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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS CAÇADORES DE MAMUTES - P.2 / J. M. Auel
OS CAÇADORES DE MAMUTES - P.2 / J. M. Auel

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

Ayla sentira profundo respeito pelo velho feiticeiro desde o início, mas, quando ele havia começado a treiná-la, seu respeito aumentou e se converteu em amor. Parcialmente, ela percebia forte semelhança entre o velho feiticeiro, alto e magro, e o mágico baixo, coxo, de um só olho do Clã, não em aparência, mas no temperamento. Era quase como se tivesse encontrado Creb de novo, ou ao menos sua réplica. Ambos mostravam compreensão e reverência profundas pelo mundo dos espíritos, embora os espíritos que venerassem tivessem nomes diferentes; os dois podiam dominar poderes terríveis, embora cada um fosse fisicamente frágil; e os dois eram sábios em relação às pessoas. Mas, talvez, a razão mais forte para o amor de Ayla fosse que, como Creb, Mamut lhe tinha dado boas-vindas, ajudara-a a compreender, e a aceitara como filha em sua fogueira.

 

 

 

 

- Eu estava à sua procura, Ayla. Achei que talvez estivesse aqui, com seus cavalos - falou Mamut.

- Eu estava olhando lá para fora, querendo que fosse primavera- disse Ayla.

- Esta é a época em que a maioria das pessoas começa a desejar uma mudança, para ter alguma coisa nova para ver ou fazer. As pessoas ficam entediadas, dormem mais. Acho que é por isto que temos mais festas e comemorações na última pane do inverno. A Competição do Riso será breve. A maioria das pessoas gosta dela.

- O que é Competição do Riso?

- Exatamente o que parece. Todos tentam fazer os outros rir. Algumas pessoas usam roupas engraçadas, ou usam a roupa às avessas, fazem caretas divertidas umas para as outras, fazem truques, mutuamente. E se alguém fica zangado por isto, mais se ri dele então. Quase todo mundo espera a festa com ansiedade, mas nenhuma celebração é aguardada com tanta expectativa quanto o Festival de Primavera. Na verdade, é por este motivo que eu a procurava - disse Mamut. - Há ainda muitas coisas que você deveria aprender antes dele.

- Por que o Festival de Primavera é tão especial? - Ayla não tinha certeza se estava ansiosa a respeito.

- Por muitas razões, imagino. É nossa comemoração mais solene e mais feliz. Marca o fim do frio rigoroso e prolongado, e o começo do calor. Diz-se que se você observar o ciclo das estações durante um ano, compreenderá a vida. A maioria das pessoas conta três estações. A primavera é a estação de nascimento. A Grande Mãe Terra, no jorro de Suas águas de origem, as enchentes primaveris, cria nova vida outra vez, O verão, a estação quente, é a época de crescimento e proliferação. O inverno é a “pequena morte”. Na primavera, a vida se renova, renasce. Três estações são suficientes para a maioria dos propósitos, mas a Fogueira do Mamute conta cinco, O número sagrado da Mãe é cinco.

Apesar de suas restrições iniciais, Ayla se encontrava fascinada pelo treinamento sobre o qual Mamut havia insistido. Ela estava aprendendo muito: idéias novas, pensamentos novos, até novas maneiras de pensar. Era excitante descobrir e pensar sobre tantas coisas novas, ser incluída em vez de excluída. O conhecimento dos espíritos, dos números, até mesmo o conhecimento de caçada haviam sido mantidos longe dela quando vivera com o Clã; eram reserva dos somente aos homens. Apenas os mog-urs e seus acólitos os estudavam profundamente, e nenhuma mulher podia tornar-se mog-ur. As mulheres não eram sequer admitidas em discussões sobre conceitos como espíritos e números. A caça também fora tabu para ela, mas eles não proibiam as mulheres de ouvir; tinham suposto, apenas, que nenhuma mulher aprenderia.

- Eu gostaria de repetir ainda as canções e cânticos que temos treinado, e quero começar mostrando-lhe algo especial. Símbolos. Creio que os achará interessantes. Alguns são sobre medicina.

- Símbolos de medicina? - perguntou Ayla. Claro que se interessava. Entraram juntos na Fogueira do Mamute

- Vai fazer alguma coisa com o couro branco? - perguntou Mamut, colocando esteiras ao lado do fogo, perto de sua cama. - Ou vai guardá-lo, como o vermelho?

- Não sei ainda sobre o vermelho, mas quero fazer uma túnica especial com o branco. Estou aprendendo a costurar, mas me sinto desajeitada. Ele ficou tão perfeito que não quero estragar o branco até eu ficar melhor. Deegie está me ensinando, e Fralie, às vezes, quando Frebec não dificulta as coisas para ela.

Ayla partiu uns ossos e acrescentou-os às chamas enquanto Mamut apresentava uma parte oval bastante fina de marfim com uma grande superfície curva. O contorno oval tinha sido gravado numa presa de mamute com um cinzel de pedra, depois repetido até se tornar um entalhe fundo.

Um golpe forte dado precisamente em uma extremidade soltou a lasca de marfim. Mamut pegou um pedaço de carvão de lenha de osso da fogueira, enquanto Ayla conseguia um crânio de mamute e uma baqueta do feitio de um martelo, feito de chifre, e sentou-se ao lado dele.

- Antes de praticarmos com o tambor, quero lhe mostrar alguns símbolos que usamos para nos ajudar a memorizar coisas, como canções, histórias, provérbios, lugares, ocasiões, nomes, qualquer coisa que alguém queira lembrar - começou Mamut. - Você nos tem ensinado símbolos e sinais manuais, e sei que notou que usamos certos gestos também, embora não tantos quanto o Clã. Acenos em despedida, ou dando boas-vindas a alguém, se queremos que venha, e todo mundo compreende. Usamos outros símbolos manuais, principalmente quando descrevemos alguma coisa, ou contamos uma história, ou quando Um Que Serve dirige uma cerimônia. Aqui está um que será fácil. E semelhante a um símbolo do Clã.

Mamut fez um movimento circular com a mão, a palma para fora.

- isso significa “tudo”, todo mundo, todas as coisas - explicou. Depois, pegou um carvão de lenha. - Agora, posso fazer o mesmo gesto com este pedaço de carvão sobre o marfim, vê? - disse, desenhando um círculo. - Agora, esse símbolo significa “tudo” e sempre que o vir, mesmo se desenhado por outro Mamut, saberá que significa “tudo”.

O velho feiticeiro gostava de ensinar a Ayla. Ela era inteligente e aprendia depressa, porém, mais ainda, seu prazer em aprender era bem aparente! Enquanto ele explicava, o rosto dela revelava seus sentimentos, sua curiosidade e interesse, e o encantamento puro quando compreendia.

- Jamais teria pensado nisso! Qualquer pessoa pode aprender esta experiência? - perguntou ela.

- Alguns conhecimentos são sagrados, e somente aqueles ligados à Fogueira do Mamute podem receber o ensinamento, porém, a maior parte das coisas pode ser aprendida por qualquer pessoa que revele interesse. Muitas vezes, resulta que aqueles que mostram grande interesse dedicam-se, eventualmente, à Fogueira do Mamute. O saber sagrado é, muitas vezes, escondido atrás de um segundo significado, ou mesmo um terceiro. A maioria das pessoas conhece este - desenhou outro círculo sobre o marfim -,significa “tudo”, mas tem outro significado. Há muitos símbolos para a Grande Mãe, este é um deles. Significa Mut, A Criadora de Toda Vida. Muitos outros traços e formas possuem significado - continuou ele. - Este quer dizer “água” - falou, traçando uma linha em ziguezague.

- Essa estava no mapa quando caçamos os bisões - disse Ayla. Achei que queria dizer rio.

- Sim, pode significar rio. Como a linha é traçada, ou onde é desenhada, ou o que acompanha o desenho pode mudar o significado. Se for assim - disse ele, fazendo outro ziguezague com algumas linhas adicionais -, significa que a água não deve ser bebida. E, como o círculo, possui um segundo significado. É o símbolo para sentimentos, paixões, amor e, às vezes, para o ódio. Também pode ser um lembrete para um provérbio que temos: o rio corre silencioso quando a água é profunda.

Ayla enrugou a testa, percebendo algum significado para ela no ditado.

- A maioria dos curandeiros dá significados aos símbolos para ajudá-los a recordar, como lembretes para provérbios, exceto os provérbios que são sobre medicina ou cura, e em geral não são compreendidos por outra pessoa - disse Mamut. - Não conheço muitos, mas quando formos à Reunião de Verão, você encontrará outros curandeiros. Eles poderão lhe dizer mais.

Ayla se interessava. Lembrava-se de ter encontrado outras curandeiras na Reunião de Clãs, e de como ela havia aprendido muito com elas. Partilharam seus tratamentos e remédios, até lhe ensinaram novos ritmos, porém melhor que tudo era ter outras pessoas com quem dividir experiências.

- Eu gostaria de aprender mais - disse ela. - Só conheço medicina do Clã.

- Acho que tem mais conhecimento do que pensa, Ayla, certamente, mais que muitos curandeiros acreditarão, a princípio. Alguns poderiam aprender com você, mas espero que compreenda que talvez leve algum tempo para ser completamente aceita. - O velho a observou enrugar a testa de novo, e desejou que houvesse algum modo de poder facilitar sua apresentação inicial. Ele podia pensar em várias razões pelas quais não seria fácil para ela conhecer outros Mamutoi, especialmente, em grande número. Mas não havia necessidade de se preocupar com aquilo ainda, pensou ele, e mudou de assunto. - Há uma coisa sobre medicina do Clã que eu gostaria de lhe perguntar. Tudo é apenas “lembrança”? Ou vocês têm meios para ajudar a recordar?

- Como as plantas são, em semente, e broto e maduras; onde crescem, para que servem; como misturá-las, prepará-las e usá-las: isso é da memória. Outros tipos de tratamentos também são lembrados. Penso em uma nova maneira de usar alguma coisa, mas isso é porque sei como usá-la - falou ela.

- Não usa nenhum símbolo ou lembrete?

Ayla refletiu um pouco, depois se levantou sorrindo e trouxe sua bolsa de remédios. Retirou o seu conteúdo, colocando-o diante de si, uma variedade de pequenos sacos e embrulhos cuidadosamente amarrados com cordões e pequenas tiras de couro. Ela pegou dois.

- Este tem hortelã - disse, mostrando um saquinho a Mamut - e este tem frutos da roseira.

- Como sabe? Você não os abriu, nem cheirou.

- Eu sei porque a hortelã tem um cordão feito da casca fibrosa de um certo arbusto, e existem dois nós em uma extremidade do cordão. O cordão do embrulho de frutos de roseira é do pêlo comprido de um rabo de cavalo, e tem três nós seguidos, e juntos - falou Ayla. - Posso sentir a diferença pelo olfato também... Se não estiver resfriada, mas alguns remédios muito fortes quase não têm odor. Este é misturado às folhas com cheiro forte de planta com pouco remédio, de modo que não se use o remédio errado. Cordão diferente, nós diferentes, odor diferente, às vezes, embrulho diferente. São lembretes, não são?

- Inteligente... Muito inteligente - disse Mamut. - Sim, são lembretes. Mas você tem que lembrar os cordões e nós de cada um, não é? Mesmo assim, é uma boa maneira de ter certeza de que está utilizando o medicamento adequado.

Os olhos de Ayla estavam abertos, mas ela jazia imóvel. Estava escuro, exceto pela fraca luz noturna de fogos limitados. Jondalar subia na cama, tentando fazer o mínimo possível de agitação enquanto se movia à volta dela. Ela havia pensado em ir para o lado de dentro uma vez, mas resolveu que não o faria. Não queria tornar fácil para ele entrar e sair da cama, esgueirando-se silenciosamente. Ele rolou em suas peles separadas e jazeu de lado, de frente para a parede, imóvel. Ela sabia que ele não adormeceria depressa, e ansiava para estender a mão e tocá-lo, mas havia sido rejeitada antes e não queria correr esse risco de novo. Havia doido quando ele disse que estava cansado, ou fingiu dormir, ou não lhe respondeu.

Jondalar esperou até o som da respiração de Ayla indicar que ela adormecera, afinal. Então, rolou na cama, levantou-se em um cotovelo e encheu os olhos com a visão da jovem. Seu cabelo desgrenhado se espalhava sobre as peles, e um braço estava abandonado fora das cobertas, desnudando um seio. Uma calidez emanava dela, e um leve odor de mulher. Ele podia se sentir tremendo com o desejo de tocá-la, mas estava seguro de que ela não quereria que ele a incomodasse quando dormia. Depois de sua reação zangada e confusa diante da noite de Ayla com Ranec, ele temia que ela não o quisesse mais. Ultimamente, sempre que se roçavam acidentalmente, ele recuava. Várias vezes, havia pensado em mudar para outra cama, até para outra fogueira, mas se já era tão difícil dormir ao lado dela.., Muito pior seria dormir longe.

Um fio delicado de cabelo jazia sobre o rosto da jovem e se movia a cada respiração dela. Ele estendeu a mão e afastou o cabelo gentilmente, depois se deitou com cuidado e permitiu-se relaxar. Fechou os olhos e adormeceu ao som da respiração de Ayla.

Ayla despertou com a sensação de que alguém a estava olhando. As fogueiras estavam acesas e a claridade do dia penetrava através da abertura para saída da fumaça parcialmente descoberta. Ela virou a cabeça e viu os olhos penetrantes, escuros de Ranec observando-a da Fogueira da Raposa. Sorriu sonolentamente para ele, e foi recompensada por um sorriso largo, encantado. Estava certa de que o lugar a seu lado se encontrava vazio, mas estendeu a mão através das peles empilhadas apenas para ter certeza. Depois, afastou as cobertas e sentou-se. Sabia que Ranec esperaria até ela sair da cama e vestir-se antes de entrar na Fogueira do Mamute para uma visita.

Ela ficara pouco à vontade quando se tornou consciente, pela primeira vez, de que ele a observava o tempo todo. De certa forma, era lisonjeiro e ela sabia que não havia malícia em sua atenção, mas no Clã era considerado descortês olhar, em meio às pedras que serviam como limite, a área de moradia de outra família. Não houvera mais real privacidade na caverna do Clã do que havia na habitação comunal dos Mamutoi, mas a atenção de Ranec era como uma invasão de sua privacidade - exatamente como era - e acentuava uma corrente oculta de tensão que ela sentia.

Alguém estava sempre por perto. Não fora diferente quando ela vivia com o Clã, mas não fora criada de acordo com os costumes daquelas pessoas. As diferenças eram sutis. Muitas vezes, mas, na proximidade íntima da habitação de barro, elas cresciam, ou ela se tornava mais sensível a elas. Ocasionalmente, desejava poder fugir. Depois de três anos de solidão no vale, nunca imaginara que chegaria o momento em que desejaria ficar sozinha, mas havia ocasiões em que ela ansiava pela solidão e a liberdade da pessoa solitária.

Ayla se apressou em sua costumeira rotina matinal, comendo algumas pequenas porções, apenas, da comida que sobrara da noite anterior. Os buracos de saída de fumaça abertos normalmente significavam que o tempo estava bom, e resolveu sair com os cavalos. Quando afastou a cortina que levava ao anexo, viu Jondalar e Danug com os animais, e parou para reconsiderar.

Atender às necessidades dos cavalos quer no anexo, ou quando o tempo permitia, fora, dava-lhe alguma folga das pessoas quando queria um momento para si própria, mas Jondalar também parecia gostar de passar o tempo com eles. Quando ela via Jondalar com os cavalos, geralmente ficava distante, porque ele deixava os animais com ela sempre que ela se reunia a eles, com comentários balbuciados de que não queria interferir em sua convivência com os cavalos. Ela queria lhe dar algum tempo com os animais. Não apenas eles proporcionavam uma ligação entre ela e ele, como seu cuidado mútuo com os cavalos exigia comunicação, embora reservada. O desejo de Jondalar de estar com eles e a sensibilidade em relação aos cavalos fizeram com que Ayla pensasse que talvez ele necessitasse mais da companhia dos animais do que ela.

Ayla avançou para a fogueira dos cavalos. Talvez, com Danug ali, Jondalar não se afastasse tão depressa. Ao se aproximar, Jondalar já retrocedia, mas ela se apressou em dizer uma coisa que o manteria envolvido na conversa.

- Já pensou como vai ensinar a Racer, Jondalar. - perguntou, e sorriu, cumprimentando Danug.

- Ensinar o quê? - interrogou Jondalar, um pouco desconcertado pela pergunta.

- Ensiná-lo a deixar que você o monte.

Ele estivera refletindo sobre isso. Na verdade, acabava de comentar com Danug no que esperava ser uma forma casual. Não queria trair seu desejo cada vez maior de cavalgar o animal. Principalmente, quando se sentia frustrado por sua incapacidade de enfrentar a atração clara de Ayla por Ranec, imaginava-se galopando pelas estepes no dorso do potro castanho, tão livre quanto o vento, mas sem certeza de que ainda o seria. Talvez ela quisesse que Ranec cavalgasse o potro de Whinney agora.

- Tenho pensado nisso, mas não sabia se... Como começar - disse Jondalar.

- Acho que devia continuar fazendo o que começou no vale. Acostume Racer com coisas sobre seu dorso. Acostume-o a carregar fardos. Não estou segura de como ensiná-lo a ir aonde você deseja que vá. Ele seguirá uma corda, mas não sei como obedecerá a uma corda quando você estiver montado nele - disse Ayla, falando depressa, fazendo sugestões impulsivamente, tentando mantê-lo envolvido.

Danug a observava, depois olhou para Jondalar, querendo poder dizer ou fazer alguma coisa que resolvesse a situação, de repente, não apenas para eles, mas para todos. Um incômodo instante de silêncio os cercou, inquietador, quando Ayla parou de falar. Danug se apressou a preencher a lacuna.

- Talvez ele pudesse segurar a corda de trás, enquanto estiver montado no potro, em vez de segurar a crina de Racer - falou o rapazola.

De súbito, como se alguém houvesse golpeado um pedaço de sílex com pirita de ferro na habitação escura, Jondalar foi capaz de visualizar exatamente o que Danug havia dito. Em vez de recuar, parecendo que estava pronto para escapar diante da primeira oportunidade, ele fechou os olhos e enrugou a testa, concentrando-se.

- Sabe, talvez dê certo, Danug! - exclamou. Tomado de excitação por uma idéia que talvez fosse a solução de um problema que estivera tentando resolver, esqueceu, por um instante, sua incerteza em relação ao futuro. - Talvez eu possa amarrar alguma coisa ao seu cabresto e segurar detrás. Uma corda forte... Ou uma fina tira de couro... Duas delas, talvez.

- Tenho algumas correias estreitas - falou Ayla, notando que ele parecia menos tenso. Ficou satisfeita pelo incontínuo de Jondalar no treinamento do potro, e curiosa de como a coisa funcionaria. - Vou buscá-las para você. Estão lá dentro.

Jondalar a acompanhou através da arcada interna em direção à Fogueira do Mamute. Então, parou de repente quando ela se dirigiu à plataforma de estocagem para pegar as correias. Ranec falava com Deegie e Tronie, e se virou para lançar o sorriso vitorioso a Ayla. Jondalar sentiu o estômago revolver-se, fechou os olhos e cerrou os dentes. Começou a recuar em direção à abertura. Ayla se voltou para entregar-lhe um rolo estreito de couro flexível.

- Isto é correia, é forte - disse ela, entregando-lhe o couro. – Fiz no último inverno. - Ergueu a cabeça para os perturbados olhos azuis que revelavam o sofrimento, a confusão, e a indecisão que o atormentava. - Antes de chegar ao meu vale, Jondalar. Antes de o Espírito do Grande Leão da Caverna escolher você e o conduzir até lá.

Ele pegou o rolo e se apressou em sair. Não podia ficar. Sempre que o escultor vinha à Fogueira do Mamute, ele tinha que sair. Não era capaz de ficar por perto quando o homem escuro e Ayla estavam juntos, o que acontecia com mais freqüência recentemente. Ele havia observado de longe quando os jovens se reuniam no espaço mais amplo do recinto de cerimônias para exibir seu trabalho, partilhar idéias e arte. Ele os ouvia praticar música e cantar, escutava suas brincadeiras e risos. E todas as vezes que ouvia o riso de Ayla unido ao de Ranec, estremecia.

Jondalar colocou o rolo de couro perto do cabresto do potro, tirou sua parka do cabide no anexo, e saiu, sorrindo tristemente para Danug, no caminho. Escorregou-a pela cabeça, amarrou o capuz ao redor do rosto, e enfiou as mãos nas luvas que pendiam das mangas. Depois, caminhou para as estepes.

O vento forte que impelia nuvens cinzentas através do céu era normal para a estação e o sol brilhando intermitentemente entre as nuvens muito irregulares parecia produzir pouco efeito sobre a temperatura que permanecia bem abaixo de zero. O manto de neve era escasso e o ar seco estalava e roubava umidade de seus pulmões, em nuvens de vapor, a cada respiração. Ele não ficaria fora muito tempo, mas o frio o acalmava com sua exigência insistente de colocar a sobrevivência à frente de qualquer outro pensamento. Ele ignorava por que reagia tão violentamente a Ranec. Em parte, sem dúvida, estava o medo de perder Ayla para ele, e também havia a visualização dos dois juntos em sua imaginação. Porém, havia também uma culpa torturante sobre sua própria hesitação em aceitá-la totalmente e sem reservas. Parte dele acreditava que Ranec a merecia mais que ele. Mas uma coisa, ao menos, parecia certa. Ayla queria que ele, e não Ranec, tentasse aprender a montar Racer.

Danug viu Jondalar começar a subir a encosta, depois deixou a cortina cair, e caminhou devagar para o interior. Racer relinchou e agitou a cabeça quando o rapaz passou por ele, e Danug olhou para o potro e sorriu. Quase todos pareciam gostar dos animais agora, acariciando-os e conversando com eles, embora sem a familiaridade de Ayla. Parecia muito natural ter cavalos em um anexo da moradia. Como era fácil esquecer o assombro e surpresa que sentira quando vira os animais pela primeira vez. Atravessou a segunda arcada e viu Ayla de pé ao lado de seu estrado-cama. Parou, depois se juntou a ela.

- Ele está dando uma caminhada nas estepes - disse a Ayla. - Não é uma boa idéia sair sozinho quando está frio e ver, mas não está tão mau tempo quanto acontece, às vezes.

- Está tentando me dizer que ele estará bem, Danug? - Ayla lhe sorriu e ele se sentiu tolo por um instante. Claro que Jondalar estaria bem. Ele havia viajado muito, sabia cuidar de si mesmo. - Obrigada – disse ela -, por sua ajuda e por querer ajudar - estendendo a mão e tocando a dele. A mão de Ayla estava fria, mas o toque era cálido, e ele sentiu-o com a especial intensidade que ela provocava nele, mas em um nível mais profundo sentiu que ela oferecia algo mais: sua amizade.

- Talvez eu saia para verificar algumas armadilhas que preparei - falou ele.

- Tente deste jeito, Ayla - disse Deegie.

Destramente, ela abriu um furo perto da extremidade do couro com um ossinho, um pequeno osso duro e resistente da perna de uma raposa ártica, que tinha uma ponta naturalmente aguçada, que se tornara ainda mais pontiaguda com arenito. Depois, estendeu um pedaço fino de fio de tendão pelo orifício e, com a ponta do furador de costura, puxou-o através do buraco. Segurou-o com os dedos pela parte de trás do couro e atravessou o furador. Em um local correspondente, sobre outro pedaço de couro que ela costurava à primeira peça, fez outro furo e repetiu o processo.

Ayla pegou os pedaços de couro para treinamento. Usando um quadrado de pele resistente de mamute como dedal, passou o aguçado osso de raposa ártica pelo couro, fazendo uma pequena perfuração. Depois, tentou colocar o furador fino sobre o orifício e atravessá-lo, mas não parecia capaz de dominar a técnica, e se sentiu totalmente frustrada, outra vez.

- Acho que nunca aprenderei isto, Deegie! - gemeu.

- Tem apenas que praticar, Ayla. Faço isto desde menina. Claro que é fácil para mim, mas você conseguirá, se continuar se esforçando. E a mesma idéia como cortar uma pequena lasca com uma ponta de sílex e atravessar a correia de couro para fazer roupas de trabalho, e você faz isso muito bem.

- Mas é muito mais difícil com o furador fino e buracos pequenos. Não consigo passar o furador. Sinto-me tão desajeitada! Não sei como Tronie pode costurar com contas e espinhos, como faz - disse Ayla, olhando para Fralie, que girava um fino e comprido cilindro de marfim no encaixe de um bloco de arenito. - Eu esperava que ela me ensinasse, assim eu poderia enfeitar a túnica branca depois de pronta, mas não sei sequer se serei capaz de fazê-la do jeito que quero.

- Será, Ayla. Acho que não há nada que não se possa fazer, se o deseja, realmente - disse

Tronie

- Exceto cantar! - exclamou Deegie.

Todas riram, inclusive Ayla. Embora sua voz, ao falar, fosse grave e agradável, cantar não era um dos seus dons. Ela podia manter uma amplitude limitada de tons suficiente para um monótono canto de embalar, e tinha bom ouvido para música. Sabia quando desafinava e era capaz de assobiar uma melodia, mas qualquer habilidade vocal estava fora de seu alcance. O virtuosismo de alguém como Barzec era uma maravilha total. Ela poderia ouvi-lo o dia inteiro, se ele consentisse em cantar tanto tempo. Fralie também tinha boa voz, cristalina, aguda, meiga, que Ayla adorava ouvir. Na verdade, a maior parte dos membros do Acampamento do Leão podia cantar, mas não Ayla.

Faziam piadas sobre seu canto e voz, quando incluíam comentários sobre seu sotaque, embora fosse mais um maneirismo de fala do que um sotaque. Ela ria tanto quanto os outros. Era incapaz de cantar e sabia disso e, se brincavam em relação à sua voz, muitas pessoas também tinham individualmente elogiado sua fala. Eles encaravam como elogio o fato de ela se ter tornado tão fluente em sua língua, tão rápida, e as troças sobre seu canto a faziam sentir que pertencia ao grupo.

Todos tinham algum traço ou característica que os outros achavam engraçado: o tamanho de Talut, a cor de Ranec, a força de Tulie. Somente Frebec se ofendia com as brincadeiras. Assim, caçoavam dele pelas costas, em linguagem de sinais. O Acampamento do Leão também se tornara fluente, sem sequer refletir a respeito, em uma versão modificada da linguagem do Clã. Como resultado, Ayla não era a única a sentir o calor da aceitação. Rydag também era incluído na brincadeira.

Ayla lançou um olhar em direção ao menino. Ele estava sentado em uma esteira com Hartal ao colo, mantendo o bebê ativo, ocupado com uma pilha de ossos, principalmente, vértebras de veado, para que ele não pudesse engatinhar atrás da mãe e espalhar as contas que ajudavam Fralie a bordar. Rydag era paciente com bebês. Brincava com eles e os entretinha tanto tempo quanto quisessem.

Ele sorriu para Ayla.

- Você não é a única que não pode cantar, Ayla - falou por sinais.

Ela sorriu também. Não, pensou, não era a única que não podia cantar. Rydag não era capaz de cantar. Ou falar. Ou correr e brincar Ou até viver uma vida plenamente. Apesar do seu remédio, ela não sabia quanto tempo ele viveria. Podia morrer naquele dia, ou sobreviver vários anos. Ela só podia amá-lo cada dia que vivesse, e esperar poder amá-lo no dia seguinte.

- Hartal também não pode cantar! - ele fez sinais e riu com seu riso estranho, gutural.

Ayla soltou uma risadinha, balançando a cabeça com deleite confuso. Ele adivinhou o que ela pensava e fez uma graça inteligente e divertida.

Nezzie estava de pé perto da lareira e os observava. Talvez você não cante, Rydag, mas pode falar agora, pensou. Ele passava uma corda grossa com várias vértebras presas, pelo orifício da medula espinhal, e chocalhava-as juntas para o bebê. Sem as palavras de sinais manuais, e a percepção crescente, que elas trouxeram da inteligência e compreensão de Rydag, ele jamais teria a permissão de assumir a responsabilidade de tomar conta de Hartal para que a mãe pudesse trabalhar, nem que fosse diretamente ao lado dela. Que diferença Ayla havia trazido para a vida de Rydag. Naquele inverno, ninguém questionara sua humanidade essencial, exceto Frebec, e Nezzie estava certa de que era mais por teimosia do que por crença.

Ayla continuou a lutar com o furador e o tendão. Se ela conseguisse apenas fazer com que os fios finos de tendão entrassem no buraco e saíssem do outro lado... Tentou fazê-lo do jeito que Deegie lhe ensinara, mas era uma habilidade que vinha de anos de experiência, e Ayla se encontrava muito longe disso. Ela deixou cair os pedaços para treino no colo, frustrada, e começou a observar as outras fazendo contas de marfim.

Um golpe forte em uma presa de mamute no ângulo adequado fazia com que uma parte curva, fina, se partisse. Cortavam-se entalhes na lasca grande com buris, como cinzéis, gravando uma linha e refazendo-a várias vezes até os pedaços compridos se partirem. Eram aparados e talhados, tornando-se cilindros toscos, com facas e raspadoras que tiravam longas lascas encrespadas, depois alisados com arenito mantido molhado para ser mais abrasivo. Usavam-se lâminas aguçadas de sílex, com borda denteada e fixadas a um cabo comprido, para serrar os cilindros de marfim em panes menores, e depois suas extremidades eram alisadas.

O passo final era fazer um orifício no centro, para enfileirá-los em um cordão ou costurá-los em uma roupa. Isto era feito com ferramenta especial. O sílex, cuidadosamente moldado em uma comprida e fina ponta por um ferramenteiro hábil, era inserido então na extremidade de uma vareta estreita e comprida, perfeitamente reta e lisa. A ponta da broca manual era centralizada sobre um pequeno e grosso disco de marfim e, então, da mesma forma que no processo de fazer fogo, a vareta era rodada para diante e para trás entre as palmas das mãos, enquanto exercia pressão para baixo, até um orifício ser aberto.

Ayla observou Tronie girar a vareta entre as palmas das mãos, concentrada para fazer o orifício corretamente. Ocorreu-lhe que elas tinham muito trabalho para fazer algo que não tinha utilidade aparente. As contas não ajudavam em nada o preparo ou estocagem do alimento, e não faziam as vestimentas, às quais eram pregadas, mais úteis. Mas ela começou a compreender por que as coisas tinham tanto valor. O Acampamento do Leão jamais poderia fazer tal investimento de tempo e esforço sem a segurança do conforto e aquecimento, e a garantia de alimento adequado. Somente um grupo bem organizado, cooperativo poderia planejar e estocar suficientes gêneros de primeira necessidade adiantadamente, para assegurar o lazer de fabricar contas. Portanto, quanto mais contas usavam, tanto mais demonstravam que o Acampamento do Leão era um local próspero, agradável para se viver, e tanto maior respeito e status poderiam exigir de outros acampamentos.

Ela pegou o couro de seu colo e o furador de osso, e examinou o último buraco que ela fizera um pouco maior; depois tentou passar o nervo pelo orifício, com o furador. Conseguiu e puxou o tendão por trás, mas o trabalho não tinha a aparência limpa dos pontos apertados de Deegie. Ela levantou os olhos de novo, desencorajada, e observou Rydag enfiar um segmento de espinha dorsal sobre uma corda por um buraco natural de sua medula espinhal. Ele pegou outra vértebra e enfiou a corda bastante rija pelo orifício.

Ayla respirou fundo, e retomou seu trabalho mais uma vez. Não era tão difícil forçar a ponta através do couro, pensou. Quase empurrava o osso Inteiro através da abertura. Se ao menos pudesse prender a fibra nele, refletiu, seria mais fácil...

Parou e examinou o ossinho com atenção. Depois olhou para Rydag, unindo as pontas da corda e sacudindo o chocalho de espinha dorsal para Hartal. Viu Tronie girando a broca manual entre as palmas das mãos, depois se virou para Fralie, que alisava um cilindro de marfim entalhado, com um pequeno bloco de arenito. Depois fechou os olhos, recordando Jondalar fazendo pontas de lança de osso em seu vale, no verão anterior...

Olhou para o furador de costura de osso novamente.

- Deegie! - gritou.

- O quê? - perguntou a jovem, surpresa.

- Acho que sei um meio de fazê-lo!

- Fazer o quê?

Passar o furador pelo orifício. Por que não fazer um buraco na ponta de trás de um osso com uma ponta aguçada e depois passar a fibra pelo buraco? Como Rydag atravessa aquela corda pela espinha dorsal. Depois, pode-se empurrar o osso através do couro e o fio o seguirá. O que acha? Daria certo? - indagou Ayla.

Deegie fechou os olhos por um instante, depois pegou o furador da mão de Ayla e examinou-o.

- Teria que ser um orifício muito pequeno.

- Os buracos que Tronie está fazendo naquelas contas são pequenos. Teria que ser muito menor?

- Este osso é muito duro e resistente. Não seria fácil abrir um buraco nele, e não vejo um bom local para um furo.

- Não podíamos fazer algo com uma presa de mamute ou qualquer outro tipo de osso? Jondalar fabrica pontas compridas, estreitas, de lanças, com osso e alisa-os e aguça-os com arenito, como Fralie está fazendo. Não podemos fazer algo como uma pequena ponta de lança, e depois fazer um furo na outra extremidade? - perguntou Ayla tensa de excitação.

Deegie refletiu de novo.

- Teríamos que pedir a Wymez ou outra pessoa para fazer um furador menor, mas... Talvez dê certo, Ayla, acho que talvez dê certo!

Quase todos pareciam circular em volta da Fogueira do Mamute. Reuniam-se em grupos de três ou quatro, conversando, mas a expectativa estava no ar. De algum modo, correra o boato de que Ayla iria fazer uma experiência com o novo “puxador-de-fio”. Várias pessoas trabalharam na sua fabricação, mas desde que a idéia original fora de Ayla, ela seria a primeira a usá-lo. Wymez e Jondalar tinham trabalhado juntos para projetar um modo de fazer um perfurador de sílex bastante pequeno para abrir o furo. Ranec escolhera o marfim e, usando suas ferramentas de escultor, havia moldado diversos cilindros muito pequenos, compridos, pontiagudos. Ayla as havia alisado e aguçado como desejava, mas Tronie abrira o furo, realmente.

Ayla podia sentir a excitação. Quando pegou o couro de praticar e o tendão, todos se agruparam ao seu redor, todo o fingimento de que a visita deles era apenas casual, esquecido. O tendão duro, seco de veado, marrom como couro velho e tão grande quanto um dedo, parecia uma vareta de madeira. Foi golpeado até se tornar um feixe de fibras brancas de colágeno, que se separaram facilmente em filamentos de tendão, que podiam ser cordas grossas ou fio fino, excelente, dependendo do que ela desejava. Ela sentiu que o momento necessitava de drama e levou tempo examinando o tendão, depois finalmente retirou, puxando, um fino filamento. Molhou-o com sua boca para amaciá-lo e uni-lo, depois com o puxador-de-fio na mão esquerda, examinou o furo pequeno com ar crítico. Poderia ser difícil passar o fio pelo buraco. O tendão começava a secar e endurecer levemente, o que facilitava a tarefa. Ayla enfiou cuidadosamente o filamento de tendão no furo, e respirou com alívio, soltando um suspiro curto, ao passá-lo pelo orifício, e ergueu a ponta de costurar de marfim com o fio pendendo de sua extremidade.

Em seguida, pegou o pedaço de couro usado que utilizara para treinar e enfiou a ponta perto de uma borda, fazendo um furo. Mas, desta vez, atravessou o furador e sorriu ao vê-lo arrastando o filamento atrás de si. Manteve-o erguido para mostrar e houve exclamações de assombro. Depois, apanhou outro pedaço de couro que queria prender e repetiu o processo, embora tivesse que usar o quadrado de pele de mamute como um dedal para forçar a ponta através do couro mais espesso e duro. Ela juntou as duas peças e depois deu um segundo ponto, e segurou os dois pedaços erguidos para exibi-los.

- Funciona! - exclamou Ayla com um largo sorriso vitorioso.

Ela entregou o couro e agulha a Deegie, que deu alguns pontos.

- Funciona. Aqui, mãe, experimente você - disse ela, entregando o couro e a agulha à chefe.

Tulie também deu alguns pontos e sacudiu a cabeça, aprovando, depois passou a agulha a Nezzie, que fez uma tentativa, em seguida foi a vez de Tronie. Esta entregou a agulha a Ranec que tentou perfurar as duas peças de couro de uma só vez e descobriu que o couro espesso era mais resistente à perfuração.

- Acho que se fizer uma pequena ponta cortante de sílex - disse ao entregar a agulha a Wymez -, seria mais fácil furar o couro pesado. O que acha?

Wymez experimentou e concordou com um gesto de cabeça.

- Sim, mas este puxador-de-fio é muito inteligente.

Todas as pessoas do acampamento experimentaram o novo implemento, e concordaram. Facilitava muito a costura ter alguma coisa que puxava o fio através do couro, em vez de empurrá-lo.

Talut segurou o pequeno apetrecho de costura e examinou-o de todos os ângulos, sacudindo a cabeça com admiração. Uma comprida haste fina, com ponta de um lado, orifício do outro, era uma invenção cujo valor se reconhecia imediatamente. Perguntou-se por que ninguém havia pensado naquilo antes. Era simples, tão óbvio uma vez visto, e tão eficiente!

Dois pares de cascos avançavam em uníssono através do solo duro. Ayla estava abaixada sobre a cernelha da égua, com os olhos semicerrados contra um vento frio que ardia em seu rosto. Ela cavalgava agilmente, a interação controlada de tensão em seus joelhos e quadris em harmonia perfeita com os músculos fortes, empenhados do cavalo a galope. Ela notou uma mudança no ritmo das batidas dos cascos do outro animal, e lançou um olhar a Racer. Ele havia ido à frente, mas, mostrando sinais inconfundíveis de cansaço, ele recuava. Ela fez Whinney reduzir a marcha gradualmente até parar, e o jovem garanhão parou também. Os cavalos, envolvidos em nuvens de vapor de sua respiração difícil, abaixaram as cabeças. Os dois estavam cansados, mas havia sido uma boa corrida.

Sentando-se ereta e acompanhando facilmente com o corpo o passo da égua, Ayla voltou em direção ao rio em marcha confortável, usufruindo, da oportunidade de estar ao ar livre. Estava frio, mas era bonito, com a luz viva de um sol incandescente mais brilhante pelo gelo que cintilava e o branco de uma nevasca recente.

Assim que Ayla saíra da habitação comunal naquela manhã, resolveu levar os cavalos para uma longa corrida, O próprio ar a atraiu para fora. Parecia mais leve, como se um fardo opressivo houvesse sido afastado. Ela achou que o frio não era tão intenso, apesar de nada estar visivelmente mudado. O gelo continuava congelado, as pequenas bolas de neve carregadas pelo vento, duras como sempre.

Ayla não tinha um meio absoluto de saber que a temperatura havia subido e que o vento soprava com menos força, mas ela detectara as alterações sutis. Embora pudesse ser interpretada como intuição, impressão, na verdade era uma sensibilidade aguçada. Para pessoas Que viviam em climas de frio extremo, as condições mesmo um pouco menos rigorosas eram notadas, e muitas vezes saudadas com boas sensações exuberantes. Ainda não era primavera, mas o domínio incansável do frio profundamente esmagador havia diminuído, e o aquecimento pequeno, mas que se notava, trazia consigo a promessa de que a vida se agitaria de novo.

Ela sorriu quando o garanhão novo empinou à frente, o pescoço arqueado com orgulho e o rabo erguido. Ela ainda pensava em Racer como o filhote que ajudara a nascer, porém, ele não era mais um bebê. Embora ainda não totalmente adulto, era maior que sua mãe e era um corredor. Gostava de correr e era ligeiro, mas havia uma diferença nos padrões de corrida dos dois animais. Racer era invariavelmente mais rápido do que a mãe em uma corrida curta, distanciando-se facilmente dela na partida, mas Whinney possuía mais resistência. Ela era capaz de correr uma distância maior e, se percorriam um trajeto longo, inevitavelmente ela alcançava o filho e saltava à frente dele.

Ayla desmontou, mas parou momentaneamente antes de afastar a cortina e entrar na habitação de barro. Ela havia usado os cavalos, muitas vezes, como desculpa para se afastar e, naquela manhã, ficara particularmente aliviada porque o tempo estava apropriado para uma longa corrida. Da mesma maneira que ficara feliz por ter encontrado pessoas novamente e por ter sido aceita como uma delas e incluída em suas atividades, precisava ficar sozinha, ocasionalmente. Era verdade, especialmente, quando incertezas e mal-entendidos não solucionados aumentavam as tensões.

Fralie andara passando grande parte do seu tempo na Fogueira do Mamute com os jovens, para aborrecimento crescente de Frebec. Ayla ouvira discussões na Fogueira da Garça, ou melhor, lamentações de Frebec, queixando-se da ausência de Fralie. Ela sabia que ele não gostava que Fralie ficasse muito amiga dela, e estava certa de que a mulher grávida se afastava mais para manter a paz. Ayla se aborrecia com isso, principalmente, desde que Fralie lhe havia confiado que andava urinando sangue. Ela prevenira a mulher de que poderia perder o bebê se não descansasse, e prometeu-lhe um remédio, mas agora seria mais difícil tratar de Fralie, com Frebec rondando com ar desaprovador.

Além disso, havia sua crescente confusão em relação a Jondalar e Ranec. Jondalar estivera distante, mas, recentemente, parecia-se mais consigo próprio. Alguns dias antes, Mamut lhe pedira para ir falar com ele sobre uma determinada ferramenta que tinha em mente, mas o feiticeiro estivera ocupado o dia todo, e somente encontrara tempo para discutir seu projeto à noite, quando os jovens se reuniam, em geral, na Fogueira do Mamute. Embora se acomodassem com calma a um lado, o riso e troça, eram ouvidos sem dificuldade.

Ranec estava mais atencioso que nunca e ultimamente andava pressionando Ayla, com o disfarce de provocação e brincadeira, para que ela fosse para sua cama de novo. Ela ainda achava difícil recusá-lo diretamente; obediência aos desejos de um homem era algo que fora inteiramente incutido nela para poder superá-lo com facilidade. Ela ria dos gracejos dele - compreendia mais o humor agora, até a intenção séria o humor às vezes mascarava - mas fugia com habilidade do convite implícito causando um coro de risadas à custa de Ranec. Ele também ria, divertindo-se com o espírito de Ayla, e ela se sentia atraída para a sua amizade agradável. Era bom estar com ele.

Mamut notou que Jondalar também sorria, e sacudiu a cabeça, aprovando. O quebrador de sílex havia evitado a reunião de gente jovem, observando apenas as troças amistosas de longe, e o riso havia somente aumentado seu ciúme. Ele ignorava que era, muitas vezes, provocado pelas recusas de Ayla às propostas de Ranec, embora Mamut soubesse.

No dia seguinte, Jondalar sorriu para ela, pela primeira vez em muito tempo, pensou Ayla, mas ela sentiu a respiração presa na garganta e o coração acelerar-se. Durante os dias seguintes, ele começou a voltar para a fogueira mais cedo, nem sempre esperando até ela adormecer. Apesar de ela relutar em pressioná-lo, e de ele parecer hesitante em se aproximar dela, Ayla começava a ter esperança de que ele superava o que quer que o incomodara. No entanto, ela temia ter esperanças.

Ayla respirou fundo, depois afastou a cortina pesada e segurou-a para os animais entrarem. Depois de sacudir a parka e pendurá-la, entrou. Para variar, a Fogueira do Mamute estava quase vazia. Somente Jondalar ali se encontrava conversando com Mamut. Ela ficou satisfeita, mas surpresa por vê-lo, e compreendeu, então, quão pouco o tinha visto ultimamente. Sorriu e correu para eles, mas a carranca de Jondalar abaixou os cantos de sua boca. Ele não parecia muito feliz em vê-la.

- Você passou a manhã fora sozinha! - explicou ele. - Não sabe que é perigoso sair sozinha? Você preocupa as pessoas. Breve, alguém teria que irá sua procura. - Ele não disse que era ele próprio que estava preocupado, ou que era quem pensava em sair para procurá-la.

Ayla recuou diante da veemência dele.

- Eu não estava sozinha. Estava com Whinney e Racer. Levei-os para uma corrida. Precisavam correr.

- Bem, você não devia ter saído assim, quando está tão frio. É perigoso sair só - falou ele um pouco claudicante, olhando para Mamut à espera de apoio.

- Eu disse que não estava sozinha. Estava com Whinney e Racer, e o tempo está bom, ensolarado, não tão frio. - Ficou desapontada com a raiva dele, sem compreender que a raiva encobria um medo dele por sua segurança que era quase insuportável. - Saia sozinha no inverno antes, Jondalar. Quem pensa que saía comigo quando eu vivia no vale?

Ela tem razão, pensou ele. Sabe como cuidar de si mesma. Eu não devia tentar lhe dizer quando e aonde pode ir. Mamut não parecia muito preocupado ao perguntar onde Ayla estava, e ela é a filha de sua fogueira. Devia ter prestado mais atenção ao velho feiticeiro, pensou Jondalar, sentindo-se tolo, como se tivesse feito uma cena por nada.

- Hum... Bem... Talvez eu deva ir ver os cavalos - resmungou, virando de costas e correndo para o anexo.

Ayla o acompanhou com o olhar, perguntando-se se ele pensava que ela não estava cuidando dos animais. Estava confusa e aborrecida. Parecia impossível compreender Jondalar.

Mamut a observava com atenção. A mágoa e infelicidade de Ayla eram evidentes. Por que acontecia de as pessoas envolvidas acharem tão difícil compreender seus próprios problemas? Ele estava inclinado a confrontá-los e obrigá-los a ver o que parecia óbvio para todos os outros membros do acampamento, mas resistiu ao desejo. Já havia feito tanto quanto achava que devia. Havia sentido, desde o início, uma corrente oculta de tensão no homem dos Zelandonii, e estava convencido de que o problema não era tão óbvio quanto parecia. Era melhor deixá-los resolver o caso por conta própria. Todos aprenderiam mais com a experiência se tivessem que encontrar as próprias soluções. Mas ele podia encorajar Ayla a falar-lhe a respeito ou ao menos, ajudá-la a descobrir suas opções e saber quais eram seus próprios desejos e potencial.

- Você disse que não está tão frio lá fora? - perguntou Mamut.

A pergunta levou um segundo para atravessar a confusão de outros pensamentos insistentes que a preocupavam.

- O quê? Oh... Sim. Acho que sim. Realmente, não está mais quente, parece apenas não estar tão frio.

- Eu me perguntava quando Ela quebraria as costas do inverno - falou Mamut. - Achei que o dia se aproximava.

- Quebrar as costas? Não entendo.

- E apenas um ditado, Ayla. Sente-se. Eu lhe contarei uma história do inverno sobre a Grande e Generosa Mãe Terra, que criou tudo o que vive - disse o velho, sorrindo, e Ayla se sentou ao lado dele, sobre uma esteira perto do fogo.

- Em uma grande luta, a Mãe Terra tirou uma força vital, do Caos que é um vazio frio e imóvel, como a morte, e com ela a Mãe criou a vida do calor, mas Ela sempre tem que lutar pela vida que criou. Quando o inverno se aproxima, sabemos que a luta começou entre a Generosa Mãe Terra, que quer uma vida de calor, e a morte fria do Caos, mas primeiro, Ela deve cuidar de Seus filhos.

Ayla agora se interessava pela história, e sorriu de forma encorajadora.

- O que Ela faz para cuidar de Seus filhos?

- Ela coloca alguns para dormir, a outros veste com roupas quentes para que resistam ao frio, e pede a outros, ainda, que estoquem alimento e peles. À medida que esfria cada vez mais, a morte parece vitoriosa, e a Mãe é empurrada para mais e mais longe. Nos rigores da estação fria, quando a Mãe está encerrada na batalha de vida e morte, nada se move, nada muda, tudo parece estar morto. Para nós, sem um local quente onde viver e alimento estocado, a morte venceria no inverno; às vezes, se a batalha se prolonga mais do que o normal, isso acontece. Então, ninguém sai muito. As pessoas fazem coisas, ou contam histórias, ou conversam, mas não se movimentam muito e dormem mais. É por isto que se chamamos o inverno de pequena morte.

“Por fim, quando o frio já a carregou para o mais longe que Ela irá, a Mãe resiste. Ela força e força até quebrar as costas do inverno. Isso significa que a primavera voltará, mas não é primavera ainda. Ela teve uma longa luta, e deve descansar antes de produzir vida novamente. Mas você sabe que Ela venceu. Pode sentir o cheiro da vitória, pode senti-lo no ar”.

- Eu senti! Eu senti, Mamut! Foi por isto que tive que levar os cavalos para uma corrida. A Mãe quebrou as costas do inverno! - exclamou Ayla.

A história parecia explicar exatamente como ela se sentia.

- Acho que é hora de comemoração, não?

- Oh, sim, acho que sim!

- Quem sabe você queira ajudar-me a prepará-la, bem? - esperou somente o tempo suficiente para Ayla concordar com um gesto de cabeça.

- Nem todas as pessoas sentem Sua vitória, ainda, mas breve sentirão. Nós dois podemos observar os sinais e depois resolver quando chegar o momento certo.

- Que sinais?

- Quando a vida começa a se agitar de novo, cada pessoa o sente de forma diferente Algumas ficam felizes e querem sair, mas ainda está muito frio para sair com freqüência, por isso, elas ficam impacientes ou irritadas. Querendo reconhecer os movimentos vitais dentro de si, mas ainda virão muitas tempestades. O inverno sabe que tudo está perdido e se enfurece mais nesta época do ano, e as pessoas o sentem e se encolerizam também. Estou contente porque você me alertou. Entre este momento e a primavera, as pessoas ficarão mais inquietas.

Acho que o notará, Ayla. É quando uma comemoração é melhor. Dá às pessoas uma razão para expressar felicidade em vez de raiva.

Eu sabia que ela notaria, pensou Mamut, quando a viu enrugar a testa. Mal comecei a perceber a diferença, e ela já a reconheceu. Eu sabia que ela era bem-dotada, mas sua capacidade ainda me assombra, e estou certo de que ainda não descobri todo o seu alcance. Talvez eu nunca saiba; seu potencial pode ser muito maior que o meu. O que foi que ela disse sobre aquela raiz e a cerimônia com o Mog-ur? Eu gostaria de tê-la preparada... A cerimônia de caça com o Clã! Aquilo me mudou, os efeitos foram profundos. Está ainda em mim. Ela também teve uma experiência... Será que isso a mudou?

Salientou suas tendências naturais? Pergunto-me... O Festival de Primavera, seria cedo demais para trazer à baila aquela raiz, novamente? Talvez eu deva esperar até ela trabalhar comigo na Celebração de Quebrar as Costas... Ou a próxima... Haverá tantas daqui até a primavera...

Deegie desceu o corredor em direção à Fogueira do Mamute, usando roupa de passeio pesada.

- Esperava encontrar você, Ayla. Quero verificar aquelas armadilhas que coloquei, para ver se peguei alguma raposa branca para enfeitar a parka de Branag. Quer vir comigo?

Ayla, acabando de acordar, ergueu os olhos para o buraco de saída da fumaça parcialmente descoberto

- Parece que está bom lá fora. Vou me vestir.

Ela afastou as cobertas, sentou-se, espreguiçou-se e bocejou. Depois foi para a área sem cortina perto do anexo dos cavalos. No caminho, passou por um estrado-cama onde meia dúzia de crianças dormiam, espalhadas uma sobre a outra, formando um monte, como um bando de filhotes de lobo. Ela viu os grandes olhos castanhos de Rydag abertos e sorriu para ele. Rydag fechou os olhos de novo, e aninhou-se entre a criança mais nova, Nuvie, com quase quatro anos, e Rugie que faria oito anos em breve. Crisavec, Brinan e Tusie também estavam na pilha, e ultimamente, ela havia visto o filho mais novo de Fralie, Tasher, com três anos incompletos ainda, começando a reparar nas outras crianças. Latie, quase uma mulher, notou Ayla, brincava cada vez menos com as crianças.

Estas eram benevolentemente mimadas. Podiam comer e dormir onde e quando quisessem. Raras vezes observavam os direitos territoriais dos mais velhos; toda a habitação era delas. Podiam exigir a atenção de membros adultos do acampamento, e muitas vezes achavam que isso era bem recebido como uma interessante diversão; nenhuma delas tinha pressa especial ou algum lugar para ir. Onde quer que seus interesses as levassem, um membro mais velho do grupo estava pronto para ajudar ou explicar. Se elas queriam costurar peles, recebiam as ferramentas e tiras de couro, e fibras de nervo. Queriam-se fazer ferramentas de pedra, recebiam pedaços de sílex e martelos de pedra ou osso.

Elas lutavam e caíam, e inventavam jogos que eram, muitas vezes, versões das atividades adultas.

Faziam suas próprias pequenas fogueiras, e aprendiam a usar o fogo. Fingiam caçar, espetando com lança pedaços de carne dos recintos de congelamento e cozinhavam-nos. Quando brincavam de “fogueira”, chegando a imitar as atividades sexuais dos mais velhos, os adultos sorriam com indulgência. Nenhuma parte da vida normal era isolada como algo a ser escondido ou reprimido; tudo era instrução necessária para se tornar um adulto. O único tabu era a violência, principalmente, violência extrema ou desnecessária.

Vivendo tão juntos, tinham aprendido que nada podia destruir um acampamento ou povo como a violência, particularmente quando estavam confinados na habitação comunal durante os invernos prolonga dos e rigorosos. Quer por acidente ou plano, todo costume, hábito, convenção ou prática, mesmo se não abertamente dirigido para isso, destinava-se a manter a violência a nível mínimo. A conduta aprovada permitia um amplo círculo de diferenças individuais em atividades que não levavam, como regra, à violência, ou que talvez pudessem ser saídas aceitáveis para dar vazão a emoções fortes. A perícia pessoal era fomentada. A tolerância era encorajada; o ciúme ou inveja, embora compreendidos, eram desencorajados. As competições, incluindo discussões, eram usadas ativamente com alternativas, mas seguiam um ritual, eram estritamente controladas, e mantidas dentro de limites definidos. As crianças aprendiam rapidamente as regras básicas. Gritar era aceitável; pancada não era.

Quando Ayla verificou o grande recipiente de água, sorriu de novo diante das crianças adormecidas, que tinham estado acordadas até tarde na noite anterior. Ela gostava novamente de ter crianças por perto.

- Eu devia ir buscar neve antes de sairmos. Temos pouca água, e não neva há algum tempo. Neve limpa, aqui por perto, está se tornando difícil de encontrar.

- Não percamos tempo - disse Deegie. - Temos água em nossa fogueira e Nezzie também.

Podemos conseguir mais quando voltarmos. - Ela vestia as roupas quentes de passeio, para o frio, enquanto Ayla se vestia.

- Tenho uma bolsa de água e comida para levarmos, por isto, se não está com fome, podemos ir agora.

- Posso esperar a comida, mas preciso fazer um pouco de chá quente - disse Ayla. A ansiedade de Deegie para sair a contagiava. Eles começavam ainda, apenas, a deixar a habitação, e passar algum tempo sozinha somente com Deegie parecia divertido.

- Acho que Nezzie tem chá quente, e acredito que ela não se importaria se tomássemos uma xícara.

- Ela faz chá de hortelã de manhã. Vou apenas pegar alguma coisa para acrescentar a ele... Algo que gosto de tomar de manhã. Creio que pegarei minha funda também.

Nezzie insistiu para que as duas jovens comessem cereal cozido e quente também e lhes deu fatias de carne de seu assado da noite anterior para levar. Talut quis saber que caminho pretendiam seguir e a localização geral das armadilhas de Deegie. Quando elas saíram pela entrada principal, o dia havia começado; o sol subira acima de um aglomerado de nuvens no horizonte e iniciara sua jornada através de um céu claro. Ayla notou que os cavalos já estavam fora. Ela não os culpou.

Deegie mostrou a Ayla o movimento rápido do pé que convertia a alça de couro, presa à armação circular alongada, tecida com vime de salgueiro resistente, em um engate adequado para raquetes de neve. Com um pouco de treino, Ayla já caminhava com passos largos através da parte superior da neve juntamente com Deegie.

Jondalar as viu passar da entrada para o anexo. Com uma ruga na testa, olhou para o céu e pensou em segui-las, mas depois mudou de idéia. Viu algumas nuvens, mas nada para pressagiar perigo. Por que ele ficava sempre tão preocupado com Ayla quando ela deixava a habitação comunal? Era ridículo segui-la por toda parte. Ela não ia sair sozinha, estava com Deegie, e as duas jovens eram perfeitamente capazes de cuidar de si mesmas... Mesmo se nevasse, ou pior. Elas o veriam seguindo-as depois de algum tempo, e então, ele estaria apenas atrapalhando, quando elas desejavam ficar sozinhas. Deixou a cortina cair, e virou-se para o interior, mas não foi capaz de afastar a sensação de que talvez Ayla estivesse em perigo.

- Oh, veja, Ayla! - gritou Deegie, de joelhos, examinando a carcaça congelada de pele branca, pendendo de um laço apertado ao redor do pescoço.

Coloquei outras armadilhas. Vamos vê-las depressa.

Ayla queria ficar e examinar o laço, mas acompanhou Deegie.

- O que vai fazer com ela? - perguntou quando a alcançou.

- Depende de quantas conseguir. Eu queria fazer uma franja em uma parka de pele para Branag, mas estou fazendo uma túnica, para ele também vermelha... Não tão viva quanto o seu couro vermelho. Terá mangas compridas e levará duas peles, e estou tentando combinar a cor da segunda pele com a da primeira. Acho que gostaria de decorá-la com a pele e dentes de urna raposa branca. O que acha?

- Acho que ficará bonita. - Avançaram na neve por algum tempo, e depois Ayla disse: - O que acha que seria melhor para uma túnica branca?

- Depende. Quer outras cores, ou quer a túnica toda branca?

- Acho que quero branca, mas não tenho certeza.

- Pele de raposa branca seria bonito.

- Pensei nisso, mas... Acho que não seria adequado - disse Ayla. Não era tanto a cor que a perturbava. Ela lembrava que havia escolhido peles de raposa branca para dar a Ranec na cerimônia de adoção, e não queria recordações daquele momento.

Tinham feito saltar a segunda armadilha, mas estava vazia. O laço de tendão fora mordido e havia rastros de lobo. A terceira também apanhara uma raposa, e tinha aparentemente congelado na armadilha, porém fora mordida, a maior parte comida, na verdade, e a pele estava estragada. Novamente, Ayla assinalou rastros de lobo.

- Parece que estou pegando raposas para os lobos - falou Deegie.

- Parece que é um só lobo, Deegie - disse Ayla.

Deegie começava a temer não conseguir outra boa pele, mesmo se houvesse uma raposa presa na quarta armadilha. Correram para o local onde Deegie a armara.

- Deve estar ali, perto daqueles arbustos - disse ela enquanto se aproximavam de um pequeno bosque -, mas não vejo...

- Lá está, Deegie! - gritou Ayla, correndo à frente. - Parece em ordem também. E veja aquele rabo!

- Perfeito! - Deegie suspirou com alívio. - Eu queria duas, ao menos. - Tirou a raposa congelada do laço, amarrou-a juntamente com a primeira raposa, e atirou-as sobre um galho de árvore. Sentia-se mais relaxada agora que havia apanhado duas raposas. - Estou com fome. Por que não paramos e comemos alguma coisa aqui?

- Estou com fome, agora que você falou nisso.

Estavam numa ravina escassamente arborizada, mais matagal do que árvores, formada por um riacho que atravessara depósitos espessos de solo de loesse. Uma sensação de exaustão triste e aborrecida impregnava o pequeno vale nos dias reduzidos do longo e rigoroso inverno. Era um local monótono de brancos, pretos e cinzentos terríveis. A camada de neve, rompida pela vegetação rasteira do bosque, era antiga e compacta, perturbada por muitos rastros, e parecia usada e encardida. Os galhos quebrados expondo a madeira tosca mostravam os danos do vento, neve e animais famintos. Os salgueiros e amieiros pendiam próximos ao solo, inclinados pelo peso do clima e da estação, sobre arbustos vergados. Poucas bétulas esguias permaneciam altas e finas, raspando ruidosamente galhos nus um no outro, sob o vento, como se clamando pelo toque eficaz do verde. Mesmo as coníferas tinham perdido sua cor. Os pinheiros retorcidos, a casca com manchas de líquen cinza murchavam, e os lanços altos estavam escuros e se curvavam pesadamente com seu fardo de neve.

Dominando uma encosta baixa havia um monte de neve provido de bambus compridos espetados com espinhos aguçados - as hastes secas, lenhosas de estolhos que se tinham projetado no verão anterior para reivindicar novo território. Ayla anotou-o em sua mente, não como uma moita impenetrável de urzes-brancas espinhosas, mas como um local onde procurar frutos, como amoras, morangos, e folhas medicinais na estação adequada. Ela viu além da cena tristonha, cansada, a esperança que ela continha e, depois do longo confinamento, mesmo uma paisagem tediosa de inverno parecia promissora, especialmente com o sol brilhando.

As duas jovens empilharam a neve para fazer assentos sobre o que seria a margem de um córrego, se fosse verão. Deegie abriu sua mochila e retirou o alimento que havia guardado ali e, mais importante, a água. Abriu um embrulho de casca de vidoeiro e deu a Ayla um bolo compacto de alimento para viagem - a mistura nutritiva de frutas secas e carne e gordura, essencial para dar energia, com a forma de um bolinho.

Mamãe fez alguns dos seus pães assados com pinhas na noite passada e me deu um - disse Deegie, abrindo outro embrulho e partindo um pedaço para Ayla. Os pães eram o alimento favorito de Ayla agora.

- Terei que perguntar a Tulie como se faz este pão - disse Ayla, dando uma mordida antes de desembrulhar as fatias de carne assada de Nezzie e colocar algumas ao lado de cada uma delas. - Acho que estamos tendo uma festa aqui Tudo do que precisamos é de verduras frescas da primavera.

- Tornariam a refeição perfeita. Mal posso esperar pela primavera. Quando temos a Celebração de Quebrar as Costas, parece que fica cada vez mais difícil esperar - replicou Deegie.

Ayla se divertia com a saída em companhia de Deegie e começava a lazer calor na depressão rasa, protegida dos ventos. Ela desatou a correia na altura da garganta, afastou o capuz para trás, e depois endireitou a funda ao redor da cabeça. Fechou os olhos e ergueu o rosto para o sol. Viu a imagem persistente e circular do orbe ofuscante contra o fundo vermelho de suas pálpebras abaixadas, e sentiu o calor bem-vindo. Depois, tornou a abrir os olhos e pareceu ver com mais clareza.

- As pessoas sempre lutam nas Celebrações de Quebrar as Costas? - perguntou. - Nunca vi ninguém lutar sem mover os pés antes.

- Sim, é para honrar...

- Veja, Deegie! E primavera! - interrompeu Ayla, ficando de pé em um salto e correndo em direção a um salgueiro próximo. Quando a outra mulher se juntou a ela, Ayla apontou para o vislumbre de botões inchados ao longo de um galho fino, e um, chegado cedo demais para sobreviver, havia irrompido em brilhante verde primaveril. As mulheres sorriam uma para a outra, admiradas, exuberantes com a descoberta, como se elas próprias tivessem inventado a primavera.

O laço de armadilha de tendão ainda pendia perto do salgueiro. Ayla o segurou.

- Acho que esta é uma boa maneira de caçar. Não precisa procurar os animais. Faz uma armadilha e volta mais tarde para pegá-los, mas como faz isto e como sabe que pegará uma raposa?

- Não é difícil de fazer. Você sabe como os tendões endurecem se são molhados e postos para secar, exatamente como o couro que não é curtido.

Ayla concordou com um gesto de cabeça.

- Você faz um pequeno laço na ponta - continuou Deegie, mostrando-lhe o laço. - Depois, pega a outra ponta e passa por ele para fazer outro laço, do tamanho suficiente apenas para uma cabeça de raposa passar. Então, você o molha e deixa secar com o laço aberto, deforma que permaneça aberto. Em seguida, tem que ir ao lugar onde estão às raposas, em geral onde você as viu ou as pegou antes... Minha mãe me mostrou este lugar. Normalmente, há raposas aqui todos os anos, você pode saber, se encontrar rastros. Muitas vezes, elas seguem as mesmas trilhas quando estão perto de suas tocas. Para colocar a armadilha, você descobre uma trilha de raposa e, onde ela passar por arbustos ou perto de árvores, coloca o laço exatamente através da trilha, mais ou menos à altura de suas cabeças, e amarra-o assim, aqui e aqui. - Deegie demonstrou enquanto explicava. Ayla observava, a testa enrugada em concentração. - Quando as raposas correm pela trilha a cabeça atravessa o laço, e quando ela corre, o laço se fecha ao redor do seu pescoço. Quanto mais a raposa luta, mais apertado fica o laço. Não leva muito tempo. Depois, o maior problema é encontrar a raposa antes de outra coisa o fazer. Danug me contava sobre a forma como as pessoas do norte armam os laços. Disse que elas inclinam uma árvore nova e amarram-na ao laço, de modo que se afrouxe assim que o animal é apanhado, e salte para cima quando a árvore volta à sua posição normal. Isso mantém a raposa fora do solo até você voltar.

- Acho uma boa idéia - disse Ayla caminhando de volta aos assentos. Ela ergueu a cabeça. Depois, de repente, para surpresa de Deegie, arrancou a funda da cabeça e vasculhou o chão. - Onde há uma pedra? - cochichou. - Lá!

Com um movimento tão rápido que Deegie mal acompanhou, Ayla pegou a pedra, colocou-a na funda, girou-a e a fez voar. Deegie ouviu a pedra aterrissar, mas somente quando voltou para os assentos viu o objetivo do míssil de Ayla. Era um arminho branco, uma doninha pequena de cerca de 35 centímetros de comprimento total, mas 12 centímetros eram um rabo peludo branco com ponta preta. No verão, o animal de pele macia, alongado, teria um rico pêlo marrom com o ventre branco, mas no inverno o arminho sinuoso, pequeno, se tornava branco sedoso, exceto pelo focinho preto, olhinhos vivos, e a ponta do rabo.

- Estava roubando nosso assado! - exclamou Ayla.

- Eu nem sequer o vi próximo à neve. Você tem boa vista - disse Deegie. - E é tão rápida com a funda! Não sei por que precisa se preocupar com armadilhas, Ayla.

- Uma funda é boa para a caça, quando você vê o que quer caçar, mas uma armadilha pode caçar para você quando você nem está presente. As duas são úteis - replicou Ayla, considerando a questão com seriedade.

Sentaram-se para terminar sua refeição. A mão de Ayla voltou a esfregar o pêlo macio e espesso do pequeno arminho, enquanto conversavam.

- Arminhos têm a melhor pele - disse ela.

- A maior parte das fuinhas compridas também - disse Deegie. - Martas, zibelinas, até carcajus têm boa pele. Não tão macia, mas a melhor para capuzes, se não quer o gelo agarrado ao seu rosto.

Mas é difícil pegá-los com armadilha e não se pode realmente caçá-los com uma lança. São rápidos e selvagens. Sua funda pareceu funcionar, embora eu não saiba, ainda, como você o pegou.

- Aprendi a usar a funda caçando essa espécie de animais. Só cacei carnívoros no começo e aprendi primeiro seus hábitos.

- Por quê?

- Eu não devia caçar, de forma alguma. Assim, não caçava animais que serviam para alimento, somente aqueles que roubavam comida de nós.

- Riu alto, com desdém e percepção. - Achei que isto resolveria tudo.

- Por que não queriam que você caçasse?

- As mulheres do Clã não têm permissão para caçar... Mas, afinal, deixaram que usasse minha funda. - Ayla fez uma pausa rápida, recordando: - Sabe, matei um carcaju muito antes de matar um coelho.

Sorriu com ironia.

Deegie balançou a cabeça, espantada. Que estranha infância Ayla devia ter tido, pensou. Levantaram-se para ir embora e, enquanto Deegie ia buscar suas raposas, Ayla levantou o pequeno arminho branco, macio. Esfregou a mão ao longo do corpo do animal, até a ponta do rabo.

- E isso o que quero! - exclamou, de repente. - Arminho!

- Mas, é isso o que você tem - falou Deegie.

- Não, quero dizer para a túnica branca. Quero enfeitá-la com pele de arminho branco, e os rabos.

Gosto dos rabos com as pequenas pontas pretas.

- Onde conseguirá arminho suficiente para decorar uma túnica? - perguntou Deegie. - A primavera vai chegar, eles logo mudarão de cor novamente.

- Não preciso de muitos e, onde há um, em geral, há mais por perto. Vou caçá-los, agora - disse Ayla. - Preciso de algumas boas pedras. - Começou a abrir caminho na neve, procurando pedras perto da margem do riacho congelado.

- Agora? - perguntou Deegie.

Ayla parou e levantou a cabeça. Quase havia esquecido a presença de Deegie em sua excitação. Ela poderia dificultar o rastreamento e a espreita da caça.

- Não precisa esperar por mim, Deegie. Volte. Eu sei o caminho.

- Voltar? Eu não perderia isso por nada!

- E capaz de ficar muito quieta?

Deegie sorriu:

- Já cacei antes, Ayla.

Ayla corou, sentindo que dissera a coisa errada.

- Eu não queria dizer...

- Sei que não - falou Deegie, e sorriu. - Acho que eu poderia aprender algumas coisas com alguém que matou um carcaju antes de matar um coelho. Os carcajus são mais perversos, astutos, destemidos e rancorosos que qualquer outro animal, incluindo as hienas. Eu já os vi afastar leopardos de suas próprias caças, e chegam a enfrentar um leão da caverna. Tentarei ficar fora do seu caminho. Se achar que estou afugentando o arminho, diga-me, e esperarei por você aqui. Mas não me peça para voltar.

Ayla sorriu com alívio, pensando como era maravilhoso ter uma amiga que a compreendia tão depressa.

- Arminhos são tão maldosos quanto carcajus, Deegie. Apenas, são menores.

- Há alguma coisa que eu possa fazer para ajudar?

- Ainda temos carne assada, talvez seja útil, mas primeiro devemos encontrar rastros... Depois de eu ter um bom suprimento de pedras.

Quando Ayla havia acumulado uma pilha satisfatória de mísseis e os colocou na bolsa presa ao seu cinto, pegou a mochila e atirou-a sobre o ombro esquerdo. Depois, parou e estudou a paisagem, buscando o melhor local para começar. Deegie estava de pé ao lado dela e a apenas um passo atrás, esperando que ela tomasse a frente. Quase como se pensasse alto, Ayla começou a lhe falar em voz baixa.

- Doninhas não fazem covas. Usam o que encontram, até mesmo a toca de um coelho... Depois que matam o coelho. Às vezes, acho que não precisariam de uma toca, se não tivessem filhotes. Estão sempre em movimento: caçando, correndo, subindo, erguendo-se e espiando, e sempre matando, dia e noite, mesmo depois de terem acabado de comer, embora possam abandonar o animal caçado. Comem tudo, esquilos, coelhos, aves, ovos e carne fresca. Produzem um odor forte e com mau cheiro quando estão acuados, não para esguichar como o gambá, mas o odor é igualmente ruim, e fazem sons como este... - Ayla soltou um grito que era um berro parcialmente abafado e também uma espécie de grunhido. - Na época de seus prazeres, assobiam.

Deegie estava completamente assombrada. Ela havia aprendido agora mais sobre doninhas e arminhos do que aprendera durante a vida inteira. Ela nem sequer sabia que emitiam um som como aquele.

- São boas mães, têm muitos filhos, duas mãos... - Ayla parou para pensar no nome da palavra de contagem. - Dez, às vezes mais. Ou então, poucos, apenas. Os filhotes ficam com a mãe até quase adultos. - Parou de novo para examinar a paisagem com ar crítico. - Nesta época do ano, os filhotes talvez ainda estejam com a mãe. Procuramos rastros... Acho que perto do bambuzal. - Partiu em direção ao monte de neve que cobria mais ou menos a massa emaranhada de caules e estolhos que tinham germinado no mesmo local, havia muitos anos.

Deegie a seguiu, perguntando-se como ela poderia ter aprendido tanto, sendo Ayla não muito mais velha que ela. Deegie havia notado que a fala de Ayla havia deslizado apenas um pouco - era o único sinal de sua excitação - mas a fez compreender como Ayla falava bem agora. Raramente falava depressa, mas seu Mamutoi era quase perfeito, exceto pela maneira como pronunciava alguns sons. Deegie achava que talvez ela jamais perdesse aquele maneirismo de fala, e esperava realmente que não perdesse. Aquilo a tornava diferente... E mais humana.

- Procure pequenos rastros com cinco unhas, às vezes apenas quatro aparecem, eles deixam os menores rastros de qualquer carnívoro, e as garras traseiras entram nos mesmos rastros que as dianteiras fizeram.

Deegie se demorava atrás, não querendo pisar nos rastros delicados, observando. Ayla vasculhou, lenta e cuidadosamente, cada área do espaço à sua volta a cada passo que dava, o terreno coberto de neve e cada tora caída, cada galho de todos os arbustos, os troncos finos de vidoeiros nus e os ramos curvados de pinheiros com folhas escuras. De repente, seus olhos se detiveram em sua vigilância constante, imobilizados por uma visão que prendeu sua respiração. Ela abaixou o pé devagar enquanto estendia a mão para a mochila, a fim de pegar um grande pedaço de carne de bisão mal- passada, e pousou-o no solo à sua frente. Depois, recuou com cautela, e enfiou a mão na sacola de pedras.

Deegie olhou além de Ayla sem se mover, tentando ver o que ela via. Afinal, notou movimento, e depois, concentrou-se em várias pequenas formas brancas que se moviam, sinuosamente, em direção a elas. Corriam com velocidade surpreendente embora estivessem subindo em um emaranhado de árvores derrubadas, escalando e descendo de árvores, através de moitas, entrando e saindo de pequenas cavidades e fendas, e devorando tudo o que encontravam em seu caminho. Deegie jamais havia observado os pequenos carnívoros vorazes antes, e olhava com fascinação arrebatada. Eles ficavam de pé ocasionalmente, os brilhantes olhos negros alertas, os ouvidos atentos a qualquer som, mas arrastados infalivelmente pelo olfato para sua infeliz vítima.

Enfiando-se em ninhos de ratazanas e ratos, sob raízes de árvores em busca de rãs e salamandras que hibernavam, e disparando atrás de pequenas aves com demasiada fome e frio para voar, o bando destruidor de oito ou dez pequenas doninhas brancas se aproximou. Com as cabeças movendo-se para frente e para trás, os olhos ansiosos de pequenas contas negras, saltavam com precisão mortal sobre o cérebro, a nuca e a veia jugular. Atacando sem piedade, eram os mais eficazes assassinos sanguinários do mundo animal, e Deegie ficou, de repente, muito contente por serem pequenas doninhas. Não parecia haver razão para tal destruição leviana, a não ser um desejo de matar - exceto a necessidade de manter um corpo continuamente ativo estimulado do modo que a natureza lhes ordenava e destinava fazer.

Os arminhos foram atraídos para o pedaço de carne mal-passada e, sem hesitação, começaram a cortar caminho em direção a ele. De súbito, houve confusão, pedras atiradas com força aterrissavam entre os animais que comiam, derrubando alguns e, então o inconfundível odor de almíscar encheu o ar. Deegie estivera tão absorta observando os animais, que não vira os preparativos controlados de Ayla e seus arremessos rápidos.

Então, de algum lugar, um grande animal negro saltou entre os arminhos brancos, e Ayla ficou aturdida ao ouvir um uivo ameaçador. O lobo avançou para a carne de bisão, mas foi afastado por dois arminhos ousados e destemidos. Recuando um pouco, apenas, o carnívoro preto descobriu um arminho recentemente tornado inofensivo, e agarrou-o, em vez disso.

Mas Ayla não tinha a intenção de deixar o lobo negro roubar-lhe o arminho; ela havia feito muito esforço para pegá-los. Eram sua caça e ela os queria para a túnica branca. Quando o lobo se afastava com o pequeno arminho branco à boca, Ayla foi atrás. Os lobos também eram carnívoros. Ela os havia examinado tão de perto quanto as doninhas quando ensinava a si mesma a usar uma funda. Ela os compreendia também. Pegou um galho caído enquanto corria atrás do animal. Um lobo solitário, normalmente, cedia diante de um ataque determinado e talvez soltasse o arminho.

Se fosse uma alcatéia, ou mesmo apenas dois lobos, ela não teria tentado um ataque tão imprudente, mas quando o lobo negro parou para mudar a posição do arminho em sua boca, Ayla o perseguiu como galho, para desferir-lhe um golpe firme. Ela não pensava no galho como arma, mas planejava apenas assustar o lobo e fazê-lo largar o pequeno animal peludo que segurava na boca.

Mas Ayla foi quem ficou sobressaltada. O lobo deixou cair o arminho aos seus pés, e com um uivo maldoso e feio, saltou diretamente para ela.

Sua reação imediata foi atravessar o galho diante dela como defesa, para conter o lobo que atacava, e sua rápida onda de energia lhe dizia para correr. Mas, no bosque arborizado, o galho frio e quebradiço se partiu quando ela o girou e atingiu uma árvore. Ela ficou com um toco podre na mão, mas a ponta partida voou para a cara do lobo. Foi o suficiente para detê-lo. O animal também estivera blefando, e não se encontrava muito ansioso para atacar. Parando para pegar o arminho morto, o lobo se afastou da ravina arborizada.

Ayla estava assustada, mas zangada, e chocada, também. Não podia deixar o arminho ser levado assim. Perseguiu o lobo mais uma vez.

- Deixe! - gritou Deegie. - Já conseguiu o suficiente! Deixe o lobo ficar com ele.

Mas Ayla não ouviu, não prestava atenção. O lobo se dirigia para terreno aberto e ela estava bem atrás dele. Pegando outra pedra, e encontrando apenas duas, Ayla correu atrás do lobo. Embora esperasse que o grande carnívoro se distanciasse logo dela, tinha que fazer mais uma tentativa. Colocou uma pedra em sua funda e arremessou-a sobre o animal que fugia. A segunda pedra, que seguiu a primeira logo depois, terminou aquilo que a primeira começara. As duas atingiram o alvo.

Ela sentiu uma sensação de alegria quando o lobo caiu. Aquele não roubaria mais nada dela. Enquanto corria para pegar o arminho, resolveu que talvez levasse a pele do lobo também, mas quando Deegie a encontrou, Ayla estava sentada ao lado do lobo morto e do arminho, e não se movia. A expressão em seu rosto fez Deegie se preocupar.

- O que há, Ayla?

- Eu devia ter deixado a loba levar o arminho. Eu devia saber que havia uma razão para ela ir atrás da carne, embora o arminho a quisesse. Os lobos sabem como os arminhos são maldosos, e em geral, um lobo solitário recua sem atacar em um local desconhecido. Eu devia ter deixado que ficasse com o arminho.

- Não entendo. Você pegou o arminho de volta, e além disso, a pele de uma loba. O que quer dizer com “devia ter deixado que ficasse com o arminho”?

- Veja - disse Ayla, apontando para o ventre da loba. - Ela está amamentando, teve filhotes.

- Não é cedo para as lobas darem cria?

- É. Ela está fora da temporada e era solitária. Por isto tinha tanta dificuldade em encontrar alimento suficiente. E por isto ela veio atrás da carne e queria o arminho também. Veja suas costelas. Os filhotes têm tirado muito dela, é pouco mais que pele e ossos. Se vivesse com um bando, eles a ajudariam a alimentar os filhotes, mas se vivesse com um bando de lobos, não teria tido filhos. Somente a líder fêmea de uma alcatéia tem filhotes, em geral, e esta loba é da cor errada. Os lobos se acostumam com certas cores e marcas. Ela é como a loba branca que eu costumava observar quando aprendia sobre lobos. Tampouco gostavam dela. Ela estava sempre tentando se dar bem com a líder fêmea e o líder macho, mas eles não a queriam por perto. Depois que o bando cresceu, ela se foi. Talvez estivesse cansada de ninguém gostar dela.

Ayla abaixou os olhos para a loba negra.

- Como esta fez. Talvez por isto ela quis ter filhotes, porque estava solitária. Mas não devia ter tido tão cedo. Acho que é a mesma loba negra que vi quando caçamos os bisões, Deegie. Ela deve ter deixado o bando para procurar um lobo solitário a fim de começar seu próprio bando, porque os novos bandos começam assim. Mas é sempre difícil para os solitários. Os lobos gostam de caçar juntos, e cuidam um do outro. O líder sempre ajuda a fêmea líder com os filhotes. Devia vê-los às vezes, gostam de brincar com os filhotes. Mas, onde está seu companheiro? Será que ela encontrou um macho? Será que ele morreu?

Deegie estava surpresa por ver que Ayla lutava contra as lágrimas por causa de uma loba morta.

- Todos morrem um dia, Ayla. Todos nós vamos voltar para a Mãe.

- Eu sei, Deegie, mas em primeiro lugar ela era diferente e, em segundo, estava sozinha. Ela teria alguma coisa enquanto vivia, um companheiro, uma alcatéia de que fazia parte, no máximo alguns filhotes.

Deegie achou que começava a compreender por que Ayla sentia tão fortemente por causa de uma velha loba preta, esquelética. Ela se colocava no lugar da loba.

- Ela teve filhotes, Ayla.

- E agora, eles também vão morrer. Não têm um bando, nem sequer um macho, líder. Sem mãe, morrerão. - De repente, Ayla se levantou de um salto. - Não vou deixá-los morrer!

- O que quer dizer? Não vai?

- Vou encontrá-los. Vou seguir o rastro da loba preta até sua cova.

- Pode ser perigoso. Talvez haja outros lobos por perto. Como pode ter certeza?

- Estou certa, Deegie. Tenho apenas que olhar para ela.

- Bem, se não posso fazer com que mude de idéia, tenho apenas uma coisa a dizer, Ayla.

- O quê?

- Se espera que eu percorra tudo o que é lugar atrás de rastros de lobo com você, poderá carregar seus arminhos - disse Deegie, tirando cinco carcaças de arminhos brancos de seu bornal. - Tenho o suficiente para carregar, com minhas raposas! - Deegie sorria de deleite.

- Oh, Deegie - disse Ayla, retribuindo o sorriso com calor e afeto.

- Você os trouxe!

As duas jovens se abraçaram com toda a força do seu carinho e amizade.

- Uma coisa é certa, Ayla. Nada é monótono perto de você! - exclamou Deegie, ajudando Ayla a encher sua mochila com os arminhos. - O que vai fazer com a loba? Se não a levarmos, alguém o fará, e uma pele de lobo negro não é tão comum assim.

- Eu queria levá-la, mas primeiro vou encontrar seus filhotes.

- Muito bem, eu a carrego - disse Deegie, içando a carcaça para o ombro. - Se tivermos tempo mais tarde, tirarei a pele dela. - Começou a fazer mais uma pergunta, depois mudou de idéia. Logo descobriria, exatamente, o que Ayla pretendia fazer se encontrasse algum filhote de lobo vivo.

Tiveram que voltar ao vale para encontrar os rastros corretos. A loba havia feito um bom trabalho ao encobrir seu rastro, sabendo quão precária era a vida que ela deixava desprotegida. Deegie teve certeza, várias vezes, de que tinham perdido a pista, e ela sabia rastrear, mas Ayla estava motivada a persistir até encontrar a pista de novo. Quando chegaram ao local em que Ayla tinha segurança de estar a cova, o sol mostrava que era o fim da tarde.

- Tenho que ser honesta, Ayla. Não vejo sinais de vida.

- E assim que deve ser, se eles estão sozinhos. Se houvesse sinais de vida, seria um convite á encrenca.

- Talvez tenha razão, mas se há filhotes ali, como vai fazê-los sair?

Acho que só existe único meio. Terei que entrar para pegá-los.

Não pode fazer isso, Ayla! Uma coisa é observar lobos de longe, outra é entrar em seus covis. E se houver lá mais que filhotes? Pode haver outro lobo adulto por perto.

- Viu algum outro rastro adulto além dos da loba?

- Não, mas ainda não gosto da idéia de você entrar em uma cova de lobo.

- Não vim até tão longe para ir embora sem descobrir se há filhotes por perto. Tenho que entrar, Deegie.

Ayla pousou sua mochila e se dirigiu para a pequena e escura cavidade no solo. Fora escavada de um velho covil abandonado há muito tempo atrás, porque não era o local mais favorável, mas era o melhor que a loba negra conseguiu encontrar depois que seu companheiro, um velho lobo solitário, atraído para ela no cio antecipado, morreu em uma luta. Ayla se agachou e começou a se introduzir furtivamente.

- Espere, Ayla! - gritou Deegie. - Aqui está minha faca. Leve-a!

Ayla concordou com um gesto de cabeça, colocou a faca entre os dentes e começou a entrar no buraco escuro. A princípio havia uma inclinação para baixo e a passagem era estreita. De repente, ela se encontrou presa e teve que recuar.

- Não - disse ela, tirando a parka por cima da cabeça. – Vou tirar isso.

Tremia de frio até estar no interior da toca, mas a primeira parte do túnel só dava para seu corpo passar. Perto do fundo, onde terminava o declive e era um local plano, havia mais espaço, mas a cova parecia deserta. Com o corpo ainda bloqueando a claridade, ela levou algum tempo para seus olhos se acostumarem à escuridão, mas só quando começou a recuar foi que achou ter ouvido um som.

- Lobo, lobinho, está aí? - gritou; depois, lembrando-se das inúmeras vezes em que havia vigiado e ouvido os lobos, emitiu um ganido suplicante. Então, ouviu. Um chorinho fraco vinha do recesso mais profundo e escuro da cova, e Ayla sentiu vontade de gritar de júbilo.

Ela rastejou para mais perto do som e ganiu de novo. O choro estava mais próximo, e então, viu dois olhos brilhantes, mas quando estendeu a mão para o filhote, ele recuou e soltou um rosnado e ela sentiu dentes aguçados morderem sua mão.

- Ah, você é valente! - exclamou Ayla e depois sorriu. - Ainda está vivo! Vamos, venha, lobinho. Tudo ficará bem. Venha - estendeu a mão para o filhote de novo, soltando seu ganido suplicante, e sentiu uma felpuda bola de pele.

Segurando-a bem, puxou o filhote, bufando e lutando o tempo todo, para ela. Então, recuou, saindo da toca.

- Veja o que achei, Deegie! - exclamou Ayla, sorrindo, vitoriosa, enquanto erguia um lobinho cinzento e peludo.

Jondalar estava fora da habitação, andando de um lado para o outro, entre a entrada principal e o anexo dos animais. Mesmo com a parka quente que usava, uma velha de Talut, sentia a queda da temperatura quando o sol descia ao encontro do horizonte. Ele havia subido a encosta várias vezes na direção que Ayla e Deegie tinham tomado, e pensava em subi-la de novo.

Esforçara-se por acalmar sua ansiedade desde que as duas jovens partiram, naquela manhã e, quando começou a passear para lá e para cá, preocupado, no início da tarde, os outros sorriram com condescendência, porém, não estava mais sozinho em sua preocupação. Tulie já tinha subido a encosta algumas vezes, e Talut falava em formar um grupo para ir procurar as moças com tochas.

Até Whinney e Racer pareciam nervosos.

Quando o fogo brilhante no oeste escorregou para trás de um aglomerado de nuvens pendendo perto da extremidade da terra, o sol emergiu como um agudamente definido círculo cintilante e vermelho de luz; um circulo do outro mundo, sem profundidade ou dimensão, perfeito e simétrico demais para pertencer ao meio natural. Mas o orbe vermelho brilhante em prestava colorido às nuvens e um vislumbre de saúde ao outro rosto parcialmente pálido da outra companhia sobrenatural que estava baixa, no céu oriental.

Exatamente quando Jondalar estava a ponto de subir novamente a encosta, dois vultos surgiram no topo, recortados contra um vivido fundo cor de alfazema que mudava gradualmente para anil. Uma única estrela cintilava ao alto. Ele soltou um grande suspiro e curvou-se contra as presas em arco, sentindo-se aliviado com a repentina liberação da tensão. Estavam salvas. Ayla estava salva.

Mas, por que tinham demorado tanto? Elas deviam saber que não era certo preocupar tanto os outros. Por que demoraram tanto? Talvez tivessem dificuldades. Ele devia tê-las seguido

- Elas estão aqui! Estão aqui! - gritava Latie.

As pessoas saíam correndo da habitação comunal parcialmente vestidas; aquelas que se encontravam do lado de fora e vestidas correram ao encontro das moças.

- Por que demoraram tanto? É quase noite. Onde estavam? - perguntou Jondalar assim que Ayla alcançou a habitação

Ela o encarou com surpresa.

- Vamos fazê-las entrar primeiro - disse Tulie. Deegie sabia que a mãe não estava satisfeita, mas elas tinham estado fora o dia todo, estavam cansadas, e esfriava depressa. As recriminações viriam mais tarde, depois que Tulie se certificasse de que ela estava bem. Foram empurradas para o interior, diretamente através do vestíbulo e para a fogueira de cozinhar.

Deegie, grata por se livrar dos fardos, pegou a carcaça da loba negra que havia endurecido com a forma do seu ombro. Quando ela a deixou cair sobre a esteira, houve exclamações de surpresa, e Jondalar empalideceu Elas tinham estado em apuros.

- Isso é um lobo! - disse Druwez, olhando para a irmã com medo.

Onde arranjou esse lobo?

- Espere até ver o que Ayla trouxe - disse Deegie, tirando as raposas brancas de seu bornal.

Ayla tirava os arminhos congelados de seu saco com uma das mãos, mantendo a outra cuidadosamente contra seu ventre, sobre a sua quente túnica de pele com capuz.

- São arminhos muito bonitos - disse Druwez, não tão impressionado com os pequenos arminhos brancos quanto estava com o lobo negro, mas não querendo ofender.

Ayla sorriu para o garoto, depois desatou a tira de couro que prendera ao redor da parka e, estendendo a mão sob ela, retirou uma bolinha cinzenta de pele. Todos olhavam para ver o que tinha. De repente, a bolinha se moveu.

O lobinho havia dormido confortavelmente contra o corpo quente de Ayla, sob sua roupa exterior, mas a claridade e o ruído, e os odores não-familiares o assustaram. O filhote chorou e tentou aninhar-se contra a mulher cujo odor e calor tinham-se tornado familiares. Ela colocou o filhote no chão da escavação de desenhar. O filhote ficou de pé, deu alguns passos vacilantes. agachou-se prontamente em seguida e fez uma poça que foi rapidamente absorvida pela terra seca, macia.

- É um lobo! - exclamou Danug.

- Um filhote de lobo! - acrescentou Latie, os olhos cheios de deleite

Ayla viu Rydag se aproximando para ver o animal. Ele estendeu a mão e o filhote a cheirou, e depois lambeu-a. O sorriso de Rydag era de alegria pura.

- Onde conseguiu o lobinho? - perguntou por sinais a Ayla.

- É uma longa história - respondeu ela também por sinais - que contarei mais tarde. - Tirou sua parka rapidamente. Nezzie a pegou e lhe entregou uma xícara de chá quente. Ela sorriu, grata, e bebeu um gole.

- Não importa onde ela o encontrou. O que ela fará com ele? - perguntou Frebec. Ayla sabia que ele compreendia a linguagem de sinais, embora ele afirmasse o contrário. Obviamente, havia compreendido Rydag. Virou-se e encarou-o.

- Vou cuidar dele, Frebec - disse, os olhos cintilantes, em desafio.

- Eu matei a mãe dele... - fez um gesto em direção à loba negra -... E vou cuidar deste bebê.

- Isso não é um bebê. É um lobo! Um animal que pode ferir as pessoas - disse ele.

Raras vezes Ayla tomava uma posição tão firme contra ele ou outra pessoa, e ele descobria que muitas vezes ela cedia em coisas pequenas para evitar conflito, se ele fosse suficientemente

desagradável. Não esperava um confronto direto, e não gostava daquilo, especialmente ao pressentir que não havia probabilidade de ele se sair bem.

Manuv olhou para o filhote e depois para Frebec, o rosto partido em um largo sorriso:

- Tem medo de que esse animal fira você, Frebec?

O riso rouco fez Frebec corar de raiva.

- Eu não quis dizer isso. Quero dizer que os lobos podem ferir as pessoas. Primeiro, os cavalos, agora, lobos. O que virá depois? Não sou animal e não quero viver com animais - falou. Depois se afastou, não estando pronto para testar se o resto do Acampamento do Leão preferiria ficar com ele, ou com Ayla e seus animais, se ele os obrigasse a fazer uma escolha.

- Tem carne sobrando daquele assado de bisão, Nezzie?

- Deve estar faminta. Vou preparar um prato para você jantar.

- Para mim, não. Para o filhote - disse Ayla.

Nezzie trouxe uma fatia de carne assada para Ayla, perguntando-se como um lobo tão pequeno iria comê-la. Mas Ayla se lembrava de uma lição que aprendera havia muito tempo: os bebês podem comer qualquer coisa que suas mães comam, porém deve ser um alimento mais macio e mais fácil de mastigar e engolir.

Uma vez, ela havia levado um filhote de leão da caverna ferido para o seu vale, e o alimentara com carne e caldo em vez de leite. Os lobos também eram carnívoros. Ela recordou que quando observava os lobos para aprender sobre eles, muitas vezes os lobos mais velhos mastigavam o alimento e o engoliam para levá-lo de volta ao covil. Depois, vomitavam-no para os filhotes. Mas ela não precisava mastigar a carne, ela tinha mãos e uma faca afiada, podia cortá-la.

Depois de picar a carne até formar uma pasta com ela, Ayla a colocou em uma tigela e acrescentou água quente, para que a temperatura se aproximasse à do leite materno- O filhote estivera cheirando as bordas da escavação de desenhar, mas parecia com medo de se aventurar além dos seus limites. Ayla se sentou na esteira, estendeu a mão e, suavemente, chamou o lobinho. Ela tirara o filhote de um local frio e solitário, e trouxe-lhe calor e conforto, e seu odor já estava associado a segurança. A bola felpuda de pele caminhou para a mão estendida de Ayla.

Ela o pegou, primeiro, para examiná-lo. Um estudo revelou que era um macho, e muito novo, provavelmente não mais que um ciclo completo de fases da lua se tinha passado, desde que ele nascera. Ela se perguntou se ele tivera irmãos e, neste caso, quando morreram. Ele não estava ferido, de forma alguma visível, e não parecia mal nutrido, embora a loba negra estivesse muito magra, com certeza. Quando Ayla pensava nas terríveis dificuldades que a loba tivera que enfrentar para manter aquele filhote vivo, ela se lembrou de uma provação que enfrentara, certa vez, e isso fortaleceu sua resolução. Se pudesse, manteria o filhote da loba vivo, não importava o que fosse preciso, e nem Frebec, nem ninguém mais iria detê-la.

Conservando o filhote ao colo, Ayla mergulhou o dedo na tigela de carne picada e manteve-o sob o focinho do lobinho. Ele estava com fome. Cheirou a carne, lambeu, e depois lambeu o dedo inteiro de Ayla. Ela repetiu o gesto e ele tornou a lamber. Ela o manteve ao colo e continuou a alimentá-lo, sentindo seu pequeno ventre arredondar-se. Quando achou que ele comera o suficiente, colocou um pouco d’água sob seu focinho, mas ele apenas provou. Depois ela se ergueu e carregou-o para a Fogueira do Mamute.

- Acho que encontrará algumas cestas velhas ali naquele banco - disse Mamut, acompanhando-a.

Ela lhe sorriu. Ele sabia exatamente o que ela tinha em mente. Ela vasculhou por perto e encontrou um grande recipiente de cozinha de vime entrelaçado, abrindo-se de um lado, e colocou-o sobre o estrado perto da cabeceira da sua cama. Mas, quando colocou o filhote dentro, ele chorou para sair. Ela o pegou e olhou ao redor de novo, incerta sobre o que funcionaria. Ficou tentada a levá-lo para sua cama, mas já passara por isso com filhotes de leão e cavalos em crescimento. Era difícil demais fazê-los mudar de hábitos mais tarde, e além disso, talvez Jondalar não quisesse dividir sua cama com um lobo.

- Ele não está feliz na cesta. Provavelmente, quer sua mãe ou outros filhotes com quem dormir - disse Ayla.

- Dê-lhe alguma coisa sua, Ayla - falou Mamut. - Alguma coisa macia, confortável familiar. Você é a mãe dele, agora.

Ela concordou, com um gesto de cabeça, e examinou sua pequena variedade de roupas. Não tinha muitas. Seu belo traje que Deegie lhe dera, o que ela havia feito no vale antes de vir para ali, e algumas bugigangas que lhe foram dadas por outras pessoas, como troca. Ela tivera muitos agasalhos sobrando quando vivera com o Clã, e até no vale...

Observou o bornal que trouxera do vale, abandonado num canto distante da plataforma de estocagem. Vasculhou-o e tirou uma capa de Durc, mas, depois de segurá-la um pouco, dobrou-a e guardou-a novamente. Não suportava cedê-la. Depois encontrou seu antigo agasalho do Clã, uma pele grande e velha de couro macio. Ela havia usado uma igual, enrolada à sua volta e amarrada com urna tira de couro comprida, por tanto tempo quanto era capaz de lembrar, até o dia em que deixara o vale pela primeira vez com Jondalar. Parecia que tanto tempo se passara! Revestiu a cesta com a capa do Clã e colocou o filhote nela. Ele cheirou, depois se aninhou depressa e adormeceu rapidamente.

De súbito, ela compreendeu o quanto estava cansada e faminta, e como suas roupas continuavam úmidas de neve. Tirou as botas molhadas e o forro feito de lã feltrada de mamute, e trocou por um traje seco e a proteção para os pés, caseira e macia, que Talut lhe havia mostrado como fazer. Ela ficara intrigada com o par que ele usara na cerimônia de sua adoção e convencera-o a lhe ensinar como se fazia.

As proteções para os pés baseavam-se em uma característica natural do alce ou veado: a perna traseira se curva tão agudamente na articulação do jarrete que tem a forma natural de um pé humano. A pele era cortada acima e abaixo da junta e tirada em uma só peça. Depois de curar, a extremidade inferior era costurada com nervo, no tamanho desejado, e a parte superior era enrolada e amarrada acima do tornozelo com cordões ou tiras de couro. O resultado era um sapato meia de couro sem costura, quente e confortável.

Depois de se trocar, Ayla foi para o anexo ver os cavalos, e tranqüilizá-los, mas notou uma hesitação e resistência na égua quando foi acariciá-la.

- Está sentindo o cheiro do lobo, não é, Whinney? Terá que se acostumar com ele. Vocês dois. O lobo ficará aqui conosco, por algum tempo - estendeu as mãos e deixou os dois animais cheirarem-nas. Racer recuou, bufou e agitou a cabeça e cheirou novamente. Whinney colocou o focinho nas mãos da mulher, mas as orelhas se abaixaram e se moveu, indecisa. - Você se acostumou com Neném, Whinney, pode acostumar-se com... Lobo. Eu o trarei aqui amanhã, quando ele acordar. Quando você vir quão pequeno ele é, saberá que não pode lhe fazer mal.

Quando Ayla voltou ao interior, viu Jondalar perto da cama, olhando para o filhote. Sua expressão era impenetrável, mas ela pensou ver curiosidade e alguma coisa como ternura em seus olhos. Ele ergueu a cabeça e viu-a, e sua testa se enrugou em uma forma familiar.

- Ayla, por que ficaram fora tanto tempo? - perguntou ele. Todos se preparavam para ir procurá-las.

