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OS BELOS E MALDITOS / F. Scott Fitzgerald
OS BELOS E MALDITOS / F. Scott Fitzgerald

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Os belos e malditos, segundo romance de F. Scott Fitzgerald (1896 - 1940), é devastador panorama dos excessos e loucuras da Era do Jazz, e uma representação autobiográfica de um glamoroso e irresponsável casal de Manhattan e seu espetacular e trágico declínio. Publicada logo após Este lado do paraíso (romance de estréia do autor), a história de Anthony Patch, herdeiro milionário formado pela Universidade de Harvard, e Gloria, sua mulher, reflete toda a força da intensa e romântica imaginação de Fitzgerald e atesta sua maturidade técnica e emocional.
Este livro é, a um só tempo um conto moral, uma comovente meditação sobre amor, casamento e dinheiro, além de um acurado documento social, escrito por uma das principais vozes da ficção norte-ameicana do século 20.

 


 


Livro UM

CAPÍTULO UM
ANTHONY PATCH

Em 1913, quando Anthony Patch tinha 25 anos, já haviam passado dois anos desde que a ironia, o Espírito Santo desses últimos tempos, baixara, ao menos em tese, sobre ele. A ironia era aquele acabamento no brilho do sapato, a derradeira escovadela na roupa, uma espécie de "veja só!" intelectual - contudo, nos primórdios desta história, ele ainda não suplantara seu estágio consciente. Quando nós o vemos pela primeira vez, ele vive duvidando da própria honra, da própria sanidade, ostentando uma magreza infame e obscena que reluz na superfície da terra, como uma mancha de óleo na água límpida de um poço; ocasiões estas que se alternam, é claro, com aquelas em que ele se considera um rapaz um tanto quanto excepcional, de rematada sofisticação, bem adaptado a seu meio e, de certo modo, mais expressivo do que qualquer outro conhecido seu. Esta última era sua fase saudável, que o tornava alegre, simpático e muito atraente para os homens de espírito e todas as mulheres. Nesse estado, achava que um dia haveria de realizar algo sóbrio e sutil, cujo mérito seria reconhecido pelos eleitos e, ao falecer, haveria de se juntar às estrelas mais fracas em um vago céu, a meio caminho entre a morte e a imortalidade. Até chegar a hora desse feito, ele seria Anthony Patch - não o estereótipo de um homem, mas uma personalidade dinâmica e singular, cheia de opiniões, arrogante, centrada em si - um sujeito descrente na honradez, porém honrado; cônscio de toda a conversa fiada sobre a bravura, porém bravo.

UM HOMEM DE MÉRITO E SEU PRENDADO FILHO

A noção de segurança social que Anthony possuía por ser neto de Adam J. Patch equivalia à que ele teria se fosse capaz de fazer remontar sua linhagem até os cruzados do velho continente. Algo inevitável. Que me perdoem os nativos da Virgínia e
de Boston, uma aristocracia baseada puramente no dinheiro exige a riqueza do individual.
Ora, Adam J. Patch, mais conhecido como Cross Patch, deixou a fazenda de seu pai em Tarrytown, no início de 61, para ingressar em um regimento de cavalaria de Nova York. Voltou da guerra como major, tomou Wall Street de assalto e, entre muito rebuliço, bajulações, aplausos e reações rancorosas, acumulou uns 75 milhões de dólares.
Isso ocupou sua energia até fazer 57 anos. Foi então que, depois de um severo ataque de esclerose, resolveu dedicar o resto de sua vida à regeneração moral do mundo. Tornou-se um reformador e tanto. A exemplo dos magníficos esforços de Anthony Comstock, cujo nome homenageou dando-o a seu neto, atacou a torto e a direito a bebida, a devassidão, a arte, as "garrafadas" dos camelôs e as domingueiras teatrais. Sob a influência daquele pérfido mofo que acaba se acumulando na mente de todo mundo, salvo raras exceções, entregou-se furiosamente a todas as indignações da época. De uma poltrona no escritório de sua propriedade rural em Tarrytown, dirigiu uma campanha contra o enorme inimigo virtual - a imoralidade - que durou quinze anos, durante os quais deu mostra de uma monomania hidrófoba, de ser uma praga ímpar e de uma chatice intolerável. O ano em que se inicia esta história vai encontrá-lo cansado, já inconstante na sua cruzada; 1861 encostava de mansinho em 1895; seus pensamentos versavam bastante sobre a Guerra Civil, um pouco sobre sua mulher e seu filho já mortos e, de modo quase infinitesimal, sobre seu neto Anthony.
No início de sua carreira Adam Patch se casara com uma senhora anêmica de trinta anos, Alicia Withers, que lhe trouxe cem mil dólares e uma porta de entrada impecável para os meios bancários de Nova York. De modo imediato e um tanto quanto corajoso, ela lhe dera um filho e, como que desvitalizada pela magnitude do feito, desde então se recolhera às dimensões sombrias dos aposentos da criança. O garoto, Adam Ulysses Patch, tornou-se um inveterado freqüentador de clubes, perito em boas maneiras e na condução de carruagens - com a espantosa idade de 26 anos, deu início à sua autobiografia, sob o título de A sociedade de Nova York que eu vi. Diante do boato de sua urdidura, essa obra foi disputada ansiosamente pelas editoras, mas como ficou provado depois de sua morte que ela era de uma extrema verborragia e de uma intolerável chatice, o livro sequer conseguiu sair em uma edição do autor.
Esse Chesterfield da Fifth Avenue casou-se aos 22 anos. Sua mulher era Henrietta Lebrune, a "Contralto da Sociedade" de Boston, e, a pedido do avô, batizaram o único filho dessa união de Anthony Comstock Patch. Quando foi para Harvard, Anthony descartou o Comstock do nome e atirou-o no inferno abissal do esquecimento, para jamais se ouvir falar dele depois.
O jovem Anthony tinha uma foto de seu pai e sua mãe - tantas vezes exposta a seus olhos durante a infância que adquirira a impessoalidade do mobiliário, a despeito de despertar o interesse de todos que entravam em seu quarto. Ela mostrava um dândi dos anos 90, esguio e belo, ao lado de uma senhora alta e morena, com um regalo e um indício de anquinhas. Entre eles havia um menininho de longos cachos castanhos, vestido em um terno de veludo tipo Lord Fauntleroy. Este era Anthony com cinco anos, no ano da morte da mãe.
Suas recordações da Contralto da Sociedade de Boston eram nebulosas e musicais. Ela era a senhora que cantava, cantava, cantava, na sala de música de sua casa em Washington Square - às vezes com convidados espalhados à sua volta, os homens de braços cruzados, empoleirados, de fôlego preso, na beira dos sofás, as mulheres com as mãos descansando no colo, cochichando vez por outra com os homens, sempre aplaudindo energicamente e soltando arrulhos depois de cada canção - e muitas vezes ela cantava só para Anthony, em francês ou italiano, ou em um estranho e terrível dialeto que ela acreditava ser a fala dos negros sulistas.
Suas recordações do galante Ulysses, o primeiro homem na América a dobrar as lapelas do casaco, eram muito mais nítidas. Depois que Henrietta Lebrune Patch "ingressara em outro coro", como costumava dizer de quando em quando, com voz roufenha, seu viúvo, o pai e o filho foram morar na casa do vovô, em Tarrytown, e Ulysses ia diariamente aos aposentos de Anthony, quando pronunciava palavras agradáveis, meio adulatórias, chegando às vezes a fazê-lo por uma hora. Vivia prometendo a Anthony excursões de pesca, excursões de caça e excursões a Atlantic City, "ah, dentro em breve, logo"; mas nenhuma delas jamais se concretizara. Fizeram, sim, uma viagem; quando Anthony tinha dez anos, foram ao estrangeiro, à Suíça e Inglaterra, e lá em Lucerne morreu seu pai, entre muitos gemidos e suores, gritando por ar. Em pânico, pavor e desespero, Anthony foi levado de volta à América, atrelado a uma vaga melancolia que haveria de acompanhá-lo pelo resto da vida.

O PASSADO E A PESSOA DO HERÓI

Aos onze anos, tinha pavor da morte. No decorrer de seis atribulados anos, seus pais haviam morrido e sua avó definhado imperceptivelmente, até que, pela primeira vez desde seu casamento, ela reinara em pessoa, de forma inquestionável, por um dia, sobre a própria sala de estar. Assim, para Anthony, a vida consistia em uma luta contra a morte, à espreita em cada esquina. Foi cedendo à sua imaginação hipocondríaca que ele adquiriu o hábito de ler na cama - tranqüilizava-o. Lia até ficar cansado e muitas vezes adormecia de luz acesa.
Sua diversão predileta até os quatorze anos era sua coleção de selos; enorme, quase tão completa quanto possível para uma coleção de menino - seu avô achava tolamente que assim ele aprendia geografia. Por isso Anthony mantinha correspondência com meia dúzia de firmas de "selos e moedas" e era raro o correio não lhe trazer novos álbuns de selos ou pacotes com folhas brilhantes, em consignação
- havia um misterioso fascínio em ficar transferindo suas aquisições interminavelmente de um álbum para outro. Seus selos eram sua maior felicidade e ele dava olhares carrancudos de impaciência a quem o interrompesse quando estava brincando com eles; devoravam sua mesada todo mês, e ele ficava acordado à noite em incansáveis devaneios sobre sua variedade e esplendor multicores.
Aos dezesseis anos já vivia quase inteiramente imerso em si, um garoto inarticulado, cem por cento não americano, reagindo com polidez ao próprio desnorteio diante de seus contemporâneos. Os dois anos anteriores foram passados na Europa, com um tutor; este lhe convencera que Harvard era a coisa certa; haveria de lhe "abrir portas", seria um tremendo estimulante, haveria de lhe conquistar um sem número de amigos dedicados e altruístas. Assim, foi para Harvard - não havia outra solução lógica para ele.
Indiferente ao sistema de castas, durante algum tempo viveu só e ao largo das solicitações sociais, em um quarto de andar alto, em Beck Hall - um rapaz esguio e moreno de estatura mediana, com uma boca tímida e sensível. Sua mesada era mais que generosa. Lançou os alicerces de uma biblioteca ao comprar, de um bibliófilo ambulante, primeiras edições de Swinburne, Meredith e Hardy, e uma carta ilegível e amarelada do próprio punho de Keats, descobrindo, mais tarde, ter sido espantosamente explorado. Tornou-se um dândi primoroso, amealhou uma coleção meio patética de pijamas de seda, robes de brocado e gravatas demasiado vistosas para o uso; nesses adereços secretos, desfilava diante do espelho de seu quarto ou jazia estatelado entre cetins, ao lado do banco sob a janela, olhando o pátio embaixo e percebendo obscuramente aquele clamor, sôfrego e imediato, do qual ele, ao que parece, jamais haveria de participar.
É bastante curioso que em seus anos de veterano tenha descoberto que conquistara certo destaque em sua turma. Soube que era tido por uma figura meio romântica, um scholar recluso, uma torre de erudição. Isso o divertia e, intimamente, o agradava - começou a sair, primeiro um pouquinho, e em seguida, bastante. Conseguiu entrar no Pudding (Famoso clube teatral da universidade). Bebia
- tranqüilamente e conforme a tradição aceita. Dizia-se dele que se não houvesse entrado tão cedo na universidade, talvez tivesse conseguido um "excelente currículo". Em 1909, quando se formou, tinha apenas vinte anos.
Em seguida o exterior novamente - e dessa vez, Roma, onde namorou a arquitetura e a pintura, consecutivamente, começou a estudar violino e compôs alguns pavorosos sonetos italianos, supostas ruminações de um monge do século 13 sobre as alegrias da vida contemplativa. Virou fato conhecido entre seus amigos de Harvard que ele estava em Roma, e os que foram ao exterior naquele ano visitaram-no e descobriram, a seu lado, em várias excursões ao luar, que muitas coisas na cidade eram mais antigas do que o Renascimento e, na verdade, do que a República. Por exemplo, Maury Noble, de Filadélfia, ficou dois meses e, juntos, tomaram consciência do encanto especial da mulher latina e tiveram a maravilhosa sensação de serem jovens e livres, no meio de uma civilização muito antiga e livre. Não foram poucos os conhecidos de seu avô que o procuraram e, se ele assim o desejasse, talvez tivesse virado persona grata no meio diplomático
- na verdade, descobriu que sua inclinação o levava cada vez mais para o cultivo da sociabilidade, embora aquele longo alheamento adolescente e a conseqüente timidez ainda ditassem sua conduta.
Ele voltou para a América em 1912 por causa de uma das súbitas doenças do avô, e após uma conversa excessivamente cansativa com o velho em perpétua convalescença, resolveu adiar para depois da morte do avô sua idéia de morar definitivamente no exterior. Depois de uma longa busca, alugou um apartamento na Fifty-second Street e, para todos os efeitos, instalou-se de vez.
Em 1913, estava em vias de consumar-se o processo de adaptação entre Adam Patch e o universo. Fisicamente falando, ele melhorara desde seus dias de estudante universitário - ainda era magro demais, mas seus ombros haviam se alargado e seu rosto moreno perdera o ar assustado da época de calouro. Era intimamente ordeiro e irrepreensivelmente cuidadoso com sua aparência - seus amigos diziam que nunca tinham visto seu cabelo despenteado. Seu nariz era demasiado adunco; a boca, infelizmente, um desses espelhos do estado de espírito, com tendência a cair visivelmente nos momentos de infelicidade, mas seus olhos azuis eram encantadores, não importa se acesos de inteligência ou entreabertos em uma expressão melancólica.
Um desses homens que carecia das feições simétricas essenciais ao ideal ariano, ele era, no entanto, considerado, aqui e ali, um homem bonito
- além do mais, era muito asseado, tanto na aparência como de fato, com aquele asseio especial que vem de empréstimo com a beleza.

O APARTAMENTO IRREPREENSÍVEL

A Fifth e a Sixth Avenue pareciam a Anthony as traves de uma gigantesca escada que se estendia de Washington Square ao Central Park. Subir a cidade a bordo de um ônibus em direção à Fifty-second Street dava-lhe, invariavelmente, a sensação de se içar, mão ante mão, por uma série de degraus traiçoeiros, e quando o ônibus parava com um sacolejo no seu próprio degrau, ele sentia algo parecido com alívio ao descer os arriscados degraus até a calçada.
Depois disso, só precisava descer meio quarteirão da Fifty-second Street, passar por um aglomerado enfadonho de prédios de pedra escura - e então, em um instante, já se encontrava sob o pé direito alto de sua grande sala da frente. Isso era inteiramente satisfatório. Era ali, afinal de contas, que a vida tinha início. Ali dormia, tomava café-da-manhã, lia e recebia. O próprio prédio era uma construção duvidosa, erguida no final dos anos 90; em resposta à crescente demanda por apartamentos pequenos, cada andar fora inteiramente remodelado e alugado em separado. Dos quatro apartamentos, o de Anthony, no segundo andar, oferecia mais vantagens.
A sala de estar tinha um ótimo pé direito alto e três janelas grandes que davam agradavelmente para a Fifty-second Street. Visto pelos seus ornamentos, o apartamento fugia por uma boa margem de ser enquadrado em qualquer período; escapava de ser tradicional demais, comum, antiquado e decadente. Não ficava nem lá nem cá - era alto e ligeiramente azulado. Havia uma sala de estar comprida revestida do mais macio couro marrom em que flutuava, como névoa, um ar de sonolência. Havia um biombo chinês alto, de laca, ornamentado, em grande parte, com figuras geométricas de pescadores e caçadores, em dourado e preto, que criava um espaço reservado para uma volumosa poltrona, escoltada por uma luminária de pé, cor de laranja. Bem no fundo da lareira
via-se um escudo dividido em quatro partes, chamuscado, de um preto sombrio. Passando pela sala de jantar que, pelo fato de Anthony só tomar em casa seu café-da-manhã, não passava de uma magnífica potencialidade, e descendo um corredor relativamente longo, chegava-se ao coração e âmago do apartamento - o quarto e o banheiro de Anthony.
Eram ambos imensos. Sob o teto do primeiro, até mesmo a grande cama de dossel parecia apenas de tamanho médio. No chão havia um tapete exótico de veludo carmesim, macio como lã sob seus pés descalços. O banheiro, contrastando com o aspecto um pouco solene do quarto, era alegre, claro, extremamente habitável e até mesmo ligeiramente engraçado. Pelas paredes havia fotos emolduradas de quatro belas atrizes da época: Julia Sanderson como The Sunshine Girl, Ina Claire como The Quaker Girl, Billie Burke como The Mind-thePaint Girl e Hazel Dawn como The Pink Lady. Entre Billie Burke e Hazel Dawn pendia uma gravura na qual se via uma grande extensão nevada dominada por um sol frio e descomunal - representando, segundo Anthony, o chuveiro frio.
A banheira, equipada com um engenhoso suporte para livro, era grande e baixa. A seu lado, um armário embutido estava repleto de roupas que dariam para três homens e gravatas para uma geração. Não havia nenhuma toalha vagabunda com pretensões a tapete - e sim um belo tapete, como o do quarto, milagre de maciez que parecia quase massagear o pé molhado, saído da banheira...
Resumindo, um aposento encantador - dava para entender por que Anthony se vestia ali, penteava seus cabelos impecáveis ali e, na verdade, fazia tudo ali, menos comer e dormir. Era motivo de seu orgulho, aquele banheiro. Ele achava que se tivesse uma amada, teria pendurado seu retrato ali, dando exatamente para a banheira, de modo que, perdido nos vapores relaxantes da água quente, pudesse permanecer olhando para ela, divagando calorosa e sensualmente sobre sua beleza.

NEM ELE PERDE TEMPO

Cuidava do apartamento um empregado inglês com o nome singular e quase teatralmente adequado de Bounds, cuja técnica só não era perfeita pelo fato de não usar colarinho engomado. Se fosse empregado apenas de Anthony, esse defeito poderia ser sumariamente remediado, mas ele também era o Bounds de dois cavalheiros da vizinhança. De oito às onze da manhã, pertencia exclusivamente a Anthony. Chegava trazendo a correspondência e fazia o
café-da-manhã. Às nove e meia puxava a borda do cobertor de Anthony dizendo algumas poucas palavras concisas - Anthony jamais lembrava claramente quais eram elas e tinha uma ligeira desconfiança de que fossem de crítica; em seguida, servia o
café-da-manhã em uma mesa de jogo na sala de estar, arrumava a cama e, depois de perguntar com certa rabugice se havia mais alguma coisa a fazer, se retirava.
Pelo menos uma vez por semana, Anthony ia ver seu corretor de ações, pela manhã. Sua renda era pouco menos de sete mil por ano, juros de um dinheiro que herdara da mãe. Seu avô, que jamais permitira a seu filho uma mesada muito liberal, julgava essa quantia suficiente para as necessidades do jovem Anthony. Mandava, todo Natal, uma apólice de quinhentos dólares que Anthony geralmente vendia, se possível, já que andava sempre um pouco, mas não muito, duro.
As visitas a seu corretor variavam; podiam ser conversas semi-sociais ou discussões sobre a segurança de investimentos a oito por cento, Anthony sempre gostava delas. O grande prédio da empresa de investimentos parecia ligá-lo de modo definitivo às grandes fortunas, cuja solidariedade ele respeitava, e ressegurá-lo de estar sendo objeto do desvelo da hierarquia financeira. Ele adquiria daqueles homens apressados a mesma sensação de segurança que tinha ao contemplar o dinheiro do avô - até mais, porque este parecia um empréstimo a fundo perdido feito pelo mundo à retidão moral de Adam Patch, enquanto o dinheiro do centro financeiro parecia ter sido amealhado e mantido por uma força indomável, por tremendas façanhas da vontade; além disso, porque o centro lembrava, de modo mais explícito e concreto, dinheiro.
Embora esbarrasse sempre nos limites de sua renda, considerava-a suficiente. Chegaria um dia dourado, é claro, em que ele teria muitos milhões; entrementes possuía uma raison d'être no trabalho teórico de escrever ensaios sobre os papas do Renascimento. Isso nos faz voltar à conversa com o avô logo que Anthony retornara de Roma.
Esperara encontrar o avô morto, mas soube, por um telefonema dado do cais, que Adam Patch se recuperara relativamente - no dia seguinte ele ocultara sua decepção e fora até Tarrytown. A oito quilômetros da estação seu táxi, entrou em uma alameda extremamente bem cuidada, serpenteando por um verdadeiro labirinto de muros e cercas de arame que protegiam a propriedade - cuja razão de ser, dizia o público, era de conhecimento geral: no dia que os socialistas tomassem o poder, um dos primeiros sujeitos a ser assassinado seria o velho Cross Patch.
Anthony se atrasou e o venerável filantropo o aguardava em um solário de paredes de vidro, onde passava os olhos pela segunda vez nos jornais da manhã. Seu secretário, Edward Shuttleworth - que antes de se regenerar fora jogador, dono de cabaré e réprobo profissional -, introduziu Anthony no aposento, exibindo seu redentor e benfeitor como estivesse mostrando um tesouro de valor incalculável.
Apertaram solenemente as mãos.
- Fico muito contente em saber que está melhor
- disse Anthony.
Patch sênior, com ar de quem já vira seu neto na semana passada, sacou o relógio.
- O trem atrasou? - perguntou brandamente.
Irritara-o esperar por Anthony. Iludia-se não só ao achar que na sua juventude fora escrupulosíssimo em todos seu negócios, inclusive na pontualidade em seus compromissos, como também ao atribuir a esse fato a principal causa de seu sucesso.
- Tem atrasado bastante este mês - comentou, com um humilde toque acusatório na voz, e depois, com um longo suspiro: - Sente-se.
Anthony examinou seu avô com o espanto tácito que sempre lhe provocava a visão dele. Que aquele velho fraco e burro tivesse tanto poder para, a despeito da opinião dos jornais sensacionalistas, só não comprar direta ou indiretamente as consciências de um punhado de cidadãos que mal dariam para povoar White Plains, parecia tão impossível de acreditar como o fato de que ele já fora um bebê rosadinho e branquinho.
Seus 75 anos funcionaram como um fole mágico - o primeiro quarto de século o inflara, todo cheio de vida, que o último sugara toda de volta. Chupara suas faces, o peito, o volume das pernas e braços. Confiscara tiranicamente seus dentes, um a um, deixara seus pequenos olhos suspensos em sacos escuros e azulados, arrancara seus cabelos, transformara-os de cinza em branco em alguns lugares, de ruivos em amarelos em outros
- transpondo insensivelmente suas cores como uma criança brincando com uma caixa de tintas. E, depois de perpassar seu corpo e sua alma, atacara seu cérebro. Provocara-lhe lágrimas, suores noturnos e temores infundados. Dividira sua intensa normalidade em credulidade e desconfiança. Da substância bruta de seu entusiasmo, retirara dezenas de obsessões humildes, porém rabugentas; consumira sua energia até restar apenas o mau humor de uma criança mimada, e sua vontade de poder foi substituída por um anseio pueril por cânticos e arpejos nesta terra.
Esgotada a cuidadosa abordagem de amenidades, Anthony esperava que ele esboçasse suas intenções
- ao mesmo tempo, um brilho no olhar do velho avisava-o que evitasse, por enquanto, abordar o assunto de se mudar para o estrangeiro. Ele gostaria que Shuttleworth tivesse bastante sensibilidade para sair do aposento - detestava Shuttleworth - mas o secretário se acomodara tranqüilamente em uma cadeira de balanço, partilhando seu olhar cansado entre os dois Patch.
- Agora que você está aqui, devia fazer alguma coisa - disse suavemente seu avô -, realizar algo.
Anthony esperou até que ele falasse em "deixar uma obra quando passasse desta para a melhor". Em seguida, sugeriu algo.
- Acho... acho que sou melhor dotado para escrever...
Adam Patch estremeceu, imaginando um poeta na família, com cabelos longos e três amantes.
- ... história - completou Anthony.
- História? História de quê? Da guerra civil? Da revolução?
- Ora... não, avô. História da Idade Média.
- Veio-lhe simultaneamente a idéia de uma história dos papas do Renascimento, escrita de alguma nova perspectiva. Contudo, ficou satisfeito de ter dito "Idade Média".
- Idade Média? Por que não do seu próprio país? Algo de que você tenha conhecimento?
- Bem, você sabe, morei tanto tempo no exterior...
- Por que deveria escrever sobre a Idade Média é algo que eu não sei. Idade das Trevas, costumávamos chamá-la. Ninguém sabe o que aconteceu então, ninguém está ligando, só se sabe que agora já passou. - E ele prosseguiu, durante algum tempo, sobre a inutilidade desse tipo de informação, abordando, naturalmente, a Inquisição Espanhola e a "devassidão monástica". Em seguida:
- Você acha que será capaz de trabalhar em Nova York; e pretende mesmo trabalhar? - esta última parte foi dita com um doce e quase imperceptível cinismo.
- Ora, avô, pretendo sim.
- Quando acabará?
- Terei de fazer um esboço, sabe; e muitas leituras preliminares.
- Acho que essas você já fez bastante.
A conversa avançou aos trancos e barrancos até chegar a um término meio abrupto, quando Anthony se levantou, consultou seu relógio e comentou que tinha um encontro com seu corretor naquela tarde. Pretendera ficar alguns dias com seu avô, mas estava cansado e irritado por causa da travessia agitada e nada propenso a suportar insinuações e uma lição de moral beata. Ele poderia voltar dentro de poucos dias, disse.
No entanto, foi graças a esse encontro que o trabalho entrou na sua vida como idéia permanente. Durante o ano que se passara desde então, ele fizera várias listas de fontes acadêmicas, chegara a experimentar títulos de capítulos e a divisão da obra em períodos, porém não havia sequer uma linha escrita até o presente, nem parecia possível que viesse a existir. Ele não fazia nada - e, contrariando a mais consagrada lógica didática, conseguia se divertir acima da média.

TARDE

Era em outubro de 1913, no meio de uma semana cheia de dias agradáveis, com a luz do sol a vagabundear nas esquinas e uma atmosfera tão lânguida que parecia cheia de folhas imaginárias a caírem. Era bom ficar na preguiça diante da janela aberta, terminando um capítulo de Erewhon. Era bom bocejar lá pelas cinco, jogar o livro em cima da mesa e descer lentamente o corredor rumo ao banho.

"To... you... beaut-if-ul lady" - cantarolou ele ao abrir a torneira.
"I raise... my... eyes;
To... you... beaut-if-ul lady
My... heart... cries"

Ele levantou a voz para competir com o jorro de água que caía na banheira, e ao olhar para o retrato de Hazel Dawn na parede, colocou um violino imaginário no ombro e acariciou-o delicadamente com um arco imaginário. Com os lábios cerrados, fazia um zumbido que imaginava ser vagamente o som de um violino. Depois de um instante, suas mãos pararam os gestos musicais e voltaram-se para a camisa, que ele começou a desabotoar. Nu, adotando a postura atlética como a do sujeito de pele de tigre no anúncio, olhou-se com certa satisfação no espelho, parando para molhar um pé, hesitantemente, na banheira. E depois de mexer em uma torneira e dar alguns gemidos preliminares, escorregou para dentro da água.
Após se acostumar à temperatura, relaxou e caiu em uma sonolência satisfeita. Quando acabasse o banho, se vestiria com calma e desceria a Fifth Avenue até o Ritz, onde marcara um encontro para jantar com dois de seus mais freqüentes companheiros, Dick Caramel e Maury Noble. Depois, ele e Maury iriam ao teatro - Caramel provavelmente iria direto para casa trabalhar no seu livro, que deveria estar pronto em breve.
Anthony estava satisfeito por não ser ele a ir trabalhar no seu livro. A idéia de se sentar e produzir, não apenas palavras para vestir idéias, mas idéias dignas de serem vestidas - tudo isso estava absurdamente além de seus desejos.
Ao sair do banho, lustrou-se com o cuidado meticuloso de um engraxate. Em seguida foi até o quarto e, assobiando um pouco uma vaga melodia, andou de lá para cá se abotoando, se ajustando e apreciando o calor do grosso tapete sob seus pés.
Acendeu um cigarro, jogou o fósforo pela janela aberta, em seguida congelou seu gesto com o cigarro a cinco centímetros da boca - que ficou ligeiramente entreaberta. Seu olhar focou um ponto de cor berrante no telhado de uma casa, mais para baixo na viela.
Era uma garota em um robe vermelho, certamente de seda, secando os cabelos ao sol ainda quente do final da tarde. O assobio dele morreu no ambiente correto do quarto; deu mais um passo cauteloso em direção à janela, com a súbita impressão que ela era bonita. No parapeito de pedra ao lado dela, havia uma almofada, da mesma cor de sua veste, sobre a qual descansava ambos os braços a olhar para a área de serviço ensolarada onde Anthony podia ouvir crianças brincando.
Ele observou-a durante vários minutos. Algo nele fora tocado, algo que não se podia creditar ao cheiro cálido da tarde, nem ao brilho triunfal do vermelho do robe. Ele convenceu-se de que a garota era bonita - então, súbito, deu-se conta: havia algo na distância dela, não uma rara e preciosa distância da alma, mesmo assim uma distância, ainda que apenas medida em metros. O ar de outono se interpunha entre eles, embaralhando tetos e vozes. E, no entanto, por um instante inexplicável, perversamente parado no tempo, ele sentiu uma adoração maior do que no beijo mais profundo que jamais dera.
Acabou de se vestir, encontrou uma gravata borboleta preta e ajustou-a com cuidado no espelho de três faces do banheiro. Em seguida, cedendo a um impulso, entrou rapidamente no quarto e olhou de novo pela janela. A mulher estava agora em pé; jogara os cabelos para trás, e ele tinha uma visão desimpedida dela. Gorda, com seus 35 anos completos, totalmente comum. Dando um estalo com a língua, ele voltou para o banheiro e repartiu o cabelo.

"To...you...beaut-if-ul lady", cantarolou,
"I raise... my... eyes "

Em seguida, com uma última escovada relaxante que deixou um rastro reluzente de brilhantina no seu cabelo, ele deixou o quarto e o apartamento e desceu a Fifth Avenue até o Ritz-Carlton.

TRÊS HOMENS

Às sete, Anthony e seu amigo Maury Noble estão sentados em uma mesa de canto na fresca cobertura. Maury Noble não poderia se parecer mais com um gato esguio e imponente. Tem olhos estreitos que piscam sem parar. Seu cabelo é liso e achatado, como se tivesse sido lambido por uma hipotética - e neste caso, hercúlea - gata mãe. Durante a época de Anthony em Harvard, ele era tido na sua turma como uma figura singular, a mais brilhante, a mais original - tranqüilo, elegante, um dos eleitos.
Esse é o sujeito que Anthony considera seu melhor amigo. Esse é o homem que, de todos seus conhecidos, ele admira e, mais do que gosta de admitir para si mesmo - inveja.
Ficam contentes de se ver agora - seus olhos se iluminam de carinho à medida que cada um recebe o pleno impacto da novidade, depois de uma breve separação. Sentem-se descontraídos na presença um do outro, com uma serenidade renovada; Maury Noble, atrás daquele belo rosto absurdamente felino, quase ronrona. E Anthony, nervoso como um fogo fátuo, inquieto - está agora descansado.
Ficam absortos em uma daquelas conversas fáceis de frases curtas, a que apenas os homens com menos de trinta anos, ou sob grande tensão, se entregam.

ANTHONY: Sete horas. Onde está o Caramel? (Impacientemente) Tomara que ele acabe logo esse romance interminável. Estou azul de fome...
MAURY: Ele arranjou um novo nome para o livro: O amante endiabrado - nada mau, não é?
ANTHONY: (Interessado) O amante assombroso? Ah, A mulher ululante! Sim, nada mau! Nada mau mesmo, não acha?
MAURY: Bastante bom. Que horas você disse?
ANTHONY: Sete.
MAURY: (Olhos se estreitando - não de modo desagradável, apenas exprimindo uma ligeira censura) Me deixou maluco outro dia.
ANTHONY: Como?
MAURY: Essa mania de ficar anotando.
ANTHONY: A mim também. Parece que na noite anterior eu dissera algo que ele achou bom, mas que esqueceu - por isso me fez sofrer. Ele dizia, "Será que dá para você se concentrar?" E eu dizia "Você me entedia até às lágrimas. Como é que vou lembrar?"
(MAURY ri silenciosamente, com uma suave bonomia a se espraiar nas suas feições.)
MAURY: Dick não consegue enxergar necessariamente mais do que os outros. Apenas consegue anotar uma quantidade maior do que vê.
ANTHONY: Um talento bastante impressionante...
MAURY: Ah, sim. (Silêncio, e então:)
ANTHONY: (Com seu rosto magro, meio inseguro, no auge da convicção) Mas de uma energia que não é eterna. Chegará o dia em que, pouco a pouco, ela se esgotará, e seu talento bastante impressionante também, deixando apenas um fiapo de homem, preocupado, egoísta, tagarela.
MAURY: (Rindo) Aqui estamos, sentados, jurando um para o outro que o pequeno Dick vê as coisas de modo menos profundo que a gente. Pois aposto que ele percebe em si uma certa superioridade - a mente criadora superando a mentalidade meramente crítica, e por aí vai.
ANTHONY: Ah, sim. Mas ele está enganado. Tem tendência a se deixar levar por um milhão de entusiasmos bobos. Se não estivesse rendido ao realismo e, portanto, obrigado a adotar o papel do cínico, ele seria... seria crédulo como um líder religioso da faculdade. É um idealista. Ah, isso é. Acha que não, porque rejeitou o cristianismo. Lembra dele na faculdade? Engolia todos os escritores de cabo a rabo, um depois do outro, as idéias, técnicas e personagens, Chesterton, Shaw, Wells, cada um com mais facilidade do que o anterior.
MAURY: (Ainda em torno da última observação) Eu me lembro.
ANTHONY: É verdade. Um fetichista de nascença. Olhe só para a arte...
MAURY: Vamos fazer os pedidos. Ele vai...
ANTHONY: Certo. Vamos. Eu lhe disse...
MAURY: Aí vem ele. Olha, vai trombar com aquele garçom.
(Ele levanta o dedo como sinal - levanta-o como se fosse uma garra amistosa e macia.) Chegou, é Caramel.
UMA NOVA VOZ: (Intensamente) Olá, Maury, olá, Anthony Comstock Patch. Como anda o neto do velho Adam? As debutantes ainda te perseguem, é?
Pessoalmente RICHARD CARAMEL é baixo e claro
há de ficar careca aos 35. Tem olhos amarelados
- um deles espantosamente transparente, o outro opaco como uma poça enlameada - e uma testa protuberante como um bebê de história em quadrinho. É protuberante em outros lugares - na sua barriga, suas palavras parecem profetizar protuberâncias saídas de sua boca, até mesmo os bolsos de seu smoking protuberam, como por contaminação, com uma coleção de tabelas de horários, programas e uma miscelânea de pedaços de papel - nestes ele anota suas coisas com grande estreitamento de seus olhos desiguais e gestos de silêncio de sua mão livre. Ao chegar à mesa, aperta a mão de ANTHONY e de MAURY. É um desses sujeitos que apertam invariavelmente a mão, mesmo de gente que só conheceram uma hora antes.
ANTHONY: Olá, Caramel. Que bom que você chegou. Estávamos precisando de um interlúdio cômico.
MAURY: Você está atrasado. Andou apostando corrida com o carteiro no quarteirão? Nós estivemos dissecando seu caráter com garras afiadas.
DICK: (Fixando a vista ansiosamente em ANTHONY, com o olho transparente) Ora, ora! Conte-me e eu anotarei. Enxuguei três mil palavras da primeira parte esta tarde.
MAURY: Ó, nobre esteta. E eu enxuguei álcool.
DICK: Não duvido nada. Aposto que os dois estão sentados aqui há uma hora falando de bebida.
ANTHONY: A gente nunca se entrega, meu jovem imberbe.
MAURY: A gente nunca vai para casa com damas que conhecemos quando de porre.
ANTHONY: Afinal das contas, nossas festas se caracterizam por uma certa distinção altiva.
DICK: Do tipo especialmente tolo de quem se vangloria de ser uma "rocha"! O problema é que vocês dois estão no século 18. Escola do Velho Cavalheiro Britânico. Beba em silêncio até rolar para debaixo da mesa. Jamais se divirta. Não, é algo que não se faz mais, de modo algum.
ANTHONY: Isso é do capítulo seis, aposto.
DICK: Vocês vão ao teatro?
MAURY: Pretendemos passar a noite pensando profundamente nos problemas da vida. Que se resumem em algo chamado "A Mulher". Acho que seremos recompensados por ela.
ANTHONY: Deus do céu! É disso que se trata? Será que vamos ao Follies de novo?
MAURY: Estou cansado daquilo. Já vi três vezes. (Para DICK) Na primeira vez saímos no primeiro ato e encontramos um bar incrível. Quando voltamos, entramos no teatro errado.
ANTHONY: Tivemos uma longa briga com um jovem casal amedrontado que a gente achou que estava ocupando nossas cadeiras.
DICK: (Como se estivesse falando consigo mesmo) Acho que depois de escrever outro romance e uma peça, e talvez um livro de contos, vou fazer uma comédia musical.
MAURY: Eu sei, com letras intelectuais que ninguém ouvirá. E todos os críticos hão de gemer e suspirar pelo "velho e querido Pinafore". E eu continuarei a brilhar como uma figura brilhante e absurda em um mundo absurdo.
DICK: (Pomposamente) A arte não é absurda.
MAURY: É, em si. Quando não, por tentar fazer com que a vida seja menos absurda.
ANTHONY: Em outras palavras, Dick, você está representando diante de uma arquibancada repleta de fantasmas.
MAURY: Dê um bom espetáculo, mesmo assim.
ANTHONY: (Para MAURY) Pelo contrário, eu acho que se o mundo for absurdo, por que escrever? A própria tentativa de dar-lhe um sentido não tem sentido.
DICK: Bem, mesmo admitindo tudo isso, tenha alguma decência pragmática e permita que um pobre mortal preserve seu instinto de vida. Você quer que todo mundo aceite esses sofismas bobos?
ANTHONY: Sim, acho que sim.
MAURY: Não senhor! Acho que todo mundo na América, exceto umas mil pessoas escolhidas, deveria ser obrigado a aceitar um código moral super-rígido: o catolicismo romano, por exemplo. Não me queixo da moralidade convencional. Pelo contrário, reclamo dos heréticos medíocres que roubam os frutos da sofisticação e adotam uma pose de liberalidade moral a que suas inteligências não fazem jus.
(Aqui chega a sopa e aquilo que Maury talvez fosse ainda dizer se perde para sempre.)

NOITE

Depois eles foram a um cambista e, por um preço mais caro, conseguiram lugares para uma nova comédia musical chamada High Jinks. Esperaram um pouco no saguão do teatro para assistir à entrada da multidão da estréia. Havia pelerines feitas de uma miríade de sedas e peles multicoloridas, brilhantes a pender de braços, gargantas e de lóbulos de orelhas brancas e rosadas, havia inúmeros e largos reflexos tremeluzentes descendo pelo meio de inúmeras cartolas; havia sapatos dourados e bronzeados, vermelhos e pretos luzidios; havia os penteados compactos e altos, cheios de camadas, de muitas mulheres, e os cabelos lisos, de aspecto molhado, dos homens elegantes - e, principalmente, havia o efeito vazante, enchente, espumante, casquinante, murmurante, de onda vagarosa, daquele esfuziante mar de gente que vertia naquela noite seu esplendoroso fluxo no lago artificial da alegria...
Depois do espetáculo, eles se separaram - Maury ia a um baile no Sherry's, Anthony para casa e para cama.
Ele abriu caminho lentamente entre a multidão noturna apinhada na Times Square, que o estresse da vida urbana e seus mil satélites raramente faziam bela, inteligente e festeira. Os rostos giravam ao seu redor, um caleidoscópio de garotas, feias, feias como o diabo - demasiado gordas, demasiado magras e, não obstante, flutuando naquele ar outonal como se pairassem na noite sobre os próprios hálitos ardentes e apaixonados. Eis que, apesar de toda sua vulgaridade, elas eram ligeira e sutilmente misteriosas. Ele inalou com cuidado, aspirando perfume e o cheiro não desagradável de muitos cigarros nos seus pulmões. Interceptou o olhar de uma jovem beldade morena sentada sozinha dentro de um táxi coberto. Seus olhos, na penumbra, sinalizavam noite e violetas e, por um instante, ele reagiu de novo àquela imagem remota, meio esquecida, da tarde.
Dois rapazes judeus passaram por ele, falando em voz alta e torcendo os pescoços aqui e ali com olhares tolos e desdenhosos. Trajavam ternos exageradamente apertados, então na moda; seus colarinhos de ponta virada fechavam no pomo-de-adão; usavam polainas cinzentas e carregavam luvas cinzentas nos castões de suas bengalas.
Passou uma velha desnorteada, carregada como uma cesta de ovos por dois sujeitos que lhe exclamavam sobre as maravilhas da Times Square - explicando-as tão depressa que a velha senhora, na tentativa de mostrar-se interessada de modo imparcial, sacudia a cabeça para lá e para cá como um pedaço de casca de laranja fustigada pelo vento. Anthony ouviu um pedaço da conversa deles:
- Lá está o Astor, mamãe!
- Olha! Veja o anúncio da corrida de trote...
- Foi lá que estivemos hoje. Não, lá!
- Nossa Mãe!...
- Você devia fazer regime e perder peso como uma moeda de 25 centavos. - Ele reconheceu a piada da moda contada espalhafatosamente por uma das duplas coladas a ele
- E eu digo a ele, digo...
O trânsito tranqüilo dos táxis a seu lado e as risadas, - roucas como o crocitar de um corvo, incessantes e altas, além do ronco do metrô embaixo - e, sobretudo, as variações luminosas, os acréscimos e decréscimos da luz; luz partida como pérolas, a criar e recriar barras e círculos resplandecentes, e figuras monstruosas e grotescas contra o céu.
Ele virou e desceu, aliviado, pelo silêncio que soprava como um vento escuro de uma rua transversal e passou por uma padaria-restaurante onde uma porção de frangos girava sem parar no espeto automático na vitrine. Da porta vinha um cheiro quente, de massa de pão fresco. Ao lado, uma drogaria exalava cheiro de remédios, refrigerante derramado e um agradável aroma secundário do balcão de cosméticos; em seguida, uma lavanderia chinesa, ainda aberta, cheia de vapor sufocante, cheirando a roupa passada e a algo vagamente amarelo. Tudo isso o deprimiu; ao alcançar a Sixth Avenue, parou em uma tabacaria de esquina e saiu se sentindo melhor - a tabacaria era alegre, com um bando de pessoas em meio a uma névoa azulada, comprando artigos de luxo...
Chegando a seu apartamento, fumou um último cigarro, sentado no escuro, diante de sua janela da frente aberta. Pela primeira vez depois de mais de um ano, ele se viu apreciando Nova York como um todo. Na verdade, ela possuía uma rara exacerbação, uma qualidade quase sulista. Uma cidade cheia de solidão, no entanto. Ele, que fora criado sozinho, aprendera afinal a evitar a solidão. Durante os últimos meses fizera questão, quando não tinha nenhum compromisso à noite, de ir correndo para um de seus clubes, onde arranjava algum amigo. Ah, que solidão neste lugar...
Seu cigarro, cuja fumaça ornava as dobras finas da cortina com ralas bordas vaporosas e esbranquiçadas, continuou a luzir até que o relógio de St. Anne, rua abaixo, deu uma hora, com uma beleza elegante e triste. O elevado, a meio quarteirão silencioso de distância, fez um rufar de tambores - e se ele se inclinasse na janela veria o trem que, como uma águia irada, se atirava contra a curva escura na esquina. Isso o fez lembrar de um romance fantástico que lera recentemente, em que as cidades eram bombardeadas por trens suspensos e, por um instante, ele fantasiou que a Washington Square declarara guerra contra o Central Park e que aquilo era um ataque rumo ao norte, repleto de batalhas e repentinas baixas. Mas depois que o trem passou, desvaneceu-se a ilusão; seu rumor diminuiu até lembrar ligeiras batidas de tambor - e depois, um grito distante de águia.
Havia sinos e o som baixo e confuso das buzinas dos carros vindo da Fifth Avenue, mas fazia silêncio na sua própria rua, onde ele estava seguro contra todas as ameaças da vida, pois ali estava sua porta, o longo corredor e a proteção do seu quarto
- seguro, seguro! A luz fosforescente que brilhava janela adentro parecia, naquele momento, a lua, só que mais clara e bela do que a lua.

UM LAMPEJO DO PASSADO NO PARAÍSO

A beleza, renascida a cada cem anos, estava sentada em uma espécie de quarto de espera externo, varrido por rajadas de vento branco e atravessado de vez em quando por uma estrela apressada e resfolegante. As estrelas piscavam para ela com intimidade ao passar, e os ventos agitavam suave e incessantemente seus cabelos. Ela era um enigma, pois, nela, alma e espírito se achavam unidos - a beleza de seu corpo era a essência de sua alma. Ela era aquela unidade que os filósofos buscavam há muitos séculos. Naquela sala de espera externa já sentava ela há cem anos, na paz da autocontemplação. Foi-lhe comunicado, afinal, que ela renasceria. Com um suspiro, começou uma longa conversa com uma voz presente no vento branco, uma conversa de muitas horas da qual posso apenas relatar aqui um fragmento.
BELEZA: (Com lábios que mal se mexiam, o olhar, como sempre, voltado para dentro de si mesma) Aonde viajarei agora?
A VOZ: A um novo país - uma terra que nunca viste.
A BELEZA: (Petulante) Detesto ingressar nessas novas civilizações. De quanto tempo será a estadia, desta vez?
A VOZ: Quinze anos.
A BELEZA: E como é o nome do lugar?
A VOZ: A terra mais linda, mais opulenta do mundo - terra em que os mais sábios são apenas um pouco mais sábios do que os obtusos; terra em que os governantes têm mentalidade de crianças pequenas e os legisladores acreditam em Papai Noel; onde mulheres feias dominam homens fortes...
A BELEZA: (Espantada) O quê?
A VOZ (Muito deprimida) Sim, na verdade é um espetáculo deprimente. Mulheres sem queixo e narizes disformes andam por lá, em plena luz do dia, dizendo "Faça isso!", "Faça aquilo!", e todos os homens, mesmo os muito ricos, obedecem, sem discutir, às suas mulheres, a que se referem sonoramente como "doutor Fulana" ou "a patroa."
A BELEZA: Mas não pode ser verdade! Sou capaz de entender, claro, uma obediência às mulheres charmosas - mas às gordas? Magricelas? Às mulheres de faces chupadas?
A VOZ: É assim mesmo.
A BELEZA: O que será de mim? Que chances terei?
A VOZ: Será mais "duro", se me for permitido tomar de empréstimo essa expressão.
A BELEZA: (Depois de uma pausa descontente) Por que não as terras antigas, a terra das uvas e dos homens de falar macio ou a terra dos mares e navios?
A VOZ: A expectativa é de que eles estarão muito ocupados dentro em breve.
A BELEZA: Ah!
A VOZ: Sua vida na terra será, como sempre, o intervalo entre dois olhares expressivos em um espelho mundano.
A BELEZA: O que serei? Diga-me.
A VOZ: De início imaginou-se que desta vez você iria como uma atriz de cinema mas, pensando bem, não é aconselhável. Vestirá o disfarce, durante seus quinze anos, do que se chama uma "garota society".
A BELEZA: O que é isso?
(Há um novo ruído no vento que, segundo nossos intentos, deve ser interpretado como A VOZ coçando a cabeça.)
A VOZ: (Finalmente) É uma espécie de falsa aristocrata.
A BELEZA: Falsa? O que é falsa?
A VOZ: Isso é algo que você também descobrirá nessa terra. Encontrará muita coisa falsa. E também fará muita coisa falsa.
A BELEZA: (Plucidamente) Parece tudo tão vulgar.
A VOZ: Nem metade da vulgaridade do que será na realidade. Você será conhecida, durante seus quinze anos, como uma garota ragtime, uma flapper, uma jazz-baby, e uma baby vamp. Você dançará novas danças, nem melhor nem pior do que dançava as antigas.
A BELEZA: (Em um sussurro) Serei paga?
A VOZ: Sim, como de costume - com amor.
A BELEZA: (Com uma ligeira gargalhada que perturba apenas momentaneamente a imobilidade de seus lábios) E gostarei de ser chamada de jazz-baby?
A VOZ: (Sobriamente) Vai adorar...
(Termina aqui o diálogo; a BELEZA permanece ainda tranqüilamente sentada, com as estrelas parando extasiadas em admiração, o vento branco dando lufadas, soprando no seu cabelo.
Tudo isso aconteceu sete anos antes de ANTHONY sentar diante da janela da frente de seu apartamento e ouvir as badaladas da igreja de St. Anne.)


CAPÍTULO DOIS
RETRATO DE UMA SEDUTORA

A friagem caiu sobre Nova York um mês depois, trazendo novembro e as três partidas de futebol e um grande atropelo de peles ao longo da Fifth Avenue. Trouxe também uma sensação tensa, de excitação contida, à cidade. Toda manhã chegavam agora convites na correspondência de Anthony. Três dúzias de fêmeas virtuosas, da nata, alardeavam sua boa disposição física, quando não seu desejo específico de gerar filhos com três dúzias de milionários. Cinco dúzias de fêmeas virtuosas de segunda classe alardeavam não só essa disposição mas, além disso, uma tremenda e desenfreada ambição diante das primeiras três dúzias de rapazes, evidentemente convidados para cada uma das 96 festas - como também o círculo de amigos de família da jovem, conhecidos, universitários e rapazes ambiciosos. E para prosseguir, havia uma terceira categoria pertencente aos arredores da cidade, de Newark e dos subúrbios de Jersey até a amarga Connecticut e das zonas enjeitadas de Long Island - e, sem dúvida, categorias contíguas em posição inferior na escala social da cidade: judias a debutar em uma sociedade de judeus e judias, de Riverside ao Bronx, na expectativa de um jovem corretor ou joalheiro em ascensão e um casamento kosher, garotas irlandesas dirigiam seus olhares - finalmente podiam fazê-lo
- aos jovens políticos democratas, agentes funerários devotos e meninos de coro crescidos.
E, naturalmente, a cidade pegou o ar contagioso da estréia - as operárias, pobres almas feiosas, a embrulhar sabão nas fábricas e mostrar artigos vistosos nas grandes lojas, sonhavam que, no meio da excitação espetacular daquele inverno, talvez conseguissem obter o cobiçado macho - tal qual um batedor de carteiras ineficiente julgaria aumentadas suas chances entre uma multidão confusa de parque de diversões. E as chaminés começaram a fumegar, e o ar sórdido do metrô a esfriar. E as atrizes estrearam em novas peças e os editores lançaram novos livros e os Castles novas danças. E as estradas de ferro lançaram novos horários, com novos erros no lugar dos anteriores a que os passageiros já haviam se acostumado...
A Cidade debutava!
Anthony, que caminhava certa tarde pela
Forty-second Street, sob um céu cinza de aço, topou inesperadamente com Richard Caramel saindo da barbearia do Manhattan Hotel. Era um dia frio, o primeiro dia definitivamente frio, e Caramel trajava um desses casacos forrados de lã, até os joelhos, usados há muito pelos trabalhadores do Meio Oeste e que acabavam de obter a aceitação da moda. Seu chapéu de abas moles era de um discreto marrom escuro e, sob ele, seu olho claro brilhava como um topázio. Ele deteve Anthony com entusiasmo, dando palmadas nos seus braços, mais por desejo de se esquentar do que por disposição brincalhona, e depois de seu infalível aperto de mão, explodiu em palavras.
- Frio como o diabo. Nossa mãe, andei trabalhando como um desgraçado o dia inteiro, até que meu quarto ficou tão frio que achei que ia pegar uma pneumonia. A desgraçada da senhoria, que anda economizando carvão, só apareceu depois que berrei o nome dela por meia hora. Começou a se explicar, e assim por diante. Deus do céu! Primeiro ela quase me pôs maluco, em seguida comecei a achá-la uma figura e a tomar notas enquanto ela falava, de modo que ela não pudesse perceber, sabe, como se eu estivesse escrevendo naturalmente...
Ele agarrara Anthony pelo braço e o levava energicamente pela Madison Avenue.
- Para onde vamos?
- Para lugar nenhum em especial.
- Bem, então o que estamos fazendo? - perguntou Anthony.
Pararam e se entreolharam, e Anthony se perguntou se o frio tornava seu rosto tão repugnante quanto o de Dick Caramel, cujo nariz estava roxo, cuja fronte protuberante estava azul, cujos olhos desiguais e amarelados estavam vermelhos e lacrimejantes nas bordas. Depois de um instante, recomeçaram a caminhar.
- Trabalhei à beça no meu romance. - Dick olhava e falava eloqüentemente para a calçada. - Mas preciso sair uma vez na vida. - Ele olhou para Anthony com ar de quem se desculpava, como se pedisse apoio. - Preciso falar. Acho que pouquíssimas pessoas pensam de verdade, quero dizer, sentam, ponderam e têm idéias em seqüência. Eu penso escrevendo ou conversando. Você precisa de um ponto de partida, mais ou menos algo que defender ou contradizer; não acha?
Anthony resmungou e retirou o braço com delicadeza
- Eu não me importo de te carregar, Dick, mas com esse casaco...
- Quero dizer - prosseguiu gravemente Richard Caramel - que no papel o primeiro parágrafo já traz a idéia que você vai malhar ou desenvolver. Em uma conversa, você tem a última afirmativa de seu interlocutor, mas quando você simplesmente reflete, caramba, suas idéias se sucedem como imagens de uma lanterna mágica, cada uma expulsando a anterior.
Passaram a Forty-fifth Street e diminuíram um pouco a marcha. Ambos acenderam cigarros e sopraram tremendas nuvens de fumaça e vapor no ar.
- Vamos andar até o Plaza e tomar um egg-nog
- sugeriu Anthony. - Vai te fazer bem. O ar livrará seus pulmões dessa porcaria de nicotina. Vamos, deixarei que você fale o tempo todo do seu livro.
- Mas eu não quero, se for algo que te entedia. Francamente, não precisa fazer isso como favor. - As palavras jorravam depressa, e apesar de ele querer manter uma fisionomia normal, seu rosto se contorceu de insegurança. Anthony foi obrigado a protestar:
- Me entediar? Certamente que não!
- Tenho uma prima - começou Dick, mas foi interrompido por Anthony, que estendia os braços e exalava um brado discreto de alegria.
- Que belo tempo! - exclamou ele - Não é? Faz com que eu me sinta com dez anos de idade. Isto é, me faz sentir como eu deveria me sentir com dez anos. Magnífico! Ah, Deus do céu! Numa hora o mundo me pertence, no momento seguinte sou um palhaço do mundo. Hoje o mundo me pertence, e tudo é fácil, fácil. Até mesmo o Nada é fácil!
- Tenho uma prima no Plaza. Uma garota famosa. Podemos ir até lá encontrá-la. Ela mora lá durante o inverno, pelo menos ultimamente, com o pai e a mãe.
- Eu não sabia que você tinha primos em Nova York.
- O nome dela é Gloria. Ela é lá de casa
- Kansas City. Sua mãe é uma bilfista praticante, e seu pai, bastante chato, porém um perfeito cavalheiro.
- O que são eles, material literário?
- Tentam ser. O velho só fala comigo dizendo que já conheceu o personagem mais maravilhoso para um romance. Em seguida me conta sobre um idiota qualquer que é seu amigo, e aí diz: "Eis um personagem para você! Por que não o põe em letra de forma? Todo mundo teria o maior interesse por ele." Ou então ele me conta sobre o Japão ou Paris, ou algum lugar muito óbvio, e diz: "Por que você não escreve uma narrativa sobre esse lugar? Seria um cenário maravilhoso para uma narrativa!"
- E a garota - perguntou casualmente Anthony -, Gloria... Gloria quê?
- Gilbert. Ah, você já ouviu falar dela, Gloria Gilbert. Freqüenta os bailes nas faculdades, esse tipo de coisa e tal.
- Já ouvi o nome dela.
- Bonita; para falar a verdade, danada de atraente. Chegaram à Fiftieth Street e viraram em direção à avenida.
- Não sou muito chegado em garotas jovens, em geral - disse Anthony, franzindo o rosto.
Isso não era estritamente verdade. A despeito de achar que a debutante média passava todas as horas de seu dia pensando e falando sobre o que o vasto mundo preparara para ela fazer na hora seguinte, qualquer garota que tirasse francamente proveito de sua beleza lhe interessava muito.
- Gloria é simpática à beça, não tem um pedacinho de miolo na cabeça.
Anthony riu com um ronco monossilábico.
- Você quer dizer que ela é incapaz de produzir sequer uma linha de blábláblá literário.
- Não, nada disso.
- Dick, você sabe o que você considera uma garota dotada de um cérebro. Jovens sérias que sentam junto contigo em um canto e conversam seriamente sobre a vida. O tipo que quando tinha dezesseis anos discutia, com a cara mais séria, se beijar era certo ou errado, ou se era imoral calouros beberem cerveja.
Richard Caramel ficou ofendido. Fez uma careta franzida como papel amassado.
- Não... - começou, mas foi impiedosamente interrompido por Anthony.
- Ah, sim, do tipo que sentam nos cantos e discutem sobre o último Dante escandinavo com tradução inglesa disponível.
Dick virou-se para ele, com as feições entrando curiosamente em colapso. Sua pergunta foi quase uma súplica.
- Qual é o problema com você e Maury? Vocês falam como se eu fosse às vezes uma espécie de inferior.
Anthony ficou confuso, mas também sentia frio e um pouco de constrangimento, por isso se refugiou no ataque.
- Eu não acho que seu cérebro tenha valor, Dick.
- É claro que tem! - exclamou zangado Dick. - O que você quer dizer? Por que não tem valor?
- Talvez porque seus conhecimentos extrapolem sua capacidade de expressão.
- Isso jamais poderia acontecer.
- Mas é possível imaginar - insistiu Anthony
- alguém que saiba mais do que seu talento é capaz de exprimir. Como eu. Suponha, por exemplo, que eu tenha mais sabedoria do que você e menos talento. Isso tenderia a me tornar inarticulado. Você pelo contrário, tem água suficiente para encher seu balde, e um balde bastante grande para conter a água.
- Não te acompanho de modo algum - reclamou Dick em um tom de voz desanimado. Muito espantado, ele parecia inchar-se todo em protesto. Fitava Anthony intensamente, atravancando a passagem de uma série de transeuntes que o censuravam com olhares ferozes e ofendidos.
- Quero dizer simplesmente que um talento como o de Wells poderi agüentar a inteligência de um Spencer. Mas que um talento inferior só consegue ser elegante quando transmite idéias inferiores. E quanto mais estreito for o seu ângulo de visão em relação a alguma coisa, mais divertida poderá ser sua representação dela.
Dick ficou pensando, incapaz de concluir o grau exato de crítica implícita nos comentários de Anthony. Mas Anthony, com aquela facilidade que parecia fluir dele com tanta freqüência, prosseguiu, seus olhos negros a brilhar no rosto magro, queixo erguido, voz alta, com todo seu ser físico estimulado:
- Digamos que eu seja lúcido, orgulhoso e sábio - um ateniense entre os gregos. Ora, eu talvez fracasse onde alguém de menos valor teria êxito. Ele seria capaz de imitar, de ornamentar, de ter entusiasmo, de ser esperançoso e construtivo. Porém, esse meu "eu" hipotético seria orgulhoso demais para imitar, lúcido demais para ter entusiasmo, sofisticado demais para ser utópico, grego demais para ornamentar.
- Então você não acredita que o artista trabalha a partir de sua inteligência?
- Sim. Segue aperfeiçoando, se for capaz, o estilo que ele imita, e a escolha do que vai constituir seu tema, entre as coisas que o rodeiam. Mas, afinal de contas, todo escritor escreve porque é seu meio de vida. Não me diga que você preza esse negócio da "Função Divina do Artista"?
- Não costumo nem me chamar de artista.
- Dick - disse Anthony, mudando de tom -, quero te pedir perdão.
- Por quê?
- Por esse destempero verbal. Sinto muito, sinceramente. Eu estava fazendo uma tirada de efeito.
Um tanto apaziguado, Dick retrucou:
- Já disse várias vezes que, no fundo, você era um filisteu.
Caíra um vibrante crepúsculo quando eles penetraram na fachada branca do Plaza para saborear o denso amarelo espumante de um egg-nog. Anthony olhou para seu acompanhante. A pigmentação do nariz e da testa de Richard Caramel convergiam aos poucos; o azul abandonava aquele, o vermelho fugia desta. Ao olhar em um espelho, Anthony ficou satisfeito ao ver que sua própria pele não se descolorira. Ao contrário, um ligeiro rubor nascera nas suas faces
- achou que jamais tivera um aspecto tão bom.
- Para mim, basta - disse Dick, em um tom de atleta no meio do treino. - Quero subir para fazer uma visita aos Gilbert. Por que você não vem?
- Pois... sim. Se você não me entregar aos pais e fugir para um canto qualquer com Dora.
- Dora não, Gloria.
Um contínuo anunciou-os pelo telefone e, depois de subir ao décimo andar, seguiram por um corredor intricado e bateram no 1088. Uma senhora de
meia-idade atendeu à porta - a senhora Gilbert em pessoa.
- Como vai? - Ela falava no estilo convencional meio afetado das damas americanas. - Sim senhor, que prazer em vê-lo...
Interjeições rápidas da parte de Dick, e então:
- Senhor Pats? Sim, por favor, entre e ponha seu casaco aí.
- Ela apontou para uma cadeira e transformou sua inflexão de voz em uma risada depreciativa cheia de diminutos suspiros.
- Que bom, que bom. Nossa, Richard, eu não te vejo há tanto tempo; oh! oh! - Estes últimos monossílabos funcionavam um pouco como interjeições, um pouco como respostas a alguns vagos balbucies de Dick. - Bem, faça o favor de sentar e me contar o que tem feito.
Dava-se um passo para lá, um passo para cá; ficava-se parado, inclinando ligeiramente a cabeça; sorria-se sem cessar com um ar irremediavelmente tolo - por fim sentava-se agradecido em uma cadeira, pronto para uma agradável visita.
- Deve ser porque você tem andado ocupado, e por que não? - sorriu um tanto ambiguamente a senhora Gilbert.
O "por que não?" era usado por ela para escorar suas frases mais mancas. Ela tinha mais duas expressões: "ao menos é o que eu acho" e "pura e simplesmente"; essas três, alternadamente, emprestavam a cada comentário seu um ar de profunda reflexão sobre a vida, como se ela houvesse ponderado sobre todas as causas e finalmente chegado à causa primeira.
O rosto de Richard Caramel se tornara agora, percebeu Anthony, bastante normal. A testa e as faces tinham cor de carne e o nariz não estava em destaque. Ele assestara seu olho amarelo claro na tia, dando-lhe aquela atenção exagerada e aguda que os rapazes costumam dar a todas as fêmeas que perderam a utilidade.
- Também é escritor, senhor Pats?... Bem, talvez todos nós possamos aproveitar a celebridade de Richard. - Risadas delicadas puxadas pela senhora Gilbert.
- Gloria saiu - disse ela, com ar de quem firmava um axioma de uma cadeia dedutiva. - Está dançando por aí. Gloria não pára, não pára. Digo a ela que não sei como agüenta. Dança a tarde inteira e a noite inteira, acho que até o dia em que se consumir e virar uma sombra. Seu pai anda muito preocupado com ela.
Ela sorriu para um, depois para o outro. Ambos sorriram.
Era feita, notou Anthony, de uma série de semicírculos e parábolas, como aquelas figuras que gente prendada consegue fazer na máquina de escrever: cabeças, braços, bustos, quadris, coxas e tornozelos em uma espantosa fieira de formas roliças. Limpa e bem arrumada, tinha cabelos de um belo grisalho artificial; seu rosto grande abrigava olhos azuis castigados pelo tempo e era ornado de um minúsculo buço branco.
- Eu sempre digo - comentou ela para Anthony
- que Richard é uma alma provecta.
No intervalo tenso que se seguiu, Anthony pensou em fazer um trocadilho; algo sobre Dick e sua alma de proveta.
- Todos nós temos almas de várias idades
- prosseguiu radiante a senhora Gilbert -, ao menos é o que eu acho.
- É possível - concordou Anthony, com ar de quem reagia a uma idéia estimulante. A voz continuava borbulhante:
- Gloria tem uma alma muito jovem; irresponsável, por que não? Ela não tem nenhum senso de responsabilidade.
- Ela é radiante, tia Catherine - disse simpaticamente Richard. - O senso de responsabilidade a estragaria. Ela é bonita demais.
- Bem - confessou a senhora Gilbert -, eu só sei que ela não pára, não pára...
O grau exato de inquietação capaz de dar uma má reputação a Gloria se perdeu com o sacudir da maçaneta da porta, que girou para deixar entrar o senhor Gilbert.
Ele era um sujeito baixo com um bigode pousado como uma nuvenzinha branca sob seu nariz comum. Chegara ao ponto em que seu valor social era negra e presumivelmente nulo. Suas idéias eram as ilusões populares de vinte anos atrás; sua cabeça seguia um rumo anêmico e incerto na esteira dos editoriais dos jornais diários. Depois de formar-se por uma pequena, mas nem assim terrível, universidade do Oeste, ingressara no ramo dos filmes, já que isso só exigia o mínimo de inteligência que ele comportava; foi bem durante vários anos - na verdade, até cerca de 1911, quando começou a trocar a intermediação de contratos por vagos acordos com a indústria cinematográfica. Esta decidira, lá por 1912,
engoli-lo, e nessa época ele já estava, por assim dizer, delicadamente equilibrado na língua dela. Nesse ínterim, foi gerente supervisor da Associated Mid-western Film Materials Company, passando seis meses do ano em Nova York e o resto em Kansas City e St. Louis. Acreditava piamente que algo de bom lhe aconteceria - e sua mulher também, e a filha também.
Ele censurava o comportamento de Gloria, que ficava fora de casa até tarde, nunca fazia refeições regularmente, vivia em confusões. Certa vez ele a irritara e ela usara palavras contra ele que ele jamais pensou que fizessem parte de seu vocabulário. Sua mulher era mais fácil. Depois de quinze anos de uma incessante guerra de guerrilhas, ele a conquistara: era o combate entre um vago otimismo e a chatice organizada, e sua vitória foi causada pela quantidade de "sims" com a qual ele conseguia envenenar uma conversa.
- Sim-sim-sim-sim - dizia -, sim-sim-sim-sim. Deixe-me ver. Foi no verão de, deixe-me ver, 92, sim-sim-sim-sim...
Quinze anos de "sims" derrotaram a senhora Gilbert. Mais quinze anos daquela incessante afirmação não afirmativa, acompanhada da perpétua sacudida de cinzas de 32 mil charutos, a alquebraram. Aquele seu marido fez ela a derradeira concessão da vida de casada, mais completa, mais irremediável que a primeira: escutá-lo. Ela se dizia que os anos lhe haviam trazido tolerância - na verdade eles haviam matado toda e qualquer dimensão que ela jamais possuíra de coragem moral.
Ela o apresentou a Anthony.
- Este é o senhor Pats - disse ela.
O rapaz e o senhor apertaram as mãos; a mão do senhor Gilbert era macia, gasta até ficar com a aparência polpuda de um grapefruit espremido. Em seguida, marido e mulher trocaram saudações; ele disse a ela que estava mais frio lá fora; contou que andara até uma banca de jornais na Forty-fourth Street para comprar um jornal de Kansas City. Tencionara voltar de ônibus, mas estava muito frio, sim, sim, sim, sim, muito frio.
A senhora Gilbert emprestou um sabor especial à aventura dele, impressionada com sua coragem em enfrentar o ar cortante.
- Nossa, você é valente mesmo! - exclamou ela com admiração. - Você é corajoso. Eu não teria saído por nada neste mundo.
O senhor Gilbert ignorou, com verdadeira indiferença masculina, a admiração que suscitara em sua mulher. Virou-se para os dois rapazes e encaminhou-os triunfalmente para o assunto "tempo"'. Richard Caramel foi instado a recordar o mês de novembro em Kansas. Tão logo lhe fora imposto o assunto, entretanto, foi o mesmo violentamente pescado de volta, para ser longamente elaborado, alisado e, de modo geral, desvitalizado por seu proponente.
A eterna tese de que em determinado lugar fazia calor de dia, mas de noite era agradável, foi proposta com sucesso e de modo amável, e chegaram à conclusão sobre a distância exata entre dois pontos em uma estrada de ferro desconhecida, que Dick inadvertidamente mencionara. Anthony pôs um olhar fixo no senhor Gilbert e entrou em transe, quebrado depois de certo tempo pela voz sorridente da senhora Gilbert.
- Parece que o frio é mais úmido aqui, parece entrar nos meus ossos.
Já que este comentário, adequadamente acompanhado por "sims", estivera na ponta da língua do senhor Gilbert, não se podia culpá-lo por mudar bruscamente de assunto.
- Onde está Gloria?
- Deve chegar a qualquer minuto.
- Conhece minha filha, senhor...?
- Ainda não tive o prazer. Já ouvir Dick falar muito dela.
- Ela e Dick são primos.
- É? - Anthony sorriu com algum esforço. Ele não estava acostumado com a companhia de gente mais velha, e sua boca fixou-se rigidamente em um simulacro de alegria. Que pensamento agradável o fato de Dick e Gloria serem primos. Ele conseguiu lançar, no próximo minuto, um olhar agoniado para seu amigo.
Richard Caramel sentia muito, mas eles precisavam ir embora.
A senhora Gilbert sentiu enormemente.
O senhor Gilbert achou que era uma pena.
A senhora Gilbert teve ainda um último assunto; algo sobre o prazer que ela tivera com a visita, apesar dos dois terem encontrado apenas uma senhora muito velha para flertar com eles. Anthony e Dick evidentemente consideraram aquilo um achado espirituoso, pois deram boas risadas em um compasso três por quatro.
Será que voltariam breve?
Ah, sim.
Gloria ia sentir tremendamente!
Até logo...
Até logo...
Sorrisos!
Sorrisos!
Bang!
Dois rapazes abatidos desceram o corredor do décimo andar do Plaza em direção ao elevador.

AS PERNAS DE UMA DAMA

Por trás da charmosa indolência de Maury Noble, de sua frivolidade, de sua chacota fácil, jazia uma surpreendente e inexorável maturidade de propósitos. Seu intento, conforme afirmou na faculdade, era passar três anos viajando, três anos no mais extremo ócio - e então ficar imensamente rico o mais rápido possível.
Seus três anos de viagem haviam terminado. Cobrira o globo com uma intensidade e curiosidade que em qualquer outro teria parecido pedantismo, sem qualquer ressalva de espontaneidade, quase uma versão viva do Guia Baedeker; neste caso, porém, isto se revestiu de um objetivo misterioso e importante - como se Maury Noble fosse algum anticristo predestinado a ir a todo lugar neste mundo e ver todos os bilhões de seres humanos que se reproduziam, choravam e se matavam lá e cá, na sua superfície.
De volta à América, investiu em busca de diversão com o mesmo firme propósito. Ele que nunca tomara mais do que alguns coquetéis ou meio litro de vinho de cada vez, ensinou-se a beber como teria se ensinado grego - tal como o grego, a bebida seria a porta para vastas e novas sensações, novos estados psíquicos, novas reações à alegria e ao sofrimento.
Seus hábitos eram assunto de muita especulação particular. Tinha um apartamento de solteiro com três quartos na Forty-fourth Street mas raramente estava lá. A telefonista recebera as instruções mais enfáticas para que ninguém tivesse acesso a seu ouvido sem primeiro dar um nome e passar por um crivo. Tinha uma lista de meia dúzia de pessoas para quem ele jamais estava em casa, e uma, do mesmo tamanho, para quem ele sempre estava. Os mais destacados desta última lista eram Anthony Patch e Richard Caramel.
A mãe de Maury morava com o filho casado na Filadélfia, e era para lá que Maury geralmente ia nos fins de semana; por isso, em uma noite de sábado, quando Anthony, ao perambular pelas ruas geladas em um ataque de puro tédio, entrou no Molton Arms, ficou extasiado ao descobrir que o senhor Noble estava em casa.
Seu ânimo subiu mais rápido que o elevador veloz. Era tão bom, tão fabuloso, estar prestes a falar com Maury - que teria igualmente grande prazer em vê-lo. Haveriam de se entreolhar com uma profunda afeição nos seus olhares, que disfarçariam com uma ligeira troça. Se fosse no verão, ambos sairiam para bebericar, preguiçosamente, dois longos Tom Collins, enquanto colarinhos murchariam ao assistirem a algum ato divertido de um indolente cabaré de agosto. Mas fazia frio lá fora, com o vento soprando em torno dos altos prédios e dezembro logo ali na esquina, por isso, seria muito melhor para ambos uma noite sob luz suave e um ou dois drinques de Bushmill ou uma dose do Grand Marnier de Maury, com os livros luzindo como ornamentos contra as paredes, e Maury irradiando uma divina inércia ao repousar - grande como uma carroça - na sua poltrona predileta.
Lá estava ele! Enclausurado no aposento, Anthony se esquentava. O brilho daquela mente forte e persuasiva, daquele temperamento quase oriental na sua passividade externa, esquentava a alma inquieta de Anthony e trazia-lhe uma paz só comparável à produzida pela burrice de alguma mulher. A gente precisa compreender tudo - ou então aceitar tudo. Maury preenchia o aposento como um tigre, como uma divindade. Os ventos cessaram lá fora; os candelabros de bronze brilhavam no console da lareira como círios diante de um altar.
- O que o mantém aqui hoje? - Anthony se refestelou em um sofá macio e fez um descanso de almofadas para seu cotovelo.
- Estou aqui há mais ou menos uma hora. Um chá dançante, e fiquei até tão tarde na rua que perdi meu trem para Filadélfia.
- Estranho você ter ficado tanto tempo na rua
- comentou curioso Anthony.
- Um tanto. E você, o que fez?
- Geraldine. Lanterninha do Keith's. Eu te contei sobre ela.
- Ah!
- Ela veio me visitar lá pelas três horas e ficou até cinco. Estranha criaturinha; consegue me conquistar. É tão burra.
Maury ficou calado.
- Por incrível que pareça - continuou Anthony -, no que me diz respeito, e até mesmo pelo que sei, Geraldine é um modelo de virtude.
Ele a conhecia há um mês, uma garota de hábitos nômades e indefiníveis. Alguém a havia passado casualmente adiante para Anthony, que a achava divertida e gostou bastante dos castos beijos de fada que ela lhe dera na terceira noite depois de conhecê-la, ao rodarem de táxi pelo Park. Ela tinha uma vaga família - uma tia e tio fantasmagóricos que dividiam um apartamento com ela nas labirínticas ruas cento e tantos. Fazia companhia, era familiar e ligeiramente íntima e calma. Além disso, ele não desejava fazer experiências; não tinha nada a ver com algum escrúpulo moral, mas com o medo de deixar que um relacionamento qualquer atrapalhasse o que ele acreditava ser a crescente serenidade de sua vida.
- Ela tem dois truques - informou ele a Maury; - um deles é dar um jeito de deixar o cabelo cair sobre os olhos e depois afastá-los soprando, e o outro é dizer "você está ma-lu-co!" quando alguém diz algo incompreensível para ela. Isso me fascina. Fico ali sentado, horas a fio, totalmente perplexo com os sintomas maníacos que ela descobre na minha imaginação.
Maury se mexeu na poltrona e falou.
- É espantoso que alguém possua tão pouca compreensão e ainda assim viva numa civilização tão complexa. Na verdade, uma mulher assim aceita o universo inteiro com a maior simplicidade. Desde a influência de Rousseau até a incidência da cotação das tarifas sobre o seu jantar, todos esses fenômenos lhe são totalmente estranhos. Ela foi simplesmente transportada da época do arco e flecha e posta aqui, equipada com apetrechos de arqueiro para participar de um duelo de pistolas. Se você varresse todas as camadas históricas, ela jamais perceberia a diferença.
- Eu gostaria que nosso Richard escrevesse a respeito dela.
- Anthony, você não acha seriamente que ela mereça ser tema literário.
- Tanto quanto qualquer outra pessoa - respondeu ele, com um bocejo. - Sabe, hoje andei pensando que deposito grande fé em Dick. Desde que ele se atenha às pessoas, e não a idéias, e desde que sua inspiração venha da vida e não da arte. Se tudo seguir normalmente, prevejo que ele será um sujeito importante.
- Acho que o surgimento do livrinho preto de anotações indica que ele vai de encontro à vida.
Anthony se ergueu, apoiado em um cotovelo, e respondeu prontamente:
- Ele tenta ir de encontro à vida. Exatamente como qualquer autor, exceto os piores, mas no frigir dos ovos a maioria deles vive de comida
pré-digerida. O fato ou o personagem podem ser tirados da vida, mas o escritor em geral os interpreta pelo viés do último livro que leu. Por exemplo, vamos supor que ele conheça um capitão de navio que considera um personagem original. Na verdade o que ele percebe é a semelhança entre o capitão de navio e o último capitão de navio criado por Dana, ou seja lá por quem cria capitães de navio e, portanto, já sabe como pôr no papel aquele capitão de navio. Dick, é claro, consegue fixar qualquer personagem obviamente pitoresco, qualquer personagem com jeito de personagem, mas será que conseguiria registrar sua própria irmã?
Em seguida, entregaram-se a meia hora de literatura.
- Um clássico - sugeriu Anthony - é um livro bem sucedido que sobrevive à reação do período histórico ou da geração subseqüente. Então encontra sua segurança, como um estilo de arquitetura ou de mobiliário. Adquire uma dignidade interessante que substitui seu próprio modismo...
Depois de um tempo o assunto perdeu temporariamente seu tempero. O interesse dos dois rapazes não era especialmente técnico. Estavam apaixonados por generalidades. Anthony descobrira há pouco Samuel Butler, e os ágeis aforismos do livro de anotações pareciam-lhe a quintessência da crítica. Maury, com a mente amadurecida pela própria simplicidade da rotina de sua vida, parecia inevitavelmente o mais sábio dos dois; no entanto, a índole de suas inteligências não parecia divergir fundamentalmente.
Eles passaram da literatura para curiosidades do dia de cada um.
- De quem era o chá?
- De um pessoal chamado Abercrombie.
- Por que você ficou até tarde? Conheceu alguma debutante linda?
- Sim.
- Conheceu mesmo? - a voz de Anthony se tornou mais aguda de espanto.
- Não era exatamente uma debutante. Ela disse que debutou dois invernos atrás em Kansas City.
- Uma espécie de encalhada?
- Não - respondeu Maury com certo deleite.
- Acho que isso seria a última coisa que eu diria dela. Ela parecia ser, bem, a pessoa mais jovem presente.
- Mas não jovem demais para fazer você perder o trem.
- Suficientemente jovem. Uma bela garota.
Anthony deu sua risada resfolegante, monossilábica.
- Ah, Maury, você está na sua segunda infância. O que quer dizer com linda?
Maury deu um olhar vago de desamparo.
- Olha, não consigo descrevê-la exatamente, só dizendo que ela era bonita. Tinha uma... tremenda vivacidade. Comia jujubas.
- Quê?
- Uma espécie de pequeno vício. Ela é do tipo nervoso, disse que sempre chupava jujubas durante os chás porque tinha que ficar tanto tempo num lugar só.
- Sobre o que conversaram: Bergson? Bilfismo? Se dançar o one-step é imoral?
Maury manteve a serenidade; parecia inteiramente tranqüilo.
- Para dizer a verdade, a gente falou sim de bilfismo. Parece que sua mãe é bilfista. Em grande parte, no entanto, falamos sobre pernas.
Anthony se sacudiu de alegria.
- Deus meu! Pernas de quem?
- Dela. Falou muito a respeito das suas. Como se fossem uma espécie de bricabraque especial. Provocou-me um grande desejo de vê-las.
- O que ela é: dançarina?
- Não, descobri que é prima de Dick.
Anthony se endireitou tão depressa que a almofada, liberta dele, ficou em pé como se fosse algo vivo, e mergulhou no chão.
- De nome Gloria Gilbert? - disse alto.
- Sim. Não é notável?
- Eu certamente não sei, mas por falar em chatice, o pai dela...
- Olha - interrompeu Maury com uma convicção férrea -, a família dela pode ser triste como uma carpideira profissional, mas prefiro achar que ela é uma figura autêntica e original, apesar dos sinais externos da garota estereotipada dos bailes de formatura de Yale e tudo mais, mas com uma diferença, uma diferença marcante.
- Continue, continue! - instou Anthony. - Logo que Dick me disse que ela não tinha miolos na cabeça eu sabia que devia ser bastante simpática.
- Ele disse isso?
- Jurou - disse Anthony, com outra risada anasalada.
- Ora, o que ele quer dizer por miolos numa mulher é...
- Eu sei - interrompeu avidamente Anthony -, ele quer dizer migalhas de desinformação literária.
- Isso aí. O tipo que acredita que ficar desiludido com o país, todo ano, é uma coisa muito boa, ou o tipo que acredita que isso é muito auspicioso. Ou pincenê ou então poses. Ora, essa garota conversou sobre pernas. Conversou também sobre pele - sua própria pele. Sempre dela. Ela me contou o tipo de bronzeado que ela gostaria de pegar no verão e como ela geralmente quase chega lá.
- Você ficou lá, cativado pela sua voz firme de contralto?
- Pela sua voz firme de alto! Não, pelo bronzeado! Comecei a pensar no bronzeado. Comecei a pensar na cor que eu ficara quando pegara sol pela última vez, há dois anos. Fiquei com um bronzeado bastante bom. Eu costumava ficar cor de bronze mesmo, se é que me lembro bem.
Anthony se recolheu entre as almofadas, sacudido por gargalhadas.
- Ela te deixou aceso. Ah, Maury! Maury, o salva-vidas de Connecticut. A noz-moscada humana. Extra! Herdeira foge com salva-vidas por causa de sua deliciosa pigmentação! Posteriormente descobertos traços genéticos da Tasmânia na família!
Maury deu um suspiro; levantou-se, foi até a janela e ergueu a veneziana. Nevava muito. Anthony, ainda a rir baixo consigo mesmo, não respondeu.
- Mais um inverno. - A voz de Maury, da janela, era quase um sussurro. - A gente está ficando velho, Anthony. Estou com 27 anos, meu Deus! Três anos para trinta, e em seguida serei o que um estudante chama de sujeito de meia-idade.
Anthony fez silêncio durante um instante.
- Você é velho, Maury - concordou ele finalmente. Com os primeiros sintomas de uma senilidade devassa e trêmula; passou a tarde falando sobre bronzeados e as pernas de uma dama.
Maury abaixou a veneziana com um brusco e duro estalo.
- Idiota! - gritou - Isso, vindo de você! Aqui fico sentado, jovem Anthony, tal como ficarei por uma geração ou mais, observando almas tão alegres como a sua, de Dick e de Gloria Gilbert, passando por mim, dançando, cantando, amando e detestando umas às outras, se emocionando, se emocionando eternamente. E eu que me emociono apenas com minha falta de emoção. Ficarei sentado, e chegará a neve, ah, falta um Caramel para anotar isso, e mais um inverno passará e farei trinta anos, e você, Dick e Gloria continuarão a se emocionar eternamente, a dançar e a cantar diante de mim. Mas depois de vocês todos terem ido embora, direi coisas que novos Dicks anotarão, e eles ouvirão as desilusões, o cinismo e as emoções de novos Anthonys, sim, conversando com novas Glorias sobre os bronzeados de verões ainda por vir.
As chamas se agitavam na lareira. Maury deixou a janela, remexeu as brasas com um atiçador e deixou cair uma acha em cima dos cães. Em seguida
recostou-se na sua poltrona e os vestígios de sua voz se perderam no fogo renovado que brotava, vermelho e amarelo, ao longo da casca da madeira.
- Afinal de contas, Anthony, é você quem é muito jovem e romântico. É você quem é infinitamente mais suscetível e temeroso de ver sua tranqüilidade desfeita. Sou eu que tento e tento me emocionar, me abandono mil vezes e sigo sempre sendo eu. Nada chega a mexer mesmo comigo.
- E no entanto - murmurou ele depois de outra grande pausa -, havia algo naquela garotinha com seu bronzeado absurdo que era eternamente antigo, como eu.

TURBULÊNCIA

Anthony virou-se sonolento na sua cama, saudando uma mancha de luz do sol fria na sua colcha, quadriculada pelas sombras da vidraça. O quarto estava cheio da manhã. A arca entalhada no canto, o velho e inescrutável guarda-roupa jaziam no quarto como símbolos sombrios da indiferença da matéria; somente o tapete era perecível e convidativo a seus perecíveis pés, e Bounds, terrivelmente inadequado no seu colarinho mole, era feito de uma substância tão desbotada quanto a gaze vaporosa de sua respiração condensada. Ele estava perto da cama, com a mão ainda abaixada onde estivera puxando a coberta de cima, seus olhos marrom escuros impassivelmente fixos no seu amo.
- Bows! - murmurou o deus entorpecido. - É você, Bows?
- Sou eu, sim senhor.
Anthony mexeu sua cabeça, forçou seus olhos a se abrirem bem e piscou triunfante.
- Bounds.
- Senhor?
- Será que você pode, ahh-ó-ó-Senhor! - Anthony bocejou insuportavelmente e o conteúdo de seu cérebro pareceu ter caído todo dentro de um denso mingau. Recomeçou do zero.
- Será que você pode vir lá pelas quatro e servir chá e uns sanduíches, ou algo assim?
- Sim, senhor.
Anthony pensou, com uma desolada falta de inspiração.
- Uns sanduíches - repetiu desvalido -, ah, uns sanduíches de queijo e de geléia, e de frango com azeitonas, acho. Pode deixar para lá o
café-da-manhã.
O esforço da inventiva foi demasiado. Ele fechou os olhos, cansado, deixando sua cabeça rolar inerte e abandonando depressa o controle muscular que chegara a readquirir. De um recesso de sua mente rastejou o vago, porém inevitável, fantasma da noite anterior, que demonstrou, neste caso, não passar de uma conversa aparentemente interminável com Richard Caramel, que viera lhe visitar à meia-noite; beberam quatro garrafas de cerveja e mastigaram algumas crostas de pão seco enquanto Anthony ouvia a leitura da primeira parte de O amante endiabrado.
Surgiu então uma voz, horas depois. Anthony ignorou-a, à medida que o sono o envolvia e ocupava os recessos de sua mente.
De repente ele estava acordado, dizendo:
- O quê?
- Para quantos? - Era ainda Bounds, que jazia paciente e imóvel ao pé da cama. Bounds, que dividia seus serviços entre três cavalheiros.
- Quantos o quê?
- Acho melhor que eu saiba quantas pessoas vêm. Terei de providenciar os sanduíches, senhor.
- Duas - murmurou Anthony com voz roufenha
-; uma dama e um cavalheiro.
Bounds disse:
- Obrigado - e se afastou levando com ele seu colarinho mole, humilhantemente inadequado, inadequado para cada um dos três cavalheiros, que só exigiam uma terça parte dele.
Depois de bastante tempo, Anthony se levantou e embrulhou seu corpo esguio e agradável em um roupão opalino, marrom e azul. Com um último bocejo, foi para o banheiro e, ligando a lâmpada da penteadeira (o banheiro não tinha nenhuma abertura externa) contemplou-se no espelho com certo interesse. Que aparência miserável, pensou, tal como geralmente pensava de manhã - o sono empalidecia seu rosto de maneira bizarra. Ele acendeu um cigarro e passou os olhos em várias cartas e na edição matutina do Tribune.
Uma hora depois, barbeado e vestido, já estava sentado na sua escrivaninha, olhando um pequeno pedaço de papel que tirara de sua carteira. Havia rabiscado nele lembretes quase ilegíveis. "Ir ver o senhor Holland às cinco. Cortar cabelo. Averiguar a conta de Rivers. Ir à livraria." E o último: "Dinheiro no banco, 690 dólares (riscados), 612 dólares (riscados), 607 dólares".
Finalmente, bem embaixo e em um rabisco apressado: "Dick e Gloria Gilbert para o chá".
O último item deu-lhe uma satisfação evidente. Seu dia, geralmente uma criatura gelatinosa, disforme, invertebrada, alcançara uma estrutura mesozóica. Avançava com segurança, até mesmo com garbo, em direção a um clímax, como deve ser no caso de uma peça teatral, como deve ser em se tratando de um dia. Ele temia o momento em que a espinha dorsal do dia se rompesse, quando finalmente já tivesse conhecido a garota, falado com ela e, com uma mesura, levado sua figura risonha até a porta, voltando exclusivamente para os restos melancólicos nas xícaras de chá e o crescente ranço dos sanduíches que haviam sobrado.
Havia uma crescente falta de colorido nos dias de Anthony. Ele o sentia constantemente e às vezes a rastreava em uma conversa que tivera com Maury Noble um mês antes. Que algo tão ingênuo, tão puritano como uma sensação de esterilidade pudesse lhe perturbar era absurdo, mas não havia como negar que a sobrevivência incômoda de algum fetiche moral o levara três semanas atrás à biblioteca pública, onde graças ao cartão de Richard Caramel tirara meia dúzia de livros sobre o Renascimento Italiano. O fato de esses livros ainda estarem empilhados na sua escrivaninha na mesma ordem em que foram carregados, de aumentarem diariamente sua dívida em doze centavos, não era nenhum lenitivo para o que sinalizavam. Eram testemunhas encadernadas de sua desistência. Por várias horas Anthony fora tomado de um pânico agudo e alarmante.
Como justificativa de seu modo de vida havia, primeiro, é claro, A Falta de Sentido da Vida. Tal como ajudantes e ministros, pajens e escudeiros, mordomos e lacaios desse grande Khan, mil livros reluziam nas suas estantes, havia aquele apartamento e todo o dinheiro que seria seu quando o velho rio acima, sufocado, morresse pelo seu derradeiro ato de moralismo. De um mundo repleto da ameaça das debutantes e da burrice das muitas Geraldines ele estava felizmente livre; melhor faria emulando a imobilidade felina de Maury e ostentando orgulhosamente a sabedoria acumulada das gerações privilegiadas.
Transcendendo e se opondo a essas coisas havia algo constantemente analisado e rejeitado por seu cérebro como um complexo cansativo que, embora descartado pela lógica e pisoteado com bravura, o obrigara a sair nos restos enlameados de neve do final de novembro até uma biblioteca que não tinha a maioria dos livros que ele mais desejava. É justo analisar Anthony até o ponto em que ele podia se analisar; além disso, trata-se de uma evidente presunção. Ele enxergava em si mesmo uma solidão e um pavor crescentes. A idéia de comer sozinho o apavorava; por outro lado, jantava muitas vezes com sujeitos que detestava. Viajar, que em certa época o encantara, parecia afinal algo insuportável, de um colorido sem substância, uma caçada fantasma à sombra de seu próprio sonho.
"Se no fundo eu for fraco", pensou, "preciso de tarefas a cumprir, tarefas a cumprir". Preocupava-o imaginar que fosse, no frigir dos ovos, de uma mediocridade satisfeita, sem a postura de Maury nem o entusiasmo de Dick. Parecia trágico nada querer
- e, não obstante, ele queria algo, algo. Tinha lampejos do que era; um caminho qualquer cheio de esperança que o levasse ao que considerava uma velhice execrável e iminente.
Depois de tomar coquetéis e almoçar no University Club, Anthony sentiu-se melhor. Encontrara dois sujeitos de sua turma em Harvard e, comparada com sua conversa inexpressiva e pesada, a vida dele se tornou colorida. Ambos eram casados: um deles passou o café descrevendo brevemente uma aventura extraconjugal diante dos sorrisos benévolos e compreensivos do outro. Eram ambos, pensou ele, embriões do senhor Gilbert; a quantidade dos seus "sims" precisaria ser quadruplicada, suas índoles azedadas por vinte anos a mais, quando então não passariam de máquinas obsoletas e quebradas, inúteis, donas de uma pseudo-sabedoria, cuidadas até chegarem à mais absoluta senilidade pelas mulheres que eles haviam domesticado.
Ah, ele era melhor que isso, pensou ao percorrer o longo tapete no saguão depois do jantar, parando diante da janela para olhar a agitação na rua. Ele era Anthony Patch, brilhante, magnético, com uma herança de muitos anos e muitos homens. Este mundo agora lhe pertencia - e essa derradeira, forte e almejada ironia jazia em um futuro iminente.
Com uma infantilidade frívola, viu-se poderoso na terra; com o dinheiro de seu avô ele poderia construir seu próprio pedestal e ser um Talleyrand, um Lord Veralam. A clareza de sua mente, sua sofisticação, sua inteligência versátil, tudo isso em plena maturidade e dominado por um objetivo ainda por nascer, haveria de encontrar uma obra digna dele. Nesse tom menor, seu sonho se dissipava - obra a fazer: tentou se imaginar no Congresso, refocilando na sujeira daquela incrível pocilga, em companhia das frontes estreitas e porcinas que às vezes via retratadas nas seções de rotogravura dos jornais de domingo, daqueles proletários glorificados a balbuciar para a nação idéias de estudantes secundários! Homens pequenos com ambições primárias que imaginavam sair da mediocridade através da mediocridade para alcançar o paraíso empanado e nada romântico do governo do povo pelo povo - e os melhores, a dezena de homens espertos no topo, cínicos e egoístas, se contentavam em dirigir esse coro de colarinhos brancos em um espantoso e discordante hino, composto de uma vaga confusão entre a riqueza como recompensa da virtude e a riqueza como prova de corrupção, acompanhado de ininterruptos vivas a Deus, à Constituição e às Montanhas Rochosas!
Lord Veralam! Talleyrand!
De volta a seu apartamento, voltou a insipidez. Seus coquetéis haviam passado, deixando-o sonolento, um tanto obnubilado e com tendência ao mau humor. Lord Veralam - ele? A idéia era inclusive amarga. Anthony Patch sem vestígio de realização alguma, sem coragem, sem a hombridade de se dar por satisfeito com a verdade quando esta se revelava. Ah, ele era tolo, pretensioso, construindo carreiras em cima de coquetéis enquanto choramingava consigo mesmo o colapso de um triste e ineficaz idealismo. Guarnecera sua alma do gosto mais sutil, e agora ansiava pelas antigas porcarias. Estava, ao que parece, vazio como uma velha garrafa...
A campainha da porta tocou. Anthony se levantou de um salto e pôs o intercomunicador no ouvido. Era a voz de Richard Caramel, jocosa e empolada:
- Anunciando a senhorita Gloria Gilbert.

