith por um instante. Creio que será justo presumir que qualquer lealdade ou sentimentos que pudesse ter para com o cavaleiro se dissiparam rapidamente logo que ele lhe bateu. Suponho que depois disso deve ter ido em busca do Adam para lhe pedir dinheiro. Não será natural que, depois da sua tentativa para ajudar Sir Hector ter sido publicamente desprezada, tivesse abordado o outro protagonista para lhe exigir uma compensação? Do ponto de vista de Adam, matar a Judith era não apenas útil para estabelecer mais um elo na cadeia de provas contra Sir Hector, como também servia para remover alguém que poderia transformar-se numa testemunha incómoda.

 

Paul acordou com o som de pés a arrastarem-se e de pancadas, e virou-se para o outro lado, fatigado. Tinha muito pouca vontade de abandonar o calor da cama depois das noitadas e de ser obrigado a levantar-se muito cedo nos últimos dias. Abraçou a mulher, fechou os olhos com força e deixou de prestar atenção aos ruídos, decidido a conseguir um pouco mais de paz antes de dar início a um novo dia.

Embora procurasse o sono, este fugia-lhe e foi forçado a jazer meio acordado, com pensamentos indolentes a vaguearem-lhe pelo cérebro. Era típico, pensou, que os mercenários não só esperassem que continuasse a servi-los muito para lá da meia-noite como, ainda por cima, naquele dia, parecessem decididos a acordá-lo ainda antes da madrugada. Era uma medida da atitude pouco generosa para com os outros, concluiu com amargura. Tinham um grande desprezo pelo mundo.

Uma violenta pancada fez com que o edifício tremesse e o jovem Hob, deitado na enxerga ali perto, resmungou e lamentou-se no meio do sono. Paul soltou uma praga e levantou-se, aborrecido. Não podia descansar no meio de tanta barulheira. Coçou-se, aproximou-se da janela e soltou o cordão com nós para abrir a portada.

Por baixo dela, a rua estava quase vazia. O Sol ainda não se erguera o suficiente para expulsar as sombras pelo que só ocasionalmente se via uma figura a caminhar na escuridão. Dois vendedores ambulantes começavam a retirar artigos dos cestos, preparando-se para o negócio. Mais para diante, por cima do telhado da cadeia, podia ver o fumo a erguer-se das lareiras acabadas de acender. Muito em breve já as mulheres da cidade estariam a aquecer as panelas e a preparar o pequeno-almoço para as famílias.

O nevoeiro, para lá da massa da igreja nova, parecia uma camada de neve que ocultava o vale sob o frio ar da manhã. Só conseguia distinguir o percurso do rio pela franja de árvores alinhadas na outra margem, e o que via disse-lhe que o tempo ia finalmente mudar. O Outono já se aproximava. Soprou uma súbita rajada de vento ao longo da rua, Paul estremeceu e bateu em retirada para o interior do quarto. Agarrou no cordão e puxou a portada de madeira até um dos nós coincidir com a ranhura na trave por cima da janela e poder fixá-la. Ficava apenas com uma pequena fenda e o ar que por lá entrava não deveria ser o suficiente para acordar a mulher.

Enfiou os calções e um colete para se proteger do frio e começou lentamente a descer a escada para a despensa. Abriu a porta... e parou de boca aberta. O salão era a verdadeira imagem do caos.

Os mercenários passavam por ele a praguejar e a cambalear sob o peso das arcas. Outros arrastavam sacas para o pátio. Paul teve de ficar à espera, junto da porta, até que um par de soldados passasse por ele agarrados a alabardas envoltas em couro e atadas em espessos molhos. Atrás deles arrastava-se outro soldado que se queixava, quezilento, a respeito de uma dor de cabeça. Paul não ficou surpreendido por o soldado estar tão abalado... e teria sido um milagre se nenhum deles se sentisse doente. A maior parte da cerveja da Margery desaparecera nos últimos dois dias, desde a prisão de Wat e dos ladrões.