- Não pretendíamos ficar, mas quando vi que a loba negra que matei estava amamentando, tive que descobrir se havia filhotes vivos - respondeu Ayla.

- Que diferença faz? Os lobos morrem o tempo todo, Ayla! - Ele havia começado a falar em tom de voz razoável, mas seu medo pela segurança dela fazia sua voz elevar-se. - Foi estúpido seguir o rastro de um lobo assim. Se tivesse encontrado um bando de lobos, eles a teriam matado. - Jondalar estivera descontrolado de preocupação, mas com o alívio veio a incerteza e uma ponta de raiva frustrada.

- Faz diferença para mim, Jondalar – disse, ela, zangada, saltando em defesa do lobo. - E não sou estúpida. Cacei muitos carnívoros antes de caçar qualquer outra coisa. Conheço os lobos. Se houvesse um bando, eu não teria seguido o rastro da loba, inversamente, até sua cova. O bando teria tomado conta dos filhotes.

- Mesmo sendo uma loba solitária, por que passou o dia inteiro procurando um filhote? - A voz de Jondalar soou mais alta, ele liberava suas tensões assim como tentava convencê-la a não correr tais riscos novamente.

- Aquele filhote era tudo o que a loba tinha. Não podia deixá-lo morrer de fome porque matei sua mãe. Se alguém não se tivesse importado comigo quando eu era criança, eu não estaria viva. Também tenho que me importar, mesmo com um lobinho. - A voz de Ayla também era alta.

- Não é a mesma coisa. Um lobo é um animal. Você devia ter mais juízo, Ayla, e não arriscar a vida por causa de um filhote de lobo - gritou Jondalar. Ele não parecia fazê-la compreender. - Este não é o tipo de clima para ficar fora o dia todo.

- Tenho bom senso, Jondalar - disse Ayla com a raiva brilhando em seus olhos. - Fui eu que sai. Não acha que sei como estava o tempo? Não acha que sei quando minha vida está em perigo? Tomei conta de mim antes de você chegar, e enfrentei perigos maiores. Até cuidei de você. Não preciso que me diga que sou estúpida e sem juízo.

As pessoas que se reuniam na Fogueira do Mamute reagiam à discussão, sorrindo nervosamente, e tentando não dar importância ao caso. Jondalar olhou ao redor e viu várias pessoas sorrindo e conversando entre si, mas quem se salientava era o homem escuro de olhos penetrantes. Havia uma ponta de condescendência em seu largo sorriso?

- Tem razão, Ayla. Não precisa de mim, não é? Para nada - rebateu Jondalar e, vendo Talut se acercar, perguntou: - Você se importaria se eu me mudasse para a cozinha, Talut? Tentarei não incomodar ninguém.

- Não, claro que não me importo, mas...

- Ótimo. Obrigado. - disse ele, e agarrou suas cobertas e pertences do estrado-cama que dividia com Ayla.

Ayla ficou magoada, descontrolada ao pensar que ele talvez quisesse realmente dormir longe dela. Estava quase pronta a pedir que ele ficasse, mas o orgulho a manteve calada. Ele havia partilhado sua cama, mas fazia tanto tempo que não compartilhavam prazeres que ela estava certa de que ele deixara de amá-la. Se ele não a amava mais, ela não o forçaria a ficar, embora o pensamento desse um nó de medo e dor em seu estômago.

- É melhor levar sua parte de comida também - disse ela, enquanto ele enfiava coisas em uma mochila. Depois, tentando um meio de tornar a separação menos total, acrescentou: - Embora eu não saiba quem irá cozinhar para você lá. Não é uma verdadeira fogueira.

- Quem pensa que cozinhava para mim quando eu fazia minha jornada? Uma donii. Não preciso de uma mulher para cuidar de mim. Eu mesmo cozinharei! - Ele se afastou, os braços carregados de pele, através da Fogueira da Raposa e da Fogueira do Leão, e atirou sua coberta de cama perto da área de trabalhar em ferramentas. Ayla o viu sair, sem querer acreditar.

A habitação fervilhava com conversas sobre sua separação. Deegie desceu correndo o corredor depois de ouvir a notícia, achando difícil acreditar. Ela e a mãe tinham ido para a Fogueira dos Auroques, enquanto Ayla alimentava o lobo e conversaram em voz baixa durante algum tempo. Deegie, que também trocara as roupas molhadas por outras, secas, parecia tanto calma quanto decidida. Sim, elas não deviam ter ficado fora tanto tempo, por sua própria segurança como também pela preocupação que causaram aos outros, mas não, diante das circunstâncias, ela não teria feito nada diferente. Tulie gostaria de ter falado com Ayla também, mas sentiu que não seria adequado, especialmente depois de ouvir a história de Deegie. Ayla havia dito a Deegie para voltar antes de iniciarem o rastreamento sem sentido, e ambas eram adultas que deviam ser perfeitamente capazes de cuidar de si mesmas agora, mas Tulie jamais se preocupara tanto com Deegie em sua vida.

Nezzie cutucou Tronie e ambas encheram pratos com comida quente e levaram para a Fogueira do Mamute, para Ayla e Deegie. Talvez as coisas se consertassem depois que comessem alguma coisa e tivessem a chance de contar sua história.

Todos tinham esperado para perguntar sobre o filhote de lobo, até as necessidades de alimento e aquecimento para as jovens e o animalzinho terem sido satisfeitas. Embora houvesse estado faminta, Ayla teve dificuldade, agora, de colocar alimento na boca. Continuou olhando na direção que Jondalar tomara. Todos pareceram encontrar o caminho para a Fogueira do Mamute, prevendo a narrativa de uma aventura excitante e incomum, que poderia ser contada e recontada. Todos queriam conhecer a história, quer ela estivesse disposta a contar ou não, de como ela voltara para a habitação comunal com um filhote de lobo.

Deegie começou relatando as estranhas circunstâncias das raposas brancas nas armadilhas. Ela estava bastante certa, agora, de que tinha sido a loba negra, enfraquecida e faminta, e incapaz de caçar veados ou cavalos ou bisões, que fora atraída para as armadilhas e tirara as raposas de lá para se alimentar. Ayla sugeriu que a loba poderia ter seguido as pegadas de Deegie, de armadilha a armadilha, quando ela as colocou. Então, Deegie contou sobre Ayla querer pele branca para fazer uma coisa para alguém, mas não de pele de raposa branca, desta vez, e como ela seguira os rastros de arminhos brancos.

Jondalar chegou depois de a história começar, e tentava permanecer silenciosamente despercebido, sentado perto do fogo. Já lamentava e se censurava por ter saído tão depressa, mas sentiu o sangue deixar seu rosto ao ouvir o comentário de Deegie. Se Ayla estava fazendo algo de pele branca para alguém, e não queria raposa branca, devia ser porque já dera raposa branca para aquela pessoa. E ele sabia a quem ela dera peles de raposa branca em sua cerimônia de adoção. Jondalar fechou os olhos e apertou os punhos, no colo. Nem sequer queria pensar naquilo, mas não conseguia afastar os pensamentos de sua mente. Ayla devia estar fazendo algo para o homem escuro que ficava tão atraente em pele branca; para Ranec.

Ranec refletia também sobre quem era a pessoa. Suspeitava de que se tratava de Jondalar, mas esperava que fosse, talvez, outra pessoa, até mesmo ele. No entanto, teve uma idéia. Quer ela estivesse fazendo alguma coisa para ele, ou não, ele podia, mesmo assim, fazer algo para ela. Lembrou-se da alegria de Ayla e de seu prazer por causa do cavalo esculpido que lhe dera, e animou-se com o pensamento de esculpir outra coisa para ela; uma coisa que a encantasse e a deleitasse de novo, especialmente agora, que o grande homem louro se mudara. A presença de Jondalar sempre agira como influência restringente, mas se ele desejava abdicar de sua posição principal, deixando a cama e a fogueira de Ayla, então, Ranec se sentia livre para persegui-la mais ativamente.

O pequeno lobo gemeu em seu sono e Ayla, sentando-se à beira do estrado-cama, estendeu a mão e afagou-o a fim de acalmá-lo. A única vez na vida em que ele se sentira aquecido e seguro como agora fora quando se aninhara ao lado da mãe, e ela o havia deixado sozinho muitas vezes na cova fria e escura. Mas a mão de Ayla o havia tirado daquele lugar solitário, triste e assustador, e lhe dera calor, alimento e uma sensação de segurança. Ele se acalmou sob o toque tranqüilizador sem sequer acordar.

Ayla deixou Deegie continuar a história, ajuntando apenas comentários e explicações. Não sentia grande vontade de falar, e era interessante que a história de Deegie não fosse a mesma que ela teria contado. Não era menos verdadeira, porém, vista de um ponto diferente, e Ayla ficou um pouco surpresa com algumas das impressões da companheira. Ela não havia visto a situação como tão perigosa. Deegie estivera muito mais assustada por causa do lobo; ela não parecia compreendê-los, realmente.

Os lobos estavam entre os carnívoros mais dóceis, muito previsíveis, se prestasse atenção aos seus sinais - os arminhos eram muito mais sanguinários e os ursos, mais imprevisíveis. Era raro os lobos atacarem os homens.

Mas Deegie não os via dessa maneira. Ela descreveu a loba como se atacasse Ayla maldosamente, e ela ficara com medo. Havia sido perigosa, mas mesmo se Ayla não a tivesse repelido, o ataque fora defensivo. Ela poderia ter sido ferida, mas provavelmente não seria morta, e a loba recuaria assim que pudesse pegar o arminho morto e fugir. Quando Deegie descreveu

Ayla enfiando a cabeça, primeiro, na cova da loba, o acampamento olhou para ela atemorizado. Ou era muito corajosa, ou muito louca, mas Ayla achava que não era nem uma coisa nem outra. Ela sabia que não havia lobos adultos por perto, não havia rastros. A loba negra era solitária, provavelmente distante de seu território, e estava morta agora.

A narrativa vivida de Deegie das explorações de Ayla fez mais do que causar terror em um dos ouvintes. Jondalar se tornou mais e mais agitado. Em sua mente, havia embelezado ainda mais a história, visualizando Ayla não só em grande perigo, mas atacada por lobos, ferida e ensangüentada, e talvez pior ainda. Não suportava o pensamento e sua ansiedade anterior voltou com força redobrada. Outras pessoas tinham sentimentos semelhantes.

- Não devia ter-se colocado em tal perigo - disse a chefe.

- Mãe! - exclamou Deegie. A mulher havia dito antes, que não demonstraria suas preocupações.

As pessoas que ainda se encontravam presas à aventura, censuraram-na por interromper uma história dramática, contada com habilidade. Era mais excitante ainda por ser verdadeira e, embora fosse contada e recontada, já mais teria o impacto novo da primeira vez, O estado de espírito estava sendo estragado - afinal, ela estava de volta e segura, agora.

Ayla olhou para Tulie, depois lançou um olhar a Jondalar. Ela o notara no instante em que ele voltara à Fogueira do Mamute. Estava muito zangado, e assim também parecia estar Tulie.

- Não corri esse perigo - disse Ayla.

- Não acha perigoso entrar em um covil de lobos? - indagou Tulie.

- Não, não havia perigo. Era o covil de uma loba solitária, e ela estava morta. Só entrei para procurar seus filhotes.

- Talvez, mas era necessário ficar fora até tão tarde, seguindo o rastro da loba? Estava quase escurecendo quando vocês voltaram - disse Tulie.

Jondalar havia dito a mesma coisa.

- Mas eu sabia que a loba tinha filhotes, ela estava amamentando. Sem mãe, eles morreriam - explicou Ayla, embora houvesse dito isso antes e pensasse que tinham compreendido.

Então, você arrisca sua vida... - e a de Deegie, pensou, embora não o dissesse - ... Pela vida de um lobo? Depois que a loba preta a atacou, foi loucura continuar a persegui-la apenas para recuperar o arminho que ela havia levado. Devia ter desistido.

- Discordo, Tulie - intrometeu-se Talut. Todos se voltaram para o chefe. - Havia um lobo faminto na vizinhança, um que já seguira Deegie quando ela colocou as armadilhas. Quem diz que o lobo não a seguiria até aqui? O tempo está mais quente, as crianças brincam mais, fora. Se o lobo ficasse desesperado, talvez atacasse uma das crianças, e nós não o teríamos esperado. Agora sabemos que a loba está morta. É melhor assim.

As pessoas sacudiam a cabeça, concordando, mas Tulie não se dava por vencida tão depressa.

- Talvez tenha sido melhor que a loba fosse morta, mas não pode dizer que era necessário ficar fora tanto tempo procurando o filhote. E agora, que encontrou o filhote, o que vamos fazer com ele?

- Acho que Ayla fez o que era certo indo atrás da loba e matando-a, mas é uma pena que uma mãe que amamentava tivesse que ser morta. Todas as mães devem ter o direito de criar seus filhos, mesmo lobas. Porém, mais que isso, não foi um esforço inteiramente inútil de Ayla e Deegie seguir a pista da loba até a toca, Tulie. Elas fizeram mais do que encontrar um lobinho. Desde que acharam somente os rastros de um animal, agora, sabemos que não há outros lobos famintos por perto. E se, em nome da Mãe, Ayla ficou com pena do filhote, não vejo mal algum nisso. É um lobo tão pequenino!

- É pequenino agora, mas não continuará pequeno, O que fazemos com um lobo totalmente adulto perto da habitação? Como sabe que não atacará as crianças, então? - perguntou Frebec. - Breve haverá um bebê em nossa fogueira.

- Considerando a perícia de Ayla com animais, acho que ela saberia como impedir que o lobo ferisse alguém. Porém, mais que isso, direi agora, como chefe do Acampamento do Leão, se houver sequer uma indicação de que aquele lobo possa ferir alguém... - Talut encarou Ayla - ... Eu o matarei. Concorda com isso, Ayla?

Todos os olhos se voltaram para ela. Ela corou e gaguejou a princípio. Depois, disse o que sentia.

- Não posso afirmar que este filhote não ferirá ninguém quando crescer. Não posso sequer dizer se ele ficará aqui. Criei uma égua desde bebê. Ela partiu para encontrar seu garanhão e se juntou a um bando por algum tempo, mas voltou. Eu criei um leão da caverna até ele ficar adulto. Whinney era como uma babá para Neném quando era pequeno, e se tornaram amigos. Embora os leões da caverna cacem cavalos, e ele pudesse ter-me ferido facilmente, não ameaçou nenhum de nós. Sempre foi apenas o meu neném.

“Quando Neném foi embora em busca de uma companheira, não voltou, não para ficar, mas fazia visitas e às vezes o encontrávamos nas estepes. Jamais ameaçou Whinney ou Racer, ou a mim, mesmo depois de encontrar uma companheira e iniciar seu próprio grupo. Neném atacou dois homens que entraram em seu covil, e matou um, mas quando eu lhe disse para ir embora e deixar Jondalar e seu irmão em paz, obedeceu. Um leão da caverna e um lobo são carnívoros. Vivi com um leão da caverna e observei os lobos. Acho que um lobo que cresce em companhia das pessoas de um acampamento jamais irá feri-las, mas digo aqui que se houver qualquer indício de perigo para qualquer criança ou pessoa.. - engoliu algumas vezes - ..eu, Ayla dos Mamutoi, o matarei,.

Ayla resolveu apresentar o filhote de lobo a Whinney e Racer na manhã seguinte, de forma que se acostumassem com o odor e evitassem um nervosismo desnecessário. Depois de dar de comer ao filhote, ela o carregou e levou-o para o anexo dos cavalos a fim de conhecer os dois eqüinos. Embora não soubesse disso, várias pessoas a tinham visto ir.

Antes de se acercar dos cavalos com o pequeno lobo, no entanto, ela pegou um pedaço seco de excremento dos cavalos, amassou-o e esfregou o filhote com a massa fibrosa. Ayla esperava que o cavalo de estepe se mostrasse inclinado à amizade com outro animal de caça recém-nascido, como ocorrera com o leão da caverna, mas Ayla recordava que Whinney havia aceitado melhor Neném depois que ele rolara no esterco.

Quando ela estendeu a pequena pele felpuda a Whinney, a égua recuou primeiro, mas sua curiosidade natural venceu. Ela avançou com cautela e cheirou, sentindo o odor familiar, confortador de cavalo juntamente com o cheiro mais perturbador de lobo. Racer também ficou curioso, e mostrou-se menos cauteloso. Embora tivesse uma precaução instintiva em relação a lobos, jamais vivera com uma cavalhada selvagem e nunca fora objeto de perseguição por um grupo de caçadores eficientes. Ele se aproximou da coisa quente e viva, interessante, embora vagamente ameaçadora e peluda que Ayla segurava nas mãos em concha, e esticou a cabeça parar uma inspeção mais de perto.

Depois que os dois cavalos cheiraram suficientemente para se familiarizar com o filhote, Ayla o pousou ao solo diante dos grandes animais de pastagem e ouviu um arquejo. Ela lançou um olhar em direção à entrada da Fogueira do Mamute e viu Latie mantendo a cortina aberta. Talut, Jondalar e vários outros se amontoavam atrás dela. Não queriam perturbá-la, mas também estavam curiosos, e não podiam resistir ao desejo de ver o primeiro encontro do filhote de lobo com os cavalos. Embora muito pequeno, o lobo era um predador, e cavalos eram a caça natural dos lobos. Mas cascos e dentes podiam ser armas formidáveis. Os cavalos tinham fama de ferir ou matar lobos adultos que os atacavam, e podiam facilmente vencer um predador tão pequeno.

Os cavalos sabiam que não corriam perigo por causa do jovem caçador e venceram rapidamente sua cautela inicial. Mais de uma pessoa sorriu ao ver o lobinho vacilante, não muito maior que um casco, erguendo a cabeça para as pernas maciças dos gigantes estranhos. Whinney abaixou a cabeça e estendeu o focinho, recuou, depois moveu o focinho comprido novamente para o filhote. Racer se aproximou do interessante bebê pelo outro lado. O filhote se encolheu e agachou-se ao ver as grandes cabeças se acercando dele. Mas do ponto de vista do filhote, o mundo era povoado por gigantes. Os homens, mesmo a mulher que dava-lhe de comer e o confortava, eram gigantescos também.

Ele não detectou ameaça na respiração morna que soprava das narinas. largas. Para o olfato sensível do lobo, o odor dos cavalos era familiar. impregnava os pertences e roupas de Ayla, e até a própria mulher. O lobinho decidiu que os gigantes de quatro pernas faziam parte do seu bando também, e, com sua ansiedade normal, infantil, de agradar, ergueu-se para tocar com o pequeno focinho negro o focinho quente da égua.

- Estão roçando os focinhos! - Ayla ouviu Latie dizer em um cochicho alto.

Quando o lobo começou a lamber o focinho da égua, à maneira comum dos filhotes de lobo se aproximarem dos membros de sua alcatéia, Whinney ergueu a cabeça depressa. Mas estava intrigada demais para se afastar por muito tempo do surpreendente animal e logo aceitava as lambidas cálidas e carinhosas do pequeno predador.

Após alguns momentos de travarem conhecimento, mutuamente, Ayla pegou o filhote para carregá-lo de volta para dentro. Fora um início auspicioso, mas ela resolveu não abusar. Mais tarde, ela o traria para fora, para um passeio.

Ayla havia visto uma expressão de ternura e diversão no rosto de Jondalar quando os animais se encontraram. Era uma expressão que lhe fora familiar antes, e que a encheu de uma onda inenarrável de felicidade. Talvez ele quisesse voltar para a Fogueira do Mamute, agora, que tivera tempo para pensar a respeito. Mas quando ela entrou e lhe sorriu - seu largo e belo sorriso - ele desviou o rosto e abaixou os olhos; depois, seguiu Talut depressa até a área de cozinhar. Ayla inclinou a cabeça quando a alegria se evaporou, deixando um peso dolorido em seu lugar, convencida de que ele não mais se importava com ela.

Nada estava mais longe da verdade. Ele lamentava ter agido tão apressadamente, envergonhado por ter exibido um comportamento tão imaturo, e certo de que não era mais bem-vindo depois de sua partida abrupta. Não achava que o sorriso de Ayla fosse destinado a ele, realmente. Acreditava que era o resultado do encontro bem-sucedido dos animais, mas vê-lo o encheu de agonia de amor e desejo, a tal ponto que não suportou estar perto dela.

Ranec viu os olhos de Ayla acompanharem o homem grande que se retirava. Perguntou-se quanto tempo duraria sua separação, e que efeito teria. Embora tivesse quase medo de esperar, não podia deixar de pensar que a ausência de Jondalar talvez aumentasse suas chances com Ayla. Ele tinha alguma noção de que era, em parte, uma causa de sua separação, mas sentia que o problema entre eles era mais profundo. Ranec tornava óbvio o seu interesse por Ayla, e nenhum deles indicara que estava totalmente mal colocado. Jondalar não o havia enfrentado com uma declaração definitiva de sua intenção de se unir a Ayla em um vínculo exclusivo; havia apenas agido com raiva contida e se afastado. E da mesma forma que Ayla não o havia exatamente encorajado, tampouco o havia recusado.

Era verdade, Ayla acolhia bem a companhia de Ranec. Não tinha certeza por que Jondalar estava tão distante, mas sentia, com segurança, que era alguma coisa que ela fazia, erradamente. A presença atenciosa de Ranec a fazia sentir que seu comportamento não podia ser inteiramente inadequado.

Latie estava de pé ao lado de Ayla, com os olhos brilhantes de interesse no lobinho que ela segurava. Ranec se juntou a elas.

- Foi uma visão que jamais esquecerei, Ayla - disse Ranec. - Essa coisinha roçando o focinho no da grande égua. O lobinho é valente.

Ela ergueu a cabeça e sorriu, tão satisfeita como elogio de Ranec, como teria ficado se o animal fosse um filho seu.

- O lobo estava amedrontado no início. Os cavalos são muito maiores que ele. Estou contente porque ficaram amigos tão depressa.

- É esse o nome que vai lhe dar? Lobo? - perguntou Latie.

- Ainda não pensei sobre isso, realmente. No entanto, parece um nome adequado.

- Não sou capaz de pensarem outro melhor - disse Ranec.

- O que acha, Lobo? - perguntou Ayla, erguendo o filhote e olhando para ele. O animal avançou para ela depressa e lambeu-lhe o rosto. Todos sorriam.

- Acho que ele gosta do nome - falou Latie.

- Você conhece animais, Ayla - disse Ranec. Depois com expressão interrogativa, ajuntou: - Há uma coisa que eu gostaria de perguntar, todavia. Como sabia que os cavalos não iriam machucá-lo? Os lobos caçam cavalos e já vi cavalos matarem lobos. São inimigos mortais. Ayla parou e refletiu.

- Não sei. Eu apenas tinha certeza, talvez por causa de Neném. Leões da caverna matam cavalos também, mas devia ter visto Whinney com ele, quando era pequeno. Era tão protetora, como uma mãe, ou ao menos uma tia. Whinney sabia que um filhote de lobo não poderia feri-la e Racer também pareceu saber. Acho que se você começa quando são bebês, muitos animais podem ser amigos, e amigos de pessoas também.

- E por isto que Whinney e Racer são seus amigos? - indagou Latie.

- Sim, acho que sim. Tivemos tempo de nos acostumarmos um com o outro. Acho que é disso que Lobo precisa.

- Acha que ele se acostumará comigo? - perguntou Latie, ansiosa, e Ayla sorriu ao perceber seu sentimento.

- Aqui - disse, estendendo o filhote para a garota. - Segure-o. Latie aninhou o animalzinho cálido e inquieto nos braços, depois inclinou a face para sentir a macia pele felpuda. Lobo lambeu seu rosto também, incluindo-a em seu bando.

- Acho que ele gosta de mim - disse Latie. - Acabou de me beijar.

Ayla sorriu diante da reação satisfeita. Ela sabia que essa simpatia era natural para os filhotes de lobo; as pessoas pareciam achá-la tão irresistível quanto os lobos adultos achavam. Somente quando os lobos cresciam é que se tornavam tímidos, defensivos e desconfiados de estranhos.

A jovem observou o filhote com curiosidade, enquanto Latie o segurava. O pêlo do lobinho ainda era do tom cinza-escuro uniforme dos muito novos. Somente mais tarde o pêlo desenvolveria as listras claras e escuras da típica coloração de um lobo adulto se tal acontecesse. Sua mãe fora preta, até mais escura que o filhote, e Ayla se perguntou de que cor Lobo seria.

Todos voltaram às cabeças quando ouviram o guincho de Crozie.

- Suas promessas não significam nada! Você me prometeu respeito! Prometeu que eu sempre seria bem-vinda, de qualquer modo!

- Sei o que prometi. Não precisa me lembrar - gritou Frebec.

A discussão não era inesperada. O inverno prolongado havia proporcionado tempo para fabricar e consertar, esculpir e tecer, contar histórias, cantar canções, jogar e tocar instrumentos musicais; entregar-se a todos os passatempos e diversões já inventados. Mas, quando a longa estação chegava ao fim, também era época em que o confinamento rigoroso fazia com que os gênios se inflamassem. A subcorrente de conflito entre Frebec e Crozie causara relações tão tensas, que a maioria das pessoas sentia que uma explosão seria iminente.

- Agora, diz que quer que eu vá embora. Sou uma mãe, sem lugar para ir e você quer que eu vá. Isso é manter sua promessa?

A batalha verbal era realizada ao longo do corredor, e logo alcançava a Fogueira do Mamute com força total. O filhote, amedrontado pelo ruído e tumulto, saiu dos braços de Latie e desapareceu antes que ela pudesse ver para onde fora

- Eu cumpro minhas promessas - disse Frebec - Não me dou direito. O que eu quis dizer foi - Ele lhe fizera promessas, mas não soubera, antes, o que seria viver com a velha megera. Se pudesse ter apenas Fralie e não precisar conviver com a mãe dela, pensou, olhando ao redor, tentando pensar em algum modo de sair do canto em que Crozie o encurralara. - O que eu quis dizer foi. - Notou Ayla e encarou-a diretamente.

- Precisamos de mais espaço - A Fogueira da Garça não é o bastante grande para nós. E o que faremos quando o bebê chegar? Parece haver bastante espaço nesta fogueira, até para animais!

- Não é para os animais, a Fogueira do Mamute era deste tamanho antes de Ayla chegar - falou Ranec, vindo em defesa de Ayla - Todo mundo do Acampamento se reúne aqui, tem que ser maior. Mesmo assim, fica apinhada Você não pode ter uma fogueira tão grande quanto esta.

- Eu pedi uma deste tamanho? Eu disse apenas que a nossa não era suficiente. Por que o Acampamento do Leão precisa ceder espaço aos animais, e não às pessoas?

Mais gente se aproximava para ver o que acontecia.

Você não pode ocupar espaço algum da Fogueira do Mamute -disse Deegie, deixando que o velho feiticeiro avançasse mais - Diga-lhe, Mamut.

- Ninguém cedeu espaço ao lobo. Ele dorme em uma cesta, perto da cabeceira da cama dela - começou Mamut em tom razoável. - Implica que Ayla tem esta fogueira toda para si, mas ela possui pouco espaço que pode chamar de seu. As pessoas se reúnem aqui, quer exista uma cerimônia ou não, principalmente as crianças. Há sempre alguém por perto, inclusive Fralie e suas crianças, às vezes.

- Eu disse a Fralie que não gosto que ela passe muito tempo aqui, mas ela diz que precisa de mais espaço para espalhar seu trabalho. Fralie não teria que vir trabalhar aqui, se tivéssemos mais espaço em nossa fogueira.

Fralie corou, e voltou para a Fogueira da Garça. Ela dissera aquilo a Frebec, mas não era inteiramente verdade. Ela também gostava de passar algum tempo na Fogueira do Mamute pela companhia, e porque o conselho de Ayla a havia ajudado em sua gravidez difícil. Agora, Fralie sentiu que teria que ficar afastada.

- De qualquer maneira, eu não falava sobre o lobo - continuou Frebec -, embora ninguém me perguntasse se eu queria dividir a moradia com esse animal. Só porque uma pessoa quer trazer animais para cá, não sei por que eu teria que viver com eles. Não sou um animal e não cresci com eles, mas por aqui os animais valem mais que as pessoas. Todo este acampamento constrói um recinto separado para cavalos, enquanto estamos espremidos na menor fogueira da habitação comunal!

Um tumulto nasceu, com todos gritando ao mesmo tempo, tentando se fazer ouvir.

- O que quer dizer com a menor fogueira da habitação? - trovejou Tornec. - Não temos mais espaço do que você, talvez menos, e o número de pessoas é igual!

- E verdade - falou Tronie. Manuv sacudia a cabeça vigorosamente, concordando.

- Ninguém tem muito espaço - disse Ranec.

- Ele está certo! - concordou Tronie novamente, com mais veemência. - Acho que até a Fogueira do Leão é menor que a sua, Frebec, e eles têm mais pessoas do que você, e maiores também. Estão apertados, realmente. Talvez devessem ter parte do espaço da área de cozinhar. Se alguma fogueira o merece, é a deles.

- Mas a Fogueira do Leão não está pedindo mais espaço - tentou dizer Nezzie.

Ayla olhou de uma pessoa para a outra, incapaz de compreender como todo o acampamento se envolvera, de repente, em uma discussão violenta, mas sentindo que, de algum modo, a culpa era toda sua.

No meio de tudo, um berro potente soou subitamente, dominando toda a agitação e detendo todo mundo. Talut estava de pé no meio da fogueira com segurança de líder. Seus pés estavam separados, e na mão direita estava o bastão enigmaticamente decorado, comprido, reto, de marfim. Tulie se juntou a ele, emprestando sua presença e autoridade. Ayla se sentiu intimidada pelo par poderoso.

- Eu trouxe o Bastão Falante - disse Talut, erguendo o bastão e sacudindo-o para poder dizer o que queria. - Discutiremos este problema de modo pacifico e o resolveremos imparcialmente.

- Em nome da Mãe, que ninguém desonre o Bastão Falante – disse Tulie. - Quem falará primeiro?

- Acho que Frebec deve falar primeiro - disse Ranec. - E ele que tem um problema.

Ayla andara se esgueirando em direção à periferia, tentando escapar das pessoas ruidosas e que gritavam. Notou que Frebec parecia pouco à vontade e nervoso com toda a atenção hostil concentrada nele. O comentário de Ranec carregara a forte implicação de que a confusão era inteiramente por culpa dele. Ayla, de pé, um pouco escondida atrás de Danug, examinou Frebec com atenção pela primeira vez.

Que tinha estatura mediana, talvez um pouco menos. Agora, que reparava nisso, ela era provavelmente um pouco mais alta que ele, mas também era mais alta que Barzec e, talvez da mesma altura de Wymez. Ela estava acostumada a ser mais alta que os outros e não prestara atenção nisso antes. Frebec tinha cabelo castanho claro, um tanto escasso, olhos de um tom de azul médio e feições regulares, corretas, sem deformações. Era um homem de aparência comum e ela não encontrava nada que pudesse justificar seu comportamento belicoso e desagradável. Havia momentos, quando Ayla era criança, em que desejara ser tão parecida com o resto do Clã quanto Frebec parecia com o seu povo.

Quando Frebec avançou e pegou o Bastão Falante de Talut, Ayla viu Crozie, com o rabo do olho, com um sorriso de regozijo no rosto. Certamente, a velha era ao menos parcialmente culpada pelas ações de Frebec, mas era só isso? Tinha que haver mais alguma coisa. Ayla olhou para Fralie, mas não a viu entre as pessoas que se reuniam na Fogueira do Mamute. Então, viu a mulher grávida observando da extremidade da Fogueira da Garça.

Frebec pigarreou algumas vezes, depois, mudando a posição em que segurava o bastão de marfim e agarrando-o com firmeza, começou:

- Sim, eu tenho um problema - olhou ao redor, nervoso, depois, carrancudo, endireitou mais o corpo. - Quero dizer, temos um problema. A Fogueira da Garça. Não há espaço suficiente. Não temos lugar para trabalhar, é a menor fogueira da habitação...

- Não é a menor. E maior que a nossa! - falou Tronie sem se controlar.

Tulie a fitou com severidade.

- Terá uma chance de falar, Tronie, quando Frebec terminar.

Tronie corou e resmungou desculpas. Seu embaraço pareceu dar coragem a Frebec. Sua postura se tornou mais agressiva.

- Não temos espaço suficiente agora, Fralie não tem lugar para trabalhar e... E Crozie precisa de mais espaço. E breve haverá outra pessoa. Acho que devíamos ter mais espaço. - Frebec devolveu o Bastão a Talut e recuou um passo.

- Tronie, pode falar agora - disse Talut.

- Acho que... Eu estava apenas... Bem, talvez eu fale - disse, avançando um passo para pegar o Bastão. - Não temos mais espaço do que na Fogueira da Garça e somos o mesmo número de pessoas. - Depois acrescentou, tentando conseguir a ajuda de Talut: - Creio que a Fogueira do Leão é menor...

- Isso não é importante, Tronie - falou Talut. - A Fogueira do Leão não está pedindo mais espaço e não estamos o suficientemente perto da Fogueira da Garça para sermos afetados pelo desejo de Frebec de ter mais espaço. Você, da Fogueira da Rena, tem o direito de falar, já que mudanças na Fogueira da Garça talvez causem alterações no seu espaço. Tem mais alguma coisa a dizer?

- Não, acho que não - respondeu Tronie, sacudindo a cabeça e entregando o Bastão.

- Mais alguém?

Jondalar queria poder dizer alguma coisa que ajudasse, mas era um estranho e sentia que não devia se intrometer. Queria estar ao lado de Ayla, e lamentou ainda mais, agora, ter mudado o seu local de dormir. Ficou quase contente quando Ranec avançou e pegou o bastão de marfim. Alguém precisava falar em favor de Ayla.

- Não é terrivelmente importante, mas Frebec exagera. Não posso dizer se eles precisam de mais espaço ou não, mas a Fogueira da Garça não é a menor da habitação. A Fogueira da Raposa tem essa honra. Mas, somos apenas dois e estamos contentes.

Houve murmúrios, e Frebec lançou um olhar feroz ao escultor. Nunca houvera grande entendimento entre os dois homens. Ranec sempre achara que tinham pouco em comum e tendia a ignorá-lo. Frebec tomou isto como desdém e havia alguma verdade nisso. Particularmente, desde que ele começara a fazer comentários depreciativos a Ayla, Ranec achou que Frebec valia pouco.

Talut, tentando impedir outra discussão geral, levantou a voz e se dirigiu a Frebec.

- Como acha que o espaço da habitação deveria ser mudado para lhe dar mais conforto? - Entregou o comprido bastão de marfim ao homem.

- Eu nunca disse que queria tirar espaço da Fogueira da Rena, mas se há lugar para animais eles têm mais espaço do que precisam Acrescentou-se um anexo à habitação para os cavalos, mas ninguém parece tomar conhecimento de que, breve, teremos mais uma pessoa. Talvez as coisas... pudessem ser mudadas - terminou Frebec, vacilante. Não ficou feliz ao ver Mamut estender a mão para o Bastão Falante.

- Sugere que, a fim de haver mais espaço na Fogueira da Garça, a Fogueira da Rena deveria se mudar para a Fogueira do Mamute? Isso seria um grande transtorno para eles. Quanto a Fralie vir trabalhar aqui, não está insinuando que ela se limita a viver na Fogueira da Garça, não é? Seria pouco saudável, e a privaria do companheirismo que encontra aqui. É para cá que se espera que ela traga seus projetos. Esta fogueira se destina a acomodar trabalho que precisa demais espaço, do que existe na fogueira pessoal de qualquer um. A Fogueira do Mamute pertence a todos e é quase pequena, agora, para reuniões.

Quando Mamut devolveu o bastão a Talut, Frebec parecia mais calmo, porém, se pós na defensiva, vivamente, quando Ranec pegou o bastão de novo.

- Quanto ao anexo para os cavalos, todos nos beneficiaremos com o espaço, principalmente depois que se escavarem os depósitos de estocagem. Mesmo agora, tornou-se uma entrada conveniente para muitas pessoas. Observo que conserva ali as suas roupas de passeio, Frebec, e usa aquela entrada com mais freqüência do que o acesso principal - disse Ranec. - Além disso, os bebês são pequenos, não ocupam muito espaço. Não creio que necessite de mais espaço.

- Como pode saber? - intrometeu-se Crozie. - Nunca teve nenhum bebê nascente em sua fogueira. Eles ocupam espaço, muito mais do que imagina.

Somente depois de ter falado Crozie percebeu que, pela primeira vez, havia tomado o partido de Frebec. Franziu a testa, depois resolveu que talvez ele tivesse razão. Talvez precisassem de mais espaço. Era verdade que a Fogueira do Mamute era local de reuniões, mas parecia conceder a Ayla maior status porque vivia em uma fogueira tão grande. Embora todos a houvessem considerado de Mamut quando ele viveu lá sozinho, agora, exceto pelas reuniões cerimoniais, todos a tratavam como se pertencesse a Ayla. Uma área maior para a Fogueira da Garça poderia elevar o status de seus membros.

Aparentemente todos encararam a interrupção de Crozie como um sinal para comentário geral e, trocando um olhar experiente entre eles, Talut e Tulie permitiram que o alarido seguisse seu curso. Às vezes, as pessoas precisavam desabafar. Durante a interrupção, Tulie encontrou o olhar de Barzec e, depois que tudo se acalmou, ele avançou um passo e pediu o bastão. Tulie fez um gesto com a cabeça, concordando, como se soubesse o que ele ia dizer, embora não se houvessem falado.

- Crozie tem razão - disse ele, sacudindo a cabeça em sua direção. Ela ficou mais ereta, aceitando o reconhecimento, e sua opinião sobre Barzec melhorou. - Os bebês ocupam espaço, muito mais do que se poderia imaginar diante de seu tamanha talvez seja hora de algumas mudanças, mas não acho que a Fogueira do Mamute deva ceder espaço. As necessidades da Fogueira da Garça estão crescendo, mas as necessidades da Fogueira dos Auroques são menores.

Branag foi viver no acampamento de sua mulher, e breve começará novo acampamento com Deegie. Então, ela irá embora também. Por tanto, a Fogueira dos Auroques, compreendendo as necessidades de uma família em crescimento, cederá algum espaço à Fogueira da Garça.

- É satisfatório para você, Frebec? - perguntou Talut.

- É - replicou Frebec, mal sabendo como responder a esta virada inesperada dos acontecimentos.

- Então, deixarei por sua conta resolver, entre vocês, quanto espaço a Fogueira dos Auroques cederá, mas acho que é justo não haver mudanças até Fralie ter o seu bebê. Concorda, Frebec?

Frebec sacudiu a cabeça afirmativamente, ainda desarmado. Em seu acampamento anterior, ele não sonharia em pedir mais espaço; se o tivesse feito, teriam caçoado dele. Não tinha a prerrogativa, o status, para fazer tais pedidos. Quando a discussão com Crozie começou, ele não estava pensando em espaço, de forma alguma. Apenas procurara um meio de responder às acusações insultuosas, embora verdadeiras, da mulher. Agora, ele se convencia de que a falta de espaço havia sido a razão, o tempo todo, para a discussão e, por uma vez, ela havia ficado do lado dele. Ele sentiu a emoção do sucesso. Havia vencido uma batalha. Duas batalhas: uma com o acampamento, outra com Crozie. Quando as pessoas se dispersaram, ele viu Barzec falando com Tulie, e ocorreu-lhe que devia agradecer a eles.

- Agradeço sua compreensão - disse Frebec à chefe e ao homem da Fogueira dos Auroques.

Barzec usou as costumeiras negativas, mas não teriam ficado satisfeitos se Frebec não houvesse reconhecido a acomodação feita para ele. Sabiam muito bem que o valor de sua concessão ia muito além de alguns metros de espaço. Anunciava-se que a Fogueira da Garça tinha status para merecer tal doação da fogueira da chefe, embora fosse o status de Crozie e Fralie que considerassem quando Tulie e Barzec discutiram, previamente, uma mudança de limites, entre si. Eles já antecipavam as necessidades de mudança das duas famílias. Barzec havia pensado mesmo em abordar o assunto antes, mas Tulie sugeriu que esperassem um momento apropriado, talvez como um presente para o bebê.

Ambos sabiam que aquele era o momento. Não fora necessário mais que alguns olhares e gestos de cabeça como sinais entre os dois. E já que Frebec havia conseguido uma vitória nominal, a Fogueira da Garça tinha, a obrigação moral de concordar com o ajuste dos limites. Barzec acabara de comentar como Tulie havia sido sábia quando Frebec se acercou para agradecer. Quando Frebec voltou à Fogueira da Garça, saboreava o incidente, calculando os pontos que vencera, exatamente como se fosse um dos jogos que o acampamento gostava de jogar, e ele contasse os pontos conquistados.

Num sentido muito real era um jogo, o jogo muito sutil e inteiramente sério de posição comparativa, que é jogado por todos os animais sociais. É o método pelo qual os indivíduos se colocam - cavalos em uma cavalhada, lobos em uma alcatéia, pessoas em uma comunidade - de forma apoderem viver juntos. O jogo coloca duas forças contrárias em oposição uma à outra, ambas igualmente importantes para sobreviver: autonomia individual e bem-estar da comunidade. O objetivo é alcançar equilíbrio dinâmico.

As vezes e sob certas condições, os indivíduos podem ser quase autônomos. Um indivíduo é capaz de viver sozinho e não se preocupar com classe social, mas nenhuma espécie pode sobreviver sem interação entre os indivíduos. O preço derradeiro seria mais final que a morte. Seria a extinção. Por outro lado, a subordinação total do individuo ao grupo é igualmente devastadora. A vida não é estática, nem imutável. Sem individualidade não pode haver mudança, ou adaptação e, em um mundo inerentemente mutável, qualquer espécie incapaz de se adaptar também está condenada.

Os seres humanos em uma comunidade, quer seja tão pequena quanto duas pessoas ou tão grande quanto o mundo, e não importa que forma a sociedade assume, se colocarão de acordo com alguma hierarquia. Os costumes e cortesias comumente compreendidos podem ajudar a aliviar o atrito e diminuir o stress de manter um equilíbrio funcional dentro deste sistema em mudança constante. Em algumas situações, a maioria dos indivíduos não necessitará comprometer muito de sua independência pessoal para o bem-estar da comunidade. Em outras, as necessidades da comunidade talvez exijam o máximo sacrifício pessoal do indivíduo, mesmo da própria vida.

Nenhuma forma é mais certa que a outra, depende das circunstâncias; porém, nenhum extremo pode ser mantido por muito tempo, tampouco uma sociedade perdura se algumas pessoas exercem sua individualidade à custa da comunidade.

Ayla seguidamente se encontrava comparando a sociedade do Clã com a dos Mamutoi, e começou a ter um vislumbre deste princípio enquanto refletia sobre os estilos diferentes de liderança de Brun e do chefe e da chefe do Acampamento do Leão. Ela viu Talut recolocar o Bastão Falante no lugar habitual, e recordou que, ao chegar pela primeira vez ao acampamento Mamutoi, achava Brun um líder muito melhor que Talut. Brun teria simplesmente tomado uma decisão e os outros seguiriam sua ordem, quer gostassem ou não. Alguns sequer pensariam se gostavam ou não. Brun jamais tinha que discutir ou gritar. Um olhar penetrante ou uma ordem curta provocavam atenção imediata. Parecera-lhe que Talut não tinha controle sobre as pessoas ruidosas, briguentas, e que elas não o respeitavam.

Agora, Ayla não tinha tanta certeza. Achava que era mais difícil liderar um grupo de pessoas que acreditavam que todos, homens e mulheres, tinham o direito de falar e ser ouvidos. Ainda pensava que Brun fora um bom líder para sua sociedade, mas perguntava-se se ele poderia ter chefiado aquelas pessoas que davam suas opiniões tão livremente. As vozes podiam elevar-se muito e haver ruído demais quando todos tinham uma opinião e não hesitavam em expressá-la, mas Talut jamais permitia que a situação ultrapassasse certos limites. Embora ele fosse forte, certamente, para ter forçado sua vontade, preferia comandar por consenso e acordo, em vez disso. Recorria a certas sanções e crenças, e tinha técnicas próprias para ter a atenção geral, mas era preciso ter um tipo diferente de força para persuadir, em vez de obrigar. Talut ganhava respeito ao respeitar.

Quando Ayla caminhou para um grupo de pessoas de pé perto da escavação para o fogo, olhou ao redor procurando o filhote de lobo. Era um gesto subconsciente e quando não o viu, presumiu que ele encontrara um local onde se esconder durante o tumulto. - ... Certamente, Frebec conseguiu o que queria - dizia Tornec -, graças a Tulie e Barzec.

- Estou contente, pelo bem de Fralie - disse Tronie, aliviada em saber que a Fogueira da Rena não seria invadida ou reduzida em seu tamanho. - Espero apenas que isso acalme Frebec por uns tempos. Realmente, ele começou uma grande discussão desta vez.

- Não gosto de discussões assim - disse Ayla, recordando que a briga havia começado com a reclamação de Frebec por seus animais terem mais espaço que ele.

- Não se perturbe com isso - falou Ranec. - Foi um inverno prolongado. Alguma coisa assim sempre acontece nesta época do ano. É um pouco de diversão, apenas, para criar alguma excitação.

- Mas ele não precisava ter feito tanta confusão para conseguir mais espaço - disse Deegie. - Ouvi mamãe e Barzec falando sobre isso muito antes de Frebec tocar no assunto. Eles iam dar espaço à Fogueira da Garça como presente para o bebê de Fralie. Tudo que Frebec tinha que fazer era pedir.

Por isto Tulie é uma chefe tão boa - disse Tronie. - Ela pensa em coisas como essa.

- Ela é boa e Talut também - falou Ayla.

- Sim, ele é. - Deegie sorriu. - Por isto ainda é o chefe Ninguém permanece chefe por tanto tempo, se não for capaz de liderar e ter o respeito de seu povo. Acho que Branag será tão bom quanto ele. Talut pôde lhe ensinar.

- Os sentimentos afetuosos entre Deegie e o irmão de sua mãe eram mais profundos do que o relacionamento formal que, juntamente com o status e a herança de sua mãe, garantiam à jovem uma elevada posição entre os Mamutoi.

- Mas, quem se tornaria líder, se Talut não fosse respeitado? - indagou Ayla. - E como?

- Bem... Ah... - começou Deegie. Depois, os jovens se voltaram para Mamut a fim de que ele desse a resposta.

- Se for o caso de antigos líderes entregarem a liderança ativa a uma irmã e irmão mais jovens, que foram escolhidos... Parentes, em geral... Há um período de aprendizado, depois uma cerimônia e finalmente os antigos líderes se tornam conselheiros - disse o feiticeiro e professor.

- Sim. Foi isso que Brun fez. Quando era mais jovem, respeitava o velho Zoug e prestava atenção ao seu conselho e, quando ficou mais velho, entregou a liderança a Broud, o filho de sua companheira. Mas o que acontece se um acampamento perde o respeito por um líder? Um líder jovem? - perguntou Ayla, muito interessada.

- A mudança não ocorreria depressa - falou Mamut -, mas as pessoas apenas não o procurariam, depois de certo tempo. Procurariam outro, alguém que pudesse chefiar uma caçada com mais sucesso, ou resolver melhor os problemas. Às vezes, a liderança é abandonada, noutras um acampamento apenas se divide, alguns seguem o novo líder, e outros permanecem com o antigo. Mas, em geral, os líderes não abandonam suas posições ou autoridade facilmente, e isso pode causar problemas, até lutas. Então, a decisão ficaria nas mãos dos Conselhos. O chefe ou a chefe que dividiu a liderança com alguém que causa encrenca ou é responsabilizado por um problema, raramente é capaz de iniciar um novo acampamento, embora possa não ser... - Mamut hesitou e seus olhos, Ayla percebeu, se fixaram na direção da velha da Fogueira da Garça, que falava com Nezzie -... Culpa dela. As pessoas querem líderes em quem possam confiar, e suspeitam daqueles indivíduos que têm problemas... Ou viveram tragédias.

Ayla sacudiu a cabeça, concordando, e Mamut notou que ela compreendera, tanto o que ele havia dito quanto o que insinuara. A conversa continuou, porém a mente de Ayla havia retrocedido ao Clã. Brun havia sido um bom líder, mas o que o seu clã faria se Broud não o fosse? Ela se perguntou se eles se voltariam para um novo líder, e quem seria. Ainda se passaria muito tempo antes de o filho da companheira de Broud ter idade suficiente. Uma preocupação persistente que andara exigindo sua atenção irrompeu, de repente.

- Onde está Lobo? - disse.

Ela não o via desde a discussão e ninguém o vira tampouco. Todos começaram a procurar. Ayla remexeu no seu estrado-cama, e depois todos os cantos da fogueira, mesmo na área sem cortina, com a cesta de cinzas e esterco de cavalo, que ela havia mostrado ao filhote. Começava a sentir o mesmo pânico que uma mãe sente quando dá por falta do filho.

- Aqui está ele, Ayla! - ouviu Tornec dizer, com alívio, mas sentiu o estômago revolver-se quando ele acrescentou: - Frebec está com ele. - A surpresa de Ayla chegou ao limite do choque enquanto o observava aproximar- se. Ela não era a única a encarar o homem com incredulidade e assombro.

Frebec, que nunca negligenciava uma chance de censurar os animais de Ayla, ou ela própria, por sua ligação com eles, carregava o filhote com ternura nos braços. Entregou-lhe o lobinho, mas ela notou um instante de hesitação, como se ele se desfizesse do animalzinho com relutância, e ela viu uma expressão mais terna em seus olhos, do que já vira antes.

- Ele deve ter-se assustado - explicou Frebec. - Fralie falou, de repente, que ele estava lá, na fogueira, chorando. Ela não sabia de onde ele viera. A maior parte das crianças lá estava, também, e Crisavec o pegou e o colocou em uma plataforma de estocagem, perto da cabeceira de sua cama. Mas há um nicho fundo na parede, lá, que entra pela encosta da colina. O lobo descobriu, rastejou até o fundo e não queria sair.

- Com certeza, lembrou-se de sua cova - disse Ayla.

- Foi o que Fralie disse. Era muito difícil para ela ir pegá-lo, grande como está, e acho que tinha medo, depois de ouvir Deegie contar sobre você ter entrado em um covil de lobos. Ela não queria que Crisavec lá entrasse, tampouco. Quando cheguei, tive que entrar e tirá-lo. - Frebec fez uma pausa, depois acrescentou, enquanto Ayla notava um tom de assombro em sua voz: - Quando o alcancei, ficou tão contente de me ver que lambeu todo o meu rosto. Tentei fazê-lo parar.

Frebec assumiu uma atitude mais despreocupada e negligente, para esconder o fato de que ele estava obviamente comovido pela maneira naturalmente simpática do animal assustado.

- Mas quando o coloquei ao chão, chorou e chorou até eu pegá-lo no colo de novo. - Várias pessoas se aglomeravam ao redor agora. - Não sei por que ele escolheu a Fogueira da Garça ou a mim para socorrê-lo quando procurava um local seguro.

- Agora, ele imagina o acampamento como seu bando, e sabe que você é um membro do acampamento, especialmente depois de tirá-lo da cova que encontrou - retrucou Ayla, tentando reconstruir os eventos.

Frebec sentia o ardor da vitória quando voltou à sua fogueira, e algo mais profundo que o fazia experimentar uma animação incomum; uma sensação de pertencer a um lugar, como um igual. Eles não o tinham ignorado apenas ou caçoado dele. Talut sempre o ouvia, exatamente como se ele tivesse o status para garantir isso, e Tulie, a chefe, oferecera-se para ceder-lhe um pouco do seu espaço. Crozie até tomara o seu partido.

Um nó subiu-lhe à garganta ao ver Fralie, sua mulher estimada, de status elevado, que tornara tudo isso possível; sua bela mulher grávida que breve daria à luz o primeiro filho de sua fogueira, a fogueira que Crozie lhe dera, a Fogueira da Garça. Ele ficara aborrecido quando ela lhe disse que o filhote estava escondido no nicho, mas ficou surpreso diante da aceitação pelo filhote, apesar de todas as suas palavras duras. Até o bebê lobo dava-lhe as boas-vindas, e depois só queria ser cuidado por ele. E Ayla disse que era porque o lobo sabia que ele era um membro do Acampamento do Leão. Até um lobinho sabia que ele pertencia ao acampamento.

- Bem, é melhor você ficar com ele daqui por diante - aconselhou Frebec ao dar meia-volta para afastar-se. - E vigie-o. Do contrário, poderá ser pisado.

Depois que Frebec se retirou, várias pessoas que estavam por perto se entreolharam em total assombro.

- Foi uma mudança! O que deu nele? - falou Deegie. - Se eu não o conhecesse bem, diria que ele gosta de Lobo, na verdade!

- Eu não sabia que ele seria capaz disso - falou Ranec, sentindo mais respeito do que jamais tivera pelo homem da Fogueira da Garça.

As criaturas de quatro patas do domínio da Mãe sempre tinham sido alimento, pele ou a personificação dos espíritos para o Acampamento do Leão. Eles conheciam os animais em seu meio natural, conheciam seus movimentos e padrões de migração, sabiam onde procurá-los e como caçá-los. Mas as pessoas do acampamento nunca tinham conhecido animais individuais até Ayla chegar com a égua e o garanhão jovem.

A interação dos cavalos a Ayla e, à medida que o tempo passava, a outras pessoas em vários graus, era fonte constante de surpresa. Jamais ocorrera a alguém, antes, que esses animais responderiam a um ser humano, ou que poderiam ser domesticados para atender a um assobio ou levar um cavaleiro. Mas mesmo os cavalos, com todo o interesse e atração, não provocaram o fascínio do lobinho no acampamento. Eles respeitavam os lobos como caçadores e, ocasionalmente, adversários. Às vezes, um lobo era caçado por causa de uma pele de inverno e, embora fosse raro, um homem era vítima ocasional de uma alcatéia. A maior parte das vezes, lobos e homens tendiam a respeitar-se e evitar-se mutuamente.

Mas os muito jovens sempre exercem uma atração especial; são a fonte inata de sua sobrevivência. Os bebês, inclusive os animais, tocam alguma corda interior que ressoa em resposta, mas Lobo - o nome pelo qual passou a ser conhecido - possuía um charme especial. Desde o primeiro dia em que o peludo filhote cinza-escuro caminhou com passos vacilantes sobre o chão da habitação, atraiu a população humana. Seus modos ansiosos de filhote eram irresistíveis e logo se tornou o favorito do acampamento.

Ajudou, embora as pessoas do acampamento não o percebessem, que os hábitos dos homens e dos lobos não fossem tão diferentes. Ambos eram animais inteligentes, sociáveis, que se organizavam dentro de um padrão global de relacionamentos complexos e mutáveis, que beneficiava o grupo enquanto acomodava as diferenças individuais. Devido às semelhanças de estruturas sociais e certas características que tinham evoluído, independentemente, em canídeos e humanos um relacionamento único se tornou possível entre eles.

A vida de Lobo começou sob circunstâncias incomuns e difíceis. Como único sobrevivente de uma ninhada nascida de uma loba solitária que perdera o companheiro, ele nunca conheceu a segurança de uma alcatéia. Mais do que o conforto de irmãos, ou de uma tia ou tio solícitos, que teriam permanecido por perto, no caso de a mãe sair por pouco tempo, ele havia experimentado a solidão rara para um filhote de lobo, O único outro lobo que conhecera fora à mãe, e sua lembrança dela se toldava à medida que Ayla tomava o seu lugar.

Ayla, porém, era mais alguma coisa. Ao decidir manter e criar o filhote tornou-se a metade humana de um elo extraordinário que se desenvolveu entre duas espécies completamente diferentes - dos canídeos e dos humanos -, um elo que teria efeitos profundos e duradouros.

Mesmo se houvesse outros lobos por perto, Lobo era novo demais quando foi encontrado para ter-se ligado a eles adequadamente Em sua idade, um mês, mais ou menos, ele teria apenas começado a sair da cova para encontrar os parentes, os lobos a quem teria se associado pelo resto da vida. Em vez disso, ele se fixou nas pessoas, e nos cavalos, do Acampamento do Leão.

Foi a primeira, mas não seria a última vez. Por acaso ou desígnio, enquanto a idéia se espalhava, aconteceria de novo, muitas vezes, em inúmeros locais. Os ancestrais de todas as raças domésticas caninas eram lobos, e conservaram no começo suas características essenciais de lobo. Mas, à medida que o tempo passou, as gerações de lobos nascidas e criadas em um ambiente humano começaram a diferir dos canídeos selvagens originais.

Animais nascidos com variações genéticas normais na cor, forma e tamanho - um pêlo escuro, uma mancha branca, um rabo curvado para cima, um tamanho maior ou menor - que os teriam empurrado para a periferia ou para fora da alcatéia, em geral, eram protegidos pelos homens.

Mesmo aberrações genéticas na forma de pigmeus, anões, ou gigantes de ossos pesados, que não teriam sobrevivido na selva para a reprodução, eram protegidos e criados. Eventualmente, canídeos incomuns ou aberrações eram criados para a preservação e fortalecimento de certas características desejáveis para os homens, até a semelhança externa de muitos cães com o lobo ancestral ser tão remota, realmente. Contudo, as características do lobo - inteligência, proteção, lealdade e ludismo permaneciam.

Lobo foi rápido em descobrir pistas de posição social relativa dentro do acampamento, como teria feito em uma alcatéia, embora sua interpretação de status talvez não estivesse de acordo com as noções dos homens. Embora Tulie fosse a chefe do Acampamento do Leão, para Lobo, Ayla era a mulher mais importante; em uma alcatéia, a mãe da ninhada era a líder e raramente permitia que outras fêmeas tivessem filhos.

Ninguém no acampamento sabia exatamente o que o animal pensava ou sentia, ou se sequer tinha pensamentos e sentimentos que pudessem ser compreendidos pelos humanos, mas isso não importava. As pessoas do acampamento julgavam pelo comportamento e pelas ações de Lobo, ninguém duvidava de que ele amava e idolatrava Ayla, ilimitadamente. Onde quer que ela estivesse ele sempre tinha consciência dela, e a um assobio, um estalo dos dedos, um gesto de aceno, até a uma inclinação da cabeça, ele estava a seus pés, a cabeça erguida com adoração nos olhos, antecipando avidamente seu menor desejo. Era totalmente altruísta em suas respostas, e completamente clemente. Gania em desespero servil quando ela o censurava e se retorcia em êxtases de deleite quando ela o acalmava. Vivia para a atenção de Ayla. Sua maior alegria era quando ela brincava ou corria com ele, mas até uma palavra ou um carinho eram suficientes para provocar lambidas excitadas e outros óbvios sinais de devoção.

Lobo não era tão efusivo com mais ninguém. Ele demonstrava, com a maioria, graus diversos de amizade ou aceitação, causando certa surpresa por poder demonstrar tal variedade de sentimentos. Sua reação a Ayla fortaleceu a percepção do acampamento de que ela possuía uma capacidade mágica de controlar animais, e aumentou seu valor.

O lobinho tinha um pouco mais de dificuldade em determinar quem era o líder masculino em seu grupo humano. Aquele que mantinha essa posição na alcatéia era objeto da atenção mais solícita de todos os outros lobos. Uma cerimônia de saudação, em que o líder macho era cercado pelo resto do grupo ávido para lamber-lhe o rosto, cheirar sua pele e ficar próximo, terminando freqüentemente com uma maravilhosa cerimônia comunal de uivos, em geral, confirmava sua liderança. Mas o grupo de homens não oferecia essa deferência a nenhum macho em particular.

Lobo observou, contudo, que os dois grandes membros de quatro patas do seu bando não-convencional, saudavam o alto homem louro com mais entusiasmo do que qualquer outra pessoa, exceto Ayla. Além disso, seu odor permanecia fortemente perto da cama de Ayla e da área próxima, o que incluía a cesta de Lobo. Na ausência de outras pistas, Lobo se inclinou a reconhecer a liderança do grupo em Jondalar. Sua tendência se fortaleceu quando seus avanços amistosos foram recompensados com atenção afetuosa e lúdica.

A meia-dúzia de crianças que brincavam juntas eram seus companheiros de ninhada e Lobo podia ser encontrado, muitas vezes, com elas, na Fogueira do Mamute. Assim que desenvolveram um respeito adequado por seus dentes pequenos e afiados, as crianças descobriram que Lobo gostava de ser tocado, acariciado e afagado. Tolerava excesso não-intencional e parecia saber a diferença entre Nuvie apertá-lo com um pouco de excesso de força quando o carregava, e Brinan puxar-lhe o rabo apenas para vê-lo gritar. O primeiro era suportado com paciência, o último recompensado com uma mordida de retribuição. Lobo gostava de brincar e sempre conseguia meter-se no meio de lutas, e as crianças aprenderam depressa que ele amava ir buscar coisas que eram jogadas. Quando todas se amontoavam em uma pilha, cansadas, adormecendo onde quer que estivessem, o filhote de lobo estava entre elas, muitas vezes.

Ayla, após a primeira noite em que prometera jamais deixar o lobo ferir qualquer pessoa, tomou a decisão de treiná-lo com propósito e atenção. No começo, seu treinamento de Whinney fora casual.

Ela havia agido impulsivamente na primeira vez que montou a égua, e não soubera que estava, intuitivamente, aprendendo a dominar o animal, à medida que cavalgava. Embora agora estivesse ciente dos sinais que desenvolvera e os usasse conscientemente, seus meios de controle eram muito intuitivos, e Ayla acreditava que Whinney obedecia às suas ordens porque queria.

Treinar o leão da caverna havia sido um pouco mais intencional. Quando ela encontrou o filhote ferido, sabia que um animal podia ser encorajado a seguir-lhe os desejos. Seus primeiros esforços de treinamento foram dirigidos ao controle do afeto indisciplinado do leãozinho. Ela treinava pelo amor, da mesma forma que as crianças era criadas pelo Clã. Re compensava seu comportamento meigo com afeto, e o afastava firmemente ou se levantava e ia embora quando ele esquecia de recolher suas garras ou brincava com exagerada rudeza. Quando, por excitação, ele se inclinava para ela com entusiasmo descontrolado, aprendera a deter-se quando ela erguia a mão e dizia “Pare!” Com voz decidida. A lição foi tão bem assimilada que, mesmo quando se tornou um leão da caverna totalmente adulto, quase tão alto, porém mais pesado que Whinney, detinha-se diante de uma ordem de Ayla. Invariavelmente ela respondia com coçaduras e carinhos afetuosos e, às vezes, um abraço completo, rolando com ele no solo. Ao crescer, ele aprendeu muitas coisas, até mesmo a caçar com ela.

Ayla logo compreendeu que as crianças podiam beneficiar-se de algum entendimento sobre os hábitos dos lobos. Começou a contar-lhes histórias sobre a época em que ela aprendia a caçar e observar os lobos juntamente a outros carnívoros. Ela explicou que as alcatéias tinham uma líder fêmea, e um líder macho, como os Mamutoi, e lhes falou que os lobos se comunicavam com alguns gestos e posturas e também com sons vocais. Ela lhes mostrou, com as mãos no chão e de joelhos, a postura de um líder - cabeça erguida, orelhas levantadas, rabo esticado - e a postura de um que se aproximava de um líder - um pouco mais abaixado e lambendo o focinho do líder - ajuntando sons com imitação perfeita. Descreveu avisos de “ficar longe” e comportamento brincalhão. O lobinho participava, muitas vezes.

As crianças gostavam e freqüentemente os adultos ouviam com igual prazer. Logo, os sinais do lobo estavam incorporados à brincadeira das crianças, mas ninguém os usava melhor, ou com maior compreensão, do que a criança cuja própria linguagem era falada principalmente por sinais. Um relacionamento extraordinário se desenvolveu entre o lobo e o menino, surpreendendo as pessoas do acampamento, e fez Nezzie sacudir a cabeça, espantada. Rydag não somente usava os sinais do lobo, inclusive muitos dos sons, mas parecia avançá-los um passo à frente. Para as pessoas que observavam, pareciam inúmeras às vezes em que eles falavam realmente um com o outro, e o animalzinho indicava saber que o menino exigia atenção e cuidado especiais.

Desde o início, Lobo foi menos indisciplinado, mais manso perto de Rydag e, em sua maneira de filhote, seu guardião. Exceto por Ayla, não havia outra companhia que Lobo preferisse mais. Se Ayla estivesse ocupada, ele procurava Rydag, e era encontrado, muitas vezes, dormindo em seu colo ou perto dele. Ayla não tinha absoluta certeza de como Lobo e Rydag vieram a se entender tão bem. A habilidade inata de Rydag de ler nuanças sutis nos sinais do lobo talvez explicasse a capacidade do menino, mas como um animal poderia conhecer as necessidades de uma frágil criança?

Ayla desenvolveu sinais de lobo modificados com outras ordens, para treinar o filhote. A primeira lição, depois de vários acidentes, foi usar uma cesta de esterco e cinzas como os homens faziam, ou ir fora da moradia. Foi surpreendentemente fácil; Lobo parecia embaraçado com suas confusões, e se encolhia quando Ayla o repreendia. A lição seguinte foi mais difícil.

Lobo adorava mastigar couro, especialmente botas e sapatos, e tirar-lhe o hábito foi vergonhoso e frustrador. Sempre que ela o pegava em flagrante e o censurava, ele se arrependia e ficava ansioso para agradar, mas era teimoso e voltava ao couro novamente, às vezes no instante em que Ayla virava as costas. A proteção dos pés de qualquer pessoa corria um risco, porém, especialmente, as meias macias de couro, prediletas de Ayla. Lobo parecia não poder deixá-las em paz. Ayla teve que pendurá-las ao alto, onde ele não as podia alcançar ou teriam sido dilaceradas. Porém, embora objetasse à mastigação de suas coisas pelo lobinho, sentia-se muito pior quando ele estragava algo de outra pessoa. Ela era responsável por sua vinda para a moradia, e achava que qualquer prejuízo causado por Lobo, fosse culpa dela.

Ayla costurava as contas de terminação na túnica de couro branco quando ouviu uma agitação na Fogueira da Raposa.

- Ei! Você! Dê-me isso! - gritou Ranec.

Ayla percebeu, pelo som, que Lobo havia feito alguma travessura, de novo. Correu para ver qual era o problema desta vez e viu Ranec e Lobo em luta por uma bota usada.

- Lobo! Solte-a! - disse ela, deixando cair à mão em um gesto rápido a curta distância do seu focinho.

O filhote soltou a bota imediatamente e se agachou, com as orelhas levemente para trás e o rabo abaixado, e chorou de modo suplicante. Ranec colocou sua bota no estrado.

- Espero que ele não tenha estragado sua bota - disse Ayla.

- Não importa, é velha - falou Ranec, sorrindo e acrescentou, com admiração: - Você conhece lobos, Ayla. Ele faz exatamente o que você manda.

- Mas, somente enquanto estou perto e o vigio - disse ela, olhando para o animal. Lobo a observava, retorcendo-se na expectativa. - No instante em que dou as costas, ele mexe em outra coisa que não deve. Larga o objeto quando vê que me aproximo, mas não sei como ensiná-lo a não pegar as coisas dos outros.

- Talvez precise de alguma coisa só dele - falou Ranec. Então olhou Ayla com olhos negros ternos e acolhedores: - Ou talvez sua.

O animal se erguia para ela, chorando em busca de sua atenção. Por fim, impaciente, ganiu algumas vezes.

- Fique aqui! Fique quieto! - exclamou ela, zangada. Ele recuou, deitou-se sobre as patas e ergueu os olhos para ela, totalmente arrasado.

Ranec observou, depois disse a Ayla:

- Ele não suporta quando você se zanga com ele. Quer que saiba que a ama. Acho que sei como ele se sente.

Ele se aproximou e os olhos escuros se encheram de calor e necessidade que a tinham comovido tanto antes. Ayla sentiu uma resposta, como um formigamento, e recuou, corada. Então, para encobrir a agitação, inclinou-se e pegou o lobinho que lambeu seu rosto, excitadamente, contorcendo-se de felicidade.

- Vê como ele está feliz agora, sabendo que você gosta dele? - falou Ranec. - Eu também ficaria feliz se soubesse que você se importa comigo. Importa-se?

- Hum... Claro que sim, Ranec - gaguejou Ayla, pouco à vontade.

Ele exibiu um largo sorriso, e seus olhos cintilaram com uma ponta de malícia e algo mais profundo.

- Seria um prazer lhe mostrar como fico feliz ao saber que você gosta de mim - disse ele, colocando o braço em volta da cintura de Ayla, e aproximando-se mais.

- Acredito em você - disse ela, afastando-se. - Não precisa me mostrar, Ranec.

Não era a primeira vez que ele fazia investidas. Em geral, eram disfarçadas em gracejos que permitiam que ela soubesse como ele se sentia, enquanto dava a chance a Ayla de evitá-los sem que nenhum dos dois perdesse o prestígio. Ela começou a caminhar de volta, pressentindo uma confrontação mais séria e querendo evitá-la. Tinha a impressão de que ele pediria para que fosse para a cama dele, e ela não sabia se poderia recusar um homem que lhe ordenava para ir para sua cama, ou mesmo fazia um pedido direto. Ela compreendia que era direito dela, mas a resposta obediente estava tão arraigada que não tinha certeza se poderia ser de outra forma.

- Por que não, Ayla? - disse ele, seguindo-a e emparelhando o passo com o dela. - Por que não deixa eu lhe mostrar? Dorme sozinha agora. Não deveria dormir sozinha.

Ela sentiu uma ponta de remorso, compreendendo que dormia sozinha, mas tentou não demonstrá-lo.

- Não durmo sozinha - retrucou, pegando o lobinho. – Lobo dorme comigo em uma cesta bem aqui, perto da minha cabeceira.

- Não é a mesma coisa - disse Ranec. O tom de voz era sério e ele parecia pronto para insistir.

Depois parou e sorriu. Não queria apressá-la. Sabia que ela estava aborrecida. A separação acontecera havia pouco tempo. Tentou afastar a tensão. - Ele é pequenino demais para aquecê-la... Mas devo admitir, ele é atraente - esfregou a cabeça de Lobo com afeição.

Ayla sorriu e colocou o filhote na cesta. Imediatamente, ele saltou para fora e depois para o solo; sentou-se e se coçou; em seguida, dirigiu-se ao seu prato de comida. Ayla começou a dobrar a túnica branca para guardá-la. Alisou o couro branco macio e a pele de arminho branco e endireitou os rabinhos com as pontas pretas, sentindo o estômago se comprimir e um nó formar-se em sua garganta. Seus olhos ardiam com as lágrimas que lutava para controlar. Não, não era a mesma coisa, pensou. Como poderia ser?

- Ayla, sabe o quanto quero você, o quanto gosto de você - disse Ranec, de pé atrás dela. - Não sabe?

- Acho que sim - disse ela, sem se virar, mas fechando os olhos.

- Amo você, Ayla. Sei que está indecisa agora, mas quero que saiba. Amei você desde o primeiro momento que a vi. Quero partilhar minha fogueira com você, unir-me a você. Quero fazer você feliz. Sei que precisa de tempo para refletir sobre isso. Não estou pedindo que tome uma decisão, mas diga-me que pensará a respeito... Deixe-me fazê-la feliz. Pensará?

Ayla abaixou os olhos para a túnica branca em suas mãos e sua mente se agitou. Por que Jondalar não quer mais dormir comigo? Por que parou de me tocar, de dividir prazeres, mesmo quando dormia comigo? Tudo mudou depois que me tomei Mamutoi. Será que ele não queria que eu fosse adotada? Se não queria, por que não me disse? Talvez quisesse, disse que queria. Pensei que me amava. Talvez tenha mudado de idéia. Talvez não me ame mais. Nunca me pediu para unir-me a ele. O que farei se Jondalar partir sem mim? O nó em seu estômago era tão duro quanto uma rocha. Ranec gosta de mim e quer que eu goste dele. Ele é bom, engraçado, sempre me faz rir... E me ama.

Mas eu não o amo. Eu queria poder amá-lo, talvez eu deva tentar.

- Sim, Ranec, pensarei sobre isso - falou suavemente, mas sua garganta se apertou e doeu enquanto ela falava.

Jondalar viu Ranec deixar a Fogueira do Mamute. O homem alto se tornara um vigia, embora se sentisse embaraçado por isso. Não era um comportamento adequado, quer nesta sociedade ou na sua, os adultos olharem fixamente ou se preocuparem indevidamente com as atividades comuns de outra pessoa, e Jondalar sempre havia sido especialmente sensível às convenções sociais. Incomodava-o parecer tão imaturo, porém, nada podia fazer. Tentava escondê-lo, mas vigiava Ayla e a Fogueira do Mamute constantemente.

O passo vivaz do escultor e o sorriso satisfeito quando voltou à Fogueira da Raposa encheram o visitante alto de horror. Sabia que tinha que ser alguma coisa que Ayla havia dito ou feito à causa para tal animação do homem dos Mamutoi e, com sua imaginação mórbida temeu o pior.

Jondalar sabia que Ranec se tornara uma visita constante desde que ele deixara a Fogueira do Mamute, e censurava-se por ter criado essa oportunidade. Queria poder engolir suas palavras e toda a discussão tola, mas estava convencido de que era tarde demais para emendas. Sentia-se desamparado, mas, de certa forma, era um alívio haver alguma distância entre eles.

Embora não o admitisse a si mesmo, suas ações eram motivadas por mais do que um simples desejo de permitir a Ayla a escolha do homem que ela queria. Ele fora magoado tão profundamente que parte dele queria retribuir o golpe; se ela podia rejeitá-lo, ele podia fazer o mesmo também com ela. Mas ele precisava, além disso, de uma chance de ver se era possível superar o seu amor por ela. Perguntava-se, sinceramente, se não seria melhor para ela permanecer ali, onde era aceita e amada, do que voltar com ele para seu povo, e temia qual seria a sua própria reação se sua gente a rejeitasse. Ele desejaria partilhar uma vida de exílio com ela? Desejaria ir embora, abandonar novamente seu povo, especialmente depois de fazer uma jornada tão longa para regressar? Ou ele a rejeitaria também?

Se ela escolhesse outro homem para amar, aí, ele seria forçado a deixá-la, e não enfrentaria tal decisão. Mas o pensamento de Ayla amar outro homem o enchia de tanta dor no estômago, asfixia, nó na garganta, sofrimento insuportável, que ele não sabia se seria capaz de sobreviver, ou se queria fazê-lo. Quanto mais lutava consigo mesmo para não mostrar seu amor, tanto mais possessivo e ciumento se tornava, e mais odiava a si mesmo por isso.

O turbilhão de tentar resolver suas fortes emoções confusas cobrava o seu preço. Ele não era capaz de comer ou dormir, e parecia macilento e enfraquecido. As roupas começavam a ficar folgadas em seu corpo alto. Não podia se concentrar, nem sequer em um novo e bonito pedaço de sílex. As vezes, perguntava-se se estava enlouquecendo, ou possuído por algum espírito noturno pernicioso. Estava tão torturado pelo amor por Ayla, pela dor de que ia perdê-la e pelo medo do que aconteceria se não a deixasse, que não suportava ficar muito perto dela. Tinha medo de perder o controle e fazer alguma coisa por que se lamentasse. Mas não podia deixar de vigiá-la.

O Acampamento do Leão era clemente em relação à pequena indiscrição de seu visitante. Eles estavam cientes de seus sentimentos por Ayla apesar das tentativas para escondê-los. Todos, no acampamento, comentavam a situação difícil em que os três jovens estavam envolvidos. A solução para o seu problema parecia muito simples para aqueles que observavam do lado de fora. Ayla e Jondalar gostavam um do outro, obviamente, portanto, por que simplesmente não diziam um ao outro o que sentiam e depois convidavam Ranec para partilhar sua união? Mas Nezzie sentia que não era tão simples assim. A mulher sábia, maternal, achava que o amor de Jondalar por Ayla era forte demais para ser sustado pela falta de algumas palavras. Alguma coisa muito mais profunda estava entre eles.

E ela, mais do que ninguém, compreendia a força do amor de Ranec pela jovem. Ela não acreditava que era uma situação que pudesse ser resolvida com uma união partilhada. Ayla teria que fazer uma escolha.

Como se a idéia possuísse algum poder impelente, desde que Ranec havia pedido a Ayla para pensar sobre dividir sua fogueira, e expôs o fato obviamente doloroso de que, agora, ela dormia sozinha, ela não havia sido capaz de pensar em outra coisa. Ela se agarrara à convicção de que Jondalar esqueceria suas palavras duras e voltaria, especialmente desde que, aparentemente toda vez que ela olhava para a área de cozinhar, vislumbrava-o, entre as estacas de sustentação e objetos pendendo do teto nas fogueiras intermédias, quando ele se virava e afastava. Isso a fazia pensar que ele ainda se interessava o suficiente para olhar na sua direção. Mas cada noite que passava sozinha reduzia sua esperança.

Pensar sobre isso... As palavras de Ranec se repetiam na mente de Ayla, enquanto esmagava bardana seca e folhas de samambaia para um chá para a artrite de Mamut, refletindo sobre o homem escuro e sorridente, e se perguntando se ela poderia aprender a amá-lo. Mas o pensamento de sua vida sem Jondalar fazia seu estômago doer com um vazio estranho. Ela ajuntou gualtéria fresca e água quente às folhas esmagadas em uma tigela e levou para o velho.

Sorriu quando ele lhe agradeceu, mas parecia preocupada e triste. Estivera distraída o dia inteiro. Mamut sabia que ela ficara perturbada desde que Jondalar se mudara, e gostaria de poder ajudar.

Havia visto Ranec falando-lhe antes e pensou em tentar conversar com ela a respeito disso, mas acreditava que nada acontecia na vida de Ayla sem uma finalidade. Estava convencido de que a Mãe havia criado suas dificuldades atuais por um motivo, e hesitava em interferir. Quaisquer provações que ela e os dois rapazes passassem eram necessárias. Observou-a saindo para o anexo dos cavalos e ficou ciente quando ela voltou, algum tempo depois.

Ayla protegeu o fogo, voltou para seu estrado-cama, despiu-se e se preparou para dormir. Era um sofrimento enfrentar a noite sabendo que Jondalar não dormiria ao seu lado. Ela se ocupou com pequenas tarefas para retardar a acomodação de si mesma entre as peles, sabendo que permaneceria acordada metade da noite. Por fim, pegou o filhote de lobo e colocou-o à beira da cama, afagando, acariciando e falando ao animalzinho cálido e adorável até ele adormecer em seus braços. Depois, o colocou na cesta, acariciando-o até se acalmar de novo. Para compensar a ausência de Jondalar, Ayla esbanjava amor pelo lobinho.

Mamut compreendeu que estava acordado e abriu os olhos. Mal podia distinguir formas vagas na escuridão. A habitação estava silenciosa, a noite tranqüila, cheia apenas com os sussurros leves, a respiração forte, e baixos roncos. Devagar, virou a cabeça para o fraco brilho vermelho das brasas da fogueira, esforçando-se para descobrir o que o havia tirado de um sono profundo para um despertar pleno. Ouviu a respiração contida perto, e um soluço abafado e afastou suas cobertas.

- Ayla? Ayla, está sofrendo? - perguntou, suavemente, ela sentiu a mão cálida em seu braço.

- Não - respondeu ela, a voz rouca da tensão. Seu rosto estava voltado para a parede.

- Está chorando.

- Desculpe, eu o acordei. Devia ter feito menos barulho.

- Você não fez barulho que me acordasse, foi sua necessidade que me despertou. A Mãe me chamou para ver você, que está sofrendo. Está ferida por dentro, não é?

Ayla respirou fundo, dolorosamente, esforçando-se para conter o choro que queria se expressar.

- Sim - disse ela, e se virou para o velho, as lágrimas brilhando na luz fraca.

- Então, chore, Ayla. Não deve prender o choro. Tem razão para estar sofrendo e tem o direito de chorar - falou Mamut.

- Oh, Mamut - exclamou ela, um grande soluço se ouvindo; depois conteve o som ainda, mas com o alívio da permissão dele derramou silenciosamente o choro de seu sofrimento e angústia.

- Não se contenha, Ayla. É bom chorar - disse ele, sentando-se à beira da cama da jovem e dando-lhe tapinhas carinhosos. - Tudo se resolverá como deve, como se destina a ser. Está tudo bem, Ayla.

Quando ela parou, afinal, encontrou um pedaço de couro macio para limpar o rosto e nariz, e sentou-se ao lado do velho.

- Sinto-me melhor agora - falou.

- É sempre bom chorar quando se sente necessidade, mas não está terminado, Ayla.

Ayla inclinou a cabeça.

- Eu sei. - Depois se virou para ele e perguntou: - Mas, por quê?

- Algum dia você saberá por quê. Acredito que sua vida é dirigida por forças poderosas. Você foi escolhida para um destino especial. Não é um fardo fácil o que você carrega; veja o que já passou durante sua curta vida. Mas sua vida não será de sofrimento somente, terá grandes alegrias. É amada, Ayla. Atrai amor para você. Isso lhe é dado para ajudá-la a suportar o fardo. Você terá sempre amor... Talvez demasiado...

- Pensei que Jondalar me amava...

- Não fique muito certa de que não a ama, mas muitas outras pessoas a amam, inclusive este velho - disse Mamut, sorrindo. Ayla sorriu também. - Até um lobo e cavalos amam você. Não existiram muitos que a amaram?

- Tem razão. Iza me amava. Era minha mãe. Não importava que eu não tivesse nascido dela. Quando morreu, disse que me amava muito... Creb me amou... Embora eu o tenha desapontado...- e magoado. - Ayla parou por um momento, depois continuou: - Uba me amava... E Durc. - Parou de novo. - Acha que tornarei a ver meu filho, um dia, Mamut?

O feiticeiro fez uma pausa antes de responder.

- Quanto tempo faz que você não o vê?

- Três... Não, quatro anos. Ele nasceu no começo da primavera. Tinha três anos quando parti. É quase da idade de Rydag... - De repente, Ayla olhou para o velho feiticeiro e falou com grande excitação. - Mamut, Rydag é uma criança mista, exatamente como meu filho. Se Rydag pode viver aqui, por que Durc não poderia? Você foi até a península e voltou, por que eu não poderia ir buscar Durc e trazê-lo para cá? Não é tão longe.

Mamut franziu a testa, considerando sua resposta.

- Não posso responder a isso, Ayla, somente você pode, mas deve refletir com muito cuidado antes de resolver o que é melhor, não só para você, mas para seu filho. Você é Mamutoi. Aprendeu a falar nossa língua, e aprendeu muitos de nossos costumes, mas ainda tem muito o que aprender sobre nossos hábitos.

Ayla não ouvia as palavras cuidadosamente escolhidas pelo feiticeiro. Sua mente já corria à frente.

- Se Nezzie pôde aceitar uma criança que nem sequer pode falar, por que não uma que é capaz de falar? Durc seria capaz, se tivesse uma língua para aprender. Durc poderia ser um amigo para Rydag. Durc o ajudaria, correria e traria coisas para ele. Durc é um bom corredor.

Mamut deixou-a continuar a recitação entusiástica das virtudes de Durc até ela parar por conta própria, e depois lhe perguntou:

- Quando pretenderia ir buscá-lo, Ayla?

- Assim que puder. Esta primavera... Não, é muito duro viajar na primavera, há muitas enchentes. Terei de esperar o verão. - Ayla fez uma pausa. - Talvez não. Este é o verão da Reunião de Clãs.

Se eu não chegar lá antes de eles partirem, terei que esperar sua volta. Mas, então, Ura estará com eles...

- A menina que foi prometida a seu filho? - indagou Mamut.

- É. Dentro de poucos anos, serão companheiros. As crianças do Clã crescem mais cedo do que as dos Outros... Do que eu cresci. Iza achava que eu jamais me tornaria mulher. Eu era tão lenta em comparação com as meninas do Clã... Ura podia ser mulher, contudo, e pronta para ter um companheiro e sua própria fogueira. - Ayla franziu atesta. - Era bebê quando a vi e a Durc... A última vez que vi Durc... Era um menininho. Breve será um homem, sustentando sua companheira, uma mulher que pode ter filhos. Eu nem mesmo tenho um companheiro. A companheira de meu filho pode dar à luz antes de mim.

- Sabe qual é sua idade, Ayla?

- Não exatamente, mas sempre conto meus anos no fim do inverno, mais ou menos agora. Não sei por quê. - Franziu a testa de novo. - Acho que é hora de eu ajuntar outro ano. Isso significa que devo estar... - Fechou os olhos para se concentrar nas palavras de contagem. - Tenho dezoito anos agora, Mamut. Estou envelhecendo!

- Você tinha onze quando seu filho nasceu? - perguntou ele, surpreso. Ayla concordou com um gesto de cabeça. - Conheci algumas meninas que se tornaram mulheres com nove ou dez anos, mas é muito cedo. Latie ainda não é mulher, e está com doze anos.

- Ela será, breve. Afirmo-lhe - falou Ayla.

- Acho que tem razão. Mas não é tão velha, Ayla. Deegie tem dezessete e só se unirá neste verão, na Reunião de Verão.

- É verdade, e prometi que eu tomaria parte em seu Matrimônio. Não posso ir a uma Reunião de Verão e a uma Reunião de Clãs ao mesmo tempo.

- Mamut a viu empalidecer. - Não posso ir a uma Reunião de Clãs, de qualquer maneira. Nem sequer estou certa de poder voltar para o Clã. Fui amaldiçoada. Estou morta. Até Durc pode pensar que sou um espírito e ter medo de mim. Oh, Mamut! O que devo fazer?

- Deve refletir sobre tudo isso com cuidado, antes de resolver o que é melhor - replicou ele. Ela parecia preocupada e ele decidiu mudar de assunto.

- Mas, você tem tempo. Ainda não é primavera. O Festival de Primavera acontecerá antes de nos darmos conta, no entanto. Já pensou na raiz e na cerimônia de que falou? Quer incluir isso no Festival de Primavera?

Ayla sentiu um arrepio. A idéia a amedrontava, mas Mamut estaria presente, para ajudar. Ele saberia o que fazer, e parecia tão interessado em querer aprender sobre aquilo.

- Está bem, Mamut. Sim, eu farei isso.

Jondalar soube da mudança no relacionamento entre Ayla e Ranec imediatamente, embora não quisesse aceitar o fato. Observou-os durante vários dias até não poder negar a si mesmo que Ranec quase vivia na Fogueira do Mamute e que sua presença era bem-vinda e apreciada por Ayla. Não importava quanto ele tentava se convencer de que era melhor assim, e que ele havia feito o que era certo ao se mudar, não conseguia acalmar a dor de perder o amor de Ayla, ou vencer a mágoa de ser excluído. Apesar do fato de que fora ele quem se retirara e, voluntariamente, havia deixado a cama e a companhia da jovem, agora sentia que ela o estava rejeitando.

Eles não precisaram de muito tempo, pensou Jondalar. Ele estava lá no dia seguinte, rondando-a, e ela mal podia esperar que eu fosse embora para dar-lhe as boas-vindas. Deviam estar apenas esperando a minha partida. Eu deveria saber...

Por que a está culpando? Foi você quem saiu, Jondalar, disse a si mesmo. Ela não o mandou embora. Depois da primeira vez, ela não voltou para ele. Ela estava lá, pronta para você, e você sabe disso...

Assim, agora, ela está pronta para ele. E ele está ansioso. Pode culpá-lo? Talvez seja melhor assim. Ela é querida aqui, estão mais habituados com cabeças-chatas... Clã. E é amada...Sim, é amada. Não é isso que quer para ela? Ser aceita e ter alguém que a ame...

Mas, eu a amo pensou ele com um jorro de dor e angústia. Ó Mãe! Como suportá-lo? Ela é a única mulher que já amei dessa maneira. Não quero que seja magoada, não quero que seja rejeitada. Por que ela? Ó Doni, por que tinha que ser ela?

Talvez eu deva partir. É isso, eu partirei, pensou, além da capacidade de refletir claramente naquele momento.

Jondalar se dirigiu com passos largos à Fogueira do Leão e interrompeu Talut e Mamut, que discutiam o próximo Festival de Primavera.

- Vou embora - desabafou. - O que posso fazer para negociar em troca de alguns suprimentos? - Tinha uma expressão maníaca de desespero.

Um olhar sagaz foi trocado pelo feiticeiro e o chefe.

- Jondalar, meu amigo - falou Talut, batendo em seu ombro - ficaremos felizes em lhe dar quaisquer suprimentos de que necessite, mas não pode partir agora. A primavera está próxima, porém, olhe lá fora, está soprando uma nevasca, e as nevascas de fim de estação são as piores.

Jondalar se acalmou e compreendeu que seu impulso repentino de ir embora era impossível. Ninguém, em seu juízo perfeito, iniciaria uma longa jornada agora.

Talut sentiu um relaxamento de tensão nos músculos de Jondalar, enquanto continuava falando.

- Na primavera, haverá enchente, e existem muitos rios para cruzar. Além disso, não pode viajar para tão distante de seu lar, passar o inverno com os Mamutoi e não caçar mamutes com os Caçadores de Mamutes, Jondalar. Se voltar, você jamais terá outra chance. A primeira caçada será no início do verão, pouco depois de todos irmos à Reunião de Verão. A melhor época para começar a viajar seria em seguida. Você me faria um grande favor se pensasse em ficar conosco até, ao menos, a primeira caçada de mamutes. Eu gostaria que você mostrasse seu arremessador de lanças.

- Sim, claro, pensarei sobre isso - falou Jondalar. Depois, olhou para o grande chefe de cabelos ruivos. Encarou-o: - E obrigado, Talut. Tem razão. Não posso partir agora.

Mamut estava sentado de pernas cruzadas em seu local favorito para meditação, o estrado-cama perto do dele, que era usado como depósito para cobertas extras de cama, de pele de rena, peles e outras roupas de cama. Não meditava tanto quanto pensava. Desde a noite em que fora despertado pelas lágrimas de Ayla, estava muito mais ciente do desespero de Ayla devido à mudança de Jondalar. A lamentável infelicidade dela havia deixado uma impressão profunda nele. Embora ela conseguisse esconder a extensão de seus sentimentos da maioria das pessoas, ele estava mais consciente, agora, de pequenos detalhes do comportamento de Ayla que talvez passassem despercebidos antes. Apesar de gostar verdadeiramente da companhia de Ranec, e rir de suas piadas, Ayla estava vencida, e o cuidado e atenção esbanjados com Lobo e os cavalos tinham a característica de anseio desolado.

Mamut prestava maior atenção ao visitante alto e notou a mesma tristeza no comportamento de Jondalar. Ele parecia cheio de ansiedade e tormento, embora também tentasse escondê-los. Após o desesperado impulso de partir no meio de uma tempestade, o velho feiticeiro temia que o bom senso de Jondalar deixasse de existir diante do pensamento de perder Ayla. Para o velho feiticeiro, que lidava tão intimamente com o mundo espiritual de Mut e Seus destinos, aquilo implicava uma compulsão mais profunda do que simplesmente amor jovem. Talvez a Mãe tivesse planos para ele também; planos que envolviam Ayla.

Embora Mamut relutasse em avançar, perguntou-se por que a Mãe lhe havia mostrado aquilo. Ela era a força por trás de seus sentimentos mútuos. Apesar de ele estar convencido de que, posteriormente, Ela daria um jeito nas circunstâncias segundo Lhe conviesse, talvez Ela quisesse que ele ajudasse nesse caso.

Enquanto refletia se e como tornaria os desejos da Mãe conhecidos, Ranec entrou na Fogueira do Mamute, obviamente procurando por Ayla. Mamut sabia que ela levara o filhote do lobo para uma cavalgada em Whinney e não voltaria loga Ranec olhou ao redor, depois viu o velho e se acercou.

- Sabe onde Ayla está, Mamut? - interrogou.

- Sim. Ela saiu com os animais.

- Perguntava-me por que eu não a via há algum tempo.

- Você tem visto muito Ayla, ultimamente.

Ranec sorriu:

- Espero ver muito mais ainda.

- Ela não chegou aqui sozinha, Ranec. Jondalar não tem um interesse anterior?

- Talvez tivesse, quando chegaram, mas ele desistiu. Saiu da fogueira - disse Ranec. Mamut notou que o tom era defensivo.

- Acho que ainda existe um sentimento forte entre eles. Não creio que a separação seja permanente se sua ligação profunda tiver uma chance de crescer novamente, Ranec.

- Se está me dizendo para recuar, Mamut, lamento muito. É tarde demais. Também tenho um sentimento forte por Ayla. - A voz de Ranec se partiu com a emoção que sentia. - Mamut, amo Ayla, quero unir-me a ela, fazer uma fogueira com ela. É hora de me fixar com uma mulher e quero seus filhos na minha fogueira. Jamais conheci alguém como ela. É tudo o que sonhei. Se puder convencê-la a concordar, quero anunciar nossa promessa no Festival de Primavera, e unir-me no Matrimônio este verão.

- Está certo de que é o que quer, Ranec? - perguntou Mamut. Ele gostava de Ranec e sabia que Wymez ficaria satisfeito se o menino de pele escura, que ele trouxera de suas viagens, encontrasse uma mulher e se fixasse. - Há muitas mulheres Mamutoi que acolheriam bem uma união com você, O que diria daquela bela jovem de cabelos ruivos com quem você quase assumiu compromisso? Qual o nome dela? Tricie? - Mamut estava certo de que, se um rubor pudesse se revelar, o rosto de Ranec estaria rubro.

- Eu direi... Eu direi que lamento. Não posso fazer nada. Não há mais ninguém que eu queira, a não ser Ayla. Agora, ela é Mamutoi. Deve unir-se a um Mamutoi. Quero que este seja eu.

- Se tiver que ser, Ranec - disse Mamut bondosamente-, será, mas lembre-se disto: a escolha não é sua. Não é sequer de Ayla. Ela foi escolhida pela Mãe para um objetivo e recebeu muitas dádivas. Não importa o que você decida, ou o que ela decida. Mut tem o primeiro direito sobre ela. Qualquer homem que se unir a ela, se une também com o seu propósito.

À medida que a terra antiga inclinou seu rosto setentrional gelado imperceptivelmente para mais perto do grande astro brilhante que ela circundava mesmo as regiões próximas das geleiras sentiram um toque de calor suave e, lentamente, despertaram do sono de um inverno mais longo e rigoroso.

A primavera se agitou devagar a princípio, depois, com a pressa de uma estação cujo tempo era curto, retirou a camada congelada num ímpeto exuberante que irrigou e avivou o solo.

As gotas pingando de galhos e arcadas no primeiro calor de um meio- dia sem gelo se endureceram em pingentes quando as noites esfriaram. Nos dias gradualmente mais quentes que se seguiram, os veios longamente minguados cresceram, escorregaram sua garra gelada e perfuraram montes de neve, reduzidos a amontoados de lodo pela água enlameada. Os regatos, ribeiros e córregos de neve e gelo derretidos se uniram em correntes para arrastar a umidade acumulada que fora mantida em suspensão fria. Os rios que se avolumavam desciam velhos canais e regos, ou abriam novos no loesse, às vezes ajudados e dirigidos por uma pá de galhada ou uma concha de marfim.

O rio limitado pelo gelo gemia e rangia em sua luta para afrouxar a garra do inverno enquanto o material derretido se derramava em sua corrente oculta. Então, sem aviso, um estrondo potente, ouvido até na habitação comunal, seguido de um segundo estalo e depois de um ruído retumbante, anunciava que o gelo não detinha mais a cheia. Os pedaços de madeira e banquisas, saltitando, afundando, agitando-se, presos e arrastados pela rápida e poderosa corrente, marcavam o ponto crucial da estação.

Como se o frio fosse levado também pela enchente, as pessoas do acampamento, tão confinadas quanto o rio pelo frio rigoroso, deixavam a habitação comunal. Embora estivesse mais quente apenas por comparação, a vida interior restrita mudava para vigorosa atividade externa. Qualquer desculpa para sair era saudada com entusiasmo, mesmo a limpeza de primavera.

As pessoas do Acampamento do Leão eram limpas, por seus próprios padrões. Embora a umidade na forma de gelo e neve fosse abundante, era necessário o fogo e grandes quantidades de combustível para produzir água. Mesmo assim, parte do gelo e da neve que derretiam para cozinhar e beber era usada para a lavagem, e eles tomavam banhos de vapor periodicamente. Áreas individuais eram geralmente bem organizadas, cuidavam bem de ferramentas e implementos, as poucas roupas que usavam no interior da habitação eram escovadas, às vezes lavadas e bem conservadas. Mas, no fim do inverno, o mau cheiro no interior da habitação era inacreditável.

Contribuindo para isso estava o alimento em várias fases de preservação ou deterioração, cozido, cru e podre; óleos inflamáveis, muitas vezes rançosos desde que pedaços recém-congelados de gordura eram, em geral, acrescentados ao óleo velho nas lamparinas; cestas usadas para defecar, nem sempre despejadas imediatamente; recipientes de urina guardada para se tornar amoníaco pela decomposição da uréia através das bactérias; e as pessoas. Embora os banhos a vapor fossem saudáveis e limpassem a pele, quase não eliminavam os odores normais do corpo, mas esse não era o seu propósito. O odor pessoal era parte da identidade de um indivíduo.

Os Mamutoi estavam acostumados com os ricos e fortes odores naturais da vida diária. Seu sentido do olfato era bem desenvolvido e usado, como a visão e audição, para manter a consciência de seu meio. Nem mesmo os odores dos animais eram considerados desagradáveis; eram naturais, também. Mas à medida que a estação esquentou, até os narizes habituados aos odores comuns da vida, começaram a notar as conseqüências de setenta e sete pessoas vivendo juntas em acomodações próximas, por um período prolongado. A primavera era a época em que as cortinas eram abertas para arejar a habitação, e o entulho acumulado de todo o inverno era limpo e jogado fora.

No caso de Ayla, isso incluía remover, com uma pá, os excrementos dos cavalos, do anexo. Os animais tinham resistido bem ao inverno, o que agradou a Ayla, mas não era um fato surpreendente. Os cavalos de estepe eram animais fortes, adaptados aos rigores dos invernos difíceis. Embora tivessem que irá procura de forragem, Whinney e Racer tinham liberdade para ir e vir a um local de proteção bem além daquele disponível, em geral, para seus primos selvagens. Além disso, recebiam água e algum alimento Os cavalos amadureciam depressa no ermo, o que era necessário, sob circunstâncias normais, para a sobrevivência, e Racer, como outros potros que nasceram na mesma época, havia atingido o desenvolvimento total. Embora ainda fosse engordar um pouco mais nos próximos anos, era um jovem garanhão robusto, ligeiramente maior que sua mãe.

A primavera era também a época de carências. O suprimento de alguns alimentos, principalmente produtos vegetais preferidos, estava esgotado, e outros alimentos se encontravam escassos. Quando examinaram o estoque, todos ficaram contentes por terem ido à caçada de bisões. Se não o tivessem feito, talvez agora tivessem pouca carne. Mas embora a carne os alimentasse, deixava-os insatisfeitos. Ayla, recordando os tônicos de primavera de Iza para o clã de Brun, resolveu fazer alguns para o acampamento. Suas tisanas de várias ervas secas, inclusive de labaça, rica em ferro, e frutos de roseira que evitavam o escorbuto, reduziram a falta oculta de vitamina que provocava o desejo por alimento fresco, mas não eliminaram o desejo. Todos estavam ansiosos pelas primeiras verduras frescas. A necessidade de seu conhecimento médico, contudo, foi além dos tônicos de primavera.

A habitação comunal parcialmente subterrânea, bem isolada e aquecida por vários fogos, lamparinas e calor natural dos corpos, era quente. Mesmo quando fora era extremamente frio, usavam poucas roupas dentro da moradia. Durante o inverno tomavam cuidado para vestir-se adequadamente antes de sair, mas quando a neve começou a derreter, essa cautela desapareceu.