A BELA DAMA

- Como vai? - disse ele, segurando a porta aberta.
Dick fez uma mesura.
- Gloria, este é Anthony.
- Nossa! - exclamou ela, estendendo uma pequena mão enluvada.
Sob o casaco de pele, trajava um vestido azul acinzentado, com renda branca plissada em volta do pescoço.
- Deixe-me pegar suas coisas.
Anthony estendeu os braços e o volume marrom do casaco de pele rolou para cima deles.
- Obrigada.
- O que acha dela, Anthony? - perguntou de repente Richard Caramel. - Não é bonita?
- Caramba! - exclamou a garota desafiadoramente, sem ficar nem mesmo perturbada.
Ela era deslumbrante - acesa; a percepção instantânea de sua beleza era de doer. Seu cabelo, de encanto celestial, era uma alegria contraposta à cor tristonha da sala.
Anthony se movia daqui para ali, como um mágico; a luminária tipo cogumelo transformou-se em um esplendor alaranjado. O fogo atiçado fazia os cães de cobre da lareira reluzirem....
- Estou um bloco sólido de gelo - murmurou casualmente Gloria, olhando em volta com as íris do mais delicado e transparente branco azulado. - Que fogo esperto! A gente achou um lugar em cima de uma espécie de bueiro de ferro que soprava ar quente para cima, mas Dick não quis ficar comigo esperando. Eu disse a ele para seguir adiante e me deixar ali com meu consolo.
Isso não deixava de ser bastante convencional. Ela parecia falar por puro prazer em si, sem nenhum esforço. Anthony sentado em uma extremidade do sofá, examinava o perfil dela contra o fundo da luminária: a rara regularidade do nariz e lábio superior, o queixo ligeiramente obstinado, belamente equilibrado em um pescoço um tanto curto. Em fotos, ela devia parecer totalmente clássica, quase fria - mas a luminosidade de seus cabelos e de suas faces a tornavam a pessoa mais viva que ele jamais vira.
- Acho que você tem o nome mais interessante que já ouvi - dizia ela, aparentemente ainda para si mesma; seu olhar pousou por um momento nele, em seguida fugiu além, para as luminárias de parede italianas, grudadas como luminosas tartarugas amarelas intercaladamente nas paredes, para as fileiras e mais fileiras de livros, em seguida para seu primo, do outro lado. - Anthony Patch. Só que você devia se parecer meio com um cavalo, com um rosto estreito e longo - e devia andar em farrapos.
- Isso tudo quanto ao Patch. (Patch significa, entre outras coisas farrapo.) Como deveria se parecer o Anthony?
- Você se parece com o Anthony - ela assegurou-o séria: ele pensou que ela mal o vira -, um tanto majestoso - prosseguiu ela - e solene.
Anthony se permitiu um sorriso constrangido.
- Só que eu gosto de nomes aliterados
- prosseguiu ela -, exceto o meu. O meu é extravagante demais. Eu conheci duas garotas de sobrenome Jinks, e imagine só se não tivessem exatamente os nomes que tinham: Judy Jinks e Jerry Jinks. Bonitinhos, não? Você não acha? - Sua boca infantil permanecia entreaberta, à espera de uma reação.
- Todo mundo da próxima geração - sugeriu Dick - se chamará Peter ou Bárbara, porque atualmente todos os personagens literários charmosos se chamam Peter ou Bárbara.
Anthony deu continuidade ao vaticínio:
- É evidente que Gladys e Eleanor, depois de terem agraciado a última geração de heroínas e estando no momento no auge da moda, serão transferidos para a próxima geração de comerciarias..
- Deslocando Ella e Stella - interrompeu Dick.
- E Pearl e Jewel - acrescentou animadamente Gloria - e Earl e Elmer e Minnie.
- E aí venho eu - comentou Dick -, pego o nome obsoleto de Jewel e dou-o a algum personagem atraente e singular, e ele começa sua carreira toda de novo.
A voz dela pegou o fio e foi se tecendo na conversa com entonações ligeiramente agudas e meio jocosas no final das frases - como se resistisse a ser interrompida - intercaladas com risadas marotas. Dick lhe contara que o empregado de Anthony se chamava Bounds - ela achou isso formidável! Dick fizera um trocadilho infame sobre Bounds, o homem dos "baldes" de Anthony, mas se havia algo pior que um trocadilho, disse ela, era o sujeito que, como inevitável reação ao trocadilho, dava um olhar de pseudocensura ao trocadilhista.
- De onde você é? - perguntou Anthony. Ele sabia, mas a beleza o deixara mentalmente lesado.
- Kansas City, Missouri.
- Eles a expulsaram na mesma época em que baniram o fumo.
- Baniram o fumo? Vejo a mão de meu santo avô.
- Ele é um moralista ou algo assim, não é?
- Eu coro ao pensar nele.
- Eu também - confessou ela. - Detesto moralistas, especialmente do tipo que tenta me regenerar.
- Existem muitos deles?
- Dezenas. É "Gloria, se fumar tanto assim vai arruinar sua bonita pele!", e "Gloria, por que você não se casa e sossega logo?".
Anthony concordou enfaticamente, enquanto pensava sobre quem tivera a audácia de falar isso para aquela figura tão magnífica.
- E aí - prosseguiu ela - existem todos esses moralistas encobertos que te contam todas as histórias terríveis que andaram ouvindo sobre você, mas que sempre estão a seu lado.
Ele percebeu, afinal, que os olhos delas eram cinzentos, muito calmos e francos e, ao pousarem nele, deu-se conta do que Maury quisera dizer ao afirmar que ela era muito jovem e muito velha. Ela sempre falava de si mesma, tal como uma criança muito encantadora, e seus comentários sobre suas preferências e antipatias eram espontâneos e sem afetação.
- Devo confessar - disse gravemente Anthony
- que até eu já ouvi algo a seu respeito.
Subitamente alerta, ela se endireitou na cadeira. Aqueles olhos, com a cor cinza e a perenidade de uma falésia de granito mole, pousaram nos seus.
- Conte. Eu acreditarei. Sempre acredito em qualquer coisa que me contam sobre mim; você não?
- Invariavelmente! - concordaram em coro os dois homens.
- Sim, conte.
- Não tenho certeza se devo - provocou Anthony, sorrindo involuntariamente. Ela ficou tão obviamente interessada, absorta em si de um modo quase cômico.
- Ele quer dizer seu apelido - disse o primo.
- Que apelido? - perguntou Anthony, polidamente perplexo.
Ela foi de uma timidez instantânea; em seguida riu, caiu para trás sobre as almofadas e ergueu os olhos ao falar:
- Gloria Leste-a-Oeste. - Sua voz era jocosa, uma jocosidade indefinida como as diversas sombras que dançavam entre o fogo e a luminária e incidiam sobre seus cabelos. - Caramba!
Ainda assim, Anthony permaneceu perplexo.
- O que você quer dizer?
- Quero dizer, eu. Foi isso que alguns garotos bobos inventaram de mim.
- Você não percebe, Anthony - explicou Dick -, trata-se de uma viajante de notoriedade nacional, e assim por diante. Não foi isso que ouviu falar? É chamada assim há anos, desde os dezessete.
Os olhos de Anthony tornaram-se tristes e cheios de humor.
- Quem é essa Matusalém feminina que você me trouxe aqui, Caramel?
Ela ignorou isso, talvez tenha até se aborrecido um pouco, pois voltou ao assunto principal.
- O que foi que você ouviu de mim?
- Algo sobre sua aparência.
- Ah - disse ela, fria, decepcionada -, só isso?
- Seu bronzeado.
- Meu bronzeado? - Ela ficou espantada. Levou a mão à garganta e ali deixou-a um instante, como se os dedos estivessem sentindo variáveis de tom.
- Você se lembra de Maury Noble? Um sujeito que você conheceu há mais ou menos um mês. Você deixou uma tremenda impressão nele.
Ela pensou por um instante.
- Lembro, mas ele não me ligou.
- Ficou com medo, sem dúvida.
Lá fora a escuridão estava preta agora e Anthony pensou como seu apartamento jamais poderia ter parecido insípido - tão calorosos eram os livros e quadros nas paredes, e o bom Bounds servindo chá, a emergir de uma penumbra respeitosa, e as três pessoas simpáticas irradiando ondas de interesse e dando risadas que se entrecruzavam diante do agradável fogo.

DESAGRADO

Na quinta de tarde, Gloria e Anthony tomaram chá juntos no grill do Plaza. O costume dela, orlado de pele, era cinza.
- Porque com cinza você tem que usar muita pintura - explicou ela.
Uma pequena boina descansava, muito chique, na sua cabeça, permitindo que ondas louras de cabelo escapassem, vistosas e magníficas. Na luz mais intensa, Anthony teve a impressão de que a personalidade dela era infinitamente mais doce - ela parecia tão jovem, mal aparentando dezoito anos; sua figura, sob o invólucro apertado, então conhecido como saia balão, era espantosamente esguia e ágil, e suas mãos, sem serem atarracadas nem mãos "de artista", eram pequenas como deviam ser as mãos de uma criança.
Ao entrarem, a orquestra atacava os acordes preliminares de um maxixe, uma melodia cheia de castanholas e harmonias fáceis e ligeiramente lânguidas de violinos, adequada ao grill repleto, no inverno, fervilhante com uma turma excitada de universitários animada com a proximidade das férias. Gloria considerou vários lugares e, para certo desagrado de Anthony, circulou ostensivamente com ele até uma mesa de dois lugares na extremidade do salão. Ao chegar, pensou de novo: deveria ela sentar do lado direito ou do lado esquerdo? Seus belos olhos e seus belos lábios tomaram um ar muito grave enquanto ela fazia sua opção, e Anthony tornou a pensar como eram ingênuos todos os gestos dela; ela recolhia tudo o que a vida lhe oferecia, como se não parasse de escolher presentes para si mesma em um inexaurível balcão.
Olhou absorta os dançarinos por alguns instantes, comentando em voz baixa quando um casal chegou rodopiando perto deles.
- Aí está um garota bonita de azul - e quando Anthony olhou obediente - Ali! Não, atrás de você, ali!
- É - concordou ele, perplexo.
- Você não a viu.
- Prefiro olhar para você.
- Eu sei, mas ela era bonita. Só que tinha tornozelos grandes.
- Era? Quero dizer, tinha? - disse ele, indiferente. Houve uma saudação da garota, que dançava com um rapaz, perto deles.
- Oi, Gloria! Ô, Gloria!
- Oi.
- Quem é essa? - perguntou ele.
- Não sei. Alguém.
Ela percebeu outro rosto. - Oi, Muriel! - em seguida para Anthony: - Essa é Muriel Kane. Acho-a atraente, mas não demais.
Anthony casquinou de satisfação.
- Atraente, mas não demais - repetiu ele.
Ela sorriu, imediatamente interessada.
- Qual a graça disso? - O tom de voz dela era pateticamente atento.
- É simplesmente engraçado.
- Quer dançar?
- Você quer?
- Um pouco. Mas vamos ficar sentados - decidiu ela.
- E falar sobre você? Você adora falar sobre você, não é?
- Sim. - Flagrada em sua vaidade, ela deu uma risada.
- Imagino que sua autobiografia seja um clássico.
- Dick diz que eu não possuo uma.
- Dick! - exclamou Anthony. - Que ele sabe sobre você?
- Nada. Mas ele diz que a biografia de toda mulher começa com o primeiro beijo de peso e acaba quando seu último filho lhe é entregue no colo.
- Ele fala a partir de seu livro.
- Ele diz que mulheres mal amadas não têm biografias, têm histórias.
Anthony tornou a rir.
- Não me diga que você se considera mal amada!
- Bem, acho que não.
- Então por que você não tem uma biografia? Nunca recebeu um beijo de peso? - Na hora que as palavras deixaram seus lábios, ele inspirou com força como se quisesse sugá-las de volta. Que belezinha!
- Não sei o que você quer dizer por "de peso"
- contestou ela.
- Eu queria muito que você me dissesse sua idade.
- Vinte e dois - disse ela, encontrando o olhar dele com ar sério. - Quantos anos você me dava?
- Uns dezoito.
- Vou começar a agir em conformidade com isso. Não gosto de ter 22. Detesto-o mais do que qualquer outra coisa no mundo.
- Ter 22?
- Não. Envelhecer e tudo mais. Casar.
- Você nunca vai querer casar?
- Não quero a responsabilidade e uma porção de filhos para cuidar.
Ela não tinha, obviamente, a menor dúvida de que tudo que saía de seus lábios era bom. Ele esperou, um tanto sem fôlego, pelo próximo comentário dela, na esperança que desse continuidade ao último. Ela sorria, sem muita vontade, mas com simpatia e, depois de uma pausa, meia dúzia de palavras eliminara a distância entre eles:
- Eu queria umas jujubas.
- Você as terá! - Ele chamou um garçom e
mandou-o à tabacaria.
- Você se importa? Adoro jujubas. Todo mundo brinca comigo porque vivo mastigando uma delas, sempre que papai não está presente.
- De modo algum. Quem são essas crianças?
- perguntou ele de repente. - Você as conhece todas?
- Por quê? Não, mas elas são de, ah, todo canto, acho. Você nunca vem aqui?
- Muito raramente. Não aprecio especialmente "garotas decentes."
Ele obteve sua imediata atenção. Ela deu ostensivamente as costas para os dançarinos, relaxou na sua cadeira e perguntou:
- O que você faz?
Graças a um coquetel, Anthony recebeu bem a pergunta. Com disposição para falar, queria, no entanto, impressionar essa garota que demonstrava um interesse tão torturante e evasivo, que parava para se nutrir em paragens inesperadas e passava rapidamente por cima daquilo que não era obviamente óbvio. Ele quis fazer pose. De repente, quis aparecer para ela em roupagens novas e heróicas. Queria sacudi-la da atitude casual que ela demonstrava frente a tudo que não fosse ela mesma.
- Não faço nada - começou ele, percebendo desde logo que suas palavras careceriam do encanto jovial que ele pretendia com elas. - Não faço nada, porque não existe nada que eu possa fazer que valha a pena.
- Sim? - Ele não só não a espantara como sequer prendera sua atenção, e, no entanto, ela certamente o compreendera, se é que ele dissera algo que merecesse ser compreendido.
- Não gosta de homens preguiçosos?
Ela negou com a cabeça.
- Claro que não, se eles forem preguiçosos com charme. Será que é possível para um americano?
- Por que não? - perguntou ele, embaraçado.
Mas a cabeça dela fugira do assunto e subira dez andares.
- Papai está danado comigo - comentou ela de modo indiferente.
- Por quê? Quero saber simplesmente por que é impossível que um americano seja preguiçoso com charme - suas palavras ganharam convicção -, isso me espanta. - Isso... isso. Eu não compreendo porque as pessoas acham que todo rapaz deve ir para o centro da cidade e trabalhar dez horas por dia durante os vinte melhores anos de sua vida em trabalhos chatos e sem imaginação, e certamente trabalhos
não-altruístas.
Ele se interrompeu. Ela o observava de modo insondável. Ele esperou que ela concordasse ou discordasse, mas ela não fez nem uma coisa nem outra.
- Você nunca forma uma opinião sobre as coisas? - perguntou ele, meio exasperado.
Ela sacudiu a cabeça e seu olhar voltou a se fixar nos dançarinos ao responder:
- Não sei. Não entendo nada... do que você devia fazer ou do que qualquer um deve fazer.
Ela o confundia e entravava seu fluxo de idéias. A autoexpressão nunca parecera tão desejável e ao mesmo tempo tão impossível.
- Bem - admitiu ele em tom de desculpas -, nem eu, é claro, mas...
- Eu apenas penso nas pessoas - prosseguiu ela
-, se parecem estar certas no lugar que estão e se estão adaptadas ao cenário. Eu não me importo se elas não fazem nada. Não vejo por que deveriam fazer algo; na verdade, sempre fico espantada quando alguém faz alguma coisa.
- Você não quer fazer nada?
- Só quero dormir.
Por um momento ele ficou espantado, quase como se ela tivesse querido dizer isso ao pé da letra.
- Dormir?
- Por aí. Eu quero apenas ser preguiçosa e quero que as pessoas à minha volta façam coisas, pois isso me faz sentir confortável e segura; quero que algumas delas não façam absolutamente nada, porque assim podem ser encantadoras e boa companhia para mim. Mas jamais quero mudar as pessoas, nem me angustiar com elas.
- Você é uma estranha deterministazinha - riu Anthony. - Está de bem com o mundo, não é?
- Caramba - disse ela, com um rápido olhar para cima -, e não é para estar? Desde que eu permaneça... jovem.
Ela fizera uma ligeira pausa antes da última palavra e Anthony desconfiava que ela começara a dizer "bela". Era o que ela inegavelmente tencionara dizer.
Os olhos dela brilharam e ele esperou que ela desenvolvesse o assunto. Ele a fizera extravasar algo, de qualquer modo, e inclinou-se ligeiramente para frente para captar as palavras.
Mas "vamos dançar!", foi tudo que ela disse.

ADMIRAÇÃO

Aquela tarde de inverno no Plaza foi a primeira de uma série de "encontros" que Anthony teve com ela nos dias estimulantes e indistintos antes do Natal. Ela vivia invariavelmente ocupada. Qual a camada específica da vida social da cidade que a exigia foi algo que ele levou bastante tempo para descobrir. Parecia não importar muito. Ela freqüentava os bailes semipúblicos de caridade nos grandes hotéis; ele a viu várias vezes durante jantares no Sherry's e, uma vez, enquanto ele esperava que ela se vestisse, a senhora Gilbert, falando do hábito de "badalar" de sua filha, declamou um espantoso programa de férias que incluía meia dúzia de bailes para os quais Anthony recebera convites.
Ele marcou várias vezes almoços e chás com ela
- os primeiros eram apressados e, pelo menos para ele, insatisfatórios, por ela estar sonolenta e distraída, incapaz de se concentrar em qualquer coisa ou prestar atenção conseqüente aos comentários dele. Quando, depois de uma ou duas dessas tristes refeições, ele acusou-a de lhe dar os ossos de seu dia, ela riu e marcou um chá dentro de três dias. Isso foi infinitamente mais satisfatório.
Em uma tarde de sábado, logo antes do Natal, ele procurou-a e encontrou-a na calmaria que se seguiu depois de uma importante, embora misteriosa, briga: ela informou-lhe, em um tom que misturava raiva com jocosidade, que expulsara um sujeito de seu apartamento - aqui Anthony especulou violentamente
- e que o tal sujeito dava um jantarzinho para ela naquela mesma noite, ao qual ela, é claro, não iria. Assim Anthony levou-a para jantar.
- Vamos fazer um programa qualquer! - propôs ela ao descerem no elevador. - Estou com vontade de ver um show, você não?
Uma pesquisa no balcão de venda de ingressos do hotel revelou apenas dois "concertos" domingo à noite.
- São sempre iguais - reclamou ela, aborrecida
-, os mesmos e velhos cômicos judeus de sempre. Ah, vamos a algum lugar!
Para esconder uma desconfiança crescente de que ele deveria ter arranjado um espetáculo qualquer para submetê-lo ao gosto dela, Anthony fingiu uma animação de entendido no assunto.
- Iremos a um bom cabaré.
- Já vi todos da cidade.
- Ora, vamos encontrar um novo.
Ela estava com um péssimo humor, era evidente. Seus olhos cinza eram agora de granito mesmo. Quando não estava falando, ela olhava duro em frente, como se contemplasse alguma abstração desagradável no saguão.
- Bem, então vamos lá.
Ele seguiu-a, uma garota graciosa, mesmo embrulhada nas suas peles, até um táxi e, com ar de quem sabia exatamente o seu destino, mandou o motorista ir a Broadway e então descer rumo ao sul. Ele fez várias tentativas fortuitas de entabular uma conversa, mas como ela adotou uma armadura impenetrável de silêncio e respondia-lhe em frases taciturnas como a escuridão fria do táxi, ele desistiu e, assumindo um estado de espírito semelhante, caiu em uma tristeza sombria.
Uma dúzia de quarteirões Broadway abaixo, o olhar de Anthony foi atraído por um letreiro luminoso enorme e desconhecido, com "Marathon" escrito em uma maravilhosa caligrafia amarela adornada com folhas e flores elétricas que sumiam e brilhavam intercalamente sobre a rua molhada e luzidia. Ele se inclinou e bateu na divisória do táxi, e dentro de um instante já recebia informações de um porteiro preto. Sim, ali era um cabaré. Beleza de cabaré. Melhor espetáculo da cidade!
- Vamos experimentar?
Com um suspiro, Gloria jogou seu cigarro porta afora e se preparou para segui-lo; em seguida eles passaram sob o anúncio berrante, pelo largo portal e subiram em um elevador abafado até aquele templo inédito do prazer.
Os habitats alegres dos ricaços e dos pobretões, dos muito ousados e criminosos, sem falar dos boêmios, por último muito explorados, eram conhecidos das escolares deslumbradas de Augusta, Geórgia e Redwig, Minnesota, não apenas através dos encantadores suplementos dominicais fartamente ilustrados, mas também através do olhar escandalizado e alarmado do senhor Rupert Hughes e demais cronistas do ritmo alucinante da América. Mas as excursões do Harlem na Broadway, as diabruras dos chatos e as farras dos respeitáveis são assunto de um conhecimento esotérico, acessível apenas aos próprios partícipes.
Um boato faz circular - e no lugar mencionado com intimidade se acumulam as classes mais baixas nas noites de sábado e de domingo - os sujeitinhos agitados retratados nos quadrinhos como "o Consumidor" ou "o Público". Certificaram-se de que o lugar tem três qualidades: é barato, imita com um anseio mecânico e fajuto as palhaçadas douradas dos grandes cafés no bairro dos teatros e - muito importante - é um lugar onde se pode "levar uma moça decente", o que significa, evidentemente, que todo mundo ficou igualmente inofensivo, tímido e desinteressante, por falta de dinheiro e imaginação.
Ali, nas noites de domingo, se reúne gente crédula, sentimental, mal paga, que trabalha demais, gente com ocupações designadas por palavras hifenizadas ou não: guarda-livros, bilheteiros, gerentes-administrativos, vendedores e, na maior parte, escreventes dos correios, do banco, da mercearia, da empresa de remessas. Acompanhando-os, lá estão suas mulheres risonhas, de gestos exagerados, pateticamente pretensiosas, que engordam junto com eles, lhes dão filhos demais e flutuam, impotentes e infelizes, em um mar insípido de chatices e esperanças frustradas.
Batizam esses cabarés de fancaria com nomes de vagões Pullman. O Marathon! Não querem provocar sorrisos lascivos, emprestados dos cafés de Paris! É ali que seus fregueses dóceis levam suas "mulheres decentes", cuja carência imaginativa as predispõe a acreditar com facilidade em um cenário relativamente alegre e prazeroso, e até mesmo um pouco imoral. A vida como ela é! Quem se preocupa com o amanhã?
Gente devassa!
Anthony e Gloria se sentaram, olharam em volta. Na mesa ao lado um grupo de quatro estava em vias de ser engrossado por um grupo de três, dois sujeitos e uma garota, obviamente atrasados - e os modos da garota eram um tratado de sociologia nacional. Ela travava conhecimento com homens novos - e fingia desesperadamente. Através de gestos, palavras e movimentos quase imperceptíveis de seus cílios, ela fingia pertencer a uma classe um pouco superior àquela com a qual agora lidava, fingia que pouco tempo atrás estivera, e breve haveria de estar de novo, em uma atmosfera superior, mais rarefeita. Ela era quase dolorosamente refinada - usava um chapéu do ano passado ornado de violetas que não chegavam a ser mais pretensiosas, nem mais obviamente artificiais, do que ela mesma.
Fascinados, Anthony e Gloria observaram a garota se sentar e irradiar a impressão de que ela só estava presente por condescendência. Para mim, diziam seus olhos, isto aqui é praticamente uma expedição à sarjeta, para ser acompanhada por risadas derrisórias fazendo as vezes de desculpas.
As demais mulheres transmitiam a impressão apaixonada de que, embora fizessem parte da multidão, não pertenciam a ela. Aquele não era o tipo de lugar que estavam acostumadas a freqüentar; tinham dado um pulo até ali porque era perto e cômodo - todos os grupos no restaurante davam essa impressão... Quem sabe viviam trocando de classes sociais, todos eles - as mulheres muitas vezes se casando acima de suas possibilidades, os homens demonstrando uma súbita e magnífica opulência: um comercial bastante ridículo, com um sorvete de casquinha transformado em algo celestial. Entrementes, eles se reuniam ali para comer, fechando os olhos para a exibição de economia demonstrada pela rara troca das toalhas, pela displicência dos artistas de cabaré e, principalmente, pela familiaridade e informalidade coloquial dos garçons. Tinha-se certeza de que aqueles garçons não se deixavam impressionar pelos seus fregueses. Esperava-se a qualquer momento que eles se sentassem nas mesas...
- Você não gosta daqui? - perguntou Anthony.
O rosto de Gloria se avivou e ela deu um sorriso pela primeira vez naquela noite.
- Estou adorando - disse ela com franqueza. Era impossível duvidar dela. Seus olhos cinza erravam daqui para ali, lânguidos, preguiçosos ou alertas, pousando em cada grupo, passando para o seguinte com indisfarçável satisfação, e Anthony pôde perceber com clareza os diversos valores de seu perfil, as expressões maravilhosamente vivas de sua boca e a autêntica distinção de rosto, figura e modos que a faziam parecer a única flor no meio de um bricabraque barato. Diante de sua felicidade, um sentimento esplêndido transbordou dos olhos dele, engasgou-o, pôs seus nervos vibrando e encheu sua garganta de uma rouquidão emocionada. Houve um silêncio no salão. Os violinos e saxofones displicentes, a birra aguda e irritante de uma criança ali perto, a voz da garota do chapéu de violetas na mesa ao lado, retiraram-se todos, lentamente, recuaram e caíram desfeitos como reflexos de sombra no chão luzidio - e os dois, ao que lhes parecia, estavam sós e infinitamente distantes, calados. Com certeza o frescor das suas faces era uma projeção tênue de uma terra de tons delicados e inéditos; a mão dela brilhando na toalha de mesa manchada era uma concha de um mar distante, indômito e virgem...
Então a ilusão ruiu como um castelo de cartas; o salão se reagrupou em volta dele, vozes, rostos, movimento; o brilho berrante das luminárias acima tornou-se real, tornou-se significativo; teve início a respiração, a respiração lenta dela e no mesmo ritmo daquela centena de gente submissa, com o peito inchando e murchando e o eterno e absurdo jogo e troca, emissão e reiteração de palavras e frases
- tudo isso abriu violentamente seus sentidos para a pressão sufocante da vida - e então a voz dela lhe chegou, tranqüila como o sonho suspenso que ele deixara para trás.
- Eu pertenço a este lugar - murmurou ela -, sou como essa gente.
Por um momento isso pareceu um paradoxo amargo e desnecessário que lhe fora arremessado através da distância impraticável que ela criava à sua volta. O enlevo dela aumentara - seu olhar descansava sobre um violinista semita que balançava os ombros ao ritmo do fox-trot mais meloso do ano:

Something - goes
Ring-a-ting-a-ling-a-ling
Right in your ear

Ela falava de novo, do âmago daquela ilusão difusa que lhe era própria. Espantava-o. Era como ouvir uma blasfêmia dos lábios de uma criança.
- Sou igual a eles; como lanternas japonesas, papel crepom e a música dessa orquestra.
- Você é uma jovem idiota! - insistiu ele incisivamente. Ela sacudiu sua cabeça loura.
- Não, não sou não. Eu sou como eles... Você precisa compreender... Não me conhece. - Ela hesitou e seu olhar voltou a pousar nele, descansando de modo abrupto sobre os olhos dele, como se finalmente se espantasse de vê-lo ali. - Tenho um traço do que você chamaria vulgaridade. Não sei de onde peguei isso, mas... ah, coisas assim, cores berrantes e vulgaridade espalhafatosa. Eu pareço pertencer a este lugar. Essa gente é capaz de me apreciar e aceitar naturalmente, e esses sujeitos iriam se apaixonar por mim e me admirar, enquanto os caras inteligentes que eu conheço iriam simplesmente me analisar e dizer que sou assim ou assado por causa disso ou aquilo.
Anthony teve vontade, naquele momento, de
pintá-la ardentemente, de retratá-la agora tal como ela era, já que com o passar de cada segundo implacável ela nunca mais haveria de ser assim.
- O que você está pensando? - perguntou ela.
- Que eu simplesmente não sou um realista
- disse ele, e em seguida: - Não, somente o romântico conserva as coisas que valem a pena ser conservadas.
Vindo da profunda sofisticação de Anthony, formou-se uma compreensão, nada atávica ou obscura; na verdade mal chegava a ser uma coisa física, uma compreensão recordada do romancear de muitas gerações de cabeças, de modo que, ao falar e prender a atenção dele e virar sua linda cabeça, ela emocionou-o como jamais ele se emocionara antes. O invólucro que continha sua alma tomara um sentido
- só isso. Ela era um sol, radiante, se expandindo, acumulando e armazenando luz que, então, depois de uma eternidade, vertia em um olhar, no fragmento de uma frase, naquela parte dele que apreciava toda e qualquer beleza e ilusão.


CAPÍTULO TRÊS
O PERITO EM BEIJOS

Desde seus dias de estudante, como editor do Harvard Crimson, que Richard Caramel desejava escrever. Mas, quando veterano, adquirira a ilusão incensada que determinados sujeitos estavam destinados a "prestar serviço" e, ao se defrontar com o mundo lá fora, cumpriam realizar algo vago e idealizado que redundaria em uma recompensa interna ou, pelo menos, na satisfação pessoal de ter lutado pelo bem máximo do maior número de pessoas.
Esse espírito há muito embalava as universidades americanas. Começa, a rigor, durante a época imatura e impressionável do primeiro ano - às vezes lá atrás, na época do curso preparatório. Prósperos apóstolos, conhecidos por sua histrionice, fazem o circuito universitário e, atemorizando o afável rebanho e embotando a curiosidade intelectual e o despertar de interesses que constituem o objetivo de toda educação, destilam uma misteriosa convicção de pecado que remete a crimes infantis e à sempiterna ameaça das "mulheres". A essas palestras vão os garotos maus para apupar e fazer galhofa, e os tímidos para engolir as pílulas douradas, que mal não fariam se fossem dadas a fazendeiras ou a devotos balconistas de farmácia, mas constituem um remédio bastante perigoso para "futuros líderes".
Esse polvo teve bastante força para prender um de seus tentáculos sinuosos em volta de Richard Caramel. No ano seguinte à sua formatura ele
instou-o a entrar nas favelas de Nova York para se meter com italianos desnorteados na qualidade de secretário de uma "Associação de Socorro aos Jovens Estrangeiros". Ele trabalhou nisso por mais de um ano antes de começar a ser vencido pela monotonia. Os estrangeiros não paravam de chegar - italianos, polacos, escandinavos, tchecos, armênios - com as mesmas injustiças, as mesmas caras excepcionalmente feias e praticamente os mesmos fedores, embora ele detectasse um aumento e diversificação dos mesmos na medida em que os meses passaram. Sua conclusão final sobre a utilidade do serviço era vaga mas, quanto às suas próprias relações com ele, foi abrupta e decisiva. Qualquer rapaz bondoso, com os ecos da última cruzada na cabeça, seria capaz de obter os mesmos resultados que ele em relação àquela escória da Europa - e já era época de escrever.
Ele estivera morando em um albergue da ACM mas, quando desistiu de dar murro em ponta de faca, mudou-se para a parte mais residencial da cidade e foi logo trabalhar como repórter no The Sun. Insistiu nisso um ano, escrevendo intermitentemente nas horas vagas, com escasso êxito, e então, um dia, um acontecimento infeliz encerrou para sempre sua carreira jornalística. Em uma tarde de fevereiro mandaram-no cobrir uma parada do Esquadrão de Bombeiros. Diante da ameaça de neve, ele, em vez disso, adormeceu frente ao calor de uma lareira e ao acordar escreveu uma coluna escorreita sobre as batidas abafadas das patas de cavalo na neve - que entregou. Na manhã seguinte, um exemplar marcado do jornal foi entregue ao editor da editoria de Geral com um bilhete rabiscado: "Despeça o sujeito que fez isto". Parece que o Esquadrão A também percebera a ameaça da neve - e transferira a parada para outro dia:
Uma semana depois começara O amante endiabrado.
Em janeiro, a segunda-feira dos meses, o nariz de Richard Caramel vivia azul, um azul amargo, dando uma vaga impressão de chamas a lamber um pecador. Seu livro estava quase pronto e, na medida que avançava rumo a sua completude, avançava também nas suas exigências, exaurindo-o, subjugando-o, até que ele passou a andar alquebrado e cativo à sua sombra. Não apenas a Anthony e a Maury confessava ele suas esperanças, suas bazófias e indecisões, mas a qualquer um que pudesse ser convencido a ouvir. Ele ia ver editores polidos porém desnorteados, ele debatia-o com seus conhecidos, face a face, no Harvard Club; Anthony chegava a alegar que ele fora flagrado, em uma noite de domingo, discutindo a transposição do capítulo dois com um coletor de bilhetes, de espírito literário, nos lúgubres recessos de uma estação do metrô no Harlem. E sua última confidente era a senhora Gilbert, que ficava sentada junto com ele horas a fio, alternando o bilfismo e a literatura em um intenso fogo cruzado.
- Shakespeare era um bilfista - assegurou-lhe ela com um sorriso fixo. - Ah, sim senhor! Era um bilfista. Foi comprovado.
Diante disso, Dick dava a impressão de estar ligeiramente distante.
- Se você já leu Hamlet, não há como não perceber.
- Sim, ele vivia em uma época mais crédula, uma época mais religiosa.
Mas ela fazia questão de ir até o fim:
- Ah, sim, mas veja só, o bilfismo não é uma religião. É a ciência de todas as religiões. - Ela sorriu em desafio para ele. Aquele era o bon mot de sua crença. Havia alguma coisa na combinação das palavras a prender sua mente de modo tão definitivo que a afirmação sobrepujava qualquer necessidade de uma definição própria. Não era improvável que ela aceitasse qualquer idéia embutida nessa magnífica fórmula - que talvez não fosse uma fórmula, e sim a reductio ad absurdum de todas as fórmulas.
Então vinha finalmente a esplêndida virada de Dick.
- Já ouviu falar de um novo movimento da poesia, não ouviu? Sim, trata-se de uma porção de jovens poetas que estão se afastando das velhas formas e fazendo bonito. Sim, o que eu ia dizer é que meu livro vai começar um novo movimento na prosa, uma espécie de renascimento.
- Tenho certeza que fará - sorriu radiante a senhora Gilbert. - Tenho certeza que fará. Fui a Jenny Martin na terça-feira passada, sabe? Essa por quem todo mundo anda louco. Disse a ela que meu sobrinho estava metido em um trabalho e ela respondeu que eu ficaria satisfeita em saber que seu sucesso seria extraordinário. Embora ela nunca te visse ou soubesse nada sobre você, nem mesmo seu nome.
Depois de fazer os ruídos adequados para externar seu espanto diante daquele fenômeno fabuloso, Dick deixou esse assunto passar, como se ele fosse um guarda de trânsito arbitrário fazendo, por assim dizer, sinal para seu próprio tráfego avançar.
- Estou entusiasmado, tia Catherine
- assegurou-lhe -, entusiasmado mesmo. Todos meus amigos estão me gozando. Ah, percebo o humor que há nisso e não me importo. Acho que as pessoas devem saber suportar as brincadeiras. Mas possuo uma espécie de convicção - concluiu, melancólico.
- Você é uma alma provecta, eu sempre digo.
- Talvez eu seja. - Dick chegara ao ponto de não resistência, de submissão. Ele devia ser uma alma provecta, imaginou grotescamente; tão provecta a ponto de ficar totalmente podre. No entanto, a repetição da frase ainda o constrangia um pouco e provocava arrepios na sua espinha. Mudou de assunto.
- Onde está minha distinta prima, Gloria?
- Na farra, por aí, com alguém.
Dick fez uma pausa, pensou bem e então, contraindo seu rosto em algo que começara evidentemente como um sorriso mas que acabara como uma careta apavorante, deixou escapar um comentário.
- Acho que meu amigo Anthony Patch está apaixonado por ela.
A senhora Gilbert levou um susto, deu um sorriso radiante um segundo atrasado, e soprou seu "verdade?" em um tom sussurrante de peça policial.
- Acho que sim - corrigiu gravemente Dick. - É a primeira garota com quem o vejo conviver tanto.
- Sim, aliás - disse a senhora Gilbert com uma meticulosa displicência -, Gloria nunca me faz de confidente. Ela é muito reservada. Cá entre nós
- ela se inclinou com cautela para frente, obviamente decidida que apenas o céu e seu sobrinho haveriam de compartilhar sua confissão -, cá entre nós, eu gostaria que ela sossegasse.
Dick se levantou e começou a dar passos enérgicos pelo assoalho, um jovem baixo, ativo, já gorducho, com as mãos enfiadas de uma maneira afetada nos seus bolsos cheios.
- Não garanto que eu tenha razão, veja só
- assegurou ele à gravura em metal,
positivamente-de-hotel, que sorria maliciosamente de volta para ele. - Não estou dizendo nada que eu não gostaria que Gloria soubesse. Mas acho que Anthony Maluco está interessado, tremendamente interessado. Ele vive falando nela. Em qualquer outra pessoa, isso seria mau sinal.
- Gloria é uma alma muito jovem... - começou a dizer impulsivamente a senhora Gilbert, mas foi interrompida pelo seu sobrinho com uma frase dita depressa.
- Gloria seria uma jovem muito doida se não se casasse com ele. - Ele se calou e encarou-a com uma expressão que era um mapa de batalha sulcado e cheio de covinhas, feições contraídas e forçadas até o máximo de intensidade, como se quisesse compensar com sua sinceridade qualquer indiscrição nas suas palavras. - Gloria é muito levada, tia Catherine. Incontrolável. Não sei como conseguiu, mas, ultimamente, ela arranjou uma porção de amigos estranhíssimos. Não parece se importar. E os sujeitos com que ela costumava sair em Nova York... - Ele fez uma pausa para respirar.
- Sim-sim-sim - interpôs a senhora Gilbert, em uma tentativa anêmica de ocultar o imenso interesse com que escutava.
- Sim - continuou gravemente Richard Caramel
-, é isso aí. Quero dizer que os sujeitos com quem ela saía, as pessoas com quem andava, costumavam ser de primeira categoria. Agora não.
A senhora Gilbert piscou muito rápido - seu peito tremeu, inflou, permaneceu assim um instante e, ao exalar, soltou uma enxurrada de palavras.
Ela sabia, choramingou baixinho; ah, sim, uma mãe percebe essas coisas. Mas o que podia fazer? Ele conhecia Gloria. Conhecia Gloria há bastante tempo para saber como não adiantava tentar controlá-la. Gloria tinha sido mimada demais - de uma maneira exagerada, fora do comum. Mamara até os três anos, por exemplo, quando provavelmente já conseguia mastigar madeira. Talvez fosse isso - nunca se sabe - que lhe dera aquela saúde e a robustez de sua personalidade. E desde os doze anos atraía garotos aos montes - eram tantos montes que a gente não conseguia se mexer. Aos dezesseis começou a freqüentar bailes nos colégios e, em seguida, foi a vez das universidades; e a todo lugar que ia eram garotos, garotos, garotos. De início, ah, até os dezoito anos, eram tantos que nenhum se distinguia dos outros, mas então ela começou a escolhê-los.
Ela sabia que houvera uma série de casos no período de uns três anos, talvez uma dúzia ao todo. Às vezes os sujeitos eram universitários, às vezes recém-formados - duravam, em média, alguns meses cada um, com pequenos namoricos no intervalo entre eles. Uma ou duas vezes duraram mais tempo e sua mãe esperara que ela ficasse noiva, mas surgia sempre alguém novo - novo...
Os sujeitos? Ah, ela os fazia literalmente sofrer! Só houve um que manteve, de algum modo, certa dignidade, e era quase uma criança, o jovem Carter Kirby, de Kansas City, tão convencido, aliás, que certa tarde zarpou levando a própria vaidade e foi para a Europa no dia seguinte com o pai. Os outros ficaram, coitados - muito infelizes. Nunca pareciam perceber quando ela se cansara deles, e Gloria raramente era má de propósito. Não paravam de telefonar, escrever, tentar vê-la, fazer longas viagens pelo país afora atrás dela. Alguns haviam feito confidências à senhora Gilbert, dizendo com lágrimas nos olhos que jamais esqueceriam Gloria... porém pelo menos dois deles se casaram desde então... Mas Gloria, ao que parece, vibrava golpes mortais - até pouco tempo o senhor Carstairs ligava uma vez por semana e lhe mandava flores, que ela não mais se dava ao trabalho de recusar.
Várias vezes, pelo menos duas, a senhora Gilbert sabia que a coisa tinha ido tão longe a ponto de haver um noivado secreto - com Tudor Baird e com aquele garoto Holcome, de Pasadena. Ela tinha certeza disso porque - que aquilo não passasse dali - entrara inesperadamente e encontrara Gloria agindo, ora, como se estivesse bastante noiva. Ela não falara sobre isso com sua filha, é claro. Tinha uma certa noção de delicadeza e, além disso, esperara todo o tempo um anúncio de noivado dentro de poucas semanas. Mas o anúncio nunca veio; em seu lugar vinha um novo sujeito.
Cenas! Jovens andando para lá e para cá na biblioteca como tigres enjaulados! Jovens se entreolhando furiosos no corredor enquanto um vinha e outro partia! Jovens ligando e levando com o telefone na cara, desesperados! Jovens ameaçando com a América do Sul!... Jovens escrevendo as cartas mais patéticas! (Ela não comentou nada a respeito, mas Dick imaginou que os olhos da senhora Gilbert haviam visto algumas dessas cartas.)
E Gloria, entre lágrimas e risadas, alegre, triste, desapaixonada e apaixonada, sofrida, nervosa, calma, no meio de uma grande devolução de presentes, troca de retratos em molduras imemoriais, tomando banhos quentes e começando de novo - com o próximo.
Essa situação continuara, tomara um ar de permanência. Nada fazia mal a Gloria, mudava-a ou afetava-a. E então um dia, do nada, ela informou a sua mãe que cansara de universitários. Não iria mais a bailes estudantis, de forma alguma.
Isso precipitara a mudança - não tanto nos seus hábitos atuais, pois ia dançar e tinha tantos "acompanhantes" quanto antes - mas eram acompanhantes nascidos de um estado de espírito diferente. Antes fora uma espécie de orgulho, uma questão da própria vaidade. Ela fora, provavelmente, a jovem beldade mais celebrada e requisitada do país. Gloria Gilbert, de Kansas City! Alimentara-se implacavelmente disso - satisfeita com a multidão à sua volta, com a maneira como os sujeitos mais elegíveis a escolhiam; satisfeita com o ciúme das outras meninas; satisfeita com os boatos fabulosos, para não dizer escandalosos - e inteiramente infundados, sua mãe tinha a satisfação de afirmar
- sobre ela; por exemplo, que entrara uma noite na piscina de Yale em um vestido de noite de chifon.
E depois de amar essa situação com uma vaidade quase masculina - que tinha algo a ver com as características de uma carreira triunfante e estonteante - ela de repente tornou-se insensível a isso. Aposentou-se. Ela que dominara incontáveis festas, que aspergira sua fragrância por tantas salas de baile, diante do tributo amoroso de tantos olhares, parecia não ligar mais. Quem agora se apaixonasse por ela era logo dispensado, quase com raiva. Ela saía indiferentemente com os sujeitos mais indiferentes. Vivia rompendo compromissos, não como no passado, a partir de uma segurança tranqüila de que ela era impecável, que o sujeito insultado por ela voltaria como um animal domesticado - mas com indiferença, sem orgulho nem desprezo. Ela raramente se inflamava contra os homens; bocejava nas suas caras. Dava a impressão - tão estranha -, à sua mãe, de estar ficando fria.
Richard Caramel ouvia. De início ficara de pé, mas à medida que a fala de sua tia se avolumava
- aqui registrada, mas podada pela metade de todas as referências secundárias sobre a juventude da alma de Gloria e dos próprios sofrimentos mentais da senhora Gilbert -, ele pegou uma cadeira e ficou rigorosamente atento enquanto ela, entre lágrimas, queixumes e lamentos, sobrevoava a longa história da vida de Gloria. Ao chegar ao último ano, a história das guimbas de cigarros espalhadas por toda Nova York em pequenas bandejas com as inscrições "Midnight Frolic" e "Justine Johnson Little Club", ele começou a assentir devagar com a cabeça, em seguida mais depressa e depressa, até que quando ela terminou, em staccato, ele balançava forte para cima e para baixo, de modo absurdo, como a cabeça mecanizada de uma boneca, a expressar quase nada.
Em certo sentido, o passado de Gloria era uma velha história para ele. Ele a seguira com o olhar do jornalista, pois um dia escreveria um livro sobre ela. Mas seus interesses, até o momento, eram interesses de família. Queria saber, em especial, quem era esse Joseph Bloeckman, que fora visto várias vezes com ela, e aquelas duas garotas que viviam com ela, "essa" Rachael Jerryl e "essa" senhorita Kane - a senhorita Kane não era certamente do tipo que a gente associaria a Gloria!
Mas a oportunidade passara. A senhora Gilbert, tendo escalado o morro das confidências, estava prestes a deslizar celeremente pela pista de esqui da crise nervosa. Seus olhos eram como o céu azul, entrevistos entre duas molduras redondas e vermelhas à guisa de janelas. Os músculos em volta de sua boca tremiam.
E naquele instante a porta se abriu, deixando entrar Gloria e as duas senhoritas recém mencionadas.

DUAS SENHORITAS

- Ora!
- Como vai, senhora Gilbert!
A senhorita Kane e a senhorita Jerryl são apresentadas ao senhor Richard Caramel.
- Este é o Dick - (risos).
- Ouvi falar tanto de você - diz a senhorita Kane, entre risinhos e um gritinho.
- Como vai - diz a senhorita Kane, timidamente.
Richard Caramel procura se movimentar como se tivesse um talhe melhor. Fica dividido entre sua cordialidade inata e o fato de considerar essas garotas meio vulgares - nada parecidas com o tipo de Farmover.
Gloria desaparecera no quarto.
- Sentem-se, por favor - sorri a senhora Gilbert, já bastante recuperada. - Tirem suas coisas. - Dick teme que ela faça algum comentário sobre a idade da alma dele, mas esquece suas preocupações enquanto termina de fazer um minucioso exame profissional de romancista nas duas jovens.
Muriel Kane tinha suas origens em uma família ascendente de East Orange. Ela era mais baixa do que pequena e pisava com ousadia a linha estreita entre ser gorda e ser larga. Seus cabelos eram pretos, com um penteado elaborado. Isso, além de seus olhos bonitos, porém meio bovinos, e lábios exageradamente vermelhos, cumulavam por fazê-la se parecer com Theda Bara, a célebre atriz de cinema. As pessoas viviam lhe dizendo que ela era um "vampiro", e ela acreditava. Desconfiava com esperança que tivessem medo dela, e fazia o máximo, em todas as circunstâncias, para dar impressão de perigo. Qualquer sujeito imaginativo seria capaz de perceber a bandeira vermelha que ela sempre portava e sacudia com força, toda carente - infelizmente, sem nenhum sucesso muito óbvio. Era também tremendamente afinada com a moda: conhecia as últimas canções, todas as últimas canções - quando tocava alguma delas no fonógrafo, ela se levantava e balançava os ombros para lá e para cá, estalando os dedos, e quando não havia música, acompanhava-se cantarolando.
Sua conversa também era cheia de modismos:
- Eu me lixo - dizia -, senão passo a me preocupar e perco minha beleza - e ainda: - Não consigo fazer meus pés se comportarem quando ouço essa música. Oh, baby!
Suas unhas eram compridas e cuidadas demais, polidas até ficarem de um rosado febril e artificial. Suas roupas eram demasiado apertadas, demasiado estilosas, demasiado berrantes, seus olhos, maliciosos demais, seu sorriso, tímido demais. Quase dava pena de tão exagerada, dos pés à cabeça.
A garota mais velha era obviamente uma personalidade mais sutil. Uma judia vestida com requinte, de cabelos escuros e uma bela palidez láctea. Parecia tímida e confusa, e essas duas características frisavam certo charme delicado sobre o qual flutuava. Sua família era "anglicana", dona de três lojas chiques de roupas femininas ao longo da Fifth Avenue, e morava em um magnífico apartamento em Riverside Drive. Depois de alguns momentos, pareceu a Dick que ela tentava imitar Gloria - ficou pensando por que as pessoas escolhiam gente inimitável para imitar.
- A gente passou pelo maior auê! - exclamava com entusiasmo Muriel. - Tinha uma mulher maluca atrás da gente no ônibus. Ela era positiva e absolutamente pirada! Não parava de falar sozinha sobre algo que queria fazer com alguém ou com alguma coisa. Eu fiquei apavorada, mas Gloria simplesmente não queria saltar do ônibus.
A senhora Gilbert ficou devidamente alarmada.
- Verdade?
- Ah, ela era doida. Mas felizmente não machucou a gente. Horrenda! Deus do céu! O sujeito do outro lado disse que a cara dela só podia pertencer a uma enfermeira noturna de um asilo de cegos, e a gente morreu de rir, naturalmente, por isso o sujeito tentou conquistar a gente.
Por fim Gloria surgiu de seu quarto e houve um movimento de todos os olhares que se concentraram nela. As duas garotas recuaram para um fundo penumbroso, desapercebidas, sem fazerem falta.
- Nós estávamos falando sobre você - disse rápido Dick -, sua mãe e eu.
- E daí? - disse Gloria.
Houve uma pausa. Muriel voltou-se para Dick.
- Você é um grande escritor, não é?
- Sou um escritor - confessou meio acanhado.
- Eu sempre disse - falou Muriel entusiasmada
- que se um dia eu tivesse tempo de registrar todas as minhas experiências, isso daria um livro magnífico.
Rachel casquinou em assentimento; o inclinar de cabeça de Richard Caramel foi quase majestoso. Muriel continuou.
- Mas não compreendo como você consegue sentar e fazer. E poesia! Senhor, não consigo rimar dois versos. Sim, é algo preocupante!
Richard Caramel teve dificuldade em conter uma risada explosiva. Gloria chupava uma tremenda jujuba e fitava algo pela janela, meio cismada. A senhora Gilbert limpou a garganta e deu um sorriso radiante.
- Mas veja só - disse ela em uma espécie de afirmação enciclopédica -, você não é uma alma vetusta, como Richard.
A Alma Vetusta deu um suspiro de alívio; finalmente a coisa fora dita.
Então, como se estivesse sopesando isso durante cinco minutos, Gloria fez um anúncio súbito.
- Eu vou dar uma reunião.
- Ah, posso ir? - gritou Muriel com uma audácia jocosa.
- Um jantar. Sete pessoas: Muriel, Rachel e eu, você, Dick, Anthony e aquele sujeito chamado Noble
- gostei dele - e Bloeckman.
Muriel e Rachel começaram a ronronar suavemente, extasiadas, entusiasmadas. A senhora Gilbert sorria e dava risinhos radiantes. Com ar casual, Dick interrompeu com uma pergunta:
- Quem é esse sujeito Bloeckman, Gloria?
Farejando uma leve hostilidade, Gloria virou-se para ele.
- Joseph Bloeckman? É o sujeito do cinema.
Vice-presidente da Films Par Excellence. Ele e papai têm muitos negócios em conjunto.
- Ah!
- Sim, vocês todos virão?
Todos viriam. Foi combinado um dia, dentro de uma semana. Dick se levantou, ajeitou o chapéu, casaco e cachecol, e deu um sorriso geral.
- Até logo - disse Muriel, fazendo um aceno alegre -, venha me visitar um dia desses.
Richard Caramel corou de vergonha por ela.

LAMENTÁVEL FIM DO CAVALEIRO O'KEEFE

Era segunda-feira e Anthony levou Geraldine Burke para almoçar no Beaux Arts - foram depois para o apartamento dele e ele surgiu empurrando seu carrinho de drinques com todo seu estoque de bebidas, escolhendo vermute, gim e absinto como estimulantes adequados.
Geraldine Burke, lanterninha do Keith's, era uma diversão de vários meses. Ela exigia tão pouco que ele gostava dela, pois desde um lamentável caso com uma debutante, no verão passado, quando ele descobriu que depois de meia dúzia de beijos esperava-se que ele fizesse um pedido de noivado, ficara desconfiado de garotas de sua própria classe. Não era nada difícil dirigir um olhar crítico para as imperfeições delas: alguma falha física ou uma falta de delicadeza pessoal, de modo geral - mas a uma garota que era lanterninha do Keith's cabia uma abordagem diferente. Podia-se tolerar características em um criado íntimo que seriam imperdoáveis em um mero conhecido do mesmo nível social da gente.
Geraldine, enroscada ao pé do sofá, o examinava com olhos estreitos e enviesados.
- Você bebe o tempo todo, não é? - disse ela de repente.
- Sim, acho que sim - respondeu Anthony, algo surpreso. - E você, não?
- Não. Vou a festas às vezes, sabe, uma vez por semana, mas só bebo dois ou três drinques. Você e seus amigos bebem o tempo todo. Acho que vão acabar estragando a sua saúde.
Anthony ficou um tanto comovido.
- Olha só, que doçura você se preocupar comigo!
- Pois me preocupo.
- Não bebo tanto assim - declarou. - No mês passado fiquei três semanas sem um gole. E só fico realmente de porre cerca de uma vez por semana.
- Mas você bebe todo dia, e só tem 25 anos. Não tem ambição? Imagine o que será aos quarenta?
- Tenho certeza, sinceramente, que não viverei tanto assim.
Ela estalou a língua contra os dentes.
- Você é do-oido! - disse ela enquanto mexia outro coquetel, e depois: - Você tem algum parentesco com Adam Patch?
- Sim, é meu avô.
- Verdade? - Ela ficou evidentemente impressionada. - Totalmente verdade.
- Engraçado. Meu pai andou trabalhando para ele.
- É um velho esquisito.
- É simpático? - perguntou ela.
- Olha, na vida particular é raro que seja desnecessariamente desagradável.
- Fale a respeito dele.
- Olha - pensou Anthony -, ele é todo encolhido e tem vestígios de cabelos cinzentos que sempre parecem estar no meio de um vendaval. É muito moralista.
- Já fez muita caridade - disse Geraldine com uma seriedade devota.
- Besteira! - escarneceu Anthony. - É um bobão devoto. Tem titica de galinha na cabeça.
A mente de Geraldine abandonou aquele assunto e seguiu borboleteando adiante.
- Por que não mora com ele?
- Por que não moro em um pensionato metodista?
- Você é do-oido!
Ela deu novamente um estalo com a língua para externar censura. Anthony pensou como aquela mocinha era, no fundo, moralista - como seria ainda totalmente moralista depois da inevitável onda que a arrastaria da rocha da respeitabilidade.
- Você o detesta?
- Não sei. Nunca gostei dele. A gente nunca gosta das pessoas que fazem coisas para nós.
- Ele te odeia?
- Minha querida Geraldine - protestou Anthony, franzindo o cenho de brincadeira -, tome outro coquetel, por favor. Eu o aborreço. Se fumo um cigarro, ele entra na sala fungando. É um puritano, um chato, e algo hipócrita. É provável que eu não te contasse isso se eu não tivesse tomado uns tragos, mas acho que não tem importância.
Geraldine se obstinava no seu interesse. Segurava seu copo, do qual não provara, entre o indicador e o polegar e olhava-o com um olhar com certo toque de respeito.
- O que você quer dizer com hipócrita?
- Olha - disse com impaciência Anthony -, talvez ele não seja. Mas não gosta das coisas que eu gosto e, pelo menos na minha opinião, é desinteressante.
- Hum. - Sua curiosidade parecia ter sido finalmente satisfeita. Ela se recostou no sofá e bebericou seu coquetel.
- Você é um cara engraçado - comentou ela, pensativa. - Todas querem casar com você porque seu avô é rico?
- Não querem não, mas não as censuraria se quisessem. Aliás, você sabe, jamais pretendo me casar.
Ela fez pouco disso.
- Você vai se apaixonar um dia. Ah, vai, eu sei. - E balançou sabiamente a cabeça.
- Eu seria um idiota se tivesse confiança em excesso. Foi o que pôs a perder o Cavaleiro O'Keefe.
- Quem era ele?
- Uma criatura saída de minha mente magnífica. Ele é minha única obra, o Cavaleiro.
- Do-oido! - murmurou ela simpaticamente, utilizando a escada de corda canhestra que usava para atravessar todos os vãos e subir até seus superiores intelectuais. Ela sentia subconscientemente que isso eliminava distâncias e trazia as pessoas cuja imaginação lhe havia escapado de volta para seu raio de ação.
- Ah, isso não! - opôs-se Anthony -, Ah, não, Geraldine. Você não deve bancar a alienista com o Cavaleiro. Se você se sente incapaz de
compreendê-lo, não irei apresentá-lo. Além do mais, eu me sentiria pouco à vontade, por causa da reputação infame dele.
- Acho que consigo compreender qualquer coisa que faça sentido - respondeu meio irritada Geraldine.
- Neste caso há várias passagens da vida do Cavaleiro que podem se revelar divertidas.
- Sim?
- Foi seu fim precoce que me fez pensar nele e que o tornou adequado à conversa. Detesto ter de apresentá-lo pelo fim mas parece inevitável que o Cavaleiro tenha de entrar de marcha à ré na vida da gente.
- Sim, o que houve com ele? Morreu?
- Morreu! Desta maneira. Era irlandês, Geraldine, um irlandês semifictício, do tipo estourado, com um sotaque polido e cabelos ruivos. Foi exilado de Erin nos últimos dias da era da Cavalaria e, evidentemente, atravessou o mar até a França. Mas o Cavaleiro O'Keefe, Geraldine, tinha, como eu, uma única fraqueza. Era tremendamente suscetível a todos os tipos e gêneros de mulheres. Além de ser sentimental, era romântico, um sujeito vaidoso, um sujeito de paixões desvairadas, meio cego de um olho e praticamente cego como uma coruja do outro. Agora, um macho a vagar pelo mundo nessa situação fica vulnerável como um leão desdentado e, por conseguinte, o Cavaleiro sofreu tremendamente durante vinte anos nas mãos de uma série de mulheres que o detestavam, usavam, entediavam, irritavam, enojavam, gastavam seu dinheiro, o faziam de bobo
- em suma, segundo a moeda corrente, o amavam.
- Isso era ruim, Geraldine, e já que o Cavaleiro, com exceção daquela fraqueza, era um homem determinado, resolveu que se salvaria de uma vez por todas daquelas sanguessugas. Com esse fito, foi a um mosteiro muito famoso na Champagne chamado - bem, conhecido anacronicamente como mosteiro de São Voltaire. A regra de São Voltaire exigia que nenhum monge podia descer ao andar térreo do mosteiro pelo resto de sua vida, devia viver entregue à oração e à contemplação em uma das quatro torres, batizadas segundo os quatro mandamentos da regra monástica: Pobreza, Castidade, Obediência e Silêncio.
- Chegado o dia em que o Cavaleiro devia se despedir do mundo, estava ele inteiramente satisfeito. Deu todos seus livros em grego para sua senhoria e mandou sua espada com a bainha de ouro para o rei da França, e todas suas lembranças da Irlanda, deu-as para os jovens huguenotes que vendiam peixe na rua onde morava.
- Em seguida cavalgou até São Voltaire, matou seu cavalo na porta e deu a carcaça para o cozinheiro do mosteiro.
- As cinco horas daquela madrugada ele se sentiu, pela primeira vez, liberto - liberto para sempre do sexo. Nenhuma mulher podia penetrar no mosteiro; nenhum monge podia descer do segundo andar. Então, enquanto ele subia a escada em caracol que levava à sua cela no alto da Torre da Castidade, parou um instante ao lado de uma janela aberta que dava para a estrada, quinze metros abaixo. Era tudo tão bonito, pensou ele, aquele mundo que ele deixava, a chuva dourada do sol caindo sobre os longos campos, as árvores esparramadas à distância, os vinhedos, silenciosos e verdejantes, com seu frescor a muitas milhas diante dele. Ele apoiou os cotovelos no peitoral da janela e olhou para a estrada serpenteante.
- Acontece, então, que, naquela hora, Thérèse, uma camponesa de dezesseis anos de uma aldeia vizinha, vinha por essa mesma estrada que passava diante do mosteiro. Cinco minutos antes, o pedacinho de fita que segurava a meia na sua bela perna se gastara e rompera. Por ser uma moça de raro pudor, achara melhor ajeitá-la só depois de chegar em casa, mas aquilo a incomodava tanto que ela julgou não poder mais suportá-lo. Então, ao passar pela Torre da Castidade, parou, e com um belo gesto levantou o vestido - o mínimo possível, diga-se em seu louvor
- para ajeitar sua liga.
- Lá em cima, na torre, a última pessoa que chegara ao mosteiro de São Voltaire inclinou-se na janela como se tivesse sido puxado por uma mão gigantesca e irresistível. Inclinou-se mais e mais, até que uma das pedras se soltou sob seu peso, se desprendendo da argamassa com um ruído suave e polvorento - e, primeiro de cabeça, em seguida de cabeça para baixo e, finalmente, com um impressionante volteio, lá veio abaixo o Cavaleiro O'Keefe, em direção à terra firme e à danação eterna.
- Thérèse ficou tão abalada com o fato que correu pelo caminho inteiro até em casa e passou dez anos orando secretamente durante uma hora por dia pela alma do monge, cujos votos e cujo pescoço haviam sido simultaneamente quebrados naquela infeliz tarde de domingo.
- E o Cavaleiro O'Keefe, suspeito de suicídio, não foi enterrado em terra santa, e sim em cova rasa em um campo ali perto, onde certamente melhorou por muitos anos a qualidade da terra. Esse foi o fim precoce de um cavaleiro de muita bravura e garbo. O que achou, Geraldine?
Mas Geraldine, que se perdera há muito tempo, só conseguia sorrir maliciosamente, sacudir seu indicador para ele e repetir seu mote que tudo explicava, tudo atalhava:
- Doido! - disse ela. - Você é do-oido!
O rosto magro dele era afável, pensou ela, e seu olhar bastante delicado. Ela gostava dele porque ele era arrogante sem ser vaidoso e porque, ao contrário dos outros sujeitos que ela encontrava no cinema, ele tinha horror de aparecer. Que história estranha e absurda! Mas ela gostara daquela parte sobre a meia!
Depois do quinto coquetel ele a beijou, e passaram uma hora entre risos, carícias e gracejos, e um surto meio abafado de paixão. Às quatro e meia ela alegou um compromisso, foi até o banheiro e ajeitou o cabelo. Recusando o pedido de um táxi que ele queria fazer, ela se deixou ficar um instante na porta.
- Você vai se casar - insistiu ela -, espere só e verá.
Anthony brincava com uma velha bola de tênis, que ele quicou com cuidado várias vezes no chão antes de responder, com um traço de aspereza:
- Você é uma idiotinha, Geraldine.
Ela sorriu, provocadora.
- Ah, então sou, não é? Quer apostar?
- Também seria uma bobeira.
- Ah, então seria, é? Pois bem, aposto que você vai se casar dentro de um ano.
Anthony jogou a bola de tênis com muita força. Aquele era um dos dias privilegiados dele, pensou ela; uma espécie de intensidade afugentara a melancolia dos seus olhos escuros.
- Geraldine - disse ele por fim -, em primeiro lugar, não tem ninguém com quem eu queira me casar; em segundo lugar, não tenho bastante dinheiro para sustentar duas pessoas; em terceiro lugar, sou totalmente contra o casamento para pessoas do meu tipo; em quarto lugar, tenho uma forte ojeriza até mesmo às considerações hipotéticas a esse respeito.
Mas Geraldine apenas estreitou os olhos, maliciosamente, deu seu estalido de língua e disse que precisava ir andando. Era tarde.
- Venha me ver dentro em breve - lembrou ela quando ele a beijou de despedida -, você levou três semanas sem me procurar, sabe.
- Irei - prometeu ele, ardorosamente.
Ele fechou a porta e ao voltar para a sala ficou um instante absorto em seus pensamentos, com a bola de tênis ainda presa na mão. Lá vinha uma de suas solidões chegando, uma das ocasiões em que ele perambulava pelas ruas, ou ficava sentado, sem objetivo e deprimido, mordendo um lápis à sua mesa. Era introversão sem alívio, uma exigência de expressão sem extravasamento, a sensação do tempo passando a galope, sem parar, perdido - aliviada apenas pela convicção de que não havia nada a desperdiçar, porque todos os esforços e todas as realizações eram igualmente sem valor.
Ele pensou com emoção - em voz alta, de um ímpeto, porque estava confuso e magoado.
- Nenhuma intenção de casar, Deus do céu.
De repente ele jogou a bola com violência no outro lado da sala, errando por pouco a luminária, e ela ricocheteou daqui para ali durante um instante, até parar imóvel no assoalho.

LUZ DA LUA E LUZ DE NEON

Gloria reservara uma mesa nas "Cascatas" do Biltmore para o seu jantar, e quando os homens se encontraram no saguão, um pouco depois das oito, "aquele sujeito Bloeckman" foi alvo de três olhares masculinos. Ele era um judeu gorducho e rosado, com cerca de 35 anos, de rosto expressivo encimado por cabelos lisos amarelados - e, sem dúvida, na maioria das reuniões de negócios, sua personalidade seria tida como agradável. Aproximou-se sem pressa dos três rapazes, que estavam em um grupo, fumando, à espera de sua anfitriã, e se apresentou com uma segurança um pouco óbvia demais - mesmo assim é duvidoso que ele tenha percebido o clima proposital de uma ligeira frieza irônica: não havia indício dessa compreensão no seu comportamento.
- Você é parente de Adam J. Patch? - indagou a Anthony, que soltou dois fiapos de fumaça pelas narinas dilatadas.
Anthony admitiu o fato, com o esboço de um sorriso.
- Ele é um excelente sujeito - declarou gravemente Bloeckman. - Belo exemplo de americano.
- É - concordou Anthony -, com certeza.
"Detesto gente assim, mal passada", pensou friamente. "Parecendo cozida! Deviam devolvê-lo ao forno; bastava um minuto para resolver o problema."
Bloeckman estreitou os olhos para consultar o relógio.
- Já é hora dessas garotas aparecerem...
Anthony esperou com o fôlego preso; e não pode se impedir...
- Mas também - com um sorriso que se alargava
-, você sabe como são as mulheres.
Os três rapazes assentiram com a cabeça. Bloeckman olhou casualmente em volta, seu olhar descansou criticamente no teto e desceu. Suas expressões combinavam a expressão de um fazendeiro do Meio Oeste avaliando sua colheita de trigo com a de um ator pensando se está sendo observado
- comportamento público de todo bom americano. Ao terminar sua avaliação, voltou-se rápido para o trio reticente.
- Vocês são da universidade?... Harvard, ahn. Soube que os caras de Princeton ganharam de vocês em Hockey.
Que infeliz. Dera mais um fora. Eles já haviam se formado há três anos e só se interessavam pelos jogos importantes de futebol americano. Se o senhor Bloeckman percebeu, depois do fracasso dessa observação, que se encontrava no meio de um ambiente cínico, é algo problemático, mas... Gloria chegou, Muriel chegou, Rachel chegou. Depois de um "Oi, gente!" apressado da parte de Gloria e repetido pelas outras duas, as três foram direto para o vestiário.
Um instante depois surgiu Muriel, esmeradamente despida, e se arrastou em direção a eles. Ela estava no seu elemento: com seu cabelo negro retinto penteado para trás, colado na cabeça; olhos pintados de sombra; recendendo a um perfume forte. Fantasiada, nos limites de seu talento, de sedutora, mais popularmente conhecida como "vamp" - que devorava e descartava os homens, alguém profundamente fria que brincava de forma inescrupulosa com os sentimentos. Algo no caráter exaustivo de sua tentativa fascinou Maury à primeira vista uma mulher de quadril largo simulando ser esguia como uma pantera! Enquanto esperavam mais três minutos por Gloria e, polida e supostamente, por Rachel, era impossível a Maury tirar os olhos dela. Ela virava a cabeça para o lado, baixando os cílios e mordendo seu lábio inferior em uma espantosa demonstração de recato. Descansava as mãos nas cadeiras e requebrava para um lado e para outro no ritmo da música, dizendo:
- Você já ouviu um ragtime mais perfeito? Eu simplesmente não consigo fazer meus ombros se comportarem quando ouço isso.
O senhor Bloeckman bateu palmas, galante.
- Você devia estar no palco.
- Eu bem que gostaria! - gritou Muriel. - Você me patrocina?
- Com certeza.
Com a modéstia adequada, Muriel parou seus movimentos e virou-se para Maury, perguntando o que ele "vira" naquele ano. Ele interpretou a pergunta como se ela referisse ao mundo teatral, e eles protagonizaram uma divertida e entusiasmada troca de títulos, da seguinte maneira:

MURIEL: Você viu Peg o' My heart!
MAURY: Não, não vi.
MURIEL: (Entusiasmada) É maravilhosa! É preciso ver.
MAURY: Você já viu Omar, the Tentmaker?
MURIEL: Não, mas ouvi dizer que é esplêndido. Estou doida para ver. Você viu Fair and Warmer?
MAURY: (Esperançoso) Sim.
MURIEL: Não achei muito boa. É malfeita.
MAURY: (Em voz baixa) É, é verdade.
MURIEL: Mas fui a Within the Law na noite passada e achei boa. Você viu The Little Café?

Isso continuou até esgotarem as peças. Dick, nesse meio tempo, virou-se para o senhor Bloeckman, resolvido a extrair todo o ouro possível daquele veio desfavorável.
- Ouvi dizer que todos os novos romances estão sendo vendidos para o cinema logo que são publicados.
- É verdade. Claro que no cinema o mais importante é uma trama marcante.
- É, acho que sim.
- Existem tantos romances repletos de muita conversa e de psicologia. É óbvio que esses não são tão úteis para a gente. É impossível tornar grande parte desse material interessante na tela.
- São necessárias, sobretudo, tramas - disse brilhantemente Richard.
- Claro. A trama vem primeiro... - Ele fez uma pausa, mudou a direção de seu olhar. Sua pausa se estendeu para incluir os demais, com toda a autoridade de um dedo indicador que avisa. Gloria, seguida de Rachel, saía do vestiário.
Entre outras coisas, revelou-se durante o jantar que Joseph Bloeckman jamais dançava, observando os outros, enquanto a música tocava, com a tolerância entediada de uma pessoa mais velha entre crianças. Era um sujeito digno e orgulhoso. Nascido em Munique, começara sua carreira na América vendendo amendoim em um circo que vivia excursionando. Aos dezoito anos, anunciava um espetáculo secundário; depois, foi gerente do espetáculo secundário e, logo depois, proprietário de um cabaré de segunda categoria. Quando a indústria cinematográfica ultrapassara a etapa de coisa curiosa e se tornara uma indústria de futuro, ele era um jovem ambicioso de 26 anos com algum dinheiro para investir, ambições financeiras implacáveis e uma boa experiência prática do mundo dos espetáculos populares. Isso fora há dez anos. A indústria cinematográfica crescera levando-o junto enquanto derrubava dezenas de sujeitos de maior capacidade financeira, maior imaginação e idéias mais práticas... e agora ele ficava sentado ali contemplando a imortal Gloria, por quem o jovem Stuart Holcome fora de Nova York a Pasadena
- contemplando e sabendo que dentro em breve ela haveria de parar de dançar e voltaria para sentar ao seu lado esquerdo.
Ele esperava que fosse depressa. As ostras já aguardavam há alguns minutos.
Enquanto isso, Anthony, que ficara sentado à esquerda de Gloria, dançava com ela, sempre em determinado quadrante da pista. Fato que, se houvesse homens desacompanhados, teria sido uma homenagem delicada à moça, a exprimir: "Danem-se, não me venham interromper!" Era propositalmente muito íntimo.
- Olha - começou ele a dizer, baixando os olhos para ela -, você está esplêndida esta noite.
Ela sustentou o olhar dele através dos quinze centímetros horizontais que os separavam.
- Obrigada, Anthony.
- Na verdade, sua beleza chega a incomodar
- acrescentou ele. Desta vez sem sorrir.
- E você é muito encantador.
- Não é ótimo? - riu ele. - A gente aprecia mesmo um ao outro.
- Geralmente não é o caso? - Ela reagira rápido ao comentário dele, como sempre fazia a qualquer comentário inesperado sobre ela mesma, não importa quão ligeiro.
Ele abaixou a voz, e ao falar não havia na sua fala mais do que um fiapo de humor.
- Já viu o padre não apreciar o Papa?
- Eu não sei... mas esse é provavelmente o elogio mais vago que jamais recebi.
- Talvez eu consiga produzir alguns chavões.
- Ora, não quero que você se canse. Olha só, Muriel! Bem aqui, ao nosso lado.
Ele olhou por cima de sua lapela. Muriel descansava sua face reluzente na lapela do smoking de Maury Noble e seu braço esquerdo empoado enlaçava aparentemente a cabeça dele. Era-se levado a imaginar por que ela não pegava logo a sua nuca com a mão. Seus olhos, voltados para o teto, viravam exageradamente para lá e para cá; ela meneava as cadeiras e, ao dançar, não parava de cantarolar baixinho. De início parecia uma tradução da música para uma língua estrangeira mas, finalmente via-se que era uma tentativa de preencher a cadência da música com as únicas palavras da letra que ela sabia - as palavras do título...

He's a rag-picker
A rag-picker,
A rag-time picking man,
Rag-picking, picking, pick, pick,
Rag-pick, pick, pick.

... e por aí em diante, com frases ainda mais estranhas e rudimentares. Quando ela percebeu os olhares divertidos de Anthony e Gloria, demonstrou-o apenas por um ligeiro sorriso e um entrefechar dos olhos, para indicar que a música que penetrava sua alma lhe levara ao êxtase, a um transe extremamente sedutor.
A música terminou e eles voltaram para sua mesa, cujo solitário mas digno ocupante se levantou, dando a cada um deles um sorriso tão simpático que parecia estar apertando suas mãos e congratulando-os por um brilhante espetáculo.
- Blockhead jamais dança! Acho que ele tem uma perna de pau - comentou Gloria para a mesa em geral. Os três rapazes se espantaram e o referido cavalheiro se encolheu perceptivelmente.
Esse era o único ponto de atrito no relacionamento de Bloeckman com Gloria. Ela vivia fazendo trocadilhos implacáveis com o seu nome. Primeiro havia sido "Block-house" (Fortim), por último, o mais agressivo "Blockhead" (Burro, cabeça dura). Ele pedira, com uma forte sugestão de ironia, que ela usasse seu nome próprio, o que ela de fato fizera algumas vezes - para recair depois, fatalmente arrependida mas morrendo de rir, no apelido "Blockhead".
Era algo muito triste e irrefletido.
- É uma pena, mas o senhor Bloeckman nos acha uma turma frívola - suspirou Muriel, acenando para ele com uma ostra pendendo da mão.
- Ele dá essa impressão - murmurou Rachel.
- Anthony tentou lembrar se ela já dissera alguma coisa antes. Achava que não. Foi seu comentário de estréia.
O senhor Bloeckman pigarreou de repente e disse, alto e bom som:
- Pelo contrário. Quando um homem fala, representa apenas a tradição. Na melhor das hipóteses, em continuidade com alguns milhares de anos de vivências. Mas a mulher, ora, é o arauto milagroso da posteridade.
No silêncio estupefato que se seguiu a esse espantoso comentário, Anthony se engasgou de repente com uma ostra e correu para tapar o rosto com o guardanapo. Rachel e Muriel deram uma ligeira risada algo espantada, acompanhadas por Dick e Maury, ambos ruborizados e contendo, com evidente dificuldade, estridentes gargalhadas.
- Meus Deus! - pensou Anthony. - É um subtítulo de um de seus filmes. O cara decorou-o!
Só Gloria não fez nenhum ruído. Fitou o senhor Bloeckman com um olhar de censura muda.
- Caramba, pelo amor de Deus! De onde você desenterrou isso?
Bloeckman olhou-a de maneira insegura, incerto quanto à intenção dela. Mas recuperou a pose em um instante, estampando o sorriso meigo e assumidamente tolerante de um intelectual no meio de crianças imaturas e mimadas.
Veio a sopa da cozinha - mas ao mesmo tempo o líder da orquestra voltou do bar, onde adquirira a mesma cor do caneco de cerveja que bebera. Assim, deixaram a sopa esfriar um pouco durante a execução de uma balada intitulada Everything's at Home Except Your Wife.
Em seguida veio o champanhe - e a reunião tomou uma dimensão mais divertida. Os homens, com a exceção de Richard Caramel, bebiam à vontade; Gloria e Muriel tomaram uma taça cada uma; Rachel Jerryl não tomou nenhuma. Eles ficavam sentados durante as valsas, mas dançavam tudo o mais - exceto Gloria, que pareceu ter se cansado depois de algum tempo e preferiu ficar fumando na mesa, ora com um olhar preguiçoso, ora aceso, dependendo se estivesse ouvindo Bloeckman ou observando alguma mulher bonita entre os dançarinos. Anthony imaginou várias vezes o que Bloeckman estaria lhe dizendo. Ele mastigava um charuto para lá e para cá na sua boca, e se descontraíra depois do jantar ao ponto de fazer gestos bruscos.
As dez horas flagraram Gloria e Anthony no início de uma dança. Assim que estavam fora do alcance dos ouvidos na mesa, ela disse em voz baixa:
- Vá dançando até a porta. Quero descer para ir à drogaria.
Anthony guiou-a obediente pela multidão, no rumo indicado; no saguão, ela o deixou por um instante, para reaparecer com uma capa no braço.
- Quero umas jujubas - disse ela se desculpando, em tom de gracejo; - e desta vez você não adivinha por quê. É que estou com vontade de roer as unhas, o que farei se não arranjar umas jujubas. - Ela deu um suspiro e recomeçou a falar ao entrarem no elevador vazio: - Passei o dia todo roendo. Estou lascada, como vê. Desculpe o trocadilho, foi sem querer - as palavras saíram automaticamente. Gloria Gilbert, a gaiata.
Ao chegar à portaria, evitaram ingenuamente a bombonière do hotel, desceram a larga escada frontal e, depois de passar por vários corredores, foram encontrar uma drogaria na Grand Central Station. Após um exame minucioso do balcão de perfumes, ela fez sua compra. Em seguida, obedecendo a algum impulso cego e mútuo, foram andando de braços dados, não na direção de onde vieram, e sim para a
Forty-third Street.
A noite estava temperada com o degelo; quase quente, a ponto de uma brisa que soprou baixo pela calçada ter provocado em Anthony a visão de uma inesperada primavera cheia de jacintos. Em cima, no oblongo azul do céu, em volta deles, na carícia do ar circulante, a ilusão de uma nova estação trazia um alívio para a atmosfera abafada e dura que haviam abandonado e, por um instante de paz, os ruídos do tráfego e o murmúrio da água correndo nas sarjetas pareciam um prolongamento ilusório e rarefeito da música que a pouco os fizera dançar. Quando Anthony falou, suas palavras tinham uma segurança oriunda de algo esbaforido e ardoroso que a noite concebera nos corações de ambos.
- Vamos tomar um táxi e dar uma volta! - sugeriu sem olhar para ela.
Ah, Gloria, Gloria!
Um táxi bocejava no meio-fio. Quando zarpou como um barco em um mar labiríntico e se perdeu entre os volumes rudimentares e noturnos dos grandes prédios, entre os brados e clangores ora abafados, ora estridentes, Anthony pôs seu braço em volta da garota, puxou-a em sua direção e beijou sua boca úmida, infantil.
Ela ficou calada. Inclinou para ele seu rosto, pálido sob as manchas e os traços luminosos que coavam como luar entre as folhas. Seus olhos eram marolas cintilantes no lago branco de seu rosto; as sombras de seus cabelos orlavam sua fronte de uma penumbra bem delineada. Não havia amor ali, com certeza; nem a marca de nenhum amor. Sua beleza era fria como aquela brisa lenta, como a maciez úmida de seus próprios lábios.
- Você está tão esplêndida nesta luz - sussurrou ele um instante depois. Havia silêncios tão rumorosos quanto o som. Havia pausas que pareciam se estilhaçar e só podiam ser negadas pelo aperto dos braços dele em torno dela e a sensação que ela estava ali presa como uma pena tênue pescada da escuridão. Anthony riu em silêncio, exultante, virando seu rosto para cima, distanciado dela, em parte por um impulso irresistível de ter triunfado, em parte para evitar que ela o visse e estragasse a esplêndida imobilidade de sua expressão. Um beijo assim - era uma flor pousada contra a face; jamais deveria ser descrita, mal deveria ser lembrada; como se as emanações de sua beleza pousassem, fugazes e já desvanecentes, no coração dele.
Os prédios dissolviam-se em sombras derretidas; agora era o Park e, depois de muito tempo, o enorme fantasma branco do Metropolitan Museum passou majestoso, ecoando ruidosamente o estrépito do táxi.
- Nossa, Gloria! Nossa, Gloria!
Seus olhos pareciam olhá-lo do fundo de muitos milhares de anos: toda a emoção que ela podia ter sentido, todas as palavras que ela podia ter dito teriam parecido inadequadas comparadas com a adequação de seu silêncio, mudez contraposta à eloqüência de sua beleza - e de seu corpo, próximo dele, esguio e composto.
- Diga a ele para dar a volta - murmurou ela - e para voltar correndo...
No salão de jantar o ar estava quente. A mesa, entulhada de guardanapos e cinzeiros, tinha um ar velho e rançoso. Entraram em um intervalo entre danças, e Muriel Kane olhou para cima com extrema malícia.
- Ora, onde vocês estiveram?
- Fomos ligar para mamãe - respondeu tranqüilamente Gloria. - Prometi a ela que o faria. Perdemos alguma dança?
Em seguida aconteceu um incidente que, embora pouco importante em si mesmo, deu asas a que Anthony refletisse sobre ele muitos anos depois. Joseph Bloeckman, recostando-se bem em sua cadeira, fixou nele um estranho olhar, no qual estavam mescladas, curiosa e inextricavelmente, várias emoções. Saudou Gloria apenas com o seu levantar, retomando imediatamente uma conversa com Richard Caramel sobre a influência da literatura na indústria cinematográfica.

MAGIA

O milagre total e inesperado daquela noite desmaia junto com a morte tardia das últimas estrelas e o nascimento prematuro dos primeiros meninos jornaleiros. A chama se recolhe a um algum longínquo fogo platônico; o calor branco abandonou o ferro, e a brasa do carvão esfria.
Ao longo das prateleiras da biblioteca de Anthony, preenchendo amplamente uma parede, se insinua uma fria e insolente haste de luz do sol, que vem tocar com gélida censura Thérèse de França e Ann, a Supermulher, Jenny do Balé do Oriente e Zuleika, a Mágica - e a Rústica Cora -, desce uma prateleira e recua no tempo, descansando compassiva sobre as sombras mais que evocadas de Helena, Taís, Salomé e Cleópatra.
Anthony, barbeado e de banho tomado, senta na sua poltrona de almofadas mais fundas, observa-a até que, diante do constante empinar do sol, ela descanse brevemente seu brilho na franja de seda do tapete - e saia.
Eram dez horas. O Sunday Times, espalhado em volta de seus pés, proclamava, por rotogravuras, editorial, notícias sociais e página de esportes, que o mundo andara tremendamente absorto durante a semana anterior na tarefa de progredir rumo a algum esplêndido, ainda que meio vago, objetivo. Quanto a ele, Anthony, fora ver uma vez seu avô, duas seu corretor e três seu alfaiate - e na derradeira hora do último dia da semana, beijara uma garota belíssima e encantadora.
Ao chegar em casa sua imaginação pululara de sonhos fantásticos e espantosos. De repente não havia mais problema na sua cabeça, nenhuma questão eterna a ser resolvida e tornar a ser resolvida. Ele sentira uma emoção que não era nem física nem mental, nem apenas uma mistura dos dois, e o amor pela vida absorveu-o, por enquanto, com a exclusão de tudo mais. Ele se dava por satisfeito de deixar que essa experiência permanecesse isolada e singular.
Estava convencido de uma maneira quase impessoal que nenhuma mulher que ele conhecera podia se comparar de modo algum com Gloria. Ela era profundamente autêntica; incomensuravelmente franca - disso ele tinha certeza. Comparada a ela, as duas dúzias de colegiais e debutantes, jovens casadas, salafrárias e vagabundas que ele conhecera não passavam de fêmeas, no sentido mais desprezível da palavra: matrizes e nutrizes, ainda com o vago cheiro da caverna e do berçário.
Até onde ele percebera, ela não se submetera a nenhum desejo dele nem adulara sua vaidade - exceto pelo fato de que o prazer que ela experimentava na sua companhia era uma adulação. Na verdade, ele não tinha nenhum motivo para pensar que ela lhe dera coisa alguma que não dera aos demais. Era assim que devia ser. A idéia de um relacionamento nascido daquela noite era tão remota quanto detestável. E ela repudiara e enterrara o incidente como uma positiva inverdade. Ali estavam dois jovens com bastante personalidade para distinguir um jogo da realidade - e que, pela própria maneira casual com que se conheceram e seguiram com suas vidas,
dir-se-iam invulneráveis.
Tendo decidido isso, ele foi até o telefone e ligou para o Plaza Hotel.
Gloria havia saído. Sua mãe não sabia onde ela fora nem quando voltaria.
Foi mais ou menos nesse ponto que ficou patente a existência de um erro no argumento. Havia um elemento de insensibilidade, de quase indecência naquela ausência de Gloria. Ele desconfiava que ao sair ela o expusera a uma desvantagem. Ao voltar, encontraria seu nome e sorriria. Da maneira mais discreta! Ele deveria ter esperado algumas horas para se convencer da total futilidade com que o incidente devia ser encarado. Que tremenda asneira! Ela pensaria que ele se achava merecedor de alguma predileção especial. Acharia que ele reagia com uma intimidade absurda a um episódio bastante trivial.
Ele se lembrava que no mês passado seu porteiro, a quem ele fizera um discurso meio confuso sobre a "fraternidade humana", subira no dia seguinte a esse discurso e, baseado no que acontecera na noite anterior, sentara-se no banco da janela durante uma meia hora, cordial e loquaz. Anthony pensou horrorizado na possibilidade de Gloria considerá-lo tal como ele considerara aquele sujeito. Ele
- Anthony Patch! Que horror!
Jamais lhe ocorreu que ele era algo passivo, influenciado por uma força superior e além de Gloria, que ele era meramente a chapa sensível onde se revelava a fotografia. Algum fotógrafo gigantesco focara a câmara em Gloria e clique! - a pobre chapa não podia fazer nada senão ser revelada, limitada, como tudo mais, à sua própria natureza.
Mas Anthony, deitado no divã e fitando a luminária laranja, passava incessantemente seus dedos magros no cabelo e criava novas imagens para as horas. Ela estava agora em uma loja, parece, movendo-se com agilidade entre as peles e os veludos, com seu vestido fazendo um elegante fru-fru naquele mundo de fru-frus sedosos e risadas lânguidas em tom de soprano, e o perfume de muitas flores mortas porém vivas. As Minnies e Pearls e Jewels e Jennies se reuniam à sua volta como cortesãs, trazendo roupas frágeis e vaporosas de crepe Georgette, de chiffbn delicado para duplicar as feições dela no pastel desbotado, de renda leitosa para descansar em pálido desalinho contra seu pescoço - o damasco só era usado hoje para cobrir padres e divãs, e o pano de Samarand lembrado apenas por poetas românticos.
Ela iria a outro lugar depois de algum tempo, inclinando a cabeça de mil maneiras sob mil gorros, buscando em vão cerejas falsas para combinar com seus lábios ou plumas tão graciosas quanto seu corpo elástico.
Chegava meio dia - ela haveria de descer apressada a Fifth Avenue, uma Ganimedes nórdica, com seu casaco de pele a balançar elegantemente, acompanhando seus passos, suas faces mais coradas pelas pinceladas dadas pelo vento, com o hálito que era uma deliciosa névoa no ar estimulante
- e as portas do Ritz haveriam de girar, a multidão se dividiria, cinqüenta olhos masculinos seriam postos em sobressalto, a fitá-la, enquanto ela devolvia os sonhos perdidos aos maridos de muitas mulheres cômicas e obesas.
Uma hora. Com seu garfo ela torturaria o coração de uma alcachofra adorável, enquanto seu acompanhante se servia, entre as frases densas e gotejantes de alguém deslumbrado.
Quatro horas: seus pés seguindo a melodia, seu rosto distinto entre a multidão, seu companheiro feliz como um cachorrinho mimado e doido de pedra... Então - então a noite cairia de mansinho e talvez surgisse um novo desânimo. Os anúncios derramariam sua luz sobre a rua. Quem sabe? Sem saber mais que ele, buscavam reconstituir por acaso aquela cena feita de creme e sombras que os dois haviam visto, na avenida silenciosa, na noite passada. E talvez conseguissem, sim, talvez conseguissem! Mil táxis haveriam de bocejar em mil esquinas mas só para ele terminara e se perdera para sempre aquele beijo. Em mil disfarces, Tais chamaria um táxi e levantaria o rosto para o amor. E sua palidez seria linda e virginal e seu beijo casto como a lua...
Ele levantou-se excitado. Que coisa inconveniente essa ausência dela! Ele finalmente percebera o que queria - beijá-la de novo, descansar na sua enorme imobilidade. Ela era o fim de toda inquietação, de todo descontentamento.
Anthony se vestiu e saiu, tal como já devia ter feito há muito tempo, e foi até a casa de Richard Caramel para ouvir a derradeira revisão do último capítulo de O amante endiabrado. Só ligou para Gloria de novo às seis. Só a encontrou em casa às oito e - ó, clímax dos anticlímaxes! - ela não poderia vê-lo antes de terça à tarde. Um pedaço quebrado de guta-percha despencou no chão quando ele bateu com o telefone.

MAGIA NEGRA

Na terça estava muito frio. Ele chegou à casa dela a melancólicas duas horas e, ao apertarem as mãos, especulou confusamente se alguma vez a beijara; era quase inacreditável - ele duvidava seriamente que ela se lembrasse.
- Eu te liguei quatro vezes no domingo - disse ele.
- Ligou?
Havia surpresa na sua voz e interesse na sua expressão. Ele praguejou intimamente contra si mesmo por ter lhe contado. Ele bem podia ter percebido que o orgulho dela não se alimentava desses triunfos mesquinhos. Mesmo então ele não adivinhara a verdade - por jamais ser obrigada a se preocupar com os homens, ela raramente usava os subterfúgios maliciosos, as cenas teatrais para agarrá-los, que eram moeda corrente entre suas irmãs de sexo. Quando ela gostava de um sujeito, bastava isso como expediente. Será que ela achava que o amava? - eis o derradeiro golpe fatal. O charme dela se mostrava interminável.
- Eu estava ansioso para te ver - disse ele simplesmente. - Quero conversar com você, conversar de verdade em algum canto onde a gente possa ficar sozinho. Posso?
- O que você quer dizer?
Ele engoliu um súbito nó na garganta de pânico. Ele achava que ela sabia o que ele queria.
- Quero dizer, que não seja à mesa de chá
- disse ele.
- Está bem. Mas hoje não. Quero fazer exercício. Vamos caminhar!
O tempo estava triste e úmido. Todo o ódio malévolo contido no coração enlouquecido de fevereiro foi posto no vento lúgubre e gelado que rasgava seu caminho cruelmente, de um lado a outro de Central Park, e descia a Fith Avenue. Era quase impossível falar, e o desconforto tornou-o distraído, tanto assim que ele dobrou na Sixty-first Street para descobrir que ela não se encontrava mais a seu lado. Ele olhou em volta. Ela estava a uns doze metros atrás, imóvel, com o rosto meio escondido na gola de seu casaco de pele, alterada pelo humor ou pela raiva - não dava para saber. Ele partiu de volta
- Não quero interromper sua caminhada! - gritou ela
- Desculpe - respondeu ele, confuso - Andei depressa demais?
- Estou com frio - declarou ela - Quero ir para casa, e você anda muito rápido.
- Sinto muito.
Dirigiram-se, lado a lado, para o Plaza. Ele gostaria de poder ver o rosto dela
- Os homens geralmente não ficam tão absortos em si quando estão comigo.
- Desculpe.
- Que interessante.
- Esta frio demais para caminhar - disse ele animadamente, para esconder seu aborrecimento.
Ela não respondeu e ele ficou imaginando se ela o dispensaria na entrada do hotel. Ela entrou calada, entretanto, rumo ao elevador, dirigindo-lhe um único comentário ao entrar:
- É melhor você subir.
Ele hesitou por um átimo.
- Talvez seja melhor vir te ver outra vez.
- Como quiser - as palavras dela foram ditas como um aparte. A maior preocupação de sua vida era ajeitar uns fios de cabelo rebeldes no espelho do elevador. Suas faces luziam, seus olhos brilhavam, ela nunca parecera tão linda, tão única e desejável.
Desprezando-se, ele viu-se a descer o corredor do décimo andar a um subserviente meio metro atras dela, esperando na sala de visitas enquanto ela sumia para despir suas peles. Algo dera errado - ele perdera aos próprios olhos um pouco de sua dignidade, em um embate imprevisto, embora significativo, fora totalmente derrotado.
No entanto, na hora em que ela reapareceu na sala de visitas, ele já se havia explicado diante de si mesmo com uma satisfação sofística. Afinal de contas, ele fizera a coisa mais intensa, pensou. Quisera subir, subira. No entanto, o que aconteceu depois naquela tarde deve remeter a humilhação que ele sentira no elevador, essa garota o preocupava de modo intolerável, tanto assim que quando ela surgiu ele descambou involuntariamente para a crítica.
- Quem é esse Bloeckman, Gloria?
- Um amigo de negócios de meu pai.
- Tipo esquisito!
- Ele também não gosta de você - disse ela com uma súbita risada.
Anthony riu.
- Fico lisonjeado com sua atenção. Ele obviamente me acha um... - E ele interrompeu com:
- Ele esta apaixonado por você7
- Não sei.
- Aqui que você não sabe - insistiu ele - Claro que está. Eu me lembro do olhar que ele me deu quando voltamos para a mesa. Ele provavelmente teria mandado me massacrar discretamente por uma delegação de extras cinematográficos se você não tivesse inventado aquele telefonema.
- Ele não ligou. Eu lhe contei depois o que realmente aconteceu.
- Você contou a ele!
- Ele me perguntou.
- Não gosto muito disso - reclamou ele.
Ela riu de novo
- Ah, não gosta?
- Isso não é da conta dele.
- De forma alguma. Foi o que eu lhe disse.
Anthony, em grande aflição, mordia com força a própria boca.
- Por que eu haveria de mentir? perguntou ela francamente - Não me envergonho de nada que eu faço Acontece que lhe interessou saber se eu o tinha beijado, e acontece que, estando eu de bom humor, satisfiz a sua curiosidade com um simples e preciso "sim". E já que ele é, a seu modo, um sujeito ajuizado, abandonou o assunto.
- Exceto para dizer que me detestava.
- Ah, isso te preocupa? Bem, se for preciso sondar esse estupendo assunto até suas profundezas, ele não disse que te detestava. Eu simplesmente sei que ele te detesta.
- Não me preocu...
- Ah, vamos mudar de assunto! - disse ela, determinada. - É tremendamente desinteressante para mim.
Com um imenso esforço, Anthony aquiesceu, mudando de assunto, e eles passaram para um velho jogo de perguntas e respostas sobre seus passados mútuos, a coisa esquentando gradativamente à medida que descobriam semelhanças antiquíssimas, imemoráveis, sobre gostos e idéias. Disseram coisas mais reveladoras do que pretendiam - mas cada um fingia aceitar o outro nos seus próprios termos, ou melhor, no valor da palavra de cada um.
A intimidade cresce assim. Primeiro, a gente revela nosso retrato retocado, o belo produto remendado à base de blefes, falsidades e humor. Em seguida requer-se mais detalhes e a gente pinta um segundo retrato, e um terceiro - não demora muito para as melhores linhas se anularem - e o segredo ser finalmente exposto; os planos dos retratos se misturam e nos traem e, a despeito de pintarmos e repintarmos, não conseguimos mais vender uma imagem. Precisamos nos satisfazer com a esperança de que as versões tolas que passamos para nossas mulheres, filhos e colegas de trabalho, sejam aceitas como verdade.
- Acho - dizia Anthony, convicto - que a posição de alguém sem ambição nem necessidade material é uma posição infeliz. Deus sabe que seria patético de minha parte demonstrar autopiedade - no entanto, às vezes tenho inveja de Dick.
O silêncio dela era um estímulo. E o máximo a que jamais chegava quanto a uma sedução intencional.
- E antigamente havia ocupações dignas de um cavalheiro que dispunha de lazer, coisas um pouquinho mais construtivas do que encher a paisagem de fumaça ou fazer mágicas com o dinheiro alheio. Existe a ciência, é claro: às vezes eu gostaria de ter adquirido uma boa base, digamos na Boston Tech. Mas agora, caramba, eu teria de ficar sentado dois anos pelejando com os fundamentos da física e da química.
Ela bocejou.
- Eu já disse que não sei o que ninguém deve fazer - desabafou ela, indelicadamente, e diante de sua indiferença a raiva dele brotou de novo.
- Você não se interessa por nada além de você mesma?
- Não muito.
Ele deu um olhar furioso; seu crescente prazer na conversa foi feito em pedaços. Ela estivera irritada e rancorosa o dia inteiro e, naquele momento, ele pareceu odiar o seu duro egoísmo. Ficou olhando para o fogo, taciturno.
Em seguida algo estranho aconteceu. Ela virou-se para ele e sorriu, e ao ver o sorriso dela, cada traço de raiva ou de vaidade ferida sumiu - como se seus próprios estados de espírito não passassem de marolas em relação aos dela, como se as emoções não brotassem mais no seu peito senão quando ela julgasse hora de puxar um onipotente fio de controle.
Ele se aproximou e, puxando-a pela mão, estreitou-a delicadamente até que ela descansasse pela metade contra seu ombro. Ela levantou o rosto com um sorriso enquanto ele a beijava.
- Gloria - sussurrou ele muito suavemente. Ela novamente fizera uma mágica, sutil e penetrante como um perfume espargido, doce e irresistível.
Depois, nem no dia seguinte nem passados muitos anos ele seria capaz de se lembrar das coisas importantes daquela tarde. Ela se emocionara? Falara alguma coisa nos seus braços - ou nada? Qual o prazer que ela obtivera de seus beijos? E teria ela perdido a cabeça em algum momento, mesmo um pouquinho?
Ah, quanto a ele não havia dúvida. Levantara-se e andava para lá e para cá em puro êxtase. Por existir uma garota assim, em uma posição enrolada no canto do sofá, como uma andorinha que acabasse de pousar depois de um vôo rápido e perfeito, a observá-lo com um olhar inescrutável. Ele parava sua andança e, meio tímido, deixava seu braço envolvê-la e buscava seu beijo.
Ela é fascinante, disse consigo mesmo. Jamais encontrara alguém parecido com ela. Ele pediu-lhe, com garbo e também determinação, que o enxotasse, não queria se apaixonar. Não viria vê-la de novo
- ela já o vinha assombrando em demasiados meandros seus.
Que romance delicioso! Sua verdadeira reação não foi de medo nem de arrependimento - apenas aquele profundo prazer de estar com ela a colorir a banalidade de suas palavras, a fazer o que era enjoativo parecer triste e as atitudes posadas parecerem sábias. Ele retornaria sim - eternamente. Deveria saber!
- Basta. Foi extraordinário ter te conhecido, muito estranho, maravilhoso. Mas não daria certo, e não duraria. - Ao falar, havia aquele tremor no coração que tomamos por sinceridade em nós mesmos.
Depois ele se lembrou de uma resposta dela a algo que ele havia perguntado. Lembrava-se da seguinte maneira - talvez tivesse ajeitado e polido inconscientemente a frase:
- Uma mulher devia poder beijar um homem da maneira mais bela e romântica sem desejar ser sua mulher nem sua amante.
Como sempre, quando ele estava com ela, ela parecia ficar gradualmente mais velha até que ruminações mais profundas que palavras se traduzissem em seus olhos.
Uma hora se passou, e o fogo pulava em pequenos êxtases, como se o findar de sua vida fosse doce. Eram cinco horas agora, e o relógio em cima do console da lareira produziu um ruído articulado. Então, como se aquelas pequeninas e débeis batidas fizessem sua sensibilidade bruta recordar que caiam pétalas da tarde em flor, Anthony puxou-a rapidamente para que ficasse em pé e prendeu-a, sem respiração, em um beijo que não era brincadeira nem galanteio.
Os braços dela penderam a seu lado. Dentro de um instante se soltara dele.
- Não faça isso! - disse ela em voz baixa - Eu não quero.
Ela se sentou na extremidade mais distante do sofá, olhando fixamente para frente. Franzira a fronte. Anthony se deixou cair a seu lado, fechando sua mão sobre a mão dela, sem vida, sem reação.
- O que houve, Gloria! - Ele fez menção de abraçá-la, mas ela se afastou.
- Eu não quero - repetiu ela
- Sinto muito - disse ele, um pouco impaciente. - Eu... eu não sabia que você fazia distinções tão sutis.
Ela não respondeu.
- Não quer me beijar, Gloria?
- Não quero. - Parecia-lhe que ela não se mexia há horas.
- Que súbita mudança, não? - Uma irritação crescia na sua voz
- É? - Ela parecia desinteressada. Era quase como se ela estivesse olhando para outra pessoa.
- Talvez seja melhor eu ir embora.
Nada de resposta. Ele se levantou e olhou-a zangado, inseguro. Sentou-se novamente.
- Gloria, Gloria, não quer me beijar?
- Não - seus lábios, que haviam se aberto para emitir a palavra, mal mexeram.
Ele novamente se pôs de pé, desta vez com menos determinação, menos confiança.
- Então vou embora
Silêncio.
- Está bem. Vou embora.
Ele tinha consciência de uma certa falta de originalidade nas suas afirmativas. Na verdade, sentiu que toda a atmosfera se tornara sufocante. Ele gostaria que ela falasse com ele, ralhasse com ele, gritasse com ele, tudo menos aquele silêncio penetrante e gelado. Xingou-se de tolo, fraco, seu desejo mais óbvio era provocá-la, machucá-la, vê-la se encolher. Involuntária e inadvertidamente, ele errara de novo.
- Se você esta cansada de me beijar, é melhor que eu vá embora.
Ele viu os lábios dela se recurvarem ligeiramente e perdeu seu último vestígio de dignidade. Por fim, ela falou.
- Acredito que você já fez esse comentário várias vezes.
Ele olhou em volta imediatamente, viu seu chapéu e casaco em uma cadeira - foi cambaleando em direção a eles durante um momento intolerável. Ao olhar de novo para o sofá, percebeu que ela não se virara, nem sequer se mexera. Com um "adeus" trêmulo de que logo se arrependera, ele saiu rápido, mas sem dignidade, da sala.
Passou-se mais que um instante sem que Gloria falasse. Seus lábios ainda estavam recurvados; seu olhar, fixo, orgulhoso, distante. Em seguida seu olhar se embaçou um pouco e ela murmurou três palavras, a meia altura, para o fogo condenado à extinção.
- Até logo, seu burro! - disse ela.