O estalajadeiro viu uma abertura no meio da fila de carregadores e entrou rapidamente no salão. Estava decidido a que Sir Hector não se fosse embora antes de pagar as contas.

Agora já havia menos homens a saírem da área dos quartos. A maior parte dos valores e abastecimentos encontrava-se no pátio e era carregada nas carroças. O som das ferraduras a embaterem nas pedras queria dizer que os cavalos estavam nervosos e na expectativa, sabendo que iriam partir em breve e antecipando o exercício. Mentalmente, Paul até era capaz de ver o enorme cavalo negro em que Sir Hector chegara ali e estremeceu involuntariamente. O animal, orgulhoso e arrogante, aterrorizava-o.

- Levanta-se cedo, estalajadeiro.

Paul sorriu e baixou a cabeça. Do ponto de vista de Sir Hector, o homem era mais do que obsequioso, pelo que o capitão o olhou com desprezo por estar convicto de que Paul, tal como todos os estalajadeiros, só queria o seu dinheiro. Pediu a conta com secura e os dois homens começaram a negociar. Paul indicou o seu valor... e Sir Hector respondeu com uma expressão de choque e desconfiança. Foram exibidas provas sob a forma de barris vazios na despensa, provas essas logo rejeitadas com base na possibilidade de já se encontrarem meio vazios aquando da chegada dos mercenários. Eventualmente, acabaram por ajustar um valor satisfatório para os dois. Paul ficou convencido de que só iria tirar um pequeno lucro, mas pelo menos sempre tinha algum. O cavaleiro também ficou satisfeito. A estada custara-lhe mais do que esperara mas a conta pareceu-lhe justa. Contou as moedas com cuidado, fungando ante a despesa, e a seguir saiu para o pátio. Ignorou os homens à sua volta, subiu para a pedra de montar e passou a perna por cima do cavalo. Uma vez na sela, examinou o grupo.

Era um bando tristemente reduzido. Quando Sir Hector chegara a Crediton era o líder de uma força unificada e endurecida pelas batalhas. Agora, os dois sargentos estavam na cadeia depois de o terem roubado e o homem mais experiente fazia-lhes companhia a aguardar justiça pelo assassínio de Sarra. Para além disso, Will desaparecera depois da abortada tentativa contra a vida de Sir Hector. Will sabia qual era o preço da deslealdade e não se atreveria a mostrar-se novamente. Os homens mantinham-se por ali, com os rostos fechados. Ninguém o queria fitar nos olhos e Sir Hector examinou-os em silêncio por instantes. Seria fácil abandoná-los e a ideia era tentadora. Tudo o que necessitava de fazer era mandá-los à frente e voltar para o interior da estalagem. Os homens iriam. Um ou dois poderiam querer ficar mas a maioria sentir-se-ia grata pela oportunidade de se ver livre dele. Depois, talvez conseguisse organizar uma nova vida entre os mercadores da cidade.

Todavia, tudo o que sabia era combater. Que iria ele fazer numa pequena cidade como aquela? Crediton era um lugar tranquilo e lucrativo, ideal para uma nova raça de comerciantes. Os moinhos raramente permaneciam em silêncio, os agricultores prosperavam, a indústria dos tecidos florescia... mas que espécie de trabalho haveria ali para um mercenário? Sir Hector não possuía outras capacidades para além das de um guerreiro e estas não tinham grande procura. Não, não era a 1 que iria encontrar a paz.

Rodou a cabeça do cavalo abruptamente e incitou-o. Paul observou os homens saírem do pátio, com a carroça a arrastar-se atrás deles, regressou ao salão e olhou para a confusão com uma expressão amarga.

- Foram-se embora? - Margery bocejou quando entrou.