Embora a temperatura subisse apenas um pouco acima de zero, parecia fazer tão mais calor, que as pessoas saíam usando pouco mais que seus trajes caseiros. Com as chuvas primaveris e derretimento da neve, muitas vezes se molhavam e sentiam frio antes de voltar à habitação, o que diminuía sua resistência.

Ayla estava mais ocupada tratando de tosses, resfriados e dores de garganta, nos dias mais quentes da primavera, do que estivera no maior rigor do inverno. A epidemia de resfriados e infecções respiratórias da primavera preocupou todos. Até Ayla ficou alguns dias de cama para curar uma febre baixa e uma tosse forte. Antes de entrarem realmente na primavera, ela já havia tratado quase todos os membros do Acampamento do Leão. Dependendo da necessidade, ela forneceu chás medicinais, tratamentos de vapor, cataplasmas quentes para gargantas e peitos, e uma afabilidade simpática e convincente de enfermaria. Todos elogiavam a eficácia de seus medicamentos. No mínimo, ela fazia as pessoas se sentirem melhor.

Nezzie lhe contou que eles sempre tinham resfriados de primavera, mas quando Mamut apareceu com a doença, pouco depois de Ayla, ela ignorou os sintomas que lhe restavam, para cuidar dele. Era um homem muito velho e ela se preocupava com ele. Uma grave infecção respiratória podia ser fatal.

O feiticeiro, contudo, apesar de sua idade avançada, ainda possuía energia e recuperou-se mais depressa do que alguns outros na habitação. Apesar de ter gostado da atenção dedicada de Ayla, ele insistiu com ela para que visse os outros que precisavam mais de seus cuidados, e que descansasse.

Ela não precisou de insistência quando Fralie apresentou febre, e uma tosse forte que sacudia seu corpo, mas sua vontade de ajudar não fez diferença. Frebec não permitiu que Ayla entrasse na fogueira para cuidar de Fralie. Crozie discutiu violentamente com ele e todos concordaram com ela no acampamento, mas ele foi inflexível. Crozie chegou até a discutir com Fralie, tentando convencê-la a ignorar Frebec, sem resultado A mulher doente apenas sacudiu a cabeça e tossiu.

- Mas por quê? - perguntou Ayla a Mamut, tomando uma bebida quente com ele e ouvindo o último espasmo de tosse de Fralie. Tronie havia levado Tasher, que ficava entre Nuvie e Hartal em idade, para sua fogueira. Crisavec dormia com Brinan na Fogueira dos Auroques. Assim, a mulher doente e grávida podia descansar, mas Ayla se preocupava todas as vezes que Fralie tossia. - Por que ele não me deixa ajudá-la? Ele pode ver que outras pessoas se sentem melhor, e ela precisa disso mais que ninguém. Tossir assim é penoso demais para ela, especialmente agora.

- Não é uma pergunta difícil, Ayla. Se uma pessoa acredita que os membros do Clã são animais, é impossível acreditar que sabem alguma coisa sobre medicina. E se você cresceu com eles, como poderia saber algo a respeito?

- Mas eles não são animais! Uma curandeira do Clã é muito capaz.

- Eu sei disso, Ayla. Sei melhor do que ninguém que uma curandeira do Clã é perita. Acho que todos aqui sabem disso, agora, até Frebec. Ao menos apreciam sua capacidade, mas Frebec não quer recuar depois de toda a discussão. Ele teme ficar desacreditado.

- O que é mais importante? O seu prestígio ou o bebê de Fralie?

- Fralie deve achar que o prestígio de Frebec é mais importante.

- Não é culpa de Fralie. Frebec e Crozie tentam fazer com que ela escolha entre eles, e ela não fará isso.

- É uma decisão de Fralie.

- Esse é o problema. Ela não quer tomar uma decisão. Ela se recusa.

Mamut balançou a cabeça.

- Não, ela está escolhendo, quer queira ou não. Mas a escolha não é entre Frebec e Crozie. Quanto tempo falta para ela dar à luz? - perguntou ele. - Para mim, parece pronta.

- Não tenho certeza, mas acho que ainda não está na hora. Ela parece maior porque é muito magra, mas o bebê não se encontra em posição, ainda. É isso que me preocupa. Acho que é cedo demais.

- Não há nada que possa fazer, Ayla.

- Mas se Frebec e Crozie não discutissem tanto sobre tudo...

- Isso não tem nada a ver com o caso. Não é esse o problema de Fralie, isso é entre Frebec e Crozie. Fralie não tem que se deixar ficar no meio do problema deles. Ela pode tomar suas próprias decisões e, na verdade, está tomando. Está decidindo não fazer nada. Ou melhor, se seus temores são fundados... E acho que são... Ela está resolvendo se dá à luz agora ou mais tarde. Talvez esteja escolhendo a vida para seu bebê, e a morte... E pode estar correndo risco também. Mas a escolha é dela, e talvez exista mais nesse caso do que qualquer um de nós imagina.

Os comentários de Mamut permaneceram na mente de Ayla muito tempo depois de a conversa terminar, e ela foi para a cama ainda pensando neles. Ele estava certo, claro. Apesar dos sentimentos de Fralie por sua mãe e Frebec, a luta não era dela. Ayla tentou pensar em algum meio de convencer Fralie, mas havia tentado antes, e agora ela não tinha chance de falar com Fralie porque Frebec a mantinha longe de sua fogueira. Quando Ayla foi dormir, a preocupação pesava em sua cabeça.

Acordou no meio da noite, e jazeu imóvel, ouvindo. Não tinha certeza do que a havia acordado, mas pensou que foi o som da voz de Fralie gemendo na escuridão da habitação de terra. Após um silêncio prolongado, ela resolveu que devia ter sido um sonho. Lobo chorou, e ela estendeu a mão para consolá-lo. Talvez ele estivesse tendo um pesadelo e fora isso que a optar, a despertara. Sua mão paro antes de alcançar o filhote quando ela se es forçou para ouvir o que achava ser um gemido abafado.

Ayla afastou as cobertas e se levantou. Silenciosamente, deu volta à cortina e tateou seu caminho para a cesta a fim de urinar; depois enfiou uma túnica pela cabeça e caminhou para a lareira. Ouviu uma tosse abafada, depois um espasmo de tossidelas que afinal se converteu em um lamento igualmente sufocado. Ayla avivou os carvões, ajuntou um pouco de lascas de osso e gravetos até conseguir um fogo pequeno, depois deixou cair nele algumas pedras de cozinhar e estendeu a mão para a bolsa de água.

- Pode fazer chá para mim também - disse Mamut em voz baixa da escuridão de seu estrado-cama, depois empurrou suas cobertas e sentou-se. - Acho que todos nós estaremos Logo de pé.

Ayla concordou com um gesto de cabeça e derramou mais água na cesta de cozinhar. Houve mais tossidelas, depois agitação e vozes sussurrantes na Fogueira da Garça.

- Ela precisa de algo para acalmar a tosse, e algo para serenar o trabalho... Se não for tarde demais. Acho que vou olhar meus remédios - disse Ayla, pousando sua tigela de chá, depois hesitou: - Só para o caso de alguém pedir.

Ela pegou um facho e Mamut a observou mover-se entre os suportes de plantas secas que ela trouxera do vale. É uma maravilha vê-la praticar sua arte de curar, pensou Mamut. Ela é jovem para possuir tal habilidade, no entanto. Se eu fosse Frebec, ficaria mais preocupado com a juventude de Ayla e uma possível inexperiência, do que com o seu passado. Eu sei que ela foi treinada pela melhor, mas como já pode saber tanto? Ela deve ter nascido com esse dom, e a curandeira, Iza, deve tê-lo percebido desde o início. Sua reflexão foi interrompida por outro acesso de tosse na Fogueira da Garça.

- Aqui, Fralie, tome um gole d’água - disse Frebec, ansioso.

Fralie sacudiu a cabeça, incapaz de falar, tentando controlar a tosse. Ela estava de lado, erguida sobre um cotovelo, segurando um pedaço de couro macio contra a boca. Seus olhos estavam embaciados de febre e o rosto vermelho de esforço. Ela lançou um olhar à mãe, que estava sentada à beira da cama do outro lado do corredor, fitando-a.

A raiva de Crozie e sua infelicidade eram evidentes. Ela havia tentado tudo para convencer a filha a pedir ajuda: persuasão, discussão, diatribe; nada funcionava. Até ela havia tomado remédio de Ayla para seu resfriado, e era estupidez de Fralie não usar a ajuda disponível. Tudo por culpa daquele homem imbecil, Frebec, mas não adiantava falar a respeito. Crozie decidira não dizer mais uma só palavra.

A tosse de Fralie cedeu, e ela caiu de costas na cama, exausta. Livre a outra dor, a que ela não queria admitir, não viesse desta vez. Fralie esperou, prendendo a respiração de forma a não perturbar coisa alguma, na expectativa amedrontada. Uma dor começou na parte inferior de suas costas. Ela fechou os olhos e respirou fundo e tentou induzi-la a desaparecer. Colocou uma das mãos sobre o lado do estômago dilatado, e sentiu os músculos se contraírem, enquanto a dor e sua ansiedade aumentavam. É cedo demais, pensou. O bebê não poderia chegar senão dentro de outro ciclo lunar, no mínima.

- Fralie? Está bem? - perguntou Frebec, ainda de pé, com a água Ela tentou lhe sorrir vendo sua infelicidade, sua sensação de desamparo.

- É esta tosse - falou. - Todo mundo adoece na primavera.

Ninguém o compreendia, pensou ela, ainda menos sua mãe. Ele tentava tanto mostrar a todos que valia alguma coisa. Por isto ele não cedia, por isto discutia tanto, e se ofendia com tanta facilidade. Ele embaraçava Crozie. Ele não compreendia que se mostrava o valor - o número e a qualidade de seus parentescos, e a força de sua influência - por quanto você podia exigir que a família e o seu povo cedessem, de forma que todos pudessem vê-lo. Sua mãe havia tentado mostrar a Frebec, dando-lhe o direito da Garça, não apenas a fogueira que Fralie lhe trouxe quando se uniram, mas o direito de reivindicar a Garça como seu direito inato.

Crozie havia esperado concordância com os seus desejos e pedidos, para mostrar que ele havia apreciado e entendido que a Fogueira da Garça, que ainda era dela no nome, embora ela possuísse pouco mais, era dele de direito. Mas as exigências dela podiam ser excessivas. Ela perdera tanto que era difícil ceder qualquer restante reivindicação sua a status, principalmente a alguém que tinha tão pouco. Crozie temia que ele o reduzisse e precisava de afirmação constante de que era apreciado. Fralie não envergonharia Frebec, tentando explicar. Era uma coisa delicada, algo que se crescia sabendo... Se sempre se possuíra. Mas Frebec jamais teve coisa alguma.

Fralie começou a sentir uma dor nas costas, de novo. Se ficasse deitada, imóvel, talvez a dor desaparecesse... Se ela conseguisse evitar a tosse. Começava e desejava poder conversar com Ayla, ao menos para tomar um remédio para a tosse, mas não queria que Frebec pensasse que ela estava tomando o partido de sua mãe. E explicações longas apenas irritariam sua garganta, e poriam Frebec na defensiva. Ela recomeçou a tossir, exatamente quando a contração chegava ao auge. Ela abafou um grito de dor.

- Fralie? É... Mais que tosse? - perguntou Frebec, olhando-a duramente. Achava que uma tosse não a faria gemer daquele jeito.

Ela hesitou.

- O que quer dizer? - perguntou.

- Bem, o bebê... Mas você teve dois filhos, sabe como fazer estas coisas, não sabe?

Fralie se perdeu em uma tosse dilacerante e quando recuperou o controle, esquivou-se à pergunta.

A claridade começava a surgir ao redor das bordas da tampa, do buraco de saída da fumaça, quando Ayla voltou para a cama a fim de acabar de se vestir. A maior parte do acampamento estivera acordada metade da noite. Primeiro foi à tosse incontrolável que os acordou, mas logo se tornou claro que Fralie sofria de mais do que um resfriado. Tronie tinha algum trabalho com Tasher que queria voltar para a mãe. Ela o pegou ao colo e, em vez disso, levou-o à Fogueira do Mamute. Ele ainda choramingava, e Ayla o pegou e o carregou pela fogueira, mostrando-lhe objetos para distraí-lo. O filhote de lobo a seguiu. Ela carregou Tasher através da Fogueira da Raposa e da Fogueira do Leão, e depois entrou na área da cozinha.

Jondalar a observou aproximar-se, tentando acalmar e consolar a criança, e seu coração bateu mais depressa. Em sua mente, ele desejava que ela se acercasse mais, mas estava nervoso e ansioso. Mal se tinham falado desde que ele se mudara, e ele não sabia o que dizer. Olhou ao redor esforçando-se para pensar em algo que pudesse aquietar o bebê, e viu um pequeno osso de uma sobra de assado.

- Talvez ele queira mastigar isto - ofereceu Jondalar, quando Ayla entrou na grande cozinha comunal, estendendo-lhe o osso.

Ela pegou o osso e colocou-o na mão da criança.

- Tome. Gosta disto, Tasher?

Não havia carne no osso, mas ainda restava algum aroma. Tasher pôs o osso na boca, provou, concluiu que gostava e se acalmou, afinal.

- Foi uma boa idéia, Jondalar - disse Ayla, segurando o menino de três anos, de pé perto dele e erguendo a cabeça para o homem.

- Minha mãe costumava fazer isso quando minha irmãzinha ficava zangada - disse ele.

Eles se entreolharam, ansiosos pela visão um do outro e enchendo os olhos, sem dizer nada, mas notando cada feição, cada sombra e cada traço, e todo detalhe de mudança. Ele perdeu peso, pensou Ayla. Parece abatido.

Ela está preocupada, perturbada por causa de Fralie, e quer ajudar, pensou Jondalar. Ó Doni, ela é tão bonita!

Tasher deixou cair o osso e Lobo pegou-o.

- Solte-o! - ordenou Ayla.

O animal obedeceu com relutância, pousou o osso no chão, mas ficou vigiando-o.

- É melhor deixar Lobo ficar com o osso agora. Acho que Frebec não gostaria muito se você desse o osso a Tasher, depois de Lobo tê-lo colocado na boca.

- Não quero que Lobo fique pegando coisas que não são dele.

- Ele não pegou, realmente. Tasher deixou cair. Provavelmente, Lobo pensou que era para ele - disse Jondalar, sensatamente.

- Talvez tenha razão. Suponho que não faria mal deixar o osso com ele. - Ela fez um sinal e o lobinho se moveu e pegou o osso novamente. Depois, caminhou diretamente para as peles de dormir que Jondalar havia espalhado ao chão, perto da área de trabalhar o sílex. Pôs-se à vontade em cima delas, e depois começou a roer o osso.

- Lobo, saia daí - disse Ayla, partindo atrás dele.

- Está bem, Ayla... Se não se importa. Ele vem muitas vezes e fica à vontade... Gosto muito dele.

- Não, não me importo - disse ela, depois sorriu. - Você sempre foi bom com Racer também.

Os animais gostam de você, eu acho.

- Mas não como gostam de você. Eles adoram você. Eu... - Parou, de repente. Sua testa se enrugou e fechou os olhos. Quando os abriu, endireitou mais o corpo e recuou um passo. - A Mãe lhe concedeu um dom raro - falou, o tom de voz e atitude muito mais formais.

De súbito, ela sentiu lágrimas ardentes nos olhos e uma dor na garganta. Abaixou a cabeça, depois recuou um passo também.

- Ao que parece, acho que Tasher terá um irmão ou irmã logo - disse Jondalar, mudando de assunto.

- Infelizmente sim - disse Ayla.

- Oh? Acha que ela não devia ter o bebê? - indagou Jondalar, surpreso.

- Claro que devia, mas não agora. E cedo demais.

- Tem certeza?

- Não, não tenho. Não permitiram que eu visse Fralie - disse Ayla.

- Frebec?

Ayla sacudiu a cabeça afirmativamente.

- Não sei o que fazer.

- Não entendo por que ele ainda subestima sua capacidade.

- Mamut diz que ele acha que “cabeças-chatas” não sabem nada sobre curar, por isso, não acredita que eu pudesse ter aprendido alguma coisa com eles. Acho que Fralie precisa de ajuda, realmente, mas Mamut diz que ela tem que pedi-la.

- Mamut está certo, provavelmente, mas se ela vai ter o bebê, na verdade, talvez peça ajuda.

Ayla mudou Tasher de posição. O menino pusera um polegar na boca e parecia satisfeito com isso, por enquanto. Ela viu Lobo sobre as peles familiares de Jondalar, que tinham ficado, até recentemente, ao lado das dela. As peles e a proximidade do homem a fizeram lembrar o toque de Jondalar, o modo como ele a fazia sentir. Quando olhou para ele novamente, seus olhos continham desejo e Jondalar sentiu uma resposta tão instantânea que ansiou estender a mão para ela, mas controlou-se. Sua reação confundiu Ayla. Ele havia começado a olhar para ela do jeito que sempre provocava uma onda de formigamento bem no fundo de si mesma. Por que ele parara? Ela estava arrasada, mas havia sentido um momento de... Alguma coisa... Esperança, talvez. Talvez ela conseguisse encontrar um meio de chegar até ele, se continuasse tentando.

- Espero que ela faça isso - disse Ayla -. Mas talvez seja tarde de mais para deter o trabalho de parto. - Começou a se afastar e Lobo ficou de pé para segui-Ia. Ela olhou para o animal, depois para o homem, fez uma pausa e perguntou: - Se ela me chamar, Jondalar, você ficará com Lobo aqui? Não posso deixar que ele me siga e fique atrapalhando na Fogueira da Garça.

- Claro que sim - respondeu ele -, mas ele virá aqui?

- Lobo, volte! - ordenou ela. O filhote olhou para ela com um pequeno ganido na garganta, parecendo interrogar. - Volte para a cama de Jondalar! - disse ela, erguendo o braço e apontando. - Vá para a cama de Jondalar! - repetiu. Lobo abaixou o rabo, agachou-se e voltou. Sentou-se em cima das peles, e vigiou Ayla. - Fique aí! -ordenou ela. O filhote se abaixou, descansou a cabeça nas patas e seus olhos a acompanharam quando ela se virou e deixou a fogueira.

Crozie, ainda sentada em sua cama, observava Fralie gritar e se agitar. Afinal, a dor passou, e Fralie respirou fundo, mas isso provocou um acesso de tosse, e sua mãe notou uma expressão desesperada na filha. Crozie também se sentia desesperada. Alguém tinha que fazer alguma coisa. Fralie estava em trabalho de parto e a tosse a enfraquecia. Não havia mais muita esperança para o bebê, nasceria cedo demais, e bebês que nasciam prematuros não sobreviviam. Mas Fralie precisava de alguma coisa para aliviar a tosse e a dor, e mais tarde, ela precisaria de alguma coisa para reduzir sua tristeza. Não adiantara falar com Fralie, não com aquele homem estúpido por perto. Ele não via que ela estava em apuros?

Crozie examinou Frebec, que rondava a cama de Fralie parecendo desamparado e preocupado. Talvez estivesse, pensou ela. Talvez ela devesse tentar de novo, mas adiantaria alguma coisa falar com Frebec?

- Frebec! - exclamou ela. - Quero falar com você.

O homem pareceu surpresa Crozie se dirigia a ele raras vezes pelo nome, ou anunciava que desejava lhe falar. Em geral ela apenas gritava com ele.

- O que quer?

- Fralie é teimosa demais para ouvir, mas agora, deve estar bem claro para você que ela está tendo o bebê...

Fralie a interrompeu com um acesso de tosse sufocante.

- Fralie, diga-me a verdade - falou Frebec quando a tosse cessou.

- Está tendo o bebê?

- Eu... Eu acho que sim.

Ele sorriu:

- Por que não me disse?

- Porque esperava que não fosse verdade.

- Mas, por quê? - perguntou ele, aborrecido de repente. - Não quer este filho?

- É cedo demais, Frebec. Os bebês que nascem prematuros não vivem - respondeu Crozie pela filha.

- Não vivem? Fralie, alguma coisa não está bem? É verdade que o bebê não viverá? - perguntou Frebec chocado e em pânico. A sensação de que alguma coisa estava terrivelmente errada crescera dentro dele durante o dia inteiro, mas ele não quisera acreditar, e não imaginara que podia estar tão errada assim.

- Esta é a primeira criança da minha fogueira, Fralie. Seu bebê, nascido na minha fogueira. - Ele se ajoelhou ao lado da cama e segurou a mão dela. - Este bebê tem que viver. Diga-me que ele viverá - suplicou. - Fralie, diga-me que este bebê viverá.

- Não posso lhe dizer. Não sei. - A voz estava cansada e rouca.

- Pensei que soubesse essas coisas, Fralie. É mãe. Já tem dois filhos.

- Cada um é diferente - cochichou ela. - Este tem sido difícil desde o início. Eu estava preocupada em perdê-lo. Havia tanto problema... Encontrar um local para se fixar... Não sei. Acho apenas que é cedo demais para este bebê nascer.

- Por que não me disse, Fralie?

- O que você teria feito? - perguntou Crozie, o tom de voz contido, quase desesperançado. - O que podia fazer? Sabe alguma coisa sobre gravidez? Nascimento? Tosse? Dor? Ela não quis lhe contar porque você não tem feito nada senão insultar aquela que poderia ajudar Fralie. Agora a criança morrerá e não sei quão fraca Fralie está.

Frebec se virou para Crozie:

- Fralie? Não pode acontecer nada com Fralie! Pode? As mulheres têm filhos o tempo todo.

- Não sei, Frebec. Olhe para ela, julgue você mesmo.

Fralie se esforçava para controlar a tosse que ameaçava voltar e a dor nas costas recomeçava. Seus olhos estavam fechados e as sobrancelhas franzidas, O cabelo emaranhado e pegajoso, e o rosto

brilhante de suor. Frebec se levantou de um salto em direção à saída da fogueira.

- Aonde vai, Frebec? - perguntou Fralie.

- Vou buscar Ayla.

- Ayla? Mas pensei...

- Ela tem dito que você tinha problemas desde que chegou aqui. Estava certa. Se sabia tanto, talvez seja uma curandeira. Todo mundo diz isso. Não sei se é verdade, mas temos que fazer alguma coisa... A menos que você não queira.

- Chame Ayla - cochichou Fralie.

A tensão e excitação atravessaram a habitação comunal quando Frebec desceu o corredor em direção à Fogueira do Mamute.

- Ayla, Fralie está... - mal começou ele, nervoso e preocupado demais para se importar com o seu prestígio.

- Sim, eu sei. Peça a alguém para chamar Nezzie para me ajudar, e traga aquele recipiente.

Cuidado, está quente. É um cozimento para a garganta - disse Ayla correndo para a Fogueira da Garça.

Quando Fralie ergueu os olhos e viu Ayla sentiu, de repente um grande alivio.

- A primeira coisa que temos que fazer é endireitar esta cama e deixar você à vontade - disse Ayla, puxando a roupa de cama e cobertas e acolchoando-a com peles e travesseiros para apoio.

Fralie sorriu e de repente notou que, por alguma razão, Ayla ainda falava com sotaque. Não, não realmente um sotaque, pensou. Apenas, tinha dificuldade com alguns sons. Estranho como era fácil acostumar-se com algo assim. A cabeça de Crozie apareceu em seguida e ela entregou a Ayla um pedaço de couro dobrado.

- Aqui está seu cobertor de dar à luz, Ayla. - Abriram-no e, enquanto Fralie mudava de posição, espalharam-no sob a mulher. - Já era hora de chamarem você, mas é tarde demais para deter o trabalho de parto agora - disse Crozie. - pena eu tinha o palpite de que este bebê seria menina. É pena que vá morrer.

- Não tenha tanta certeza disso, Crozie - falou Ayla.

- Este bebê está chegando cedo. Sabe disso.

- Sim, mas não entregue ainda esta criança ao outro mundo. Há coisas que podem ser feitas, se não for cedo demais... E se o parto correr bem. - Ayla abaixou os olhos para Fralie. - Vamos esperar e ver.

- Ayla - disse Fralie, os olhos brilhando -, acha que há esperança.

- Sempre há esperança. Agora, beba isto. Acalmará sua tosse e fará com que se sinta melhor.

Então, veremos quão adiantada você está.

- O que há nisso? - perguntou Crozie.

Ayla examinou a mulher por um instante antes de replicar. Havia um tom de arrogância implícito na pergunta, mas Ayla sentiu que a preocupação e interesse motivaram a frase. O tom da interrogação era mais um modo de falar, concluiu Ayla, como se estivesse acostumada a dar ordens. Mas podia ser mal interpretado como insensatez ou arrogância o tom autoritário assumido por uma pessoa que não estivesse em posição de liderança.

- A casca interna de amora preta silvestre para acalmá-la e aliviar a tosse e a dor de parto - explicou Ayla -, fervida com a raiz seca de actéia, moídas até virar pó para ajudar os músculos dinâmicos a trabalhar mais arduamente, a fim de apressar o nascimento. Ela está muito adiantada no trabalho de parto para detê-lo.

- Hum - vocalizou Crozie, sacudindo a cabeça em sinal de aprovação. Estava tão interessada em verificar a perícia de Ayla quanto em conhecer os ingredientes exatos. Crozie ficou satisfeita com a resposta de Ayla, por ela não estar apenas dando um medicamento que alguém lhe recomendara, mas por saber o que estava fazendo. Não porque ela conhecia as propriedades das plantas, mas porque Ayla conhecia.

Todos pararam por alguns instantes para visitar e oferecer apoio moral à medida que o dia avançava, mas os sorrisos encorajadores tinham um vislumbre de tristeza. Sabiam que Fralie enfrentava uma provação que tinha muito pouca esperança de um resultado feliz. O tempo se arrastava para Frebec. Não sabia o que esperar e sentia-se perdido, inseguro. Nas vezes em que andara por perto de mulheres que davam à luz, não se lembrava de ter levado tanto tempo, e não lhe parecera que o nascimento era tão difícil para outras mulheres. Todas elas se agitavam e esforçavam, e gritavam daquele jeito?

Não havia espaço para ele em sua fogueira com todas as mulheres lá, e de qualquer forma, ele não era necessário. Ninguém sequer o notou na cama de Crisavec observando e esperando. Afinal, ele se levantou e se afastou, incerto sobre para onde ir. Resolveu que estava com fome e se dirigiu para a área de cozinhar esperando encontrar sobra de assado ou alguma coisa. No fundo de sua mente, pensou em procurar Talut. Sentia necessidade de conversar com alguém, partilhar aquela experiência com uma pessoa que o compreendesse. Quando chegou à Fogueira do Mamute, Ranec, Danug e Tornec estavam de pé perto de uma escavação para fogo, conversando com Mamut, bloqueando parcialmente a passagem. Frebec parou, sem vontade de enfrentá-los para pedir que dessem licença.

Hesitou, mas não podia ficar ali de pé para sempre, e atravessou o espaço central da Fogueira do Mamute em direção a eles.

- Como está ela, Frebec? - perguntou Tornec.

Ele ficou vagamente sobressaltado pela pergunta amistosa.

- Eu queria saber - retrucou.

- Sei como se sente - disse Tornec com um sorriso torto. - Nunca me sinto mais inútil do que quando Tronie está dando à luz. Odeio vê-la sofrer e desejo sempre que houvesse algo que eu pudesse fazer para ajudar, mas nunca há. É uma coisa de mulher, ela tem que agir. Sempre me surpreendo depois como ela esquece o apuro e a dor assim que vê o bebê e sabe que ele será... - Calou-se, compreendendo que havia falado demais. - Sinto muito, Frebec, eu não queria...

Frebec franziu a testa, depois se virou para Mamut.

- Fralie disse que ela achava que o bebê estava chegando cedo de mais. Crozie disse que os bebês prematuros não sobrevivem. Isso é verdade? Este bebê viverá?

- Não posso responder a isso. Frebec. Está nas mãos de Mut - disse o velho -, mas sei que Ayla não vai desistir. Depende de quão cedo. Os bebês que nascem cedo são pequenos e fracos, por isto morrem, geralmente. Mas não morrem sempre, especialmente se não for cedo demais, e quanto mais vivem, maiores sãos suas chances. Não seio que ela pode fazer, mas se alguém é capaz de fazer qualquer coisa, Ayla é essa pessoa. Ela recebeu um dom poderoso e posso lhe assegurar, nenhuma curandeira poderia ter tido melhor treinamento. Sei por experiência própria como as curandeiras do Clã são capazes. Uma delas me curou.

- Você! Você foi curado por uma mulher cabeça-chata? - perguntou Frebec. - Não compreendo. Como? Quando?

- Quando eu era jovem, em minha jornada - replicou Mamut.

Os rapazes esperaram que ele continuasse sua história, mas logo se tornou evidente que ele não daria mais informação alguma.

- Velho - disse Ranec com um largo sorriso -, pergunto-me quantas histórias e segredos se escondem nos anos de sua longa vida.

- Esqueci mais do que o total de sua vida, rapaz, e lembro-me de muita coisa. Eu era velho quando você nasceu.

- Quantos anos tem? - perguntou Danug. - Sabe?

- Houve uma época em que eu marcava minha idade, desenhando um lembrete em um couro, toda primavera, de um evento significativo que acontecia durante o ano. Enchi vários, a tela cerimonial é um deles. Agora. estou tão velho que não conto mais. Porém, eu lhe direi, Danug, quantos anos tenho. Minha primeira mulher teve três filhos. - Mamut olhou para Frebec. - O primeiro a nascer, um menino, morreu. O segundo, uma menina, teve quatro filhos. O mais velho dos quatro era uma menina e ela cresceu para dar à luz Tulie e Talut. Você, claro, é o primeiro filho da mulher de Talut. A mulher do primogênito de Tulie talvez esteja esperando uma criança agora. Se Mut me conceder outra estação, talvez eu veja a quinta geração. É essa a minha idade, Danug.

Danug sacudiu a cabeça. Era mais idade do que ele imaginara.

- Você e Manuv não são parentes, Mamut? - perguntou Tornec.

- Ele é o terceiro filho da mulher de um primo mais jovem, assim como você é o terceiro filho da mulher de Manuv.

Nesse momento, pareceu haver alguma excitação na Fogueira da Garça e todos se viraram para olhar.

- Agora, respire fundo - disse Ayla -, e faça força mais uma vez. Está quase conseguindo.

Fralie arquejou em busca de ar e fez um esforço, segurando as mãos de Nezzie.

- Ótimo! Ótimo! - encorajou Ayla. - Aí vem, aí vem! Ótimo! Pronto!

- É uma menina, Fralie! - exclamou Crozie. - Eu lhe disse que desta vez seria mulher...!

- Como está ela? - perguntou Fralie. - Está...

- Nezzie, quer ajudar a remover as páreas - disse Ayla, limpando muco da boca do bebê, enquanto ele lutava para respirar. Havia um silêncio terrível. Depois um grito de vida miraculoso, emocionante.

- Ela está viva! Ela está viva! - disse Fralie, lágrimas de alívio e esperança nos olhos.

Sim, ela estava viva, pensou Ayla, mas era muito pequena. Jamais vira um bebê tão pequeno. Sim, estava viva, lutando e dando chutes, e respirando. Ayla colocou o bebê de bruços atravessado sobre o ventre de Fralie, e lembrou a si mesma de que havia visto, apenas, recém-nascidos do Clã. Bebês dos Outros eram, provavelmente, menores. Ajudou Nezzíe com as páreas, depois virou o bebê e amarrou o cordão umbilical em dois lugares com os pedaços de tendão tingido de vermelho que havia preparado. Com uma faca afiada de sílex cortou o cordão entre as amarrações. Para o melhor ou para o pior, a menina estava sozinha; um ser humano independente, vivo, respirando. Mas os próximos dias seriam críticos.

Ayla examinou o bebê cuidadosamente enquanto o limpava. A menina parecia perfeita, apenas excepcionalmente pequena e seu choro era fraco. Ayla a enrolou em um macio cobertor de pele e entregou-a a Crozie. Quando Nezzie e Tulie haviam retirado o cobertor de pano, e Ayla certificou-se de que Fralie estava limpa e com conforto, usando uma toalha absorvente de lã de mamute, sua nova filha foi colocada na curva do braço de Fralie. Então, ela fez sinal a Frebec para se aproximar e ver a primeira filha de sua fogueira. Crozie rondava.

Fralie a desenrolou, depois levantou a cabeça para Ayla com lágrimas nos olhos.

- Ela é tão pequena.. - falou, acariciando o bebê.

Em seguida, desatou a frente de sua túnica e ofereceu o seio à menina. A recém-nascida roçou o nariz, encontrou o bico e pelo sorriso no rosto de Fralie, Ayla percebeu que a menina sugava. Mas dentro de alguns momentos, a criança soltou o bico e pareceu exausta com o esforço

- Ela é tão pequena. . viverá? - perguntou Frebec a Ayla, porém, era mais uma súplica.

- Ela está respirando. Se for capaz de mamar, haverá esperança, mas precisará de ajuda para viver.

Deve ser mantida aquecida e não poderá usar a pouca força que possui a não ser para mamar Todo o leite que tomar deve ser para crescer - disse Ayla. Depois olhou com severidade para Frebec e Crozie. - Não pode haver mais discussão nesta fogueira, se querem que a menina viva. Ela ficará nervosa, e não podem deixá-la ficar nervosa se desejam que ela cresça. Não se deve permitir sequer que chore, porque não tem força para isso. Desviará seu leite do crescimento.

- Como impedir que ela chore, Ayla? Como saberei quando alimentá-la se ela não chorar? - perguntou Fralie.

- Crozie e Frebec devem ajudar você porque a menina precisa ficar com você o tempo todo, como se ainda não tivesse nascido, Fralie. Acho que a melhor maneira seria fazer um receptáculo, um tipo de cesta, que manterá a menina perto de seu seio. Assim, você a manterá aquecida. Ela será confortada por sua proximidade e o som de seu coração, porque está acostumada a ele. Porém, mais importante ainda, sempre que quiser mamar, precisará apenas virar a cabeça para alcançar seu peito, Fralie. Assim, ela não usará a força de que necessita para crescer, com o choro.

- E para trocá-la? - perguntou Crozie.

- Cubra sua pele com um pouco daquele sebo macio que lhe dei, Crozie. Farei mais. Use esterco seco, limpo, embrulhado ao seu redor para absorver sua urina e fezes. Jogue fora quando precisar trocá-la, mas não mova muito a criança. E deve descansar, Fralie, e não se movimentar muito. Também lhe fará bem. Precisamos tentar controlar sua tosse. Se a menina sobreviver durante os próximos dias, então, todo dia que ela viver a tornará mais forte. Com sua ajuda, Frebec e Crozie, ela tem uma chance.

Uma sensação de esperança moderada tomou conta da habitação, quando as cortinas se fecharam sobre um sol vermelho penetrante num aglomerado de nuvens pairando sobre o horizonte. A maioria das pessoas terminara a refeição da noite e atiçava os fogos, limpava coisas, levava as crianças para a cama, e se reunia para a conversa noturna e por companhia. Várias pessoas estavam sentadas ao redor da lareira da Fogueira do Mamute, mas a conversa era mantida em voz baixa, como se vozes altas fossem, de alguma forma, inadequadas.

Ayla havia dado a Fralie uma suave bebida relaxante, e deixou-a para que dormisse. Ela não dormiria o suficiente nos próximos dias. A maior parte dos bebês se fixava em uma rotina de dormir por um tempo razoável antes de acordar para mamar. Porém, o bebê de Fralie não podia mamar muito tempo de uma só vez, e assim, não dormia muito antes de precisar novamente de leite materno. Fralie teria que tirar cochilos curtos também, até o bebê ficar mais forte.

Era quase estranho ver Frebec e Crozie trabalhando juntos, ajudando-se a ajudar Fralie, e sendo extremamente corteses e controlados. Talvez não durasse, mas estavam se esforçando e parte de sua animosidade parecia desaparecer.

Crozie havia ido cedo para a cama. Fora um dia difícil e, ela não era mais jovem. Estava cansada e esperava levantar mais tarde a fim de auxiliar Fralie. Crisavec ainda dormia com o filho de Tulie, e Tronie estava com Tasher. Frebec ficou sentado sozinho na Fogueira da Garça, olhando para o fogo, sentindo emoções diversas. Estava ansioso em relação à criança, e sentia-se protetor do bebê também, a primeira criança de sua fogueira, e temeroso. Ayla havia colocado a menina em seus braços para que a carregasse um pouco, enquanto ela e Crozie deixavam Fralie à vontade. Ele fitou a menina, espantado por alguém tão pequeno poder ser perfeito. As mãos minúsculas da criança tinham até unhas. Ele teve medo de se mover, medo de quebrá-la, e ficou muito aliviado quando Ayla a pegou novamente. Contudo, relutou em entregar a menina.

De repente, Frebec ficou de pé e desceu o corredor. Não queria ficar sozinho naquela noite. Parou à entrada da Fogueira do Mamute e olhou para as pessoas sentadas em volta do fogo. Eram os membros mais jovens do acampamento, e no passado, ele teria passado por eles a caminho da área de cozinhar, para visitar Talut e Nezzie, ou Tulie e Barzec, ou Manuv, ou Wymez, ou ultimamente, Jondalar, e às vezes, Danug. Embora Crozie estivesse muitas vezes na área de cozinhar, era mais fácil ignorá-la do que enfrentar a possibilidade de ser ignorado por Deegie ou desprezado por Ranec. Mas Tornec fora amistoso antes, e sua mulher tinha dado à luz, e ele sabia como era. Frebec respirou fundo e caminhou em direção à lareira.

Eles começaram a rir assim que ele alcançou Tornec, e por um mo mento, Frebec pensou que caçoavam dele. Sentiu a tentação de sair.

- Frebec! Aí está você! - exclamou Tornec.

- Acho que ainda sobrou algum chá - disse Deegie. - Vou lhe servir um pouco.

- Todos me dizem que ela é uma menina bonita - falou Ranec. - E Ayla diz que ela tem uma chance.

- Temos sorte por Ayla viver aqui - disse Tronie.

- Sim, temos - concordou Frebec. Ninguém falou nada por um instante. Era a primeira coisa boa que Frebec dizia de Ayla.

- Talvez ela possa receber seu nome no Festival de Primavera - disse Latie. Frebec não a havia visto sentada ao lado de Mamut, na sombra - Isso seria uma sorte.

- Sim, seria - disse Frebec, pegando a xícara que Deegie lhe dava e se sentindo um pouco mais à vontade.

- Tomarei parte no Festival de Primavera também - anunciou ela, meio timidamente e meio orgulhosamente.

- Latie é uma mulher - disse-lhe Deegie com o ar levemente condescendente de uma irmã mais velha informando outro adulto que é instruído.

- Ela terá seus Ritos de Primeiros Prazeres na Reunião de Verão deste ano - ajuntou Tronie.

Frebec sacudiu a cabeça, concordando, e sorriu para Latie, incerto sobre o que dizer.

- Fralie está dormindo, ainda? - perguntou Ayla.

- Estava, quando saí.

- Acho que também vou para a cama - disse ela, levantando-se. - Estou cansada. - Colocou a mão no braço de Frebec. - Você me chamará quando Fralie acordar?

- Sim, Ayla, chamarei... E... Hum... Obrigado – disse, ele sua veemente.

- Ayla, acho que ela está crescendo - disse Fralie. - Estou certa de que pesa mais e começa a olhar em volta. Acho que também está mamando mais tempo.

- Cinco dias se passaram, creio que ela está mais forte - disse Ayla.

Fralie sorriu, depois lágrimas surgiram em seus olhos.

- Ayla, não sei o que teria feito sem você. Tenho-me culpado o tempo todo por não ter recorrido a você mais cedo. Esta gravidez não ia bem desde o início, mas quando mamãe e Frebec começavam a discutir, eu não podia tomar partido.

Ayla apenas concordou com um gesto de cabeça.

- Sei que mamãe pode ser difícil, mas ela perdeu tanto. Era uma chefe, sabe.

- Eu imaginava.

- Eu era a mais velha de quatro filhos, tinha duas irmãs e um irmão... Eu era mais ou menos da idade de Latie quando aconteceu. Mamãe me levou para o Acampamento do Veado a fim de conhecer o filho de sua chefe. Ela queria arranjar uma união. Eu não queria ir, e não gostei dele quando o conheci. Era mais velho, e mais preocupado com o meu status do que comigo, mas antes de a visita terminar ela conseguiu me fazer concordar. Os preparativos foram feitos para nossa união no verão seguinte. Quando voltamos ao nosso acampamento... Oh, Ayla, foi horrível... - Fralie fechou os olhos, tentando controlar-se. - “Ninguém sabe o que aconteceu... houve um incêndio. Era uma moradia antiga, construída pelo tio de mamãe. As pessoas disseram que o sapé, e madeira e ossos devem ter ressecado. Acharam que o fogo devia ter começado à noite.., ninguém saiu...

- Sinto muito, Fralie - disse Ayla.

- Não tínhamos para onde ir, assim, voltamos ao Acampamento do Veado. Lamentaram nossa sorte, mas não ficaram felizes com isso. Tinham medo do azar, e havíamos perdido status. Quiseram romper o acordo, mas Crozie discutiu diante do Conselho de Irmãs e os fez manter a palavra. O Acampamento do Veado teria perdido influência e status se tivesse recuado. Eu me uni naquele verão. Mamãe disse que eu devia, era tudo o que nos restava, mas nunca existiu muita felicidade na união, exceto por Crisavec e Tasher. Mamãe sempre discutia com eles, principalmente com o meu homem. Ela estava habituada a ser chefe, a tomar decisões e a ser respeitada. Não foi fácil para ela perder isso. Não era capaz de desistir. As pessoas começaram a achar que ela era uma pessoa amarga, implicante, que não parava de se queixar e não queriam estar por perto. - Fralie fez uma pausa, depois continuou: - Quando meu homem foi ferido por um auroque, o Acampamento do Veado disse que dávamos azar e nos obrigou a partir. Mamãe tentou arranjar outra união para mim. Havia algum interesse. Eu ainda tinha meu status de nascimento, ninguém pode tirar aquilo com que você nasce, mas ninguém queria mamãe. Diziam que ela dava azar, mas acho que apenas não gostavam de suas queixas, o tempo todo. Eu, contudo, não podia culpá-la. Eles não compreendiam, apenas isso.

“O único que fez uma proposta foi Frebec. Ele não tinha muito a oferecer”, Fralie sorriu, “mas ofereceu tudo o que tinha. Eu não estava segura sobre ele, a princípio. Ele jamais tivera muito status, e nem sempre sabe como agir... ele embaraça mamãe. Quer ter valor, assim tenta se fazer importante, dizendo coisas desagradáveis sobre... outras pessoas. Resolvi ir com ele para tentar. Mamãe ficou surpresa quando voltamos e eu lhe disse que queria aceitar a proposta dele. Ela jamais compreendeu”...

Fralie olhou para Ayla, e sorriu gentilmente.

- Pode imaginar o que é se unir a alguém que você não queira, e que jamais se importou com você desde o começo? Depois encontrar um homem que a desejava tanto que queria dar tudo que tinha, e prometer tudo que conseguisse, um dia? Na primeira noite, depois que fomos embora juntos, ele me tratou como... Um tesouro raro. Não podia acreditar que tinha o direito de me tocar. Fez-me sentir... Não posso explicar... Querida. Ele ainda é assim quando estamos sozinhos, mas ele e mamãe começaram a discutir imediatamente. Quando se tornou uma questão de orgulho entre eles, se eu ia procurar você ou não, não consegui acabar com o amor-próprio de Frebec.

- Acho que compreendo, Fralie.

- Esforçava-me para dizer a mim mesma que as coisas não estavam tão mal assim, e que seu remédio me ajudou. Sempre acreditei que ele iria mudar de idéia quando chegasse a hora, mas eu queria que fosse decisão dele, não uma coisa que eu o obrigasse a fazer.

- Estou contente porque ele o fez.

- Mas não sei o que eu teria feito se meu bebê...

- Não podemos ter certeza ainda, mas acho que a menina está bem. Ela parece mais forte - falou Ayla.

Fralie sorriu.

- Escolhi um nome para ela, espero que deixe Frebec feliz. Resolvi chamá-la Bectie.

Ayla estava de pé perto de uma plataforma de estocagem vazia, remexendo em uma variedade de vegetação seca. Havia pequenas pilhas de cascas de árvore, raízes e sementes, pequenos montes de talos, tigelas de frutos, flores e folhas secas, e algumas plantas inteiras. Ranec se aproximou, tentando ser discreto sobre algo escondido atrás das costas.

- Ayla, está ocupada? - perguntou Ranec.

- Não, não realmente, Ranec. Andei olhando meus remédios para ver o que precisarei. Saí hoje com os cavalos. A primavera está chegando mesmo... É minha estação favorita. Os brotos verdes estão surgindo, e salgueiros de amentilhos sedosos... Sempre adorei as pequenas flores flocosas. Breve, tudo estará verde.

Ranec sorriu diante do seu entusiasmo.

- Todo mundo espera ansiosamente o Festival de Primavera. Ê quando comemoramos vida nova, novos começos e com o novo bebê de Fralie e a nova feminilidade de Latie, temos muito o que celebrar.

Ayla franziu a testa ligeiramente. Ela não estava segura de que aguardava com ânsia sua participação no Festival de Primavera. Mamut a estivera treinando, e aconteceram algumas coisas muito interessantes, mas era um pouco assustador. Todavia, não tanto o quanto ela pensava que seria. Tudo daria certo. Ela sorriu de novo.

Ranec a estivera observando, perguntando-se o que ela pensava, e tentando imaginar uma maneira de abordar o assunto que o trouxera ali.

- A cerimônia poderia ser especialmente excitante este ano... - fez uma pausa, procurando as palavras corretas.

- Suponho que tem razão - disse Ayla, ainda pensando em seu papel no festival.

- Não parece muito animada - disse ele, sorrindo.

- Não? Na verdade, estou ansiosa para que Fralie dê o nome ao bebê e estou muito contente por Latie. Lembro como fiquei feliz quando me tornei uma mulher, afinal, e como Iza ficou aliviada. Ë que Mamut está planejando uma coisa e não estou certa a respeito. Apenas isso.

- Vivo esquecendo que não é Mamutoi há muito tempo. Não sabe o que é um Festival de Primavera. Não é de admirar que não esteja ansiosa, como todo mundo. - Mudou de posição, nervosamente, e abaixou os olhos; depois tornou a encará-la. - Ayla, você poderia aguardar com mais expectativa, e eu também se... - Ranec parou de falar, decidiu mudar sua abordagem, e estendeu-lhe o objeto que escondera. - Fiz isto para você.

Ayla viu o que ele segurava. Ergueu a cabeça, os olhos arregalados de surpresa e prazer ao ver o objeto.

- Fez isto para mim? Mas, por quê?

- Porque quis. Ë para você, só isso. Pense nele como um presente de primavera - disse ele, insistindo para que ela o aceitasse.

Ela pegou a escultura de marfim, segurando-a cuidadosamente, e examinou-a.

- Esta é uma de suas figuras de mulher-ave - disse Ayla com espanto e prazer -, como uma que você me mostrou antes, mas não é a mesma.

Os olhos de Ranec brilharam.

- Eu a fiz especialmente para você, mas devia tê-la avisado - disse com seriedade trocista -, coloquei magia nela, assim você... Gostará dela, e daquele que a fez.

- Não precisava colocar magia na escultura para isso, Ranec.

- Gosta dela, então? Diga-me, o que acha? - perguntou Ranec, embora geralmente não pedisse a opinião das pessoas sobre seu trabalho. Não lhe importava o que pensavam. Trabalhava para si mesmo e para agradar à Mãe, mas desta vez queria, mais do que tudo, agradar Ayla. Pusera seu coração, seu desejo e seus sonhos em cada entalhe que cortara, em cada linha esculpida, esperando que a escultura da Mãe fizesse uma mágica na mulher que ele amava.

Ayla examinou o trabalho com atenção e notou o triângulo com o vértice para baixo. Era o símbolo da mulher que ela aprendera e o motivo por que três era o número do poder produtivo e sagrado para Mut. O ângulo era repetido como ziguezagues, no que seria a frente da escultura, se fosse uma mulher, ou as costas, se fosse uma ave. Todo o objeto era decorado com fileiras de ziguezagues e linhas paralelas num fascinante desenho geométrico que era agradável de se admirar por si só, mas que sugeria mais.

- Está muito bem-feito, Ranec. Gosto, especialmente, da maneira como esculpiu estas linhas. O padrão me lembra penas, de certa forma, mas também me faz pensar em água, como nos mapas - disse Ayla.

O sorriso de Ranec se alargou, com deleite.

- Eu sabia! Sabia que você veria isso! As penas do Seu espírito quando Ela se torna uma ave e voa de volta na primavera, e as águas de nascença da Mãe que encheram os mares.

- É maravilhoso, Ranec, mas não posso aceitar - falou ela, tentando devolver a escultura.

- Por que não? Fiz para você - disse ele, sem pegar a obra.

- Mas, o que posso lhe dar em troca? Não tenho nada deste valor.

- Se é isto que a preocupa, tenho uma sugestão. Você tem uma coisa que quero, que vale muito mais do que este pedaço de marfim - disse Ranec, sorrindo, com os olhos brilhantes de humor. - é amor. Ele ficou mais sério: - Una-se a mim, Ayla. Seja minha mulher. Quero partilhar uma fogueira com você, quero que seus filhos sejam os filhos da minha fogueira.

Ayla relutou em responder. Ranec notou sua hesitação e continuou falando, tentando persuadi-la.

- Pense quanta coisa temos em comum. Você é uma mulher Mamutoi, eu sou um homem

Mamutoi, mas ambos fomos adotados. E, se nos uníssemos, nenhum de nós teria que se mudar para outro acampamento. Ambos poderíamos ficar no Acampamento do Leão, e você continuariacuidando de Mamute Rydag, e isso deixaria Nezzie feliz. Porém, mais importante, amo você, Ayla, quero partilhar minha vida com você.

- Eu... Não sei o que dizer.

- Diga sim, Ayla. Vamos anunciá-lo, incluir uma Cerimônia de Promessa no Festival de Primavera. Depois, podemos formalizar a união no Matrimonial este ano, quando Deegie o fizer.

- Não estou certa... Acho que não...

- Não precisa responder já. - Ele havia esperado que ela concordasse imediatamente. Agora, compreendia que talvez levasse mais tempo, porém, não queria que ela dissesse não. - Diga-me apenas que me dará a chance de mostrar o quanto a amo, quanto a quero, como poderemos ser felizes juntos.

Ayla recordou o que Fralie havia dito. Ela se sentia especial ao saber que um homem a queria, que havia um homem que se importava com ela e não a evitava o tempo todo. E gostava da idéia de permanecer ali, onde as pessoas a amavam, pessoas que ela amava. O Acampamento do Leão era como sua família agora. Jondalar jamais ficaria. Ela sabia disso havia muito tempo. Ele queria voltar para o seu lar e, antes, quisera levá-la com ele. Agora, não parecia querê-la, de modo algum.

Ranec era bom, ela gostava dele, e unir-se a ele significaria permanecer ali. E se ela ia ter outro bebê, devia tê-lo breve. Ela não era mais jovem. Apesar do que Mamut havia dito, dezoito anos pareciam muita idade para ela. Seria tão maravilhoso ter outro filho, pensou. Como o bebê de Fralie. Apenas mais forte. Ela podia ter um filho com Ranec. Será que teria as feições de Ranec, os olhos negros penetrantes, os lábios macios, o nariz largo e curto, tão diferente dos narizes grandes, finos, pontudos dos homens do Clã? O nariz de Jondalar estava entre eles em tamanho e forma... Por que ela pensava em Jondalar?

Então, uma idéia lhe ocorreu que fez o coração bater mais depressa, de excitação. Se eu ficar aqui e me unir a Ranec, pensou, poderia ir buscar Durc! Talvez no próximo verão. Não haverá Reunião de Clãs, então. E Ura? Por que não trazê-la também? Se eu for embora com Jondalar, sei que nunca mais verei Durc. Os Zelandonii vivem muito longe, e Jondalar não voltará para buscar Durc e levá-lo conosco. Se ao menos Jondalar ficasse, e se tornasse Mamutoi... Mas ele não fará isso. Ela olhou para o homem escuro, e viu o amor nos olhos de Ranec. Talvez eu deva pensar sobre me unir a ele.

- Eu disse que pensaria a respeito, Ranec - disse ela.

- Sei que disse, mas se precisar de mais tempo para pensar em fazer uma Promessa, ao menos venha para a minha cama, Ayla. Dê-me uma chance de lhe mostrar o quanto gosto de você. Diga-me que fará isso. Venha à minha cama, Ayla - insistiu, segurando-lhe a mão.

Ela abaixou a cabeça, tentando reconhecer-lhe os sentimentos. Sentia uma compulsão forte, embora sutil, de obedecer. Embora a reconhecesse pelo que era, era difícil vencer a sensação de que devia ir para a cama dele. Porém, mais que isso, perguntou-se se devia dar-lhe uma chance, talvez fazer uma tentativa com ele, como Fralie fizera com Frebec.

Ela sacudiu a cabeça afirmativamente, os olhos ainda baixados.

- Irei a sua cama.

- Esta noite? - disse ele, trêmulo de alegria e sentindo vontade de gritar.

- Sim, Ranec. Se quiser. Irei à sua cama esta noite.

Jondalar se posicionou de maneira que pudesse ver a maior parte da Fogueira do Mamute, olhando pelo corredor e através das áreas abertas das fogueiras que os separavam. Ele se acostumam de tal maneira a vigiar Ayla, que quase não pensava mais nisso. Nem sequer o constrangia, era uma parte de sua insistência. Não importava o que ele fizesse, Ayla estava sempre no seu pensamento, muitas vezes exatamente à beira da percepção. Ele estava ciente de quando ela dormia, e quando estava acordada, quando comia e quando trabalhava em algum projeto. Estava ao par de quando saia e quem a visitava, e quanto tempo permaneciam. Até fazia idéia sobre o que conversavam.

Sabia que Ranec havia passado ali a maior parte do seu tempo. Embora não gostasse de vê-los juntos, também sabia que Ayla não tivera intimidades com ele, e parecia evitar qualquer contato íntimo. As ações de Ayla o tinham levado a uma certa aceitação da situação, e aliviaram sua ansiedade, de forma que estava despreparado para a visão de Ayla caminhando com Ranec em direção à Fogueira da Raposa, quando todos se aprontavam para dormir. A princípio, não conseguiu acreditar. Presumiu que ela ia apenas buscar alguma coisa e voltaria para sua própria cama. A compreensão de que ela pretendia passar a noite como escultor não aconteceu senão quando ele a viu mandar Lobo ir para a Fogueira do Mamute.

Mas, ao compreender, foi como um fogo explodindo em sua cabeça espalhando a dor ardente e a cólera por seu corpo. Estava arrasado. Seu primeiro impulso foi correr até a Fogueira da Raposa e arrancar Ayla dali. Teve visões de Ranec caçoando dele e sentiu o desejo de esmagar aquele rosto sorridente, demolir o sorriso trocista, escarninho. Lutou para controlar-se e afinal, agarrou sua parka e saiu apressado.

Jondalar inspirou grandes golfadas de ar frio, tentando moderar seu ciúme flamejante, e quase secou os pulmões com o frio. Uma onda de frio de início de primavera, que desceu a temperatura à abaixo de zero, havia endurecido a neve enlameada, convertido riachos em pistas escorregadias e traiçoeiras, e transformado a lama em saliências e escavações irregulares, tornando difícil caminhar. Ele escorregou na escuridão e lutou desordenadamente para manter o equilíbrio. Quando alcançou o anexo dos cavalos, voltou ao interior.

Whinney bufou uma saudação e Racer resfolegou e cutucou-o na escuridão e de afago. Jondalar havia passado muito tempo com os cavalos, inverno difícil, e mais ainda durante a primavera incerta. Eles receberam bem sua companhia e ele relaxou em sua presença cálida, silenciosa. Um movimento da cortina interna chamou a atenção do homem. Então, sentiu patas sobre sua perna e ouviu um choro suplicante. Abaixou-se e pegou o filhote de lobo.

- Lobo! - exclamou, sorrindo, mas recuando quando o animal ansioso lambeu-lhe o rosto. - O que está fazendo aqui? - Então, o sorriso desapareceu. -Ela o fez sair, não foi? Você está acostumado com ela perto de você, e sente falta. Eu sei como se sente. É difícil habituar-se a dormir sozinho depois que ela dormiu ao seu lado.

Enquanto acariciava e alisava o lobinho, Jondalar sentia um alivio da tensão, e relutou em colocar o animal no chão.

- O que devo fazer com você, Lobo? Odeio mandá-lo voltar. Acho que pode dormir comigo.

Depois franziu a testa, compreendendo que estava diante de um dilema. Como ia voltar para sua cama com o filhote? Estava frio lá fora e ele não tinha certeza se o animalzinho quereria sair com ele, mas se ao entrar atravessasse a Fogueira do Mamute teria que passar pela Fogueira da Raposa para chegar à sua cama. Nada no mundo o levaria a caminhar pela Fogueira da Raposa naquele momento. Jondalar gostaria de ter as peles de dormir consigo. Sem fogo, estava frio no anexo, mas dormir com as peles, entre os cavalos, o aqueceria o suficiente. Não tinha escolha. Teria que levar o filhote para fora consigo e voltar pela entrada da frente.

Acariciou os cavalos com tapinhas carinhosos, depois, aninhando o filhote perto do peito, afastou a cortina e saiu para a noite fria, O vento, mais acentuado àquela hora, fustigou seu rosto com um tapa gelado, e abriu a pele de sua parka. Lobo tentou aconchegar-se mais e chorou, mas não fez qualquer movimento para fugir. Jondalar se moveu cuidadosamente sobre o solo congelado e sentiu alívio ao alcançar o arco da frente.

A habitação estava silenciosa quando ele entrou na área de cozinhar. Caminhou para as peles de dormir e colocou Lobo ao chão, satisfeito porque o animal parecia feliz em ficar. Rapidamente, tirou a parka e sapatos, depois se arrastou para as peles, levando o lobinho consigo. Ele havia descoberto que não era tão quente no chão da área aberta da fogueira quanto nos estrados cercados para dormir, e dormia com suas roupas caseiras, amassando-as. Levou alguns minutos para encontrar uma posição confortável e se acomodar, mas em pouco tempo a trouxa quente de pele enroscada ao seu lado dormia.

Jondalar não teve a mesma sorte. Assim que fechou os olhos ouviu os sons noturnos e enrijeceu, resistindo. Normalmente, a respiração, mudança de posição, cochicho, tosse eram ruídos noturnos de fundo do acampamento facilmente ignorados, mas os ouvidos de Jondalar escutavam o que não queria ouvir.

Ranec recostou Ayla às peles, depois olhou para seu corpo.

- Você é tão bonita, Ayla, tão perfeita! Quero-a tanto, quero que fique sempre comigo. Oh, Ayla... - disse ele, e se inclinou para respirar em seu ouvido e inspirar seu odor feminino. Ela sentiu a boca macia e carnuda do homem sobre a sua, e encontrou-se correspondendo.

Um pouco depois, ele colocou a mão sobre o ventre da jovem, exercendo pressão.

Prontamente, estendeu a mão e tomou um seio e em seguida abaixou a cabeça e sugou um mamilo endurecido com a boca. Ela gemeu ao sentir um formigamento interno e moveu seus quadris para ele. Ranec pressionou o corpo contra o dela e Ayla sentiu uma dureza quente ao lado da coxa, enquanto ele movia a boca para sugar o outro mamilo, produzindo pequenos ruídos de prazer.

Ele levou a mão pelos flancos e quadris, depois pela perna e subiu pela parte interna da coxa, encontrando as dobras úmidas e alcançando-lhe as entranhas. Ela sentiu-o vasculhar as entranhas e se ergueu contra ele. Ranec se moveu com calma até comprimir-se contra ela, enquanto sugava um dos seios e depois o outro e em seguida roçava o nariz entre ambos.

- Oh, Ayla! Minha bela mulher, minha mulher perfeita. Como me deixou pronto tão depressa? É a vontade da Mãe, você controla Seus segredos. Minha mulher perfeita...

Sugava novamente, Ayla podia sentir a pressão enquanto ele sorvia, e lhe provocava arrepios. Por dentro, ela sentia um movimento de penetração e saída, até a mão de Ranec descobrir seu local de prazer. Ela gritou quando ele o friccionou ritmadamente, com mais firmeza e rapidez. De repente, estava pronta. Comprimiu-se contra ele mexendo os quadris, gritando e agarrando-o.

Ele moveu-se entre as pernas dela enquanto ela as levantava, ajudando a guiá-lo. Ela soltou um suspiro de prazer quando o sentiu penetrar. O corpo dele se movia para frente e para trás, sentindo a sensação crescer ao gritar o nome dela.

- Oh, Ayla, Ayla, quero muito você. Seja minha mulher, Ayla. Seja minha mulher - disse Ranec, enquanto uma grande onda se intensificava. Os gritos dela vinham em arquejos ritmados. Ele mexia mais e mais depressa até a onda cálida de sensação indescritível libertar-se e inundá-los.

Ayla respirou forte, tomando fôlego, enquanto Ranec se esparramava sobre ela. Fazia muito tempo que ela partilhara prazeres com ele. A última vez havia sido na noite de sua adoção, e ela compreendia, agora, que sentira falta daquilo. Ranec ficara tão encantado por possuí-la e tão ansioso para agradar, que quase se esforçou em demasia, porém, ela estivera mais preparada do que imaginou, e embora tudo acontecesse depressa, ela não se sentiu insatisfeita.

- Foi perfeito para mim - cochichou Ranec. - Está feliz, Ayla?

- Sim, prazeres com você são bons, Ranec – disse, ela, e ouviu-o suspirar.

Os dois jazeram imóveis, usufruindo o resultado, mas os pensamentos de Ayla voltaram à pergunta dele. Estava feliz? Não estava infeliz. Ranec era um homem bom e atencioso, e ela havia sentido prazer, mas... Alguma coisa faltava. Não era o mesmo que com Jondalar, mas ela não sabia qual era a diferença.

Talvez fosse apenas porque ela ainda não estava acostumada com Ranec, pensou, enquanto tentava mudar para uma posição mais confortável. Ele começava a pesar um pouco. Ranec, sentindo o movimento da jovem, ergueu-se, sorriu-lhe, depois rolou e deitou-se ao seu lado, virado para ela, aninhando-se perto dela.

Ele roçou o nariz no pescoço dela, e cochichou-lhe ao ouvido:

- Amo você, Ayla. Quero-a muito. Diga que será minha mulher. Ayla não respondeu. Não podia responder sim, e não responderia não.

Jondalar cerrou os dentes e agarrou-se à sua pele de dormir, apertando-a com força enquanto ouvia, contra a vontade, o murmúrio, a respiração ofegante, e forte movimento ritmado da Fogueira da Raposa. Puxou as cobertas sobre a cabeça, mas não conseguiu bloquear o som abafado da voz de Ayla gritando. Mordeu um pedaço de couro para impedir-se de emitir quaisquer sons, mas, no fundo de sua garganta, a própria voz gritava de dor e desespero total. Lobo, ouvindo o choro, aconchegou-se a ele e lambeu as lágrimas salgadas que o homem tentava conter à força.

Não podia suportá-lo. Não era capaz de tolerar o pensamento de Ayla com Ranec. Mas era escolha dela, e dele. E se ela voltasse novamente à cama do escultor? Ele não suportaria ouvir aquilo outra vez. Mas o que podia fazer? Partir. Podia ir embora. Tinha que ir. No dia seguinte. De manhã, à primeira claridade, ele partiria.

Jondalar não dormiu. Jazeu rígido de tensão sob as peles quando compreendeu que eles descansavam apenas, e não tinham terminado. Afinal, quando os sons do sono apenas eram ouvidos na habitação, Jondalar ainda não dormia. Ouviu Ayla e Ranec uma e outra vez em sua mente, e visualizava-os juntos.

Com o primeiro vislumbre de claridade delineando a abertura de saída da fumaça, antes de qualquer pessoa se agitar, Jondalar estava de pé, guardando suas peles em um saco de viagem. Depois, vestindo a parka e calçados, e pegando as lanças e o arremessador de lanças, caminhou silenciosamente até a primeira arcada e afastou a cortina. Lobo o seguiu, mas Jondalar disse-lhe para “ficar” num cochicho rouco e fechou a cortina atrás de si.

Uma vez fora, colocou o capuz para enfrentar o vento forte e amarrou-o ao redor do rosto, deixando quase que apenas uma abertura para enxergar. Colocou as luvas que pendiam de suas mangas por cordões, mudou o saco de posição, e começou a caminhar, subindo a encosta. O gelo era esmagado sob seus pés, e ele tropeçou à luz fraca da manhã cinzenta, cego pelas lágrimas ardentes, agora que estava sozinho.

O vento soprava forte, e frio, quando chegou ao topo, fustigando-o com contracorrentes. Ele fez uma pausa, tentando decidir que caminho tomar, depois se virou para o sul, seguindo o rio. Era difícil caminhar. A geada fora suficiente para formar uma crosta de gelo sobre algumas das correntes que derretiam, e ele afundou até os joelhos e tinha que puxar os pés para fora a cada passo. Onde não havia neve acumulada pelo vento, o terreno era duro e árido, e muitas vezes, escorregadio. Ele escorregou e deslizou e caiu uma vez, machucando o quadril.

À medida que a manhã avançava, não apareceu o brilho do sol no céu fortemente nublado. A única evidência de sua presença era a luz difusa, porém mais forte, sem sombra. Jondalar caminhava com dificuldade, os pensamentos eram voltados para dentro, mal prestava atenção ao ritmo que tomava.

Por que não suportava o pensamento de Ayla e Ranec juntos? Por que era tão difícil para ele deixá-la fazer sua própria escolha? Será que ele a queria apenas para si mesmo? Será que outros homens se sentiam assim, também? Sentiam aquela dor? Será que era porque outro homem a tocava? Era medo a estar perdendo? Ou era mais que isso? Será que sentia que mereci. Ela falava simplesmente sobre sua vida com o Clã, e ele a aceitara como qualquer outra pessoa, até imaginar o que seu povo poderia pensar. Será que ela se sentiria igualmente livre, para falar de sua infância com os Zelandonii? Ela se ajustava muito bem ao Acampamento do Leão. Eles a aceitaram sem reservas, mas será que o fariam se soubessem sobre seu filho? Ele odiava pensar assim. Se sentia vergonha dela, talvez devesse desistir, mas não tolerava a idéia de perdê-la.

Afinal, a sede penetrou nos recantos sombrios de sua introspecção Ele parou, estendeu a mão até o cantil e descobriu que esquecera de trazê-lo. Na neve próxima acumulada pelo vento, ele quebrou a crosta de gelo e colocou um punhado de neve na boca, mantendo-a ali até derreter. Era a segunda natureza, ele nem sequer tinha que pensar sobre isso. Havia sido treinado desde a infância, a não comer neve para matar a sede sem deixar derreter primeiro, de preferência antes de colocá-la na boca. Engolir neve esfriava o corpo, e mesmo derretê-la na boca era um último recurso.

O cantil que faltava o fez analisar sua situação por um instante. Ele também compreendeu que se esquecera de alimento, mas deixou isso de lado em seguida. Estava muito preso à lembrança, que vinha uma e outra vez, dos sons da habitação, e as cenas e pensamentos que criavam em sua mente.

Ele chegou a uma extensão branca e mal parou antes de avançar com dificuldade até ela. Se houvesse observado os arredores, talvez visse que era mais do que neve acumulada pelo vento, mas ele não refletia. Depois dos primeiros passos, partiu a crosta e penetrou não em neve, mas afundou até os joelhos numa lagoa de água parada. Seu calçado de couro, revestido de sebo, era suficientemente à prova d'água para suportar certa quantidade de neve, até derretida, mas não água. O choque do frio afinal o arrancou de sua preocupação absorta. Avançou mais, quebrando mais gelo e sentiu o frio extra trazido pelo vento.

Que coisa estúpida para se fazer, pensou. Nem mesmo tenho roupas secas comigo. Ou alimento. Ou um recipiente de água. Tenho que voltar. Não estou preparado para viajar, de forma alguma. Em que andei pensando? Sabe muito bem no que pensava, Jondalar, disse a si mesmo, fechando os olhos enquanto o sofrimento o apertava.

Sentia frio nos pés e parte inferior das pernas, e a umidade desconfortável, lamacenta. Perguntou-se se devia tentar se secar antes de voltar. Compreendeu que não tinha uma pedra-de-fogo consigo, ou mesmo um apetrecho para fazer um fogo ou uma isca, e seu calçado tinha revestimento de lã feltrada de mamute. Mesmo molhado, não deixaria que seus pés congelassem, se continuasse andando. Voltou, censurando-se por sua estupidez, no entanto, odiando cada passo.

Ao retroceder sobre seus passos, encontrou-se pensando no irmão. Lembrou o momento em que Thonolan ficara preso em areia movediça na foz do Grande Rio Mãe, e queria ficar lá e morrer. Pela primeira vez, Jondalar compreendera plenamente por que Thonolan havia perdido a vontade de viver depois que Jetamio morreu. Seu irmão havia decidido ficar com o povo da mulher que amava, recordou. Mas Jetamio havia nascido do povo do rio, pensou. Ayla era tanto uma estranha, quanto ele o era para os Mamutoi. Não, corrigiu-se. Isto não é verdade. Agora, Ayla é Mamutoi.

Quando se aproximou da habitação viu um vulto volumoso caminhando em sua direção.

- Nezzie estava preocupada com você e me mandou procurá-lo. Onde esteve? - perguntou Talut ao alcançar Jondalar

- Fui dar uma caminhada.

O grande chefe concordou com um gesto de cabeça. Não era segredo que Ayla havia partilhado prazeres com Ranec, porém a angústia de Jondalar tampouco era tão particular quanto ele imaginava.

- Seus pés estão molhados.

- Quebrei o gelo de uma poça, pensando que era neve acumulada pelo vento.

Enquanto se dirigiam para o Acampamento do Leão descendo a encosta, Talut disse:

- Deve mudar as botas imediatamente, Jondalar. Tenho um par extra que darei a você.

- Obrigado - respondeu o rapaz, consciente, de repente, de que ele era, em grande parte, um forasteiro. Não tinha nada seu e dependia inteiramente da boa vontade do Acampamento do Leão até para as roupas e suprimentos necessários para viajar. Não gostava da idéia de pedir mais, porém não tinha escolha, se ia partir e, uma vez indo embora, não comeria mais o seu alimento, nem faria outras exigências por conta deles.

- Aí está - disse Nezzie quando ele entrou na moradia. - Jondalar! Está com frio e molhado!

Tire essas botas e me deixe dar-lhe alguma coisa quente para beber.

Nezzie lhe trouxe uma bebida quente e Talut lhe deu um par de botas velhas e calças secas.

- Pode ficar com elas - disse ele.

- Sou grato, Talut, por tudo que tem feito por mim, mas preciso lhe pedir um favor Tenho que partir Necessito voltar para meu lar. Estou longe há muito tempo. É hora de partir, mas preciso de algum equipamento de viagem e alimento. Quando o tempo esquentar, será mais fácil encontrar alimento pelo caminho, porém preciso de algum para começar.

- Eu ficaria feliz em lhe dar o que precisa. Embora minhas roupas sejam um pouco grandes para você, pode usá-las. - O chefe grandalhão sorriu, alisou a barba ruiva e farta, acrescentando: - Mas tenho uma idéia melhor. Por que não pede a Tulie para vesti-lo?

- Por que Tulie? - indagou Jondalar, intrigado.

- Seu primeiro homem era mais ou menos do seu tamanho, e estou certo de que ela ainda tem muitas roupas dele. Eram da melhor qualidade, Tulie certificou-se disso.

- Mas, por que ela me daria às roupas?

- Você ainda não recebeu sua reivindicação futura e ela está em dívida com você. Se lhe disser que quer ser pago com roupas e alimentos para viajar, ela tomará providências para você ter o melhor que existe, a fim de livrar-se da obrigação - disse Talut.

- É verdade - falou Jondalar com um sorriso. Ele havia esquecido a aposta que ganhara. Sentiu-se melhor ao saber que não estava inteiramente sem recursos. - Falarei com Tulie.

- Mas não planeja partir, não é?

- Planejo sim, o mais breve possível - retrucou Jondalar.

O chefe se sentou para uma conversa séria.

- Não é prudente viajar, ainda. Tudo está derretendo. Olhe o que aconteceu somente dando uma caminhada - disse Talut -, e eu esperava que você nos acompanhasse à Reunião de Verão e caçasse mamutes conosco.

- Não sei - disse Jondalar. Viu Mamut comendo perto de uma das fogueiras e lembrou-se de Ayla. Achou que não suportaria mais nenhum dia ali. Como poderia ficar até a Reunião de Verão?

- O início do verão é uma época melhor para começar uma longa viagem. É mais seguro. Devia esperar, Jondalar.

- Vou pensar - disse Jondalar, embora não tivesse intenção de ficar mais tempo do que o absolutamente necessário.

- E bom. Faça isso - falou Talut, levantando-se. - Nezzie me disse para certificar-me de que você tomaria sua sopa quente como refeição matinal. Ela colocou as últimas raízes boas nela.

Jondalar acabou de experimentar o calçado de Talut, levantou-se e se dirigiu à fogueira onde Mamut terminava uma tigela de sopa. Saudou o velho depois pegou uma das tigelas empilhadas ali perto, e serviu-se. Sentou-se ao lado do feiticeiro, pegou sua faca de comida e espetou um pedaço de carne.

Mamut limpou sua tigela e pousou-a; depois se virou para Jondalar.

- Não pude deixar de ouvir que pretende partir logo.

- Sim. Amanhã ou depois, assim que me aprontar.

- É cedo demais!

- Eu sei. Talut disse que era uma época ruim para viajar, mas já viajei em épocas ruins antes.

- Não é isso que quero dizer. Deve ficar até o Festival de Primavera - falou, com absoluta seriedade.

- Sei que é uma grande ocasião, todo mundo fala a respeito, mas realmente preciso ir.

- Não pode. Não é seguro.

- Por quê? Que diferença fará mais alguns dias? Haverá ainda descongelamento e enchentes. - O jovem visitante não compreendia a insistência do velho para que ficasse para um festival que não tinha significado especial para ele.

- Jondalar, não tenho dúvidas de que você pode viajar com qualquer tempo. Eu não pensava em você, pensava em Ayla.

- Ayla? - falou Jondalar, a testa enrugada, enquanto seu estômago dava um nó. - Não entendo.

Tenho treinado Ayla em algumas práticas da Fogueira do Mamute, e planejo uma cerimônia especial para este Festival de Primavera com ela. Usaremos uma raiz que ela trouxe do Clã. Ela a usou uma vez... Com a orientação do seu Mog-ur. Tenho experiência com várias plantas mágicas que podem levar a pessoa para o mundo espiritual, mas jamais utilizei esta raiz, e Ayla nunca a usou sozinha. Ambos tentaremos alguma coisa nova. Ela parece ter... Algumas preocupações, e... Certas mudanças talvez fossem perturbadoras. Se partir, poderia haver um efeito imprevisível sobre Ayla.

- Está dizendo que existe algum perigo para Ayla na cerimônia da raiz? - perguntou Jondalar, com os olhos cheios de aflição.

- Sempre existe algum elemento de perigo ao se lidar com o mundo espiritual - explicou o feiticeiro -, mas ela viajou para lá sozinha, e se ocorrer novamente, sem orientação ou treinamento, poderia ficar desnorteada. É por isto que a estou treinando, mas Ayla precisará da ajuda daqueles que têm sentimentos por ela, amor por ela. É essencial que você esteja aqui.

- Por que eu? - disse Jondalar. - Não estamos... Mais juntos. Há outros que têm sentimentos... Que amam Ayla. Outros que ela também ama.

O velho se levantou.

- Não lhe posso explicar, Jondalar. É uma sensação, uma intuição. Só posso dizer que quando o ouvi falar de partir, um pressentimento terrível, sombrio me atingiu. Não estou certo do que significa, mas eu... Preferia... Não, falarei com mais firmeza. Não parta, Jondalar. Se você a ama, prometa-me que não irá embora senão depois do Festival de Primavera - disse Mamut.

Jondalar se levantou e olhou para o rosto velho, inescrutável do velho feiticeiro. Não era do seu feitio fazer um pedido assim, sem motivo, mas por que era tão importante que ele ficasse ali? O que Mamut sabia, que ele ignorava? O que quer que fosse, os temores de Mamut o encheram de apreensão. Não podia partir se Ayla corria perigo.

- Ficarei - disse. - Prometo que não partirei senão depois do Festival de Primavera.

Passaram-se alguns dias antes de Ayla voltar à cama de Ranec, embora não fosse porque ele não a tivesse encorajado. Foi difícil para ela recusá-lo à primeira vez que ele lhe pediu diretamente. Sua educação em criança havia sido tão firme que ela sentiu que fizera uma coisa terrivelmente errada quando dissera não, e quase esperou que Ranec se zangasse. Mas ele encarou a recusa com compreensão e disse que sabia que ela precisava de algum tempo para pensar.

Ayla soubera sobre a longa caminhada de Jondalar na manhã seguinte, após sua noite com o escultor escuro, e desconfiou que tinha algo a ver consigo. Era essa a maneira de Jondalar mostrar que ainda se importava com ela? Porém, Jondalar estava ainda mais distante. Ele a evitava sempre que era possível e falava somente quando necessário. Ela concluiu que devia estar enganada. Jondalar não a amava. Ela ficou desolada quando, afinal, começou a aceitar isso, mas tentava não demonstrá-lo.

Em contrapartida, Ranec deixava totalmente claro que a amava. Continuou a pressioná-la para ir à sua cama e também a unir-se a ele em sua fogueira de uma maneira formalmente reconhecida; para ser sua mulher. Ela afinal consentiu em dividir a cama dele de novo, principalmente por causa de sua compreensão, mas não quis se comprometer a um relacionamento mais permanente. Passou várias noites com ele, mas depois resolveu afastar-se de novo, desta vez achando mais fácil recusar.

Sentia que tudo se movia depressa demais. Ele queria fazer o anúncio de sua Promessa no Festival de Primavera, que estava apenas a alguns dias de distância. Ela queria tempo para refletir sobre isso. Gostava dos prazeres com Ranec, ele era amoroso e sabia agradá-la, e ela gostava dele. Gostava muito, na verdade, mas alguma coisa faltava. Ela o sentia como uma espécie indistinta de algo incompleto. Embora quisesse e desejasse amá-lo, não o amava.

Jondalar não dormia quando Ayla estava com Ranec, e a tensão começava a ficar aparente. Nezzie achou que ele havia emagrecido mais, porém, nas roupas de Talut, que estavam folgadas nele, e com a barba de inverno não cuidada, era difícil dizer. Mesmo Danug notou que ele parecia cansado e abatido, e achou que conhecia a razão. Queria que houvesse alguma coisa que pudesse fazer para ajudar; gostava muito de Jondalar e Ayla, mas ninguém podia ajudar. Nem mesmo Lobo, embora o filhote o consolasse mais do que ele imaginava. Sempre que Ayla se ausentava da fogueira, o filhote procurava Jondalar. Isto fazia com que o homem não se sentisse sozinho em sua dor e rejeição. Também passava mais tempo com os cavalos, até dormia com eles, às vezes, para fugir das cenas dolorosas na habitação, mas resolveu manter-se afastado quando Ayla estava por perto.

Nos dias que se seguiram o tempo esquentou e tornou-se mais difícil, para Jondalar, evitá-la. Apesar da neve enlameada e das cheias, ela cavalgava com mais freqüência e, embora ele tentasse esgueirar-se quando a via acercar-se do anexo, encontrou-se, várias vezes, balbuciando desculpas e saindo depressa após encontrá-la por acaso. Muitas vezes levava Lobo e, ocasionalmente, Rydag, cavalgando com ela mas, quando queria estar livre de responsabilidade, deixava o filhote aos cuidados do menino, para deleite de Rydag. Whinney e Racer estavam inteiramente familiarizados e à vontade com o filhote, e Lobo parecia gostar da companhia dos cavalos, quer estivesse sobre o dorso de Whinney com Ayla, ou correndo ao lado, tentando acompanhar a égua. Era um bom exercício e uma desculpa bem recebida para ela se afastar da habitação, que parecia pequena e restrita após o prolongado inverno, mas não podia escapar do turbilhão de seus fortes sentimentos, que girava à sua volta e em seu íntimo.

Ela havia começado a encorajar e dirigir Racer pela voz, assobio e sinais enquanto cavalgava Whinney, mas sempre que pensava que devia começar a acostumá-lo a carregar um cavaleiro, pensava em Jondalar e adiava a ação. Não era só uma decisão consciente como também uma tática de retardamento, e um desejo forte de que tudo, de alguma forma, desse certo como antes ela havia esperado, e de que Jondalar o treinasse e o montasse.

Jondalar pensava mais ou menos a mesma coisa. Num dos seus encontros casuais, Ayla o encorajara a levar Whinney para uma cavalgada, insistindo em que ela estava muito ocupada, e que a égua precisava de exercício depois de longo inverno. Ele havia esquecido a excitação pura que era correr ao vento sobre o dorso de um cavalo. E quando viu Racer avançando a seu lado, e depois saltando à frente de sua mãe, sonhou em cavalgar o jovem garanhão ao lado de Ayla e Whinney.

Embora normalmente pudesse conduzir a égua, achava que ela o tolerava simplesmente, e sempre se sentia pouco à vontade em relação a isso. Whinney pertencia a Ayla e, apesar de observar o garanhão castanho e possuir um afeto verdadeiro por ele, em seu pensamento Racer também era de Ayla.

À medida que o tempo esquentava, Jondalar pensava mais em partir. Resolveu seguir o conselho de Talut e pedir equipamento de viagem e roupas necessárias a Tulie por conta da aposta que ganhara. Como o chefe havia sugerido, Tulie ficou encantada em pagar sua dívida tão facilmente.

Jondalar experimentava um cinto ao redor de sua nova túnica marrom-café, quando Talut entrou na área de cozinhar com passos largos. O Festival de Primavera seria dali a dois dias. Todos experimentavam adornos em preparação para o grande dia e relaxavam após banhos a vapor e um mergulho no rio gelado. Pela primeira vez desde que safra de casa, Jondalar tinha excesso de roupa bem-feita, lindamente adornada, assim como mochilas, tendas e outros equipamentos de viagem. Ele sempre gostava de coisas de boa qualidade, e sua apreciação não era indiferente a Tulie. Ela suspeitara o tempo todo, e agora estava convencida, de que quem quer que os Zelandonii fossem, Jondalar vinha de pessoas de alto status.

- Parece que foi feita para você, Jondalar - falou Talut. - O trabalho em contas nos ombros cai muito bem.

- Sim, as roupas caem bem, e Tulie foi mais que generosa. Obrigado pela sugestão.

- Estou contente por você ter resolvido não partir imediatamente. Gostará da Reunião de Verão.

- Bem... Ah... Eu não... Mamut... - Jondalar lutava para encontrar palavras para explicar por que não havia partido como planejara.

-... E me certificarei para que seja convidado para a primeira caçada - continuou Talut, supondo que Jondalar havia ficado por causa de seu conselho e convite.

- Jondalar? - disse Deegie, um pouco perplexa - De costas, pensei que era Darnev! - Caminhou e rodeou-o com um sorriso no rosto, examinando-o. Gostou do que viu. - Fez a barba - falou.

- E primavera, achei que era o momento - disse ele, sorrindo, os olhos dizendo a Deegie que ela também era atraente.

Ela ficou presa aos olhos azuis dele, a atração era irresistível; depois riu, achando que estava na hora de ele apresentar uma aparência limpa e vestir roupas decentes. Ele vinha parecendo tão negligente em sua barba hirsuta, malcuidada e roupas velhas de Talut, que ela esquecera quão atraente ele era.

- Jondalar, a roupa fica muito bem em você. Espere até chegar na Reunião de Verão. Um estranho sempre recebe muita atenção e acho que as mulheres Mamutoi quererão fazer você se sentir muito bem acolhido - disse Deegie com sorriso provocante.

- Mas... - Jondalar desistiu de tentar explicar que não pretendia irá Reunião de Verão com eles. Poderia dizer-lhe mais tarde, quando partisse.

Experimentou outro traje depois que saíram, mais um adequado para viagem ou uso diário, depois saiu à procura da chefe para agradecer-lhe novamente, e lhe mostrar como as roupas caíam bem nele. Na área da entrada, encontrou Danug, Rydag e Lobo acabando de entrar. O rapaz segurava Rydag com um braço e Lobo com o outro. Tinham uma pele enrolada ao redor de si e os cabelos de ambos ainda estavam úmidos. Danug havia carregado o menino desde o rio, depois de seus banhos de vapor. Colocou ambos no chão.

- Jondalar, você está muito bem - disse Rydag por sinais. - Está pronto para o Festival de Primavera?

- Sim. E você? - perguntou também por sinais.

- Tenho roupas novas também. Nezzie fez para mim, para o Festival - replicou Rydag, sorrindo.

- Para a Reunião de Verão também - acrescentou Danug. - Ela fez roupas novas para mim, e Latie e Rugie.

Jondalar notou que o sorriso de Rydag desapareceu quando Danug falou sobre a Reunião de Verão. Ele não parecia esperar ansiosamente a grande reunião de verão, como os outros.

Quando Jondalar afastou a pesada cortina e saiu, Danug cochichou com Rydag, não querendo que suas palavras fossem ouvidas:

- Deviamos ter-lhe dito que Ayla está lá fora? Todas as vezes que a vê, ele foge dela.

- Não. Ele quer vê-la. Ela quer vê-lo. Fazem sinais certos, dizem palavras erradas - assinalou Rydag.

- Tem razão, mas por que não vêem isso? Como fazer um e outro entenderem?

- Esquecendo as palavras, fazendo sinais - replicou Rydag com seu sorriso diferente do Clã, depois pegou o filhote de lobo e carregou-... consigo para o interior da moradia.

Jondalar descobriu o que os garotos não lhe disseram no instante em que saiu. Ayla estava diante da entrada da frente com os dois cavalos. Ela acabara de dar Lobo a Rydag, para que o menino tomasse conta do animal, e ansiava por uma cavalgada longa, veloz, a fim de livrar-se da tensão que sentia. Ranec queria que concordasse antes do Festival de Primavera, e ela não se conseguia decidir. Esperava que o passeio a cavalo a ajudasse a pensar. Quando viu Jondalar, sua primeira reação foi oferecer-lhe a égua para montar, como havia feito antes, sabendo que ele adorava isso, e esperando que o amor de Jondalar pelos cavalos o trouxesse para mais perto dela. Mas ela queria montar. Estivera esperando por aquilo e estava pronta para o passeio.

Quando olhou para ele, de novo, tomou fôlego. Ele havia raspado a barba com uma de suas aguçadas lâminas de sílex, e parecia tanto com o homem que vivera com ela em seu vale no verão anterior, que seu coração martelou e o rosto corou. Ele reagiu aos seus sinais físicos com sinais próprios inconscientes, e a atração magnética de seus olhos a prendeu.

- Você tirou a barba - disse ela.

Sem perceber, ela falara em Zelandonii. Ele demorou um pouco para compreender o que estava diferente, depois não pôde deixar de sorrir. Não ouvia sua língua havia muito tempo. O sorriso a encorajou, e um pensamento ocorreu a ela.

- Eu ia sair com Whinney e tenho pensado que alguém precisa começar a acostumar Racer a um cavaleiro. Por que não vem comigo e tenta montá-lo? È um bom dia para isso. A neve quase desapareceu, capim novo está brotando, mas o solo ainda não está tão duro, para o caso de alguém cair - disse ela, apressando-se, antes que alguma coisa acontecesse que o fizesse mudar e ficar distante outra vez.

- Bem... Não sei - Jondalar hesitou. - Pensei que você quereria montá-lo primeiro.

Ele está acostumado a você, Jondalar, e não importa quem o monte primeiro, ajudaria ter duas pessoas - Uma pode acalmá-lo e mantê-lo parado enquanto a outra monta.

- Suponho que esteja certa - disse ele, enrugando a testa. Não sabia se devia sair para as estepes com ela, mas não sabia como recusar e queria montar o cavalo. - Se quer realmente que eu monte, acho que posso fazê-lo.

- Vou buscar o cabresto e a rédea que fez para ele - disse Ayla, correndo para o anexo antes que ele mudasse de idéia. - Por que não começa a subir a encosta com eles?

Ele começou a pensar melhor, porém ela havia desaparecido antes de ele poder reconsiderar. Chamou os cavalos e começou a subirem direção às largas planícies à sua frente. Ayla os alcançou quando chegavam ao topo.

Ela levava uma mochila e um saco de água, além do cabresto e uma corda. Quando atingiram as estepes, Ayla conduziu Whinney a um montículo que ela havia usado antes, quando deixava alguns membros do Acampamento do Leão, principalmente os mais jovens, cavalgar a égua. Com um salto treinado, ela montou no animal cor de feno.

- Suba, Jondalar. Podemos cavalgar juntos.

- Cavalgar juntos! - exclamou ele, quase em pânico. Não havia pensado em cavalgar com ela, e estava pronto para fugir.

- Só até encontrarmos uma boa faixa aberta de solo plano. Não podemos tentar aqui. Racer talvez corresse ravina adentro ou escorregasse encosta abaixo - falou ela.

Ele se sentiu preso. Como poderia dizer que não cavalgaria com ela por uma distância curta? Caminhou até o montículo e cuidadosamente sentou-se à égua com uma perna de cada lado, tentando recuar e evitar tocar em Ayla. No instante em que ele montou, ela guiou Whinney num trote rápido.

Não havia meio de evitar. Embora ele tentasse, no cavalo saltitante, não podia impedir de escorregar para perto dela. Sentia-lhe a calidez do corpo através da roupa, cheirava o odor agradável e leve das flores secas para limpeza que ela usava ao lavar-se, misturado a seu aroma feminino familiar. A cada passo da égua, ele sentia-lhe as pernas, os quadris, as costas pressionados contra si, e sentia seu membro dilatar em resposta. Sua cabeça girava, e lutou consigo mesmo para não beijá-la ao pescoço, ou estender a mão ao redor da mulher e segurar um dos seios firmes e fartos.

Por que havia ele concordado com aquilo? Por que não recusara? Que diferença faria se ele montasse Racer, um dia? Jamais cavalgariam juntos. Ele ouvira as pessoas falando; Ayla e Ranec iam anunciar sua promessa no Festival de Primavera e, depois, ele partiria e iniciaria sua longa jornada para casa.

Ayla fez sinal à égua para parar.

- O que acha, Jondalar? Lá está uma boa faixa plana.

- Sim, parece boa - disse ele depressa, e passando a perna por trás do animal, saltou ao chão.

Ayla ergueu a perna sobre a égua e escorregou para o lado oposto. Ela respirava depressa, o rosto estava corado, os olhos cintilantes. Havia sentido profundamente o odor do homem, derretido na calidez do corpo, e estremecido ao sentir o membro duro, quente. Pude sentir a necessidade dele, pensou ela. Por que ele estava com tanta pressa de se afastar de mim? Por que ele não me quer? Por que não me ama mais?

Em lados opostos da égua, ambos tentavam se recompor. Ayla assobiou para Racer, um assobio diferente do que ela usava para chamar Whinney, e quando ela o acariciou e coçou, e lhe falou, estava pronta para encarar Jondalar novamente.

- Quer colocar o cabresto nele? - perguntou ela, conduzindo o jovem garanhão para uma pilha de ossos grandes que havia visto.

- Não sei. O que você faria? - perguntou ele, também controlado agora, e começando a ficar excitado em relação a cavalgar o cavalo.

- Nunca usei nada para guiar Whinney, exceto a forma como me movia, mas Racer está acostumado a ser conduzido pelas correias. Acho que as usaria - disse ela.

Ambos colocaram o cabresto em Racer. Sentindo alguma coisa diferente, ele estava mais agitado que o normal, e eles o alisaram e afagaram para tranqüilizá-lo. Empilharam dois ossos de mamute para que Jondalar tivesse alguma coisa onde ficar em pé a fim de montar, depois levaram o cavalo para o seu lado. Por sugestão de Ayla, Jondalar esfregou-lhe pescoço, dorso e pernas, e inclinou-se sobre ele, coçando-o e acariciando-o, e fazendo com que se familiarizasse, totalmente, ao toque do homem.

- Quando subir nele pela primeira vez, segure-o ao redor do pescoço. Talvez empine para tentar atirá-lo ao chão - disse Ayla, dando um conselho de última hora. - Mas ele se habituou a carregar um fardo quando voltou do vale para cá; assim, talvez não demore muito a se habituar com você. Segure a correia, para que não caia no solo e o faça tropeçar, mas eu o deixaria correr para onde quisesse até se cansar. Seguirei montada em Whinney. Está pronto?

- Acho que sim - respondeu ele, sorrindo nervosamente.

Jondalar ficou de pé sobre os grandes ossos, inclinou-se para o animal peludo, robusto, falando-lhe, enquanto Ayla segurava-lhe a cabeça. Depois, passou uma das pernas por seu dorso, acomodou-se e passou os braços pelo pescoço. Quando o garanhão sentiu o peso, abaixou as orelhas para trás.

Ayla o soltou. Ele saltou sobre as patas traseiras uma vez e depois arqueou o dorso tentando deslocar o fardo, mas Jondalar se manteve firme. Em seguida, fazendo jus ao nome, o jovem garanhão partiu num galope rápido pelas estepes.

Jondalar semicerrou os olhos no vento frio e sentiu uma enorme onda de puro júbilo. Viu o terreno toldar-se sob si, e não conseguiu acreditar. Na verdade, cavalgava o garanhão agora, e era exatamente tão excitante quanto ele havia imaginado. Fechou os olhos e sentiu a força enorme dos músculos juntando-se e retesando-se sob ele, e uma sensação de assombro mágico o inundou, como se pela primeira vez na vida partilhasse a maravilha e criação da Própria Grande Mãe Terra.

Sentiu o jovem garanhão cansando-se e, ouvindo outros ruídos de cascos, abriu os olhos para ver Ayla e Whinney correndo a seu lado. Sorriu, encantado e deleitado para Ayla, e o sorriso que ela lhe devolveu fez seu coração bater mais depressa. Tudo o mais se tornou insignificante naquele momento. Todo o mundo de Jondalar era uma cavalgada inesquecível no dorso de um garanhão veloz, e o sorriso dolorosamente bonito no rosto da mulher que ele amava.

Afinal, Racer reduziu a marcha, depois parou. Jondalar desmontou de um salto. O garanhão tinha a cabeça pendendo até quase o solo, as patas separadas, os flancos elevando-se enquanto respirava com dificuldade. Whinney parou e Ayla saltou ao chão. Pegou alguns pedaços de couro macio em sua mochila, deu um a Jondalar para passar no animal suado, depois ela fez o mesmo em Whinney. Os dois animais exaustos se encostaram um ao outro em busca de tranqüilidade.

- Ayla, enquanto eu viver, jamais esquecerei essa cavalgada – falou Jondalar.

Havia muito tempo que ele não relaxava tanto, e ela sentiu sua excitação. Olharam um para o outro, sorriram, riram, partilhando o momento maravilhoso. Sem pensar, ela ergueu a cabeça para beijá-lo, ele começou a corresponder, depois, de repente, lembrou-se de Ranec. Enrijeceu, retirou os braços dela do seu pescoço.

- Não brinque comigo, Ayla - disse ele, a voz rouca, controlada enquanto a afastava.

- Brincar com você? - disse ela, a mágoa enchendo-lhe os olhos.

Jondalar fechou os seus, cerrou os dentes, estremeceu com o esforço para tentar se controlar. Então, de súbito, como barragem de gelo cedendo... Era demais. Ele a agarrou, beijou-a, um beijo rude, desesperado, que machucava a boca. No instante seguinte ela estava ao chão, as mãos de Jondalar sob sua túnica, puxando o cordão.

Ela tentou ajudá-lo, desamarrar a roupa para ele, mas Jondalar não foi capaz de esperar.

Impacientemente, agarrou a cintura de suas macias perneiras de couro com as duas mãos e, com a força de paixão negada, que não mais podia ser negada, ela ouviu o ruído da roupa sendo rasgada nas costuras. Ele lutou com a abertura de suas calças; depois, estava sobre ela, selvagem em seu frenesi, enquanto seu dardo palpitante, duro, procurava e sondava.

Ela estendeu a mão para ajudá-lo, sentindo a própria excitação crescer enquanto ela compreendia o que ele queria desesperadamente. Mas, o que o impelia a uma fúria tão ardente? O que lhe causava tal necessidade e ânsia? Será que não conseguia ver que ela estava pronta para ele? Ela estivera pronta para ele por todo o inverno. Nunca houve um momento em que não estivesse pronta para ele. Como se o seu corpo tivesse sido treinado desde a infância para responder à necessidade dele, ao sinal dele, ele tinha apenas que querê-la para que ela o quisesse. Aquilo era tudo o que ela esperara. Lágrimas de carência e amor estavam em seus olhos; ela havia esperado muito tempo para que ele a quisesse novamente.

Com uma paixão tanto tempo negada quanto à dele, ela se abriu para ele, acolheu-o, deu-lhe o que ele pensou que tomava. Vibrou com a sensação do membro extenso e firme procurando suas profundezas, enchendo-a. Ele recuou e ela ansiou que ele voltasse, a enchesse de novo. Ela avançou ao encontro dele quando ele investiu outra vez; ela comprimiu-se contra a lança quente, sentiu bem no fundo de si um palpitar crescer. Ela arqueou as costas para sentir o movimento de Jondalar, para pressionar seu local de prazer contra ele, para encontrá-lo mais uma vez.

Ele gritou com a alegria inacreditável de possuí-la. Ele se sentira assim desde a primeira vez. Os dois se ajustavam, combinavam, a profundeza de Ayla com o tamanho dele, como se ela fosse feita para ele, e ele para ela. Ó Mãe! Ó Doni! Como ele sentira falta de Ayla! Como ele a havia querido, como ele a amava! Ele penetrou, sentiu a sua carícia úmida e cálida envolvê-lo, tomá-lo, estender-se em busca de mais até seu membro indo enterrar-se nela.

Ondas enormes de prazer o inundaram, em movimentos combinados com os seus próprios. Ele mergulhou de novo, e outra vez, enquanto ela se estendia para ele, ansiava por ele, desejava-o. Com desembaraço selvagem, sem restrições, ele voltou, e voltou para ela, mais depressa, e ela o acolheu todas às vezes, sentiu sua tensão crescer com a dele até o cume, o clímax, a última onda de prazer quebrar-se sobre os dois.

Ele descansou sobre ela, no meio das estepes descampadas, desabrochando com vida nova. Depois, de repente, ele a apertou, enterrou a cabeça em seu pescoço e gritou seu nome.

- Ayla, oh, minha Ayla, minha Ayla!

Beijou-lhe o pescoço, a boca e um dos olhos fechados. Então parou, tão abruptamente quanto começou. Ergueu o corpo e olhou para ela.

- Está chorando! Eu a magoei! O Grande Mãe, o que fiz? - disse ele. Ficou de pé em um salto e abaixou os olhos para ela, jazendo no solo nu, as roupas rasgadas. - Doni. Ó Doni, o que fiz? Eu a forcei. Como pude fazer isso? Com ela, que só conheceu este sofrimento no início. Agora, eu a fiz sofrer. Ó Doni! Ó Mãe! Como me deixou fazer isso?

- Não, Jondalar! - exclamou Ayla, sentando-se. - Está tudo bem, você não me magoou.