PÂNICO

O homem recebera o pior golpe de sua vida. Sabia finalmente o que queria, mas parece que a descoberta empurrara-o eternamente para fora de seu alcance. Chegou em casa arrasado, deixou-se cair em uma poltrona sem nem tirar seu casaco, e ficou ali, sentado, por mais de uma hora, com sua mente a seguir os caminhos de uma auto-absorção infrutífera e infeliz. Ela o rejeitara! Esse era o fardo reiterado de seu desespero. Em vez de agarrar a garota e simplesmente segurá-la à força até que se tornasse passiva ao seu desejo, em vez de dobrar a vontade dela pela força de sua própria vontade, ele saíra, derrotado e impotente, pela porta afora, com os cantos da boca caídos e a força que ainda poderia restar de sua dor e sua raiva escondida por trás de uns modos de colegial espancado. Em dado minuto ela gostara dele tremendamente - ah, quase o amara. No minuto seguinte, ele se tornara algo que merecia sua indiferença, um homem insolente, humilhado com toda competência.
Ele não tinha grande remorso - algum, é claro, tinha, mas havia outras coisas que o dominavam no momento, bem mais urgentes. Não se tratava tanto de estar apaixonado por Gloria, e sim, louco por ela. Se ele não pudesse tê-la novamente a seu lado, beijá-la, estreitá-la, complacente, junto a seu peito, não queria mais nada da vida. Através de seus três minutos de indiferença inflexível e total, a garota se alçara de uma posição importante, ainda que um tanto casual, na mente dele, para se tornar sua única preocupação. Por mais que seus pensamentos incontroláveis se alternassem entre um desejo apaixonado por seus beijos e uma ânsia igualmente apaixonada de machucá-la e maculá-la, os resíduos de sua mente almejavam, de modo mais puro, possuir a alma triunfante que brilhara durante esses três minutos. Ela era bela - mas não tinha especialmente nenhuma piedade. Ele precisava possuir aquela força capaz de rejeitá-lo.
No momento, nenhuma análise assim era possível para Anthony. Sua clareza de espírito, todos aqueles infindáveis recursos que ele acreditava terem lhe sido transmitidos por sua ironia foram varridos de lado. Não apenas naquela noite, mas durante os dias e semanas seguintes, seus livros passaram a ser apenas mobília e seus amigos apenas gente que vivia e caminhava em um mundo externo nebuloso do qual ele procurava escapar - esse mundo era frio e açoitado por um vento gélido, e, no entanto, durante certo tempo ele privara de uma casa quente, na qual o fogo ardia.
Lá pela meia noite ele se deu conta de estar com fome. Desceu até a Fifty-second Street, onde fazia tanto frio que ele mal conseguia enxergar; a umidade congelava nos seus cílios e nos cantos de seus lábios. Por todo lado baixara uma desolação do norte, depositando-se sobre a rua estreita e triste, onde figuras pretas todas agasalhadas, mais pretas ainda contra a noite, cambaleavam na calçada entre o vento uivante, escorregando os pés com cautela para frente como se estivessem sobre esquis. Anthony virou na direção da Sixth Avenue, tão absorto em seus pensamentos que não notou os olhares deliberados de vários passantes. Seu casaco estava completamente aberto, deixando entrar o vento, duro, cortante e cheio de morte cruel.
Depois de algum tempo uma garçonete falou com ele, uma garçonete gorda de óculos de aros pretos de onde pendia uma longa cordinha preta.
- Faça seu pedido, por favor!
A sua voz, pensou ele, era desnecessariamente alta. Ele olhou para cima aborrecido.
- Vai fazer o pedido ou não vai?
- Claro - protestou ele.
- Olha, perguntei três vezes. Isto aqui não é lugar de descanso.
Ele olhou para o relógio grande e descobriu, com um susto, que passava das duas. Ele estava em algum canto na Thirtieth Street e, depois de um instante, percebeu e traduziu o CHILD'S em um semicírculo de letras brancas sobre o vidro da frente. O lugar estava ocupado por três ou quatro bacuraus tristes e meios gelados.
- Me dê ovos com bacon e café, por favor.
A garçonete dirigiu-lhe um derradeiro olhar enviesado de desprezo e, parecendo ridiculamente intelectual com seus óculos com cordinha, afastou-se depressa.
Meu Deus! Os beijos de Gloria eram verdadeiras flores. Ele se lembrava, como se fosse anos atrás, do frescor de sua voz baixa, dos belos contornos de seu corpo brilhando através de suas roupas, do seu rosto cor de lírio sob os lampiões da rua - sob os lampiões.
O sofrimento golpeou-o de novo, espargindo uma espécie de terror sobre sua dor e sua ânsia. Ele a perdera. Era verdade - não havia como negar, como tapar o sol com a peneira. Mas uma idéia nova rasgara seu céu - e quanto a Bloeckman! O que aconteceria agora? Eis um sujeito rico, suficientemente de meia idade para ser tolerante com uma bela esposa, para mimar seus caprichos e manias, para usá-la como ela talvez quisesse ser usada - uma bela flor no botão de sua lapela, segura e protegida contra as coisas que temia. Ele sentiu que ela andara brincando com a idéia de casar com Bloeckman, e era bem possível que essa decepção com Anthony a jogasse, em um súbito impulso, nos braços dele.
Essa idéia tornou-o infantilmente desvairado. Ele queria matar Bloeckman e fazê-lo sofrer por sua hedionda presunção. Dizia isso para si mesmo sem parar, com os dentes trincados, e uma orgia perfeita de ódio e temor em seu olhar.
Mas, por trás desse ciúme obsceno, Anthony finalmente se apaixonara, estava profunda e verdadeiramente apaixonado, como sói acontecer entre o homem e a mulher.
O café surgiu ao lado de seu cotovelo, desprendendo por algum tempo uma fumaçinha que foi se dissipando. O gerente noturno, sentado na sua mesa, olhou para a figura imóvel da última mesa, em seguida avançou, com um suspiro, sobre ela, bem no momento em que o ponteiro do grande relógio passava pelas três horas.

SABEDORIA

Passado mais um dia, o tumulto acalmou-se e Anthony começou a usar um pouco a cabeça. Ele estava apaixonado - gritou veementemente para si mesmo. As coisas que uma semana antes pareciam obstáculos insuperáveis, sua renda limitada, seu desejo de ser independente e de não ter responsabilidades, tornaram-se dentro dessas quarenta horas um mero cisco diante do vendaval de sua paixão. Se ele não se casasse com ela, sua vida seria uma pobre paródia da sua própria adolescência. Para ser capaz de enfrentar as pessoas e suportar a lembrança de Gloria em que se transformara toda existência, era necessário que ele tivesse esperança. Assim ele construiu, tenaz e avidamente, uma esperança com os materiais de seu sonho, uma esperança bastante débil, com certeza, uma esperança que trincava e ruía uma dezena de vezes por dia, uma esperança parida do escárnio, mas mesmo assim uma esperança que haveria de ser o arrimo e o esqueleto de seu amor próprio.
Disso brotou uma fagulha de sabedoria, uma percepção verdadeira, original, nascida de seu passado indolente.
- A memória é curta - pensou ele.
Curta demais. No momento crucial, o Presidente do Fundo de Investimento está no banco dos réus, um criminoso em potencial, precisando só de um empurrão para parar na cadeia, desprezado pelas pessoas de moral reta a quilômetros de distância. Basta que seja inocentado - e dentro de um ano está tudo esquecido. "Sim, ele teve uns problemas certa vez, mas foi um casuísmo, acredito." Ah, como é curta a memória!
Ao todo, Anthony vira Gloria cerca de uma dúzia de vezes, digamos, por 24 horas. Vamos supor que ele a ignorasse durante um mês, não fizesse nenhuma tentativa de vê-la ou de falar com ela, e evitasse todos os lugares em que ela pudesse estar. Não seria possível, tanto mais porque ela jamais o amara, que no final desse período o fluxo de acontecimentos apagasse a personalidade dele da mente consciente dela, e junto com a personalidade o insulto e a humilhação que ele sofrera? Ela esqueceria, pois haveria outros homens. Ele estremeceu. Essa idéia golpeou-o com força - outros homens. Dois meses
- meu Deus! Melhor três semanas, duas semanas...
Duas semanas - era pior do que nada. Dentro de duas semanas ele a abordaria praticamente como faria agora, sem personalidade nem segurança - ainda o sujeito que avançara o sinal e que passara um certo período, na verdade apenas um momento, mas, de fato, uma eternidade, choramingando. Não, duas semanas era pouco tempo demais. Qualquer dor que ele sentisse por ela naquela tarde precisava de tempo para se embotar. Ele precisava dar-lhe tempo para esquecer o incidente, em seguida mais um tempo para ela começar a pensar nele aos poucos, não importa quão debilmente, dentro de uma perspectiva fiel que lembrasse suas características agradáveis, além da sua humilhação.
Por fim ele determinou seis semanas como o intervalo mais adequado a seus objetivos, e marcou os dias em uma folhinha de mesa, descobrindo que o término cairia em 9 de abril. Muito bem, nesse dia ele telefonaria perguntando se podia vê-la. Até então - silêncio.
Depois de sua decisão, manifestou-se uma melhora gradual. Pelo menos ele dera um passo na direção que a esperança indicava, e percebeu que quanto menos se preocupasse com ela, melhor seria capaz de transmitir a impressão desejada quando se encontrassem.
Dentro de mais uma hora, ele caiu em um sono profundo.

O INTERVALO

Embora no decorrer dos dias o esplendor dos cabelos dela empalidecesse consideravelmente para ele, e em um ano de separação talvez sumisse por completo, as seis semanas contaram com muitos dias abomináveis. Ele temia ver Dick e Maury, imaginando delirantemente que eles sabiam tudo - mas quando os três se encontraram, Richard Caramel foi o centro das atenções, e não Anthony; O amante endiabrado fora aceito para publicação imediata. Anthony sentiu que de agora em diante ele se afastaria. Não ansiava mais pelo calor e segurança da companhia de Maury que, ainda em novembro, o consolara. Somente Gloria podia fazê-lo agora, e ninguém mais o faria. Por isso o sucesso de Dick o alegrou apenas vagamente e não o preocupou nem um pouco. Isso significava que o mundo seguia em frente - escrever, ler e editar - e a vida continuava. E ele queria que o mundo esperasse, parado e sem fôlego, por seis semanas
- enquanto Gloria esquecesse.

DOIS ENCONTROS

Sua maior alegria era a companhia de Geraldine. Ele a levou uma vez para jantar fora e ao teatro e recebeu-a várias vezes no seu apartamento. Na sua companhia, ela o absorvia, não como Gloria, mas apaziguando a sensibilidade erótica que nele se preocupava com Gloria. Não importava a maneira como ele beijava Geraldine. Um beijo era um beijo - que devia ser degustado ao máximo durante sua pequena duração. Para Geraldine as coisas se encaixavam em escaninhos bem definidos: beijar era uma coisa, qualquer coisa além já era outra coisa: um beijo estava bem; as outras coisas eram "más".
Quando metade do intervalo se passara aconteceram duas coisas em dias seguidos que atrapalharam sua crescente calma e provocaram uma recaída temporária.
A primeira foi que ele viu Gloria. Foi um breve encontro. Ambos se cumprimentaram. Os dois falaram; no entanto, nenhum deles ouviu o outro. Depois do fato, Anthony leu três vezes uma coluna do The Sun, repetidamente, sem compreender uma única frase.
Era de se esperar que a Sixth Avenue fosse uma rua segura! Tendo abandonado seu barbeiro no Plaza, um dia ele dobrou a esquina para se barbear, e enquanto esperava sua vez sem colete e paletó, com o colarinho aberto, deixou-se ficar junto à vitrine da loja. O dia era um oásis no deserto gelado de março e a calçada estava alegre com um bando de adoradores do sol que passavam. Uma mulher gorda, estofada de veludo, com as papadas por demais massageadas, passou com seu poodle forçando a coleira - dando a impressão de um rebocador rebocando um transatlântico. Logo atrás deles vinha um sujeito em um terno azul riscado, em um passo gingado, com os pés cobertos por polainas brancas, que riu do espetáculo e, atraindo a atenção de Anthony, piscou através da vitrine. Anthony riu, posto imediatamente naquele estado de espírito em que os homens e mulheres se tornam fantasmas desajeitados, curvos e redondos em um mundo retangular de sua própria lavra. Davam-lhe a mesma sensação daqueles peixes monstruosos e estranhos que habitavam o mundo verde e esotérico do aquário.
Mais dois passantes chamaram por acaso sua atenção, um sujeito e uma garota - em seguida, em um átimo horripilante, a garota se transformou em Gloria. Ele ficou ali, impotente; eles se aproximaram e Gloria, olhando para dentro,
percebeu-o. Seus olhos se dilataram e ela sorriu polidamente. Seus lábios se moveram. Estava a menos de metro e pouco de distância.
- Como vai? - murmurou ele, em vão.
Gloria, jovem, bela, alegre - com um sujeito que ele nunca vira!
Foi então que vagou a cadeira do barbeiro e ele leu a coluna do jornal três vezes seguidas.
O segundo incidente aconteceu no dia seguinte. Ao ir ao bar do Manhattan ele se deparou com Bloeckman. Aconteceu de o ambiente estar quase deserto e, antes de se reconhecerem mutuamente, ele se posicionara a trinta centímetros do homem mais velho e pedira seu drinque; assim, era inevitável que conversassem.
- Olá, senhor Patch - disse Bloeckman, de modo bastante amigável.
Anthony apertou sua mão estendida e trocou alguns aforismos sobre as flutuações barométricas.
- Vem muito aqui? - perguntou Bloeckman.
- Não, raramente - ele deixou de dizer que o bar do Plaza fora, até pouco tempo, seu bar predileto.
- Um bom bar. Um dos melhores bares da cidade. Anthony concordou com a cabeça. Bloeckman esvaziou seu copo e pegou sua bengala. Ele estava vestido para a noite.
- Bem, deixe-me ir embora. Vou jantar com a senhorita Gilbert.
A morte olhou-o de repente através de dois olhos azuis. Se ele tivesse se declarado a Anthony seu possível assassino não poderia ter lhe desferido um golpe mais mortífero. O homem mais jovem deve ter corado a olhos vistos, pois todos seus nervos
gritaram instantaneamente. Com um tremendo esforço, conseguiu dar um sorriso duro - tão duro - e uma despedida convencional. Mas naquela noite ficou acordado até depois das quatro, meio delirante de dor, de medo e de fantasias abomináveis.

FRAQUEZA

E um dia, na quinta semana, ele ligou para ela. Estivera sentado no seu apartamento tentando ler
L 'Éducation Sentimentale e algo no livro arremessara seus pensamentos na direção que, uma vez soltos, eles sempre tomavam, como cavalos a correr de volta para suas cocheiras. Com a respiração subitamente acelerada ele foi até o telefone. Ao dar o número, sua voz pareceu falhar e rachar, como a de um colegial. A telefonista deve ter ouvido as batidas de seu coração. O som do fone sendo levantado do outro lado da linha foi como um anúncio do juízo final, e a voz da senhora Gilbert, suave como melado a escorrer dentro de um vidro, teve para ele uma expressão de horror, no seu único "Alô-ô-a?"
- A senhorita Gloria não está se sentindo bem, está deitada, dormindo. Quem devo dizer que ligou?
- Ninguém! - gritou ele.
Em um pânico incontrolável, ele bateu o fone; caiu desfalecido na sua poltrona, no suor frio do alívio resfolegante.

SERENATA

A primeira coisa que ele disse para ela foi:
- Puxa, você enrolou o cabelo! - e ela respondeu:
- É, não ficou uma maravilha?
Não era moda nessa época. Virou moda cinco ou seis anos depois. Era considerado então extremamente audacioso.
- Lá fora faz sol em todo canto - disse ele, circunspecto. - Não quer dar um passeio?
Ela vestiu um casaco leve e um chapéu de Napoleão meio provocante, azul acinzentado, e caminharam pela avenida e entraram no zoológico, onde admiraram bem a majestade do elefante e o pescoção da girafa, mas não visitaram a jaula dos macacos porque Gloria disse que os macacos fediam muito.
Em seguida voltaram na direção do Plaza, sem falar nada, mas contentes com o canto da primavera no ar e o bálsamo quente que cobria a cidade repentinamente dourada. À direita deles ficava o Central Park, enquanto à esquerda uma grande massa marmórea e granítica murmurava tediosamente a mensagem de um milionário, para quem se dispusesse a ouvir; algo assim "Trabalhei e poupei e fui mais esperto do que todos e aqui estou sentado, caramba, caramba!"
Todos os modelos mais novos e belos de carros rodavam pela Fifth Avenue, e adiante deles avultava o Plaza, um tanto surpreendentemente branco e atraente. A ágil, indolente Gloria caminhava à distância de uma sombra curta na frente dele, externando comentários casuais e preguiçosos que flutuavam um instante no ar deslumbrante antes de alcançar o seu ouvido.
- Ah - gritou ela - quero ir para o sul, para Hot Springs! Quero sair ao ar livre e rolar na grama nova e esquecer que jamais existiu o inverno.
- Não faça isso, porém!
- Quero ouvir um milhão de tordos fazendo uma barulhada danada. Gosto mais ou menos dos pássaros.
- Todas as mulheres são pássaros - aventurou-se ele.
- De que tipo sou? - rápida e ansiosamente.
- Uma andorinha, acho, e, às vezes, uma
ave-do-paraíso. A maioria das garotas é do tipo andorinha, é claro, está vendo aquela fila de babás ali? São andorinhas ou são pegas? E é claro que você já conheceu garotas canário e garotas tordo.
- E garotas cisne e garotas papagaio. Todas as mulheres adultas são gaviões, acho, ou corujas.
- O que sou: um abutre?
Ela riu e sacudiu a cabeça.
- Ah, não, você não é nenhum pássaro, não acha? Você é um cão caçador de lobos, russo.
Anthony lembrava que eles eram brancos e sempre pareciam extraordinariamente famintos. E eram também em geral fotografados com duques e princesas, de modo que ele se sentiu devidamente lisonjeado.
- Dick é um fox-terrier, um fox-terrier ensinado - prosseguiu ela.
- E Maury é um gato. - Ele se lembrou simultaneamente como Bloeckman se parecia com um porco robusto e bravo. Mas manteve um silêncio discreto.
Mais tarde, quando se separaram, Anthony perguntou quando podia vê-la de novo.
- Você nunca faz programas longos? - suplicou ele. - Mesmo se for dentro de semanas, acho que seria divertido passarmos um dia inteiro juntos, tanto à manhã quanto à tarde.
- Seria, não seria? - Ela pensou um momento.
- Vamos fazer isso no domingo que vem.
- Está certo, vou criar uma programação que ocupará cada minuto.
E criou. Chegou a antecipar belamente o que aconteceria nas duas horas em que ela iria ao seu apartamento tomar chá: o fiel Bounds deixaria as janelas todas abertas para deixar entrar a brisa fresca - mas também haveria um fogo aceso caso fizesse frio - e haveria buquês de flores em grandes jarros frescos que ele compraria para aquela ocasião. Sentariam no sofá.
E quando chegou o dia, sentaram mesmo no sofá. Depois de algum tempo Anthony a beijou porque isso aconteceu de forma bem natural; ele ainda encontrou a doçura que repousava em seus lábios e sentiu que jamais estivera separado. O fogo brilhava e a brisa que entrava suspirando pelas cortinas trazia uma umidade jovial a prometer maio e um mundo de verão. A alma dele se comovia com harmonias remotas, ouviu o dedilhar de guitarras e o marulho do mar em uma costa quente do Mediterrâneo - pois ele era jovem agora como jamais voltaria a ser, e mais triunfante que a morte.
Seis horas bateram demasiadamente cedo, trazendo a melodia lamuriosa dos sinos de St Anne, na esquina. No crepúsculo que avançava, eles foram até a avenida, onde a multidão que lembrava uma porção de prisioneiros libertos andava finalmente com um passo elástico depois do longo inverno, e os andares de cima dos ônibus estavam apinhados de reis simpáticos e as lojas cheias de belas coisas macias para o verão, o verão raro, o verão alegre e promissor que estava para o amor como o inverno para o dinheiro. A vida ganhava seu sustento na esquina! A vida distribuía coquetéis de mão em mão na rua! Havia velhas naquela multidão que se achavam capazes de disputar e vencer uma corrida de cem metros!
Naquela noite, na cama e com o quarto fresco nadando ao luar, Anthony ficou acordado e brincando com cada minuto do dia como uma criança envolvida com cada um de uma pilha de brinquedos de Natal há muito desejados. Ele lhe dissera delicadamente, quase no meio de um beijo, que a amava, e ela sorrira, estreitando-o mais contra si, murmurando, "Que bom", olhando nos seus olhos. Houvera uma nova característica na atitude dela, um novo despertar de pura atração física por ele e uma estranha tensão emocional cuja recordação bastava para que ele fechasse as mãos e prendesse o fôlego. Ele se sentira mais próximo dela do que jamais sentira. Em um raro rasgo de prazer, ele gritou para a sala que a amava.
Telefonou na manhã seguinte - nenhuma hesitação agora, nenhuma insegurança - antes, uma excitação exaltada que se multiplicava por dois, por três quando ele ouvia a voz dela.
- Bom dia... Gloria.
- Bom dia.
- Foi só para isso que eu te liguei, para dizer... querida.
- Que bom que você ligou.
- Eu gostaria de te ver.
- Verá, amanhã à noite.
- É muito tempo, não é?
- Sim... - A voz dela relutava. A mão dele apertou o fone.
- Será que eu não podia ir esta noite? - Ele apostava tudo no esplendor e na revelação daquele "sim" quase sussurrado.
- Tenho um compromisso.
- Ah...
- Mas talvez eu possa... possa faltar.
- Ah! - um grito em estado puro, uma rapsódia.
- Gloria?
- O quê?
- Eu te amo.
Mais uma pausa e depois:
- Eu... eu fico feliz.
A felicidade, comentou Maury Noble um dia, é apenas a primeira hora de alívio depois de algum sofrimento especialmente intenso. Mas, ah, o rosto de Anthony ao descer o corredor do décimo andar do Plaza naquela noite! Seus olhos escuros brilhavam
- havia linhas em volta de sua boca que eram um prazer de se ver. Ele estava bonito então como nunca estivera antes, rumo a um desses momentos imortais que chegam tão radiantes que a recordação de sua luz basta para a gente enxergar durante anos.
Ele bateu e, ao ouvir uma palavra, entrou. Gloria, vestida de cor de rosa simples, engomada e viçosa como uma flor, estava do outro lado da sala, bem imóvel e olhando para ele com olhos muito atentos.
Quando ele fechou a porta atrás de si, ela deu um gritinho e cobriu depressa a distância entre ambos, com os braços se levantando em um afago prematuro à medida que se aproximava. Juntos, amarfanharam o plissado de seu vestido em um abraço longo e triunfante.


LIVRO DOIS


CAPÍTULO UM
THE RADIANT HOUR

Depois de uma quinzena, Anthony e Gloria começaram a se entregar a "discussões práticas", como chamavam aquelas sessões em que, a guisa de um severo realismo, eles caminhavam em um eterno luar.
- Não tanto quanto eu a você - insistia o crítico beletrista - Se você me amasse de verdade ia querer que todo mundo soubesse.
- Amo sim - protestou ela, - Quero ficar na esquina como um homem-sanduíche, informando a todos os passantes.
- Então me conte todos os motivos pelos quais você vai se casar comigo em junho.
- Bem, porque você é tão limpo. Você é limpo meio arejado, como eu. Há dois tipos, sabe. Um é como Dick ele é limpo como panela areada. Você e eu somos limpos como ventos e riachos. Sei dizer, quando vejo uma pessoa, se ela é limpa, e se for, a que tipo pertence.
- Somos gêmeos.
Pensamento feliz!
- Mamãe diz - hesitou ela, insegura -, mamãe diz que duas almas são as vezes criadas juntas e se apaixonam antes de nascerem.
O bilfismo conquistou seu neófito mais fácil... Depois de algum tempo ele ergueu a cabeça e riu silenciosamente para o teto. Quando seus olhos retornaram a ela, ele percebeu que ela estava zangada.
- Por que você riu? - gritou ela - Já fez isso duas vezes. Não há nada de engraçado na nossa relação. Não me importo de bancar a palhaça, nem se você for obrigado a fazê-lo, mas não suporto isso quando estamos juntos.
- Desculpe.
- Ah, não peça desculpas! Se não consegue inventar nada melhor que isso, e melhor ficar calado!
- Eu te amo.
- Pouco me importa.
Fez-se uma pausa. Anthony ficou deprimido. Por fim Gloria murmurou:
- Desculpe se fui má.
- Você não foi não. Fui eu quem foi.
Restabeleceu-se a paz - os momentos seguintes foram tão mais doces, vivos, intensos. Eles eram os astros nesse palco, cada um representando para uma platéia de dois: o entusiasmo de sua simulação criava a realidade dos fatos. Eis, por fim, a quintessência da auto-expressão - no entanto, o mais provável é que o amor deles exprimisse Gloria antes do que Anthony. Muitas vezes ele se sentia como um convidado meramente tolerado em uma festa dada por ela.
Contar a senhora Gilbert havia sido constrangedor. Ela ficou sentada, parecia empalhada em uma pequena cadeira, ouvindo com uma concentração intensa e meio piscante. Ela já devia saber - há três semanas que Gloria não via mais ninguém - e deve ter percebido que dessa vez havia uma verdadeira diferença na atitude de sua filha.
Deram-lhe correspondência expressa para botar no correio, ela prestara atenção, como parecem fazer todas as mães, na extremidade de cá das conversas telefônicas, disfarçada, mas já meio desconfiada.
No entanto, ela demonstrara um delicado espanto e se declarou imensamente satisfeita, não há dúvida que ficou, como também os gerânios que floriam nas jardineiras das janelas e também os cocheiros quando os amantes buscavam a intimidade das charretes de aluguel - singular expediente - e o permanente rol de objetos nos quais eles rabiscavam "você sabe que sim", empurrando-os para que o outro os visse.
Mas entre beijos, Anthony e essa garota de ouro discutiam sem parar.
- Puxa, Gloria - gritava ele -, me deixe explicar!
- Não explique nada. Me beije.
- Não acho isso certo. Eu te magoei, e devemos discutir o assunto. Não gosto desse negócio de beijar-esquecer.
- Mas eu não quero discutir. Acho uma maravilha a gente poder beijar e esquecer e, quando não pudermos, então chegou a hora de discutir.
Certa vez uma diferença ínfima qualquer adquiriu tamanho vulto que Anthony se levantou e soqueou o próprio casaco que vestia - por um instante houve a impressão de que a cena do último fevereiro se repetiria, mas sabendo a profundidade da mágoa dela, ele manteve a dignidade, com orgulho, e dentro de um instante Gloria soluçava nos seus braços, com sua bela face dilacerada como a de uma menininha amedrontada.
Nesse meio tempo, eles continuavam a se abrir um para o outro, a contragosto, através de curiosas reações e evasivas, preconceitos e desagrados e insinuações inadvertidas quanto ao passado. A garota se orgulhava de ser incapaz de sentir ciúmes e, por ele ser extremamente ciumento, essa virtude o incomodava. Ele lhe contou incidentes recônditos de sua própria vida, de propósito, para ver se criava uma centelha desse sentimento, mas sem êxito. Era agora que ela o possuía - não desejava os anos mortos.
- Ah, Anthony - dizia ela -, toda vez que sou má com você, depois eu me arrependo. Eu daria minha mão direita para lhe poupar um instante de sofrimento.
E nesse momento seus olhos ficavam marejados e ela não se dava conta de externar uma ilusão. No entanto, Anthony sabia que em determinados dias eles se machucavam de propósito - quase tendo prazer ao desferir o golpe. Ela não cansava de o deixar perplexo ora tão íntima e encantadora, buscando desesperadamente uma união transcendente e singular, em seguida, calada e fria, aparentemente intocada por qualquer consideração sobre o amor deles ou sobre qualquer coisa que ele pudesse dizer. Muitas vezes ele conseguia rastrear essas solenes reticências e atribui-las a alguma perturbação física - das quais ela só reclamava quando havia passado - ou a alguma desatenção ou arrogância dele, ou a algum prato insatisfatório do jantar, mas mesmo assim os meios que ela empregava para criar essas distâncias infinitas que espalhava a sua volta eram um mistério, enterrado em algum lugar no passado dos seus 22 anos de orgulho inflexível.
- Por que você gosta de Muriel? - perguntou ele um dia.
- Não gosto... tanto assim.
- Então por que você anda com ela?
- Só para ter alguém com quem andar. Elas não me cansam, essas garotas. Acreditam mais ou menos em tudo que digo a elas, mas gosto um pouco de Rachel. Acho ela atraente, e tão limpa e esperta, não acha? Eu costumava ter outras amigas, em Kansas City e no colégio, eventuais, todas elas, garotas que entravam rapidamente no meu caminho por nenhum outro motivo além do fato de os garotos nos levarem para sair juntas. Elas perdiam interesse para mim depois que o ambiente deixava de nos reunir. A maioria agora está casada. Que importa, eram todas apenas gente.
- Você gosta mais dos homens, não gosta?
- Ah, muito mais, tenho uma cabeça de homem.
- Você tem uma cabeça como a minha. Não puxa muito a nenhum gênero.
Mais tarde ela lhe contou sobre o início de sua amizade com Bloeckman. Um dia no Delmonico's, Gloria e Rachel toparam com Bloeckman e o senhor Gilbert almoçando juntos e a curiosidade a impelira a formar um grupo de quatro. Ela gostara dele - um pouco. Ele era um alívio em relação aos homens mais jovens, satisfazendo-se assim com tão pouco. Fazia as vontades dela e ria, compreendendo-a ou não. Ela saiu várias vezes com ele, a despeito da contrariedade aberta de seus pais, e dentro de um mês ele a pedira em casamento, oferecendo-lhe tudo, desde uma vila na Itália a uma brilhante carreira na tela. Ela rira na sua cara - e ele rira também.
Mas ele não desistira. Até a época da entrada em campo de Anthony, viera progredindo constantemente. Ela o tratava bastante bem - exceto quando o chamava por um apelido odioso - e se dava conta, falando de uma maneira figurada, que ele prosseguia a seu lado enquanto ela caminhava em cima do muro, pronto para segurá-la se ela caísse.
Na noite anterior ao anúncio do noivado, ela contou para Bloeckman. Foi um golpe pesado. Ela não deu a Anthony informações sobre os detalhes, mas deixou implícito que ele não hesitou em discutir com ela. Anthony concluiu que a conversa terminara em um tom tempestuoso, com Gloria muito fria e sem se deixar comover, sentada no seu canto do sofá, e Joseph Bloeckman, da Films Par Excellence, andando para lá e para cá no tapete, com os olhos estreitados e a cabeça baixa. Gloria tivera pena dele, mas achara melhor não demonstrá-lo. Em um surto final de bondade ela tentara fazê-lo odiá-la, afinal. Mas Anthony, sabendo que a indiferença era o ponto mais forte de Gloria, julgou como isso deve ter sido em vão. Ele pensava, muitas vezes de modo fortuito, em Bloeckman - até que finalmente esqueceu-o por completo.

O AUGE

Uma tarde eles arranjaram lugares no teto ensolarado de um ônibus e rodaram por horas se afastando de um Times Square evanescente, ao longo do rio poluído, e então, à medida que os faróis desgarrados fugiam das ruas do lado oeste, singraram a avenida, que o enxame execrável de abelhas das lojas de departamento escurecia. O tráfego estava engarrafado, travado em uma confusão caótica: os ônibus, paralisados, quatro, um ao lado do outro, como plataformas acima da multidão, enquanto esperavam o silvo do apito do guarda.
- Não é uma beleza? - gritou Gloria. - Olha!
A carroça de um moinho, toda branca de farinha, dirigida por um palhaço empoado, passou na frente deles puxada por um cavalo branco emparelhado com seu companheiro preto.
- Que pena! - reclamou ela. - Ficaria tão bonito no crepúsculo se ambos os cavalos fossem brancos. Estou muito feliz neste exato momento, nesta cidade.
Anthony sacudiu a cabeça em discordância.
- Acho a cidade trapaceira. Sempre buscando se aproximar da tremenda e impressionante urbanidade que lhe é atribuída. Tentando ser romanticamente metropolitana.
- Eu não. Acho impressionante.
- Momentaneamente. Mas na realidade é um espetáculo transparente, meio artificial. Possui seus astros cheios de empresários e seus cenários vagabundos e efêmeros e, confesso, o maior exército de atores secundários jamais reunidos. - Ele fez uma pausa, riu brevemente e acrescentou: - Tecnicamente talvez seja excelente, mas não convence.
- Aposto que os policiais acham que as pessoas são bobas - disse Gloria, pensativa, ao observar uma senhora grande e medrosa que ajudavam a atravessar a rua. - Eles sempre as vêem com medo, ineficazes, velhas, e não é que são! - acrescentou ela. E depois: - É melhor a gente descer. Eu disse à mamãe que ia jantar cedo e iria para a cama. Ela diz que eu pareço cansada, diabo.
- Eu gostaria que fôssemos casados - murmurou ele, circunspecto -; assim não haveria boa-noite e a gente poderia fazer o que quisesse.
- Vai ser bom! Acho que devemos viajar à beça. Quero ir ao Mediterrâneo e à Itália. E gostaria de trabalhar no palco durante algum tempo, digamos, por mais ou menos um ano.
- Com certeza. Vou escrever urna peça para você.
- Vai ser bom! Representarei nela. E quando a gente tiver mais dinheiro, vamos construir uma casa magnífica, não é? - disse ela, fazendo alusão, com o maior tato, à morte do velho Adam.
- Ah, sim, com piscinas particulares.
- Dezenas. E rios particulares. Ah, eu queria que fosse já.
Estranha coincidência - ele acabara de desejar a mesma coisa. Mergulharam na multidão refluente e escura, como mergulhadores, e emergiram nas ruas frescas da casa dos cinqüenta, e foram andando lenta e indolentemente em direção à casa, sendo infinitamente românticos um com o outro... caminhavam sozinhos em um jardim imune às paixões, junto com um fantasma saído de um sonho.
Dias tranqüilos como barcos deslizando ao longo de lentos rios; tardes de primavera cheias de uma grave melancolia que tornava o passado belo e amargo, convidando-os a olhar para trás e perceber que os amores de outros verões há muito haviam morrido como as valsas esquecidas daqueles anos. Os momentos mais intensos eram sempre quando alguma barreira artificial os separava: no teatro as mãos deles se encontravam furtivamente, faziam e recebiam pressões delicadas na longa escuridão; nos lugares cheios de gente eles formavam palavras com os lábios para os olhos um do outro - sem saber que seguiam os passos de gerações empoeiradas, mas compreendendo vagamente que, ainda que a verdade fosse o objetivo da vida, a felicidade é uma modalidade dela, e deve ser apreciada no seu breve e bruxuleante momento. E então, em uma noite de fada, maio virou junho. Dezesseis dias agora... quinze... quatorze...

TRÊS DIGRESSÕES

Logo antes de ser anunciado o noivado, Anthony fora até Tarrytown para ver seu avô que, um pouco mais murcho e grisalho à medida que o tempo fazia suas derradeiras brincadeiras, recebeu a notícia com um profundo cinismo.
- Ah, você vai casar, é? - disse com uma brandura tão dúbia e sacudiu a cabeça tantas vezes para cima e para baixo que Anthony não ficou nem um pouquinho deprimido. Ainda que ignorasse as intenções de seu avô, supunha que grande parte do dinheiro lhe caberia. Uma parte considerável seria destinada à caridade, claro; parte considerável para prosseguir a obra reformista.
- Você prentende trabalhar?
- Como... - contemporizou Anthony, meio embaraçado - eu estou trabalhando. Sabe...
- Ah, falo de trabalho - disse impassivelmente Adam Patch.
- Ainda não tenho certeza absoluta do que farei. Não sou exatamente um mendigo, vovô - afirmou, com certo espírito.
O velho analisou isso com os olhos entreabertos. Então perguntou, quase em tom de desculpa:
- Quanto você poupa por ano?
- Nada, por enquanto...
- Então, depois de mal sobreviver com seu dinheiro, você resolveu que, por algum milagre, dois conseguirão fazê-lo.
- Gloria tem um pouco de dinheiro. O suficiente para comprar suas roupas.
- Quanto?
Sem considerar a pergunta impertinente, Anthony respondeu.
- Mais ou menos cem por mês.
- Isso perfaz um total de cerca de 7.500 por ano. - Em seguida acrescentou suavemente: - Deveria bastar. Se você tiver um pouco de juízo, deveria bastar. Mas o problema é saber se você tem ou não tem.
- Acho que sim. - Era humilhante ser obrigado a agüentar esse sermão devoto da parte do velho, e suas palavras seguintes vieram forradas de orgulho. - Posso me virar muito bem. Você parece estar convencido de que não valho nada. De qualquer modo, vim aqui simplesmente para lhe informar que vou me casar em junho. Adeus. - Com isso ele se virou e se dirigiu à porta, ignorando que naquele instante, e pela primeira vez, seu avô gostou dele um pouquinho.
- Espere! - gritou Adam Patch. - Quero falar com você.
Anthony deu meia volta.
- Sim?
- Sente-se. Passe a noite aqui.
Um tanto apaziguado, Anthony retomou seu assento.
- Sinto muito, mas verei Gloria esta noite.
- Como se chama ela?
- Gloria Gilbert.
- É garota de Nova York? Alguém que você já conhecia?
- Ela é do Meio Oeste.
- O que faz o pai dela?
- Trabalha em uma companhia ou conglomerado de celulóide, ou algo assim. São de Kansas City.
- Vai se casar lá?
- Não senhor. Achamos melhor casar em Nova York, meio discretamente.
- Gostaria de fazer o casamento aqui?
Anthony hesitou. A sugestão não era nada atraente, mas seria certamente ajuizado dar ao velho, se possível, um interesse paternalista na sua vida de casado. Além disso, Anthony ficou um pouco comovido.
- É muito gentil da sua parte, vovô, mas não daria trabalho demais?
- Tudo dá trabalho demais. Seu pai casou aqui... mas na casa antiga.
- Como!?... Achei que tinha casado em Boston.
Adam Patch ponderou.
- É verdade. Casou em Boston.
Anthony sentiu um constrangimento momentâneo por ter feito a correção, disfarçando-o com palavras.
- Bem, falarei com Gloria sobre isso. Pessoalmente, eu gostaria, mas é claro que depende dos Gilbert.
Seu avô deu um longo suspiro, entrefechou os olhos e voltou a afundar na poltrona.
- Está com pressa? - perguntou ele em um tom diferente.
- Não muito.
- Eu fico imaginando - começou Adam Patch, com um olhar brando, bondoso, para as moitas de lilases que roçavam as janelas -, fico imaginando se você alguma vez pensa sobre a vida no além.
- Sim, às vezes.
- Eu penso muito na vida depois da morte. - Seu olhar não tinha brilho, mas sua voz era segura e firme. - Eu estava aqui sentado, hoje, pensando no que nos espera, e não sei como comecei a me lembrar de uma tarde há quase 65 anos, quando eu brincava com minha irmãzinha Annie, lá onde fica agora aquele quiosque - ele apontou para o jardim, com os olhos trêmulos de lágrimas, voz abalada.
- Comecei a pensar e me pareceu que você devia pensar um pouquinho mais na vida após a morte. Você precisa ser mais constante... - ele fez uma pausa e pareceu lutar para encontrar a palavra certa - mais trabalhador; olha...
Em seguida sua expressão mudou, toda sua personalidade pareceu se fechar com um estalo, como uma armadilha, e, ao prosseguir, a brandura abandonara sua voz.
- Olha, quando eu só tinha dois anos mais do que você - disse ele com voz rascante -, mandei dois membros da firma Wrenn and Hunt para o asilo de pobres.
O constrangimento fez Anthony ter um sobressalto.
- Bem, adeus - acrescentou subitamente seu avô
-, senão você vai perder seu trem.
Anthony partiu da casa surpreendentemente animado e com uma estranha pena do velho: não porque a sua fortuna não pudesse comprar-lhe "nem a juventude, nem uma boa digestão", e sim porque ele convidara Anthony a se casar ali, e porque esquecera algo sobre o casamento do filho de que deveria se lembrar.
Richard Caramel, que foi um dos padrinhos, causou bastante aborrecimento a Anthony e Gloria nas últimas semanas, ao roubar incessantemente a berlinda do casal. O amante endiabrado fora editado em abril, e atrapalhou o namoro, tal como,
poder-se-ia dizer, atrapalhara tudo com que seu autor entrava em contato. Era um texto altamente original, em uma escrita um tanto quanto exagerada, uma descrição sustentável sobre um Don Juan dos cortiços de Nova York. Como disseram antes Maury e Anthony, e como diziam então os críticos mais simpáticos, não havia escritor americano com tamanho poder de descrever as reações atávicas e nada sutis daquele segmento social.
O livro hesitou, e então, de repente, "pegou". As edições, de início pequenas, em seguida maiores, foram se atropelando a cada semana. Um porta-voz do Exército da Salvação denunciou-o como um retrato deturpado e cínico de todo soerguimento moral que vinha havendo no submundo. Manobras espertas dos agentes de imprensa espalharam o boato infundado de que "Gipsy" Smith dera entrada em um processo de calúnia porque um dos personagens principais era uma caricatura sua. O romance foi banido da biblioteca pública de Burlington, Iowa, e um colunista do Meio Oeste insinuou que Richard Caramel estava internado em um sanatório, com deliríum tremens.
O autor, na verdade, passava seus dias em um estado de agradável loucura. O livro entrava na sua conversa em três quartas partes das vezes - ele queria saber se a gente ouvira falar da "última"; entrava em uma livraria e encomendava livros em seu nome na tentativa de ganhar um pouquinho de reconhecimento do vendedor ou freguês. Sabia em que parte do país ele vendia mais, até em que cidade; sabia exatamente o que faturava com cada edição e, quando encontrava alguém que não lera ou, como acontecia com bastante freqüência, não ouvira falar dele, sucumbia a uma depressão emburrada.
Então era natural que Anthony e Gloria, na sua inveja, decidissem que ele estava tão inchado de vaidade que se tornara um chato. Para grande aborrecimento de Dick, Gloria alardeou em público que nunca lera O amante endiabrado e que só pretendia fazê-lo quando todo mundo parasse de falar nele. Aliás, ela não tinha tempo de ler agora, pois os presentes choviam - primeiro pingados, depois uma avalanche, variando de curiosidades vindas de amigos esquecidos da família a fotografias de parentes pobres esquecidos.
Maury deu-lhes um refinado "jogo de apetrechos de bebidas", que incluía cálices de prata, coqueteleira e abridores de garrafas. O presente de Dick foi mais convencional - um conjunto de chá da Tiffany's. Da parte de Joseph Bloeckman veio um relógio de viagem simples e refinado, acompanhado de seu cartão. Houve até uma cigarreira da parte de Bounds: isso comoveu Anthony e deu-lhe vontade de chorar - na verdade qualquer emoção, exceto a histeria, parecia natural na meia dúzia de pessoas envolvidas naquele tremendo sacrifício feito em prol da convenção. O aposento destinado a isso no Plaza estava apinhado de presentes mandados por amigos de Harvard e por sócios de seu avô, junto com lembranças dos dias de Farmover de Gloria e com troféus meio patéticos de seus ex-namorados que chegaram, por último, acompanhados de mensagens melancólicas e crípticas, escritas em cartões cuidadosamente enfiados nos embrulhos, começando com: "Eu nunca pensei que quando..." ou: "Com certeza eu te desejo toda a felicidade...", ou até mesmo: "Quando você receber isto estarei a caminho de...".
O presente mais generoso foi também o mais decepcionante. Uma concessão de Adam Patch - um cheque de cinco mil dólares.
A maior parte dos presentes foi recebida com indiferença por Anthony. Ele achou que eles precisariam acompanhar o estado civil de todos seus conhecidos durante o próximo meio século. Mas Gloria ficou encantada com cada um deles, rasgando o papel de embrulho e o material de acolchoamento com a garra de um cachorro a desenterrar o osso, segurando sofregamente uma fita ou alguma beira metálica, expondo por fim o objeto inteiro e erguendo-o criticamente, sem nenhuma emoção, salvo um arrebatado interesse na sua face séria.
- Olha, Anthony!
- Lindo para burro, não é?
Nenhuma resposta; só uma hora depois, quando ela lhe daria um relatório completo de sua exata reação ao presente, se este teria sido melhor se fosse maior ou menor, se ficou surpreendida de ganhá-lo e, se positivo, até que ponto ficou surpresa.
A senhora Gilbert arrumava e rearrumava uma casa virtual, distribuindo os presentes por diferentes quartos, rotulando os objetos como "segundo relógio em qualidade" ou "talheres de prata de uso diário", e constrangendo Anthony e Gloria com alusões meio jocosas a um quarto que ela chamava de quarto das crianças. Ficou satisfeita com o presente do velho Adam e dali para frente cismou que ele era uma alma muito vetusta, "tanto quanto possível". Como Adam Patch nunca chegou a concluir se ela se referia a senilidade avançada de sua mente ou a algum esquema mediunico particular dela mesma, não se pode dizer que tenha ficado satisfeito. Para dizer a verdade, ele sempre se referia a ela com Anthony como "aquela velha, a mãe", como se ela fosse personagem de alguma comédia que ele já vira no palco muitas vezes Com relação a Gloria, ele era incapaz de chegar a uma conclusão. Ela o atraia mas, como ela mesma disse a Anthony, ele resolvera que ela era frívola e tinha medo de dar-lhe sua aprovação.
Cinco dias! - A pista de danças em cima de uma plataforma estava sendo construída no gramado em Tarrytown. Quatro dias! - Foi fretado um trem especial para levar e trazer de Nova York os convidados. Três dias!

O DIÁRIO

Ela estava vestida com um pijama de seda azul, em pé ao lado da cama, com a mão no interruptor para mergulhar o quarto na escuridão, quando mudou de idéia e, abrindo uma gaveta da mesa, dali tirou um livrinho preto - um diário do tipo "uma linha por dia". Preenchera-o durante sete anos. Muitas anotações a lápis eram quase ilegíveis e havia comentários e notas a respeito de noites e tardes há muito esquecidas, pois não era um diário íntimo, embora começasse com o antiquíssimo "vou manter um diário por causa de meus filhos". E, no entanto, ao folhear as páginas, os olhares de muitos homens pareciam olhá-la a partir de seus nomes meio apagados. Com um deles, ela fora pela primeira vez a New Haven - em 1908, quando tinha dezesseis anos e ombros acolchoados eram moda em Yale - e ficara lisonjeada porque "o artilheiro" Michaud a cortejara a noite toda. Ela suspirou, lembrando o vestido de adulto de cetim, do qual tanto se orgulhara, e da orquestra tocando "Yama-yama, My Yama Man" e "Jungle-Town". Há tanto tempo! - os nomes Eltynge Reardon, Jim Parsons, "Cachos" McGregor, Keneth Cowan, "Olhos de peixe" Fry (de quem ela gostara por ser tão feio), Carter Kirby - ele mandara um presente, como também Tudor Baird; - Marty Reffer, o primeiro sujeito por quem ela se apaixonara por mais de um dia, e Stuart Holcome, que fugira com ela no seu automóvel e tentara fazê-la casar com ele a força. E Larry Fenwick, a quem ela sempre admirara porque ele lhe disse uma noite que se ela não quisesse beijá-lo podia saltar do seu carro e ir a pé para casa. Que lista!
E, no final de contas, uma lista obsoleta. Ela agora estava apaixonada, buscando o romance eterno que deveria ser a síntese de todo romance e, contudo, com pena desses sujeitos e desses luares e das emoções que ela sentira - e dos beijos. O passado - o seu passado, que alegria! Ela fora exuberantemente feliz.
Virando as páginas, seus olhos descansaram displicentemente nas anotações esparsas dos últimos quatro meses. Ela leu com cuidado as últimas.
"Primeiro de abril - Sei que Bill Carstairs me odeia porque fui tão desagradável, mas as vezes detesto que me sentimentalizem. Fomos de carro até o Rockyear Country Club e a lua mais maravilhosa não parava de brilhar entre as árvores. Meu vestido prateado está perdendo o brilho. Engraçado como a gente consegue esquecer as outras noites em Rockyear - com Keneth Cowan, quando eu o amava tanto!"
"3 de abril - Depois de duas horas com Schroeder que, dizem, tem milhões, resolvi que esse negócio de conservar as coisas cansa, especialmente quando as coisas em questão são os homens. Não há nada sobre o que se exagere tanto e a partir de hoje eu juro que vou me divertir. A gente falou sobre o 'amor' - que banalidade! Com quanto homens já não conversei sobre o amor?"
"11 de abril - Até que enfim Patch me ligou hoje! Quando me abandonou mais ou menos um mês atrás, praticamente saiu furioso. Estou deixando aos poucos de acreditar que exista algum homem suscetível de danos mortais."
"20 de abril - Passei o dia com Anthony. Talvez eu case com ele um dia. Gosto bastante de suas idéias - ele estimula demais a minha originalidade. Blockhead passou aqui por volta das dez, no seu novo carro, e me levou ao Riverside Drive. Gostei dele esta noite: ele é tão atencioso. Sabia que eu não queria conversar, por isso ficou calado durante o passeio."
"21 de abril - Acordei pensando em Anthony e não é que ele ligou e foi muito simpático no telefone
- por isso vou romper um compromisso por causa dele. Hoje me sinto capaz de descumprir qualquer coisa por causa dele, inclusive os dez mandamentos e alguma coisa mais. Ele vem as oito e me vestirei de
cor-de-rosa para parecer passada e engomada."
Ela parou aqui, lembrando que depois de ele ir embora naquela noite, ela se despira no ar frio de abril que soprava pela janela. No entanto, teve a impressão de não sentir frio, acalorada pelas banalidades que ardiam no seu coração.
A próxima anotação ocorreu alguns dias depois
"24 de abril - Quero me casar com Anthony porque os maridos não passam tantas vezes de 'maridos' e quero casar com um amante.
Existem três tipos de marido em geral:
1 - O marido que está sempre em casa à noite não tem vícios e é assalariado. Totalmente indesejável!
2 - O senhor atávico de quem se é amante, para servi-lo a seu bel prazer. Este tipo sempre acha toda mulher bonita "superficial", uma espécie de pavão que não amadureceu.
3 - Em seguida vem o adorador, o idólatra de sua mulher e de tudo mais que é seu, com o total esquecimento de tudo mais que não é. Este tipo pede uma atriz capaz de fingir emoções. Meu Deus! Que cansaço não deve ser bancar a mulher direita.
4 - E Anthony - um amante temporariamente apaixonado, bastante sabido para perceber quando a paixão bater asas e que ela deve fazê-lo. E quero me casar com Anthony.

Que vermes são as mulheres para rastejar durante casamentos enfadonhos! O casamento não foi feito para ser cenário de nada, e sim algo que pede um cenário. O meu será extraordinário. Sou incapaz de ser, não serei um cenário - será ele o espetáculo, o belo, encantador e vivaz espetáculo. Eu me recuso a dedicar minha vida a posteridade. Com certeza temos uma dívida tanto com a atual geração quanto com os nossos filhos indesejados. Que destino - ficar gorda e desalinhada, perder minha auto-estima, pensar em termos de leite, aveia, fraldas e da babá... Queridos filhos oníricos, como vocês são muito mais bonitos, criaturinhas estonteantes que adejam (todas as crianças oníricas precisam adejar) com asas douradas, douradas...
Tais crianças, no entanto, pobres e queridos bebês, pouco têm em comum com o estado civil de casada."
"7 de junho - Problema ético: foi errado fazer com que Bloeckman me amasse? Porque eu realmente provoquei isso. Havia quase uma doçura na sua tristeza hoje à noite. Que sorte que minha garganta esta inflamada à beça e foi fácil verter lágrimas. Mas ele representa apenas o passado - já enterrado no meu grande enxoval."
"5 de junho - E hoje prometi não morder mais minha boca. Ora, acho que não morderei - mas se ele apenas me pedisse para não comer!"
Bolhas de sabão - é o que estivemos fazendo, Anthony e eu. E fizemos bolhas tão bonitas hoje, que arrebentavam e a gente fazia mais e mais - bolhas tão bonitas quanto as primeiras até que acabasse toda água com sabão."
Com essa anotação acabava o diário. Seus olhos erraram página acima, passando por todos os oito de junho, de 1912, 1910, 1907. A anotação mais antiga estava escrita na caligrafia cheia e bulbosa de uma garota de dezesseis anos - era um nome, Bob Lamar, e uma palavra que ela não conseguiu decifrar. Então ela percebeu o que era - e, ao perceber, seu olhar turvou-se de lágrimas. Ali, em um borrão desbotado, estava o registro de seu primeiro beijo, remoto como aquela tarde íntima em uma varanda borrifada pela chuva, sete meses antes. Ela teve a impressão de lembrar uma coisa que um deles dissera naquele dia, contudo, não conseguiu lembrar. Suas lágrimas brotavam mais depressa, até ela mal conseguir enxergar a página. Ela chorava, disse consigo mesma, porque só conseguia se lembrar da chuva e das flores molhadas no pátio, e do cheiro da grama molhada.
Um momento depois ela encontrou um lápis e, segurando-o com mão trêmula, traçou três linhas paralelas embaixo da última anotação. Em seguida escreveu com letra de imprensa maiúscula FINIS, botou o livro de volta na gaveta e se enfiou na cama.

BAFO DA CAVERNA

De volta a seu apartamento, depois do jantar pré-nupcial, Anthony apagou as luzes e, sentindo-se frágil como uma peça de porcelana pousada no bufê, foi para a cama. Era uma noite quente - bastava um lençol para que se sentisse bem - e pelas suas janelas desfraldadas vinham ruídos, estivais e evanescentes, cheios de longínqua antecipação. Ele pensava que os anos de juventude já passados, vigorosos e vazios, foram vividos com um cinismo fácil e hesitante, tendo por fundo o registro das emoções de homens há muito transformados em pó. E existia algo além disso; agora ele sabia. Havia a união de sua alma com a alma de Gloria, cujo frescor e fogo cintilantes eram a matéria prima da beleza morta dos livros.
Vinha insistentemente, da noite para o seu quarto de pé direito alto, aquele barulho fugidio e dissolvente - algo que a cidade atirava para cima e pegava de novo, como uma criança brincando com uma bola. No Harlem, no Bronx, em Gramercy Park, ao longo das margens ribeirinhas, em pequenas salas de estar ou nas coberturas cheias de seixos e inundadas de luar, milhares de amantes faziam esse ruído, lançavam ao ar pequenos fragmentos desses gritos. A cidade inteira brincava com esse ruído lá fora, na penumbra azulada do verão, jogando-o para cima e pegando-o de volta, prometendo que em breve a vida seria bela como uma história, prometendo felicidade - e com essa promessa, criando-a. Dando ao amor a esperança da própria sobrevivência. Não podia fazer mais do que isso.
Foi então que uma nova nota destacou-se dissonante do suave grito da noite. Era um barulho vindo de uma área de serviço a uns trinta metros de sua janela dos fundos, o barulho de um riso de mulher. Começava baixo, incessante, ganindo - alguma empregada com o namorado, pensou ele - e depois se alteava e ficava histérico, até que aquilo o fez lembrar de uma garota que ele vira com um ataque de riso em um espetáculo de vaudeville. Em seguida baixava o volume, se distanciava, apenas para se altear de novo, incluindo palavras - alguma piada grosseira, alguma brincadeira obscura que ele não conseguia discernir. Parava um momento, quando ele mal percebia o murmúrio grave de uma voz masculina, e então recomeçava - interminável, de início irritante e, em seguida, estranho e terrível. Sentiu um arrepio e, saindo da cama, foi até a janela. O ruído alcançara um tom agudo, tenso e abafado, quase um grito - em seguida cessara, deixando atrás de si um silêncio tão vazio e ameaçador quanto o grande silêncio suspenso no céu. Anthony ficou mais um instante junto à janela antes de voltar para a cama. Estava abalado e aborrecido. A despeito do quanto ele procurasse controlar sua reação, uma qualidade animalesca qualquer naquele riso desbragado prendera sua imaginação, despertando, pela primeira vez em quatro meses, sua velha aversão e seu horror diante de todos os processos vitais. O quarto se tornara sufocante. Ele queria estar ao ar livre, no meio de uma brisa fresca e pungente, a quilômetros acima das cidades, e viver sereno e desapegado nos recantos tranqüilos de sua mente. A vida era aquele ruído lá fora, aquele ruído de fêmea terrível e repetitivo.
- Ah, Deus do céu! - gritou ele, inspirando com força.
Enterrou o rosto nos travesseiros e procurou se concentrar - em vão - nos detalhes do dia seguinte.

MANHÃ

Na luz cinzenta, ele percebeu que eram apenas cinco horas. Arrependeu-se nervosamente de ter acordado tão cedo - teria uma aparência cansada no casamento. Invejou Gloria por ser capaz de esconder sua fadiga com uma boa maquiagem.
No banheiro, contemplou-se no espelho e constatou que estava surpreendentemente branco
- meia dúzia de pequenas erupções se destacavam da palidez matinal de seu rosto, durante a noite ele adquirira a sombra de uma barba, sendo que o efeito geral, pensou, era pouco atraente, selvagem, meio malsão.
Na sua mesa de vestir espalhavam-se uma grande quantidade de objetos, que ele conferiu cuidadosamente com dedos acometidos de um súbito tremor - seus bilhetes para a Califórnia, o talão de cheques de viagem, seu relógio, acertado com a exatidão de meio minuto, a chave de seu apartamento, que ele não podia se esquecer de entregar a Maury, e, o mais importante de tudo, a aliança. Era de platina, engastada de pequenas esmeraldas. Gloria insistira nisso, sempre quisera uma aliança de esmeraldas, dissera ela.
Era o terceiro presente que ele lhe dera, primeiro fora o anel de noivado, em seguida uma pequena cigarreira de ouro. Ele agora passaria a dar-lhe muitas coisas - roupas, jóias, amigos, diversão. Parecia absurdo que de agora em diante ele pagaria todas as refeições dela. Custaria caro: ele se perguntou se não subestimara a despesa da viagem, se não era melhor descontar um cheque maior. Esse problema o preocupava.
Em seguida a iminência esbaforida do acontecimento varreu todos os detalhes de sua cabeça. Aquele era o dia - inacreditável, insuspeito seis meses atrás, mas que amanhecia agora banhado de luz amarela na sua janela leste, dançando no tapete como se o sol sorrisse de alguma velha e repetida piada de sua própria lavra.
Anthony riu com um estertor nervoso, monossilábico.
- Deus do céu! - murmurou consigo mesmo - Estou praticamente casado!

OS PADRINHOS

Seis rapazes na biblioteca de CROSS PATCH, cada vez mais alegres sob a influência do Mumm extra-seco colocado furtivamente em seis baldes de gelo junto as estantes.
PRIMEIRO RAPAZ: Deus meu! Creiam-me: no meu próximo livro farei uma cena de casamento que os porá a nocaute!
SEGUNDO RAPAZ: Conheci uma debutante no outro dia que disse achar seu livro poderoso. Via de regra as mocinhas chegam as lágrimas diante de cenas brutais.
TERCEIRO RAPAZ: Onde esta Anthony?
QUARTO RAPAZ: Andando para lá e para cá, falando sozinho.
SEGUNDO RAPAZ: Meu Deus! Você viu o padre? Que dentes esquisitos.
QUINTO RAPAZ: Acho que são naturais. É gozado gente com dentes de ouro.
SEXTO RAPAZ: Eles dizem adorá-los. Meu dentista me contou que uma vez teve uma mulher que insistiu em pôr uma capa de ouro em dois de seus dentes. Sem motivo nenhum. Estavam sadios como sempre.
QUARTO RAPAZ: Ouvi dizer que você publicou um livro, Dicky. Parabéns!
DICK: (Formalmente) Obrigado.
QUARTO RAPAZ: (Inocentemente) É sobre o quê? Histórias da faculdade?
DICK: (Mais cerimoniosamente) Não. Não é de contos sobre a faculdade.
QUARTO RAPAZ: Que pena! Há anos que não sai um bom livro sobre Harvard.
DICK: (Meio irritado) Por que você não preenche a falta?
TERCEIRO RAPAZ: Acho que vi um bando de convidados chegando na entrada em um Packard, bem agora.
SEXTO RAPAZ: Talvez eu abra mais umas duas garrafas por causa disso.
TERCEIRO RAPAZ: Levei o susto de minha vida quando ouvi dizer que o velho ia permitir um casamento regado a álcool. É um inimigo jurado da bebida, sabe.
QUARTO RAPAZ: (Estalando os dedos excitado) Pelo amor de Deus! Eu sabia que tinha esquecido algo. Achei que estava no meu colete.
DICK: Estava?
QUARTO RAPAZ: Pelo amor de Deus! Pelo amor de Deus!
SEXTO RAPAZ: Escuta! Escuta! Qual a tragédia?
SEGUNDO RAPAZ: O que você esqueceu? O caminho para casa?
DICK: (Maliciosamente) Ele esqueceu o enredo de seu livro de contos sobre Harvard.
QUARTO RAPAZ: Não senhor, esqueci o presente, poxa! Esqueci de comprar um presente para o velho Anthony. Fiquei adiando, adiando e, poxa, me esqueci! O que vão pensar?
SEXTO RAPAZ: (De modo gaiato) É provável que seja isso que esteja atrasando o casamento.
(O QUARTO RAPAZ olha nervoso para o relógio. Risos.)
QUARTO RAPAZ: Nossa! Que asno que eu sou!
SEGUNDO RAPAZ: O que vocês acham da dama de honra que acha que é Nora Baynes? Não parava de dizer que este era um casamento tipo ragtime. O nome dela e Haines ou Hampton.
DICK: (Instigando depressa sua imaginação) Você quer dizer Kane, Muriel Kane. Ela é uma dívida de gratidão, acho. Salvou uma vez Gloria de morrer afogada, ou algo assim.
SEGUNDO RAPAZ: Achei que ela nunca fosse parar aquele eterno balanço, parecia estar nadando. Pode encher meu copo? O velho e eu tivemos uma longa conversa sobre o tempo, agora mesmo.
MAURY: Quem? O velho Adam?
SEGUNDO RAPAZ: Não, o pai da noiva. Ele deve trabalhar numa agência de meteorologia.
DICK: É meu tio, Otis.
OTIS: Claro, é uma profissão decente. (Risos).
SEXTO RAPAZ: A noiva é sua prima, não é?
DICK: Sim, Cable, é sim.
CABLE: Certamente uma beldade. Não como você, Dicky. Aposto que ela dá um jeito no velho Anthony.
MAURY: Por que todos os noivos viram "velhos"? Acho que o casamento e um equívoco juvenil.
DICK: Maury e seu cinismo profissional.
MAURY: Qual o problema, seu trapaceiro intelectual?
QUINTO RAPAZ: Veja só a batalha dos intelectuais, Otis. Recolha os pedaços que sobrarem.
DICK: Você é que é trapaceiro! Você não sabe de nada.
MAURY: Você é que não sabe de nada.
DICK: Me pergunte qualquer coisa. Sobre qualquer ramo do conhecimento.
MAURY: Está bem. Qual o principal axioma da biologia?
DICK Você mesmo não sabe.
MAURY Não disfarce.
DICK: Bem, a seleção natural?
MAURY: Errado.
DICK: Desisto.
MAURY: A ontogenia recapitula a filogenia.
QUINTO RAPAZ: En garde!
MAURY: Deixa eu te fazer outra pergunta. Qual a influência dos camundongos na colheita de trevos? (Risos).
QUARTO RAPAZ: Qual a influência dos ratos sobre os dez mandamentos?
MAURY: Cala a boca, cabeça oca. Existe uma ligação.
DICK: Qual, então?
MAURY: (Fazendo uma pausa momentânea no meio de um crescente embaraço) Bem, deixe eu ver. Parece que esqueci o que é, exatamente. Algo sobre as abelhas comerem os trevos.
QUARTO RAPAZ: E os trevos comerem os camundongos! Há! Há!
MAURY: (Franzindo a testa) Deixe-me pensar um minuto.
DICK: (Endireitando-se de repente na poltrona) Escutem! (Uma onda de vozes espoca no aposento vizinho. Os seis rapazes se levantam, ajeitando suas gravatas.)
DICK:(Pesadamente) É melhor nos juntarmos ao pelotão de fuzilamento. Vão tirar as fotos, acho. Não, será depois.
OTIS: Cable, você fica com a noiva ragtime.
QUARTO RAPAZ: Eu bem que gostaria de ter mandado o presente.
MAURY: Se você me der mais um minuto, pensarei naquele negocio dos camundongos.
OTIS: Fui padrinho no mês passado do velho Charlie McIntyre e...
(Eles se encaminham devagar para a porta, enquanto a conversa vira uma algazarra e o ensaio para a marcha jorra, como gemidos devotos, do órgão de ADAM PATCH.)

ANTHONY

Havia quinhentos olhos verrumando a parte de trás de seu fraque e o sol brilhando nos dentes grotescamente burgueses do sacerdote. Ele teve dificuldade em sofrear uma risada. Gloria dizia algo em tom alto, com orgulho, e ele tentou pensar que o negócio era irrevogável, que cada segundo contava, que sua vida estava sendo cindida em duas etapas e que a face do mundo se transformava diante dele. Procurou recapitular a sensação extasiada de dez semanas atrás. Todas essas emoções lhe escapavam, ele nem sequer sentiu o nervosismo físico daquela mesma manhã - era tudo uma gigantesca ressaca. E aqueles dentes de ouro! Ele ficou imaginando se o ministro era casado, imaginando perversamente se um clérigo poderia oficiar a cerimônia de seu próprio casamento...
Mas ao abraçar Gloria sentiu uma forte reação. O sangue corria agora nas suas veias. Uma satisfação lânguida e prazerosa assentou, como um fardo, sobre ele, trazendo responsabilidade e posse. Estava casado.

GLORIA

Eram tantas emoções, tão mescladas que nenhuma delas podia ser separada das demais! Ela seria capaz de chorar por causa de sua mãe que chorava discretamente ali, a três metros, e pela beleza da luz do sol de junho que jorrava pelas janelas. Ela extrapolara toda percepção consciente. Apenas a sensação, colorida por um entusiasmo excessivo e delirante, de que agora a coisa de suprema importância ocorria - e uma crença feroz e apaixonada, que ardia nela como uma prece, de que dentro de um instante ela estaria para sempre segura e salva.
Tarde da noite eles chegaram a Santa Barbara, onde o recepcionista noturno do Hotel Lafcadio se recusou a admiti-los, sob pretexto de não serem casados.
O funcionário achou Gloria bonita Não. achou que alguém, com a beleza de Gloria, podia ser virtuosa.

"COM AMORE"

Os primeiros seis meses - a viagem ao Oeste, o percurso ocioso ao longo do litoral californiano e a casa cinzenta, perto de Greenwich, onde moraram até o final do outono, quando a paisagem se tornou melancólica - esses dias, esses lugares, foram cenários das horas de enlevo. O idílio extático de seu noivado deu logo lugar ao romance intenso de um relacionamento mais apaixonado. O idílio extático abandonou-os, fugiu para outros amantes, um dia olharam em volta e perceberam que ele se fora; como, não sabiam. Se algum deles perdesse o outro naqueles dias de idílio, o amor perdido haveria de ser sempre, para quem o perdera, o vago desejo insatisfeito nos bastidores da vida. Mas a magia precisa passar depressa, e os amantes ficam.
O idílio passou, levando consigo sua usurpação da juventude. Chegou o dia em que Gloria descobriu que não achava mais os outros homens chatos, chegou o dia em que Anthony descobriu que conseguia ficar até tarde da noite conversando com Dick sobre aquelas tremendas abstrações que já haviam preenchido seu mundo. Mas, percebendo que eles haviam usufruído a melhor parte do amor,
agarravam-se ao que restara. O amor se prolongava
- por meio de longas conversas noite adentro, naquelas horas descarnadas quando a mente se despe e se aguça e o material emprestado dos sonhos se torna o pleno recheio da vida, por meio de uma profunda e íntima delicadeza que cultivavam um com o outro, por rirem juntos das mesas coisas absurdas e pensarem nas mesmas coisas nobres e tristes.
Foi, sobretudo, um tempo de descobertas. As coisas que descobriram um no outro eram tão diversas, tão misturadas e, acima de tudo, tão adoçadas pelo amor que, na época, não pareciam ser tanto descobertas quanto fenômenos isolados - a serem aceitos e esquecidos. Anthony descobriu que vivia com uma garota afligida por uma tremenda tensão nervosa e egoísta como ela só. Gloria descobriu, dentro de um mês, que seu marido era um rematado covarde diante de qualquer um dos milhões de fantasmas criados pela sua imaginação. Era uma percepção intermitente, porque essa covardia se realçava, tornava-se quase obscenamente evidente, em seguida se apagava e sumia, como se fosse apenas uma criação de sua cabeça. Suas reações a ela não eram típicas de seu sexo - não lhe despertava repugnância nem uma sensação maternal prematura. Sendo ela mesma quase inteiramente desprovida de medo físico,
era-lhe impossível compreender, e por isso valorizava o que parecia ser a característica que se salvava do medo dele, isto é embora covarde diante de qualquer susto e qualquer tensão - quando sua imaginação tinha a oportunidade de funcionar - ele possuía, no entanto, uma audácia vistosa que a fazia, nas suas breves manifestações, quase
admira-lo, e um orgulho que em geral o fazia se controlar quando se sentia observado.
Esse traço manifestou-se primeiro em uma dezena de incidentes que não passaram muito de nervosismo
- seu aviso a um motorista de táxi para não dirigir depressa, em Chicago; sua recusa em levá-la a um determinado café de ambiente pesado que ela tanto quisera visitar; incidentes que, é claro, permitiam a interpretação comum - era nela que ele pensava; entretanto, seu peso cumulativo a incomodava. Mas algo que acontecera em um hotel de San Francisco, uma semana depois de casados, emprestou a esse assunto um caráter de certeza.
Foi depois de meia-noite, quando estava um breu em seu quarto. Gloria cochilava e a respiração regular de Anthony, a seu lado, a fazia supor que ele dormia, quando, de repente, ela percebeu que ele se erguera sobre um cotovelo e fitava a janela.
- O que foi, querido? - murmurou ela.
- Nada. - Ele se deixou cair no travesseiro, virando na direção dela. - Nada, minha querida mulher.
- Não diga "mulher". Eu sou sua amante. Mulher é uma palavra tão feia. Sua "amante fixa" é tão mais concreto e desejável... Venha para meus braços
- acrescentou ela, em um acesso de ternura -, eu durmo tão bem, tão bem em seus braços.
Ir para os braços de Gloria tinha um significado bastante preciso. Exigia que ele enfiasse um braço sob o ombro dela, fechasse os dois braços à sua volta, e se dispusesse a ficar tanto quanto possível como uma espécie de berço trilateral, à disposição do conforto voluptuoso dela. Anthony, inquieto, com braços que formigavam depois de meia hora nessa posição, esperava que ela dormisse para virá-la delicadamente até seu lado da cama - em seguida, entregue aos próprios recursos, ela se enrodilhava nos seus costumeiros nós.
Gloria, depois de obter um consolo sentimental, recolheu-se a seu cochilo. Cinco minutos se passaram no relógio de viagem de Bloeckman; o silêncio envolvia todo o quarto, se estendendo ao mobiliário impessoal e estranho e ao teto meio sufocante que se fundia imperceptivelmente com as paredes invisíveis, de ambos os lados. Em seguida houve uma súbita sacudida e vibração na janela, bem nítida e alta no ar preso e silencioso.
De um pulo Anthony saiu da cama e se pôs ao lado da janela, tenso.
- Quem está aí? - gritou ele com uma voz terrível.
Gloria ficou extremamente imóvel, bem acordada agora, mais concentrada na figura rígida e ofegante cuja voz, vinda do lado da cama, penetrara naquela escuridão assombrada, do que no tremor da janela.
O ruído parou; o quarto continuava tão silencioso quanto antes - em seguida lá estava Anthony, despejando palavras ao telefone.
- Alguém acabou de forçar a janela do quarto!...
- Tem alguém na janela! - sua voz era agora enfática, ligeiramente apavorada.
- Está bem! Depressa! - Ele repôs o fone no gancho e continuou imóvel.
Houve uma movimentação e agitação na porta, em seguida bateram - Anthony foi abri-la para um recepcionista noturno excitado, com três mensageiros agrupados atrás dele, de olhos arregalados. Entre o indicador e o polegar o recepcionista segurava uma caneta aberta, que brandia como uma arma; um dos mensageiros pegara um catálogo telefônico, que olhava encabulado. Ao mesmo tempo juntou-se ao grupo o detetive da casa, chamado às pressas, e todos entraram no quarto de uma só vez.
As luzes se acenderam com um clique. Puxando parte do lençol, Gloria se escondeu com um mergulho, fechando os olhos para expulsar o horror dessa visita inesperada. Não havia vestígio de qualquer idéia na sua sensibilidade assaltada, salvo que seu Anthony cometera um engano atroz.
O recepcionista noturno falava sobre a janela com um tom meio de empregado, meio de professor a censurar um aluno.
- Não tem ninguém aí fora - declarou com firmeza; - meu Deus, ninguém poderia estar. Há uma queda de mais de quinze metros até a rua. Foi o vento que o senhor ouviu, mexendo na veneziana.
- Ah.
Depois ela ficou com pena dele. Queria só consolá-lo e trazê-lo com carinho de volta a seus braços, dizer-lhes que fossem embora porque era odioso o fato que a presença deles sinalizava. E, no entanto, não conseguiu levantar a cabeça de vergonha. Ouviu uma frase desconexa, desculpas, clichês do funcionário e uma risadinha silenciosa que um mensageiro não reprimiu.
- Andei nervoso como o diabo a tarde toda
- dizia Anthony; - eu não sei como, aquele barulho me abalou; eu estava só meio acordado.
- Certo, eu compreendo - disse o recepcionista noturno, com um tato consolador -; também andei assim.
A porta se fechou, as luzes foram apagadas; Anthony atravessou o chão em silêncio e se enfiou na cama. Gloria, fingindo estar morta de sono, deu um pequeno suspiro meio baixo e se aninhou entre os braços dele.
- O que foi, querido?
- Nada - respondeu ele, com a voz ainda trêmula. - Pensei que houvesse alguém junto à janela, por isso olhei para fora e não vi ninguém, mas como o barulho continuava, telefonei para a recepção. Desculpe se te incomodei, mas estou terrivelmente nervoso esta noite.
Flagrando a mentira, ela sentiu um tremor interno - ele não fora até a janela, nem perto da janela. Ficara junto à cama e então mandara sua mensagem apavorada.
- Ah - disse ela, e em seguida: - Estou com tanto sono.
Permaneceram lado a lado, acordados, durante uma hora. Gloria com os olhos fechados com tanta força que via luas azuis que se formavam e giravam, contra um fundo cor de malva profunda, Anthony fitando desconcertado a escuridão em cima dele.
Depois de muitas semanas aquilo veio aos poucos à luz, para ser objeto de risos e piadas. Criaram uma tradição de elaborar aquilo - toda vez que Anthony tinha um ataque daquele irresistível pavor noturno, ela o abraçava e cantava em voz baixa para ele, com uma suave melodia.
- Eu protejo meu Anthony. Ninguém vai fazer mal a meu Anthony!
Ele ria como se fosse uma brincadeira que faziam para se divertirem mutuamente, mas para Gloria não era apenas uma brincadeira. Era, de início, uma séria decepção; mais tarde, mais uma das situações em que ela precisava controlar seu gênio.
Administrar o gênio de Gloria, caso fosse ele provocado pela falta de água quente para o banho ou por um desentendimento com seu marido, tornou-se quase o dever principal de Anthony, ao longo de seu dia. Precisava ser feito exatamente de certo jeito
- por um determinado silêncio, pela dose certa de pressão, cedendo até determinado ponto, usando até certo ponto de força. Eram seus ataques de raiva, acompanhados de certas maldades, que mais revelavam seu extremo egoísmo. O fato de ser corajosa, de ser "mimada", de ter uma notável independência de opinião e, finalmente, de ter a consciência arrogante de jamais ter visto uma garota tão bonita quanto ela mesma, fizera Gloria se transformar em uma nietzschiana consistente e praticante. Isso, evidentemente, nuançado por sentimentos profundos.
Havia, por exemplo, seu estômago. Estava acostumada a determinados pratos e absolutamente convicta de que não conseguiria comer qualquer outra coisa. Precisava de limonada e de um sanduíche de tomate no final da manhã, em seguida um almoço leve com um tomate recheado. Ela não apenas exigia uma dieta selecionada de uma dúzia de pratos como também essa comida precisava ser preparada de determinada maneira. Uma das meias-horas mais aborrecidas daquela primeira quinzena aconteceu em Los Angeles quando um garçom infeliz lhe trouxe um tomate recheado com salada de frango em vez de aipo.
- A gente serve sempre assim, madame - disse ele em voz trêmula, diante dos olhos cinzentos que o fitavam com raiva.
Gloria não deu nenhuma resposta, mas depois que o garçom se afastou discretamente, bateu com ambos os punhos na mesa até os pratos e os talheres chocalharem.
- Pobre Gloria! - riu Anthony imprudentemente
- Jamais consegue aquilo que pede, não é?
- Eu não consigo comer qualquer coisa! - se encrespou ela.
- Vou chamar o garçom de novo.
- Eu não quero! Ele não sabe de nada, o imbecil!
- Bem, não é culpa do hotel. Ou devolva-o, esqueça, ou leve na esportiva e coma.
- Cale a boca! - disse ela sucintamente.
- Por que descontar em mim?
- Ah, eu não estou descontando - lamentou-se ela -, apenas não consigo comer isso.
Anthony acalmou-se, impotente.
- Vamos a outro lugar - sugeriu.
- Eu não quero ir a outro lugar. Estou cansada de ficar para lá e para cá, indo a dezenas de cafés sem conseguir nada para comer.
- Quando é que nós fomos a uma dezena de cafés?
- Seria necessário, nesta cidade - insistiu Gloria com um sofisma pronto.
Anthony, espantado, tentou outra abordagem.
- Por que não tenta comer? Não pode ser tão ruim quanto você pensa.
- Simplesmente-porque-eu-não-gosto-de-galinha!
Ela pegou seu garfo e começou a espetar o tomate com desprezo, e Anthony ficou na expectativa de ela jogar o recheio em todas as direções. Ele tinha certeza que ela estava com tanta raiva como jamais tivera - em um instante, ele detectara uma centelha de raiva dirigida tanto a ele quanto a todo mundo
- e Gloria enfurecida era inabordável.
Então, surpreendentemente, ele viu que ela levantara o garfo de modo hesitante até sua boca e provara a salada de frango. Sua testa não se desfranzira e ele fitou-a com ansiedade, sem fazer nenhum comentário, mal ousando respirar. Ela provou outra garfada - dentro de mais um instante, comia. Anthony teve dificuldade em segurar uma risada; quando afinal falou, suas palavras não tinham a mais remota ligação com salada de frango.
Esse incidente, com variações, se desenvolveu como uma fuga melancólica durante o primeiro ano do casamento; Anthony ficava sempre pasmo, irritado, deprimido. Mas outro duro embate de temperamentos, uma questão de sacos de lavanderia, aborreceu-o ainda mais, já que acabou em uma derrota decisiva para ele.
Uma tarde em Coronado, onde tiveram a maior estadia de toda a viagem, mais de três semanas, Gloria estava se arrumando elegantemente para o chá. Anthony, que estivera no andar de baixo ouvindo as últimas notícias da guerra na Europa, entrou no quarto, beijou sua nuca empoada e foi até a cômoda. Depois de muito puxar e empurrar gavetas, evidentemente sem êxito, ele se voltou para a Obra Prima Inacabada.
- Tem lenços, Gloria? - perguntou.
Gloria sacudiu sua cabeça dourada.
- Nenhum. Estou usando um dos seus.
- O último, eu deduzo. - E ele deu uma risadinha seca.
- É? - ela delineou um contorno enfático, embora delicado, em seus lábios.
- A roupa ainda não voltou da lavanderia?
- Não sei.
Anthony hesitou; em seguida, com um súbito discernimento, abriu a porta do armário. Sua suspeita se confirmou. Do gancho pendia a sacola azul fornecida pelo hotel. Estava cheia de suas roupas - ele mesmo as pusera ali. O piso embaixo, apinhado de roupas elegantes - lingerie, meias, vestidos, robes e pijamas - a maior parte mal fora usada, mas tudo na categoria de roupas sujas de Gloria.
Ele ficou ali segurando a porta do armário aberta.
- Ora, Gloria!
- O quê?
A linha do lábio estava sendo apagada e refeita de acordo com alguma perspectiva misteriosa; nenhum dedo tremia enquanto ela manipulava o lápis, nenhum olhar incerto dirigido a ele. Era um triunfo de concentração.
- Você não mandou a roupa para a lavanderia?
- Está aí?
- Com certeza.
- Bem, então acho que não mandei.
- Gloria - começou Anthony, sentando na cama e tentando atrair seu olhar no espelho -, você é uma mulher e tanto! Eu mandei todas as vezes desde que partimos de Nova York, e faz mais de uma semana que você prometeu que mandaria, para variar. Bastava enfiar suas roupas usadas naquela sacola e tocar a campainha para chamar a arrumadeira.
- Ah, por que tanta confusão a respeito de roupa usada? - exclamou Gloria petulantemente. - Vou me encarregar disso.
- Não estou fazendo confusão. Não me importo de dividir a amolação com você, mas quando os lenços acabam já é mais do que hora de tomar uma iniciativa.
Anthony achou que estava sendo extraordinariamente lógico. Mas Gloria, sem se deixar impressionar, guardou seus cosméticos e lhe ofereceu suas costas.
- Coloque o gancho para mim - pediu ela;
- Anthony, querido, eu me esqueci completamente. Tinha intenção de mandar, sinceramente, e o farei hoje. Não fique zangado com sua namorada.
O que poderia Anthony fazer senão sentá-la nos seus joelhos e, com um beijo, borrar um pouco do batom em seus lábios?
- Eu não me importo - murmurou ela com um sorriso radiante e magnânimo. - Você pode borrar todo meu batom, quando quiser.
Desceram para o chá. Compraram uns lenços em um bazar ali perto. Tudo esquecido.
Mas dois dias depois Anthony olhou no armário e viu que a sacola ainda pendia, flácida, de seu gancho, e que a pilha alegre e vistosa no piso aumentara espantosamente de altura.
- Gloria! - gritou ele.
- Ah... - a voz dela estava aborrecida de verdade. Em desespero, Anthony foi até o telefone e chamou a arrumadeira.
- Parece que você espera que eu seja uma espécie de camareiro francês para você.
Gloria riu tão contagiosamente que Anthony teve a falta de juízo de sorrir. Sujeito infeliz! De alguma maneira intangível, seu sorriso tornou-a senhora da situação - com ar de vítima injustiçada, ela foi até o armário e começou a enfiar suas roupas com força na sacola. Anthony olhava-a, envergonhado de si.
- Pronto! - disse ela, insinuando que seus dedos estavam gastos até os ossos por causa de um capataz desumano.
Mesmo assim, achava que ele lhe dera uma lição prática e que o assunto estava encerrado; mas, pelo contrário, mal começara. Pilha de roupa suja se seguiu a pilha de roupa suja - a intervalos longos; falta de lenços se seguiu a falta de lenços - a intervalos curtos; sem falar na falta de meias, camisas, tudo. E Anthony descobriu, afinal, que ou ele mesmo precisava mandar ou passar pela experiência cada vez mais desagradável de uma batalha verbal com Gloria.

GLORIA E o GENERAL LEE

A caminho do Leste, eles pararam dois dias em Washington, passeando com alguma hostilidade pelo seu ambiente de luz crua e repelente, de espaço sem liberdade, de pompa sem esplendor - tinha-se a impressão de uma cidade pálida, descorada, pouco à vontade. No segundo dia, fizeram uma visita mal aconselhada à antiga casa do general Lee, em Arlington.
O ônibus que os levou estava cheio de gente humilde e acalorada, e Anthony, que conhecia bem Gloria, sentiu a tempestade no ar. Ela desabou no zoológico, onde o grupo parou por dez minutos. O zoológico, ao que parecia, fedia a macacos. Anthony riu; Gloria invocou todas as pragas divinas contra os macacos, incluindo, na sua má vontade, todos os passageiros do ônibus e suas crias suadas que haviam corrido para a macacada.
Finalmente o ônibus se pôs em marcha para Arlington. Lá se encontrou com outros ônibus e, de imediato, um enxame de mulheres e crianças passou a deixar um rastro de cascas de amendoim pelos salões do general Lee para, então, se acotovelar no quarto onde ele se casou. Na parede desse quarto uma placa atraente anunciava em letras vermelhas garrafais: "Banheiro de Senhoras". Diante desse golpe de misericórdia, Gloria não agüentou mais.
- Acho totalmente horrível - disse ela furiosa
- essa idéia de deixar essa gente vir aqui! E de encorajá-la fazendo dessas casas locais de espetáculo.
- Olha - contestou Anthony -, se elas não pudessem ter essa manutenção, cairiam em pedaços.
- E daí? - exclamou ela enquanto buscavam o pórtico de largas pilastras. - Você acha que resta aqui um arzinho qualquer de 1860? Isto virou uma coisa de 1914.
- Você não gosta de conservar as coisas antigas?
- Só que não dá, Anthony. As coisas bonitas crescem até determinado tamanho e depois decaem e murcham, exalando recordações à medida que decaem. E do mesmo modo que qualquer período decai na nossa cabeça, as coisas dessa época deviam passar também, conservando-se, desse modo, por algum tempo nos corações que, como o meu, são sensíveis a elas. Aquele cemitério em Tarrytown, por exemplo. Os idiotas que dão dinheiro para conservar as coisas também estragaram aquilo. Sleepy Hollow já era: Washington Irving morreu e o valor de seus livros apodrece para nós a cada ano que passa - então deixe que o cemitério apodreça também, como deveria, como tudo deveria fazer. Tentar conservar um século mantendo intactas suas relíquias é como manter uma pessoa viva por meio de estimulantes.
- Então você acha que do mesmo modo que um tempo acaba, as casas que pertencem a ele também deveriam acabar?
- É claro! Será que você daria mais valor à sua carta de Keats se a assinatura fosse tratada para durar mais tempo? É só porque eu amo o passado que quero ver esta casa debruçada sobre o fascínio e a beleza de sua juventude, e quero que suas escadas ranjam como rangiam sob os passos das mulheres de saias balão e dos homens de botas e esporas. Mas fizeram dela uma velha pintada e recauchutada de sessenta anos. Ela não tem direito de parecer tão perfeita. Podiam venerar um pouquinho Lee deixando despencar um tijolo de vez em quando. Quantos dessa gente aí, desses animais - e ela fez um gesto circular com a mão -, conseguem aproveitar alguma coisa disso, apesar de todas as histórias, guias e restaurações existentes? Quantos, que acham que apreciar é, na melhor das hipóteses, falar baixinho e andar na pontinha dos pés, viriam aqui se desse o menor trabalho? Quero que ela cheire a magnólias e não a amendoim e quero que meus sapatos esmaguem o mesmo cascalho que foi esmagado pelas botas de Lee. Não há beleza sem melancolia, e não existe melancolia sem a sensação que os homens, os nomes, os livros, as casas passam - viram pó -, mortais que são.
Um menininho surgiu ao lado deles e, brandindo um punhado de cascas de bananas, jogou-as destemidamente na direção do Potomac.

SENTIMENTO

Simultaneamente à queda de Liège, Anthony e Gloria chegaram a Nova York. Em retrospecto, as seis semanas pareciam milagrosamente felizes. Descobriram que, como a maioria dos casais, eles compartilhavam muitas manias, curiosidades e idiossincrasias mentais; eram essencialmente boa companhia um para o outro.
Mas fora uma luta manter muitas conversas no nível do debate. Este era fatal para o temperamento de Gloria. Ela convivera toda sua vida com gente intelectualmente inferior ou com homens que, diante da intimidação quase agressiva de sua beleza, não ousavam contradizê-la; era natural então que ela se irritasse quando Anthony abandonava a posição de aceitar suas afirmativas como decisão infalível e definitiva.
Ele deixou de perceber, de início, que isso era resultado, em parte, de sua educação "feminina", e de outra parte, de sua beleza, e tendia a deixá-la, junto com todo seu gênero, curiosa e positivamente limitada. Ele ficava fulo ao perceber que ela não tinha sentimento de justiça. Mas descobriu que quando um assunto lhe interessava, seu cérebro demorava mais a se cansar que o dele. O que mais lhe fazia falta na mentalidade dela era a teleologia pedante - a sensação de ordem e precisão, a sensação da vida como um pedaço de colcha de retalhos misteriosamente cheia de correlações, mas ele compreendeu, depois de um tempo, que essa qualidade nela teria sido um contra-senso.
Das coisas que eles tinham em comum, a maior de todas era a atração quase misteriosa que um exercia sobre o coração do outro. No dia em que partiram do hotel em Coronado, ela se sentou em uma das camas, durante a arrumação das malas, e começou a chorar com amargura.
- Querida! - os braços dele a cingiam; ele puxou a cabeça dela contra seu ombro. - O que é, minha Gloria? Diga.
- Nós vamos embora - soluçava ela. - Ah, Anthony, é praticamente o primeiro lugar em que moramos juntos. Nossas duas caminhas aqui, lado a lado, estarão sempre esperando por nós, e nós jamais voltaremos para elas.
Ela partia o coração dele, como sempre conseguia fazer. Dominou-o a emoção, que transbordou para seus olhos.
- Ora, Gloria, a gente vai para outro quarto. E outras duas caminhas. Vamos ficar juntos a vida inteira.
As palavras jorravam dela em tom de voz grave e roufenho.
- Mas jamais será... igual a nossas camas... jamais. Em toda mudança que a gente faz algo se perde, algo é abandonado. Não se pode nunca repetir exatamente nada, e eu fui tão sua, aqui...
Ele apertou-a, comovido, contra si, percebendo além de qualquer crítica da emoção dela, uma sábia apreensão do momento, ainda que fosse simplesmente para ela ceder ao seu impulso de chorar - a ociosa Gloria, cultora dos próprios sonhos, destilando melancolia das coisas memoráveis da juventude e da vida.
Mais para o final da tarde, quando ele voltou da estação com os bilhetes, encontrou-a dormindo em uma das camas, com o braço em volta de um objeto preto que ele de início não conseguiu identificar. Ao se aproximar, viu que era um de seus sapatos, não dos mais novos, nem limpos, que o rosto dela, vincado de lágrimas, apertava, e ele compreendeu sua antiga e nobilíssima mensagem. Era quase um êxtase acordá-la e vê-la sorrindo para ele, tímida, mas bastante cônscia da delicadeza de sua imaginação.
Sem nenhuma avaliação quanto ao valor ou inutilidade dessas duas coisas, julgou Anthony que elas jaziam bem perto da essência do amor.