- Sim, agora mesmo - confirmou Paul, avançando para a porta da frente. O bando apareceu pouco depois, passou em frente da loja do açougueiro e marchou para lá da estalagem, para oeste. Sir Hector continuou a olhar em frente fixamente, recusando-se a reconhecer a presença do estalajadeiro e da mulher. Margery estremeceu quando os viu passar: o silêncio do bando era muito mais opressivo do que as caóticas exibições no salão. Estava contente por os ver partir.

- Bom... - disse Paul, juntando as palmas das mãos com força. - Agora vamos à limpeza do salão e depois ao resto. Sinto-me como se não tivesse dormido durante uma semana.

- Sim, também eu... - respondeu a mulher, apática.

Paul passou-lhe um braço em volta dos ombros. Estava esgotada depois daqueles últimos dias e parecia pronta a cair para o lado mesmo após uma noite de sono.

- Por que não voltas para a cama e descansas um pouco mais? Posso ir buscar as raparigas para me ajudarem.

- Não, estou bem.

A fadiga de Margery via-se nas manchas escuras por baixo dos seus olhos. Quem a olhasse só dificilmente imaginaria que tinha acabado de sair da cama. Libertou-se do braço do marido, não sem suavidade, foi buscar uma vassoura e começou a varrer o lixo e as palhas que cobriam o chão do salão.

Paul ficou parado a olhá-la por momentos, mas a sua atenção vagueou e pouco depois já estava a espreitar a estrada, para oeste. Sentia-se curiosamente vazio. No espaço de poucos dias foi maltratado e ameaçado, perdeu um certo número de clientes honrados, assistira a uma quase violação no seu salão, viu a pobre Sarra assassinada e soube de uma tentativa de assassínio contra o capitão mercenário. Agora, tudo o que restava daquilo era a pequena nuvem de poeira que desaparecia no horizonte, acompanhada pelo leve tilintar musical das armaduras e dos arreios.

Recompôs-se e foi ajudar a mulher. Sentia uma vaga tristeza pela Sarra mas a morte era um acontecimento demasiado vulgar e Paul tinha um negócio para gerir.

Não viu a figura que se escapuliu, a coxear, das sombras da cadeia e se apressou a seguir o bando.

Sir Hector chegou ao alto da leve subida e descobriu que tinha uma visão clara sobre as colinas de Dartmoor. O céu já exibia um suave tom cinzento que brilhava intensamente, e aclararia quando o calor do Sol começasse a apertar. A terra ondulava suavemente, numa série de colinas arredondadas entre as quais corriam as águas rápidas dos pequenos ribeiros. Lembrava-se de tudo aquilo da sua primeira passagem por ali.

Depois, quando conhecera Mary pela primeira vez, experimentara uma pungente melancolia quando abandonara a cidade. Descobrira, pela primeira vez, que lhe era possível dar prazer a alguém e essa sensação durara até agora. Perder a Mary, ver o seu corpo sem vida, matara qualquer coisa dentro dele.

Por momentos permitiu a si mesmo confrontar-se com o que teria sido a sua vida se tivesse ficado por ali depois da sua primeira visita a Crediton. Talvez tivesse conseguido instalar-se como mercador. Não havia dúvidas de que, na altura, até possuía o dinheiro necessário. As guerras na Gasconha tinham sido lucrativas e fizera uma pequena fortuna a tomar reféns e a exigir dinheiro pela sua libertação. Os seus empreendimentos tinham-lhe dado rendimentos suficientes para lhe garantirem uma reforma confortável.

Todavia, Mary não esteve disposta a aceitá-lo. Soube que Adam estava interessado nela e pensara que um açougueiro daria um marido mais seguro do que um soldado.

- Então desisto da guerra - dissera-lhe, na última noite em que tinham estado juntos na cama dela.

- Tu? Queres abandonar a tua carreira por uma mera mulher? - Mary sentara-se na cama e olhara para ele, brincalhona.

- Por ti, Mary. - O nome dela fora perfeito e ele sentira-o. Parecera uma Madona debruçada sobre ele, a sorrir enquanto brincara com os seus cabelos.