Mas ele não a ouvia. Virou-lhe as costas, incapaz de olhar para ela, e se compôs. Não podia voltar. Afastou-se, zangado consigo mesmo, cheio de vergonha e remorso. Se não podia confiar em si mesmo para não magoar Ayla, teria que ficar longe dela e certificar-se de que ela permanecesse distante dele. Ela tem razão em escolher Ranec, pensou. Não a mereço. Ele a ouviu levantar-se e dirigir-se aos cavalos. Então, ouviu-a caminhar na direção dele e sentiu a mão dela em seu braço.

- Jondalar, você não...

Ele deu meia-volta.

- Fique longe de mim! Gritou, cheio de cólera culposa contra si

Ela recuou. Agora, o que ela tinha feito de errado?

- Jondalar...? - disse, de novo, dando um passo na direção dele.

- Fique longe de mim! Não ouviu? Se não ficar longe de mim, talvez eu perca o controle e force você novamente! - As palavras soaram como ameaça.

- Não me forçou, Jondalar - disse ela quando ele se voltou e se afastou com passos largos. - Não pode me forçar. Não existe momento em que eu não esteja pronta para você...

Mas os pensamentos de Jondalar estavam cheios de remorso e ódio por si mesmo, e não a ouviu.

Ele continuou andando, de volta ao Acampamento do Leão. Ela o viu afastar-se, tentando resolver sua confusão durante algum tempo. Depois, voltou até os cavalos. Pegou o cabresto de Racer e, segurando-se à crina ereta de Whinney, montou a égua e alcançou Jondalar rapidamente.

- Não vai caminhar até lá, vai? - perguntou ela.

Ele não respondeu a princípio, nem sequer se virou para olhá-la. Se mesmo ela imaginava que ele iria montar Whinney junto a ela de novo... Pensou, quando ela parou ao seu lado. Com o rabo do olho, ele viu que ela conduzia o jovem garanhão atrás de si, e finalmente virou-se para encará-la.

Olhou-a com ternura e desejo. Ela parecia mais atraente, mais desejável, e ele a amava mais que nunca, agora que tinha certeza de que havia estragado tudo. Ela ansiava por estar perto dele, por lhe dizer como fora maravilhoso, como ela se sentia realizada e completa, como ela o amava. Mas ele ficara tão zangado, e ela estava tão confusa, que não sabia o que dizer.

Eles se fitaram, desejando-se, atraídos mutuamente, mas seu grito silencioso de amor não foi ouvido nem no bramido do mal-entendido, nem no ruído de crenças culturalmente arraigadas.

Acho que devia voltar montado em Racer - disse Ayla. - É muito distante para andar.

Muito distante, pensou ele. Quanto tinha ele caminhado desde seu lar? Mas concordou com um gesto de cabeça e seguiu-a até uma rocha ao lado do riacho. Racer não estava acostumado a ter cavaleiros. Ainda era melhor acalmá-lo gentilmente. As orelhas do garanhão foram para trás e ele fez algumas cabriolas, mas acalmou-se depressa e acompanhou a mãe como havia feito muitas vezes antes.

Eles não falaram no trajeto de volta e, quando chegaram, ficaram contentes porque as pessoas estavam no interior da habitação, ou fora, mas a uma certa distância dela. Nenhum dos dois tinha vontade de conversar casualmente. Assim que pararam, Jondalar desmontou e dirigiu-se à entrada da frente. Ele se virou quando Ayla entrava no anexo, achando que devia dizer alguma coisa.

- Hum... Ayla?

Ela parou e levantou a cabeça.

- Sabe, eu fui sincero. Jamais esquecerei esta tarde. Quero dizer, o passeio a cavalo. Obrigado.

- Não me agradeça, Jondalar. Agradeça a Racer.

- Sim, bem, Racer não fez tudo sozinho.

- Não, você o fez comigo.

Ele começou a dizer alguma coisa, depois mudou de idéia, franziu a testa, abaixou a cabeça e atravessou a arcada da frente.

Ayla fitou, um pouco, o local onde ele estivera, fechou os olhos e lutou para engolir um soluço que ameaçava uma torrente. Quando ela recuperou o controle, entrou. Embora os cavalos tivessem bebido água de riachos ao longo do caminho, ela derramou água em suas grandes tigelas, pegou os panos de couro macio e começou a esfregar Whinney novamente. Ela colocou logo os braços ao redor da égua, encostando-se nela, sua testa sobre o pescoço peludo da velha amiga, a única amiga que tivera quando vivia no vale. Racer logo se se encostou a ela, e ela ficou presa entre os dois animais, porém a pressão familiar consolava.

Mamut vira Jondalar entrar pela frente e ouviu Ayla e os animais no anexo. Teve a impressão clara de que alguma coisa estava muito errada. Quando ele a viu entrar na Fogueira do Mamute, sua aparência desgrenhada o fez perguntar-se se ela havia caído e se machucado, porém era mais que isso. Alguma coisa a perturbava. Da sombra de seu estrado, ele a observou. Ela trocou de traje e ele notou-lhe a roupa rasgada. Algo devia ter acontecido. Lobo entrou correndo, seguido por Rydag e Danug, que orgulhosamente exibiu uma bolsa, como rede, cheia de peixes. Ayla sorriu e cumprimentou os pescadores, mas assim que se dirigiram à Fogueira do Leão para ali deixar os seus peixes e receberem mais elogios, ela pegou o lobinho ao colo e balançou-o para á frente e para trás. O velho ficou preocupado. Levantou-se e se aproximou do estrado-cama de Ayla.

- Eu gostaria de repetir o ritual do Clã com a raiz - disse. - Só para ter certeza de que fazemos tudo certo.

- O quê? - disse ela, os olhos fixos nele. - Oh... Se quer, Mamut. - Colocou Lobo em sua cesta, mas ele saltou para fora imediatamente e foi para a Fogueira do Leão em busca de Rydag. Não estava com vontade de descansar.

Ela estivera, obviamente, absorta em algum pensamento que a deixava infeliz. Parecia que estivera chorando, ou a ponto de chorar.

- Você disse - começou ele, tentando fazê-la falar, e talvez desabafar -, que Iza contou-lhe como preparar a bebida.

- Sim.

- E ela lhe disse como se preparar. Tem tudo do que precisa?

- É necessário purificar-me. Não tenho exatamente as mesmas coisas, é uma estação diferente, mas posso usar outras coisas para me limpar.

- Seu Mog-ur, Creb, controlava a experiência para você?

Ela hesitou:

- Sim.

- Ele deve ter sido muito poderoso.

- O Urso da Caverna era o seu totem. Escolheu-o, deu-lhe poder.

- Havia outros envolvidos no ritual com a raiz?

Ayla manteve a cabeça ereta, depois sacudiu-a, concordando.

Havia alguma coisa que ela não lhe contara, pensou Mamut, perguntando-se se era importante.

- Eles o ajudavam a controlá-la?

- Não. A força de Creb era maior do que de todos eles. Eu sabia, eu sentia isso.

- Como podia sentir, Ayla? Jamais me contou. Pensei que as mulheres do Clã eram proibidas da participar dos rituais mais profundos.

Ela tornou a abaixar os olhos.

- Elas são - murmurou.

Ele ergueu o queixo de Ayla:

- Talvez deva me falar sobre isso, Ayla.

Ela concordou com um gesto de cabeça.

- Iza jamais me mostrou como fazer, ela disse que era algo sagrado demais para ser desperdiçado em treinamento, mas tentou me contar exatamente como agir. Quando chegamos à Reunião de Clãs, os mog-urs não queriam que eu preparasse a bebida para eles. Disseram que eu não era do Clã. Talvez tivessem razão - ajuntou Ayla, abaixando a cabeça de novo.

- Mas não havia outra pessoa.

Suplicava ela compreensão? Pensou Mamut.

- Acho que preparei a bebida forte demais, ou fiz quantidade demasiada. Eles não beberam tudo. Mais tarde, depois da datura e da dança das mulheres, eu a encontrei. Eu estava tonta, tudo o que pude pensar foi que Iza dissera que era sagrada demais para desperdiçar. Assim, bebi. Não lembro o que aconteceu depois disso e, no entanto, jamais esquecerei. De certa forma, encontrei Creb e os mog-urs, e ele me levou de volta até o inicio das lembranças. Recordo a brisa da água quente do mar, a escavação de argila... O Clã e os Outros, ambos viemos dos mesmos inícios, sabia disso?

- Não estou surpreso - disse Mamut, pensando quanto ele teria dado por aquela experiência.

- Mas eu tinha medo também, especialmente antes de Creb me descobrir, e guiar-me. E... Desde então, não... Sou a mesma. Às vezes meus sonhos me assustam. Acho que ele me mudou.

Mamut concordava, balançando a cabeça.

- Isso poderia explicar - falou. - Eu me perguntava como você podia fazer tanta coisa sem treinamento.

- Creb também mudou. Durante longo tempo não foi à mesma coisa entre nós. Comigo, ele viu uma coisa que nunca vira antes. Eu o magoei, não sei como, mas magoei - disse Ayla, enquanto as lágrimas se avolumavam.

Mamut a abraçou enquanto ela chorava baixinho em seu ombro. Depois, as lágrimas ameaçaram tornar-se um dilúvio e ela soluçou e estremeceu de tristeza mais recente. Sua infelicidade por causa de Creb trouxe lágrimas que estivera contendo, as lágrimas de sua tristeza, confusão e amor frustrado.

Jondalar estivera observando da fogueira de cozinhar. Quisera acompanhá-la, desculpar-se de alguma forma, e tentava pensar no que dizer a Mamut quando a conversa com Ayla terminasse. Quando viu Ayla chorando, teve certeza de que ela contara ao velho feiticeiro. O rosto de Jondalar queimava de vergonha. Não podia deixar de pensar sobre o incidente nas estepes, e quanto mais pensava, mais a coisa piorava.

E depois, disse a si mesmo, tudo o que você fez foi afastar-se. Nem sequer tentou ajudá-la, nem mesmo lhe disse que lamentava, ou como se sentia mal. Jondalar se odiou e quis ir embora, arrumar tudo e partir, e não enfrentar Ayla ou Mamut, ou qualquer pessoa de novo, mas havia prometido a Mamut que ficaria até depois do Festival de Primavera. Mamut já deve pensar que sou desprezível, refletiu. Não cumprir uma promessa seria tão pior assim? Mas era mais do que a promessa o que o detinha. Mamut havia dito que Ayla talvez corresse perigo, e não importava o quanto se odiava, o quanto queria fugir, não podia deixar Ayla enfrentar qualquer perigo sozinha.

- Sente-se melhor agora? - perguntou Mamut quando ela se sentou e enxugou os olhos.

- Sim.

E não foi ferida?

Ayla ficou surpresa com a pergunta. Como ele sabia?

- Não, de modo algum, mas ele pensa que sim. Eu gostaria de poder compreendê-lo - falou ela, as lágrimas ameaçando rolar de novo. Depois, esforçou-se para sorrir. - Eu não chorava tanto quando vivia com o Clã. Eles ficavam inquietos. Iza achava que eu tinha olhos fracos, porque ficavam cheios d’água quando eu estava triste, e sempre os tratava com medicamentos especiais quando eu chorava. Eu costumava perguntar-me se era apenas eu, ou se todos os Outros tinham olhos lacrimosos.

- Agora, você sabe. - Mamut sorriu. - As lágrimas nos foram dadas para aliviar a dor. A vida nem sempre é fácil.

- Creb costumava dizer que um totem poderoso nem sempre é de convivência fácil. Ele estava certo. O Leão da Caverna dá proteção firme, mas também faz testes difíceis. Sempre aprendi com eles, e sempre fui grata, mas não é fácil.

- Mas é necessário, acredito. Você foi escolhida para uma finalidade especial.

- Por que, Mamut? - gritou Ayla. - Não quero ser especial. Quero ser apenas uma mulher, encontrar um companheiro, e ter filhos, como qualquer outra.

- Você deve ser o que deve ser, Ayla. É o seu fado, o seu destino. Não teria sido escolhida se não fosse capaz de realizá-lo. Talvez seja uma coisa que só uma mulher pode fazer, mas não fique infeliz, menina. Sua vida não será apenas provas e testes. Haverá muita felicidade também. Talvez não resulte apenas no que deseja, ou no que acha que deveria ser.

- Mamut, o totem de Jondalar é o Leão da Caverna também, agora. Ele foi escolhido e marcado, como eu. - Suas mãos, inconscientemente, se estenderam para as cicatrizes em sua perna, mas estava coberta pelas perneiras. - Achei que ele estava escolhido para mim, porque uma mulher com um totem poderoso precisa ter um homem com um totem poderoso também. Agora, não sei. Acha que ele será meu companheiro?

- A Mãe é quem decide, e não importa o que você fizer, não mudará isso. Mas se ele foi o escolhido, deve haver uma razão.

Ranec soube que Ayla havia saído para cavalgar com Jondalar. Ele também fora pescar com alguns dos outros, mas preocupou-se o dia inteiro com que o homem alto, atraente, pudesse reconquistá-la. Jondalar, com as roupas de Darnev, era uma figura arrebatadora, e o escultor, com sua sensibilidade estética bem desenvolvida, estava bastante consciente da atração inegável do visitante, particularmente para as mulheres. Ficou aliviado ao ver que ainda estavam separados e pareciam tão distantes quanto nunca antes, mas, quando ele pediu a Ayla para dormir com ele, ela replicou que estava cansada. Ele sorriu e lhe disse para descansar, satisfeito por ver que ela estava, ao menos, dormindo sozinha, já que não dormiria com ele.

Ayla não estava tão cansada quanto emocionalmente exausta quando foi para a cama e jazeu acordada durante longo tempo, refletindo. Estava contente porque Ranec não se encontrava na habitação quando ela e Jondalar regressaram, e grata porque ele não se zangara quando ela o recusara - ainda esperava cólera, e castigo por ousar desobedecer. Mas Ranec não era exigente, e sua compreensão quase a fez mudar de idéia.

Ela tentou compreender o que havia acontecido e, mais ainda, seus sentimentos a respeito. Por que Jondalar a havia tomado, se não a queria? E por que fora tão rude com ela? Fora quase como Broud. Depois, por que ela estava tão pronta para Jondalar? Quando Broud a tinha forçado, fora uma provação. Era amor? Sentia prazeres porque o amava? Mas Ranec a fazia sentir prazeres, e ela não o amava. Ou amava?

Talvez amasse, de certa forma, mas não era esse o caso. A impaciência de Jondalar fazia a

experiência parecer-se com a de Broud, mas não era a mesma coisa. Ele foi rude e ansioso, mas não a forçara. Ela sabia a diferença. Broud quisera apenas feri-la, e obrigá-la a ceder. Jondalar a queria, e ela respondeu profundamente, com cada partícula de seu ser, e se sentiu satisfeita e completa. Ele a teria forçado se ela não o quisesse? Não, pensou, não teria.

Estava convencida de que, se fizesse objeção, ele teria parado. Mas ela não objetou, ela o acolheu bem, desejando-o, e ele devia tê-lo sentido.

Ele a desejava, mas a amava? Só porque queria partilhar prazeres com ela não significava que ele ainda a amava. Talvez o amor pudesse tornar os prazeres melhores, mas era possível ter uma coisa sem outra. Ranec lhe mostrou isso. Ranec a amava, ela não tinha dúvidas sobre isso. Ele queria unir-se a ela, queria fixar-se com ela, queria filhos seus. Jondalar jamais lhe pedira para se unir a ele, jamais dissera que queria filhos dela.

No entanto, ele a tinha amado, um dia. Talvez ela sentisse prazeres porque ela o amava, embora ele não a amasse mais. Porém ele a desejava ainda, e a possuíra. Por que fora tão frio depois? Por que a rejeitara de novo? Por que deixara de amá-la? Antes, ela pensava que o conhecia. Agora, não o compreendia, de modo algum. Rolou sobre si mesma e enroscou-se em uma bola apertada, e chorou silenciosamente outra vez, chorou por querer que Jondalar a amasse novamente.

- Estou contente por ter convidado Jondalar para a primeira caçada de mamute - disse Talut a Nezzie quando se retiraram para a Fogueira do Leão. - Ele tem andado tão ocupado fazendo aquela lança toda noite, que acho que quer ir, realmente.

Nezzie olhou para ele, erguendo uma das sobrancelhas e sacudindo a cabeça.

- A caçada de mamutes é a coisa em que menos pensa - disse ela. Depois, enfiou a pele ao redor da cabeça loura adormecida de sua filha mais nova, e sorriu com ternura para o vulto de menina-mulher da filha mais velha, aninhada ao lado da mais nova. - No próximo inverno, teremos que pensar em um local separado para Latie. Ela será uma mulher, mas Rugie sentirá sua falta.

Talut olhou para trás e viu o visitante raspando lascas de sílex enquanto tentava ver Ayla através das fogueiras intermediárias. Quando não conseguiu, olhou para a Fogueira da Raposa. Talut virou a cabeça e viu Ranec deitar-se sozinho, mas também ele olhava para a cama de Ayla. Provavelmente, Nezzie tem razão, pensou Talut.

Jondalar havia ficado acordado até a última pessoa deixar a área de cozinhar, trabalhando em uma comprida lâmina de sílex que ele proveria de cabo resistente, da mesma maneira que Wymez fazia, aprendendo a fabricar uma lança de caçar mamutes dos Mamutoi, fazendo, primeiro, uma cópia exata de uma. À parte de sua mente que estava sempre ciente das nuanças de sua profissão já havia tido idéias para aprimoramentos possíveis ou, ao menos, experimentos interessantes, mas o trabalho era um processo familiar que exigia sua pouca concentração, o que era igualmente bom. Ele não conseguia pensar em nada a não ser Ayla, e usava apenas o seu trabalho como uma forma de evitar companhia e conversa, e para ficar sozinho com os seus pensamentos.

Sentiu grande alívio quando a viu ir para sua cama sozinha, mais cedo; achava que não suportaria vê-la na cama de Ranec. Cuidadosamente, dobrou suas roupas novas, depois se enfiou entre peles de dormir novas, espalhadas sobre seu velho cilindro de viagem. Colocou as mãos atrás da cabeça e fitou o teto familiar demais da área de cozinhar. Havia permanecido acordado muitas noites, examinando-o. Ainda sofria de remorso e vergonha, mas não, naquela noite, da dor ardente da necessidade, e tanto quanto se odiava por isso, lembrava-se do prazer da tarde. Refletiu a respeito, cuidadosamente recordando cada instante, examinando os detalhes em sua mente, saboreando devagar, agora, o que ele não tivera tempo de analisar antes.

Estava mais relaxado do que desde a adoção de Ayla e mergulhou num cochilo parcial, meditando no sonho. Havia ele imaginado que ela estivera tão ansiosa? Com certeza, ela não podia desejá-lo tanto. Será que ela havia realmente correspondido a tal sentimento? Procurando alcançá-lo, como se o desejasse tanto quanto ele a desejava? Sentiu uma tensão na virilha ao pensar nela de novo, em penetrá-la, em sua calidez profunda envolvendo-o completamente. Mas a necessidade era mais simples, mais parecida a um êxito passado e ardente, não a dor vigorosa que magoava e que era uma combinação de desejo reprimido, amor imenso e ciúme forte. Ele pensou em satisfazê-la - adorava lhe dar prazer - e começou a levantar-se para ir procurá-la de novo.

Foi somente quando afastou a coberta e sentou-se, quando começou a agir de acordo com a urgência trazida à tona por suas meditações, seus devaneios íntimos, que as conseqüências da tarde o atingiram. Não podia ir para a cama de Ayla. Nunca. Jamais poderia tocá-la. Ele a havia perdido. Não era mais uma questão de escolha. Ele destruíra qualquer chance que tivera de ela o escolher. Ele a possuirá a força, contra a vontade dela.

Sentando-se em suas peles de dormir, com os pés num capacho e os cotovelos apoiados sobre os joelhos dobrados, segurou a cabeça abaixada e sentiu a agonia da vergonha. Seu corpo estremeceu em náusea silenciosa de nojo. De todas as coisas desprezíveis que ele fizera em sua vida, aquele ato anormal era, de longe, o pior.

Não havia abominação pior, nem sequer o filho de espíritos mistos, ou a mulher que deu à luz um, do que um homem que tomava uma mulher contra a vontade dela. A Grande Mãe Terra censurava-o, proibia-o. Tinha-se apenas que observar os animais de Sua criação para saber quão anormal era. Nenhum macho jamais possuía a fêmea contra sua vontade.

Na época propícia, talvez os veados lutassem um contra o outro para ter o privilégio de satisfazer as corças, mas quando o macho tentava possuir a fêmea, ela precisava apenas de se afastar, se não o quisesse. Ele podia tentar e tentar, mas era necessário que ela o permitisse, tinha que estar disposta. Ele não podia forçá-la. Era a mesma coisa com todos os animais. A loba ou a leoa convidavam o macho que escolhiam. Esfregavam-se nele, passando-lhe o odor tentador diante do focinho, e moviam o rabo para o lado quando ele montava. Porém, a fêmea se encolerizava se qualquer macho tentasse cruzar contra a vontade dela. Ele pagava caro por sua audácia. Um macho podia ser persistente, mas a escolha era sempre da fêmea. Era assim que a Mãe queria que fosse. Somente o homem forçava uma mulher, apenas o homem anormal, abominável.

Aqueles Que Serviam a Mãe tinham dito muitas vezes a Jondalar que ele era favorecido pela Grande Mãe Terra e todas as mulheres sabiam disso. Nenhuma mulher podia rejeitá-lo, nem mesmo a Própria Mãe. Essa era sua dádiva. Mas mesmo Doni lhe daria as costas agora. Ele não pedira a Doni, nem a Ayla, nem a ninguém. Ele a forçara, possuindo-a contra sua vontade.

Entre o povo de Jondalar, qualquer homem que cometesse tal per versão era evitado, ou pior. Durante sua infância, os meninos conversavam entre si sobre serem dolorosamente castrados. Embora ele jamais conhecesse alguém que o tivesse sido, acreditava que era um castigo adequado. Agora, era ele que devia ser punido. No que estivera pensando? Como pudera fazer tal coisa?

E você se preocupava com ela não ser aceita, disse a si mesmo. Temia que fosse rejeitada, e não tinha certeza se poderia suportar isso. Quem seria rejeitado agora? O que pensariam de você, se soubessem? Especialmente depois do que acontecera antes. Nem mesmo Dalanar o aceitaria agora. Ele o expulsaria de sua fogueira, o afastaria, desprezaria todos os laços. Zolena ficaria horrorizada também. Marthona... Odiava pensar como sua mãe se sentiria.

Ayla estivera conversando com Mamut, devia ter contado a ele, com certeza, por isto, ela havia chorado. Inclinou a testa contra os joelhos e cobriu a cabeça com os braços. Ele merecia qualquer coisa que fizessem com ele. Ficou sentado, curvado, durante algum tempo, imaginando os castigos terríveis que lhe imporiam. Chegou até a desejar que fizessem alguma coisa horrível com ele para aliviá-lo do fardo de culpa que lhe pesava agora.

Mas, finalmente, a razão prevaleceu. Ele compreendeu que ninguém lhe havia dito uma palavra sobre o caso durante toda à noite. Mamut até lhe falou do Festival de Primavera, e não abordou o assunto. Então, por que Ayla estivera chorando? Talvez chorasse por causa daquilo, mas nada tivesse dito. Ergueu a cabeça e olhou através das fogueiras escuras na direção de Ayla. Seria possível? De todas as pessoas, ela teria mais direito do que nenhuma de reivindicar uma compensação. Ela já havia tido mais do que uma cota justa de atos anormais, ao ser obrigada por aquele cabeça-chata brutal... Que direito tinha ele de falar mal de qualquer outro homem? Será que ele era melhor, por acaso?

No entanto, ela havia guardado segredo. Não o denunciou, não exigiu sua punição. Ela era boa demais para ele. Ele não a merecia. Era certo que ela e Ranec fizessem a Promessa, pensou. Mesmo que pensar nisso lhe provocasse um nó apertado de dor, ele compreendeu que este era o seu castigo. Doni lhe havia dado o que ele mais desejara. Ela encontrou para ele a única mulher que ele podia amar, mas não foi capaz de aceitá-la. E agora, a perdera. Era sua culpa, aceitaria seu castigo, mas não sem tristeza.

Até onde era capaz de lembrar, Jondalar havia lutado por se controlar. Outros homens mostravam emoção - riam ou se encolerizavam, ou choravam - muito mais facilmente do que ele, mas, acima de tudo, ele resistia às lágrimas. Desde que fora mandado embora e perdera sua juventude terna e crédula, em uma noite de choro pela perda do lar e da família, só havia chorado uma vez, nos braços de Ayla, pela morte de seu irmão. Mas, novamente, naquela noite, ele chorou. Na habitação de barro escura, de pessoas que viviam a um ano de jornada de seu lar, ele chorou lágrimas silenciosas, incessantes, pela perda que sentia mais agudamente, entre todas. A perda da mulher amada.

O longamente esperado Festival de Primavera era tanto uma celebração de ano novo quanto uma festa de ação de graças. Realizado não no inicio, mas no auge da estação, quando os primeiros brotos e botões verdes estavam bem desenvolvidos e podiam ser colhidos, marcava o começo do ciclo anual para os Mamutoi. Com alegria jubilosa e alívio inenarrável, que só podiam ser totalmente apreciados por aqueles que viviam à margem da sobrevivência, davam boas vindas ao verdor da terra que garantia vida para si mesmos e para os animais com quem dividiam a terra.

Nas noites mais escuras e frias do rigoroso inverno glacial, quando o próprio ar parecia congelar-se, a dúvida de que o calor e a vida pudessem voltar um dia podia nascer no coração mais crédulo. Na época em que a primavera parecia mais remota, lembranças e histórias de antigos Festivais de Primavera punham fim a medos arraigados e davam esperança renovada de que o ciclo de estações da Grande Mãe Terra continuaria, realmente. Eles faziam cada Festival de Primavera tão excitante e memorável quanto possível.

Para a grande Festa de Primavera, nada que sobrara do ano anterior seria comido. Os indivíduos e pequenos grupos tinham saído durante dias para pescar, caçar, colocar armadilhas e para colheita. Jondalar fizera bom uso de seu arremessador de lanças e estava satisfeito por contribuir com uma fêmea grávida de bisão, por si só, embora ela estivesse magra e ossuda. Todo produto vegetal comestível que achavam era colhido: amentilhos de salgueiros e vidoeiros; os talos novos e abertos de fetos, assim como os velhos rizomas que podiam ser cozidos, descascados e pulverizados em farinha; a casca suculenta interior de câmbio de pinheiros e vidoeiros, doce com a nova seiva; algumas curberries negras púrpuras, cheias de sementes duras, crescendo ao lado das pequenas flores rosas, no arbusto baixo, sempre carregado; e de áreas abrigadas, onde tinham sido cobertas pela neve, lingonherries de um vermelho vivo, congeladas e degeladas em uma beleza suave, estendiam-se com as folhas escuras, coriáceas, sobre galhos baixos em tufos.

Botões, brotos, bulbos, raízes, folhas, flores de todo tipo; a terra abundava com alimentos frescos, gostosos. Brotos e vagens novas de asclépia eram usados como verduras, enquanto a flor, cheia de um rico néctar, era utilizada como adoçante. As novas folhas verdes do trevo, fedegosa, urtigas, raiz do abeto balsâmico, dente-de-leão e alface eram cozidas ou comidas cruas; hastes de cardo e, especialmente, raízes de cardo eram procuradas. Bulbos de lírio eram favoritos, e brotos de tifáceas e hastes de junco. Raízes doces, cheirosas de alcaçuz podiam ser comidas cruas ou assadas na brasa. Reuniam algumas plantas para a alimentação, outras principalmente pelo aroma, e muitas para fazer chás. Ayla conhecia as propriedades medicinais da maioria delas, e também juntava algumas para usar como medicamentos.

Em declives rochosos, colhiam-se os novos brotos finos tubulares de cebola silvestre e, em locais secos, nus, pequenas folhas de labaça. Colhia-se unha-de-cavalo de terreno úmido e aberto perto do rio. Seu sabor levemente salgado tornava-a útil para tempero, embora Ayla colhesse algumas para tosse e asma. Verduras com sabor de alho eram colhidas para dar gosto e aroma, como bagas de junípero bulbos de lírio-tigrino picantes, manjericão aromatizante, salva, tomilho, hortelã, tília que crescia como um arbusto prostrado, e uma variedade de outras ervas e verduras, Algumas seriam secas e estocadas, outras, usadas para temperar o peixe fresco e os vários tipos de carnes trazidos de volta da festa.

Os peixes eram em abundância e preferidos nesta época do ano, já que a maioria dos animais ainda se encontrava magra como resultado dos rigores do inverno. A carne fresca, porém, inclusive no mínimo um animal novo, simbólico, nascido na primavera - este ano um tenro filhote de bisão -, eram sempre incluídos na festa. Fazer um banquete com apenas os produtos frescos da terra mostrava que a Mãe Terra oferecia Sua generosidade total novamente, e que Ela continuaria a prover a subsistência e a alimentar Seus filhos.

Com a procura e a reunião de alimentos para a festa, a expectativa em relação ao Festival de Primavera crescia havia dias. Até os cavalos a sentiam. Ayla notou que estavam nervosos. Pela manhã, ela os levara para fora, a alguma distância da habitação, a fim de limpá-los e escová-los.

Era uma atividade que relaxava Whinney e Racer, e que a relaxava também, e lhe dava uma desculpa para sair sozinha a fim de refletir. Ela sabia que devia dar uma resposta a Ranec naquele exato dia. O dia seguinte seria o Festival de Primavera.

Lobo estava enroscado perto, observando-a. Ele cheirou o ar, levantou a cabeça e olhou, e sacudiu o rabo contra o terreno, assinalando a aproximação de alguém que era amigo. Ayla virou e sentiu o rosto corar e o coração bater com força.

- Eu esperava encontrar você sozinha, Ayla. Gostaria de lhe falar, se não se importa - disse Jondalar, em uma voz estranhamente contida.

- Não, não me importo.

Ele estava barbeado, o cabelo claro puxado para trás, caprichosamente, e amarrado na nuca, e usava um dos trajes que Tulie lhe dera. Parecia tão bem a Ayla - atraente, era a palavra que Deegie usava - que quase ficou sem ar, e sua voz estava presa na garganta. Porém, foi mais do que sua aparência que comoveu Ayla. Mesmo quando ele usava as roupas gastas de Talut, parecia bonito para ela. Sua presença enchia o espaço à sua volta e a emocionava, como se houvesse uma brasa cintilante que a aquecesse, mesmo mantendo-se distante. Era uma calidez que não era calor, porém maior, mais penetrante, e ela queria tocar essa calidez, ansiava para senti-la ao seu redor, e se inclinou para ele. Mas alguma coisa nos olhos de Jondalar a deteve, alguma coisa inegavelmente triste que ela nunca vira ali antes. Ficou de pé, silenciosa, esperando que ele falasse.

Ele fechou os olhos por um momento, reunindo seus pensamentos, inseguro sobre como começar.

- Recorda quando estávamos juntos no vale, antes de você ser capaz de falar bem, e queria me dizer uma coisa importante, certa vez, mas não sabia que palavras usar? Você começou a falar comigo por sinais - lembro que achei seus movimentos bonitos, quase como uma dança.

Ela se lembrava muito bem. Estivera tentando lhe dizer o que gostaria de poder dizer-lhe agora, como se sentia em relação a ele, como ele a enchia com um sentimento para o qual ainda não tinha palavras. Mesmo dizer que o amava não era suficiente.

- Não estou certo de que existam palavras para dizer do que preciso. “Sinto muito” é apenas um som que sai de minha boca, mas não sei de que outra maneira dizê-lo. Sinto muito, Ayla, mais do que posso dizer. Eu não tinha o direito de forçá-la, mas não posso desfazer o que já foi feito. Só posso dizer que nunca mais acontecerá. Partirei breve, assim que Talut achar que é seguro viajar. Este é o seu lar. As pessoas daqui gostam de você... Amam-na. Você é Ayla dos Mamutoi. Eu sou Jondalar dos Zelandonii. E hora de voltar para casa.

Ayla não podia falar. Abaixou a cabeça, tentando esconder as lágrimas que eram incapazes de conter, depois deu meia-volta e começou a escovar Whinney, sem conseguir olhar para Jondalar. Ele ia embora. Ia para casa e não lhe pedira para acompanhá-lo. Não a queria. Não a amava. Ela engoliu os soluços enquanto passava a escova no pêlo do cavalo. Desde que vivera com o Clã, ela jamais lutara tanto para conter as lágrimas, ou para escondê-las.

Jondalar ficou ali de pé, fitando as costas de Ayla. Ela não se importa, pensou. Eu devia ter partido há muito tempo atrás. Ela lhe dera as costas; ele queria dar meia-volta e deixá-la com seus cavalos, mas a linguagem corporal silenciosa dos movimentos dela enviou uma mensagem que ele não conseguiu converter em palavras. Era somente uma sensação, uma impressão de que alguma coisa não estava certa, mas que o fazia relutar em afastar-se.

- Ayla...?

- Sim - disse ela, mantendo-se de costas e lutando para impedir que sua voz se partisse.

- Há... Alguma coisa que eu possa fazer antes de partir?

Ela não respondeu imediatamente. Queria dizer alguma coisa que o fizesse mudar de idéia, e tentou, freneticamente, pensar em uma maneira de o aproximar mais de si, de mantê-lo interessado.

Os cavalos. Ele gostava de Racer, gostava de montá-lo.

- Sim, há falou afinal, esforçando-se para a voz soar normal.

Ele voltara para ir embora quando ela não respondeu, mas virou-se rapidamente.

- Você poderia ajudar-me a treinar Racer... Enquanto estiver aqui. Não tenho tanto tempo quanto deveria, para levá-lo a passear - ela se permitiu dar meia-volta e encará-lo, outra vez.

Será que ele imaginava que ela parecia cálida, que tremia?

- Não sei quanto tempo ficarei - disse ele -, mas farei o que puder. - Começou a dizer mais alguma coisa, queria lhe dizer que a amava, e que ia partir porque ela merecia mais, merecia alguém que a amasse sem reservas, alguém como Ranec. Abaixou os olhos enquanto buscava as palavras certas.

Ayla teve medo de não conseguir conter as lágrimas por muito mais tempo. Virou-se para a égua e começou a escová-la de novo; depois largou a escova e montou, uma perna de cada lado, e começou a cavalgar em uma só ação rápida. Jondalar ergueu a cabeça e recuou alguns passos, surpreso, e observou Ayla e a égua galopando encosta acima, com Racer e o lobinho acompanhando-as. Ele permaneceu ali por longo tempo depois que eles desapareceram. Em seguida, caminhou lentamente de volta à habitação comunal.

A expectativa e tensão eram tão intensas à véspera do Festival de Primavera que ninguém conseguiu dormir à noite. Tanto crianças quanto adultas ficaram acordados até tarde. Latie estava em estado de grande excitação, sentindo-se impaciente em um instante, e nervosa noutro, sobre a curta cerimônia de puberdade, que anunciaria que ela estava pronta para começar os preparativos para a Cerimônia de Feminilidade que aconteceria na Reunião de Verão.

Apesar de ter atingido a maturidade física, sua feminilidade não estaria completa até a cerimônia que culminaria na Primeira Noite de Prazeres, quando um homem a abriria de forma que pudesse receber os espíritos fertilizadores reunidos pela Mãe. Somente quando fosse capaz de ser mãe, seria considerada mulher sob todos os aspectos e, portanto, disponível para estabelecer uma fogueira e unir-se a um homem para formar um vínculo. Até lá, ela viveria na condição intermediária de não-mais-criança, porém, ainda-não-mulher, quando aprenderia sobre a feminilidade, maternidade, e os homens, com mulheres mais velhas e Aqueles Que Serviam a Mãe.

Os homens, exceto Mamut, tinham sido expulsos da Fogueira do Mamute. Todas as mulheres tinham-se ali reunido enquanto Latie era instruída para a cerimônia da noite seguinte, para oferecerem apoio moral, conselho e sugestões úteis à mulher inexperiente. Embora estivesse ali como mulher mais velha, Ayla aprendia tanto quanto a jovem.

- Você não terá muito que fazer amanhã à noite, Latie - explicava Mamut. - Mais tarde, terá outras coisas a aprender, mas isto é apenas para comunicar. Talut fará a declaração, depois eu lhe darei a muta. Guarde-a em um local seguro até você estar pronta para estabelecer sua própria fogueira.

Latie, sentada diante do velho, concordou com um gesto de cabeça, sentindo-se tímida, mas gostando bastante de toda a atenção que recebia.

- Entenda, depois de amanhã, não deve nunca ficar sozinha com um homem, ou falar com um homem, sozinha até ser totalmente mulher - disse Mamut.

- Nem com Danug ou Druwez? - perguntou Latie.

- Não, nem com eles - disse o velho feiticeiro, explicando que durante esta época de transição, quando ela não tinha a proteção dos espíritos guardiãs da infância e tampouco a força plena da feminilidade, era considerada muito vulnerável a influências malignas. Ela teria que ficar sob a vigilância de uma mulher o tempo todo, e não devia ficar sozinha sequer com o irmão ou o primo.

- E Brinan? Ou Rydag? - perguntou a jovem.

- Eles ainda são crianças - disse Mamut. - As crianças são sempre seguras. Têm espíritos protetores pairando a sua volta, o tempo todo. É por isto que você deve ser protegida agora. Seus espíritos guardiãs a estão deixando, abrindo caminho para a força vital, para que a força da Mãe entre.

- Mas Talut ou Wymez, não me fariam mal. Por que não posso falar com eles a sós.

- Os espíritos machos são atraídos para a força vital, exatamente como você descobrirá que os homens são atraídos para você, agora. Alguns espíritos masculinos ficam enciumados do poder da Mãe. Talvez tentem tirá-la de você nesta época, quando está vulnerável. Não podem usar essa força para criar vida, mas é uma força poderosa. Sem precaução adequada, um espírito masculino poderá entrar e, mesmo se não roubar sua força vital, talvez a prejudique ou subjugue. Então, você poderá nunca ter filhos, ou seus desejos poderão tornar-se os de um homem, e você quererá partilhar prazeres com mulheres.

Os olhos de Latie se arregalaram. Ela ignorava que fosse tão perigoso.

- Tomarei cuidado, não deixarei qualquer espírito macho se aproximar demais, porém... Mamut...

- O que é, Latie?

- E você, Mamut? Você é homem.

Várias mulheres riram baixinho, e Latie corou. Talvez fosse uma pergunta idiota.

- Eu teria feito a mesma pergunta - comentou Ayla.

Latie lançou-lhe um olhar de gratidão.

- É uma boa pergunta - disse Mamut. - Sou homem, mas também A Sirvo. Seria provavelmente seguro falar comigo a qualquer momento e, naturalmente, para certos rituais quando represento Um Que Serve, você terá que falar comigo a sós, Latie. Mas acho que será boa idéia não vir visitar-me ou falar comigo a menos que esteja acompanhada por outra mulher.

Latie sacudiu a cabeça, concordando, franzindo a testa seriamente, começando a sentir a responsabilidade de um novo relacionamento com pessoas que ela havia conhecido e amado a vida toda.

- O que acontece quando um espírito masculino rouba a força vital? - perguntou Ayla, muito curiosa sobre estas crenças interessantes dos Mamutoi que eram um pouco semelhantes, no entanto, muito diferentes das tradições do Clã.

- Neste caso, você tem um feiticeiro poderoso - disse Tulie.

- Ou um maldoso - falou Crozie.

- E verdade, Mamut? - indagou Ayla. Latie parecia surpresa e intrigada, e até Deegie, Tronie e Fralie se voltaram para Mamut com interesse.

O velho pôs seus pensamentos em ordem, tentando escolher a resposta com cuidado.

- Somos apenas Seus filhos - começou. - É difícil para nós saber por que Mut, a Grande Mãe, escolhe alguns de nós para propósitos especiais. Sabemos apenas que Ela tem Suas razões. Talvez existam momentos em que Ela tenha necessidade de alguém de força excepcional. Algumas pessoas podem nascer com certos dons. Outras podem ser escolhidas mais tarde, mas ninguém é escolhido sem o Seu conhecimento.

Vários olhos se desviaram para Ayla, tentando não ser conspícuos de mais.

- Ela é a Mãe de todos - continuou ele. - Ninguém A conhece inteiramente, em todas as Suas faces. É por isto que o rosto da Mãe é desconhecido, nas figuras que A representam. - Mamut se virou para a mulher mais velha do acampamento.

- O que é o mal, Crozie?

- O mal é o dano malicioso. O mal é a morte - replicou a velha com convicção.

- A Mãe é tudo, Crozie. O rosto de Mut é o nascimento da primavera, a generosidade do verão, mas também é a pequena morte do inverno. A força da vida é Dela, mas a outra face da vida é a morte O que é a morte a não ser à volta para Ela a fim de renascer? A morte é um mal? Sem a morte, não pode haver vida. O mal é um dano malicioso? Talvez, mas mesmo aqueles que parecem praticar o mal, fazem-no por Suas razões. O mal é uma força que Ela controla, um meio de realizar Seus fins; é apenas uma face desconhecida da Mãe.

- Mas o que acontece quando uma força masculina rouba a força vital de uma mulher? - Perguntou Latie. Ela não queria filosofias, queria saber.

Mamut olhou para ela especulativamente. Era quase uma mulher, tinha o direito de saber.

- Ela morrerá, Latie.

A garota estremeceu.

- Mesmo se for roubada. Alguma força pode permanecer, suficiente para ela começar uma vida nova. A força vital que reside em uma mulher é tão poderosa que talvez ela não saiba que foi roubada, até ela dar à luz. Quando uma mulher morre ao ter um filho, é sempre porque um espírito macho roubou sua força vital antes de ela ser aberta. E por isto que não é saudável esperar demais pela cerimônia da Feminilidade. Se a Mãe tivesse aprontado você no último outono, eu teria falado com Nezzie para providenciar a reunião de alguns acampamentos a fim de ter uma cerimônia, de modo que você não atravessaria o inverno, desprotegida, embora isso significasse que você perderia a excitação da celebração na Reunião de Verão.

- Estou contente porque não terei que perdê-la, mas... - Latie fez uma pausa, ainda mais preocupada com a força vital do que com a celebração - uma mulher sempre morre?

- Não, às vezes ela luta para conservar sua força vital, e se for poderosa, talvez não apenas a conserve, mas também a força masculina, ou parte dela. Então, ela tem o poder de ambas em um corpo.

- Essas são aquelas que se tornam feiticeiras poderosas. - disse Tulie.

Mamut balançou a cabeça, concordando.

- Isso é verdade. Muitas vezes, a fim de aprender como usar a força masculina e feminina, muitas pessoas se voltam para a Fogueira do Mamute em busca de orientação, e inúmeras são chamadas para Servi-La. Em geral, são excelentes curandeiras ou viajantes no mundo da Mãe.

- E o espírito masculino que rouba a força vital? - perguntou Fralie, colocando seu bebê novo ao ombro e dando-lhe tapinhas suaves. Ela sabia que era uma pergunta que sua mãe queria fazer.

- Essa é que é má - falou Crozie.

- Não - disse Mamut, balançando a cabeça. - Não é verdade. A força masculina é apenas atraída por uma força vital feminina. Nada pode fazer e, em geral, os homens não sabem que sua força masculina roubou uma força vital feminina, até descobrirem que não se sentem atraídos por mulheres, mas preferem a companhia dos homens. Os rapazes são vulneráveis, então. Não querem ser diferentes, não querem que ninguém saiba que seu espírito masculino talvez tenha prejudicado alguma mulher. Muitas vezes, sentem enorme vergonha e em vez de virem à Fogueira do Mamute, tentam esconder o fato.

- Mas existem alguns maus, entre eles, com grande poder - disse Crozie. - Poder para destruir um acampamento inteiro.

- A força masculina e feminina em um corpo é muito forte. Sem orientação, pode se tornar pervertida e maliciosa, e talvez queira causar doença a infortúnio, e até morte. Mesmo sem esse poder, uma pessoa que deseja causar infortúnio a uma outra pode fazê-lo acontecer. Assim, os resultados são quase inevitáveis, mas, com orientação adequada, um homem com ambas as forças pode-se tornar um feiticeiro tão poderoso quanto uma mulher com as duas forças e, muitas vezes, toma o cuidado para usar seu poder apenas para o bem.

- E se uma pessoa assim não quiser ser feiticeiro? - perguntou Ayla.

- Talvez ela tenha nascido com seus “dons”, mas ainda sinta que foi empurrada para uma coisa que não tinha certeza de querer.

- Não precisam ser - respondeu Mamut. - Mas é mais fácil para eles encontrar companheirismo, outros como si mesmos entre Aqueles Que Servem a Mãe.

- Lembra-se daqueles viajantes Sungaea que encontramos há anos atrás, Mamut? - perguntou Nezzie. - Eu era jovem, então, mas não havia uma confusão em relação a uma de suas fogueiras?

- Sim, eu me lembro, agora que falou a respeito. Acabávamos de voltar da Reunião de Verão, vários acampamentos ainda viajavam juntos quando os encontramos. Ninguém tinha certeza sobre o que esperar, houvera algum ataque, mas afinal tivemos uma fogueira amistosa com eles. Algumas mulheres Mamutoi ficaram preocupadas porque um Sungaea queria juntar-se a elas na “casa da mãe” deles. Foi difícil explicar para ser entendido, que a fogueira que pensávamos consistir de uma mulher e seus dois companheiros era, realmente, formada por um homem e seus dois companheiros, exceto que um deles era uma mulher e o outro era um homem. O Sungaea se referia a ele como “ela”. Tinha barba, porém usava roupas femininas e embora não tivesse seios, era “mãe” para uma das crianças. Certamente, agia como a mãe da criança. Não estou certo se a criança lhe fora dada pela mulher daquela fogueira, ou por outra, mas disseram-me que ele experimentara todos os sintomas de gravidez, e a dor do parto.

- Ele devia querer muito, ser uma mulher - comentou Nezzie. - Talvez não tenha roubado a força vital de uma mulher, talvez tenha nascido no corpo errado. Isso também pode acontecer.

- Mas, ele tinha dores de estômago em todo período da lua? - perguntou Deegie. - Este é o teste de uma mulher. - Todos riram.

- Você tem dores de estômago no período da lua? Posso lhe dar alguma coisa para ajudar, se quiser - disse Ayla.

- Talvez eu peça, da próxima vez.

- Quando tiver um filho, não será tão ruim, Deegie - falou Tronie.

- E quando a mulher está grávida não precisa se preocupar com panos absorventes, e sobre sua colocação adequada - disse Fralie. - Mas a gente fica ansiosa para ter os filhos - ajuntou, sorrindo para o rosto adormecido de sua filha pequena, mas saudável, e limpando uma gota de leite do canto de sua boca. Ergueu os olhos a Ayla, curiosa, de repente. - O que você usou quando era... Mais jovem?

- Tiras macias de couro. Funcionam bem, especialmente se você precisa viajar, mas às vezes eu as dobrava ou acolchoava com lã de carneiro selvagem ou pele ou até penugem de ave. Às vezes, felpa macia de plantas, amassada. Jamais com esterco de mamute, antes, mas também funciona.

Mamut tinha a capacidade de apagar sua presença e desaparecer ao fundo quando achava que devia, de forma que as mulheres o esqueciam e falavam livremente, de uma maneira que jamais fariam se outro homem estivesse presente. Ayla tinha consciência dele, todavia, e observava-o, silenciosamente observando-as. Afinal, quando a conversa diminuiu, ele se dirigiu novamente a Latie.

- Dentro de pouco tempo, você quererá encontrar um lugar para sua comunhão com Mut. Preste atenção aos seus sonhos. Eles a ajudarão a encontrar o local adequado. Antes de visitar seu sacrário pessoal, terá que jejuar e purificar-se, reconhecer sempre as quatro direções e o outro mundo, e o céu, e fazer ofertas e sacrifícios a Ela, principalmente se quiser Sua ajuda, ou uma bênção Dela. Ë muito importante, quando chegar o momento, que queira ter um filho, Latie, ou quando souber que terá um. Então, deve ir ao seu santuário pessoal e queimar um sacrifício para Ela, uma dádiva que subirá até Ela na fumaça.

- Como saberei o que lhe dar? - perguntou Latie.

- Pode ser algo que encontre ou uma coisa que faça. Você saberá o que é certo. Saberá sempre.

- Quando quiser um homem especial, poderá pedir a Ela também - disse Deegie, com um sorriso conspiratório. - Não lhe posso dizer quantas vezes pedi por Branag.

Ayla lançou um olhar a Deegie, e resolveu descobrir mais sobre sacrários pessoais.

- Há tanto o que aprender! - exclamou Latie.

- Sua mãe pode ajudá-la, e Tulie também - falou Mamut.

- Nezzie me pediu e concordei em ser a Mulher Guardiã este ano, Latie - mencionou Tulie.

- Oh, Tulie. Estou tão contente... - disse Latie. - Então, não me sentirei tão sozinha.

- Bem - disse a chefe, sorrindo da acolhida ansiosa da menina -, não é todo ano que o Acampamento do Leão tem uma nova mulher.

Latie franziu a testa, concentrada, depois perguntou com voz suave.

- Tulie, como é? Quero dizer, na tenda. Essa noite.

Tulie olhou para Nezzie e sorriu:

- Está um pouco preocupada com isso

- Sim, um pouco.

- Não se preocupe. Tudo lhe será explicado, você saberá o que esperar.

- É algo parecido com a forma como Druwez e eu brincávamos em crianças? Ele saltava sobre mim tão duramente... Acho que ele tentava ser Talut.

- Não realmente, Latie. Aquilo eram brincadeiras de crianças, vocês apenas brincavam, tentavam serem adultos. Todos os dois eram jovens então, muito jovens.

- É verdade, éramos muito jovens - disse Latie, sentindo-se muito mais velha agora. - São brincadeiras de criança pequena. Deixamos de brincar daquele jeito há muito tempo. Na verdade, não brincamos de mais nada. Ultimamente, nem Danug nem Druwez falam muito comigo.

- Vão querer falar com você - disse Tulie. - Estou certa disso, mas lembre, não deve falar com eles agora, não muito, e jamais fique sozinha na companhia deles.

Ayla estendeu a mão para a grande bolsa de água que pendia de uma tira de couro, em um cabide preso a uma das estacas de sustentação. Era feita, com o estômago de um veado enorme, um megácero, que havia sido curado para manter sua qualidade natural de impermeabilidade. Estava cheia até a abertura inferior, que estava dobrada e fechada. Um pedaço pequeno de osso da pata dianteira, com um orifício natural no meio, havia sido entalhado em toda a volta perto de uma extremidade. Para formar um bico, a pele da abertura do estômago do veado estava amarrada ao osso por meio de uma corda enrolada, apertadamente, ao seu redor, no encaixe.

Ayla tirou a rolha - uma fina tira de couro que fora passada pela abertura e em que foram dados vários nós em um local, serviu água na cesta impermeável que usava para fazer seu chá da manhã especial, e empurrou o nó de volta ao bico para fechá-lo. A pedra de cozinhar rubra estalou quando ela a deixou cair na água. Mexeu-a algumas vezes, para retirar da pedra o máximo de calor possível, e devolveu-a ao fogo, usando duas varetas lisas. Com as varetas úmidas, pegou outra pedra quente e deixou-a cair n’água. Enquanto a água fervia, colocou nela uma quantidade medida de uma mistura de folhas secas, raízes e, principalmente, talos como de videira, de fibra dourada, e deixou a água impregnar-se.

Havia sido especialmente cuidadosa em lembrar-se de tomar o remédio secreto de Iza. Esperava que a magia poderosa funcionasse por ela como havia feito por Iza durante tantos anos. Não queria um bebê agora. Estava insegura demais.

Depois de se vestir, derramou a tisana em sua xícara pessoal, em seguida sentou-se a uma esteira perto do fogo e provou a bebida bastante amarga, de sabor pronunciado. Ela se acostumara ao sabor de manhã. Era sua hora de despertar e fazia parte de sua rotina matinal. Ao tomar um gole, refletiu sobre as atividades que ocorreriam naquele dia. Aquele era o dia auspicioso que todos tinham esperado, ansiosos, o dia do Festival de Primavera.

O evento mais feliz, para ela, seria a cerimônia de dar nome ao bebê de Fralie. A menininha havia crescido e desenvolvido, e não precisava mais ficar sempre perto do seio materno. Estava suficientemente forte para chorar, agora, e podia dormir sozinha durante o dia, embora Fralie preferisse conservá-la perto e, muitas vezes, usasse a cesta para carregar a criança. A Fogueira da Garça estava muito mais feliz naqueles últimos dias, não somente porque partilhavam a alegria do bebê, mas porque Frebec e Crozie aprendiam que podiam conviver sem discutir a todo instante. Não que ainda não existissem problemas, mas eles os enfrentavam melhor, e a própria Fralie desempenhava um papel mais ativo na tentativa de mediação.

Ayla pensava na criança de Fralie quando ergueu a cabeça e viu Ranec observando-a. Aquele também era o dia que ele queria anunciar sua Promessa, e com um salto, ela se lembrou de que Jondalar lhe dissera que iria partir. De repente, encontrou-se recordando a noite terrível em que Iza morrera.

- Você não é Clã, Ayla - dissera-lhe Iza. - Você nasceu dos Outros, pertence a eles. Vá para o norte, Ayla. Encontre o seu povo. Encontre seu companheiro.

Encontre seu companheiro... Pensou ela. Certa vez imaginara que Jondalar seria o seu companheiro, mas ele ia partir, ia para casa sem ela. Jondalar não a queria...

Mas Ranec queria. Ela não estava mais tão jovem; se ia ter um filho, deveria fazê-lo logo. Tomou um gole do medicamento de Iza, e fez girar o resto do líquido e resíduo, na xícara. Se ela deixasse de tomar o remédio de Iza, e partilhasse prazeres com Ranec, isso iniciaria um bebê dentro dela? Podia experimentar e descobrir. Talvez devesse unir-se a Ranec. Viver com ele, ter os filhos de sua fogueira. Seriam bonitos bebês escuros com olhos negros e cabelo bem crespo? Ou seriam claros como ela? Ou ambas as coisas?

Se ela ficasse ali, e se unisse a Ranec, não estaria tão longe do Clã. Poderia ir buscar Durc e trazê-lo. Ranec era bom para Rydag, talvez não se importasse de ter um filho misto em sua fogueira. Talvez ela pudesse adotar Durc formalmente, torná-lo Mamutoi.

O pensamento de que poderia ser possível ir buscar seu filho a encheu de ansiedade. Talvez fosse bom que Jondalar partisse sem ela. Se a levasse, ela jamais veria o filho. Mas, se ele fosse embora sem ela, ela jamais veria Jondalar de novo.

A escolha fora feita para ela. Ficaria, se uniria a Ranec. Ela tentou pensar em todos os elementos positivos, convencer-se de que seria melhor permanecer. Ranec era um homem bom, e a amava e a queria. E ela gostava dele. Não seria tão terrível viver com ele, ela poderia ter filhos. Seria possível encontrar Dure e trazê-lo para viver com eles. Um bom homem, seu próprio povo e, ela teria seu filho novamente.

Seria mais do que sonhara, de uma só vez, O que mais poderia querer? Sim, o que mais, se Jondalar ia embora...

Direi a ele, pensou. Direi a Ranec que pode anunciar nossa Promessa hoje. Mas, ao levantar-se e caminhar para a Fogueira da Raposa, sua mente estava ocupada apenas de um pensamento. Jondalar ia embora sem ela. Ela nunca mais o veria. Mesmo enquanto a compreensão a atingia, sentiu o peso esmagador, e fechou os olhos para conter a tristeza.

- Talut! Nezzie! - Ranec saiu correndo da habitação à procura do chefe e de sua mãe adotiva. Quando os viu, estava tão excitado que mal podia falar.

- Ela concordou! Ayla concordou! Vamos fazer a Promessa! Ayla e eu!

Ele nem sequer viu Jondalar, e se o houvesse visto, não se teria importado. Ranec não podia pensar em nada exceto que a mulher que ele amava, a mulher que queria mais que a tudo no mundo havia concordado em ser dele. Mas Nezzie viu Jondalar, viu-o empalidecer e agarrar a presa curva de mamute da arcada em busca de apoio, e viu o sofrimento em seu rosto. Por fim, ele abandonou o local descendo em direção ao rio, e uma preocupação fugaz cruzou os pensamentos dela, O rio estava cheio e caudaloso. Seria fácil ser arrastado pelas águas ao tentar nadar.

- Mãe, não sei o que usar hoje. Não consigo me decidir - gemeu Latie, nervosa sobre a primeira cerimônia que reconheceria seu status elevado.

- Vamos ver - disse Nezzie lançando um último olhar ao rio. Jondalar não estava à vista.

Jondalar passou a manhã inteira caminhando ao longo do rio, sua mente em um turbilhão, ouvindo uma e outra vez as palavras alegres de Ranec. Ayla concordara. Anunciariam sua Promessa na cerimônia daquela noite. Ele repetia a si mesmo que havia esperado aquilo o tempo todo, mas, diante do fato, compreendeu que não era verdade. Foi um choque muito maior do que imaginara que seria. Como Thonolan, depois de perder Jetamio, ele desejava morrer.

Nezzie tinha alguma base para seus temores. Jondalar não descera em direção ao rio com qualquer propósito definido. Tomou aquela direção casualmente mas, assim que alcançou o rio turbulento, achou-o estranhamente atraente. Parecia oferecer paz, alívio para o sofrimento, à tristeza e a confusão, mas apenas o fitou. Alguma coisa igualmente irresistível o deteve. Ao contrário de Jetamio, Ayla não estava morta e, porque vivia, podia haver uma pequena chama de esperança. Porém, mais que isso, ele temia pela segurança da jovem.

Encontrou um local isolado protegido por arbustos e pequenas árvores dando para o rio e tentou preparar-se para a provação das festividades da noite, que incluiriam a Cerimônia da Promessa. Disse a si mesmo que não era como se ela estivesse, na verdade, se unindo a Ranec naquela noite. Ela estava apenas prometendo criar uma fogueira com ele, um dia, no futuro, e ele também fizera uma promessa. Jondalar havia dito a Mamut que ficaria até depois do Festival de Primavera, porém, não foi à promessa que o deteve. Embora não tivesse idéia do que era, ou do que poderia fazer, não era capaz de partir sabendo que Ayla enfrentava algum perigo desconhecido, mesmo se significasse ter que assistir à sua Promessa a Ranec. Se Mamut, conhecedor dos métodos dos espíritos, pressentia perigo para ela, Jondalar só podia esperar o pior.

Ao redor de meio-dia, Ayla disse a Mamut que ia começar a preparar-se para a cerimônia da raiz. Elas tinham recapitulado os detalhes, várias vezes até ela se sentir razoavelmente segura de que não havia esquecido nada importante. Ela havia reunido roupas limpas, uma pele macia de veado, absorvente, e várias outras coisas, mas, em vez de sair pelo anexo, dirigiu-se à área de cozinhar a caminho da saída. Ela queria ver Jondalar, e ao mesmo tempo esperava não vê-lo, e ficou desapontada e aliviada ao ver somente Wymez na área de fabricação de ferramentas. Ele disse que não via Jondalar desde cedo, aquela manhã, mas estava feliz em lhe dar o pequeno nódulo de sílex que ela queria.

Quando ela chegou ao rio, subiu a corrente por certa distância, procurando um local que parecesse adequado. Parou onde um pequeno riacho se reunia ao rio maior. O córrego havia rodeado um afloramento rochoso que formava uma margem elevada do lado oposto, bloqueando o vento. Uma proteção de árvores e arbustos, com brotos novos tornava-o um local isolado, cercado, e também proporcionava madeira seca da derrubada de árvores do ano anterior.

Jondalar observava o rio de seu ponto de vista, isolado, mas estava tão voltado a si mesmo que não via, realmente, a água revolta, enlameada, rápida. Nem sequer tinha consciência das sombras instáveis enquanto o sol se elevava mais no céu, e ficou sobressaltado quando ouviu que alguém se aproximava. Não estava disposto a conversar, ou a tentar ser agradável e amistoso naquele dia de celebração para os Mamutoi e esgueirou-se rapidamente para trás de alguns arbustos a fim de esperar, sem ser visto, até a pessoa passar. Quando viu Ayla acercar-se, e depois, obviamente, decidindo ficar, não soube o que fazer. Pensou em afastar-se sorrateiramente, mas Ayla era uma excelente caçadora. Ela o ouviria, ele estava certo. Depois, pensou em sair apenas dos arbustos, dando uma desculpa qualquer sobre suas necessidades, e seguindo o seu caminho, mas não fez uma coisa, nem outra.

Ficou escondido e observou, esforçando-se para permanecer tão discreto quanto possível. Não podia fazer nada, nem sequer desviar o olhar, embora compreendesse logo que ela se preparava para o ritual pensando estar sozinha. A princípio, ele ficou apenas esmagado pela presença de Ayla, depois fascinado. Era como se fosse obrigado a observar.

Ayla fez uma fogueira depressa com uma pedra-de-fogo e um pedaço de sílex e colocou nela pedras de cozinhar para aquecê-las. Queria fazer seu ritual de purificação o mais igual possível à maneira como era realizado no Clã, mas algumas mudanças eram inevitáveis. Ela havia considerado em fazer o fogo da maneira do Clã, girando um pau seco entre as palmas das mãos, contra um pedaço liso de madeira, até criar uma brasa ardente. Mas, no Clã, as mulheres não deviam se encarregar do fogo, ou fazer uma fogueira para fins de ritual, de forma alguma, e ela resolveu que, se ia romper com a tradição o suficiente para fazer sua fogueira, poderia também usar sua pedra-de-fogo.

As mulheres tinham permissão, contudo, para fazer facas e outras ferramentas de pedra, contanto que as ferramentas não fossem usadas como armas de caça ou para fabricá-las. Ela decidira que precisava de um novo saquinho de amuleto. A bolsinha Mamutoi decorada que ela usava agora não seria apropriada para um ritual do Clã. Para fazer um saquinho de amuleto adequado do Clã, achou que precisava de uma faca do Clã, e por isto havia pedido a Wymez um nódulo inteiro de sílex. Ela procurou perto da água e encontrou uma pedra de rio redonda, do tamanho de um punho, para usar como martelo. Com ele, tirou a casca exterior branco-acinzentada do pequeno nódulo de sílex, começando o processo de moldá-lo. Ela não fazia suas ferramentas havia algum tempo, mas não esquecera a técnica e logo se envolveu na tarefa.

Quando terminou, a pedra cinza-escura lustrosa tinha a forma de um tosco cilindro oval com uma parte superior achatada. Ela o examinou, retirou alguma lasca, depois mirou com cuidado e arrancou uma lasca da borda da tampa achatada, na extremidade estreita do cilindro oval, para fazer uma chapa notável. Virando a pedra para posicioná-la exatamente no ângulo certo, golpeou o local que havia talhado. Uma lasca bastante grossa se soltou, tendo a mesma forma que o topo oval formado antes, e um gume afiado como navalha.

Embora usando apenas o martelo, e fazendo o trabalho com a facilidade e rapidez da experiência, ela havia fabricado uma faca perfeitamente útil, muito afiada, que exigira controle cuidadoso e precioso, mas ela tencionava conservá-la. Era uma faca destinada a ser usada sem cabo e, com todas as boas ferramentas cortantes que tinha agora, a maioria com cabo, não tinha necessidade de uma faca do Clã, exceto para aquele uso especial. Sem parar para cegar o gume extremamente aguçado, a fim de facilitar e tornar mais seguro o manuseio, Ayla cortou uma comprida tira da pele de veado que trouxera consigo e retalhou uma ponta, de onde tirou um pequeno círculo. Então, pegou novamente o martelo. Depois de tirar dois pedaços de sílex, a faca era agora um furador com ponta aguçada. Ela o usou para fazer orifícios em toda volta do círculo de couro, e depois passou o cordão de couro por eles.

Removeu a bolsinha decorada do pescoço, desfez o nó e virara, os objetos sagrados os símbolos de seu totem na mão. Examinou-os um pouco, depois os apertou contra o seio, antes de colocá-los na nova bolsa mais simples, ao estilo do Clã, e apertar bem o cordão. Ela havia tomado a decisão de ficar com os Mamutoi e se unir a Ranec, mas, de alguma forma, não esperava encontrar um símbolo de seu Leão da Caverna, confirmando que era uma decisão correta.

Com o amuleto terminado, ela se dirigiu ao córrego e colocou água na cesta de cozinhar, e ajuntou as pedras quentes do fogo. Era cedo de mais no ano para encontrar saboeiro, e o campo estava aberto demais para cavalinha, que crescia em locais úmidos e sombrios. Ela precisava encontrar alternativas para os tradicionais agentes de limpeza do Clã.

Depois de colocar as flores secas, de aroma agradável, espumosas de coesianthus na água quente ela acrescentou folhas de samambaia e algumas flores de aquilégia que colhera no caminho, e depois galhos de botões de vidoeiro pelo aroma de gualtéria e pôs o recipiente de lado. Tivera que pensar muito e arduamente para resolver o que usar, a fim de substituir o inseticida de pulga e piolho feito com o ácido eqüisseto que teria extraído com uma infusão do feto. Inadvertidamente Nezzie lhe havia dito como fazer.

Ela se despiu depressa, depois pegou dois recipientes apertadamente entrelaçados, cheios de líquido e se dirigiu ao rio. Um recipiente continha a mistura agradavelmente aromática que ela acabava de fazer, o outro, urina velha.

Jondalar havia-lhe pedido para ensinar-lhe às técnicas do Clã para quebrar o sílex, certa vez, antes, e ficara impressionado, mas estava fascinado ao vê-la trabalhar, em sua privacidade imaginada, com tanta habilidade, segurança e tranqüilidade. Ela trabalhava sem martelo de osso ou sovela, mas fabricava as ferramentas que desejava rapidamente, fazendo o trabalho parecer fácil, mas ele se perguntou se poderia fazer o mesmo utilizando um malho. Ele sabia que era necessário grande controle; contudo, ela lhe contara que o fabricante de ferramentas do Clã, que lhe havia ensinado, era muito melhor do que ela. De repente, a avaliação de Jondalar sobre a capacidade de fabricar ferramentas dos cabeças-chatas aumentou.

Ela também fez a bolsinha de couro depressa. O saquinho simples não era de grande utilidade, mas sua fabricação era engenhosa, à sua maneira. Somente quando observou Ayla segurar os objetos da bolsinha e notou a forma como os segurava, foi que percebeu uma aparência melancólica, uma aura de tristeza e sofrimento envolvendo-a. Ela deveria estar cheia de alegria, no entanto parecia infeliz. Ele devia estar imaginando coisas.

A respiração de Jondalar ficou presa na garganta quando ela começou a se despir, e a visão de sua beleza plena, madura, o fez desejá-la com uma necessidade que quase o esmagava. Mas o pensamento de suas ações indescritíveis da última vez que desejara a jovem, o manteve afastado. Ela havia recomeçado a usar tranças durante o inverno, em um estilo semelhante ao de Deegie e, quando soltou o cabelo comprido, ele se lembrou da primeira vez em que a vira nua, no calor do verão no vale, dourada e bonita e molhada após um nado. Disse a si mesmo para não olhar, e teve a oportunidade de esgueirar-se quando ela entrou no rio, mas se sua vida dependesse disso, ele não teria, mesmo assim, sido capaz de se mover.

Ayla começou seu processo de limpeza com a urina velha. O fluido amoniacal era forte e tinha odor ativo, mas dissolvia óleos e gordura de sua pele e cabelo, e matava qualquer pulga ou piolho que tivesse apanhado. Tendia até a clarear seu cabelo. As águas do rio, ainda cheias de neve derretida, estavam muito frias, mas o choque revigorava e a agitação do rio lodoso, arenoso, mesmo na margem mais calma, limpava e carregava a sujeira e óleos, juntamente com o odor forte da amônia.

O corpo de Ayla estava rosado da limpeza e da água fria, e ela estremeceu ao sair, mas a mistura de aroma agradável ainda estava quente e borbulhando na espuma escorregadia, rica em saponina, quando ela a esfregou em todo o corpo e cabelo. Desta vez ela se dirigiu para uma lagoa perto da foz do riacho, que continha água menos enlameada do que o rio, para se lavar. Quando saiu, enrolou a pele macia de veado ao redor do seu corpo para secar-se, enquanto desembaraçava o cabelo com sua escova resistente e um grampo de marfim. Era bom sentir-se limpa e fresca.

Embora ele ansiasse para reunir-se a ela e desejasse satisfazê-la, sentiu certa alegria em encher os olhos com a visão de Ayla. Era mais do que ver seu corpo exuberante, rico em curvas femininas, no entanto, firme e bem-feito, com os músculos achatados, resistentes que implicavam força. Jondalar gostou de observá-la, vendo seus movimentos naturalmente graciosos, e seu trabalho realizado com a facilidade da experiência e habilidade treinada. Quando fazia um fogo ou a ferramenta que queria, Ayla sabia exatamente como proceder e não perdia tempo. Jondalar sempre admirara sua perícia e técnica, sua inteligência. Era parte da atração de Ayla para ele. Entre todas as outras emoções, ele sentira falta de estar com ela e apenas observá-la preenchia uma necessidade de ficar perto dela.

Ayla estava quase vestida quando o ganido do lobinho a fez erguer a cabeça e sorrir.

- Lobo! O que está fazendo aqui? Fugiu de Rydag? - perguntou, enquanto o filhote saltava sobre ela, satisfeito e excitado por tê-la encontrado. Depois ele começou a farejar por perto enquanto ela ajuntava as coisas.

- Bem, agora que me achou, podemos voltar. Vamos, Lobo. Vamos! O que está procurando nesses arbustos... Jondalar!

Ayla ficou muda diante do assombro que sentiu quando descobriu o que o lobinho estivera procurando, e Jondalar estava embaraçado demais para falar, mas seus olhos ficaram presos, e falaram mais do que as palavras diriam. Mas, eles não acreditavam no que viam. Afinal, Jondalar tentou explicar.

- Eu estava... Bem... Caminhando e... Bem...

Desistiu, nem sequer tentando terminar a tentativa frustrada de uma desculpa. Deu meia-volta e se afastou rapidamente. Ayla o acompanhou de volta ao acampamento, em passo mais lento, subindo a encosta na direção da habitação comunal. O comportamento de Jondalar a confundia. Ignorava quanto tempo ele ali estivera, mas sabia que ele a observara, e perguntou-se por que se escondera dela. Ela não sabia o que pensar, mas, ao entrar na moradia através do anexo, em direção à Fogueira do Mamute, para encontrar Mamut a fim de poder terminar seus preparativos, lembrou-se do modo como Jondalar a havia olhado.

Jondalar não voltou ao acampamento imediatamente. Não estava certo de poder encará-la ou a qualquer pessoa naquele momento. Quando se aproximou da trilha que subia do rio para a habitação, virou-se e caminhou de volta, e logo se encontrou no mesmo local isolado.

Caminhou para os restos da fogueira pequena, ajoelhou-se e sentiu o leve calor com a mão. Semicerrou os olhos, recordando a cena que observara secretamente. Quando abriu os olhos, examinou o centro da pedra que Ayla abandonara, e pegou-a. Depois, viu as lascas e pedaços que ela tirara da pedra, e ajustou alguns em seu antigo lugar, para estudar o método mais detalhadamente. Perto de aparas de couro, viu o furador. Pegou-o e examinou-o. Não era feito no estilo a que estava habituado. Parecia simples demais, quase tosco, mas era uma ferramenta boa, eficiente. E afiada, pensou, quando lhe cortou o dedo.

A ferramenta fabricada por Ayla lembrou-lhe a moça, parecendo representar o enigma da jovem, suas contradições evidentes. Sua candura inocente, envolta em mistério; a simplicidade, impregnada de conhecimento antigo; a ingenuidade sincera, cercada pela profundidade e riqueza de sua experiência. Ele resolveu guardar a ferramenta, para lembrar-se sempre de Ayla, e embrulhou-a nas tiras de couro a fim de levá-la consigo.

O banquete teve lugar no calor da tarde, dentro da área de cozinhar, mas com as cortinas da arcada, mesmo as do novo anexo, puxadas para trás e amarradas, a fim de permitir a entrada de ar fresco e acesso fácil. Muitas das festividades realizavam-se do lado de fora, principalmente jogos e competições - a luta corpo a corpo parecia ser um dos esportes prediletos da primavera -, canto e dança.

Trocavam-se presentes para desejar sorte, felicidade e boa-vontade, em emulação da Grande Mãe Terra, que trazia novamente vida e calor para o solo, a fim de mostrar a apreciação das dádivas da terra que Ela lhes concedia. As dádivas normalmente eram pequenos itens como cintos e bainhas de facas, dentes de animais com orifícios na raiz ou talhadas para que um cordão passasse por eles a fim de ficarem suspensos como pendanis, e fios de contas que podiam ser usados assim, ou costurados em roupas. Naquele ano, a nova agulha era um presente preferido para dar e receber, juntamente às caixas de agulhas, pequenos tubos de marfim ou ossos ocos de aves, para guardá-las. Nezzie havia feito a primeira caixa, que guardava com um quadrado de pele de mamute usado como dedal em sua bolsa de costura decorada. Várias outras pessoas tomaram sua idéia emprestado.

As pedras-de-fogo de propriedade de cada fogueira eram consideradas mágicas e sagradas, e conservadas no nicho juntamente à figura da Mãe, mas Barzec cedeu vários kits de iscas que projetou, que provocaram comentários entusiasmados. Eram adequados para carregar e continham materiais especialmente fáceis para acender com a centelha que começava o fogo - fibras felpudas, esterco seco amassado, lascas de madeira - e tinham um lugar para a pirita e uma espécie de fuzil de pederneira quando se viajava.Com o vento frio da noite, o acampamento levou sua animação para o interior e fechou as pesadas cortinas isolantes. Houve um momento de calma, de trocar as roupas pelos trajes de cerimônia ou de acrescentar as peças finais de decoração, de encher novamente as taças com uma bebida favorita, um borbulhante chá de ervas ou a bebida fermentada de Talut Depois, todos se dirigiram à Fogueira do Mamute para a parte séria do Festival de Primavera.

Ayla e Deegie acenaram para Latie, convidando-a a sentar-se com elas; agora, era quase uma delas, quase uma jovem mulher. Danug e Druwez olharam-na com timidez não-habitual quando ela passou por eles. Ela endireitou os ombros e manteve a cabeça erguida, mas conteve-se e não falar com eles. Os olhos dos rapazes seguiram-na. Latie sorria ao sentar-se entre as duas mulheres, sentindo-se muito especial, e que fazia parte do ambiente.

Latie havia sido companheira de brincadeiras e amiga dos rapazes quando crianças, mas não era mais criança, nem uma menina que devesse ser ignorada ou desprezada pelos jovens. Ela havia entrado no mundo magicamente atraente, levemente ameaçador, e totalmente misterioso da mulher. Seu corpo mudara de formas, e ela podia provocar respostas e sentimentos inesperados e incontroláveis nos corpos masculinos somente ao passar por eles. Até um olhar direto podia ser desconcertante.

Porém, mais assustador era uma coisa de que apenas tinham ouvido falar. Ela podia fazer sangue sair de seu corpo sem ferimento, e aparentemente, sem dor e, de alguma forma, isso a tornava capaz de atrair a magia da Mãe para si mesma. Eles não sabiam por quê, somente sabiam que um dia ela traria vida nova do interior do seu corpo; um dia Latie faria filhos. Mas, primeiro, um homem teria que torná-la mulher. Este seria o papel deles - não com Latie, claro, ela era irmã e prima, um parentesco muito próximo. Mas, um dia, quando fossem mais velhos e tivessem mais experiência, talvez fossem escolhidos para realizar essa importante função porque embora ela pudesse fazer sangue, uma mulher não podia fazer filhos antes de um homem torná-la mulher.

A Reunião de Verão seguinte seria esclarecedora para os dois jovens particularmente para Danug, já que era mais velho. Eles nunca eram pressionados, mas, quando estivessem prontos, existiriam mulheres que se tinham dedicado a honrar a Mãe por uma estação, que ficariam disponíveis para rapazes, para dar-lhes experiência, e para ensinar-lhes os caminhos e alegrias misteriosas das mulheres.

Tulie caminhou para o centro do grupo, segurando e agitando o Bastão Falante, e esperou que as pessoas se calassem. Quando obteve atenção de todos, entregou o bastão de marfim decorado a Talut, que estava em traje de cerimônia, incluindo seu adorno de cabeça de presa de mamute. Mamut apareceu, vestido com uma capa ornamentada, de couro branco. Segurava uma haste de madeira destramente moldada que parecia ser uma única peça, exceto que, em uma extremidade era um galho seco nu, sem vida, e na outra desabrochava com brotos verdes e pequenas folhas novas. Ele deu o galho a Tulie. Como chefe feminina, o Festival de Primavera devia ser aberto por ela. A primavera era a estação das mulheres; a época de nascimento e nova vida, o momento de novos inícios. Ela segurou o galho com as duas mãos acima da cabeça, fazendo uma pausa para um efeito total, depois o abaixou vivamente sobre o joelho, partindo-o em dois, simbolizando o fim do velho e o começo do novo ano, e o início da parte cerimonial da noite.

- A Mãe sorriu para nós concedendo-nos grande dádiva no ciclo passado - disse Tulie. - Temos tanto a comemorar que será difícil saber que evento importante usar para marcar a contagem do ano. Ayla foi adotada como Mamutoi, ou seja, temos uma nova mulher, e a Mãe escolheu Latie para tornar-se mulher. Assim, logo teremos outra. - Ayla ficou surpresa ao ver seu nome mencionado. - Temos uma nova menina e ela receberá seu nome hoje, e fará parte do nosso grupo, e anunciaremos uma nova união. - Jondalar fechou os olhos e engoliu com dificuldade. Tulie prosseguiu: - Atravessamos bem o inverno, com saúde, e esta é a época de o ciclo recomeçar.

Quando Jondalar ergueu os olhos, Tulie havia dado um passo à frente e segurava o Bastão Falante. Ele viu Nezzie fazer sinal a Latie. Esta se levantou, sorriu nervosamente para as duas jovens que a tinham feito sentir-se tão segura e se aproximou do homem grande, de cabelos ruivos, de sua fogueira. Talut lhe sorriu, com afeição amorosa e encorajamento. Ela viu Wymez de pé ao lado de sua mãe. O seu sorriso, embora menos contagioso, era também cheio de orgulho e amor pela filha de sua irmã, e sua herdeira, que logo se tornaria mulher. Era um momento importante para todos eles.

- Sinto muito orgulho de comunicar que Latie, a primeira filha da Fogueira do Leão, ficou pronta para se tornar uma mulher - disse Talut -, e de anunciar que ela será incluída na Celebração da Feminilidade na reunião deste verão.

Mamut avançou até ela e lhe entregou um objeto.

- Esta é sua muta, Latie - disse ele. - Com isto, como um lugar para a Mãe morar, você pode estabelecer uma fogueira própria, um dia. Guarde em local seguro.

Latie pegou o objeto de marfim esculpido e voltou ao seu lugar; ficou encantada em mostrar sua muta aos que estavam por perto. Ayla estava interessada. Sabia que fora Ranec quem fizera porque ela possuía uma igual e, lembrando das palavras que tinham sido ditas, começou a compreender por que ele lhe dera o objeto. Ela precisava de uma muta para fixar uma fogueira com ele.

- Ranec deve estar tentando alguma coisa nova - comentou Deegie, vendo a figura de mulher-ave. - Nunca vi uma assim antes. E muito incomum. Não estou certa de compreender. A minha se parece mais com uma mulher.

- Ele me deu uma igual à de Latie - disse Ayla. - Achei que era tanto uma mulher quanto uma ave, dependendo de como você a olhasse.

- Ayla pegou a muta de Latie e mostrou-a de perspectivas e ângulos diferentes. - Ele disse que queria que ela representasse a Mãe em Sua forma espiritual.

- Sim, posso ver isso, agora que me mostrou - falou Deegie. Ela devolveu a pequena escultura a Latie, que a aninhou cuidadosamente nas mãos.

- Gosto dela. Não é como a de todo mundo, e significa algo especial - disse Latie, contente por Ranec lhe ter dado uma muta que era única. Embora ele não houvesse vivido, jamais, na Fogueira do Leão, Ranec também era seu irmão, mas era tão mais velho que Danug que parecia mais tio do que irmão. Ela nem sempre o compreendia, mas olhou para ele e notou que era respeitado por todos os Mamutoi como um escultor. Ela ficaria contente com qualquer muta feita por ele, mas estava contente por ele ter decidido lhe dar uma igual à de Ayla. Só daria a Ayla uma escultura que ele considerasse a melhor possível.

A cerimônia de dar o nome à menina de Fralie já havia começado e as três jovens voltaram sua atenção para ela. Ayla reconheceu a placa de marfim gravada com marcas talhadas que Talut segurava e sentiu um instante de preocupação, recordando sua adoção. Mas a cerimônia era obviamente bastante comum. Mamut devia saber o que fazer. Enquanto ela observava Fralie apresentar seu bebê ao feiticeiro e ao chefe do Acampamento do Leão, Ayla se lembrou, de repente, de outra cerimônia semelhante. Fora primavera, então, recordou, somente ela era a mãe e apresentara seu bebê temerosamente, esperando o pior.

Ouviu Mamut dizer:

- Que nome escolheu para esta criança?

E ouviu Fralie replicar:

- Ela deverá se chamar Bectie.

Mas, em sua mente, Ayla ouviu Creb dizer “Durc. O nome do bebê é Durc”.

As lágrimas apareceram em seus olhos enquanto sentia gratidão, novamente, e alívio, quando Brun aceitara seu filho e Creb lhe dera um nome. Ela ergueu os olhos e viu Rydag, sentado em meio a várias crianças com Lobo ao colo, observando-a com os mesmos olhos grandes, castanhos, antigos que lhe lembravam tanto os de Durc. Ela sentiu um desejo repentino de ver seu filho outra vez, mas depois compreendeu uma coisa. Durc era misto, como Rydag, mas havia nascido no Clã, recebido um nome e sido aceito pelo Clã, criado pelo Clã. Seu filho era Clã, e ela estava morta para o Clã. Estremeceu e tentou afastar os pensamentos.

O som de um berro horrorizado de bebê chamou a atenção de Ayla para a cerimônia, novamente, O braço do bebe havia sido cortado com uma faca aguçada, e uma marca talhada na placa de marfim. Bectie recebera um nome e se achava entre os Mamutoi. Mamut derramava a solução forte sobre o pequeno corte, fazendo o bebê, que nunca conhecera qualquer dor, expressar seu desprazer ainda mais alto, mas o grito zangado e insistente do bebê trouxe um sorriso ao rosto de Ayla. Apesar de seu nascimento prematuro, Bectie era uma criança forte. Era saudável o bastante para gritar, Fralie exibiu a filha para que todos a vissem, depois, embalando a criança, cantou uma canção de consolo e alegria em uma voz aguda e agradável, que acalmou a menina. Quando terminou voltara ao seu lugar perto de Frebec e Crozie. Em poucos instantes Bectie recomeçou a chorar, mas os gritos cessaram de repente, anunciando que ela havia adormecido, afinal.

Deegie a cutucou e Ayla compreendeu que chegara o momento. Era a sua vez. Chamavam-na. Por um instante, foi incapaz de se mover. Depois, quis fugir, mas não havia lugar para onde ir. Ela não queria fazer aquela Promessa a Ranec, ela queria Jondalar, queria lhe pedir para não deixá-la, mas, quando ergueu os olhos e viu o rosto ansioso, feliz e sorridente de Ranec, respirou fundo e se levantou. Jondalar não a queria e ela havia dito a Ranec que faria a Promessa. Relutante, Ayla caminhou para os co-líderes do acampamento.

O homem escuro a viu aproximar-se, saindo das sombras para a claridade da fogueira central, e sua respiração ficou presa à garganta. Ela usava o traje de couro claro que Deegie lhe dera, aquele que era perfeito para ela, mas seu cabelo não estava trançado nem em coque, ou em um dos estilos complicados que incorporava contas e enfeites em geral usados pelas mulheres Mamutoi. Em deferência à cerimônia da raiz do Clã, ela deixara os cabelos soltos e as ondas fartas, brilhantes, que caíam abaixo dos ombros, cintilavam à luz do fogo e emolduravam seu rosto único, lindamente esculpido com um halo dourado. Naquele momento, Ranec convenceu-se de que ela era a Mãe encarnada, incorporada ao corpo da perfeita Mulher-Espirito. Ele a desejava tanto para sua mulher que era quase uma dor, uma dor de desejo, e ele mal podia acreditar que aquela noite era verdadeira.

Ranec não estava sozinho no assombro diante da beleza de Ayla. Quando ela avançou para a claridade do fogo, todo o acampamento foi apanhado de surpresa. A roupa Mamutoi, ricamente elegante, e a gloriosa beleza natural de seu cabelo formavam uma combinação surpreendente, realçada pela claridade dramática. Talut pensou no valor que ela acrescentaria ao Acampamento do Leão, e Tulie estava determinada a fixar um Preço de Noiva muito alto, mesmo que tivesse que contribuir, ela mesma, com metade, por causa do status que isso daria a todos eles. Mamut, já convencido de que ela estava destinada a Servir a Mãe de alguma forma importante, anotou o senso instintivo de oportunidade de Ayla, e tendência natural para o dramático, e percebeu que, um dia, ela seria uma força com quem ajustar contas.

Mas ninguém sentiu mais o impacto de sua presença do que Jondalar. Ele ficou ofuscado por sua beleza, como Ranec, mas a mãe de Jondalar fora uma líder, e depois seu irmão, após ela; Dalanar havia criado e era o chefe de um novo grupo, e Zolena alcançara o posto mais alto das Zelandonii. Ele crescera entre os líderes naturais de seu povo, e sentia as qualidades que eram notadas pelo feiticeiro e co-líderes do Acampamento do Leão. Como se alguém lhe houvesse dado um chute no estômago e lhe tirado o ar, de repente compreendeu o que havia perdido.

Assim que Ayla se colocou ao lado de Ranec, Tulie começou:

- Ranec dos Mamutoi, filho da Fogueira da Raposa do Acampamento do Leão, pediu a Ayla dos Mamutoi, filha da Fogueira do Mamute do Acampamento do Leão, e protegida pelo Espírito do Leão da Caverna, para se unirem e estabelecerem uma fogueira. É verdade, Ranec?

- Sim, é verdade - respondeu ele, depois se virou para Ayla com um sorriso de total alegria.

Talut se dirigiu a Ayla, então.

- Ayla dos Mamutoi, filha da Fogueira do Mamute do Acampamento do Leão, e protegida pelo Espírito do Leão da Caverna, concorda com esta união com Ranec dos Mamutoi, filho da Fogueira da Raposa do Acampamento do Leão?

Ayla fechou os olhos e engoliu antes de responder.

- Sim - disse, afinal, em uma voz pouco audível -, concordo.

Jondalar, sentado ao fundo, perto da parede da habitação, fechou os olhos e apertou o maxilar até suas têmporas latejarem. Era sua culpa. Se ele não a tivesse forçado, talvez ela não se voltasse para Ranec. Mas ela já se voltara para ele, já tinha partilhado sua cama. Desde o primeiro dia de sua adoção pelos Mamutoi, ela dividira a cama de Ranec. Não, ele tinha que admitir, isso não era verdade. Depois da primeira noite, ela não dividiu a cama do escultor com ele, senão depois que eles tiveram aquela discussão estúpida e ele, Jondalar, abandonara a Fogueira do Mamute. Por que discutiram? Ele não estava zangado com ela, apenas preocupado. Então, por que saíra da Fogueira do Mamute?

Tulie se virou para Wymez, que estava de pé ao lado de Ranec, perto de Nezzie. Ayla nem sequer o notara.

- Aceita esta união entre o filho da Fogueira da Raposa e a filha da Fogueira do Mamute?

- Aceito esta união e a acolho com alegria - replicou Wymez.

- E você, Nezzie? - perguntou Tulie. - Aceita esta união, entre seu filho Ranec, e Ayla, e se conseguir um Preço de Noiva adequado?

- Aceito a união - respondeu a mulher.

Talut falou em seguida, ao velho ao lado de Ayla:

- Buscador Espiritual dos Mamutoi, ele que abandonou nome e fogueira, ele que foi chamado, ele que se dedicou à Fogueira do Mamute, ele que fala à Grande Mãe de todos, Aquele Que Serve Mut - disse o chefe, recitando cuidadosamente todos os nomes e títulos do feiticeiro -, o Mamut concorda com uma união entre Ayla, filha da Fogueira do Mamute, e Ranec, filho da Fogueira da Raposa?

Mamut não respondeu imediatamente. Ele olhou para Ayla que se encontrava de pé, a cabeça inclinada. Ela esperou e quando ele não falou, ela o encarou. Ele examinou sua expressão, observou sua postura, e a aura ao seu redor.

- A filha da Fogueira do Mamute pode se unir ao filho da Fogueira da Raposa, se desejar – disse, ele afinal. - Não há nada para impedir essa união. Ela não precisa de minha aprovação ou da aceitação de ninguém. A escolha é dela. Mas ela continuará sempre a filha da Fogueira do Mamute.

Tulie olhou o velho de soslaio. Sentia que havia mais em suas palavras do que parecia. Havia alguma coisa ambígua em sua resposta e ela se perguntou o que ele queria dizer, mas resolveu refletir sobre isso mais tarde.

- Ranec, filho da Fogueira da Raposa, e Ayla, filha da Fogueira do Mamute, declararam sua intenção de se unirem. Desejam formar uma união para misturar seus espíritos, e partilhar uma fogueira. Todos os interessados concordaram - disse Tulie. Depois, voltou-se para o escultor. - Ranec, ao se unir, promete dar a Ayla a proteção de seu espírito masculino e a sua, cuidará dela quando for abençoada pela Mãe com nova vida, e aceitará seus filhos como os filhos de sua fogueira?

- Sim, prometo. É o que mais quero no mundo - falou Ranec.

- Ayla, ao se unir, promete cuidar de Ranec e lhe dar a proteção do poder de sua mãe, acolherá bem a Dádiva de Vida da Mãe sem reservas, e partilhará seus filhos com o homem de sua fogueira? - perguntou Tulie.

Ayla abriu a boca para falar, mas nenhum som saiu, a princípio. Ela tossiu e pigarreou, depois replicou, mas sua resposta foi quase inaudível.

- Sim, prometo.

- Todos ouvem e testemunham esta Promessa? - perguntou Tulie às pessoas reunidas.

- Ouvimos e testemunhamos - respondeu o grupo.

Depois, Deegie e Tornec começaram a tocar um ritmo lento em seus instrumentos de osso, mudando sutilmente o tom para acompanhar as vozes que cantavam.

- Vocês se unirão no Matrimônio de Verão, de forma que todos os Mamutoi possam presenciar - disse Tulie. - Dêem volta à fogueira três vezes para ratificar a Promessa.

Lado a lado, Ranec e Ayla caminharam devagar ao redor da fogueira, ao som da música tonal e pessoas que cantavam. Estava feito. Tinham feito a Promessa. Ranec estava extasiado. Sentia como se seus pés mal tocassem o chão enquanto andava. Sua felicidade era tão avassaladora que era impossível acreditar que Ayla não a partilhasse. Ele havia notado uma certa relutância, mas ele inventou desculpas, presumiu que fosse timidez, ou que ela estivesse cansada, ou nervosa. Ele a amava tanto que estava além dele considerar que ela não o amava da mesma maneira.

Mas Ayla sentia o coração pesado enquanto rodeava a fogueira, embora tentasse não demonstrá-lo. Jondalar se curvou, incapaz de sustentar-se, como se seus ossos tivessem desmoronado, sentindo-se como um saco vazio, jogado fora. Mais do que tudo desejou partir, fugir da visão da bela mulher que amava, caminhando ao lado do homem de pele escura, sorridente e feliz.

Quando completaram a terceira volta, houve uma pausa nas cerimônias para desejar felicidades e dar presentes a todos os celebrantes. Presentes para Bectie incluíam o espaço dado à Fogueira da Garça pela Fogueira dos Auroques, assim como um colar de âmbar e conchas marinhas, e uma pequena faca em uma bainha decorada, que eram o começo da riqueza que ela acumularia durante sua vida. Latie recebeu presentes pessoais, importantes para uma mulher, e uma bela e ricamente decorada túnica de verão de Nezzie, para ser usada durante as festividades na Reunião de Verão. Ela receberia muito mais presentes de parentes e amigos íntimos em outros acampamentos.

Ayla e Ranec ganharam itens domésticos: uma concha esculpida de um chifre, um raspador de dois cabos usado para amaciar as partes internas das peles, com um entalhe para uma lâmina substituível, esteiras tecidas, xícaras, tigelas, travessas. Embora Ayla sentisse que ganhavam muitas coisas, elas eram apenas um sinal. Receberiam muito mais na Reunião de Verão, mas eles, e o Acampamento do Leão, também deviam dar presentes em troca. Presentes, pequenos ou valiosos, sempre incluíam obrigações, e o cálculo de quem devia o que a que pessoa era um jogo complexo, mas interminavelmente fascinante.

- Oh, Ayla, estou tão contente porque nos uniremos na mesma época! - exclamou Deegie. - Será tão divertido planejá-lo com você, mas você voltará para cá, e eu partirei para construir nova moradia. Sentirei sua falta no ano que vem. Seria tão engraçado saber quem a Mãe abençoará primeiro. Você ou eu. Ayla, você deve estar tão feliz!

- Suponho que sim - disse Ayla e depois sorriu, embora seu coração não se alegrasse.

Deegie se perguntou o porquê da falta de entusiasmo de Ayla. De alguma forma, ela não parecia tão excitada sobre ter sido prometida quanto ela, Deegie, havia ficado. Ayla também refletia. Devia estar feliz, queria estar feliz, mas tudo o que sentia era esperança perdida.

Durante a confraternização geral, Ayla e Mamut esgueiraram-se à Fogueira dos Auroques a fim de fazer os preparativos finais. Quando estavam prontos, voltaram pelo corredor, mas Mamut parou nas sombras entre a Fogueira da Rena e a Fogueira do Mamute. As pessoas formavam pequenos grupos, envolvidas profundamente em conversa, e o feiticeiro esperou que ninguém olhasse naquela direção. Então, fez um sinal a Ayla e moveram-se rapidamente para a área cerimonial, permanecendo no escuro até o último momento.

Mamut, despercebido a princípio, ficou de pé silenciosamente diante da fogueira perto da tela, com a capa fechada à sua frente com os braços cruzados ao peito, os olhos aparentemente fechados. Ayla, sentada de pernas cruzadas ao chão, aos pés de Mamut, com a cabeça inclinada, tinha uma capa caída de seus ombros, também. Quando foram vistos, foi com a sensação estranha de que tinham, de repente, aparecido no meio deles. Ninguém os vira aproximar-se. Apenas, estavam ali. As pessoas encontraram lugares para sentar, rapidamente, cheias de uma sensação de antecipação e excitação, preparadas agora para o mistério e magia da Fogueira do Mamute, e curiosas em relação a esta nova cerimônia que havia sido preparada. Primeiro, todavia, Mamut queria estabelecer a presença do mundo espiritual, para mostrar a realidade elevada do sentido alterado em que ele funcionava, para aqueles que o conheciam somente por palavras, ou talvez, resultados. O grupo se calou. No silêncio, o som da respiração aumentou, assim como o estalido do fogo. O ar em movimento era uma presença invisível bafejando através das aberturas da lareira, e soltando um lamento mudo através dos buracos de saída da fumaça, parcialmente abertos. Assim, gradualmente, sem ninguém notar que começava, o vento que gemia se tornou uma salmódia sussurrante, depois um canto ritmado. Enquanto as pessoas agrupadas se juntavam ao canto, aumentando o tom ondulante com harmonias naturais, o velho feiticeiro começou um movimento de dança gingado e elaborado. Então, o tambor tonal acentuou o ritmo e o estalo de uma matraca, que parecia ser várias braçadeiras mantidas juntas e sacudidas.

De repente, Mamut arrancou a capa e ficou de pé totalmente nu diante do grupo. Ele não tinha bolsos, mangas, dobras secretas para esconder coisa alguma. Imperceptivelmente, pareceu crescer, diante dos olhos das pessoas presentes, sua presença bruxuleante, transparente, enchendo o espaço. Ayla pestanejou, sabendo que o velho feiticeiro não havia mudado. Se ela se concentrasse, poderia ver a forma familiar do velho com a pele flácida e pernas e braços compridos, magros e ossudos, mas era difícil.

Ele encolheu, voltando ao tamanho normal, mas parecia ter engolido ou incorporado, de algum modo, a presença bruxuleante, de maneira que o contornava com um brilho que o fazia parecer enorme. Ele estendeu as mãos abertas diante de si. Estavam vazias. Bateu as mãos uma à outra, uma vez, depois as manteve juntas. Seus olhos se fecharam, e no início ficou imóvel, mas tremia como se lutasse contra uma grande força. Devagar, com imenso esforço, separou as mãos. Uma forma negra, amorfa, apareceu entre ambas, e mais de um observador estremeceu. Tinha o sentido inefável, o odor do mal; de alguma coisa odiosa, fétida e assustadora. Ayla sentiu os cabelos ficarem em pé em sua nuca, e prendeu a respiração.

Quando Mamut estendeu as mãos, separadamente, a forma cresceu. O odor acre do medo nasceu do grupo sentado. Todos se encontravam eretos, inclinados à frente, cantando com uma intensidade pesarosa, e a tensão dentro da habitação era quase insuportável. A forma se tornou mais escura, inchada, retorcida com vida própria, ou melhor, a antítese da vida. O velho feiticeiro lutava, o corpo tremia com o esforço. Ayla se concentrou nele, temerosa por ele.

Sem aviso prévio, Ayla se sentiu atraída, arrastada e, de repente, se encontrou com Mamut, em sua mente ou em sua visão. Ela via claramente agora, compreendia o perigo, e estava apavorada. Ele controlava uma coisa inenarrável, incompreensível Mamut a havia atraído tanto para protegê-la quanto para ajudá-lo. Enquanto ele trabalhava para controlar a coisa, ela estava com ele, sabendo e aprendendo ao mesmo tempo. Quando ele forçou as mãos para se juntarem outra vez, o vulto diminuiu, e Ayla pôde ver que ele empurrava o vulto de volta ao local de onde viera. Um estalo alto, como um trovão, soou na mente de Ayla quando as mãos do feiticeiro se juntaram.

Desaparecera. Mamut havia expulso o mal, e Ayla se tornou consciente de que Mamut havia invocado outros espíritos para ajudá-lo a lutar com a coisa. Ela percebeu vagos vultos de animais, espíritos guardiãs, o Mamute e o Leão da Caverna, talvez até o Urso da Caverna, o próprio Ursus. Então, ela voltou, sentada a uma esteira, olhando para o velho que era apenas Mamut, novamente. Ele estava fisicamente cansado, mas, mentalmente, sua capacidade estava aguçada, afiada pela luta de vontades. Ayla também parecia ver mais claramente, e percebeu que os espíritos guardiãs ainda estavam presentes. Ela havia tido treinamento suficiente para agora compreender que o propósito de Mamut havia sido afastar quaisquer influencias malévolas presentes que pudessem comprometer sua cerimônia. Elas seriam atraídas para o mal que ele invocara, e expulsas com ele.

Mamut fez sinal de silêncio. O canto e o rufo de tambores cessaram. Era hora de Ayla iniciar a cerimônia da raiz do Clã, mas o feiticeiro queria enfatizar a importância da ajuda do acampamento quando chegasse o momento de eles tornarem a cantar. Sempre que o ritual da raiz os possuísse, o som do canto podia guiá-los de volta.