A CASA CINZENTA

É na casa dos vinte que o ímpeto próprio da vida começa a relaxar, e só uma alma simples dá valor e importância a certas coisas aos trinta, tal como fazia dez anos atrás. Aos trinta um tocador de realejo é um sujeito mais ou menos já comido pelas traças que toca uma espécie de órgão - e outrora era um tocador de realejo! O estigma inconfundível da humanidade contamina todas aquelas coisas belas e genéricas que apenas a juventude consegue apreender no seu esplendor impessoal. Um baile magnífico, alegrado por leves risadas românticas, acaba esgarçando sua seda e seu cetim até deixar entrever a pura ossatura de algo feito pela mão do homem
- ah, essa eterna mão! -, uma peça, a mais trágica e divina, torna-se uma mera sucessão de falas escritas a duras penas, durante as horas frias e úmidas, pelo eterno plagiador, e representadas por homens sujeitos a cãibras, medo e sentimentos másculos.
E, no caso de Gloria e Anthony, aquele primeiro ano de casamento e a casa cinzenta os pegaram naquela etapa em que o tocador de realejo sofre sua inevitável metamorfose. Ela tinha 23; ele 26.
A casa cinzenta fora, de início, objeto de uma intenção puramente bucólica. Eles moraram impacientemente no apartamento de Anthony durante a primeira quinzena depois de sua volta da Califórnia, em um ambiente abafado de malas abertas, visitas demais e as eternas sacolas de lavanderia. Debatiam com seus amigos o problema estupendo de seu futuro. Dick e Maury sentavam-se junto com eles concordando solenes, quase pensativos, enquanto Anthony desfiava sua lista daquilo que eles "deveriam" fazer, e onde "deveriam" morar.
- Eu gostaria de levar Gloria para o exterior
- reclamava ele -, não fosse por essa porcaria de guerra, e, além disso, gostaria de ter uma espécie de casa de campo, em algum canto perto de Nova York, claro, onde eu pudesse escrever ou fazer seja lá o que for que eu resolva fazer.
Gloria riu.
- Ele não é uma gracinha? - perguntou ela a Maury. - "Seja lá o que for que ele resolva fazer!" Mas que farei eu se ele for trabalhar? Maury, você me leva para passear se Anthony for trabalhar?
- De qualquer maneira, não vou trabalhar já
- disse rapidamente Anthony.
Era vagamente aceito entre eles que em um dia nebuloso qualquer ele haveria de ingressar em uma espécie de serviço diplomático idealizado, onde príncipes e primeiro ministros o invejariam por causa de sua bonita mulher.
- Bem - disse Gloria, meio desvalida -, eu certamente não sei. A gente fala e fala e nunca chega a lugar algum, e perguntamos a nossos amigos e eles simplesmente respondem da maneira como queremos que façam. Eu gostaria que alguém tomasse conta de nós.
- Por que vocês não vão para... para Greenwich, ou para algum lugar assim? - sugeriu Richard Caramel.
- Eu bem que gostaria - disse Gloria se animando. Você acha que a gente conseguiria arranjar uma casa lá?
Dick deu de ombros e Maury riu.
- Vocês dois me divertem - disse ele. - Nunca vi gente menos prática! Tão logo se faz menção de um lugar, vocês esperam que a gente tire do bolso uma pilha de fotos mostrando os diversos estilos arquitetônicos dos bangalôs disponíveis.
- Isso é exatamente o que eu não quero
- choramingou Gloria -, um bangalô quente e abafado, com uma porção de bebês no quarto ao lado e o pai deles cortando a grama em mangas de camisa...
- Por amor de Deus, Gloria - interrompeu Maury
-, ninguém quer te trancar em uma casa de campo. Quem, pelo amor de Deus, introduziu bangalôs na conversa? Mas vocês jamais vão conseguir uma casa se não saírem por aí procurando.
- Saírem para onde? Você disse "saírem por aí procurando", mas onde?
Maury acenou com a mão, como se fosse uma pata, para o entorno do quarto.
- Aí, em qualquer lugar. Lá no campo. Existe uma porção de lugares.
- Obrigada.
- Olha aqui! - Richard Caramel entrou na conversa com uma expressão malandra nos seus olhos amarelos. - O problema com vocês dois é que estão desorganizados. Vocês conhecem alguma coisa do estado de Nova York? Cala a boca, Anthony, estou falando com Gloria.
- Bem - confessou ela afinal -, já fui a duas ou três festas em casas em Portchester e ao redor de Connecticut, mas é claro que isso não fica no estado de Nova York, não é? E Morristown também não
- terminou ela, com preguiçosa irrelevância.
Houve uma explosão de risos.
- Ah, Deus do céu! - gritou Dick -. "E Morristown também não!" Não, nem Santa Bárbara, Gloria. Agora, ouça. Para início de conversa, não adianta nem pensar em lugares como Newport, Southampton ou Tuxedo, a não ser que você tenha uma fortuna. Estão fora de cogitação.
Todos concordaram solenemente com isso.
- E eu pessoalmente detesto New Jersey. Mas tem, é claro, a parte superior de Nova York, acima de Tuxedo.
- Frio demais - disse sumariamente Gloria. - Já estive lá uma vez, de automóvel.
- Bem, parece que há uma porção de cidades como Rye, entre Nova York e Greenwhich, onde vocês poderiam comprar uma casinha cinza de...
Gloria agarrou triunfantemente essa frase. Pela primeira vez, desde a volta deles ao Leste, ela sabia o que queria.
- Sim, sim! - gritou ela. - Sim, é isso aí: uma casinha cinzenta com um pouco de branco em volta e uma porção de bordos vermelhos, tão marrons e dourados quanto um quadro sobre tema outonal em uma galeria. Onde poderemos achar uma dessas?
- Infelizmente perdi minha lista de casinhas cinzentas cercadas de bordos vermelhos, mas vou tentar achá-la. Enquanto isso, pegue um pedaço de papel e anote o nome de sete cidades viáveis. E todo dia desta semana você dá um pulo em uma dessas cidades.
- Ah, puxa! - protestou Gloria, tendo um colapso mental. - Por que você não faz isso para a gente? Detesto trens.
- Sim, então alugue um carro e... Gloria deu um bocejo.
- Estou cansada de discutir este assunto. Parece que a gente só consegue falar sobre onde devemos morar.
- Minha extraordinária mulher se cansou de pensar - comentou ironicamente Anthony. - Ela precisa de um sanduíche de tomate para estimular seus nervos exaustos. Vamos sair para tomar um chá.
O desfecho infeliz dessa conversa foi tomarem ao pé da letra o conselho de Dick, indo dois dias depois a Rye, onde andaram para lá e para cá com um corretor de imóveis irritado, como pessoas desorientadas e ingênuas. Mostraram-lhes casas de cem dólares por mês que confinavam com outras casas de cem dólares por mês; mostraram-lhes casas isoladas que eles invariavelmente detestavam, embora se submetessem debilmente ao desejo do corretor de que "olhassem a estufa - que estufa!" e às muitas sacudidas em portais e batidas nas paredes, com o óbvio propósito de mostrar que as casas não desabariam de imediato, a despeito da forte impressão do contrário. Olhavam através de janelas para ambientes mobiliados "comercialmente", com cadeiras que pareciam feitas de pranchas de madeira e sofás duríssimos, ou então "de modo caseiro", com o bricabraque melancólico de outros verões
- raquetes de tênis cruzadas, sofás-camas e estampas deprimentes de garotas americanas ideais. Viram, com um sentimento de culpa, algumas casas realmente bonitas, indiferentes, dignas, compostas - por trezentos ao mês. Despediram-se de Rye dizendo ao corretor muito obrigado, mesmo.
No trem apinhado de volta a Nova York o assento de trás estava ocupado por um latino com um tremendo bafo, cujas últimas refeições deviam ter sido inteiramente de alho. Chegaram ao apartamento, agradecidos, quase histéricos, e Gloria correu para tomar um banho quente no banheiro impecável. Quanto ao assunto da moradia futura, ambos ficaram incapacitados durante uma semana.
O problema foi finalmente resolvido por um lance inesperado, aventureiro. Anthony entrou correndo uma tarde na sala de estar praticamente irradiando "a idéia".
- Descobri - exclamava ele, como se tivesse acabado de achar um rato. - Vamos comprar um carro.
- Que legal! Mas já não temos problemas suficientes em nos manter?
- Me dê um segundo para explicar, é possível? A gente deixa nossas coisas com Dick e põe apenas duas malas no carro que compraremos; é preciso ter um no campo, de qualquer maneira, e simplesmente começamos a rodar em direção a New Haven. Olha só, à medida que ultrapassarmos a distância em que as pessoas possam vir de trem a Nova York, os aluguéis se tornarão mais baratos, e assim que acharmos uma casa que desejarmos, simplesmente ficamos ali.
Ao interpolar com freqüência e de maneira tranquilizadora a palavra "simplesmente", ele despertou um entusiasmo letárgico nela. Dando passadas violentas pela sala, ele simulava uma eficiência dinâmica e irresistível.
- Vamos comprar um carro amanhã.
A vida, a mancar atrás das botas de sete léguas da imaginação, assistiu à partida deles da cidade, uma semana depois, em um automóvel barato, porém novo em folha; viu-os passar pelo caótico e ininteligível Bronx, em seguida por uma região ampla e sombria que alternava partes ermas e melancólicas verde-azuis com subúrbios de uma tremenda e sórdida atividade. Deixaram Nova York às onze e já passara bastante de um beatífico e acalorado meio-dia quando atravessaram jovialmente Pelham.
- Não são cidades - disse Gloria com desprezo -, são apenas quarteirões urbanos jogados friamente em cima de áreas ermas. Imagino que todos os homens aqui tenham os bigodes manchados por beberem seu café depressa demais de manhã.
- E jogam besigue nos trens para Nova York.
- O que é besigue?
- Não seja tão meticulosa. Como vou saber? Mas eles têm cara de quem joga.
- Gostei. Parece algo em que você estala os dedos, ou alguma coisa assim... Deixe-me dirigir.
Anthony olhou para ela desconfiado.
- Você jura que dirige bem?
- Desde os quatorze anos.
Ele estacionou o carro cautelosamente ao lado da estrada e trocaram de lugares. Em seguida, arranhando terrivelmente as marchas, ela engatou a primeira, acompanhada de seu próprio riso que, para Anthony, pareceu algo terrível e do pior gosto possível.
- Aqui vamos nós! - gritou ela. - U-uup!
Suas cabeças deram uma chicotada para trás, como marionetes puxadas por um só fio, quando o carro deu um pulo para frente e fez um contorno sacolejante de um caminhão de leite, parado, cujo motorista ficou em pé no assento e berrou para eles. Na eterna tradição da estrada, Anthony respondeu com alguns epítetos que denegriam a profissão de leiteiro. Ele interrompeu seus comentários, contudo, virando-se para Gloria com a crescente convicção de ter cometido um grave erro ao abrir mão do controle, e de ser ela uma motorista de comportamento muito excêntrico e descuidado.
- Agora, lembre-se! - avisou-a com nervosismo
-, o sujeito disse para não passarmos de trinta por hora durante os primeiros oito mil quilômetros.
Ela balançou brevemente a cabeça; mas, na nítida intenção de cobrir essa quilometragem proibitiva no menor tempo possível, aumentou um pouco a velocidade. Um instante depois ele fez outra tentativa.
- Está vendo essa placa? Você quer que a gente seja preso?
- Ah, pelo amor de Deus - gritou exasperada Gloria -, você vive exagerando!
- Sim, eu não quero ser preso.
- Quem vai te prender? Você é insistente pra burro, exatamente como fez com meu xarope, na noite passada.
- Era para o seu próprio bem.
- Ah, até parece que casei com mamãe.
- Que coisa, me dizer isso!
Um policial em pé surgiu em uma curva, e passaram por ele depressa.
- Viu? - perguntou Anthony.
- Ah, você me deixa maluca! Ele não prendeu a gente, prendeu?
- Quando prender, já será tarde demais
- retrucou brilhantemente Anthony.
A resposta dela foi de desprezo, quase de alguém insultada.
- Ora, esta velharia não passa de sessenta por hora.
- Não é uma velharia.
- É, em espírito.
Naquela tarde o carro se juntou às bolsas de lavanderia e ao apetite de Gloria, como integrante do trio da discórdia. Ele avisou-a sobre um cruzamento ferroviário; indicou a aproximação de outros automóveis; finalmente insistiu em pegar o volante, e uma Gloria furiosa e insultada viajou em silêncio, a seu lado, entre as cidades de Larchmont e Rye.
Mas foi devido a esse seu silêncio furioso que a casa cinzenta se materializou de sua abstração, pois logo depois de Rye ele cedeu-lhe, novamente amuado, o volante. Implorou-lhe em silêncio e Gloria, instantaneamente animada, jurou ser mais cuidadosa. Mas devido ao fato de um bonde descortês ter teimado em continuar vindo nos seus trilhos, Gloria foi obrigada a mergulhar em uma rua transversal - e dali em diante, naquela tarde, nunca mais conseguiu voltar para a estrada. A rua na qual eles entraram por engano, pensando se tratar da estrada, perdeu esse aspecto enganoso uns oito quilômetros depois de Cos Cob. Seu macadame se transformou em cascalho, em seguida em terra - além do mais, estreitou-se e passou a ser margeada por bordos, através dos quais a luz do sol poente filtrava, criando infindáveis experiências gráficas com sombras sobre o capim alto.
- Agora nos perdemos - reclamou Anthony.
- Leia aquela placa!
- Marietta: oito quilômetros. O que é isso?
- Nunca ouvi falar, mas vamos em frente. Podemos dar a volta e provavelmente deve haver um retorno à estrada.
O caminho tornou-se enrugado por sulcos profundos e cheio de pedras traiçoeiras. Três casas de fazenda defrontaram-se momentaneamente com eles e passaram. Surgiu uma cidade, um amontoado de tetos insossos em volta de um campanário branco e alto.
Em seguida Gloria, ao hesitar entre duas entradas e optando tarde demais, atropelou um hidrante e arrancou violentamente a transmissão do carro.
Já era escuro quando o corretor de Marietta mostrou-lhes a casa cinzenta. Eles a descobriram logo a oeste da aldeia, onde ela descansava contra um céu que era uma capa azul morna, abotoada de pequeninas estrelas. A casa cinzenta já existia quando as mulheres que criavam gatos eram tidas como feiticeiras, quando Paul Revere fazia dentaduras em Boston antes de levantar os grandes comerciantes, quando nossos ancestrais desertavam Washington em grandes levas. Desde aqueles dias, a casa precisara ser reforçada em um dos cantos, seus cômodos foram consideravelmente redivididos e ela fora toda rebocada por dentro, ampliada através de uma cozinha e do acréscimo de uma varanda lateral - mas exceto pelo fato de algum bobo alegre ter telhado a nova cozinha com lata vermelha, ela permanecera colonial, a despeito de tudo.
- Como vocês conseguiram chegar a Marietta?
- perguntou o corretor, em um tom que era parente próximo da desconfiança. Ele mostrava-lhes quatro espaçosos quartos bem arejados.
- A gente enguiçou - explicou Gloria. - Eu atropelei um hidrante e tivemos de ser rebocados até a oficina e aí vimos a sua placa.
O sujeito balançou a cabeça, incapaz de acompanhar tamanha demonstração de espontaneidade. Havia algo sutilmente imoral em se fazer qualquer coisa sem vários meses de preparação.
Eles assinaram um contrato de aluguel naquela noite, e voltaram alegres no carro do corretor até a sonolenta e dilapidada pousada Marietta, que era decadente demais até para as ocasionais imoralidades e prazeres de um albergue de beira de estrada. Passaram metade da noite acordados, planejando as coisas que fariam ali. Anthony trabalharia em um ritmo alucinado na sua história, agradando assim seu avô descrente... Quando o carro fosse consertado eles explorariam a região e ingressariam no "clube realmente simpático" mais próximo, onde Gloria jogaria golfe ou "alguma coisa", enquanto Anthony escreveria. Essa, é claro, era idéia de Anthony
- Gloria tinha apenas certeza de querer ler e ser alimentada com sanduíches de tomate por alguma empregada angelical, ainda em uma zona recuada de sombra. Entre os parágrafos, Anthony viria beijá-la, deitada indolentemente na rede... A rede! Que multidão de novos sonhos afinados ao ritmo de sua imaginação, enquanto o vento mexia com ela e ondas de luz do sol raiavam as sombras de trigo em flor, ou a estrada poenta escurecia e mosqueava-se sob a chuva mansa de verão...
E os convidados - aqui tiveram uma longa discussão, ambos procurando ser extraordinariamente maduros e precavidos. Anthony alegou que precisavam ver gente em fins de semana alternados, "como uma espécie de mudança". Isso deu origem a uma conversa extremamente sentimental sobre o fato de Anthony não considerar Gloria variedade suficiente. Embora ele a ressegurasse que sim, ela insistia em duvidar dele. Por fim a conversa assumiu sua motononia de sempre: "E aí? Que faremos então?"
- Bem, arranjaremos um cachorro - sugeriu Anthony.
- Não quero. Quero um gatinho. - E ela entrou com riqueza de detalhes e grande entusiasmo na história, hábitos e gostos de um gato que já tivera.
Anthony achou que ele devia ter sido um tipo horrível, sem magnetismo pessoal nem lealdade de caráter.
Mais tarde dormiram, para acordar uma hora antes do amanhecer com a casa cinzenta a dançar na sua glória fantasmagórica diante de seus olhos pasmos.

A ALMA DE GLORIA

Durante aquele outono a casa cinzenta os acolheu com um calor sentimental que disfarçava sua velhice cínica. É verdade que havia as bolsas da lavanderia, havia os hábitos alimentares de Gloria, havia a tendência a se preocupar de Anthony, seu "nervosismo" imaginativo, mas também havia interlúdios de uma serenidade inesperada. Juntos, na porta de entrada, eles esperavam que a lua varresse os hectares prateados de terra cultivável, pulasse um bosque cerrado e derramasse ondas esplendorosas a seus pés. Em um luar assim, o rosto de Gloria era de uma brancura persistente, residual, e, com um esforço mínimo, eles tiravam os antolhos do hábito e cada um quase encontrava no outro o romance inaugural de junho passado.
Uma noite, quando a cabeça dela descansava sobre o coração dele e seus cigarros brilhavam como botões sinuosos de luz a riscar a abóboda escura sobre a cama, ela falou pela primeira vez, e de modo fragmentário, sobre os homens que haviam, por breves momentos, se intricado na sua beleza.
- Você às vezes pensa neles? - perguntou ele.
- Só de vez em quando, quando acontece de algo me fazer lembrar determinado sujeito.
- Do que você lembra - dos beijos deles?
- Todo tipo de coisas... Os homens são diferentes em relação às mulheres.
- Diferentes em que sentido?
- Ah, inteiramente, é difícil de explicar. Os sujeitos que tinham a mais firme reputação de ser assim ou assado às vezes eram surpreendentemente inconsistentes comigo. Sujeitos brutais eram carinhosos, sujeitos desprezíveis eram espantosamente fieis e amáveis e, muitas vezes, sujeitos honrados tinham atitudes nada honráveis.
- Por exemplo?
- Sim, havia um rapaz chamado Percy Wolcott, de Cornell, que era um herói e tanto na faculdade, grande atleta, salvou uma porção de gente de um incêndio, ou algo assim. Mas não demorei a descobrir que ele era burro, de uma maneira meio perigosa.
- De que maneira?
- Parece que ele tinha uma noção ingênua da mulher "talhada para ser sua esposa", uma determinada noção que eu costumava encontrar muito e que me deixava louca. Ele queria uma mulher que nunca tivesse sido beijada, que gostasse de costurar, de ficar sentada em casa e prestar tributo à auto-estima dele. E aposto qualquer coisa que arranjou uma idiota para ficar lá sentada, na sua burrice, fazendo companhia a ele enquanto ele farreia escondido com alguma senhora muito mais levada.
- Sinto pena da mulher dele.
- Eu não. Pense só que burra não devia ser para não perceber isso antes de se casar com ele. Ele é o tipo que acha que ser respeitoso com a mulher é nunca lhe proporcionar nenhuma diversão. Com as melhores intenções, vivia mergulhado na mais profunda Idade Média.
- Qual a atitude dele em relação a você?
- Eu chego lá. Como te disse, ou não te disse? Ele era um boa pinta danado; grandes olhos francos e castanhos e um daqueles sorrisos que garantem que o coração por trás dele é feito de ouro vinte quilates. Sendo eu jovem e crédula, achei que ele fosse discreto, por isso beijei-o ardorosamente uma noite, quando rodávamos sem rumo depois de um baile no Homestead de Hot Springs. Tinha sido uma semana maravilhosa, eu me lembro, com as árvores mais esplêndidas espalhadas como espuma verde por todo o vale, e uma névoa se levantando delas nas manhãs de outubro, como se tivessem acendido fogueiras para torná-las marrons...
- E seu amigo com seus ideais? - interrompeu Anthony.
- Parece que enquanto ele me beijava começou a achar que talvez conseguisse obter mais um pouco, que não precisava me "respeitar" como aquela garota alegre das colunas de aconselhamento, de sua imaginação.
- O que ele fez?
- Nada de mais. Empurrei-o de um barranco de três metros antes de ele ter tempo de começar.
- Ele se machucou? - perguntou Anthony, com uma risada.
- Quebrou o braço e torceu o tornozelo. Ele contou o caso por todo Hot Springs e, quando seu braço sarou, um sujeito chamado Barley, que gostava de mim, brigou com ele e quebrou seu braço de novo. Ah, foi uma confusão danada. Ele ameaçou processar Barley, e viram Barley, que era da Geórgia, comprar uma arma na cidade. Mas, antes que acontecesse alguma coisa pior, mamãe me arrastara para o norte de novo, muito contra minha vontade, por isso nunca descobri o que aconteceu, embora eu tenha visto Barley uma vez no saguão do Vanderbilt.
Anthony riu alta e longamente.
- Que carreira! Talvez eu devesse ficar furioso por você ter beijado tantos homens. Mesmo assim, não estou.
Diante disso, ela se sentou ereta na cama.
- Engraçado, tenho certeza absoluta que esses beijos não deixaram nenhuma marca em mim, nenhuma nódoa de promiscuidade, quero dizer, apesar de um sujeito uma vez ter me dito, todo sério, que detestava pensar que eu já fora um copo de botequim.
- Ele teve coragem.
- Eu simplesmente ri e disse a ele para pensar, de preferência, em mim como um copo cerimonial, que passa de mão em mão mas que deve ser valorizado assim mesmo.
- Não sei por que, mas isso não me incomoda; por outro lado incomodaria, é claro, se você tivesse feito alguma coisa a mais do que beijá-los. Mas acho que você é incapaz de ter ciúmes, exceto por orgulho ferido. Por que você não se importa com o que eu fiz? Não teria preferido que eu fosse absolutamente inocente?
- O que importa é a impressão que aquilo te deixou. Os meus beijos aconteceram porque o sujeito era bonito, ou porque tinha uma lua linda, ou até mesmo porque eu me sentia vagamente sentimental ou um pouco excitada. Mas era só isso, não tiveram absolutamente nenhum efeito sobre mim. Mas você é de se lembrar, de se deixar assombrar pelas lembranças, se preocupar com elas.
- Você nunca beijou ninguém como me beijou?
- Não - respondeu ela simplesmente. - Como te disse, os homens já tentaram, ah, uma porção de coisas. Qualquer garota bonita já passou por essa experiência... sabe - resumiu ela. - Não me importa quantas mulheres você já teve no passado, desde que fosse só uma coisa de satisfação física, mas acho que eu não agüentaria a idéia de você ter morado com outra mulher durante um período prolongado, ou até mesmo querido casar com alguma garota disponível. Seria diferente, de alguma maneira. Haveria a recordação de todas as pequenas intimidades, e elas embotariam aquele frescor que é a parte mais preciosa do amor.
Embevecido, ele a puxou para baixo, a seu lado no travesseiro.
- Ah, minha querida - sussurrou -, como se eu me lembrasse de outra coisa que não seus doces beijos.
Em seguida Gloria, em uma voz muito suave:
- Anthony, será que ouvi alguém dizer que estava com sede?
Anthony riu abruptamente e, com um sorriso acanhado e divertido, saiu da cama.
- Com apenas um pedacinho de gelo na água
- acrescentou ela. - Acha que poderia me trazer?
Gloria sempre usava o diminutivo quando pedia um favor - fazia o favor parecer menos trabalhoso. Mas Anthony riu de novo - não importa se ela pedisse um pedregulho ou uma bolinha de gelo, de todo modo ele tinha que descer até a cozinha. A voz dela seguiu-o pelo corredor:
- E só um biscoitinho, com um pouquinho de geléia...
- Ah, puxa vida - suspirou Anthony, em uma gíria extasiada -, essa garota é uma maravilha! Ela está com tudo!
- Quando a gente tiver um filho - começou ela um dia; fato, conforme fora decidido, que aconteceria depois de três anos -, quero que ele seja parecido com você.
- Exceto pelas pernas - sugeriu ele maliciosamente.
- Ah, sim, exceto pelas pernas. Ele tem que ter as minhas pernas. Mas o resto poder ser igual a você.
- O meu nariz?
Gloria hesitou.
- Bem, talvez o meu nariz. Mas com certeza os seus olhos, e minha boca, e acho que o meu formato do rosto. Fico pensando, acho que ele seria bonitinho se tivesse meu cabelo.
- Minha querida Gloria, você se apropriou do bebê inteiro.
- Ora, não foi essa minha intenção
- desculpou-se ela jovialmente.
- Deixe ao menos que ele tenha o meu pescoço
- pediu ele com insistência, olhando-se, grave, no espelho. - Você já disse muitas vezes que gosta do meu pescoço porque o gogó não aparece e, além do mais, seu pescoço é curto demais.
- Poxa, não é! - exclamou ela indignada, virando-se para o espelho. - Está certinho. Acho que nunca vi um pescoço melhor.
- É curto demais - repetiu ele, implicando.
- Curto? - Seu tom de voz exprimia um espanto indignado. - Curto? Você está maluco! - Ela alongava-o e contraía-o para se convencer de sua sinuosidade reptiliana. - Você chama isso de curto?
- Um dos mais curtos que já vi.
Pela primeira vez em semanas brotaram lágrimas dos olhos de Gloria e o olhar que ela lhe deu era de autêntica dor.
- Ah, Anthony...
- Meu Deus, Gloria! - Ele se aproximou dela espantado, pegando seus cotovelos nas mãos. - Não chore, por favor! Você não percebeu que eu só estava brincando? Gloria, olhe para mim! Ora, querida, você tem o pescoço mais comprido que já vi. Sinceramente.
Suas lágrimas se dissiparam em um sorriso torto.
- Bem, então você não devia ter dito aquilo. Vamos falar sobre o bebê.
Anthony andou para lá e para cá e falou como se estivesse ensaiando para um debate.
- Resumindo, há dois bebês que podemos ter, dois bebês distintos e coerentes, totalmente diferenciados. Tem o bebê composto do melhor que nós temos. Seu corpo, meus olhos, minha cabeça, sua inteligência - e tem o bebê feito do que temos de pior - meu corpo, seu gênio e minha indecisão.
- Eu gosto do segundo bebê - disse ela.
- O que eu realmente gostaria - prosseguiu Anthony - era ter trigêmeos duas vezes, com um intervalo de um ano, e fazer experiências com os seis garotos...
- Pobre de mim - exclamou ela.
- Educaria cada um em um país diferente, em um sistema diferente, e quando tivessem 23 anos eu reuniria todos e veria como ficaram.
- Vamos ter todos com o meu pescoço - sugeriu Gloria.

O FINAL DE UM CAPITULO

Finalmente o carro foi consertado e, como uma vingança proposital, recomeçou de onde interrompera sua função de causar incessante discórdia. Quem dirigiria? A que velocidade Gloria poderia chegar? Esses dois problemas, acrescidos das recriminações causadas por eles, se desenrolaram durante dias. Eles foram até as cidades da rodovia principal, Rye, Portchester e Greenwich, e visitaram uma dezena de amigos, a maioria dos quais amigos de Gloria, que pareciam estar todos em diversas etapas de ter filhos, e por este e outros motivos entediaram-na ao ponto de perturbar seus nervos. Durante uma hora, depois de cada visita dessas, ela ficava roendo as unhas furiosamente e inclinada a descontar seu ressentimento em Anthony.
- Eu detesto as mulheres - exclamava ela em um ligeiro ataque de raiva. - Que diabo pode-se falar com elas, a não ser o cri-cri de sempre? Eu me entusiasmei por uma dezena de bebês que, na realidade, me davam ganas de estrangular. E cada uma daquelas garotas está começando a ficar ciumenta e desconfiada de seu marido, se ele tiver charme, ou começando a se entediar dele, caso contrário.
- Você não pretende nunca mais visitar alguma outra mulher?
- Não sei. Elas nunca me parecem limpas, nunca, nunca. Exceto algumas poucas. Constance Shaw - sabe, aquela senhora Merriam que veio nos ver na terça passada - é quase a única. Ela é tão alta, de aspecto tão limpo e imponente.
- Eu não gosto das tão altas.
Embora eles fossem a vários jantares dançantes em diversos country clubes, decidiram que o outono praticamente se encerrara para eles "saírem" de modo mais assíduo, mesmo se a isso estivessem inclinados. Ele detestava golfe; Gloria só gostava um pouco e, a despeito de ela ter gostado dos fortes galanteios da parte de alguns universitários, certa noite, e de ter ficado satisfeita com o orgulho que Anthony sentia de sua beleza, também percebeu que sua anfitriã daquela noite, uma certa senhora Granby, ficou um tanto escandalizada por Alec Granby, colega de turma de Anthony, ter se juntado com entusiasmo aos galanteadores. Os Granby nunca mais telefonaram e, embora Gloria risse, aquilo não deixou de lhe incomodar bastante.
- Olha só - explicou ela para Anthony -, se eu não fosse casada, isso não a preocuparia, mas ela andou indo ao cinema na sua época e acha que eu talvez seja uma vamp. A questão é que agradar essa gente exige um esforço que eu não me disponho a fazer... E aqueles universitários engraçadinhos me olhando daquele jeito e me fazendo elogios idiotas! Eu já amadureci, Anthony.
A própria Marietta oferecia escassa vida social. Meia dúzia de propriedades rurais formavam um hexágono em volta dela, mas pertenciam a homens idosos que só apareciam como vultos indistintos e grisalhos na traseira de limusines a caminho da estação, onde iam, às vezes, acompanhados de suas mulheres igualmente velhas e duplamente volumosas. Os habitantes da cidade eram de um tipo especialmente desinteressante - em que predominavam mulheres solteiras - tendo os festivais escolares como horizonte e almas tão tristes como a arquitetura medonha e branca das três igrejas. A única pessoa local com quem eles tinham um contato mais estreito era a garota sueca de quadris e ombros largos que vinha todo dia fazer o trabalho doméstico para eles. Ela era eficiente e silenciosa, e Gloria, depois de tê-la encontrado chorando violentamente sobre seus braços dobrados, em cima da mesa da cozinha, ficou com um medo fantástico dela e parou de reclamar da comida. Em virtude de sua dor secreta e particular, a garota ficou.
A inclinação de Gloria por premonições e seus ataques de vagas crendices sobrenaturais espantaram Anthony. Ou era algum complexo, cientificamente inibido nos seus anos de infância por sua mãe bilfista, ou alguma hipersensibilidade hereditária que a tornava suscetível a qualquer sugestão sobrenatural e, embora longe de ser ingênua quanto à motivação das pessoas, ela tendia a creditar qualquer acontecimento extraordinário às perambulações erráticas dos mortos. Os rangidos terríveis da casa antiga durante as noites de ventania, que eram, para Anthony, assaltantes de revólveres prontos nas mãos, representavam para Gloria as auras más e irrequietas de gerações mortas expiando o inexpiável na velha e romântica lareira. Uma noite, por causa de duas rápidas batidas no andar de baixo, que Anthony foi temerosa e infrutiferamente investigar, eles ficaram acordados até quase o amanhecer, fazendo um ao outro perguntas típicas de exames escolares sobre a história mundial.
Em outubro, veio Muriel para fazer uma visita de duas semanas. Gloria fizera um interurbano para ela, e a senhorita Kane terminara a conversa tipicamente, dizendo, "Está muito beem. Chegarei tinindo!" Chegou com meia dúzia de canções populares sob o braço.
- Vocês deveriam ter uma vitrola aqui no campo
- disse ela -, basta uma vitrolinha portátil, não são caras. Aí, quando se sentirem solitários, podem ter Caruso ou Al Jolson bem na sua porta.
Ela deixou Anthony tremendamente preocupado ao dizer-lhe que "ele era o primeiro sujeito inteligente que ela conhecera, e que andava muito cansada de gente superficial". Ele ficou se perguntando como tinha gente que se apaixonava por mulheres assim. Contudo, imaginou que sob determinado olhar amoroso, até ela podia adquirir qualidades doces e promissoras.
Mas Gloria, a exibir violentamente sua paixão por Anthony, era levada a um estado de satisfação ronronante.
Por fim, Richard Caramel chegou para passar um fim de semana gárrulo e, infelizmente para Gloria, também literário, durante o qual ficava debatendo com Anthony a respeito de si mesmo muito tempo depois de ela já ter dormido como uma criança no andar de cima.
- Tem sido muito engraçado esse sucesso e tudo mais - dizia Dick. - Logo antes de lançarem o romance, eu andei tentando vender alguns contos, em vão. Então, depois que meu livro foi editado eu poli três deles, que foram aceitos por uma das revistas que os havia recusado antes. Eu tenho escrito muitos deles, desde então; os editores só vão me pagar pelo livro no inverno.
- Cuidado para não virar escravo do sucesso.
- Você quer dizer, escrever porcaria? - ponderou ele. - Se você quer dizer fabricar um final piegas para cada um deles, isso eu não faço. Mas acho que não ando mais tão cuidadoso. Escrevo mais depressa, com certeza, e não pareço pensar tanto quanto antes. Talvez sinta falta de uma boa conversa, agora que você se casou e Maury foi para Filadélfia. Não tenho mais aquele velho ímpeto e ambição. Sucesso prematuro e tudo mais.
- Isso não te preocupa?
- Tremendamente. Eu fico com uma coisa que chamo de febre frasal, que deve ser como medo do palco; é uma espécie de intensa timidez literária quando procuro me forçar. Mas os dias realmente terríveis não são quando acho que não consigo escrever. São quando fico imaginando se é válido escrever alguma coisa, afinal de contas, quero dizer, se não passo de um tipo de bufão incensado.
- Gosto de ouvir você falar assim - disse Anthony, com um toque de sua velha insolência paternalista. - Eu temia que você tivesse virado meio idiota sobre seu próprio trabalho. Li uma entrevista pavorosa que você deu...
Dick interrompeu com uma expressão agoniada.
- Deus do céu! Não me fale. Uma jovem fez aquilo, uma jovem com muita admiração. Não parava de dizer que minha obra era "forte" e eu perdi um pouco a cabeça e fiz uma porção de afirmações esquisitas. Mas uma parte era boa, não achou?
- Ah, sim; aquela parte sobre o escritor sábio que escreve para a juventude de sua geração, que é crítico da seguinte e o eterno professor para as que vem depois.
- Ah, acredito muito naquilo - confessou Richard Caramel com um ligeiro sorriso. - Foi simplesmente um erro ter divulgado a coisa.
Em novembro, eles se mudaram para o apartamento de Anthony, do qual faziam excursões triunfantes para os jogos de futebol de Yale contra Harvard e Harvard contra Princeton, para o ringue de patinação no gelo de St. Nicholas, para uma visita completa aos teatros e para uma porção de diversões - dos bailes pequenos e sossegados até as grandes funções que Gloria amava, realizadas naquelas poucas casas em que criados de libré e peruca empoada corriam de lá para cá em uma magnífica anglomania, sob a direção de colossais mordomos.
A intenção deles era viajar no primeiro dia do ano ou, pelo menos, quando a guerra acabasse. Anthony chegara a terminar um ensaio chestertoniano sobre o século 12, como uma introdução a seu pretenso livro, e Gloria fizera uma pesquisa intensiva sobre o problema dos casacos russos de pele de zibelina - na verdade, o inverno chegava bem tranqüilamente, quando o demiurgo bilfista decidiu no meio de dezembro que a alma da senhora Gilbert já envelhecera suficientemente na sua encarnação presente. Como conseqüência, Anthony acompanhou uma Gloria histérica e desgraçada até Kansas City, onde, segundo o costume da humanidade, eles prestaram a terrível e traumática homenagem que se presta aos mortos.
O senhor Gilbert tornou-se, pela primeira e última vez na sua vida, uma figura verdadeiramente patética. A mulher que ele domesticara para servir a seu corpo e bancar a platéia para sua mente o abandonara ironicamente - logo quando ele não poderia protegê-la por muito tempo mais. Nunca mais ele seria capaz de amolar e intimidar de forma tão satisfatória outra alma humana.


CAPÍTULO DOIS
SIMPÓSIO

Gloria acalentara a mente de Anthony até que ele dormisse. Ela, que parecia a mais sábia e a melhor das mulheres, era como uma esplêndida cortina que pendia dos seus portais, tapando a luz do sol. Naqueles primeiros anos, todas as suas crenças exibiam invariavelmente a marca de Gloria; ele via sempre o sol através do tecido da cortina.
Foi uma espécie de cansaço que os levou de volta a Marietta para mais um verão. Perambularam durante uma primavera dourada e enervante pelo litoral da Califórnia, inquietos, preguiçosamente perdulários, reunindo-se de vez em quanto a outras pessoas e vagando de Pasadena a Coronado, de Coronado a Santa Bárbara, sem nenhum outro motivo aparente se não o desejo de Gloria de trocar de ambiente ou captar um detalhe infinitesimal da coloração inconstante do mar. Erguiam-se do Pacífico terrenos rochosos e agrestes, onde se construíam pousadas igualmente rústicas em que era possível cochilar, na hora do chá, no meio de um bazar de vime abrilhantado pelos trajes de pólo de Southhampton, Lake Forest, Newport e Palm Beach. E enquanto as ondas colidiam, espirravam e brilhavam na mais plácida das baías, eles se reuniam a este ou àquele grupo e, juntos, saltavam de um lugar para outro, sempre murmurando sobre as estranhas e sutis alegrias que os aguardavam logo ali, no próximo vale fértil e verdejante.
Eram simplesmente uma turma saudável e ociosa
- os melhores sujeitos nem chegavam a ser desagradavelmente universitários - que parecia pertencer a uma eterna lista de candidatos a um etéreo Porcelhan ou Skull and Bonés vagamente transportados para o mundo; as mulheres, de beleza acima do comum, fragilmente atléticas, eram um tanto idiotas no papel de anfitriãs, mas encantadoras e muito decorativas no papel de convidadas. Dançavam serenas e tranqüilas suas músicas preferidas no horário aromático do chá, conseguindo fazer com certa dignidade os movimentos tornados terrivelmente ridículos pelos escriturários e coristas em todo país. Parecia uma ironia que, nesse ramo solitário e desacreditado da arte, os americanos se destacassem de forma inquestionável.
Depois de terem bailado durante uma pródiga primavera, Anthony e Gloria constataram ter gastado dinheiro demais e, por isso, impunha-se um retiro provisório. Havia o "trabalho" de Anthony, diziam eles. Quase antes de se darem conta, já haviam retornado à casa cinzenta, percebendo melhor, agora, que outros amantes lá dormiram, outros nomes ressoaram por cima da balaustrada, outros casais sentaram na varanda a observar os campos verde-cinza e a massa negra da mata à distância.
Era o mesmo Anthony, mais irrequieto, inclinado a funcionar somente sob o estímulo de vários
high-balls, quase imperceptivelmente apático em relação a Gloria. Gloria - faria 24 anos em agosto e sentia um pânico divertido, porém sincero, a esse respeito. Seis anos para trinta! Estivesse ela menos apaixonada por Anthony e sua sensação da passagem do tempo teria se manifestado por um renovado interesse por outros homens, pela intenção deliberada de colher um brilho romântico e fugaz de todo amante em potencial que lhe dirigisse um olhar carregado sobre o verniz da mesa. Ela disse um dia para Anthony:
- Sinto que, se me der vontade de alguma coisa, vou procurar obtê-la. Sempre pensei assim, toda minha vida. Mas acontece que quero você e, assim, simplesmente não tenho lugar para quaisquer outros desejos.
Eles rumavam para o leste, através de uma Indiana morta e ressecada, quando ela levantara os olhos de uma de suas amadas revistas de cinema para prosseguir com uma conversa casual que, de repente, se tornara séria.
Anthony franziu o cenho do lado de fora da janela do vagão. Quando os trilhos cortaram uma estrada vicinal, surgiu um fazendeiro na sua carroça; mastigava um talo de capim e, aparentemente, era o mesmo fazendeiro pelo qual eles já haviam passado uma dezena de vezes, sentado, em um simbolismo calado e negativo. Quando Anthony virou-se para Gloria, seu cenho ficou ainda mais franzido.
- Você me preocupa - asseverou ele -; posso me imaginar desejando outra mulher sob determinadas circunstâncias efêmeras, mas não consigo me imaginar possuindo-a.
- Mas não sinto isso, Anthony. Não me dou ao trabalho de me negar as coisas que desejo. Meu modo é não desejá-las; não desejar mais ninguém a não ser você.
- No entanto, quando penso que pode acontecer de você se encantar por outro...
- Ah, não seja idiota! - exclamou ela. - Nem ocasionalmente. Não consigo sequer imaginar essa possibilidade.
Essa ênfase encerrou a conversa. O carinho incessante de Anthony a tornava mais feliz na sua presença do que na companhia de qualquer outra pessoa. Ela realmente gostava dele - amava-o. Assim, o verão começou bastante parecido com o anterior.
Houve, no entanto, uma mudança radical na casa. A escandinava de coração gelado, cuja cozinha austera e maneira sarcástica de servir à mesa tanto deprimia Gloria, deu lugar a um japonês extremamente eficiente chamado Tanalahaka, que disse estar pronto a atender a qualquer chamado pela dissílaba "Tana".
Tana era singularmente pequeno, mesmo para um japonês, e demonstrava uma concepção bastante ingênua de si mesmo como homem sofisticado. No dia de sua chegada da "R. Gugimoniki, Agência Confiável de Empregos Japonesa", ele chamou Anthony para ver os tesouros de sua mala, no seu quarto. Estes consistiam, entre outros, em uma grande coleção de cartões postais japoneses, que ele queria explicar imediatamente ao patrão, um a um, e de modo demorado. Entre eles havia meia dúzia de intenção pornográfica e de origem obviamente americana, embora os fabricantes houvessem omitido por modéstia seus nomes e a parte impressa para postagem. Em seguida, ele tirou umas peças de seu próprio artesanato - um par de calças americanas, feitas por ele, e dois pares de roupas de baixo inteiriças de seda. Ele informou a Anthony, confidencialmente, a que objetivo elas se destinavam. A peça seguinte era uma cópia bastante boa de uma gravura de Abraão Lincoln, a cujo rosto dera um ar inquestionavelmente japonês. Por último veio uma flauta; ele mesmo a fizera, mas ela quebrara: em breve a consertaria.
Depois dessas polidas formalidades, que Anthony deduziu ser uma peculiaridade japonesa, Tana fez uma longa arenga em péssimo inglês sobre a relação patrão-empregado, da qual deduziu Anthony que ele trabalhara em grandes propriedades mas sempre brigara com os outros empregados porque não eram honestos. Tiveram uma diferença muito divertida sobre a palavra "honesto" e, de fato, se irritaram bastante um com o outro, porque Anthony insistiu com teimosia que Tana tencionava dizer "o neto", chegando a se agachar e fazer menção de chupar chupeta para imitar uma criança.
Depois de 45 minutos, Anthony foi dispensado com a calorosa garantia de que teriam outras conversas nas quais Tana contaria "como se faz em meu país".
Assim foi a estréia de Tana na casa cinzenta - e ele cumpriu essa expectativa. Apesar de cuidadoso e honesto era, sem dúvida, um tremendo chato. Parecia incapaz de controlar sua língua, às vezes pulando de parágrafo em parágrafo, com um olhar que parecia dorido nos seus pequenos olhos castanhos.
Nas tardes de domingo e segunda ele lia as seções de quadrinhos dos jornais. Uma história que tinha um mordomo japonês brincalhão o divertia muito, embora ele alegasse que o herói, que para Anthony parecia obviamente oriental, na verdade possuía um rosto americano. O problema dos quadrinhos era que, depois do auxílio de Anthony para entender os últimos três quadros e assimilar seu contexto, com uma concentração certamente digna da Crítica de Kant, ele já se esquecera inteiramente do assunto dos primeiros quadrinhos.
Em meados de junho, Anthony e Gloria comemoraram o seu primeiro aniversário de casamento com um "encontro amoroso". Anthony bateu na porta e ela correu para abri-la para ele. Em seguida, sentaram no sofá, chamando-se pelos apelidos que inventaram um para o outro, novas combinações de apelidos carinhosos de priscas eras. Entretanto, esse encontro não foi acompanhado de nenhuma meia-noite sofrida, com seu êxtase melancólico.
Mais tarde, em junho, o horror olhou Gloria de soslaio, golpeou-a e intimidou sua alma luminosa a ponto de fazê-la regredir meia geração. Em seguida dissipou-se lentamente, recuou para aquela escuridão impenetrável de onde surgira - levando implacavelmente sua módica porção de juventude.
Com um sentido dramático infalível, o horror escolheu uma pequena estação de trem em uma aldeia infeliz perto de Portchester. A plataforma da estação ficava o dia inteiro vazia como os campos, exposta ao sol poeirento e amarelado e ao olhar daquele tipo mais detestável de camponês, que mora perto da cidade e adquiriu sua esperteza barata, mas não sua civilidade. Uma dezena desses caipiras, de olhos vermelhos, tristes como espantalhos, assistiu ao incidente. Aquilo passou obtusamente pelas suas cabeças confusas e ignorantes, considerado em geral como uma piada grosseira e, de modo mais sutil, como uma "vergonha". Enquanto isso, ali na plataforma, um pouco de luz se apagava do mundo.
Junto com Eric Merriam, Anthony passara toda a tarde calorenta de verão debruçado sobre uma garrafa de uísque, enquanto Gloria e Constance Merriam nadavam e tomavam sol no Beach Club; ele sob uma barraca listrada, Gloria esticada sensualmente em cima da areia quente e macia, bronzeando suas infalíveis pernas. Mais tarde, todos os quatro brincaram de comer sanduíches insossos, quando Gloria então se levantara e batera com sua sombrinha no joelho de Anthony, para chamar sua atenção.
- Precisamos ir embora, querido.
- Agora? - Ele olhou-a de má vontade. Naquele momento nada parecia mais importante do que lagartear naquela varanda sombreada, bebendo uísque envelhecido, enquanto seu anfitrião lembrava interminavelmente os bastidores de alguma campanha política caída no esquecimento.
- A gente precisa ir mesmo - repetiu Gloria.
- Podemos tomar um táxi até a estação... Vamos, Anthony! - ordenou ela de uma maneira pouco mais imperiosa.
- Agora, olha aqui... - Merriam, vendo sua história interrompida, fez os protestos de praxe, enquanto enchia, de modo provocador, o copo de seu convidado com um high-ball que levaria dez minutos para ser consumido. Mas diante do "a gente tem mesmo que ir!" irritado de Gloria, Anthony esvaziou o copo, se pôs de pé e fez uma elaborada reverência para sua anfitriã.
- Parece que temos mesmo - disse ele, com bastante má vontade.
Um minuto depois ele seguia Gloria por um caminho no jardim, entre altas roseiras, com a sombrinha dela roçando delicadamente as folhas recém-brotadas de junho. Que coisa mais desatenciosa, pensou ele quando chegaram à rua. Ele sentia, com uma ingenuidade ferida, que Gloria não devia ter interrompido uma diversão tão inocente e inofensiva. O uísque tanto acalmara quanto clareara aquela inquietude na sua mente. Ocorreu-lhe que ela tivera a mesma atitude várias vezes antes. Por que era ele obrigado a abandonar situações agradáveis ao mero toque de sua sombrinha ou ao brilho no seu olhar? O desagrado se transformara obscuramente em uma má vontade que brotou dentro dele como uma bolha irresistível. Ficou calado, inibindo obstinadamente o desejo de censurá-la. Encontraram um táxi diante da hospedaria; rodaram em silêncio até a pequena estação...
Então Anthony se deu conta do que queria
- afirmar seu desejo contra aquela garota indiferente e inacessível, obter, com tremendo esforço, um domínio que parecia infinitamente desejável.
- Vamos fazer uma visita aos Barnes - disse ele sem olhar para ela. - Não estou com vontade de ir para casa.
A senhora Barnes, nascida Rachel Jerryl, tinha uma casa de verão a alguns quilômetros de Redgate.
- Nós já fomos lá anteontem - respondeu ela de modo atravessado.
- Tenho certeza que eles gostariam de nos ver.
- Ele sentiu que isso não era um tom suficientemente forte, retesou-se de teimosia e acrescentou: - Eu quero ver os Barnes. Não estou com nenhuma vontade de ir para casa.
- Bem, eu não estou com nenhuma vontade de visitar os Barnes.
De repente, ambos se entreolharam fixamente.
- Ora, Anthony - disse ela, aborrecida -, hoje é domingo à noite e eles provavelmente terão visitas para o jantar. Por que motivo haveríamos de ir a essa hora...
- Então por que não podíamos ficar na casa dos Merriam? - desabafou ele. - Por que ir para casa quando nos divertíamos tanto? Eles nos convidaram para jantar.
- Era uma obrigação fazê-lo. Dê-me o dinheiro que eu comprarei os bilhetes do trem.
- Claro que não! Não estou em um estado de espírito para andar naquele trem calorento e desgraçado.
Gloria bateu o pé na plataforma.
- Anthony, você age como se estivesse de porre!
- Pelo contrário, estou perfeitamente sóbrio.
Mas sua voz acabara ficando pastosa, e ela sabia com certeza que era mentira.
- Se você está sóbrio, então me dê o dinheiro dos bilhetes.
Mas já passara o momento de falar assim com ele. Na sua cabeça só havia uma idéia - Gloria estava sendo egoísta, era sempre egoísta e sempre haveria de ser se ele não afirmasse, ali e agora, seu predomínio de senhor. Aquela era a chance entre todas as chances, já que por mero capricho ela o privara de um prazer. Sua determinação tornou-se mais sólida, chegou a ser temporariamente um ódio surdo e obstinado.
- Não vou no trem - disse ele com a voz meio trêmula de raiva. - Vamos à casa dos Barnes.
- Eu é que não vou! - gritou ela. - Se você for, vou para casa sozinha.
- Vá, então.
Sem dizer palavra, ela se virou para a bilheteria; ele se lembrou na hora que ela tinha um pouco de dinheiro. Aquele não era o tipo de vitória que ele desejava, o tipo que ele precisava conquistar. Deu um passo na direção dela e agarrou seu braço.
- Olha aqui - murmurou -, você não vai sozinha!
- Certamente que eu vou. Ora, Anthony! - Esta exclamação saiu enquanto ela tentava se livrar dele, que, ao contrário, só fez apertar mais seu braço.
Ele olhou para ela com malícia e olhos semicerrados.
- Me largue! - Seu grito tinha um toque de ferocidade. - Se você tiver um pingo de decência, me solte.
- Por quê? - Ele sabia por quê. Mas sentia um orgulho confuso e bastante inseguro de mantê-la presa ali.
- Eu vou para casa, entende? E você vai me deixar ir.
- Não vou, não.
Os olhos dela agora fuzilavam.
- Será que vai dar um escândalo aqui?
- Estou dizendo que você não vai! Estou cansado de seu eterno egoísmo!
- Eu só quero ir para casa. - Lágrimas de raiva começaram a escorrer de seus olhos.
- Desta vez você fará o que eu disser.
Lentamente ela endireitou o corpo: sua cabeça recuou em sinal de infinito desprezo.
- Eu te odeio! - Suas palavras, em voz baixa, foram expelidas como veneno entre seus dentes cerrados. - Ah, me solte! Eu te detesto! - Ela tentou se livrar com um safanão, mas ele apenas agarrou seu outro braço. - Eu te odeio! Eu te odeio!
Diante da fúria de Gloria, sua insegurança voltou, mas agora ele sentiu que fora longe demais para ceder. Pareceu-lhe que sempre cedera e que ela o desprezara por isso no fundo do seu coração. Ah, talvez ela o odiasse agora, mas depois haveria de admirá-lo por sua postura dominante.
O trem que chegava deu um apito de aviso que correu de forma melodramática até eles pelos trilhos azulados e luzidios. Gloria puxava e se esforçava para se livrar, e de seus lábios brotaram palavras mais antigas que o livro do Gênesis.
- Ah, seu cafajeste! - soluçava ela. - Ah, seu cafajeste! Ah, eu te odeio! Seu cafajeste! Ah...
Na plataforma da estação os outros prováveis passageiros começavam a se virar e olhar; o zumbido do trem tornou-se audível, aumentando até virar uma barulheira. Gloria redobrou seus esforços, em seguida parou por completo, e lá ficou, tremendo e de olhos inchados, diante daquela humilhação implacável, enquanto a máquina entrou trovejando e bufando na estação.
Sob o ruído do jato de vapor e do guincho dos freios, sua voz dizia:
- Ah, se tivesse apenas um homem aqui, você não faria isso! Você não faria isso! Seu covarde! Seu covarde, ah, seu covarde!
Anthony, calado, também trêmulo, agarrava-a com força, ciente de que havia rostos, dezenas deles, curiosamente impassíveis, sombras oníricas, a
olhá-lo. Em seguida, o sino bateu suas pancadas metálicas que eram como uma dor física, os rolos de fumaça subiram em lenta escalada rumo ao céu e, em um momento ruidoso, de vaporosa turbulência, fileiras de rostos passaram depressa, se distanciaram, tornaram-se indistintos - até que de repente só havia o sol inclinado a leste sobre os trilhos e um fragor morrendo ao longe como o trovejar de um trem de lata. Ele largou os braços dela. Vencera.
Agora ele podia rir, se assim quisesse. Aprova terminara e ele afirmara sua vontade pela violência. Que a indulgência viesse na esteira da vitória.
- Alugaremos um carro aqui para voltar para Marietta - disse ele admiravelmente circunspecto.
Como resposta, Gloria agarrou-lhe a mão com ambas as suas, levou-a à boca e mordeu com força seu polegar. Ele mal percebeu a dor; ao ver o sangue esguichar, tirou distraído seu lenço e atou a ferida. Isso também fazia parte da vitória, pensou
- era inevitável que a derrota provocasse muito ressentimento -, e por isso não merecia sua atenção.
Ela soluçava, quase sem lágrimas, profunda, amargamente.
- Não irei! Não irei! Você - não - pode - me
- obrigar! Você - matou todo o amor que eu tinha por você, todo respeito. Mas tudo que ainda sou morreria antes de eu sair deste lugar. Ah, se eu imaginasse que você iria me segurar...
- Você vai comigo - disse ele brutalmente -, nem que eu tenha de te carregar.
Ele se virou, fez sinal para um táxi, mandou que o motorista fosse para Marietta. O sujeito desceu e abriu a porta. Anthony encarou sua mulher e disse de dentes cerrados:
- Você vai entrar? Ou terei de carregar você para dentro?
Com um grito baixo de infinita dor e desespero, ela cedeu e entrou no carro.
Durante todo o longo percurso, através da crescente escuridão do crepúsculo, ela seguiu encolhida no seu lado do assento, seu silêncio quebrado apenas por um soluço seco e solitário. Anthony olhava pela janela, elaborando obtusamente na sua cabeça a mudança de significado do que ocorrera. Algo estava errado - o derradeiro grito de Gloria tangera uma corda cujo eco persistia e provocava uma angústia no seu coração. Ele devia ter razão - e, no entanto, ela agora parecia uma coisinha tão patética, alquebrada e triste, humilhada além da conta. As mangas de seu vestido estavam rasgadas; sua sombrinha se perdera, esquecida na plataforma. Era um vestido novo, recordou, e ela tivera tanto orgulho dele naquela mesma manhã ao saírem de casa... Ele começou a pensar se algum conhecido presenciara o incidente. E voltava-lhe, insistente, o desabafo dela: "Tudo que ainda sou morreria..."
Isso provocou nele uma preocupação crescente, confusa. Adequava-se tão bem à Gloria que jazia encolhida no canto - não mais à Gloria orgulhosa, nem à Gloria alguma que ele conhecera. E ele se perguntou se era possível. A despeito de não acreditar que ela pudesse deixar de amá-lo - isso era, é claro, impensável - seria problemático que Gloria, despida de sua arrogância, sua independência, sua segurança e coragem puras, permanecesse mesmo assim sua garota maravilhosa, mulher esplêndida, preciosa, charmosa, justamente porque era indescritível, soberanamente autêntica.
Ele estava muito bêbado então, tão bêbado a ponto de não perceber sua embriaguez. Ao chegarem à casa cinzenta, foi para seu próprio quarto e, ainda com a cabeça a lutar inútil e melancolicamente com aquilo que fizera, caiu em um profundo estupor na sua cama.
Uma hora havia se passado e o hall parecia extremamente silencioso, quando Gloria, de olhos arregalados, e insone, atravessou-o e empurrou a porta do quarto dele. Ele estivera muito confuso para abrir as janelas e o ar estava pesado e rançoso com o cheiro de uísque. Ela se deixou ficar um instante junto à sua cama, uma figura esguia e extraordinariamente encantadora no seu pijama de seda meio masculino - em seguida atirou-se sobre ele, em abandono, acordando-o com a emoção frenética de seu abraço, vertendo suas lágrimas quentes sobre a garganta dele.
- Ah, Anthony! - chorou ardentemente -, ah, meu querido, você não sabe o que fez!
E, no entanto, de manhã, ao entrar cedo no quarto dela, ele se ajoelhou junto à sua cama e chorou como um menininho, como se fosse dele o coração partido.
- Tive a impressão, na noite passada - disse ela gravemente, com os dedos a brincar nos cabelos dele -, que toda a parte de mim que você amava, a parte que valia a pena conhecer, todo meu orgulho e meu calor haviam se perdido. Sabia que o que restara de mim haveria sempre de te amar, mas jamais exatamente da mesma maneira.
Ainda assim, ela percebia, ali mesmo, que haveria de esquecer, no seu devido tempo, e que os golpes raramente faziam parte da vida, sendo mais freqüente um contínuo desgaste. Depois daquela manhã, o incidente jamais foi mencionado, e sua ferida sarou junto com a mão de Anthony - e se houve triunfo, este pertenceu a alguma força mais obscura que a deles, que colheu os frutos da vitória e do discernimento.

INCIDENTE NIETSZCHIANO

A independência de Gloria, como todas as qualidades profundas e sinceras, nascera inconscientemente, mas depois dessa qualidade tornar-se consciente pela descoberta fascinada de Anthony, tomou mais a proporção de um código explícito. Por sua conversa, se poderia deduzir que toda sua vitalidade e energia eram investidas ativamente no princípio negativo de "jamais ligar para nada".
- Nem nada, nem ninguém - dizia ela -, exceto eu e, implicitamente, Anthony. Essa é a regra de toda vida e, mesmo que não fosse, eu seria assim de qualquer maneira. Ninguém fará nada por mim se não for gratificado, e eu tampouco, por ninguém.
Ela estava na varanda da frente da senhora mais simpática de Marietta quando disse isso e, ao terminar, deu um gritinho curioso e despencou em um desmaio profundo no chão.
A senhora fê-la recuperar a consciência e
levou-a de carro para casa. Ocorreu à cara Gloria que ela podia estar esperando um filho.
Ela se deitou na espreguiçadeira no andar de baixo. O dia escapava calidamente pela janela, roçando as rosas tardias nas colunas da varanda.
- O que sempre acho é que eu te amo
- lamentava-se ela. - Valorizo meu corpo porque você o acha bonito. E que acontecerá com este corpo meu, teu, quando ele se tornar feio e disforme? É simplesmente intolerável. Ah, Anthony, não tenho medo da dor.
Ele consolou-a desesperadamente - mas em vão. Ela continuava:
- E depois posso ficar com o quadril largo e perder a cor, perder todo meu frescor e o brilho de meus cabelos.
Ele cobria o piso com passos regulares, as mãos nos bolsos, e perguntou:
- É certo?
- Eu não sei nada. Sempre detestei a "obstrícia", ou sei lá como se chama. Achei que teria um filho um dia. Mas não agora.
- Sim, mas pelo amor de Deus, não fique aí deitada se acabando.
Seus soluços pararam. Ela colheu um silêncio compassivo do crepúsculo que enchia a sala.
- Acenda a luz - suplicou. - Os dias parecem tão breves; junho parecia ter dias mais longos quando eu era garota.
As luzes especaram e era como se pendurassem cortinas azuis da mais macia seda na porta e nas janelas. A palidez, a imobilidade de Gloria, agora nem triste nem alegre, despertaram sua simpatia.
- Você quer que eu tenha? - perguntou ela, desanimada.
- Para mim é indiferente. É isso aí, sou neutro. Se você tiver, é provável que eu goste. Se não, olha, também está bem.
- Eu gostaria que você resolvesse de uma maneira ou de outra!
- Que tal você resolver?
Ela olhou-o com desdém, declinando responder.
- Parece até que você foi escolhida entre todas as mulheres do mundo para sofrer essa suprema infelicidade.
- E se for verdade? - gritou ela, zangada.
- Para elas não é uma desgraça. É seu único pretexto de viver. É a única coisa para que servem. É uma infelicidade para mim.
- Olha aqui, Gloria, eu apoio qualquer coisa que você fizer, mas pelo amor de Deus, mantenha o moral alto.
- Ah, não se preocupe comigo - lamentou ela.
Eles trocaram um olhar silencioso, sem nenhum significado específico, mas de grande tensão. Em seguida Anthony pegou um livro na estante e se deixou cair em uma cadeira.
Meia hora depois, a voz dela surgiu da intensa imobilidade que dominava a sala e que pairava como incenso no ar.
- Amanhã irei de carro ver Constance Merriam.
- Está bem. E eu irei a Tarrytown para ver vovô.
- Sabe, não é que eu esteja com medo
- acrescentou ela -, nem disso nem de qualquer outra coisa. Eu estou sendo sincera com você, você sabe.
- Sei - concordou ele.

OS HOMENS PRÁTICOS

Adam Patch, em uma santa ira contra os alemães, sobrevivia às custas das notícias da guerra. Mapas cheios de alfinetes forravam suas paredes: havia altas pilhas de Atlas em cima de mesas, à mão, junto com "histórias fotográficas da Guerra Mundial", textos explicativos oficiais e as "impressões pessoais" de correspondentes de guerra e dos soldados rasos X, Y e Z. Várias vezes durante a visita de Anthony o secretário de seu avô, Edward Shuttleworth, o ex "Talentoso Doutor-Gin" de Pat's Place, em Hoboken, agora dotado de virtuosa indignação, aparecia de vez em quando com uma edição extra. O velho atacava cada jornal com incansável fúria, recortando as colunas que lhe pareciam suficientemente importantes para serem conservadas, que enfiava nas suas pastas já bojudas.
- Sim, o que você anda fazendo? - perguntou ele gentilmente a Anthony. - Nada. Foi o que eu achei. Tive vontade de pegar o carro para ir te ver, durante todo o verão.
- Andei escrevendo. Não lembra o ensaio que lhe mandei - aquele que vendi para The Florentine no inverno passado?
- Ensaio? Você nunca me mandou ensaio algum.
- Mandei sim. A gente conversou sobre ele. Adam Patch sacudiu levemente a cabeça.
- Ah, não. Você nunca me mandou nenhum ensaio. Pode ter pensado que mandou, mas ele nunca me chegou às mãos.
- Ora, você o leu, vovô - insistiu Anthony, um tanto exasperado -, leu e discordou.
O velho se lembrou de repente, mas isso só transpareceu porque sua boca caiu um pouco, mostrando uma série de gengivas acinzentadas. Olhando Anthony com um olhar verde e vetusto, hesitou entre confessar e encobrir o seu engano.
- Então você está escrevendo - disse depressa.
- Olha, por que não vai até lá para escrever sobre esses alemães? Escreva algo verdadeiro, algo que esteja acontecendo, algo que as pessoas possam ler.
- Não é qualquer um que pode ser correspondente de guerra - protestou Anthony. - É preciso que haja algum jornal que queira comprar suas matérias. E eu não tenho dinheiro para ir como freelance.
- Eu te mando - sugeriu surpreendentemente seu avô. - Arranjo para você ir como correspondente autorizado de qualquer jornal que você escolher.
Anthony rechaçou a idéia - mas quase ao mesmo tempo inclinou-se para ela.
- Eu - não - sei.
Ele teria que deixar Gloria, cuja vida era um anseio exclusivo por ele, que o envolvia. Gloria estava com um problema. Ah, a coisa não era viável
- no entanto - ele se via de khakí, apoiado, como todos os correspondentes de guerra, em uma pesada bengala, pasta ao ombro - tentando parecer inglês.
- Gostaria de pensar melhor sobre o assunto
- confessou ele. - Certamente é muita gentileza sua. Vou pensar e lhe dizer.
Pensar absorveu-o durante a viagem até Nova York. Ele teve uma dessas súbitas visões que ocorrem a todos os sujeitos dominados por uma mulher forte e amada. A visão mostrava um mundo de homens mais duros, com um treinamento mais agressivo e em luta com as abstrações do pensamento e da guerra. Nesse mundo os braços de Gloria só existiriam na forma do cálido abraço da amante fortuita, friamente buscados e rapidamente esquecidos...
Esses fantasmas incomuns o atormentavam quando ele entrou no seu trem para Marietta, na Grand Central Station. O vagão estava lotado; ele pegou o último assento vago e, só depois de alguns minutos deu uma olhadela fortuita ao sujeito a seu lado. Ao fazê-lo viu uma paisagem sob a forma de um nariz e uma mandíbula, um queixo curvado e pequenos olhos com bolsas sob eles. Em um instante reconheceu Joseph Bloeckman. Ambos se levantaram ao mesmo tempo, meio constrangidos, dando-se o que pode ser considerado um meio aperto de mão. Em seguida, como se para completar a cena, ambos deram uma meia risada.
- Sim senhor - comentou Anthony sem nenhuma inspiração -, há muito tempo que não te vejo. - Ele se arrependeu imediatamente dessas palavras e começou a acrescentar: - Eu não sabia que você morava para esses lados. - Mas Bloeckman
antecipou-se a ele, perguntando gentilmente:
- Como está sua mulher?
- Muito bem. E você, como tem andado?
- Excelente. - Seu tom aumentou o caráter superlativo do termo.
Pareceu a Anthony que Bloeckman adquirira maior dignidade durante o último ano. O aspecto malpassado sumira; finalmente ele parecia "ao ponto". Além do mais, não se vestia mais com exagero. Suas gravatas grotescas haviam sido substituídas por uma de padrão sério e escuro, e sua mão direita, que antes exibira dois anéis pesados, estava agora virgem de ornamentos, até mesmo do brilho natural feito na manicura.
Essa dignidade também transparecia na sua personalidade. O vestígio da auréola de
caixeiro-viajante bem sucedido desaparecera, também aquele deliberado insinuar-se cuja forma mais baixa é a piada indecente no vagão de fumantes do Pullman. Imagina-se que depois de ter sido adulado financeiramente ele alcançara certa indiferença; depois de ter sido desprezado socialmente, adquirira certa reserva. Mas seja lá o que lhe dera peso em vez de volume, isso desfez também a justa superioridade que Anthony antes sentia na sua presença.
- Você se lembra de Caramel, Richard Caramel? Acho que chegou a conhecê-lo uma noite.
- Lembro. Estava escrevendo um livro.
- Bem, vendeu-o para o cinema. Aí chamaram um roteirista chamado Jordan para trabalhar em cima dele. Dick é assinante de uma agência de recortes de imprensa e ficou furioso porque metade dos críticos comentaram a "força e o impacto de O amante endiabrado de William Jordan". Não mencionaram o velho Dick absolutamente. Dá a impressão que esse sujeito Jordan concebeu e fez isso tudo.
Bloeckman balançou a cabeça de modo compreensivo.
- A maioria dos contratos reza que o nome do escritor original deve aparecer em toda publicidade paga. Caramel ainda está escrevendo?
- Ah, sim. Escrevendo à beça. Contos.
- Que bom, que bom... Você pega este trem com freqüência?
- Cerca de uma vez por semana. Nós moramos em Marietta.
- Verdade? Olha só! Eu mesmo moro perto de Cos Cob. Acabei de comprar uma casa lá. A gente só está a oito quilômetros de distância.
- Você precisa vir nos visitar. - Anthony ficou espantado com sua própria cortesia. - Tenho certeza que Gloria ficará encantada de rever um velho amigo. Qualquer um lhe dirá onde fica a casa, é nossa segunda temporada lá.
- Obrigado. - Em seguida, como se a retribuir gentileza com gentileza: - Como vai seu avô?
- Anda bem. Almocei hoje com ele.
- É uma grande personalidade - disse, circunspecto, Bloeckman. - Um belo exemplo de americano.

O TRIUNFO DA LETARGIA

Anthony encontrou sua mulher enfiada no fundo da rede da varanda, voluptuosamente às voltas com uma limonada e um sanduíche de tomate, entregue a uma conversa aparentemente alegre com Tana sobre um dos assuntos complicados dele.
- No meu país - reconheceu Anthony sua invariável introdução -, pessoas - come - tempo todo - arroz - porque não têm. Não pode comer o que não tem.
Se sua nacionalidade não fosse tão aparente, era de se pensar que aprendera tudo do seu país natal nas geografias das escolas primárias americanas.
Depois que o oriental fora silenciado e mandado para a cozinha, Anthony virou-se para Gloria de modo interrogativo:
- Está tudo bem - proclamou ela, com um largo sorriso. - E me deixou mais espantada do que a você.
- Não tem dúvida?
- Nenhuma! Nem poderia!
Eles festejaram, contentes, de novo alegres com a renovada irresponsabilidade. Em seguida ele contou-lhe sobre a oportunidade de ir para o exterior e que quase se sentia envergonhado de rejeitá-la.
- O que você acha? Diga-me francamente.
- Poxa, Anthony! - os olhos dela estavam assustados. - Você quer ir? Sem mim?
Ele ficou sem graça - pois sabia que depois da pergunta de sua mulher já era tarde demais. Seus doces braços o estreitaram com força sufocante, já que ele fizera todas essas opções um ano atrás, na sala do Plaza. Era um anacronismo de uma época que tinha sonhos assim.
- Gloria - mentiu ele, em um impulso de inclusão -, claro que não. Achei que você pudesse ir também como enfermeira, ou algo assim. - Ele ficou imaginando o que seu avô acharia disso.
Quando ela sorriu, ele voltou a perceber como era bela, uma garota deslumbrante, com um frescor milagroso e um olhar totalmente honesto. Ela adotou sua sugestão com uma intensidade exuberante, erguendo-a como um sol privativo e se banhando em seus raios. E costurou uma espantosa sinopse de uma fantástica aventura marcial.
Depois do jantar, cansada do assunto, ela bocejou. Não queria falar, apenas ler Penrod esticada na espreguiçadeira, onde dormiu à
meia-noite. Mas Anthony, depois de tê-la carregado romanticamente para cima, ficou acordando, remoendo o dia, vagamente zangado com ela, vagamente insatisfeito.
- O que farei? - começou ele, depois do
café-da-manhã. - Aqui estamos nós, casados há um ano, nos preocupando para lá e para cá, sem sequer conseguirmos ser bon-vivants.
- Sim, você precisa fazer alguma coisa
- concordou ela, já que estava em um estado de espírito cordato e loquaz. Esta não era a primeira dessas discussões, mas como seu desenrolar normalmente dava a Anthony o papel de protagonista, ela acabara evitando-as.
- Não é que eu sinta ter alguma obrigação moral de trabalhar - prosseguiu ele -, mas vovô pode morrer amanhã ou pode viver mais dez anos. Nesse meio tempo a gente vive gastando mais do que pode e só temos de nosso um carro de fazendeiro e algumas roupas. A gente mantém um apartamento onde só moramos três meses, e uma pequena e velha casa no cafundó do Judas. A gente se entedia com freqüência e não faz nenhum esforço para conhecer mais gente além da mesma turma que perambula todo verão pela Califórnia, de roupas esporte, esperando que suas famílias morram.
- Como você mudou! - comentou Gloria. - Você me disse uma vez que não sabia por que um americano não poderia ter uma elegante vida de ócio.
- Que diabo, eu não era casado. E a velha cabeça trabalhava a toda, quando agora ela gira e gira como uma engrenagem que nada pára. Aliás, acho que se eu não tivesse te conhecido, eu teria feito alguma coisa. Mas você torna o lazer tão sutilmente atraente.
- Ah, a culpa toda é minha.
- Eu não quis dizer isso, você sabe que não. Mas aqui estou, com quase 27 anos e...
- Ah - interrompeu ela aborrecida -, você me deixa cansada! Falando como se eu estivesse contrariando ou te impedindo.
- Eu só estava discutindo o assunto, Gloria. Será que não posso discutir...
- Acho que você devia ser bastante forte para resolver...
- ...algo com você sem que...
- ...seus próprios problemas sem vir falar comigo. Você fala muito em trabalhar. Eu bem que gostaria de ter mais dinheiro, mas não reclamo. Trabalhando ou não trabalhando, eu te amo da mesma maneira. - Suas últimas palavras foram suaves como neve fina caindo sobre o terreno duro. Mas no momento nenhum deles prestava atenção no outro - estavam ambos ocupados a polir e aperfeiçoar suas próprias atitudes.
- Já trabalhei, um pouco. - Dito por Anthony, isso era uma provocação imprudente de restrições dolorosas. Gloria riu, dividida entre o prazer e o escárnio; ela se aborrecia com seus sofismas, mas ao mesmo tempo admirava sua displicência. Jamais o culparia por ser um preguiçoso inútil, desde que ele o fosse com sinceridade, a partir da atitude de que nada valia a pena fazer.
- Trabalho! - zombou ela. - Ah, pobre tipo! Seu enganador! Trabalho: isso significa grandes arrumações na escrivaninha e nas luminárias, fazer muita ponta nos lápis, e "Gloria, pare de cantar!", e "Por favor, mantenha esse diabo do Tana longe de mim", e "deixe que eu leia minha primeira frase para você", e "levarei muito tempo para acabar, Gloria, por isso não fique acordada me esperando", e um tremendo consumo de chá e café. E só. Dentro de mais ou menos uma hora, ouço o velho lápis que deixou de raspar o papel e dou uma olhada. Você tirou um livro da estante e está "consultando" alguma coisa. Em seguida está lendo. Em seguida bocejando - e tome cama, se revirando para lá e para cá porque está tão entupido de cafeína que não consegue dormir. Duas semanas depois e toda a cerimônia se repete.
Com grande dificuldade, Anthony consegue manter ainda um fiapo de dignidade.
- Ora, isso é um ligeiro exagero. Você sabe muito bem que vendi um ensaio para The Florentine, que chamou bastante atenção, considerando a circulação de The Florentine. E tem mais, Gloria, você sabe que fiquei acordado até as cinco da madrugada acabando-o.
Ela se deixou ficar em silêncio, dando-lhe corda. E ainda que ele não tivesse se enforcado, certamente chegou ao fim dela.
- Pelo menos - concluiu debilmente - estou perfeitamente disposto a ser um correspondente de guerra.
Mas Gloria também. Ambos estavam dispostos
- ansiosos; asseguraram-se mutuamente. A noite terminou em um tom de sentimento exaltado à majestade do ócio, à má saúde de Adam Patch, ao amor a todo custo.
- Anthony! - chamou ela por cima da balaustrada, certa tarde, uma semana depois - Tem alguém na porta.
Anthony, que estava à toa na rede da varanda do sul, salpicada de sol, caminhou em volta da casa. Havia um carro estrangeiro, grande e impressionante, agachado como um enorme e melancólico besouro no início do caminho. Um sujeito, em um terno leve de ponjê, com um boné combinando, saudou-o.
- Oi, Patch. Dei um pulo até aqui para te visitar.
Era Bloeckman; como sempre, infimamente melhorado, com uma entonação mais sutil, mais convincentemente à vontade.
- Fico muito satisfeito com isso. - Anthony ergueu sua voz para uma janela cercada de hera:
- Glor-i-a! Temos visita!
- Estou dentro da banheira - lamentou-se ela polidamente.
Com um sorriso os dois homens reconheceram o triunfo de seu álibi.
- Ela já vai descer. Vem aqui para a varanda do lado. Quer beber alguma coisa? Gloria vive na banheira uma boa terça parte do dia.
- Pena que ela não more no Sound.
- Não posso bancar.
Isso, vindo de um neto de Adam Patch, foi tido como uma espécie de piada por Bloeckman. Depois de quinze minutos cheios de calculáveis brilhantismos, apareceu Gloria, viçosa em uma roupa amarela engomada, melhorando a atmosfera e causando um aumento de vitalidade.
- Quero ser um sucesso sensacional no cinema
- proclamou. - Ouvi dizer que Mary Pickford ganha um milhão de dólares por ano.
- Você bem que podia, sabe? - disse Bloeckman.
- Acho que deve ser muito fotogênica.
- Você deixaria, Anthony? Se eu representar apenas papéis simples?
Enquanto a conversa transcorria, cheia de aspas afetadas, Anthony ficou pensando que para ele e Bloeckman esta garota já fora a personalidade mais estimulante e instigante que eles conheceram - e agora os três ficavam sentados como máquinas lubrificadas demais, sem conflito, sem medo, sem exaltação, figurinhas bem esmaltadas, seguras e inalcançáveis pelo prazer, em um mundo em que a guerra e a morte, a emoção bruta e a nobre selvageria cobriam um continente com os fumos do terror.
Dentro de um instante ele chamaria Tana e verteriam dentro de si mesmos um veneno alegre e delicado, que lhes devolveria momentaneamente a prazerosa excitação da infância, quando cada rosto na multidão insinuava importantes e esplêndidas transações ocorrendo em algum lugar, visando algum magnífico e ilimitado objetivo... A vida não era nada mais do que aquela tarde de verão; uma ligeira brisa a brincar com a gola rendada do vestido de Gloria, a preguiça em fogo lento da varanda... Pareciam todos intoleravelmente indiferentes, distantes de qualquer iminência romântica de qualquer ação. Até mesmo a beleza de Gloria precisava de emoções descontroladas, pungência, morte...
- A qualquer dia, na semana que vem - dizia Bloeckman para Gloria. - Olha, fique com este cartão. Eles farão um teste com você de cerca de trezentos pés de película, e daí dá para avaliarem com bastante exatidão.
- Que tal quarta?
- Quarta está ótimo. Basta me telefonar que irei até lá com você.
Ele já estava de pé, apertando com força as mãos - em seguida seu carro se transformou em um fantasma de poeira estrada abaixo. Anthony virou-se para sua mulher, espantado.
- Ora, Gloria!
- Você não se importa se eu fizer um teste, Anthony? Só um teste? Preciso ir à cidade na quarta, de qualquer maneira.
- Mas é uma tolice! Você não quer entrar para o cinema para ficar à toa no estúdio o dia inteiro com uma porção de figurantes vulgares.
- Mary Pickford fica uma porção de tempo à toa!
- Nem todo mundo é Mary Pickford.
- Sim, mas não dá para entender como você pode ser contra minha tentativa.
- Ah, sou contra sim. Detesto atores.
- Você me cansa. Você imagina que me divirto às maravilhas cochilando nesta porcaria de varanda?
- Ora, você não se importaria, se me amasse.
- É claro que te amo - disse ela impaciente, criando depressa um argumento para si mesma. - É justamente porque detesto ver você se acabar, ficando aí deitado e dizendo que precisa trabalhar. Talvez se eu entrasse nisso, temporariamente, você se sentiria estimulado a fazer alguma coisa.
- Não passa de sua ânsia por agitação, só isso.
- Talvez seja! É uma ânsia perfeitamente natural, não é?
- Bem, te digo uma coisa. Se você entrar para o cinema, eu vou para a Europa.
- Sim, então vá! Eu não estou te impedindo!
Para mostrar que não impedia, ela se debulhou em lágrimas melancólicas. Juntos, convocaram os exércitos do sentimento - palavras, beijos, carícias, remorsos. Não chegaram a nada. Inevitavelmente, não chegaram a nada. Por fim, em um ímpeto colossal de emoção, cada um sentou-se e escreveu uma carta. A de Anthony era para seu avô; a de Gloria para Joseph Bloeckman. Foi um triunfo da letargia.
Um dia, no início de julho, Anthony, de volta de uma tarde em Nova York, chamou Gloria no andar de cima. Como não recebeu resposta, presumiu que ela estivesse dormindo e por isso foi até a despensa para pegar um dos pequenos sanduíches que sempre preparavam para eles. Encontrou Tana sentado à mesa da cozinha, diante de uma barafunda de quinquilharias - caixas de charuto, facas, lápis, tampas de lata e alguns pedaços de papel cobertos de diagramas e figuras complicados.
- Que diabo está fazendo? - perguntou curioso Anthony.
Tana sorriu polidamente.
- Eu mostro - exclamou entusiasmado. - Eu conto...
- Você está fazendo uma casinha de cachorro?
- Non sinhô - sorriu de novo Tana. - Fazer máquina escrever.
- Máquina de escrever?
- Sim sinhô. Eu penso, penso tempo todo, penso em cama sobre máquina escrever.
- Então achou que podia fazer uma, é?
- Espera. Eu conto.
Anthony, mastigando um sanduíche, encostou-se descansadamente na pia. Tana abriu e fechou a boca várias vezes, como se estivesse testando seu funcionamento. Em seguida começou, com uma investida:
- Tive pensando - máquina escrever - tem muita, muita, muita coisa. Ah, muita, muita, muita, muita.
- Muitas teclas. Sei
- Não-ão? Sim - tecla! Muita muita muita muita letla. Como a-b-c.
- É. Você tem razão.
- Espera. Eu conto - ele franziu seu rosto em um tremendo esforço para se expressar: - Ande pensando - muita palavras - acabam igual. Como e-n-d-o.
- Com certeza. Um caminhão delas.
- Enton - faço máquina escrever - rápido. Sem tanta letlas.
- É uma excelente idéia, Tana. Poupa tempo. Você vai ganhar uma fortuna. É só apertar uma tecla e surge "endo". Espero que você consiga elaborá-la.
Tana riu de modo depreciativo.
- Espera. Eu conto.
- Onde está a senhora Patch?
- Ela sair. Espera, eu conto - ele novamente franziu o rosto para entrar em ação. - Minha máquina escrever...
- Onde está ela?
- Aqui - eu faço - e apontou para a miscelânea de quinquilharias na mesa.
- Quero dizer, a senhora Patch.
- Ela sair - ressegurou-o Tana. - Vá voltar às cinco horas, ela disse.
- Foi para a aldeia?
- Non. Foi antes almoço. Ela foi com senhor Bloeckman. Anthony teve um sobressalto.
- Saiu com o senhor Bloeckman?
- Vá voltar às cinco.
Sem dizer palavra Anthony deixou a cozinha, com o "eu conto" desconsolado de Tana na sua esteira. Então era essa a idéia que Gloria tinha de agitação, que diabo! Seus punhos se fecharam; em um instante ele chegara a um nível extremo de indignação. Foi até a porta e olhou para fora; não havia nenhum carro à vista e seu relógio marcava quatro para as cinco. Com furiosa energia, correu até o final do caminho - até o final da curva na estrada, a um quilômetro e pouco de distância, ele não conseguia ver carro algum - exceto um, mas era um calhambeque de fazendeiro. Em seguida, em uma busca indigna de dignidade, correu de volta para a segurança da casa, tão depressa quanto saíra dela.
Dando passadas pelo piso da sala de estar, começou um ensaio raivoso do discurso que ele faria quando ela entrasse.
"Então é isso o amor!", diria - ou não, parecia demais com a expressão popular, "então, é isso que é Paris!". Ele precisava estar composto, machucado, triste. De todo modo: "Então é isso que você faz quando tenho de sair e andar o dia inteiro no calor da cidade para tratar de negócios. Não é de espantar que eu não consiga escrever! Não é de espantar que eu não ouse deixar você sair do alcance de minha vista!" Ele se estendia agora, se aquecendo quanto ao assunto. "Vou te contar", continuou, "vou te contar...", e fez uma pausa, detectando um tom familiar nessas palavras. E então percebeu: era o "contar" de Tana.
Não obstante, Anthony não riu nem pareceu ridículo aos próprios olhos. Na sua imaginação exaltada, já eram seis - sete - oito horas, e ela nunca que voltava! Bloeckman, encontrando-a entediada e infeliz, convencera-a a ir com ele para a Califórnia.
Houve um grande tumulto lá fora, um alegre "Alô, Anthony!" e ele se levantou trêmulo, débil e feliz ao vê-la subir adejando pelo caminho. Bloeckman vinha atrás, com o boné na mão.
- Querido! - gritou ela.
- Fizemos uma excursão e tanto, por todo estado de Nova York.
- Eu preciso ir para casa - disse quase de imediato Bloeckman. - Eu queria que ambos estivessem, quando vim.
- Infelizmente eu não estava - respondeu secamente Anthony.
Depois que ele foi embora, Anthony hesitou. O medo abandonara seu coração, no entanto achou que algum protesto era eticamente cabível. Gloria resolveu sua incerteza.
- Eu sabia que você não se importaria. Ele veio logo antes do almoço e disse que precisava ir a Garrison a negócios e se eu não queria ir com ele. Ele parecia tão solitário, Anthony. E dirigi o carro dele o tempo todo.
Anthony deixou-se cair com indiferença em uma poltrona, com a cabeça cansada - cansada de nada, cansada de tudo, com o fardo do mundo que ele optara por nunca carregar. Ele era inútil e vagamente desvalido aqui, como sempre fora. Uma dessas personalidades que, apesar de todo seu palavrório, não são articuladas; parecia ter herdado apenas a vasta tradição do fracasso humano - isto e a sensação da morte.
- Acho que não me importo - respondeu.
A gente precisa ser tolerante com essas coisas e, por ser jovem e bonita, Gloria precisava desfrutar de razoáveis privilégios. No entanto, ele ficava esgotado por não conseguir compreender.

INVERNO

Ela virou-se de barriga para cima e ficou parada por um momento na grande cama, observando o sol de fevereiro sofrer uma derradeira redução ao ser coado pelas vidraças nos caixilhos de chumbo e entrar no quarto. Durante algum tempo faltou-lhe qualquer sensação exata de onde estava e dos acontecimentos do dia anterior, e do anterior a este; em seguida, como um pêndulo suspenso, a memória começou a martelar sua história, fazendo reviver com cada balanço um quinhão pesado do tempo, até que a vida lhe fosse restituída.
Ela era capaz de ouvir agora a respiração pesada de Anthony a seu lado; sentia o cheiro de uísque e fumaça de cigarro. Percebeu que lhe faltava totalmente qualquer controle muscular; mover-se não era um ato sinuoso, cujo esforço resultante distribuía-se com facilidade pelo corpo - era um tremendo esforço de seu sistema nervoso, como se a cada vez ela precisasse se hipnotizar para se obrigar a fazer uma ação impossível...
Ela estava no banheiro escovando os dentes para se livrar daquele gosto intolerável; em seguida, de volta ao pé da cama, ouvindo o chocalhar das chaves de Bounds na porta de entrada.
- Acorde, Anthony! - disse rispidamente.
Ela deitou na cama a seu lado e fechou os olhos.
A última coisa de que ela se lembrava era uma conversa com o senhor e senhora Lacy. A senhora Lacy dissera, "Tem certeza que não quer que a gente lhe arranje um táxi?", e Anthony respondera que achava que eles podiam ir andando sem problema até a Fifth. Então ambos tentaram a imprudência de fazer uma mesura - e despencaram ridiculamente no meio de um batalhão de garrafas de leite vazias na porta. Devia haver umas duas dúzias de garrafas de leite de goelas abertas na escuridão. Ela não conseguia descobrir qualquer explicação plausível para aquelas garrafas de leite. Talvez houvessem sido atraídas pela cantoria na casa dos Lacy, acorrendo deslumbradas para assistir à brincadeira. Porém, levaram a pior - embora Anthony e Gloria tivessem a impressão de jamais conseguir se levantar, pois aquelas coisas teimosas ficavam rolando de tal maneira...
Mesmo assim, encontraram um táxi.
- Meu taxímetro está quebrado e a corrida até em casa vai custar um dólar e meio - disse o motorista de táxi.
- Olha - disse Anthony -, eu sou o jovem Packy McFarland e se você vier até aqui eu te darei uma surra até te derrubar.
A essa altura o sujeito foi embora sem levá-los. Eles devem ter encontrado outro táxi, já que estavam no apartamento...
- Que horas são? - Anthony estava sentado na cama, fitando-a com a precisão de uma coruja.
Era obviamente uma pergunta pro forma. Gloria não conseguia imaginar por que cargas d'água deveria saber as horas.
- Caramba, eu me sinto um terror! - murmurou, impassível, Anthony. Ao relaxar, voltou a despencar nos travesseiros. - Traga-me a indesejada das gentes!
- Anthony, como é que conseguimos chegar em casa ontem à noite?
- Táxi.
- Ah! - e depois de uma pausa: - Você me botou na cama?
- Não sei. Parece que você me botou na cama. Que dia é hoje?
- Terça.
- Terça? Espero que sim. Se for quarta, é o dia em que preciso começar a trabalhar naquele lugar imbecil. Devo chegar às nove, ou a uma hora escandalosa dessas.
- Pergunte a Bounds - sugeriu debilmente Gloria.
- Bounds! - chamou ele.
Sóbria e animadamente - com a voz brotada de um mundo que eles pareciam haver abandonado para sempre nos dois últimos dias, Bounds cobriu o corredor em pequenos passos e surgiu na penumbra da porta.
- Qual o dia, Bounds?
- Vinte e dois de fevereiro, acho.
- Quero dizer dia da semana.
- Terça.
- Obrigado.
Depois de fazer uma pausa:
- O senhor está pronto para tomar o café?
- Sim, mas antes de traze-lo, Bounds, pegue uma jarra de água e ponha-a aqui ao lado da cama. Estou com um pouco de sede.
- Sim, senhor.
Bounds recuou, digno e sóbrio, de volta pelo corredor.
- Dia do aniversário de Lincoln - afirmou, sem entusiasmo, Anthony -, ou de São Valentino, ou de alguém. Quando é que começamos essa farra insana?
- Domingo à noite.
- Depois da igreja - disse sarcasticamente.
- A gente andou a cidade inteira naquelas charretes e Maury foi sentar na frente com o cocheiro, não lembra? Depois viemos para casa e ele tentou fritar bacon, surgiu da cozinha com uns restos enegrecidos, insistindo que estava "tostadinho como devia".
Ambos riram, espontaneamente, embora com alguma dificuldade e, deitados ali, lado a lado, recapitularam os acontecimentos que culminaram naquela caótica e rançosa madrugada.
Estavam em Nova York há quase quatro meses, já que o campo se tornara demasiado frio no final de outubro. Tinham abandonado a Califórnia este ano, em parte por falta de numerário, em parte com a idéia de viajar, caso aquela guerra interminável, já entrada no seu segundo ano, terminasse nesse inverno. Por último sua renda perdeu elasticidade; já não esticava mais para cobrir caprichos alegres nem belas extravagâncias, e Anthony passara muitas horas, pasmo e insatisfeito, debruçado sobre um caderno cheio de algarismos, criando orçamentos espantosos que davam larga margem a "diversões e viagens etc.", tentando calcular, mesmo aproximadamente, seus gastos anteriores.
Ele se lembrava da época em que caía na "farra" com seus dois melhores amigos, e ele e Maury pagavam invariavelmente mais que sua parte nas despesas. Compravam as entradas para o teatro e brigavam entre si para pagar a conta do jantar. Parecia justo; Dick, com sua ingenuidade e seu espantoso cabedal de informação sobre si mesmo, era uma figura divertida, quase juvenil - o bobo da corte diante da realeza deles. Mas isso não era mais verdade. Era Dick quem sempre tinha dinheiro; era Anthony quem recebia socialmente, dentro de seus limites - sempre, com exceção de eventuais farras desenfreadas, regadas a vinho, pagas com cheques -, e era Anthony quem ficava todo circunspecto sobre isso na manhã seguinte e dizia a uma Gloria aborrecida e cheia de desprezo que eles precisavam "tomar mais cuidado da próxima vez".
Nos dois anos desde o lançamento de O amante endiabrado, Dick faturara mais de 25 mil dólares, a maior parte recentemente, quando a renda do ficcionista já começara a engordar de maneira inaudita como resultado da fome de roteiros por parte do cinema. Ele ganhava setecentos dólares por cada conto, na época um grande honorário para alguém tão jovem - não chegara ainda aos trinta - e para cada texto, com bastante "ação" (beijos, tiroteios, mortes), destinado ao cinema, obtinha mil dólares adicionais. Seus contos variavam; havia certa vitalidade e uma espécie de técnica intuitiva em todos eles, mas nenhum chegou à qualidade de O amante endiabrado, e Anthony achava vários bastante desprezíveis. Estes, explicava seriamente Dick, eram para ampliar seu público. Não era verdade que gente que se eternizara, de Shakespeare a Mark Twain, seduzira tanto os eleitos quanto a multidão?
Embora Anthony e Maury discordassem, Gloria disse a ele para tratar de ganhar o máximo de dinheiro possível - aliás, era a única coisa com que contava...
Maury, um pouco mais gordo, ligeiramente mais maduro e afável, fora trabalhar na Filadélfia. Vinha a Nova York uma ou duas vezes por mês, e nessas ocasiões os quatro percorriam os trajetos mais famosos que iam dos jantares aos teatros, dali para as farras ou, talvez impelidos pela extrema curiosidade de Gloria, até um dos porões de Greenwich Village, cuja fama se devia à moda breve porém vigorosa do "movimento da nova poesia".
Em janeiro, depois de muitos monólogos dirigidos à sua reticente esposa, Anthony resolveu arranjar "alguma coisa para fazer", ao menos durante o inverno. Queria agradar ao avô e, de certo modo, ver até que ponto aquilo lhe agradava. Descobriu depois de várias visitas de sondagem um tanto quanto sociais que os patrões não se interessavam por um rapaz que queria "fazer uma experiência de alguns meses, mais ou menos". Na qualidade de neto de Adam Patch, era recebido em todo canto com indiscutível cortesia, mas o velho era agora um "exemplar vencido" - o auge de sua fama, primeiro como "opressor" e depois como esteio moral do povo, ocorrera durante os vinte anos anteriores à sua aposentadoria. Anthony chegou a encontrar, entre o pessoal mais jovem, alguns sujeitos que tinham a impressão de que Adam Patch já falecera há alguns anos.
Finalmente Anthony procurou seu avô em busca de conselhos. Este sugeriu que ele fizesse corretagem de títulos, idéia tediosa para Anthony, mas que ele acabou resolvendo seguir. Em todo caso, o dinheiro em estado puro, manipulado com destreza, tinha lá seu fascínio, enquanto quase todas as facetas da indústria eram insuportavelmente tediosas. Imaginou trabalhar em um jornal, mas os horários eram incompatíveis com a vida de casado. E demorava-se em devaneios sobre si mesmo como editor de algum brilhante semanário opinativo, um Mercure de France americano, ou como um notável produtor de sátiras cômicas e revistas musicais parisienses. No entanto, os acessos a essas atividades pareciam guardados a sete chaves. As pessoas acabavam chegando a elas pelos caminhos tortuosos da escrita e do palco. Era evidentemente impossível entrar para uma revista se a pessoa já não tivesse pertencido a outra.
Assim afinal ele penetrou, por intermédio da carta de seu avô, naquele Sanctum Americanum onde, diante de sua mesa arrumada, encontrava-se sentado o presidente da Wilson, Heimer e Hardy. E saiu dali empregado. Começaria a trabalhar em 23 de fevereiro.
Em homenagem a essa importante ocasião é que haviam planejado aquela festança de dois dias, já que, dissera ele, depois de começar o trabalho teria de dormir cedo durante a semana. Maury Noble chegara da Filadélfia em viagem que tinha algo a ver com procurar alguém em Wall Street (que acabou não procurando), e Richard Caramel fora meio persuadido e meio enganado para se juntar a eles. Tiveram a condescendência de contrair um casamento chuvoso e elegante na segunda de tarde, e de noite ocorrera o desfecho: Gloria, depois de ultrapassar seu limite costumeiro de quatro coquetéis bem espaçados, os arrastara para uma farra tão alegre e festiva como jamais haviam testemunhado, demonstrando um surpreendente conhecimento de passos de balé e cantando cantigas que ela confessou lhe terem sido ensinadas por sua cozinheira na inocência de seus dezessete anos. Ela as repetia, a pedidos, de forma intermitente durante a noite inteira, com uma alegria tão espontânea que Anthony, longe de se zangar, se viu encantado com aquela nova fonte de diversão. A ocasião foi memorável de diversos modos, como devido à longa conversa entre Anthony e um caranguejo morto, arrastado por ele na ponta de um barbante, sobre a familiaridade com os empregos do teorema binomial, e à corrida já citada em duas carruagens, tendo as sombras impressionantes e impassíveis da Quinta Avenida como testemunhas, acabando com uma fuga labiríntica na escuridão do Central Park. Por fim, Anthony e Gloria foram fazer uma visita a uns amigos malucos e recém-casados - os Lacy -, desabando em cima das garrafas de leite vazias.
Pela manhã - era a eles que cabia somar os cheques pagos aqui e ali em boates, lojas e restaurantes. Cabia a eles arejar a sala da frente azul, de pé direito alto, para tirar o cheiro rançoso de vinho e cigarros, apanhar os copos quebrados e escovar os tecidos manchados das poltronas e sofás; entregar a Bounds os ternos e os vestidos para a lavanderia; e, finalmente, obrigar seus corpos asfixiados e meio febris, seus espíritos murchos e deprimidos a saírem no ar gelado de fevereiro, de modo que a vida continuasse e Wilson, Hiemer e Hardy pudessem obter os serviços de um homem cheio de vigor às nove horas da manhã seguinte.
- Lembra - gritou Anthony do banheiro - quando Maury foi para a esquina da One Hundred and Tenth Street e bancou o guarda de trânsito, mandando os carros avançarem e pararem? Devem ter pensado que ele era detetive particular.
Depois de cada lembrança ambos riam desbragadamente; seus nervos, extenuados, reagiam com exagero tanto ao humor quanto à depressão.
Gloria, diante do espelho, pensava no belo colorido e no viço aparente do seu rosto - tinha a impressão de que nunca parecera tão bem, embora sentisse dor de estômago e uma tremenda dor de cabeça.
O dia passou devagar. Anthony foi de táxi até seu corretor para pegar dinheiro emprestado sobre um título e descobriu que só tinha dois dólares no bolso. A corrida custaria toda esta quantia, mas ele sentiu que naquela tarde em particular não agüentaria o metrô. Quando o taxímetro chegasse a seu limite, era preciso saltar e ir a pé.
Diante disso, sua mente divagou em um dos seus devaneios típicos... No devaneio ele descobriu que o taxímetro estava virando depressa demais - o motorista o adulterara desonestamente. Com toda a calma, chegou a seu destino e entregou displicentemente o que ele devia de fato ao sujeito. O homem quis briga, mas antes de conseguir levantar as mãos, Anthony já o derrubara com um tremendo soco. E quando ele se levantou, Anthony derrubou-o em definitivo com um golpe na têmpora.
...Estava agora no tribunal. O juiz multara-o em cinco dólares e ele não tinha o dinheiro. O tribunal aceitaria um cheque seu? Ah, mas o tribunal não o conhecia. Sim, mas ele podia se identificar se eles telefonassem para seu apartamento.
...Fizeram-no. Sim, era a senhora Anthony Patch no aparelho - mas como ela podia saber que aquele homem era seu marido? Como? Mandassem o sargento lhe perguntar se ela se lembrava das garrafas de leite...
Ele se inclinou para frente depressa e bateu no vidro. O táxi estava apenas na Brooklin Bridge, mas o taxímetro já estava em um dólar e oitenta centavos, e Anthony jamais deixaria de dar dez por cento de gorjeta.
Mais para o final da tarde ele voltou para o apartamento. Gloria também tinha saído - para fazer compras - e dormia, encolhida em um canto do sofá, com sua aquisição firmemente envolvida pelos seus braços. Seu rosto estava tranqüilo como o de uma menina pequena, e o embrulho que ela apertava com força nos braços era de uma boneca, um bálsamo incalculável para seu coração perturbado de criança.