- Não. Acabarias por te aborrecer. Uma mulher para um valente cavaleiro? Irritavas-te e acabarias por ficar louco com o aborrecimento da vida numa pequena cidade como esta.

- Mary, falo a sério! Quero casar contigo!

- Não - respondera, rindo-se e virando-se para evitar o braço com que a tentara rodear. - És um soldado e eu sou a mulher de um açougueiro. Vou sentar-me, cozinhar, cozer e criar pequenos açougueiros enquanto tu viajas e capturas os teus reféns. Tu e eu não poderíamos viver juntos. Somos demasiado parecidos. Um dia acabarias por me fazer zangar, a minha língua não se conteria... A seguir batias-me e eu odiar-te-ia. Preciso de um marido que eu possa controlar.

Agora, enquanto observava a estrada à sua frente, Sir Hector murmurou:

- Não o conseguiste controlar, pois não, Mary?

Sem ela, não sentia qualquer desejo de regressar. Não havia nada que o atraísse. A visão de paz e conforto com que sonhara durante as suas viagens fora cruelmente despedaçada. Tudo o que lhe restava era a guerra.

O bispo quase o fizera rir-se às gargalhadas quando o visitara na noite anterior. A sua expressão de estupefacção fora cómica mas Sir Hector não estava arrependido. Stapledon sugerira que Sir Hector poderia querer levar a criança com ele.

- No fim de contas, o Rollo é seu filho.

- E se for? Saberá empunhar uma espada? Consegue lutar? Sabe como assaltar uma muralha? Que iria eu fazer com uma criança? - O Rollo era um peso demasiado grande e inútil numa campanha. Ainda nem sequer recebera treino como pajem, pelo que seria uma espécie de bagagem dispendiosa e que não serviria para nada. - Fique com ele, bispo. Tome conta dele. Não sabia que tinha um filho antes de chegar aqui e quero ir-me embora no mesmo estado de feliz ignorância.

- É a sua carne e o seu sangue.

- Talvez. Se eu resolvesse comprar uma mansão e instalar-me com uma mulher, então poderia pensar em providenciar-lhe uma casa, mas tal como as coisas estão não o posso levar comigo.

- Seria mais feliz consigo. Sempre é o pai...

- O pai? - resmungara Sir Hector com os olhos postos no rosto do bispo. - Pensa que o sangue fará o rapaz mais feliz? Acredita, na verdade, que o facto de estar comigo lhe tornaria a vida mais agradável? Tudo o que vejo nele é uma recordação da mãe, quando o que quero é lembrar-me da minha querida Mary. Não lhe posso mostrar qualquer afecto porque não sinto nenhum. Para mim seria apenas um espinho cravado no cérebro, a recordar-me constantemente desta cidade e da mulher que perdi. Não, bispo. Fique o senhor com ele.

O cavaleiro abanou a cabeça. Stapledon não fazia a mínima ideia sobre o que era a vida de um mercenário. Estava habituado a viver num palácio e nem sequer imaginava o esforço necessário para manter o bando unido e para tentar ganhar o suficiente para viver.

Quando a estrada começou a descer, seguindo a linha de uma colina, o cavaleiro voltou a sorrir. Era bom estar a cavalo. Deu uma palmadinha na espada leve, no seu flanco. Enquanto possuísse um cavalo e usasse o aço continuaria a ser um homem. Só as velhas se sentavam em casa a planear refeições. A sua vida era a de um guerreiro e isso era tudo o que necessitava. Sentiu uma leve vaga de tristeza quando o rosto de Mary lhe esvoaçou na mente, mas desapareceu e Sir Hector entregou-se ao prazer da cavalgada. Quando mais longe se via da cidade mais leve se lhe tornava o coração. Como que para dar ênfase à melhoria da sua disposição, o Sol abriu caminho no céu cinzento, um dedo de luz atravessou as nuvens e brilhou sobre a estrada húmida.