No silêncio expectante da noite, Ayla começou a tocar uma série incomum de ritmos em um instrumento diferente de todos que tinham visto. Era exatamente o que parecia ser, uma grande tigela de madeira, esculpida de um pedaço de madeira, virada de cabeça para baixo. Ela a havia trazido consigo do vale, e a tigela surpreendia tanto pelo tamanho quanto pelo fato de ser usada como instrumento. As árvores suficientemente grandes para fornecer madeira para tal tigela não cresciam no terreno aberto, seco e ventoso das estepes. Mesmo o vale do rio periodicamente inundado, raramente desenvolvia árvores muito grandes, mas o pequeno vale onde ela vivera era protegido do pior dos ventos cortantes, e tinha mais do que o suficiente em água para algumas coníferas grandes. Uma fora derrubada por um raio, e Ayla fizera uma tigela de uma parte dela.

Ayla usava uma vareta lisa de madeira para produzir o som. Embora pudesse conseguir certa variação no tom batendo em locais diferentes, não era um instrumento musical de percussão, como a omoplata e tambor de crânio ressoante o eram; era feita para cadências. As pessoas do Acampamento do Leão estavam intrigadas, mas aquela não era a sua música, e não se sentiam inteiramente à vontade com ela. Os sons rítmicos que Ayla produzia eram distintamente estrangeiros, mas como ela havia esperado, criavam uma atmosfera que combinava, uma atmosfera com a sensação do Clã. Mamut estava esmagado por lembranças do tempo que ele passara com eles. As batidas com que Ayla terminou não deram impressão de encerramento, mas criavam a sensação de que se esperava mais e deixavam uma expectativa suspensa no ar.

Os membros do acampamento não sabiam o que esperar, mas, quando Ayla tirou a capa e levantou-se, ficaram surpresos pelos desenhos pintados em seu corpo, círculos vermelhos e negros. Exceto por algumas tatuagens faciais daqueles que pertenciam à Fogueira do Mamute, os Mamutoi decoravam suas roupas, não seus corpos. Pela primeira vez, o povo do Acampamento do Leão percebia o mundo de onde Ayla viera: uma cultura tão estranha que não podiam compreendê-la inteiramente. Não era apenas um estilo diferente de túnica, ou escolha de cores predominantes, ou preferência por um tipo de lança, ou mesmo uma linguagem diversa. Era uma maneira diferente de pensar, mas eles reconheciam que era um modo humano de pensar.

Observavam com fascínio enquanto Ayla enchia a tigela de madeira, que ela dera a Mamut, com água. Depois, pegou uma raiz seca em que eles não tinham reparado, e começou a mastigá-la. Foi difícil, a princípio. A raiz era velha e seca, e os sumos tinham que ser cuspidos à tigela. Ela não devia engolir nada. Quando Mamut havia perguntado, de novo, se a raiz ainda seria eficaz depois de tanto tempo, Ayla respondera que era provável que fosse mais forte agora.

Depois do que pareceu um tempo muito longo - ela recordou que parecera levar muito tempo da primeira vez -, cuspiu a polpa mastigada e o resto do suco na tigela de água. Mexeu com um dedo até o líquido ficar aguado e esbranquiçado. Quando achou que estava correto, entregou a tigela a Mamut.

Com a batida de seu tambor e a agitação do chocalho, o feiticeiro assinalou o andamento certo para os tamborileiros e cantores manterem, e depois, com um gesto de cabeça para Ayla, indicou que estava pronto. Ela estava nervosa, sua experiência anterior com a raiz tivera associações desagradáveis e ela recapitulou cada detalhe da preparação em sua mente, e tentou se lembrar de tudo o que Iza lhe dissera. Ela havia feito tudo o que pudera para que a cerimônia fosse o mais parecida possível com o ritual do Clã. Ela respondeu a Mamut também com um gesto de cabeça, e Mamut levou a tigela à boca e tomou o primeiro gole. Quando bebeu metade, deu o resto a Ayla. Ela bebeu a outra metade.

O sabor era antigo, lembrança de terra fértil em densas florestas sombrias, primitivas, de estranhas árvores gigantescas e uma cobertura verde filtrando sol e luz. Ela começou a sentir os efeitos quase imediatamente. Uma sensação de náusea a dominou, e uma impressão de vertigem. Enquanto a habitação girava e girava à sua volta, sua visão toldou-se e o cérebro pareceu expandir-se e ficar comprimido em sua cabeça. De repente, a moradia desapareceu e ela estava em outro local, um lugar escuro. Sentiu-se perdida e leve um instante de pânico. Depois, teve a sensação de que alguém lhe estendia a mão e compreendeu que Mamut se encontrava no mesmo local. Ayla ficou aliviada por encontrá-lo, mas Mamut não estava em sua mente como Creb estivera, e ele não a dirigiu, nem a si próprio, como Creb havia feito. Ele não exercia controle algum, apenas estava ali, esperando para ver o que aconteceria.

Fracamente, como se estivessem dentro da habitação comunal, e ela do lado de fora, Ayla ouviu o canto e ruído ressoante dos tambores. Ela focalizou sua atenção no som. Tinha um efeito de apoio, dava-lhe um ponto de referência e uma impressão de não estar sozinha. A proximidade de Mamut também era uma influência calmante, embora ela desejasse a fortemente orientadora, que lhe mostrara o caminho, antes.

A escuridão mudou gradualmente para cinza que se tornou luminoso, depois iridescente. Ela percebeu movimento, como se ela e Mamut sobrevoassem a paisagem novamente, mas não havia feições distintas, somente uma sensação de passagem através da nuvem opalescente, circundante. Aos poucos, à medida que sua velocidade aumentava, a nuvem nevoenta fundia-se numa película fina de brilhantes cores do arco-íris. Ela escorregava por um comprido túnel translúcido, com paredes como o interior de uma bolha, movendo-se mais e mais depressa, dirigindo-se diretamente para uma luz branca ardente, como o sol, mas fria como gelo. Ela gritou, porém não emitiu som algum, depois irrompeu na luz e através dela.

Estava num vazio profundo, frio, negro que dava uma impressão assustadoramente familiar. Ela estivera ali antes, mas então, Creb a havia encontrado e a tirado de lá. Apenas vagamente, sentiu que Mamut ainda estava com ela, mas ela sabia que ele não podia ajudá-la. O canto das pessoas não passava de uma reverberação indistinta. Ela estava certa de que, se parasse, jamais encontraria seu caminho de volta, mas estava incerta sobre se queria voltar. Naquele local não havia sensação, nem sentimento, somente uma ausência que fazia com que visse sua confusão, seu amor doloroso, e sua infelicidade desesperada. O vazio negro era amedrontador, mas não parecia pior que a desolação que sentia em seu íntimo.

Ela sentiu movimento de novo, e a escuridão desapareceu. Estava outra vez em uma nuvem nevoenta, mas era diferente, mais espessa e pesada. A nuvem se partiu e um panorama se abriu diante dela, mas não tinha qualquer significado. Não era a paisagem suave, casual, natural que conhecia. Estava cheia de formas e vultos desconhecidos; plana, regular, com superfícies achatadas e duras, e linhas retas, e grandes massas de cor brilhante, espalhafatosa, pouco natural. Algumas se moviam rapidamente, ou talvez apenas fosse impressão. Ela não sabia, mas não gostava desse lugar, e lutou para afastá-lo dela, para fugir dele.

Jondalar havia visto Ayla beber a mistura, e franziu a testa, preocupado, quando a viu cambalear, o rosto pálido. Ela teve náuseas algumas vezes e depois caiu ao solo. Mamut também havia caído, mas não era raro o feiticeiro tombar quando ele ia longe, no outro mundo, à procura de espíritos, quer comesse ou bebesse alguma coisa para ajudá-lo, ou não. Mamut e Ayla estavam deitados de costas, enquanto o canto e rufo dos tambores continuavam. Ele viu Lobo tentar alcançá-la, mas o filhote foi mantido longe. Jondalar compreendeu como Lobo se sentia. Ele queria correr para Ayla e até lançou um olhar a Ranec para ver sua reação, mas o Acampamento do Leão não parecia alarmado, e hesitou em interferir em um ritual sagrado. Em vez disso, começou a cantar também. Mamut fizera questão de lhes dizer como o canto era importante.

Depois de ter passado longo tempo, e nenhum deles ter-se movido, ele ficou mais temeroso por Ayla e pensou ver expressões preocupadas nos rostos de algumas das pessoas. Ele se levantou e tentou vê-la, mas os fogos enfraqueceram e a habitação estava obscurecida. Ouviu um ganir e abaixou os olhos para Lobo. O filhote ganiu de novo e olhou para ele, suplicante. Partiu em direção a Ayla várias vezes, e depois voltou para ele.

Ouviu o relincho de Whinney no anexo. A égua parecia infeliz, como se pressentisse perigo. O homem alto foi ver qual era o problema. Era improvável, mas um predador podia entrar sorrateiramente no anexo dos cavalos, e talvez pôr em perigo os animais quando todos estavam ocupados. Whinney se agitou quando viu o homem. Jondalar não encontrou nada que pudesse ser responsável pelo comportamento da égua, mas ela estava obviamente assustada por algum motivo. Nem mesmo os afagos e palavras consoladoras de Jondalar a acalmaram. Ela continuou voltada para a entrada da Fogueira do Mamute, embora nunca tivesse tentado entrar ali antes. Racer também estava inquieto, talvez sensível ao nervosismo da mãe.

Lobo estava aos pés de Jondalar de novo, uivando e ganindo, correndo em direção à entrada da Fogueira do Mamute, e depois de volta até ele novamente.

- O que é, Lobo? O que está incomodando você? – E o que está perturbando Whinney, pensou. Depois lhe ocorreu o que talvez incomodasse os dois animais. Ayla! Deviam pressentir algum perigo para Ayla!

Jondalar voltou ao interior a passos largos e viu várias pessoas ao redor de Mamut e Ayla, agora, tentando despertá-los. Incapaz de se controlar mais, ele correu para Ayla. Ela estava dura, rígida, com os músculos retesados, e fria. Mal respirava.

- Ayla! - gritou Jondalar. - Ó Mãe, ela parece quase morta! Ayla! Ó Doni, não a deixe morrer! Ayla, acorde! Não morra, Ayla! Por favor, não morra!

Ele a segurou nos braços, gritando seu nome, com grande insistência, repetidas vezes, suplicando-lhe para não morrer.

Ayla se sentia deslizando para mais e mais longe. Tentou ouvir o canto e rufo dos tambores, mas eram como uma lembrança apagada. Depois, achou que ouvira seu nome. Esforçou-se para ouvir. Sim, lá estava de novo, o seu nome, falado com insistência, com grande necessidade. Sentiu Mamut se aproximar mais, e juntos, concentraram-se no canto. Ela ouviu um leve murmúrio de vozes, e sentiu-se atraída para o som. Depois, na distância, ouviu a voz grave, vibrante, estancado dos tambores dizer a palavra “h-h-o-o-m-m-m”; agora, ouviu com mais clareza seu nome gritado com angústia e necessidade e amor esmagador. Sentiu um contato gentil alcançá-la e tocar a essência combinada dela e de Mamut.

De repente, ela se movia, sendo puxada e empurrada ao longo de um único filamento brilhante.

Teve a impressão de enorme velocidade. A nuvem pesada a cercou e desapareceu. Ela atravessou o vazio em um piscar de olhos, O arco-íris cintilante se tornou uma neblina cinza, e no instante seguinte, ela estava na habitação comunal. Abaixo dela, seu próprio corpo, incomumente imóvel com uma palidez cinzenta, estava espalhado no chão. Ela viu as costas de um homem louro que a abraçava, segurando-a. Então, sentiu Mamut empurrá-la.

As pálpebras de Ayla estremeceram, depois ela abriu os olhos e viu o rosto de Jondalar inclinado para ela. O medo intenso em seus olhos azuis mudou para um alívio imenso. Ela tentou falar, mas sua língua estava grossa, e ela estava fria, gelada.

- Voltaram! - ouviu Nezzie dizer. - Não sei onde estiveram, mas estão de volta. E com frio! Tragam peles e alguma bebida quente.

Deegie trouxe uma porção de peles de sua cama, e Jondalar saiu do caminho para que ela pudesse enfiá-las ao redor de Ayla. Lobo veio correndo, saltando e lambendo-lhe o rosto, depois Ranec trouxe uma xícara de chá quente. Talut ajudou-a a sentar-se. Ranec segurou a bebida quente para que ela a levasse à boca, e ela sorriu, grata. Whinney relinchou do

anexo e Ayla reconheceu o som de infelicidade e medo. A mulher se sentou, preocupada, e produziu um som igual ao do animal, para acalmar e tranqüilizar a égua. Depois perguntou por Mamut e insistiu em vê-lo.

Foi ajudada a levantar-se, a pele envolvendo-lhe os ombros, e levada ao velho feiticeiro. Estava embrulhado em peles e segurava, também, uma xícara de chá quente. Sorriu-lhe, mas havia um vislumbre de preocupação em seus olhos. Não querendo preocupar o acampamento indevidamente, ele tentara negligenciar a importância de sua perigosa experiência, mas não queria que Ayla compreendesse mal o sério perigo que tinham corrido. Ela também queria falar a respeito, mas ambos evitaram referências diretas à experiência. Nezzie percebeu, rapidamente, sua necessidade de falar e fez com que todos se retirassem, deixando-os a sós.

- Onde estivemos, Mamut? - perguntou Ayla.

- Não sei, Ayla. Nunca estive lá antes. Era outro lugar, talvez outra época. Talvez não fosse um lugar real - falou ele, pensativo.

- Devia ser - disse ela. - Aquelas coisas pareciam reais, e parte do local era familiar. Aquele lugar vazio, a escuridão, eu estive lá com Creb.

- Acredito quando diz que seu Creb era poderoso. Talvez mais do que você imagina, se podia dirigir e controlar aquele lugar.

- Sim, ele era, Mamut, mas... - Um pensamento ocorreu a Ayla, mas ela estava incerta de poder expressá-lo. - Creb controlava aquele lugar, mostrou-me suas memórias e nossos começos, mas acho que Creb nunca esteve onde estivemos, Mamut. Acho que ele não podia. Talvez tenha sido isso que me protegeu. Ele tinha certos poderes, e podia controlá-los, mas eram diferentes. O local a que fomos desta vez era um novo lugar. Ele não poderia ir a um lugar novo, só podia ir onde já estivera. Mas, talvez, visse que eu podia. Pergunto-me se isso foi o que o entristecia tanto.

Mamut concordou com um gesto de cabeça.

- Talvez, porém, mais importante, aquele local era muito mais perigoso do que imaginei que seria. Tentei não mencionar isso, para não assustar todos. Se tivéssemos ficado muito mais tempo lá, não teríamos sido capazes de voltar. E não voltamos por nós mesmos. Fomos ajudados por... Por alguém que tinha um desejo... Tão forte que voltássemos, que venceu todos os obstáculos. Quando a força de vontade pura é dirigida para conseguir seu propósito, nenhuma barreira pode resistir, exceto, talvez, a própria morte.

Ayla franziu a testa, obviamente perturbada, e Mamut se perguntou se ela sabia quem os havia trazido de volta, ou compreendido por que o propósito coerente poderia ser necessário para a sua proteção. Ela compreenderia com o tempo, mas não era ele quem devia lhe dizer. Ela tinha que descobrir sozinha.

- Jamais irei àquele lugar novamente - continuou ele. - Estou velho demais. Não quero meu espírito perdido naquele vazio. Um dia, quando você tiver desenvolvido seus poderes, talvez queira voltar lá. Eu não a aconselharia, mas se for, certifique-se de que tem proteção poderosa. Certifique-se de que alguém espera por você, alguém que possa chamá-la de volta.

Quando Ayla caminhou para sua cama, procurou Jondalar, mas ele havia recuado quando Ranec lhe trouxe o chá, e agora, estava permanecendo fora do caminho. Embora ele não houvesse hesitado em se aproximar quando sentiu que ela corria perigo, estava inseguro agora. Ela havia acabado de fazer a Promessa ao escultor dos Mamutoi. Que direito tinha ele de segurá-la nos braços? E todos pareciam saber o que fazer, trazendo-lhes bebidas quentes e peles. Ele havia sentido que, porque a amava tanto, talvez tivesse ajudado de algum modo estranho, mas, quando refletiu sobre isso, começou a ter dúvidas. Ela estava voltando, provavelmente, quando ele a chamou, disse a si mesmo. Foi coincidência. Eu estava lá, só isso. Ela nem se lembrará.

Ranec se dirigiu a Ayla quando ela acabou de falar a Mamut, e pediu-lhe para ir para a cama dele, não para ter relações, somente para poder abraçá-la e mantê-la aquecida. Mas ela insistiu em que ficaria mais confortável em sua própria cama. Afinal, ele concordou, mas jazeu acordado em suas peles durante bastante tempo, pensando. Embora tivesse sido evidente para todos, ele fora capaz de ignorar o interesse constante de Jondalar por Ayla, apesar de ter deixado a Fogueira do Mamute. Depois daquela noite, contudo, Ranec não podia negar os fortes sentimentos que o homem alto ainda nutria por ela, não depois de vê-lo suplicar à Mãe pela vida de Ayla.

Ele não tinha dúvida de que Jondalar havia sido um instrumento para trazer Ayla de volta, mas não queria acreditar que ela correspondesse a esses sentimentos na mesma moeda. Ela havia-se prometido a ele naquela noite. Ayla seria sua mulher e partilharia sua fogueira. Ele também havia temido por ela, e o pensamento de perdê-la, quer para algum perigo, quer para outro homem, só fazia com que a quisesse mais.

Jondalar viu Ranec aproximar-se dela e respirou mais facilmente quando o homem escuro voltou a sua fogueira sozinho, mas, então, rolou sobre si mesmo e puxou as peles sobre a cabeça. Que diferença fazia se Ayla estava com ele ou não naquela noite? Ela iria para ele, afinal. Ela havia-se prometido a Ranec.

Ayla contava sua idade, em geral, no fim do inverno, começando seu novo ano com a estação da vida nova, e a primavera de seu décimo oitavo ano fora gloriosa, com uma profusão de flores do campo e verduras frescas recém-nascidas. Foi bem-vinda como podia ser apenas, em um local de terras invernais incultas e geladas, mas, depois do Festival de Primavera, a estação amadureceu depressa. Quando as flores vivas das estepes murcharam, foram substituídas pela safra viçosa, de crescimento rápido de capim novo - e os animais de pasto que trazia. As migrações sazonais tinham começado.

Animais numerosos e de muitas espécies migravam através das planícies descampadas. Alguns se reuniam em número incontável, outros em pequenos rebanhos ou grupos familiares, mas todos tiravam seu sustento, sua vida, dos grandes pastos incrivelmente ricos, varridos pelo vento, e dos sistemas de rios alimentados pelas geleiras que atravessavam as pastagens.

Grandes manadas de bisões de chifres enormes cobriam colinas e de pressões como uma massa viva, gritante, inquieta, ondulante, que deixava atrás de si terra pisada e nua. Gado selvagem, auroques, enfileiravam-se por quilômetros nas florestas amplas ao longo dos vales do rio principal, enquanto viajavam para o norte, às vezes misturados a rebanhos de alces e veados gigantescos com galhadas maciças. Os tímidos cabritos monteses viajavam através de bosques ribeirinhos e florestas boreais em pequenos agrupamentos para os pastos de primavera e verão, juntamente aos insociáveis alces americanos que também viviam nos pântanos e lagos de neve derretida das estepes. Cabras monteses e carneiros selvagens, em geral habitantes dos montes, dirigiam-se às planícies nas terras frias do norte, e misturavam-se, em locais onde os animais bebem água, com pequenas famílias de antílopes ou grupos mais numerosos de cavalos das estepes. O movimento sazonal de animais peludos era mais limitado. Com sua espessa camada de gordura e pesados mantos duplos de pêlo, adaptavam-se à vida perto das geleiras e não sobreviviam a muito calor. Viviam o ano inteiro nas regiões periglaciais das estepes, onde o frio era maior, porém seco, e a neve era pouca, sustentando-se no inverno do feno grosseiro e seco. O boi almiscarado semelhante ao carneiro era um habitante permanente do norte gelado, e movia-se em pequenos rebanhos dentro de território limitado. Rinocerontes peludos que se agrupavam, em geral, somente em famílias, e as manadas maiores de mamutes penugentos iam mais longe, todavia, permaneciam no norte durante o inverno. Nas estepes ao sul, levemente mais quentes e mais úmidas, neves profundas enterravam o alimento e faziam os animais pesados chapinhar. Eles se dirigiam ao sul na primavera para engordar no capim novo e tenro, mas, assim que esquentava, voltavam para o norte de novo.

O Acampamento do Leão regozijou-se ao ver as planícies proliferando devida novamente, e comentou sobre cada espécie que aparecia, especialmente os animais que se desenvolviam no frio rigoroso. Esses eram aqueles que mais os ajudavam a sobreviver. Uma visão do enorme e imprevisível rinoceronte, com dois chifres, o da frente comprido e grosso, e duas camadas de pêlo avermelhado, uma camada inferior de lã macia e felpuda, e uma externa de comprido pêlo protetor, sempre trazia exclamações de assombro.

Nada, contudo, criava excitação maior entre os Mamutoi do que a visão de mamutes. Quando a época de eles passarem se aproximava, alguém do Acampamento do Leão estava sempre de vigia. Exceto de alguma distância, Ayla não havia visto um mamute desde que vivia com o Clã, e estava mais excitada que todos quando Danug se acercou correndo encosta abaixo, uma tarde, gritando:

- Mamutes! Mamutes!

Ela estava entre os primeiros a sair correndo da habitação para vê-los. Talut, que muitas vezes carregava Rydag empoleirado aos ombros, estivera nas estepes com Danug, e ela viu Nezzie com o menino sobre seu quadril, arrastando-se atrás. Ela começou a recuar para ajudar, então viu Jondalar tirar o garoto da mulher e colocá-lo sobre seus ombros. Recebeu sorrisos gentis de ambos. Ayla sorriu também, embora ele não a visse. A expressão continuava no rosto dela quando se virou para Ranec, que havia corrido para alcançá-la. Seu sorriso terno, bonito, provocou nele um sentimento intenso de afeto e um desejo forte de que ela já fosse dele. Ela não conseguiu deixar de responder ao amor nos olhos escuros, brilhantes, e no sorriso atraente; O sorriso de Ayla permaneceu para ele.

Nas estepes, o Acampamento do Leão observou com assombro silencioso os animais grandes, de pêlo emaranhado. Eram os maiores animais em sua terra - na verdade, seriam em qualquer região. A manada, com vários filhotes entre eles, passava perto, e a velha matriarca observou as pessoas com desconfiança. Tinha cerca de 3 metros de altura nos ombros, e uma cabeça alta, arredondada e uma corcova na cernelha, usada para estocar gordura adicional para o inverno. Um dorso curto que descia abruptamente para a bacia completava o característico e imediatamente reconhecido perfil. Seu crânio era grande em comparação ao tamanho, mais da metade do comprimento do tronco relativamente curto, de cuja extremidade projetavam-se dois apêndices da largura de dedos, móveis, sensíveis, um superior e um inferior. O rabo era curto também e as orelhas pequenas para conservar o calor.

Os mamutes condiziam eminentemente com sua região frígida. Sua pele era muito espessa, isolada por três ou mais polegadas de gordura subcutânea, e revestida com um manto inferior macio e compacto, com cerca de uma polegada. O pêlo exterior comprido, grosso, com cerca de vinte polegadas de comprimento, era marrom-avermelhado escuro, e pendia em camadas ordenadas sobre a espessa lã penugenta de inverno, como protetor contra o vento e revestimento quente contra a umidade. Com molares eficientes, tipo raspadeiras, consumiam uma alimentação de inverno de capim seco, galhos e cascas de vidoeiros, salgueiros e lanços com tanta facilidade quanto a alimentação de verão que constava de capim verde, junças e ervas. As imensas presas dos mamutes, mais impressionantes que tudo, provocavam assombro e terror. Projetando-se juntas da mandíbula inferior, primeiramente apontavam diretamente para baixo, depois se curvavam fortemente para fora, para cima e, afinal, para dentro. Nos machos velhos, uma presa podia atingir 4,80 metros de comprimento, mas então, cruzavam-se na frente. Nos animais novos, as presas eram armas eficazes e ferramentas embutidas para desarraigar árvores e limpar a neve do pasto e alimentar-se, mas, quando as duas pontas se curvavam para cima e se sobrepunham, atrapalhavam e prejudicavam mais do que ajudavam.

A visão dos enormes animais trouxe um fluxo de lembranças a Ayla, da primeira vez em que vira um mamute. Recordou ter desejado, então, poder caçá-los com os homens do Clã, e lembrou-se de que Talut a havia convidado para ir à primeira caçada de mamutes com os Mamutoi. Ela gostava de caçar, e a idéia de que, talvez, se juntasse realmente aos caçadores desta vez lhe deu um formigamento de antecipação. Começou a ansiar realmente pela Reunião de Verão.

A primeira caçada da temporada tinha importante significado simbólico. Embora os mamutes penugentos fossem majestosos e maciços, o sentimento dos Mamutoi por eles ia muito além da admiração por seu tamanho. Dependiam do animal para muito mais que alimento e, em sua necessidade e desejo de assegurara continuação das grandes bestas, conceberam um relacionamento especial com eles. Reverenciavam-nos, porque baseavam sua própria identidade neles.

Os mamutes não tinham verdadeiros inimigos naturais; nenhum carnívoro dependia deles regularmente para sua subsistência. Os grandes leões de caverna, duas vezes o tamanho de qualquer felino grande, que normalmente caçavam os animais de pastagem maiores - auroques, bisões, veados gigantes, alces, alces americanos ou cavalos - e podiam matar um adulto, às vezes derrubavam um mamute novo, doente ou muito velho, mas nenhum predador quadrúpede, sozinho ou em grupo, podia matar um mamute adulto em seu apogeu. Somente os Mamutoi, os filhos homens da Grande Mãe Terra, receberam o poder para caçar a maior de Suas criaturas. Eles eram os escolhidos. Entre todas as Suas criações, eles eram superiores. Eram os Caçadores de Mamutes.

Depois que a manada de mamutes passou, as pessoas do Acampamento do Leão a seguiram ansiosamente. Não para caçar, isso aconteceria mais tarde. Estavam atrás de sua lã macia, felpuda das camadas inferiores de inverno, que se soltava através dos pêlos protetores externos mais grosseiros, em grandes punhados. A lã naturalmente colorida, vermelho-escura, que era apanhada no solo e em moitas espinhosas que a pegavam e conservavam, era considerada uma dádiva especial do Espírito do Mamute.

De acordo com a oportunidade, a lã branca do carneiro selvagem que era libertada naturalmente na primavera, a lã incrivelmente macia, marrom, felpuda do boi almiscarado e a lã de camada interna, vermelha mais clara, do rinoceronte, também eram reunidas com grande entusiasmo. Em suas mentes, agradeciam e ofereciam estima à Grande Mãe Terra que dava aos Seus filhos tudo do que precisavam, abundantemente: produtos vegetais e animais e materiais como sílex e argila. Eles só tinham que saber onde e quando procurar.

Embora as verduras frescas - carboidratos - fossem acrescentadas entusiasticamente à sua alimentação, por toda a rica variedade disponível, os Mamutoi caçavam pouco na primavera e início de verão, a menos que os estoques de carne fossem poucos. Os animais estavam magros demais. O inverno, demorado e rigoroso, os privara das fontes concentradas exigidas de energia, na forma de gordura. Suas perambulações eram movidas pela necessidade de reabastecimento. Alguns bisões machos eram apanhados, se o pêlo de sua nuca ainda fosse preto, indicando que ainda existia alguma gordura, e fêmeas grávidas de várias espécies, pela pele e carne tenra do feto que servia para a fabricação de roupas macias de bebê ou roupas de baixo. A principal exceção era a rena.

Grandes rebanhos de renas migravam para o norte, as fêmeas com galhadas, com o filhote do ano anterior à frente, seguindo trilhas conhecidas para seus tradicionais terrenos de dar cria, seguidas pelos machos. Como acontece com outros animais em rebanho, suas fileiras eram reduzidas por lobos que se colocavam ao longo de seus flancos procurando o animal mais fraco e mais velho, e por várias espécies de felinos: grandes linces, leopardos de corpos longos, e um ocasional leão de caverna maciço. Os grandes carnívoros brincavam de anfitriões com suas sobras, para uma enorme variedade de carnívoros secundários e necrófagos, tanto quadrúpedes quanto aves: raposas, hienas, ursos marrons, almiscareiros, pequenos gatos das estepes, carcajus, doninhas, corvos, milhafres, gaviões, e muitos mais.

Os caçadores bípedes atacavam todos eles. O pêlo e penas de seus competidores de caça não eram desdenhados, embora as renas fossem a principal caça do Acampamento do Leão - não pela carne, apesar de não ser desperdiçada. A língua era considerada uma iguaria e grande parte da carne era seca para uso como alimento de viagem, mas eram as peles que eles queriam. Comumente de cor castanho-acinzentada, mas indo desde o branco leite até quase preto, com um tom marrom-avermelhado nos animais novos, o pêlo da maior parte das renas do norte era não só leve quanto quente. Porque seu pêlo era naturalmente isolado, não se podia encontrar melhor agasalho do que aquele feito com couro de rena, e era sem igual para roupa de cama e tapetes. Com rodeios e armadilhas, o Acampamento do Leão as caçava todos os anos, para reabastecer seus suprimentos e para presentes que levavam consigo quando partiam em suas migrações de verão.

Enquanto o Acampamento do Leão se preparava para a Reunião de Verão, a excitação era grande. Ao menos uma vez por dia, alguém dizia a Ayla o quanto ela gostaria de conhecer algum parente ou amigo, ou quanto eles quereriam conhecê-la. Rydag era o único a quem parecia faltar entusiasmo para a reunião dos Acampamentos. Ayla nunca vira o menino tão tristonho, e preocupou-se com sua saúde.

Ela o observou cuidadosamente durante vários dias, e em uma tarde incomumente quente, quando ela saiu para ver várias pessoas estenderem peles de renas, sentou-se ao lado dele.

- Fiz remédio novo para você, Rydag, para levar à Reunião de Verão - disse Ayla. - É mais fresco e talvez seja mais forte. Terá que me dizer se sentir alguma diferença para melhor ou pior - acrescentou ela, usando sinais manuais e palavras, como costumava fazer com ele. - Como se sente agora? Houve alguma mudança ultimamente?

Rydag gostava quando Ayla conversava com ele. Embora fosse profundamente grato por sua nova capacidade de se comunicar com seu acampamento, a sua compreensão e uso da linguagem de sinais era simples e essencialmente direta com Ayla. Ele havia compreendido a linguagem verbal das pessoas desde muitos anos, porém, quando lhe falavam, tendiam a simplificá-la para combinar com os sinais que usavam. Os sinais de Ayla estavam mais próximos em nuança e sentimento à fala verbal, e realçavam as palavras.

- Não, sinto o mesmo - falou o garoto por sinais.

- Não está cansado?

- Não... Sim. Sempre um pouco cansado - sorriu. - Não muito.

Ayla sacudiu a cabeça, concordando, examinando-o cuidadosamente, verificando algum sintoma visível, tentando assegurar-se de que não havia mudança no estado dele, ao menos para o pior. Ela não viu qualquer sinal de deterioração física, mas ele parecia abatido.

- Rydag, alguma coisa o incomoda? Está infeliz?

Ele encolheu os ombros e desviou o olhar. Depois voltou os olhos para ela.

- Não quero ir - disse, por sinais.

- Aonde não quer ir? Não entendo.

- Não quero ir à Reunião - disse ele, desviando o olhar outra vez.

Ayla franziu a testa, mas não pressionou. Rydag não parecia querer falar a respeito, e entrou logo na habitação. Ela o seguiu através do vestíbulo, tentando não parecer conspícua, e da área de cozinhar viu-o deitar-se em sua cama. Estava preocupada com ele. Raramente se deitava durante o dia por sua livre vontade. Ela viu Nezzie entrar e parar para prender a cortina da frente. Ayla correu até ela, a fim de ajudar.

- Nezzie, sabe o que há de errado com Rydag? Ele parece tão... Infeliz - disse Ayla.

- Eu sei. Ele fica assim nesta época do ano. É a Reunião de Verão. Não gosta dela.

- Foi o que ele disse. Por quê?

Nezzie fez uma pausa e olhou diretamente para Ayla.

- Você não sabe, realmente, não é? - A jovem sacudiu a cabeça. Nezzie deu de ombros: - Não se preocupe, Ayla. Não há nada que possa fazer.

Ayla atravessou a habitação pelo corredor e olhou para o garoto. Os olhos estavam fechados, mas ela sabia que ele não dormia. Ela sacudiu a cabeça, desejando poder ajudar. Adivinhava que se tratava de algo relativo à diferença de Rydag, mas ele estivera na Reunião antes.

Atravessou rapidamente a vazia Fogueira da Raposa e entrou na Fogueira do Mamute. De repente, Lobo irrompeu pela entrada da frente e estava nos calcanhares dela, saltando com alegria. Ela o fez parar com um gesto. Ele obedeceu, mas pareceu tão magoado que ela compadeceu-se e lhe atirou o pedaço bem mastigado de couro macio que um dia havia sido um de seus favoritos sapatos meias. Afinal, ela o dera a Lobo quando pareceu ser a única maneira de fazê-lo parar de roer as botas e sapatos das outras pessoas. Ele se cansou depressa do brinquedo velho e, agachando-se sobre as patas dianteiras, agitou o rabo e ganiu para ela. Ayla não conteve um sorriso, e resolveu que era um dia bonito demais para ficar dentro de casa. Em um impulso, pegou a funda e uma bolsa de pedras redondas que reunira, e fez sinal a Lobo para segui-la. Vendo Whinney no anexo, resolveu incluir a égua também.

Ayla saiu pela entrada em arco do anexo, seguida pela égua cor de feno, e pelo lobinho cinzento, cujo pêlo e marcas eram típicos de sua espécie, ao contrário de sua mãe preta. Ela viu Racer na metade da descida em direção ao rio. Jondalar estava com ele, sem camisa sob o sol quente, e puxava o jovem garanhão por uma corda. Como havia prometido, ele treinava Racer passando a maior parte do tempo nisso e, na verdade, tanto ele quanto o animal pareciam gostar do que faziam.

Ele a viu e acenou-lhe para que esperasse, enquanto começava a subir em direção à jovem. Era raro ele aproximar-se de Ayla, ou indicar que desejava lhe falar. Jondalar havia mudado desde o incidente nas estepes. Não mais a evitava, exatamente, mas poucas vezes fazia um esforço para falar com ela, e quando o fazia era como estranho, reservado e polido. Ela esperara que o jovem garanhão aproximasse Jondalar dela, porém, ele parecia até mais distante.

Ela esperou, observando o homem alto, musculoso, atraente se acercar e, incontrolável, o pensamento de sua afetuosa resposta à necessidade dele nas estepes, surgiu em sua mente. Em um instante, ela sentiu que o desejava. Era uma reação de seu corpo, além do seu controle, mas quando Jondalar se aproximou, ela notou o rubor em seu rosto e os belos olhos azuis se encherem daquela expressão especial. Ela viu o volume de seu membro, embora não tivesse intenção de olhar para o local, e se encontrou corando.

- Desculpe-me, Ayla. Não quero incomodá-la, mas senti que deveria lhe mostrar este novo freio que fiz para Racer. Talvez queira usar um em Whinney -disse Jondalar, mantendo a voz normal e desejando poder controlar o resto de si mesmo.

- Não me incomoda - disse Ayla, embora ele a perturbasse. Ela olhou para o dispositivo feito de tiras finas de couro, trançado, e presas com alças uma na outra.

A égua ficara no cio no início da estação. Pouco depois de Ayla notar a condição de Whinney, ouviu o relincho distinto de um garanhão nas estepes. Apesar de Ayla ter encontrado a égua depois de ela ter ido viver com um garanhão e uma cavalhada antes, não podia pensar em ceder Whinney a um cavalo. Talvez não tivesse sua amiga de volta desta vez. Ayla havia usado um tipo de cabresto e uma corda ao redor do pescoço para conter a égua - e o jovem garanhão que havia demonstrado grande interesse e excitação - e os manteve dentro do anexo quando não podia estar com eles. Desde então, continuou a usar o cabresto ocasionalmente, embora preferisse dar a Whinney a liberdade de ir e vir quando quisesse.

- Como funciona? - perguntou Ayla.

Ele demonstrou em Whinney, com um extra que tinha feito para ela. Ayla fez várias perguntas em um tom aparentemente calmo, porém, mal prestava atenção. Estava muito mais consciente do calor de Jondalar quando ele se encontrava ao lado dela, e também de seu leve odor agradavelmente masculino. Ela parecia incapaz de deixar de encará-lo, de fixar suas mãos, o movimento dos músculos sobre seu peito, e o volume de sua virilidade. Ela esperava que suas perguntas levassem a mais conversa, mas assim que ele acabou de explicar o mecanismo, afastou-se abruptamente. Ayla o viu suspender a camisa, montar Racer e, guiando-o com movimentos das rédeas novas, subir a encosta. Ela considerou, por um instante, em ir atrás dele montada em Whinney, depois mudou de idéia. Se ele estava tão ansioso para se afastar, significava que não a queria por perto.

Ayla fitou Jondalar até ele ficar fora do alcance de sua vista. Lobo, ganindo ansiosamente para ela, afinal chamou sua atenção. Ela passou a funda ao redor da cabeça, e verificou as pedras na bolsa. Depois, pegou o filhote de lobo e colocou-o sobre a cernelha de Whinney. Em seguida, montou e começou a subir a encosta em uma direção diferente da que Jondalar havia seguido. Ela planejara caçar com Lobo e talvez o fizesse. Lobo havia começado a espreitar e tentar pegar ratos e caça pequena por conta própria, e ela descobrira que ele era muito bom em levantar a caça para sua funda. Embora fosse acidental no início, o lobo era rápido no aprendizado e já se tornava treinado em levantar a caça sob as ordens de Ayla.

Ayla estava certa em um ponto. Jondalar partiu com tanta pressa não porque não queria ficar perto dela naquele momento, mas somente porque desejava ficar ao lado dela o tempo todo. Precisava fugir de suas próprias reações diante da proximidade de Ayla. Ela estava prometida a Ranec, agora, e ele havia perdido qualquer direito que pudesse ter sobre ela. Ultimamente, ele começara a cavalgar quando queria fugir de uma situação difícil, ou de um esforço para combater emoções conflitantes, ou apenas para pensar. Começou a compreender por que Ayla havia tantas vezes se afastado, montando Whinney, quando alguma coisa a perturbara. Cavalgar através dos pastos abertos, uma perna de cada lado do garanhão jovem, sentindo o vento no rosto, tinha um efeito tanto calmante quanto estimulante.

Uma vez no alto das estepes, comandou Racer para um galope e inclinou-se para mais perto do pescoço forte que se estendia para frente. Tinha sido surpreendentemente fácil acostumar o cavalo a aceitar um cavaleiro, mas de muitas maneiras Ayla e Jondalar o tinham feito se habituar a isso por algum tempo. Era mais difícil resolver como fazer Racer compreender e querer ir aonde seu cavaleiro queria.

Jondalar entendeu que o controle de Ayla sobre Whinney tinha funcionado tão naturalmente que suas ordens eram ainda bastante inconscientes, mas ele começou com a idéia de treinar o cavalo. Suas indicações eram muito mais determinadas, e enquanto treinava o cavalo, ensinava a si mesmo também. Aprendeu como se sentar sobre o animal, como trabalhar com os músculos fortes do garanhão, não apenas saltar em seu dorso, e descobriu que a sensibilidade do animal à pressão das coxas e mudanças de posição do corpo fazia com que se tornasse mais fácil dirigi-lo.

Á medida que ganhou mais confiança e se tornou mais confortável, cavalgava mais, o que era exatamente o tipo de treinamento necessário, porém, quanto mais se ligava a Racer, maior afeição sentia por ele também. Gostara do cavalo desde o início, mas ele ainda era de Ayla. Repetia a si mesmo que treinava Racer para ela, mas odiava pensar em abandonar o jovem garanhão.

Jondalar tinha planejado partir imediatamente depois do Festival de Primavera, no entanto, ainda continuava ali e não tinha certeza do motivo. Pensou em razões - ainda era muito cedo na estação imprevisível, ele prometera a Ayla treinar Racer -, mas sabia que eram apenas desculpas. Talut pensava que ele permanecia para ir à Reunião de Verão com eles, e Jondalar não tentava corrigir essa impressão, apesar de dizer a si mesmo, repetidas vezes, que partiria antes que eles viajassem. Todas as noites, quando ia para a cama, e principalmente se Ayla ia para a Fogueira da Raposa, dizia a si mesmo que iria embora no dia seguinte, e adiava a partida todos os dias. Lutava consigo mesmo, mas quando pensava seriamente em arrumar sua bagagem e partir, lembrava-se de Ayla jazendo fria e imóvel no solo, na Fogueira do Mamute, e não podia ir embora.

Mamut havia-lhe falado no dia seguinte ao Festival, e lhe disse que a raiz havia sido forte demais para ele controlar. Era perigosa demais, falou o feiticeiro, ele jamais tornaria a usá-la. Aconselhara Ayla a também não usá-la, e preveniu-a de que precisaria de forte proteção se o fizesse. Sem dizê-lo, na verdade, o velho insinuou que Jondalar, de alguma forma alcançara Ayla e era responsável por trazê-la de volta.

As palavras do feiticeiro perturbaram Jondalar, mas também tirou delas uma estranha forma de consolo. Quando o homem da Fogueira do Mamute temera pela segurança de Ayla, por que lhe pedira para ficar? E por que Mamut dizia que fora ele quem a trouxera de volta? Ela estava prometida a Ranec e não havia dúvida do sentimento do escultor por ela. Se Ranec estava ali, por que Mamut o queria? Por que Ranec não a trouxe de volta? O que o velho sabia? O que quer que fosse, Jondalar não podia suportar o pensamento de não estar ali se ela precisasse dele novamente, ou de deixá-la enfrentar um perigo terrível sem ele, porém, tampouco suportava o pensamento de Ayla viver com outro homem. Ele era incapaz de resolver se ia ou ficava.

- Lobo, largue isso! - gritou Rugie, zangada e aborrecida. Ela e Rydag brincavam na Fogueira do Mamute, aonde Nezzie os mandara ir de modo que pudesse arrumar a bagagem. - Ayla! Lobo não quer largar minha boneca!

Ayla estava sentada no meio de sua cama, cercada por pilhas ordenadas de suas coisas.

- Lobo, solte! - ordenou. - Venha cá! - fez um gesto.

Lobo largou a boneca feita de tiras de couro e se dirigiu a Ayla com o rabo entre as pernas.

- Aqui! - falou ela, batendo no local da cabeceira de sua cama onde ele dormia, em geral. O filhote saltou para a cama. - Agora, deite e não aborreça mais Rugie e Rydag. - Ele se deitou com a cabeça sobre as patas, fixando-a com olhos tristonhos, arrependidos.

Ayla voltou a remexer em suas coisas, mas logo parou e observou as duas crianças brincando no chão da Fogueira do Mamute, não querendo fitá-las, mas intrigada. Elas brincavam de “fogueiras”, fingindo que dividiam uma fogueira como os homens e mulheres faziam. Seu “filho” era a boneca de couro, moldada em forma humana com uma cabeça redonda, corpo, braços e pernas, enrolada em uma macia manta de pele. A boneca é que fascinava Ayla. Ela jamais tivera uma boneca; a gente do Clã não fazia imagens de qualquer tipo, desenhadas, esculpidas ou moldadas de couro, porém, a boneca a fez recordar um coelho ferido que uma vez levou para a caverna para Iza tratar. Ela havia aninhado e balançado o coelho da mesma maneira que Rugie segurava e brincava com a boneca.

Ayla sabia que, geralmente, era Rugie quem iniciava as brincadeiras. Às vezes brincavam que estavam unidos, outras eram “líderes”, um irmão e uma irmã encarregados de seu próprio acampamento. Ayla observou a menininha loura e o menino de cabelos castanhos, consciente, de repente, das feições do Clã de Rydag. Rugie o considera seu irmão, pensou Ayla, mas duvidava de que seriam, algum dia, co-líderes de um acampamento.

Rugie entregou a boneca a Rydag, depois se levantou e se afastou em alguma missão imaginária. Rydag a viu ir embora, depois colocou a boneca ao chão e ergueu a cabeça para Ayla e sorriu, O menino não se interessava muito pelo bebê imaginário depois que Rugie não voltou em curto tempo. Ele preferia bebês reais, embora não se importasse de brincar com Rugie quando ela estava presente. Depois de algum tempo, Rydag se levantou e saiu também. Rugie havia esquecido a brincadeira e a boneca por certo tempo, e Rydag foi procurá-la, ou encontrar outra coisa para fazer.

Ayla voltou a escolher o que levaria para a Reunião de Verão. No ano anterior, parecia, ela havia vasculhado suas coisas demasiadas vezes, tomando decisões sobre o que levar e o que deixar. Desta vez, preparava-se para viajar, e levaria somente o que pudesse carregar. Tulie já lhe falara sobre a utilização dos cavalos e do travois para carregar presentes; aumentaria tanto o seu status quanto o do Acampamento do Leão. Ela pegou a pele que tingira de vermelho e sacudiu-a, tentando resolver se precisaria dela ou não. Jamais fora capaz de decidir o que fazer com a pele vermelha. Não sabia o que faria com ela agora, mas vermelho era uma cor sagrada para o Clã, e além disso ela gostava. Dobrou-a e colocou-a junto das outras poucas coisas que queria levar além do que era essencial: o cavalo esculpido que ela amava tanto, que Ranec lhe dera em sua adoção, e a nova muta; a bela ponta de sílex de Wymez; alguns adornos, contas e colares; seu traje que fora presente de Deegie, a túnica branca que ela fizera e a capa de Durc.

Sua mente vagou enquanto remexia mais alguns itens, e encontrou-se pensando em Rydag. Teria ele realmente uma companheira, um dia, como Dure? Ela achava que não haveria nenhuma menina como ele na Reunião de Verão. Ela não estava certa de que ele atingiria a idade adulta sequer, refletiu. Sentia-se grata por seu filho ter sido forte e sadio, e porque teria uma companheira. O clã de Broud, agora, estaria se preparando para ir à Reunião de Clãs, se já não houvessem partido. Ura esperava voltar com eles para se unir finalmente a Durc e, com certeza, odiando a idéia de deixar seu próprio clã. Pobre Ura, seria difícil para ela deixar as pessoas que conhecia, para ir viver num lugar estranho, com um clã estranho. Um pensamento atravessou a mente de Ayla pela primeira vez. Será que ela gostaria de Durc? Ele gostaria dela? Esperava que sim, porque não era provável que tivessem outra chance.

Pensando em seu filho, Ayla estendeu a mão para uma bolsinha que trouxera do vale, abriu-a e retirou o conteúdo. Seu coração falhou quando viu a escultura de marfim. Ela apegou. Era de uma mulher, mas não igual a qualquer das esculturas femininas que já vira, e compreendia, agora, como era incomum. A maioria das muta, exceto a mulher-ave simbólica de Ranec, eram formas cheias, redondas, maternais, com somente uma saliência de corada como cabeça. Todas se destinavam a simbolizar a Mãe, mas aquela era uma escultura de uma mulher magra, com o cabelo em muitas pequenas tranças, da maneira como costumava usar o seu. Mais surpreendente, tinha um rosto cuidadosamente esculpido, com queixo e nariz fino, e uma sugestão de olhos.

Ela segurou a escultura na mão, e a peça se toldou diante de seus olhos quando todas as lembranças voltaram. Sem saber, as lágrimas rolavam por seu rosto. Jondalar a havia esculpido no vale. Quando a fez, disse que queria aprisionar seu espírito de forma que nunca se separassem. Por isto fez a escultura parecida com ela, embora ninguém devesse fazer uma imagem á semelhança de uma pessoa real, por medo de capturar o espírito. Ele disse que queria que ela ficasse com a escultura, assim, ninguém poderia usá-la para propósitos perversos contra ela. Compreendeu que era a sua primeira muta. Jondalar deu-lhe depois de seus Primeiros Ritos, quando ele a havia tornado uma verdadeira mulher.

Ela jamais esqueceria aquele verão em seu vale, apenas os dois, juntos Mas Jondalar ia embora sem ela. Ayla apertou a escultura de marfim contra o peito e desejou ir com ele. Lobo gania para ela, em solidariedade, avançando muito lentamente porque sabia que devia ficar onde estava. Ela estendeu a mão para ele e escondeu o rosto no pêlo do animal, enquanto ele tentava lamber suas lágrimas salgadas.

Ela ouviu alguém descendo o corredor e se sentou ereta, rapidamente, enxugou o rosto e lutou para se controlar. Virou-se como se procurasse alguma coisa atrás de si, quando Barzec e Druwez passaram, envolvidos em sua conversação. Depois, guardou a escultura na bolsinha novamente e, com cuidado, colocou-a sobre o couro vermelho vivo que ela havia tingido para levá-la consigo. Não podia, jamais, abandonar sua primeira muta

Mais tarde, naquela noite, quando o Acampamento do Leão se preparava para dividir uma refeição, Lobo rosnou de forma ameaçadora e correu para a entrada da frente. Ayla ficou de pé em um salto e correu atrás dele, perguntando-se o que podia estar errado. Vários outros a seguiram. Quando abriu a cortina, ficou surpresa ao ver um desconhecido, um estranho muito assustado, retrocedendo enquanto um lobo quase adulto parecia pronto para atacar.

- Lobo, venha cá! - ordenou Ayla. O filhote recuou com relutância, mas ainda encarava o homem desconhecido com os dentes à mostra e uma rosnadela baixa na garganta.

- Ludeg! - exclamou Talut, dando um passo à frente, com um largo sorriso e um grande abraço de urso. - Entre. Entre. Está frio.

- Eu... Ah... Não sei - disse o homem, olhando de soslaio para o filhote. - Há mais aí dentro iguais a este?

- Não, não - respondeu Ayla. - Lobo não ferirá você. Eu não deixarei.

Ludeg olhou para Talut, sem saber se acreditava na mulher estranha.

- Por que tem um lobo em sua moradia?

- É uma longa história, que será melhor contada ao lado de um fogo Venha, Ludeg. O filhote de lobo não machucará você. Prometo - disse Talut, lançando um olhar significativo a Ayla, enquanto conduzia o rapaz através da arcada.

Ayla sabia exatamente o que o olhar significava. Era melhor Lobo não ferir aquele desconhecido. Ela os acompanhou, fazendo sinal ao filhote para ficar ao seu lado, mas não sabia como lhe dizer para parar de rosnar. Era uma situação nova. Ela sabia que os lobos, embora muito afetivos e ligados aos seus bandos, tinham fama de atacar e matar desconhecidos que invadiam o seu território. O comportamento de Lobo era perfeitamente compreensível, mas isso não o tornava aceitável. Ele teria que se habituar com estranhos, quer gostasse ou não.

Nezzie cumprimentou o filho de sua prima com afeição, pegou sua mochila e parka, e entregou-as a Danug para que as levasse para um estrado-cama vazio na Fogueira do Mamute; depois encheu um prato e encontrou um lugar para ele se sentar. Ludeg continuou lançando olhares cautelosos a Lobo, cheio de apreensão e nervosismo e, sempre que Lobo via o seu olhar, a rosnadela ameaçadora em sua garganta se tornava mais forte. Quando Ayla o afagou, ele abaixou as orelhas e se deitou, mas no instante seguinte voltou a rosnar para o estranho. Ela pensou em conter Lobo com uma corda ao redor do seu pescoço, mas não imaginou que solucionaria alguma coisa. Somente deixaria o animal mais ansioso na defensiva, e em troca, poria o homem mais nervoso.

Rydag hesitava, tímido diante do visitante, embora já o conhecesse, mas percebeu rapidamente o problema. Sentiu que a preocupação tensa do homem contribuía para o problema. Talvez, se Ludeg visse que o lobo era amistoso, relaxaria. A maioria das pessoas se amontoavam na área de cozinhar, e quando Rydag ouviu Hartal acordar, teve uma idéia. Foi à Fogueira da Rena e consolou o bebê, depois puxou-o pela mão e dirigiu-se com ele à área de cozinhar, mas não em direção à sua mãe; em vez disso, caminhou com Hartal para Ayla e Lobo.

Hartal havia desenvolvido, naqueles últimos dias, forte atração pelo filhote brincalhão e, no instante em que viu o animal cinzento e peludo, riu de alegria. Encantado, Hartal correu até o filhote, mas seus passos de bebê eram vacilantes. Tropeçou e caiu sobre o animal. Lobo uivou, mas sua única reação foi lamber o rosto do bebê, o que fez Hartal dar risadinhas. Ele empurrou a língua molhada e quente para longe, colocando as mãozinhas gorduchas dentro das grandes mandíbulas de dentes aguçados. Depois, agarrou punhados de pêlo e tentou puxar Lobo para si.

Esquecendo seu nervosismo, Ludeg fitava, com olhos arregalados de surpresa, o bebê forçando o animal a mover-se, porém, mais que isso, a aceitação gentil e paciente do carnívoro feroz. Lobo tampouco podia manter a vigilância defensiva sobre o estranho diante do assalto, e não estava totalmente adulto para ser capaz da persistência sustentada pelos membros adultos de sua espécie. Ayla sorriu para Rydag, sabendo imediatamente que ele havia trazido Hartal exatamente com aquele propósito, Quando Tronie veio e pegou o filho, Ayla segurou Lobo, resolvendo que estava na hora de ele ser apresentado ao estranho.

- Acho que Lobo se acostumará com você mais facilmente se deixar que sinta seu cheiro - disse ela ao rapaz.

Ayla falava a língua perfeitamente, mas Ludeg notou uma diferença na forma como pronunciava algumas palavras. Ele a examinou atentamente pela primeira vez, perguntando-se quem era. Ele sabia que ela não estivera como Acampamento do Leão no ano anterior, quando partiram. Na verdade, não se lembrava de tê-la visto antes, e estava certo de que se lembraria de uma mulher tão bonita. De onde ela viera? Ele ergueu a cabeça e notou um estranho alto e louro, observando-o.

- O que tenho que fazer? - perguntou ele.

- Acho que se deixar apenas que ele cheire sua mão, ajudará. Ele gosta de ser acariciado também, mas eu não tentaria apressar as coisas. Ele necessita de um pouco mais de tempo para conhecer você - falou Ayla.

De forma bastante insegura, Ludeg estendeu a mão. Ayla colocou Lobo ao chão para deixá-lo cheirar o rapaz, mas ficou perto, por precaução. Ela não achou que Lobo atacaria, mas não tinha certeza. Um pouco depois, o homem estendeu a mão para tocar o pêlo espesso, protetor. Jamais havia tocado um lobo vivo antes, e era bastante excitante. Sorriu a Ayla, e pensou de novo como ela era bonita quando lhe retribuiu o sorriso.

- Talut, acho melhor contar minhas novidades depressa - disse Ludeg. - Creio que o Acampamento do Leão tem histórias que eu gostaria de ouvir.

O grande chefe sorriu. Aquele era o tipo de interesse que ele recebia bem. Em geral, corredores apareciam com novidades para contar, e eram escolhidos tanto porque gostavam de contar uma boa história quanto por sua capacidade em correr velozmente.

- Conte, então. Que notícias, traz? - perguntou Talut.

- A mais importante é a mudança do local de reunião para a Reunião de Verão. O Acampamento do Lobo é o anfitrião. O local de Reunião que foi escolhido no ano passado foi inundado. Tenho outras notícias, notícias tristes. Parei no Acampamento Sungaea por uma noite. Existe doença, doença que mata. Alguns morreram, e quando parti, o filho e a filha da chefe estavam doentes. Havia dúvidas sobre se viveriam.

- Oh, isso é horrível! - exclamou Nezzie.

- Que tipo de doença têm? - perguntou Ayla.

- Parece ser no peito. Febre alta, muita tosse e dificuldade para respirar.

- A que distância fica este lugar? - perguntou Ayla.

- Não sabe?

- Ayla era uma visitante, mas foi adotada - disse Tulie. Depois se virou para Ayla: - Não é muito longe.

- Podemos ir lá, Tulie? Ou alguém pode me levar lá? Talvez eu possa ajudar, se essas crianças estão doentes.

- Não sei. O que acha, Talut?

- Ë fora do caminho para a Reunião de Verão, se esta vai ser no Acampamento do Lobo, e nem sequer são parentes, Tulie.

- Acho que Darnev tinha parentes distantes nesse acampamento - falou Tulie. - Ë uma pena um jovem irmão e irmã estarem tão doentes!

- Talvez devêssemos ir, mas teríamos que partir assim que pudermos - falou Talut.

Ludeg havia ouvido com grande interesse.

- Bem, agora que lhes dei as notícias, gostaria de saber sobre o novo membro do Acampamento do Leão, Talut. Ela é uma curandeira, realmente? E de onde veio o lobinho? Nunca ouvi falar de ter um lobo em uma moradia.

- E não é só isso - disse Frebec. - Ayla tem dois cavalos: uma égua e um jovem garanhão.

O visitante olhou para Frebec com incredulidade, depois se recostou e preparou-se para ouvir as histórias que o Acampamento do Leão tinha para contar.

Na manhã seguinte a uma longa noite de narração de histórias, Ludeg teve uma demonstração da habilidade de montar de Ayla e Jondalar, e ficou convenientemente impressionado. Partiu para o acampamento seguinte pronto para espalhar a notícia da nova mulher Mamutoi, juntamente com a notícia da mudança do local da Reunião de Verão, O Acampamento do Leão planejou partir na manhã seguinte, e o resto do dia foi passado em preparativos de última hora.

Ayla resolveu carregar mais remédios do que geralmente levava em sua bolsa de medicamentos, e remexia seu estoque de ervas, conversando com Mamut enquanto ele arrumava sua bagagem. Ela pensava muito na Reunião de Clãs, e vendo o velho feiticeiro poupar suas articulações rígidas, lembrou-se de que as pessoas idosas do Clã, incapazes de fazer a longa viagem, eram deixadas para trás. Como Mamut suportaria a prolongada viagem? Ficou suficientemente preocupada para sair e procurar Talut a fim de perguntar.

- Eu o carrego nas costas a maior parte do caminho - respondeu Talut.

Ela viu Nezzie ajuntando mais um fardo à pilha de coisas que seriam puxadas sobre o travois, pelos cavalos. Rydag estava sentado ao chão, perto, parecendo desconsolado. De repente, Ayla foi procurar Jondalar. Ela o encontrou arrumando o bornal de viagem que Tulie lhe dera.

- Jondalar! Aí está você! - exclamou ela.

Ele levantou a cabeça, sobressaltado. Ela era a última pessoa que esperava ver naquele momento. Ele estivera pensando nela e como lhe diria adeus. Havia resolvido que chegara a hora, quando todos deixassem a habitação, para ele partir também. Mas, em vez de ir com o Acampamento do Leão para a Reunião de Verão, ele iria em direção oposta e iniciaria sua longa jornada de volta ao lar.

- Sabe como Mamut vai à Reunião de Verão? - perguntou ela.

A pergunta apanhou-o totalmente de surpresa. Não era a coisa mais importante em seu pensamento. Ele nem sequer tinha certeza do que ela falava.

- Bem... Não... - respondeu.

- Talut tem que carregá-lo às costas. E depois, há Rydag. Também tem que ser carregado. Eu estava pensando, Jondalar, você tem treinado Racer, ele está acostumado a um cavaleiro agora, não é?

- E.

- E você pode controlá-lo, ele irá para onde você quiser, não?

- Sim, acho que sim.

- Ótimo! Então, não há razão para Mamut e Rydag não montarem os cavalos para ir à Reunião. Eles não podem conduzi-los, mas você e eu podemos. Seria bem mais fácil para todos, e Rydag tem estado tão infeliz ultimamente, talvez isto o animasse. Lembra como ele ficou excitado na primeira vez que montou Whinney? Não se importa, não é, Jondalar? Não precisamos cavalgar, todos os outros irão a pé - disse ela.

Estava tão contente e excitada com a idéia, que era óbvio que ela não havia pensado que ele pudesse não ir com eles. Como ele poderia recusar?, Pensou. Era uma boa idéia e o Acampamento do Leão tinha feito tanto por ele, que lhe pareceu o mínimo que podia fazer.

- Não, não me importo de andar - respondeu. Sentiu uma estranha sensação de alegria ao ver Ayla dirigir-se a Talut, como se houvesse se livrado de um grande peso. Apressou-se a terminar a arrumação da bagagem; depois, pegando suas coisas, foi-se juntar aos outros. Ayla supervisionava o carregamento dos dois travois. Estavam quase prontos para partir

Nezzie o viu acercar-se e lhe sorriu.

- Estou contente porque resolveu vir conosco e ajudar Ayla com os cavalos. Mamut ficará muito mais confortável, acho, e veja Rydag! Nunca o vi tão feliz por ir a uma Reunião de Verão antes.

Por que ele tinha a impressão, perguntou-se Jondalar, de que Nezzie sabia que ele havia pensado em ir embora?

- E pense que impressão causaremos ao chegar não apenas com os cavalos, mas com cavaleiros - disse Barzec.

- Jondalar, esperávamos você. Ayla não estava certa sobre quem deve montar qual cavalo - disse Talut.

  • - Acho que não faz diferença - disse Jondalar. - Whinney é um pouco mais fácil de montar. Ela não faz você saltar tanto.

Notou que Ranec ajudava Ayla a equilibrar os fardos. Crispou-se internamente ao vê-los rindo juntos, e compreendeu quão temporária era a sua recuperação. Ele apenas adiara o inevitável, mas assumira um compromisso, agora. Depois de fazer gestos misteriosos e pronunciar palavras esotéricas, Mamut cravou uma muta no solo, na entrada da frente, a fim de proteger a habitação, e depois, com a ajuda de Ayla e Talut, montou Whinney. Ele pareceu nervoso, mas era difícil saber. Jondalar achou que ele montava bem.

Contudo, Rydag não ficou nervoso, já havia montado antes. Estava apenas excitado quando o homem alto o pegou ao colo e o colocou sobre o dorso de Racer. Rydag nunca montara o garanhão. Sorriu para Latie, que o olhava, com uma mistura de preocupação pela segurança dele, prazer por sua nova experiência e apenas uma pontinha de inveja. Ela havia visto Jondalar treinar o animal, tanto quanto possível, de alguma distância, desde que era difícil convencer outra mulher a acompanhá-la apenas para ficar por perto e observar havia desvantagens na vida adulta. Ela concluiu que treinar um cavalo novo não era necessariamente mágica. Era preciso apenas ter paciência e, naturalmente, um animal para treinar.

Uma última verificação no acampamento e eles começaram a subir a encosta. A meio caminho da subida, Ayla parou. Lobo também, observando-a em expectativa. Ela olhou para trás, para a habitação onde havia encontrado um lar e aceitação entre aqueles de sua própria raça. Ela já sentia falta de sua segurança aconchegante, mas a moradia estaria ali quando voltassem, pronta para abrigá-los de novo durante um longo e frio inverno. O vento soprou a cortina através da arcada de presas de mamutes na entrada, e ela viu o crânio do Leão da Caverna acima dela. O Acampamento do Leão parecia solitário, sem seus moradores. Ayla dos Mamutoi estremeceu com uma repentina e angustiante tristeza.

As pastagens imponentes, fonte abundante de vida naquela terra fria, exibiam ainda outra face do ciclo renovador quando o Acampamento do Leão viajou. As flores amarelas e violetas-azuladas da última iridescência anã murchavam, porém ainda estavam coloridas e as peônias floresciam. Um vasto canteiro de botões vermelho-vivos enchia toda a depressão entre duas colinas, provocando exclamações de assombro e admiração dos viajantes. Mas o que predominava eram o capim-do-campo novo e a festuca desenvolvida e estipas, tornando as estepes ondas de prata suavemente onduladas, realçadas por sombras de salvas azuis. Somente mais tarde, quando o capim novo amadurecia e as estipas perdiam suas plumas é que as ricas planícies mudavam de prata para ouro.

O filhote de lobo sentiu prazer em descobrir a multidão de pequenos animais que viviam e cresciam na vasta planície. Ele corria atrás de furões-bravos e arminhos - de pêlos marrons - e recuava quando predadores destemidos defendiam seu território. Quando ratos, ratazanas e musaranhos de pêlo aveludado, acostumados a fugir de raposas, enfiavam-se em buracos escavados pouco abaixo da superfície, Lobo caçava gerbos, hamsters, e ouriços-cacheiros de orelhas compridas e espinhosos. Ayla ria diante da expressão sobressaltada do filhote quando um gerbo de rabo grosso, com patas dianteiras curtas e três unhas compridas nas patas traseiras, afastava-se aos saltos e entrava na toca em que hibernara durante todo o inverno. Lebres, hamsters gigantes e gerbos grandes eram suficientes para uma refeição, e saborosos quando esfolados e espetados sobre uma fogueira, à noite. A funda de Ayla derrubou vários animais que Lobo perseguiu.

Os roedores de estepe que cavavam a terra eram benéficos, soltando e revirando a superfície do solo, mas alguns mudavam a característica da terra com suas escavações constantes. Quando o Acampamento do Leão viajava por terra, os buracos ubiquos de esquilos eram numerosos demais para se contar, e em algumas regiões, tinham que dar a volta ao redor de centenas de montículos cobertos de capim, de 60 centímetros a 1 metro de altura, cada um deles uma comunidade de marmotas das estepes.

Os esquilos eram a caça preferida de milhafres negros, embora os gaviões de asas longas também se alimentassem de outros roedores, assim como de carniça e insetos. As aves sagazes em geral detectavam os esquilos ingênuos enquanto voavam alto, mas o milhafre também podia rondar como o francelho - o falcão nativo - ou voar muito baixo para pegar sua vítima de surpresa. Além de gaviões e falcões, a águia castanho-amarelada preferia o pequeno roedor prolífico. Numa ocasião, quando Ayla viu Lobo em uma atitude que a fazia prestar mais atenção, notou um dos grandes predadores marrons pousar perto de seu ninho no solo, trazendo um esquilo para seus filhotes. Ela observou com interesse, mas nem ela, nem o lobinho, perturbaram as aves.

Um grande número de outras aves se sustentava da abundância da terra vasta. Cotovias e caminheiros estavam em toda parte, nas estepes, galos silvestres, ptármigas e perdizes, cortiçolas e grandes betardas, e belas garças, cinza-azuladas com cabeças negras e tufos brancos de penas atrás dos olhos. Chegavam para fazer ninhos na primavera, desenvolviam-se com alimentação de insetos, lagartos e cobras, e partiam no outono em grandes formações em “V”, trombeteando através do céu.

Talut havia partido em uma marcha que estava habituado a usar quando viajava com todo o acampamento, a fim de não forçar demais os membros mais lentos do grupo. Mas descobriu que se moviam muito mais depressa do que o comum. Os cavalos faziam a diferença. Carregando os presentes, produtos para serem negociados, e peles para tendas nos travois, e as pessoas que tinham que ser ajudadas, sobre seus dorsos, tinham tornado mais leve a carga de todos. O chefe estava satisfeito com sua marcha rápida, especialmente, desde que se desviavam do seu caminho, mas isso também apresentava um problema. Ele havia planejado o trajeto que fariam, e as paradas, para tirar proveito de alguns locais com bebedouros conhecidos. Agora, tinha que reconsiderar à medida que avançavam.

Haviam parado perto de um riacho, embora ainda fosse o começo do dia. As estepes, às vezes, cediam o lugar a bosques perto de água, e eles acamparam num grande campo parcialmente cercado por árvores. Depois que Ayla removeu o travois de Whinney, resolveu levar Latie para uma cavalgada. A menina gostava de ajudar a cuidar dos cavalos, e os animais mostravam grande afeição em troca. Quando as duas montaram, cavalgando através de um pequeno arvoredo, uma mistura de espruce, vidoeiro, carpa, lanço, chegaram a uma clareira florida, um pequeno prado viçoso que era um pedaço verdejante das estepes, cercado de árvores. Ayla parou e cochichou ao ouvido da jovem que estava à sua frente, com uma perna a cada lado da égua.

- Fique muito quieta, Latie, mas olhe ali, perto da água.

Latie olhou o local indicado, franziu a testa a princípio, quando não conseguiu ver nada, depois sorriu ao ver uma antílope-fêmea com dois filhotes levantar a cabeça, cautelosa, mas insegura. Depois Latie viu vários outros antílopes. Os chifres espiralados cresciam diretamente da cabeça do pequeno antílope, curvando-se ligeiramente na ponta, e seu grande focinho sobranceiro lhe dava um rosto comprido distinto.

O som das aves se tornou audível quando as duas jovens permaneceram sentadas sobre o dorso da égua, em silêncio, observando: o arrulho dos pombos, o canto alegre de toutinegras, o grito de um pica-pau. Ayla ouviu o belo som, como o da flauta, de um papafigo dourado, e respondeu, imitando-o tão exatamente que confundiu a ave Latie gostaria de ser capaz de assobiar assim.

Ayla deu um sinal a Whinney fazendo-a avançar lentamente em direção à abertura semelhante a um parque, no bosque. Latie quase tremeu de excitação, quando se aproximaram dos antílopes, e viu outra fêmea com dois filhotes. De repente, houve uma mudança no vento e todos os antílopes levantaram as cabeças, e num instante, se dirigiam através dos bosques para as estepes amplas. Uma listra cinzenta os seguiu e Ayla percebeu quem os fizera fugir.

Quando Lobo voltou, ofegante, e caiu ao chão, Whinney pastava tranqüila, e as duas jovens estavam sentadas no prado ensolarado, colhendo morangos silvestres. Um punhado de flores coloridas se encontrava no solo ao lado de Ayla, flores de um vermelho-vivo com compridas pétalas finas que pareciam ter sido mergulhadas num corante vermelho brilhante, e maços de grandes capítulos amarelos-dourados, misturados a brancos crástios felpudos.

- Eu gostaria que houvesse bastante para levar alguns - disse Ayla, pondo outro morango pequeno, mas excepcionalmente doce e saboroso, na boca.

- Teria que haver muito mais. Eu gostaria que houvesse mais, para mim - disse Latie com largo sorriso. - Além disso, quero pensar que este é um lugar especial somente para nós, Ayla. - Colocou um morango na boca e fechou os olhos, saboreando. Sua expressão ficou pensativa: - Aqueles filhotes de antílopes eram realmente novos, não? Nunca estive tão perto de filhotes assim.

- Ë por causa de Whinney que podemos nos aproximar tanto. Os antílopes não temem cavalos. Mas Lobo - disse Ayla, olhando para o animal. Ele ergueu os olhos ao ouvir o seu nome. - Foi ele quem assustou os antílopes.

- Ayla, posso perguntar uma coisa?

- Claro, sempre pode perguntar o que quiser.

- Acha que eu poderia encontrar um cavalo algum dia? Quero dizer, um potro que eu pudesse cuidar como você fez com Whinney, de modo que ele se acostumasse comigo.

- Não sei. Eu não pretendia encontrar Whinney. Aconteceu, apenas. Seria difícil encontrar um potro. Todas as mães protegem seus filhos.

- Se você quisesse conseguir outro cavalinho, como faria?

- Nunca pensei nisso... Acho que se quisesse um potro... Deixe-me pensar... Teria que pegar sua mãe. Lembra-se da caçada de bisões no último outono? Se você estivesse caçando cavalos e levasse uma cavalhada para um cercado como aquele, não teria que matar todos eles. Poderia ficar com um ou dois. Talvez pudesse até separar um potro do resto, e depois libertar os outros, se não precisasse deles. - Ayla sorriu. - Agora, acho mais difícil caçar cavalos.

Quando voltaram, a maior parte das pessoas estava sentada ao redor de uma grande fogueira, comendo. As duas jovens se serviram e sentaram-se.

- Vimos alguns antílopes - disse Latie. - Até filhotes.

- Acho que viram alguns morangos também - disse Nezzie seca mente, vendo as mãos manchadas de vermelho da filha. Latie corou, lembrando-se de que quisera ficar com os morangos só para si.

- Não havia suficiente para trazer - disse Ayla.

- Não teria feito diferença. Conheço Latie e morangos. Ela é capaz de comer um campo inteiro, sem dividir com ninguém, se tiver uma chance.

Ayla notou o embaraço de Latie e mudou de assunto.

- Também colhi um pouco de unha-de-cavalo para a tosse, para o acampamento doente, e uma planta de flores vermelha... Não sei o nome... Cuja raiz é muito boa para tosses e para expectorar o catarro do peito - disse ela.

- Eu não sabia que colhia essas flores por este motivo - falou Latie.

- Como sabe que eles estão com esse tipo de doença?

- Não sei, mas desde que vi as plantas, pensei que poderia colher algumas, especialmente já que estavam tão doentes com aquele tipo de enfermidade. Quanto tempo levaremos para chegar lá, Talut?

- É difícil dizer - falou o chefe. - Estamos viajando mais depressa do que o usual. Devemos alcançar o Acampamento Sungaea dentro de um dia, mais ou menos. O mapa que Ludeg fez para mim era muito bom, mas espero não estarmos atrasados demais. A doença deles é pior do que pensei.

Ayla franziu a testa:

- Como sabe?

- Encontrei sinais deixados por alguém.

- Sinais?

- Venha comigo, vou-lhe mostrar - disse Talut, pousando sua xícara e levantando-se. Conduziu Ayla até uma pilha de ossos perto da água. Ossos, particularmente ossos grandes como crânios, podiam ser encontrados por todas as planícies, mas ao se aproximarem Ayla compreendeu que não era um arranjo natural. Alguém os havia empilhado propositadamente. Um crânio de mamute com presas quebradas havia sido colocado no alto do monte, de cabeça para baixo.

- Isto é sinal de más notícias - disse Talut, apontando para o crânio.

- Muito más. Vê esta mandíbula inferior com os dois ossos da espinha inclinados contra ele? A ponta da mandíbula mostra que direção tomar, e o acampamento fica a dois dias de distância.

- Devem precisar de ajuda, Talut É por isso que colocam este sinal aqui?

Talut apontou para um pedaço de casca de vidoeiro queimada, pendendo da extremidade quebrada da presa esquerda.

- Vê isto? - perguntou.

- Sim. Está queimada, como se estivesse num fogo.

- Significa doença, doença que mata. Alguém morreu. As pessoas têm medo desse tipo de doença, e este é um lugar onde as pessoas param, muitas vezes. Esse sinal não foi posto aqui para pedir ajuda, mas para prevenir as pessoas e afastá-las.

- Oh, Talut! Eu preciso ir. Vocês não precisam, mas eu sim. Posso ir agora, cavalgando Whinney.

- E o que dirá a eles quando chegar lá? - disse Talut. - Não, Ayla. Não deixarão que você ajude. Ninguém a conhece. Não são sequer Mamutoi, são Sungaea. Falamos sobre isso. Sabíamos que você quereria ir. Tomamos este caminho e iremos com você. Acho que podemos chegar lá em um ou dois dias, por causa dos cavalos.

O sol deslizava pela borda da terra quando o grupo de viajantes do Acampamento do Leão se acercou de um grande acampamento situado sobre um terraço natural amplo, a cerca de 9 metros acima de um rio grande, rápido. Pararam quando foram vistos por algumas pessoas que os fitaram, assombradas, antes de correrem para o interior de um dos abrigos. Um homem e uma mulher apareceram. Tinham os rostos vermelhos com uma pomada de ocre, e seu cabelo era coberto de cinzas.

É tarde demais, pensou Talut, quando ele e Tulie se acercaram do Acampamento Surigaea, seguidos por Nezzie e Ayla, que puxavam Whinney, com Mamut em seu dono. Era óbvio que tinham interrompido alguma coisa importante. Quando os visitantes estavam a uns 3 metros de distância, o homem com o rosto colorido de vermelho ergueu o braço e a mão, a palma virada para a frente Era o sinal claro para parar. Ele falou a Talut em uma linguagem diferente, no entanto, havia algo de familiar nela para Ayla. Ela sentiu que devia ser capaz de compreendê-la. É uma semelhança com Mamutoi. Talut respondeu, em sua própria língua. Depois, o homem tornou a falar.

- Por que o Acampamento do Leão dos Mamutoi vem aqui neste momento? - disse, falando Mamutoi agora. - Há doença e grande tristeza neste acampamento. Não viram os sinais?

- Sim, vimos - replicou Talut. - Temos conosco uma filha da Fogueira do Mamute, uma perita curandeira. O corredor, Ludeg, que passou por aqui alguns dias atrás, nos contou sobre seus problemas. Nós nos preparávamos para viajar para nossa Reunião de Verão, mas primeiro, Ayla, nossa curandeira, quis vir aqui oferecer seus préstimos. Um de nós tinha parentesco com um de vocês; somos parentes. Viemos.

O homem olhou para a mulher de pé ao seu lado. Era claro que ela sofria e fazia algum esforço para se conservar firme.

- É tarde demais - disse ela. - Eles estão mortos. - Sua voz desapareceu em um gemido, e ela chorou, angustiada. - Estão mortos. Meus filhos, meus bebês, minha vida, estão mortos.

Duas pessoas se colocaram a cada lado da mulher e a levaram embora.

- Minha irmã sofreu uma grande dor - disse o homem. - Perdeu um filho e uma filha. A menina era quase mulher, o menino alguns anos mais novo. Todos estamos sofrendo.

Talut sacudiu a cabeça, solidário.

Realmente, é uma grande tristeza. Partilhamos sua dor, e oferecemos qualquer conforto que pudermos dar. Se for seu costume, gostaríamos de ficar para somar nossas lágrimas às suas, enquanto são devolvidos ao seio da Mãe.

- Sua bondade é apreciada, e sempre será lembrada, mas ainda há doentes entre nós. Pode ser perigoso ficar. Pode ser perigoso terem vindo.

- Talut, pergunte se eu posso ver os que estão doentes. Talvez eu possa ajudá-los - disse Ayla.

- Sim, Talut. Pergunte se Ayla pode ver os doentes - ajuntou Mamut. - Acho que ela será capaz de dizer se é seguro, para nós, ficar aqui.

O homem de rosto vermelho olhou duramente para o velho montado a cavalo. Ficara surpreso quando vira os cavalos, mas não queria parecer dominado pelo assombro, e estava tão entorpecido por causa da tristeza que deixou a curiosidade de lado um instante, ao agir como porta-voz de sua irmã, e do seu acampamento. Mas quando Mamut falou, a visão estranha de um homem montado em um cavalo foi, de repente, trazida à sua percepção com novo impacto.

- Como aquele homem está sentado sobre um cavalo? - falou ele, de forma abrupta, afinal. - Por que o cavalo permite isso? E aquele outro, lá atrás. -

- E uma longa história - disse Talut. - O homem é nosso Mamut, e os cavalos obedecem à nossa curandeira. Quando houver tempo, ficaremos felizes em lhe contar a respeito, mas, primeiro, Ayla gostaria de ver seus doentes. Talvez possa ajudá-los. Ela será capaz de nos dizer se os espíritos malignos ainda permanecem e se ela pode contê-los e torná-los inofensivos; se para nós é seguro ficar aqui.

- Diz que ela é capaz. Devo acreditar. Se é capaz de comandar o espírito do cavalo, deve possuir magia poderosa. Deixe-me falar com os que estão lá dentro.

- Há um outro animal sobre o qual deve saber - disse Talut e se voltou para Ayla: - Chame-o, Ayla.

Ela assobiou e antes mesmo de Rydag soltá-lo, Lobo já se libertara. O homem Sungaea e outros espectadores ficaram surpresos quando o lobinho se acercou correndo, porém ainda mais assombrados ficaram quando parou aos pés de Ayla, e olhou para ela com ânsia. A um gesto da mulher, ele se deitou sobre a barriga, mas sua atenção se concentrou nos desconhecidos, inquietamente.

Tulie estivera observando com cuidado as reações do Acampamento Sungaea e compreendeu, rapidamente, que forte impressão os animais dóceis produziram. Tinham acentuado a importância das pessoas a quem estavam ligados e do Acampamento do Leão como um todo. Mamut, pelo simples fato de montar a égua, havia adquirido prestígio. Eles o observavam com olhares desconfiados, e suas palavras foram bastante autoritárias, mas a resposta a Ayla foi ainda mais reveladora. Olhavam para ela com temor, e uma espécie de respeito e receio.

A chefe compreendeu que ela havia-se habituado aos cavalos, mas recordou sua apreensão na primeira vez em que vira Ayla com os animais, e não era difícil se colocar no lugar daquelas pessoas. Ela estivera presente quando Ayla trouxe o lobinho para a habitação, e o vira crescer, mas, considerando Lobo como um estranho poderia olhá-lo, compreendeu que não seria tomado por filhote. Podia ser jovem, mas, aparentemente, era um lobo adulto e a égua era madura. Se Ayla era capaz de dominar cavalos fortes e o espírito de lobos independentes, que outras forças seria capaz de controlar? Especialmente quando diziam que ela era a filha da Fogueira do Mamute, e uma curandeira.

Tulie se perguntou que tipo de recepção teriam quando chegassem à Reunião de Verão, mas não ficou surpresa, de modo algum, quando Ayla foi convidada a examinar os membros doentes do acampamento. Os Mamutoi se prepararam para esperar. Quando Ayla saiu, dirigiu-se a Mamut, Talut e Tulie.

- Acho que têm o que Nezzie chama a doença da primavera, febre e aperto no peito, e problema para respirar, exceto que adoeceram mais gravemente e mais tarde, na estação - explicou Ayla.

- Duas pessoas velhas morreram, mas é muito duro quando crianças morrem. Não estou certa por que aconteceu. Em geral, os jovens são mais resistentes para se recuperar deste tipo de doença.

Todos os outros parecem ter ultrapassado a pior fase. Alguns tossem muito, e posso ajudá-los a se sentir melhor, mas ninguém parece estar gravemente doente agora. Eu gostaria de preparar alguma coisa para a mãe que perdeu os filhos. Ela sofre muito e não posso culpá-la. Não estou absolutamente certa, mas acho que não correremos perigo em ficar para o funeral. Creio que deveríamos, contudo, ficar dentro de suas moradias.

- Eu sugeriria que armássemos nossas tendas, se decidíssemos ficar - falou Tulie. - Lá é bastante difícil para eles sem ter estranhos por perto o tempo todo, e nem sequer são Mamutoi. Sungaea são diferentes.

Ayla acordou de manhã ao som de vozes não muito distante de sua tenda. Levantou-se depressa, vestiu-se e espiou. Várias pessoas cavavam uma vala comprida e estreita. Tronie e Fralie estavam lá fora, sentadas perto do fogo, amamentando seus bebês. Ayla sorriu e se reuniu a elas. O cheiro de chá de salva vinha de uma cesta de cozinhar fervente Ela tirou uma xícara com uma concha e se sentou com as duas mulheres, bebericando o líquido quente.

- Vão enterrá-los hoje? - Fralie quis saber.

- Acho que sim - replicou Ayla. - Creio que Talut não quis perguntar diretamente, mas tive essa impressão. Não compreendo a língua deles, embora entenda algumas palavras de vez em quando.

- Devem estar cavando a sepultura. Pergunto-me por que a estão fazendo tão comprida? - disse Tronie.

- Não sei, mas estou contente porque partiremos logo. Sei que é certo ficarmos, mas não gosto de funerais - disse Fralie.

- Ninguém gosta - falou Ayla. - Gostaria que tivéssemos chegado aqui alguns dias antes.

- Você não sabe se poderia ter feito alguma coisa por aquelas crianças, de qualquer forma - falou Fralie.

- Sinto muita pena da mãe - comentou Tronie. - Já seria muito duro perder um filho, mas dois ao mesmo tempo... Não sei se suportaria puxou Hartal contra si, mas o bebê somente se contorceu para soltar-se.

- Sim. É duro perder um filho - disse Ayla. Sua voz soou tão triste que Fralie olhou-a, espantada. Ayla pousou a xícara e se ergueu. - Vi absinto crescendo aqui perto. A raiz produz um remédio muito forte. Não a uso com freqüência, mas quero fazer algo para acalmar e relaxar a mãe e precisa ser forte.

O Acampamento do Leão observou ou participou externamente de muitas atividades e cerimônias durante o dia, mas, ao se aproximar à noite, a atmosfera mudou, se tornou carregada com uma intensidade que atingiu até mesmo os visitantes. As emoções exaltadas provocaram gritos genuínos de dor e tristeza dos Mamutoi quando as duas crianças foram carregadas solenemente para fora da habitação em esquifes tipo maca, e trazidas para que cada pessoa lhes desse um adeus.

Quando as pessoas que carregavam as macas passaram, lentamente, pelos viajantes chorosos, Ayla notou que as crianças tinham sido vestidas com trajes lindamente feitos e ornados com refinamento, como se vestidas para um importante festival. Ela não pôde deixar de ficar impressionada e intrigada. Pedaços de couro tingidos diferentemente e coloridos naturalmente, assim como peles, tinham sido costuradas, com cuidado formando intrincados padrões geométricos na confecção de túnicas e calças compridas, contornadas e realçadas por partes sólidas, adornadas com milhares de pequenas contas de marfim. Um pensamento desgarrado passou por sua mente. Todo o trabalho teria sido feito usando apenas um furador aguçado? Talvez alguém apreciasse a pequena agulha de marfim, de ponta fina, com o buraco na extremidade.

Ela também reparou nos enfeites de cabeça e cintos, e nos ombros das meninas, uma capa com desenhos fascinantes, trabalhados em um material que parecia ter sido feito de fios de lã, dos animais lanosos de passagem por ali. Ela queria tocá-la, examiná-la com atenção e saber como fora feita, mas não seria adequado. Ranec, de pé ao seu lado, reparou também na capa e comentou sobre o padrão intrincado de espirais formando ângulo reto. Ayla esperava que, antes de partirem, pudesse descobrir mais sobre como era feita, talvez em troca de uma de suas agulhas de marfim.

As duas crianças também estavam adornadas com adereços feitos de conchas, dentes caninos de animais, ossos; o menino até usava uma pedra grande e rara que fora furada para se converter em um pendani. Ao contrário dos adultos, cujo cabelo estava despenteado e coberto de cinzas, o das crianças estava muito bem penteado em estilos elaborados - o menino de tranças, a menina com grandes coques de ambos os lados da cabeça.

Ayla não conseguia afastar a impressão de que as crianças se encontravam apenas dormindo e acordariam a qualquer momento. Pareciam jovens demais e muito sadias, com os rostos redondos, sem rugas, para morrer, para terem ido para o reino dos espíritos. Ela sentiu um calafrio, e involuntariamente lançou um olhar a Rydag. Encontrou os olhos de Nezzie e desviou os seus. Os corpos das crianças foram finalmente levados à vala comprida e estreita. Foram colocados nela, uma cabeça contra a outra. Uma mulher, com um adorno de cabeça peculiar e uma comprida túnica de contas, ergueu-se e começou um canto fúnebre, alto que fez todos estremecerem. Ela usava muitos colares e pendentes ao redor do pescoço, que balançavam e chocalhavam quando ela se movia, e vários braceletes de marfim nos braços, consistindo de argolas separadas de cerca de meia polegada de largura. Ayla percebeu que eram semelhantes àquelas usadas por mulheres Mamutoi.

Um rufo de tambor ecoou profundamente com o som familiar de um tambor de crânio de mamute.

A mulher, lamentando e cantando, começou a dar voltas e balançar, erguendo-se na ponta dos pés, e levantando-os, às vezes de frente para locais diferentes, mas permanecendo em um só lugar. Enquanto dançava, sacudia os braços com força e ritmo fazendo com que as pulseiras chocalhassem. Ayla a havia conhecido e, embora não tivessem podido conversar, sentiu-se atraída a ela. Mamut explicara que não era uma curandeira como Ayla, mas alguém que se comunicava com o mundo espiritual. Era a réplica dos Sungaea de Mamut - ou de Creb, compreendeu Ayla com um sobressalto. Era difícil para ela imaginar uma mulher mog-ur.

O homem e a mulher de rostos vermelhos salpicaram ocre vermelho pulverizado sobre as crianças, fazendo Ayla pensar na pomada de ocre vermelha que Creb esfregara no corpo de Iza. Várias outras coisas foram colocadas cerimoniosamente na sepultura: fustes de presa de mamute que tinha sido endireitada, lanças, facas de sílex e adagas, esculturas de um mamute, um bisão e, um cavalo – não tão bem-feitas quanto às de Ranec, achou Ayla. Ficou surpresa em ver um comprido bastão de marfim, decorado com uma escultura circular, com raios como uma roda, a que estavam presas penas e outros objetos, jazendo ao lado de cada criança. Quando o povo do acampamento se juntou ao lamentoso, choroso canto da mulher, Ayla se inclinou à frente e cochichou a Mamut:

- Aqueles bastões se parecem com o de Talut. São Bastões Falantes?

- Sim, são. Os Sungaea são parentes dos Mamutoi, mais próximos do que algumas pessoas desejam admitir - disse Mamut. - Existem diferenças, mas a cerimônia do funeral é muito parecida com a nossa.

- Por que colocam Bastões Falantes em uma sepultura de crianças?

- Elas recebem as coisas de que precisarão quando despertarem no mundo espiritual. Por serem filha e filho da chefe, são uma irmã e um irmão que se destinavam a ser co-líderes, se não nesta vida, então na outra - explicou Mamut. - É necessário mostrar sua posição para não perderem status lá.

Ayla observou um pouco e, depois, quando começaram a cobrir a sepultura com terra, ela se dirigiu a Mamut novamente:

- Por que são enterradas assim, cabeça contra cabeça?

- São irmão e irmã - respondeu ele, como se o resto se explicasse por si só. Depois viu a expressão intrigada de Ayla e continuou: - Poderá ser uma longa jornada, difícil e confusa para o mundo dos espíritos, principalmente para aqueles que são tão jovens. Precisam poder se comunicar, para ajudar e consolar um ao outro, mas é uma abominação para a Mãe um irmão e irmã partilharem prazeres. Se acordarem lado a lado podem esquecer que são irmão e irmã, e ter relações por engano, imaginando que dormiam juntos porque seu destino era se unirem. Assim, uma cabeça contra a outra faz com que possam encorajar-se mutuamente durante a Jornada, e não se confundirem sobre seu relacionamento quando chegarem ao outro local.

Ayla sacudiu a cabeça concordando. Parecia lógico, mas enquanto via a sepultura ser coberta, desejou, ardentemente, que tivessem chegado ali há alguns dias antes. E uma vez não tivesse podido ajudar, mas poderia ter tentado.

Talut parou à margem de um pequeno córrego, olhou para um e outro lados, depois consultou o pedaço marcado de marfim que segurava na mão. Verificou a posição do sol, examinou algumas formações de nuvens ao norte e cheirou o vento. Por fim, estudou a área próxima.

- Acampamos aqui esta noite - disse ele, tirando a mochila e o saco das costas. Caminhou em direção à irmã enquanto ela decidia onde seria armada a primeira tenda, para que as vizinhas, que utilizavam parte dos mesmos suportes estruturais, tivessem suficiente terreno plano. - Tulie, o que acha de pararmos para negociar um pouco? Eu olhava estes mapas que Ludeg fez. A princípio, não me ocorreu, mas vendo onde estamos, olhe aqui - disse, mostrando-lhe dois pedaços diferentes de marfim com marcas riscadas neles -, este mapa mostra o caminho para o Acampamento do Lobo, o novo local de Reunião de Verão, e aqui está o atalho que traçou para o Acampamento Sungaea.

Daqui, não nos desviaríamos muito do nosso trajeto para visitar o Acampamento do Mamute.

- Quer dizer o Acampamento do Boi-Almiscarado - falou Tulie com desdém. - Foi presunção deles dar nome novo ao seu acampamento. Todos têm uma Fogueira do Mamute, mas ninguém deveria dar o nome do Mamute a um acampamento. Todos nós não somos Caçadores de Mamutes?

- Mas os acampamentos sempre recebem o nome de acordo com a fogueira do chefe, e seu novo chefe é o seu Mamut. Além disso, isso não significa que não possamos negociar com eles... Se não tiverem viajado no verão. Sabe que eles são aparentados com o Acampamento do Âmbar, e sempre têm âmbar para negociar - falou Talut, conhecendo a fraqueza da irmã pelas pedras matizadas de dourado de resina petrificada. - Wymez diz que eles têm acesso a bom sílex também. Temos muitos couros de rena, para não falar em algumas belas peles.

- Não sei como um homem pode estabelecer uma fogueira quando não tem, sequer, uma mulher, mas eu disse apenas que eles foram presunçosos. Mas podemos negociar com eles. Claro que podemos parar, Talut.

- A expressão da chefe mudou para um sorriso enigmático. - Sim, por favor. Acho que seria interessante para o Acampamento do “Mamute” conhecer nossa Fogueira do Mamute.

- Ótimo. Então, é melhor partimos - disse Talut, mas olhou-a com curiosidade, e sacudiu a cabeça perguntando-se o que sua inteligente e astuta irmã estava pensando.

Quando o Acampamento do Leão chegou a um grande rio sinuoso abrindo um canal entre as margens escarpadas de solo de loesse, semelhante à paisagem perto de sua habitação comunal, Talut se dirigiu a um promontório entre ravinas e examinou com cuidado o terreno circunjacente. Viu veados e auroques próximos à água, na planície aluvial abaixo, pastando num campo verde salpicado de pequenas árvores. A alguma distância deles, notou uma grande pilha de ossos embaralhados contra uma margem elevada onde o rio fazia uma curva fechada. Pequenos vultos caminhavam depressa sobre o monte de ossos secos e ele viu vários deles carregando pedaços de ossos.

- Ainda estão aqui - anunciou. - Devem estar construindo.

Os viajantes agruparam-se por uma encosta abaixo em direção ao acampamento situado em um largo terraço, não mais de 4,5 metros acima do nível do rio, e se Ayla ficara surpresa na habitação do Acampamento do Leão, assombrou-se diante do Acampamento do Mamute. Em vez de uma habitação comunal grande, coberta de relva, parcialmente subterrânea, que Ayla comparara a uma caverna ou mesmo a uma toca do tamanho de um homem, neste acampamento várias moradias individuais, redondas, estavam amontoadas no terraço. Elas também eram sólidas e resistentes sob uma camada espessa de torrões de relva coberta com argila, e pequenos canteiros de grama ao redor das bordas, mas não no topo. Fizeram lembrar a Ayla montes grandes, sem vegetação, de marmotas.

Quando se aproximaram, ela compreendeu por que motivo os telhados eram nus. Exatamente como eles faziam, o Acampamento do Mamute também usava os telhados de suas moradias como plataformas de observação. Duas habitações sustentavam uma multidão de observadores e, embora os vigias tivessem voltado sua atenção para os visitantes, esta não era a razão para eles estarem no alto dos telhados arredondados. Quando o Acampamento do Leão deu volta a uma moradia e bloqueou-lhes a visão, Ayla viu o objeto do seu interesse, e ficou surpresa.

Talut tinha razão. Estavam construindo. Ayla havia escutado os comentários de Tulie sobre o nome que aquelas pessoas tinham escolhido para si próprias, porém, após ver a habitação que faziam, o nome parecia bastante apropriado. Embora ela pudesse terminar parecida com todas as outras quando estivesse acabada, a forma como usavam ossos de mamute para vigas parecia reter uma qualidade especial do animal. Era verdade que o Acampamento do Leão havia utilizado ossos de mamute na viga de sus tentação de sua habitação, e selecionara alguns pedaços e os ajustara para que assentassem, mas os ossos usados naquela moradia faziam mais do que sustentar. Eram selecionados e arrumados de forma que a estrutura comunicasse a essência do mamute, de um modo que expressava as crenças dos Mamutoi.

Para criar o design, trouxeram grande número das mesmas partes do esqueleto de muitos mamutes da pilha de ossos abaixo. Começaram com um círculo, de cerca de 4,80 metros de diâmetro da base, de crânios de mamute colocados de modo que a superfície sólida da testa ficasse de frente para a parte interna. A abertura era a arcada conhecida, construída com duas grandes presas curvas de mamute, apoiadas de cada lado no encaixe de um crânio de mamute, e juntas ao alto. Ao redor da parte exterior e subindo até a metade dela, estava uma parede circular feita talvez de uma centena de mandíbulas de mamute, as mandíbulas inferiores em forma de “V”, empilhadas com os queixos pontudos para baixo, um sobre quatro de fundo.

O efeito global destas pilhas em “V” colocadas Lado a lado era o conceito mais impressionante da construção, e o mais significativo. Juntas criavam um padrão em ziguezague, semelhante àquele usado para simbolizar a água nos mapas. E., além disso, como Ayla havia aprendido com Mamut, o símbolo de ziguezague para a água era também o símbolo mais profundo para a Grande Mãe, Criadora da Vida. Representavam o triângulo com vértice para baixo de Seu monte, a expressão exterior de Seu útero. O símbolo, multiplicado muitas vezes, representava toda a vida; não apenas a água, mas as águas da Mãe que tinham inundado a terra e enchido os rios e mares quando Ela deu à luz toda a vida da terra. Não podia haver dúvida de que aquela seria a casa da Fogueira do Mamute.

A parede circular não estava terminada, mas eles trabalhavam no resto da habitação, encravando omoplatas e ossos pélvicos e pedaços de espinha em uma forma ritmadamente simétrica, contudo, apertadamente ajustada. No interior, uma estrutura aberta de madeira proporcionava apoio adicional para a construção e parecia que o telhado seria feito de presas de mamute.

- Este trabalho é de um verdadeiro artista! - exclamou Ranec, avançando mais e admirando abertamente a obra.

Ayla sabia que ele aprovaria. Viu Jondalar de pé a curta distância, segurando Racer pela corda. Compreendeu que ele estava igualmente impressionado e apreciava também a mente inspirada que imaginara o projeto. Na verdade, todo o Acampamento do Leão estava desconcertado, em busca de palavras. Mas, como Tulie desconfiara, o Acampamento do Mamute estava igualmente assombrado com os seus visitantes - ou melhor, os animais domesticados que viajavam com eles.

Houve um período de tempo de olhares fixos, mutuamente maravilhados e surpresos, e depois, uma mulher e um homem, ambos um pouco mais jovens que os líderes do Acampamento do Leão, aproximaram-se para saudar Talut e Tulie. O homem estivera carregando pesados ossos de mamute encosta acima -aquelas não eram, de forma alguma, moradias temporárias que seriam carregadas de um local para outro, mas um acampamento permanente - e estava nu até a cintura e suado. O rosto era fortemente tatuado e Ayla teve que se obrigar a não encará-lo. Ele não tinha apenas um desenho em ziguezague na face esquerda, como o Mamut do Acampamento do Leão, mas um arranjo simétrico de ziguezagues, triângulos, e losangos, e espirais em ângulo reto em duas cores, azul e vermelho.

A mulher havia estado trabalhando também, obviamente, e também estava nua da cintura para cima, mas em vez de calças, usava uma saia enrolada que caía exatamente abaixo de seus joelhos. Não tinha tatuagens, mas o lado do nariz estava furado e ela usava um botoque feito de um pedaço pequeno de âmbar esculpido e polido através do orifício.

- Tulie, Talut, que surpresa! Não os esperávamos, mas em nome da Mãe, nós lhes damos boas-vindas, boas-vindas ao Acampamento do Leão - disse a mulher.

- Em nome de Mut, agradecemos suas boas-vindas, Avarie - disse Tulie. - Não tínhamos intenção de vir em uma hora inconveniente.

- Estávamos aqui perto, Vincavec - ajuntou Talut -, e não poderíamos seguir em frente sem parar aqui.