DESTINO

Foi com essa farra, e mais especificamente pela parte que Gloria desempenhou nela, que começou a haver uma mudança significativa na maneira deles viverem. A gloriosa atitude de não ligar para nada sofreu uma alteração de um dia para o outro; de princípio ético de Gloria, tornou-se o consolo e justificação geral para o que escolhiam fazer e as conseqüências disso. Não se lastimar, não deixar escapar um único grito de remorso, e buscar a satisfação do momento da maneira mais intensa e persistente possível.
- Não, ninguém se importa com a gente, a não ser a gente mesmo, Anthony - disse ela um dia. - Seria ridículo da minha parte andar por aí fingindo que devo alguma obrigação ao mundo; quanto a me preocupar com a opinião dos outros, eu simplesmente não me preocupo, e basta. Desde garotinha, nas aulas de dança, eu era criticada pelas mães de todas as garotinhas que não eram populares como eu, e passei a encarar sempre a crítica como uma espécie de elogio dos invejosos.
Isso foi por causa de uma farra no Boul' Mich, uma noite, quando Constance Merriam a vira participando de um grupo de quatro, extremamente animado. Constance Merriam, "como velha amiga do colégio", se dera ao trabalho de convidá-la para o almoço, no dia seguinte, para informar que aquilo lhe dera uma impressão terrível.
- Eu disse a ela que não achava - contou Gloria a Anthony. - Eric Merriam é uma espécie de Percy Woolcot sublimado. Lembra do sujeito em Hot Springs do qual te falei? Sua idéia de respeitar Constance é deixá-la em casa com suas costuras, seu livro e seu bebê, ou diversões igualmente inócuas, toda vez que ele vai a uma festa que promete não ser mortalmente chata.
- Você disse isso para ela?
- Claro que sim. E disse que a desaprovação dela era, na verdade, porque eu estava me divertindo mais do que ela.
Anthony aplaudiu. Ele tinha um tremendo orgulho de Gloria, orgulho de ela jamais deixar de ofuscar quaisquer outras mulheres presentes no grupo, orgulho porque os homens sempre gostavam de se divertir junto com ela no meio de grandes e ruidosos grupos, sem nenhuma outra intenção além de fruir sua beleza e seu calor vital.
Essas "farras" se transformaram na principal fonte de sua diversão. Apaixonados ainda, tremendamente interessados um pelo outro ainda, descobriram, no entanto, ao aproximar-se a primavera, que passar a noite em casa lhes entediava; os livros eram irreais; o antigo encanto de ficarem sozinhos há muito acabara - em vez disso, preferiam se entediar com uma comédia musical tola, ou ir jantar com os mais desinteressantes dos seus conhecidos, desde que houvesse coquetéis o bastante para evitar que a conversa se tornasse inteiramente intolerável. Um punhado de casais mais jovens, que haviam sido seus amigos no colégio ou na universidade, além de um grupo variado de homens solteiros, deu para pensar instintivamente neles toda vez que havia uma demanda por vivacidade e animação, de modo que mal se passava um dia sem um telefonema, sem um "o que vocês vão fazer esta noite?". As esposas, em geral, temiam Gloria - a facilidade com que conquistava o centro do palco, sua maneira inocente, ainda que perturbadora, de tornar-se a favorita dos maridos - essas coisas empurravam-nas instintivamente para uma atitude de profunda desconfiança, intensificada pelo fato de Gloria se mostrar geralmente indiferente a qualquer intimidade com uma outra mulher.
Na quarta-feira marcada de fevereiro, Anthony foi ao imponente escritório de Wilson, Hiemer e Hardy e escutou uma porção de instruções vagas dadas por um rapaz vigoroso, mais ou menos da sua idade, chamado Kahler, que tinha um topete louro audacioso e, ao se declarar secretário assistente, deu a impressão de que aquilo era um tributo à sua habilidade excepcional.
- Há dois tipos de sujeitos aqui, você verá
- disse. - Tem o sujeito que consegue chegar a secretário assistente ou tesoureiro, tendo seu nome incluído no nosso folheto, antes dos trinta, e tem o sujeito que consegue incluir o seu com 45. O sujeito que tem seu nome incluído com 45 anos fica ali para resto da sua vida.
- E o sujeito incluído aos trinta? - perguntou polidamente Anthony.
- Sim, ele vai aqui para cima, veja - e ele apontou para uma lista de assistentes de
vice-diretor no folheto. - Ou talvez chegue a presidente, secretário ou tesoureiro.
- E esses outros aqui?
- Esses? Ah, esses são os curadores, os homens do capital.
- Compreendo.
- Agora, tem gente - prosseguiu Kahler - que pensa que deslanchar cedo depende de ter ou ter não uma educação superior. Mas estão enganados.
- Compreendo.
- Fui um deles; me formei em Buckleigh, turma de
1911, mas quando vim aqui para Wall Street descobri logo que as coisas que podiam me ajudar não eram aquelas coisas complicadas que aprendi na universidade. Na verdade, tive de varrer muitas delas de minha cabeça.
Anthony não pôde deixar de imaginar o que poderiam ser "as coisas complicadas" que ele aprendera em Buckleigh em 1911. Veio-lhe a idéia irreprimível, que se repetia durante o resto da conversa, de que se tratava de alguma espécie de trabalho de costura.
- Está vendo aquele sujeito lá? - apontou Kahler para um homem ainda meio jovem, com elegantes cabelos grisalhos, sentado em uma escrivaninha dentro de uma balaustrada de mogno. - Aquele é o senhor Ellinger, primeiro vice-presidente. Esteve em todo canto, já viu tudo; recebeu uma ótima educação.
Era em vão que Anthony procurava abrir sua cabeça para a virtualidade ficcional do mundo das finanças; ele só conseguia imaginar o senhor Ellinger como um daqueles compradores das belas coleções, encadernadas a couro, de Thackeray, Balzac, Hugo e Gibbon, que enchiam as paredes das grandes livrarias.
Preparou-se para dedicar o mês úmido e insosso de março às vendas. Por lhe faltar entusiasmo, só era capaz de entender o tumulto e a azáfama que o cercavam como um ambiente infrutífero, visando um objetivo incompreensível, evidenciado de modo concreto pelas mansões do senhor Frick e do senhor Carnegie, que se rivalizavam na Fifth Avenue. O fato de que esses portentosos vice-presidentes e curadores fossem, na verdade, os pais dos "padrinhos" de casamento que ele conhecera em Harvard pareceu-lhe absurdo.
Ele comia em um refeitório dos funcionários, lá em cima, constrangido pela desconfiança de estar sendo promovido, pensando, na primeira semana, se as dezenas de jovens escriturários, alguns deles alertas e impecáveis, recém-saídos da universidade, viviam na louca esperança de estar presentes naquela folha estreita de cartolina antes dos catastróficos trinta anos. A conversa que se articulava com o padrão do dia de trabalho era bastante consistente com ele. Discutia-se como o senhor Wilson ganhara seu dinheiro, que método o senhor Hiemer empregara e os meios de que se valera o senhor Hardy.
Contavam-se anedotas provectas, mas que deixavam seus ouvintes eternamente sem fôlego, sobre fortunas descobertas de repente em Wall Street por um "açougueiro" ou um "barman", ou "um danado de um boy, Santíssimo!"; e então se falava das apostas correntes, se era melhor visar cem mil por ano ou ficar contente com vinte. Durante o ano anterior um dos secretários assistentes investira todas suas economias em Bethlehem Steel. A história de sua grandeza espetacular, de sua orgulhosa renúncia em janeiro, do palácio majestoso que ele estava construindo na Califórnia, era o assunto oficial predileto no escritório. O próprio nome do sujeito adquirira uma importância mágica, simbolizando, como fazia, as aspirações de todos os bons americanos. Contavam-se anedotas a seu respeito - como um dos vice-presidentes aconselhara-o a vender, puxa vida, mas ele segurara, chegando mesmo a comprar na alta, "e agora, olha só onde ele está!".
Essa era obviamente a essência da vida - um triunfo vertiginoso e deslumbrante, uma encantadora cigana que os faziam se contentar com os salários magros e a improbabilidade matemática de seu eventual sucesso.
Para Anthony essa noção tornou-se pavorosa. Sentiu que para ter sucesso ali, a idéia do sucesso precisava dominar e limitar sua mente. Parecia-lhe que o elemento essencial desses homens bem sucedidos era sua crença de que seus negócios representavam o próprio cerne da vida. Como todas as demais coisas se igualavam, o oportunismo e a confiança em si mesmo superavam o conhecimento técnico; era óbvio que o trabalho mais técnico era feito perto da parte inferior - assim, com sua eficiência conveniente, os técnicos eram mantidos ali.
Sua resolução de ficar em casa durante a semana não se manteve, e mais da metade das vezes ele ia trabalhar com uma dor de cabeça nauseante, infernal, com o pavor do metrô atulhado de gente, de manhã, zunindo nos seus ouvidos como um eco do inferno.
Então, abruptamente, ele saiu. Permanecera toda uma manhã de segunda-feira na cama e, no final da tarde, dominado por um daqueles ataques de desespero melancólico a que periodicamente sucumbia, escreveu e postou uma carta para o senhor Wilson confessando que se considerava mal adaptado ao serviço. Gloria, ao chegar do teatro com Richard Caramel, encontrou-o na espreguiçadeira, olhando calado para o teto alto, mais deprimido e desanimado do que em qualquer outra ocasião desde seu casamento.
Ela queria que ele choramingasse. Se assim o fizesse, ela o censuraria amargamente, pois não ficara pouco zangada, mas ele apenas se deixava ficar ali, sofrendo tanto que ela teve pena dele e, se ajoelhando, acariciou sua cabeça, dizendo que aquilo pouco importava desde que eles se amassem. Era como no primeiro ano deles, e Anthony, reagindo ao toque frio da sua mão, à sua voz macia como um hálito puro no seu ouvido, tornou-se quase alegre e conversou com ela sobre seus planos para o futuro. Chegou a se arrepender, intimamente, antes de ir para cama, de ter postado de forma tão açodada sua exoneração.
- Mesmo quando tudo está uma porcaria, não dá para confiar no juízo que se faz agora - dissera Gloria. - É a soma de todos os seus juízos que conta.
Em meados de abril chegou uma carta do corretor em Marietta encorajando-os a alugar a casa cinzenta por mais um ano, com o aluguel ligeiramente mais alto, trazendo dentro um contrato que deveriam assinar. Durante uma semana o contrato e a carta ficaram abandonados em cima da mesa de Anthony. Eles não tinham intenção de voltar a Marietta. Estavam cansados do lugar e se entediaram na maior parte do verão anterior. Além disso, seu carro estragara a ponto de virar um grande chocalho de metal hipocondríaco, e um novo não era financeiramente aconselhável.
Mas, devido a outra farra extravagante, que durou quatro dias e teve a participação intermitente de mais de uma dúzia de pessoas, eles acabaram assinando o contrato; para seu total horror, assinaram e mandaram-no, e era como se ouvissem de imediato a casa cinzenta revelando finalmente uma malevolência insípida, lambendo seus beiços brancos à espera de devorá-los.
- Anthony, onde está o contrato? - perguntou ela, assustada, em uma manhã de domingo, sóbria e calma frente à realidade. - Onde você o botou? Estava aqui!
Então ela soube onde ele estava. Lembrou-se da festa em casa que eles haviam organizado no auge de sua extravagância; ela se lembrava de uma sala cheia de homens que, em seus momentos de menor exaltação, não davam nenhuma importância a ela nem a Anthony, e de Anthony a se jactar do mérito transcendente e do isolamento da casa cinzenta - tão isolada que pouco importava o barulho que se fizesse nela. Então Dick, que já os visitara, gritou entusiasmado que ela era a melhor casinha imaginável, e que eles eram uns idiotas de não alugá-la por mais um verão. Fora fácil se entusiasmar e abraçar a sensação de que a cidade estava ficando deserta, do frescor e encantos paradisíacos de Marietta. Anthony pegara o contrato e o brandira desbragadamente, diante de aquiescência feliz de Gloria, e em uma última providência espalhafatosa, apertara solenemente as mãos de todos, fazendo-os prometer que os visitariam.
- Anthony - gritou ela -, a gente assinou e mandou.
- O quê?
- O contrato.
- Que diabo!
- Ah, Anthony! - Havia um terrível sofrimento na sua voz. Um cárcere para o verão, para a eternidade, era o que haviam criado para eles mesmos. Aquilo parecia um golpe contra as derradeiras raízes de seu equilíbrio. Anthony achava que talvez dessem um jeito com o corretor. Não podiam mais arcar com dois aluguéis, e ir para Marietta significava abandonar seu apartamento, seu impecável apartamento com o banheiro esplêndido e os aposentos para os quais comprara seu mobiliário e suas peças de parede - a coisa mais próxima de uma casa que ele jamais tivera - e que já estava associado às recordações de quatro anos pitorescos.
Mas não se deu um jeito com o corretor, nem jeito nenhum. Desanimados, sem nem sequer falarem em encarar a coisa de um modo positivo, sem nem sequer o "pouco me importa" de Gloria, que se aplicava a tudo, voltaram para a casa, que agora sabiam, não valorizava nem a juventude nem o amor - somente as recordações austeras e incomunicáveis que eles jamais poderiam compartilhar.

O VERÃO SINISTRO

Havia um horror na casa naquele verão. Chegou com eles e baixou sobre o lugar como um pálio sinistro, difuso nos aposentos de baixo,
estendendo-se aos poucos e subindo a escada estreita até oprimi-los durante seu próprio sono. Anthony e Gloria acabaram detestando ficar lá sozinhos. O quarto dela, que parecera tão rosa, tão jovem, tão delicado, feito de encomenda para sua lingerie de cores pastéis, jogada aqui e ali em cima das cadeiras e da cama, parecia agora sussurrar através dos rugidos de suas cortinas:
"Ah, minha bela rapariga, não são seus os primeiros encantos e frescores a murcharem aqui sob os sóis estivais... Gerações de mulheres mal amadas já se admiraram naquele espelho, pensando nos seus amantes grosseiros que não lhes davam atenção... A juventude já chegou neste quarto agasalhada no azul mais pálido e partiu na mortalha cinza da desgraça, e durante longas noites muitas moças já quedaram insones onde está aquela cama, a derramar ondas de lágrimas sentidas na escuridão."
Gloria finalmente retirou, aos tropeços e ingloriamente, suas roupas e ungüentos dali, declarando que viera morar junto com Anthony, sob o pretexto de que uma das suas telas estava podre e deixava entrar insetos. Assim, seu quarto foi abandonado aos hóspedes insensíveis, e eles passaram a se vestir e a dormir no quarto de seu marido, que Gloria achava, de certo modo, "bom", como se a presença de Anthony ali expurgasse quaisquer sombras duvidosas do passado que pairassem sobre suas paredes.
A distinção entre "bom" e "mau", cedo e sumariamente expulsa de suas vidas, fora restaurada sob outra forma. Gloria insistia que qualquer convidado para a casa cinzenta precisava ser "bom", o que, no caso de uma mulher, significava que ela precisava ser simples e irrepreensível ou, caso contrário, deveria possuir certa força e solidez. Como sempre, descrente intensamente dos membros do seu próprio sexo, seus juízos agora se ocupavam do problema de as mulheres serem ou não eram limpas. Por sujeira ela entendia uma variedade de coisas; falta de orgulho, caráter fraco e, sobretudo, a indiscutível auréola da promiscuidade.
- As mulheres se sujam com facilidade - dizia
-, com muito mais facilidade que os homens. A não ser que uma garota seja muito jovem e corajosa, é quase impossível ela se perder sem uma certa animalidade histérica, o tipo de animalidade suja e maliciosa. O homem é diferente - e acho que é por isso que um dos personagens mais comuns das histórias de amor é a do sujeito que se arruina galantemente.
Ela era propensa a gostar de muitos homens, de preferência aqueles que lhe prestavam franca homenagem e diversão infalível - mas muitas vezes, em um lampejo de intuição, ela contou a Anthony que um de seus amigos o estava usando e que, portanto, era melhor se afastar dele. Anthony geralmente duvidava, alegando que o acusado era "um dos bons", mas descobria que seu juízo era mais falível que o dela, notavelmente quando, como acontecera em várias ocasiões, ele acabava com uma série de contas de restaurante que era obrigado a honrar sozinho.
Mais por medo de solidão do que pelo desejo de passar pelo trabalho e preocupação de receber, eles enchiam a casa de hóspedes todo fim de semana, e muitas vezes durante a semana. As festas de fim de semana eram praticamente idênticas. Depois da chegada dos três ou quatro convidados, era mais ou menos de praxe beber, o que era seguido de um jantar hilariante e um passeio ao Cradle Beach Country Club, em que haviam ingressado porque era barato, animado, ainda que não elegante, e quase uma necessidade em ocasiões como aquelas. Além do mais, o clube não dava muita importância ao que se fizesse lá, e desde que o grupo dos Patch se mantivesse razoavelmente inaudível, pouco importava se os ditadores da vida social de Cradle Beach vissem ou não vissem Gloria bebendo coquetéis a pequenos intervalos na sala de jantar, no decorrer da noite.
O sábado geralmente acabava em uma confusão glamorosa - muitas vezes era preciso ajudar algum hóspede, ruim das pernas, a ir para a cama. Domingo trazia os jornais de Nova York e uma manhã descansada, de recuperação na varanda - e domingo à tarde significava se despedir de um ou dois hóspedes que precisavam voltar para a cidade, e um grande retorno à bebida da parte de um ou dois que ficavam até o dia seguinte, acabando em uma noite de camaradagem, ainda que não hilariante.
O fiel Tana, pedagogo natural e faz-tudo profissional, voltara. Os hóspedes mais freqüentes criaram uma lenda a seu respeito. Maury Noble comentou, uma tarde, que seu verdadeiro nome era Tannembaum e que ele era um agente secreto alemão mantido no país para espalhar propaganda teutônica em Westchester County; depois disso, começaram a chegar umas cartas misteriosas da Filadélfia, endereçadas ao espantado oriental como "Tenente Emile Tannenbaum", contendo mensagens misteriosas assinadas: "Estado Maior" e, para dar atmosfera, decoradas com duas colunas de pseudo-ideogramas japoneses. Anthony sempre as entregava a Tana, sem um sorriso; horas depois o destinatário era encontrado matutando sobre elas na cozinha e declarando todo circunspecto que os signos perpendiculares não eram japoneses, nem nada que lembrasse o japonês.
Gloria se tomara de uma forte antipatia pelo empregado desde o dia em que, ao voltar inesperadamente da aldeia, pegara-o reclinado na cama de Anthony, decifrando um jornal. Fazia parte do instinto dos empregados gostar de Anthony e detestar Gloria, e Tana não era nenhuma exceção à regra. Mas tinha um grande pavor dela e só demonstrava sua aversão em seus momentos de maior mau-humor, dirigindo sutis comentários a Anthony, com a intenção que chegassem aos ouvidos dela.
- O que senhora Pats quer jantar? - dizia ele, olhando seu amo. Ou então fazia comentários sobre o terrível egoísmo de "pessoas americanas", de tal maneira que não restassem dúvidas sobre quem eram essas "pessoas".
Mas eles não tinham coragem de despedi-lo. Esse passo destoava da inércia deles. Agüentavam Tana como agüentavam tempo ruim, as doenças do corpo e a vontade louvável de Deus - como agüentavam tudo, inclusive eles mesmos.

NA ESCURIDÃO

Em uma tarde sufocante no final de julho, Richard Caramel telefonou de Nova York dizendo que ele e Maury vinham, trazendo um amigo. Chegaram lá pelas cinco, um pouco bêbados, junto com um sujeito baixo e atarracado, de 35 anos, que apresentaram como o senhor Joe Hull, uma das melhores pessoas que Anthony e Gloria iriam conhecer.
Joe Hull tinha uma barba amarelada que vivia brigando para romper sua pele e uma voz profunda que variava do basso profundo a um sussurro roufenho. Anthony, que carregava a valise de Maury para cima, seguiu-o quarto adentro e fechou a porta.
- Quem é esse sujeito? - perguntou.
Maury deu risinhos de prazer.
- Quem, Hull? Ah, ele é cem por cento. É dos bons.
- Sim, mas quem é ele?
- Hull? Apenas um bom sujeito. Um príncipe.
- Seu riso duplicou, culminando com uma série de simpáticos sorrisos felinos. Anthony hesitou entre sorrir e franzir o cenho.
- Ele me parece meio esquisito. Roupas estranhas - fez uma pausa. - Tenho a impressão de que vocês dois o descobriram em um lugar qualquer na noite passada.
- Que ridículo - declarou Maury. - Ora, eu o conheço da vida inteira. - No entanto, ao acompanhar essa afirmativa com uma série de outros sorrisos, obrigou Anthony a dizer:
- Que nada!
Mais tarde, logo antes do jantar, enquanto Maury e Dick conversavam com estardalhaço e Joe Hull ouvia-os calado, bebericando seu drinque, Gloria puxou Anthony para a sala de jantar.
- Não gosto desse sujeito, Hull - disse ela.
- Eu gostaria que ele usasse a banheira de Tana.
- Na verdade, não posso pedir a ele para fazer isso.
- Bem, não quero que ele use a nossa.
- Parece uma alma simples.
- Está usando sapatos brancos que parecem luvas. Dá para ver seus artelhos através deles. Ah! Quem é ele, afinal de contas?
- Aí você me pegou.
- Ora, acho muita audácia deles trazerem-no. Isso aqui não é nenhum Asilo do Velho Marinheiro!
- Eles estavam bêbados quando ligaram. Maury disse que farreavam desde ontem de tarde.
Gloria sacudiu a cabeça com raiva e, sem dizer mais nada, voltou para a varanda. Anthony viu que ela procurava esquecer seu aborrecimento e aproveitar a noite.
Fizera um dia tropical e, mesmo ao cair da noite, as ondas de calor desprendidas pela estrada seca tremulavam ligeiramente como folhas onduladas de gelatina. O céu não tinha uma nuvem, mas muito além da mata, na direção do Sound, um trovejar ligeiro, porém persistente, começara. Quando Tana avisou que o jantar estava servido, os homens, depois de uma palavra de Gloria, permaneceram em mangas de camisa e entraram.
Maury começou a cantar uma cantiga cuja harmonia eles aperfeiçoaram durante o primeiro prato. Tinha dois versos e era cantada com a música de uma canção popular chamada "Daisy Dear". A letra era:

O pâ-nico - nos - do-minou,
E tam-bém - a - decadência moral!

Cada interpretação era saudada com gritos de
entusiasmo e aplausos prolongados.
- Alegria, Gloria - aconselhou Maury. - Você parece um pouquinho deprimida.
- Não estou, não - mentiu ela.
- Olha aqui, Tannembaum! - gritou ele por cima de seu ombro.
- Fiz um drinque para você. Venha.
Gloria tentou segurá-lo pelo braço.
- Por favor, não faça isso, Maury!
- Por que não? Talvez ele toque flauta para a gente depois do jantar. - Olha aqui, Tana.
Tana deu um sorriso e levou o copo para a cozinha. Dentro de alguns minutos, Maury deu-lhe outro.
- Alegria, Gloria - gritou ele.
- Por amor de Deus, todo mundo, vamos alegrar Gloria.
- Meu amor, tome mais um drinque - aconselhou Anthony.
- Faça isso.
- Alegria, Gloria - disse Joe Hull com a maior naturalidade.
Gloria estremeceu diante daquele uso inconveniente de seu nome próprio, e olhou em volta para ver se mais alguém percebera. O nome, saído tão fluentemente da boca de um sujeito por quem tomara tamanha antipatia, causara-lhe repugnância. Um momento depois ela notou que Joe Hull dera outro drinque para Tana, e sua raiva aumentou, talvez um pouco intensificada pelo efeito do álcool.
- Uma vez - dizia Maury -, Peter Granby e eu fomos a um banho turco em Boston, pelas duas da madrugada. Não havia ninguém, só o dono, e a gente enfiou-o em um armário e trancou a porta. Então chegou um sujeito que queria tomar um banho turco. Pensou que a gente fosse massagista, olha só! Bem, a gente simplesmente o agarrou e jogou na piscina, todo vestido. Depois, o tiramos de lá, estendemos numa mesa e o estapeamos até ele ficar preto e roxo. "Menos brutalidade, meus amigos!", dizia ele numa vozinha de cana rachada, "por favor!"
"Será que era Maury?" - pensou Gloria. Vinda de qualquer outra pessoa, a história teria sido divertida, mas de Maury, o infinitamente compreensivo, o cúmulo do tato e da consideração.

O pâ-nico - nos - dominou, E também a de...

O ribombar de um trovão lá fora abafou o resto da música; Gloria sentiu um calafrio e tentou esvaziar seu copo, mas o gosto logo deu-lhe náuseas, e ela descansou o copo na mesa. O jantar acabara e todos marcharam para a sala grande, levando várias garrafas e jarras. Alguém fechara a porta da varanda para parar o vento e, em conseqüência, tentáculos circulares de fumaça de cigarro já rodopiavam no ar pesado.
- Tenente Serviçal Tannembaum! - era de novo Maury, mudado. - Traga a flauta para nós!
Anthony e Maury correram para a cozinha; Richard Caramel deu partida no fonógrafo e se aproximou de Gloria.
- Dance com seu primo que você conhece tão bem.
- Não quero dançar.
- Então serei obrigado a te carregar.
Como se fizesse algo de suma importância, ele pegou-a em seus pequenos e gordos braços e começou a trotar, circunspecto, pela sala.
- Me largue, Dick! Estou tonta! - insistia ela.
Ele largou-a como um pacote elástico em cima do sofá e correu para a cozinha, gritando:
- Tana! Tana!
Então, ela sentiu que outros braços a agarravam inadvertidamente e a levantavam do sofá. Joe Hull a pegara e, bêbado, procurava imitar Dick.
- Me largue! - disse ela asperamente.
A risada melosa dele e a imagem daquele queixo meio amarelado e eriçado perto dela causou-lhe uma repugnância intolerável.
- Imediatamente.
- O pâ-nico... - começou ele, mas não continuou, pois a mão de Gloria girou rápida e acertou-lhe um tabefe na face. Diante disso, ele largou-a como um saco, e ela caiu no chão, com o ombro raspando a mesa, ao cair.
Então a sala deu a impressão de estar cheia de homens. Havia Tana, no seu casaco branco, cambaleando, apoiado por Maury. Ele soprava a flauta, uma estranha mistura de sons conhecidos que era, conforme gritou Anthony, como a canção do trem japonesa. Joe Hull encontrara uma caixa de velas e fazia malabarismo com elas, gritando: "caiu uma!", toda vez que errava; e Dick dançava sozinho, dando rodopios fascinantes pela sala e em volta da sala. Parecia-lhe que tudo girava na sala em grotescos giros quadridimensionais, através de nebulosos planos azuis que se intersecionavam.
Lá fora a tempestade chegara estupidamente - os períodos de silêncio dentro de casa eram preenchidos com o raspar dos arbustos altos do lado de fora e o tamborilar da chuva no telhado de lata da cozinha. Os intermináveis raios desdobravam-se em grossos respingos de trovão, como ferro fundido transbordando de uma fornalha branca de calor. Gloria percebeu o chuvisco que entrava pelas janelas - mas não conseguia se mexer para fechá-las...
Ela estava no saguão. Dera boa noite, mas ninguém ouvira nem lhe prestara atenção.
Pareceu-lhe, um instante, que algo olhara para baixo por cima da balaustrada, mas ela não conseguiria voltar para a sala - melhor a loucura do que aquela barulheira infernal... Lá em cima ela tateou em busca do interruptor e não conseguiu achá-lo no escuro; um relâmpago que preencheu o quarto todo indicou claramente o botão na parede. Mas o breu impenetrável se fez de novo e ele escapou de seus dedos desastrados, por isso ela arrancou o vestido e a combinação e se atirou debilmente na metade seca da cama meio encharcada.
Fechou os olhos. De baixo vinha uma confusão babélica dos bêbados, pontuada de repente pelo tilintar de vidro se espatifando, em seguida de novo, e pelo fragmento em voz alta de uma cantiga instável, estropiada...
Ela ficou ali deitada por pouco mais de duas horas - assim calculou depois, simplesmente juntando fragmentos de tempo. Deu-se conta, e até teve consciência, depois de muito tempo, de que o barulho embaixo diminuíra, e que a tempestade se deslocara rumo ao oeste, deixando na sua esteira um punhado de estrondos retardatários que caíam, pesados e mortos como sua alma, nos campos encharcados. Sucedeu-se a isso um lento e relutante dispersar do vento e da chuva, até que não houvesse mais nada do lado de fora de suas janelas senão um delicado gotejar e o balanço sibilante de uma trepadeira molhada contra o peitoril. Ela se encontrava entre o sono e a vigília, quando nenhum desses estados predominava, atormentada pelo desejo de se livrar de um peso no peito. Achava que se gritasse, levantaria o peso e, forçando as pálpebras fechadas, tentou sentir um nó na garganta, mas sem nenhum resultado...
Pim! Pim! Pim! O barulho não era desagradável
- como a primavera, como uma chuva fria na sua infância que criava uma lama divertida nos fundos de seu quintal e irrigava o pequenino jardim que ela fizera com um ancinho, pá e uma enxada em miniatura. Pim - p-im! Era como na época em que a chuva caía de céus amarelados que se dissolviam logo antes do crepúsculo e projetavam um raio diagonal de luz maravilhosa no arvoredo verdejante e úmido. Tão fresco, tão claro, tão limpo - e sua mãe ali, no centro do mundo, no centro da chuva, abrigada, seca e forte. Ela queria sua mãe agora, mas sua mãe estava morta, no além da visão e do tato, para sempre. E aquele peso apertava, apertava - ah, apertava-a tanto!
Ela ficou dura. Alguém viera até a porta e ali ficara, olhando para ela, parado, a não ser por um ligeiro movimento oscilante. Ela podia enxergar o contorno de sua figura, bem nítido contra uma luz indistinguível. Não se ouvia barulho algum, apenas um enorme silêncio em todo canto - até o gotejamento parara; só aquela figura, balançando, balançando no portal, um terror imperceptível, uma ameaça sutil, uma personalidade imunda debaixo de sua camada de verniz, como pústulas de varíola sob uma máscara de pó de arroz. No entanto, seu coração cansado, batendo até sacudir seus seios, indicava que nela ainda havia vida, desesperadamente abalada, ameaçada...
O minuto, ou a sucessão de minutos, se prolongava interminavelmente, e um borrão flutuante começou a se formar diante de seus olhos, que procuravam, com obstinação infantil, verrumar o escuro na direção da porta. Dentro de mais um minuto parecia que alguma força inimaginável haveria de arrebentá-la e expulsá-la da existência. Então a figura na porta - era Hull, ela viu Hull - virou-se de propósito e, ainda oscilando ligeiramente, recuou e foi embora, como se engolido por aquela luz incompreensível que lhe emprestara sua dimensão.
O sangue voltou a correr em seus membros, o sangue e a vida, simultaneamente. Com um rasgo de energia ela se sentou, movendo o corpo até seus pés tocarem o chão ao lado da cama. Ela sabia o que devia fazer - agora, agora, antes que fosse tarde demais. Ela precisava sair naquela umidade fresca, sentir o roçar do capim em volta de seus pés e a umidade fresca na sua testa. Lutou mecanicamente para enfiar suas roupas, tateando no escuro para pegar um chapéu no armário. Precisava sair dessa casa onde pairava a coisa que pesava sobre seu peito, ou que então se transformava em figuras oscilantes e desgarradas na penumbra.
Em pânico, tentava desastradamente vestir seu casaco, achou a manga bem na hora em que ouviu os passos de Anthony embaixo, na escada. Não ousava esperar; ele poderia não deixá-la ir, pois até mesmo Anthony fazia parte desse peso, dessa casa malvada e da escuridão ameaçadora que brotava em torno dela.
Pelo corredor, então. Ao descer pela escada dos fundos, ouviu a voz de Anthony no quarto de onde acabara de sair.
- Gloria! Gloria!
Mas ela já alcançara a cozinha, atravessara a porta e mergulhara na noite. Uma centena de pingos, que um golpe de vento imprevisto derrubou de uma árvore, borrifou-a e ela apertou-os, feliz, contra o rosto, com suas mãos quentes.
- Gloria! Gloria!
A voz estava infinitamente longe, abafada e deprimida pelas paredes que ela acabara de deixar. Ela contornou a casa e desceu pelo caminho da frente até a rua, quase exultante ao alcançá-la, seguindo com cautela pelo tapete de grama curta que a ladeava, na intensa escuridão.
- Gloria!
Ela irrompeu a correr, tropeçou em um pedaço de galho arrancado pelo vento. A voz agora vinha de fora da casa. Anthony, ao descobrir o quarto vazio, viera até a varanda. Mas aquela coisa a impelia adiante; estava lá atrás, com Anthony, e ela precisava continuar sua fuga sob aquele céu escuro e oprimente, obrigando-se a perfurar o silêncio adiante como se houvesse uma barreira tangível na sua frente.
Já percorrera alguma distância pela estrada mal perceptível, provavelmente uns oitocentos metros, quando passou por um celeiro vazio e deserto que avultou, preto e agourento - a única construção de qualquer espécie entre a casa e Marietta; em seguida ela tomou o desvio, onde a estrada entrava na mata e corria entre duas paredes de galhos e folhas que quase fechavam em cima. Ela notou, de repente, um brilho delgado e prateado longitudinalmente na estrada adiante, como uma espada luzidia meio enfiada na lama. Ao se aproximar, deu um pequeno grito de satisfação - era um sulco de carroça
freio d'água, e ao olhar para cima viu uma ligeira nesga de céu e percebeu que a lua nascera.
- Gloria!
Ela levou um susto enorme. Anthony estava a menos de 250 metros atrás dela.
- Gloria, me espere!
Fechou os lábios com força para se impedir de gritar e aumentou seu passo. Antes que tivesse avançado mais cento e poucos metros, a mata desapareceu, enrolando-se para trás como uma meia escura pela perna da estrada. Três minutos de caminhada na sua frente, suspenso no ar, agora alto e desimpedido, ela avistou um emaranhado de riscos brilhantes e cintilantes, centrados, com suas ondulações regulares, em algum ponto invisível. De repente ela sabia aonde ia. Aquilo era a grande cascata de fios que se erguia alta por cima do rio, como as pernas de uma gigantesca aranha, cujo olho era o pequeno sinal verde na casa do sinaleiro, que corria acompanhando a ponte do trem rumo à estação. A estação! Lá haveria de estar o trem para levá-la.
- Gloria. Sou eu! Anthony! Gloria, não vou te impedir de nada! Pelo amor de Deus, onde está você?
Ela não deu resposta; ao contrário, começou a correr na parte alta da estrada, pulando as poças reluzentes - poças descomunais de ouro ralo, imaterial. Dobrando de repente à esquerda, ela seguiu uma estrada estreita de carroça, dando uma guinada para evitar um corpo preto no chão. Ela olhou para cima na hora em que uma coruja deu um pio lúgubre em uma árvore isolada. Logo à sua frente podia ver a passarela que levava à ponte do trem e os degraus que subiam até ela. A estação jazia do outro lado do rio.
Outro barulho a assustou, a sirene melancólica de um trem que se aproximava e, quase simultaneamente, uma buzina em resposta, agora fina e distante.
- Gloria! Gloria!
Anthony deve ter seguido pela estrada principal. Ela riu, com uma espécie de esperteza maliciosa, por tê-lo enganado; ela podia se dar tempo, à espera que o trem passasse.
A sirene soou alto de novo, mais próxima, e então, sem nenhum clamor ou troar prévios, um corpo escuro e sinuoso fez uma curva e surgiu entre as sombras distantes do leito alto da ferrovia, e sem nenhum barulho se não o do deslocamento do vento cindido e o do clique-clique de suas rodas, passou em direção à ponte - era um trem elétrico. Por cima da locomotiva, dois vividos clarões azuis faziam aparecer incessantemente uma barra crepitante que os unia e que, como a chama bruxuleante de uma lamparina ao lado de um defunto, iluminou por um instante a sucessiva fileira de árvores, e fez Gloria se afastar instintivamente para o lado mais recuado da estrada. A luz era morna - da temperatura do sangue. Os estalidos fundiram-se de repente em um fluxo sonoro homogêneo, e então, alongando-se com sombria elasticidade, a coisa passou por ela como um trovão e entrou retumbando na ponte, disputando corrida com a dramática haste de fogo que lançava sobre o rio ensimesmado a seu lado. Em seguida contraiu-se rápido, aspirando seu barulho até restar apenas a reverberação de um eco, que morreu no banco mais distante.
O silêncio baixou novamente, de mansinho, sobre o campo molhado; os pingos leves recomeçaram e, de repente, uma grande chuva de grossos pingos desabou sobre Gloria, acordando-a do torpor de seu transe causado pela passagem do trem. Ela correu depressa por um declive até a margem e começou a subir a escada de ferro da ponte, lembrando-se que era uma coisa que sempre quisera fazer, e que teria a excitação adicional de atravessar pela prancha de um metro de largura que corria ao lado dos trilhos sobre o rio.
Pronto! Assim estava melhor. Ela estava em cima agora e podia ver o terreno à sua volta como uma série de extensões de campo aberto, frio sob a lua, remendado e costurado grosseiramente com renques finos e moitas densas de árvores. À sua direita, pouco mais de meio quilômetro à jusante do rio, que seguia a claridade como o rasto luzidio e gosmento de uma lesma, piscavam as luzes dispersas de Marietta. A menos de 250 metros, no final da ponte, jazia agachada a estação, sinalizada por uma melancólica lanterna. A opressão se dissipara agora - as copas das árvores debaixo dela acalentavam e faziam cochilar assombrosamente a luz recém-nascida das estrelas. Ela estendeu os braços em um gesto de liberdade. Era isso que quisera, ficar sozinha em um lugar alto e fresco.
- Gloria!
Como uma criança assustada, ela se apressou pela prancha, dando saltos, passando por cima, pulando, com uma sensação de felicidade pela sua própria leveza física. Deixe-o vir agora - ela não o temia mais, só que primeiro precisava chegar à estação, porque isso fazia parte da brincadeira. Ela estava feliz. Seu chapéu, que tirara, estava seguro com força na sua mão, e seus cabelos curtos cacheados pulavam para cima e para baixo em volta de suas orelhas. Jamais pensara que se sentiria tão jovem de novo, mas aquela era sua noite, seu mundo. Ela riu triunfantemente ao deixar a prancha e, chegando à plataforma de madeira, largou seu corpo, satisfeita, ao lado de uma pilastra de ferro do telhado.

XXX Página 228 e 229

- Ora, a gente seguiu vocês pela estrada e aí de repente os perdemos. Parece que vocês viraram numa estrada de carroça. Depois de algum tempo, alguém chamou a gente e perguntou se estávamos procurando uma jovem. Bem, a gente se aproximou e viu um velhinho trêmulo, sentado sobre uma árvore caída, como numa história de fada. "Ela virou aqui" disse ele, "e quase pisou em mim, indo para algum lugar numa pressa danada, e aí um sujeito de calças curtas de jogar golpe apareceu correndo e foi atrás dela. Ele me deu isso." O velho brandia uma nota de um dólar.
- Ah, pobre velhinho! - exclamou Gloria, comovida.
- Dei-lhe outro e fomos em frente, embora ele nos pedisse para ficar e explicar tudo.
- Pobre velho - repetiu com tristeza Gloria.
Dick sentou-se, sonolento, em um caixote.
- E agora o quê? - perguntou ele em um tom de resignação estóica.
- Gloria está aborrecida - explicou Anthony.
- Ela e eu vamos para a cidade no próximo trem.
Maury tirara um horário do bolso, no escuro.
- Risque um fósforo.
Uma pequena chama saltou contra o fundo opaco e iluminou os quatro rostos de maneira grotesca e estranha, ali, em plena noite.
- Vamos ver. Duas, duas e meia. Caramba, você não terá trem até cinco e meia.
Anthony hesitou.
- Bem - murmurou, inseguro -, a gente resolveu ficar aqui e esperar por ele. É melhor vocês dois voltarem e dormirem.
- Vá também, Anthony - instou Gloria; - quero que você durma também, querido. Passou o dia pálido como um fantasma.
- Ora, sua idiotinha!
Dick bocejou.
- Muito bem. Já que vocês ficam, ficamos nós. Ele saiu de sob o barracão e examinou o céu.
- Até que está uma noite um tanto quanto bonita. Tem estrelas e tudo mais. Uma amostra excepcionalmente atraente delas.
- Vamos ver. - Gloria foi atrás dele e os outros dois a seguiram. - Vamos sentar aqui fora - sugeriu ela. - Acho muito melhor.
Anthony e Dick converteram um caixote comprido em descanso para as costas e acharam uma tábua bastante seca para que Gloria sentasse. Anthony se acomodou ao lado dela e, com algum esforço, Dick subiu em uma barrica de maçãs perto deles.
- Tana dormiu na rede da varanda - comentou. - A gente o carregou para dentro e o pôs ao lado do fogão da cozinha, para secar. Estava ensopado até a alma.
- Esse sujeito horrível - suspirou Gloria.
- Como vão vocês? - a voz funérea e sonora viera de cima, e eles ergueram os olhos espantados para descobrir que, de alguma maneira, Maury trepara no teto no barracão, onde sentava com os pés pendentes da beirada, formando a silhueta de uma fantástica e escura gárgula contra o céu já claro.
- Deve ser para uma ocasião como esta - começou ele, em voz baixa, dando a impressão que suas palavras desciam flutuando de uma imensa altura e caíam delicadamente sobre seus ouvintes - que os bem-pensantes da terra decoram suas ferrovias com cartazes que afirmam em vermelho e amarelo: "Jesus Cristo é o bem", colocando-os bem apropriadamente ao lado de anúncios: "O uísque Gunter's é o bom".
Houve leves risadas e os três embaixo mantiveram suas cabeças inclinadas para cima.
- Acho que vou contar a vocês a história de minha educação - continuou Maury -, sob essas sardônicas constelações.
- Conte! Por favor!
- Devo mesmo?
Ficaram à espera, ansiosos, enquanto ele dirigia um bocejo pensativo em direção à lua branca e sorridente.
- Bem - começou -, em criança eu rezava. Acumulava orações para neutralizar a maldade futura. Teve um ano em que acumulei 1.900 "Pais Nossos".
- Jogue um cigarro aqui para baixo - murmurou alguém. Um pequeno maço chegou à plataforma simultaneamente com a ordem estentórea:
- Silêncio! Estou prestes a desfiar uma porção de comentários memoráveis reservados à escuridão de mundos assim e ao brilho de céus como estes.
Embaixo, passou-se um fósforo de cigarro em cigarro. A voz recomeçou:
- Eu era adepto de enganar a divindade. Rezava imediatamente depois de todos os pecados até que, por fim, oração e pecado se tornaram indistintos para mim. Acreditava que devido ao fato de alguém gritar: "Meu Deus!", quando um cofre lhe caía em cima, isso provava que a fé tinha raízes profundas no seio do homem. Depois fui para o colégio. Durante quatorze anos, cinqüenta sujeitos zelosos me apontavam velhas espingardas de pederneira, dizendo para mim: "Eis o que é autêntico. Esses novos rifles não passam de imitações rasas, superficiais." Condenavam os livros que eu lia e as coisas que eu pensava, chamando-os de imorais; mais tarde mudou a moda, e eles condenavam as coisas chamando-as de "intelectualóides".
"E assim, de uma maneira esperta para a minha idade, larguei os professores e me voltei para os poetas, à escuta: da voz de tenor lírico de Swinburne e de tenor robusto de Shelley, a Shakespeare com seu primeiro baixo e seu excelente alcance de voz, a Tennyson com seu segundo baixo falsetto ocasional, a Milton e Marlow, bassos profundos. Dei ouvidos a Browning, proseando, a Byron, declamando e a Wordsworth, zumbindo. Isso, pelo menos mal não fazia. Aprendi um pouquinho sobre a beleza: o suficiente para saber que ela não tem nada a ver com a verdade, e descobri, além disso, que não existe nenhuma grande tradição literária, salvo uma única tradição: a da morte convulsa de toda tradição literária...
"Então amadureci e abri mão da beleza das ilusões encantadoras. Minha fibra mental tornou-se áspera e meus ouvidos, tremendamente aguçados. A vida brotou como um mar em volta de minha ilha, e, dentro em breve, eu nadava.
"A transição foi sutil; aquilo estava lá algum tempo à minha espera. Tinha sua pérfida armadilha, aparentemente inócua, pronta para todo mundo. No meu caso? Não, eu não tentei seduzir a mulher do zelador, nem saí correndo nu na rua, proclamando minha virilidade. Jamais a paixão dá conta do recado - e sim a vestimenta que ela usa. Fiquei entediado, só isso. O tédio, que não passa de um outro nome e um disfarce freqüente da vitalidade, tornou-se a alavanca inconsciente de todos meus atos. A beleza, eu a tinha ultrapassado, vocês compreendem. Eu amadurecera. - Ele fez uma pausa. - Final do período escolar e universitário. Introdução à Segunda Parte."
Três pontos de luz, que se moviam ligeiramente, indicavam a localização de seus ouvintes. Gloria estava agora meio sentada, meio deitada no colo de Anthony. Seu braço abraçava-a com tanta força que ela podia ouvir o coração dele batendo. Richard Caramel, encarapitado na sua barrica de maçãs, remexia-se de vez em quando e dava um ligeiro resmungo.
- Criei-me então nesta terra do jazz, e caí imediatamente em um estado de confusão mental quase audível. A vida se debruçava sobre mim como uma professora imoral, editando meus pensamentos organizados. Mas, com uma fé equivocada na minha inteligência, segui em frente com dificuldade. Li Smith, que ria da caridade e insistia que o olhar sarcástico era a forma mais elevada da
auto-expressão; mas o próprio Smith tomou o lugar da caridade, como barreira contra a iluminação. Li Jones, que se livrou elegantemente do individualismo; e vejam! Jones ainda era um empecilho na minha frente. Eu não pensava: era um campo de batalha para os pensamentos de muitos homens; ou melhor, eu era um desses países cobiçados, porém impotentes, varridos para lá e para cá pelas grandes potências.
"Atingi a maturidade com a impressão de estar acumulando experiência para organizar minha vida com vistas a ser feliz. Na verdade, consegui o feito nada comum de resolver cada problema na minha cabeça muito antes de ele se apresentar na vida, ficando perplexo e derrotado assim mesmo.
"Mas, depois de provar algumas vezes desse último prato, para mim já bastava. 'Olha!' eu disse, 'não vale a pena acumular experiência'. Não é algo que ocorre de modo agradável a um eu passivo; é o muro que um eu ativo encontra pela frente. Por isso embrulhei-me no que eu achava ser meu invulnerável ceticismo e resolvi que minha educação estava completa. Mas era excessiva. Por mais que eu me protegesse deixando de fazer novos laços com a trágica e predestinada humanidade, eu estava perdido, como os demais. Tinha trocado a luta contra o amor pela luta contra a solidão, a luta contra a vida pela luta contra a morte."
Ele interrompeu para enfatizar sua última observação - um momento depois, deu um bocejo e continuou.
- Acho que o começo da segunda fase de minha educação foi uma terrível insatisfação por ser usada à minha revelia com um propósito inescrutável, cujo objetivo final me era desconhecido - se fosse verdade que esse objetivo final existisse. Era uma opção difícil. A professora parecia dizer: "Nós vamos jogar futebol e nada além de futebol. Se você não quiser jogar futebol, então não pode jogar".
"O que eu iria fazer? O tempo do jogo era curto!
"Prestem atenção, eu senti que nos negavam até o consolo que poderia haver em ser um pseudo homem de negócios voltando a se levantar depois de ter se posto de joelhos. Vocês acham que adotei esse pessimismo de um jato, que o abracei como algo belo e acomodado, sem que fosse mais deprimente do que, por exemplo, um dia encoberto de outono diante da lareira? Não acho que fiz isso. Eu era demasiado ardoroso, demasiado vivo para isso.
"Pois me parecia não existir um objetivo final para o homem. O homem estava no começo de uma luta grotesca e perplexa contra a natureza; a natureza, que por um acidente magnífico e divino nos havia conduzido até o ponto em que podíamos desafiá-la. Ela inventara maneiras de livrar a raça daquilo que era inferior, dando assim, aos restantes, a força de realizar suas intenções mais elevadas ou, digamos, mais divertidas, intenções essas ainda assim inconscientes e acidentais. E, impulsionados pelos dons mais elevados do Iluminismo, tentamos
contorná-las. Nesta república eu vi os pretos começarem a se misturar aos brancos; na Europa, uma catástrofe econômica para salvar três ou quatro raças miseráveis e mal governadas do único domínio que poderia organizá-las com vistas à prosperidade material.
"Criamos um Cristo capaz de ressuscitar um leproso - e, no momento, a raça do leproso é o sal da terra. Se alguém consegue tirar uma lição disso, que dê um passo à frente.
"Só existe uma lição que pode ser aprendida da vida, aliás - interrompeu Gloria, não para contradizer, e sim em uma espécie de concordância melancólica."
- E qual é? - perguntou incisivamente Maury.
- Que não há nenhuma lição a ser aprendida da vida.
Depois de um pequeno silêncio, Maury disse:
- A jovem Gloria, bela e impiedosa dama, abriu os olhos logo para o mundo com a sofisticação fundamental que eu procurei atingir, que Anthony jamais atingirá, que Dick jamais compreenderá totalmente.
Houve um gemido de repugnância vindo da barrica. Anthony, já acostumado ao escuro, pode ver o brilho dos olhos amarelados de Richard Caramel e o aspecto de aborrecimento no seu rosto, quando ele gritou.
- Você está doido! Pelo que você mesmo afirmou, já me caberia ter experiência, como fruto do meu esforço.
- Que esforço? - gritou Maury, de modo feroz.
- Nessa tentativa de romper a escuridão do idealismo político com um impulso louco, desesperado, em direção à verdade? Sentando-se ereto, dia após dia, em uma cadeira dura, infinitamente distante da vida, olhando a ponta de um campanário no meio do arvoredo, procurando separar definitivamente, para sempre, o conhecível do incognoscível? Tentando pinçar um fragmento da realidade e emprestar-lhe algum encanto, tirado do seu próprio espírito, para compensar aquela qualidade inexprimível que ele possuía em vida e que perdeu no translado para o papel ou para a tela? Lutando cansativamente durante anos em um laboratório, entre um emaranhado de engrenagens ou em um tubo de ensaio, por um pouquinho de verdade relativa.
- Você fez isso?
Maury fez uma pausa, e na sua resposta, quando veio, havia um toque de cansaço, uma nota adicional de amargura que perdurou um instante naquelas três mentes, antes de fugir flutuando, como uma bolha, rumo à lua.
- Eu não - disse ele em voz baixa. - Nasci cansado; mas com o dom do humor, herança de mulheres como Gloria. A ela, em que pese toda minha falação e minha escuta, minha vã espera pelo eterno universal que parece estar logo além de todo argumento e especulação, eu não acresci nem uma vírgula.
Ao longe, um som profundo, já audível há alguns minutos, definiu-se por um mugido triste, como o mugido de uma gigantesca vaca, e pelo feixe perolado de seu farol surgido a quase um quilômetro de distância. Dessa vez era um trem a vapor, bramindo e gemendo, e ao passar, disparado como uma monstruosa queixa, espalhou uma chuva de fagulhas e cinzas em cima da plataforma.
- Nem uma vírgula! - Novamente a voz de Maury chegava a eles como se vinda de uma grande altura.
- Que coisa fraca é a inteligência, com seus passos curtos, suas oscilações, seu para lá e para cá, suas desastrosas retiradas! A inteligência é mero instrumento das circunstâncias. Há gente que diz que a inteligência deve ter criado o universo; ora, a inteligência jamais construiu um motor a vapor! As circunstâncias construíram um motor a vapor. A inteligência não passa de uma pequena régua que usamos para medir as realizações infindáveis das circunstâncias.
"Eu poderia citar para vocês a filosofia do momento mas parece que em cinqüenta anos poderemos assistir a uma reversão total dessa atitude abnegada que absorve os intelectuais contemporâneos, o triunfo de Cristo sobre Anatole France...
- Ele hesitou, acrescentando em seguida: - Porém, que eu saiba, a tremenda importância que dou a mim mesmo e a necessidade de reconhecer essa importância foi algo que a sábia Gloria já nasceu sabendo, além da dolorosa inutilidade de tentar conhecer qualquer outra coisa.
"Bem, comecei a contar a vocês sobre minha educação, não foi? Mas não aprendi nada, sabem, só um pouquinho, até sobre mim mesmo. E se eu tivesse aprendido, morreria de lábios fechados e caneta tampada, como fizeram os homens mais sábios desde então, desde o fracasso de determinada questão; uma estranha questão, aliás. O caso foi com uns célicos que se achavam perspicazes, como vocês e eu.
Deixem-me contar sobre eles, à guisa de uma oração noturna, antes de todos caírem no sono.
"Era uma vez, quando todos os homens inteligentes e de gênio no mundo se tornaram de uma só crença, isto é, de crença nenhuma. Mas
aborrecia-os pensarem que poucos anos depois de suas mortes lhes seriam atribuídos muitos cultos, sistemas e prognósticos que eles jamais haviam pensado ou intencionado. Por isso, disseram uns para os outros:
"Vamos nos juntar e criar um grande livro que viverá para sempre para zombar da credulidade humana. Vamos convencer nossos poetas mais eróticos a escrever sobre as delícias da carne, e induzir alguns de nossos jornalistas mais vigorosos a contribuir com casos de amores célebres. Incluiremos todas as crenças mais fantásticas ora em voga. Vamos escolher o satírico mais incisivo para compor uma divindade a partir de todas as divindades adoradas pela humanidade, uma divindade mais majestosa que todas elas e, no entanto, de uma fraqueza tão humana que se tornará motivo de riso no mundo todo, e vamos atribuir-lhe todo tipo de brincadeiras, raivas e vaidades, a que ele se abandona para sua própria diversão, de modo que as pessoas lerão nosso livro e refletirão, e não haverá mais contra-senso no mundo.
"Finalmente, vamos cuidar para que o livro tenha todas as qualidades de estilo, de modo que possa durar para sempre como testemunho de nosso profundo ceticismo e de nossa ironia universal.
"Assim fizeram os homens, e morreram.
"Mas o livro durou para sempre, tão bem escrito fora, e tão bem dotado da espantosa imaginação que aqueles homens inteligentes e de gênio lhe imprimiram. Tinham se esquecido de lhe dar um nome, mas, depois de sua morte, veio a ser conhecido como a Bíblia."
Depois da conclusão, não houve comentários. Uma languidez úmida no ar noturno parecia ter enfeitiçado a todos.
- Como disse, comecei com a história de minha educação. Mas o efeito de meus drinques já se foi e a noite quase acabou, e dentro em breve haverá um matraquear em todo canto, nas casas, nas árvores e nas duas lojinhas ali, atrás da estação; haverá uma grande correria durante algumas horas no mundo.
"Bem - concluiu com uma risada -, graças a Deus que nós quatro poderemos passar desta para o descanso eterno, sabendo que deixamos o mundo um pouco melhor por termos vivido nele."
Uma brisa se ergueu, varrendo ligeiros fiapos de vida que se colaram ao céu.
- Seus comentários estão ficando divagantes e inconclusos - disse Anthony, com sono. - Sem dúvida você esperava que acontecesse um daqueles milagres de iluminação, quando você diz suas coisas mais brilhantes e fecundas, no cenário adequado a provocar o simpósio ideal. Nesse ínterim, Gloria demonstrou sua perspicácia, caindo no sono. Percebo isso pelo fato de ela ter conseguido concentrar todo seu peso em cima de meu corpo alquebrado.
- Eu os entediei? - perguntou Maury, olhando para baixo com certa preocupação.
- Não, você nos decepcionou. Atirou muitas flechas, mas acertou algum pássaro?
- Deixo os pássaros para Dick - disse depressa Maury. - Eu falo de modo errático, em fragmentos dissociados.
- Você não consegue me irritar - murmurou Dick. - Minha cabeça está demasiado repleta de coisas materiais. Quero demais um banho quente para ficar me preocupando com a importância da minha obra e sobre quem de nós é uma figura patética.
A aurora se fez sentir por um acúmulo de luz branca a leste, sobre o rio, e por gorjeios intermitentes nas árvores próximas.
- Quinze para cinco - suspirou Dick -, falta esperar mais uma hora. Olha! Dois já eram - apontava ele para Anthony, cujas pálpebras caíram sobre seus olhos. - O sono da família Patch.
Mas passados mais cinco minutos, a despeito dos gorjeios e trinados amplificados, sua própria cabeça caíra para frente, balançando duas, três vezes para baixo.
Somente Maury Noble permanecia acordado, sentado em cima do teto da estação, de olhos arregalados, fitando com uma intensidade cansada o âmago distante da manhã. Pensava na falsidade das idéias, no esplendor efêmero da existência, e nos pequenos interesses que se insinuavam avidamente na sua vida, como ratos a entrar em uma casa em ruínas. Ele já não tinha pena de ninguém - na manhã de segunda haveria seu negócio e, mais tarde, uma garota de uma classe diferente para quem ele seria tudo na vida; essas eram as coisas mais caras a seu coração. Na estranheza do dia que raiava, parecia uma presunção ter procurado pensar com aquele instrumento fraco e avariado que era sua mente.
Lá estava o sol, distribuindo grandes massas de calor; lá estava a vida, ativa, a zumbir e se mover entre eles como um enxame de moscas - os resfôlegos escuros de fumaça da locomotiva, um ríspido: "Embarquem todos!", uma sineta tocando. De uma maneira confusa, Maury percebeu que recebia olhares curiosos do "trem do leite", ouviu a rápida controvérsia entre Gloria e Anthony, se ele devia ir à cidade com ela - em seguida, outro clamor, e ela se fora, e os três homens, pálidos como fantasmas, ficaram sozinhos na plataforma enquanto um foguista encardido descia a estrada em cima de um caminhão, cantarolando para a manhã de estio.


CAPÍTULO TRÊS
O ALAÚDE QUEBRADO

São sete e meia de uma noite de agosto. As janelas da sala de estar da casa cinzenta estão escancaradas, trocando pacientemente o ar do interior, pesado com a fumaça e a bebida, pelo ar modorrento do crepúsculo quente e tardio. Há aromas estiolados de flores no ar, tão rarefeitos, tão frágeis, já a insinuar um verão preservado no tempo. Mas agosto ainda é proclamado inexoravelmente por milhares de grilos em torno da varanda lateral, e por um que penetrou na casa e se escondeu, confiante, atrás de uma estante, de onde anuncia de vez quando, com estardalhaço, sua esperteza e sua vontade indomável.
A própria sala está uma bagunça. Em cima da mesa há um prato de frutas, que é real, mas parece artificial. Em volta dele agrupa-se uma coletânea sinistra de jarras, copos, cinzeiros abarrotados ainda soltando fios de fumaça no ar viciado - ao efeito geral falta apenas uma caveira para se parecer com a célebre gravura que em certa época era acessório de rigor em todo "antro ", revelando com magnífica e apavorante expressividade as conseqüências de uma vida de prazeres.
Depois de algum tempo, o "solo " primaveril do supergrilo é interrompido, e não reforçado, por um novo ruído - o queixume melancólico de uma flauta dedilhada desordenadamente. O músico obviamente ensaia em vez de executar, porque vez por outra a melodia tosca é interrompida e, depois de um interlúdio de resmungas confusos, recomeça.
Logo antes da sétima falsa tentativa, um terceiro ruído contribui para a discórdia discreta. É um táxi lá fora. Um minuto de silêncio, e de novo o táxi, cuja barulhenta partida quase abafa os passos a moer o cascalho do caminho. A campainha ressoa, alarmante, pela casa.
Da cozinha entra um pequeno japonês cansado, abotoando depressa uma túnica de criado, de lona branca. Ele abre a porta da frente e deixa entrar um belo rapaz de trinta anos, trajado com o tipo de roupas bem intencionadas, próprias a quem está a serviço da humanidade. Toda sua personalidade recende a um ar bem intencionado. Seu olhar pela sala é uma mistura de curiosidade e otimismo resoluto; ao olhar para TANA, todo o fardo que seria soerguer o oriental ímpio transpareceu nos seus olhos. Seu nome é FREDERICK E. PARAMORE. Foi colega de ANTHONY em Harvard, e a inicial de seus sobrenomes fazia com que fossem constantemente colocados juntos na turma. Um conhecimento fragmentário acabou se criando - mas desde aquela época eles jamais se encontraram.
No entanto, PARAMORE entra na sala com certo ar de quem chega para passar a noite.
TANA está respondendo a uma pergunta.

TANA: (Sorrindo, com vontade de agradar) Foi para pousada jantar. Volta meia hora. Saiu seis e meia.
PARAMORE: (Olhando os copos na mesa) Estão acompanhados?
TANA: Sim. Acompanhados. Sô Caramel, sô e sôra Barnes, senhorita Kane, todos ficam aqui.
PARAMORE: Estou vendo. (Bondosamente). Andaram fazendo uma farra, percebo.
TANA: No compreno.
PARAMORE: Andaram fazendo uma festa.
TANA: Sim, tomaram bebida. Ah, muita, muita, muita bebida.
PARAMORE: (Abandonando delicadamente o assunto) Não ouvi sons de música quando me aproximei da casa?
TANA: (Com um risinho espasmódico) Sim, eu toco.
PARAMORE: Um dos instrumentos japoneses. (Ele é obviamente um assinante do National Geographic Magazine.)
TANA: Eu toco fla-a-auta, fla-a-auta japonesa.
PARAMORE: Que música você estava tocando? Uma de suas melodias japonesas?
TANA: (Contraindo de maneira ridícula o cenho) Toco cantiga do trem. Como se chama? Canção estrada de ferro. Assim chama no meu país. Como trem. Vai assssiiiim; isso quer dizer apito; começo trem. Então vai assiim; isso quer dizer trem vai. Vai assim. Cantiga muito bonita em meu país. Cantiga criança.
PARAMORE: Parecia muito bonita.
(É aparente nessa hora que só um gigantesco esforço de autocontrole consegue impedir TANA de subir correndo atrás de seus cartões postais, incluindo os seis feitos na América).
TANA: Eu preparo high-ball para o senhor?
PARAMORE: Não, obrigado, eu não bebo. (Ele sorri).
(TANA se recolhe à cozinha e deixa a porta meio aberta. Por essa abertura brota, súbito, de novo, a melodia da canção do trem japonesa - desta vez certamente não como ensaio, e sim como execução, uma emocionada e inspirada execução.)
(Toca o telefone. TANA, absorto na sua música, não dá atenção, por isso PARAMORE pega o fone.)
PARAMORE: Alô... Sim... Não, ele não está aqui agora, mas voltará a qualquer instante...Butterworth? Alô, eu não entendi direito o nome... alô, alô, alô, alô!.. Ah! (O telefone se recusa obstinadamente e emitir qualquer outro som. PARAMORE repõe o fone.)
(Nessa altura entra o leitmotif do táxi, trazendo um segundo rapaz; ele carrega uma valise e abre a porta da frente sem tocar a campainha.)
MAURY: (No vestíbulo) Ô Anthony! Olá! (Ele entra na sala grande e vê PARAMORE) Como vai?
PARAMORE: (Olhando para ele com crescente intensidade) Você é Maury Noble?
MAURY: É isso aí. (Ele avança, sorrindo, estendendo a mão) Como está, meu velho? Não te vejo há anos.
(Ele associara o rosto vagamente com Harvard, mas não tem certeza nem disso. O nome, se é que ele já o conheceu, esqueceu-o há muito tempo. No entanto, com fina sensibilidade e uma igualmente elogiável caridade, PARAMORE percebe esse fato e alivia a situação com finura.)
PARAMORE: Você esqueceu de Fred Paramore? Fomos ambos da turma de história do velho Unc Robert.
MAURY: Não, Unc, quero dizer, Fred. Fred, aliás, Unc era um grande sujeito, não era?
PARAMORE: (Sacudindo a cabeça várias vezes com humor) Uma grande figura. Grande figura.
MAURY: (Depois de uma curta pausa) Era sim. Onde está Anthony?
PARAMORE: O empregado japonês me disse que ele estava numa pousada qualquer. Jantando, imagino.
MAURY: (Consultando o relógio) Já foi há muito tempo?
PARAMORE: Acho que sim. O japonês disse que eles voltariam logo.
MAURY: Que tal tomarmos um drinque?
PARAMORE: Não, obrigado, eu não tomo nada. (Ele sorri.)
MAURY: Você se importa se eu tomar? (Dando um bocejo enquanto se serve de uma garrafa) O que anda fazendo desde que saiu da universidade?
PARAMORE: Ah, muitas coisas. Eu tive uma vida muito ativa. Rodei para lá e para cá. (Seu tom de voz insinuava qualquer coisa, desde caça aos leões até o crime organizado.)
MAURY: Ah, esteve na Europa?
PARAMORE: Não, infelizmente.
MAURY: Acho que todos nós iremos, dentro em breve.
PARAMORE: Você acha mesmo isso?
MAURY; Claro! O país vem sendo alimentado com sensacionalismo há mais de dois anos. Todo mundo está ficando inquieto. Quer se divertir.
PARAMORE: Então você não acredita que existam ideais em jogo?
MAURY: Nada de muita importância. As pessoas querem uma agitação de vez em quando.
PARAMORE: (Concentrado) É muito interessante ouvir você dizer isso. Eu andei falando com um sujeito que esteve lá... (Durante o testamento que se seguiu, que o leitor pode preencher com frases como "viu com seus próprios olhos", "o esplêndido espírito da França" e "o resgate da civilização", MAURY fica sentado com pálpebras abaixadas, friamente entediado.)
MAURY: (Na primeira oportunidade surgida) Aliás, você sabe que existe um agente alemão nesta própria casa?
PARAMORE: (Sorrindo cautelosamente) Você está falando sério?
MAURY: Com certeza. Acho que é meu dever
avisá-lo.
PARAMORE: (Convencido) Uma governanta?
MAURY: (Sussurrando, a indicar a cozinha com seu polegar) Tana! Esse não é seu verdadeiro nome. Eu sei que ele vive recebendo correspondência endereçada ao tenente Emile Tannenbaum.
PARAMORE: (Rindo com uma tolerância amável) Você está de brincadeira comigo.
MAURY: Eu talvez o esteja acusando em falso. Mas você não me contou o que andou fazendo.
PARAMORE: Por exemplo - escrevendo.
MAURY: Ficção?
PARAMORE: Não. Não-ficção.
MAURY: O que é isso? Algum tipo de literatura que é meio fato meio ficção?
PARAMORE: Ah, eu me limitei aos fatos. Andei fazendo bastante trabalho na área do serviço social.
MAURY: Ah!
(Um brilho imediato de desconfiança surge em seu olhar. E como se PARAMORE se proclamasse batedor de carteiras amador.)
PARAMORE: Atualmente estou fazendo um trabalho social em Stamford. Só na última semana é que alguém me disse que Anthony Patch morava tão perto.
(São interrompidos por um barulho lá fora, inequivocamente o de dois sexos conversando e rindo entre si. Então entram juntos na sala ANTHONY, GLORIA, RICHARD CARAMEL, MURIEL KANE, RACHAEL BARNES e RODMAN BARNES, seu marido. Eles se lançam de encontro a MAURY, respondendo com um "Ótimo!" sem lógica, a seu "Olá". Enquanto isso, ANTHONY se aproxima de seu outro hóspede.)
ANTHONY: Poxa, macacos me mordam. Como vai você? Estou muito satisfeito em te ver.
PARAMORE: Bom te ver, Anthony. Estou alojado em Stamford, por isso pensei em vir até aqui. (Maliciosamente) Como precisamos trabalhar para derrotar o demônio durante a maior parte do tempo, merecemos algumas horas de férias.
(Em uma agonia de concentração, ANTHONY tenta se lembrar do nome. Depois de uma luta, um verdadeiro parto, sua memória lhe dá o fragmento "Fred", em torno do qual ele rapidamente construiu a frase: "Que bom que você veio, Fred!". Enquanto isso, baixou um ligeiro silêncio no grupo, preliminar a uma apresentação. MAURY, que poderia ajudar, prefere ficar olhando e se divertindo maliciosamente.)
ANTHONY: (Em desespero) Senhoras e senhores, este é - este é Fred.
MURIEL: (Com amável frivolidade) Olá, Fred!
(RICHARD CARAMEL e PARAMORE se cumprimentam intimamente por seus prenomes, este se lembrando que Dick era um dos seus colegas de turma que nunca se deu ao trabalho de falar com ele. DICK imagina tolamente que PARAMORE é alguém que ele já conheceu antes na casa de ANTHONY. As três jovens mulheres vão lá para cima.)
MAURY: (Em um tom mais baixo, para DICK) Não vejo Muriel desde o casamento de Anthony.
DICK: Ela agora está o máximo. Sua última é: "Eu diria que sim!".
(ANTHONY se empenha um pouco com PARAMORE e finalmente tenta ampliar a conversa, pedindo um drinque para todo mundo.)
MAURY: Eu baixei bem essa garrafa. Fui de "Proof" a "Distillery". (Ele indica as palavras no rótulo.)
ANTHONY: (Para PARAMORE) Eu nunca sei quando esses dois vão aparecer. Agente se despede deles uma tarde às cinco e não é que eles aparecem lá pelas duas da madrugada? Uma limusine de Nova York encosta na porta e lá saem eles, bêbados como uns gambás, é claro.
(Em um exagero de concentração, PARAMORE examina a capa de um livro que ele segura. MAURY e DICK trocam um olhar.)
DICK: (Inocentemente, para PARAMORE) Você trabalha aqui na aldeia?
PARAMORE: Não, estou na agência de Laird Street, em Stamford. (Para ANTHONY) Você não faz idéia da pobreza que existe nessas cidadezinhas de Connecticut. Italianos e outros imigrantes. Na maior parte, católicos, sabe, por isso é muito difícil fazer contato com eles.
ANTHONY: (Polidamente) Muita criminalidade?
PARAMORE: Não tanto criminalidade quanto ignorância e sujeira.
MAURY: A minha teoria é a seguinte: cadeira elétrica imediata para todas as pessoas sujas e ignorantes. Sou a favor dos criminosos - eles dão cor à vida. O problema é que se você punir a ignorância terá de começar pelas famílias dos pioneiros, em seguida teria que atacar o pessoal do cinema e, finalmente, o Congresso e os padres.
PARAMORE: (Sorrindo constrangido) Eu falava de uma ignorância mais fundamental, inclusive de nossa língua.
MAURY: (Pensativamente) Imagino que ela deva ser meio difícil. Eu nem sequer consigo me manter atualizado sobre a nova poesia.
PARAMORE: Só quando o trabalho do assentamento já tem meses é que você percebe como as coisas são difíceis. Como me disse nosso secretário, suas unhas só parecem sujas quando você lava as mãos. É claro que já estamos chamando muita atenção.
MAURY: (Grosseiramente) Como diria seu secretário, se você enfiar papel numa lareira, ele queimará intensamente por um instante.
(A essa altura, GLORIA, recém pintada e com o desejo lascivo de ser admirada e se divertir, se reúne ao grupo, seguida de suas duas amigas. Durante vários instantes a conversa se torna inteiramente fragmentada. GLORIA chama de lado ANTHONY.)
GLORIA: Por favor, não beba muito, Anthony.
ANTHONY: Por quê?
GLORIA: Porque você fica tão simplório quando está bêbado.
ANTHONY: Senhor! Qual o problema agora?
GLORIA: (Depois de uma pausa em que seu olhar encara friamente o dele) Várias coisas. Em primeiro lugar, por que você insiste em pagar tudo? Aqueles dois sujeitos têm mais dinheiro do que você!
ANTHONY: Ora, Gloria, eles são meus convidados!
GLORIA: Isso não é motivo pelo qual você deva pagar pela garrafa de champagne que Rachael Barnes espatifou. Dick tentou pagar aquela segunda corrida do táxi e você não quis deixá-lo.
ANTHONY: Ora, Gloria...
GLORIA: Quando a gente precisa vender títulos até para pagar nossas contas já é hora de cortar essas generosidades exageradas. Aliás, eu não daria tanta atenção a Rachael Barnes. Seu marido não gosta disso nem um pouquinho mais do que eu.
ANTHONY: Ora, Gloria.
GLORIA: (Imitando-o incisivamente) "Ora, Gloria!" Mas isso tem acontecido com demasiada freqüência neste verão, com toda mulher bonita que você conhece. Virou uma espécie de hábito, e eu não vou tolerar isso! Se você pode dar suas voltinhas, eu também posso. (Então, como um adendo.) Aliás, esse sujeito Fred não é um segundo Joe Hull, é?
ANTHONY: Deus do céu, não! Ele provavelmente veio para me pedir que convença meu avô a dar um dinheiro qualquer para seu rebanho.
(Gloria se afasta de um ANTHONY muito deprimido e volta para seus convidados.
Lá pelas nove horas os convidados podem ser divididos em duas categorias - os que andaram bebendo sem parar e aqueles que beberam pouco ou nada. No segundo grupo estão os BARNES, MURIEL e FREDERICK e PARAMORE.)
MURIEL: Eu gostaria de poder escrever. Tenho umas idéias, mas nunca consigo transformá-las em palavras.
DICK: Como disse Golias, ele compreendia como Davi se sentia, mas não conseguia exprimi-lo. Esse comentário foi imediatamente adotado como um lema pelos filisteus.
MURIEL: Eu não te compreendo. Devo estar ficando burra na minha velhice.
GLORIA: (Andando, meio cambaleante, entre as pessoas, como um anjo meio embriagado) Se alguém aqui estiver com fome, tem umas massas francesas na mesa da sala de jantar.
MAURY: Não tolero aqueles arranjos vitorianos da embalagem delas.
MURIEL: (Achando tremendamente divertido) Eu diria que você está alto, Maury.
(Seus peitos continuam sendo um piso que ela oferece aos cascos de inúmeros garanhões que passam, na esperança que suas ferraduras possam criar ao menos uma centelha de romantismo, no escuro.
O Senhores BARNES e PARAMORE andaram absortos em uma conversa sobre algum assunto construtivo, tão construtivo que o senhor BARNES já procura se insinuar a vários minutos no ar mais viciado em torno do centro da sala. Não sabemos se PARAMORE fica na casa cinzenta por delicadeza ou para fazer um futuro estudo sociológico sobre a decadência da vida na América.)
MAURY: Fred, eu imaginei que você tivesse uma cabeça mais liberal.
PARAMORE: Tenho.
MURIEL: Eu também. Acredito que uma religião vale tanto quanto a outra, e tudo mais.
PARAMORE: Há coisas boas em todas as religiões.
MURIEL: Eu sou católica, mas, como sempre digo, não me esforço muito.
PARAMORE: (Com um tremendo esforço de tolerância) A religião católica é uma religião muito, muito forte.
MAURY: Ora, alguém de cabeça tão liberal deveria experimentar o aguçamento da sensibilidade e o estímulo ao otimismo provocado por esse coquetel.
PARAMORE: (Pegando o drinque de modo um tanto desafiador) Obrigado, vou experimentar um.
MAURY: Um? É um escândalo. Aqui temos uma reunião da turma de 1910 e você se recusa a ficar só um pouquinho alto. Vamos lá!

Brindemos à saúde do rei Charles,
Brindemos à saúde do rei Charles,
Tragam a tigela que vocês alardeiam...

(PARAMORE participa com uma voz vigorosa.)
MAURY: Encha seu copo, Frederick. Você sabe que entre nós tudo é subordinado aos objetivos da natureza, e o objetivo que ela lhe reserva é fazer de você um beberrão descarado.
PARAMORE: Se for possível beber como um cavalheiro...
MAURY: O que é um cavalheiro, aliás?
ANTHONY: Um sujeito que nunca traz alfinetes sob as lapelas de seu casaco.
MAURY: Besteira! O status social de um sujeito é determinado pela quantidade de pão que ele come em um sanduíche.
DICK: É um sujeito que prefere a primeira edição de um livro à última edição de um jornal.
RACHAEL: Um sujeito que nunca faz uma imitação de um drogado.
MAURY: Um americano que consegue fingir a um mordomo inglês que ele é americano.
MURIEL: Um sujeito de boa família que freqüentou Yale, Harvard ou Princeton, tem dinheiro, dança bem, tudo isso.
MAURY: E finalmente: a definição perfeita! O cardeal Newman virou número atrasado.
PARAMORE: Acho que devemos encarar o problema de uma maneira mais ampla. Não foi Abraham Lincoln quem disse que um cavalheiro é alguém que nunca provoca dor?
MAURY: Isso é atribuído, eu creio, ao general Ludendorff.
PARAMORE: Você está brincando, com certeza.
MAURY: Tome outro drinque.
PARAMORE: Eu não devia. (Abaixando a voz só para MAURY ouvi-lo) E se eu lhe dissesse que este é o terceiro drinque que já bebi na minha vida?
(DICK põe o fonógrafo para funcionar, o que faz com que MURIEL levante e comece a rebolar, com os cotovelos contra as costelas, antebraços perpendiculares ao corpo, como barbatanas.)
MURIEL: Ah, vamos tirar os tapetes e dançar!
(Essa sugestão é recebida por ANTHONY e GLORIA com resmungas íntimos e sorrisos amarelos de aquiescência.)
MURIEL: Vamos lá, seus preguiçosos. Levantem-se e empurrem os móveis para trás.
DICK: Espere até eu acabar meu drinque.
MAURY: (Concentrado no seu intento em relação a PARAMORE) Deixe eu lhe dizer uma coisa. Vamos primeiro encher nossos copos, esvaziá-los, e aí dançar.
(Qualquer gesto de protesto rui diante da insistência pétrea de MAURY.)
MURIEL: Minha cabeça já está simplesmente girando.
RACHAEL: (Em voz baixa para ANTHONY) Gloria te disse para se afastar de mim?
ANTHONY: (Perplexo) Ora, claro que não.
RACHAEL: (Sorri para ele misteriosamente. Dois anos haviam lhe dado uma espécie de beleza dura, elegante.)
MAURY: (Erguendo o copo) À derrota da democracia e à queda do Cristianismo.
MURIEL: Ora, ora!
(Ela lança um falso olhar de censura para MAURY e então bebe. Todos bebem, com vários graus de dificuldade.)
MURIEL: Liberem a pista!
(Como parece inevitável que isso aconteça, ANTHONY e GLORIA participam do grande empurrão de mesas, empilhamento de cadeiras, enrolamento de tapetes e quebra de luminárias. Depois de a mobília ter sido empilhada em grandes montes feios, nos lados da sala, abriu-se um espaço de cerca de um metro quadrado.)
MURIEL: Ah, música!
MAURY: Tana executará a cantiga de amor de um oculista e de um otorrinolaringologista.
(No meio de certa confusão, por TANA ter se recolhido para a noite, fazem-se os preparativos para o espetáculo. O japonês de pijama, com a flauta na mão, é embrulhado em uma manta e colocado em uma cadeira em cima de uma das mesas, constituindo um espetáculo ridículo e grotesco. PARAMORE está obviamente bêbado e tão encantado com a idéia que exagera sua situação simulando cambaleios tirados dos quadrinhos, ousando até um soluço ocasional.)
PARAMORE: (Para GLORIA) Quer dançar comigo?
GLORIA: Não, senhor! Quer dançar a dança dos cisnes? Você é capaz?
PARAMORE: Claro. Sei dançar tudo.
GLORIA: Está bem. Você começa daquele lado da sala, e eu deste.
MURIEL: Vamos lá!
(O Pandemônio escapa, aos berros, de dentro das garrafas. TANA mergulha no labirinto recôndito da canção do trem, o melancólico "tuuú tu-tu" mescla sua triste cadência com a da "Pobre borbole-ta (tink-atink) na flor pousada " do fonógrafo. MURIEL está tão exausta de rir, que só consegue se agarrar a BARNES, que dança com a rigidez impressionante de um oficial do exército, palmilhando sem humor nenhum aquele mínimo espaço. ANTHONY procura ouvir o cochicho de RACHAEL - sem chamar atenção de Gloria... Mas está por acontecer o incidente mais grotesco e inacreditável, um desses incidentes em que a vida parece determinada a imitar ardentemente as formas mais baixas da literatura. PARAMORE, que vinha tentando imitar Gloria, com o tumulto no auge, começa a rodopiar, rodopiar de maneira cada vez mais vertiginosa - então tropeça, se recupera, tropeça de novo e cai na direção do saguão... praticamente nos braços do velho ADAM PATCH, cuja chegada foi abafada pelo pandemônio na sala.
ADAM PATCH está muito branco. Escora-se em uma bengala. O sujeito que o acompanha é EDWARD SHUTTLEWORTH, e é ele que segura PARAMORE pelos ombros e desvia a trajetória de sua queda para longe do venerável filantropo. Pode ser calculado em dois minutos o tempo que o silêncio levou para baixar, como uma mortalha monstruosa, sobre a sala, embora por um curto período depois o fonógrafo ainda engasgasse e as notas da canção do trem japonesa ainda escorressem da extremidade da flauta de TANA. Das nove pessoas, somente BARNES, PARAMORE e TANA desconhecem a identidade do recém-chegado. Das nove, nenhuma tem conhecimento que naquela manhã ADAM PATCH dera uma contribuição de cinqüenta mil dólares à causa da proibição nacional do álcool.
Cabe a PARAMORE quebrar o acúmulo de silêncio; sua vida de depravação atinge aqui o auge, com seu incrível comentário.)
PARAMORE: (Rastejando depressa, de quatro, em direção à cozinha) Eu não sou um convidado
- trabalho aqui.
(Novamente o silêncio cai - tão profundo agora, tão pesado, tão intoleravelmente apreensivo e contagioso que RACHAEL dá um risinho nervoso e DICK se vê a declamar incessantemente um verso de Swinburne, grotescamente inadequado àquela cena:
"Um gélido e desolado botão de inodoro hálito" Surge, do silêncio, a voz de ANTHONY PATCH, sóbria e tensa, dizendo algo a ADAM PATCH; em seguida ela também se cala.)
SHUTTLEWORTH: (Incisivamente) Seu avô teve vontade de vir de carro para ver sua casa. Telefonei de Rye e deixei recado.
(Uma série de pequenos suspiros, saídos aparentemente de lugar nenhum, de ninguém, preenchem a pausa seguinte. ANTHONY está branco como giz. Os lábios de GLORIA estão entreabertos e seu olhar direto para o velho é de medo e de tensão. Não há um sorriso na sala. Nenhum? Ou não é que a boca tensa de CROSS PATCH se contrai, ligeiramente aberta, para mostrar as fileiras homogêneas de seus dentes esguios? Ele fala quatro palavras suaves e simples.)
ADAM PATCH: Agora vamos voltar, Shuttleworth. (E é só. Ele se vira, auxiliado pela sua bengala, sai do saguão e passa pela porta da frente, e com uma solenidade infernal seus passos incertos esmagam o cascalho do caminho sob a luar de agosto.)

RETROSPECTO

Nessa aflição, eles eram como dois peixinhos dourados em um aquário do qual toda a água fora esvaziada; não conseguiam sequer nadar um até o outro.
Gloria faria 26 anos em maio. Nada dissera, nada queria a não ser ser jovem e bela por muito tempo, ser alegre e feliz, ter dinheiro e amor. Ela queria o que a maioria das mulheres quer, mas ela o queria com muito mais ardor e entusiasmo. Estava casada há mais de dois anos. No início, houve dias de compreensão serena, culminando com arrebatamentos de orgulho e possessividade. Alternando-se com esses períodos, ocorreram ódios esporádicos, que duravam uma breve hora, e o perdão não mais que uma tarde. Isso fora durante um ano.
Em seguida a serenidade, o conteúdo se tornara menos alegre, se tornara insosso - só raramente, pelo acicate do ciúme ou da separação forçada, voltavam as antigas alegrias, a aparente comunhão de alma com alma, a excitação emocional. Era-lhe possível chegar a odiar Anthony por um dia, ficar indiferente e exasperada com ele por até uma semana. A recriminação substituíra o prazer do afeto, virara quase uma diversão, e havia noites em que iam dormir tentando se lembrar quem estava zangado e quem deveria ficar amuado na manhã seguinte. E no findar do segundo ano introduziram-se dois novos elementos. Gloria percebera que Anthony se tornara capaz de demonstrar uma total indiferença com ela, uma indiferença temporária, mais do que meio letárgica, mas da qual ela não conseguia demovê-lo com uma palavra sussurrada ou determinado sorriso cheio de intimidade. Havia dias em que suas carícias tinham sobre ele o efeito de algo sufocante. Ela se dava conta dessas coisas; jamais as admitia inteiramente para si mesma.
Só recentemente ela percebeu que, a despeito da adoração, dos ciúmes, do orgulho, da dependência dela, ela no fundo o desprezava - e seu desprezo se misturou indistintamente com suas outras emoções... Tudo isso representava seu amor - a ilusão feminina e vital que ela endereçara a ele em uma noite de abril, muitos meses antes.
Da parte de Anthony ela era, a despeito dessas características, sua única preocupação. Se a perdesse, ele seria um homem alquebrado, enredado de modo sentimental e sorrido na memória dela pelo resto de sua vida. Ele raramente sentia prazer em passar um dia inteiro sozinho com ela - exceto em determinadas ocasiões, preferia a companhia de uma terceira pessoa. Havia vezes em que ele achava que se não lhe deixassem ficar inteiramente sozinho, enlouqueceria - houve algumas vezes em que ele odiou-a definitivamente. Quando bêbado, ele era capaz de sentir breve atração por outras mulheres, o aflorar de uma índole experimental, até então reprimida.
Naquela primavera, naquele verão, eles especularam sobre a felicidade futura - como haveriam de viajar de país em país em um verão permanente, voltando finalmente para uma maravilhosa propriedade e, possivelmente, para filhos idílicos, em seguida entrando na diplomacia ou na política para realizar, durante algum tempo, coisas belas e importantes, até que finalmente, na condição de um casal de cabelos brancos (belos, sedosos cabelos brancos), viveriam indolentemente em uma serena glória, adorados pela burguesia da terra... Esse período haveria de começar "quando a gente receber nosso dinheiro"; era nesses sonhos, em vez de na sua vida irregular e crescentemente dissoluta, que sua esperança descansava. Nas manhãs cinzentas, quando as piadas da noite anterior se reduziam a obscenidades sem graça nem dignidade, eles podiam, por assim dizer, desenterrar esse monte de esperanças comuns e arrolá-lo, em seguida sorrir um para o outro e repetir, como se para resolver o assunto, o sucinto, porém sincero nietzschianismo do desafiador "pouco estou ligando!" de Gloria.
As coisas vinham piorando perceptivelmente. Havia a questão do dinheiro, cada vez mais aborrecida, cada vez mais sintomática; havia a percepção de que o álcool se tornara uma necessidade prática para a diversão deles - um fenômeno nada incomum na aristocracia inglesa de cem anos atrás, mas algo alarmante em uma civilização que ficava cada vez mais sóbria e circunspecta. Além do mais, ambos pareciam ter menos fibra, não tanto nas coisas que faziam quanto nas suas reações sutis à civilização que os envolvia. Em Gloria nascera algo de que ela até então nunca sentira falta - o esqueleto, incompleto, ainda assim inequívoco, de sua velha aversão: uma consciência. Essa confissão íntima deu-se simultaneamente com o lento declínio de sua coragem física.
Então, na manhã de agosto, depois da visita inesperada de Adam Patch, eles acordaram cansados, nauseados, desanimados da vida, apenas capazes de sentir uma emoção difusa - medo.