Sentiu a pancada nas costas e a sua primeira reacção foi olhar para trás com uma expressão furiosa. Era como se alguém lhe tivesse atirado uma pedra.

- Quem...? - começou, mas viu o homem que se encontrava na sua frente e calou-se.

Will regressara. Apressara-se atrás dos mercenários, alcançara-os a cerca de dois quilómetros da cidade e lançara-se sobre as armas que se encontravam na carroça. Agora encontrava-se no meio de um molho de homens, com uma besta nas mãos. Viu Sir Hector a virar-se e deixou cair a besta, aterrorizado. A seu lado, os outros homens olhavam para o capitão com as bocas abertas.

- Então, homenzinho? És suficientemente corajoso para disparares contra mim? - berrou Sir Hector, tentando fazer com que o cavalo se virasse para o lançar sobre o homem... mas descobriu que tinha um braço inexplicavelmente fraco.

- Carrega outro, Will! Dispara outra vez! Depressa/

O capitão tomou nota de quem dissera aquilo, para posterior castigo. A incitação a um amotinado iria custar-lhe a língua. Todavia, Sir Hector sentia-se fraco. As suas forças estavam a falhar. Por baixo dele, o cavalo movia-se nervosamente, dando pequenos passos dançantes. O cavaleiro tinha dificuldades para se manter na sela, Enquanto o observava, Will pegou na besta, agarrou na corda e puxou-a para trás a fim de a prender. Calmamente, como que através de uma espécie de nevoeiro, Sir Hector viu um homem a passar um novo virote a Will. Embora este estivesse claramente com dores, tivesse o rosto vermelho e a suar, e remexesse no virote de uma maneira desajeitada, não parecia que isso se devesse ao ferimento no flanco mas sim ao medo que tinha do seu capitão.

Sir Hector esporeou o cavalo mas descobriu que tinha dificuldades para se manter na sela. O grande animal negro moveu-se, agitou a cabeça para baixo e para cima rapidamente e Sir Hector quase caiu. Uma súbita dor aguda entre os ombros fê-lo abrir muito os olhos. Fora atingido!

Will levantou a arma pela segunda vez, disparou... e Sir Hector viu, mais do que sentiu, o modo como o virote lhe atingiu o peito. A cabeça pesava-lhe insuportavelmente e o queixo caiu-lhe para o peito. Lentamente, enquanto o animal por baixo dele continuava andar, o cavaleiro deslizou da sela, embateu com as costas no chão e ofegou de agonia.

Os homens continuaram o seu caminho. A maior parte nem sequer olhou na direcção do líder, mas houve um que o pontapeou e o empurrou com o pé até o cavaleiro rolar para a sarjeta. Ficou ali, a olhar para o bando que se afastava. Sir Hector engoliu mas o líquido que sentia na garganta não desapareceu e reconheceu o som áspero da sua respiração. Já o ouvira antes. Tentou sentar-se mas a dor impediu-o de o fazer. Seria melhor descansar, pensou, e deixar que a cabeça caísse nas ervas a seu lado. Tinha vontade de vomitar mas sabia que não o podia fazer.

Os homens chegaram à próxima curva da estrada e houve um deles que se virou para olhar. Viu uma mancha de cor junto à estrada, onde o capitão caíra, hesitou por um instante e correu para ele.

Aproximou-se e ouviu a respiração de Sir Hector a gorgolejar-lhe nos pulmões. O cavaleiro jazia como se estivesse a dormir. Para ele, a figura que se aproximava era apenas uma mancha e tentou sorrir - pelo menos, um dos seus continuava a ser leal -, mas a boca não lhe obedeceu.

- Ajuda... me...

Will agachou-se e desembainhou a adaga.

- Precisamos de um novo capitão... - disse, com toda a simplicidade.

 

                                                                                Michael Jecks  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"