- Uma visita do Acampamento do Leão nunca é inconveniente para nós - disse o homem -, mas como estavam aqui perto? Este não é o caminho para o Acampamento do Lobo, para vocês.

- O corredor nos veio dizer que a Reunião será realizada em outro local, e ele parou a caminho em um Acampamento Sungaea e nos contou que eles estavam doentes. Temos um novo membro, uma curandeira, Ayla da Fogueira do Mamute - falou Talut, fazendo um sinal a Ayla para que se aproximasse. -, e ela quis vir ver se podia ajudar. Estamos vindo de lá.

- Sim, conheço esse Acampamento Sungaea - disse Vincavec, depois se virou para Ayla. Por um momento, ela sentiu seus olhos penetrarem nos dela. Ayla hesitou um pouco, ainda desabituada a retribuir o olhar direto de um desconhecido, mas sentiu que aquela não era hora para timidez ou a modéstia de uma mulher do Clã, e correspondeu ao olhar penetrante. De repente ele riu, e seus olhos cinza-claros brilharam de aprovação, e uma expressão apreciadora de sua feminilidade. Ela notou, então, que ele era um homem muito atraente, não porque era bonito ou por qualquer feição determinada, embora as tatuagens o fizessem salientar-se, mas por causa de uma característica de força de vontade e inteligência. Ele ergueu o olhar para Mamut, montado em Whinney.

- Então, continua conosco, velho - falou, obviamente satisfeito, depois ajuntou com um sorriso experiente -, e ainda apresenta surpresa. Desde quando se tornou um chamador? Ou precisamos de outro nome?

- Dois cavalos e um lobo viajando como Acampamento do Leão? Isto é mais do que um Dom de Chamar.

- Outro nome poderia ser adequado, Vincavec, mas não é meu dom. Os animais obedecem a Ayla.

- Ayla? Parece que o velho Mamut encontrou uma filha valiosa. - Vincavec tornou a olhar para Ayla, com interesse óbvio. Não reparou na carranca de Ranec, mas Jondalar viu. Compreendeu o sentimento e, pela primeira vez, sentiu um estranho tipo de afinidade com o escultor.

- Chega de conversar aqui, em pé - disse Avarie. - Temos muito tempo para isso. Os viajantes devem estar cansados, e famintos. Devem permitir que eu providencie uma refeição para vocês e um lugar para descansarem.

- Vemos que estão construindo uma nova habitação, Avarie. Não precisam preocupar-se conosco. Um lugar para armar nossas tendas será suficiente - disse Tulie. - Mais tarde, ficaríamos contentes em partilhar uma refeição com vocês, e talvez lhes mostrar algumas peles e couros bonitos de rena que temos conosco.

- Tenho uma idéia melhor! - ribombou Talut, tirando seu fardo das costas e deixando-o cair onde ele se encontrava. - Por que não ajudamos vocês? Talvez tenham que me dizer onde colocar os ossos, mas sou bastante forte para carregar um ou dois ossos de mamute.

- Sim, eu gostaria de ajudar - ofereceu-se Jondalar, avançando com Racer e pondo Rydag no solo. - É uma habitação rara, nunca vi nada igual.

- Sem dúvida, acolhemos com alegria sua ajuda. Alguns de nós estão com pressa para chegar à Reunião de Verão, mas uma moradia necessita de um verão para se erguer adequadamente, assim, tivemos que construí-la antes de partir. O Acampamento do Leão é muito generoso - disse Vincavec, perguntando-se quantos pedaços de âmbar sua generosidade iria custar quando a negociação começasse. Em seguida, concluiu que valeria a pena ter a moradia terminada, e fazer calar alguns dos que se queixavam.

Vincavec não havia notado o alto homem louro no grupo de pessoas, a princípio, mas tornou a olhar para Jondalar, depois fitou Ayla que tirava os arreios de Whinney, livrando-a do travois. Ele era um estranho, como Ayla, e parecia tão à vontade com os cavalos, quanto ela. Em contrapartida, o pequeno cabeça-chata parecia se dar muito bem com o lobo, e não era mais estranho. Devia ter algo a ver com a mulher. O chefe-Mamut do Acampamento do Mamute voltou sua atenção a Ayla novamente. Observou o escultor de pele escura rondando-a; Ranec sempre soubera descobrir o belo e excepcional, pensou. Na verdade, ele agia de forma possessiva, mas, então, quem era o estranho? Não estava ligado à mulher? Vincavec lançou um olhar a Jondalar e viu que ele observava Ayla e Ranec.

Alguma coisa acontecia ali, concluiu Vincavec, depois sorriu. Qualquer que fosse o relacionamento entre eles, se ambos estavam tão interessados, era provável que a mulher não estivesse ainda formalmente unida. Tornou a examinar Ayla. Era uma mulher arrebatadora, e uma filha da Fogueira do Mamute, uma curandeira, ou assim diziam, e certamente possuía um dom único com os animais. Uma mulher de alto status, sem dúvida, mas de onde viera? E por que era sempre o Acampamento do Leão que aparecia com alguém diferente?

As duas chefes se encontravam de pé no interior de uma quase completa, mas vazia e nova habitação. Embora o exterior estivesse coberto, o padrão de ziguezague das paredes estava sutilmente aparente no interior.

- Tem certeza de que não viajarão conosco, Avarie? - perguntou Tulie. Um novo fio de grandes contas de âmbar adornava seu pescoço. - Ficaríamos felizes em esperar mais alguns dias, até estarem prontos.

- Não, vão em frente. Sei que todo mundo está ansioso para chegar à Reunião, e vocês já fizeram muito. A habitação está quase terminada e, sem vocês, jamais teríamos progredido tanto.

- Foi um prazer para nós trabalhar com vocês. Devo confessar, a nova habitação é imponente. E uma honra para a Mãe. Seu irmão é realmente notável. Pode-se quase sentir a presença da Mãe dentro da casa. - Era sincera, e Avarie sabia disso. - Obrigada, Tulie, e não esqueceremos sua ajuda. E por isto que não queremos detê-los mais. Já estão atrasados porque ficaram para nos ajudar. Todos os melhores locais estarão ocupados.

- Agora, não levaremos muito tempo para chegar lá. Nossa carga é bastante leve. O Acampamento do Mamute conseguiu uma pechincha.

Os olhos de Avarie se fixaram no colar novo da grande chefe.

- Não tão boa pechincha quanto o Acampamento do Leão - disse. Tulie concordava. Acreditava que o Acampamento do Leão conseguira o melhor do negócio, mas era impróprio admiti-lo, assim, mudou de assunto.

- Bem, esperamos ver vocês lá. Se pudermos, marcaremos um lugar.

- Agradeceríamos, mas imagino que seremos os últimos a chegar. Teremos que ficar com o que pudermos conseguir. No entanto, procuraremos vocês - disse Avarie, enquanto saíam da habitação.

- Partiremos de manhã, então - falou Tulie. As duas mulheres se abraçaram, e encostaram os rostos um no outro, depois a chefe do Acampamento do Leão começou a se dirigir para as tendas.

- Oh, Tulie, no caso de eu não vir Ayla antes de partirem, por favor, agradeça a pedra-de-fogo a ela novamente - disse Avarie, depois ajuntou com tom aparentemente casual: - Já fixaram um Preço de Noiva para ela?

- Temos pensado sobre isso, mas ela tem tanto a oferecer que é difícil - disse Tulie; depois se virou para continuar seu caminho. Após alguns passos, deu meia-volta e sorriu: - Ela e Deegie se tornaram tão íntimas que Ayla é quase como uma filha para mim.

Tulie mal pôde conter um sorriso ao se afastar. Ela achava que Vincavec andara prestando especial atenção em Ayla, e sabia que o comentário de Avarie não fora casual. Ele havia mandado a irmã fazê-lo. Não seria um mau acordo, pensou Tulie, e ter laços com o Acampamento do Mamute para vocês poderia ser benéfico. Claro, Ranec tem prioridade. Afinal, eles estão prometidos, mas se alguém como Vincavec fizesse uma proposta, não faria mal levá-la em consideração. No mínimo, aumentaria o valor de Ayla. Sim, Talut tivera uma boa idéia ao sugerir que parassem e negociassem.

Avarie a viu afastar-se. Então, Tulie vai negociar, ela mesma, o Preço de Noiva. Foi o que pensei. Talvez devêssemos parar no Acampamento do Âmbar no caminho, eu sei onde Mãe guarda a pedra bruta, e se Vincavec vai lutar por Ayla, precisará de tudo que puder conseguir. Nunca vi uma mulher negociar melhor do que Tulie, pensou Avarie com admiração e má vontade. Ela não dera muita importância à grande chefe do Acampamento do Leão, antes, mas naqueles últimos dias que tiveram a chance de se conhecer melhor, ela passara a respeitar Tulie, e até a gostar dela. Tulie havia trabalhado arduamente com eles e era generosa em elogios, quando eram merecidos, e se era uma excelente negociante, bem, esse era o papel da chefe. Na verdade, se fosse jovem e pronta para se unir a alguém, pensou Avarie, não se importaria de ter alguém como Tulie negociando o seu Preço de Noiva.

Do Acampamento do Mamute, o Acampamento do Leão viajou em direção ao norte, seguindo o rio a maior parte do tempo. Perto dos grandes rios que atravessavam o continente, a paisagem setentrional mudava continuamente e exibia uma rica diversidade de vida vegetal. Sua viagem os levou de planícies de loesse e tundras até lagos florestais juncosos, de turfeiras viçosas e campos de pastagem e colinas ventosas brilhantes como as flores de verão. Embora as plantas do norte fossem mirradas, as flores eram muitas vezes maiores e mais brilhantes que as variedades sulistas. Ayla era capaz de identificar a maioria delas, apesar de não saber sempre como chamá-las. Quando passavam por elas, ou se ela cavalgava ou caminhava sozinha, freqüentemente colhia algumas para Mamut, ou Nezzie, ou Deegie, ou alguém que pudesse dizer-lhe os nomes.

Quanto mais se aproximavam do local da Reunião de Verão, tanto mais Ayla encontrava razões para fazer excursões secundárias. O verão sempre fora à época em que ela queria solidão - Havia sido seu padrão, desde que se lembrava. No inverno ela aceitava o confinamento imposto pelo clima rigoroso, quer fosse na caverna do clã de Brun, ou na sua, em seu vale, ou na habitação comunal dos Mamutoi. Mas no verão, embora não gostasse de ficar sozinha à noite, muitas vezes se divertira saindo sozinha durante o dia. Era seu momento de meditar, e seguir seus impulsos, livre da restrição de ser muito observada, quer por desconfiança, ou amor.

Quando paravam para passar a noite, era bastante fácil dizer que queria identificar plantas ou caçar, e fazia as duas coisas, usando o arremessador de lança tanto quanto a funda, para trazer carne fresca, mas queria realmente afastar-se sozinha. Precisava de tempo para pensar. Temia sua chegada agora e não compreendia por quê. Havia conhecido pessoas suficientes e fora aceita com bastante facilidade, assim sabia que o problema não era este. Porém, quanto mais perto chegavam, mais excitado Ranec ficava e mais soturno Jondalar parecia. E tanto mais ela desejava poder evitar aquela reunião dos acampamentos.

Na última noite da viagem, Ayla voltou de uma longa caminhada com um punhado de flores. Notou que um pedaço de solo perto do fogo havia sido alisado, e Jondalar fazia marcas nele com a faca de desenhar. Tornec tinha um pedaço quebrado de marfim na mão e uma faca aguçada na outra, e estudava as marcas.

- Aqui está ela - disse Jondalar. - Ayla pode dizer melhor do que eu. Não estou certo de ser capaz de descobrir o caminho de volta para o vale saindo do Acampamento do Leão, e sei que não poderia fazê-lo daqui. Fizemos muitas voltas e desvios.

- Jondalar tentava fazer um mapa indicando o caminho para o vale onde você encontrou as pedras-de-fogo - falou Talut.

- Tenho procurado desde que partimos, e não vi uma pedra-de-fogo sequer - disse Tornec. - Eu gostaria de fazer uma viagem até o vale, um dia, e trazer mais pedras. As que temos não durarão para sempre. A minha já tem um grande sulco nela.

- Tenho dificuldade em calcular a distância - disse Jondalar. - Viajamos a cavalo, por isto é difícil dizer quantos dias levaríamos a pé. E exploramos muito, paramos quando sentimos vontade, não seguimos qualquer trilha lógica. Estou quase certo de que voltamos através do rio que corta o seu vale, no extremo norte. Talvez mais de uma vez. Quando voltamos era quase inverno, e muitos pontos de referência tinham mudado.

Ayla pousou as flores, e pegou a faca de desenhar, e tentou pensar sobre como fazer um mapa para o vale. Começou a traçar uma linha, depois hesitou.

- Não se preocupe em fazer o caminho a partir daqui - falou Talut.

- Pense apenas em como chegar lá saindo do acampamento. Ayla franziu a testa, concentrada.

- Sei que posso mostrar o caminho saindo do Acampamento do Leão - disse ela-, mas ainda não entendo os mapas muito bem. Acho que não sei fazer um.

- Bem, não se preocupe com isso - disse Talut. - Não precisamos de um mapa se pode nos indicar o caminho. Talvez, depois que voltarmos da Reunião de Verão, possamos viajar até lá. - Então, fez um gesto com o queixo de barba ruiva em direção às flores: - O que trouxe desta vez, Ayla?

- É o que quero que me digam. Sei o que são, mas não sei como chamá-las.

- Sei que a flor vermelha é um gerânio - falou Talut - E esta é uma papoula.

- Mais flores? - disse Deegie, vindo reunir-se a eles.

- Sim. Talut me disse o nome destas duas - falou Ayla.

- Vejamos, essa é urze e aquela é cravo rosa - disse Deegie, identificando as outras duas e sentando-se ao lado de Ayla em seguida. - Estamos quase chegando. Talut diz que chegaremos amanhã, a qualquer hora.

Mal posso esperar. Amanhã verei Branag, e depois não demorará para nos unirmos, afinal. Nem sequer sei se serei capaz de dormir esta noite.

Ayla lhe sorriu. Deegie estava tão animada que era difícil não partilhar do seu entusiasmo, mas serviu também para lembrar-lhe que ela se uniria breve, igualmente. A conversa de Jondalar sobre o vale e para lá voltar tinha renovado seu sofrimento e o desejo por ele. Ela o estivera observando, tentando não deixá-lo claro, e tinha a impressão de que ele a andara vigiando também. Ela vivia encontrando seus olhos, brevemente, antes de os dois desviarem o olhar.

- Oh, Ayla, há tantas pessoas que quero que conheça, e estou tão feliz por nos unirmos no mesmo Matrimônio. Isso é uma coisa que sempre teremos juntas.

Jondalar se levantou.

- Preciso ir... E... Bem... Arrumar meu rolo de dormir - disse, e se afastou depressa.

Deegie observou o olhar de Ayla acompanhá-lo e teve quase certeza de que viu lágrimas contidas neles. Sacudiu a cabeça. Ayla não parecia uma mulher que estava a ponto de se unir e estabelecer uma nova fogueira com o homem que amava. Não havia alegria, ou excitação. Faltava alguma coisa. Alguma coisa que se chamava Jondalar.

De manhã, o Acampamento do Leão começou a subir o rio, permanecendo no platô das planícies, mas captando vislumbres da rápida corrente d’água abaixo, à esquerda, nebulosa com escoamento glacial e espumando com lodo. Quando alcançaram uma confluência, um local em que dois rios principais se uniam, tomaram o braço esquerdo. Depois de vadear dois grandes afluentes, colocando a maior parte da bagagem em um barco bojudo que haviam trazido para esse propósito, desceram para a planície aluvial e viajaram pelas matas e campos de relva até o vale do rio.

Talut continuava observando o sistema de cavidades e ravinas na margem direita elevada do rio, comparando a paisagem real com o marfim riscado de símbolos, cujo significado ainda não era claro para Ayla. À frente, perto de uma curva pronunciada, encontrava-se o ponto mais elevado da margem oposta, erguendo-se a uns 60 metros acima da água. Do seu lado, um grande campo herbáceo e trechos de matas se estendiam para o interior por alguns quilômetros. Ao se aproximarem mais, Ayla notou um monte de ossos com uma caveira de lobo ao alto. Um arranjo peculiar de pedras se estendia do lado oposto do rio, na direção que Talut tomava.

O rio era largo ali e raso, e seria vadeável de qualquer modo, porém alguém tornara a travessia ainda mais fácil. Pilhas de rochas e cascalho, e alguns ossos tinham sido colocados e espalhados como um caminho de pedras para fazer uma trilha para as pessoas atravessarem o rio, enquanto desviavam o fluxo de água para os espaços no meio.

Jondalar parou para olhar mais atentamente.

- Que idéia inteligente! - comentou. - Pode-se cruzar o rio aqui sem sequer molhar os pés.

- Os melhores lugares para alojamentos são daquele lado... Aquelas depressões protegem bastante contra o vento... Porém, a melhor caça está deste lado - explicou Barzec. - Este caminho é levado pelas enchentes, mas o Acampamento do Lobo constrói um novo todos os anos. Parece que tiveram trabalho extra este ano, provavelmente, para facilitar as coisas para os visitantes.

Talut começou a cruzar o rio. Ayla reparou que Whinney estava extremamente nervosa em relação ao caminho de pedras com os espaços de água no meio, mas a égua a seguiu sem incidentes.

O chefe parou depois da metade da travessia.

- Este local é bom para pescar - disse ele. - O rio corre depressa, portanto é profundo. O salmão sobe até aqui. O esturjão também. E outros peixes, bagre, truta, lúcio. - Dirigia seus comentários a Ayla e Jondalar particularmente, embora incluísse qualquer um dos jovens que não estivera ali antes. Fazia alguns anos que o Acampamento do Leão visitara o Acampamento do Lobo como um grupo.

No lado oposto, quando Talut os conduziu para uma larga ravina, talvez com uns 600 metros de um lado ao outro, no topo, Ayla ouviu um som estranho, como um zumbido alto ou um berro abafado. Subiram a colina aos poucos. Mais ou menos a uns 18 metros acima do nível do rio e a uns 150 metros de distância, chegaram à base da ravina. Ayla olhou à frente e arquejou. Protegidas por muros altos, meia-dúzia de habitações redondas isoladas e enfileiradas estavam confortavelmente fixadas, dentro da depressão de quase 16 quilômetros de comprimento. Mas não foram as moradias redondas que fizeram Ayla arquejar.

Foram as pessoas. Em toda a sua vida, Ayla jamais vira tanta gente. Muito mais do que mil pessoas, mais do que trinta acampamentos tinham se reunido para a Reunião de Verão dos Mamutoi. O comprimento e largura de toda a área estavam cheios de tendas. Havia, no mínimo, quatro ou cinco vezes mais pessoas do que o número que se reunia para a Reunião de Clãs, e todo mundo a fitavam. Ou melhor, fitava seus cavalos e a Lobo. O filhote se encolhia contra a perna de Ayla tão sobressaltado quanto ela. Ayla sentiu pânico em Whinncy e estava certa de que Racer sentia o mesmo. O medo pelos animais ajudou-a a vencer seus próprios sentimentos de puro terror à vista de tantos seres humanos. Ela ergueu a cabeça e viu Jondalar segurando a corda, lutando para impedir que Racer empinasse, enquanto o menino assustado se agarrava com força ao animal.

- Nezzie, pegue Rydag! - gritou. A mulher já percebera o problema e não necessitava das palavras de Ayla para se mover. Ayla ajudou Mamut a descer, e colocou o braço em volta do pescoço da égua para levá-la em direção ao jovem garanhão a fim de ajudá-lo a se acalmar. O lobo a seguiu.

- Lamento muito, Ayla. Eu devia ter pensado no modo como os cavalos reagiriam diante de tanta gente - disse Jondalar.

- Sabia que haveria tanta assim?

- Eu... Não sabia, mas achei que deveria haver tanta gente quanto em uma Reunião de Verão dos Zelandonii.

- Creio que deveríamos fixar o Acampamento de Tifáceas em algum lugar fora do caminho - disse Tulie, falando alto para conseguir a atenção de todos. - É aqui, perto da extremidade do acampamento. Estaremos longe de tudo. - ela olhava ao redor ao falar - ... Mas o Acampamento do Lobo tem um riacho atravessando sua depressão este ano, e ele virá para cá.

Tulie estivera antecipando a reação das pessoas e não ficou desapontada. Tinham cruzado o rio e todo mundo se aglomerara para ver a chegada do Acampamento do Leão. Mas ela não havia previsto que os animais pudessem ficar assustados ao serem apresentados, inicialmente, a um re banho de homens.

- Que tal lá, perto do muro - sugeriu Barzec. - Não é muito plano, mas podemos nivelar o terreno.

- Parece ótimo. Há alguma objeção? - perguntou Talut, olhando diretamente para Ayla. Ela e Jondalar tinham levado os animais àquele local, querendo acomodá-los. O Acampamento do Leão começou a remover pedras e a nivelar um lugar para armar sua grande tenda comunal de pele dupla.

Era muito mais confortável viver numa tenda feita com duas camadas de couro. A camada isolante de ar no meio ajudava a manter o aquecimento interno, e a umidade, condensando-se no frio da noite, descia rapidamente pelo lado interno dos couros externos até o solo. Os couros internos, que eram enfiados sob os panos usados no chão do interior, também mantinham as correntes de ar afastadas. Embora não tão permanente quanto a habitação de barro do Acampamento do Leão, era uma estrutura mais sólida do que o abrigo de parede única para passar a noite, que era somente uma parte da tenda completa de verão, que usavam quando viajavam. Referiam-se à sua casa de verão como Acampamento de Tifáceas para diferenciar a habitação de verão, onde quer que fosse, da moradia de inverno, embora se considerassem sempre membros de um grupo chamado Acampamento do Leão.

A tenda era dividida em quatro partes cônicas interdependentes, cada uma com uma lareira, sustentada por árvores novas flexíveis e vigorosas, embora ossos de costela de mamute ou outros ossos compridos pudessem ser e tivessem sido usados. A parte central, a maior delas, abrigaria a Fogueira do Leão, a Fogueira da Raposa e a Fogueira do Mamute. Como a tenda não era tão espaçosa quanto a habitação de terra, seria utilizada primeiramente para dormir, e era raro que todos estivessem dormindo ao mesmo tempo. Outras atividades particulares, sociais e públicas seriam realizadas fora, ou seja, armar a tenda significava também definir o território além da tenda. A localização da Fogueira de Tifáceas, a principal fogueira externa para cozinhar, era uma questão de alguma importância.

Enquanto trabalhavam para armar a tenda e marcar seu território, o resto das pessoas na Reunião começou a recuperar-se do silêncio inicial espantado, e se pôs a conversar excitadamente entre si. Afinal, Ayla descobriu a fonte do berro peculiar abafado. Lembrou-se de que quando chegou ao Acampamento do Leão, achou que havia ruído demais quando todos falavam ao mesmo tempo. Ali, havia aquele barulho multiplicado muitas vezes; eram as vozes combinadas de toda a multidão.

Não era de admirar que Whinney e Racer ficassem tão ariscos, pensou Ayla. O som constante de conversa a deixava assustada também. Não estava acostumada a ela. A Reunião de Clãs não havia sido tão grande, mas mesmo se fosse, não teria sido tão ruidosa. Eles usavam poucas palavras para se comunicar; uma reunião da gente do Clã era silenciosa. Mas com pessoas que usavam fala verbal, exceto em raras ocasiões, era sempre ruidoso dentro do acampamento. Como o vento nas estepes, as vozes jamais cessavam, somente variavam de intensidade.

Muitas pessoas correram para saudar o Acampamento do Leão, oferecendo para ajudar a erguer a tenda e arrumar a moradia, e foram acolhidas amavelmente, mas Talut e Tulie se entreolharam várias vezes, significativamente. Não se lembravam de ter tantos amigos tão desejosos de ajudar, antes. Com o auxílio de Latie, Jondalar e Ranec, e por algum tempo, Talut, Ayla providenciou um local para os cavalos. Os dois rapazes trabalharam juntos facilmente, porém, falaram pouco. Ela recusou ofertas de pessoas curiosas dispostas a ajudar, explicando que os cavalos eram tímidos, e desconhecidos os deixavam nervosos. Mas isso deixou claro, apenas, que ela era a pessoa que controlava os animais e provocou mais curiosidade. Os boatos sobre ela correram rapidamente.

Na extremidade mais distante do acampamento, ao redor de uma curva do muro da ravina que se abria para o vale do rio, construíram um alpendre tipo toldo, utilizando a tenda de couro que ela e Jondalar tinham usado quando viajaram juntos, sustentada por pequenas árvores e galhos fortes. Estava um pouco escondida da visão das pessoas acampadas na depressão, porém a vista do rio e dos belos prados arborizados era ampla.

Eles se instalavam e preparavam locais para dormir nos alojamentos um pouco mais apinhados, quando uma delegação do Acampamento do Lobo, juntamente a várias outras, vieram dar-lhes as boas-vindas, oficialmente. Estavam em território do Acampamento anfitrião e, embora fosse esperado, era mais do que cortesia estender a todos os visitantes o uso das caniçadas hereditárias para pesca do Acampamento do Lobo, canteiros de raízes, sementes, nozes e morangos, amoras, e terrenos de caça. Embora a Reunião de Verão não fosse durar a estação inteira, hospedar um tão grande número de pessoas teria um preço, e era necessário descobrir se alguma determinada área devia ser evitada, para não exigir demais dos re cursos da região.

Talut ficara bastante surpreso quando recebeu a notícia da mudança de local da Reunião de Verão. Os Mamutoi, em geral, não se reuniam num acampamento doméstico. Usualmente escolhiam um local nas estepes ou nalgum vale ribeirinho que pudesse acomodar uma concentração tão grande de pessoas mais facilmente.

- Em nome da Grande Mãe de todos, o Acampamento do Leão é bem-vindo - disse uma mulher magra, de cabelos grisalhos.

Tulie ficou chocada ao vê-la. Ela havia sido uma mulher de raro encanto e saúde excelente, que dividira a responsabilidade de sua co-liderança com tranqüilidade, mas parecia ter envelhecido dez anos desde a última estação.

- Marlie, apreciamos sua hospitalidade. Em nome de Mut, agradecemos.

- Vejo que repetiu a façanha - disse um homem, segurando as duas mãos de Talut em saudação.

Valez era mais jovem que a irmã, mas, pela primeira vez, Tulie notou que ele também mostrava sinais de envelhecimento. Ela ficou consciente, de súbito, de sua própria mortalidade. Sempre considerara Marlie e Valez como mais ou menos de sua idade.

- Mas acho que esta é a sua maior surpresa - continuou Valez. - Quando Toran entrou correndo, gritando algo sobre cavalos cruzando o rio com vocês, todos tiveram que ir olhar. E depois, alguém descobriu o lobo...

- Não pediremos para que nos conte sobre os animais agora - disse Marlie -, embora deva confessar que estou curiosa. Apenas, terá que repetir a história muitas vezes. Talvez possamos esperar até esta noite, para você poder contar a todo mundo de uma só vez.

- Claro, Marlie tem razão - falou Valez, embora estivesse pronto para ouvir a história imediatamente. Também notou que sua irmã parecia especialmente cansada. Temia que aquela fosse sua última Reunião de Verão. Por isto ele concordara em hospedar a todos, quando o local que havia sido originalmente escolhido fora inundado por uma mudança no curso do rio. Naquela estação, eles entregariam sua co-liderança.

- Por favor, usem o que precisarem. Estão à vontade? Lamento terem que ficar tão longe, mas estão atrasados. Eu não tinha sequer certeza se viriam - disse Marlie.

- Nós não viemos diretamente - concordou Talut. - Mas este é o melhor lugar. Ë melhor para os animais. Não estão acostumados a tanta gente.

- Eu gostaria de saber como se acostumaram com uma pessoa! - gritou uma voz. Os olhos de Tulie se iluminaram quando um rapaz alto se acercou, mas Deegie chegou até ele primeiro.

- Tarneg! Tarneg! - gritou, enquanto o abraçava. O resto da Fogueira dos Auroques estava atrás dela. Ele abraçou sua mãe, e depois Barzec, e todos tinham lágrimas nos olhos. Em seguida, Druwez, Brinan e Tusie reclamaram sua atenção. Ele colocou os braços ao redor dos ombros dos meninos, abraçou-os e apreciou como tinham crescido. Em seguida pegou Tusie ao colo.

Depois de um abraço mútuo e cócegas que causaram risadinhas deleitadas, Tarneg a colocou no chão.

- Tarneg! - trovejou Talut.

- Talut, seu grande urso! - Tarneg respondeu em uma voz tão forte quanto à do chefe, enquanto se abraçavam. Havia forte semelhança familiar - ele era quase tão urso quanto seu tio-, mas Tarneg tinha o colorido mais bronzeado da mãe. Inclinou-se para roçar a face de Nezzie com a sua, depois, com um sorriso malicioso, abraçou a mulher gorda e pegou- a ao colo.

- Tarneg! O que está fazendo? Ponha-me no chão! –censurou ela.

Ele obedeceu, depois piscou para ela.

- Agora sei que sou um homem tão bom quanto você, Talut - disse, e riu alto. -Sabe há quanto tempo eu queria fazer isso? Só para provar que era capaz?

- Não é necessário... - começou Nezzie.

Talut atirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

- É preciso mais que isso, rapaz. Quando puder me igualar nas peles de dormir, será um homem tão bom quanto eu.

Nezzie desistiu de tentar recuperar sua dignidade, e apenas olhou para o grande urso, sacudindo a cabeça com afeição exasperada.

- O que há na Reunião de Verão que faz os velhos quererem provar que são jovens de novo? - disse ele. - Bern, ao menos, deixe-me descansar.

- Percebeu o olhar interessado de Ayla.

- Eu não apostaria nisso! - exclamou Talut. - Não sou tão velho que não possa abrir caminho para a leoa da minha fogueira, somente porque tenho outros envolvimentos.

- Hum - Nezzie deu de ombros, afastando-se, desdenhando responder.

Ayla estava de pé perto dos dois cavalos, e conservando o lobo ao seu lado, para que não uivasse e assustasse as pessoas, mas estivera observando toda a cena com grande interesse, inclusive as reações das pessoas que se encontravam próximas. Danug e Druwez pareciam embaraçados. Embora ainda não tivessem experiência, sabiam que assunto estava sendo discutido, e andavam pensando bastante naquilo. Tarneg e Barzec riam largamente. Latie corou e tentou esconder-se atrás de Tulie, que parecia não ser atingida por toda aquela tolice. A maioria das pessoas sorria, afavelmente, até Jondalar, notou Ayla, surpresa. Ela havia-se perguntado se as razões para o modo de agir de Jondalar em relação a ela tinham algo a ver com os costumes, que eram muito diferentes. Talvez, ao contrário dos Mamutoi, os Zelandonii não acreditassem que as pessoas tinham o direito de escolher seus parceiros, mas ele não parecia desaprovar.

Quando Nezzie passou por Ayla a caminho da tenda, esta notou um sorriso experiente brincando em sua boca também.

- Acontece todo ano - disse ela, quase num cochicho. - Ele tem que fazer uma cena, dizer a todos que homem é, e nos primeiros dias até encontrar um ou dois “envolvimentos”, embora sejam sempre mulheres parecidas comigo: louras e gordas. Depois, quando acha que ninguém mais está reparando, fica suficientemente feliz para passar a maior parte da noite no Acampamento de Tifáceas... E não tão feliz se não estou lá.

- Aonde você vai?

- Quem pode garantir? Com uma Reunião deste tamanho, embora se conheça todo mundo, ou ao menos, todo acampamento, você não conhece bem todas as pessoas. Cada ano existe alguém para se conhecer melhor. Embora, confesso, a maior parte das vezes seja uma outra mulher com filhos adolescentes e uma nova maneira de temperar mamutes. Às vezes, um homem me atrai, ou eu o atraio, mas não preciso fazer um “espetáculo” por causa disso. Talut acha certo se vangloriar, mas se a verdade fosse conhecida, acho que ele não gostaria que eu me vangloriasse.

- Então, não faz isso - disse Ayla.

- É uma coisa insignificante para preservar a harmonia e boa vontade na fogueira... E bem, para agradá-lo.

- Você o ama realmente, não é?

- Aquele urso velho! - Nezzie começou a objetar, depois sorriu e a ternura surgiu em seus olhos. - Nós tivemos nossas dificuldades no início... Sabe como ele é forte... Mas nunca permiti que levasse vantagem comigo, ou me dominasse com gritos. Acho que é isso que ele gosta em mim. Talut poderia partir um homem ao meio, se quisesse, mas não é de seu feitio. Às vezes, encoleriza-se, mas não existe crueldade nele. Jamais ferirá alguém mais fraco... E isto inclui quase todo mundo! Sim, eu o amo, e quando você ama um homem, quer fazer coisas para agradá-lo.

- Você... Não iria com outro homem que a atraísse, mesmo querendo, se isto o agradasse?

- Isso não seria difícil na minha idade, Ayla. Realmente, se a verdade fosse conhecida, eu não teria muito do que me gabar. Quando era mais jovem, ainda esperava com ansiedade a Reunião de Verão para ver caras novas e jogos divertidos, e até uma vez ou outra as peles de dormir... Mas acho que Talut tem razão numa coisa. Não há muitos homens capazes de igualá-lo. Não por causa de todos os “envolvimentos” de que é capaz de ter, mas porque se importa como faz a coisa.

Ayla sacudiu a cabeça com compreensão. Depois franziu atesta, pensando. O que você faz se existem dois homens e todos dois se importam?

- Jondalar!

Ayla levantou os olhos ao ouvir a voz desconhecida gritar o nome dele. Ela viu Jondalar sorrir e caminhar para uma mulher e cumprimentá-la cordialmente.

- Então ainda está com os Mamutoi! Onde está seu irmão? - disse a mulher. Era uma mulher de aparência forte, não alta, mas musculosa.

A testa de Jondalar se enrugou de sofrimento. Ayla pôde ver pela expressão da mulher.

- Como aconteceu?

- Uma leoa roubou sua caça e ele a perseguiu até a toca. Seu companheiro o atacou, feriu-me também - disse Jondalar no menor número de palavras possível.

A mulher sacudiu a cabeça, compreensiva.

- Diz que foi ferido? Como escapou?

Jondalar olhou para Ayla e viu que ela o observava. Conduziu a mulher até ela.

- Ayla, esta é Brecie dos Mamutoi, chefe do Acampamento do Salgueiro... Ou melhor, Acampamento do Alce. Talut disse que esse é o nome do seu Acampamento de inverno. Esta é Ayla dos Mamutoi, filha da Fogueira do Mamute, do Acampamento do Leão.

Brecie ficou surpresa. Filha da Fogueira do Mamute? De onde ela viera? Não estava com o Acampamento do Leão no ano anterior. Ayla não era, sequer, um nome Mamutoi.

- Brecie - disse Ayla. - Jondalar me falou de você. Foi quem salvou Jondalar e o irmão das areias movediças do Grande Rio Mãe, e é amiga de Tulie. Estou contente por conhecê-la.

Certamente, esse sotaque não é Mamutoi, e tampouco Sungaea, pensou Brecie. Também não é o sotaque de Jondalar. Não estou certa, sequer, se é um sotaque. Ela fala Mamutoi realmente muito bem, mas tem uma maneira peculiar de engolir algumas palavras.

- É um prazer... Ayla, não é? - perguntou Brecie.

- Sim, Ayla.

- É um nome diferente. - Quando não houve explicação, Brecie continuou: - Parece ser você que está... Hum... Vigiando os animais. - Ocorreu-lhe que nunca estivera tão perto de um animal vivo, ao menos um que estivesse parado, e não tentasse fugir.

- Porque eles obedecem a Ayla - disse Jondalar com um sorriso.

- Mas não vi você com um deles? Confesso que me surpreendeu, Jondalar. Com essas roupas, pensei a princípio que fosse Darnev, e quando você conduzia um cavalo, pensei que ou estava imaginando coisas, ou que Darnev voltara do mundo dos espíritos.

- Aprendo sobre estes animais com Ayla - falou Jondalar. - Foi ela quem me salvou do leão da caverna também. Acredite, ela tem um dom para cuidar de animais.

- Parece óbvio - falou Brecie, agora abaixando o olhar para Lobo, que não estava tão nervoso, embora seu estado de alerta parecesse mais ameaçador. - Foi por isto que ela foi adotada pela Fogueira do Mamute?

- Esta foi uma das razões - disse Jondalar.

Fora um tiro no escuro de Brecie, o palpite de que Ayla havia sido recentemente adotada pelo Mamut do Acampamento do Leão. A resposta de Jondalar confirmou suas especulações. Não explicava, porém, de onde Ayla viera. A maioria das pessoas supunha que ela viera com o homem alto e louro, talvez uma companheira de fogueira, ou uma irmã, mas ela sabia que Jondalar chegara em seu território somente com um irmão. Onde ele encontrara aquela mulher?

- Ayla! Que bom rever você.

Ela levantou a cabeça para ver Branag de braços dados com Deegie. Abraçaram-se com afeto e roçaram os rostos um no outro. Embora ela tivesse visto Branag apenas uma vez, ele parecia um velho amigo, e era bom conhecer alguém naquela Reunião.

- Mamãe quer que venha conhecer o chefe e a chefe do Acampa mento do Lobo - disse Deegie.

- Claro - concordou Ayla, bastante contente por ter uma desculpa para se afastar da arguta Brecie. Ayla havia notado a mente rápida trabalhando nos palpites sagazes da mulher, e sentiu-se um pouco desconcertada perto dela. - Jondalar, quer ficar aqui com os cavalos? - Ela observara algumas pessoas se aproximarem com Branag e Deegie, e se acercavam mais dos animais. - Tudo isto é novo para eles, e ficam mais felizes quando há alguém que conhecem por perto. Onde está Rydag? Ele pode vigiar Lobo.

- Está lá dentro - disse Deegie.

Ayla se voltou para olhar e o viu de pé, timidamente, à entrada.

- Tulie quer que eu conheça a chefe. Pode vigiar Lobo? - disse Ayla, fazendo sinais também.

- Vigio - respondeu ele por sinais, olhando para a multidão próxima, com um pouco de apreensão. Rydag saiu devagar, depois se sentou ao lado de Lobo e passou o braço em volta do animal.

- Vejam aquilo! Ela até fala com cabeças-chatas. Deve ser boa com animais! - gritou uma voz desdenhosa do meio da multidão. Várias pessoas riram.

Ayla deu meia-volta e fitou-as com raiva, procurando quem falara.

- Qualquer pessoa pode falar com eles... Pode-se falar com uma rocha também... O difícil é conseguir que respondam - disse outra voz, provocando mais riso.

Ayla se virou nessa direção, quase explodindo, tão zangada que mal conseguia falar.

- Alguém aqui está dizendo que o menino é um animal? - falou uma voz familiar. Ayla franziu a testa quando um membro do Acampamento do Leão avançou.

- Eu estou, Frebec. Por que não? Ele não sabe o que digo. Os cabeças-chatas são animais, você mesmo disse isso muitas vezes.

- Agora digo que eu estava errado, Chaleg. Rydag sabe exatamente o que você está dizendo, e não é difícil fazê-lo responder. Você tem apenas que aprender sua linguagem.

- Que linguagem? Cabeças-chatas não falam. Quem está lhe contando essas histórias?

- Linguagem de sinais. Ele fala com as mãos - disse Frebec. Houve um riso geral de caçoada.

Agora, Ayla observava Frebec com curiosidade. Ele não gostava que rissem dele.

- Então, não acredite em mim - disse, dando de ombros e começando a se afastar, como se não se impo virou-se para encarar o homem que havia ridicularizado Rydag. - Mas, vou lhe dizer mais uma coisa. Ele é capaz de falar com aquele lobo também, e se ele disser ao lobo para pegar você, eu não apostaria em suas chances.

Sem Chaleg perceber, Frebec havia feito sinais a Rydag, os sinais manuais que não significavam nada para Chaleg. Rydag, em troca, havia interrogado Ayla. Todo o Acampamento do Leão observava, divertindo-se ao saber o que acontecia por meio da linguagem de sinais, que podiam falar diante de toda aquela gente sem que soubessem.

Sem se virar, Frebec continuou:

- Por que não mostra a eles, Rydag?

De repente, Lobo não estava mais sentado pacificamente com o braço do menino ao seu redor.

Num salto rápido, Lobo atacou o homem, o pêlo eriçado, os dentes à mostra, e um uivo que arrepiou os cabelos da nuca de todos os presentes. Os olhos do homem se arregalaram quando saltou para trás, aterrorizado. A maioria das pessoas ao seu lado recuou também, mas Chaleg continuou a correr. A um sinal de Rydag, Lobo voltou calmamente para o seu lugar ao lado do menino, parecendo bastante satisfeito consigo mesmo. Girou algumas vezes, depois deitou-se com a cabeça sobre as patas e observou Ayla.

Era correr um risco, pensou Ayla. No entanto, o sinal dado não era exatamente para atacar. Era uma brincadeira que as crianças faziam com Lobo, um jogo de salto e de avanço que os filhotes de lobo utilizavam entre si com freqüência, exceto que Lobo havia sido ensinado a controlar sua mordida. Ayla usara um sinal semelhante em suas incursões de caça, quando queria que o animal levantasse a caça para ela. Embora, às vezes, ele acabasse saltando e matando os animais, não era o sinal para ferir, realmente, alguém, e Lobo não havia tocado no homem. Apenas saltara em sua direção. Mas o perigo estava em que poderia tê-lo feito.

Ayla sabia como os lobos protegiam seu território, ou sua alcatéia. Eles matariam para defendê-los. No entanto, enquanto observava Lobo voltar ao seu lugar, pensou que, se lobos pudessem rir, Lobo estaria rindo. Não pôde deixar de sentir que ele sabia o que estava acontecendo; que a idéia era apenas blefar, e sabia exatamente como fazê-lo. Não era apenas um ataque de brincadeira, não havia nada de engraçado na maneira como se moveu. Deu todos os avisos de ataque. Apenas, parara a tempo. A exposição repentina a grupos de pessoas fora difícil para o lobinho, mas ele havia-se portado bem. E ver a expressão no rosto daquele homem, fizera valer a pena correr o risco. Rydag não era um animal!

Branag parecia um pouco chocado, mas Deegie sorria quando se juntaram a Tulie e Talut, e outro casal. Ayla foi formalmente apresentada aos co-líderes do acampamento anfitrião e, imediatamente, soube o que todo mundo sabia. Marlie estava muito doente. Não devia sequer estar ali de pé, pensou Ayla, prescrevendo mentalmente medicamentos e preparados para ela. Ao notar a cor, a expressão do olhar, a textura da pele e do cabelo, Ayla se perguntou se alguma coisa poderia ajudá-la, mas sentiu a força da mulher; ela não cederia facilmente. E isso podia ser mais importante que remédios.

- Foi uma demonstração e tanto, Ayla - disse Marlie, notando a peculiaridade interessante de sua fala. - Quem controlava o lobo, o menino ou você?

- O Conselho de Irmãs - disse Tulie. - As irmãs são a autoridade

- Não sei - disse ela, sorrindo. - Lobo responde a sinais, mas nós dois os fizemos.

- Lobo? Você fala como se fosse um nome - disse Valez.

- É o nome dele.

- Os cavalos também têm nome? - perguntou Marlie.

- A égua é whinny - disse Ayla da forma como soaria um relincho, e Whinney respondeu ao som, provocando sorrisos, mas nervosos. - A maioria das pessoas apenas diz o seu nome, Whinney. O garanhão é seu filho. Jondalar lhe pôs o nome de Racer. É uma palavra da língua dele que significa alguém que corre depressa e vence os outros.

Marlie balançou a cabeça afirmativamente. Ayla olhou fixamente para Marlie, depois se virou para Talut.

- Estou muito cansada do trabalho de acomodar os animais. Vê aquela grande tora? Pode trazê-la para cá para que me sente?

A principio, o grande chefe ficou totalmente assombrado. Era tão fora de propósito. Simplesmente. Ayla não pediria uma coisa dessas, ainda mais no meio de uma conversa com a chefe do acampamento anfitrião. Se alguém precisava de um lugar para sentar-se, era Marlie, sem dúvida. Então, compreendeu. Claro! Por que não havia pensado nisso antes? Correu para pegar a tora e trouxe-a, ele mesmo.

Ayla se sentou.

- Espero que não se incomodem. Estou realmente cansada. Quer sentar-se, Marlie?

Marlie se sentou, tremendo um pouco. Um pouco depois, ela sorriu.

- Obrigada, Ayla. Não tencionava ficar aqui tanto tempo. Como soube que eu sentia tonteira?

- Ela é curandeira - disse Deegie.

- Uma chamadora e uma curandeira? Uma combinação rara. Não é de admirar que a Fogueira do Mamute a tenha reivindicado.

- Há uma coisa que gostaria de preparar para você, se quiser tomar - disse Ayla.

- As curandeiras me viram, mas pode tentar, Ayla. Agora, antes que o assunto seja esquecido para sempre, existe uma pergunta que quero fazer. Tinha certeza de que o lobo não iria ferir o homem?

Ayla fez uma pausa rápida.

- Não, não tinha. Ele ainda é muito novo, e nem sempre completamente confiável. Mas pensei que me encontrava perto o bastante para impedir seu ataque, se não se detivesse.

Marlie concordou com um gesto de cabeça.

- As pessoas nem sempre são totalmente confiáveis. Não esperaria que os animais fossem. Se tivesse dito outra coisa, eu não acreditaria. Chaleg se queixará, sabe, assim que se recuperar, para salvar as aparências. Levará o assunto ao Conselho de Irmãos e eles o trarão a nós.

- Nós? Final. Estão mais perto da Mãe.

- Estou contente porque vi o fato. Agora, não preciso preocupar-me em escolher entre histórias conflitantes que, para começar, são inacreditáveis - disse Marlie. Desviou o olhar e examinou os cavalos e Lobo. - Parecem animais perfeitamente normais, não espíritos ou outras coisas mágicas. Diga-me, o que os animais comem quando estão com você, Ayla? Eles comem, não é?

- A mesma coisa que comem sempre. Lobo come carne, em geral, tanto crua quanto cozida. É como outra pessoa na habitação e come, na maioria das vezes, o mesmo que eu, até verduras. Às vezes, caço para ele, mas ele já sabe pegar ratos e pequenos animais sozinho. Os cavalos comem capim e cereais. Eu pensava em levá-los para aquele prado do outro lado do rio e deixá-los lá por algum tempo.

Valez olhou para o rio e depois para Ayla percebeu que ele refletia.

- Não gosto de dizer isto, Ayla, mas poderia ser perigoso deixá-los.

- Por quê? - perguntou ela com um vislumbre de pânico na voz.

- Caçadores. Os cavalos se parecem com qualquer outro, particularmente a égua. A cor escura do mais novo ainda é bastante rara. Teríamos que avisar para que não matassem nenhum cavalo castanho, especialmente se parecessem amistosos. Mas a égua... Todo cavalo da estepe é daquela cor, e não creio que possamos pedir às pessoas para não matar cavalos. E a carne favorita de algumas - explicou Valez.

- Então terei que ir com ela - disse Ayla.

- Não pode fazer isso! - exclamou Deegie. - Perderá as festival.

- Não posso deixar nada feri-la - disse Ayla. - Terei que perder as cerimônias.

- Seria uma grande pena - falou Tulie.

- Não tem nenhuma idéia? - perguntou Deegie.

- Não... Se ao menos ela fosse castanha também - falou Ayla.

- Bem, por que não a fazer castanha?

- Fazer castanha? Como?

- E se misturarmos algumas cores que faço com o couro, e passarmos nela?

 

Ayla refletiu um pouco.

- Creio que não dará certo. E uma boa idéia, Deegie, mas o problema é que a cor, realmente, não fará grande diferença. Até Racer corre perigo. Um cavalo castanho continua sendo um cavalo, e se alguém está caçando cavalos, não será fácil lembrar de não matar os castanhos.

- Verdade - falou Talut. - Os caçadores pensam em caçar, e dois cavalos castanhos que não temem as pessoas seriam alvos muito tentadores.

- Que tal uma cor diferente como... Vermelho? Por que não transformar Whinney numa égua vermelha? Uma égua vermelha. Então, ela realçaria certamente.

Ayla fez uma careta.

- Não gosto da idéia de fazê-la ficar vermelha, Deegie. Ela pareceria muito estranha. No entanto, é uma boa idéia. Todo mundo saberia que ela não é um cavalo comum. Acho que deveríamos fazer isso, mas um cavalo vermelho... Espere! Tenho outra idéia - Ayla entrou correndo na tenda.

Deixou cair à mochila sobre as peles de dormir, e encontrou o que procurava perto do fundo. Saiu correndo.

- Veja, Deegie! Lembra-se disto? - perguntou Ayla, estendendo o couro vermelho-vivo que ela mesma havia tingido. - Eu nunca soube o que fazer com isto. Gostei apenas por causa da cor. Posso amarrar o couro em Whinney quando ela estiver no campo sozinha.

- É um vermelho-vivo! - disse Valez, sorrindo e sacudindo a cabeça afirmativamente. - Acho que dará certo. Com o couro sobre ela, todo mundo que vir a égua saberá que é um animal especial, e provavelmente, hesitará em caçá-la, mesmo sem ser avisado. Podemos anunciar esta noite que o cavalo com o manto vermelho e o castanho não devem ser caçados.

- Não faria mal amarrar alguma coisa em Racer também - disse Talut. - Não precisaria ser uma cor tão viva, mas algo feito por uma pessoa, de forma que alguém que se aproximar o bastante para atirar uma lança saberá que não é um cavalo comum.

- Eu sugeriria - ajuntou Marlie - que do momento em que todas as pessoas não são inteiramente confiáveis, às vezes, avisar não é suficiente. Talvez fosse prudente para você e seu Mamut inventarem alguma proibição sobre matar cavalos. Uma boa maldição pode assustar bastante alguém que se sinta tentado a ver se esses animais são mortais, realmente.

- Pode sempre dizer que Rydag enviará Lobo para atacar qualquer pessoa que fira os cavalos - falou Branag com um sorriso. - É provável que esta história tenha se espalhado por toda a Reunião agora, e sinto aumentada à medida que é contada por cada um.

- Talvez não seja má idéia - disse Marlie, levantando-se para ir embora. - Ao menos, poderia espalhar-se como um boato.

Eles observaram os co-líderes do Acampamento do Lobo se afastarem, depois, sacudindo a cabeça com tristeza, Tulie foi acabar de se instalar. Talut resolveu ir ver quem estava organizando as competições para que houvesse uma disputa com o arremessador de lanças, e parou para falar com Brecie e Jondalar. Os três prosseguiram juntos. Deegie e Branag se dirigiram para os cavalos com Ayla.

- Sei quem poderá começar o boato - disse Branag. - Com as histórias que já circulam, mesmo que não se acredite nelas inteiramente, acho que evitarão os cavalos. Não acredito que alguém queira correr o risco de Rydag mandar o lobo persegui-lo. Tenho querido perguntar uma coisa: - como Rydag sabe fazer sinais ao lobo?

Deegie olhou para o homem a quem estava prometida, surpresa.

- Acho que não sabe, não é? Não sei por que motivo fico pensando que somente porque sei uma coisa você também sabe. Frebec não inventava apenas urna coisa para defender o Acampamento do Leão. Dizia a verdade. Rydag compreende tudo o que todos dizem. Sempre entendeu. Apenas, não sabíamos disso até Ayla nos ensinar toda a linguagem de sinais para podermos compreendê-lo. Quando Frebec fingiu se afastar, fez sinal a Rydag e Rydag perguntou a Ayla. Todos sabíamos o que eles diziam, assim sabíamos o que ia acontecer.

- E verdade? - indagou Branag. -Vocês falavam uns com os outros e ninguém sabia! - Riu. - Bem, se vou fazer parte das surpresas do Acampamento do Leão é melhor aprender também esta linguagem secreta.

- Ayla! - gritou Crozie, saindo da tenda. Pararam e esperaram por ela. - Tulie acabou de me contar que resolveu marcar os cavalos - disse ela, caminhando para eles. - Idéia inteligente, e vermelho realçará em um cavalo de pêlo claro, mas não tem duas peles vermelhas brilhantes. Quando eu desfazia a bagagem, encontrei uma coisa que quero lhe dar. - Abriu uma trouxa que havia sido recentemente desamarrada e pegou um couro dobrado e sacudiu-o, abrindo-o.

- Oh, Crozie! - exclamou Ayla. - Este é bonito! - disse, maravilhada quando viu uma capa de couro branco-giz, enfeitada com contas de marfim em triângulos sutilmente repetidos, e espinhos de ouriço, tingidos de vermelho-ocre e costurados em padrões de ziguezagues e espirais formando ângulos retos.

Os olhos de Crozie se iluminaram diante da admiração de Ayla. Tendo feito uma túnica, Ayla compreendia a dificuldade de tornar o couro branco.

- E para Racer. Acho que o branco contra seu pêlo marrom-escuro realçará mais.

- Crozie é uma capa bonita demais para isso. Ficará suja e empoeirada, e especialmente, se ele tentar rolar com ela, ficará sem os enfeites. Não posso deixar Racer usar isto no campo - disse Ayla.

Crozie olhou para ela severamente.

- Se alguém estiver lá caçando cavalos e vir um cavalo marrom enfeitado com uma capa branca decorada, acha que o caçador atirará uma lança contra ele?

- Não, mas você teve muito trabalho com isso para deixar que se estrague.

- O trabalho foi feito muitos anos atrás - disse Crozie. Depois com uma expressão suave e os olhos toldados, ajuntou: - Foi feita para meu filho, o irmão de Fralie. Jamais fui capaz de dá-la a ninguém mais. Não podia suportar ver alguém usando a capa e era incapaz de jogá-la fora. Eu a tenho arrastado de um lugar a outro, um pedaço de couro inútil, o trabalho perdido. Se este couro ajudar a proteger o animal, não mais será inútil, o trabalho terá algum valor. Quero que fique com ela, pelo que você tem me dado.

Ayla pegou o embrulho, mas pareceu intrigada:

- O que tenho lhe dado, Crozie?

- Não é importante - respondeu ela, abruptamente. - Pegue a capa, só isso.

Frebec, entrando apressadamente na tenda, levantou os olhos e os viu, e sorriu, cheio de amor-próprio, antes de entrar. Eles retribuíram o sorriso.

- Fiquei muito surpreso quando Frebec defendeu Rydag - comentou Branag. - Eu achava que ele seria a última pessoa a fazê-lo.

- Ele mudou muito - disse Deegie. - Ainda gosta de discutir, mas não é tão difícil conviver com ele agora. Às vezes, ele ouve os outros.

- Bem, ele nunca teve medo de dar um passo à frente e dizer o que pensava - falou Branag.

- Talvez tenha sido isso - disse Crozie. - Nunca compreendi o que Fralie viu nele. Tentei convencê-la a não se unir a ele. Ele nada tinha a oferecer. Sua mãe não tinha status, ele não possuía qualquer dom particular, eu achava que ela jogava sua vida fora. Talvez, só ter a coragem de pedir seja algo a seu favor, e ele realmente a queria. Suponho que eu devia ter confiado no critério de Fralie o tempo todo, afinal, ela é minha filha. Só porque alguém vem de uma origem pobre não significa que não queira melhorar.

Branag olhou para Deegie, depois para Ayla, por sobre a cabeça de Crozie. Em sua opinião, ela havia mudado ainda mais que Frebec.

Ayla estava sozinha na tenda. Ela lançou um olhar à área que seria sua casa durante sua estada, tentando encontrar mais um item para dobrar, ou um objeto para arrumar, ou mais uma razão para demorar a deixar os limites do Acampamento de Tifáceas. Assim que ficasse pronta, tinha lhe dito Mamut, ele queria levá-la para conhecer as pessoas com quem ela estava ligada de uma forma única, os Mamut, aqueles que pertenciam à Fogueira do Mamute.

Ela considerava o encontro uma provação, certa de que iriam interrogá-la, avaliá-la, e julgar se tinha o direito de ser incluída em suas fileiras. Em seu coração, não acreditava que tivesse. Não se sentia dotada de dons únicos e dádivas especiais. Era curandeira porque havia aprendido a arte e saber de uma curandeira como Iza. Não havia grande magia em ter animais, tampouco. A égua lhe obedecia porque, quando estava sozinha e solitária em seu vale, havia tido por companhia uma cria sem mãe, e Racer lá nascera. Ela salvou Lobo porque devia isso à mãe dele, e ela sabia, na época, que os animais criados perto das pessoas eram amistosos. Não era um grande mistério. Rydag havia permanecido um pouco no interior da tenda com ela, depois que ela o examinara, fazendo-lhe perguntas específicas sobre como se sentia e fazendo uma anotação mental para ajustar seu medicamento. Depois, ele saiu e sentou-se com Lobo, observando as pessoas. Nezzie havia concordado com ela em que parecia mais animado. A mulher estava cheia de deleite assumido e elogios para Frebec, que havia ouvido tantas palavras de louvor, que estava quase embaraçado. Ayla nunca o tinha visto sorrir tanto, e sabia que parte da sua felicidade era a sensação de aceitação e participação. Ela compreendia o seu sentimento.

Ayla olhou ao redor uma última vez, pegou um recipiente de couro cru e prendeu-o ao cinto; depois, suspirou e caminhou para o exterior.

Todos pareciam ter desaparecido, exceto Mamut que falava com Rydag.

Lobo a viu e levantou a cabeça quando Ayla se acercou, o que fez com que Rydag e Mamut olhassem também.

- Todos foram embora? Talvez eu deva ficar aqui e tomar conta de Rydag até alguém voltar - disse ela, rápida em fazer o oferecimento.

- Lobo me vigia - disse Rydag por sinais, rindo. - Ninguém fica muito tempo quando vê Lobo. Eu disse para Nezzie ir. Você também, Ayla.

- Ele tem razão. Lobo parece contente em ficar aqui com Rydag e não posso imaginar um guardião melhor - disse Mamut

- E se ele ficar doente? - disse Ayla.

- Se ficar doente digo a Lobo para chamar Ayla - Rydag fez o sinal que tinha usado antes na prática e na brincadeira. Lobo ficou de pé em um salto, colocou as patas no peito de Ayla e esticou o pescoço para lamber-lhe o queixo, ansioso para atrair sua atenção.

Ela sorriu, acariciou-lhe o pescoço, depois lhe fez sinal para deitar.

- Quero ficar aqui, Ayla. Gosto de observar, O rio. Cavalos no campo. Pessoas passando. - Rydag sorriu. - Nem sempre me vêem, olham para a tenda, para o lugar dos cavalos. Depois vêem Lobo. Gente engraçada.

Mamut e Ayla sorriam diante do prazer simples de Rydag em ver as reações surpresas das pessoas.

- Bem, suponho que está bem. Nezzie não o teria deixado se não achasse que seria seguro - disse Ayla, cedendo seu último argumento para não se afastar. - Estou pronta para ir, Mamut.

Quando caminharam juntos para os alojamentos permanentes do Acampamento do Lobo, Ayla notou uma concentração mais compacta de tendas e acampamentos, e maior número de pessoas circulando entre eles. Ela ficou contente por eles estarem na extremidade externa, de onde ela podia ver árvores e capim, e o rio e a pradaria. Várias pessoas sacudiram a cabeça em saudação ou lhes falaram quando passaram. Ayla observou Mamut, notando como ele reconhecia as saudações e respondia da mesma maneira.

Uma habitação no fim da fila um pouco irregular de seis, parecia ser o centro das atividades. Ayla reparou uma área vazia, sem acampamentos perto da moradia, e compreendeu que devia ser o local onde as pessoas se reuniam. Os acampamentos que eram imediatamente adjacentes à clareira não tinham a aparência de áreas domésticas comuns. Um deles tinha uma cerca feita de ossos de mamute abertamente espaçados, galhos e arbustos secos marcando os limites territoriais. Quando passaram por ele, Ayla ouviu chamarem seu nome. Parou, surpresa com quem a havia chamado do outro lado da cerca.

- Latie! - exclamou, depois se lembrou do que Deegie lhe contara. Enquanto Latie continuava, ainda, na habitação do Acampamento do Leão, a restrição sobre sua associação com homens não limitava seus movimentos ou atividades, demasiadamente. No entanto, quando chegassem ao local da Reunião, era necessário que ela fosse mantida em reclusão. várias outras jovens se encontravam com ela, todas sorrindo e rindo baixinho. Ela foi apresentada às companheiras de idade de Latie, que pareciam sentir grande admiração por ela.

- Aonde vai, Ayla?

- A Fogueira do Mamute - respondeu Mamut.

Latie sacudiu a cabeça concordando, como se devesse saber. Viu Tulie no pátio cercado ao redor de uma tenda, que estava decorada com desenhos pintados em ocre vermelho conversando com outras mulheres. Ela acenou sorrindo.

- Latie, veja! Um “pé vermelho!” - exclamou uma das jovens, em voz excitada. Todo mundo parou para olhar, e as jovens riram baixinho. Ayla se encontrou olhando com grande interesse, para a mulher que passeava, e observou que as solas dos seus pés nus eram de cor vermelha viva. Tinham-lhe contado sobre aquilo, mas era a primeira vez que via uma mulher de pés vermelhos. Parecia uma mulher perfeitamente comum, pensou Ayla. No entanto, havia algo nela que fazia com que a olhassem duas vezes.

A mulher aproximou-se de um grupo de rapazes, que Ayla não havia visto antes, matando o tempo perto de árvores pequenas do outro lado da clareira. Ayla achou que o andar da mulher ficou mais exagerado quando se acercou deles, o sorriso mais lânguido e, de repente, notou mais os pés vermelhos. A mulher parou para falar com os rapazes, e seu riso cristalino flutuou através do espaço vazio. Quando ela e o homem mais velho se afastaram, Ayla recordou a conversa que as mulheres, e Mamut, tiveram na noite anterior ao Festival de Primavera.

Todas as jovens que estavam no estado de transição de não-ainda-mulheres encontravam-se sob vigilância constante - mas não somente das acompanhantes. Ayla reparava, agora, em vários grupos de rapazes de pé perto das margens da área proibida, onde Latie e suas companheiras de idade permaneciam, esperando vislumbrar as jovens proibidas, e portanto, mais desejáveis. Em época nenhuma de sua vida uma mulher era objeto de maior interesse da população masculina. As jovens divertiam-se com seu status único e atenção especial que ele causava, e estavam também igualmente interessadas no sexo oposto, embora negligenciassem mostrá-lo abertamente. Passavam a maior parte do tempo espiando a tenda ou rondando a cerca, especulando sobre os homens que desfilavam e demoravam-se na periferia com casualidade exagerada.

Embora os jovens que vigiavam e eram observados, em troca, eventualmente formassem uma fogueira com aquelas que se tornavam mulheres exatamente naquele momento, não era provável que fossem os escolhidos para a primeira, importante iniciação. As jovens e as mulheres mais velhas, que faziam o papel de conselheiras dividindo a tenda entre elas, discutiam várias possibilidades sobre os homens mais velhos e mais experientes. Aqueles levados em consideração eram aproximados em geral, particularmente, antes de a seleção eventual ser feita.

Na véspera da cerimônia, as jovens que ficavam juntas em uma tenda - ocasionalmente havia muitas para uma tenda e dois acampamentos de jovens eram estabelecidos - saíam em grupo. Quando encontravam um homem com quem gostariam de passar a noite, o cercavam e o “capturavam”. Os homens assim capturados deviam acompanhar as iniciadas - poucos homens faziam objeções à exigência. Naquela noite, depois de alguns rituais preliminares, entravam juntos para a escuridão da tenda, tateavam para achar um ao outro, e passavam a noite explorando as diferenças e aprendendo os prazeres mútuos. Nem a jovem, nem o homem deviam saber com quem tinham relações, eventualmente, embora na prática real, em geral, soubessem. As mulheres mais velhas observavam, certificando-se de que não havia rudeza indevida, e estavam disponíveis sempre que um conselho era necessário. Se, por alguma razão, qualquer uma das jovens não fosse aberta, podia-se arranjar um ritual de segunda noite mais tranqüilo, sem se atirar à culpa abertamente sobre ninguém.

Nem Danug nem Druwez seriam convidados para a tenda de Latie. primeiramente porque eram parentes muito próximos, mas também porque eram jovens demais. Outras mulheres, que celebraram seus Primeiros Ritos nos anos anteriores, particularmente aquelas que não tinham filhos ainda, podiam decidir ficar no lugar da Grande Mãe e ensinar Sua maneira aos rapazes. Depois de uma cerimônia especial, que as honrava e as isolava para a estação, as solas dos pés destas mulheres eram pintadas com um corante vermelho vivo que não sairia com água, embora, eventualmente, fosse descolorindo, para significar que estavam disponíveis para ajudar os rapazes a ganhar experiência. Muitas usavam também argolas de couro vermelho amarradas ao redor dos braços, ou tornozelos ou cinturas.

Embora alguma provocação fosse inevitável, as mulheres apreciavam a seriedade oculta de sua tarefa. Compreendendo a timidez natural do rapaz, e a premência por trás de sua ansiedade, tratavam cada um com consideração, ensinando-o a conhecer uma mulher ternamente, de forma que depois pudesse ser escolhido para converter uma jovem em mulher, para que, um dia, ela pudesse ter um filho. E para lhes mostrar como Ela estava satisfeita com esse oferecimento de si mesmas, Mut abençoava muita dessas mulheres. Mesmo quem se tinha unido há algum tempo atrás, e jamais engravidara, muitas vezes gerava nova vida no final da estação. Em seguida às não-ainda-mulheres, as mulheres de pés vermelhos eram as mais procuradas por homens de todas as idades. Durante o resto de sua vida, nada estimularia mais rapidamente um homem dos Mamutoi do que o vislumbre de um pé vermelho quando uma mulher passava, e sabendo disso, algumas mulheres tingiam os pés de vermelho para se tornarem mais atraentes. Embora uma mulher que houvesse feito tal escolha para si mesma fosse livre para querer qualquer homem, seu serviço se dedicava aos mais jovens, e qualquer homem mais velho que conseguisse convencê-la a partilhar sua companhia se considerava um favorito.

Mamut conduziu Ayla para um acampamento que não era distante do Acampamento dos Ritos de Feminilidade. A primeira vista, parecia ser uma tenda comum dentro de um acampamento doméstico. A diferença observou, ela, era que todos tinham tatuagens. Alguns, como o velho Mamut, somente um desenho simples em ziguezague azul-escuro, na parte superior da face direita; três ou quatro traços interrompidos, como as partes inferiores de triângulos com vértices voltados para baixo, se amontoavam, um aninhado sobre o outro. Lembraram-lhe as mandíbulas inferiores de mamutes que tinham sido usadas para construir a habitação de Vincavec. As tatuagens dos outros, principalmente dos homens, notou Ayla, eram muito mais elaboradas. Os desenhos incorporavam não apenas ziguezagues, mas triângulos, losangos, e espirais formando ângulo reto, tanto em azul quanto em vermelho.

Ayla ficou contente porque tinha parado no Acampamento do Mamute antes de virem para a Reunião. Ela sabia que ficaria sobressaltada diante dos rostos tatuados, se não houvesse conhecido Vincavec antes. Embora as tatuagens nos rostos daquelas pessoas fossem fascinantes e complexas, nenhuma era tão intrincada quanto à dele.

A diferença seguinte que ela observou foi que, embora parecesse haver preponderância de mulheres naquele acampamento, não havia crianças. Obviamente, elas tinham sido deixadas aos cuidados de alguém nos acampamentos domésticos. Ayla compreendeu, rapidamente, que aquele não era considerado local adequado para crianças. Era um local para adultos se reunirem, para rituais, discussões e encontros sérios - e para jogar. Várias pessoas jogavam com ossos marcados, varetas e pedaços de marfim na área externa do acampamento.

Mamut subiu até a entrada da tenda, que estava aberta, e arranhou o couro como se batesse a uma porta. Ayla olhou para o interior em penumbra por sobre o ombro de Mamut, tentando não parecer evidente para aqueles que passeavam no exterior, mas também eles tentavam, sem parecerem ansiosos demais, vê-la de mais perto. Estavam curiosos sobre a mulher jovem, que o velho Mamut havia não apenas aceito para treinamento, mas adotado como filha. Era uma estranha, diziam, nem sequer uma Mamutoi. Ninguém sabia, ao menos, de onde ela viera.

Muitos tinham conseguido passar pelo Acampamento de Tifáceas a fim de ver os cavalos e o lobo, e ficaram surpresos e impressionados em ver os animais, embora não quisessem demonstrá-lo. Como uma pessoa podia dominar um garanhão? Ou fazer uma égua ficar quieta com tantas pessoas - e um lobo, ao redor? Por que o lobo era tão dócil com as pessoas do Acampamento do Leão? Comportava-se como um lobo normal perto de todas elas. Ninguém mais podia aproximar-se dele, ou atravessar os limites do seu acampamento, sem um convite, e, dizia-se, ele atacara Chaleg.

O velho fez Ayla entrar, e ambos se sentaram perto de uma grande lareira, embora somente uma pequena chama ardesse nela, a um lado, próxima a uma mulher sentada. Era uma mulher pesada, pensou Ayla, que já mais havia visto alguém tão gordo e se perguntou como poderia ter caminhado para chegar ali.

- Trouxe minha filha para conhecê-la, Lomie - disse o velho Mamut.

- Eu me perguntava quando viriam - replicou ela.

Então, antes de dizer mais alguma coisa, removeu uma pedra vermelha e quente do fogo, com varetas. Abriu um pacote de folhas e deixou cair algumas sobre a pedra e inclinou-se mais a fim de soprar a fumaça que subia em espiral. Ayla sentiu o odor de salva e, menos forte, o dever basco e lobélia. Ela observou a mulher com atenção, reparou em uma respiração pesada, que logo se tornou mais fácil, e compreendeu que ela sofria de uma tosse crônica, provavelmente, asma.

- Também faz xarope da raiz dever basco? - perguntou Ayla. - Pode ajudar. - Havia hesitado em falar primeiro, e não estava certa por que o fazia sem ter sido apresentada, mas queria ajudar e sentiu, de alguma forma, que era a coisa certa a fazer.

A cabeça de Lomie se levantou depressa, surpresa, e olhou para a jovem loura com novo interesse. A sombra de um sorriso cruzou o rosto de Mamut.

- Ela também é curandeira? - disse Lomie a Mamut.

- Acredito que não exista nenhuma melhor, nem mesmo você, Lomie.

Lomie sabia que o velho falava seriamente. Mamut tinha grande respeito por sua capacidade.

- E pensei que você adotara apenas uma jovem bonita para aliviar seus últimos anos, Mamut.

- Ah, mas acertou, Lomie. Ela aliviou minha artrite de inverno e outras dores e sofrimentos diversos - disse ele.

- Estou contente por saber que ela tem mais do que aparência exterior. No entanto, ela é jovem para isso.

- Existe mais nela do que imagina, Lomie, apesar de sua juventude.

Lomie se virou, então:

- Você é Ayla.

- Sim, sou Ayla do Acampamento do Leão dos Mamutoi, filha da Fogueira do Mamute... e protegida pelo Leão da Caverna - terminou Ayla, como Mamut a havia instruído.

- Ayla dos Mamutoi. Hummm. Tem um som incomum, mas sua voz também o tem. Não é desagradável, contudo. Salienta-se. Muitas pessoas reparam em você. Eu sou Lomie, Mamut do Acampamento do Lobo e curandeira dos Mamutoi.

- Primeira curandeira - corrigiu Mamut.

- Como posso ser a primeira curandeira, velho Mamut, se ela é igual a mim?

- Eu não disse que Ayla era igual a você, Lomie. Eu disse que não há ninguém melhor. Sua experiência é... Incomum. Foi treinada por... alguém com grande profundeza de conhecimento em certos métodos de Cura. Você identificaria o odor sutil de verbasco, camuflado pelo cheiro forte da salva, tão depressa, se não soubesse que estava lá? E saberia, em seguida, de que você estava se tratando?

Lomie começou a falar, depois hesitou e não respondeu. Mamut continuou:

- Acho que ela soube apenas olhando para você. Ela possui um dom raro para saber, e um conhecimento surpreendente de remédios e tratamentos, mas falta-lhe habilidade somente nos métodos em que você é mais capaz, descobrindo e aliviando o problema que cria a doença, e ajudando o desejo de alguém se curar. Ela poderia aprender muito com você, e espero que consentirá em treiná-la, mas creio que você também poderia aprender muita coisa com ela.

Lomie se voltou para Ayla.

- E é isso que você quer?

- É isso que quero.

- Se já sabe tanto, o que acha que pode aprender comigo?

- Sou uma feiticeira. É... Isso que sou... Minha vida. Eu não poderia ser diferente. Fui treinada por uma que era... Primeira, mas desde o início ela me disse que sempre há mais para aprender. Eu seria grata em aprender com você - disse Ayla. Sua sinceridade não era fingida. Ela estava ansiosa para conversar com alguém com quem partilhasse idéias e discutisse tratamentos, e aprendesse.

Lomie fez uma pausa. Feiticeira? Onde ela havia ouvido aquela palavra em vez de curandeira, antes? Afastou o pensamento. Lembrada mais tarde.

- Ayla tem um presente para você - disse Mamut. - Chame quem quiser, mas depois, se preferir, feche a tenda.

Todos que se encontravam fora tinham entrado enquanto eles falavam ou estavam de pé à entrada. Todos se amontoaram no interior. Ninguém queria perder coisa alguma. Quando estavam acomodados e a cortina da entrada fechada e amarrada, Mamut pegou um punhado de terra de um círculo de desenhar, e apagou a pequena chama, mas a luz clara do dia não ficou completamente do lado de fora. Penetrou através do buraco para saída da fumaça e, fracamente, através das paredes de couro. Não seria uma demonstração tão dramática na tenda em penumbra, quanto o fora na habitação comunal escura, mas todos os mamutois reconheceriam suas possibilidades.

Ayla abriu o pequeno recipiente em sua cintura, um que ela e Mamut pediram a Barzec para fazer, e retirou a isca, pedra-de-fogo e sílex. Depois de tudo pronto, Ayla fez uma pausa e, pela primeira vez em muitos ciclos da lua, enviou um pensamento silencioso ao seu totem. Não era um pedido específico, mas ela pensava em uma centelha grande, imponente, brilhante, para que o efeito fosse o que Mamut desejava. Então, pegou o sílex e golpeou-o com força contra a pirita de ferro. Brilhou vivamente, mesmo na tenda, depois apagou. Ela repetiu a operação e desta vez a centelha perdurou e logo o pequeno fogo na lareira ardia novamente.

Os Mamuts tal eram sábios nas formas de artifício e estavam acostumados a criar efeitos. Orgulhavam-se de ser capazes de reconhecer como eram dotados. Pouca coisa os surpreendia, mas o truque do fogo de Ayla deixou-os sem palavras.

- A mágica está na própria pedra-de-fogo - disse o velho Mamut, quando Ayla tornou a guardar os materiais no recipiente de couro cru, e o entregou a Lomie. Então, o tom e timbre de sua voz mudaram. – Mas a forma de arrancar fogo dela lhe foi mostrada. Eu não precisava adotá-la, Lomie. Ela nasceu da Fogueira do Mamute, escolhida pela Mãe. Só pode seguir seu destino, mas, agora, eu sei que fui escolhido para ser parte dele, e por que recebi tantos anos.

Suas palavras enviaram uma onda de arrepios e puseram em pé o cabelo de todos na tenda da Fogueira do Mamute. Ele havia tocado no mistério real, no chamamento profundo que cada um deles sentia, em alguma extensão, além das armadilhas superficiais e cinismo casual. O velho Mamut era um fenômeno. Sua própria existência era mágica. Ninguém jamais vivera tanto tempo. Seu nome estava até perdido na passagem dos anos. Cada um deles era um Mamut, feiticeiro de seus acampamentos, mas ele era simplesmente Mamut, seu nome e título tinham-se tornado um só. Ninguém ali duvidou de que havia algum propósito na sua longevidade. Se ele dizia que Ayla era o motivo, então, ela era tocada pelos profundos e inexplicáveis mistérios da vida e do mundo ao redor deles, que cada um se sentia convocado a enfrentar.

Ayla estava preocupada quando ela e Mamut deixaram a tenda. Ela também sentira a tensão, um arrepio na pele quando o velho Mamut falou do seu destino, mas ela não queria ser objeto de interesse tão intenso por poderes além do seu controle. Era assustador, todo esse falatório sobre seu destino. Ela não era diferente de ninguém e não queria ser. Tampouco gostava quando comentavam sobre sua fala. No Acampamento do Leão, ninguém mais notava. Ela havia esquecido que existiam algumas palavras que não conseguia pronunciar direito, não importava o quanto se esforçasse.

- Ayla, aí está você! Eu a procurava.

Ela ergueu a cabeça para os olhos negros brilhantes e sorriso luminoso do homem de pele escura a quem estava prometida. Devolveu-lhe o sorriso. Ele era exatamente a pessoa de quem precisava para tirar de sua mente os pensamentos perturbadores. Virou-se para Mamut a fim de ver se ele a queria ainda. Ele sorriu e lhe disse para ir e dar uma volta pelo acampa mento com Ranec.

- Quero que conheça alguns escultores. Vários estão fazendo um belo trabalho - disse Ranec, conduzindo-a com um braço ao redor de sua cintura. - Sempre temos um acampamento perto da Fogueira do Mamute. Não apenas escultores, outros artistas também.

Ele estava excitado, e Ayla percebeu o mesmo júbilo que ela sentira quando compreendeu que Lomie era uma curandeira. Embora pudesse haver certa competição entre elas, em relação à capacidade e o status de cada uma, ninguém conhecia as nuanças de uma arte ou habilidade como outra pessoa que as praticava. Somente com outra curandeira ela poderia discutiras méritos relativas de verbasco versus gualtéria no tratamento de tosses, por exemplo, e ela sentira falta desse tipo de discussão. Havia visto como Jondalar, Wymez e Danug passavam períodos de tempo inacreditáveis conversando sobre sílex e fabricação de ferramentas, e ela compreendeu que Ranec também gostava da companhia de outros que trabalhavam com marfim.

Quando atravessaram parte da clareira, Ayla viu Danug e Druwez com vários outros homens jovens, sorrindo e movendo-se nervosamente, enquanto conversavam com uma mulher de pé vermelho. Danug levantou a cabeça, a viu e sorriu, depois deu uma desculpa rápida e atravessou rapidamente alguns metros de capim pisado e seco para se unir a eles. Esperaram que ele os alcançasse.

- Vi você falando com Latie e ia trazer alguns amigos para conhecer, Ayla, mas não podemos nos aproximar muito do Acampamento de Garota-Risadinha... Hum quero dizer... - Danug corou compreendendo que dissera o apelido que os rapazes tinham dado ao local onde estavam proibidos de entrar.

- Tudo certo, Danug. Elas soltam muitas risadinhas, realmente.

O rapaz alto relaxou.

- Não que haja algo de errado nisso. Está com pressa? Pode vir conhecê-los agora?

Ayla olhou interrogativamente para Ranec.

- Eu ia levá-la para conhecer algumas pessoas - disse Ranec. - Ma não há pressa. Podemos ir conhecer seus amigos primeiro.

Quando voltaram em direção ao grupo de rapazes, Ayla reparou que a mulher de pé vermelho ainda estava lá.

- Eu queria conhecer você, Ayla - disse a mulher depois que Danug fez as apresentações. - Todos falam sobre você, perguntando de onde veio, e por que os animais lhe obedecem. Você nos apresentou um mistério que estou certa, será comentado durante anos. - Sorriu, e piscou com astúcia para Ayla. - Ouça meu conselho. Não diga a ninguém de onde veio. Deixe que façam suposições. É mais divertido.

Ranec riu:

- Talvez ela tenha razão, Ayla. Diga-me, Mygie, por que usa pés vermelhos este ano?

- Depois que Zacanen e eu dispersamos a fogueira, não quis ficar com seu acampamento, mas não tinha certeza de desejar voltar para o acampamento de minha mãe, tampouco. Isto apenas pareceu-me à coisa certa a fazer. Dá-me um local para ficar por algum tempo e, se a Mãe decidir dar-me um filho por isso, eu não lamentaria. Oh, isso me lembra, sabia que a Mãe deu a outra mulher um filho do seu espírito, Ranec? Lembra-se de Tricie? A filha de Marlie? A que vive aqui, no Acampamento do Lobo? Ela escolheu pés vermelhos no ano passado, este ano tem um menino. A menina de Toralie era escura como você, mas este bebê não. Eu o vi. É muito claro, com cabelo ruivo mais brilhante que o dela, mas parece-se com você. O mesmo nariz e tudo. Ela o chama Ralev.

Ayla olhou para Ranec com um sorriso peculiar no rosto, e notou que a cor dele ficou mais escura. Está corando, pensou ela, mas é preciso conhecê-lo bem para notar. Estou certa de que ele se lembra de Tricie.

- Acho melhor irmos, Ayla - disse Ranec, abraçando-a pela cintura, como para apressá-la através da clareira.

Mas ela resistiu um instante.

- Foi muito interessante falar com você, Mygie. Espero que conversemos de novo - disse Ayla, virando-se depois para o filho de Nezzie. - Estou contente porque me convidou para vir conhecer seus amigos, Danug.

- Enviou-lhe um dos seus belos e excitantes sorrisos, e a Druwez também.

- E estou feliz por ter conhecido todos vocês - acrescentou, olhando para cada um dos jovens. Depois, afastou-se com Ranec.

Danug a viu afastar-se, depois soltou um grande suspiro.

- Gostaria de que Ayla estivesse com os pés vermelhos - disse. Ouviu vários comentários, concordando.

Quando Ranec e Ayla passaram a grande habitação, cercada pela clareira de três lados, ela ouviu o som de tambores vindo dela, e alguns outros sons interessantes que não havia escutado antes. Lançou um olhar em direção à entrada, mas estava fechada. No instante exato em que se virava para entrar em outro acampamento na extremidade da clareira, alguém se pôs à sua frente.

- Ranec - disse uma mulher. Era mais baixa que a média, com pele branca leitosa, salpicada de sardas. Seus olhos castanhos, pontilhados de ouro e verde, cintilavam de raiva.

- Então, você chegou com o Acampamento do Leão. Quando não parou em nossa habitação para dizer alô, achei que, talvez, tivesse caído no rio ou sido morto em um estouro de boiada. - O tom de voz era venenoso.

- Tricie! Eu... Hum... Eu ia... Hum... Tínhamos que armar o acampamento - falou Ranec. Ayla jamais vira o homem fluente, loquaz, tão mudo, e seu rosto estaria tão vermelho quanto os pés de Mygie se sua pele escura não escondesse o rubor.

- Não vai me apresentar à sua amiga, Ranec? - falou Tricie sarcasticamente. Era óbvio que ela estava zangada.

- Sim - disse Ranec -, gostaria que a conhecesse. Ayla, esta é Tricie, uma... Uma amiga minha.

- Eu tinha algo a lhe mostrar, Ranec - disse Tricie, ignorando a apresentação -, mas suponho que não importa agora. Promessas insinuadas não significam muito. Suponho que esta é a mulher com quem se unirá no Matrimônio nesta estação. - Havia mágoa assim como ódio em sua voz.

Ayla adivinhou qual era o problema, e sentiu compaixão, mas não sabia bem como enfrentar a situação difícil. Então, avançou um passo e estendeu as duas mãos.

- Tricie, sou Ayla, dos Mamutoi, filha da Fogueira do Mamute do Acampamento do Leão, protegida pelo Leão da Caverna.

A formalidade da sua saudação lembrou Tricie de que ela era a filha de uma chefe, e o Acampamento do Lobo era o anfitrião da Reunião de Verão. Ela tinha uma responsabilidade.

- Em nome de Mut, a Grande Mãe, o Acampamento do Lobo lhe dá boas-vindas, Ayla dos Mamutoi - disse ela.

- Disseram-me que sua mãe é Marlie.

- Sim, sou filha de Marlie.

- Eu a conheci antes. Uma mulher notável. Estou contente em conhecê-la.

Ayla ouviu Ranec soltar um suspiro de alívio. Ela lhe lançou um olhar e, por cima do ombro dele, notou Deegie dirigindo-se ao alojamento onde ela ouvira o rufo dos tambores. Em um impulso, resolveu que Ranec devia resolver seu relacionamento com Tricie sozinho.

- Ranec, Deegie está ali, e há algumas coisas que quero dizer a ela. Irei conhecer os escultores mais tarde - disse Ayla e se afastou rapidamente.

Ranec ficou espantado por sua partida apressada e, de repente, compreendeu que teria que enfrentar Tricie e dar algumas explicações, quer quisesse ou não. Olhou para a jovem bonita de pé, à espera, zangada e vulnerável. Seu cabelo ruivo, de uma cor especialmente brilhante como nenhuma outra já vista, juntamente com seus pés vermelhos, a tinham tornado duplamente atraente na estação passada, e ela era uma artista também. Ele ficou impressionado com a qualidade do seu trabalho. Suas cestas eram refinadas, e a excepcional esteira em seu chão viera das mãos, dela. Mas ela levara tão a sério seu oferecimento à Mãe, que nem sequer quis considerar um homem experiente, no início - Sua resistência apenas inflamara o desejo de Ranec por ela.

Ele não havia, contudo, na verdade, prometido. Era certo que tinha pensado seriamente nisso, e o teria feito se ela não estivesse consagrada. Fora ela quem havia recusado uma promessa formal, temendo que Mut se encolerizasse e retirasse Sua bênção. Bem, pensou Ranec, a Mãe não ficara zangada demais, se havia retirado da essência dele para fazer o bebê de Tricie. Ele adivinhou que era o bebê que ela desejava mostrar-lhe, desde que já tinha uma criança para trazer para sua fogueira, e, além disso, um filho do seu espírito. Isto a tornaria irresistível em outras circunstâncias, mas ele amava Ayla. Se tivesse o bastante para oferecer, talvez considerasse pedir as duas, mas desde que era necessário fazer uma escolha, não havia dúvida. Só o pensamento de viver sem Ayla colocava um nó de pânico na boca do seu estômago. Ele a queria mais do que já quisera qualquer outra mulher em sua vida.

Ayla chamou Deegie com um grito e, quando a alcançou, caminharam juntas.

- Vejo que conheceu Tricie - disse Deegie.

- É, mas ela parecia precisar falar com Ranec, assim, fiquei feliz ao ver você. Deu-me a chance de me afastar e deixá-los sozinhos.

Não duvido de que queira falar com ele. Todo o acampamento comentava, na estação passada, que planejavam fazer a Promessa.

- Sabe, ela tem um filho. Um menino.

- Não, eu não sabia! Mal tive a chance de dizer alô às pessoas, e ninguém me contou. Isso a fará valer mais e aumentará seu Preço de Noiva. Quem lhe disse?

Mygie, uma das de pés vermelhos. Ela diz que o menino é do espírito de Ranec.

- Esse espírito se movimenta! Há uns dois bebês com sua essência. Não se pode sempre ter certeza, com os outros homens, sobre de quem é o espírito, mas com ele, sim. Sua cor o deixa claro - disse Deegie.

- Mygie disse que este menino é muito claro e de cabelo ruivo, mas de rosto se parece com Ranec.

- Isso pode ser interessante! Creio que terei que ir ver Tricie mais tarde - falou Deegie com um sorriso. - A filha de uma chefe deve fazer uma visita à filha de outra chefe, especialmente do acampamento anfitrião. Quer ir comigo?

- Não estou certa... Sim, acho que sim - disse Ayla.

Tinham chegado à arcada curva da entrada do alojamento de onde vinham os sons incomuns.

Eu ia parar aqui, na Habitação de Música. Creio que você se divertiria, Ayla - disse Deegie, depois unhou o couro que cobria a entrada. Enquanto esperavam que alguém o desatasse do interior, Ayla olhou ao redor.

Havia uma cerca, a sudeste da entrada, feita de sete crânios de mamute e mais outros ossos, cheios de argila bem socada para haver solidez. Provavelmente, um protetor contra o vento, pensou Ayla. Na depressão onde se encontrava a moradia, o único vento viria do vale ribeirinho. No nordeste, ela contou quatro grandes fogueiras externas e duas distintas áreas de trabalho. Uma parecia destinar-se à fabricação de ferramentas e implementos de marfim e osso, as outras deviam ter relação, primeiramente, com o trabalho no sílex encontrado próximo. Ayla viu Jondalar e Wymez e vários outros homens e mulheres que também eram trabalhadores de sílex, segundo ela imaginou. Ela devia saber que ali era o lugar onde encontraria Jondalar.

A cortina foi aberta, e Deegie fez sinal a Ayla para segui-ia, mas alguém, à entrada, a deteve.

- Deegie, sabe que não permitimos a entrada de visitantes aqui - disse. - Estamos praticando.

- Mas, Kylie, ela é uma filha da Fogueira do Mamute - falou Deegie, surpresa.

- Não vejo uma tatuagem. Como pode ela ser Mamut sem uma tatuagem?

- Esta é Ayla, filha do velho Mamut. Ele a adotou na Fogueira do Mamute.

- Oh. Espere um momento, vou perguntar.

Deegie estava impaciente enquanto tornaram a esperar, mas Ayla examinou a moradia mais atentamente, e teve a impressão de que tinha afundado ou cedido, de alguma forma.

- Por que não me disse que ela é a jovem dos animais? - disse Kylie ao voltar. - Entrem.

- Você devia saber que eu não traria ninguém aqui que não fosse aceitável - disse Deegie.

Não estava escuro no recinto, o buraco de saída da fumaça era um pouco maior que o normal, e permitia que a claridade entrasse, mas levava algum tempo para os olhos se acostumarem depois do sol brilhante, lá fora. A princípio, Ayla pensou que a pessoa com quem Deegie falava era uma criança. Mas quando a viu, Ayla compreendeu que ela era mais velha, não mais nova do que sua amiga alta, entroncada. A impressão errada foi causada pela diferença de tamanho entre as duas mulheres. Kylie era pequena, com corpo magro quase delicada, e ao lado de Deegie era fácil tomá-la por criança, mas seus movimentos ágeis, graciosos, indicavam a confiança e experiência da maturidade.

Embora o abrigo parecesse grande do exterior, havia menos espaço dentro do que Ayla imaginara. O teto era mais baixo que o usual, e metade do espaço útil no recinto era ocupado por quatro crânios de mamute, que estavam parcialmente enterrados no chão, com os encaixes das presas para cima. Os troncos de pequenas árvores tinham sido colocados nos encaixes, e eram usados como suportes para escorar o teto, que havia afundado ou cedido. Ocorreu a Ayla, ao olhar ao redor, que aquele abrigo era bastante antigo. A madeira e o colmo tinham a cor cinza da idade. Não havia mercadorias domésticas ou grandes fogueiras de cozinhar, apenas uma lareira. O chão estava limpo, apenas com vestígios escuros das antigas fogueiras principais.

As cordas tinham sido presas entre as estacas eretas, e cortinas, que podiam ser usadas para dividir o espaço, pendendo delas, juntas numa extremidade. Sobre as cordas, ou pendurada em pregos de madeira sobre as estacas, estava à série mais incomum de objetos que Ayla já vira. Trajes coloridos, enfeites de cabeça fantásticos e ornados, fios de contas de marfim e conchas marinhas, pendentes de osso e âmbar, e algumas coisas que ela não conseguia adivinhar.

Havia várias pessoas no abrigo. Algumas sentadas ao lado de uma pequena lareira, bebericando de cuias; mais duas à luz que se infiltrava pelo buraco para saída da fumaça, costuravam roupas. À esquerda da entrada, algumas pessoas se encontravam sentadas ou ajoelhadas em esteiras, no chão, perto dos grandes ossos de mamute, decorados com linhas vermelhas e ziguezagues. Ayla identificou um osso de perna, uma omoplata, duas mandíbulas inferiores, um osso pélvico, e um crânio. Foram saudados amistosamente, mas Ayla sentiu que interrompiam alguma coisa. Todos pareciam olhar para elas, como se esperassem descobrir por que motivo tinham vindo.

- Não parem de praticar por nossa causa - falou Deegie. – Eu trouxe Ayla para conhecê-los, mas não queremos interromper. Esperaremos até estarem prontos para parar. - As pessoas voltaram à sua tarefa enquanto Deegie e Ayla se sentavam em esteiras próximas.

Uma mulher que estava ajoelhada diante do grande fêmur começou a tocar uma batida firme, com uma parte em forma de martelo de chifre de rena, mas os sons que produzia eram mais do que rítmicos. Quando ela batia no osso da perna em locais diferentes, um som ressoante, melódico surgia, mudando de intensidade e tom. Ayla examinou melhor, perguntando-se o que provocava o som incomum.

O osso da perna tinha cerca de 76 centímetros de comprimento e descansava horizontalmente sobre dois suportes que o mantinham longe do chão. A epífise na extremidade superior fora removida, e parte do material esponjoso interno fora retirado, alargando o canal natural. O osso estava pintado na parte de cima com listras regularmente espaçadas, em ziguezague, em vermelho-ocre escuro, semelhante aos padrões encontrados tão freqüentemente em tudo, desde o calçado até a construção de casas, mas estas pareciam ter mais utilidade do que apenas uma função decorativa ou simbólica. Depois de observar por algum tempo, Ayla teve certeza de que a mulher que tocava o instrumento de osso da perna de mamute usava o padrão de listras como guia para o local que deveria golpear a fim de produzir o som que desejava.

Ayla havia ouvido tambores de crânio e a omoplata de Tornec tocados. Todos tinham alguma variação tonal, mas jamais ouvira tal amplitude de tons musicais antes. Aquelas pessoas pareciam pensar que ela possuía alguns dons mágicos, mas aquilo era mais mágico do que qualquer coisa que já tinha visto. Um homem começou a bater na lâmina de omoplata de mamute, como a de Tornec, com um martelo de chifre. O timbre e tom tinham uma ressonância diferente, uma característica mais aguda, no entanto, o som complementava e adicionava interesse à música que a mulher tocava no osso da perna.

A omoplata grande, de forma triangular, tinha cerca de 63 centímetros de comprimento, com um estreito pescoço no alto, alargando cerca de 50 centímetros na extremidade do fundo. Ele segurava o instrumento pelo pescoço, ereto, em posição vertical, com o fundo largo descansando sobre o solo. Também era pintado com listras paralelas, e em ziguezague, em vermelho vivo. Cada listra, da largura de um dedo mínimo, era dividida por espaços da mesma largura, e cada uma tinha uma extremidade perfeitamente reta e regular. No centro da larga área inferior mais freqüentemente golpeada, o padrão vermelho de listras estava gasto, e o osso estava polido pelo uso repetido, prolongado.

Quando o resto dos instrumentos de osso de mamute começou a soar, Ayla prendeu a respiração. A princípio só pôde ouvir, dominada pelo som complexo da música, mas pouco depois ela se concentrou em cada um, individualmente.

Um homem mais velho tocava o maior dos ossos de mandíbula inferior, mas em vez de um martelo de chifre, usava uma extremidade de presa de mamute, com cerca de 30 centímetros de comprimento, entalhada para formar uma saliência na extremidade mais grossa. A mandíbula era pintada, como os outros instrumentos, mas apenas na metade direita. Foi virada e descansou firmemente, sustentada pelo lado esquerdo não-decorado, que mantinha a metade direita usada para tocar afastada do chão, para haver um som claro e puro. Enquanto tocava, o homem batia ao longo das faixas vermelhas em ziguezagues paralelos, que eram pintados dentro da cavidade, assim como ao longo da extremidade mais externa da face, e ele esfregava o pedaço de marfim sobre a superfície encrespada do dente, a fim de criar uma modulação dissonante.

Uma mulher tocava o outro osso de mandíbula, que era de um animal mais novo. Tinha 50 centímetros de comprimento e 38 centímetros de largura em sua parte maior, e também era pintado de vermelho em listras em ziguezague do lado direito. Um buraco fundo, com cerca de 5 centímetros de largura por 12 centímetros de comprimento, onde um dedo fora removido, alterava a ressonância e enfatizava o tom mais agudo.

A mulher que tocava o instrumento do osso pélvico também o segurava ereto, descansando uma extremidade no chão. Ela batia, com um martelo de chifre, principalmente no centro do osso onde uma pequena curvatura natural para dentro se encontrava. Os sons se intensificavam e as mudanças em tom, distintas, naquele lugar, e as listras vermelhas pintadas ali eram quase inteiramente desbotadas pelo uso.

Ayla conhecia os tons fortes, ressoantes, mais graves do tambor de crânio de mamute tocado por um rapaz. Era como os tambores tocados por Deegie e Mamut com tal habilidade. O tambor também era pintado onde era golpeado, na testa e topo da caveira, mas neste caso, não tinha traços em ziguezague, mas um padrão distintamente diferente de linhas ramificadas e pontos e marcas isoladas.

Depois que as pessoas pararam de tocar, com um acorde satisfatoriamente conclusivo, envolveram-se em uma discussão. Deegie participou, mas Ayla ouvia apenas, tentando compreender os termos desconhecidos, mas não querendo intrometer-se.

- A composição precisa de equilíbrio, assim como de harmonia - disse, a mulher que tocara o instrumento de osso da perna de mamute. - Acho que devemos introduzir uma flauta de cana antes de Kylie dançar.

- Estou certa de que poderiam convencer Barzec a cantar esse trecho - disse Deegie.

- Seria melhor trabalhar com ele mais tarde. Kylie e Barzec seriam demais. Um depreciaria o outro. Não, acho que a flauta de cana será melhor. Vamos experimentar, Manen - disse ela a um homem com uma barba muito bem-cuidada, que se reunira a eles vindo do outro grupo.

Tharie começou a tocar, de novo e, desta vez, os sons se tornaram familiares para a recém-chegada. Ayla ficou feliz por ter permissão para observar, e não queria mais nada senão sentar em silêncio e usufruir a nova experiência. Com a introdução dos tons persistentes da flauta de cana, um instrumento musical feito do osso da perna de uma garça, Ayla se lembrou, subitamente, da estranha voz espiritual de Ursus, o Grande Urso da Caverna, da Reunião de Clãs. Somente um mog-ur podia produzir aquele som. Era um segredo passado através de sua linhagem, mas ele havia levado alguma coisa à boca. Devia ser o mesmo tipo de coisa, pensou ela.

Nada, contudo, comoveu tanto Ayla como quando Kylie começou a dançar. Ayla notou, primeiro, que ela usava braceletes folgados em cada braço, semelhante aos dançarinos Sungaea. Cada bracelete era feito de uma série de cinco tiras finas de marfim, talvez com um centímetro de largura, gravadas com cortes diagonais irradiando-se de uma forma central em losango, de maneira a criar um padrão global em ziguezague quando as cinco tiras eram mantidas juntas. Um pequeno orifício havia sido feito em cada extremidade para amarrá-las juntas, e elas chocalhavam quando Kylie as movia de uma certa maneira.

Kylie permanecia em um local, mais ou menos, às vezes devagar, as sumindo posições impossíveis que sustentava, e outras vezes executando movimentos acrobáticos que faziam com que os braceletes usados em cada braço chocalhassem como ênfase. Os movimentos da mulher flexível, robusta, eram tão graciosos e rápidos que ela fazia a dança parecer fácil, mas Ayla sabia que jamais poderia executar aqueles movimentos. Ficou encantada com o desempenho e se encontrou fazendo comentários espontâneos depois que a dança terminou, da maneira habitual dos Mamutoi.

- Como faz aquilo? E maravilhoso! Tudo. Os sons, os movimentos. Nunca vi nada igual - disse Ayla. Os sorrisos de satisfação lhe mostraram que seus comentários foram bem acolhidos.

Deegie percebeu que os músicos estavam contentes e sua necessidade de concentração intensa havia acabado. Agora, mais relaxados prontos para um descanso, e também para satisfazer sua curiosidade em relação à misteriosa mulher que tinha, aparentemente, vindo de lugar algum, e era uma Mamutoi agora. Os carvões na lareira foram avivados, ajuntaram madeira, e pedras de cozinhar, e água para o chá foi derramada em uma tigela de cozinhar de madeira.