PÂNICO

- Bem? - Anthony sentou-se na cama e olhou para ela. Os cantos de sua boca estavam caídos de depressão, sua voz tensa e cava.
A resposta dela foi levar a mão à boca e começar a mordiscar o dedo, lenta, precisamente.
- A gente conseguiu estragar tudo - disse ele depois de uma pausa; em seguida, pelo fato de ela ainda se manter calada, ficou irritado.
- Por que você não diz nada?
- Que diabo quer que eu diga?
- O que você acha.
- Nada.
- Então pare de morder o dedo!
Seguiu-se uma breve discussão sobre o fato de ela ter achado ou não achado nada. Parecia essencial a Anthony que ela remoesse em voz alta o desastre da noite anterior. O seu silêncio era uma maneira de jogar a responsabilidade sobre ele. De sua parte, ela não via nenhuma necessidade de falar - o instante pedia que ela mordiscasse o dedo como uma criança nervosa.
- Preciso endireitar essa porcaria, essa trapalhada com meu avô - disse ele, não muito convicto. O "meu avô" ao invés de "vovô" indicava um ligeiro respeito recém-surgido.
- Você não vai poder - afirmou ela, abruptamente. - Jamais poderá. Ele nunca te perdoará até o fim de sua vida.
- Talvez não - concordou Anthony, desanimado.
- No entanto, eu talvez ainda pudesse endireitar as coisas se me regenerasse, esse tipo de coisa.
- Ele parecia doente - interrompeu ela -, pálido como cera.
- Ele está doente. Eu te disse há três meses.
- Eu gostaria que ele já tivesse morrido na semana passada! - disse ela, petulante. - Velho desatencioso e bobão!
Nenhum deles riu.
- Mas deixe eu te dizer uma coisa - disse ela em voz baixa -, da próxima vez que eu vir você se comportando com qualquer mulher da maneira como se comportou com Rachael Barnes, na noite passada, eu te deixo, assim-de-uma-hora-para-outra! Eu simplesmente não vou tolerar isso!
Anthony estremeceu.
- Ah, não seja irracional - protestou ele.
- Você sabe que no mundo só existe uma mulher para mim: você, querida.
Sua tentativa de adotar um tom carinhoso fracassou terrivelmente - o perigo mais iminente voltou a ocupar o proscênio.
- Se eu fosse vê-lo - sugeriu Anthony - e dissesse, com as citações bíblicas adequadas, que andei muito tempo na senda do mal e que finalmente divisei a luz. - Ele interrompeu e olhou para a expressão esquisita de sua mulher. - O que faria ele?
- Não sei.
Ela pensava se seus convidados teriam o discernimento de ir embora logo depois do
café-da-manhã.
Só depois de uma semana é que Anthony teve coragem de ir a Tarrytown. A perspectiva era revoltante e, se a iniciativa tivesse ficado por sua conta, ele teria sido incapaz de fazer a viagem - no entanto, se a sua vontade se enfraquecera nos últimos três anos, também se enfraquecera sua capacidade de resistir às pressões. Gloria obrigou-o a ir. Estava muito bem esperar uma semana, disse ela, pois isso daria tempo para que a animosidade de seu avô esfriasse - mas esperar mais seria um equívoco - pois lhe daria oportunidade de endurecer.
Ele foi, trêmulo. Em vão. Adam Patch não passava bem, disse Shuttleworth, indignado. Ninguém podia vê-lo, eram as ordens peremptórias. Diante do olho vingativo do ex-beberrão, a fachada de Anthony murchou. Ele foi andando até seu táxi quase furtivamente, e só recuperou seu respeito próprio ao embarcar no trem; satisfeito, como um menino, de escapar para os palácios maravilhosos e consoladores que ainda assomavam e brilhavam na sua mente.
Gloria demonstrou desprezo quando ele voltou para Marietta. Por que ele não entrara à força? Era o que ela teria feito!
Os dois rascunharam uma carta para o velho e, depois de revisá-la bastante, mandaram-na. Era meio uma desculpa, meio uma explicação artificial. A carta não teve resposta.
Chegou um dia, em setembro, um dia dividido entre sol e chuva, sol sem calor, chuva sem frescor. Nesse dia partiram da casa cinzenta que testemunhara a florescência do amor deles. Quatro malas grandes e três caixotes monstruosos empilhavam-se na sala desmantelada onde, há dois anos, eles se esticavam preguiçosamente, pensando em termos de sonhos remotos, lânguidos, satisfeitos. O vazio da sala criava eco. Gloria, em um vestido novo marrom orlado de pele, sentava-se em cima de uma mala, calada, e Anthony andava nervosamente para lá e para cá, fumando, enquanto esperavam pelo caminhão que levaria sua mudança para a cidade.
- O que são? - perguntou ela, apontando para uns livros empilhados em um dos caixotes.
- É minha velha coleção de selos - confessou ele meio sem jeito. - Esqueci de arrumá-la.
- Anthony, é tão tolo ficar carregando isso por aí.
- Sim, eu estava consultando-a na época em que deixamos o apartamento, na primavera passada, e resolvi não guardá-la.
- Não dá para vendê-la? Já não basta o lixo que temos?
- Sinto muito - disse ele, humildemente.
Com um tremor retumbante, a mala foi arrastada até a porta. Gloria sacudiu os punhos em desafio diante das quatro paredes.
- Estou tão feliz de ir embora! - gritou. - Tão feliz. Ah, meu Deus, como eu detesto esta casa!
Então a bela e brilhante dama foi com seu marido para Nova York. E brigaram no próprio trem que os levou - suas palavras amargas tinham a freqüência, a regularidade, a inevitabilidade das estações por que passavam.
- Não fique zangada - suplicou Anthony, deploravelmente. - Não temos mais nada senão um ao outro, afinal de contas.
- Não temos nem sequer isso, na maior parte do tempo - gritou Gloria.
- Quando acontece isso?
- Muitas vezes. Para começar, naquela vez na plataforma da estação de Redgate.
- Você não quer dizer que...
- Não - interrompeu ela com frieza -, eu não fico cultivando isso. Foi algo que aconteceu e passou, e ao passar levou algo consigo.
Ela terminou abruptamente. Anthony ficou sentado calado, confuso, deprimido. As paisagens insossas voltadas para a ferrovia de Mamoroneck, Larchmont, Rye, Pelham Manor, se sucediam a intervalos com terrenos baldios tristes e abandonados a posar absurdamente de campo. Ele se viu a recordar como, em uma manhã de verão, os dois partiram de Nova York em busca da felicidade. Nunca esperaram encontrá-la, talvez, e, no entanto, aquela própria busca fora mais feliz do que qualquer outra aspiração jamais seria. A vida precisa, ao que parece, dos apoios que colocamos em volta da gente - de outro modo, era um desastre. Não havia descanso, paz. Ele fora equivocado no seu anseio de andar à deriva e sonhar; ninguém andava à deriva senão rumo a um grande abismo, ninguém sonhava sem que seus sonhos se tornassem pesadelos fantásticos, feitos de indecisão e arrependimento.
Pelham! Eles brigaram em Pelham porque Gloria tinha que dirigir. E quando ela pusera seu pezinho no acelerador, o carro pulara com força, sacudindo as cabeças deles para trás como se elas fossem de marionetes, puxadas por um único fio.
O Bronx - as casas agrupadas a brilhar ao sol, que caía agora através de um céu fúlgido, derramando carradas de luz sobre as ruas. Nova York, presumia ele, era sua casa - a cidade da volúpia e do mistério, de esperanças ridículas e sonhos exóticos. Aqui, nas suas cercanias, absurdos palácios de gesso se erguiam na fresca do pôr-do-sol, jaziam por um instante como apática miragem e se distanciavam gradativamente, substituídos pela confusão labiríntica do rio Harlem. O trem ia chegando no meio do crescente crepúsculo, passando sobre e por centenas de ruas alegres e suadas da Upper East Side, cada uma passando pela janela do vagão como o vão entre os raios de uma gigantesca roda, cada uma exibindo um vigoroso e pitoresco enxame de crianças pobres entregue a atividades febris, como formigas nervosas em vielas de areia vermelha. Das janelas das casas de cômodos se inclinavam mães rotundas, de formas lunares, como constelações naquele céu sórdido; mulheres iguais a diamantes brutos e encardidos, mulheres iguais a verduras, mulheres iguais a grandes sacolas de roupas horrendamente sujas.
- Eu gosto destas ruas - comentou em voz alta Anthony. - Sempre acho que se trata de um espetáculo encenado em meu benefício; como se um segundo depois que eu passasse, todos parassem de pular e de rir e, ao contrário, ficassem muito tristes, lembrando-se de quão pobres são, e se recolhessem de cabeças baixas às suas casas. Essa é uma sensação freqüente no estrangeiro, mas rara neste país.
Pela extensão de uma rua movimentada, ele leu uma dezena de nomes judaicos em uma série de lojas; na porta de cada uma jazia um sujeitinho moreno a olhar os passantes com um olhar atento - brilhando de desconfiança, de orgulho, de lucidez, de cobiça, de compreensão. Nova York - ele não podia mais dissociá-la da lenta marcha ascensional dessa gente
- as pequeninas lojas, crescendo, se expandindo, se consolidando, se mudando, vigiadas com um olhar de águia, e a atenção aos pormenores que só as abelhas tem, espraiavam-se por todos os lados.
A voz de Gloria interrompeu-o com estranha adequação aos seus pensamentos.
- Estou pensando onde Bloeckman passou este verão.

O APARTAMENTO

Depois das certezas da juventude chega um período de intensa e intolerável complexidade. No caso do atendente de sorveteria esse período é tão curto que é quase desprezível. Os homens de maior status oferecem maior resistência ao abandono de certas delicadezas do relacionamento social, de certas idéias "pouco práticas" de integridade. Ao chegar aos vinte e muitos anos, a coisa já ficou complicada demais, e aquilo que até então fora iminente e confuso torna-se gradativamente remoto e obscuro. A rotina desce como o crepúsculo sobre uma paisagem agreste, quebrando suas arestas até que ela se torne tolerável. A complexidade é demasiado sutil, variada; os valores mudam totalmente toda vez que a vitalidade é sacrificada; nasce a impressão de que não conseguimos aprender nada do passado para enfrentar o futuro - então paramos de ser impulsivos, persuasíveis, interessados pelas filigranas da ética; substituímos noções de integridade por regras de conduta, valorizamos a segurança em detrimento do romantismo, tornamo-nos inconscientemente pragmáticos. Cabe a poucos se preocupar de modo permanente com as nuances do relacionamento social - e, até esses poucos, somente em determinadas horas especialmente eleitas para esta tarefa.
Anthony Patch deixara de ser um indivíduo de mente aventureira, curiosa, e tornara-se um indivíduo preconceituoso, discriminador, com um anseio de tranqüilidade emocional.
Essa mudança gradativa ocorrera no decorrer de vários anos, acelerada por uma série de ansiedades que afligiam sua mente. Havia, primeiro, a sensação de desperdício, sempre latente no seu coração, agora reavivada pelas circunstâncias de sua vida. Em seus momentos de insegurança, perseguia-lhe a sugestão de que a vida, afinal de contas, tinha um sentido. Nos seus vinte e poucos anos, a convicção da inutilidade do esforço, da sabedoria da abnegação, eram confirmadas pelas filosofias que ele admirava, além de sua ligação com Maury Noble e, mais tarde, com sua mulher. No entanto, houve ocasiões - logo antes de ele conhecer Gloria, por exemplo, e quando seu avô sugerira que ele fosse para o exterior como correspondente de guerra - em que sua insatisfação quase lhe levara a dar um passo positivo.
Um dia, logo antes de partirem definitivamente de Marietta, ao virar displicentemente as páginas de um boletim dos alunos de Harvard, ele encontrara uma coluna informativa sobre os afazeres de seus contemporâneos, seis anos depois da formatura. A maioria estava no mundo dos negócios, era verdade, e vários convertendo os pagãos da China ou da América a um protestantismo nebuloso; mas uns poucos, descobriu, trabalhavam construtivamente em coisas que não eram nem sinecuras nem algo rotineiro. Havia Calvin Boyd, por exemplo, que, mal saído da faculdade de medicina, descobrira um novo tratamento para o tifo, embarcara para o exterior e estava aliviando a Sérvia de um pouco dos males da civilização trazidos pelas grandes potências; havia Eugene Bronson, cujos artigos na New Democracy o destacavam como um homem cujas idéias transcendiam tanto o oportunismo vulgar quanto a histeria onipresente; havia um sujeito chamado Daly que fora suspenso da faculdade de uma universidade bem pensante por pregar doutrinas marxistas na sala de aula: na arte, na ciência, na política, ele divisava o emergir das personalidades autênticas de sua época - havia até Severance, o zagueiro, que doara sua vida de modo bastante digno e puro à Legião Estrangeira, em Aisne.
Ele pousou a revista e pensou durante algum tempo sobre esses diversos indivíduos. Na sua fase de integridade, ele teria defendido a própria atitude até as últimas conseqüências - um Epicuro no Nirvana, ele teria proclamado que se esforçar era crer, e crer era limitar. Tão fácil seria para ele se tornar um crente, pois a perspectiva de imortalidade o agradava, tanto quanto pensar na possibilidade de entrar para o ramo dos couros, já que a intensa competitividade o impediria de se sentir infeliz. Mas hoje ele não tinha nenhum escrúpulo delicado assim. Neste outono, ao inaugurar seu vigésimo nono ano, ele tendia a fechar sua mente a muitas coisas, a evitar a busca dos motivos profundos, das primeiras causas e, principalmente, a ansiar ardorosamente por segurança em face do mundo e em face de si mesmo. Ele detestava ficar sozinho; tal como já fora dito que ele às vezes temia ficar sozinho com Gloria.
Devido ao abismo que se abrira diante dele por causa da visita ao avô, e, conseqüentemente, da repulsa ao seu modo de vida recente, era inevitável que ele procurasse à sua volta pelos amigos e ambientes que antes lhe pareciam mais acolhedores e seguros, naquela cidade tornada repentinamente hostil. Seu primeiro passo foi uma tentativa desesperada de voltar para seu velho apartamento.
Na primavera de 1912, ele assinara um contrato de quatro anos a 1.700 dólares por ano, com a opção de renová-lo. Esse contrato vencera em maio do ano anterior. Inicialmente, quando ele alugou os quartos, eles eram uma mera potencialidade, difícil de ser percebida, mas Anthony percebera esse potencial e dera um jeito de pôr no contrato que ele e o senhorio deveriam investir determinada quantia em melhorias. Os aluguéis haviam aumentado nos últimos quatro anos e, na primavera anterior, quando ele surgira com essa opção, o proprietário, um senhor Sohenberg, percebeu que podia auferir um preço muito maior pelo apartamento, agora um lugar atraente. Assim, quando Anthony tocou nesse assunto com ele, em setembro, recebeu de volta uma proposta de Sohenberg: um contrato de três anos, a 2.500 por ano. Isso pareceu a Anthony algo ultrajante. Significava que bem mais que um terço do orçamento deles iria para cobrir o aluguel. Argumentou, em vão, que haviam sido seu dinheiro e suas idéias sobre a divisão interna que tornaram o imóvel atraente.
Ofereceu, em vão, dois mil dólares - 2.200, embora mal pudessem arcar com isso: o senhor Sohenberg permanecia empedernido. Parece que dois outros senhores estavam interessados; aquele tipo de apartamento estava justamente em demanda no momento, e não seria bom negócio dá-lo para o senhor Patch. Além do mais, embora jamais o tenha mencionado antes, vários outros inquilinos reclamaram de barulho durante o inverno anterior - de danças e cantoria tarde da noite, esse tipo de coisa.
Furioso por dentro, Anthony correu de volta ao Ritz para relatar sua frustração a Gloria.
- Eu sou capaz de te ver - enfureceu-se ela
- deixando que ele te obrigasse a desistir!
- O que eu poderia ter dito?
- Poderia dizer quem era ele. Eu não teria agüentado isso. Nenhum outro homem no mundo teria agüentado! Você simplesmente deixa as pessoas mandarem em você, te roubarem, te intimidarem, tirarem vantagem, como se você fosse um menininho bobinho. É ridículo!
- Ah, pelo amor de Deus, não perca a calma.
- Está bem, Anthony, mas você é tão idiota!
- Sim, é possível. De qualquer maneira, nós não podemos pagar esse apartamento. Não obstante, é melhor arcar com ele do que morar aqui no Ritz.
- Foi você quem insistiu em vir para cá.
- Sim, porque sabia que você ficaria infeliz em um hotel barato.
- Claro que ficaria!
- De qualquer maneira, precisamos encontrar um lugar para morar.
- Podemos pagar quanto? - perguntou ela.
- Bem, podemos pagar até o preço dele, se vendermos mais títulos, mas a gente concordou na noite passada que até eu arranjar algo sólido para fazer, nós...
- Ah, eu sei isso tudo. Eu te perguntei quanto podemos pagar dentro de nossa renda.
- Dizem que não se deve pagar mais do que um quarto dela.
- Quanto é um quarto?
- Cento e cinqüenta por mês.
- Você quer dizer que só recebemos seiscentos dólares cada mês? - Uma nota suave introduziu-se de mansinho na sua voz.
- É evidente! - respondeu ele, zangado. - Você acha que andamos gastando mais de doze mil por ano sem entrar no nosso capital?
- Eu sabia que a gente já tinha vendido títulos, mas gastamos tanto assim em um ano? - Seu espanto aumentou.
- Ah, é melhor consultar aqueles livros de contabilidade que a gente mantinha - comentou ele, ironicamente, acrescentando então: - Dois aluguéis na maior parte do tempo, roupas, viagens; olha, cada primavera daquelas na Califórnia custou cerca de quatro mil dólares. Aquela porcaria de carro só deu despesa, do início ao fim. E festas, diversões e uma coisa ou outra.
Estavam ambos agitados agora e extraordinariamente deprimidos. A situação pareceu pior quando ele a descreveu para Gloria do que antes, ao percebê-la.
- Você precisa ganhar algum dinheiro - disse ela de repente.
- Eu sei.
- E precisa fazer outra tentativa de ver seu avô.
- Farei.
- Quando?
- Quando nos assentarmos.
Isso finalmente aconteceu uma semana depois. Eles alugaram um pequeno apartamento na
Fifty-seventh Street a 150 por mês. Tinha um quarto de dormir, sala de visita, quitinete e banheiro, em um prédio de apartamentos estreito, de pedra branca, e, apesar dos aposentos serem demasiado pequenos para acomodar a melhor mobília de Anthony, eram novos, limpos e, de uma maneira clara e salutar, não deixavam de ser atraentes. Bounds viajara ao exterior para se engajar no exército britânico, e no seu lugar eles toleravam, mais do que apreciavam, o serviço de uma irlandesa descarnada, de ossos grandes, que Gloria detestava porque ela discutia sobre os feitos gloriosos do Sinn Fein enquanto servia o café-da-manhã. Mas haviam jurado nunca mais empregar japoneses, e os criados ingleses eram, no momento, difíceis de se conseguir. Como Bounds, a mulher preparava apenas o café-da-manhã. As demais refeições eles as faziam em restaurantes e hotéis.
O que finalmente levou Anthony a correr a Tarrytown foi uma notícia, em vários jornais de Nova York, de que Adam Patch, multimilionário, filantropo, venerável reformador, se encontrava seriamente doente e sem perspectivas de recuperação.

O GATINHO

Anthony não pode vê-lo. As instruções médicas eram que ele não podia falar com ninguém, disse o senhor Shuttleworth - que se ofereceu gentilmente para tomar qualquer recado que Anthony quisesse lhe confiar e transmiti-lo a Adam Patch, quando sua situação permitisse. Mas, através de insinuações óbvias, ele confirmou a dedução melancólica de Anthony de que o neto pródigo não seria especialmente bem vindo à beira da cama. Em determinado ponto da conversa, Anthony, tendo em mente as imperiosas instruções de Gloria, fez menção de contornar o secretário, mas Shuttleworth endireitou, com um sorriso, seus ombros vigorosos, e Anthony percebeu como seria inútil essa tentativa.
Terrivelmente intimidado, voltou para Nova York, onde o casal passou uma semana inquieta. Um pequeno incidente ocorrido uma noite indicou a tensão a que seus nervos estavam submetidos.
Ao caminhar para casa ao longo de uma rua transversal, depois do jantar, Anthony distinguiu um gato notívago, perambulando perto de um gradil.
- Sempre me dá vontade de chutar um gato - disse ele, distraído.
- Gosto deles.
- Cedi a ela uma vez.
- Onde?
- Ah, anos antes de te conhecer. Uma noite, no entreato de um espetáculo. Noite fria como esta, e eu estava meio alto, uma das primeiras vezes em que fiquei alto - acrescentou. - O pobre desgraçado estava procurando um lugar para dormir, acho, e eu estava em um humor de cão, por isso me deu na cabeça chutá-lo.
- Ah, pobre gatinho! - gritou Gloria, sinceramente comovida.
Inspirado pelo impulso narrativo, Anthony desfiou o tema.
- Foi terrível - admitiu ele. - O pobre bichano se voltou e me deu um olhar triste, como se estivesse esperando que eu o recolhesse e lhe fizesse agrado; era apenas um gatinho e, antes que percebesse algo, um pezão se projetou contra ele e pegou-o nas suas pequenas costas.
- Ah! - a exclamação de Gloria estava cheia de agonia.
- Era uma noite tão fria - prosseguiu ele, perversamente, mantendo sua voz em tom melancólico. - Acho que ele esperava bondade de alguém, e recebeu apenas sofrimento...
Ele interrompeu, súbito - Gloria estava aos soluços. Chegaram em casa, e quando entraram no apartamento ela se jogou no sofá, chorando como se ele houvesse atingido a própria alma dela.
- Ah, o pobre gatinho - repetia ela, comovida
-, pobre gatinho. Com tanto frio...
- Gloria.
- Não se aproxime de mim! Por favor, não se aproxime de mim. Você matou o gatinho fofinho.
Anthony ajoelhou-se a seu lado, emocionado.
- Querida - disse ele. - Gloria, querida. Não é verdade. Eu inventei. Cada palavra.
Mas ela não conseguia acreditar nele. Houve qualquer coisa nos detalhes que ele resolveu descrever que a fizeram chorar até adormecer naquela noite, pelo gatinho, por Anthony, por ela mesma, pelo sofrimento, amargura e maldade do mundo.

O FALECIMENTO DE UM MORALISTA AMERICANO

O velho Adam Patch morreu em uma meia-noite do final de novembro, com uma saudação devota a seu Deus nos seus lábios descarnados. Ele, que fora tão lisonjeado, se desligou da vida lisonjeando a Abstração Onipotente que julgou ter irritado nos momentos mais lascivos de sua juventude. Disseram que ele chegara a uma espécie de armistício com a divindade, cujos termos não foram divulgados, mas presumia-se que incluísse um grande pagamento em dinheiro vivo. Todos os jornais imprimiram seu obituário, e dois deles publicaram breves editoriais sobre seu legítimo valor e a parte que lhe coube no drama da industrialização, cujo crescimento foi paralelo ao seu. Aludiram reservadamente às reformas que ele patrocinara e financiara. Ressuscitaram as recordações de Comstock e Catão, o Censor, exibidas como fantasmas melancólicos nas colunas.
Todos os jornais comentaram que ele deixara um único neto, Anthony Comstock Patch, de Nova York.
O enterro foi no túmulo da família, em Tarrytown. Anthony e Gloria seguiram na primeira carruagem, por demais preocupados para se sentirem grotescos, ambos tentando desesperadamente colher auspícios de boa fortuna nos semblantes dos serviçais que o acompanharam até o fim.
Esperaram uma semana frenética em prol da decência e depois, não tendo recebido notificação alguma, Anthony ligou para o advogado do seu avô. O senhor Brett não estava - esperavam-no de volta dentro de uma hora. Anthony deixou seu número de telefone.
Era o último dia de novembro, fazia um frio crepitante lá fora, com um sol deslustrado a olhar desanimado pelas janelas. Enquanto esperavam a ligação, lendo ostensivamente, a atmosfera lá fora e cá dentro parecia imbuída de uma expressão patética de falácia iminente. Depois de um intervalo interminável, a campainha tocou, e Anthony, com um violento sobressalto, pegou o fone.
- Alô... - sua voz estava tensa e cava. - Sim, deixei recado. Quem é, por favor?... Sim... Olha, era sobre o espólio. Naturalmente que estou interessado, e não recebi notícia nenhuma sobre a leitura do testamento. Achei que vocês talvez não tivessem meu endereço... O quê... Sim...
Gloria caiu de joelhos. Os intervalos entre as falas de Anthony eram como torniquetes apertando seu coração. Ela se viu torcendo os botões grandes de uma almofada de veludo, incontrolavelmente.
Em seguida:
- Isso... isso é muito, muito estranho, muito estranho... muito estranho. Nem sequer menção... ah... menção de qualquer... ah... motivo?
Sua voz parecia fraca e distante.
Ela deixou escapar um pequeno som, meio grito, meio suspiro.
- Sim, verei... Está bem, obrigado... sim, obrigado.
O fone fez um clique. Os olhos dela, olhando o piso, viram os pés dele secionando a figura de uma mancha de luz no tapete. Ela se levantou e encarou-o com um olhar vazio e fixo, no momento que os braços dele a envolviam.
- Minha querida - sussurrou com voz rouca. - Ele conseguiu, maldito seja!

DIA SEGUINTE

- Os herdeiros quem são? - perguntou o senhor Haight. - Veja só, quando você só consegue me contar tão pouca coisa sobre...
O senhor Haight era alto, curvado e tinha sobrancelhas salientes. Fora recomendado a Anthony como um advogado audacioso e astuto.
- Eu só sei vagamente - respondeu Anthony. - Um sujeito chamado Shuttleworth, que era uma espécie de preferido dele, toma conta de tudo como administrador ou curador, algo assim. Tudo, menos os legados diretos de caridade e as disposições a favor dos empregados e daqueles dois primos em Idaho.
- Qual o grau de parentesco dos primos?
- Ah, são primos em terceiro ou quarto grau. Eu jamais ouvi falar deles.
O senhor Haight balançou a cabeça de modo compreensivo.
- E você deseja contestar um legado no testamento?
- Acho que sim - admitiu Anthony, de modo desvalido.
- Quero fazer o que é mais viável, e é isso que eu quero que me diga.
- Você quer recusar a legitimidade do testamento?
Anthony sacudiu a cabeça.
- Aí você me pegou. Não tenho certeza das implicações. Eu quero uma parte do espólio.
- Conte-me mais detalhes, por favor. Por exemplo, sabe por que o testador o deserdou?
- Ora, sim - começou Anthony a dizer. - Sabe, ele sempre teve essa tolice de se lançar em reformas morais, e tudo mais.
- Eu sei - interpôs o senhor Haight, com a expressão séria.
- E acho que ele nunca me achou grande coisa. Eu não entrei para o mundo dos negócios, sabe. Mas tenho certeza que até o verão passado eu era um dos beneficiados. Tínhamos uma casa em Marietta e, uma noite, meu avô teve a idéia de vir nos fazer uma visita. Acontece que estávamos no meio de uma festa bastante animada, e ele chegou sem nenhum aviso. Bem, ele deu uma olhada, ele e esse sujeito Shuttleworth, e aí se virou e foi direto de volta para Tarrytown. Depois disso ele nunca mais respondeu às minhas cartas, nem permitiu que eu o visse.
- Ele era um proibicionista, não era?
- Era tudo; o perfeito moralista maluco.
- Quanto tempo antes de sua morte foi feito o testamento em que lhe deserdou?
- Foi recente; quero dizer, de agosto em diante.
- E você acha que o motivo direto de ele não ter lhe deixado a maior parte da herança foi seu desagrado diante de seu comportamento recente?
- Sim.
O senhor Haight refletiu. Em que terreno pensava Anthony contestar o testamento?
- Ora, não existe alguma coisa sobre influência perniciosa?
- Influência perniciosa é um terreno possível
- porém o mais difícil. Você teria que provar que essa influência levou o finado a uma situação de dispor de sua propriedade de modo contrário a suas intenções.
- Bem, suponhamos que esse sujeito Shuttleworth arrastasse-o até Marietta no pressuposto de que lá haveria uma comemoração.
- Isso não teria nenhum peso sobre o caso. Há uma grande diferença entre aconselhar e influenciar. Você teria de provar que o secretário tinha uma intenção sinistra. Aconselho outras premissas. Anula-se um testamento no caso de insanidade, embriaguez - aqui Anthony deu um sorriso - ou debilidade mental devido a algum tipo de esclerose precoce. O que não era o caso. Para falar a verdade, ele provavelmente fez exatamente aquilo que ele queria fazer com seu dinheiro, foi perfeitamente coerente em tudo que sempre fez na vida.
- Sim, a debilidade mental é bastante parecida com a influência perniciosa, leva a crer que os bens não foram legados segundo a intenção original. O motivo mais comum é a coerção: pressão física.
Anthony sacudiu a cabeça.
- Não existe muita probabilidade disso, lamento dizer. Influência perniciosa parece melhor, a meu ver.
Depois de mais discussão, tão técnica a ponto de ser incompreensível para Anthony, ele conservou o senhor Haigh como seu advogado. Este propôs uma conversa com Shuttleworth que, junto com Wilson, Hiener e Hardy, eram os testamenteiros. Anthony deveria voltar mais tarde naquela semana.
Soube-se que o espólio consistia em cerca de quarenta milhões de dólares. O maior legado individual era de um milhão a Edward Shuttleworth, que, além disso, receberia honorários de trinta mil dólares por ano como curador do fundo de trinta milhões, a ser distribuído entre várias instituições de reforma e caridade, praticamente a seu juízo. Os noves milhões restantes deviam ser distribuídos entre os dois primos de Idaho e 25 beneficiários: amigos, secretários, empregados e serviçais que, em uma ou outra ocasião, mereceram o selo de aprovação de Adam Patch.
A contar de quinze dias, o senhor Haigh começaria a preparar, mediante honorários de quinze mil dólares, a contestação ao testamento.

O INVERNO DE ADVERSIDADE

Antes de completarem dois anos no pequeno apartamento na Fifty-seventh Street, este já apresentava, para ambos, o mesmo azedume vago, e, no entanto, quase concreto, que contaminara a casa cinzenta de Marietta. Havia sempre um cheiro de tabaco - ambos fumavam como chaminés - que se entranhava nas suas roupas, nas suas cobertas, nas cortinas, nos tapetes cheios de cinzas. Acrescia-se a isso o cheiro de vinho azedo, com sua inevitável insinuação de prazer esgotado e das recordações amargas da folia. Notava-se especialmente esse cheiro em volta de um determinado conjunto de taças no aparador, e a mesa de mogno da sala exibia uma porção de marcas redondas de copos. Houvera muitas festas - as pessoas quebravam coisas, vomitavam no banheiro de Gloria, derramavam vinho, faziam uma bagunça incrível na quitinete.
Esses episódios faziam parte habitual de sua vida. A despeito de inúmeras resoluções nas segundas-feiras, havia uma tácita concordância, diante da aproximação do fim de semana, de se esperá-lo em clima de terrível excitação. Ao chegar sábado, não conversavam nada sobre o assunto, mas ligavam para esse ou aquele membro bastante irresponsável do seu círculo de amizades para combinar um encontro. Somente depois de os amigos estarem juntos e de Anthony ter disposto os frascos de bebidas é que ele comentaria casualmente: "Acho que vou tomar só um high-ball."
Então se metiam em uma escapada de dois dias
- para se dar conta, em um amanhecer invernal, de terem sido eles os integrantes mais conspícuos da festa mais ruidosa e conspícua no Boul' Mich', ou no Club Ramée, ou em outros lugares que se importavam muito menos ainda com a hilaridade de sua clientela. Descobriam ter gasto, não sabiam como, oitenta ou noventa dólares; atribuíam-no à "penúria" generalizada dos amigos que os acompanhavam.
Não raro, seus amigos mais sinceros começaram a censurá-los, no decorrer das próprias festas, vaticinando um fim sombrio para ambos, a perda da "beleza" de Gloria e da "saúde" de Anthony. A história da farra sumariamente interrompida em Marietta vazara, é óbvio, em detalhes.
- Muriel não tem intenção de contar a todos seus conhecidos - disse Gloria a Anthony -, acha apenas que cada um a quem conta será o único a quem contará.
E assim, sob um manto diáfano, o caso ganhara um lugar conspícuo no Town Tattle. E depois que os termos do testamento de Adam Patch vieram a público e os jornais publicaram detalhes sobre o processo movido por Anthony, ele ganhou um belo verniz - para o infinito menoscabo de Anthony. Eles começaram a ouvir boatos sobre eles mesmos, de todos os quadrantes, boatos geralmente baseados em uma nesga de verdade, mas ornados de detalhes sinistros e absurdos.
Externamente, eles não davam sinal de decadência. Gloria, aos 26 anos, ainda era a Gloria de vinte; com seu rosto compondo um fundo de frescor e delicadeza para a candura de seus olhos; seus cabelos, ainda a mesma maravilha da infância, formando um degrade de amarelo milho a ouro velho, seu corpo esguio sempre a insinuar uma ninfa a correr e dançar por bosques órficos. Os olhares masculinos, dezenas deles, seguiam-na com uma concentração fascinada quando ela atravessava um saguão de hotel ou descia a passagem na platéia de um teatro. Os homens pediam para lhe serem apresentados, caíam em prolongados estados de genuína admiração, faziam, positivamente, amor com ela - pois ela era ainda alguém de rara e inacreditável beleza. E quanto a Anthony, ganhara, de certo modo, em aparência; seu rosto adquirira um certo ar trágico impalpável, que contrastava com sua figura impecável e elegante.
No começo do inverno, quando todas as conversas giravam sobre a entrada da América na guerra, quando Anthony fazia um esforço sincero e desesperado de escrever, Muriel Kane chegou a Nova York e veio imediatamente vê-los. Tal como Gloria, ela nunca parecia mudar. Sabia a última gíria, dançava as últimas danças e falava das últimas peças e músicas com toda a paixão de sua primeira temporada a flanar por Nova York. Sua reticência era sempre uma novidade, nunca funcionava; suas roupas eram radicais; seu cabelo preto estava agora preso em um coque, como o de Gloria.
- Eu vim para a festa de formatura de inverno em New Haven - proclamou ela, compartilhando seu maravilhoso segredo. Embora devesse ser mais velha que qualquer estudante universitário, sempre conseguia arranjar um convite, imaginando vagamente que na festa por vir ocorreria o flerte que acabaria, de modo romântico, no altar.
- Por onde você tem andado? - perguntou Anthony, divertindo-se como sempre.
- Estive em Hot Springs. Foi mais animado e agradável neste outono; mais homens.
- Você está apaixonada, Muriel?
- O que quer dizer com "apaixonada"? - Esta era a pergunta retórica do ano.
- Vou lhes contar uma coisa - disse ela, mudando bruscamente de assunto. - Talvez não seja da minha conta, mas acho que já é hora de vocês sossegarem.
- Por quê? Estamos sossegados.
- Pois sim que estão! - zombou ela, maliciosamente. - Em todo canto que vou escuto casos de suas escapadas. Deixe-me lhes dizer uma coisa, me dá um trabalho danado defendê-los.
- Não precisa se dar a esse trabalho - disse friamente Gloria.
- Mas Gloria - protestou ela -, você sabe que sou uma de suas melhores amigas.
Gloria se manteve calada. Muriel prosseguiu:
- Não é tanto por causa da fama de mulher que bebe, mas Gloria é tão bonita e tem tanta gente aí que a conhece de vista, que isso naturalmente chama atenção.
- O que ouviu recentemente? - perguntou Gloria, depois de sua curiosidade ter vencido sua dignidade.
- Bem, que aquela festa em Marietta matou o avô de Anthony.
Marido e mulher ficaram imediatamente tensos de irritação.
- Olha, acho isso abominável.
- Mas é o que dizem - persistiu obstinadamente Muriel.
Anthony dava passadas pela sala.
- É ridículo! - declarou. - As próprias pessoas que levamos a essas festas espalham essa história como se fosse uma piada, e por fim ela acaba retornando para a gente dessa forma.
Gloria começou a passar o dedo em seu cacho de cabelo rebelde, avermelhado. Muriel caprichou na dissimulação ao planejar seu próximo comentário.
- Vocês deveriam ter um filho.
Gloria levantou a cabeça, cansada.
- Não temos dinheiro.
- Todo mundo na favela faz filhos - disse Muriel, triunfante.
Anthony e Gloria trocaram um sorriso. Haviam chegado à etapa das brigas violentas que jamais tinham reconciliação, brigas que permaneciam latentes para ressurgir de vez em quando, ou morrer de pura indiferença - mas essa visita de Muriel os unira temporariamente. Quando a aflição vivida por eles era alvo de comentários de um terceiro, isso lhes dava a energia para enfrentar juntos aquele mundo hostil. Era muito raro agora que qualquer impulso de reconciliação surgisse de dentro deles.
Anthony viu-se associando a própria vida com a vida do ascensorista noturno do prédio, um sujeito pálido, hirsuto, com cerca de sessenta anos e ar de quem se encontrava empregado em um ambiente um pouco acima do próprio status. Foi provavelmente por isso que ele conseguiu o emprego; realçava sua figura patética de fracassado. Anthony se lembrou, sem nenhum humor, de uma piada muito velha que descrevia a vida do ascensorista como uma eterna ascensão e queda - era, de todo modo, uma vida confinada, de extremo tédio. Toda vez que Anthony entrava no elevador prendia o fôlego à espera do velho que dizia:
- Bem, acho que hoje teremos sol.
Anthony pensava no pouco sol e na pouca chuva que ele poderia apanhar, preso naquela pequena jaula cor de fumaça, no hall.
Figura sombria, chegou a ser trágica na hora de abandonar a vida que tanto a esmagara. Uma noite, surgiram três homens armados que o amarraram e deixaram em cima de uma pilha de carvão, no porão, enquanto vasculhavam o compartimento de bagagens. Quando o zelador encontrou-o, na manhã seguinte, ele estava desmaiado de frio. Morreu de pneumonia quatro dias depois.
Foi substituído por um negro volúvel da Martinica, com um sotaque britânico destoante e uma tendência à rabugice, a quem Anthony detestava. O falecimento do velho teve sobre ele o mesmo efeito que a história do gatinho tivera sobre Gloria. Lembrava-lhe a crueldade da vida e, conseqüentemente, a amargura crescente da sua.
Ele escrevia - finalmente a sério. Fora ver Dick e ouvira, durante uma hora tensa e elucidativa, as minúcias profissionais que ele antes desprezara e depreciara bastante. Precisava imediatamente de dinheiro - andava vendendo títulos todo mês para pagar suas contas. Dick foi franco e explícito.
- Artigos literários nessas revistas obscuras não dariam para você pagar seu aluguel. É claro que se alguém tem talento humorístico ou a sorte de pegar uma boa biografia, ou de ter algum conhecimento especializado, pode até tirar a sorte grande. Mas, no seu caso, a ficção é a única solução. Você diz que precisa imediatamente de dinheiro?
- Com certeza.
- Bem, levaria um ano e meio para você ganhar qualquer dinheiro, no caso de um romance. Experimente contos populares. E, outra coisa; se não forem excepcionalmente brilhantes, precisam ser alegres e politicamente corretos para dar algum dinheiro.
Anthony pensou na produção recente de Dick, que andava aparecendo em uma revista mensal bem conhecida. Versava em princípio sobre os atos mais tolos de uma classe estereotipada que, assim nos assegurava, era constituída pelo pessoal da sociedade de Nova York, e girava, via de regra, sobre a virgindade teórica da heroína, com nuances pseudo-sociológicas sobre as "loucuras e extravagâncias dos quatrocentos mais".
- Mas seus contos... - exclamou em voz alta Anthony, quase involuntariamente.
- Ah, isso é diferente - assegurou, com espanto, Dick. - Eu tenho uma reputação, você sabe, por isso esperam que eu trate de temas fortes.
Anthony teve um sobressalto íntimo, percebendo por esse comentário como Richard Caramel se equivocava. Pensaria ele que essa espantosa produção recente realmente era tão boa como seu primeiro romance?
Anthony voltou para o apartamento e se pôs a trabalhar. Percebeu que o otimismo era uma incumbência nada fácil. Depois de meia dúzia de começos em vão, foi até a biblioteca pública e passou uma semana pesquisando os arquivos das revistas populares. Em seguida, melhor equipado, completou seu primeiro conto: "O dictafone do destino". Baseou-se nas poucas impressões restantes daquelas seis semanas em Wall Street, no ano anterior. Pretendia ser a história solar de um boy que, por puro acaso, cantarolara uma maravilhosa melodia no dictafone. O cilindro foi descoberto pelo irmão de seu patrão, um célebre produtor de comédias musicais - e logo perdido. O corpo da narrativa versava sobre a busca do cilindro perdido e, finalmente, do casamento do nobre boy (agora um compositor de sucesso) com a senhorita Rooney, virtuose da estenografia, metade Joana D'Arc, metade Florence Nightingale.
Ele julgava que era isso que as revistas queriam. Como protagonistas, colocou os cidadãos comuns da literatura açucarada, mergulhados em uma trama melosa que não ofenderia os brios de ninguém em Marietta. Mandou datilografar em espaço dois
- como rezava o conselho de um livreto: Sucesso como escritor ao alcance de todos, de R. Meggs Widdlestien, que informava ao ambicioso pretendente a inutilidade do suor, já que depois de um curso de seis semanas ele estaria apto a ganhar pelo menos mil dólares por mês.
Depois de ler o conto para uma Gloria entediada, arrancando dela o comentário batido de que "era melhor do que muita coisa que se publicava", ele pespegou-lhe o pseudônimo satírico de "Gilles de Sade", anexou o envelope adequado para resposta e postou-o.
Na esteira do gigantesco esforço de elaboração, resolveu esperar a resposta ao seu primeiro conto antes de começar outro. Dick lhe dissera que ele poderia ganhar até duzentos dólares. Se, por qualquer motivo, fosse reprovado, conforme aconteceu, a carta do editor com certeza lhe daria uma idéia das correções a serem feitas.
- É, sem sombra de dúvida, o pior texto literário que existe - disse Anthony.
O editor, conforme era de se esperar, estava de pleno acordo. Devolveu o original com uma nota de rejeição. Anthony mandou-o para outro lugar qualquer e começou outro conto. O segundo se chamava "As pequenas portas abertas"; foi escrito em três dias. Tratava do oculto: um casal rompido se reconciliava através de um médium em um espetáculo de vaudeville.
Foram seis ao todo; seis miseráveis e lastimáveis tentativas de "registrar por escrito", da parte de alguém que jamais fizera nenhum esforço sério para escrever. Nenhuma continha a menor centelha de vida, e a soma de seu charme e de sua técnica era menor que a de uma coluna média de jornal. Durante seu período de circulação amealharam, ao todo, 31 notas de rejeição, que eram como as lápides dos pacotes que ele encontrava por terra, como cadáveres, à sua porta.
Em meados de janeiro o pai de Gloria morreu, e eles foram de novo a Kansas City - uma viagem terrível, já que Gloria ruminava sem parar, mas não sobre a morte do pai, e sim sobre a da mãe. Depois que os negócios de Russel Gilbert se acertaram, coube-lhes três mil dólares e uma porção de peças de mobília. Tudo armazenado, já que ele passara seus últimos dias em um pequeno hotel. Foi devido a sua morte que Anthony descobriu uma novidade em Gloria. Na viagem ao leste, ela revelou espantosamente seu bilfismo.
- Ora, Gloria - exclamou ele -, não me diga que você acredita nesse negócio.
- Sim - respondeu ela. - Por que não?
- Porque é uma fantasia. Você sabe muito bem que, em todas as acepções possíveis, você é agnóstica. Costuma rir de qualquer forma ortodoxa de cristianismo, e aí de repente declara acreditar em um princípio tolo de reencarnação.
- E daí? Já cansei de ouvir você e Maury, e todos cujo intelecto merece meu respeito, afirmarem que a vida, tal como ela é, carece totalmente de sentido. No entanto, sempre me pareceu que, se eu estivesse aqui para aprender alguma coisa inconscientemente, talvez ela não fosse assim tão absurda.
- Você não está aprendendo nada, está apenas se cansando. E se precisa de uma fé para quebrar as arestas das coisas, adote uma que mereça o apoio de outros que não um bando de mulheres histéricas. Alguém como você não devia concordar com nada que não fosse demonstrado de maneira aceitável.
- Estou me lixando para a verdade. Só quero ser um pouco feliz.
- Sim, mas se você tiver uma cabeça respeitável, a última precisa ser corroborada pela primeira. Qualquer simplório é capaz de se iludir com esse lixo intelectual.
- Eu não me importo - resistiu ela, resolutamente - e, além do mais, não proponho nenhuma doutrina.
A discussão amainou, mas acabou voltando várias vezes à cabeça de Anthony. Era alarmante constatar que essa velha crença, obviamente assimilada de sua mãe, tornava a voltar no seu eterno disfarce de idéia inata.
Chegaram a Nova York em março, depois de uma semana cara, seguindo maus conselhos, em Hot Springs, tendo Anthony voltado a suas tentativas literárias abortadas. Na medida em que ficou mais claro para ambos que a saída não estava na literatura popular, houve um colapso de sua segurança mútua e de seu ânimo. Uma luta complicada travava-se incessantemente entre eles. Todos os esforços de cortar despesas fracassaram por pura inércia, e, lá por março, aproveitavam de novo qualquer pretexto para uma festa. Na presunção de estar sendo audaciosa, Gloria lançou a sugestão de pegarem todo seu dinheiro e caírem em uma verdadeira farra até que ele acabasse - qualquer coisa parecia melhor do que vê-lo desaparecer desagradavelmente aos pouquinhos.
- Gloria, você gosta de festejar tanto quanto eu!
- Não importa quanto a mim. Tudo que faço é de acordo com meus princípios: aproveitar todos os minutos enquanto sou jovem e me divertir o máximo possível.
- E depois?
- Depois eu não me importo.
- Há de se importar sim.
- Bem, talvez. Mas não há nada que possa fazer a respeito disso. E terei me divertido.
- Você será a mesma, então. De certo modo, a gente já se divertiu, e agora está na hora de pagar a conta.
Ainda assim, o dinheiro continuava a sumir. Passavam-se dois dias de alegria, dois dias de tristeza - um círculo infinito quase invariável. As reações incisivas, quando ocorriam, significavam um surto de trabalho para Anthony, enquanto Gloria, nervosa e entediada, ficava na cama ou então a mordiscar distraída a ponta dos dedos. Depois de um ou dois dias assim, combinavam um encontro, e então: ah, que importa! Que noite, que brilho, o fim da ansiedade e a sensação de que se a vida não tinha sentido, ela era, não obstante, essencialmente romântica! O vinho dava um certo charme ao próprio fracasso.
Enquanto isso o processo avançava lentamente, com a interminável inquirição de testemunhas e o acúmulo de provas. O processo preliminar do término do inventário já fora concluído. O senhor Haigh não via motivos de não se ir a julgamento antes mesmo do verão.
Bloeckman apareceu em Nova York no final de março; estivera quase um ano na Inglaterra a negócios relativos à Films par Excellence. O refinamento geral prosseguia - vestia-se sempre um pouco melhor, sua entonação ficara mais branda e suas maneiras revelavam uma óbvia segurança de que as boas coisas deste mundo lhe pertenciam por direito natural e inalienável. Fez uma visita ao apartamento e ficou apenas uma hora, durante a qual falou principalmente da guerra, e foi embora dizendo que voltaria. Na sua segunda visita, Anthony não estava em casa, mas foi uma Gloria excitada e sonhadora que saudou seu marido no final da tarde.
- Anthony - começou ela a dizer -, você ainda não gostaria que eu fizesse cinema?
Todo o coração dele se endureceu contra essa idéia. Na hora em que ela parecia se afastar dele
- pelo menos havia essa ameaça - sua presença voltava a ficar não apenas preciosa como terrivelmente necessária.
- Ah, Gloria.
- Bloeckhead me disse que podia me arranjar uma colocação. E, se um dia eu fizer alguma coisa, preciso começar já. Eles só querem mulheres jovens. Pense no dinheiro, Anthony!
- Para você. E para mim?
- Você não sabe que tudo que tenho também te pertence?
- É uma carreira tão desgraçada! - exclamou ele; Anthony, o moralista, em um tom tremendamente grave. - E uma turminha tão danada. E ando tão cansado desse sujeito Bloeckman vir aqui se meter. Detesto qualquer coisa dramática.
- Não é dramática. É algo totalmente diferente.
- E que esperam que eu faça? Que corra atrás de você pelo país inteiro? Que viva à custa de seu dinheiro?
- Então ganhe você mesmo um pouco.
A conversa acabou em uma das brigas mais violentas que tiveram. Depois da reconciliação subseqüente e do período de inevitável inércia moral, ela percebeu que ele havia liquidado o projeto. Nenhum deles jamais mencionou a possibilidade de Bloeckman ter algum interesse, pois ambos sabiam que era isso que estava por trás da objeção de Anthony.
Em abril, foi declarada guerra contra a Alemanha. Wilson e seu ministério - ministério cuja falta de destaque lembrava curiosamente os doze apóstolos - deixaram escapar as bestas de guerra, propositalmente esfaimadas, e a imprensa começou uma gritaria histérica contra a moral sinistra, a filosofia sinistra, a música sinistra produzida pelo temperamento teutônico. As pessoas que se consideravam cabeças especialmente tolerantes faziam a estranha distinção que era só o governo que as levava à histeria; os restantes foram insuflados a um estado de espírito indecente, nauseabundo. Qualquer canção com a palavra "mãe" e a palavra kaiser já virava seguramente um tremendo sucesso. Finalmente, todo mundo tinha um assunto sobre o que falar - e quase todos gostavam, como se tivessem recebido papéis em uma peça lúgubre e romântica.
Anthony, Maury e Dick mandaram inscrições para os centros de treinamento de oficiais e os dois últimos andavam se sentindo estranhamente exaltados e beatos; tagarelavam entre si, como universitários, sobre o fato de a guerra ser o único pretexto e justificativa do aristocrata, e evocavam uma casta incrível de oficiais, a ser composta aparentemente pelos alunos mais interessantes das três ou quatro universidades do Leste. A Gloria pareceu que, diante desse enorme farol vermelho que varria o país de ponta a ponta, até Anthony ganhava novo brilho.
O Décimo da Infantaria, chegado a Nova York do Panamá, foi escoltado de bar em bar por cidadãos patrióticos, para seu grande espanto. Os alunos de West Point começaram a merecer atenção pela primeira vez em muitos anos, e a impressão geral era de que tudo era glorioso, mas nem perto de tão glorioso quanto breve seria; todo mundo era bom sujeito e toda raça uma grande raça - sempre com exceção dos alemães -, e bastava qualquer marginal ou bode expiatório, de qualquer procedência social, aparecer em um uniforme para ser perdoado, incensado e chorado pelos parentes, ex-amigos e desconhecidos totais.
Infelizmente, um pequeno médico rigoroso resolveu que havia um problema qualquer com a pressão de Anthony. Não podia mandá-lo, em sã consciência, para um campo de treinamento de oficiais.

O ALAÚDE QUEBRADO

O terceiro aniversário de casamento deles passou despercebido, sem comemorações. O tempo tornou-se mais quente no degelo, virou canícula na parte mais quente do verão, ferveu e borbulhou até esfriar. Em julho, o inventário estava para ser concluído, mas diante da contestação, o processo foi distribuído para julgamento. O assunto se arrastou até setembro
- houve dificuldade em reunir um júri sem preconceitos, por causa dos sentimentos despertados pela causa. Para decepção de Anthony, veio por fim a sentença em favor do testamenteiro, quando então o senhor Haigh entrou com um recurso contra o senhor Edward Shuttleworth.
À medida que o verão encolhia, Anthony e Gloria conversavam sobre as coisas que fariam quando o dinheiro fosse deles, e sobre os lugares onde iriam, no pós-guerra, quando "chegariam de novo a um acordo", pois ambos tinham a esperança de um período em que o amor, renascido como o fénix das suas próprias cinzas, haveria de surgir de novo de seus misteriosos e insondáveis esconderijos.
Ele foi recrutado, no início do outono, e o médico não fez menção nenhuma à pressão baixa, depois dos exames. Foi tudo absurdo e muito triste quando Anthony disse uma noite a Gloria que ele queria, antes de tudo, encontrar a morte. Mas, como sempre, tiveram pena um do outro pelos motivos errados, na hora errada.
Resolveram que, por enquanto, ela não ia com ele para o acampamento no Sul, aonde foi mandado seu contingente. Ela ficaria em Nova York para "ocupar o apartamento", poupar dinheiro e acompanhar o andamento do processo - que deveria agora ser julgado pelo Tribunal de Recursos, cuja agenda, disse-lhes o senhor Haigh, andava muito atrasada.
Na sua última conversa tiveram uma briga absurda sobre a divisão de sua renda - bastava uma palavra para que um abrisse mão completamente de sua parte em favor do outro. Episódio típico da confusão e barafunda de suas vidas: a noite de outubro quando Anthony se apresentou na Grand Central Station para o embarque rumo ao acampamento, e Gloria só chegou a tempo de atrair a atenção dele por cima das cabeças da multidão ansiosa. Na luz fraca da área reservada ao embarque, seus olhares se espicharam por um espaço histérico, conspurcado pelos soluços de medo e o cheiro das mulheres pobres. Eles devem ter calculado o que haviam feito um ao outro e se acusado de ter traçado aquele padrão sombrio que percorriam trágica e obscuramente. No final, já estavam demasiado distantes para que percebessem as lágrimas recíprocas.

LIVRO TRÊS


CAPÍTULO UM
UMA QUESTÃO DE CIVILIZAÇÃO

Diante de uma ordem frenética, partida de alguma fonte invisível, Anthony entrou, às apalpadelas. Pensava que, pela primeira vez em mais de três anos, ficaria mais de uma noite longe de Gloria. Evocava melancolicamente o caráter decisivo desse fato. Era sua garota, bela e pura, que ele deixava.
Haviam chegado, refletiu ele, à conclusão financeira mais prática: ela ficaria com 375 dólares por mês - não era muito, considerando-se que mais da metade ia para o aluguel -, e ele com cinqüenta, para suplementar seu ordenado. Não via necessidade de mais do que isso: teria casa, comida, roupas - e um praça não tinha compromissos sociais.
O vagão ia apinhado e já abafado pela respiração de tanta gente. Era do tipo conhecido como "de turismo", uma espécie de Pullman vagabundo, sem tapetes, com assentos palhinha que precisavam de limpeza. Mesmo assim Anthony reagiu a ele com alívio. Esperava vagamente que a viagem ao Sul fosse em vagão de carga, com oito cavalos de um lado e quarenta sujeitos de outro. Ele jé ouvira tantas vezes a história dos hommes 40, chevaux 8, que ela se tornara confusa e agourenta.
Ao descer, cambaleando, pela passagem, com a mochila às costas, como uma monstruosa salsicha azul, não avistou nenhum assento vago mas, depois de certo tempo, seus olhos divisaram um único espaço, ocupado, no momento, pelos pés de um siciliano moreno, com as abas do chapéu dobradas sobre os olhos, encolhido desafiadoramente no canto. Quando Anthony parou a seu lado, ele olhou firme para cima, carrancudo, obviamente com uma intenção intimidante; deve ter adotado essa postura como defesa contra toda aquela gigantesca operação. Diante do incisivo "Este lugar está ocupado?" dito por Anthony, tirou os pés muito devagar, como se fossem um pacote friável, e colocou-os com cuidado no chão. Seu olhar permaneceu fixo em Anthony que, nesse ínterim, sentou-se e desabotoou o casaco que fora fornecido no acampamento Upton, no dia anterior. Esfolava-o nas axilas.
Antes que Anthony pudesse examinar os outros integrantes do contingente, um jovem tenente surgiu apressado da extremidade superior do vagão e passou ventando, anunciando em um tom de voz terrivelmente áspero:
- É proibido fumar neste vagão! Não fumem! Camaradas, não fumem neste vagão!
Quando desapareceu a todo pano na outra extremidade, surgiu uma porção de nuvenzinhas de protesto de todo canto.
- Diacho.
- Caramba.
- Sem fumar?
- Ei, volte aqui, camarada!
- Que idéia é essa?
Dois ou três cigarros foram arremessados pela janela aberta. Outros foram conservados lá dentro, embora mal escondidos. Daqui e dali, em tom de bravata, zombaria e humor acomodado, surgiram alguns comentários que logo morreram no silêncio e apatia gerais.
O quarto ocupante do banco de Anthony desabafou de repente:
- Adeus, liberdade - disse emburrado. - Adeus tudo, a não ser bancar o cão amestrado para os oficiais.
Anthony olhou para ele. Era um irlandês comprido, com uma expressão que era uma mescla de desprezo com indiferença total. Seu olhar recaiu sobre Anthony, como se esperasse uma resposta, em seguida sobre os outros. Ao receber apenas um olhar de desafio do italiano, deu um gemido e cuspiu ruidosamente no chão à guisa de uma transição decente para o estado taciturno que se seguiria.
Alguns minutos depois, a porta se abriu de novo e o tenente irrompeu por ela, varrido pelo seu zéfiro oficial de sempre, desta vez trazendo uma nova diferente.
- Está bem, praças, fumem se quiserem! Engano meu, gente! Tudo bem, camaradas! Fumem à vontade, o engano foi meu!
Desta vez, Anthony olhou-o com cuidado. Era jovem, magro, já gasto; parecia-se com o próprio bigode, parecia-se com um grande feixe de palha luzidia. Tinha o queixo ligeiramente pequeno; isso era compensado por uma carranca que não convencia, carranca que Anthony haveria de associar com os rostos de tantos jovens oficiais no decorrer do ano seguinte.
De repente, todos fumavam - mesmo se antes não quisessem fazê-lo. O cigarro de Anthony contribuía para a oxidação nebulosa que parecia rolar para cá e para lá em nuvens opalinas, a cada movimento do trem. A conversa que havia cessado entre as duas passagens impressionantes do jovem oficial agora ressurgira, tépida; os sujeitos do lado oposto do corredor começaram a fazer tentativas desastradas de testar o conforto que seus assentos de palhinha eram capazes de assegurar; dois carteados, de início meio desanimados, logo atraíram vários espectadores que se aboletaram nos braços dos assentos. Passados alguns minutos, Anthony se deu conta de um ruído persistente e incomodativo - o pequeno siciliano rebelde adormecera sonoramente. Era cansativo contemplar aquele protoplasmo vivo, racional apenas por cortesia, trancado em um vagão por uma civilização incompreensível, levado a um lugar qualquer para fazer algo vago, sem objetivo, sem sentido nem conseqüência. Anthony deu um suspiro, abriu um jornal que ele não tinha nenhuma recordação de ter comprado e começou a ler à luz amarelada e fraca.
Dez horas encostaram em onze, de modo sufocante; as horas emperravam, travavam e se prolongavam. O trem parou, para espanto de todos, à margem da paisagem escura, fazendo de vez em quando movimentos curtos para lá e para cá e dando apitos que eram ásperos "péons" na noite alta de outubro. Depois de ler todo seu jornal, editoriais, quadrinhos, poemas de guerra, seu olhar foi atraído por uma meia coluna entitulada: Shakespeareville, Kansas. Parecia que a Câmara do Comércio de Shakespeareville promovera um debate entusiasmado para saber se os soldados americanos deveriam ser chamados de "Sammies" ou "Combatentes Cristãos". Essa notícia deixou-o estupefato. Largou o jornal, deu um bocejo e deixou que sua mente divagasse pela tangente. Ficou pensando por que Gloria se atrasara. Já parecia fazer tanto tempo - sentiu uma pontada de solidão, na fantasia. Tentou imaginar de que ângulo ela haveria de considerar sua nova situação, qual o lugar que ele continuaria a ocupar na sua estima. Esse pensamento agiu como mais um elemento deprimente - ele abriu seu jornal e começou a ler de novo.
Os membros da Câmera de Comércio de Shakespeareville decidiram por "Rapazes da Liberdade".
Por dois dias e duas noites sacolejaram rumo ao sul, fazendo paradas misteriosas e inexplicáveis no campo aparentemente deserto, para passar ventando por cidades grandes, com ar pomposo de quem está apressado. Os caprichos desse trem eram para Anthony um prenúncio dos caprichos de toda a administração militar.
Nos ermos áridos, era servido feijão com bacon, trazido do vagão de carga, que ele de início não conseguia comer - jantava frugalmente, um pouco de chocolate com leite distribuído por uma cantina de aldeia. Mas, no segundo dia, a cozinha do vagão de carga começou a parecer surpreendentemente palatável. Na terceira manhã, circulou um boato de que dentro de uma hora chegariam a seu destino, Camp Hooker.
Acabara fazendo um calor intolerável no vagão e os homens ficaram todos em mangas de camisa. O sol entrava pelas janelas, um sol cansado, antigo, amarelo como um pergaminho desbotado e enrugado pelo uso. Procurava entrar de modo esplêndido, quadriculado, mas formava apenas algumas manchas disformes - era, porém, terrivelmente imóvel; tanto que Anthony estranhou não ser ele mesmo o pivô de todas as serrarias, árvores e postes que giravam tão rápido a seu redor. Lá fora, seu grave "tremolo" cobria as estradas cor de oliva e os algodoeiros fulvos e uma faixa de mata desigual ao fundo, quebrada por cumes de pedra cinzenta. Em primeiro plano, o espaço era pontilhado esparsamente por pobres casebres, mal remendados, entre os quais surgia, de vez em quando, um exemplar da lânguida caipirice de South Carolina ou então um preto perambulando com um olhar rabugento e espantado.
Então a mata foi recuando e rodaram até um espaço largo como a cobertura de um gigantesco bolo assado, polvilhado com um número infindável de barracas, arrumadas em padrões geométricos sobre sua superfície. O trem parou de modo instável e o sol, os postes e as árvores sumiram, e o universo dele balançou e voltou lentamente à sua costumeira ordem, com Anthony Patch no centro. Enquanto os homens, cansados e suados, saíam aos magotes dos vagões, ele sentiu o cheiro inconfundível que impregnava todos os acampamentos permanentes - o cheiro de lixo.
Camp Hooker era um agrupamento espantoso, espetacular, que lembrava "uma cidade da época da mineração, em 1870 - Na segunda semana". Era composto de casebres de madeira e barracas
cinza-esbranquiçadas ligadas por uma malha de estradas, com um campo de manobras de chão batido, de cor marrom, margeado de árvores. Aqui e ali havia casas verdes da Associação Cristã de Moços - oásis nada promissores, com seu cheiro de flanela molhada e mofada e de cabine de telefone abafada - e, do outro lado de cada uma delas tinha, em geral, uma cantina fervente de vida, presidida indolentemente por um oficial que, com a ajuda de uma moto com carrinho, costumava fazer de seu serviço uma agradável e loquaz sinecura.
Os soldados da intendência passavam correndo para cima e para baixo, também em motos com carrinho. Para cima e para baixo também rodavam os generais em seus carros do exército, parando de vez em quando para obrigar os soldados desatentos a baterem continência, para franzir o cenho diante dos capitães que marchavam à testa de suas companhias, para dar um ritmo de pompa àquele incrível jogo de se exibir que ocorria em todo canto.
Na primeira semana, depois da chegada dos recrutas de Anthony, o tempo foi preenchido com uma série de inoculações intermináveis, exames físicos e a ordem-unida preliminar. Os dias deixavam-no desesperadamente cansado. Um sargento da intendência, popular e camarada, dera-lhe coturnos do tamanho errado e, em conseqüência, seus pés inchavam tanto que as derradeiras horas da tarde eram uma tortura. Pela primeira vez na vida ele era capaz de se atirar em um catre entre o almoço e a chamada para ordem-unida da tarde e, parecendo afundar a cada momento em uma cama sem fundo, cair imediatamente no sono, enquanto o barulho e as risadas à sua volta se reduziam a um zumbido sonolento de verão. De manhã, acordava duro e doído, oco como um fantasma, e corria para encontrar as demais figuras fantasmagóricas que pululavam nas ruas da companhia, enquanto uma corneta áspera uivava e tartamudeava para o céu cinzento.
Tratava-se do esqueleto de uma companhia de infantaria com cerca de cem homens. Depois do eterno café-da-manhã de bacon gorduroso, torrada fria e um cereal, todos os cem corriam para as latrinas que, embora bem vigiadas, pareciam banheiros de hotéis baratos. Uma vez lá fora, eles começavam uma marcha desigual - o aleijado à sua esquerda atrapalhando de forma grotesca os esforços displicentes de Anthony para acertar o passo, os sargentos do pelotão se exibindo tremendamente para impressionar os oficiais e recrutas, ou então calados, à espreita,
mantendo-se próximos à coluna em marcha, evitando tanto o trabalho como a visibilidade desnecessária.
Ao chegarem ao campo, tinha logo início o trabalho - despiam suas camisas para fazer ginástica. Essa era a única parte que Anthony gostava. O tenente Kretching, que presidia a brincadeira, era musculoso e forte, e Anthony imitava com fidelidade seus movimentos, com a sensação de estar fazendo algo de positivo para si mesmo. Os demais oficiais e sargentos andavam entre os homens com uma malícia de colegiais,
agrupando-se, aqui e ali, em volta de algum infeliz que carecia de controle muscular, dando-lhe ordens e instruções confusas. Quando descobriam algum triste exemplar especialmente mal-nutrido, detinham-se uma meia hora fazendo comentários cortantes e dando risinhos entre eles.
Um oficialzinho chamado Hopkins, que já fora sargento do exército regular, era especialmente irritante. Achava a guerra uma vingança que os elevados deuses lhe haviam concedido, e o refrão constante de suas arengas era que os recrutas não valorizavam a plena responsabilidade e gravidade "da tarefa". Julgava que sua presciência, misturada com sua eficácia destemida, o alçara à sua atual imponência. Macaqueava cada aspecto tirânico original de todo oficial sob o qual servira no passado. Seu cenho franzido parecia congelado em seu rosto - antes de conceder a um praça o visto para ir à cidade, ele pesava com toda gravidade o efeito de sua ausência sobre a companhia, o exército, o
bem-estar da profissão de armas no mundo inteiro.
O tenente Kretching, louro, entediante e neumático, apresentou gravemente Anthony aos problemas da posição de sentido, direita volver, meia volta volver, descansar. Seu principal defeito era ser desmemoriado. Muitas vezes mantinha a companhia, dorida, extenuada, por cinco minutos na posição de sentido, enquanto ele, na frente, explicava um novo movimento - como resultado, só os homens no meio aprendiam. Os dos flancos haviam sido demasiado impressionados com a necessidade de ficar olhando sempre para frente.
A ordem-unida continuava até meio-dia. Consistia em trabalhar uma série de detalhes infinitamente irrelevantes que, mesmo Anthony compreendendo sua coerência com a lógica militar, ainda assim o irritavam. Que a mesma deficiência de pressão, impensável em um oficial, não interferisse com as tarefas de um praça, eis uma incoerência ridícula. Às vezes, depois de ouvir um discurso tedioso e infindável sobre um assunto conhecido como "cortesia" militar que, refletindo bem, era algo absurdo, ele desconfiava que o objetivo obscuro da guerra era propiciar aos oficiais do exército
- gente com a mentalidade e as aspirações de colegiais - sua vez de participar da carnificina. Ele estava sendo grotescamente sacrificado à velha impaciência de um Hopkins!
De seus três colegas de barraca - um
antibelicista de expressão insípida do Tennessee, um polaco grandão e amedrontado e o celta desdenhoso ao lado de quem se sentara no trem - os dois últimos passavam a noite escrevendo eternas cartas para casa, enquanto o irlandês ficava na porta da barraca assobiando sozinho, sem parar, meia dúzia de cantos de passarinhos estridentes e monótonos. Antes para fugir de uma hora na sua companhia do que na esperança qualquer de se divertir é que, ao ser suspensa a quarentena no fim de semana, ele ia até a cidade.
Pegava um lotação no meio de tantos que enxameavam o acampamento durante a noite e em meia hora saltava diante do Stonewall Hotel, na rua principal, sonolenta e quente.
Sob o crepúsculo que chegava, a cidade era inesperadamente atraente. As calçadas estavam cheias de garotas de vestidos alegres, pintadas com exagero, que tagarelavam de modo volúvel em vozes baixas e indolentes, ao lado de dezenas de motoristas de táxi que importunavam os oficiais que passavam com "eu lhe levo a qualquer lugar, tenente" e por uma procissão intermitente de negros andrajosos, subservientes, arrastando os pés. Ao perambular pelo crepúsculo quente, Anthony sentiu pela primeira vez, em anos, o bafo lento e erótico do Sul, que chegava na maciez cálida do ar e na eterna calmaria do passar do tempo e das idéias.
Ele percorrera cerca de um quarteirão quando foi parado de repente por uma ordem ríspida a seu lado.
- Não lhe ensinaram a fazer continência para os oficiais?
Ele olhou perplexo para o sujeito que se dirigia a ele, um capitão rechonchudo de cabelos pretos, que lhe deu um olhar ameaçador com seus olhos castanhos e saltados.
- Sentido! - A palavra ribombou literalmente. Alguns pedestres, ali por perto, pararam e olharam. Uma garota de olhar doce, em um vestido lilás, deu risinhos para sua companheira.
Anthony ficou de sentido.
- Qual o seu regimento e companhia?
Anthony lhe disse.
- Depois disso, quando você passar por um oficial na rua, endireite-se e faça continência!
- Está bem!
- Diga "sim, senhor"!
- Sim, senhor.
O oficial gordo deu um grunhido, virou-se bruscamente e desceu a rua marchando. Depois de um instante, Anthony prosseguiu: a cidade deixara de ser indolente e exótica; o crepúsculo se despira, súbito, de seu encanto. Seu olhar interiorizou-se abruptamente em virtude da indignidade de sua posição. Ele detestava aquele oficial, todo oficial - a vida era insuportável. Depois de ter percorrido meio quarteirão, percebeu que a garota no vestido lilás, que dera risinhos diante de sua aflição, caminhava com sua amiga a uns dez passos na sua frente. Ela se virara e fitara Anthony várias vezes, com um brilho de humor nos seus grandes olhos, que pareciam da mesma cor do vestido.
Na esquina, ela e sua acompanhante diminuíram visivelmente o passo - ele precisava optar entre entrar em contato com elas ou passar indiferente. Ele passou, hesitou, em seguida andou mais devagar. Em um segundo a dupla emparelhara de novo com ele, agora se desmanchando em risos - não tanto como as risadas estridentes que ele haveria de esperar no Norte, das atrizes dessa comédia familiar, mas um arrulho baixo, suave, como resíduos de alguma piada sutil na qual ele, inadvertidamente, se intrometera.
- Tudo bem? - disse ele.
Seus olhos eram macios como sombras. Seriam violeta, ou era um azul escuro misturado aos tons acinzentados do crepúsculo?
- Que bela tarde - aventurou-se, inseguro, Anthony.
- É mesmo - disse a segunda garota.
- Mas não foi muito bela para você - suspirou a garota de lilás. Sua voz parecia pertencer tanto ao fim da tarde quanto a brisa sonolenta a bulir com a aba larga de seu chapéu.
- Ele precisava de uma oportunidade de se mostrar - disse Anthony, com uma risada desdenhosa.
- Parece que sim - concordou ela.
Eles dobraram a esquina e subiram languidamente uma rua transversal, como se puxados por um cabo deslizante ao qual estivessem presos. Naquela cidade parecia coisa muito natural dobrar esquinas assim, parecia natural não ter nenhum objetivo específico, pensar em nada. A rua transversal era escura, um galho súbito que dava para um bairro cheio de cercas de rosas silvestres e pequenas casas tranqüilas, recuadas da rua.
- Aonde você ia? - perguntou ele, polidamente.
- Para lugar nenhum. - A resposta era uma desculpa, uma pergunta, uma explicação.
- Posso andar com vocês?
- Acho que sim.
Era uma vantagem que o sotaque dele fosse diferente. Assim não seria capaz de determinar o status social de uma sulista pela sua maneira de falar - em Nova York, uma garota de classe mais baixa seria rouquenha, intolerável, a não ser através dos óculos cor de rosa da embriaguez.
A escuridão chegara devagarinho. Falando pouco
- Anthony, com perguntas displicentes e casuais, as outras, com uma economia provinciana de frases e de temas -, eles passaram despreocupadamente por outra esquina, e ainda outra. No meio do quarteirão, passaram por baixo de um poste de luz.
- Eu moro perto daqui - explicou a outra garota.
- Eu moro no final do quarteirão - disse a garota de lilás.
- Posso te acompanhar até em casa?
- Até a esquina, se quiser.
A outra garota recuou uns passos. Anthony tirou o chapéu.
- Você devia fazer continência - disse com um riso a garota de lilás. - Todos os soldados batem continência.
- Hei de aprender - respondeu ele, solenemente.
A outra garota disse:
- Bem... - e hesitou, acrescentando em seguida
- Apareça amanhã, Dot - e se afastou do círculo amarelo da luz da rua. Então, calados, Anthony e a garota de lilás caminharam os três blocos até a pequena casa frágil que era seu lar. Do lado de fora do portão de madeira, ele hesitou.
- Bem... obrigada.
- Você precisa entrar logo, assim?
- Eu deveria.
- Não pode passear mais um pouco?
Ela olhou-o friamente.
- Eu nem sequer lhe conheço.
Anthony riu.
- Não é tarde demais.
- Acho melhor entrar.
- Pensei em caminhar e ir até o cinema.
- Eu gostaria.
- Depois posso te trazer em casa. Terei o tempo exato. Preciso estar de volta às onze no acampamento.
Estava tão escuro que ele mal podia enxergá-la agora. Ela era um vestido balançado sem parar pelo vento, dois olhos límpidos, audazes.
- Por que não vem, Dot? Não gosta de cinema? É melhor vir.
Ela sacudiu a cabeça.
- Eu não devia.
Ele gostara dela, percebendo que ela se fazia de difícil para influenciá-lo. Aproximou-se mais e pegou sua mão.
- Se der para voltarmos às dez, você não pode? Só para irmos ao cinema?
- Bem, acho que...
Voltaram caminhando de mãos dadas para a cidade, por uma rua enevoada e escura, onde um vendedor negro vendia uma edição extra na cadência dos vendedores locais, cadência melodiosa como uma canção.

DOT

O caso de Anthony com Dorothy Raycroft foi resultado inevitável de sua crescente displicência consigo mesmo. Não a procurou no desejo de possuir algo desejável, nem se rendeu a uma personalidade mais forte, mais vivaz, como fizera com Gloria quatro anos antes. Meramente se deixou levar pelos acontecimentos devido à sua incapacidade de tomar atitudes definitivas. Não conseguia dizer "não", nem para homens nem para mulheres. O candidato a pedir dinheiro emprestado, tal como a mulher sedutora, encontrava nele uma mente receptiva e flexível. Na verdade, ele raramente tomava decisões e, quando o fazia, elas não passavam de resoluções meio histéricas, nascidas de alguma tomada de consciência consternada e inevitável.
Nesse caso, a fraqueza específica que o dominou foi a necessidade de estímulos e de excitação vindos de fora. Ele se sentiu, pela primeira vez em quatro anos, capaz de se expressar e de se interpretar de nova maneira. A garota era uma promessa de paz; as horas passadas toda noite em sua companhia aliviavam os golpes mórbidos e inevitavelmente absurdos da imaginação dele. Tornara-se um perfeito covarde
- totalmente escravizado por centenas de idéias confusas e ameaçadoras, libertas pelo colapso de sua genuína devoção à Gloria, principal anteparo à sua fraqueza.
Naquela primeira noite, diante do portão, ele beijou Dorothy e marcou encontro para o sábado seguinte. Em seguida, voltou para o acampamento e, com a luz irresponsavelmente acesa na sua tenda, escreveu uma longa carta a Gloria, uma carta luminosa, cheia da emoção suscitada pelas trevas, cheia de recordações dos perfumes das flores, cheia de uma enorme e sincera ternura - algo que ele reaprendera em um instante, por intermédio de um beijo dado e recebido sob um luar cálido e agradável, uma hora antes.
Ao chegar sábado à noite, ele encontrou Dorothy à sua espera na entrada do Cine Bijou. Ela vestia, como na quarta-feira anterior, seu vestido lilás do mais delicado organdi, obviamente lavado e engomado desde então, já que estava muito limpo e passado. A luz do dia confirmou a impressão que ele tivera - de uma maneira tosca e improvisada, ela era linda. E era limpa; embora tivesse feições pequenas, elas combinavam entre si. Era uma pequena flor morena, efêmera - no entanto, julgou ter distinguido nela uma qualidade de reticência espiritual, de força haurida de sua aceitação passiva de tudo. Nisso se enganou.
Dorothy Raycroft tinha dezenove anos. Seu pai fora proprietário de uma pequena loja de esquina e ela completara o segundo grau, entre os 25 mais fracos da turma, dois dias antes de ele morrer. Não gozava de uma reputação muito boa no colégio. Na verdade, seu comportamento no piquenique da turma, quando os boatos começaram, fora meramente indiscreto - preservara oficialmente sua virgindade até um ano depois. O rapaz era vendedor de uma loja em Jackson Street e, no dia depois do ocorrido, partira inesperadamente para Nova York. Já pretendia ir embora há algum tempo, mas se demorara para consumar seu intento amoroso.
Depois de certo tempo, ela confidenciou sua aventura a uma amiga, e depois, ao observá-la se afastar pela rua sonolenta abaixo, sob a luz poenta do sol, percebeu, em um lampejo de intuição que seu caso já corria mundo. No entanto, após contar, sentiu-se muito melhor; sentiu certa amargura, mas fez o que, para ela, estava mais próximo possível de uma manifestação de caráter, tomando outro rumo e conhecendo outro homem com a intenção sincera de buscar novamente alguma satisfação. Em geral, as coisas aconteciam a Dot. Não era fraca porque não havia nada nela que lhe confirmasse a fraqueza. Não era forte, porque jamais percebeu que algumas coisas que fazia exigiam coragem. Não fazia desafios, não aderia nem conciliava.
Não tinha senso de humor, mas possuía em seu lugar um gênio alegre, que a fazia rir nos momentos certos na companhia dos homens. Não tinha pretensões definidas - às vezes se arrependia de sua reputação ter impedido quaisquer chances que tivera de obter segurança. Não houvera nenhuma exposição pública: sua mãe se interessava apenas em fazê-la partir toda manhã para a joalheria onde ela ganhava quatorze dólares por semana. Mas alguns dos garotos que ela conhecera no colégio agora viravam o rosto para ela quando caminhavam com "garotas decentes", e esses incidentes a faziam sofrer. Quando aconteciam, ela ia para casa chorar.
Além do vendedor de Jackson Street, existiram mais dois homens; o primeiro foi um oficial da marinha que passou pela cidade nos primeiros dias de guerra. Pernoitara na cidade para fazer uma baldeação e estava recostado casualmente em uma das pilastras do Stonewall Hotel quando ela passou. Ele ficou quatro dias na cidade. Ela julgava amá-lo
- dedicou-lhe aquela primeira paixão histérica que teria sido destinada ao vendedor pusilânime. O uniforme do oficial de marinha - havia poucos naquela época- fez o serviço. Ele partiu com vagas promessas nos lábios e, uma vez no trem,
rejubilou-se de não ter lhe dado seu nome verdadeiro.
Sua depressão subseqüente jogou-a nos braços de Cyrus Fielding, filho de um comerciante de tecidos local que a saudara um dia de seu carro, enquanto ela passava na calçada. Ela sempre o conhecera de nome. Se ela tivesse nascido em uma posição mais elevada na escala social, ele já a teria conhecido. Ela decaíra um pouco mais - então ele acabou conhecendo-a, finalmente. Depois de um mês ele partira para um campo de treinamento, um pouco temeroso daquela intimidade, e um pouco aliviado ao perceber que ela não gostava tanto dele assim e que não era do tipo que algum dia causaria problemas. Dot fez um romance do caso e, em uma concessão à sua Vaidade, disse consigo mesma que perdera esses dois homens para a guerra. Também disse que poderia ter casado com o oficial da marinha. Não obstante, ficou preocupada com a existência de três homens na sua vida, em um período de oito meses. Pensou, com mais medo que espanto no coração, que assim ela não demoraria a ficar como aquelas "garotas indecentes" de Jackson Street, que ela e suas amigas risonhas, mascadoras de chicletes, haviam fitado fascinadas três anos atrás.
Durante certo tempo, procurou ser mais cuidadosa. Permitia que os homens travassem um relacionamento; deixava-os beijarem-na, e chegava a permitir que lhe impusessem outras liberdades, mas não acrescentou ninguém a seu trio. Passados vários meses, a força de sua resolução - ou melhor, o triste expediente de seus temores - desgastara-se. Tornara-se inquieta, meio sonâmbula, fora do tempo e do mundo, enquanto os meses de verão fugiam. Os soldados que ela conheceu lhe eram obviamente inferiores, ou então obviamente superiores
- desejando, neste caso, apenas usá-la; eram ianques, grossos, desajeitados; um enxame deles vagava por ali. E então ela conheceu Anthony.
Naquela primeira noite, ele fora pouco mais do que um rosto simpático e infeliz, uma voz, companhia para passar uma hora, mas quando ela compareceu ao encontro com ele no sábado, olhou-o com consideração. Gostava dele. Sem saber, reconhecia as próprias tragédias refletidas no rosto dele.
Foram de novo ao cinema, passaram de novo pelas ruas meio escuras e perfumadas, desta vez de mãos dadas, falando pouco, em voz baixa. Passaram pelo portão, entraram em direção à pequena varanda.
- Posso ficar mais um pouco, não posso?
- Sh! - sussurrou ela - É preciso não fazer barulho. Mamãe fica acordada, lendo a Snappy Stories.
Isso se confirmou quando ele ouviu o ligeiro farfalhar, lá dentro, de uma página sendo virada. As lâminas abertas da veneziana projetavam barras horizontais de luz que se estampavam como finas linhas paralelas no vestido de Dorothy. Fazia silêncio na rua, salvo por um grupo sentado nos degraus de uma casa do outro lado, que erguia suas vozes em uma brusca canção engraçada.

Quando você a-cordar
Te-e-rá
Todos os cavalinhos bonitinhos.

Então, como estivesse em cima de um telhado ali perto, à espera deles, a lua se insinuou de repente entre as trepadeiras e tingiu o rosto da garota com a cor branca das rosas.
Anthony teve um lampejo de memória, tão vivido que diante de seus olhos fechados formou-se uma imagem tão nítida quanto um flashback em uma tela
- em uma noite de degelo primaveril, fora do tempo, em um universo meio esquecido, há cinco anos - de outro rosto, radiante, como uma flor, levantado para luzes tão transfiguradoras quanto as luzes das estrelas.
Ah, la belle dame sans merci que vivia em seu coração e que se lhe deu a conhecer, em efêmero e declinante esplendor, por meio de uns olhos escuros, no Ritz-Carlton, de um olhar velado, relanceado, vindo de uma carruagem que passava no Bois de Boulogne! Mas essas noites eram meras partes de uma canção, lembranças de uma maravilha - ali estavam novamente as suaves brisas, as ilusões, o eterno presente com suas promessas de amor.
- Ah - sussurrou ela -, você me ama? Você me ama?
O encanto se desfez - os fragmentos errantes das estrelas tornaram-se apenas luz, a cantoria rua abaixo diminuiu até virar uma coisa monótona, um resmungo de gafanhotos no jardim. Com quase um suspiro, ele beijou sua boca ardente, enquanto os braços dela subiram às apalpadelas até os seus ombros.

O HOMEM DE FARDA

À medida que as semanas murchavam e eram varridas pelo vento, a movimentação de Anthony aumentava de alcance, até que ele passou a compreender o acampamento e suas circunvizinhanças. Pela primeira vez na vida, tinha contato pessoal com os garçons a quem dera gorjetas, com os motoristas que o saudavam tocando o boné, os carpinteiros, bombeiros, barbeiros, fazendeiros que antes se faziam notar apenas pela subserviência de suas genuflexões profissionais. Durante seus dois primeiros meses no acampamento, não manteve nenhuma conversa ininterrupta por mais de dois minutos com alguém.
Na sua ficha militar constava "estudante" como sua qualificação profissional; no questionário original ele pusera, prematuramente, "escritor", mas quando o pessoal de sua companhia perguntava o que ele fazia, ele geralmente declarava: "bancário" - se contasse a verdade, desconfiariam dele como membro da classe ociosa.
O sargento de seu pelotão, Pop Donnely, era um "veterano" curtido, reduzido à magreza pela bebida. No passado, já dormira inúmeras semanas na cadeia, mas hoje, graças à voracidade do oficial instrutor, fora alçado a seu atual pináculo. Suas feições eram marcadas por uma porção de crateras - mostravam uma semelhança inequívoca com aquelas fotos aéreas do "campo de batalha em Blank". Uma vez por semana, ele se embriagava na cidade com uísque barato, voltava calado para o acampamento e desmaiava no seu catre, reunindo-se à companhia no toque de despertar, parecendo cada vez mais uma máscara lívida da morte.
Mantinha a espantosa ilusão de estar "passando a perna", astuciosamente, no governo - ficara dezoito anos a seu serviço, com um soldo mínimo, e estava prestes a se reformar (aqui ele geralmente piscava o olho) com a aposentadoria impressionante de 55 dólares mensais. Considerava isso uma maravilhosa gozação nas dezenas de sujeitos que o haviam desprezado e pisado, desde que ele era um garoto de dezenove anos, da Geórgia.
No momento havia apenas dois tenentes - Hopkins e o popular Kretching. Este era tido como bom sujeito e ótimo líder, até um ano depois, quando desapareceu com 1.100 dólares da cantina, demonstrando, como tantos líderes, o quanto era difícil segui-lo.
Finalmente, havia o capitão Dunning, deus daquele pequeno porém sufocante microcosmo. Era um oficial da reserva, nervoso, enérgico, entusiasmado. Esta característica chegava a se materializar sob a forma de uma visível, contudo discreta, espuma nos cantos da sua boca. Como a maioria dos executivos, ele enxergava seus subordinados só de frente, e a seu esperançoso olhar, seus comandados pareciam a própria unidade de escol, a que fazia jus uma guerra de escol. Apesar de todo o trabalho e ansiedade, ele se divertia como jamais se divertira na vida.
Baptiste, o pequeno siciliano do trem, caiu em desgraça com ele na segunda semana da ordem unida. O capitão ordenara várias vezes que os homens deviam vir bem barbeados, toda manhã, ao entrar em forma. Um dia aconteceu uma violação flagrante desse regulamento, certamente um caso de conivência teutônica - no decorrer da noite, houve um acréscimo de pêlos nos rostos de quatro homens. O fato de três dos quatro homens só entenderem um mínimo de inglês tornava a lição prática ainda mais necessária, por isso o capitão Dunning mandou um barbeiro voluntário de volta à rua da Companhia para pegar uma navalha. Quando, então, foram devidamente escanhoados os fiapos do rosto de três italianos e um polaco. De fora do mundo da companhia surgia, de vez em quando, o coronel, um homem corpulento, de dentes à mostra, que circunavegava o campo de manobras do batalhão em um belo cavalo preto. Era de West-Point e, por mimetismo, um cavalheiro. Tinha uma mulher sem graça e uma mente sem graça, e passava grande parte do tempo na cidade, aproveitando a posição social recém-valorizada do exército. E, por último, havia o general, que circulava pelas vias do acampamento antecedido por seu batedor - figura tão austera, distante, magnífica, que mal chegava a ser inteligível.
Dezembro. De noite, sopram ventos frios, e as manhãs são úmidas e geladas nos campos de manobras. À medida que o calor ia embora, Anthony sentia uma crescente alegria de viver. Estranhamente revigorado em corpo, pouco se preocupava e vivia no presente com uma espécie de satisfação animal. Não que Gloria ou a vida que Gloria representava estivessem menos presentes em seus pensamentos - é que ela simplesmente se tornava menos nítida, menos real. Durante uma semana, eles se corresponderam com paixão, quase histericamente - então, por um acordo tácito, pararam de escrever mais de duas vezes por semana, e depois passaram a uma. Ela estava entediada, dizia; se a brigada dele fosse se demorar muito mais tempo ali, ela viria ficar com ele. O senhor Haigh poderia apresentar um caso muito mais consistente do que ele esperava, mas duvidava que o recurso chegasse a ser julgado até o final da primavera. Muriel se encontrava na cidade, trabalhando na Cruz Vermelha, e saíam juntas inúmeras vezes. O que achava Anthony de ela entrar para a Cruz Vermelha? O problema é que ouvira dizer que talvez tivesse de banhar os negros com álcool; depois disso, não se sentia tão patriótica. A cidade estava cheia de soldados e ela avistara uma porção de rapazes que não via há anos.
Anthony não queria que ela viesse para o Sul. Dizia consigo mesmo que havia vários motivos para isso - ele precisava descansar dela, e ela dele. Ela haveria de se entediar além de toda conta, na cidade, e só poderia ver Anthony algumas horas por dia. Mas, no fundo de seu coração, ele temia que fosse pela atração que sentia por Dorothy. Aliás, vivia apavorado que Gloria tomasse conhecimento, intencionalmente ou por acaso, da relação que ele constituíra. No final de uma quinzena, essa ligação começou a lhe trazer períodos de sofrimento por causa de sua infidelidade. Mesmo assim, no final de cada dia, era incapaz de resistir à tentação que o arrastava de forma irresistível de sua tenda em direção ao telefone da A.C.M.
- Dot?
- Sim.
- Talvez eu possa ir essa noite.
- Estou tão contente!
- Quer ouvir minha magnífica eloqüência durante algumas horas estreladas?
- Ah, engraçadinho. - Durante um instante,
veio-lhe uma recordação de cinco anos atrás - de Geraldine. E ele continuou:
- Chegarei pelas oito.
Às sete ele já estava em uma lotação rumo à cidade, onde centenas de pequenas garotas sulistas esperavam por seus amantes em varandas enluaradas. Já se sentiria excitado à espera de seus beijos cálidos, represados, pela paz espantada que lhe transmitiam seus olhares - mais chegados à adoração do que quaisquer outros que ele jamais inspirara. Gloria e ele eram iguais, dando-se sem pensar em obrigações nem agradecimentos. Para esta garota, as carícias dele eram uma benção inestimável. Chorando baixinho, ela confessara que ele não fora o primeiro homem da vida dela, houve outro - ele ficou sabendo que o caso mal começara e acabara.
Na verdade, de seu ponto de vista, ela contava a verdade. Esquecera o oficial de marinha, o filho do comerciante de tecidos, esquecera a riqueza de sua emoção, o que constitui o verdadeiro esquecimento. Ela sabia que em uma existência turva e fantasmagórica, alguém a possuíra - era como se tivesse ocorrido durante o sono.
Quase toda noite, Anthony vinha à cidade. Agora fazia demasiado frio para a varanda, por isso a mãe dela cedeu-lhes a sala de estar mínima, com suas dezenas de estampas em molduras baratas, seus metros e mais metros de babados decorativos e sua atmosfera pesada, de várias décadas, próxima à cozinha. Fariam um fogo - então, satisfeita, incansável, ela se dedicava às tarefas do amor. Toda noite, às dez, ela caminhava com ele até a porta, com os cabelos em desalinho, o rosto pálido sem maquiagem, mais pálido ainda sob a brancura do luar. Geralmente estava claro e prateado lá fora; de vez em quando caía uma chuva lenta e quente, quase tão preguiçosa que não chegava ao chão.
- Diga que você me ama - sussurrava ela.
- Ora, claro, minha doce pequenina.
- Sou pequenininha? - Isso quase de modo tristonho.
- Pequenininha e mais nada.
Ela sabia vagamente sobre Gloria. Sofria ao pensar nisso, por isso imaginava-a arrogante, orgulhosa, fria. Decidira que Gloria era mais velha que Anthony, e que não havia amor entre o casal. Às vezes permitia-se sonhar que depois da guerra Anthony haveria de conseguir um divórcio e que se casariam - mas jamais o mencionou a Anthony, mal sabia por quê. Ela compartilhava a idéia de sua Companhia de que ele era uma espécie de bancário
- achava que ele era pobre e respeitável. Diria:
- Se eu tivesse dinheiro, querido, daria tudinho para você. Gostaria de ter uns cinqüenta mil dólares.
- Acho que seria bastante - concordava Anthony.
Na sua carta daquele dia, Gloria escrevera: "Acho que se pudéssemos fazer um acordo de um milhão, seria melhor dizer ao senhor Haigh que o fizesse logo. Mas também é uma pena..."
- Podíamos ter um automóvel - exclamou Dot, em um extravasamento final, triunfante.

UMA OCASIÃO IMPRESSIONANTE

O capitão Dunning se orgulhava de ser um grande conhecedor do caráter humano. Meia hora depois de conhecer alguém, já costumava enquadrá-lo em uma espantosa categoria qualquer - boa praça, sujeito bom, sujeito esperto, teórico, poeta e "não vale nada". Um dia, no início de fevereiro, mandou Anthony vir à sua presença na tenda do oficial de dia.
- Patch - disse ele solenemente -, ando de olho em você há várias semanas.
Anthony permaneceu ereto e imóvel.
- E acho que você tem tudo para ser um bom soldado.
Ele esperou que o rubor intenso que isso naturalmente haveria de provocar arrefecesse - e então continuou.
- Isto aqui não é nenhuma brincadeira de criança.
Anthony concordou com um melancólico - Não senhor.
- É brincadeira para homens, e precisamos de líderes.
- E seguiu-se o clímax, rápido, certeiro, elétrico: - Patch, vou te promover a cabo.
A essa altura, Anthony deveria ter cambaleado um pouco para trás, estupefato. Ele seria um dos 250 mil escolhidos para merecer essa suma confiança. Haveria de poder gritar a exortação militar:
"Sigam-me!" para mais sete sujeitos apavorados.
- Você parece ser um sujeito com alguma instrução disse o capitão Dunning.
- Sim, senhor.
- Isso é bom, isso é bom. A instrução é uma grande coisa, mas não a deixe subir à sua cabeça. Continue da maneira como está e dará um bom soldado.
Com essas palavras de despedida a ressoarem nos seus ouvidos, o cabo Patch fez continência, meia volta volver, e saiu da barraca.
Embora Anthony achasse a conversa divertida, ela originou a idéia de que a vida seria mais divertida como sargento ou até, se ele encontrasse algum médico menos exigente, como oficial. Ele pouco se interessava pelo trabalho, que parecia ser um desmentido à nobreza apregoada do exército. Durante a inspeção, ninguém se vestia para parecer arrumado, e sim para não parecer desarrumado.
Mas à medida que o inverno passava - o breve inverno sem neve, de noites úmidas e dias frescos e chuvosos -, ele se admirou de como o sistema o agarrara. Ele era um soldado - todos que não eram soldados eram paisanos. O mundo se dividia fundamentalmente nessas duas categorias.
Ocorreu-lhe que todas as categorias fortemente definidas, como os militares, dividiam os homens em dois tipos: os de sua categoria - e os de fora. Para os sacerdotes, existiam clérigos e leigos; para os católicos, católicos e não católicos; para o negro, negros e brancos; para o prisioneiro, presos e libertos, e para o doente, doentes e saudáveis. Então, sem nunca pensar nisso uma única vez na sua vida, ele já fora paisano, leigo, não-católico, gentio, branco, liberto, e, bem...
À medida que as tropas americanas eram despejadas nas trincheiras francesas e inglesas, ele começou a encontrar muitos nomes de gente de Harvard entre as baixas registradas no jornal das forças armadas. Mas, apesar de todo o esforço e todo o sangue, a situação parecia estável, e ele não via nenhuma perspectiva do término da guerra em um futuro previsível. Nas velhas crônicas, a ala direita de um exército sempre derrotava a ala esquerda do outro, enquanto a esquerda era sempre vencida pela direita do inimigo. Depois disso, os mercenários fugiam. Era tão simples nessa época, uma coisa quase pré-combinada.
Gloria escreveu dizendo que andava lendo muito. Que trapalhada haviam feito eles de seus negócios, dizia ela. Ela tinha tão pouco que fazer agora que passava o tempo imaginando como as coisas poderiam ter sido diferentes. Seu ambiente inteiro parecia inseguro - e alguns anos antes ela parecia ter o controle todo na sua própria mãozinha.
Em junho, suas cartas se tornaram apressadas e menos freqüentes. De repente parou de escrever sobre sua vinda para o Sul.

DERROTA

Marchar no campo em volta era coisa rara, com jasmins, junquilhos e moitas de violetas no capim que se esquentava. Depois ele se lembrou especialmente de uma tarde assim, tão mágica e encantadora, quando estava no abrigo do tiro ao alvo, anotando as marcas dos tiros, e então passou a recitar "Atalanta in Calydon" para um polaco que não compreendia nada, com sua voz se misturando ao pop, zing e plash das balas em cima.

Quando os cães da primavera...
Ton!

Estão no rastro do inverno...

Tuii-i-i-i-m!

Mãe dos meses...