- Certamente, viu alguma coisa como nossa dança, Ayla - disse Kylie.

- Não, de modo algum - protestou Ayla.

- E os ritmos que você me mostrava? - perguntou Deegie.

- Não é a mesma coisa. Aquilo são simples ritmos do Clã.

- Ritmos do Clã? - perguntou Tharie. - O que é isso?

- O Clã são as pessoas com quem cresci - começou a explicar Ayla.

- São enganosamente simples - disse Deegie -, mas despertam sentimentos fortes.

- Pode nos mostrar? - perguntou o homem que tocara o tambor de crânio de mamute.

Deegie olhou para Ayla.

- Mostramos, Ayla? - perguntou, depois continuou para explicar aos outros. - Temos tocado um pouco com eles.

- Acho que sim - disse Ayla.

- Vamos, então - disse Deegie. - Precisamos de alguma coisa que produza uma batida firme, profunda abafada sem ressonância, como algo batendo contra o solo. Se Ayla puder usar seu tambor, Marut.

- Acho que talvez dê certo se enrolarmos um pedaço de couro ao redor deste martelo - disse Tharie, oferecendo seu instrumento de osso de perna.

Os músicos estavam intrigados. A promessa de alguma coisa nova sempre era interessante. Deegie ajoelhou-se na esteira, no lugar de Tharie, e Ayla se sentou, as pernas cruzadas, perto do tambor e bateu nele para sentir o instrumento. Depois, Deegie golpeou o instrumento de osso de perna em alguns locais até Ayla indicar que o som estava correto.

Quando estavam prontas Deegie começou a bater um compasso lento, firme, mudando o tempo ligeiramente até vir Ayla sacudir a cabeça afirmativamente, mas sem mudar o tom, de forma alguma. Ayla fechou os olhos e, quando sentiu que caminhava para a batida firme de Deegie, juntou-se a ela. O timbre do tambor de crânio ressoava demais para imitar exatamente os sons de que Ayla se lembrava. Era difícil criar o sentido de um estalo agudo do trovão, por exemplo; o staccato pronunciado das batidas salientou-se mais como um ribombo sustentado, mas ela estivera treinando com um tambor como aquele. Logo, ela tecia um ritmo incomum de contraponto ao redor da batida forte, firme, um padrão aparentemente casual de sons staccato que variavam em tempo. As duas séries de ritmos eram tão distintas que não possuíam relacionamento mútuo algum, no entanto uma batida enfatizada dos ritmos de Ayla coincidia com cada quinta batida do som firme de Deegie, quase como que por acidente.

Os dois ritmos tinham o efeito de uma sensação crescente de expectativa e, um pouco depois, um leve sentimento de ansiedade até as duas batidas, embora parecesse impossível acontecer, se unirem. Com cada liberação, outra onda de tensão crescia. No momento em que pareceu que não se podia mais suportar, Ayla e Deegie pararam antes de uma batida final, e deixaram uma expectativa acentuada pendendo no ar. Então, para surpresa de Deegie e de todos, um som de flauta, como o vento soprando, foi ouvido, com uma melodia estranha e assustadora, que enviou arrepios através dos ouvintes. Terminou com um acorde de encerramento, mas uma sensação de espiritualidade ainda pairava.

Durante alguns instantes, ninguém falou. Afinal, Tharie disse:

- Que estranha música assimétrica, sedutora. - Em seguida, várias pessoas queriam que Ayla lhes mostrasse os ritmos, ansiosas para experimentá-los.

- Quem tocou a flauta de cana? - perguntou Tharie, sabendo que não fora Manen, que estivera de pé a seu lado.

- Ninguém - disse Deegie. - Não era um instrumento, era Ayla assobiando.

- Assobiando? Como alguém pode assobiar assim?

- Ayla pode imitar qualquer som sibilante - falou Deegie. - Deviam ouvir os sons das aves. Até elas pensam que Ayla é uma ave. Ela consegue chamar as aves e elas comem de sua mão. É parte de seu dom com os animais.

- Quer nos mostrar um assobio de ave, Ayla? - pediu Tharie, em tom de voz que parecia incrédulo.

Ela não achou que era o lugar, realmente, mas apresentou o repertório rápido de assobios de aves, que provocou os olhares e expressões assombradas que Deegie esperara.

Ayla ficou grata quando Kylie ofereceu-se para mostrar-lhe o lugar. Viu alguns dos trajes e outros acessórios, e descobriu que alguns ornatos de cabeça eram, na verdade, máscaras faciais. A maior parte das coisas era vivamente colorida, mas à noite, perto da lareira, as cores dos trajes realçariam, sem parecerem espalhafatosas, contudo. Alguém tirava ocre vermelho em pó de uma bolsinha e o misturava à gordura. Com um calafrio, ela recordou novamente Creb, esfregando uma pasta de ocre vermelho sobre o corpo de Iza antes de seu funeral, mas disseram-lhe que este seria usado para decorar e intensificar a cor dos rostos e corpos dos jogadores e dançarinos. Ela notou carvão em pó e cré branco também.

Ayla observou um homem costurando contas em uma túnica, usando um furador, e ocorreu-lhe que seria muito mais fácil se usasse uma agulha, mas resolveu pedir a Deegie que trouxesse uma. Ela já recebia atenção demasiada, e se sentia pouco à vontade. Olharam fios de contas e outros adereços, e Kylie ergueu duas conchas marinhas espiraladas e cônicas até suas orelhas.

- Pena que suas orelhas não são furadas - disse ela. - Estas conchas ficariam bem em você.

- São bonitas - disse Ayla. Reparou nos furos nas orelhas de Kylie e também em seu nariz. Gostava de Kylie, e admirava-a, e sentiu uma relação que poderia levar a uma amizade.

- Por que não fica com elas, de qualquer modo? Pode falar com Deegie ou Tulie e pedir que furem suas orelhas. E devia ter uma tatuagem, Ayla. Então, você poderá ir aonde quiser, sem ter que explicar que pertence à Fogueira do Mamute.

- Mas, não sou Mamut, realmente - disse Ayla.

- Acho que é, Ayla. Não estou certa sobre o significado dos ritos, mas sei que Lomie não hesitaria se você lhe dissesse que estava pronta para se dedicar à Mãe.

- Não tenho certeza de estar pronta.

- Talvez não, mas estará. Sinto isso em você.

Quando ela e Deegie saíram, Ayla compreendeu que recebera alguma coisa muito especial, uma visão particular dos bastidores que poucas pessoas tinham permissão de desfrutar. Era um local de mistério, menos exposto e explicado, mas como deve parecer mais mágico e sobrenatural Ayla pensou, quando visto de fora. Ela lançou um olhar para a área de trabalho em sílex quando se afastavam, porém Jondalar não estava lá.

Ela acompanhou Deegie através do acampamento, dirigindo-se para o fundo da depressão, procurando amigos e parentes, e descobrindo onde se localizavam todos os outros acampamentos. Passaram por um terreno onde três acampamentos, enfiados entre moitas, davam para uma clareira. Havia uma notável impressão na área que era diferente, mas Ayla não descobriu o que era a principio. Depois, ela começou a reparar em detalhes específicos. As tendas eram rasgadas, e não estavam bem armadas, e buracos eram imperfeitamente remendados, quando havia remendo. Um odor forte, desagradável e o zumbido de moscas chamaram sua atenção para um pedaço de carne apodrecendo, abandonado no terreno entre as tendas, e depois reparou em mais lixo espalhado casualmente por perto. Ela sabia que as crianças se sujavam com freqüência, mas aquelas que as encaravam pareciam que não se limpavam havia muito tempo. Suas roupas estavam encardidas, o cabelo desgrenhado, os rostos sujos. Havia imundície desagradável no local.

Ayla reparou que Chaleg descansava diante de uma tenda. Foi apanhado de surpresa ao ver Ayla aparecer e sua primeira expressão foi de ódio maligna Ela ficou chocada. Somente Broud a havia olhado daquele jeito. Então Chaleg disfarçou, mas o sorriso falso, maldoso era quase pior que o ódio evidente;

- Vamos sair daqui - disse Deegie, com uma fungadela de desdém.

- Sempre é bom saber onde estão, para sabermos o que evitar.

De repente, houve uma explosão de gritos e berros quando dois jovens, um menino no início da adolescência, e uma menina de uns onze anos saíram correndo de uma das tendas.

- Devolva-me isso! Está ouvindo? Devolva! - gritava a garota enquanto perseguia o menino.

- Primeiro tem que me pegar, irmãzinha - provocou o garoto, segurando alguma coisa e agitando-a diante do rosto da menina.

- Você... Oh, você... Devolva-me isso! - berrou a garota outra vez e correu atrás dele com novo ímpeto de velocidade.

O sorriso do menino deixou claro que ele se divertia muito com a raiva e frustração da menina, mas quando se virou para olhá-la, não viu uma raiz exposta. Tropeçou e caiu pesadamente, e a menina subiu sobre ele, golpeando-o e batendo com toda a sua força. Então, ele a atingiu no rosto com grande força e fez sair um jato de sangue do nariz da menina. Ela gritou e lhe devolveu o soco na boca, rasgando seu lábio.

- Ajude-me, Ayla! - disse Deegie, enquanto caía sobre os dois, rolando no solo. Ela não era tão forte quanto a mãe, mas era uma jovem alta e robusta e quando agarrou o garoto, que estava sobre a irmã no momento, não houve resistência, Ayla segurou a menina, que lutava para atacar novamente o irmão.

- O que acham que estão fazendo? - disse Deegie, severa. - Como se podem cobrir dessa vergonha? Atingindo e golpeando um ao outro, e são irmão e irmã, além disso. Bem, vocês dois virão comigo. Daremos um jeito nisso imediatamente! - exclamou ela enquanto arrastava o garoto relutante pelo braço. Ayla a seguiu com a menina, que agora lutava para fugir.

As crianças salpicadas de sangue, e seguiam o grupo. Quando Deegie e Ayla chegaram aos alojamentos no centro do acampamento, o boato correra à frente, e um grupo de mulheres esperava. Tulie estava entre elas, viu Ayla, e Marlie, e Crecie, chefes femininas, compreendeu ela, que formavam o Conselho de Irmãs.

- Ela começou... - gritou o garoto.

- Ele pegou meu... - começou a berrar a menina.

- Silêncio! - ordenou Tulie com firmeza e em voz alta, os olhos cintilando de cólera.

Não há desculpas para atingir e ferir outra pessoa - disse Marlie tão duramente e tão zangada quanto Tulie. - Vocês já têm idade suficiente para saber disso, e se não sabem, aprenderão agora. Tragam as coneias - ordenou.

Um rapaz entrou correndo em uma das moradias e imediatamente Valez saiu segurando várias tiras de couro. A garota entrou em pânico e os olhos do menino se arregalaram. Ele lutou para fugir, libertar-se, e começou a correr, mas Talut, que vinha depressa do Acampamento de Tifáceas o agarrou rapidamente e o trouxe de volta.

Ayla estava preocupada. As duas crianças precisavam ser cuidadas, estavam machucadas; porém, mais que isso, o que iam fazer com elas? Afinal eram apenas crianças.

Enquanto Talut segurava o menino, outro homem pegou uma das longas tiras de couro e começou a envolver o menino com ela, amarrando-lhe o braço direito abaixado a seu lado. Não estava suficientemente apertada para impedir a circulação, mas mantinha o braço imóvel. Então, alguém trouxe a menina, que começou a chorar quando seu braço direito foi preso da mesma forma que o do irmão.

- Mas... Mas ele pegou meu...

- Não importa o que ele pegou - disse Tulie.

- Há outras maneiras de recuperar uma coisa - disse Brecie. - Podia ter vindo ao Conselho de Irmãs. É para isto que temos Conselhos.

- O que acha que aconteceria se todos tivessem permissão para atacar-se mutuamente, somente porque alguém discordava, ou provocava, ou pegava alguma coisa? - disse outra mulher.

- Vocês dois precisam de uma lição - falou Marlie, enquanto o tornozelo esquerdo do menino era preso ao tornozelo direito da menina -, não existe laço tão forte quanto o elo entre irmão e irmã. É o elo do nascimento. Assim, apenas lembrarem disso, ficarão presos um ao outro durante dois dias, e as mãos que agridem serão mantidas abaixadas para não poderem se erguer com raiva. Agora, devem ajudar um ao outro. Um não pode ir aonde o outro não puder. Um não pode dormir a menos que o outro se deite. Um não pode comer, ou beber, ou se lavar, ou fazer qualquer ação pessoal, sem o outro. Aprenderão a depender um do outro, como devem fazer a vida inteira.

- E todos que os virem saberão sobre a maldade que cometeram um contra o outro - anunciou Talut em voz alta, para que todos ouvissem.

- Deegie - disse Ayla em voz baixa -. Precisam de ajuda. O nariz da menina está sangrando e a boca do garoto está inchada.

As pessoas fitavam as duas quando passavam, puxando com firmeza.

Deegie se acercou de Tulie e cochichou em seu ouvido. A mulher concordou com um gesto de cabeça, depois deu um passo à frente.

- Antes de voltarem ao seu acampamento, vão com Ayla à Fogueira do Mamute, onde ela cuidará dos ferimentos que infligiram um ao outro.

A primeira lição em cooperação que tiveram que aprender foi como igualar seus passos, de forma que pudessem caminhar com os tornozelos amarrados juntos. Deegie acompanhou Ayla e os jovens à Fogueira do Mamute, e depois de serem limpos e tratados, as duas mulheres os observaram afastarem-se juntos, mancando.

- Eles estavam brigando de verdade - disse Ayla enquanto se dirigiam ao Acampamento de Tifáceas -, mas o menino pegou, realmente, alguma coisa da menina.

- Não importa - falou Deegie. - Brigar não é a melhor maneira de conseguir algo de volta. Devem aprender que brigar é inaceitável. É óbvio que não aprenderam isso em seu acampamento, de forma que devem aprender aqui. Faz você compreender por que Crozie estava tão relutante em aceitar a união de Fralie com Frebec.

- Não entendo. Por quê?

- Não sabia? Frebec veio de um daqueles acampamentos. Todos três são intimamente aparentados. Chaleg é primo de Frebec.

- Bem, certamente Frebec mudou muito.

- É verdade, mas serei sincera com você. Não tenho certeza, ainda, sobre ele. Acho que guardarei minha opinião até ele ser posto à prova.

Ayla não podia afastar o pensamento das crianças, ou da idéia de que ela deveria aprender alguma coisa daquela experiência. O julgamento fora rápido e absolutamente sem apelação. Nem sequer tiveram chance de explicar, e ninguém considerou o tratamento dos danos em primeiro lugar - ela ainda nem sequer sabia os nomes das crianças. Mas, não estavam gravemente machucadas, e não havia dúvida de que brigaram. Embora o castigo fosse rápido e não era provável que o esquecessem, não era doloroso, apesar de talvez sentirem a mágoa da humilhação e ridículo por muitos anos.

- Deegie - falou Ayla -, sobre as crianças, seus braços esquerdos estão livres, O que os impedirá de desatar aquelas tiras?

- Todo mundo saberá. Já é tão humilhante caminhar pelo acampamento presos um ao outro com os braços abaixados, muito pior seria se os soltassem. Diriam que eram crianças controladas pelos espíritos malignos da cólera, que não eram capazes nem de se dominar o suficiente para aprender o valor da ajuda um do outro. Elas seriam evitadas e ficariam mais envergonhadas ainda.

- Acho que jamais esquecerão - disse Ayla.

- Nem muitos outros jovens. Até a discussão será menor por algum tempo, embora não lhes faça mal gritar um com o outro - disse Deegie.

Ayla estava ansiosa para voltar à familiaridade do Acampamento de Tifáceas. Havia conhecido tantas pessoas e visto tantas coisas que sua mente estava num turbilhão. Seria necessário algum tempo para absorver tudo, mas ela não pôde deixar de olhar quando passaram, novamente, pela área de trabalhar o sílex. Desta vez viu Jondalar, mas também viu alguém que não esperava encontrar ali. Mygie lá estava, olhando com adoração para os olhos azuis, e Ayla pensou que a maneira como estava de pé era particularmente exagerada. Jondalar sorria para Mygie, um sorriso amável, agradável, que ela não via desde muito tempo, e ele tinha aquela expressão nos olhos que tampouco havia visto desde muito tempo.

- Pensei que as mulheres de pé vermelho deviam se preocupar em ensinar os rapazes - disse Ayla, pensando que ninguém precisava ensinar coisa alguma a Jondalar.

Deegie notou a expressão de Ayla e viu depressa o motivo para sua testa enrugada. Podia compreender, mas por outro lado, havia sido um inverno muito longo e difícil para ele também.

- Ele tem necessidades físicas, Ayla, exatamente como você.

De repente, Ayla corou. Havia sido ela, afinal, quem partilhara a cama de Ranec enquanto Jondalar dormia sozinho. Por que devia se aborrecer por ele encontrar uma mulher com quem ter prazeres na Reunião de Verão? Ela devia ter esperado por isso, mas sabia o motivo. Queria que ele partilhasse prazeres com ela. Não era tanto a idéia de ele ter escolhido Mygie, era que ele não a havia escolhido.

- Se ele vai procurar uma mulher, é melhor que encontre uma “pé-vermelho” agradável - continuou Deegie. - Elas não se podem comprometer. Quando a estação terminar, a menos que o sentimento seja muito forte, não durará durante um prolongado inverno. Acho que o sentimento dele por Mygie não será muito forte, e ela talvez o ajude a relaxar e refletir com maior clareza.

- Tem razão, Deegie. Que diferença faz? Ele diz que partirá depois da caçada do mamute... E eu prometi me unir a Ranec - disse ela.

Então, pensou, enquanto caminhavam pela multidão, voltarei para o Clã, e encontrarei Durc, e o trarei para cá. Ele pode se tornar um Mamutoi e partilhar nossa fogueira, e ser amigo de Rydag. E pode trazer Ura também, assim terá uma companheira... E viverei aqui com todos os meus novos amigos, e Ranec, que me ama, e Durc, meu filho... Meu único filho... E Rydag, e os cavalos e Lobo. E jamais verei Jondalar outra vez, pensou Ayla, enquanto uma desolação fria a enchia.

Rugie e Tusie entraram correndo na parte principal da tenda sorridente e soltando risadinhas.

- Há outra lá fora - anunciou Rugie

Ayla abaixou a cabeça depressa, Nezzie e Tulie se entreolharam com sagacidade, Fralie sorriu e Frebec também, com mais afetação.

- Outra o quê? - perguntou Nezzie, para ter certeza, embora já soubesse.

- Outra “legação” -disse Tusie, com o tom presunçoso de estar cansada de toda aquela tolice.

- Entre as delegações e seus deveres como guardiã, está tendo um verão ocupado, Tulie - disse Fralie, cortando carne para Tasher, mas sabendo que a chefe estava encantada por ser o foco de todo o interesse demonstrado pelo Acampamento do Leão e seus membros.

Tulie e Ayla saíram. Depois, Nezzie o fez também, para dar apoio, já que todos os outros pareciam ter desaparecido. Fralie e Frebec caminharam até a abertura da tenda para ver quem viera. Frebec seguiu as três mulheres até o lado de fora, mas Fralie ficou para trás a fim de manter as crianças fora do caminho. Um grupo de pessoas se encontrava de pé fora do território que Lobo havia determinado pertencer ao Acampamento do Leão. Ele havia marcado limites invisíveis com seu faro e os patrulhava com regularidade. Qualquer pessoa podia chegar até os limites, mas ninguém podia colocar um pé dentro deles, sem indicação clara de boas-vindas de alguém que ele conhecia.

O animal estava entre as pessoas e a tenda, em uma postura defensiva, que incluía dentes à mostra e um uivo baixo, e nenhum dos visitantes desejava testar suas intenções. Ayla lhe fez sinal para se acercar dela, e lhe fez o sinal de “amigo” que ela o havia ensinado a aceitar durante uma manhã inteira, tanto dela quanto de qualquer pessoa do Acampamento do Leão. Contra seus melhores instintos, significava que ele devia permitir estranhos dentro dos limites do território de seu bando. Embora os visitantes conhecidos fossem mais tolerados do que os completos desconhecidos, ele deixava claro que não gostava de companhia, e ficava sempre aliviado quando as visitas iam embora.

Ocasionalmente, só para acostumá-lo a grande número de pessoas, Ayla o conduzia através do acampamento, mantendo-o perto de si. Sempre provocava olhares fixos e arquejos ver a mulher caminhando confiantemente com um lobo ao lado, e isso deixava Ayla pouco à vontade, mas ela sentia que era necessário. Apesar de os hábitos dos homens e lobos serem semelhantes, se as pessoas iam ser sua alcatéia, havia algumas coisas sobre elas com que Lobo teria que se acostumar. As pessoas gostavam da companhia uma das outras, mesmo a de estranhos, e gostavam de reunir-se em grandes grupos.

Mas Lobo não passava todo o seu tempo dentro do Acampamento de Tifáceas. Muitas vezes descia até o prado com os cavalos, e saía sozinho em excursões, ou então com uma pessoa apenas, Ayla, na maior parte das vezes, mas também com Jondalar ou Danug, ou suficientemente estranho para algumas pessoas, com Frebec.

Frebec chamava o animal e o conduzia em direção ao alpendre dos cavalos, para mantê-lo fora do caminho. Lobo deixava algumas pessoas nervosas, e isso podia ter um efeito negativo sobre as delegações que vinham para cortejar Ayla em nome de algum homem. Os homens não se interessavam em unir-se a Ayla, sabiam que ela estava prometida a Ranec. Não procuravam uma companheira, mas uma irmã. As delegações vinham com propostas para adotá-la.

Embora astuta e experiente sobre a natureza e costumes de seu povo, nem mesmo Tulie havia considerado essa possibilidade. Mas, a primeira vez que fora procurada por uma mulher que conhecia, que tinha apenas filhos, perguntando-lhe se consideraria uma proposta de sua fogueira e acampamento para a adoção de Ayla, Tulie compreendeu imediatamente as implicações.

- Eu devia ter entendido desde o início - explicou Tulie ao acampamento mais tarde - que uma mulher sozinha de status elevado, beleza e talentos daria uma irmã extremamente desejável, principalmente desde que foi adotada pela Fogueira do Mamute. Esta não é tida, em geral, como uma fogueira familiar. Nós, ou melhor, Ayla não precisa aceitar qualquer das ofertas a menos, claro, que o deseje, mas somente as propostas já aumentam o seu valor.

Os olhos de Tulie se encheram de alegria ao considerar como Ayla contribuía para o status e valor do Acampamento do Leão. Em seu coração, quase desejava que Ayla não estivesse prometida a Ranec. Seu Preço de Noiva seria assombrosamente alto, se estivesse disponível. Por outro lado, isso significaria que o Acampamento do Leão a perderia, mesmo por um bom preço. Enquanto não se fixava um valor certo, a especulação sempre o aumentaria. Mas as ofertas que recebiam para a adoção de Ayla abriram um novo campo de possibilidades. Ela podia ser adotada em nome, sem deixar o Acampamento do Leão. Podia até tornar-se chefe, se seu irmão em potencial tivesse as conexões certas e ambição. E se Ayla e Deegie fossem chefes, com elos diretos com o Acampamento do Leão, isso traria enorme influência. Todos estes pensamentos atravessavam a mente de Tulie quando se aproximavam da nova delegação.

Ayla começara a entender que as variações no padrão dos desenhos usados para ornar roupas e protetores para os pés eram um meio de definir a identidade do grupo. Embora todos usassem algumas formas geométricas básicas, uma preponderância de uma sobre a outra - ziguezagues sobre losangos, por exemplo - e a maneira como eram combinadas eram indicadores significativos da afiliação e laços com outros acampamentos. Ao contrário de Tulie, no entanto, ela ainda não conhecia instantaneamente esses padrões e, pelo conhecimento pessoal dos indivíduos, não sabia exatamente onde colocá-los dentro da estrutura global de hierarquia e relacionamento dentro do grupo.

O status de alguns acampamentos era tão elevado que Tulie teria aceitado menos em bens materiais, por causa das afiliações e valor que traziam. Outros podiam ser boas possibilidades, se desejassem pagar bastante. Tulie, com base nas ofertas já recebidas, punha o grupo de lado com um só olhar. Não valia a pena falar com eles. Simplesmente, não possuíam o suficiente para trazer para o relacionamento, a fim de fazer com que a associação valesse a pena. Como resultado, Tulie era extremamente amável, mas não os convidava a entrar e eles compreendiam que tinham chegado com muito pouco e tarde demais. No entanto, apenas fazer a proposta tinha suas compensações. Era uma maneira de se aliarem ao Acampamento do Leão, o que aumentava sua influência, e isso seria lembrado favoravelmente.

Enquanto estavam de pé, fora da tenda, trocando amabilidades, Frebec viu Lobo adotando unia postura defensiva e rosnando em direção ao rio. De repente, ele partiu.

- Ayla! - gritou Frebec. - Lobo está atrás de alguma coisa!

Ela assobiou alto, de forma penetrante e urgente, depois correu para olhar a trilha que levava ao rio. Viu Lobo regressar, seguido por um novo grupo de pessoas. Mas estas não eram desconhecidas.

- É o Acampamento do Mamute - disse Ayla - Vejo Vincavec

Tulie se virou para Frebec:

- Quer ver se encontra Talut? Devemos saudá-los adequadamente, e pode dizer a Marlie ou Valez que eles chegaram, afinal.

Frebec concordou com um gesto de cabeça e se afastou.

A delegação que viera fazer uma proposta estava curiosa demais para ir embora agora. Vincavec foi o primeiro a alcançá-los, viu a delegação, Ayla e Tulie, e compreendeu rapidamente o que acontecia. Deixou cair seu bornal e avançou com um sorriso.

- Tulie, deve ser auspicioso ser você a primeira pessoa que vejo, já que é a primeira pessoa que eu queria ver - disse Vincavec estendendo as duas mãos e roçando sua face na dela como um bom e velho amigo.

- Por que seria eu a primeira pessoa que você queria ver? - disse Tulie sorrindo, contra a vontade: ele era fascinante.

Ele ignorou a pergunta.

- Diga-me, por que seus convidados estão trajando as roupas mais finas? Uma delegação, talvez?

Uma mulher falou.

- Fizemos uma oferta para adotar Ayla - disse ela com dignidade, como se o oferecimento não houvesse sido realmente recusado. - Meu filho não tem irmã.

- Bem, eu também farei uma proposta, mais formalmente depois, mas para lhe dar o que pensar, Tulie, quero propor uma união. - Virou-se para Ayla e segurou-lhe as mãos. - Quero me unir a você, Ayla. Quero que venha e faça minha Fogueira do Mamute algo mais que um nome. Somente você pode me dar isso, Ayla. É sua fogueira que traz, mas em troca, posso lhe dar o Acampamento do Mamute.

Ayla estava espantada e assombrada. Vincavec sabia que ela já tinha um compromisso. Por que ele lhe pedia aquilo? Mesmo que ela quisesse, será que poderia de repente mudar de idéia e se unir a ele? Será que era tão fácil assim quebrar uma Promessa?

- Ela já está prometida a Ranec - disse Tulie.

Vincavec olhou diretamente para a grande chefe, e sorriu com experiência. Depois, enfiou a mão em uma bolsa e retirou a mão fechada. Abriu-a e exibiu-a, na palma, dois pedaços de âmbar bonitos, polidos, iguais.

- Espero que ele tenha um bom Preço de Noiva, Tulie - disse.

Os olhos de Tulie se arregalaram. Sua oferta era suficiente para tirar-lhe o ar. Ele lhe dissera, realmente, para dizer o preço, e em âmbar, se quisesse, embora naturalmente, ela não o quisesse, não inteiramente. Os olhos de Tulie se estreitaram.

- Não sou eu que devo decidir, Ayla faz suas próprias escolhas, Vincavec.

- Eu sei, mas receba estas pedras como um presente meu a você, Tulie, por toda a sua ajuda na construção de minha moradia - disse ele, e empurrou-as para ela.

Tulie ficou dividida. Devia recusar. Aceitar as pedras daria a ele uma vantagem sobre ela, mas a decisão era de Ayla, e prometida ou não, era livre para fazer essa escolha. Por que ela rejeitaria? Ao fechar a mão sobre o âmbar Tulie viu a expressão de triunfo de Vincavec, e sentiu-se como se tivesse sido comprada com dois pedaços de âmbar. Ele sabia que ela não consideraria nenhuma outra proposta. Se ele conseguisse convencer Ayla, ela seria dele. Mas Vincavec não conhece Ayla, pensou Tulie. Ninguém conhece. Ela pode se chamar Mamutoi, mas ainda é uma estranha, e Quem poderia dizer o que a faria escolher? Ela observou o homem com a surpreendente tatuagem no rosto virar-se completamente à jovem e viu a reação de Ayla. Sem dúvida, havia interesse.

- Tulie! Que bom tornar a vê-la! - Avarie se acercava, estendendo as mãos. - Estamos tão atrasados, todos os bons lugares estão ocupados. Conhece algum local adequado para estabelecer um acampamento? Onde vocês estão?

- Bem aqui - disse Nezzie, aproximando-se para saudar a chefe do Acampamento do Mamute, em seguida. Ela estivera muito interessada na troca entre Tulie e Vincavec, e notara a expressão dele, também. Ranec não ficaria feliz ao saber que Vincavec ia fazer uma oferta por Ayla, mas Nezzie não estava segura, de modo algum, de que o chefe-Mamut do Acampa mento do Mamute encontrasse muita facilidade para convencer Ayla, não importava o que oferecesse.

- Estão aqui? Tão longe de tudo? - disse Avarie.

- É o melhor lugar para nós, com os animais. Eles ficam nervosos perto de muita gente - explicou Tulie, como se o local houvesse sido escolhido de propósito.

- Vincavec, se o Acampamento do Leão é aqui, por que não acampamos por perto? - disse

Avarie.

- Não é um mau lugar. Há vantagens, mais espaço para se espalhar- disse Nezzie. Se o Acampamento do Leão e o Acampamento do Mamute estão aqui, pensou, parte do interesse do centro também virá para cá.

Vincavec sorriu para Ayla.

- Não posso pensar em nada de que gostasse tanto quanto de acampar perto do Acampamento do Leão – disse, ele.

Talut se acercou com passos largos e saudou os co-líderes do Acampamento do Mamute com sua voz retumbante.

- Vincavec! Avarie! Afinal, chegaram! O que os deteve?

- Fizemos algumas paradas pelo caminho - falou Vincavec.

- Peça a Tulie para mostrar o que ele lhe trouxe - disse Nezzie.

Tulie ainda se sentia um pouco embaraçada, e desejou que Nezzie não houvesse dito nada, mas abriu a mão e estendeu o âmbar para seu irmão ver.

- São bonitos - disse Talut. - Vejo que resolveu negociar. Sabia que o Acampamento do Salgueiro tem conchas marinhas espiraladas brancas?

- Vincavec quer mais do que conchas - disse Nezzie. - Quer fazer uma oferta por Ayla. para sua fogueira.

- Mas ela está prometida a Ranec - disse Talut

- Uma Promessa é apenas uma Promessa - disse Vincavec.

Talut olhou para Ayla, depois para Vincavec, e Tulie. Então riu:

- Bem, esta é uma Reunião de Verão que não será esquecida por muito tempo.

- Não foi somente a parada no Acampamento do Âmbar - disse Avarie. - Vendo você, Talut, com sua cabeleira ruiva, me fez lembrar. Ficamos tentando dar a volta por um leão da caverna com uma juba avermelhada, mas ele parecia seguir a mesma direção que nós. Não vi um bando, mas é melhor prevenir as pessoas de que há leões por perto.

- Sempre há leões por perto - disse Talut.

- Sim, mas este agia de forma estranha. Em geral, os leões não incomodam muito as pessoas, mas, por algum tempo, pensei que ele nos caçava. Aproximou-se tanto que tive dificuldade para dormir, uma noite. Era o maior leão da caverna que já vi. Ainda tremo quando penso nele - disse Avarie.

Ayla ouviu com atenção, franzindo a festa, depois sacudiu a cabeça. Não. Apenas coincidência, pensou. Há muitos leões da caverna grandes.

- Quando estiverem acomodados, venham até a clareira. Falávamos sobre a caçada de mamutes, e a Fogueira do Mamute planeja a cerimônia de Caça. Não fará mal ter outro bom chamador. Estou certo de que quererá carne de mamute para a Festa Matrimonial, já que planeja ser parte dela, Vincavec! - exclamou Talut. Começou a afastar-se, depois se virou para Ayla: - Já que caçará mamutes conosco, por que não volta comigo e traz seu arremessador de lanças? De qualquer maneira, eu vinha buscá-la.

- Caminharei com você - disse Tulie. - Tenho que ir ao Acampamento da Feminilidade e ver Latie.

- Este é de boa qualidade. Especialmente para ferramentas de lâminas, como cinzéis, raspadeiras, furadores. - disse Jondalar, abaixado sobre um joelho, examinando a face interior lisa e cinzenta de sílex bem estruturado.

Ele havia usado um pedaço especialmente moldado de chifre novo, cone e suficientemente resistente para não se partir, como escavadeira e alavanca, para arrancar a massa exposta da sílica dura de sua matriz gredosa. Depois, ele a abriu com um martelo de pedra.

- Wymez diz que o melhor sílex vem daqui - disse Danug.

Jondalar subiu a encosta perpendicular do penhasco, de uma garganta do rio, que havia sido desgastada com o tempo pela água agitada. Mais fragmentos do sílex duro, encaixados em uma crosta branca, opaca, saltaram da pedra gredosa um pouco menos dura.

- O sílex é sempre melhor se você pode tirá-lo de sua fonte. Este é semelhante ao sílex da mina de Dalanar, e o seu é a melhor pedra da região.

- O Acampamento do Lobo certamente pensa que este é o melhor sílex - disse Tarneg. - Na primeira vez que vim aqui estava com Valez.

Deviam tê-lo ouvido entusiasmar-se. Com este local tão perto do acampamento deles, consideram isto aqui como pertencendo a eles. Você fez a coisa certa ao pedir permissão para vir aqui, Jondalar.

- E somente cortesia. Sei como Dalanar se sente em relação à sua mina.

- O que há de tão especial nesta pedra? Já vi sílex, muitas vezes, em planícies aluviais - disse Tarneg.

- Às vezes podem-se encontrar bons nódulos que foram recentemente inundados nas planícies aluviais, e são muito mais fáceis de se arrancar. Dá trabalho tirá-los da rocha. Mas o sílex tende a secar se jaz ao ar livre muito tempo - disse Jondalar. - Então, as lascas saem mais abruptamente, menores.

- Se ficou muito tempo na superfície - disse Danug -, Wymez costuma enterrar o sílex em solo úmido por algum tempo para facilitar o trabalho nele.

- Já fiz isso. Pode ajudar, mas depende do tamanho do nódulo, e quão seco está. Se for um pedaço grande, não pode ser muito antigo. Funciona melhor para pedaços pequenos, mesmo do tamanho de um ovo, mas dificilmente vale a pena trabalhá-los, a menos que sejam de boa qualidade.

- Fazemos algo semelhante com presas de mamute - disse Tarneg.

- Como primeiro passo, envolvemos a presa em couros úmidos e enterramos com cinzas quentes. O marfim muda, torna-se mais denso, porém mais fácil de trabalhar, e de dobrar. É a melhor maneira de endireitar uma presa de mamute.

- Eu me perguntava como vocês faziam isso - disse Jondalar, depois fez uma pausa para pensar, claramente. - Meu irmão gostaria de aprender isso. Ele fabricava lanças. Podia fazer uma haste boa ereta, mas entendia as propriedades da madeira, como curvá-la e moldá-la. Acho que teria compreendido seu processo também. Talvez o conhecimento de seus métodos seja uma razão para Wymez entender tão depressa a idéia de aquecer o sílex a fim de torná-lo mais maleável para o trabalho. Ele é um dos melhores trabalhadores de sílex que já conheci.

- Você também é um bom quebrador de sílex, Jondalar - disse Tarneg. - Mesmo Wymez fala muito bem de você, e ele não elogia facilmente. Sabe, andei pensando. Precisarei de um bom trabalhador em sílex para o Acampamento dos Auroques. Sei que você tem dito que vai voltar para sua casa, mas parece-me uma longa viagem. Você consideraria a idéia de ficar se tivesse um local? O que quero dizer é, que tal acharia em se reunir ao meu acampamento?

A testa de Jondalar se enrugou enquanto pensava em um meio de recusar o oferecimento de Tarneg sem ofendê-lo.

- Não tenho certeza. Preciso pensar sobre isso.

- Sei que Deegie gosta de você, estou certo de que ela concordaria. E não teria problema algum para estabelecer uma fogueira com alguém - encorajou Tarneg. - Tenho reparado que as mulheres estão à sua volta, até as “pés-vermelhos”. Primeiro foi Mygie, agora todo o resto encontra motivos para visitar o local de trabalho em sílex. Deve ser porque você é novo por aqui. - Sorriu.

- Tenho ouvido mais de um homem desejar ser um estrangeiro alto, louro. Todos gostariam de ter uma “pé-vermelho” interessada, novamente, mas agora é a vez de Danug. - Tarneg sorriu afetadamente para o jovem primo.

Jondalar e Danug pareciam embaraçados. Jondalar ficou de pé e desviou o olhar para mudar a atenção para outro local e, de forma incidental, notou que perto daqueles dois homens, ele não era excepcionalmente alto. Todos três tinham quase a mesma altura e Danug ainda iria crescer. Ele seria um segundo Talut. Mas havia homens de todo tamanho na Reunião, exatamente como havia nas Reuniões de Verão dos Zelandonii.

- Bem, eu gostaria que pensasse no Acampamento dos Auroques, Jondalar. Agora que Deegie e Branag se unirão, afinal, construiremos neste outono, embora eu ainda não tenha decidido onde fazer uma habitação única, como o Acampamento do Leão, ou as menores, para cada família. Tendo a ser antiquado. Gosto mais das moradias grandes, mas muitos jovens querem um local com somente seus próprios parentes e, confesso, quando as pessoas começam a discutir, seria muito bom ter sua própria habitação para ficar.

- Aprecio sua proposta, Tarneg - disse Jondalar. - Falo com sinceridade, mas não quero lhe dar uma impressão falsa. Vou para casa. Tenho que ir. Eu poderia lhe dar muitas razões, por exemplo, que preciso comunicar a morte do meu irmão. Mas a verdade é que não sei por que tenho que ir. Apenas tenho.

- E por causa de Ayla? - perguntou Danug, uma ruga de preocupação na testa.

- Ayla é parte do motivo, confesso. Não anseio em vê-la partilhar uma fogueira com Ranec, mas eu tentava convencê-la a voltar comigo quando encontramos vocês. Agora, parece que voltarei sozinho, de qual quer maneira... Não estou ansioso por isso, tampouco, mas não muda nada. Ainda preciso ir.

- Não estou seguro de entender, mas desejo-lhe boa sorte, e que a Mãe lhe sorria em sua jornada.

- Quando pensa partir? - perguntou Tarneg.

- Pouco depois da caçada de mamute.

- Falando da caçada de mamute, devíamos voltar. Estão planejando isso esta tarde - disse Tarneg.

Começaram a caminhar ao longo do rio que era um afluente da corrente principal perto do acampamento, e subiram por rochas em um local onde as muralhas se estreitavam. Abrindo caminho para fora da garganta em volta de uma saliência alcantilada, chegaram até um grupo de rapazes que gritavam palavras insultuosas e de encorajamento para dois deles, que lutavam. Druwez estava entre os espectadores.

- O que está ocorrendo aqui? - perguntou Tarneg, intrometendo-se no meio deles e separando os lutadores. Um sangrava da boca, o outro tinha um olho inchado e fechado.

- Estão apenas... Competindo - falou alguém.

- Sim, estão... Hum... Treinando... Para as lutas corpo a corpo.

- Isto não é competição - disse Tarneg -, é uma luta.

- Não, sinceramente, não brigávamos - disse o rapaz com o olho inchado -, apenas nos divertíamos um pouco.

- Chama olhos roxos e dentes quebrados de brincadeira? Se treinavam apenas, não viriam aqui, a este lugar escondido onde ninguém os veria. Acho melhor me dizerem o que está havendo.

Ninguém respondeu voluntariamente, mas houve muito movimento de arrastar os pés.

- E o resto? - disse Tarneg, olhando para os outros jovens. - O que todos estão fazendo aqui? Inclusive você, Druwez. O que acha que a Mãe e Barzec farão quando descobrirem que você estava aqui, encorajando uma briga? Acho melhor me dizerem o que aconteceu.

Ainda assim, ninguém falou.

- Talvez seja melhor levarmos vocês e deixar que os Conselhos decidam o que fazer. As Irmãs encontrarão um meio de vocês se livrarem de sua necessidade de lutar, e de darem um bom exemplo. Talvez até excluam todos vocês das caçadas de mamutes.

- Não conte nada, Tarneg. Dalen tentava apenas detê-los - falou Druwez.

- Detê-los? Talvez deva me dizer o motivo desta luta - falou Tarneg.

- Acho que sei - disse Danug. Todos se voltaram para o rapaz alto:

- É por causa do ataque.

- Que ataque? - interrogou Tarneg. Aquilo parecia grave.

- Algumas pessoas falavam sobre atacar um Acampamento Sungaea - explicou Danug.

- Sabem que os ataques foram proibidos. Os Conselhos têm tentado negociar uma chama de amizade e estabelecer comércio com os Sungaea. Odeio pensar no problema que um ataque causaria - disse Tarneg. - De quem foi à idéia?

- Não sei - respondeu Danug. - Um dia, todos falavam sobre o ataque. Alguém descobriu um Acampamento Sungaea há alguns dias daqui.

O plano era dizer que iam caçar e, em vez disso, destruir o acampamento, roubar a comida e expulsá-los. Eu lhes disse que não estava interessado, e que achava isso uma estupidez. Só arranjariam encrenca para si mesmos e para os outros. Além disso, paramos em um Acampamento Sungaea quando vínhamos para cá. Um irmão e uma irmã acabavam de morrer. Talvez não seja o mesmo acampamento, mas provavelmente todos eles estão tristes. Não achei certo atacá-los.

- Danug pode fazer isso - disse Druwez. - Ninguém o chamará de covarde porque ninguém quer brigar com ele. Mas quando Dalen disse que não ia tomar parte em ataque algum, tampouco, um grupo começou a dizer, então, que ele tinha medo de briga. Foi quando ele disse que ia lhes mostrar que não tinha medo de lutar com ninguém. Dissemos que viríamos com ele, para que não o atacassem em grupo.

- Quem é Dalen? - perguntou Tarneg. O rapaz com o dente quebrado e a boca sangrando, avançou um passo. - Quem é você? - perguntou Tarneg ao outro, cujo olho já ficava roxo. Ele não respondeu.

- Chamam-no de Cluve. É sobrinho de Chaleg - disse Druwez.

- Sei o que está tentando fazer - disse Cluve soturnamente. - Está tentando jogar toda a culpa em mim porque Druwez é seu irmão.

- Não, eu não ia culpar ninguém. Deixarei o Conselho de Irmãos decidir. Todos podem esperar uma convocação deles, inclusive meu irmão. Agora, é melhor se limparem. Se voltarem à Reunião com essa aparência, todos saberão que brigavam, e ninguém será capaz de impedir que as Irmãs saibam. Não preciso dizer-lhes o que acontecerá se descobrirem que estiveram brigando por causa de um ataque.

Os rapazes se apressaram em partir antes que Tarneg mudasse de idéia, mas afastaram-se em dois grupos, um com Cluve, o outro com Dalen. Tarneg tomou conta de quem ia com quem. Depois, os três continuaram voltando para a Reunião.

- Se não se importa, Tarneg, há uma coisa que eu gostaria de saber - disse Jondalar, - Por que deixa que o Conselho de Irmãos decida sobre o que fazer com os rapazes? Eles não contariam nada, realmente, ao Conselho de Irmãs?

- As Irmãs não toleram brigas, e não ouvirão desculpa alguma, mas muitos dos Irmãos tomaram parte em ataques quando eram jovens, ou em uma luta ou duas, só para terem um pouco de excitação. Você nunca brigou com alguém quando não devia fazer isso, Jondalar?

- Ora, sim, acho que sim. E também fui apanhado.

- Os Irmãos são mais tolerantes, especialmente em relação a alguém que lutava por uma boa causa, embora Dalen devesse ter contado a alguém sobre o ataque, em vez de brigar para mostrar que não tinha medo. Parece mais fácil para um homem perdoar esse tipo de coisa. As Irmãs dizem que a luta sempre leva a mais luta, e talvez seja verdade, mas Cluve estava certo sobre uma coisa - disse Tarneg. - Druwez é meu irmão. Ele não encorajava a briga, realmente, tentava ajudar seu amigo. Detesto vê-lo ter problemas por isso.

- Já brigou com alguém, Tarneg? - perguntou Danug.

O futuro chefe olhou para seu primo mais jovem por um momento; depois concordou com um gesto de cabeça.

- Uma vez ou duas, porém não muitos homens desejam me desafiar.

Como você, sou maior do que a maioria. Às vezes, essas competições são mais violentas do que as pessoas querem admitir, contudo.

- Eu sei - disse Danug com expressão pensativa.

- Mas, ao menos, eles estão sob a guarda de olhos atentos, que não permitirão que alguém fique gravemente ferido, e não vão mais longe, começando uma briga de vingança. - Tarneg lançou um olhar ao céu. - E perto de meio-dia, mais tarde do que pensei. E melhor nos apressarmos se queremos ouvir sobre a caçada de mamutes.

Quando Ayla e Talut alcançaram a clareira, ele a conduziu em direção a uma pequena elevação, a um lado, que se prestava, naturalmente, para local de reunião de pequenos grupos e era usada para reuniões casuais e especiais. Uma estava em andamento, e Ayla examinou as pessoas procurando ver Jondalar. Ultimamente, ela só via o assim, de relance. Desde o instante em que chegaram, ele parecia perder-se na multidão, deixando o Acampamento de Tifáceas de manhã cedo, e voltando tarde, se voltava.

Quando ela o via, ele estava em geral com alguma mulher, usualmente, uma diferente de cada vez. Ela se encontrou fazendo comentários depreciativos a Deegie e alguns outros sobre as muitas parceiras de Jondalar. Ela não era a única. Ouviu Talut comentar que ele se perguntava se Jondalar tentava compensar o inverno inteiro na curta temporada. Suas explorações eram comentadas por muitos dos acampamentos, muitas vezes com humor e uma espécie de admiração, tanto por sua vitalidade aparente, quanto por sua atração evidente. Não era a primeira vez que sua atração pelas mulheres era motivo de conversa, mas era a primeira vez que ele não se importava, realmente.

Ayla também ria dos comentários, mas na escuridão da noite, continha as lágrimas e perguntava-se o que havia de errado com ela. Por que ele nunca a escolhia? No entanto, havia um estranho consolo em vê-lo com tantas mulheres diferentes. Ao menos, ela sabia que ele não encontrava nenhuma especial para substituí-la.

Ela ignorava que Jondalar se esforçava para ficar longe do Acampamento de Tifáceas o máximo possível. Na acomodação mais íntima da tenda, ele estava muito mais consciente de Ayla e Ranec dormindo juntos - não na mesma cama todas as noites, desde que ela sentia precisar da privacidade de sua própria cama, às vezes, porém, lado a lado. Era bastante fácil permanecer perto da área de trabalhar o sílex durante o dia, e isso levava a convites para conhecer pessoas e dividir refeições. Pela primeira vez desde rapaz, fazia amigos por conta própria, sem a ajuda do irmão, e descobriu que isso não era tão difícil.

As mulheres também lhe davam uma desculpa para ficar longe à noite, se não a noite toda, ao menos até tarde. Ele tinha pouco sentimento verdadeiro por qualquer uma delas, mas sentia-se culpado por usá-las em troca de um lugar para ficar, e fazia isso da melhor maneira que conhecia, o que o tornava mais irresistível ainda. Muitas mulheres haviam tido a experiência, que um homem tão atraente quanto Jondalar se preocupava mais em satisfazer a si próprio do que a elas, mas ele era bastante hábil para fazer qualquer mulher se sentir querida. Era um alívio para ele não ter que lutar contra suas necessidades potentes, assim como tentar enfrentar seus sentimentos confusos, e ele se divertia com as mulheres, porém, da mesma maneira que sempre gostara de mulheres, a um nível superficial. Ele ansiava pelos sentimentos mais profundos que sempre havia procurado, e que mulher alguma havia despertado nele, com exceção de Ayla.

Ayla o viu voltando da mina de sílex do Acampamento do Lobo, juntamente a Tarneg e Danug, e como fazia muitas vezes quando via o, seu coração martelou e sua garganta doeu. Ela viu Tulie aproximar-se dos três homens, e depois a viu afastar-se com Jondalar, enquanto Tarneg e Danug continuavam em direção a eles. Talut acenou, chamando os dois.

- Quero lhe perguntar sobre os costumes de seu povo, Jondalar – disse Tulie quando encontraram um local privado para conversar. - Sei que honram a Mãe, e que isso enaltece você e seus Zela... Zelandonii, mas vocês também têm uma iniciação formal para a feminilidade com compreensão e delicadeza?

- Primeiros Ritos? Sim, claro. Como alguém não se importaria com a maneira como uma jovem é possuída pela primeira vez? Nossos rituais não são exatamente iguais aos seus, mas acho que o propósito é o mesmo - disse Jondalar.

- Ótimo. Tenho falado com algumas mulheres, elas o elogiam muito e foi recomendado várias vezes, e isso é importante, porém mais importante é que Latie pediu você. Gostaria de ser uma parte de sua iniciação?

Jondalar compreendeu que devia ter sabido o que o esperava. Não que nunca lhe tivessem pedido antes, mas, por alguma razão, pensou que ela só queria saber sobre os costumes de seu povo. No passado, ele sempre desejara muito participar e ficava tentado, mas, desta vez, hesitou. Ele também havia sentido uma culpa terrível depois, por usar a cerimônia profundamente sagrada para satisfazer suas necessidades próprias, pelos sentimentos mais profundos que ela provocava. Não estava certo de conseguir controlar os sentimentos confusos agora, principalmente com alguém de quem gostava tanto quanto Latie.

- Tulie, participei de rituais semelhantes, e compreendo a honra que você e Latie me concedem, mas acho que devo recusar. Compreendo que não temos relacionamento verdadeiro, mas vivi com o Acampamento do Leão o inverno inteiro, e naquela época, vim a considerar Latie como uma irmã - disse Jondalar -, uma irmã mais nova, especial.

Tulie concordou com um gesto de cabeça.

- E pena, Jondalar. Sob muitos aspectos, você seria perfeito. Você vem de tão longe, não há relacionamento possível entre vocês. Mas compreendo como ela passou a ser como uma irmã. Vocês não partilharam a mesma fogueira, exatamente, mas Nezzie trata-o com a afeição de um filho, e Latie é uma pessoa com muita esperança. Não há abominação pior aos olhos da Mãe do que um homem iniciar uma mulher nascida de sua própria mãe. Se sente como um irmão, infelizmente isso mancharia a cerimônia.

Estou contente porque me contou isso.

Voltaram juntos em direção às pessoas sentadas e de pé na encosta e onde da se nivelava, dando para a clareira. Jondalar viu Talut conversando e, mais interessante ainda, Ayla de pé ao lado dele com seu arremessador de lanças.

- Vocês viram como Ayla atira a lança longe com este arremessador -dizia Talut -, mas gostaria que vissem em melhores circunstâncias, onde poderiam notar, realmente, o que o arremessador pode fazer. Sei que a maioria de nós gosta de usar uma lança maior com as pontas moldadas, que Wymez desenvolveu para caçar mamutes, mas este arremessador possui algumas vantagens reais. Alguns de nós, do Acampamento do Leão, o experimentamos. Ele arremessa uma lança de bom tamanho, mas é necessário prática, como atirar uma lança com a mão também precisa. A maioria cresce atirando lanças em jogos e caçadas. Estão acostumados a atirar, mas, se pudessem ver como funciona bem, estou certo de que muitas pessoas fariam uma tentativa. Ayla diz que planeja usá-lo na caçada de mamutes, e estou certo de que Jondalar o fará também, assim, algumas pessoas verão como funciona. Falamos sobre uma competição, mas ainda não se resolveu nada. Quando voltarmos da caçada, acho que deveríamos organizar uma grande competição, com todos os tipos de provas.

Houve expressões gerais de apoio à sua sugestão, depois Brecie disse:

- Acho que uma grande competição é uma boa idéia, Talut. Eu não me importaria de ver dois ou três dias dela. Temos trabalhado em um pau de arremessar. Alguns conseguiram atingir várias aves com um só arremesso. Enquanto isso acho que devíamos deixar os mamuti decidirem qual o melhor dia para partir, e fazer alguns Chamados para os mamutes. E se não temos mais nada sobre o que falar, preciso voltar ao meu acampamento.

A reunião começou a se dissolver, depois houve uma onda repentina de interesse quando Vincavec entrou na clareira com passos largos, seguido por seu acampamento, a delegação que havia falado em adotar Ayla, e os últimos do Acampamento do Leão, Nezzie e Rydag. As pessoas da delegação começaram a espalhar a notícia de que o chefe-Mamut do Acampamento do Mamute queria pagar qualquer Preço de Noiva que Tulie pedisse por Ayla, apesar do fato de ela já estar prometida.

- Sabe que ele reivindica o direito de chamar seu acampamento como a Fogueira do Mamute, somente porque ele é Mamut - Jondalar ouviu uma mulher dizer a outra, próxima -, mas ele não pode reivindicar qualquer fogueira até estar unido. A mulher traz a fogueira. Ele a quer somente porque ela é filha da Fogueira do Mamute, para tornar o seu, assim chamado, Acampamento do Mamute, aceitável.

Por acaso, Jondalar estava de pé ao lado de Ranec quando ouviu alguém lhe contar. Ficou surpreso por Ler um sentimento de compaixão ao ver a expressão do homem escuro. Ocorreu-lhe que se alguém sabia como Ranec se sentia naquele momento, esse alguém era ele. Mas, ao menos, ele sabia que o homem que convencera Ayla a viver com ele a amava. Parecia óbvio que Vincavec queria Ayla apenas para servir seus propósitos, não porque gostasse dela.

Ayla também havia ouvido trechos de conversa em que se mencionava o seu nome. Ela não gostava de ouvir por acaso. No Clã, ela poderia ter desviado os olhos para não ver os sinais, mas quando a conversa era toda verbal, não podia fechar os ouvidos.

E então, de repente, ela não ouvia ninguém, exceto o tom de vozes provocantes de algumas crianças mais velhas, e a palavra “cabeça-chata”.

- Veja aquele animal, vestido como gente - disse um menino, apontando o dedo para Rydag, e rindo.

- Eles vestem os cavalos, por que não um cabeça-chata? - disse outro, com mais risadas.

- Ela afirma que ele é uma pessoa, sabem. Dizem que ele compreende tudo o que você fala, e pode até falar - disse outro jovem.

- Claro, e se ela conseguisse fazer o lobo andar sobre as patas traseiras, também o chamaria de gente, com certeza.

- Talvez deva tomar cuidado com o que diz. Chaleg disse que o cabeça-chata pode fazer o lobo perseguir as pessoas. Ele disse que o cabeça-chata fez o lobo atacá-lo, e vai levar o caso ao Conselho de Irmãos.

- Bem, isso não prova que ele é um animal? Se é capaz de fazer outro animal atacar?

- Minha mãe diz que não acha certo trazerem animais para uma Reunião de Verão.

- Meu tio disse que ele não se importa muito com os cavalos, ou o lobo, contando que fiquem afastados, mas acha que deviam ser proibidos de trazer aquele cabeça-chata para reuniões e cerimônias destinadas às pessoas.

- Ei, cabeça-chata! Vamos, saia daqui! Volte para seu bando, com outros animais, onde é o seu lugar.

A princípio. Ayla ficou espantada demais para reagir aos comentários claramente desdenhosos. Depois viu Rydag fechar os olhos e abaixar a cabeça e começar a voltar para o Acampamento de Tifáceas. Com cólera flamejante, avançou para os jovens.

- O que há com vocês? Como podem chamar Rydag de animal? Estão cegos? - disse com fúria mal reprimida.

Várias pessoas pararam para ver o que ocorria.

- Não percebem que ele compreende tudo o que dizem? Como podem ser tão cruéis? Não se envergonham?

- Por que meu filho deveria se envergonhar? - perguntou uma mulher, vindo em defesa do filho. - Aquele cabeça-chata é um animal, e não devia estar presente em cerimônias que são sagradas para a Mãe.

Outras pessoas se amontoavam ao redor, inclusive a maior parte do Acampamento do Leão.

- Ayla, não dê atenção a eles - disse Nezzie, tentando acalmá-la.

- Animal! Como ousa dizer que ele é um animal? Rydag é tão gente quanto você - gritou Ayla, voltando-se para a mulher.

- Não tenho que ser insultada assim - disse a mulher. - Não sou mulher cabeça-chata.

- Não, não é! Ela seria mais humana do que você. Teria mais compreensão, mais compaixão.

- Como sabe tanto?

- Ninguém melhor do que eu. Eles me aceitaram, me criaram quando perdi minha família e não tinha mais ninguém. Eu teria morrido se não fosse a compaixão de uma mulher do Clã - disse Ayla. - Eu me orgulhava de ser uma mulher do Clã, e uma mãe.

- Não, Ayla, não! - ouviu Jondalar dizer, mas ela não se impor tava com nada agora.

- Eles são humanos e Rydag também. Eu sei, porque tenho um filho como ele.

- Oh, não! Gemeu Jondalar, enquanto abria caminho em direção a ela.

- Ela disse que tem um filho como ele? - falou um homem. Um filho de espíritos mistos?

- Receio que tenha falado demais, Ayla - disse Jondalar em voz baixa.

- Ela deu à luz uma aberração? Fique longe dela, é melhor. - Um homem avançou para a mulher que discutira com Ayla. - Se ela atrai esse tipo de espírito para si, talvez penetre também em outras mulheres.

- Tem razão! É melhor se afastar dela também - disse outro homem para a mulher obviamente grávida, de pé ao seu lado, enquanto a levava embora. Outras pessoas recuavam, as expressões cheias de repugnância e medo.

- Clã? - disse um dos músicos. - Aqueles ritmos que ela tocou, não disse que eram ritmos do Clã? É isso que queria dizer: cabeças-chatas?

Quando Ayla olhou ao redor, sentiu um instante de pânico, e uma necessidade de fugir de todas aquelas pessoas que a olhavam com tanto nojo. Depois fechou os olhos e respirou fundo, levantou o queixo, e permaneceu parada, desafiante. Que direito tinham eles de dizer que seu filho não era humano? Com o rabo do olho, viu Jondalar ao seu lado, e ficou mais grata do que poderia expressar.

Então do outro lado, outro homem deu um passo à frente. Ela se virou e sorriu para Mamut, e Ranec também. Em seguida, Nezzie estava com ela, e Talut, e depois, surpreendentemente, Frebec. Quase como uma só pessoa, o resto do Acampamento do Leão estava ao lado dela.

- Estão enganados - disse Mamut à multidão, com voz que parecia forte demais para vir de um velho. - Os cabeças-chatas não são animais. São gente, e filhos da Grande Mãe, tanto quanto vocês. Eu também vivi com eles por algum tempo, e cacei com eles. Sua curandeira tratou meu braço, e aprendi meu caminho para a Mãe através deles. A Mãe não mistura espíritos, não existem cavalos-lobos, ou leões-veados. As pessoas do Clã são diferentes, mas a diferença é insignificante. Nenhuma criança como Rydag, ou o filho de Ayla nasceria se não fosse humana também. Não são aberrações, são simplesmente crianças.

- Não me importo com o que diz, velho Mamut - falou a mulher grávida. - Não quero um filho cabeça-chata ou misto. Se ela já teve um, esse espírito pode pairar perto dela.

- Mulher, Ayla não é ameaça para você - disse o velho feiticeiro.

- O espírito que foi escolhido para seu filho já está lá. Mão pode ser mudado agora. Não foi obra de Ayla dar ao seu bebê o espírito de um homem cabeça-chata, ela não atraiu esse espírito para si.

Foi escolha da Mãe. Deve lembrar que o espírito de um homem jamais permanece longe do próprio homem. Ayla cresceu com o Clã. Tornou-se mulher enquanto vivia com eles. Quando Mut resolveu lhe dar um filho, Ela só poderia escolher entre os homens próximos, e todos eram homens do Clã.

Claro, o espírito de um deles foi escolhido para penetrá-la, mas não vêem nenhum homem do Clã aqui por perto, não é?

- Velho Mamut, e se houvesse alguns homens cabeças-chatas aqui? - gritou uma mulher de entre a multidão.

- Acredito que teriam que ser muito íntimos, até partilhar a mesma fogueira, antes de esse espírito ser escolhido. As pessoas do Clã são humanas, mas existem algumas diferenças. Enquanto, para a Mãe, a vida é melhor do que nenhuma vida, e por isto Ayla recebeu um filho quando desejou um, não é fácil misturar os dois. Com tantos homens Mamutoi por perto, um deles seria escolhido primeiro.

- Isso é o que diz... Velho - gritou outra voz - Não tenho certeza de que é verdade. Vou conservar minha mulher longe dela.

- Não é de admirar que ela seja boa com animais, já que cresceu com eles. - Ayla se virou e viu que era Chaleg quem falava.

- Isso significa que sua magia é mais forte do que a nossa? - retrucou Frebec. Houve alguma inquietação na multidão.

- Eu a ouvi dizer que não é mágica. Ela diz que qualquer um pode fazê-lo. - Frebec reconheceu a voz do Mamut do Acampamento de Chaleg.

- Então, por que ninguém o fez antes? - disse Frebec. - Você é Mamut. Se alguém é capaz de fazê-lo, quero vê-lo sair e cavalgar um cavalo. Por que não domina um lobo? Tenho visto Ayla fazer aves descer do céu com seus assobios.

- Por que a defende, Frebec, contra sua família, seu acampamento? - perguntou Chaleg.

Que acampamento é o meu? Aquele que me expulsou ou o que me aceitou? Minha fogueira é a Fogueira da Garça, meu acampamento é o do Leão. Ayla viveu conosco o inverno todo. Ayla estava presente quando Bectie nasceu, e ela não é mista. A filha da minha fogueira não estaria aqui, agora, se não fosse Ayla.

Jondalar ouvia Frebec com um nó na garganta. Apesar do que ele dizia, era preciso verdadeira coragem para enfrentar seu próprio primo e parentes do acampamento onde nascera. Jondalar mal podia acreditar que aquele era o mesmo homem que fora tão arruaceiro. No início, ele havia condenado Frebec tão depressa, contudo, quem é que se sentira embaraçado por causa de Ayla? Quem temia o que as pessoas diriam se ela falasse algo sobre sua formação? Quem tinha medo de ser rejeitado por sua família e seu povo, se a defendesse? Frebec lhe havia mostrado que covarde ele era Frebec, e Ayla.

Quando ele a vira engolir o medo e levantar o queixo para enfrentar todos eles, nunca sentira tanto orgulho de alguém em sua vida. Então, o Acampamento do Leão a apoiou e ele mal podia acreditar. Aqueles que contavam eram os que se importavam. Jondalar esquecia, enquanto pensava em Ayla e no Acampamento do Leão com admiração e orgulho, que ele fora o primeiro a correr para o lado dela

O Acampamento do Leão voltou para o Acampamento de Tifáceas a fim de discutir a crise inesperada. Uma sugestão inicial de partir imediatamente foi abandonada com rapidez Afinal, eram Mamutoi, e aquela era a Reunião de Verão. Tulie havia ido buscar Latie para que participasse dos debates, e estivesse preparada para a possibilidade de comentários maldosos dirigidos a ela, a Ayla ou ao Acampamento do Leão. Perguntaram-se se queria retardar os ritos de feminilidade. Latie defendeu Ayla com veemência, e resolveu que voltaria para o acampamento especial para a cerimônia e ritual, e que alguém experimentasse falar mal de Ayla ou do Acampamento do Leão!

Então, Tulie perguntou a Ayla por que ela não mencionara o filho antes. Ayla explicou que não gostava de falar dele porque ainda doía muito e Nezzie deixou claro, rapidamente, que ela soubera desde o início. Mamut também confessou que sabia sobre o menino. Embora a chefe desejasse ter sabido e se perguntasse por que motivo não lhe contaram, não culpou Ayla Considerou se teria tido opinião diferente sobre a jovem, se soubesse, e admitiu que talvez não lhe creditasse tanto status ou valor potencial. Então, começou a questionar sua posição. Por que devia fazer diferença? Ayla estava diferente, de algum modo?

Rydag estava muito aborrecido e deprimido, e nada que Nezzie dissesse ou fizesse pareceu ajudar.

Ele não quis comer, não quis sair da tenda, não se comunicou, exceto para responder a uma pergunta direta. Permaneceu sentado, apenas, abraçando Lobo. Nezzie ficou grata pela paciência do animal. Ayla resolveu ver se havia algo que pudesse fazer. Encontrou-o sentado com o lobo em seu rolo de dormir, em um canto escuro. Lobo ergueu a cabeça e abanou o rabo contra o solo quando ela apareceu

- Posso sentar aqui com você, Rydag? - perguntou ela.

Ele deu de ombros. Ela se acomodou ao seu lado e perguntou como se sentia, falando alto com ele, mas, automaticamente, fazendo sinais também, até compreender que, provavelmente, estava escuro demais para ver. Então, lhe ocorreu a verdadeira vantagem de ser capaz de falar com palavras. Não se tratava de não poder falar tão bem com gestos e sinais manuais, mas sim de que você não se limitava a falar somente quando podia ver.

Era como a diferença entre investir com a lança ao caçar, como o Clã fazia, ou atirá-la. Ambas eram formas eficazes de trazer carne para casa, porém uma tinha maiores possibilidades e alcance. Ela havia visto como sinais e gestos podiam ser úteis, embora não compreendidos por todos, principalmente para comunicação secreta e particular, mas normalmente havia maior vantagem em se comunicar com palavras que podiam ser ouvidas e compreendidas. Com uma linguagem verbal total, você podia falar com uma pessoa que se encontrasse atrás de uma barreira, ou em um recinto diferente, ou até gritar através de uma distância, ou para um grande grupo. Você podia falar quando alguém estava de costas, ou quando você segurava alguma coisa nas mãos, o que as liberava para outras finalidades, e você podia falar suavemente no escuro.

Ayla se sentou em silêncio com o menino, durante algum tempo, sem fazer perguntas, apenas oferecendo companhia e proximidade. Um pouco depois, começou a lhe falar, contando a Rydag sobre a época em que vivera com o clã.

- De alguma forma, esta Reunião me lembra a Reunião de Clãs - disse Ayla. - Aqui, mesmo se pareço com todo mundo, sinto-me diferente. Lá, eu era diferente... Mais alta do que qualquer dos homens... Somente uma grande mulher feia. Foi horrível quando chegamos lá pela primeira vez. Quase não deixaram o clã de Brun ficar quando me levaram. Disseram que eu não era Clã, mas Creb insistiu em que eu o era. Ele era Mog-ur, e não ousaram discutir com ele. Foi bom que Durc era apenas um bebê. Quando o viram, pensaram que era deformado. Era apenas uma mistura, como você. Ou talvez você seja mais como Ura. Sua mãe era Clã.

- Você disse antes que Ura se unirá com Durc? - perguntou Rydag, virando-se para a luz do fogo para fazer com que ela visse seus sinais. Ele estava intrigado, embora contra a vontade.

- Disse. Sua mãe me procurou, e foi arranjado. Ela ficou tão aliviada em saber que havia outra criança, um menino, como sua filha! Tinha tanto medo que Ura jamais encontrasse um companheiro. Para ser sincera, eu não pensava muito nisso. Fiquei apenas grata por terem aceito Durc no Clã.

- Durc é Clã? É misto, mas é Clã? - o garoto fez sinais.

- Sim, Bruno aceitou, Creb lhe deu o nome. Nem sequer Broud pode tirar isso dele E todos o amam... Exceto Broud... Até Oga, companheira de Broud. Ela o amamentou quando perdi meu leite, juntamente com o seu filho. Cresceram juntos como irmãos, e são bons amigos. O velho Grod fez uma pequena lança para Durc, exatamente do seu tamanho. - Ayla sorriu ao recordar. - Uba o ama muito, mais que todos. Uba é minha irmã, como você e Rugie. Ela é mãe de Durc, agora. Eu o dei a Uba quando Broud me fez partir. Talvez pareça um pouco diferente, mas sim, Durc é Clã.

- Odeio este lugar - disse Rydag com um gesto veemente de raiva.

- Gostaria de ser Durc e viver com o Clã.

O comentário de Rydag surpreendeu Ayla. Mesmo depois de conversarem mais e de ela convencê-lo a comer alguma coisa, afinal, e depois colocá-lo na cama, a frase permaneceu em sua mente.

Ranec observou Ayla a noite toda. Notou como ela parava no meio de alguma atividade, enquanto seus olhos cintilavam com expressão distante enquanto levava um pedaço de alimento à boca, por exemplo, ou uma ruga de concentração vincava-lhe a testa. Ele sabia que seus pensamentos pesavam muito na mente dela, e queria muito consolá-la, partilhá-los com ela.

Todos ficaram no Acampamento de Tifáceas naquela noite e a tenda estava apinhada. Ranec esperou Ayla até ela, afinal, começar a escorregar para seu rolo de pele, depois foi rapidamente para as dele.

- Quer dividir minhas peles esta noite, Ayla? - Ranec a viu fechar os olhos e franzir atesta. - Não digo para prazeres - acrescentou ele, de pressa -,a menos que você queira. Eu sei que foi um dia difícil para você...

- Acho que foi mais difícil para o Acampamento do Leão.

- Creio que não foi mais difícil, mas isso não importa. Quero apenas lhe dar alguma coisa, Ayla. Minhas peles para mantê-la aquecida, meu amor para confortá-la. Quero estar perto de você esta noite.

Ela concordou com um gesto de cabeça, e escorregou para as peles de Ranec com ele, mas não conseguiu dormir, nem sequer descansar confortavelmente, e ele estava consciente disso.

- Ayla, o que a perturba? Gostaria de falar a respeito? - disse Ranec.

- Tenho pensado em Rydag e meu filho, mas não sei se posso falar sobre isso. Preciso apenas pensar.

- Você preferia estar em sua cama, não é? - disse ele, afinal.

- Sei que quer ajudar, Ranec, e isso ajuda mais em si mesmo do que posso dizer. Não sei lhe dizer o quanto significou para mim quando o vi ali, de pé a meu lado. Sou muito grata ao Acampamento do Leão também. Todos têm sido bons comigo, tão maravilhosos comigo, quase em demasia. Aprendi tanto com eles e fiquei tão orgulhosa em ser Mamutoi, em dizer que eles são meu povo! Pensei que todos os Outros... Aqueles que eu costumava chamar de Outros... Eram iguais ao Acampamento do Leão, mas agora sei que isso não é verdade. Como o Clã, a maioria das pessoas é boa, porém, nem todas, e mesmo as pessoas boas não o são em relação a tudo. Eu tinha algumas idéias e... Eu fazia planos... Mas, agora, preciso pensar.

- E pensa melhor em sua própria cama, não encolhida aqui comigo. Vá, Ayla, ainda continuará ao meu lado - disse Ranec.

Ranec não era o único que andara observando Ayla e, quando Jondalar a viu sair das peles de dormir de Ranec e ir para as suas, teve uma série estranha de sentimentos diversos. Ficou aliviado porque não teria que apertar os dentes ao ouvir os sons deles partilhando prazeres, mas sentiu uma ponta de pena de Ranec. Se estivesse no lugar do escultor, quereria conservar Ayla, e consolá-la, tentar assumir parte de seu sofrimento. Teria ficado magoado se ela houvesse deixado sua cama para dormir sozinha.

Depois de Ranec adormecer e uma imobilidade profunda descer sobre o acampamento, Ayla se levantou em silêncio, enfiou uma parka leve para se proteger do frio da noite e saiu para a noite estrelada. Em um instante, Lobo estava ao seu lado. Caminharam em direção ao alpendre e foram bem recebidos por um relincho de Racer e um bufo suave de Whinney. Depois de afagar e coçar os animais, e de palavras calmas, Ayla colocou os braços ao redor do pescoço de Whinney e recostou-se nela.

Quantas vezes, a égua cor de feno havia sido sua amiga quando ela precisara de uma? Ayla sorriu. O que o Clã pensaria de seus amigos? Dois cavalos e um lobo! Ficou grata pela presença deles, por sua companhia, mas havia ainda um vazio nela. Faltava alguém, aquele que ela mais queria. No entanto, ele estivera lá. Mesmo antes do Acampamento do Leão apoiá-la. Ela nem sequer soubera de onde ele tinha vindo. De repente, Jondalar estava ali, ao lado dela, enfrentando todos eles. Contra sua repugnância, seu nojo. Havia sido terrível, pior do que a Reunião. Não se tratava apenas de ela ser diferente. Eles a temiam, a odiavam. Fora isto que ele havia tentado lhe dizer, o tempo todo. Mas, mesmo se ela soubesse, não teria feito diferença. Não poderia deixá-los atacar Rydag ou denegrir seu filho.

Da abertura da tenda, outro par de olhos a observava. Jondalar tam pouco pudera dormir. Ele a tinha visto levantar-se e seguiu-a em silêncio. Quantas vezes ele a vira assim com Whinney? Estava feliz por ela ter os animais para procurar, mas ansiava estar no lugar da égua. Mas era tarde de mais. Ela não o queria e ele não podia culpá-la. Com uma compreensão súbita, ele viu através da sua confusão emocional, viu suas ações com nova clareza, e compreendeu que ele mesmo o fizera. No início, ele não estava apenas sendo “justo” e deixando-a fazer sua própria escolha. Ele se afastara dela, por puro ciúme. Estava magoado e queria vingar-se.

Havia mais que isso confesse, Jondalar, falou consigo mesmo. Você estava magoado, mas sabia como ela fora criada. Ela nem sequer compreendeu o seu ciúme. Quando foi para a cama de Ranec naquela noite, estava sendo apenas uma “boa mulher do Clã”. Este era o verdadeiro problema, sua experiência no Clã. Você se envergonhava dela. Envergonhava-se por amá-la, temendo ter que enfrentar o que ela enfrentou hoje. Não sabia se poderia defendê-la. Não importa quanto tenha dito que a amava, você temia se voltar contra ela, também. Bem, não existe vergonha em amá-la, a vergonha está em sua própria covardia. E agora é tarde demais. Ela não precisou de você. Ela se defendeu, e depois todo o Acampamento do Leão ficou ao seu lado. Ela não precisa de você, de modo algum, e você não a merece.

Finalmente, o frio fez Ayla voltar para a tenda. Lançou um olhar ao local de dormir de Jondalar quando entrou. Ele estava virado de lado, voltado para a direção oposta. Ela escorregou para a cama e sentiu a mão pesada, adormecida, tocar a sua. Ranec a amava, ela sabia disso. E ela o amava também, à sua maneira. Jazeu imóvel, e ouviu a respiração regular de Ranec. Um pouco depois, ele se virou para o lado oposto e a mão se foi.

Ayla tentou dormir, mas não podia parar de pensar. Quisera ir buscar Durc para trazê-lo para o Acampamento do Leão a fim de viver com ela. Agora, perguntava-se se isso seria o melhor para ele. Será que Durc seria mais feliz ali com ela, do que vivendo com o Clã? Poderia ele ser feliz vivendo com gente que o odiaria? Que o chamaria de cabeça-chata e, pior, uma aberração parcialmente animal? Com o Clã ele era conhecido, amado, era um deles. Talvez Broud o odiasse, mas, mesmo na Reunião de Clãs, ele teria amigos. Era aceito, poderia participar das competições e cerimônias - será que Durc tinha as lembranças do Clã?, Perguntou-se.

Se ela não podia tirá-lo de lá, seria capaz de voltar a viver com o Clã? Agora que encontrara pessoas como ela mesma, poderia aceitar novamente os hábitos do Clã? Jamais lhe permitiriam manter animais. Desejaria ela desistir de Whinney e Racer, e Lobo e ser apenas a mãe de Durc? Durc precisa de uma mãe? Ele era um bebê quando parti, porém, não é mais um bebê agora. Brun deve estar lhe ensinando a caçar, agora.

Provavelmente, ele já fez suas pequenas caçadas agora, e trouxe a caça para mostrar a Uba. Ayla sorriu consigo mesma diante da cena que suscitava. Uba iria elogiá-lo muito e lhe dizer que caçador valente e forte ele era.

Durc tem uma mãe! Compreendeu ela. Uba é sua mãe. Uba o criou, cuidou dele, tratou de seus pequenos arranhões e cortes. Como posso tirá-lo dela? Quem tomará conta de Uba quando envelhecer? Mesmo quando ele era um bebê, as outras mulheres do Clã foram mais mãe para ele do que eu, depois que perdi meu leite.

Como posso voltar a pegá-lo, de qualquer modo? Estou amaldiçoada. Para o Clã, estou morta! Se Durc me visse, eu apenas o assustaria, e a todos os outros. Mesmo se não existisse maldição de morte sobre mim, será que ele ficaria feliz em me ver? Será que se lembraria de mim?

Ele era pouco mais que um bebê quando parti. Agora, está na Reunião de Clãs e conheceu Ura. Ainda é jovem, mas deve estar pensando na época em que se unirão. Planeja fazer uma fogueira - exatamente como eu, pensou ela. Mesmo se eu pudesse convencê-lo de que não sou um espírito, Durc teria que trazer Uba com ele, e Uba seria infeliz aqui. Já será bastante difícil para ela deixar seu clã, mas mudar para um mundo em que nada lhe é familiar seria muito pior. Especialmente, um mundo onde seria odiada e incompreendida.

E se eu voltasse para o vale? E depois trouxesse Dure e Ura para viver lá? Mas Durc precisa de gente... E eu também. Não quero viver sozinha, por que Durc deveria querer viver sozinho em um vale comigo?

Tenho pensado em mim, não em Durc. Não seria melhor para ele vir para cá. Não o faria feliz. Somente me faria feliz. Mas não sou mais a mãe de Durc. Uba é a mãe dele. Não sou para ele mais que uma lembrança de uma mãe que morreu, e talvez seja melhor assim. O Clã é o seu mundo e, quer eu queira ou não, este é o meu mundo. Não posso voltar ao Clã; Durc não pode vir para cá. Não existe lugar no mundo onde meu filho e eu possamos viver juntos, e ser felizes

Ayla acordou cedo na manhã seguinte. Mesmo depois de ter finalmente adormecido, não dormiu bem. Acordou muitas vezes de sonhos de tremores de terra e cavernas destruídas, e se sentiu inquieta e deprimida. Ajudou Nezzie a esquentar a água para a sopa e a moer grãos para uma refeição matinal, e ficou contente pela oportunidade de conversar com ela.

- Sinto-me muito mal por causa de toda a encrenca que causei, Nezzie. Todo o Acampamento do Leão está sendo desprezado por minha causa - disse ela.

- Não diga isso! Não é culpa sua, Ayla. Tínhamos uma opção e a fizemos. Você apenas defendia Rydag e ele também é membro do Acampamento do Leão, ao menos para nós.

- Todo este problema me fez compreender uma coisa - continuou Ayla. - Desde que deixei o Clã, sempre pensei em voltar, um dia, para buscar meu filho. Agora, sei que não poderei. Nunca. Não posso trazê-lo para cá e não posso voltar para lá. Mas saber que nunca mais o verei faz- me sentir como se acabasse de perdê-lo, novamente. Gostaria de poder chorar, lamentar-me por ele, pranteá-lo, mas sinto-me seca e vazia.

Nezzie tirava os talos das amoras frescas colhidas na véspera. Parou e lançou um olhar sensato a Ayla.

- Todos sofrem desapontamentos na vida. Todos perdem seres amados. Ás vezes, acontecem verdadeiras tragédias. Você perdeu sua gente quando era criança. Foi uma tragédia, mas não havia nada que você pudesse fazer. É pior se culpa a si mesma. Wymez vive todos os dias de sua vida culpando-se pela morte da mulher amada. Acho que Jondalar se culpa pela morte do irmão. Você perdeu um filho. É difícil para uma mãe perder um filho, mas você possui alguma coisa. Sabe que, provavelmente, ele ainda vive. Rydag perdeu a mãe... Um dia eu o perderei.

Ayla saiu depois da refeição matinal. A maioria das pessoas estava perto do Acampamento de Tifáceas. Ela olhou para o centro da Reunião, depois para o Acampamento de Lanços, a moradia recém-armada do Acampamento do Mamute. Ficou surpresa ao ver Avarie olhando para ela. Perguntou-se o que achavam, hoje, de ter armado o acampamento tão perto do Acampamento do Leão.

Avarie se dirigiu à tenda que o irmão havia designado como a Fogueira do Mamute, arranhou o couro, depois, sem esperar resposta, entrou. Vincavec havia espalhado seu rolo de pele de dormir de maneira que ocupava quase metade do espaço, no chão. No meio, havia uma espécie de almofada, uma pele decorada esticada sobre uma armação de osso de mamute, que tinha sido atada com couro cru. Ele estava sentado em suas peles, descansando na almofada.

- Os sentimentos são confusos - disse ela sem preâmbulo.

- Posso imaginar - replicou Vincavec. - O Acampamento do Leão trabalhou arduamente conosco para construir a moradia. Quando partiram, todos se sentiam mais amistosos em relação a eles. E Ayla era fascinante com os cavalos e o lobo... E inspirava um pouco de medo. Mas agora, se devemos acreditar nos antigos costumes e histórias, o Acampamento do Leão está abrigando uma abominação, uma mulher de maldade incontrolável, que atrai espíritos de animais cabeças-chatas para si, como um fogo atrai as mariposas à noite, e os espalha perto das outras mulheres, O que acha, Avarie?

- Não sei, Vincavec. Gosto de Ayla e não me parece uma pessoa má. O menino tampouco parece um animal. Ele é apenas fraco e incapaz de falar, mas acredito que compreende. Talvez seja humano, e talvez os outros cabeças-chatas também o sejam. Talvez o velho Mamut tenha razão. A Mãe apenas escolheu um espírito dos únicos homens próximos a Ayla quando Ela lhe deu um filho. Eu não sabia que ela viveu com um bando de cabeças-chatas antes, contudo, ou que o velho sabia disso.

- Aquele velho já viveu tantos anos que esqueceu mais coisas do que um punhado de jovens já aprendeu, e ele tem razão, geralmente. Tenho uma impressão sobre isto, Avarie. Creio que não terá efeitos perniciosos duradouros. Há alguma coisa em Ayla que me faz pensar que a Mãe zela por ela. Creio que ela pode sair disto mais forte do que era antes. Vamos saber o que o Acampamento do Mamute pensa sobre estar localizado ao lado do Acampamento do Leão.

- Onde está Tulie? - indagou Fralie, olhando ao redor da tenda.

- Ela voltou ao Acampamento da Feminilidade com Latie - respondeu Nezzie. - Por quê?

- Lembra-se daquele acampamento que se ofereceu para adotar Ayla exatamente antes da chegada do Acampamento do Mamute?

Ayla olhou para Fralie interrogativamente.

- Sim - disse Nezzie. - Aquele que Tulie achou que não possuía o bastante para oferecer.

- Estão lá fora perguntando por Tulie de novo.

- Verei o que querem - disse Nezzie.

Ayla esperou no interior, não querendo realmente enfrentá-lo, se não fosse necessário. Alguns momentos depois, Nezzie voltou.

- Ainda querem adotá-la, Ayla - disse ela. - A chefe daquele acampamento tem quatro filhos. Querem você como irmã. Ela disse que se você já teve um filho, é prova de que poderá ter outros. Aumentaram sua proposta. Talvez você deva sair e dar-lhes as boas-vindas, em nome da Mãe.

Tulie e Latie caminharam com passos largos e determinados, pelo acampamento, lado a lado, olhando diretamente à frente, ignorando os olhares fixos curiosos das pessoas por quem passavam.

- Tulie! Latie! Esperem um momento - gritou Brecie, apressando-se para alcançá-las. - Estávamos-nos preparando para lhe enviar um corredor, Tulie. Gostaríamos de convidá-los para partilhar uma refeição conosco esta noite no Acampamento do Salgueiro.

- Obrigada, Brecie. Aprecio seu convite. Claro que iremos. Eu devia saber que podia contar com vocês.

- Somos amigas há tanto tempo, Tulie. Às vezes, histórias antigas merecem crédito somente porque são antigas. O bebê de Fralie me parece muito bem.

- E nasceu cedo demais. Bectie não viveria se não fosse Ayla - disse Latie, defendendo depressa sua amiga.

- Eu me perguntei de onde ela viera, contudo. Todos pensavam que tinha vindo com Jondalar. Ambos são altos e louros, mas eu sabia que não. Lembro-me quando tiramos Jondalar e o irmão do charco perto do mar Beran. Ela não estava com eles na época, e eu sabia que seu sotaque não era Mamutoi, nem tampouco dos Sungaea. Mas ainda continuo ignorando como ela domina os cavalos e o lobo.

Tulie se sentia muito melhor quando continuaram em direção ao centro da depressão, e das habitações de terra do Acampamento do Lobo.

- Quantas são, com esta? - perguntou Tarneg a Barzec, quando outra delegação se afastava.

- Quase metade dos acampamentos tomou alguma atitude de reconciliação - disse Barzec. - Posso pensar em mais um ou dois que talvez ainda se resolvam unir a nós.

- Mas isso ainda deixa de lado metade dos acampamentos - disse Talut. - E alguns estão discutindo bastante, argumentando contra nós e chegando a dizer que devíamos ir embora.

Sim, mas veja quem são, e Chaleg é o único que ouvi falar que diz que devemos partir - disse Tarneg.

- Mas são Mamutoi também - falou Nezzie -, e até sementes carregadas por maus ventos são capazes de germinar.

- Não gosto desta divisão - disse Talut. - Há muitas pessoas boas de ambos os lados. Gostaria de poder pensar numa maneira de dar um jeito nas coisas.

- Ayla também se sente muito mal. Diz que está causando problemas para o Acampamento do Leão. Viu a expressão em seu rosto quando os jovens que brigavam começaram a chamá-la de “mulher-animal”?

- Quer dizer, aqueles que pegamos perto do...? - começou a perguntar Danug, mas Tarneg o interrompeu depressa.

- Ela fala do irmão e da irmã que Ayla e Deegie pegaram brigando.

- Danug teria que tomar cuidado. Quase esquecera e mencionara a briga dos rapazes, pensou Tarneg.

- Nunca vi Rydag tão preocupado - continuou Nezzie. - Todos os anos as Reuniões têm sido difíceis para ele, cada vez mais difíceis. Ele não gosta da maneira como as pessoas o tratam, mas desta vez está pior... Talvez porque seja tão melhor para ele, agora, no Acampamento do Leão. Infelizmente, tudo isto não é bom para ele, mas não sei o que fazer. Até Ayla está preocupada, e isso me preocupa mais.

- Onde está Ayla, agora? - perguntou Danug.

- Lá fora, com os cavalos - disse Nezzie.

- Acho que ela devia encarar como elogio quando a chamam de “mulher-animal”. Devem admitir, ela é boa com animais - disse Barzec.

- Algumas pessoas acham, até, que ela é capaz de falar com os seus espíritos do outro mundo.

Alguns dos outros dizem que isso só prova que ela viveu com animais - lembrou-lhe Tarneg. - E a acusam de atrair diferentes tipos de espíritos que não são tão bem-vindos.

- Ayla diz ainda que qualquer pessoa pode tornar os animais amistosos - falou Talut.

- Ela tenta diminuir seu valor - falou Barzec. - Talvez, por isso, alguns dos outros não dão tanta importância ao seu dom. As pessoas estão mais acostumadas com alguém como Vincavec, alguém que lhes diz como ele próprio é maravilhoso.

Nezzie olhou para o homem de Tulie, e se perguntou por que ele parecia não gostar muito de Vincavec. O Acampamento do Mamute fora um dos primeiros a ficar do lado deles.

- Talvez esteja certo, Barzec - disse Tarneg. - E estranho como nos acostumamos facilmente com animais por perto, quando se comportam tão bem. Não parecem anormais. São como qualquer outro animal, exceto que você pode se aproximar deles e tocá-los. Mas quando se pensa a respeito, está além da razão. Por que o lobo obedeceria a um sinal de uma criança fraca que ele poderia destruir facilmente? Por que os cavalos permitem que alguém os monte e os cavalgue? E o que faria uma pessoa se quer pensar em tentar?

- Eu não ficaria surpreso se Latie tentar, um dia - disse Talut.

- Ela o fará, antes que qualquer outra pessoa - disse Danug. - Viram Latie quando esteve aqui? O primeiro lugar onde foi: o local dos cavalos. Ela sentiu mais falta deles do que qualquer pessoa. Acho que ela está apaixonada por aqueles cavalos.

Jondalar estivera ouvindo sem fazer qualquer comentário. A situação que Ayla provocara para si mesma, ao admitir seu passado, era dolorosa e degradante, mas, de muitas formas não havia sido tão terrível quanto ele imaginara. Ficou surpreso que ela não houvesse sido mais completamente denunciada. Ele esperara que ela fosse difamada, expulsa, totalmente exilada. O tabu era pior entre o seu povo, ou será que ele apenas imaginava que fosse?

Quando o Acampamento do Leão tomou o partido de Ayla, ele achou que eram uma rara exceção, que perdoavam talvez por causa de Rydag. Depois, quando Vincavec e Avarie, do Acampamento do Mamute, vieram oferecer apoio, e quando mais e mais acampamentos voluntariamente vieram apoiar o Acampamento do Leão, ele foi obrigado a examinar suas próprias crenças.

Jondalar era um homem material. Compreendia conceitos como amor, compaixão, cólera, com uma empatia baseada em seus próprios sentimentos, embora não pudesse expressá-los bem. Era capaz de discutir filosofias intangíveis e temas espirituais com inteligência, mas não era sua paixão, e aceitava suas posições na sociedade sem desconfianças profundas. Mas Ayla havia enfrentado a multidão com tal dignidade e força superior, que o respeito por ela cresceu muito. Isso deu a Jondalar um insight raro.

Ele começou a compreender que somente porque algumas pessoas achavam que um determinado comportamento era errado, isto não fazia que fosse. Uma pessoa podia resistir à crença popular e apoiar princípios pessoais, e embora pudesse haver conseqüências, nem tudo estaria necessariamente perdido. Na verdade, uma coisa importante podia ser conquistada, mesmo que apenas dentro de si próprio. Ayla não foi expulsa do acampamento que a havia adotado tão recentemente. Metade deles queria aceitá-la, e acreditava que ela era uma mulher de raro talento e coragem.

A outra metade pensava de forma diferente, mas nem sempre pelas mesmas razões. Alguns viam o incidente como uma chance para ganhar influência e status, opondo-se ao poderoso Acampamento do Leão num momento em que sua posição estava ameaçada. Outros estavam genuinamente indignados por uma mulher tão depravada poder viver entre eles. Em sua opinião ela personificava o mal, ainda mais porque não parecia maldosa. Era como qualquer outra mulher, mais atraente que a maioria, mas os havia enganado com um truque de dominar os animais, que devia ter aprendido quando vivera com as abominações bestiais cabeças-chatas, que chegaram até a enganar algumas pessoas, levando-as a pensar que eles eram humanos.

Muitos tinham medo dela. Por confissão própria, ela havia dado à luz um daqueles reles animais pela metade, e agora ameaçava todas as mulheres da Reunião de Verão. Não importava o que dizia o velho Mamut, todos sabiam que alguns espíritos masculinos eram atraídos, consistentemente, para a mesma mulher. O Acampamento do Leão permitira que Nezzie conservasse aquela criança-animal, e agora, o que tinham eles! Mais animais, e uma aberração de mulher que havia sido, provavelmente, atraída para o menino. Todo o Acampamento do Leão devia ser banido.

Os Mamutoi eram um povo inteiramente unido. Quase todos podiam contar ao menos um parente ou amigo em todo acampamento. Mas, agora, a estrutura de suas vidas ameaçava ser dilacerada, e muitas pessoas, inclusive Talut, estavam bastante infelizes. Os Conselhos se reuniram, mas acabaram por questionar a disputa. Esta era uma situação sem precedentes, e eles não tinham meios ou estratégias para resolvê-la.

O brilhante sol da tarde fez pouco para mudar o humor sombrio do acampamento. Conduzindo Whinney pela trilha em direção ao Acampamento de Tifáceas, Ayla notou o local onde terra vermelho-ocre havia sido escavada do solo e lembrou-se de sua visita ao recinto de música. Embora ainda ensaiassem, e planejassem uma grande comemoração depois da caçada de mamutes, não havia a mesma sensação de expectativa e excitação. Até a felicidade que Deegie sentiu por seu Matrimônio, e Latie por sua ascensão à condição de mulher, estava abafada pelas disputas que ameaçavam romper toda a Reunião de Verão.

Ayla falou em partir, mas Nezzie lhe disse que isto não resolveria nada.

Ela não havia causado problema. Sua presença apenas trouxera à tona uma diferença básica e profunda entre as duas facções. Nezzie disse que o problema se formava desde que ela acolhera Rydag. Muitas pessoas ainda desaprovavam o fato de ele ter permissão para viver com eles.

Ayla se preocupava com Rydag. Ele sorria raras vezes e ela notou a ausência de seu estado de espírito amável. Ele não tinha apetite, e ela achava que ele não dormia bem, Ele parecia gostar de ouvir sua fala sobre a vida com o Clã, mas poucas vezes tomava parte em conversas.

Ela acomodou Whinney no alpendre e viu Jondalar no prado amplo, relvoso, cavalgando Racer em direção ao passo do rio, abaixo. Ultimamente, ele parecia diferente. Não tão distante, mas triste.

Num impulso, Ayla resolveu dirigir-se à clareira, no centro do acampamento e ver que atividades aconteciam. O Acampamento do Lobo insistia em que, desde que eram os anfitriões da Reunião, não podiam tomar partidos, mas ela acreditava que eles apoiavam a posição do Acampamento do Leão. Ela não ia se esconder. Não era uma “abominação”, o Clã era seu povo, e da mesma forma, Rydag e seu filho. Ela queria fazer alguma coisa, mostrar-se. Talvez visitar a Fogueira do Mamute, ou o recinto de Música, ou falar com Latie.

Partiu com passos determinados, balançando a cabeça para quem a cumprimentava, ignorando quem não o fazia e, quando se aproximou do recinto de Música, viu Deegie saindo.

- Ayla! Você é exatamente a pessoa que eu queria ver. Vai a algum lugar especial?

- Acabei de resolver sair do Acampamento do Leão.

- Ótimo! Eu ia visitar Tricie, e ver o seu bebê. Estou para visitá-la há tempos, mas ela nunca está quando vou lá. Kylie acabou de me dizer que ela está lá, agora. Quer vir comigo?

- Quero.

Caminharam em direção à moradia da chefe.

- Viemos visitar Tricie - explicou Deegie à entrada - e ver o seu bebê.

- Entrem - disse Tricie. - Acabei de colocá-lo para dormir, mas creio que ainda está acordado.

Ayla ficou distante enquanto Deegie pegava o bebê ao colo e lhe falava amorosamente.

- Não quer vê-lo, Ayla? - perguntou Tricie, afinal. Era quase um desafio.

- Sim, quero.

Ela tirou o bebê do colo de Deegie e o examinou com cuidado. A pele era tão branca que chegava quase a ser translúcida, e os olhos de um azul tão claro que eram quase incolores, O cabelo era de um tom ruivo alaranjado, mas tinha a textura e a ondulação apertada e elástica do de Ranec. O rosto, mais característico ainda, era uma versão infantil da face de Ranec. Ayla notou, sem dúvida alguma, que Ralev era filho de Ranec. Ranec dera origem a ele tão certamente quanto Broud iniciara o crescimento de Durc dentro dela. Não pôde deixar de pensar: quando se unisse a ele, teria um filho como aquele, um dia?

Ayla falou com o bebê em seus braços. Ele ergueu os olhos para ela com interesse, como se fascinado, depois sorriu e soltou uma risada suave, deleitada. Ayla o abraçou, fechou os olhos e sentiu a maciez de seu rosto contra o dela, e seu coração se enterneceu.

- Ele não é bonito, Ayla? - disse Deegie.

- Sim, não é bonito? - falou Tricie, o tom de voz mais áspero.

Ayla olhou para a jovem mãe.

- Não, ele não é bonito.

Deegie ficou embasbacada.

- Ninguém poderia dizer que ele é bonito, porém, é o bebê... Mais adorável que já vi. Nenhuma mulher no mundo resistiria a ele. Não precisa ser bonito. Há algo especial nele, Tricie. Acho que é muita sorte tê-lo.

O sorriso da mãe se suavizou.

- Acho que é, Ayla. E concordo, ele não é bonito, mas é bom e tão adorável!

De repente, surgiu um alvoroço lá fora, com gritos e gemidos. As três jovens correram para a entrada.

- Ó Grande Mãe! Minha filha! Alguém tem que ajudá-la! -gemia uma mulher.

- O que há? Onde está ela? - indagou Deegie.

- Um leão! Um leão a pegou! Lá no prado. Alguém tem que ajudá-la, por favor!

Vários homens com lanças já corriam em direção à trilha.

- Um leão? Não, não pode ser! - exclamou Ayla ao começar a correr atrás dos homens.

- Ayla! Aonde vai? - gritou Deegie atrás dela, tentando alcançá-la.

- Pegar a menina - respondeu Ayla, gritando.

Correu na direção da trilha. Uma multidão se encontrava de pé perto do topo, observando os homens com lanças que desciam o caminho. Além deles, claramente à vista na planície aluvial herbácea do outro lado do rio, estava um forte leão da caverna, com uma juba desgrenhada avermelhada, cercando uma menina alta que estava apavorada demais para se mover. Ayla olhou para baixo, examinou o animal com atenção para se certificar, depois correu para o Acampamento do Leão. Lobo saltou sobre ela.

- Rydag! -.- chamou. - Venha ficar com Lobo! Tenho que salvar aquela menina. - Quando Rydag saiu da tenda, ela ordenou ao lobo: - Fique aqui! - em tom de voz muito firme, depois disse ao garoto para não soltar o animal.

Somente então ela assobiou, chamando Whinney.

Saltou sobre a égua e desceu a trilha rapidamente. Os homens com lanças já atravessavam o rio quando ela conduziu Whinney para perto deles. Assim que alcançou solo firme, do outro lado, fez Whinney galopar, dirigindo-se diretamente para o leão e a menina. As pessoas observavam do alto da trilha com espanto e assombro.

- O que ela pensa que pode fazer? - disse alguém, com raiva. - Nem mesmo tem uma lança. A menina não parece ferida até agora, mas correr em direção ao leão com um cavalo poderá incitá-lo. Será culpa dela se a menina for ferida.

Jondalar ouviu o comentário, assim como várias outras pessoas do Acampamento do Leão, que viraram para ele, interrogativamente. Ele apenas vigiou Ayla, engolindo as dúvidas que cresciam em sua garganta. Não podia ter certeza, mas ela devia ter, ou nunca desceria lá com Whinney.

Quando Ayla e Whinney se acercaram, o grande leão da caverna parou e encarou-a. Havia uma cicatriz no focinho dele, uma cicatriz conhecida. Ela se lembrava de quando ele a conseguira.

- Whinney, é Neném! É Neném, realmente! - gritou ela, enquanto fazia a égua parar e escorregava para o solo.