- Ei! Acorda aí! Marca tre-ês!
Na cidade, as ruas mergulhavam mais uma vez em um sonho indolente, e Anthony e Dot refaziam preguiçosamente seus passos do outono anterior, até que ele começou a sentir uma atração letárgica por aquele Sul - sul que parecia ser mais da Argélia do que da Itália, com aspirações residuais remontando, através de inúmeras gerações, a algum Nirvana quente e primitivo, perdido e desenganado. Havia aqui um toque de cordialidade e compreensão em todas as vozes. "A vida parece pregar a mesma maravilhosa e terrível peça em todos nós", pareciam dizer, na sua entonação queixosa e simpática, com uma inflexão ascendente terminando em um tom menor irresoluto.
Ele gostava da sua barbearia, onde ele era o "Olá, cabo!" para um rapaz pálido e macilento, que o barbeava e passava interminavelmente uma máquina fria e vibrante na sua cabeça inquieta. Gostava do Johnston's Garden, onde dançavam, onde um negro trágico produzia uma música dorida, saudosa, em um saxofone, até que o salão espalhafatoso se transformasse em uma floresta encantada de ritmos bárbaros e risadas esfumaçadas, onde esquecer a passagem monótona do tempo, depois dos carinhosos suspiros e sussurros de Dorothy, era a consumação de todos os desejos, de toda satisfação.
Havia um meio-tom de tristeza no seu caráter, uma fuga consciente de tudo, menos das minúcias agradáveis da vida. Seus olhos violetas ficavam horas aparentemente impassíveis enquanto ele se aquecia irrefletida e despreocupadamente ao sol, como um gato. Ele ficava pensando o que acharia deles a mãe cansada e apática, e se nos seus momentos de máximo cinismo ela suporia a relação que havia entre eles.
Nas tardes de domingo, passeavam no campo, descansando de vez em quando no musgo seco na borda da mata. Aqui se reuniam os pássaros e as moitas de violetas e de cornisos brancos; aqui as árvores veneráveis brilhavam de modo fresco e cristalino, indiferentes ao calor inebriante à espera, lá fora; aqui ele falava em monólogos sonolentos, intermitentes, em uma conversa de nenhuma importância, sem esperar respostas.
Julho chegou pegando fogo. O capitão Dunning recebeu uma ordem para destacar um de seus homens para aprender o ofício de ferrador. O regimento inchava para atingir um efetivo de combate, e ele precisava da maioria de seus veteranos para ensinar ordem-unida, por isso escolheu o pequeno italiano, Baptiste, que ele podia dispensar com maior facilidade. O pequeno Baptiste jamais lidara com cavalos. Seu medo piorava a situação. Ele voltou certo dia à barraca do oficial do dia e disse ao capitão Dunning que preferia morrer se não pudesse ser substituído. Os cavalos davam coice nele, disse; não tinha jeito para o serviço. Finalmente pôs-se de joelhos e implorou ao capitão Dunning, em uma mistura de inglês esfarrapado com italiano bíblico, para livrá-lo daquilo. Ele não dormia há três dias. Garanhões monstruosos empinavam e corcoveavam durante todos os seus sonhos.
O capitão Dunning censurou o escrivão da companhia (que rebentara de rir) e disse a Baptiste que faria o possível. Mas, pensando melhor, resolveu que não podia abrir mão de ninguém mais. O pequeno Baptiste ia de mal a pior. Os cavalos pareciam adivinhar seu medo e se aproveitar disso. Duas semanas depois, uma égua grande e preta esmagou seu crânio com os cascos quando ele tentava tirá-la da cocheira.
No meio de julho circularam boatos, e em seguida ordens, que diziam respeito a uma mudança de acampamento. A brigada devia se mudar para um acantonamento vazio, 130 quilômetros mais ao sul, e lá se expandir em uma divisão. De início os homens acharam que estavam de partida para as trincheiras e, durante toda a noite, pequenos grupos ficaram tagarelando na rua da companhia, gritando um para o outro exclamações cheias de bazófia: "Cla-a-a-aro que vamos!". Quando transpareceu a verdade, ela foi rejeitada com indignação, como fachada para esconder seu verdadeiro destino. Deleitavam-se com sua própria importância. Naquela noite, contaram para suas garotas na cidade que eles iam "pegar os alemães". Anthony circulou um pouco entre os grupos - em seguida parou um lotação e foi contar a Dot que ele ia embora.
Ela esperava na varanda escura, em um vestido branco e barato que acentuava a juventude e a suavidade de seu rosto.
- Ah - murmurou -, senti tanta falta sua hoje, amor. O dia inteiro.
- Preciso te contar uma coisa.
Ela puxou-o para seu lado, no banco de balanço, sem reparar no seu tom solene.
- Diga.
- A gente vai partir na semana que vem.
Seus braços, que buscavam os ombros dele, ficaram parados no ar escuro, o queixo inclinado para cima. Quando falou, a suavidade abandonara sua voz.
- Partindo para a França?
- Não tivemos tanta sorte. Partindo para um acampamento desgraçado qualquer no Mississippi.
Ela fechou os olhos e ele percebeu que suas pálpebras tremiam.
- Querida Dotinha, a vida é tão danada de dura.
Ela chorava no ombro dele.
- Tão danada de dura, danada de dura - repetiu ele a esmo -; ela fere as pessoas e fere as pessoas, até que elas já não possam mais ser feridas. É a pior e última coisa que ela faz.
Frenética, fora de si de sofrimento, ela apertou-o contra o peito.
- Ah, meu Deus - murmurou de modo entrecortado
-, você não pode me deixar. Eu morro.
Ele se viu na impossibilidade de fazer sua partida passar por um golpe comum, impessoal. Estava demasiadamente próximo dela para fazer outra coisa além de repetir: "Pobre Dotinha. Pobre Dotinha."
- E então? - perguntou ela esgotada.
- O que você quer dizer?
- Você é toda minha vida, só isso. Eu morreria por você agora mesmo se me dissesse para fazê-lo. Pegava uma faca e me matava. Você não pode me deixar aqui.
Seu tom o amedrontou.
- Essas coisas acontecem - disse ele, equilibradamente.
- Então eu vou com você. - As lágrimas escorriam pelas suas faces. Sua boca tremia em um enlevo de medo e de dor.
- Doçura - murmurou ele sentimentalmente
-, doçura de garota. Você não vê que só estaríamos adiando o que está fadado a acontecer? Irei para a França dentro de alguns meses.
Ela se afastou dele, fechou os punhos e levantou o rosto para o céu.
- Quero morrer - disse, como se quisesse modelar exatamente cada palavra no seu coração.
- Dot - murmurou ele, constrangido -, você irá esquecer. As coisas ficam mais doces depois de perdidas. Eu sei, porque uma vez eu queria algo que obtive. Foi a única coisa que eu quis muito, Dot. E quando a obtive, ela virou pó na minha mão.
- Está certo.
Absorto em si mesmo, ele prosseguiu.
- Já pensei muitas vezes que se eu não tivesse conseguido o que queria as coisas seriam muito diferentes para mim. Talvez descobrisse algo em meu espírito e tivesse prazer em pô-lo em prática. Eu poderia ter me dado por satisfeito com o trabalho que ele me proporcionaria, e satisfeito alguma bela vaidade com o sucesso obtido. Acho que em determinado período eu poderia ter obtido qualquer coisa que quisesse, dentro de limites, mas aquilo era a única coisa que eu já quisera ardentemente. Meu Deus! E isso me ensinou que a gente não pode ter nada, não pode ter nada mesmo. Por que o desejo simplesmente te engana. É como um raio de sol que pula para lá e para cá dentro de um quarto. Quando pára e doura algum objeto sem importância, pobres tolos que somos, tentamos pegá-lo; mas quando conseguimos, o raio muda para outra coisa, e você fica com a parte sem valor, pois o brilho que lhe fez querê-la foi embora. - Ele interrompeu, meio sem jeito. Ela se levantara e estava de pé, com os olhos secos, arrancando pequenas folhas de uma trepadeira escura.
- Dot...
- Vá embora - disse ela, friamente.
- O quê? Por quê?
- Eu não quero apenas palavras. Se isso é tudo que você tem para me oferecer, então é melhor ir.
- Mas, Dot.
- O que para mim constitui a morte, não passa de palavras para você. Você juntou-as de modo tão bonito.
- Sinto muito. Eu estava falando de você, Dot.
- Vá embora daqui.
Ele se aproximou dela de braços estendidos, mas ela manteve-o à distância.
- Você não quer que eu te acompanhe - disse ela, impassível -; talvez vá se encontrar com aquela... aquela garota. - Ela não conseguia dizer esposa.
- Como vou saber? Bem, então acho que não é mais meu companheiro. Por isso, vá embora.
Durante um momento, enquanto sinais e desejos conflitantes se digladiavam em Anthony, houve a impressão de que se tratava de uma das raras vezes em que ele tomaria uma iniciativa nascida internamente. Hesitou. Em seguida uma vaga de cansaço quebrou-se contra ele. Era tarde demais
- tudo era tarde demais. Há anos que ele fugia do mundo sonhando, baseando suas decisões em emoções instáveis como água. A pequena garota no vestido branco dominou-o, ao tangenciar a beleza, na dura simetria de seu desejo. O fogo que ardia no seu coração ferido e trigueiro parecia brilhar em volta dela como uma chama. Um orgulho profundo e desconhecido tornou-a distante, e assim ela conquistara seu objetivo.
- Eu não tive a intenção de ser... ser tão insensível, Dot.
- Não faz mal.
O fogo derrubou Anthony. Algo repuxou nas suas entranhas, e ele ficou ali, frágil e vencido.
- Vem comigo, Dot. Minha Dotinha amorosa. Ah, vem comigo. Eu não poderia te deixar agora.
Com um soluço ela enlaçou-o nos seus braços e deixou que ele agüentasse seu peso, enquanto a lua, no seu eterno trabalho de maquiar a superfície da terra, espargiu seu mel ilícito sobre a rua sonolenta.

A CATÁSTROFE

Início de setembro em Camp Boone, Mississippi. A escuridão, animada de insetos, pulsava junto ao mosquiteiro, sob cuja proteção Anthony tentava escrever uma carta. Um bate-papo intermitente sobre um jogo de pôquer ocorria na próxima barraca e, lá fora, um sujeito passeava na rua da companhia cantando uma porcaria atual sobre "K-K-K-Katy".
Com esforço, Anthony se ergueu até se apoiar no cotovelo e, com o lápis na mão, ficou olhando para o papel em branco embaixo. Em seguida, sem botar nenhum cabeçalho, começou:

Não consigo imaginar qual é o problema, Gloria. Não recebo uma linha de você há duas semanas, e é natural que eu fique preocupado.

Ele jogou isso fora com um grunhido de amolação e começou de novo:

Não sei o que pensar, Gloria. Sua última carta, breve, fria, sem nenhuma palavra de afeto ou até mesmo um registro decente do que anda fazendo, chegou há duas semanas. É natural que eu fique preocupado. Se seu amor por mim morreu, você pelo menos devia me poupar a preocupação.

Novamente ele amarrotou o papel e arremessou-o, irado, por um buraco na parede da barraca, percebendo, no mesmo momento, que teria de apanhá-lo de manhã. Não se sentiu inclinado a tentar de novo. Não conseguia imprimir nenhum calor à escrita
- somente ciúme e desconfiança constantes. Desde o meio do verão que essas discrepâncias na correspondência de Gloria vinham se tornando cada vez mais evidentes. De início, ele mal as percebera. Estava tão acostumado aos mecânicos "queridos" e "queridíssimos" dispersos pelas cartas dela que se tornou insensível à sua presença ou ausência. Mas naquela última quinzena sua percepção de que havia algo errado aumentou.
Ele lhe enviara um telegrama noturno dizendo que passara em um exame para o centro de treinamento de oficiais, e esperava partir para a Geórgia dentro em breve. Ela não respondera. Ele telegrafara de novo
- quando não recebera nenhuma palavra, imaginou que ela talvez tivesse viajado. Mas ocorreu-lhe, e tornou a ocorrer-lhe, que ela não tinha viajado, e uma série de loucas fantasias começou a persegui-lo. Imagine se Gloria, entediada e inquieta, arranjara alguém, como ele. Essa idéia o deixava apavorado, até como hipótese - foi principalmente sua segurança quanto à integridade dela que o fizera dar-lhe tão pouca atenção durante o ano. Agora nascera a dúvida, e as velhas zangas e a paixão da posse voltaram em atropelo, multiplicadas por mil. Não seria a coisa mais natural que ela se apaixonasse de novo?
Ele lembrou-se da Gloria prometendo que, se chegasse o dia de ela querer fazer alguma coisa, ela a faria, insistindo que, como agiria visando apenas a própria satisfação, passaria por um caso assim sem sair chamuscada - só importava o efeito mental, aliás, e a sua seria uma reação masculina, de saciedade e de ligeira aversão.
Mas isso fora logo que casaram. Mais tarde, com a descoberta de que poderia sentir ciúme de Anthony, ela, pelo menos explicitamente, mudou de opinião. Não existiam outros homens no mundo para ela. Algo que ele sabia até bem demais. Percebendo que um certo escrúpulo a inibiria, ele negligenciara a conservação da integridade do amor dela - que, afinal de contas, era a pedra angular de toda a estrutura.
Enquanto isso, ele manteve Dot hospedada em uma pensão na cidade, durante todo o verão. Para fazê-lo foi necessário escrever para seu corretor pedindo dinheiro. Dot explicara sua viagem para o Sul, quando saiu de casa, um dia antes da brigada levantar acampamento, deixando um bilhete para a mãe dizendo que fora para Nova York. Na noite seguinte, Anthony fora à casa dela como se quisesse vê-la. A senhora Raycroft estava em estado de choque e havia um policial na sala de visitas. Seguira-se um questionário, do qual Anthony teve alguma dificuldade de se livrar.
Em setembro, com suas desconfianças de Gloria, a convivência com Dot se tornou tediosa, e depois intolerável. Ele andava nervoso e irritadiço por falta de sono; tinha o coração aflito e temeroso. Três dias antes ele fora até o capitão Dunning e pedira uma licença, obtendo em troca um adiamento benévolo da questão. A divisão estava de partida para ultramar, enquanto Anthony ia para um centro de treinamento de oficiais; as licenças disponíveis precisavam ser dadas aos homens que deixariam o país.
Diante dessa negativa, Anthony se dirigiu ao telégrafo no intento de telegrafar a Gloria para vir para o Sul - chegou na porta e recuou em desespero, percebendo a total impraticabilidade desse gesto. Em seguida, passou a tarde brigando com Dot e voltou para o acampamento taciturno e de mal com o mundo. Houvera uma cena desagradável, no meio da qual ele partira precipitadamente. A providência a tomar com ela não parecia preocupá-lo de modo vital naquele momento - ele estava totalmente absorto no silêncio desalentador de sua mulher.
A aba da barraca de repente dobrou para trás fazendo um súbito triângulo, e uma cabeça escura surgiu contra a noite.
- Sargento Patch? - O sotaque era italiano, e Anthony percebeu pelo cinturão que o sujeito era um ordenança do quartel general.
- Quer falar comigo?
- Uma senhora ligou para o quartel-general, dez minutos atrás. Disse que precisava falar com o senhor. Muito importante.
Anthony empurrou o mosquiteiro para um lado e se levantou. Talvez fosse um telegrama de Gloria transmitido por telefone.
- Ela mandou chamar o senhor. Disse que liga de novo às dez.
- Está bem, obrigado. - Ele pegou seu boné e em um momento estava em pé a seu lado, na escuridão quente, quase sufocante. No barracão do
quartel-general, ele prestou continência a um oficial da noite que cochilava.
- Sente e espere - sugeriu com displicência o tenente. - A garota parecia doida para falar com você.
As esperanças de Anthony definharam.
- Muito obrigado, tenente. - E quando o telefone tilintou na parede lateral, ele sabia quem ligava.
- Aqui é Dot - surgiu uma voz vacilante -, eu preciso te ver.
- Dot, eu te disse que não podia ir aí durante vários dias.
- Eu preciso te ver hoje à noite. É importante.
- Já é muito tarde - respondeu ele, friamente
- são nove horas e preciso estar de volta ao acampamento às onze.
- Está bem. - Havia tanto sofrimento compactado nessas duas palavras que Anthony sentiu certo arrependimento.
- Qual é o problema?
- Quero te dar adeus.
- Ah, não seja tão idiotinha! - exclamou ele. Mas seu ânimo se elevou. Que sorte se ela partisse da cidade naquela mesma noite! Que fardo lhe seria tirado dos ombros. Mas ele disse. - Você não pode partir antes de amanhã, de jeito nenhum.
Ele viu de relance que o oficial da noite o olhava perplexo. Em seguida, vieram as espantosas palavras seguintes de Dot:
- Não quero dizer "partir" dessa maneira.
A mão de Anthony agarrou ferozmente o fone. Sentiu que seus nervos esfriavam, como se todo calor abandonasse seu corpo.
- O quê?
Em seguida, ele ouviu uma voz rachada e descontrolada.
- Adeus. Ah, adeus!
Plop! Ela desligara. Com um ruído, meio suspiro, meio grito, Anthony deixou correndo o prédio do quartel-general. Lá fora, sob as estrelas que pingavam como borlas prateadas entre as árvores do pequeno bosque, ele ficou imóvel, hesitante. Teria ela demonstrado a intenção de se matar? - ah, a pequena imbecil! Sentiu um ódio cheio de amargura por ela. No meio desse desenlace ele não compreendia como lhe fora possível começar esse relacionamento, essa barafunda, essa sórdida mistura de sofrimento e preocupação.
Viu-se afastando devagar, a pé, repetindo sem parar que não adiantava se preocupar. Era melhor voltar para sua barraca e dormir. Precisava dormir. Meu Deus! Será que voltaria a dormir? Sua mente estava muito tumultuada e confusa; e quando chegou à estrada, virou-se em pânico e começou a correr, não em direção à sua companhia, mas fugindo dela. Os homens voltavam, agora - ele conseguiria arranjar um táxi. Depois de um minuto, dois olhos amarelos surgiram de uma esquina. Ele correu desesperadamente em sua direção.
- Lotação! Lotação! - Era um Ford vazio. - Quero ir para a cidade.
- Vai custar um dólar.
- Está bem. Se você andar depressa.
Depois de um período interminável de tempo, ele subiu correndo as escadas da casinha escura, caindo aos pedaços, e passou pela porta, quase derrubando uma negra imensa que andava pelo corredor com uma vela na mão.
- Onde está minha mulher? - gritou ele, descontrolado.
- Ela foi para cama.
Ele subiu a escada de três em três degraus, desceu o corredor rangente. O quarto estava escuro e silencioso, ele riscou um fósforo com os dedos trêmulos. Dois olhos arregalados se levantaram para ele de um terrível monte de roupas emboladas na cama.
- Ah, eu sabia que você viria - murmurou ela, com voz trêmula.
Anthony ficou gelado de raiva.
- Então era apenas um plano para me fazer vir aqui, para me encrencar! - disse ele. - Que diabo, você já pediu socorro demais!
Ela olhou-o de uma maneira penosa.
- Eu precisava te ver. Não podia viver. Ah, eu precisava te ver...
Ele se sentou na beira da cama e sacudiu a cabeça.
- Você não presta - disse ele, de modo incisivo, falando inconscientemente como Gloria talvez falasse com ele. - Esse tipo de coisa não é justo comigo, sabe?
- Chegue mais perto. - Não importava o que ele dissesse, Dot agora estava feliz. Ele gostava dela. Ela o trouxera para si.
- Ah, Deus do céu - disse Anthony, desesperado.
À medida que uma onda de cansaço se estendia inevitavelmente, sua raiva amainou, recuou, sumiu. Ele desmoronou de repente, caiu soluçando na cama, ao lado dela.
- Ah, querido - suplicou ela -, não chore! Não chore!
Ela pegou a cabeça dele no colo e o consolou, misturou suas lágrimas de felicidade com as lágrimas dele de amargura. Sua mão brincava delicadamente com o cabelo castanho dele.
- Sou tão bobinha - murmurou ela, hesitante
-, mas te amo, e quando você fica frio comigo, parece que não vale mais a pena viver.
Afinal de contas, era a paz - o quarto silencioso, com os perfumes misturados de talco e de perfume, a mão de Dot suave como uma brisa quente no seu cabelo, o seu busto que subia e descia quando ela respirava - por um instante, era como se Gloria estivesse ali, como se ele estivesse descansando no lar mais doce e seguro do que já conhecera.
Passou-se uma hora. Um relógio começou a dar as horas no corredor. Ele se levantou de um pulo e consultou os ponteiros fosforescentes de seu relógio de pulso. Era meia-noite.
Teve dificuldade em achar um táxi que o levasse àquela hora. Enquanto pedia pressa ao motorista na estrada, pensava na melhor maneira de entrar no acampamento. Já havia chegado várias vezes atrasado recentemente, e sabia que se fosse apanhado de novo seu nome seria provavelmente riscado da lista de candidatos a oficial. Ele pensou se não era melhor dispensar o táxi e se arriscar a passar pela sentinela no escuro. Aliás, muitas vezes os oficiais passavam de carro pelas sentinelas depois de
meia-noite.
- Pare! - O monossílabo vinha do clarão amarelo que os faróis derramavam sobre a estrada irregular. O motorista pôs ponto morto e uma sentinela se aproximou, carregando seu rifle em posição de tiro. Com ele, por azar, vinha o oficial da guarda.
- Chegando tarde, sargento.
- Sim, senhor. Tive um atraso.
- Pena, mas sou obrigado a registrar seu nome. Enquanto o oficial esperava, com o bloco e o lápis na mão, algo que não foi inteiramente intencional se precipitou sobre os lábios de Anthony, algo nascido do pânico, da confusão, do desespero.
- Sargento R. A. Foley - respondeu ele, sem fôlego.
- E a unidade?
- Companhia Q, octogésimo terceiro de infantaria.
- Está bem. Terá de ir andando daqui para frente, sargento.
Anthony fez continência, pagou depressa o motorista de táxi e partiu correndo em direção ao regimento que ele declinara. Já fora do alcance da linha de visão do oficial, mudou de rumo, e com coração batendo descontrolado, correu para sua companhia, com a sensação de ter cometido em erro de julgamento fatal.
Dois dias depois, o oficial que estivera no comando da guarda reconheceu-o em uma barbearia na cidade. Escoltado por um policial do exército, ele foi conduzido de volta ao acampamento, onde perdeu a patente sem julgamento e ficou confinado durante um mês aos limites da rua de sua companhia.
Com esse golpe, dominou-o um período de depressão e, dentro de uma semana, foi apanhado de novo na cidade, perambulando em um estupor alcoólico, com um frasco de uísque contrabandeado no bolso de trás. Foi apenas devido a uma espécie de loucura na sua atitude durante o julgamento que ele recebeu uma sentença de três semanas na cadeia.

PESADELO

No início de seu confinamento, dominou-o a convicção de estar ficando louco. Era como se houvesse uma quantidade de personalidades sombrias e, não obstante, vívidas, em sua mente, algumas conhecidas, outras estranhas e terríveis, controladas por um pequeno monitor que ficava sentado em algum lugar no alto, olhando. O que o preocupava é que o monitor estava doente e resistindo com dificuldade. Se ele entregasse os pontos, se falhasse por um instante, lá viriam essas coisas intoleráveis - só Anthony sabia das trevas que haveria se a sua parte pior pudesse passear a esmo pela sua consciência, sem nenhum controle.
O calor do dia mudara, de certo modo, até se tornar uma escuridão lustrosa que esmagava uma terra devastada Sobre a sua cabeça, os círculos azuis de sóis agourentos e desconhecidos, de incontáveis centros de fogo, giravam interminavelmente diante de seus olhos, como se ele permanecesse constantemente exposto ao calor da luz, em um estado febril e comatoso. Às sete da manhã, algo fantasmagórico, algo quase absurdamente irreal que ele sabia ser seu próprio corpo em carne e osso, saía com outros sete prisioneiros e dois guardas para trabalhar nas estradas do acampamento. Um dia eles carregavam e descarregavam montes de saibro, que espalhavam, ajeitavam com o ancinho - no outro, trabalhavam com barris enormes de asfalto derretido, inundando o saibro com poças pretas e luzidias de calor pastoso. De noite, trancafiado na cadeia, ele jazia com a cabeça vazia, sem coragem de pensar, fitando as vigas irregulares do teto até mais ou menos três horas da madrugada, quando então caía em um sono aflito, entrecortado.
Durante as horas de trabalho, trabalhava com uma pressa aflita, tentando, à medida que o dia se estendia rumo ao sufocante pôr-do-sol do Mississippi, cansar o corpo para que conseguisse dormir profundamente, de total exaustão. Então, em uma tarde da segunda semana, ele teve a impressão que dois olhos o fitavam de um metro e pouco atrás de um dos guardas. Isso suscitou nele uma espécie de pavor. Virou as costas para os olhos e passou a trabalhar freneticamente com a pá, até que foi necessário se virar para ir buscar mais saibro. Em seguida, os olhos entraram de novo no seu campo visual e seu nervos, já tensos, se tensionaram ainda mais, até chegarem a ponto de explodir. Os olhos zombavam dele. Do silêncio quente ele ouviu chamarem seu nome em uma voz trágica, e a terra se inclinou loucamente para frente e para trás diante de uma gritaria e confusão babélicas.
Quando ele voltou novamente a si, estava na cadeia, e os outros presos lhe olhavam curiosos. Os olhos não voltaram mais. Passaram-se muitos dias até que percebesse que a voz devia ter sido de Dot, chamando-o e fazendo alguma confusão. Ele chegou a essa conclusão logo antes de concluir sua pena, quando a nuvem que o esmagava levantou, deixando-o abatido e em profunda letargia. À medida que o mediador consciente, o monitor que cuidava daquela temível miscelânea de horror se fortalecia, Anthony ficava cada vez mais fraco fisicamente. Mal conseguia agüentar os dois dias de trabalho forçado e, quando foi solto, em uma tarde chuvosa, e voltou para sua companhia, chegou em sua barraca e simplesmente caiu em um sono pesado, para acordar antes do amanhecer, dolorido e ainda cansado. Ao lado de seu catre estavam duas cartas que estiveram à espera dele na barraca da ordenança durante algum tempo. A primeira era de Gloria, curta e fria:

O processo vai a julgamento no final de novembro. Será que é possível arranjar uma licença?
Tentei escrever para você várias vezes, mas só parecia piorar as coisas. Preciso ver você para conversar sobre diversos assuntos mas, como sabe, você me impediu de ir aí uma vez e não tenciono tentar de novo. Em vista de uma série de coisas, parece necessário que a gente converse. Fiquei muito feliz com sua nomeação.
GLORIA.

Ele estava demasiado cansado para tentar entender - ou dar importância. As frases, as intenções dela estavam todas muito longe, em um passado incompreensível. A segunda carta ele mal leu; era de Dot - uns rabiscos incoerentes, manchados de lágrimas, uma onda de queixas, agrados e dor. Depois de uma página, ele deixou-a escapulir de sua mão inerte e voltou a seu cochilo, nas suas próprias distâncias nebulosas. Na hora do toque da ordem-unida ele acordou com uma febre alta e desmaiou quando tentou deixar sua barraca - ao
meio-dia mandaram-no para o hospital da base, com gripe.
Ele tinha consciência que essa doença foi providencial. Salvou-o de uma recaída histérica - e ele se recuperou a tempo de embarcar, em um dia úmido de novembro, no trem para Nova York, para a interminável carnificina futura.
Quando o regimento chegou a Camp Mills, Long Island, a idéia fixa de Anthony era ir para a cidade e ver Gloria o mais rápido possível. Era evidente, agora, que um armistício seria assinado dentro daquela semana, mas corriam boatos que continuariam, de qualquer modo, a embarcar tropas para a França até o último momento. Anthony ficou estarrecido com a idéia da longa viagem, de um desembarque tedioso em um porto francês e de ser mantido um ano no exterior, talvez, para substituir as tropas que haviam efetivamente participado da luta.
Sua intenção era de obter uma licença de dois dias, mas Camp Mills estava sob uma rígida quarentena da gripe - era impossível sair, até mesmo os oficiais, a não ser para tratar de assuntos de trabalho. Para um soldado raso, estava fora de cogitação.
O próprio acampamento era uma triste confusão, frio, varrido pelo vento, imundo, com a sujeira acumulada da passagem por ali de várias divisões. O trem deles chegou às sete horas uma noite, e esperaram em fila até uma hora enquanto resolviam uma trapalhada militar em algum lugar adiante. Os oficiais corriam para lá e para cá sem cessar, dando ordens e fazendo uma grande algazarra. Revelou-se que o problema era devido a um coronel que estava de ânimo exaltado porque era de West-Point, e a guerra acabaria antes de ele embarcar. Se os governos beligerantes tivessem percebido a quantidade de corações partidos entre os veteranos de West-Point, naquela semana, teriam, com certeza, prolongado a carnificina mais um mês. Era de dar pena!
Ao descortinar a triste extensão de barracas que se prolongava por quilômetros sobre um lamaçal pisoteado de neve misturada com terra, Anthony percebeu a inviabilidade de se arrastar até um telefone naquela noite. Ele ligaria para ela na primeira oportunidade que tivesse, de manhã.
Acordado no alvorecer cruel e gelado, ele permaneceu de sentido depois do toque da alvorada, ouvindo uma ardorosa arenga da parte do capitão Dunning.
- Vocês aí podem pensar que a guerra acabou. Olha, quero lhes dizer que não acabou não! Aqueles sujeitos não vão assinar nenhum armistício. É mais um embuste e a gente não é maluco para descuidar das coisas na companhia, porque, olhem aqui, a gente vai embarcar dentro de uma semana, e aí sim, vamos encarar o combate de verdade. - Ele fez uma pausa para que absorvessem todo o impacto de sua declaração. E prosseguiu: - Se vocês acham que a guerra acabou, falem simplesmente com alguém que esteve lá e procurem saber se eles acham que os alemães já esgotaram sua participação. Não acham. Ninguém acha. Falei com gente que sabe, e eles disseram que haverá, de qualquer maneira, mais um ano de guerra. Eles não acham que acabou. Por isso, é melhor não terem nenhuma idéia boba de que acabou.
Frisando duplamente aquela admoestação final, ele dispensou a companhia.
Ao meio-dia, Anthony partiu correndo para o telefone da cantina mais próxima. Ao se aproximar do suposto centro do acampamento, ele reparou que outros soldados corriam também e que um sujeito perto dele deu um pulo no ar, batendo os calcanhares. A tendência a correr tornou-se generalizada, e de pequenos grupos excitados, aqui e ali, vinham gritos de aclamação. Ele parou e ficou ouvindo - em toda a região gelada ouviam-se apitos e das igrejas em Garden City irromperam de repente as reverberações das badaladas.
Anthony começou a correr de novo. Os gritos eram agora claros e distintos ao subirem, no meio de nuvens de hálitos condensados, no ar gelado:
- A Alemanha se rendeu! A Alemanha se rendeu!

O FALSO ARMISTÍCIO

Naquele fim de tarde, no breu das seis horas, Anthony escapuliu entre dois vagões de carga, passou para o outro lado da ferrovia e foi seguindo os trilhos até Garden City, onde pegou um trem elétrico para Nova York. Corria algum risco de ser detido
- ele sabia que a polícia do exército muitas vezes passava pelos vagões pedindo passes, mas imaginou que naquele dia a vigilância seria afrouxada. Mas de qualquer modo ele teria tentado escapulir, pois não conseguira localizar Gloria pelo telefone e mais um dia de suspense teria sido intolerável.
Depois de paradas e esperas inexplicáveis que lhe fizeram lembrar o dia em que deixara Nova York, mais de ano atrás, entraram na Pennsylvania Station, e ele tomou o rumo conhecido até o ponto de táxi, achando grotesco e estimulante dar seu próprio endereço.
A Broadway estava uma festa de luz, entulhada de gente como ele jamais vira, em um carnaval que abria seu caminho entre pedaços de papel picado empilhado nas calçadas, da altura do tornozelo. Aqui e ali, trepados em bancos e caixotes, soldados se dirigiam à massa festiva, cujos rostos surgiam claros e nítidos sob o clarão branco vindo de cima. Anthony destacou uma meia dúzia de figuras - um marinheiro bêbado, inclinado para trás, apoiado por dois outros marujos, acenava com o boné e dava uma série de urros selvagens; um ferido de guerra, com a muleta na mão, era carregado em cima de um turbilhão de ombros de paisanos aos gritos; uma garota de cabelos escuros estava sentada de pernas cruzadas, em pose meditativa, em cima do teto de um táxi parado. Aqui a vitória chegara, seguramente, na hora certa, o clímax fora planejado com a máxima presciência celestial. A grande e rica nação fizera uma guerra triunfante, experimentara um sofrimento comovente, mas que não chegara a ser amargo - portanto o carnaval, os festejos, o triunfo. Sob aquelas luzes ofuscantes, brilhavam os rostos de povos cujo esplendor há muito passara, cujas civilizações estavam mortas - homens cujos ancestrais ouviram notícias de vitórias na Babilônia, em Ninive, em Bagdá, em Tiro, cem gerações atrás; homens cujos ancestrais já haviam visto um cortejo florido e adornado de escravos descer, seguido de seus prisioneiros, as avenidas da Roma Imperial.
Passando o Rialto, a fachada feérica do Astor, o esplendor diamantino do Times Square... uma deslumbrante via incandescente adiante... Depois
- teriam sido anos depois? - lá estava ele pagando o táxi diante de um prédio branco na Fifty-seventh Street. No saguão - ah, ali estava o rapaz negro da Martinica, preguiçoso, indolente, o mesmo.
- A senhora Patch está em casa?
- Acabei de pegar no serviço, senhor - avisou o sujeito com seu sotaque britânico destoante.
- Me leve para cima.
Em seguida o lento zumbido do elevador, os três degraus até a porta, que se abriu com o impacto de sua batida.
- Gloria - sua voz tremia. Nenhuma resposta. Um fio delgado de fumaça subia de um cinzeiro - um exemplar de Vanity Fair jazia, aberto em cima da mesa.
- Gloria!
Ele correu até o quarto, até o banheiro. Ela não estava lá. Um robe verde pálido, estendido sobre a cama, exalava um ligeiro perfume, indefinido e familiar. Jazia sobre uma cadeira um par de meias e um vestido de passeio; uma caixa de pó de arroz estava aberta em um bocejo, em cima da cômoda. Ela devia ter acabado de sair.
O telefone tocou de repente e ele levou um susto - respondendo a ele com toda a sensação de uma impostura.
- Alô, a senhora Patch está?
- Não. Eu mesmo estou à procura dela. Quem é?
- É o senhor Crawford.
- Aqui fala o senhor Patch. Acabei de chegar inesperadamente e não sei onde encontrá-la.
- Ah. - O senhor Crawford pareceu meio perplexo. - Sim, imagino que ela deve estar no Baile do Armistício. Sei que ela pretendia ir, mas não achei que fosse tão cedo.
- Onde é o Baile do Armistício?
- No Astor.
- Obrigado.
Anthony desligou bruscamente e se levantou. Quem era o senhor Cawford? E quem haveria de acompanhá-la ao baile? Há quanto tempo isso vinha acontecendo? Todas essas perguntas se fizeram e se responderam sozinhas uma dezena de vezes, de uma dezena de maneiras. A proximidade dela deixava-o quase maluco.
Em um delírio de desconfiança, ele correu daqui para ali no apartamento, buscando sinais de uma presença masculina, abrindo o armário do banheiro, procurando freneticamente nas gavetas da cômoda. Em seguida ele achou algo que o fez parar de repente e sentar-se em uma das camas duplas, com os cantos da boca caídos, como se estivesse prestes a chorar. Ali, no canto de sua gaveta, atadas com um frágil laço azul, estavam todas as cartas e telegramas que ele mandara durante o último ano. Ele se encheu de uma vergonha sentimental e feliz.
- Eu não sou digno de tocá-la - gritou alto para as quatro paredes. - Não sou digno de tocar na sua mãozinha.
Entretanto, saiu para procurá-la.
No saguão do Astor, foi imediatamente engolido por uma multidão tão compacta que era quase impossível avançar. Ele perguntou a direção do salão de baile a meia dúzia de pessoas antes de receber uma resposta inteligível. Finalmente, depois de uma última e longa espera, deixou seu casaco militar na entrada.
Eram apenas nove horas, mas o baile estava a pleno vapor. O panorama era incrível. Mulheres, mulheres, em toda parte - garotas alegres devido ao vinho, cantando esganiçadas, mais alto que o rumor da deslumbrante multidão coberta de confete; garotas que se destacavam pelos uniformes de uma dezena de nações; gordas fêmeas que desabavam sem dignidade no chão e preservavam seu respeito próprio gritando: "Viva os aliados!"; três mulheres de cabelos brancos dançando de mãos dadas ao redor de um marinheiro que girava de maneira estonteante sobre o piso, agarrado a uma garrafa vazia de champanhe.
Esbaforido, Anthony esquadrinhava os dançarinos, esquadrinhava os cordões confusos que seguiam em fila indiana entre as mesas, esquadrinhava os participantes tocando cornetas, beijando, tossindo, rindo, bebendo sob as grandes bandeiras enfunadas que pendiam em estupendo colorido sobre aquele som e aquele fausto.
Em seguida viu Gloria. Ela estava sentada em uma mesa de dois, bem do outro lado do salão. Seu vestido era preto e encimando-o estava seu rosto animado pintado do rosa mais glamuroso, pensou, uma mancha de beleza comovente no salão. Seu coração deu um pulo, como se acompanhasse uma nova música. Abriu caminho, aos empurrões, em sua direção, e gritou seu nome bem na hora em que os olhos cinzentos se ergueram e o acharam. Naquele instante, quando seus corpos se encontraram e se fundiram, o mundo, a festa, a lamúria musical confusa se esfumaram em um bordão encantado, sibilante como o zumbido das abelhas.
- Ah, minha Gloria! - exclamou ele.
O beijo dela foi um riacho fresco que manava de seu coração.


CAPÍTULO DOIS
UMA QUESTÃO DE ESTÉTICA

Na noite em que Anthony partira para Camp Hooker, um ano atrás, tudo que restara da bela Gloria Gilbert - seu invólucro, seu jovem e belo corpo - subira os largos degraus de mármore da Grand Central Station, com o ritmo da locomotiva a martelar nos seus ouvidos como um sonho, e saiu na Vanderbilt Avenue, onde a enorme massa do Biltmore se erguia sobre a rua e, lá embaixo, sua entrada baixa e luzidia engolia as inúmeras capas de ópera multicoloridas de moças esplendidamente vestidas. Por um instante, ela parou junto ao ponto de táxi e observou-as - pensando que a apenas poucos anos ela se incluiria entre elas, sempre de partida para Algum Lugar radiante, sempre prestes a ter aquela insuperável e apaixonante aventura, devido à qual as capas das moças eram bela e delicadamente forradas de pele, suas faces pintadas e seus corações se erguiam mais alto que a fugaz cúpula do prazer que as engoliria, penteados, capas e tudo mais.
O frio aumentava e os homens que passavam haviam virado as golas de seus casacos. A mudança foi benéfica para ela. Teria sido ainda mais benéfica se tudo mudasse: o tempo, as pessoas e as ruas, e ela tivesse sido seqüestrada, para acordar em algum quarto alto e recém-perfumado, sozinha, escultural por dentro e por fora, como no seu passado pitoresco e virginal.
Dentro do táxi, ela derramou lágrimas de impotência. O fato de não ser feliz com Anthony há mais de ano tinha pouca importância. Por último a presença dele não passava daquilo que lhe fazia recordar aquele memorável junho. O Anthony recente, irritadiço, fraco e pobre, nada mais podia fazer senão também deixá-la irritada - e entediada com tudo, exceto com o fato de que ambos, em uma juventude eloqüente e altamente imaginativa, haviam se reunido em uma festa extasiada cheia de emoção. Devido a essa vivida recordação recíproca, ela faria mais por Anthony do que por qualquer outro ser humano - e quando ela entrou no táxi, chorou comovida e quis falar alto seu nome.
Sofrendo, solitária como uma criança abandonada, ela sentou-se no apartamento silencioso e
escreveu-lhe uma carta cheia de sentimentos confusos:

Quase consigo olhar ao longo dos trilhos e te ver partindo, mas sem você, querido, querido, não sou capaz de ver, ouvir, sentir nem pensar. Estar separada - seja lá o que aconteceu ou acontecerá com a gente - é como pedir clemência a uma tempestade, Anthony; é como envelhecer. Quero tanto te beijar
- na sua nuca, onde começam seus velhos cabelos escuros. Porque eu te amo, e seja lá o que fizermos ou dissermos um ao outro, ou já fizemos ou dissemos, você tem que sentir o quanto isso é verdade, quão morta eu fico depois que você se vai. Não consigo sequer detestar a presença desgraçada das PESSOAS, aquelas pessoas na estação que não têm nenhum direito de viver - não consigo me aborrecer com elas apesar de estarem emporcalhando nosso mundo, porque estou absorvida em querer tanto você.
Se você me odiasse, se estivesse coberto de chagas como um leproso, se fugisse com outra mulher, me fizesse passar fome ou me batesse - como isso soa absurdo - ainda o queria, ainda o amaria. Eu SEI, meu querido.
É tarde - estou com todas as janelas abertas e o ar lá fora é tão doce quanto na primavera, e, no entanto, muito mais jovem e frágil do que na primavera. Por que fazem da primavera uma moça, porque essa ilusão perambula, dança e canta durante três meses pela aridez ridícula do mundo. A primavera é um cavalo de tração magro, com as costelas a mostra - é uma pilha de refugo em um campo, crestada pelo sol e pela chuva até atingir uma limpeza funesta.
Dentro de algumas horas você acordará, querido
- e sofrerá e ficará de mal com a vida. Estará em Delaware ou na Carolina, ou em qualquer lugar tão pouco importante. Não conheço ninguém vivo que consiga se considerar uma instituição passageira, um luxo ou um mal desnecessário. Muito pouca gente que frisa a futilidade da vida repara na própria futilidade. Talvez achem que ao proclamar o mal de viver, estejam de algum modo protegendo seu capital da destruição - mas não estão, até mesmo você e eu.
Contudo, eu posso te ver. Há uma névoa azulada em volta das árvores que você deverá passar, demasiado bela para estar em todo canto. Não, os retângulos de terra devoluta serão mais freqüentes
ao longo e ao lado dos trilhos, como lençóis marrons ordinários, a secar ao sol, vivos, mecânicos, abomináveis. A natureza, velha bruxa feia, andou dormindo neles com todo velho fazendeiro, negro ou imigrante, que por acaso a cobiçou. Então veja só como agora que você partiu escrevi uma carta desdenhosa e desesperada. E isso quer dizer apenas que te amo, Anthony, com tudo aquilo que existe capaz de amar na sua, GLORIA.

Depois de ter endereçado a carta ela foi até sua cama dupla e deitou nela, abraçando o travesseiro de Anthony, como se conseguisse, através da pura emoção, transformá-lo em seu corpo vivo e quente. Duas horas encontraram-na de olhos secos, fitando, com uma tristeza firme e persistente, a escuridão, recordando, recordando sem medo, culpando-se de uma centena de grosserias fantasiadas, criando um Anthony à semelhança de um Cristo martirizado e transfigurado. Durante algum tempo ela pensou nele, tal como ele, nos seus momentos mais sentimentais, provavelmente pensava nele mesmo.
Às cinco, ela ainda estava acordada. Um barulho misterioso de algo moendo, que ocorria toda manhã do outro lado da área interna, indicou-lhe as horas. Ela ouviu um despertador tocar e viu uma luz criar um quadrado amarelo em um muro ilusoriamente vazio do outro lado. Com a decisão meio tomada de segui-lo até o Sul, imediatamente, sua dor tornou-se distante e ilusória, e abandonou-a à medida que a escuridão migrava para o oeste. E ela adormeceu.
Ao acordar, a imagem da cama vazia a seu lado ressuscitou sua dor, logo dissolvida, entretanto, pela inevitável crueza da manhã clara. Embora ela não tivesse consciência disso, houve um alívio em tomar o café-da-manhã sem o rosto cansado e preocupado de Anthony defronte dela. Agora que estava sozinha, perdeu toda vontade de reclamar da comida. Mudaria seu café-da-manhã, pensou - tomaria uma limonada e comeria um sanduíche de tomate em vez do eterno bacon com ovos e torrada.
Entretanto, ao meio dia, depois de ligar para várias conhecidas, inclusive a marcial Muriel, e descobrir que tinham todas compromisso para o almoço, ela se abandonou a uma suave autopiedade por sua solidão. Enrolada na cama, com lápis e papel, escreveu outra carta para Anthony.
Mais para o final da tarde chegou uma correspondência especial postada de alguma pequenina cidade de Nova Jersey, e o fraseado familiar, o meio tom quase audível de preocupação e aborrecimento eram tão conhecidos que a consolaram. Quem sabe? Talvez a disciplina militar endurecesse Anthony e o acostumasse à idéia de trabalhar. Ela tinha uma fé inabalável de que a guerra acabaria antes de ele ser convocado para o combate e, entrementes, eles ganhariam o processo e começariam de novo, dessa vez em bases diferentes. A primeira diferença é que ela teria um filho. Era insuportável tamanha solidão.
Só depois de uma semana é que ela conseguia ficar no apartamento sem a probabilidade de chorar. Parecia haver pouca coisa divertida na cidade. Muriel fora transferida para um hospital em Nova Jersey, do qual saía de licença para ir à cidade em semanas alternadas, e com essa deserção Gloria veio a perceber quão poucas amizades ela fizera durante todos aqueles anos em Nova York. Os homens que ela conhecia estavam no exército. "Homens que ela conhecia?" - ela admitira vagamente para ela mesma que todos os homens que já haviam estado apaixonados por ela eram seus amigos. Cada um deles reconhecia que estar nas graças dela durante um tempo considerável era o valor mais alto de suas vidas. Mas agora - onde estavam eles? Pelos menos dois morreram, meia dúzia ou mais estava casada, o resto, espalhado, desde a França até as Filipinas. Ela ficou imaginando se algum deles pensava nela, com que freqüência, e como. A maioria ainda devia visualizá-la como a garotinha de dezessete anos, mais ou menos, ou a sereia adolescente de nove anos atrás. As garotas também se dispersaram para muito longe. Ela nunca fora popular no colégio. Era considerada bonita demais, preguiçosa demais, sem bastante orgulho de ser uma garota de Farmover e uma "Futura Esposa e Mãe", em perpétuas maiúsculas. E as garotas que nunca haviam sido beijadas insinuavam, com uma expressão chocada nos seus rostos comuns, embora não especialmente saudáveis, que Gloria fora. Então essas garotas foram para o leste, oeste ou sul, se casaram, se tornaram "gente", vaticinando, se é que vaticinavam alguma coisa sobre Gloria, que ela haveria de ter um final infeliz - sem saber que nenhum final era infeliz e que elas, do mesmo modo que ela, não eram de nenhum modo senhoras de seus destinos.
Gloria fez um rol para si mesma das pessoas que os visitavam na casa cinzenta em Marietta. Parecia, naquela época, que eles viviam acompanhados - ela tinha a convicção íntima que todo convidado depois ficara ligeiramente endividado com ela. Devia-lhe, cada um, uma espécie de dez dólares morais, e se algum dia ela precisasse, poderia, digamos assim, pegar emprestado deles essa moeda imaginária. Mas eles se foram, dispersos como joio, sutil e misteriosamente desaparecidos, em essência ou de fato.
No Natal, a convicção de Gloria de que ela deveria se reunir a Anthony voltara, não mais como emoção repentina, mas como necessidade recorrente. Ela resolveu escrever-lhe avisando sobre sua ida, mas adiou a informação a conselho do senhor Haigh, que esperava quase toda semana que o processo fosse a julgamento.
Um dia, no início de janeiro, ao caminhar na Fifth Avenue, agora alegrada com os uniformes e as bandeiras desfraldadas das nações virtuosas, ela encontrou Rachel Barnes, que ela não via há quase um ano. Até mesmo Rachel, com quem veio a antipatizar, era um alívio para o tédio, e juntas foram ao Ritz tomar chá.
Depois de um segundo coquetel, ficaram entusiasmadas. Gostavam uma da outra. Falaram de seus maridos, Rachel naquele tom presunçoso, cheio de restrições íntimas, em que as esposas costumam falar.
- Rodman está no estrangeiro, no Corpo da Intendência. É capitão. Ele comprometeu-se a ir, e não achava que pudesse ingressar em nada diferente.
- Anthony está na Infantaria. - Essas palavras, combinadas ao coquetel, deram a Gloria uma espécie de brilho. Com cada gole ela se aproximava de um patriotismo cálido e confortável.
- Aliás - disse Rachel meia hora depois, quando iam embora -, você pode vir jantar amanhã à noite? Vou receber dois oficiais extremamente simpáticos que estão indo para o exterior. Acho que devemos fazer todo o possível para tornar as coisas atraentes para eles.
Gloria aceitou de bom grado. Ela anotou o endereço - reconhecendo pelo número um prédio elegante na Park Avenue.
- Foi muito bom ter te encontrado, Rachel.
- Maravilhoso. Eu estava querendo.
Com essas poucas frases, uma determinada noite em Marietta, dois verões atrás, quando Anthony e Rachel tinham sido desnecessariamente solícitos um com o outro, foi perdoada. Foi perdoado também o fato de Rachel ter sido testemunha do maior desastre nas vidas do senhor e senhora Anthony Patch.
Moldando-se aos acontecimentos, o tempo segue em frente.

AS MANHÃS DO CAPITÃO COLLINS

Os dois oficiais eram capitães dessa arte popular, a metralha. Durante o jantar se descreveram, com um tédio proposital, como membros do "Clube do Suicídio" - naqueles dias todo ramo recôndito das forças armadas se descrevia como Clube do Suicídio. Um dos capitães - o capitão de Rachel, observou Gloria - era um sujeito alto, com jeito de cavalo, uns trinta anos, bigode simpático e dentes feios. O outro, o capitão Collins, era gorducho, de rosto rosado, com tendência a rir desbragadamente toda vez que atraía a atenção de Gloria. Ele se tomou de imediata simpatia e, durante o jantar, fez chover elogios bobos sobre ela. Depois da sua segunda taça de champanhe, Gloria concluiu que, pela primeira vez em meses, ela se divertia para valer.
Depois do jantar, sugeriu-se que fossem a algum lugar para dançar. Os dois oficiais se abasteceram com garrafas de bebida do bar de Rachel - a lei vedava o consumo aos militares - e assim equipados, perfizeram inúmeros fox trots em vários dancings resplandecentes ao longo da Broadway, alternando fielmente os parceiros - enquanto Gloria se tornava cada vez mais extrovertida e engraçada aos olhos do capitão de rosto corado, que raramente se dava ao trabalho de tirar o sorriso alegre da cara.
Às onze horas, para sua grande surpresa, ela ficou em minoria na questão de esticarem a noite. Os demais queriam voltar para o apartamento de Rachel
- para pegar mais bebida, disseram. Gloria argumentou firme que o frasco do capitão Collins ainda estava pela metade - acabara de vê-lo - e então, ao atrair a atenção de Rachel, recebeu uma piscadela desta. Ela concluiu, confusa, que sua anfitriã queria se livrar dos oficiais e consentiu em se apertar em um táxi lá fora.
O capitão Wolf sentou-se à esquerda, com Rachel no seu colo. O capitão Collins sentou-se no meio e, ao se ajeitar, deslizou o braço em volta do ombro de Gloria. Permaneceu lá por um instante, morto, e em seguida apertou como um torno. E Collins se inclinou sobre ela.
- Você é bonita para burro - murmurou ele.
- Muito obrigada, cavalheiro. - Ela não ficou satisfeita nem aborrecida. Antes da chegada de Anthony, tantos braços já haviam feito o mesmo, que aquilo se tornou pouco mais que um gesto, romântico mas sem nenhuma importância.
Lá em cima, na sala de Rachel, um fogo baixo e dois abajures de seda laranja forneciam toda luz, de modo que os cantos estavam cheios de sombras sonolentas e profundas. A anfitriã, circulando em um vestido estampado escuro de chiffon largo, parecia frisar a atmosfera já por si sensual. Durante um tempo ficaram todos juntos, comendo os sanduíches que estavam na mesinha de chá - em seguida, Gloria se viu sozinha com o capitão Collins no sofá defronte à lareira; Rachel e o capitão Wolf se retiraram para o outro lado da sala, onde conversavam em voz baixa.
- Eu gostaria que você não fosse casada - disse Collins, seu rosto ridiculamente travestido de "falando sério".
- Por quê? - Ela estendeu seu copo para pedir um highball.
- Não beba mais - instou ele, franzindo o cenho.
- Por que não?
- Ficará mais simpática se não beber.
Gloria percebeu, de repente, a insinuação pretendida por seu comentário, a atmosfera que ele procurava criar. Teve vontade de rir - e, no entanto, se deu conta de que não havia nenhum motivo para rir. Ela estava gostando da noite e não queria de modo algum ir para casa - ao mesmo tempo,
sentiu-se de orgulho ferido por tentarem envolvê-la em um flerte daquele nível.
- Sirva-me outro drinque - insistiu ela.
- Por favor...
- Ah, não seja ridículo! - exclamou exasperada.
- Muito bem. - Ele cedeu de má vontade.
Em seguida, seu braço voltou a abraçá-la, e novamente ela não protestou. Mas quando sua face rosada chegou perto, ela se afastou.
- Você é uma tremenda doçura - disse ele, com um ar incerto.
Ela começou a cantar baixinho, querendo agora que ele tirasse seu braço. De repente, seu olhar encontrou uma cena íntima do outro lado da sala
- Rachel e o capitão Wolf estavam entregues a um longo beijo. Gloria estremeceu ligeiramente - ela não sabia o motivo... O rosto rosado se aproximou de novo.
- Você não devia olhar para eles - murmurou ele. Seu outro braço já estava quase imediatamente em volta dela; o hálito dele em seu rosto. De novo o ridículo triunfou sobre a repugnância, e a risada dela era uma arma tão afiada que não precisava de nenhum complemento verbal.
- Ah, achei que você fosse boa companheira
- dizia ele.
- O que é ser boa companheira?
- Ora, uma pessoa que gosta de... se divertir na vida.
- Beijar você deve ser considerado uma diversão? Foram interrompidos quando Rachel e o capitão Wolf surgiram, repentinamente, na frente deles.
- Já é tarde, Gloria - disse Rachel, corada e com o cabelo em desalinho. - É melhor passar a noite aqui.
Por um momento Gloria achou que ela estava dispensando os oficiais. Então compreendeu e, ao compreender, se pôs de pé da maneira mais natural possível.
Sem entender, continuava Rachel:
- Você pode ficar com o quarto logo depois deste. Posso te emprestar tudo que precisa.
Os olhar de Collins implorava como o olhar de um cão; o braço do capitão Wolf descansava com naturalidade em volta da cintura de Rachel; estavam à espera.
Mas a sedução da promiscuidade, pitoresca, diferente, labiríntica e sempre um pouco perfumada e rançosa, não tinha nenhuma atração, nem despertava nenhuma vocação em Gloria. Se ela o tivesse desejado, teria ficado, sem hesitar, sem remorso; mas diante daquilo, foi capaz de enfrentar friamente os três olhares ofendidos e hostis que a seguiram até a entrada, com uma polidez forçada e palavras vazias.
"Ele não teve sequer a esportividade de tentar me levar em casa", pensou ela no táxi, e, em seguida, com um rápido ataque de rancor: "Que total vulgaridade!"

CAVALHEIRISMO

Em fevereiro, ela teve uma experiência de tipo bem diferente. Tudor Baird, um antigo namorado, um jovem com quem em certa época ela tencionava seriamente se casar, veio até Nova York através da Força Aérea e procurou-a. Foram várias vezes ao teatro e, dentro de uma semana, para grande divertimento dela, ele estava tão apaixonado quanto antes. Ela provocou isso propositalmente, percebendo tarde demais que fizera uma maldade. Ele chegou ao ponto de ficar sentado com ela em um silêncio sofrido, toda vez que saíam juntos.
Membro da "Scroll and Keys" de Yale, ele possuía todas as reticências certas de um "bom sujeito", as noções corretas de cavalheirismo e de noblesse oblige - e é claro, e infelizmente, os preconceitos corretos e a correta falta de idéias -, todos aqueles traços que Anthony lhe ensinara a desprezar mas que, contudo, ela admirava bastante. Ao contrário da maioria do seu tipo, ele não era chato. Era bonito, espirituoso de uma maneira ligeira, e quando ela estava na sua companhia, sentia que devido a alguma qualidade que ele tinha - chame-a burrice, lealdade, sentimentalismo ou algo não tão definido quanto os três - faria qualquer coisa a seu alcance para agradá-la.
Ele disse-lhe isso, entre outras coisas, muito corretamente, e com uma hombridade grave que mascarava um genuíno sofrimento. Sem amá-lo nem um pouco, ela veio a ter pena dele e beijou-o com carinho uma noite, porque ele era tão encantador, uma relíquia de uma geração em vias de extinção, que vivia uma ilusão esnobe e elegante e que estava sendo substituída por tolos menos cavalheirescos. Depois ela ficou satisfeita de o ter beijado, porque no dia seguinte, quando seu avião caiu de quinhentos metros em Mineola, um pedaço do motor a gasolina despedaçou seu coração.

GLORIA SOZINHA

Quando o senhor Haigh disse que o julgamento só ocorreria no outono, ela resolveu que, sem contar a Anthony, entraria para o cinema. Quando ele visse o seu sucesso, tanto na tela quanto financeiramente, quando visse que ela conseguia dobrar Joseph Bloeckman sem dar nada em troca, perderia seus tolos preconceitos. Passou metade de uma noite acordada planejando sua carreira e gozando seu sucesso antecipadamente e, na manhã seguinte, ligou para a Films par Excellence. O senhor Bloeckman estava na Europa.
Mas a idéia desta vez a obcecara tanto que ela resolveu fazer a ronda das agências de emprego na indústria cinematográfica. Como acontecia com freqüência, seu olfato sabotou suas boas intenções. A agência de empregos fedia como se já estivesse morta há muito tempo. Ela esperou cinco minutos, examinando seus concorrentes feiosos - em seguida caminhou rapidamente até o recanto mais distante do Central Park e lá ficou tanto tempo que quase pegou um resfriado. Queria arejar o seu traje para tirar o cheiro da agência de empregos.
Na primavera ela começou a perceber, pelas cartas de Anthony - não por nenhuma especialmente, e sim pelo efeito cumulativo de todas -, que ele não queria que ela fosse para o Sul. Pretextos que pareciam até assombrá-lo pela sua própria puerilidade se repetiam com regularidade freudiana. Ele escrevia-os em cada carta, como se temesse ter esquecido da vez anterior, como se fosse desesperadamente necessário impressioná-la. E a diluição de suas cartas, provocada pelos diminutivos carinhosos, começou a ser algo mecânico e sem espontaneidade - quase como se, terminada a carta, ele a relesse e literalmente os engastasse nela, como epigramas em uma peça de Oscar Wilde. Ela chegou logo a uma conclusão, rejeitou-a, ficou zangada e deprimida alternadamente - e acabou fechando os olhos para aquilo, deixando uma crescente frieza se infiltrar do seu lado da correspondência.
Por último, encontrou muita coisa para ocupá-la. Vários aviadores, que ela conhecera por intermédio de Tudor Baird, vieram visitá-la em Nova York, e mais dois antigos namorados, aquartelados em Camp Dix, apareceram. À medida que esses sujeitos embarcavam para o exterior, eles, por assim dizer, a passavam adiante para seus amigos. Mas depois de outra experiência desagradável com outro capitão Collins em potencial, ela passou a frisar seu estado civil e suas pretensões para quem quer que lhe fosse apresentado.
Na chegada do verão, ela aprendeu, como Anthony, a esquadrinhar o rol de baixas entre os oficiais, experimentando uma satisfação melancólica ao saber da morte de alguém com quem já dançara uma quadrilha e a identificar ex-pretendentes pelos nomes de irmãos mais novos - achando que, à medida que o avanço sobre Paris se intensificava, o mundo finalmente se atirava à sua inevitável e bem merecida destruição.
Ela estava com 27 anos. Seu aniversário passou ligeiro, quase despercebido. Anos antes, fazer vinte a deixara amedrontada; até certo ponto, ao fazer 26 - mas agora ela se olhava no espelho com uma tranqüila aprovação, distinguindo o frescor britânico de suas feições e seu corpo esguio e pueril de antes.
Procurava não pensar em Anthony. Era como se escrevesse a um estranho. Contou às amigas que ele fora promovido a cabo e zangou-se quando elas demonstraram polidamente não terem ficado impressionadas. Uma noite, chorou com pena dele - se ele se mostrasse um pouco receptivo, ela teria ido a seu encontro no primeiro trem, sem hesitar - pois, fosse lá o que ele estivesse fazendo, precisava ser cuidado espiritualmente, e ela se sentia agora até capaz disso. Por último, sem a presença dele a roubar sua energia moral, ela se sentia maravilhosamente revigorada. Antes de sua partida ela tendia, por pura divagação, a ficar lamentando suas oportunidades perdidas - e agora voltara a seu estado normal; forte, desdenhosa, vivendo cada dia o que cada dia tinha a oferecer. Comprou uma boneca e vestiu-a; um dia chorava com "Ethan Frome"; no dia seguinte se divertia com alguns romances de Galsworthy, que gostava pela sua capacidade de recriar, por um sombreado repentinamente introduzido, aquela ilusão do amor romântico entre os jovens, que as mulheres sempre buscam no futuro e no passado.
Em outubro as cartas de Anthony se multiplicaram, tornaram-se quase frenéticas - em seguida, cessaram de repente. Preocupada durante um mês, ela precisou de todo seu autocontrole para não partir imediatamente para o Mississippi. Em seguida, soube por um telegrama que ele estivera internado em um hospital e que ela deveria esperá-lo em Nova York, dentro de dez dias. E tal como uma figura em um sonho, ele voltou para a vida dela ao atravessar o salão de baile naquela noite de novembro - e no pleno decorrer de horas cheias de uma conhecida alegria, ela o aninhou contra o peito, acalentando uma ilusão de segurança e felicidade que não pensou que voltasse a acalentar.

FRUSTRAÇÃO DOS GENERAIS

Uma semana depois, o regimento de Anthony voltou ao acampamento de Mississippi para se dispersar. Os oficiais se enclausuraram nos compartimentos dos vagões Pullman e bebiam o uísque comprado em Nova York, e nos vagões comuns os soldados também se embebedavam como podiam - fingindo, quando o trem parava em alguma pequena cidade, que haviam acabado de voltar da França, onde praticamente aniquilaram o exército alemão. Como todos usavam bonés de quem servia no exterior e alegavam não ter tido tempo de mandar costurar suas faixas douradas nos uniformes, os caipiras da região costeira ficavam muito impressionados e lhes perguntavam sua opinião sobre as trincheiras - ao que respondiam com grandes estalos de língua e sacudidas de cabeça: "Ah, rapaz!". Alguém pegou um pedaço de giz e escreveu do lado de fora do trem: "Vencemos a guerra - agora vamos para casa", e os oficiais riram e deixaram ficar. Estavam todos se pavoneando ao máximo durante aquela volta infame.
Ao se aproximarem ruidosamente do acampamento, Anthony ficou aflito imaginando Dot a esperá-lo, pacientemente, na estação. Para seu alívio, não viu nem teve notícias dela, e achando que se ela estivesse na cidade certamente teria se comunicado com ele, concluiu que partira - para onde não sabia, nem queria saber. Só queria voltar para Gloria - a Gloria renascida e maravilhosamente viva. Quando foi finalmente dispensado, deixou sua companhia na carroceria de um grande caminhão, com uma turma que aclamara tolerante, quase sentimentalmente, os oficiais, em especial o capitão Dunning. O capitão, por seu lado, se dirigira a eles com lágrimas nos olhos, sobre o prazer etc., o trabalho etc., o tempo não desperdiçado etc.; e seu dever etc. Foi muito tedioso, muito humano. Depois de prestar atenção àquilo, Anthony, com a mente revigorada por sua semana em Nova York, reavivou seu profundo ódio pela carreira militar e tudo que ela representava. Em seus corações infantis, dois entre três oficiais de carreira acham que as guerras eram feitas para os exércitos, e não os exércitos para as guerras. Alegrou-se ao ver os generais e oficiais de campo cavalgando desolados entre o acampamento deserto, desfalcados de seus comandados. Alegrou-se ao ouvir os homens de sua companhia rirem desdenhosamente dos convites para permanecerem no exército. Haveriam de freqüentar "escolas". Eles sabiam quais "escolas" eram essas.
Dois dias depois, ele estava com Gloria em Nova York.

OUTRO INVERNO

No final de uma tarde de fevereiro, Anthony chegou ao apartamento e, tateando na pequena entrada, escura como breu, no crepúsculo de inverno, deu com Gloria sentada ao lado da janela. Ela se virou quando ele entrou.
- O que o senhor Haigh teve a dizer? - perguntou desanimada.
- Nada - respondeu ele -, as coisas de sempre. Mês que vem, talvez.
Ela olhou-o com cuidado, com o ouvido atento à voz dele, e flagrou uma pastosidade mínima naquele dissílabo.
- Você andou bebendo - comentou ela, indiferente.
- Uns dois copos. - Ah.
Ele bocejou na poltrona e fez-se um momento de silêncio entre eles. Então ela perguntou de repente.
- Você foi ao senhor Haigh? Diga a verdade.
- Não. - E ele deu um sorriso débil. - Aliás, não tive tempo.
- Achei que você não tinha ido. Ele te chamou.
- Pouco me importa. Estou farto de ficar esperando no seu escritório. Até parece que ele está me fazendo um favor. - Ele relanceou para Gloria como se esperasse um consolo moral, mas ela tornara a ficar contemplando o lado de fora, duvidoso e desinteressante.
- Hoje estou me sentindo meio cansado desta vida - tenteou ele. Mesmo assim ela continuou calada.
- Encontrei um sujeito e ficamos conversando no bar do Biltmore.
O crepúsculo se intensificara de repente, mas nenhum deles fez menção de acender as luzes. Perdidos em sabe-se lá que contemplações, ficaram ali, sentados, até que uma lufada de neve arrancou um suspiro lânguido de Gloria.
- O que você andou fazendo? - perguntou ele, achando o silêncio sufocante.
- Lendo uma revista cheia de artigos idiotas de autores prósperos sobre como é terrível para gente pobre comprar camisas de seda. E enquanto lia, não conseguia pensar em mais nada além de como eu queria um casaco de pele de esquilo cinza, e como não podemos comprar.
- Podemos sim.
- Ah, não.
- Ah, sim! Se você quiser um casaco de pele, terá um.
A voz dela, atravessando o escuro, tinha uma insinuação de desdém.
- Você quer dizer, vender mais um título?
- Se for preciso, sim. Não quero que você se prive das coisas. Contudo, já gastamos muito desde que voltei.
- Ah, cale a boca! - exclamou ela, irritada.
- Por quê?
- Porque estou mais do que cansada de ouvir você falar sobre o que gastamos ou fizemos. Você já voltou há dois meses, e quase toda noite a gente sai para alguma festa ou outra. Nós dois quisemos sair, e saímos. Sim, e você não me ouviu reclamar, ouviu? Mas você só vive choramingando, choramingando. Eu não ligo mais para o que fazemos ou para o que será de nós, mas pelo menos sou coerente. E não vou tolerar mais as suas queixas e seu catastrofismo.
- Você mesma, às vezes, não é lá muito agradável, sabe?
- Eu não te devo obrigação nenhuma. Você não faz nenhuma tentativa de mudar as coisas.
- Faço sim.
- Hum! Me parece já ter ouvido isso antes. Esta manhã, você não ia tocar em outro drinque até arranjar um emprego. E não teve nem sequer a coragem de ir ver o senhor Haigh, que te chamou para falar a respeito do processo.
Anthony se levantou e acendeu as luzes.
- Olha aqui! - gritou ele, piscando. - Estou ficando cansado desta sua língua afiada.
- Sim, e vai fazer o que a respeito?
- Você acha que eu estou especialmente feliz?
- continuou ele, ignorando a pergunta dela. - Você acha que eu não sei que não estamos vivendo como deveríamos viver?
Em um átimo, Gloria estava trêmula a seu lado.
- Ah, isso eu não agüento! - explodiu ela. - Não tolero que você me dê lições de moral. Você e seu sofrimento! Você não passa de um fraco, digno de pena. É e sempre foi!
Eles se encararam como idiotas, um incapaz de impressionar o outro, cada um tremenda, penosamente, entediado. Então ela foi para o quarto e fechou a porta.
A volta dele fizera aflorar todas as suas aflições do pré-guerra. Os preços haviam subido de forma alarmante e, em proporção perversa, a renda deles encolhera para pouco mais da metade do seu valor original. Houve os honorários substanciais do senhor Haigh; houve as ações compradas a cem e agora despencando a trinta e quarenta e outros investimentos que nada renderam. Durante a primavera anterior Gloria pensara na alternativa de deixarem o apartamento ou assinarem um contrato de um ano, de 225 dólares por mês. E ela o assinara. Tão inevitavelmente quanto crescia a necessidade de economia, os dois, enquanto casal, eram totalmente incapazes de poupar. A velha política de tergiversar virara um recurso. Cansados de suas incapacidades, tagarelavam sobre o que fariam - ah - amanhã, ou como "parariam de ir a festas" e Anthony trabalharia. Mas quando chegava a escuridão, Gloria, que estava acostumada a um programa toda noite, sentia a velha inquietação se aproximando. Ficava na porta do quarto, mordendo os dedos furiosamente e, às vezes, encontrando o olhar de Anthony, quando ele o levantava de seu livro. Então, o telefone tocava e seus nervos se distendiam, ela o atendia com mal disfarçada ânsia. Alguém viria "só por alguns minutos" - ah, o cansaço de fingir, a arrumação da mesa, a recuperação de seus ânimos abatidos - e eles acordavam, como se fosse no meio de uma noite insone na qual se moviam.
Ao passar o inverno, com a parada do retorno das tropas na Fifth Avenue eles perceberam cada vez mais que, desde a volta de Anthony, seu relacionamento mudara inteiramente. Depois do reflorescimento do carinho e da paixão, cada um voltara para seu sonho solitário, não compartilhado pelo outro, e qualquer que fosse a ternura entre eles, ela parecia passar de um coração vazio para um coração vazio, eco esvaziado daquilo que sabiam finalmente ter deixado de existir.
Anthony fizera nova ronda dos jornais da cidade e fora novamente desencorajado por uma miscelânea de boys, telefonistas e editores. A palavra de sempre era: "Estamos guardando vagas disponíveis para nossos próprios colegas que ainda estão na França". Então, no final de março, sua atenção foi atraída por um anúncio no jornal da manhã e, assim, afinal encontrou o que parecia ser uma ocupação.

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Seguia-se um endereço na Madison Avenue e instruções para aparecer à uma hora daquela tarde. Gloria, a relancear por cima do ombro dele durante o seu café-da-manhã, que era geralmente tarde, viu-o lendo aquilo, distraído.
- Por que você não tenta? - sugeriu.
- Ah, é um desses negócios malucos.
- Talvez não seja. Pelo menos vale a pena experimentar. Diante da insistência dela, ele foi ao endereço indicado à uma hora, e viu-se integrante de uma miscelânea de sujeitos à espera, diante da porta. Iam desde um boy, obviamente usando de modo indevido o tempo do patrão, até um indivíduo imemorial com o corpo e um cajado curtidos pelo tempo. Alguns sujeitos eram gastos, com faces encovadas e olhos vermelhos e inchados - outros jovens, talvez ainda alunos de colégio. Depois de quinze minutos desconfortáveis, durante os quais todos se entreolharam com uma desconfiança apática, surgiu um elegante e jovem pastor, com um terno cintado e modos de diretor assistente, que os empurrou para um grande cômodo em cima, parecendo uma sala de aula, com várias carteiras. Ali sentaram os pretendentes a vendedores - e novamente esperaram. Depois de um intervalo, encheu-se um estrado no final da sala com meia dúzia de sujeitos sérios, porém alertas, que, com a exceção de um, sentaram em semicírculo encarando a platéia.
A exceção era o sujeito que parecia o mais solene, o mais alerta e o mais jovem de todos, que avançou até a frente do estrado. A platéia
examinou-o com alguma expectativa. Ele era um tanto pequeno, um tanto bem apanhado, com uma beleza mais comercial do que teatral. Tinha sobrancelhas retas e abundantes e olhar absurdamente honesto, e, ao chegar à beira de sua tribuna, pareceu projetar esse olhar sobre a platéia, estendendo simultaneamente o braço com dois dedos esticados. Então, enquanto ele se punha em estado de equilíbrio, um silêncio expectante desceu sobre a sala. O rapaz mantinha seus ouvintes sob controle com total segurança, e suas palavras, ao brotarem, eram firmes e seguras de si, no estilo "direto ao assunto".
- Camaradas! - começou ele, fazendo uma pausa. A palavra morreu com um eco prolongado no final da sala, e os rostos que olhavam para ele, com esperança, cinismo, cansaço, ficaram igualmente absortos e interessados. Seiscentos olhos se inclinaram ligeiramente para cima. Com uma fluência séria e regular que lembrava a Anthony o rolar de bolas de boliche, ele se lançou ao mar da preleção.
- Nesta bela e ensolarada manhã vocês pegaram seus jornais prediletos e encontraram um anúncio que fazia a afirmação simples e direta: vocês são capazes de vender. Foi só isso que ele disse - não disse "o quê", não disse "como", não disse "por quê". Fez apenas uma única e singular afirmação, de que você e você e você - e ele apontou aqui e ali
- eram capazes de vender. Olha, o meu trabalho não é tornar vocês um sucesso, porque todo mundo já nasceu um sucesso e faz seu próprio fracasso; não é ensinar vocês a falar, porque todo mundo é um orador natural, apenas se faz de calado; a minha tarefa é dizer algo a vocês de tal maneira que vocês ficarão sabendo; é dizer que você e você e você possuem uma herança de dinheiro e prosperidade à espera de que venham reivindicá-la.
A essa altura, um irlandês de aparência taciturna se levantou de sua carteira, perto do fundo da sala, e saiu.
- Esse sujeito acha melhor procurá-la no bar da esquina. (Risos). Não os achará lá. Já houve época em que eu mesmo ia procurá-la lá (risos), mas isso foi antes de eu fazer aquilo que todos vocês, não importa quão jovens ou velhos, pobres ou ricos (ligeiro murmúrio de risos sarcásticos), são capazes de fazer. Foi antes de eu encontrar... a mim mesmo!
- Agora eu me pergunto se alguns de vocês sabem o que é Falando do coração. Falando do coração é um livrinho no qual eu comecei, cerca de cinco anos atrás, a anotar aquilo que descobri ser os principais motivos do sucesso humano, de John D. Rockerfeller até John D. Napoleão (risos), e antes disso, lá na época em que Abel vendeu seu direito de herança por uma porção de sopa. Temos aqui agora cem desses Falando com o coração. Aqueles de vocês que são sinceros, que estão interessados na nossa proposta e, sobretudo, os que estão insatisfeitos com a sua situação, receberão um exemplar para levar para casa quando saírem esta tarde por aquela porta ali.
- Agora, tenho no meu bolso quatro cartas que acabei de receber, a respeito de Falando do coração. Essas cartas contêm as assinaturas de gente bem conhecida em todos os lares da América. Escutem só esta, que veio de Detroit:

CARO SENHOR CARLETON:
Quero fazer um pedido de mais três mil exemplares de Falando do coração para distribuir entre meus vendedores. Ele contribuiu mais para a eficiência dos meus empregados do que qualquer sugestão de bônus. Eu o leio constantemente, e quero lhe dar os parabéns por ter chegado às raízes do maior problema que nossa geração precisa enfrentar atualmente - o problema de vendas. O alicerce de pedra sobre o qual está erguida a nação é o problema de vendas. Desejando muitas felicidades, despeço-me cordialmente,
HENRY W. TERRAL

Ele pronunciou o nome em três longos segmentos triunfantes e bombásticos - fazendo uma pausa para que aquilo atingisse seu efeito mágico. Em seguida, leu mais duas cartas; uma de um fabricante de aspiradores de pó e outra do presidente da Great Northern Doily Company.
- E agora - continuou ele -, vou contar-lhes em poucas palavras qual é a proposta que vai transformar aqueles de vocês que irão abordá-la no estado de espírito certo. Falando claramente, é o seguinte: Falando do coração foi incorporado como uma empresa. Nós vamos pôr esses panfletos nas mãos de toda grande organização comercial, todo vendedor, de todo sujeito que sabe - eu não digo "acha", digo sabe - que é capaz de vender! Estamos oferecendo algumas ações do empreendimento Falando do coração no mercado, e de modo que a distribuição seja a mais ampla possível, e de modo que também possamos oferecer um exemplo concreto, em carne e osso, do que sejam as vendas, ou melhor, do que poderiam ser, vamos dar àqueles de vocês que são sérios de verdade a oportunidade de vender essas ações. Não importa quão velho ou quão jovem você é. Eu só quero saber duas coisas: primeiro, vocês desejam o sucesso e, segundo, estão prontos a trabalhar para obtê-lo?
- Meu nome é Sammy Carleton. Não é "senhor" Carleton, mas simplesmente Sammy. Sou um cara simples que não gosta de enrolação, de frufrus nem de babados. Quero que me chamem de Sammy.
- Agora, isso é tudo que vou lhes dizer hoje. Amanhã quero que aqueles que pensaram no assunto e leram o exemplar de Falando do coração que lhes será distribuído na porta voltem para esta mesma sala, à mesma hora, quando então aprofundaremos a proposta e eu lhes direi os princípios do sucesso que descobri. Vou fazer vocês sentirem que você e você e você são capazes de vender!
A voz do senhor Carleton ecoou por um momento na sala e, em seguida, definhou. No meio de um tropel de muitos pés e empurrões, Anthony e a multidão foram conduzidos para fora do aposento.

MAIS AVENTURAS COM FALANDO DO CORAÇÃO

Ao acompanhamento de risadas irônicas, Anthony contou a Gloria a história de sua aventura comercial. Mas ela escutou sem humor.
- Você vai desistir de novo? - perguntou ela, friamente.
- Por quê? Você espera que eu...
- Nunca esperei nada de você.
Ele hesitou.
- Ora, não vejo nenhum benefício em morrer de rir desse tipo de negócio. Se existe algo mais velho que a velha história, é a nova embalagem para ela.
Foi preciso uma espantosa energia moral da parte de Gloria para intimidá-lo a voltar e, quando ele se apresentou no dia seguinte, deprimido pela leitura atenta daquela besteirada senil caprichosamente registrada em Falando do coração sobre a ambição, ele só encontrou cinqüenta, dos trezentos iniciais, à espera do aparecimento do vital e convincente Sammy Carleton. As habilidades vitais e convincentes do senhor Carleton foram dessa vez empregadas na elucidação desse magnífico problema especulativo: como vender. Parecia que o método certo depois de fazer sua proposta não era dizer: "E agora, você quer comprar?" - não era esse o método - ah, não!
- o método era expor sua proposta e então, depois de reduzir seu adversário a um estado de exaustão, proferir o imperativo categórico: "Agora, veja só! Você me fez gastar meu tempo explicando este assunto. Concordou com meus argumentos - só quero perguntar quantos você quer!"
À medida que o senhor Carleton fazia afirmações em cima de afirmações, Anthony começou a ter uma espécie de confiança aversiva nele. O sujeito parecia saber de que falava. Evidentemente rico, fora promovido ao cargo de instrutor dos demais. Não ocorreu a Anthony que o tipo de sujeito que alcança sucesso comercial raramente sabe como ou por quê, e quando, como no caso de seu avô, oferece motivos, esses são em geral absurdos e incorretos.
Anthony reparou que, dos vários sujeitos mais velhos que vieram por causa do anúncio original, só dois haviam voltado, e que entre os cerca de trinta que se reuniram no terceiro dia para receber instruções práticas de venda da parte do senhor Carleton, somente se via uma cabeça grisalha. Estes trinta eram convertidos zelosos; seguiam com suas bocas o funcionamento da boca do senhor Carleton; balançavam de entusiasmo nas suas cadeiras e, nos intervalos da exposição, falavam entre si em tensos sussurros de aprovação. No entanto, dos poucos eleitos que, nas palavras do senhor Carleton, "estavam determinados a obter a sobremesa que lhes pertencia de pleno direito", menos de meia dúzia combinava um mínimo de aparência pessoal com aquele grande dom de ser "atrevido". Mas diziam-lhes que eram todos naturalmente atrevidos - só precisavam acreditar com uma espécie de paixão louca naquilo que vendiam. Ele chegou a pedir que cada um comprasse um pouco de ações, para reforçar a própria sinceridade.
No quinto dia, então, Anthony se atirou na rua com todas as sensações de um procurado pela polícia. Agindo de acordo com instruções, selecionou um prédio alto de escritórios para ir até o último andar e vir trabalhando de cima para baixo, parando em todo escritório com uma placa na porta. Mas hesitou na última hora. Talvez fosse mais prático se aclimatar à atmosfera gelada que ele previa encontrar, experimentando, digamos, alguns escritórios na Madison Avenue. Ele entrou em uma galeria que parecia apenas semipróspera e, vendo uma placa que dizia Percy B. Weatherbee, Arquiteto, abriu heroicamente a porta e entrou. Uma moça toda engomada levantou os olhos de modo indagador.
- Posso falar com o senhor Weatherbee? - Ele ficou imaginando se sua voz pareceu trêmula.
Ela pousou a mão, hesitante, em cima do fone.
- Qual o nome, por favor?
- Ele... ah... ele não me conhece. Não reconhecerá meu nome.
- Qual o seu assunto com ele? É vendedor de seguros?
- Ah, nada disso! - negou apressado Anthony.
- Ah, não. É algo... de tipo pessoal. - Ficou pensando se deveria ter dito isso. Parecia tudo tão simples quando o senhor Carleton advertira seu rebanho: "Não se deixem barrar! Mostrem que vocês decidiram falar com eles, e eles ouvirão."
A moça sucumbiu ao rosto agradável e melancólico de Anthony, e em um instante a porta de entrada da sala interna se abriu e deixou passar um homem alto, de pés chatos, com cabelos lustrosos. Ele se aproximou de Anthony com mal disfarçada impaciência.
- O senhor quer me ver a respeito de assunto pessoal?
Anthony tremeu.
- Quero falar com o senhor - disse ele, obstinadamente.
- Sobre o quê?
- Vai levar um tempinho para explicar.
- Sim, e qual é o assunto? - A voz do senhor Weatherbee indicava uma crescente irritação.
Então Anthony, forçando cada palavra, começou:
- Eu não sei se o senhor já ouviu falar de uma série de panfletos chamados Falando do coração.
- Santo Deus! - exclamou Percy B. Weatherbee, arquiteto. - Você não está tentando sensibilizar meu coração?
- Não, é uma questão de negócios. Falando do coração virou uma sociedade anônima e estamos lançando ações no mercado...
Sua voz declinou lentamente, assediada por um olhar fixo e desdenhoso de sua presa involuntária. Durante mais um minuto, ele se esforçou em continuar, cada vez mais suscetível, se enrolando nas palavras. Sua segurança parecia esvair-se em grandes jatos de vômito, que davam a impressão de ser pedaços de seu próprio corpo. Misericordioso, Percy B. Weatherbee, arquiteto, deu por terminada a entrevista.
- Santo Deus! - explodiu com asco. - E você chama isso de assunto pessoal - Virou-se bruscamente e entrou na sua sala particular, batendo a porta atrás de si. Sem coragem de olhar para a estenógrafa, Anthony conseguiu, de algum modo vexatório e misterioso, sair da sala. Suando abundantemente, ficou parado no corredor, imaginando por que não vinham prendê-lo; em cada olhar de relance dos outros ele enxergava um olhar de desprezo.
Depois de uma hora, com a ajuda de dois uísques fortes, sentiu-se disposto a outra tentativa. Entrou na loja de um bombeiro hidráulico mas, quando mencionou seu assunto, o bombeiro começou a vestir seu casaco com grande pressa, dizendo asperamente que precisava ir almoçar. Anthony comentou polidamente que era inútil tentar vender algo a uma pessoa com fome, e o bombeiro concordou entusiasmado.
Esse episódio encorajou Anthony; procurou imaginar que, se o bombeiro não estivesse a caminho do almoço, pelo menos teria ouvido.
Ao passar por alguns mercados formidáveis e cintilantes, entrou em uma mercearia. Um proprietário falastrão disse-lhe que antes de comprar qualquer ação, veria como o armistício afetou o mercado. A Anthony isso pareceu quase uma injustiça. Na utopia de vendas do senhor Carleton, o único motivo que os prováveis compradores davam para não comprar ações era a dúvida na rentabilidade do investimento. É óbvio que um sujeito nessa situação era uma presa quase ridiculamente fácil a ser derrubada apenas com o emprego correto da argumentação de vendas. Mas esses sujeitos - ora, não estavam pensando em comprar nada.
Anthony tomou vários drinques a mais antes de abordar seu quarto freguês, um corretor de imóveis; entretanto, foi nocauteado por um golpe tão decisivo quanto um silogismo. O corretor disse que tinha três irmãos no ramo de investimentos. Supondo-se um destruidor de famílias, Anthony pediu desculpas e saiu.
Depois de outro drinque ele concebeu o brilhante plano de vender ações aos atendentes de bar ao longo da Lexington Avenue. Isso demorou várias horas, pois era preciso tomar alguns drinques em cada lugar para levar o atendente a entrar no ânimo certo para discutir negócios. Mas os atendentes, todos, sem exceção, argumentavam que se eles tivessem dinheiro para comprar ações não seriam atendentes de bar. Foi como se todos se reunissem e combinassem aquela resposta. Já próximo das cinco horas, escuras e molhadas, descobriu neles a tendência ainda mais irritante de descartá-lo com uma piada. Então, às cinco, com um tremendo esforço de concentração, resolveu variar suas visitas. Escolheu uma delicatessen de tamanho médio, e entrou. Sentiu, em um rasgo intuitivo, que a coisa a fazer era não só jogar um encantamento sobre o dono, mas também sobre todos os fregueses - e então, talvez devido à psicologia do instinto de rebanho, eles comprassem em bloco, imediata e assombrosamente convencidos.
- B'a tarde - começou ele, em uma voz alta e pastosa. - Tenho 'ma p'quena proposta.
Se seu objetivo foi pedir silêncio, conseguiu-o. Uma espécie de pavor baixou sobre a meia dúzia de mulheres fazendo compras e sobre o idoso de cabelos grisalhos que, de touca e avental, fatiava um frango.
Anthony tirou uma pilha de papéis de sua pasta oscilante e brandiu-a com alegria.
- Comprem 'ma ação - sugeriu ele -, tão boa quanto um tit'lo da liberdade! - A frase agradou-o e ele elaborou-a. - Melhor que um tit'lo da liberdade. Cada uma dessas ações vale dois tit'los da liberdade. - Deu um branco na sua cabeça e ele pulou para sua arenga, feita com os gestos adequados, no que foi um pouco atrapalhado pela necessidade de se agarrar com uma ou ambas as mãos no balcão. - Agora, olhem aqui. Vocês tomaram meu tempo. Eu n' quero saber por que vocês não querem comprar. Só quero que digam por quê. Que digam quantos!
A essa altura, eles deviam se aproximar dele com talões de cheque e canetas na mão. Percebendo que eles deviam ter perdido algum argumento, Anthony, com instinto dramático, repetiu sua finale.
- Agor' olhem aqui! Vocês t'maram meu tempo. Vocês c'preenderam a proposta. Concordaram c'os argumentos? Agora, só quero saber de vocês, quantos tit'los da liberdade?
- Olha aqui! - irrompeu uma nova voz. Um sujeito imponente, com o rosto adornado de cachos simétricos de cabelo louro, surgira de um compartimento de vidro nos fundos da loja e veio para cima de Anthony. - Olha aqui, você!
- Quantos? - repetiu severamente o vendedor.
- Vocês tomaram meu tempo.
- Ei, você aí - gritou o dono. - Vou chamar a polícia.
- Certamente qu'não! - retrucou Anthony, em desafio. - Eu só quero saber quantos.
Daqui e dali, surgiram na loja pequenas nuvens de comentários e censuras.
- Que coisa horrível!
- É um louco furioso.
- Está numa água só.
O dono agarrou Anthony, bruscamente, pelo braço.
- Vá embora senão eu chamo a polícia.
Alguns vestígios fossilizados de sanidade levaram Anthony a aquiescer com a cabeça e recolocar suas ações na pasta.
- Quantos? - reiterou incertamente.
- A tropa toda, se for preciso! - trovejou seu adversário, com o bigode louro a tremer ferozmente.
- Vou vender tit'lo a todos.
Com isso, Anthony se virou, se inclinou gravemente diante de seus ouvintes recentes e saiu cambaleando da loja. Encontrou um táxi na esquina e foi para o apartamento. Lá, adormeceu profundamente no sofá, e foi assim que Gloria o encontrou, com seu bafo empestando o ar de um desagradável cheiro acre, com as mãos ainda agarradas à sua pasta aberta.
A não ser quando bebia, o escopo da sensibilidade de Anthony tornara-se menor que o de um velho saudável e, quando chegou a Proibição, em julho, ele viu que, entre aqueles que podiam pagar, bebia-se mais do que nunca. Qualquer anfitrião surgia com uma garrafa, ao menor pretexto. A tendência a exibir bebida era uma manifestação do mesmo instinto que levava alguém a encher sua mulher de brilhantes. Possuir bebida era motivo de orgulho, quase um distintivo de respeitabilidade.
Anthony acordava todas as manhãs cansado, preocupado, nervoso. Os crepúsculos alegres do verão e o friozinho violeta da manhã deixavam-no igualmente indiferente. Apenas por um breve momento, todo dia, com o calor e a nova vida fornecidos por um primeiro high-ball, é que sua mente se voltava para aqueles sonhos opalinos de um prazer futuro
- herança comum dos felizes e dos malditos. Mas isso só por pouco tempo. À medida que ficava mais embriagado, os sonhos se embotavam e ele se tornava um fantasma confuso, movendo-se entre as velhas dobras de sua própria mente, cheia de truques inesperados, severamente desdenhosa, na melhor das hipóteses, e chegando a tristes e úmidas profundezas. Uma noite, em junho, ele discutiu violentamente com Maury sobre um assunto da maior banalidade. Ele se lembrou vagamente, na manhã seguinte, que fora por causa de uma garrafa de meio litro de champanhe quebrada. Maury lhe dissera que curasse a bebedeira e ferira a suscetibilidade de Anthony que, na tentativa de um gesto de dignidade, se levantara da mesa e, pegando Gloria pelo braço, levou-a meio por bem, meio por mal, até um táxi lá fora, deixando Maury com três pedidos de jantar e bilhetes para a ópera.
Esse tipo de fiasco semitrágico tornara-se tão comum que ele não se sentia mais obrigado a pedir desculpas quando ocorria. Se Gloria protestasse - e por último era mais provável que mergulhasse em um silêncio desdenhoso -, ele empreendia uma amarga defesa de si mesmo, ou então saía de modo estudado do apartamento. Nunca mais, desde o incidente na plataforma da estação em Redgate, pusera as mãos em Gloria quando estava com raiva - embora, muitas vezes, apenas o impedisse um instinto que, só ele, o fazia tremer de raiva. Do mesmo modo que ainda gostava dela mais do que de qualquer outra criatura, a odiava com maior freqüência, com maior intensidade.
Até então os juizes do Tribunal de Recursos não haviam dado a sentença, mas depois de outro adiamento, finalmente vieram a ratificar a sentença do tribunal inferior - com o voto contrário de dois juizes. Foi impetrado um outro recurso contra Edward Shuttleworth. O processo iria para um tribunal de último recurso, e eles estariam sujeitos a uma outra interminável espera. Seis meses, talvez um ano. Aquilo se tornara tremendamente irreal para eles, distante e incerto como o céu.
No decorrer do inverno anterior, uma pequena questão se tornara um elemento irritante, sutil e onipresente - o problema do casaco de peles de Gloria. Naquela época, viam-se mulheres embrulhadas em longas capas de pele de esquilo a cada poucos metros da Fifth Avenue. As mulheres adquiriam a forma de piões. Pareciam porcinas e obscenas; lembravam mulheres manteúdas, no luxo dissimulante, na animalidade feminina daquela veste. Não obstante, Gloria queria um casaco de pele de esquilo cinza.
Ao debater o assunto - ou melhor, ao brigar por causa dele, já que até mais do que no primeiro ano de seu casamento, toda discussão virava uma briga cheia de amargura, cheia de frases como: "com certeza", "totalmente absurdo", "é isso mesmo, não importa", e a ultra-enfática "sem consideração"
- chegaram à conclusão que não podiam comprá-lo. E então ele começou a se tornar gradativamente o símbolo de sua crescente angústia financeira.
Para Gloria, o encolhimento do seu orçamento era um fenômeno extraordinário, sem precedente, inexplicável - que pudesse acontecer em um período de cinco anos parecia quase uma crueldade intencional, concebida e executada por um Deus zombeteiro. Quando se casaram, 7.500 por ano parecia uma quantia confortável para um jovem casal, especialmente quando ampliada pela expectativa de muitos milhões. Gloria deixara de perceber que ela não apenas decrescia nominalmente, como seu poder de compra também, até que o pagamento antecipado dos quinze mil dólares dos honorários do senhor Haigh tornou esse fato repentina e espantosamente óbvio. Quando Anthony foi incorporado ao exército, eles haviam calculado sua renda em mais de quatrocentos dólares por mês, sendo que o dólar na época já se desvalorizava; porém, na sua volta a Nova York, descobriram uma situação ainda mais alarmante. Recebiam apenas 4.500 de seus investimentos. E apesar de o processo sobre o testamento seguir adiante deles como uma persistente miragem e o sinal de perigo financeiro assomar à pequena distância, descobriram que, mesmo assim, era impossível viver dentro dos limites de seu orçamento.
Então Gloria ficou sem o casaco de pele de esquilo e, todo dia, na Fifth Avenue, tomava ligeira consciência de sua pele de leopardo de meio comprimento, já bem gasto, agora indubitavelmente fora de moda. A cada dois meses, vendiam um título, e, no entanto, depois de pagarem as contas, só sobrava o que era engolido vorazmente por suas despesas correntes. Pelos cálculos de Anthony, seu capital deveria durar ainda mais ou menos sete anos. Por isso Gloria carregava tanta amargura em seu coração, porque em uma semana, em qualquer longa farra histérica, na qual Anthony dava na veneta de despir casaco, colete e camisa em um teatro, para ser posto para fora por um pelotão de porteiros, eles gastavam duas vezes mais o preço do casaco de pele de esquilo cinza.
Era novembro, ou melhor, o veranico de outono, e uma noite quente, quente - dispensável, porque o verão já cumprira sua tarefa. Babe Ruth quebrara pela primeira vez o recorde de home-runs, e Jack Dempsey quebrara o malar de Jess Willard, lá em Ohio. Na Europa, a quantidade de crianças barrigudas de fome continuava como de costume, e os diplomatas se ocupavam de suas costumeiras tarefas de impedir mais guerras mundiais. Na cidade de Nova York, o proletariado estava sendo "organizado", e as apostas em Harvard eram cotadas, de modo geral, em cinco contra três. A paz reinava a sério, o início de novos dias.
Lá em cima, no quarto do apartamento na
Fifty-seventh street, Gloria se debatia na cama, sentando-se de vez em quando para se livrar de cobertas supérfluas e, mais uma vez, pedindo a Anthony, que estava deitado a seu lado, acordado, para lhe trazer um copo de água gelada.
- Não se esqueça de botar gelo - insistiu ela -, a água da torneira não é bastante fria.
Ao olhar pelas cortinas delicadas, ela podia ver a lua redonda por cima dos telhados e, mais distante, o brilho amarelo no céu, de Times Square
- e ao observar as duas luzes contrapostas, sua mente elaborava uma emoção, ou melhor, um complexo interligado de emoções que lhe ocupara durante todo o dia, e o dia anterior, até a última vez em que se recordava de ter pensado clara e continuadamente sobre alguma coisa - que deve ter sido quando Anthony estava no exército.
Ela faria 29 anos em fevereiro. Esse mês tomou um significado agourento e inescapável - fazendo-a se perguntar, naquelas horas nebulosas e meio febris, se ela afinal não desperdiçara sua beleza já meio cansada, se poderia haver algum proveito em qualquer qualidade limitada pela severidade e inevitabilidade da morte.
Anos antes, quando tinha 21, escrevera no seu diário: "A beleza serve apenas para ser admirada, apenas para ser amada - e para ser então colhida com cuidado e arremessada, como um buquê de rosas, para o amante eleito. Parece-me, até onde consigo julgar com clareza, que minha beleza deveria servir para isso..."
E agora, nesse dia de novembro, nesse triste dia, sob um céu branco sujo, Gloria andou pensando que talvez estivesse errada. Para preservar a integridade de sua primeira dádiva, ela deixara de buscar o amor. No declínio, no desbotar do primeiro entusiasmo e da primeira chama, ela continuara conservando - o quê? Espantava-a o fato de não saber mais o que ela conservava: uma recordação sentimental ou alguma noção profunda e básica da honra. Ela agora duvidava se houvera qualquer preocupação ética no seu estilo de vida - caminhar despreocupada, sem arrependimentos, pelo caminho mais alegre possível, e manter seu orgulho sendo sempre fiel a si mesma e fazendo aquilo que lhe parecia belo. Desde o primeiro garotinho de colarinho engomado, de quem ela fora a "garota", até o último homem casual cujo olhar se fizera alerta e apreciador ao pousar sobre ela, bastava apenas aquela candura inigualável que ela conseguia pôr em um olhar ou vestir com uma frase inconseqüente
- pois ela sempre falara em frases quebradas - para tecer à sua volta inúmeras ilusões, distâncias imensuráveis, luz incomensurável. Para criar sentimentos, criar uma bela felicidade, um belo desespero nos homens, ela precisava conservar profundamente o seu orgulho - orgulho de ser inviolável, também orgulho de se derreter, de ser apaixonada e possuída.
Ela sabia, no seu próprio peito, que nunca desejara filhos. A realidade, a vulgaridade, o intolerável sentimento de parir, a ameaça à sua beleza - a apavoravam. Ela queria existir apenas como flor consciente, que se prolonga e se conserva. Seu sentimentalismo podia se agarrar ferozmente às próprias ilusões, mas sua alma irônica murmurava que ser mãe também era privilégio da babuína. Por isso, seus sonhos apenas se prendiam a filhos fantasmagóricos - o símbolo perfeito de seu primeiro e perfeito amor por Anthony.
No final de contas, sua beleza era tudo que não a decepcionara. Ela jamais vira beleza igual à sua. O que isso significava ética ou esteticamente se eclipsava diante da maravilhosa concretude de seus pés brancos e rosados, da perfeição bem delineada de seu corpo, e da boca infantil que parecia o símbolo concreto de um beijo.
Faria 29 em fevereiro. À medida que a longa noite definhava, ela se tornou enormemente consciente de que ela e a beleza fariam uso desses três meses seguintes. De início, ela não sabia com que objetivo, mas o problema foi se resolvendo gradativamente a favor da velha sedução da tela. Agora era a sério. Nenhuma necessidade material poderia motivá-la como esse temor podia. Não importava Anthony, Anthony, o pobre de espírito, o fraco, o homem alquebrado dos olhos injetados de sangue, por quem ela ainda nutria momentos de ternura. Não importava. Ela faria 29 anos em fevereiro - dentro de cem dias, de muitos dias: veria Bloeckman amanhã.
Com a decisão veio o alívio. Alegrava-a que a ilusão da beleza pudesse de certo modo ser mantida ou talvez conservada em celulóide depois de a realidade ter desaparecido. Sim - amanhã.
No dia seguinte, sentiu-se fraca e doente. Tentou sair, e só impediu-se de desmaiar segurando em uma caixa de correio perto da porta da frente. O ascensorista da Martinica ajudou-a a subir, e ela ficou esperando pela volta de Anthony, na cama, sem energia para desabotoar o sutiã.
Ficou cinco dias de cama com uma gripe que, no momento em que o mês dobrou a esquina do inverno, transformou-se em uma pneumonia dupla. Nas perambulações febris de sua mente ela zanzava por uma casa cheia de quartos tristes e escuros à procura de sua mãe. Tudo que ela queria era ser uma menininha, ser bem cuidada por algum poder superior e condescendente, mais burro e seguro do que ela. Parecia que o único amor que ela quisera fora um amor de sonho.

ODI PROFANUM VULGUS

Um dia, no meio da doença de Gloria, aconteceu um incidente curioso que deixou a senhorita McGovern, a enfermeira profissional, perplexa por muito tempo. Era meio-dia, mas o quarto da paciente estava escuro e silencioso. A senhorita McGovern permanecia perto da cama misturando um remédio, quando a senhora Patch, que aparentemente estivera dormindo profundamente, sentou-se e começou a falar com veemência:
- Milhões de pessoas - disse ela - se atropelando como ratos, tagarelando como macacos, fedendo como o diabo... macacos! Ou piolhos, acho. Por um palácio realmente excepcional... em Long Island, digamos, ou até mesmo em Greenwich... por um palácio repleto de quadros do Velho Mundo e coisas extraordinárias, com alamedas arborizadas, gramados verdes e uma vista do mar azul, e gente bonita em vestidos elegantes... Eu seria capaz de sacrificar centenas de milhares deles, um milhão deles. - Ela levantou a mão debilmente e estalou os dedos. - Eu não ligo nada para eles; compreendeu?
O olhar que ela deu para a senhorita McGovern ao concluir essa fala foi curiosamente travesso, curiosamente atento. Em seguida, deu um risinho rematado de desdém e, depois de cair para trás, voltou a dormir de novo.
A senhorita McGovern ficou perplexa. Pensou quais seriam as centenas de milhares de coisas que a senhora Patch sacrificaria pelo seu palácio. Dólares, pensou - e, no entanto, não pareciam ser exatamente dólares.

O CINEMA

Foi em fevereiro, sete dias antes de seu aniversário, quando a grande quantidade de neve que enchera as encruzilhadas, como poeira a encher as frestas no chão, virara neve derretida, conduzida à sarjeta pelas mangueiras da limpeza pública. O vento, não menos cortante por ser casual, entrava em lufadas pelas janelas abertas da sala, trazendo com ele os segredos tristes da área interna e limpando o apartamento dos Patch de fumaça velha de cigarro, no seu triste caminho.
Gloria, embrulhada em um quimono quente, entrou na sala fria e, pegando o telefone, ligou para Joseph Bloeckman.
- A senhora quer dizer senhor Joseph Black? perguntou a telefonista da Films par excellence.
- Bloeckman, Joseph Bloeckman. B-l-o...
- O senhor Joseph Bloeckman mudou seu nome para Black. Quer falar com ele?
- Perfeitamente. - Ela se lembrou com nervosismo que uma vez já o chamara de "Blockhead" na sua cara.
Alcançava-se a sala dele através da cortesia de mais duas vozes femininas; a última foi uma secretária que anotou o nome dela. Somente ao fluir da voz dele, familiar, mas com um tom ligeiramente impessoal, foi que ela se deu conta de que fazia três anos desde que se encontraram. E ele mudara seu nome para Black.
- Você pode me encontrar? - sugeriu ela, ligeiramente. - É em caráter profissional, na verdade. Quero trabalhar no cinema, finalmente, se for possível.
- Fico muito feliz. Sempre achei que você gostaria.
- Acha que consegue me arranjar um teste?
- perguntou com a arrogância das mulheres bonitas, de todas as mulheres que em alguma ocasião já se acharam bonitas.
Ele ressegurou-a que era apenas questão de quando ela quisesse fazer o teste. A qualquer ocasião? Bem, ele telefonaria mais tarde para informá-la sobre uma hora conveniente. A conversa se encerrou com enchimento de lingüiça de ambas as partes. Então, das três às cinco, ela ficou sentada perto do telefone - sem resultado.
Mas na manhã seguinte, chegou um bilhete que a excitou e que a satisfez:

QUERIDA GLORIA:
Por sorte chamou minha atenção um assunto que acho convir perfeitamente a você. Eu gostaria que você começasse com algo que desse o que falar. Ao mesmo tempo, se uma garota muito bonita de seu tipo for posta diretamente em um filme ao lado das estrelas um tanto superexpostas que toda companhia precisa manter, as línguas certamente irão se agitar. Mas tem um papel de "moderninha" em uma produção de Percy B. Debris que me parece muito indicado para você e que atrairia certa atenção. Willa Sable faz par com Gaston Mears em uma espécie de papel típico e você, acredito, faria o papel da irmã mais nova dela.
De qualquer maneira, Percy B. Debris, que vai dirigir o filme, disse para você ir ao estúdio depois de amanhã (quinta-feira), que ele fará um teste. Se às dez horas for conveniente para você, eu te encontrarei lá nessa hora. Com meus melhores votos,
JOSEPH BLACK

Gloria resolvera que Anthony não ficaria sabendo de nada disso até ela conquistar uma posição definitiva e, assim sendo, vestiu-se e saiu do apartamento na manhã seguinte antes de ele acordar. Seu espelho, pensou, lhe devolvera o comentário de sempre. Ficou imaginando se restariam vestígios de sua doença. Ela ainda estava ligeiramente abaixo de seu peso ideal, e achara, alguns dias antes, que suas faces estavam um pouquinho mais magras - mas sentiu que essa era apenas uma situação transitória e que, naquele dia em particular, tinha a aparência viçosa de sempre. Comprara um chapéu que pusera na conta e, como estava um dia quente, deixou o casaco de pele de leopardo em casa.
Nos estúdios da Films par Excellence informaram sua chegada pelo telefone e disseram que o senhor Black desceria logo. Ela olhou em volta. Um homenzinho gorducho em um paletó de bolsos enviesados fazia as honras da casa a duas garotas, e uma delas indicou um monte de pacotes finos, empilhados contra a parede até a altura do peito, por uma extensão aproximada de sete metros.
- Isso é a correspondência do estúdio - explicou o gorducho. - Retratos de estrelas da Films par Excellence.
- Ah.
- Cada um autografado por Florence Kelly ou Gaston Mears ou Mack Dodge - piscou ele, confidencialmente. - Pelo menos quando Minnie McGlook, lá em Sauk Center, receber a foto que ela pediu por escrito, achará que foi autografada.
- Apenas um carimbo?
- Certo. Eles levariam um bom dia de oito horas para autografar apenas metade. Dizem que a correspondência de Mary Pickford custa a ela cinqüenta mil por ano.
- Não diga!
- Verdade. Cinqüenta mil. Mas é o melhor tipo de anúncio que existe.
Eles se distanciaram e saíram do alcance da conversa, e de imediato surgiu Bloeckman
- Bloeckman, um cavalheiro delicado e moreno, entrado nos quarenta, que saudou-a com um carinho cortês e disse que ela não havia mudado nada em três anos. Conduziu-a até um grande salão, do tamanho de um galpão militar, interrompido de quando em quando por cenários movimentados e uma iluminação fora do comum. Cada cenário estava marcado com grandes letras brancas: Gaston Mears Company, Mack Dodge Company, ou apenas Films par Excellence.
- Já esteve em algum estúdio?
- Nunca.
Ela gostou. Não havia nenhuma proximidade desagradável de óleo de maquiagem, nenhum cheiro de roupas sujas e espalhafatosas que anos antes a deixara revoltada nos bastidores de um musical. Aquele trabalho era feito na pureza da manhã; os acessórios pareciam esmerados, novos e belos. Em um cenário alegrado por tapeçarias Manchu, um perfeito chinês representava uma cena, dirigido pelo megafone, à medida que a grande e reluzente máquina desfiava sua narrativa ética para a edificação do espírito nacional.
Um sujeito ruivo se aproximou deles e falou, com um respeito familiar, a Bloeckman, que respondeu:
- Olá, Debris. Quero que você conheça a senhora Patch... A senhora Patch quer entrar para o cinema, como lhe expliquei... Está bem, e agora, para onde vamos?
O senhor Debris - o grande Percy B. Debris, pensou Gloria - levou-os a um cenário que representava o interior de um escritório. Havia algumas cadeiras reunidas em volta da câmera, diante dele, e os três se sentaram.
- Já esteve em algum estúdio? - perguntou o senhor Debris, dando-lhe um olhar que era seguramente a quintessência da sagacidade. - Não? Bem, explicarei exatamente o que vai acontecer. Vamos fazer o que chamamos de teste para ver se você é fotogênica e se tem presença cênica, e ver como reage à direção. Não precisa ficar nervosa. Farei o câmera rodar algumas centenas de pés de um episódio que tenho aqui marcado no roteiro. A partir disso, a gente pode ficar sabendo perfeitamente o que precisa.
Ele apareceu com uma seqüência datilografada e explicou para ela o episódio que ela iria representar. Aconteceu de uma certa Barbara Wainwright ser casada em segredo com o sócio mais novo da empresa, cujo escritório estava ali encenado. Um dia, ao entrar por acaso na sala deserta, ela ficou naturalmente interessada em saber onde seu marido trabalhava. O telefone tocou e, depois de alguma hesitação, ela atendeu. Soube que seu marido fora atropelado por um automóvel, tendo morte instantânea. Ficou fora de si. De início, ela não conseguia aceitar a verdade, mas finalmente conseguiu compreendê-la e caiu desmaiada no chão.
- Agora, isso é tudo que nós queremos - concluiu o senhor Debris. - Vou ficar aqui e lhe dizer aproximadamente o que fazer, e você precisa fingir que eu não estou aqui e fazer a coisa do seu jeito. Não precisa ter medo de ser julgada com demasiada severidade. Só queremos ter uma idéia geral de sua personalidade na tela.
- Sei.
- Você encontrará material de maquiagem no quarto nos fundos do cenário. Use-o discretamente. Ponha pouco ruge.
- Está bem - repetiu Gloria, balançando a cabeça. Ela tocou os lábios nervosamente com a ponta da língua.

O TESTE

Ao entrar no cenário por uma porta de madeira de verdade e fechá-la com cuidado depois de passar, ela se sentiu insatisfeita com suas roupas, naquele momento inoportuno. Devia ter trazido um vestido mais jovem para aquela ocasião - ela ainda podia vesti-los, e talvez fosse uma boa compra se realçasse sua juventude arejada.
Sua mente voltou-se atilada para a gravidade do momento, à medida que a voz do senhor Debris saía de trás do clarão das luzes brancas na frente.
- Você olha em volta à procura de seu marido... Agora - você não o vê... Sente curiosidade pelo escritório...
Ela se deu conta do ruído constante da câmera. Aquilo a preocupava. Olhou, involuntariamente, para ela e pensou se havia pintado seu rosto da maneira certa. Então, com visível esforço, obrigou-se a atuar - e jamais sentira tamanha banalidade, tamanha falta de graça e de distinção nos movimentos de seu corpo. Ela andou no escritório, pegando objetos aqui e ali e olhando para eles de uma maneira vazia. Em seguida, esquadrinhou o teto, o chão, e examinou meticulosamente uma lapiseira banal em cima da mesa. Por fim, como não fosse capaz de pensar em mais nada que fazer, muito menos no que exprimir, deu um sorriso forçado.
- Está bem. O telefone toca. Tri-i-i-im! Hesite, depois atenda.
Ela hesitou - e então, com demasiada pressa, pensou, pegou no fone.
- Alô.
Sua voz soava oca e falsa. As palavras reverberavam no cenário vazio como inutilidades fantasmagóricas. Assustava-na a insensatez das exigências. Será que esperavam que ela se pusesse no lugar daquele personagem ridículo e inexplicável em um estalar de dedos?
- Não... não... ainda não! Agora escute: "John Sumner acabou de ser atropelado por um automóvel e teve morte instantânea!"
Gloria deixou sua boca infantil se abrir lentamente. Em seguida:
- Agora desligue! Violentamente!
Ela obedeceu, se agarrou na mesa com os olhos fixos e arregalados. Enfim sentiu-se encorajada e sua segurança aumentou.
- Meu Deus! - gritou ela. Sua voz saiu bem, pensou ela. - Ah, meu Deus!
- Agora desmaie.
Ela caiu para frente, de joelhos, e estendo seu corpo no chão, lá ficou sem respirar.
- Está bem! - exclamou o senhor Debris. - Chega, obrigado. Já basta. Levante-se. Acabou.
Gloria se levantou, recuperando a dignidade e limpando seu vestido.
- Foi horrível! - comentou com uma risada displicente, embora seu coração batesse em tumulto. - Terrível, não foi?
- Você achou ruim? - disse o senhor Debris, dando um sorriso suave. - Foi difícil? Eu não posso dar opinião nenhuma até ver a projeção.
- Claro que não - concordou ela, procurando ver alguma intenção no seu comentário e não conseguindo. Era bem o tipo de coisa que ele teria dito se estivesse procurando não encorajá-la.
Alguns momentos depois, ela deixou o estúdio. Bloeckman prometera que ela saberia o resultado do teste dentro dos próximos dias. Demasiado orgulhosa para forçar algum comentário decisivo, sentiu uma incerteza desconcertante, e só agora, depois desse passo, percebeu como a hipótese de uma carreira bem sucedida na tela desempenhara um papel nos bastidores de sua mente, durante os três últimos anos. Naquela noite ela resolveu fazer um balanço consigo mesma dos elementos decisivos, pró ou contra. Teria usado ou não maquiagem demais, se preocupava ela, e como o papel era de uma garota de vinte anos, não teria sido só um pouco séria demais? Quanto à sua atuação, era o que menos a satisfazia. Sua entrada fora abominável - na verdade, só demonstrara um mínimo de desembaraço ao chegar ao telefone - e então o teste acabara. Se eles tivessem apenas entendido! Ela queria poder fazer de novo. Dominou-a um plano maluco de ligar de manhã e pedir um novo teste, que logo passou. Não parecia nem político nem polido pedir mais um favor a Bloeckman.
O terceiro dia de sua espera encontrou-a em um estado altamente nervoso. Mordera a parte interna da boca até feri-la e doer, e ardia intoleravelmente quando ela bochechava com dentifrício. Brigara tanto com Anthony que ele deixara o apartamento em uma fúria contida. Mas como ele se intimidava com a excepcional frieza dela, ligou uma hora depois se desculpando e dizendo que almoçaria no Amsterdam Club, o único de que ainda era membro.
Já passara de uma hora, e ela tomara
café-da-manhã às onze, por isso, resolvendo não almoçar, saiu para uma caminhada no Central Park. Às três horas haveria correspondência. Voltaria às três.
Era uma manhã prematura de primavera. Nos caminhos a água secava e, no Central Park, menininhas empurravam seriamente carrinhos brancos de bonecas sob as árvores esguias; atrás delas vinham duplas entediadas de babás, discutindo entre si os tremendos segredos tão típicos das babás.
Duas horas no seu pequeno relógio de ouro. Ela queria um relógio novo, um de caixa de platina oblonga incrustada de brilhantes - mas custava ainda mais que um casaco de pele de esquilo e, evidentemente, estava agora fora de seu alcance, como tudo mais - a não ser, talvez, que a carta certa estivesse lhe esperando... dentro de mais ou menos uma hora... cinqüenta e oito minutos, para ser exata. Dez minutos para chegar lá, e restavam quarenta e oito... quarenta e sete agora.
As menininhas empurrando gravemente seus carrinhos de bebê pelos caminhos úmidos e ensolarados. As babás tagarelando em duplas sobre seus segredos inescrutáveis. Aqui e ali, alguém meio esfarrapado, sentado em cima de jornais espalhados no banco a secar, sem ligação com a tarde esplêndida, e sim com a neve emporcalhada que dormia exausta nos cantos obscuros, à espera de ser eliminada.
Uma eternidade depois, ao entrar no saguão meio escuro, ela viu o ascensorista da Martinica que estava inconvenientemente em pé à luz do vitral da janela.
- Tem alguma correspondência para nós?
- perguntou.
- Em cima, madame.
O quadro telefônico guinchou de maneira abominável e Gloria esperou que ele atendesse o telefone. Ficou nauseada na subida gemente do elevador - os andares passavam como o lento escoar dos séculos, cada um com seu agouro, sua acusação, sua insinuação. A carta, uma mancha branca leprosa, jazia sobre os azulejos sujos do corredor...

QUERIDA GLORIA
Exibimos o teste ontem à tarde, e o senhor Debris parece ter chegado à conclusão de que precisava de uma mulher mais jovem para o papel que imaginou. Ele disse que a atuação não ficou má, e que havia um pequeno papel secundário de uma viúva muito rica e arrogante que ele achou que você talvez...

Desolada, Gloria levantou os olhos até que seu olhar recaísse sobre o outro lado da área interna. Mas percebeu que não conseguia ver o muro oposto, pois seus olhos cinzas estavam cheios de lágrimas. Foi até o quarto, com a carta amarrotada bem apertada na mão, e se deixou cair de joelhos diante do longo espelho na porta do armário. Era seu vigésimo nono aniversário, e o mundo se dissolvia diante de seus olhos.
Ela tentou achar que fora por causa da maquiagem, mas suas emoções eram demasiado profundas, demasiado esmagadoras para aceitarem o consolo dessa idéia.
Ela se esforçou para ver, até sentir os músculos nas têmporas repuxarem. Sim - as faces se mostravam ligeiramente encovadas, pequenas rugas estriavam os cantos dos olhos. Os olhos estavam diferentes. Sim, estavam diferentes! Então ela percebeu, de repente, como seu olhar estava cansado.
- Ah, meu belo rosto - murmurou ela, sofrendo profundamente. - Ah, meu belo rosto! Ah, eu não quero viver sem meu belo rosto! Ah, o que foi que aconteceu!
Então ela deslizou contra o espelho e, como no teste, se estendeu, com o rosto para baixo, no chão - e ali ficou, chorando. Foi o primeiro movimento deselegante que já fizera.


CAPÍTULO TRÊS
NÃO IMPORTA!

Dentro de mais um ano, Anthony e Gloria tornaram-se como atores que, tendo perdido seus figurinos, ficaram privados do orgulho para prosseguir no tom trágico - por isso quando um dia a senhora e a senhorita Hulme de Kansas City não tomaram conhecimento da presença deles, em uma noite no Plaza, foi apenas porque a senhora e a senhorita Hulme, como a maioria das pessoas, detestavam os reflexos de suas personalidades atávicas.
Seu novo apartamento, pelo qual pagavam 85 dólares por mês, ficava na Claremont Avenue, a dois quarteirões do Hudson, na região sombria das ruas que começavam por cem. Já moravam ali há um mês quando Muriel Kane veio visitá-los em um final de tarde.
Foi em um crepúsculo impecável, no período da primavera mais próximo do verão. Anthony estava deitado no sofá, olhando pela One Hundred and Twenty-seventh Street em direção ao rio, próximo ao qual ele só podia ver uma moita de árvores verde viva que garantia a reles sombra do Riverside Drive. Do outro lado do rio, viam-se os Palisades, coroados pelo esqueleto feio do parque de diversões - e, no entanto, em breve cairia a noite e aquelas mesmas teias de aranha de ferro se tornariam um esplendor contra o céu, um palácio encantado à margem do suave brilho de um canal tropical.
Descobrira Anthony que as ruas perto do apartamento eram ruas onde as crianças brincavam
- ruas um pouco mais agradáveis do que aquelas que ele costumava passar a caminho de Marietta, mas, de modo geral, do mesmo tipo, com um realejo ou órgão de mão ocasionais, onde, no fim da tarde, muitas duplas de jovens garotas caminhavam até a drugstore para comprar ice cream sodas, sonhando sonhos ilimitados sob o céu baixo.
A noite caíra sobre as ruas, agora, e as crianças brincavam, gritando palavras incoerentes, cheias de entusiasmo, que morriam perto das janelas fechadas - e Muriel, que viera procurar Gloria, falava com ele da escuridão opaca do outro lado da sala.
- Você não quer acender a luz? - sugeriu. - Está ficando fantasmagórico aqui dentro.
Com um movimento cansado, ele se levantou e obedeceu; as vidraças cinzas sumiram. Ele espreguiçou-se. Estava mais gordo; sua barriga era um peso morto contra o cinto; suas carnes haviam amolecido e cedido. Ele estava com 32 anos, e sua cabeça era um desastre caótico e melancólico.
- Quer um drinque, Muriel?
- Não, obrigada. Não bebo mais. O que anda fazendo ultimamente, Anthony? - perguntou ela, curiosa.
- Bem, tenho andado muito ocupado com esse processo - respondeu meio indiferente. - Foi para o Tribunal de Recursos; deve ter uma solução, de um modo ou de outro, até o outono. Houve algumas críticas quanto à alçada desse tribunal em relação ao caso.
Muriel fez um estalo com a língua e entortou a cabeça para o lado.
- Puxa vida! Sabe, nunca vi um negócio levar tanto tempo.
- Ah, todos levam - respondeu ele desanimado
-, todos os casos de testamento. Dizem que é fora do comum que qualquer um se resolva com menos de quatro, cinco anos.
- Ah... - Muriel mudou temerariamente de tática. - Por que você não vai trabalhar, vagabundo!
- Em quê? - perguntou ele, abruptamente.
- Ora, em qualquer coisa, suponho. Você ainda é jovem.
- Se isso é um encorajamento, fico muito agradecido - respondeu ele, secamente; e então com um súbito cansaço:
- Isso te incomoda tanto, que eu não queira trabalhar?
- A mim não incomoda não, mas incomoda uma porção de gente que alega que...
- Ah, meu Deus - disse ele, em um tom entrecortado -, parece que há três anos eu só ouço a meu respeito casos ensandecidos e admoestações virtuosas. Já estou cansado disso. Se você não quiser ver a gente, nos deixe em paz. Eu não incomodo meus ex "amigos". E não preciso de visitas de caridade, e de crítica disfarçada de bom conselho. - Em seguida, acrescentou em tom de desculpas: - Desculpe, Muriel, mas você não precisa falar como uma senhora dessas que faz caridade nas favelas, mesmo quando visita a classe média baixa.
Ele voltou seus olhos injetados de sangue para ela com ar de censura; olhos que já haviam sido de um azul-claro profundo e agora eram fracos, cansados e meio estragados por ler embriagado.
- Por que você diz essas coisas horrorosas?
- protestou ela. - Você fala como se você e Gloria fossem da classe média.
- Para que fingir que não somos? Detesto gente que se acha alta aristocracia e não consegue sequer manter as aparências.
- Você acha que as pessoas precisam ter dinheiro para ser aristocratas?
Muriel... a democrata horrorizada!
- Ora, claro. A aristocracia é apenas a aceitação de que determinados traços que achamos valiosos: a coragem, a honra, a beleza e todo esse tipo de coisa, evoluem melhor em um ambiente favorável, em que inexistem as distorções da ignorância e da necessidade.
Muriel mordeu seu lábio inferior e balançou a cabeça de um lado para outro.
- Bem, eu sou apenas da seguinte opinião: se a pessoa já nasce com berço, terá sempre berço. Esse é o problema de você e de Gloria. Acham que só porque as coisas não andam dando certo para vocês agora, todos seus velhos amigos os evitam. São suscetíveis demais.
- Aliás - disse Anthony -, você não entende nada disso. Para mim é só uma questão de orgulho, e Gloria tem o bom senso de concordar comigo: não devemos ir onde não nos querem. E as pessoas não nos querem. Somos demasiadamente os maus exemplos exemplares.
- Besteira! Não me venha ancorar seu pessimismo na minha praia. Acho que você devia esquecer todas essas especulações mórbidas e ir trabalhar.
- Aqui estou eu, com 32 anos. Imagine se eu começar a trabalhar em algum negócio idiota. Talvez em dois anos chegasse a cinqüenta dólares por ano; com sorte. Isso se eu conseguir um emprego; existe desemprego à beça. Bem, imagine que eu ganhe cinqüenta por semana. Acha que eu seria muito mais feliz? Você acha que se eu não conseguir esse dinheiro do meu avô a vida será tolerável!
Muriel sorriu de maneira complacente.
- Olha - disse ela -, isso talvez seja inteligente, mas nada tem de senso comum.
Alguns minutos depois, chegou Gloria, parecendo trazer com ela uma cor qualquer, escura, indefinida e rara, para a sala. De uma maneira taciturna, ficou satisfeita de ver Muriel. Saudou Anthony com um "oi!" casual.
- Estive conversando sobre filosofia com seu marido - exclamou a impossível senhorita Kane.
- Nós abordamos alguns conceitos fundamentais
- disse Anthony, com um ligeiro sorriso a contrair suas faces pálidas, ainda mais pálidas sob a barba de dois dias.
Indiferente à ironia dele, Muriel apresentou sob nova forma a sua argumentação. Depois que o fizera, Gloria disse baixinho:
- Anthony tem razão. Não tem graça freqüentar quando você sente que as pessoas estão te olhando de uma determinada maneira.
Ele interrompeu, queixoso:
- Você não acha que quando até Maury Noble, que era meu melhor amigo, não vem nos ver, já é mais do que hora de parar de procurar as pessoas? - Havia lágrimas nos seus olhos.
- Isso foi culpa sua, em relação a Maury Noble
- disse friamente Gloria.
- Não foi.
- Com certeza foi.
Muriel interveio depressa:
- Encontrei uma garota que conhece Maury Noble, no outro dia, que disse que ele deixou de beber. E está ficando muito ajuizado.
- Parou?
- Praticamente. Está ganhando um montão de dinheiro. Parece que mudou desde a guerra. Vai casar com uma garota de Philadelphia, que é milionária, Ceci Larrabee; pelo menos foi o que disse a Town Tattle.
- Ele tem 33 anos - disse Anthony, pensando alto. - mas é esquisito imaginar que se case. Eu costumava achá-lo brilhante.
- Era - disse Gloria -, de certo modo.
- Mas gente brilhante não se entrosa no mundo dos negócios; ou se entrosa? Ou faz o quê? O que aconteceu com todo mundo que você conhecia e com quem tinha tanto em comum?
- Cada um de vocês foi para um lado diferente
- sugeriu Muriel, com o ar sonhador adequado.
- As pessoas mudam - disse Gloria. - Todas as qualidades que já não se usa no cotidiano voltam a ficar cheias de teias de aranha.
- A última coisa que ele me disse - relembrou Anthony - era que ia trabalhar para esquecer que não havia nada pelo qual valesse a pena trabalhar.
Muriel aproveitou depressa.
- É isso que você devia fazer - exclamou triunfante. - É claro que não acho que a gente vá querer trabalhar de graça. De qualquer maneira, seria uma ocupação. O que vocês fazem, aliás? Ninguém os vê no Montmartre ou em lugar nenhum. Estão economizando?
Gloria riu, desdenhosamente, dando um olhar de relance para Anthony.
- Bem, você está rindo de quê?
- Você sabe de que estou rindo - respondeu ela, com frieza.
- Daquela caixa de uísque?
- Sim - virou-se ela para Muriel -, ele pagou 75 dólares por uma caixa de uísque, ontem.
- E daí, se paguei? É mais barato assim do que comprar a garrafa por unidade. Não precisa fingir que não bebe dele.
- Pelo menos não bebo durante o dia.
- Que bela distinção! - gritou ele, ficando em pé, ligeiramente enraivecido. - E tem mais, não vou deixar que fique jogando isso na minha cara de poucos em poucos minutos.
- Mas é verdade.
- Não é! E estou ficando farto desse negócio de viver me criticando diante das visitas! - Ele ficara em tamanho estado de nervos que seus braços e ombros tremiam visivelmente.
- Parece que tudo é minha culpa. Como se você nunca tivesse me encorajado a gastar dinheiro; e não gastasse muito mais com você mesma do que eu jamais fiz.
Agora foi Gloria quem se levantou.
- Eu não admito que você fale comigo dessa maneira!
- Está bem, então; Santo Deus, você não precisa admitir!
E ele deixou o quarto com certa pressa. As duas mulheres ouviram seus passos no corredor e então a porta da frente bateu. Gloria afundou na sua poltrona. Seu rosto parecia lindo à luz da lâmpada, composto, inescrutável.
- Ah! - exclamou Muriel. - Ah, qual é o problema?
- Nada demais. Ele só está bêbado.
- Bêbado? Olha, está perfeitamente sóbrio.
Falou... Gloria sacudiu a cabeça.
- Ah, ele não aparenta mais, a não ser quando mal consegue ficar em pé, e fala direito até ficar excitado. Fala muito melhor do que quando está sóbrio. Passou o dia inteiro aí, bebendo; exceto pelo tempo que ele levou para ir até a esquina comprar um jornal.
- Ah, que coisa horrível! - Muriel ficou sinceramente comovida. Seus olhos se encheram de lágrimas. - Isso tem acontecido com muita freqüência?
- A bebida, você quer dizer?
- Não, essa coisa de... te deixar?
- Ah, sim. Com freqüência. Ele voltará lá pela meia-noite e vai chorar e pedir que eu o perdoe.
- E você perdoa?
- Não sei. A gente simplesmente continua.
As duas mulheres ficaram ali, sentadas à luz da lâmpada, se entreolhando, cada uma impotente à sua maneira diante daquilo. Gloria ainda era bonita, tão bonita quanto jamais seria - suas faces estavam coradas e ela usava um vestido novo que comprara, imprudentemente, por cinqüenta dólares. Ela esperara convencer Anthony a sair com ela naquela noite, a um restaurante ou até mesmo a um dos magníficos cinemas de luxo onde haveria algumas pessoas que olhariam para ela, e para quem ela agüentasse olhar de volta. Ela queria isso porque sabia que suas faces estavam coradas e porque seu vestido era novo e já estava ficando frágil. Só muito raramente, agora, recebiam algum convite. Mas ela não contou essas coisas a Muriel.
- Gloria, querida, eu gostaria que pudéssemos jantar juntos, mas prometi a um sujeito; e já são sete e meia. Preciso correr.
- Ah, para mim seria impossível, de qualquer maneira. Passei mal o dia inteiro. Não conseguiria comer nada.
Depois de ter acompanhado Muriel à porta, Gloria voltou para a sala, apagou a luz e, apoiando os cotovelos no peitoril da janela, ficou olhando para o Palisades Park, onde o círculo giratório e reluzente da roda gigante era como um espelho trêmulo a captar o reflexo amarelo da lua. A rua estava agora silenciosa; as crianças haviam entrado - dava para ver uma família jantando do outro lado. Despropositada, ridiculamente, eles se levantaram e andaram em volta da mesa; visto assim, tudo que faziam parecia desconexo - era como se estivessem sendo sacudidos de modo absurdo e arbitrário por fios invisíveis que vinham de cima.
Ela consultou o seu relógio - eram oito horas. Tivera alguma satisfação durante uma parte do dia, no início da tarde, quando caminhara por aquela Broadway do Harlem, a One Hundred and Twenty-fifth Street, com as narinas abertas diante dos inúmeros cheiros e a mente excitada pela beleza extraordinária de algumas crianças italianas. Aquilo a afetou curiosamente - do mesmo modo que a Fifth Avenue já a afetara, na época em que, com a plácida segurança da beleza, ela pensara que aquilo tudo lhe pertencia, toda loja com tudo que continha, todo brinquedo de adulto a brilhar em uma vitrina, tudo de graça. Ali na One Hundred and Twenty-fifth Street viam-se bandas do Exército da Salvação e velhas senhoras com xales multicoloridos na soleira das portas, e doces pegajosos e açucarados nas mãos encardidas de crianças de cabelos luzidios
- e o sol do fim da tarde a bater nos lados dos altos cortiços. Tudo muito sazonado, gostoso, picante, como um prato preparado por algum chef francês parcimonioso, impossível de se deixar de gostar, embora sabendo que os ingredientes eram provavelmente sobras.
Gloria estremeceu de repente quando uma sirene vinda do rio gemeu por cima dos telhados escurecidos e, recuando até que as cortinas fantasmagóricas lhe caíssem dos ombros, acendeu a luz. Estava ficando tarde. Ela sabia que tinha uns trocados na bolsa, e ficou pensando se desceria para tomar um café com pãezinhos onde o metrô de superfície fazia de Manhattan Street uma cova retumbante, ou comeria o raio do pão com presunto na cozinha. Sua bolsa decidiu por ela. Continha uma moeda de cinco centavos e duas de um.
Depois de uma hora o silêncio na sala se tornara intolerável e ela percebeu que seu olhar vagava de sua revista para o teto, que fitava sem pensar. De repente, ela se levantou, hesitou por um momento, mordendo o dedo - em seguida foi até a despensa, pegou uma garrafa de uísque da prateleira e serviu uma dose. Completou o copo com ginger ale e, voltando para sua cadeira, acabou de ler um artigo na revista. Era sobre a última viúva da Revolução Americana que, quando garota, se casara com um antigo veterano do exército continental que morrera em 1906. Parecia esquisito e estranhamente romântico que ela e essa mulher tivessem sido contemporâneas.
Ela virou uma página e soube que um candidato ao congresso fora acusado de ateísmo por um oponente. O espanto de Gloria sumiu ao descobrir que a acusação era falsa. O candidato apenas negara o milagre dos pães e dos peixes. Mas admitiu, sob pressão, que acreditava plenamente no passeio sobre as águas.
Depois de acabar seu primeiro drinque, Gloria se serviu de um segundo. Após vestir uma camisola e se acomodar confortavelmente no sofá, deu-se conta do seu sofrer e de que as lágrimas escorriam pelo seu rosto. Pensou que eram lágrimas de pena de si mesma e procurou, firmemente, não chorar, mas aquela existência sem esperança, sem felicidade, a oprimia, e ela não parava de sacudir a cabeça de um lado para outro, com a boca curvada e trêmula nos cantos, como se negasse alguma afirmativa feita por outra pessoa, em outro lugar. Ela não sabia que esse seu gesto era anos mais antigo que a história, que, durante uma centena de gerações humanas, o sofrimento intolerável e constante oferecera aquele gesto de negação, de protesto, de espanto, a algo mais profundo, mais poderoso que o Deus feito à imagem humana, perante o qual este Deus, se existisse, seria igualmente impotente. Eis uma verdade cravada no coração da tragédia: essa força jamais explica, jamais responde; essa força impalpável como o ar, mais decisiva que a morte.

RICHARD CARAMEL

No início do verão, Anthony se retirou de seu derradeiro clube, o Amsterdam. Por último, ele o freqüentava duas vezes por ano, e as mensalidades eram um ônus constante. Ingressara nele no seu retorno da Itália porque fora o clube de seu avô e de seu pai e porque era um clube em que, dada a oportunidade, a gente ingressava sem discutir - mas, para dizer a verdade, ele preferia o Harvard Club, em grande parte por causa de Dick e de Maury. No entanto, com o declínio de sua fortuna, ele parecera uma bugiganga a que valia a pena se agarrar. Foi finalmente sacrificado, com algum pesar.
Seus companheiros perfaziam, agora, uma dúzia curiosa. Vários ele conhecera em um lugar chamado Sammy's, na Fortythird Street, onde, se a gente batesse na porta e fosse admitido por alguém atrás de uma grade, podia sentar em volta de uma grande mesa redonda e beber um uísque razoavelmente bom. Foi lá que ele encontrou um sujeito chamado Parker Allison, que fora exatamente um beberrão do tipo errado em Harvard e que estava dilapidando uma fortuna oriunda de "fermento" o mais rapidamente possível. A idéia que Parker Allison tinha de ser distinto era dirigir um carro de corrida, vermelho, amarelo e barulhento, pela Broadway, com duas garotas resplandecentes e de olhar duro a seu lado. Ele era do tipo que jantava com duas garotas, em vez de uma - sua imaginação era quase incapaz de sustentar um diálogo.
Além de Allison havia Peter Lytell, que usava um chapéu-coco cinza enviesado na cabeça. Sempre tinha dinheiro e era normalmente alegre, por isso Anthony tinha longas conversas fiadas com ele, durante muitas tardes de verão e de outono. Lyttel, descobriu, não apenas falava, mas também raciocinava através de frases. Sua filosofia consistia em uma série delas, assimiladas aqui e ali no decorrer de uma vida ativa e irrefletida. Ele tinha frases sobre o socialismo - as descartáveis; tinha frases sobre a existência de uma divindade pessoal - algo sobre uma ocasião em que fora vítima de um acidente de trem
- e tinha frases sobre a questão irlandesa, sobre o tipo de mulher que ele respeitava e sobre a inutilidade da Proibição. A única vez em que sua conversa superava essas frases confusas, através das quais ele interpretava os acontecimentos mais rococós de uma vida mais que aventurosa, era quando tratava de falar detalhadamente sobre sua existência mais animalesca: sabia fazer distinções sutis sobre as comidas, as bebidas e as mulheres de sua preferência.
Ele era simultaneamente o mais comum e o mais notável produto da civilização. Era igual a nove entre dez pessoas pelas quais passamos na rua - e era um macaco glabro com duas dúzias de artimanhas. Era o herói de mil romances da vida e da arte - e era virtualmente um idiota, desempenhando, de maneira acomodada e absurda, uma série de ações épicas complicadas e infinitamente espantosas nos seus sessenta anos.
Com gente igual a esses dois era que Anthony bebia, discutia, bebia e discutia. Gostava deles porque não sabiam nada a seu respeito, porque viviam na esfera do óbvio e não tinham a mínima noção da inevitável continuidade da vida. Não eram espectadores de um filme com vários rolos consecutivos, mas de um velho e mofado documentário de viagem, com todos os valores prontos e acabados e, portanto, com todas suas implicações confusas. No entanto, eles mesmos não eram confusos, porque não havia nada neles a ser confundido: mudavam de frases todo mês como mudavam de gravatas.
Anthony, o sujeito polido, sutil, perspicaz, ficava bêbado todo dia - no Sammy's com esses homens; no apartamento, lendo um livro, algum livro que conhecia e, muito raramente, com Gloria que, a seus olhos, começara a mostrar inconfundíveis sinais de uma mulher briguenta e injusta. Ela não era mais a Gloria de sempre - com certeza -, a Gloria que, quando doente, preferia fazer todo mundo em volta sofrer do que confessar que precisava de auxílio ou assistência. Ela não estava acima de choramingar, agora; não estava acima de ter pena de si mesma. Toda noite, ao se preparar para dormir, ela untava seu rosto com algum novo ungüento que esperava devolver-lhe inutilmente o brilho e o frescor de sua beleza evanescente. Quando Anthony estava bêbado, implicava com ela a respeito disso. Sóbrio, era delicado e, em certas ocasiões, até carinhoso; parecia demonstrar durante poucas horas vestígios daquele velho espírito compreensivo tão fácil de culpar - aquela qualidade que era a melhor parte dele e a que provocou tão rápida e sistematicamente a sua própria decadência.
Mas ele detestava estar sóbrio. Tornava-o cônscio das pessoas à sua volta, daquele ar de competição, de ambição gulosa, de esperança mais sórdida que o desespero, de incessante mobilidade para cima ou para baixo - mais evidente, em toda metrópole, na instabilidade da classe média. Incapaz de conviver com os muito ricos, pensou que sua próxima opção poderia ser conviver com os muito pobres. Qualquer coisa era melhor do que aquele cálice de suor e lágrimas.
A sensibilidade para o vasto panorama da vida, que nunca fora forte em Anthony, tornara-se fraca a ponto de extinguir-se. A longos intervalos, agora, algum incidente, algum gesto de Gloria caía no seu agrado - porém, véus cinzentos o recobriam definitivamente. À medida que ele envelhecia, essas coisas desbotavam - depois era o vinho.
Havia uma generosidade a respeito da embriaguez
- aquele brilho e encantamento indescritíveis que dela emanavam, como recordações de noites efêmeras e dilapidadas. Depois de alguns high-balls passava a haver uma magia na alta e resplandecente noite das Arábias do prédio do Bush Terminal - com sua parte mais elevada formando um pico dourado de puro esplendor, a sonhar contra o céu inacessível. E Wall Street, aquela banalidade, aquela grosseria - de novo o triunfo do ouro, um esplêndido espetáculo de sensibilidade; onde os grandes reis guardavam o dinheiro para suas guerras...
O fruto da juventude ou da uva, magia fugaz da breve transição entre uma escuridão e outra - a velha ilusão de que a beleza e a verdade estavam, de certo modo, entrelaçadas.
Ao se encontrar diante do Delmonico's acendendo um cigarro, em uma noite, ele viu duas charretes encostadas no meio-fio à espera da eventual corrida de algum bêbado. As charretes antiquadas estavam gastas e sujas - o couro envernizado e cheio de ranhuras, enrugado como o rosto de um velho; as almofadas, desbotadas, cor de lavanda amarronzada; os próprios cavalos eram velhos e cansados, do mesmo modo que os homens de cabelos brancos que se sentavam lá em cima, estalando seus chicotes em um arremedo grotesco de distinção. Uma relíquia da alegria que se fora!
Anthony Patch afastou-se, andando, em um súbito ataque de depressão, pensando na amargura dessas sobrevivências. Não havia nada, parece, que envelhecesse tão rápido quanto o prazer.
Em uma tarde na Forty-second Street, ele encontrou Richard Caramel pela primeira vez em muitos meses; um próspero Richard Caramel, engordando, cujo rosto se arredondava para combinar com a testa de bostoniano.
- Acabei de chegar esta semana da Costa Oeste. Ia procurar você, mas não sabia seu novo endereço.
- Nós mudamos.
Richard reparou que Anthony usava uma camisa suja, que seus punhos estavam ligeira porém visivelmente puídos, que seus olhos estavam engastados em meias-luas da cor de fumaça de charuto.
- Assim soube - disse ele, fixando seu amigo com seus olhos amarelo-claros. - Mas onde e como está Gloria? Deus do céu, Anthony, tenho ouvido as histórias mais descabidas a respeito de vocês dois até lá na Califórnia, e quando volto para Nova York descubro que vocês sumiram absolutamente do mapa. Por que não dão uma volta por cima?
- Agora, olha aqui - asseverou Anthony, meio zonzo. - Eu não agüento longos sermões. A gente perdeu dinheiro de uma dezena de maneiras, e é claro que as pessoas andaram falando, por causa do processo, mas esse negócio vai chegar a uma conclusão neste inverno, com certeza.
- Está falando tão depressa que eu não consigo te compreender - interrompeu, calmamente, Dick.
- Bem, já contei tudo que tinha para contar
- disse Anthony, com rispidez. - Venha nos visitar, se quiser; ou não venha!
Com isso ele se virou e começou a caminhar na multidão, mas Dick ultrapassou-o imediatamente e pegou seu braço.
- Olha, Anthony, não perca as estribeiras tão depressa assim! Você sabe que Gloria é minha prima, e você é um dos meus amigos mais antigos, por isso é natural que eu me interesse quando ouço dizer que você está indo por água abaixo... levando-a junto.
- Não quero pregações para o meu lado.
- Muito bem, então. Que tal vir até meu apartamento e tomar um drinque? Acabei de chegar. Comprei três caixas de Gordon Gin de um funcionário da alfândega.
Ao caminharem, ele prosseguiu em uma explosão exasperada:
- E que houve com o dinheiro de seu avô; você vai ficar com ele?
- Bem - respondeu irritado Anthony -, aquele velho e tolo Haigh parece esperançoso, especialmente porque as pessoas já estão cansadas de reformadores neste exato momento; sabe que pode fazer uma ligeira diferença, por exemplo, se algum juiz achar que Adam Patch dificultou-lhe a aquisição de bebida.
- Você não consegue viver sem dinheiro - disse, judiciosamente, Dick. - Tentou escrever ultimamente?
Anthony sacudiu sua cabeça, calado.
- Engraçado - disse Dick. - Eu sempre achei que você e Maury iam escrever um dia, e agora ele virou uma espécie de aristocrata mão de vaca, e você...
- Eu sou o mau exemplo.
- Fico pensando por quê.
- Você provavelmente acha que sabe - sugeriu Anthony, fazendo um esforço para se concentrar.
- Tanto o fracasso quanto o sucesso acham, no fundo do coração, que seus pontos de vista são equilibrados; o sucesso porque ele é um sucesso, e o fracasso porque fracassou. O sujeito bem sucedido diz a seu filho para aproveitar a sorte de seu pai, e o fracassado diz a seu filho para aproveitar e aprender com os erros de seu pai.
- Não concordo com você - disse o autor de Um segundo tenente na França. Eu costumava dar ouvidos a você e a Maury quando éramos jovens, e ficava impressionado porque vocês eram cínicos tão coerentes, mas agora... Sim, afinal de contas, qual de nós três se dedicou à... vida intelectual? Não quero bancar o vaidoso, mas... fui eu, e sempre acreditei na existência de valores morais, e sempre acreditarei.
- Sim - protestou Anthony, que estava se divertindo um pouco -, mesmo admitindo isso, você sabe que, na prática, a vida nunca apresenta problemas tão claros assim, apresenta?
- Para mim, apresenta. Não há nada que me fizesse transgredir determinados princípios.
- Mas sabe que os transgride? Na prática você precisa adivinhar as coisas, como a maioria das pessoas. Só depois atribui valores à situação, em retrospecto. Então termina o retrato, pinta as sombras e os detalhes.
Dick sacudiu a cabeça com altiva teimosia.
- O mesmo e velho cínico de sempre - disse.
- Isso não passa de uma maneira de sentir pena de você mesmo. Não faz nada; então, nada tem importância.
- Ah, eu sou bem capaz de sentir pena de mim mesmo - confessou Anthony -, nem alego que minha vida esteja tão divertida quanto a sua.
- Você diz, pelo menos costumava dizer, que a felicidade é a única coisa que vale a pena na vida. Você se acha, de algum modo, mais feliz sendo pessimista?
Anthony deu um grunhido selvagem. Seu prazer na conversa começou a definhar. Estava nervoso e doido por um drinque.
- Meu Deus! - gritou ele. - Onde você mora? Eu não posso continuar andando para sempre.
- Sua resistência é apenas mental, é?
- retrucou, asperamente, Dick. - Ora, moro bem aqui.
Ele entrou em um prédio de apartamentos na Forty-ninth Street e, dentro de poucos minutos, eles estavam em uma grande sala nova, com uma lareira aberta e quatro paredes forradas de livros. Um mordomo de cor serviu-os gin rickeys, e uma hora passou polidamente com o suave encolhimento de seus drinques e o fulgor de uma fogueira leve de meio outono.
- As artes são muito antigas - disse Anthony, depois de algum tempo. Alguns copos haviam relaxado a tensão de seus nervos e ele percebeu que podia pensar de novo.
- Que arte?
- Todas. A poesia está morrendo depressa. Será absorvida pela prosa, mais cedo ou mais tarde. Por exemplo, a palavra bonita, a palavra reluzente e colorida e a bela metáfora pertencem agora à prosa. Para chamar atenção, a poesia precisa se esforçar para arranjar a palavra incomum, a palavra áspera, concreta, que nunca tinha sido bonita antes. A beleza, como soma de várias partes belas, alcançou sua apoteose com Swinburne. Não consegue ultrapassar isso, a não ser, talvez, nos romances.
Dick interrompeu-o com impaciência:
- Você sabe que esses romances novos me deixam cansado. Deus do céu! Em todo lugar que vou tem garotas bobinhas que ficam me perguntando se já li This Side of Paradise. Nossas garotas são mesmo assim? Se for verossímil, coisa que não acredito, a próxima geração vai por água abaixo. Estou farto de todo esse realismo ordinário. Acho que existe um espaço para o romantismo na literatura.
Anthony tentou lembrar o que lera recentemente de Richard Caramel. Havia O segundo tenente na França, um romance chamado A Terra dos homens fortes e várias dúzias de contos que eram até piores. Era costume entre os jovens resenhistas inteligentes se referirem a Richard Caramel com um sorriso de desdém. O "senhor" Richard Caramel, chamavam-no. Seu cadáver era arrastado obscenamente em todos os suplementos literários. Era acusado de amealhar uma grande fortuna escrevendo porcarias para o cinema. À medida que a moda literária mudava, ele vinha se tornando quase um sinônimo de autor desprezível.
Enquanto Anthony pensava nisso, Dick levantou-se e parecia hesitar diante de uma confissão.
- Juntei bastante livros - disse, de repente.
- Estou vendo.
- Fiz uma coleção exaustiva de boa literatura americana, antiga e nova. Não quero dizer esse negócio costumeiro de Longfellow-Whittier; na verdade, a maior parte é moderna.
Ele andou até uma das paredes e, percebendo que aquilo era esperado dele, Anthony se levantou e seguiu-o.
- Olhe!
Sob uma etiqueta impressa, Americana, ele exibiu seis longas fileiras de livros, belamente encadernados e, obviamente, escolhidos a dedo.
- E aqui estão os romancistas contemporâneos.
Então Anthony percebeu o trunfo. Enfiados entre Mark Twain e Dreiser havia oito volumes estranhos e intrusos, a obra de Richard Caramel - O amante endiabrado, verdade seja dita... mas também mais sete que eram execráveis, horríveis, sem sinceridade nem graça.
Inadvertidamente, Anthony olhou para o rosto de Dick e flagrou ali uma certa insegurança.
- Botei meus livros aí, é claro - disse Richard Caramel, apressado -, embora um ou dois sejam desiguais; infelizmente acho que escrevi depressa demais quando arranjei o contrato com aquela revista. Mas não acredito em falsa modéstia. É claro que alguns críticos não me deram tanta atenção a partir do momento em que me firmei; mas, afinal de contas, não são os críticos que contam. Não passam de uma carneirada.
Pela primeira vez, há mais tempo do que ele conseguia se lembrar, Anthony sentiu um toque do velho e agradável desdém pelo seu amigo. Richard Caramel prosseguiu:
- Meus editores, sabe, vêm fazendo propaganda de mim como o Thackeray da América; por causa de meu romance de Nova York.
- Sim - conseguiu Anthony reunir forças para dizer -, acho que tem muita coisa aí no que você diz.
Ele sabia que seu desprezo era injusto. Sabia que trocaria de lugar com Dick sem hesitar. Ele mesmo fizera o maior esforço para escrever... paródias. Então - será que alguém irá desacreditar a obra de sua vida tão facilmente assim?
E, naquela noite, enquanto Richard Caramel dava duro no trabalho, errando as teclas e estreitando seus olhos inconfundíveis e cansados, elaborando suas porcarias até aquelas horas tristes em que o fogo se apaga na lareira e a cabeça gira de concentração prolongada - Anthony, execravelmente bêbado, estava estatelado em cima do assento traseiro de um táxi, a caminho do apartamento na Claremont Avenue.

A SURRA

Quando o inverno ia chegando, Anthony foi presa de uma espécie de loucura. Ele acordava de manhã tão nervoso que Gloria podia senti-lo tremendo na cama, antes que pudesse tomar coragem de ir cambaleando até a despensa tomar um drinque. Ele agora ficara intolerável, exceto sob o efeito da bebida e, à medida que parecia decair e se tornar cada vez mais grosseiro, Gloria se retraiu dele de corpo e alma; quando ele passava a noite inteira fora, como fazia várias vezes, ela não só não ficava com pena como sentia um pouco de alívio melancólico. No dia seguinte, ele ficava meio arrependido e comentava, com uma voz áspera e cara de gato que aprontara alguma coisa, que andava bebendo um pouco demais.
Ficava horas a fio sentado na grande poltrona, que fora de seu apartamento original, absorto em uma espécie de estupor - até mesmo seu interesse em ler seus livros prediletos parecia ter sumido e, embora o casal vivesse brigando incessantemente, o único assunto sobre o qual realmente conversavam era o andamento do processo sobre o testamento. O que esperava Gloria, nas profundezas tenebrosas de sua alma, qual o resultado que ela antevia daquela grande doação monetária, era difícil de imaginar. Vinha sendo deformada por seu ambiente em um simulacro grotesco de uma dona de casa. Ela que, até três anos atrás, nunca fizera um café, às vezes chegava a preparar até três refeições por dia. Caminhava bastante durante as tardes e, de noite, lia - livros, revistas, qualquer coisa que encontrasse à mão. Se agora desejava um filho, até do Anthony que buscava sua cama, bêbado como um gambá, nada dizia a respeito nem dava nenhuma mostra ou sinal de interesse por crianças. É duvidoso que ela conseguisse esclarecer alguém sobre o que desejava, ou, de fato, se havia algo a desejar - uma linda mulher solitária, agora com trinta anos, entrincheirada atrás de determinada inibição irremovível, nascida e coetânea com sua beleza.
Uma tarde, quando a neve voltara a ficar enlameada ao longo de Riverside Drive, Gloria, que estivera na mercearia, entrou no apartamento para encontrar Anthony dando passadas na sala, em estado de agudo nervosismo. Os olhos febris que ele voltou para ela estavam estriados por pequeninas linhas vermelhas que a faziam se lembrar de rios em um mapa. Por um instante, teve a impressão de que ele ficara, de repente, positivamente velho.
- Você tem algum dinheiro? - perguntou ele de supetão.
- O quê? O que quer dizer?
- Exatamente o que eu disse. Dinheiro! Dinheiro! Será que você não entende?
Ela não lhe deu nenhuma atenção, passando por ele e indo à despensa para pôr os ovos e o bacon na geladeira. Quando ele exagerava na bebida, seu humor ficava invariavelmente queixoso. Dessa vez ele a seguiu e, de pé na porta da despensa, insistiu na pergunta.
- Você ouviu o que eu disse. Tem algum dinheiro?
Ela virou-se, se afastando da geladeira, encarando-o.
- Ora, Anthony, você deve estar maluco! Sabe que eu não tenho nada a não ser um dólar, em trocados.
Ele deu uma meia volta abrupta e voltou para a sala de estar, onde recomeçou a dar suas passadas. Era evidente que tinha algo importante em mente
- queria, obviamente, que lhe perguntassem qual o problema. Ela foi se reunir a ele um instante depois e soltou seu cabelo. Ela não tinha mais coque, e mudara, no ano passado, de ouro vivo com reflexos ruivos para castanho claro sem brilho. Comprara xampu e pretendia lavá-lo agora: pensara em misturar um frasco de água oxigenada na hora de enxaguar.
- Sim? - Insinuava ela, calada.
- Aquela porcaria de banco! - tiritou ele.
- Tenho minha conta lá há mais de dez anos; dez anos. Bem, parece que eles têm uma regra autoritária qualquer que você precisa ter um saldo maior que quinhentos dólares, senão eles não te querem. Escreveram uma carta uns meses atrás dizendo que meu saldo andava baixo demais. Uma vez dei dois cheques sem fundo, lembra? Naquela noite, no Reisenweber's. Mas cobri-os no dia seguinte. Bem, prometi ao velho Halloran, é o gerente, o guloso Mick, que eu tomaria cuidado. E achei que estava indo bem; mantinha as contas no talão de cheques bem direitinhas. Bem, hoje fui lá descontar um cheque e Malloran veio me dizer que seriam obrigados a cancelar minha conta corrente. Cheques sem fundo demais, disse ele, e eu nunca dei mais de cinco - e isso só por um dia, ou pouco mais, de cada vez. E, Deus do céu! O que você acha que ele disse então?
- O quê?
- Ele disse que já era hora de fazer isso porque eu não tinha nem a porcaria de um centavo em caixa!
- E você não tinha?
- Foi o que ele me disse. Parece que dei um cheque de sessenta dólares àqueles sujeitos da Bedros pela última caixa de uísque; e só tinha 45 na conta. Sim, então os sujeitos da Bedros depositaram quinze dólares na minha conta e sacaram tudo.
Na sua ignorância, Gloria evocou imagens de encarceramento e desmoralização.
- Ah, eles não vão fazer nada - ressegurou-a ele. - Contrabando de bebida é coisa arriscada demais. Vão me mandar uma conta de quinze dólares, que eu pagarei.
- Ah. - Ela refletiu um momento. - Bem, podemos vender outro título.
Ele riu sarcasticamente.
- Ah, sim, sempre é fácil. Quando os poucos títulos que temos que dão alguma renda só valem entre cinqüenta e oitenta centavos por dólar. A gente perde cerca de metade do título toda vez que vendemos.
- Que mais podemos fazer?
- Ah, a gente vende alguma coisa: como sempre. Temos papéis que valem oitenta mil dólares no valor nominal. - Ele riu desagradavelmente de novo.
- Darão cerca de trinta mil no open market.
- Eu nunca confiei naqueles investimentos a dez por cento.
- Pois sim que não! - disse ele. - Você fingiu que desconfiou, para poder me atacar com suas garras no caso de não darem certo, mas quis arriscar tanto quanto eu.
Ela ficou calada um instante, como se refletisse; em seguida:
- Anthony - gritou súbito -, duzentos por mês é pior que nada. Vamos vender todos os títulos e pôr os trinta mil no banco. E se perdermos o processo podemos viver três anos na Itália e depois morrer.
Na sua exaltação falante, ela sentiu um ligeiro rubor de emoção, o primeiro que ela sentia há muitos anos.
- Três anos - repetiu ele, nervosamente -, três anos! Você está maluca. O senhor Haigh vai pegar mais do que isso se perdermos. Acha que ele está trabalhando por caridade?
- Eu me esqueci disso.
- E é chegado o sábado - prosseguiu ele -, e só tenho um dólar e uns trocados, e precisamos viver até segunda-feira, quando poderei ir ao meu corretor. E não há uma bebida em casa - acrescentou, à guisa de uma importante reflexão tardia.
- Não pode ligar para Dick?
- Liguei. Seu empregado disse que ele foi a Princeton para dar uma palestra em um clube literário, ou algo assim. Só volta na segunda.
- Bem, vejamos. Não conhece nenhum amigo que pudesse procurar?
- Tentei com uns dois sujeitos. Não consegui encontrar ninguém em casa. Pena que eu não tenha vendido aquela carta de Keats, como comecei a fazer na semana passada.
- E aqueles seus companheiros de carteado daquele lugar, Sammy?
- Você acha que eu pediria a eles? - A voz dele ressoou com uma integridade horrorizada. Gloria estremeceu. Ele preferia contemplar a angústia prática dela do que sentir a própria pele formigar diante da idéia de pedir um favor inoportuno.
- Pensei em Muriel - sugeriu ele.
- Ela está na Califórnia.
- Bem, e que tal alguns desses sujeitos que fizeram você se divertir tanto enquanto eu estava no exército? Não acha que eles gostariam de te fazer um pequeno favor?
Ela olhou-o desdenhosamente, mas sem fazer comentários.
- E que tal sua velha amiga Rachel, ou Constance Merriam?
- Constance Merriam já morreu há um ano, e eu não pediria a Rachel.
- Sim, e aquele cavalheiro que uma vez queria te ajudar tanto que mal podia se controlar, Bloeckman?
- Ah! - Ele a magoara finalmente, e não era tão obtuso ou displicente para deixar de notar.
- Por que ele não? - insistiu, empedernido.
- Porque... ele não gosta mais de mim - disse ela com dificuldade. E então, como ele não disse nada e ficou apenas olhando-a cinicamente: - Se quiser saber porque, eu digo. Um ano atrás fui procurar Bloeckman, que agora mudou seu nome para Black, e pedi que ele me fizesse entrar para o cinema.
- Foi procurar Bloeckamn?
- Sim.
- Por que não me disse? - perguntou, incrédulo, com o sorriso definhando no seu rosto.
- Porque você provavelmente saíra para beber em algum outro canto. Ele mandou que fizessem um teste comigo e decidiram que, por eu não ser tão jovem, só me cabia um papel secundário.
- Um papel secundário?
- Mulher de trinta, essas coisas. Eu não tinha trinta... nem achava que parecesse ter trinta.
- Ora, ele que se dane! - gritou Anthony, ficando do lado dela violentamente, com uma curiosa perversão da emotividade. - Ora!
- Sim, é por isso que não posso procurá-lo.
- Que insolência! - insistia, nervosamente, Anthony. - A insolência!
- Anthony, isso não importa mais; o problema é que precisamos viver durante o domingo e não temos nada em casa a não ser uma forma de pão, meio quilo de bacon e dois ovos, para o café-da-manhã. - Ela entregou-lhe o conteúdo de sua bolsa. - Aqui estão setenta, oitenta, um dólar e quinze. Com aquilo que você tem, dá cerca de dois e meio, não é? Anthony, dá para sobrevivermos com isso. Podemos comprar um monte de comida; mais do que poderemos comer.
- Não. Preciso de um gole. Estou tão nervoso que fico tremendo. - Um pensamento lhe veio à cabeça.
- Talvez Sammy troque um cheque. E na segunda eu podia correr ao banco com o dinheiro.
- Mas eles encerraram sua conta.
- É verdade, é verdade; eu me esqueci. Vou te dizer o quê: vou até o Sammy's e encontrarei alguém que me empreste algo. Detesto pedir a eles, contudo... - De repente ele estalou os dedos. - Sei o que farei. Vou empenhar meu relógio. Posso arranjar vinte dólares por ele e pegá-lo de volta na segunda, pagando apenas sessenta centavos de juros. Já foi empenhado antes, quando eu estava em Cambridge.
Ele vestira seu sobretudo e, com um breve adeus, começou a descer o corredor em direção à porta da frente.
Gloria se levantou. Ocorreu-lhe de repente aonde ele provavelmente iria primeiro.
- Anthony - chamou ela -, não era melhor você deixar dois dólares comigo? Você só precisa para a passagem.
A porta da frente bateu com força; ele fingira não ouvir. Ela ficou um momento olhando na direção dele; em seguida foi para o banheiro, entre seus trágicos ungüentos, e começou os preparativos para lavar o cabelo.
Lá no Sammy's ele encontrou Parker Allison e Pete Lytell sentados sozinhos em uma mesa, bebendo whisky sours. Era pouco depois das seis horas, e Sammy, ou Samuele Bendiri, conforme fora batizado, varria um monte de guimbas de cigarro e vidro quebrado para um canto.
- Alô, Tony! - gritou Parker Allison para Anthony. Às vezes dirigia-se a ele como Tony, outras vezes como Dan. Para ele todos os Anthonys tinham que navegar sob esses apelidos.
- Sente aí. O que você quer tomar?
No metrô, Anthony contara seu dinheiro e descobrira ter quase quatro dólares. Podia pagar duas rodadas a cinqüenta centavos cada drinque - o que significava que podia tomar seis drinques. Depois iria até a Sixth Avenue e pegaria vinte dólares e um bilhete de empenho, em troca de seu relógio.
- Bem, valentões - disse jovialmente -, como vai a vida bandida?
- Bem boa - respondeu Allison. E piscou para Pete Lytell. - Pena que você é casado. Temos um material muito bom programado para cerca de onze horas. Na saída dos shows. Ah, garoto! Sim senhor, pena que ele seja casado, é ou não é, Pete?
- 'Ma pena.
Às seis e meia, quando completaram as seis rodadas, Anthony descobriu que suas intenções davam asas a seus desejos. Estava alegre e feliz agora
- se divertindo à beça. Pareceu-lhe que o caso recém-narrado por Pete era extraordinária e profundamente engraçado - e concluiu, como fazia todo dia nessa altura, que eles eram "danados de bons sujeitos!", capazes de fazer por ele muito mais do que qualquer outra pessoa conhecida. Os "pregos" ficavam abertos até tarde no sábado à noite, e ele sentiu que se tomasse só mais um drinque, atingiria um esplêndido bem estar cor-de-rosa.
Astutamente, ele meteu a mão nos bolsos do colete, puxou duas moedas de 25 centavos e olhou para eles como se estivesse espantado.
- Poxa, que diabo - protestou em um tom aflito
-, acabei saindo sem minha carteira.
- Precisa de dinheiro? - perguntou, tranqüilamente, Lytell.
- Deixei meu dinheiro em cima da cômoda, em casa. E eu queria pagar outro drinque para vocês.
- Ah, deixa para lá. - Lytell dispensou a sugestão com um aceno de mão depreciativo. - Acho que podemos bancar um bom sujeito para tomar todos os drinques que ele quiser. O que vai querer, o mesmo?
- Deixa eu dizer uma coisa - sugeriu Parker Allison -, e se a gente mandasse Sammy buscar uns sanduíches do outro lado da rua e jantasse aqui?
Os outros dois concordaram.
- Boa idéia.
- Ei, Sammy, pode fazer um negócio para a gente?
Logo depois das nove horas, Anthony se levantou de maneira instável e, desejando a eles uma boa noite pastosa, cambaleou até a porta, dando a Sammy uma de suas duas moedas de 25 centavos, ao passar. Uma vez na rua, hesitou, inseguro, e então começou a andar na direção da Sixth Avenue, onde se lembrou de ter passado várias vezes por "pregos". Passou por duas bancas de jornal e duas drogarias - e então percebeu estar diante do lugar que buscava, que estava fechado e trancado. Impassível, prosseguiu; outro, a meio quarteirão de distância, também estava fechado; como também mais dois do outro lado da rua, e um quinto na praça abaixo. Ao ver uma luz fraca no último, começou a bater na porta de vidro; desistiu apenas quando um guarda apareceu no fundo da loja e lhe fez um gesto zangado para que fosse embora. Com um crescente desânimo, uma crescente confusão mental, ele atravessou a rua e caminhou de volta para a Forty-third. Na esquina perto do Sammy's, parou hesitante - se voltasse para o apartamento, conforme achava que seu corpo pedia, ficaria vulnerável a uma terrível censura; e, no entanto, agora que os "pregos" estavam fechados, ele não fazia idéia de onde arranjar o dinheiro. Resolveu finalmente pedir a Parker Allison, contudo
- aproximou-se do Sammy's só para se dar conta da porta trancada e das luzes apagadas. Consultou seu relógio: nove e meia. Começou a andar.
Dez minutos depois, parou a esmo na esquina de Fortythird Street e Madison Avenue, do outro lado, em diagonal com a entrada iluminada, porém quase deserta, do Biltmore Hotel. Ali ficou um momento, e, em seguida, sentou-se em uma tábua úmida entre o entulho de alguma construção. Descansou ali quase meia hora, com a mente formando um padrão movediço de pensamentos superficiais, sendo que o principal era que ele precisava arranjar dinheiro e ir para casa antes que ficasse demasiado embriagado para encontrar o caminho.
Então, ao olhar em direção ao Biltmore, viu um sujeito em pé, bem embaixo do brilho das luminárias porte-cochère, ao lado de uma mulher em um casaco de pele de arminho. Continuou olhando, o casal se adiantou e fez sinal para um táxi. Anthony percebeu, pelos traços identificadores infalíveis do andar de um amigo, que se tratava de Maury Noble.
Ficou de pé.
- Maury! - gritou.
Maury olhou na sua direção, em seguida para a moça, bem na hora em que o táxi encostou. Com a idéia caótica de pegar dez dólares emprestados, Anthony começou a correr o mais rápido possível, atravessando a Madison Avenue e percorrendo a
Forty-third Street.
Ao chegar, Maury estava ao lado da porta escancarada do táxi. Sua acompanhante virou-se e olhou curiosa para Anthony.
- Olá, Maury! - disse ele, estendendo a mão.
- Como vai?
- Bem, obrigado.
Deixaram cair as mãos e Anthony hesitou. Maury não fez menção de apresentá-lo, apenas ficou ali, olhando para ele com um silêncio felino inescrutável.
- Eu queria te ver... - começou, inseguro, Anthony. Ele não se achava capaz de pedir um empréstimo com a moça a pouco mais de um metro de distância, por isso interrompeu sua fala e fez um gesto com a cabeça como se pedisse a Maury para chegar para o lado.
- Estou um pouco com pressa, Anthony.
- Eu sei... mas será que você pode, pode...
- Novamente hesitou.
- Eu te vejo em outra ocasião qualquer - disse Maury.
- É importante.
- Sinto muito, Anthony.
Antes que Anthony pudesse se decidir a desabafar e fazer seu pedido, Maury se virara friamente para a moça, ajudara-a a entrar no carro e, com um polido boa noite, seguira-a. Ao fazer um meneio com a cabeça da janela do carro, a Anthony pareceu que sua expressão não mudara o mínimo. Em seguida, com uma barulheira mal-humorada, o táxi partiu, e Anthony foi deixado ali, sozinho, sob as luzes.
Anthony entrou no Biltmore, por nenhum motivo especial, a não ser pela disponibilidade da entrada, e, subindo a larga escada, encontrou um assento em um recesso. Tinha uma consciência furiosa de haver sido desprezado; estava tão magoado e tão zangado quanto lhe era possível ficar, naquele estado. Ainda assim, sentia uma preocupação obstinada em arranjar algum dinheiro antes de ir para casa, e, mais uma vez, contou nos dedos os conhecidos que poderiam lhe valer nessa emergência. Pensou, finalmente, em talvez procurar o senhor Howland, seu corretor, em casa.
Depois de uma grande espera, descobriu que o senhor Howland saíra. Ele voltou à telefonista, encostando-se no seu balcão e manuseando sua moeda de centavos, como se estivesse relutante em partir frustrado.
- Ligue para o senhor Bloeckman - disse ele, de repente. Suas próprias palavras o espantaram. O nome lhe viera do cruzamento de duas sugestões na sua cabeça.
- Qual o número, por favor?
Mal tendo consciência do que fazia, Anthony procurou por Joseph Bloeckman no catálogo de telefones. Não conseguiu encontrar nenhuma pessoa assim, e estava prestes a fechar o catálogo quando teve um lampejo na sua mente de que Gloria mencionara uma mudança de nome. Foi questão de um minuto achar Joseph Black - em seguida ele esperou na cabine até que a telefonista central discasse o número.
- Alô-ô. O senhor Bloeckman... quero dizer, o senhor Black está?
- Não, ele saiu esta noite. Quer deixar algum recado?
- O sotaque era cockney; lembrou-o das extravagantes deferências verbais de Bounds.
- Onde está?
- Por que, hum, quem é, por favor?
- É o senhor Patch. Assunto de importância vi'al.
- Sim, ele está numa festa no Boul' Mich', senhor.
- Obrigado.
Anthony pegou seu troco de cinco centavos e partiu para o Boul' Mich', um dancing popular em Forty-fifth Street. Eram quase dez horas, mas as ruas estavam escuras e quase desertas, até que os teatros fizessem sua desova uma hora depois. Anthony conhecia o Boul' Mich' porque lá estivera com Gloria no ano anterior, e ele se lembrou da regra de que os fregueses deviam estar vestidos para a noite. Bem, ele não subiria - mandaria um mensageiro buscar Bloeckman e esperaria por ele no saguão inferior. Por um momento, ele não teve dúvida de que todo o plano fosse perfeitamente natural e educado. Na sua imaginação distorcida, Bloeckman se tornara, simplesmente, um de seus velhos amigos.
O saguão de entrada do Boul' Mich' estava quente. Havia altas luminárias amarelas em cima de um grosso tapete verde, de cujo centro se erguia uma escada branca que levava à pista de dança.
Anthony falou com um boy no saguão.
- Preciso ver o senhor Bloeckman... o senhor Black - disse ele.
- Ele está lá em cima.
- Mande um mensageiro.
O boy sacudiu a cabeça.
- É contra o regulamento mandar um mensageiro. Sabe em que mesa ele está?
- Não. Mas preciso vê-lo.
- Espere, que vou chamar um garçom.
Depois de um intervalo, surgiu um maítre, com um cartão do registro das reservas de mesas. Ele deu um cínico olhar de relance para Anthony que, no entanto, não alcançou seu objetivo. Juntos, inclinaram-se sobre o cartão e acharam a mesa sem dificuldade - um grupo de oito, do próprio senhor Black.
- Diga a ele que é o senhor Patch. Muito, muito importante.
Novamente esperou, encostado na balaustrada, ouvindo as harmonias confusas de Jazz-mad que flutuavam escada abaixo. Uma garota cantava, da entrada:

Lá no - sanatório remelexo
Moram os jazzmalucos.
Lá no - sanatório remelexo
Deixei minha noiva arrevesada.
Tanto sacudiu que endoideceu,
Melhor saracotear, pobre coitada.

Então ele viu Bloeckman descendo a escada e deu um passo a frente para encontrá-lo e apertar as mãos.
- Você queria me ver? - disse, friamente, o homem mais velho.
- Sim - respondeu Anthony, com um gesto de cabeça -, um assunto pessoal. Pode vir até aqui?
Olhando-o estreitamente, Bloeckman seguiu Anthony até uma meia curva na escada, onde estavam a salvo da observação ou dos ouvidos de quem estivesse entrando ou saindo do restaurante.
- Sim? - indagou ele.
- Queria falar com você.
- Sobre o quê?
Anthony apenas riu - uma risada tola; seu intento era que ela fosse casual.
- Sobre o que deseja falar comigo? - repetiu Bloeckman.
- Qual a pressa, meu velho? - Ele tentou pôr a mão amigavelmente no ombro de Bloeckman, mas este recuou ligeiramente. - Como é que vai?
- Muito bem, obrigado... Olha aqui, senhor Patch, estou com um grupo lá em cima. Acharão uma grosseria se me afastar por muito tempo. Sobre o que queria me ver?
Pela segunda vez, naquela noite, a cabeça de Anthony deu um salto abrupto, e ele disse algo que não pretendia absolutamente dizer.
- Fique' saben'o que você excluiu minha mulher do cinema.
- O quê? - O rosto róseo de Bloeckman escureceu em planos paralelos de sombra.
- Você me ouviu.
- Olha aqui, senhor Patch - disse Bloeckman, tranqüilamente e sem mudar sua expressão -, você está bêbado. Ultrajante e revoltantemente bêbado.
- Não tão bêbado que não possa falar com você
- insistiu Anthony, com um olhar malicioso.
- Primeiro lugar, minha mulher não quer nada contigo. Nunca quis. Está compreendendo?
- Cale a boca! - disse o homem mais velho, zangado. - Era de se esperar que você tivesse um mínimo de respeito por sua mulher para não metê-la nessa conversa e nessa situação.
- Não importa como eu respeito minh'mulher. Olha só: deix'ela em paz. Vá pro inferno!
- Olha aqui, acho que você está meio maluco!
- exclamou Bloeckman. E deu dois passos adiante, como se fosse passar, mas Anthony se pôs no seu caminho.
- Pêra aí, seu judeu desgraçado.
Por um instante ficaram se entreolhando. Anthony balouçando ligeiramente para os lados, Bloeckman quase trêmulo de fúria.
- Cuidado com o que você fala! - gritou ele, em uma voz tensa.
Anthony poderia ter lembrado então um determinado olhar que Bloeckman lhe dera no Biltmore Hotel, anos atrás. Mas não lembrou de nada, nada.
- Pois digo de novo. Seu...
Então Bloeckman desferiu o golpe, com toda a força do braço de um sujeito de 45 anos, em boa forma; desferiu e pegou Anthony bem na boca. Anthony desmoronou contra a escada, se recuperou e deu um cruzado desvairado, de bêbado, contra seu adversário, mas Bloeckman, que fazia exercício todo dia e conhecia um pouco de boxe, defendeu com facilidade e golpeou-o duas vezes na cara com dois diretos rápidos e demolidores. Anthony deu um pequeno gemido e desabou sobre o tapete felpudo verde, percebendo, ao cair, que sua boca estava cheia de sangue e estranhamente solta na frente. Ele se esforçou para levantar, cuspindo, ofegante, e então, ao se atirar contra Bloeckman, distante um metro e pouco, de punhos fechados, porém não erguidos, dois garçons, surgidos do nada, seguraram seus braços e o imobilizaram. Atrás deles, meia dúzia de pessoas se juntara como por milagre.
- Eu mato ele - gritava Anthony, se debatendo e fazendo força para os lados. - Deixa que eu mato...
- Ponham ele para fora - ordenou, nervoso, Bloeckman, no momento em que um sujeito baixo, com a cara marcada, abriu caminho, apressado, entre os espectadores.
- Algum problema, senhor Black?
- Este vagabundo tentou me chantagear! - disse Bloeckman, e então, com a voz subindo até um tom ligeiramente esganiçado de orgulho: - Mas recebeu sua lição!
O sujeitinho virou-se para um garçom. - Chame a polícia! - mandou.
- Ah, não - disse rápido Bloeckman. - Não vale a pena. Basta jogá-lo na rua... Ugh! Que afronta!
- Ele se virou e, com dignidade acintosa, foi caminhando até o banheiro enquanto seis mãos poderosas agarraram Anthony e o arrastaram até a porta. O "vagabundo" foi arremessado violentamente na calçada, onde aterrissou de quatro, com um baralho grotesco parecendo um tabefe, rolando lentamente até ficar de lado.
O impacto deixou-o atordoado. Ficou ali deitado, por um momento, sentindo uma dor aguda, espalhada. Em seguida, o desconforto se concentrou na sua barriga, e ele voltou a si para descobrir que um pé grande o cutucava.
- Vá circulando, seu vagabundo! Saia daqui!
Era o porteiro corpulento que falava. Uma "baratinha" parara junto ao meio fio e seus ocupantes queriam descer isto é, duas mulheres estavam em pé no estribo, esperando, com uma delicadeza ofendida, que aquele empecilho fosse removido da passagem.
- Vá embora! Senão eu te jogo fora!
- Espere... vou pegá-lo.
Aquela era uma nova voz; Anthony imaginou-a um tanto mais tolerante, melhor intencionada do que a primeira. Novamente havia braços a seu redor, meio levantando, meio arrastando-o para uma sombra acolhedora quatro portas rua abaixo, e encostando-o contra a fachada de pedra de uma loja de chapéus.
- Muito agradecido - murmurou debilmente Anthony. Alguém enfiou seu chapéu macio na sua cabeça, e ele estremeceu.
- Fique aí sentado quieto, amigo, que se sentirá melhor. Aqueles caras certamente te deram uma sacudida.
- Vou voltar e matar aquele filho... - Ele tentou se levantar, mas desabou para trás, contra a parede.
- Você não pode fazer nada agora - surgiu a voz. - Vá pegá-los uma outra vez. Estou sendo sincero contigo, não é? Estou te ajudando.
Anthony confirmou com a cabeça.
- E é melhor ir para casa. Você cuspiu um dente hoje, amigo. Está sabendo?
Anthony explorou a boca com a língua, para verificar a afirmação. Em seguida fez um esforço, ergueu a mão e localizou a falha.
- Vou te levar para casa, amigo. Onde você mora?
- Ah, meu Deus! Meu Deus! - interrompeu Anthony, fechando os punhos com paixão. - Eu vou mostrar para essa turma imunda. Me ajude a mostrar para eles que depois eu acerto contigo. Meu avô é Adam Patch, de Tarrytown...
- Quem?
- Adam Patch, por amor de Deus!
- Você quer ir essa distância toda até Tarrytown?
- Não.
- Então me diga para onde, meu amigo, que vou arranjar um táxi.
Anthony percebeu que o seu Samaritano era um indivíduo baixo, de ombros largos, mais gasto que outra coisa.
- Onde você mora, hein?
Mesmo bêbado e traumatizado como estava, Anthony sentiu que seu endereço seria um mau adendo à vantagem extravagante que contara sobre seu avô.
- Me arranje um táxi - ordenou, enfiando as mãos nos bolsos.
Chegou um táxi. Novamente Anthony procurou se levantar, mas seu tornozelo falseou, como se estivesse separado em dois. O Samaritano precisou ajudá-lo e entrar também no carro.
- Olha aqui, camarada - disse ele -, você está de porre e estourado; não vai conseguir entrar em casa se alguém não te carregar, por isso vou te acompanhar, e sei que comigo tudo vai dar certo. Onde você mora?
Relutante, Anthony deu seu endereço. Então, quando o táxi saiu, ele encostou a cabeça do ombro do sujeito e caiu em um torpor sombrio e doloroso. Quando acordou, o sujeito o carregara para fora do táxi, diante do apartamento na Claremont Avenue, e tentava botá-lo de pé.
- Você consegue andar?
- Sim, mais ou menos. É melhor você não vir comigo. - De novo tateou infrutiferamente em seus bolsos. - Olha prosseguiu em tom de desculpa, balançando perigosamente, em pé -, sinto muito, mas não tenho um tostão.
- Ehn?
- Estou duro.
- Não diga-a-a! Eu não te ouvi dizer que ia acertar isso comigo? Quem vai pagar a corrida do táxi? - E ele se virou para o motorista, buscando uma confirmação. - Você não o ouviu dizer que ia acertar? Aquele negócio todo sobre seu avô?
- Aliás - murmurou Anthony, imprudentemente -, foi você que não parou de falar; no entanto, se vier aqui amanhã...
Nesta altura, o motorista de táxi botou a cabeça na janela e disse ferozmente.
- Ah, dê um pau nesse vagabundo descarado. Se não fosse vagabundo, eles não o teriam jogado na rua.
Como reação a esse estímulo, o punho do Samaritano partiu como um aríete e fez Anthony desabar sobre os degraus de pedra do prédio de apartamentos, onde ficou, imóvel, com os altos prédios a balançarem sobre ele.
Depois de algum tempo, ele veio a si e se deu conta que esfriara muito. Tentou se mexer, mas seus músculos se recusavam a funcionar. Sentiu uma estranha curiosidade de saber as horas, mas foi pegar o relógio e encontrou seu bolso vazio. Involuntariamente, seus lábios deram forma a uma frase inesquecível:
- Que noite!
De modo bem estranho, ficou quase sóbrio. Mantendo a cabeça imóvel, olhou para cima, onde a lua estava ancorada no meio do céu, vertendo luz sobre Claremont Avenue como se assim o fizesse até o fundo de algum desconhecido abismo. Não havia ruído nem sinal de vida, a não ser pelo zumbido ininterrupto nos seus próprios ouvidos, mas depois de um instante o próprio Anthony quebrou o silêncio com um estranho murmúrio. Era o som que ele tentara fazer persistentemente no Boup' Mich', quando estivera cara a cara com Bloeckman - o som inconfundível do riso irônico. E, nos seus lábios lacerados e sanguinolentos, era como um vômito lamentável da alma.
Três semanas depois, o julgamento chegou ao fim. Os meandros burocráticos, aparentemente intermináveis, depois de percorridos por um período de mais de quatro anos e meio, de repente terminaram. Anthony e Gloria, de um lado, Edward Shuttleworth e um pelotão de beneficiados, de outro, testemunharam, mentiram e prevaricaram em diversos graus de ambição e desespero. Anthony acordou, em uma manhã de março, ciente de que o veredicto seria dado às quatro naquela tarde e, pensando nisso, levantou da cama e começou a se vestir. Misturava-se ao seu extremo nervosismo um otimismo injustificado quanto ao resultado. Ele acreditava que a sentença do tribunal inferior seria revogada, ao menos devido ao recente movimento, por conta dos excessos da proibição, contra reformas e reformadores. Ele confiava mais nos ataques pessoais que haviam desferido contra Shuttleworth do que nos aspectos mais puramente legais do processo.
Vestido, serviu-se de um uísque e, em seguida, foi até o quarto de Gloria, onde a encontrou já bem acordada. Ela estivera de cama uma semana, por capricho próprio, imaginou Anthony, embora o médico dissesse que era melhor não incomodá-la.
- Bom dia - murmurou ela, sem sorrir. Seus olhos pareciam extraordinariamente grandes e escuros.
- Como se sente? - perguntou ele, meio rancorosamente. - Melhor?
- Sim.
- Muito?
- Sim.
- Já se sente bastante bem para me acompanhar ao tribunal esta tarde?
Ela aquiesceu com a cabeça.
- Sim. Quero. Dick me disse ontem que se o tempo estivesse bom ele viria no seu carro para darmos uma volta no Central Park; e olha só, o quarto está cheio de sol.
Anthony olhou mecanicamente pela janela e então sentou na cama.
- Meu Deus, como estou nervoso! - exclamou.
- Por favor, não sente aí - disse ela, rápido.
- Por que não?
- Você cheira a uísque. Não consigo tolerar.
Ele se levantou distraído e saiu do quarto. Um pouco depois ela o chamou, e ele foi buscar um pouco de salada de batata e frango frio na delicatessen.
Às duas horas, o carro de Richard Caramel chegou na porta e, quando ele se intercomunicou, Anthony desceu com Gloria no elevador e caminhou com ela até o meio fio.
Ela disse a seu primo que era muito simpático da parte dele levá-la para dar um passeio.
- Não seja boba - respondeu ele, aparentando diminuir o elogio. - Não é nada.
Mas ele não quis dizer que não era nada, e era uma coisa curiosa. Richard Caramel já perdoara muitos ultrajes de muita gente. Mas nunca perdoara sua prima, Gloria Gilbert, por uma afirmativa que ela fizera logo antes de seu casamento, sete anos atrás. Ela dissera que não pretendia ler o livro dele.
Richard Caramel se lembrou disso; vinha lembrando-o durante uns bons sete anos.
- A que horas você deve voltar? - perguntou Anthony.
- Não vamos voltar. A gente te encontra lá, às quatro.
- Está bem - murmurou ele -, a gente se encontra.
Lá em cima, ele encontrou uma carta à sua espera. Era uma mensagem mimeografada instando os "rapazes", em linguagem coloquial e condescendente, a contribuir com as anuidades da Legião Americana. Ele jogou-a, impacientemente, na cesta do lixo, e sentou-se com os cotovelos na soleira da janela, olhando, meio ofuscado, a rua ensolarada.
A Itália - se a sentença fosse favorável a eles, isso queria dizer a Itália. Essa palavra tornara-se uma espécie de fetiche para ele, país onde as angústias intoleráveis da vida cairiam por terra como uma velha vestimenta. Iriam primeiro às fontes e, entre a multidão alegre e colorida, esqueceriam os tristes apanágios do desespero. Maravilhosamente renovado, ele caminharia de novo pela Piazza di Spagna, ao crepúsculo, navegando entre aqueles destroços flutuantes de mulheres morenas e mendigos em farrapos, de frades austeros e descalços. A idéia das italianas o excitou ligeiramente - quando sua bolsa pendesse, novamente cheia, até mesmo as aventuras talvez voltassem a pousar suas asas sobre ele; como o romantismo dos canais azuis de Veneza, das colinas verde e douradas de Fiesole, depois da chuva, e das mulheres, mulheres que se transformavam, se dissolviam, se fundiam em outras mulheres e fugiam da vida, mas sempre jovens e sempre belas.
Mas pareceu-lhe que sua atitude devia mudar. Toda angústia que sentira, o sofrimento e a dor haviam sido por causa das mulheres. Era algo que, de modos diversos, elas lhe causavam, inconscientemente, quase por acaso - talvez o achando sensível e amedrontado, elas matassem nele as coisas que ameaçavam seu domínio absoluto.
Recuando da janela, ele se defrontou com seu reflexo no espelho, contemplando desanimado o rosto triste e pálido, os olhos com sua trama rendada que parecia fios secos de sangue, a figura frouxa e recurvada, cujo próprio arquejamento era um testemunho de sua letargia. Ele estava com 33 anos
- pareciam quarenta. Bem, as coisas mudariam.
A campainha da porta tocou, abruptamente, e ele estremeceu como se tivesse sido golpeado. Recuperando-se, foi até a entrada e abriu a porta da frente. Era Dot.

O ENCONTRO

Ele recuou diante dela até a sala de estar, compreendo apenas uma palavra aqui e ali da enxurrada de frases que jorrava dela sem parar, uma após a outra, em um interminável monocórdio. Ela estava vestida de uma maneira pobre, porém decente
- um chapeuzinho um tanto lamentável, decorado com flores rosas e azuis, cobria e escondia seu cabelo escuro. Ele distinguiu, por suas palavras, que ela lera, uns dias atrás, no jornal, uma nota referente ao processo, e que obtivera o endereço dele de um escrivão do Tribunal de Recursos. Ela ligara para o apartamento e uma mulher, a quem ela recusara se identificar, dissera que Anthony saíra. Na sala, ele se deixou ficar ao lado da porta, olhando-a com uma espécie de horror estupefato enquanto ela falava sem parar. Dominou-o a sensação de que toda a civilização e convenção em torno dele haviam curiosamente deixado de ser reais. Ela estava em uma loja de chapéus na Sixth Avenue, disse. Era uma vida de solidão. Estivera muito tempo doente depois que ele partira para Camp Mills; sua mãe a buscara e levara-a de novo para casa, na Carolina. Ela viera para Nova York com a idéia de encontrar Anthony.
Ela se levava pavorosamente à sério. Seus olhos violetas estavam vermelhos de chorar; sua entonação suave era entrecortada por pequenos soluços ofegantes.
Aquilo era tudo. Ela nunca mudara. Queria-o agora, e se não pudesse tê-lo, era preferível morrer.
- Você precisa ir embora - disse ele, finalmente, falando com uma intensidade tortuosa.
- Será que já não tenho coisas demais para me preocupar agora, sem que você venha aqui? Meu Deus do céu! Você tem que ir embora!
Aos soluços, ela sentou-se em uma cadeira.
- Eu te amo - gritou ela; - não importa o que você me diga! Eu te amo.
- Pouco me importa! - quase berrou ele - Vá embora; ah, vá embora! Será que você já não me prejudicou bastante? Já não fez bastante?
- Me bate! - implorou ela, descontrolada, burramente. - Ah, me bate, que beijarei a mão que me bater!
A voz dele se alteou, chegando quase a um grito agudo.
- Eu te mato! - gritava. - Se você não for embora, eu te mato, eu te mato!
Havia uma loucura no seu olhar agora, mas, sem se intimidar, Dot levantou e deu um passo na sua direção.
- Anthony! Anthony!
Ele fez um pequeno estalo com os dentes e recuou como se fizesse menção de pular em cima dela - em seguida, mudando de idéia, procurou descontrolado alguma coisa no chão e na parede.
- Eu te mato! - murmurava ele, em breves, entrecortados arquejos. - Eu te mato! - Ele parecia morder as palavras para obrigá-las a se materializar. Enfim alarmada, ela não avançou mais e, encontrando o olhar frenético dele, recuou um passo em direção à porta. Anthony começou a correr para lá e para cá do seu lado da sala, ainda a dar seu grito único de imprecação. Então achou o que procurava - uma cadeira dura de carvalho, ao lado da mesa. Proferindo um grito áspero e ferido,
agarrou-a, levantou-a acima de sua cabeça e arremessou-a com toda a força de sua ira na cara branca e amedrontada do outro lado da sala. Então, uma densa e impenetrável escuridão baixou sobre ele, apagando simultaneamente o pensamento, a raiva e a loucura - e, com um barulho quase tangível de coisa quebrando, a face do mundo mudou diante de seus olhos.
Gloria e Dick chegaram às cinco e chamaram-no pelo nome. Não houve resposta - foram até a sala de estar e encontraram uma cadeira com o encosto arrebentado, na soleira da porta, e notaram que em toda a sala havia uma espécie de desordem - os tapetes estavam fora de lugar, os retratos e o bricabraque no centro da mesa, desarrumados. O ar tinha a doçura enjoativa de perfume barato.
Encontraram Anthony sentado em uma mancha de sol, no chão de seu quarto. Diante dele, abertos, estavam seus três álbuns de selos e, quando entraram, ele passava a mão entre uma grande pilha de selos que despejara da parte de trás de um deles. Ao levantar os olhos e ver Dick e Gloria, ele inclinou criticamente sua cabeça de lado e fez um gesto para que recuassem.
- Anthony! - gritou Gloria, tensa. - Nós ganhamos. Revogaram a sentença!
- Não entrem - murmurou ele de modo cansado
-, vocês vão desarrumá-los. Estou separando-os e sei que vocês vão pisar neles. Tudo acaba sempre desarrumado.
- O que está fazendo? - perguntou Dick, espantado.
- Voltando à infância? Não percebe que ganhamos o processo? Eles revogaram a sentença do tribunal inferior. Você vale trinta milhões!
Anthony apenas olhou-o, com censura.
- Feche a porta quando sair. - Falava como uma criança esperta.
Com um vago horror a se acender no seu olhar, Gloria olhou para ele.
- Anthony! - exclamou. - O que é? Qual o problema? Por que não foi? Por que, o que houve?
- Olha aqui - disse Anthony baixinho -, saiam os dois, agora; os dois. Senão vou contar para o meu avô.
Ele ergueu na mão um punhado de selos e deixou que caíssem em volta dele como folhas, variegadas, alegres, girando e adejando, vistosos, sobre o ar ensolarado: selos da Inglaterra, do Equador, Espanha, Venezuela - Itália.

COM OS PARDAIS

Aquela extraordinária ironia celeste que já registrou o fim de tantas gerações de pardais certamente registra as mais sutis inflexões verbais dos passageiros de navios como The Berengaria. E, sem dúvida, escutava, quando o rapaz de boné de xadrez de lã atravessou depressa o convés e falou para a moça bonita, de amarelo.
- Aquele lá é ele - disse, apontando para uma figura toda embrulhada, sentada em uma cadeira de rodas perto da amurada. - É Anthony Patch. É a primeira vez que vem ao convés.
- Ah, é ele?
- Sim. Andou meio maluco, dizem, desde que recebeu seu dinheiro, quatro ou cinco meses atrás. Sabe, o outro sujeito, Shuttleworth, o tipo religioso, o sujeito que não ficou com o dinheiro, se trancou em um quarto de hotel e se matou com um tiro.
- Ah, foi?
- Mas acho que Anthony Patch não ligou muito. Conseguiu seus trinta milhões. E trouxe seu médico particular com ele, no caso de não se sentir muito bem com isso. - Ela já esteve no convés? - perguntou ele.
A moça bonita de amarelo olhou em volta, com cuidado.
- Ela estava aqui há um minuto. Vestia um casaco de pele de zibelina russa que deve ter custado uma pequena fortuna. - Ela franziu o cenho e então acrescentou, incisivamente: - não a tolero, sabe. Dá a impressão de ser meio tingida e suja, se é que você me entende. Tem pessoas que têm essa aparência, a despeito de serem ou não serem.
- Certo, eu sei - concordou o sujeito de boné xadrez de lã. - Apesar de ela não ser feia. - Fez uma pausa. - Imagina o que ele deve estar pensando; no seu dinheiro, aposto, ou talvez sinta remorso por causa daquele sujeito, Shuttleworth.
- Provavelmente.
Mas o sujeito de boné estava totalmente enganado. Anthony Patch, sentado perto da amurada e olhando o mar, não pensava no seu dinheiro, pois raramente na vida tivera uma verdadeira preocupação com a ostentação de riqueza; nem em Edward Shuttleworth, porque é melhor encarar essas coisas pelo seu lado mais alegre. Não - preocupava-se com uma série de reminiscências, tal como um general a rememorar uma campanha vitoriosa, analisando suas vitórias. Pensava nas dificuldades, nos insuportáveis sofrimentos pelos quais passara. Tentaram penalizá-lo pelos erros de sua juventude. Fora exposto a uma implacável miséria, sua própria sede de romantismo fora punida, seus amigos o haviam abandonado - até Gloria se voltara contra ele. Ficara sozinho, sozinho - enfrentando tudo isso.
Apenas poucos meses antes, as pessoas insistiam para que ele desistisse, se submetesse à mediocridade, fosse trabalhar. Mas ele sabia que tinha razão quanto ao seu estilo de vida - e resistira bravamente. Vejam, seus próprios amigos, os que haviam sido mais cruéis, acabaram respeitando-o, reconhecendo que ele tivera razão o tempo todo. Não foram procurá-lo, e à Gloria, os Lacy, os Meredith, os Cartwright-Smith, no
Ritz-Carlton, apenas uma semana antes de zarparem?
Grandes lágrimas nadavam em seus olhos, e tinha a voz trêmula ao murmurar consigo mesmo.
- Mostrei a eles - dizia. - Foi um duro combate, mas não desisti, e venci.

 

 

                                                                  F. Scott Fitzgerald

 

 

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