Correu para o leão, nem sequer pensando que ele podia não se lembrar dela. Aquele era o seu Neném. Ela era sua mãe. Ela o havia criado desde pequenino, cuidado dele, caçado com ele.

Era exatamente daquela intrepidez que ele lembrava. Partiu em direção a ela, enquanto a menina observava com medo. A próxima coisa que Ayla percebeu foi que o leão lhe dera uma rasteira para derrubá-la, e ela passou, então, os braços ao redor de seu grande pescoço peludo, abraçando-o completamente, enquanto ele passava as patas dianteiras em volta dela, na melhor imitação de um abraço que podia conseguir.

- Oh, Neném, você voltou. Como me encontrou? - gritou ela, enxugando as lágrimas de alegria em sua juba áspera.

Afinal, ela se sentou e sentiu uma língua grossa lamber-lhe o rosto.

- Pare! - disse ela, sorrindo. - Não me deixará com pele alguma!

Ela coçou-o em seus locais prediletos, e um rugido baixo, como um ronco, lhe contou sobre seu prazer. Ele rolou e ficou deitado de costas para que Ayla coçasse sua barriga. Ela viu a garota alta, de cabelo louro comprido, de pé, os olhos arregalados, observando-os.

- Ele procurava por mim - disse-lhe Ayla. - Acho que se enganou, pensou que você era eu.

Pode ir agora, mas caminhe, não corra.

Ayla coçou a barriga de Neném, e atrás das orelhas, até a menina encontrar os braços abertos de um homem, que a abraçou com alívio evidente, depois levou-a pela trilha acima. O resto estava de pé, segurando as lanças, de prontidão. Entre eles viu Jondalar, com seu arremessador de lanças em posição, e ao lado dele, um homem mais baixo, de pele escura. Talut estava do outro lado de Ranec, e Tulie em seguida.

- Tem que ir, Neném. Não quero que seja ferido. Mesmo sendo o maior leão da caverna da terra, uma lança pode detê-lo - disse Ayla, falando na linguagem especial originária dos sinais e palavras do Clã e de sons de animais. Neném estava familiarizado com os sons e compreendia os sinais. Ele rolou sobre si mesmo e levantou-se. Ayla o abraçou pelo pescoço, e então, não conseguiu resistir. Escorregou a perna sobre o animal e montou-o, segurando a juba avermelhada. Não era a primeira vez.

Ela sentiu músculos fortes, resistentes sob si, depois, com um salto, o leão partiu e, em um instante, alcançou a velocidade total de um leão ao caçar. Embora ela houvesse montado o leão antes, jamais fora capaz de desenvolver qualquer sinal para dirigi-lo. Ele ia para onde queria, mas permitia que ela fosse com ele. Era sempre um passeio excitante e ela o adorava por esse motivo. Segurou-se à juba, enquanto o vento açoitava-lhe o rosto, e ela inspirava o odor forte, desagradável.

Ayla o sentiu virar-se e diminuir a marcha - o leão era um corredor de velocidade; ao contrário do lobo não tinha resistência para distâncias longas - e ela olhou à frente para ver Whinney esperando, pastando pacientemente. A égua relinchou quando se acercaram e sacudiu a cabeça. O cheiro do leão era forte e perturbador, mas a égua havia ajudado a criar aquele animal desde filhote, e à sua maneira, havia sido mãe para ele. Embora ele estivesse quase tão alto quanto ela, e mais comprido e pesado, a égua não teve medo daquele determinado leão, principalmente quando Ayla estava com ele.

Quando o leão parou, Ayla escorregou para o chão. Abraçou-o e coçou-o de novo. Depois, com um sinal que sugeria atirar uma pedra com uma funda, ela lhe disse para ir embora. As lágrimas rolavam enquanto ela o via afastar-se, o rabo abanando de um lado para o outro. Quando ela ouviu o som distinto de sua voz roncando, respondeu com um soluço. As lágrimas escorreram, toldando-lhe a visão enquanto o grande gato castanho-amarelado, com a juba avermelhada, desaparecia entre o capim alto. Ela sabia, de alguma forma, que jamais tornaria a montá-lo; que jamais veria, de novo, seu filho leão, selvagem e diferente.

Os rugidos continuaram até que, finalmente, o grande leão da caverna, gigantesco se comparado com suas cópias posteriores, soltou um urro violento, retumbante, potente que podia ser ouvido, a quilômetros de distância. Estremeceu a própria terra com o seu adeus.

Ayla fez sinal a Whinney, e começou a voltar a pé. Apesar de amar cavalgar a égua, queria lembrar a sensação da última cavalgada selvagem enquanto pudesse.

Jondalar afastou os olhos, afinal, da cena hipnotizadora e reparou nas expressões dos rostos dos outros. Pôde ver o que pensavam. Cavalos eram uma coisa, até mesmo um lobo, talvez, mas um leão da caverna? Ele sorriu larga e exultantemente, de orgulho e alívio Agora, queria ver alguém duvidar das histórias de Ayla.

Os homens começaram a subir a trilha atrás de Ayla, sentindo-se quase tolos ao carregarem lanças que nem tiveram utilidade. As pessoas que observaram a cena, recuaram quando ela se acercou, abrindo caminho para a mulher e a égua, e fixaram-na com terror e incredulidade. Até mesmo o Acampamento do Leão, que havia escutado as suas histórias de Jondalar, e sabia sobre a vida de Ayla no vale, não podia acreditar no que tinha visto.

Ayla estivera escolhendo a roupa que levaria na caçada - disseram-lhe que talvez fizesse muito frio à noite. Estariam perto da gigantesca muralha de gelo que era a borda saliente da geleira. Para sua surpresa, Wymez lhe havia trazido várias lanças habilidosamente feitas, e explicava-lhe os méritos da ponta de lança que ele idealizara para caçar mamutes. Era um presente inesperado e, depois de toda a adulação e outros comportamentos estranhos dos Mamutoi, ela não tinha certeza de como responder. Mas ele a deixou à vontade com seu especial sorriso cálido, e lhe disse que estivera planejando aquele presente, desde que ela prometera unir-se ao filho de sua fogueira. Ela lhe perguntou sobre adaptar a ponta de lança para que funcionasse com o arremessador quando Mamut entrou na tenda.

- Os mamuti gostariam de lhe falar. Querem que ajude com o Chamado para trazer os mamutes, Ayla - disse ele. - Pensam que se você falar com o Espírito Mamute, talvez tenhamos muitos.

- Mas eu já lhe disse. Não tenho qualquer poder especial - suplicou Ayla. - Não quero falar com eles.

- Eu sei, Ayla. Expliquei que talvez você tenha um dom de chamadora, mas não está treinada. Insistem que eu lhe peça. Depois que a viram montar o leão e dizer-lhe para ir embora, estão convencidos de que você teria uma influência forte sobre o Espírito Mamute, treinada ou não.

- Aquele era Neném, Mamut. O leão que criei. Não poderia fazer aquilo com qualquer leão.

- Por que fala daquele leão como se fosse sua mãe? - disse uma voz da entrada. Um vulto robusto estava de pé ali. - É a mãe dele? - perguntou Lomie, entrando na tenda quando Mamut a chamou com um gesto.

- Acho que de certa forma, sou. Eu o criei desde que era um filhote.

Ele estava ferido, fora pisado em um estouro de boiada e chutado na cabeça. Eu o chamo de Neném porque era apenas um bebê, então, quando o encontrei. Nunca o chamei de qualquer outra coisa. Ele sempre foi apenas Neném, mesmo quando cresceu - explicou Ayla. - Não sei como chamar animais, Lomie.

- Então, por que o leão apareceu, em um momento muito providencial, se você não o chamou? - perguntou Lomie.

- Foi apenas casualidade. Não há nada de misterioso. Provavelmente, ele me seguiu pelo faro, ou sentiu o odor de Whinney, e veio me procurar. Ele costumava voltar para uma visita, às vezes, mesmo depois de encontrar uma companheira e seu bando. Pergunte a Jondalar.

- Se ele não estava sob influência especial, por que não feriu aquela menina? Ela não tinha qualquer relacionamento “maternal” com ele. Ela disse que ele a derrubou, e ela pensou que ele ia devorá-la, mas apenas lambeu-lhe o rosto.

- Acho que a única razão por que ele deteve aquela menina foi porque ela se parece comigo. É alta e tem cabelo louro. Ele cresceu com uma pessoa e não com outros leões, ou seja, ele considera as pessoas como sua família.

E sempre costumava dar-me uma rasteira ou derrubar-me quando não me via por algum tempo, se eu não o impedisse. É sua maneira de brincar.

Queria ser abraçado e coçado - explicou Ayla. Notou que a tenda estava cheia de mamuti, enquanto falava.

Wymez recuou, saindo do caminho com um sorriso astuto no rosto. Ela não iria até os inamuzi, assim, eles vieram até ela, pensou. Franziu a testa quando viu Vincavec se aproximando. Seria duro para Ranec se Ayla decidisse escolher Vincavec. Nunca havia visto o filho de sua fogueira tão aborrecido como quando soubera da proposta de Vincavec. Wymez tinha que admitir que também ficara zangado.

Vincavec observou Ayla enquanto ela respondia às perguntas. Não era vencido facilmente. Afinal, e chefe e Mamut, e conhecedor dos projetos de influência temporal assim como dos aspectos da força sobrenatural. Mas, como os outros mamuti, foi chamado à Fogueira do Mamute porque sentia ânsia de explorar dimensões mais profundas, descobrir e explicar as razões além das aparências, e podia-se comover diante de um mistério verdadeiramente inexplicável ou demonstração de poder evidente.

Desde seu primeiro encontro, ele sentira um mistério em Ayla que o havia intrigado, e uma característica de força e tranqüilidade, como se já tivesse sido posta à prova. A interpretação de Vincavec foi de que a Mãe a protegia, e que por isto seu problema seria resolvido. Mas ele não tivera indicação dos meios e ficou genuinamente surpreso com o resultado. Sabia que ninguém sonharia em opor-se a ela, agora, ou àqueles que a abrigavam. Nem alguém objetaria em relação ao seu passado, ou ao filho a quem dera à luz certa vez. Seu poder era grande demais. Se ela o usaria para finalidades benéficas ou maléficas era incidental - como o verão e inverno, ou o dia e a noite, eram duas faces da mesma substância - exceto que ninguém queria ganhar sua inimizade. Se ela podia controlar um leão da caverna, quem sabia do que era capaz?

Vincavec, juntamente ao velho Mamut e outros mamuti, tinham sido criados no mesmo meio, educados na mesma cultura, e os padrões de crença que evoluíram para ajustar sua existência estavam arraigados, eram parte de sua fibra mental e moral.

Suas vidas eram amplamente concebidas para serem predeterminadas, já que possuíam controle sobre elas. A doença atacava sem razão, e embora pudesse ser tratada, alguns morriam, às vezes, enquanto outros sobreviviam. Acidentes também eram imprevisíveis e, se ocorriam quando a pessoa estava sozinha, em geral eram fatais. Climas severos e padrões de tempo que mudavam constantemente, provocados pela proximidade de maciças geleiras terrestres, podiam causar secas ou enchentes que tinham um efeito imediato sobre o meio natural de que eles dependiam. Um verão muito frio ou com chuva excessiva podia impedir o crescimento das plantas, reduzir as populações animais e mudar os padrões de migração, resultando em miséria para os povos caçadores de mamutes.

A estrutura de seu universo metafísico era paralela a seu mundo físico, e útil em proporcionar respostas para questões insolúveis - questões que podiam causar grande ansiedade sem qualquer explicação razoável e aceitável, baseada em seus preceitos. Mas qualquer estrutura, não importa quão útil, também limita. Os animais do mundo deles perambulavam livremente, as plantas cresciam ao acaso, e as pessoas estavam intimamente familiarizadas com estes padrões. Conheciam o local onde certas plantas se desenvolviam, e compreendiam o comportamento dos animais, mas nunca lhes ocorrera que os padrões podiam ser mudados que animais e plantas e pessoas nascessem com uma capacidade inata de mudança e adaptação. Que realmente, sem ela, não sobreviveriam.

O domínio de Ayla sobre os animais que havia criado não era entendido como natural; ninguém jamais tentara domesticar um animal antes.

Os mamuti, prevendo a necessidade de explicações para aliviar as ansiedades causadas por esta inovação surpreendente, tinham procurado mentalmente a construção teórica de seu mundo metafísico em busca de respostas que satisfizessem. Não era uma simples ação de domesticar animais. Em vez disso, Ayla demonstrou um poder sobrenatural, muito além da imaginação de qualquer pessoa. Seu controle dos animais, parecia óbvio, só podia ser explicado pelo seu acesso a forma original do Espírito e, portanto, à própria Mãe.

Vincavec, como o velho Mamut e o resto dos mamuti, estava convencido agora de que Ayla não era apenas Mamut - Quem Serve a Mãe - tinha que ser mais alguma coisa. Talvez encarnasse alguma presença sobrenatural; poderia até ser a Própria Mut, encarnada. Isto podia ser verdade, principalmente, porque ela não se vangloriava. Mas qualquer que fosse o seu poder, ele estava certo de que um destino importante a esperava. Havia uma razão para a sua existência, e ele queria ardentemente ser parte dela. Ela era escolhida pela Grande Mãe Terra.

- Todas as suas explicações têm mérito - disse Lomie, persuasiva, depois que ouviu as objeções de Ayla -, mas gostaria de participar da cerimônia do Chamado, mesmo pensando que não tem dom algum? Muitas pessoas, aqui, estão convencidas de que você traria sorte à caçada de mamutes se tomar parte na Chamado, e trazer boa sorte não lhe fará nenhum mal. Os Mamutoi ficariam muito felizes.

Ayla não viu maneira de recusar, mas não estava à vontade com a adulação. Quase odiava atravessar o acampamento agora, e esperava a caçada de mamutes do dia seguinte com grande excitação, e alívio pela chance de poder se afastar por algum tempo.

Ayla acordou e olhou pela extremidade triangular aberta da tenda de viagem. A luz do dia começava a iluminar a parte leste do céu. Ela se levantou em silêncio, esforçando-se para não acordar Ranec ou qualquer outro, e esgueirou-se para fora. O frio úmido do começo da manhã pairava no ar, porém não havia grande quantidade de insetos voadores ainda, e ela ficou grata por isso. Na noite anterior o ar estivera toldado com eles.

Ela caminhou para a beira de um charco escuro de água estagnada, coberto com limo e pólen; terrenos de procriação de bandos de mosquitos-pólvora, borrachudos, muriçocas e principalmente pernilongos, que se puseram a voar para recebê-los como um redemoinho com zumbido agudo, de fumaça escura. Os insetos tinham penetrado sob as roupas deixando uma trilha de mordidas vermelhas inflamadas, e zunido ao redor dos olhos e sufocado as bocas de caçadores e cavalos.

Os cinqüenta homens e mulheres escolhidos para a primeira caçada de mamutes da estação tinham alcançado os desagradáveis, mas inevitáveis pântanos. O solo permanentemente congelado sob a superfície, mais macio agora pelo derretimento da primavera e do verão, não permitia que qualquer escoamento se infiltrasse. O resultado era água estagnada onde o acúmulo de derretimento era maior do que podia ser dissipado pela evaporação. Em qualquer viagem prolongada na estação mais quente, era provável que se encontrassem extensões de umidade acumulada desde grandes lagos rasos derretidos até pequenas lagoas paradas que refletiam o céu em movimento para lamaçais pantanosos.

À tarde já terminava e não dera para decidir se tentariam atravessar o pântano ou encontrar um caminho ao seu redor. O acampamento foi armado rapidamente e fogueiras acesas para deter as hordas voadoras. Na primeira noite da viagem, aqueles que não tinham visto Ayla usar a pedra-de-fogo antes, soltaram as costumeiras exclamações de surpresa e espanto mas, agora, era tido como certo que ela acenderia o fogo. As tendas que usavam eram abrigos simples feitos de vários couros costurados juntos para formar uma cobertura grande. Sua forma dependia dos materiais estruturais que encontravam ou traziam consigo. Uma cabeça de mamute com presas grandes ainda intactas poderia ser usada para sustentar a cobertura de couro, ou a força elástica de um salgueiro-anão podia executar a tarefa, até lanças de mamute serviam também como suportes da tenda, ocasionalmente. Às vezes o couro era usado apenas como uma coberta extra. Desta vez, o couro de cobertura, que era partilhado pelos caçadores do Acampamento do Leão e alguns poucos outros, estava pendurado através de uma viga inclinada, com uma extremidade metida com força no solo e a outra presa a uma forquilha de árvore.

Depois de acamparem, Ayla fez uma excursão ao redor da vegetação densa próxima ao pântano e ficou satisfeita em encontrar pequenas plantas com folhas em forma de mão e de um tom verde-escuro. Escavando o sistema subterrâneo de raízes e rizomas, colheu vários, e ferveu a raiz amarelo-esverdeada de hidraste para preparar um líquido para as gargantas e olhos irritados dos cavalos que curava e repelia os insetos. Quando usou o preparado em sua própria pele mordida por mosquitos, outras pessoas pediram para usar também, e ela acabou tratando as mordidas de insetos de todo o acampamento. Acrescentou mais raiz em pó à gordura, para fazer uma pomada para o dia seguinte. Depois, encontrou um canteiro de pulicária e colheu várias plantas para jogar no fogo, como um impedimento adicional, juntamente à fumaça comum, a fim de ajudar a manter uma área pequena, perto do fogo, relativamente livre de insetos.

Mas, na umidade fria da manhã, os flagelos voadores repousavam. Ayla estremeceu e esfregou os braços, porém não fez qualquer movimento para voltar a um local mais aquecido. Fitou a água escura, mal notando a invasão gradual de luz do leste, enchendo toda a abóbada celeste, e salientando muito a vegetação emaranhada. Ela sentiu uma pele quente sobre os ombros. Grata, enrolou-se nela e sentiu braços a envolverem pela cintura, por trás.

- Está fria, Ayla. Esteve aqui fora muito tempo - disse Ranec.

- Não consegui dormir.

- O que há de errado?

- Não sei, apenas uma sensação de inquietude. Não sei explicar. Ficou perturbada desde a cerimônia do Chamado, não foi? - interrogou Ranec.

- Eu não tinha pensado nisso. Talvez esteja certo.

- Mas não participou, só observou.

Não quis participar, mas não estou segura. Talvez tenha acontecido alguma coisa - disse Ayla.

Imediatamente após a refeição matinal, os caçadores arrumaram a bagagem e retomaram a viagem. A princípio, tentaram ladear o pântano, mas não parecia haver caminho ao redor dele, sem se fazer um grande desvio. Talut e vários outros lideres da caçada espreitaram a mata densa, pantanosa, coberta por neblina fria, conferenciaram com alguns outros e resolveram, afinal, por um trajeto que parecia oferecer a passagem mais fácil.

O terreno alagado perto da borda logo cedeu lugar a um brejo trêmulo. Muitos caçadores tiraram sua proteção dos pés e entraram descalços na água fria, enlameada. Ayla e Jondalar conduziram os cavalos nervosos com mais cuidado. Trepadeiras amantes do frio e compridas barbas de líquen cinza-esverdeado pendiam de vidoeiros-anões, salgueiros, e amieiros crescendo tão juntos, que formavam uma selva ártica em miniatura. Era perigoso caminhar. Sem terreno sólido para prender as raízes e dar estabilidade, as árvores cresciam em ângulos improváveis e se espalhavam pelo chão. E os caçadores lutavam para abrir caminho através de troncos caídos, arbustos retorcidos e galhos e raízes parcialmente submersos que armavam laços para pés confiantes. Moitas de caniço e junça pareciam muito mais sólidas do que eram, e musgos e samambaias escondiam charcos de água estagnada e fétida.

O avanço era lento e exaustivo. No meio da manhã quando pararam para descansar, todos suavam e sentiam calor, mesmo à sombra. Recomeçando, Talut se chocou com um galho particularmente firme de amieiro e, tendo uma rara explosão de raiva, golpeou a árvore furiosamente com seu machado maciço. O líquido brilhante cor de laranja, escorrendo dos sulcos na árvore ferida se parecia com sangue, e deu a Ayla uma impressão desagradável de presságio.

Nada foi tão bem-vindo quanto o terreno sólido. Samambaias altas e capins ainda mais altos, mais do que um homem, cresciam na rica clareira perto do pântano. Eles viraram para leste a fim de evitar terras úmidas que se estendiam para oeste, depois subiram uma elevação que saía da depressão nas planícies cheias de pântanos, e viram a junção de um grande rio com um afluente. Talut, Vincavec e os líderes de alguns dos outros acampamentos pararam para consultar mapas traçados em marfim, e fizeram mais marcas no solo, com facas.

Ao se aproximarem do rio, atravessaram uma floresta de vidoeiros. Não uma floresta com as árvores altas e resistentes de climas mais quentes; os vidoeiros eram mirrados e pequenos por causa das rigorosas condições periglaciais, no entanto, não deixavam de ser bonitos. Cada árvore, como se moldada e podada de propósito para a apresentação de formas individuais fascinantes, intermináveis, possuía graça distinta, pálida, delicada. Mas os galhos finos, frágeis, oscilantes, eram enganadores. Quando Ayla tentou quebrar um, era duro como tendão e, no vento, malhavam os vegetais competidores levando-os à submissão.

- Estas árvores se chamam “Velhas Mães”.

Ayla deu meia-volta e viu Vincavec.

- Acho que é um nome apropriado. Lembram que nunca se deve fazer juízo falso sobre a força de uma velha. Este é um arvoredo sagrado, as árvores são guardiãs dos somuti - disse ele, apontando para o solo.

As pequenas folhas trêmulas, verde-claras de vidoeiro não bloqueavam inteiramente o sol, e desenhos mosqueados de sombra dançavam levemente sobre o solo da floresta com forma de folhas. Então, Ayla notou, brotando do musgo sob certas árvores, os grandes cogumelos vermelhos-vivos com manchas brancas.

- Esses cogumelos, é isso que chamam de somuti? São venenosos, podem matar - disse Ayla.

- Sim, claro, a menos que conheça os segredos para prepará-los. Assim, não serão usados inadequadamente. Somente aqueles que são escolhidos podem explorar o mundos dos somuti.

- Eles têm propriedades medicinais? Não conheço nenhuma - disse ela.

- Não sei, não sou curandeiro. Terá que perguntar a Lomie - disse Vincavec. Então, antes que ela se desse conta, ele havia segurado suas duas mãos e a olhava, ou melhor, penetrava-a, sentiu ela. - Por que lutou comigo na cerimônia do Chamado, Ayla? Eu havia preparado o caminho para você para o mundo secreto, mas você resistiu a mim.

Ayla teve uma estranha sensação de conflito interior, de dois caminhos atraindo-a. A voz de Vincavec era afetuosa e dominadora, e ela sentiu um grande desejo de perder-se nas profundezas escuras de seus olhos, de flutuar nas frias poças escuras, de ceder a qualquer coisa que ele quisesse. Mas também sentiu uma necessidade esmagadora de se afastar, de manter-se distante e conservar sua própria identidade. Com enorme esforço de vontade, desviou os olhos e vislumbrou Ranec observando-os. Ele se virou rapidamente para o lado.

- Talvez tenha preparado um caminho, mas eu não estava pronta - disse Ayla, evitando o olhar fixo de Vincavec. Ergueu a cabeça quando ele riu. Seus olhos eram cinzentos, não pretos.

- Você é boa! Você é forte, Ayla. Nunca conheci alguém como você. E tão adequada para a Fogueira do Mamute, para o Acampamento do Mamute. Diga-me que partilhará minha fogueira - falou Vincavec, como máximo de persuasão e sentimento que era capaz de demonstrar.

- Eu fiz a promessa a Ranec - disse ela.

- Isso não importa Ayla. Traga-o com você, se quiser. Eu não me importaria de dividir a Fogueira do Mamute com um escultor tão bem-dotado. Aceite-nos a nós dois! Ou eu aceitarei a ambos - riu de novo. - Não seria a primeira vez. Um homem também tem uma certa atração!

- Eu... Eu não sei - disse ela, depois ergueu a cabeça para o ruído abafado de cascos.

- Ayla, vou levar Racer até o rio e escovar suas pernas. A lama está colada e secando nelas. Quer que eu leve Whinney também? - perguntou Jondalar.

- Eu mesma a levarei - disse Ayla, contente pela desculpa para ir embora. Vincavec era fascinante, mas um pouco assustador.

- Ela está lá, perto de Ranec - disse Jondalar, virando-se na direção do rio.

Os olhos de Vincavec acompanharam o homem alto e louro. Pergunto-me que papel ele representa em tudo isto, pensou o chefe-Mamut. Chegaram juntos, e ele compreende os animais, talvez tanto quanto ela, mas não parecem ser amantes, e não é porque ele tenha problemas com mulheres. Avarie me contou que elas o adoram, mas ele nunca toca Ayla, nunca dorme com ela. Diz-se que ele recusou o ritual de Feminilidade porque seus sentimentos eram muito fraternais. E assim que se sente em relação a Ayla? Fraternal? É por isto que ele nos interrompeu e a dirigiu ao escultor? Vincavec franziu a testa, depois pegou com cuidado alguns cogumelos grandes e, com uma corda, amarrou-os de cabeça para baixo aos galhos das “Velhas Mães” para secar. Planejava pegá-los no caminho de volta.

Depois de cruzarem o afluente, chegaram a uma região mais seca, com brejos desprovidos de árvores, bastante isolados. O grasnido, cacarejo e guincho de aves aquáticas os avisaram do grande lago derretido à frente.

Armaram a tenda não longe dele e várias pessoas se dirigiam à água para trazer de volta o jantar. Não se encontrava peixe em porções de água temporárias, a menos que se tornassem casualmente parte de uma corrente ou rio permanente, mas entre as raízes de altos juncos, salgueiros, junças, e tifáceas nadavam os girinos de rãs comestíveis e sapos.

Por algum misterioso sinal sazonal, um grande bando de aves, aquáticas na sua maior parte, voaram a norte a fim de juntarem-se as ptármigas, à águia-real e à coruja branca real. O degelo de primavera, que trazia renovado crescimento vegetal e os grandes limites juncosos, convidava números incontáveis de aves migradoras a parar, construir ninhos e proliferar. Muitas aves se alimentavam dos anfíbios incompletos, e de alguns adultos, assim como de cobras e salamandras, sementes e bolbos, dos inevitáveis insetos, mesmo de pequenos mamíferos.

- Lobo adoraria este lugar - disse Ayla a Brecie enquanto observava, com a funda na mão, um casal de aves circundantes esperando que se aproximassem mais da borda, para que ela não tivesse que patinhar até muito longe para trazê-las. - Ele está muito bom na perseguição à caça para mim.

Brecie prometera mostrar a Ayla seu pau de arremessar, e queria ver a perícia muito comentada da mulher com a funda. Ambas ficaram mutuamente impressionadas. A arma de Brecie era uma parte em cruz de osso de perna, alongada com forma aproximada de losango, com a epífise no dosa removida na extremidade e a borda aguçada. Seu vôo era circular, e atirada contra um bando de aves podia matar várias ao mesmo tempo. Ayla achou que a arma era muito melhor para caçar aves do que sua funda, mas a funda tinha aplicação mais geral. Ela também podia caçar animais com ela.

- Você trouxe os cavalos, por que deixou o lobo? - perguntou Brecie.

- Lobo ainda é muito novo, eu não sabia como se comportaria numa caçada de mamutes, e não quis correr o risco de acontecer alguma coisa de errado nesta. Os cavalos, contudo, podem ajudar a carregar a carne. Além disso, acho que Rydag se sentiria só sem Lobo - falou Ayla. - Sinto falta dos dois.

Brecie sentiu a tentação de perguntar se Ayla tinha, realmente, um filho como Rydag, depois mudou de idéia. O assunto era delicado demais.

Ao continuarem na direção norte nos dias seguintes, ocorreu uma mudança distinta na paisagem. Os pântanos desapareceram e, uma vez deixando para trás as árvores ruidosas, o som do vento encheu as planícies descampadas com um silêncio lúgubre e queixoso e uma sensação de desolação. O céu se tornou nublado com uma cobertura de nuvens sem formas, cinzentas, que obscurecia o sol e escondia as estrelas à noite, mas raras vezes chovia. Em vez disso, o ar era mais seco e mais frio, com um vento forte que extraía até a umidade da respiração exalada. Mas, uma abertura ocasional nas nuvens à tarde vencia a monotonia tediosa dos céus com um pôr-do-sol tão resplandecente e tão brilhante, enquanto refletia o céu carregado de umidade, que deixava os viajantes sem palavras para descrevê-lo, fascinados por sua beleza pura.

Era uma região de horizontes remotos. Uma baixa colina arredondada se seguia a outra colina baixa, arredondada, sem picos salientes para em prestar distância e perspectiva, e nenhum pântano de junco verde para suavizar os intermináveis cinzas, marrons e amarelos pardacentos. As planícies pareciam se estender em todas as direções, para sempre, exceto ao norte. Lá, a grande amplidão era engolida por uma neblina densa que escondia todos os sinais do mundo além dela, e enganava a visão sobre a distância até ela.

A característica da região não era de estepes herbáceas, nem de tundra congelada, mas uma mistura de ambas. Moitas de ervas congeladas e resistentes à seca, ervas com sistemas de raízes compactas, arbustos lenhosos, como miniaturas, de artemísia e absinto, misturados com urzes brancas, rododendros em miniatura, e flores rosas de camarinheiras dominando os botões bonitos e purpúreos de urze alpina. Arbustos de uva-do-monte, com não mais de 10 centímetros de altura prometiam contudo uma profusão de uvas grandes, e vidoeiros prostrados rastejavam pelo terreno como plantas rastejantes lenhosas.

Mas mesmo as árvores anãs eram escassas com dois tipos de condições de desenvolvimento opondo-se a elas. Na verdadeira tundra setentrional, a temperatura de verão é baixa demais para germinação e crescimento de sementes de árvores. Nas estepes, os ventos uivantes, que absorvem a umidade antes que se acumule, varrem a paisagem, e são uns fatores tão proibitivos quanto os frios. A combinação deixava a terra tanto congelada quanto seca.

Paisagem ainda mais descampada saudou o grupo de caçadores quando avançaram para a espessa neblina branca à frente. Cascalho e rochedo nus estavam expostos, mas cobertos de liquens; crostas pendentes infestadas de piolhos de cor amarela, cinzenta, marrom, até laranja viva que pareciam mais pedras do que plantas. Algumas ervas florescentes e ar bustos anões perduravam, e os juncos e capins rijos cobriam extensões razoáveis de terra. Mesmo naquele lugar árido, agreste, de ventos frios e secos que parecia incapaz de conservar a vida, esta continuava.

Começaram a aparecer pistas que levavam ao segredo escondido dentro das neblinas. Arranhões gravados em grandes lousas de pedra; compridos ressaltos de areia, pedras e cascalho; grandes pedras fora do lugar, como se deixadas cair do céu por uma gigantesca mão invisível. A água lavava o solo rochoso, em correntes finas e torrentes borbulhantes e nebulosas, sem padrão discernível, e quando se aproximaram mais puderam sentir, afinal, uma umidade fria no ar. A neve suja permanecia em recantos sombrios, e em uma depressão ao lado de uma enorme pedra, neve antiga, cercada por um pequeno lago. No fundo dele havia bancos de gelo de um rico e vívido tom de azul.

O vento mudou à tarde e, quando os viajantes acampavam, nevava uma neve fria, soprada pelo vento. Talut e os outros conferenciavam, perturbados. Vincavec havia invocado o Espírito do Mamute várias vezes sem resultado. Tinham esperado encontrar os grandes animais antes disto.

À noite, deitada em silêncio em sua cama, Ayla se tornou consciente de sons misteriosos que pareciam vir do fundo da terra: rangidos, estalos, risadinhas, gorgolejos. Não conseguiu identificá-los, não imaginava de onde vinham e ficou nervosa. Tentou dormir, mas continuou acordada. Por fim, perto do amanhecer, a exaustão a venceu e ela cedeu ao cochilo.

Ayla sabia que era tarde quando acordou. Todos estavam fora da tenda e o dia parecia incomumente claro. Agarrou sua parka, mas chegou apenas até a entrada. Quando olhou para fora parou e fixou o olhar, a boca aberta.

A mudança no vento havia afastado temporariamente a neblina de verão de gelo em evaporação. Ela inclinou a cabeça para trás a fim de olhar para a muralha de uma geleira avolumando-se acima dela, tão inacreditavelmente maciça que o cume se perdia nas nuvens.

Seu tamanho a fazia parecer mais próxima do que estava, mas alguns pedaços gigantescos que, certa vez, tinham desmoronado da íngreme muralha recortada encontravam-se juntos, em um monte confuso, a uns 400 metros de distância. Várias pessoas se encontravam ao lado dele. Ela compreendeu que os pedaços eram a escala que lhe havia dado uma impressão adequada do verdadeiro tamanho da imensa barreira de gelo. A geleira era um espetáculo incrível, e inacreditavelmente belo. A luz do sol - de repente, Ayla reparou que havia sol - brilhava com milhões de cristais de gelo quebrados que cintilavam com tonalidades de cores prismáticas, mas a cor escura básica tinha matizes do mesmo azul surpreendente que ela havia visto no pequeno lago. Não havia palavras adequadas para descrever a cena; irresistível não significava nada ao lado de sua magnificência, de sua grandeza e força.

Ayla acabou de vestir-se apressadamente, sentindo que havia perdido alguma coisa. Serviu-se de uma tigela do que parecia ser a sobra de um chá com uma leve camada de gelo já se formando em cima, e descobriu que era, em vez disso, caldo de carne. Fez uma pausa por um instante, antes de concluir que estava bom, e tomou-o. Depois pegou um punhado de cereais cozidos congelados, envolveu-os numa fatia grossa de carne assada fria, e se dirigiu para os caçadores com passo rápido.

- Perguntava se você iria acordar algum dia - falou Talut ao vê-la.

- Por que não me acordou? - perguntou Ayla, dando uma última dentada na carne.

- Não é prudente acordar alguém que dorme profundamente, a menos que seja uma emergência - respondeu Talut.

- O espírito precisa de tempo para suas viagens noturnas, a fim de poder voltar revigorado - ajuntou Vincavec, acercando-se para saudá-la. Fez um gesto de tomar suas mãos, mas ela as afastou, esfregando rapidamente as faces com elas, e partiu para examinar o gelo.

Os grandes pedaços tinham caído, obviamente, com alguma força. Estavam profundamente enterrados, e o terreno ao seu redor se encontrava revolvido. Também ficou logo evidente que estavam ali, havia vários anos. Um acúmulo de granulação carregada pelo vento, tirada da rocha que estava pulverizada nas bordas do gelo, revestia as superfícies mais elevadas com uma espessa camada de cascalho cinza-escuro, estriada em alguns lugares com camadas brancas de neve compacta. As próprias superfícies eram corroídas e irregulares pelo derretimento e congelamento desiguais durante muitos e muitos anos, e algumas plantas pequenas, persistentes, tinham-se, na verdade, enraizado no gelo.

Venha cá, Ayla - chamou Ranec. Ela ergueu os olhos e o viu de pé, ao alto de um bloco elevado, levemente inclinado para um lado. Ficou surpresa ao ver Jondalar perto dele. - E fácil, se vier pelo lado.

Ayla deu volta à pilha confusa de blocos de gelo e subiu uma série de placas e fragmentos partidos. O pó da rocha arenosa penetrou no gelo tornando a superfície em geral escorregadia, áspera, e era razoavelmente seguro caminhar por ela. Com um pouco de cuidado, era fácil subir e se mover. Quando Ayla chegou ao local mais alto, ficou de pé, depois fechou os olhos. O vento que fustigava parecia querer testar sua determinação de suportar sua força, e a voz da grande muralha ribombava, gemia e estalava perto dela. Ayla virou a cabeça em direção à claridade intensa, ao alto, vista através de pálpebras fechadas, e sentiu com a pele de sua face a luta cósmica travada entre o calor da bola de fogo celeste e o frio da maciça muralha de gelo. O próprio ar formigava de indecisão.

Então, ela abriu os olhos. O gelo comandava a vista, enchia sua visão. A extensão enorme, majestosa, formidável de gelo que alcançava o céu cobria toda a amplitude da terra até onde se podia ver. Ao seu lado, as montanhas eram insignificantes. A visão encheu-a de uma exultação humilhante, uma excitação que inspirava terror. Seu sorriso fez Jondalar e Ranec sorrirem também, compreensivamente.

- Já vi isso antes - falou Ranec -, mas poderia ver tantas vezes quanto há estrelas no céu e nunca me cansaria. - Jondalar e Ayla concordaram com um gesto de cabeça.

- No entanto, pode ser perigoso - ajuntou Jondalar.

- Como este gelo chegou até aqui?- indagou Ayla.

- O gelo se move - disse Ranec. - Às vezes, cresce em outras encolhe. Este se partiu quando a muralha era aqui. Esta pilha era muito maior, então. Tem diminuído, como a muralha. - Ranec examinou a geleira. - Acho que estava mais distante da última vez. Talvez o gelo esteja aumentando de novo.

Ayla varreu com o olhar a paisagem aberta, depois, observando como podia ver muito mais longe de seu ponto de vista mais elevado, gritou, apontando para sudeste:

- Mamutes! Vejo um bando de mamutes!

- Onde? - perguntou Ranec, subitamente animado.

A excitação se espalhou pelos caçadores como fogo. Talut, que havia começado a dar volta por um lado ao ouvir a palavra “mamutes”, já es tava a meio caminho do alto do monte de gelo. Alcançou o topo com alguns passos largos, colocou a mão sobre a testa para proteger-se do sol e olhou para o local indicado por Ayla.

- Ela tem razão! Lá estão eles! Mamutes! - trovejou, incapaz de conter a emoção, ou o volume de sua voz.

Vários outros subiam pelo gelo, cada um procurando um local para ver os grandes animais de presas de marfim. Ayla desceu um passo, para que Brecie pudesse ficar em seu lugar.

Havia certo alívio em avistar os mamutes, assim como excitação. Ao menos, eles se mostravam, afinal. O que quer que tivesse feito o Espírito de Mamute esperar, tinha permitido, afinal, aos seus filhos deste mundo apresentar-se àqueles que eram escolhidos por Mut para caçar mamutes.

Uma das mulheres do Acampamento de Brecie contou a um dos homens que tinha visto Ayla ao alto da pilha de gelo com os olhos fechados, virando a cabeça como se procurasse alguma coisa, ou a chamasse e, quando abriu os olhos, lá estavam os mamutes. O homem sacudiu a cabeça, compreendendo.

Ayla fitava a pilha de gelo abaixo, pronta para descer. Talut apareceu ao seu lado, sorrindo tão largamente como ela jamais vira.

- Ayla, você tornou este chefe um homem muito feliz - disse o gigante de barba ruiva.

- Não fiz nada - respondeu Ayla. - Eu os vi por acaso.

- Chega. Quem quer que os tivesse visto primeiro me faria um homem muito feliz. Mas estou contente porque foi você - disse Talut.

Ayla sorriu-lhe. Realmente, ela amava o grande chefe. Pensava nele como tio, irmão, ou amigo, e sentia que ele gostava dela da mesma maneira.

- O que estava olhando lá embaixo, Ayla? - perguntou Talut.

- Nada em particular. Eu reparava apenas que se pode ver a forma desta pilha daqui. Veja como ela é recortada do lado por que subimos, e depois se curva novamente.

Talut lançou um olhar descuidado, depois outro, mais atento.

- Ayla! Você o fez de novo!

- Fiz o quê?

- Tornou este chefe um homem muito feliz!

Seu sorriso era contagiante. Ela sorriu também.

- O que o fez feliz desta vez, Talut?

- Você me fez reparar na forma deste monte degelo. É como um desfiladeiro sem saída. Não totalmente completo, mas podemos dar um jeito nisso. Agora, eu sei como caçaremos os mamutes!

Não perderam tempo. Os mamutes podiam resolver se afastar, ou o tempo podia mudar de novo. Os caçadores tinham que tirar proveito da chance, imediatamente. Os líderes da caçada conferenciaram, depois enviaram rapidamente vários observadores para examinar a configuração do terreno e o tamanho da manada. Enquanto isso construíram uma muralha de pedra e gelo para bloquear o espaço livre a um lado do desfiladeiro frio, convertendo o monte confuso de gelo num cercado com uma abertura, apenas. Quando os exploradores voltaram, os caçadores se reuniram para traçar um plano, a fim de levar os grandes animais peludos para a armadilha.

Talut contou como Ayla e Whinney tinham ajudado a levar os bisões a uma armadilha. Muitas pessoas se interessaram, mas todos chegaram à conclusão de que, com os grandes mamutes, um único cavaleiro não seria capaz de iniciar um avanço combinado, embora Ayla pudesse ajudar um pouco. Teriam que encontrar outro meio de levar os animais para a cilada.

A resposta foi fogo. As tardias tempestades de verão tinham incendiado bastantes campos secos para que até mamutes resistentes, que temiam pouca coisa, tivessem um respeito sadio pelo fogo. Naquela época do ano, contudo, talvez fosse difícil incendiar o capim. O fogo teria que ser em forma de tochas, seguras pelos condutores.

- O que usaremos como tochas? - perguntou alguém.

- Capim seco e esterco de mamute, unidos e mergulhados em gordura - disse Brecie -, assim, acenderão depressa e arderão.

- E podemos usar a pedra-de-fogo de Ayla para acendê-las rapidamente - ajuntou Talut, e houve gestos de cabeça de concordância.

- Precisaremos de fogo em mais de um local - disse Brecie -, e na seqüência certa.

- Ayla deu uma pedra-de-fogo a cada fogueira do Acampamento do Leão. Temos várias conosco. Eu tenho uma e Ranec também. Jondalar tem mais uma - falou Talut, sabedor do prestígio extra que sua declaração lhes dava. Pena que Tulie não esteja aqui, pensou. Ela apreciaria o momento. As pedras-de-fogo de Ayla não tinham preço, principalmente desde que não eram muito abundantes, segundo parecia.

- Assim que fizermos os mamutes se moverem, como termos certeza de que se encaminharão para a armadilha? - perguntou a mulher do acampamento de Brecie. - Isto é um descampado.

O plano que traçaram era simples e direto. Construíram duas novas fileiras de montes de pedras com os pedaços quebrados de gelo e rocha, abrindo-se um leque desde a abertura do desfiladeiro de gelo. Talut, com seu machado maciço, não teve dificuldade em quebrar os grandes pedaços da geleira em fragmentos menores, que podiam ser carregados. Várias tochas foram colocadas atrás de cada monte de pedra, de prontidão. Dos cinqüenta caçadores, alguns escolheram locais dentro do próprio desfiladeiro. Outros se enfileiraram atrás dos montes de pedra. Os restantes, primariamente os corredores mais velozes e fortes - porque apesar de todo o seu tamanho, os mamutes eram capazes de correr a alta velocidade em distâncias curtas -, se dividiriam em dois grupos, para cercar ambos os lados da manada.

Brecie começou a explicar algumas características e fraquezas dos mamutes, e como caçá-los, aos caçadores mais jovens que nunca tinham caçado animais grandes antes. Ayla ouviu com atenção e entrou no desfiladeiro gelado com eles. A chefe do Acampamento do Alce comandaria o assalto frontal do interior, e queria inspecionar a armadilha e escolher o seu lugar.

Assim que estavam dentro das paredes geladas, Ayla notou a queda na temperatura. Com o fogo que tinham feito para derreter a gordura para as tochas, e o esforço de cortar capim e carregar blocos de gelo, ela não reparara no frio. Contudo, estavam tão perto da grande geleira que a água, que sobrava à noite, em geral tinha uma película de gelo na manhã seguinte, mesmo no verão, e era necessário usar parkas durante o dia. Dentro do cercado gelado, o frio era intenso, mas, quando Ayla olhou ao redor do recinto espaçoso no meio da confusão recortada de gelo, sentiu que entrara noutro local, um mundo branco e azul de beleza fria e inflexível.

Como os desfiladeiros rochosos perto de seu vale, grandes blocos recém-cortados das muralhas jaziam espalhados e partidos ao solo. Acima deles, pináculos pontiagudos e pontas elevadas de branco cintilantes à sombra das fendas e cantos mudavam para um azul rico, vívído. Ela se lembrou, de súbito, dos olhos de Jondalar. As bordas arredondadas, mais suaves, de placas e blocos mais antigos com uma granulação fina soprada pelo vento, convidavam a uma escalada e exploração.

Ayla o fez, apenas por curiosidade, enquanto os outros procuravam locais para caçar. Ela não esperaria ali pelos mamutes. Ela e Whinney ajudariam a caçar os animais peludos, como Jondalar e Racer fariam. A velocidade dos cavalos podia ser útil, e ela e Jondalar proporcionariam uma pedra-de-fogo a um dos grupos dos condutores. Ayla notou mais pessoas reunindo-se à entrada e saiu apressada. Whinney seguia Jondalar e Racer a partir do local do acampamento. Ayla assobiou e a égua passou a frente deles à meio galope.

Os dois grupos de condutores partiram em direção à manada de mamutes, dando uma volta ampla para se colocarem atrás, sem causar muita perturbação. Ranec e Talut se encontravam cada um atrás de uma das filas dos montes de pedras que convergiam para o desfiladeiro de gelo, prontos para fornecer fogo rápido quando necessário. Ayla acenou a Talut e sorriu para Ranec quando passou por eles, esperando perto de uma pilha de gelo e pedra. Vincavec estava do mesmo lado que Ranec, notou Ayla, retribuindo o seu sorriso também.

Ela caminhou à frente de Whinney, suas lanças e arremessador de lanças presos às alças das cestas, juntamente às tochas do grupo. Vários outros caçadores estavam próximos, mas ninguém falava muito. Todos se concentravam nos mamutes, esperando ardentemente que a caçada fosse bem-sucedida. Ayla olhou para Whinney, atrás dela, depois para a manada à frente Ainda pastavam no mesmo campo de capim onde ela os vira da primeira vez, não há muito tempo atrás. Tudo acontecera tão depressa que ela mal tivera tempo de pensar. Eles tinham conseguido muito num espaço de tempo bastante curto.

Ela sempre havia querido caçar mamutes, e um arrepio de expectativa atravessou-a quando compreendeu que estava, na verdade, a ponto de participar da primeira caçada de mamutes de sua vida. Embora houvesse alguma coisa totalmente ridícula nisso, quando parou para refletir a respeito. Como criaturas tão pequenas e fracas como os homens podiam desafiar os animais grandes, peludos, com presas de marfim, e esperar ter sucesso? No entanto, lá estava ela, pronta para enfrentar o maior animal da terra, com nada mais do que algumas lanças de mamute. Não, isso não era totalmente verdadeiro. Ela também tinha a inteligência, experiência e cooperação dos outros caçadores. E o arremessador de lanças de Jondalar.

Será que o novo arremessador de lanças que ele desenvolveu para ser usado com lanças maiores funcionaria? Eles o tinham testado, mas ela não se sentia ainda inteiramente à vontade com o seu.

Ayla viu Racer e o outro grupo aproximando-se deles pelo capim seco, e a manada de mamutes parecia mover-se mais. Começavam a ficar, nervosos por causa das pessoas que tentavam esgueirar-se à volta deles? O andar do seu grupo se acelerava; outros também se preocupavam. Passaram um sinal para pegar as tochas. Ayla tirou-as rapidamente das cestas que Whinney carregava e entregou-as. Esperaram ansiosamente, observando o outro grupo pegar as tochas. Então, o chefe da caçada fez um sinal.

Ayla tirou suas luvas e se agachou diante da pequena pilha de penugem de estramônio e esterco amassado. Os outros rondavam, esperando. Ela golpeou seu sílex de iniciar o fogo contra o pedaço cinza-amarelado de pirita de ferro. A centelha morreu. Ela golpeou de novo, o fogo pareceu pegar e ela bateu mais uma vez, acrescentando mais centelhas à isca lenta, e tentou soprar para avivar a chama. Então, uma rajada repentina de vento veio em sua ajuda, e o fogo envolveu subitamente a isca e o esterco amassado. Ela acrescentou algum sebo para o fogo se tornar mais forte, e recostou-se enquanto os primeiros caçadores aproximavam suas tochas do fogo. Acenderam as tochas um do outro, depois começaram a se afastar em leque.

Não houve sinal definitivo para começar o avanço. Iniciou-se lentamente, quando os caçadores desorganizados investiam em direção aos animais gigantescos, gritando e sacudindo suas chamas móveis, fumegantes. Porém, a maior parte dos Mamutoi era de caçadores de mamutes experientes, e costumava caçar junta. Os esforços logo se tornaram mais harmoniosos quando os dois grupos de condutores combinaram e os elefantes peludos começaram a mover-se na direção dos montes de pedras.

Uma grande mamute-fêmea, a matriarca da manada, parecendo notar um propósito na confusão, virou para o lado. Ayla correu em sua direção, gritando e agitando sua tocha. Ela se lembrou, de repente, da tentativa de perseguir uma cavalhada certa vez, sozinha, somente com tochas fumegantes como ajuda. Todos os cavalos, exceto um, fugiram - não, dois, pensou. A égua que amamentava caiu na armadilha escavada, mas não o pequeno potro amarelo. Ela lançou um olhar a Whinney.

O barrito gritante da fêmea pegou Ayla de surpresa. Ela se virou a tempo de ver a velha matriarca espiar as criaturas fracas, insignificantes que tinham cheiro de perigo, depois começar a correr em direção dela. Mas, desta vez, a jovem não estava sozinha. Ergueu a cabeça e viu Jondalar a seu lado, depois vários outros, mais do que a fêmea peluda desejava enfrentar. Erguendo a tromba para gritar um aviso de fogo, ela se empertigou e tornou a gritar, depois recuou.

A leira de feno seco ficava em terreno mais elevado, não sujeito ao escoamento de verão da geleira e, embora houvesse neblina, nenhuma chuva caíra havia muitos dias. Os fogos usados para acender as tochas foram abandonados e logo se espalharam pelo capim, encorajados pelo vento forte. Os mamutes viram primeiro o fogo, não apenas o odor de capim em chamas, nas de terra queimada e moitas ardendo - um cheiro familiar de incêndio num campo e até mais assustador. A velha matriarca soltou novo barrito, acompanhado agora por um coro de gritos clamantes quando os animais peludos, marrons-avermelhados, novos e velhos, ganharam velocidade e debandaram na direção de um perigo desconhecido, porém ainda maior.

Um vento cruzado enviou uma onda de fumaça em direção dos caçadores que corriam para acompanhar a manada. Ayla, pronta para montar Whinney, lançou um olhar para trás, para o fogo compreendendo o que havia impelido os grandes mamutes em seu pânico. Observou por um instante, enquanto as chamas vermelhas, estalando, devoravam avidamente o campo, cuspindo centelhas e fumaça. Mas ela sabia que o fogo não era uma ameaça real. Mesmo que conseguisse atravessar a região de terreno rochoso nu, o próprio desfiladeiro de gelo podia detê-lo. Ela viu que Jondalar já montara Racer, seguindo bem atrás dos mamutes que retrocediam e se apressou em acompanhá-lo.

Ayla pôde ouvir a respiração ofegante quando passou pela jovem do Acampamento de Brecie, que havia corrido todo o caminho, ficando pouco atrás das grandes bestas. Seria mais difícil para os animais se desviarem depois de tomarem a rota que os levaria inevitavelmente para o desfiladeiro frio, e as duas mulheres sorriram uma para a outra quando a manada entrou no caminho entre os montes de pedras. Ayla cavalgou à frente. Era sua vez, agora, de conduzi-los.

Ela viu fogos avivando-se ao longo do caminho atrás dos montes de pedra, dos lados e um pouco à frente dos gigantes pesados. Eles não queriam levar as tochas muito longe, à frente deles, e correr o risco de a manada se desviar para um lado, agora que estava tão perto. De repente, ela se aproximava da entrada no gelo. Ela puxou Whinney para o lado, agarrou suas lanças, saltou ao solo e sentiu a vibração da terra, enquanto os últimos mamutes entravam na armadilha. Ela correu para dentro e juntou-se à perseguição, seguindo perto dos calcanhares de um velho mamute com presas cruzadas na frente. Acenderam mais material inflamável, que fora empilhado em montes perto da entrada, numa tentativa de manter os animais assustados no interior. Ayla, dando volta a um fogo, entrou novamente no cercado frio.

Não era mais um local de beleza serena, perfeita. Em vez disso, gritos clamantes de mamutes ecoavam de muralhas duras, geladas, irritando os ouvidos e atormentando os nervos. Ayla estava cheia de uma tensão quase insuportável, em parte medo, em parte excitação. Engoliu o medo, e ajustou sua primeira lança no encaixe no meio do arremessador.

A fêmea mamute se movera para a extremidade distante, procurando um meio de conduzir a manada para fora, mas Brecie esperava lá, no alto de um bloco de gelo. A velha matriarca levantou a tromba e berrou sua frustração, e a chefe do Acampamento do Alce atirou uma lança em sua garganta aberta. O grito foi interrompido por um gorgolejo de líquido que jorrou-lhe da boca e manchou o gelo branco com sangue vermelho quente.

O jovem do Acampamento de Brecie atirou uma segunda lança. A ponta longa, aguçada de sílex penetrou no couro resistente e se alojou profundamente no abdômen. Outra lança se seguiu, e também encontrou a barriga macia, provocando um longo talho pelo peso da haste. A fêmea soltou um urro estridente de dor, enquanto sangue e membranas intestinais de um branco-acinzentado brilhante jorravam da ferida. Suas patas traseiras se entrelaçaram em suas vísceras. No entanto, outra lança foi atirada no animal caído, mas atingiu um osso da costela e saltou para fora. A seguinte encontrou um espaço entre duas costelas por onde a ponta longa, achatada e fina penetrou.

A velha mamute ajoelhou-se, tentou levantar-se uma vez mais num es forço para soltar um grito de aviso, depois lentamente, quase graciosamente, tombou contra o solo. Brecie tocou com uma lança a cabeça da velha mamute corajosa, elogiou sua luta brava, e agradeceu à Grande Mãe pelo sacrifício que permitia que os Filhos da Terra sobrevivessem.

Brecie não foi à única a ficar perto da mamute-fêmea corajosa e a agradecer à Mãe. Grupos de caçadores se reuniram informalmente para um múltiplo ataque sobre cada animal. As lanças atiradas lhes permitiam permanecer fora do alcance das presas e trombas e patas pesadas dos mamutes que escolheram, mas também tinham que vigiar os animais que eram caça de outros homens no cercado. O sangue derramando-se de animais feridos e moribundos suavizava o gelo do terreno parcialmente congelado, depois se congelava em superfície lisa e vermelha, tornando o caminhar perigoso. O desfiladeiro de gelo era uma mistura de gritos dos caçadores e dos berros dos mamutes, e as muralhas cintilantes amplificavam e reverberavam cada som.

Depois de observar alguns instantes, Ayla perseguiu um mamute novo, cujas presas pesadas eram longas e curvas, mas, ainda assim, úteis como armas. Ela colocou a lança pesada no novo arremessador, tentando conseguir a impressão certa. Lembrou-se de Brecie dizer que o estômago era um dos pontos mais vulneráveis de um mamute, e Ayla ficou muito impressionada com a evisceração da velha matriarca da manada. Fez pontaria e, com um arremesso forte, atirou a arma mortífera através do desfiladeiro gelado.

A lança voou rápida e certeira, e atingiu a cavidade abdominal. Mas com a potência da arma e a força de seu lançamento, e sem outros ajudando, ela deveria ter mirado um ponto mais vital. Uma lança no estômago não era imediatamente fatal. O mamute sangrava profusamente, mortalmente ferido, mas a dor o encolerizou, dando-lhe força para se voltar para o atacante. O mamute gritou um desafio, abaixou a cabeça e disparou em direção à jovem.

O arremesso de longa distância do arremessador de Ayla lhe deu sua única vantagem. Ela largou as lanças e correu para um bloco de gelo. Mas seu pé escorregou ao tentar subir. Ela se deslocou para trás dele enquanto o mamute enorme se chocava contra ele com toda a sua força. Suas presas maciças partiram o gigantesco bloco de água congelada em dois e calcou-os para trás, tirando o ar a Ayla. Depois, gritando sua frustração e sua morte, ele socou e dilacerou a lâmina de gelo tentando alcançar a criatura atrás dela. De repente, duas lanças voaram em sucessão rápida e encontraram o macho enraivecido. Uma atingiu-o no pescoço, a outra lhe estalou uma costela com tanta força que chegou ao seu coração.

O mamute encolheu-se em um monte perto do gelo partido. Seu sangue vertendo dos ferimentos formou lagos vermelhos vivos que fumegaram, depois esfriaram, em seguida endureceram sobre o frio gelo glacial. Ainda trêmula, Ayla se arrastou para longe do bloco.

- Está bem? - perguntou Talut, alcançando-a a tempo de ajudá-la a ficar de pé.

- Sim, acho que sim - disse ela, um pouco sem ar.

Talut estendeu a mão para a lança que se projetava do peito do animal, puxou-a com força e arrancou-a. Um novo jorro de sangue aconteceu justamente quando Jondalar chegava até eles.

- Ayla, tive certeza de que ele tinha apanhado você! - disse Jondalar, a expressão em seu rosto sendo mais que preocupação. - Você devia ter esperado até eu vir... Ou alguém vir ajudar. Tem certeza de que está bem?

- Sim, tenho, mas estou muito contente porque vocês dois estavam por perto - disse ela. Depois sorriu. – Caçada de mamutes pode ser muito excitante.

Talut a examinou atentamente, por um momento. Ela havia passado por um grande apuro, o mamute quase a pegara, mas ela não parecia incomumente perturbada. Um pouco ofegante e excitada, mas isso era normal. Ele sorriu e concordou com um gesto de cabeça; depois examinou a ponta e haste de sua lança.

- Ah! Ainda está boa! - exclamou. - Posso pegar outro com esta lança! - acrescentou, e voltou à luta.

Os olhos de Ayla acompanharam o grande chefe, mas Jondalar olhava para ela; seu coração ainda martelava de medo por ela. Ele quase a perdera! Aquele mamute quase a havia matado! Seu capuz estava caído para trás e o cabelo despenteado. Seus olhos brilhavam de excitação. O rosto estava corado e ela respirava entrecortadamente. Era bonita em sua excitação, e o efeito foi imediato e esmagador.

Sua bela mulher pensou, ele. Sua maravilhosa, excitante Ayla, a única mulher que ele amara, realmente O que teria feito se a tivesse perdido? Sentiu o sangue correr para suas virilhas. O medo, ao pensar em perdê-la, e seu amor despertaram seu desejo e encheram-no de uma forte ânsia de abraçá-la. Ele a queria. Ele a queria mais do que já a quisera em sua vida. Poderia tomá-la ali, naquele instante no solo frio e ensangüentado do desfiladeiro de gelo. Ela levantou a cabeça e viu sua expressão, sentiu o carisma irresistível dos seus olhos tão vivamente azuis quanto um profundo lago glacial, mas ardentes. Ele a queria. Ela sabia que ele a queria, e ela o queria com um fogo que a queimava e não seria apagado. Ela o amava, mais do que imaginara ser possível amar alguém. Ela se esticou para ele, estendendo-lhe as mãos, faminta de seus beijos, de seu toque, de seu amor.

- Talut acabou de me contar - disse Ranec correndo para eles, o pânico na voz. - É esse o mamute? - parecia espantado. - Tem certeza de que não está ferida, Ayla?

Ayla fitou Ranec por um momento, sem compreender, e viu um véu cobrir os olhos de Jondalar quando ele recuou um passo. Então, o sentido da pergunta de Ranec a alcançou.

- Não, não estou ferida, Ranec. Estou bem - disse Ayla, mas não tinha certeza de que era verdade. Sua mente era um turbilhão enquanto observava Jondalar arrancar sua lança do pescoço do mamute e afastar-se. Ela o acompanhou com os olhos.

Ela não é mais minha Ayla, e a culpa é minha! Pensou ele. De repente, lembrou-se do incidente nas estepes da primeira vez em que ele cavalgou Racer, e ficou cheio de remorso, e vergonha. Ele sabia que crime terrível era aquele e, contudo, seria capaz de cometê-lo de novo. Ranec era um homem melhor para ela. Ele lhe dera as costas, e depois a maculara. Não a merecia. Esperara estar começando a aceitar o inevitável, esperara que, um dia, depois que voltasse ao seu lar, talvez esquecesse Ayla. Era até capaz de usufruir alguma amizade com Ranec. Mas, agora, sabia que a dor de perdê-la jamais desapareceria, ele nunca esqueceria Ayla.

Viu um mamute, o último de pé, um animal novo que havia escapado, de alguma forma, da carnificina. Jondalar atirou a lança contra o animal com tanta violência que ele caiu de joelhos. Depois, saiu do desfiladeiro gelado. Tinha que se afastar, que ficar sozinho. Caminhou até saber que estava fora do alcance da visão dos outros caçadores. Então, levou as mãos à cabeça, apertou os dentes e tentou se controlar. Caiu ao solo e golpeou a terra com os punhos.

- Ó Doni - gritou, tentando livrar-se da dor e infelicidade -, sei que a culpa é minha. Fui eu que lhe dei as costas e a afastei. Não era apenas ciúme, eu tinha vergonha de amá-la. Eu temia que ela não fosse suficientemente boa para o meu povo, temia que não fosse aceita, e eu seria expulso por causa dela. Mas não me importo mais com isso. Sou eu que não sou bastante bom para ela, mas a amo. Ó Grande Mãe, eu a amo, e a quero. Doni, como a quero! Nenhuma mulher significa coisa alguma. Afasto-me delas, vazio. Doni, eu a quero de volta. Sei que é tarde demais agora, mas quero minha Ayla de volta.

Talut nunca se encontrava mais à vontade do que quando talhavam mamutes. De peito nu, suando profusamente, agitando seu machado maciço como se fosse um brinquedo infantil, partia osso e marfim, lascava tendões e abria a pele resistente. Gostava do trabalho e, sabendo que ajudava seu povo, divertia-se em usar seu corpo potente e tornar menor o esforço para outro, sorria com prazer enquanto usava os músculos rijos de forma que ninguém mais era capaz, e todos que o observavam também tinham que sorrir.

Estripar as peles grossas dos animais enormes, contudo, exigia muitas pessoas, assim como aconteceria quando voltassem e fossem curtir e tratar o couro. Mesmo trazer os couros de volta exigia um esforço cooperativo, por isto selecionavam apenas os melhores. O mesmo acontecia com qualquer outra parte dos grandes animais, desde as presas até os rabos. Eram especialmente discriminadores em sua seleção da carne, escolhendo apenas as melhores porções, de preferência as ricas em gordura, e abandonando o resto.

Mas o desperdício não era tão grande quanto parecia. Os Mamutoi tinham que carregar tudo às costas, e o transporte de carne de má qualidade poderia custar-lhes mais calorias do que ganhavam. Com escolha cuidadosa, o alimento que levavam de volta sustentaria muitas pessoas por longo tempo, e não teriam logo que caçar novamente. Aqueles que caçavam, e dependiam da caça para ter alimento, não matavam em excesso. Simplesmente, utilizavam sabiamente. Viviam unidos à Grande Mãe Terra, sabiam e compreendiam sua dependência Dela. Não esbanjavam Seus recursos.

O tempo permaneceu notavelmente claro enquanto os caçadores talhavam, provocando oscilações dramáticas na temperatura entre meio-dia e meia-noite. Mesmo assim, perto da grande geleira, os dias podiam ficar quentes sob o brilhante sol de verão, quente o suficiente, com o vento dessecativo, para secar parte da carne mais magra, e torná-la razoável para ser carregada. Mas as noites sempre pertenciam ao gelo. No dia de sua partida, uma mudança no vento espalhou nuvens esparsas a oeste, e um esfriamento perceptível.

Os cavalos de Ayla nunca foram tão apreciados como quando ela os carregou para a viagem de volta. Cada caçador preparava uma carga completa e, imediatamente, compreendeu os benefícios dos animais de carga. Os travois provocaram particular interesse. Várias pessoas tinham-se perguntado por que motivo Ayla insistia em arrastar os paus compridos com ela; obviamente, não eram lanças. Agora, sacudiam as cabeças, aprovando. Um dos homens chegou até a erguer um travois parcialmente cheio, por brincadeira, e arrastou-o, ele próprio.

Embora acordassem cedo, ansiosos para voltar, a manhã já ia ao meio quando partiram. Numa ocasião depois do meio-dia, os caçadores subiram uma comprida, estreita colina de areia, cascalho e pedras grandes, depositados há muito tempo atrás pela borda saliente da geleira apontando para o sul. Quando alcançaram o cume arredondado da morena, pararam para um descanso, e Ayla, olhando para trás, viu a geleira não encoberta por neblina, da perspectiva de distância, pela primeira vez. Não podia desviar o olhar.

Brilhando ao sol, algumas nuvens no ocidente obscureciam seus pontos mais elevados, uma barreira contínua de gelo se estendia através da região o mais distante possível, estabelecendo um limite além do qual ninguém podia ir. Era realmente o fim da terra.

A borda frontal era irregular, acomodando pequenas diferenças locais do terreno, e uma escalada ao topo revelaria escavações e sulcos, fendas e gretas bastante grandes em uma escala humana, porém, em relação ao seu próprio tamanho, a superfície era uniforme. A vasta e inexorável geleira, estendendo-se ininterruptamente além da imaginação, revestia um quarto da superfície da terra com uma carapaça de gelo. Ayla continuava olhando para trás quando recomeçaram a jornada, e observou várias nuvens no ocidente se acercarem e a neblina aumentar, envolvendo o gelo em mistério.

Apesar da carga pesada, viajaram mais depressa na volta do que na ida. Cada ano o terreno mudava o suficiente com o vento para haver necessidade de tornar a explorar locais bem conhecidos. Mas o caminho para a geleira setentrional e a rota de volta não eram conhecidos. Todos estavam satisfeitos e de bom humor pela caçada bem-sucedida, e ansiosos para regressar à Reunião. Ninguém parecia sentir a carga pesada, à exceção de Ayla. Enquanto prosseguiam, ela sentia que o pressentimento que experimentara a caminho do norte se tornava mais forte ainda no caminho de volta, mas evitou mencionar seus receios.

O escultor estava tão cheio de expectativa e ânsia que achava difícil se conter. A ansiedade tinha origem, largamente, no interesse contínuo de Vincavec por Ayla, embora tivesse a sensação de conflitos mais graves, também. Mas Ayla ainda lhe era prometida, e carregavam a carne para a Festa Matrimonial. Mesmo Jondalar parecia ter aceitado a união e, embora nada fosse explicitamente declarado, Ranec sentia que o homem alto estava se colocando ao lado dele contra Vincavec. O homem dos Zelandonii possuía muitas qualidades admiráveis, e se desenvolvia uma amizade experimental. Apesar disso, Ranec achava que a presença de Jondalar era uma ameaça tácita à sua união com Ayla, e podia ser um obstáculo entre ele e a felicidade completa. Ranec ficaria feliz quando Jondalar partisse, afinal. Ayla não estava nada ansiosa pela Cerimônia Matrimonial, embora soubesse que deveria estar. Sabia o quanto Ranec a amava, e acreditava que poderia ser feliz com ele. A idéia de ter um bebê como o de Tricie a enchia de prazer. Em sua mente, Ayla sabia, sem sombra de dúvida, que Ralev era filho de Ranec. Não era o resultado de nenhuma mistura de espíritos. Ela estava certa de que Ranec havia iniciado o bebê com sua própria essência quando partilhara prazeres com Tricie. Ayla gostava da mulher ruiva e sentia pena dela. Resolveu que não se importaria dividir Ranec e a fogueira com ela e Ralev, se Tricie quisesse.

Era somente na escuridão profunda da noite que Ayla confessava a si mesma que talvez ela fosse igualmente feliz não vivendo, de modo algum, na fogueira de Ranec. Ela havia evitado, geralmente, dormir com ele durante a viagem, exceto em algumas ocasiões quando ele parecia precisar muito dela, não fisicamente, mas porque queria tranqüilizar-se e senti-la perto. Na volta, ela não fora capaz de dividir prazeres com Ranec. Em vez disso, à noite, em sua cama, só pensava em Jondalar. As mesmas perguntas cruzavam-lhe a mente uma e outra vez, mas ela não era capaz de chegar a nenhuma conclusão.

Quando pensava no dia da caçada, do grande risco que correra com o mamute, e na expressão de necessidade dolorosa nos olhos de Jondalar, perguntava-se se era possível ele ainda amá-la. Então, por que estivera tão distante o inverno inteiro? Por que parara de encontrar prazer nela? Por que ele havia deixado a Fogueira do Mamute? Ela se lembrou do dia, nas estepes, em que ele havia montado Racer pela primeira vez. Quando refletia sobre o desejo dele, sua necessidade, e a aceitação pronta e ansiosa dela própria, não conseguia dormir porque o desejava, mas a lembrança era toldada pela rejeição de Jondalar, e por seus próprios sentimentos de infelicidade e confusão.

Após um dia particularmente longo e uma refeição tardia, Ayla estava entre os primeiros que abandonaram a fogueira e se dirigiram à tenda. Ela havia recusado o pedido esperançoso, implícito de Ranec para dividir suas peles, com um sorriso e um comentário sobre estar cansada depois de um dia de viagem e, em seguida, vendo o desapontamento dele, sentiu-se mal. Mas estava fatigada, e muito insegura sobre seus sentimentos. Vislumbrou Jondalar perto dos cavalos antes de entrar na tenda. Ele estava virado de costas e ela o observou, involuntariamente fascinada pela forma do seu corpo, a maneira como se movia e como ficava de pé. Ela o conhecia tão bem, que achava poder reconhecê-lo pela sombra que projetava. Então, notou que seu corpo havia respondido ao dele, sem intenção, também. Ela respirava mais depressa e seu rosto estava corado, e sentiu-se arrastada para ele, de tal forma, que começou a caminhar em sua direção.

Mas não adianta, pensou. Se eu fosse falar com ele, ele iria apenas recuar, afastar-se, dar desculpas e procurar outra pessoa com quem conversar. Ayla entrou na tenda, ainda repleta dos sentimentos que Jondalar provocara nela, e arrastou-se para suas peles.

Ela estivera cansada, mas agora não conseguia dormir, e se agitava e virava, tentando negar seu desejo por ele. O que havia de errado com ela? Ele não parecia querê-la, por que ela o queria? Mas, então, por que ele a olhava daquela maneira, algumas vezes? Era como se ele se sentisse tão atraído para ela que não se pudesse controlar. Um pensamento lhe ocorreu, então, e ela franziu a testa. Talvez ele fosse atraído para ela, do mesmo modo que ela era atraída para ele, mas talvez ele não quisesse se sentir assim. Teria sido esse o problema, o tempo todo?

Sentiu-se corar de novo, mas desta vez de tristeza. Refletindo sobre o comportamento de Jondalar dessa maneira, de repente, parecia fazer sentido a forma como ele a evitava e fugia dela. Era porque ele não queria querê-la? Quando pensou em todas as vezes que tentara se acercar dele, e falar com ele, e compreendê-lo, quando tudo o que ele queria era evitá-la, sentiu-se humilhada. Ele não me quer, pensou. Não como Ranec. Jondalar disse que me amava, e falou de me levar consigo quando estávamos no vale, mas nunca me pediu para unir-me a ele. Nunca disse que queria dividir uma fogueira ou que desejava meus filhos.

Ayla sentiu lágrimas mornas nos cantos dos olhos. Por que eu me importo com ele, quando ele não gosta de mim, realmente? Fungou e afastou as lágrimas com as palmas das mãos. Todo este tempo, quando tenho pensado nele e o desejado, ele só queria me esquecer.

Bem, Ranec me quer, e ele faz bons prazeres também. E é tão bondoso. Quer partilhar uma fogueira comigo, e nem sequer tenho sido muito boa com ele. E ele faz bebês simpáticos, ao menos o de Tricie é. Acho que devia começar a ser mais bondosa com Ranec, e esquecer Jondalar, pensou. Mas mesmo enquanto as palavras se formavam em sua mente, as lágrimas recomeçaram e, embora se esforçasse, ela não pôde deter o pensamento que surgiu no fundo de si mesma. Sim, Ranec é bom para mim, mas Ranec não é Jondalar, e eu amo Jondalar.

Ayla ainda estava acordada quando as pessoas entraram na tenda. Observou Jondalar entrar e o viu olhar na direção dela, hesitando. Ela olhou para ele também por um momento, depois levantou o queixo e desviou o olhar. Ranec entrou nesse exato momento. Ela se sentou e sorriu para ele.

- Pensei que estava cansada. Por isto foi para a cama cedo - disse o escultor.

- Pensei que estava, mas não consegui dormir. Acho que, talvez, gostaria de dividir suas peles afinal - disse ela.

O brilho do sorriso de Ranec rivalizaria com o sol, se este estivesse cintilando.

- E bom nada conseguir me manter acordado quando estou cansado - disse Talut com um sorriso bem-humorado, enquanto se sentava sobre seu rolo de dormir a fim de desamarrar as botas. Mas Ayla notou que Jondalar não sorria. Ele havia fechado os olhos, mas não escondia sua careta de dor, ou o andar curvado de vencido quando se dirigiu ao seu local de dormir. De repente, deu meia-volta e saiu correndo da tenda. Ranec e Talut se entreolharam, mas depois o homem escuro olhou para Ayla.

Quando alcançaram o pântano, resolveram procurar um caminho ao redor. Carregavam muita coisa para abrir caminho por ele de novo. O mapa de marfim do ano anterior foi consultado, e tomaram a decisão de mudar de rumo na manhã seguinte. Talut estava certo de que não levariam mais tempo para dar a volta, embora tivesse alguma dificuldade em convencer Ranec, que não suportaria mais demoras.

No fim da tarde anterior à decisão de tomar novo rumo, Ayla se sentia incomumente nervosa. Os cavalos tinham estado assustadiços o dia inteiro, também, e mesmo escová-los e limpá-los não os houvera acalmado. Alguma coisa estava errada. Ela não sabia o que era, sentia somente uma estranha inquietação. Começou a caminhar pelas estepes, nuas, tentando relaxar e perambulou longe do acampamento.

Descobriu um pequeno bando de ptármigas e procurou a funda, mas a tinha esquecido. De repente, sem razão aparente, as aves voaram em pânico. Então, uma águia-real apareceu acima do horizonte. Com movimentos de asas enganadoramente lentos, seguia as correntes de ar, parecendo não ter grande pressa. No entanto, mais depressa do que Ayla percebeu, a águia avançava sobre as aves que voavam baixo. De súbito, em grande velocidade, a águia agarrou sua vítima com garras fortes e esganou a ptármiga até morrer.

Ayla estremeceu e voltou depressa ao acampamento. Ficou acordada até tarde, tentando distrair-se. Mas quando foi para a cama, o sono demorou a chegar e, depois, encheu-se de sonhos perturbadores. Ela acordou com freqüência e uma vez, perto do amanhecer, encontrou-se acordada de novo, e incapaz de voltar a dormir. Escorregando para fora de seu rolo de dormir, saiu da tenda e acendeu o fogo para ferver água.

Bebeu seu chá da manhã enquanto o céu clareava, fitando, distraidamente, uma haste fina com uma flor seca de umbela crescendo perto da fogueira. Um pernil parcialmente devorado, de carne assada fria de mamute, fora colocado no alto, sobre um tripé de lanças de mamute, diretamente acima do fogo, para protegê-lo de animais de pilhagem. Ela começou a reconhecer a planta de cenoura silvestre e, vendo um galho quebrado com ponta aguçada na pilha de lenha, usou-o como pau para escavar, a fim de descobrir a raiz alguns centímetros abaixo da superfície. Então, viu outras umbelas de flores secas e, enquanto as retirava, notou algumas hastes de cardo, frescos e suculentos depois das espinhas retiradas. Não longe dos cardos, encontrou um grande cogumelo licoperdo, ainda branco e fresco, e hemerocales com botões novos. Quando as pessoas começaram a se levantar, Ayla tinha uma grande cesta-panela de sopa, engrossada com cereais partidos, cozinhando.

- Isto é maravilhoso! - exclamou Talut, servindo-se pela segunda vez com concha de marfim. - O que a fez resolver preparar uma refeição matinal tão deliciosa hoje?

- Não conseguia dormir, e então vi todas estas plantas crescendo aqui perto. Desviou meu pensamento de... Coisas. - disse ela.

- Dormi como urso no inverno - falou Talut, depois a examinou com atenção, desejando que Nezzie estivesse ali. - Alguma coisa a está perturbando, Ayla?

Ela sacudiu a cabeça.

- Não... Bem, sim. Mas não sei o que é.

- Está doente?

- Não, não é isso. Sinto-me apenas... Estranha. Os cavalos também percebem alguma coisa. Racer está rebelde e Whinney, nervosa...

De repente, Ayla deixou cair sua tigela e, apertando os braços como se para proteger a si, mesma, fixou o sudeste com horror.

- Veja, Talut! - Uma coluna cinzenta se elevava na distância e uma nuvem maciça, escura e encapelada enchia o céu. - O que é?

- Não sei - disse o grande chefe, parecendo tão assustado quanto ela. - Vou buscar Vincavec.

- Também não estou certo. - Eles se viraram para a voz do feiticeiro tatuado. - Está vindo das montanhas do sudeste. - Vincavec lutava para manter o controle. Ele não devia mostrar seus receios, mas não era fácil. - Deve ser um sinal da Mãe.

Ayla tinha certeza de que alguma terrível catástrofe acontecia para que a terra vomitasse com aquela força. A coluna cinzenta, escura, devia ser inacreditavelmente grande para parecer enorme vista de tão longe, e a nuvem, agitando-se e avolumando-se encolerizadamente, era cada vez maior. Ventos fortes começavam a empurrá-la para oeste.

- É o leite do seio de Doni - disse Jondalar, mais calmo do que se sentia, usando uma palavra de sua língua. Todos saíram das tendas e fitavam, agora, a erupção amedrontadora e a grande nuvem inchada de cinza vulcânica fervente.

- Que... Palavra você disse? - perguntou Talut.

- E uma montanha, um tipo especial de montanha que vomita. Vi uma quando era muito jovem - disse Jondalar. - Nós as chamamos de “Seios da Mãe”. Um velho Zelandoni nos contou uma lenda sobre elas.

A montanha que viera distante, na região central elevada. Mais tarde, um homem que viajava e que estava mais perto dela contou-nos o que viu. Era uma história muito excitante, mas ele estava com medo. Houve alguns pequenos terremotos, depois o topo da montanha se abriu e jogou para o alto um grande vômito como aquele, e fez uma nuvem negra que tomou conta do céu. Não é como uma nuvem comum, no entanto, está cheia de um pó claro, como cinza. Aquela... - fez um gesto em direção à grande nuvem negra que corria para o oeste -...Parece que se afasta de nós. Espero que o vento não mude. Quando a cinza assentar, cobrirá tudo. Às vezes, muito profundamente.

- Deve ser distante - disse Brecie. - Nem sequer vemos as montanhas daqui, e não há sons, nem estrondos, nem ribombos, ou tremor de terra. Somente aquele grande vômito e a nuvem escura.

- É por isto, mesmo se a cinza cair por aqui, que talvez não seja muito prejudicial. Estamos muito distantes.

- Você disse que houve terremotos? Terremotos sempre são um sinal da Mãe. Este também deve ser. Os mamuti terão que meditar sobre isto, descobrir seu significado - disse Vincavec, não querendo se mostrar menos entendido que o estrangeiro.

Ayla não ouviu muita coisa além de “terremoto”. Não havia nada no mundo que ela temesse mais do que terremotos. Havia perdido sua família quando tinha cinco anos em um tremor de terra violento, e outro terremoto havia matado Creb quando Broud a expulsara do Clã. Os terremotos sempre pressagiavam perda devastadora, mudança dolorosa. Ela estava a um passo de perder o controle.

Então, com o rabo do olho, vislumbrou um movimento familiar. No instante seguinte, uma listra de pele cinza corria para ela, saltando, e colocando patas molhadas, enlameadas, em seu peito. Ela sentiu a lambida de uma língua áspera em seu queixo.

- Lobo! Lobo! O que está fazendo aqui? - disse ela, enquanto o abraçava pelo pescoço. Então, parou, tomada de horror e gritou:

- Oh, não! É Rydag! Lobo veio me chamar, levar-me até Rydag! Devo ir. Preciso ir imediatamente!

- Terá que deixar os travois e os fardos dos cavalos aqui, e voltar montada na égua - disse Talut. O sofrimento em seus olhos era evidente. Rydag era o filho de sua fogueira, tanto quanto qualquer dos filhos de a Nezzie, e o chefe o amava. Se ele fosse capaz, se não fosse tão grande, Ayla lhe teria oferecido Racer, para que o montasse e voltasse com ela.

Ela correu até a tenda para se vestir e viu Ranec.

- É Rydag - disse.

- Eu sei, ouvi você. Deixe-me ajudar. Colocarei um pouco de alimento e água em sua mochila. Precisa do rolo de dormir? Eu o porei também - disse ele, enquanto ela amarrava as botas.

- Oh, Ranec - falou Ayla. Ele era tão bom para ela. - Como lhe agradecer?

- Ele é meu irmão, Ayla.

Claro! Pensou. Ranec também o ama.

- Desculpe, não estou pensando bem. Quer voltar comigo? Eu pensava em pedir a Talut, mas ele é grande demais para montar Racer. Você poderia, contudo.

- Eu? Montar? Nunca! - exclamou Ranec, parecendo surpreso e recuando um pouco.

Ayla franziu a testa. Ela não havia percebido que ele tinha tal sentimento forte em relação aos cavalos, mas agora que refletia a respeito ele era um dos poucos que nunca lhe tinha pedido para dar um passeio a cavalo. Ela se perguntou por quê.

- Eu não saberia como conduzi-lo e... Creio que cairia, Ayla. Está certo para você, é uma das coisas de que gosto em você, mas eu jamais cavalgarei - disse Ranec. - Prefiro meus próprios pés. Nem mesmo gosto de barcos.

- Mas alguém tem que ir com ela. Não deve voltar sozinha - disse Talut, pouco além da entrada.

- Ela não voltará - disse Jondalar, com trajes de viagem, de pé ao lado de Whinney, segurando a rédea de Racer.

Ayla soltou um grande suspiro de alívio e depois enrugou a testa. Por que ele ia com ela? Ele nunca quisera ira lugar algum sozinho com ela. Realmente, não gostava dela. Ela ficou contente por ter a companhia dele, mas não iria lhe dizer. Já se humilhara demasiadas vezes.

Enquanto colocava a bagagem em Whinney, Ayla viu Lobo bebendo água do prato de Ranec. Ele já havia comido também metade de uma travessa de carne.

Obrigada por alimentá-lo, Ranec.

- Só porque não monto um cavalo, não significa que não goste de animais, Ayla - disse o escultor, sentindo-se diminuído. Ele não quisera lhe dizer que tinha medo de montar.

Ela concordou com um gesto de cabeça e sorriu.

- Verei você quando você chegar ao Acampamento do Lobo - disse Ayla.

Eles se abraçaram e beijaram, e Ayla achou que ele a segurara com excessivo ardor. Ela abraçou Talut também, e a Brecie, e roçou a face de Vincavec com a sua, depois montou. O lobo estava imediatamente nos calcanhares de Whinney.

- Espero que Lobo não esteja cansado demais para voltar depois de vir correndo até aqui - disse Ayla.

- Se ele ficar cansado, poderá cavalgar Whinney com você - disse Jondalar sentado sobre Racer, tentando manter o nervoso garanhão calmo.

- Tome conta dela, Jondalar - disse Ranec. - Quando ela está preocupada com outra pessoa, esquece de cuidar de si mesma. Quero que ela esteja bem para o nosso Matrimônio.

- Tomarei conta dela, Ranec. Não se preocupe, você terá uma mulher sadia e desejável para levar para sua fogueira - replicou Jondalar.

Ayla olhou de um para o outro. Havia mais coisa dita do que as palavras.

Viajaram sem descanso até o meio-dia, depois pararam para repousar e almoçar o que tinham trazido de comida. Ayla estava profundamente preocupada com Rydag, e teria preferido continuar a marcha, mas os animais precisavam de descanso. Ela se perguntou se Rydag teria mandado Lobo por conta própria. Parecia provável. Qualquer outro enviaria uma pessoa. Somente Rydag raciocinaria que Lobo era suficientemente esperto para compreender a mensagem e seguir o rastro de Ayla para encontrá-la. Mas ele não faria isso, a menos que fosse muito importante.

A perturbação no sudeste a amedrontara. A grande coluna cuspida para o céu tinha cessado, mas a nuvem ainda estava lá, espalhando-se. O medo de estranhas convulsões da terra era tão fundamental nela, e tão profundo, que estava em um estado de choque brando. Somente seu medo opressivo por Rydag a forçava a permanecer controlada.

Mas, com todos os seus temores, Ayla estava fortemente consciente de Jondalar. Ela quase havia esquecido como ficava feliz em estar com ele. Ela havia sonhado em cavalgar com ele montando Whinney e Racer, somente os dois juntos, com Lobo correndo ao lado. Enquanto descansavam, ela o observou, mas, disfarçadamente, com a habilidade de uma mulher do Clã em se anular, em ver sem ser vista. Somente olhar para ele lhe dava uma sensação de calor e um desejo de estar mais perto, mas seu insight recente sobre seu comportamento inexplicável, e o embaraço que sentia em se insinuar para ele a faziam relutante em mostrar seu interesse. Se ele não a queria, ela não o queria, ou, ao menos, não iria deixá-lo saber que queria.

Jondalar também a observava, esperando encontrar um meio de lhe falar, de lhe dizer quanto a amava, de tentar reconquistá-la. Mas ela parecia evitá-lo, não conseguia encontrar seu olhar. Sabia como ela estava preocupada com Rydag - ele mesmo temia o pior - e não queria intrometer-se. Não tinha certeza se era o momento certo para abordar seus sentimentos pessoais e, depois de todo aquele tempo, não sabia exatamente como começar. Cavalgando de volta, ele tinha visões arrebatadas de nem sequer parar no Acampamento do Lobo, de continuar com ela, talvez todo o caminho de regresso ao seu lar. Mas ele sabia que isso era impossível. Rydag precisava dela, e ela estava prometida a Ranec. Iam unir-se. Por que ela quereria ir com ele?

Não descansaram muito. Ayla achou que os cavalos já estavam refeitos, recomeçaram a viagem. Mas viajaram apenas por pouco tempo quando viram alguém se aproximar. Ele ergueu o braço de alguma distância, e quando se acercaram mais, viram que era Ludeg, o mensageiro que lhes havia contado sobre o novo local para a Reunião de Verão.

- Ayla! É você que estou procurando. Nezzie me mandou encontrá-la. Infelizmente, tenho más notícias. Rydag está muito doente - disse Ludeg. Depois, olhou ao redor. - Onde estão os outros?

- Estão vindo. Viemos na frente assim que soubemos - disse Ayla.

- Mas como souberam? Sou o único corredor enviado - falou Ludeg.

- Não - disse Jondalar - você é o único corredor humano que foi enviado, mas os lobos podem correr mais velozmente.

De repente, Ludeg viu o jovem lobo.

Ele não foi caçar com vocês. Como Lobo chegou aqui?

- Acho que Rydag o mandou - disse Ayla. - Ele nos encontrou do outro lago do brejo.

- E isso foi muito bom - falou Jondalar. - Talvez você não encontrasse os caçadores. Eles resolveram dar volta ao brejo no caminho de regresso. É mais fácil, quando se está muito carregado, permanecer em terreno seco.

- Então, encontraram mamutes. Ótimo, isso fará todo mundo feliz. - disse Ludeg e depois olhou para Ayla. - Acho melhor se apressarem. É sorte estarem tão perto.

Ayla sentiu o sangue desaparecer de seu rosto.

- Gostaria de montar comigo, Ludeg? - perguntou Jondalar, antes de se afastarem depressa.

- Não. Vocês precisam ir. Já me pouparam uma longa viagem, não me importo de voltar a pé.

Ayla galopou Whinney todo o caminho de volta à Reunião de Verão. Desmontou e entrou na tenda antes que qualquer pessoa soubesse que havia voltado.

- Ayla! Está aqui! Conseguiu chegar a tempo. Eu temia que ele se fosse antes de você chegar - disse Nezzie. - Ludeg deve ter viajado de pressa.

- Não foi Ludeg quem nos encontrou. Foi Lobo - falou Ayla, tirando o agasalho e correndo para a cama de Rydag.

Teve que fechar os olhos para vencer o choque, por um momento. A imobilidade do seu maxilar e as rugas de tensão lhe disseram mais que qualquer palavra que ele sofria, sofria terrivelmente. Estava pálido, mas olheiras fundas cercavam-lhe os olhos e sulcos em sua testa e faces projetavam-se em ângulos pronunciados. Cada respiração era um esforço e causava mais dor. Ela ergueu os olhos para Nezzie, de pé ao lado da cama.

- Que aconteceu, Nezzie? - lutava para conter as lágrimas, para o bem dele.

- Queria saber. Ele estava bem, então, de repente, ficou com esta dor.

Tentei tudo o que você me ensinou, dei-lhe o remédio. Nada ajudou - disse Nezzie.

Ayla sentiu um toque leve em seu braço.

- Estou contente porque veio - disse o menino com sinais.

Onde ela havia visto aquilo antes? A luta para fazer sinais com um corpo fraco demais para se mover? Iza. Era assim que estava quando morreu. Ayla havia acabado de voltar de uma longa viagem, então, e uma prolongada estada na Reunião de Clãs. Mas, desta vez, ela havia ido apenas caçar mamutes. Não ficaram longe muito tempo. O que aconteceu com Rydag? Como ele havia ficado tão doente, tão depressa? A doença havia tomado conta dele devagar?

- Você mandou Lobo, não foi? - perguntou Ayla.

- Sabia que ele a encontraria - o garoto fez sinais. - É esperto.

Rydag fechou os olhos, então, e Ayla teve que virar a cabeça para um lado e fechar os seus também. Doía ver a forma como ele se esforçava para respirar, doía ver seu sofrimento.

- Quando tomou seu remédio pela última vez? - perguntou Ayla, quando ele abriu os olhos e ela foi capaz de encará-lo.

Rydag sacudiu a cabeça de leve:

- Não adianta. Nada ajuda.

- O que quer dizer, como nada ajuda? Você não é curandeiro. Como sabe? Sou eu que sei - disse Ayla. Tentando soar firme e positiva.

Ele tornou a sacudir a cabeça levemente:

-Eu sei.

- Bem, vou examinar você, mas primeiro vou buscar um remédio para você - disse Ayla, porém ela tinha mais era medo de começar a chorar ali mesmo.

Ele tocou a mão dela, quando Ayla se preparara para ir.

- Não vá. - Ele fechou os olhos de novo e ela o viu lutar por mais uma respiração angustiante, e depois outra, impotente para fazer alguma coisa. - Lobo está aqui? - ele fez um sinal, afinal.

Ayla assobiou e quem quer que estivesse lá fora tentando impedir Lobo de entrar na tenda, de repente, descobriu que era impossível deter o animal. Lá estava ele, saltando sobre a cama de Rydag, tentando lamber-lhe o rosto. Rydag sorriu. Era quase mais do que Ayla podia suportar, aquele sorriso em um rosto do Clã que era tão unicamente Rydag. O jovem animal turbulento podia ser um excesso. Ayla lhe fez sinal para descer.

- Mandei Lobo. Queria Ayla - Rydag fez sinal de novo. - Quero... - parecia ter esquecido a palavra em sinais.

- O que quer, Rydag? - encorajou Ayla.

- Ele tentou me dizer - falou Nezzie - mas não consegui entender. Espero que consiga. Parece tão importante para ele.

Rydag fechou os olhos e franziu a testa, e Ayla teve a impressão de que ele tentava lembrar-se de alguma coisa.

- Durc tem sorte. Ele... Pertence ao Clã. Ayla quero... Mog-ur.

Ele se esforçava tanto, e cansava-se tanto, mas Ayla só podia tentar entender.

- Mog-ur? - o sinal foi silencioso. - Quer dizer um homem do mundo espiritual? - disse Ayla, alto.

Rydag sacudiu a cabeça afirmativamente, encorajado. Mas a expressão do rosto de Nezzie era insondável.

- É isso que ele está tentando dizer? - perguntou.

- Sim, acho que sim - retrucou Ayla. - Isso ajuda?

Nezzie balançou a cabeça concordando depressa, com raiva.

- Eu sei o que ele quer. Não quer ser um animal, quer ir para o mundo espiritual. Quer ser enterrado... Como uma pessoa.

Rydag balançava a cabeça agora, concordando.

- Claro - disse Ayla. - Ele é uma pessoa. - Parecia perplexa.

- Não, não é. Nunca foi contado entre os Mamutoi. Não o aceitaram. Disseram que era um animal - falou Nezzie.

- Quer dizer que não pode ter um funeral? Não pode caminhar para o mundo espiritual? Quem diz que não pode? - os olhos de Ayla brilhavam de cólera.

- A Fogueira do Mamute - disse Nezzie. - Não permitirão.

- Bem, não sou filha da Fogueira do Mamute? Eu permitirei! - declarou Ayla.

- Não adiantará. Mamut também permitiria. A Fogueira do Mamute tem que concordar, e não concordarão - murmurou Nezzie.

Rydag estivera ouvindo, esperançoso, mas agora sua esperança desaparecia. Ayla viu sua expressão, o desapontamento, e ficou mais zangada do que já estivera, um dia.

- A Fogueira do Mamute não tem que concordar. Não são os únicos a decidir se alguém é ou não humano. Rydag é uma pessoa. Não é mais animal do que meu filho. A Fogueira do Mamute pode ficar com seu funeral. Rydag não precisa dele. Quando chegar a hora, eu o farei, da maneira do Clã, da forma como fiz para Creb, o Mog-ur. Rydag caminhará no mundo dos espíritos, com a Fogueira do Mamute ou sem ela!

Nezzie olhou para o menino. Ele parecia mais relaxado agora. Não, concluiu. Em paz. O esforço, a tensão que demonstrara tinham desaparecido. Ele tocou o braço de Ayla.

- Não sou animal - disse, por sinais.

Ele parecia a ponto de dizer mais alguma coisa. Ayla esperou. Então, de repente, compreendeu que não havia som, luta alguma para respirar mais uma vez, atormentadamente. Ele não sofria mais.

Mas Ayla, sim. Ela ergueu a cabeça e viu Jondalar. Ele estivera ali o tempo todo e seu rosto estava tão marcado pela dor quanto o dela e o de Nezzie. De súbito, os três se abraçaram, tentando encontrar consolo um no outro.

Então, mais alguém mostrou sua tristeza. Do chão sob a cama de Rydag, um uivo baixo se ergueu de uma garganta peluda, depois ganidos se estenderam e aprofundaram e pairaram no ar, convertendo-se no primeiro uivo total, vibrante de Lobo. Quando o fôlego acabou, recomeçou, gritando a perda nos tons sonoros, estranhos, arrepiantes, inconfundíveis da voz do lobo. As pessoas se reuniram à entrada da tenda para olhar, mas hesitaram em entrar. Mesmo os três que estavam imersos em sua dor, fizeram uma pausa para ouvir e admirar-se. Jondalar pensou consigo mesmo que, animal ou homem, ninguém poderia pedir uma elegia mais pungente ou espantosa.

Depois das primeiras lágrimas angustiadas de tristeza, Ayla sentou-se ao lado do pequeno corpo, imóvel, mas suas lágrimas não cessaram. Ela fitava o espaço, lembrando-se silenciosamente de sua vida com o Clã, e seu filho, e da primeira vez que vira Rydag. Ela amava Rydag. Ele viera a significar tanto para ela quanto Durc e, de certa forma, o substituiu. Embora seu filho lhe houvesse sido tirado, Rydag lhe dera uma oportunidade para conhecer mais seu filho, saber como ele crescia e amadurecia, talvez, qual a sua aparência, como pensava, talvez. Quando sorria diante do humor tranqüilo de Rydag, ou ficava satisfeita com sua percepção e inteligência, era capaz de imaginar que Durc tinha o mesmo tipo de compreensão. Agora, Rydag morrera, e seu frágil elo com Durc terminava. Sua dor era por ambos.

A tristeza de Nezzie não era menor, mas as necessidades dos vivos também eram importantes. Rugie subiu em seu colo, magoada e confusa porque seu companheiro de brincadeiras, e amigo e irmão não podia mais brincar, nem sequer formar palavras com suas mãos. Danug estava estendido ao comprido em seu leito, a cabeça enterrada sob uma coberta, soluçando, e alguém tinha que ir avisar Latie.

- Ayla? Ayla - disse Nezzie, afinal. - O que temos que fazer para enterrá-lo segundo o costume do Clã? Precisamos começar a prepará-lo.

Ayla levou um instante para compreender que alguém lhe falava. Franziu a testa, depois olhou para Nezzie.

- O quê?

- Temos que aprontá-lo para o funeral. O que temos que fazer? Não sei coisa alguma sobre funerais do Clã.

Não, nenhum dos Mamutoi sabia, pensou ela - Especialmente a Fogueira do Mamute. Mas ela sabia. Pensou nos funerais do Clã a que tinha assistido e refletiu sobre o que deveria ser feito para Rydag. Antes de ser enterrado segundo o Clã, tem que ser Clã. Isso significa que tem que receber um nome e que precisa de um amuleto com um pedaço de ocre vermelho nele. De repente, Ayla se levantou e saiu correndo.

Jondalar a seguiu.

- Aonde vai?

- Se Rydag vai ser Clã tenho que fazer um amuleto para ele – disse, ela.

Ayla atravessou o acampamento compassos largos, obviamente zangada, passando pelo Acampamento da Fogueira do Mamute sem sequer um olhar, e dirigindo-se diretamente à área de trabalho de sílex. Jondalar a acompanhou. Ele tinha alguma idéia do que ela pretendia. Ela pediu um nódulo de sílex, que ninguém poderia lhe recusar. Depois, olhou ao redor, encontrou um martelo de pedra e arranjou um local para trabalhar.

Quando começou a moldar o sílex à moda do Clã, e os quebradores de sílex dos Mamutoi compreenderam o que ela fazia, ficaram ansiosos para ver, e amontoaram-se tão perto quanto puderam ousar. Ninguém queria aumentar sua ira mais ainda, mas aquela era uma oportunidade rara. Jondalar havia tentado explicar as técnicas do Clã uma vez, depois que o background de Ayla se tornou geralmente conhecido, mas seu treinamento era diferente. Ele não possuía o controle necessário usando seus métodos. Mesmo quando era bem-sucedido, pensavam que era sua própria habilidade, não o processo incomum.

Ayla resolveu fazer duas ferramentas diferentes, uma faca aguçada e um machado pontudo, e levar as duas de volta para o Acampamento de Tifáceas para fazer o amuleto. Conseguiu fazer uma faca útil, mas estava tão cheia de raiva e dor que suas mãos tremiam. Da primeira vez que tentou fazer a ponta mais difícil, estreita e aguçada, partiu-a, e depois notou que muitas pessoas a observavam, o que a deixou nervosa. Sentiu que os trabalhadores de sílex Mamutoi julgavam o método de fabricar ferramentas do Clã, e ela não o representava bem, e então ficou zangada por se importar com isso. Da segunda vez que tentou, quebrou-a também. Sua frustração trouxe lágrimas aos seus olhos, lágrimas de cólera, que tentou afastar com a mão. De repente, Jondalar estava ajoelhado à sua frente.

- É isto que quer, Ayla? - perguntou, erguendo a ferramenta aguçada que ela havia feito para a cerimônia especial do Festival de Primavera.

- É uma ferramenta do Clã! Onde você... É a que eu fiz! - exclamou.

- É. Eu voltei e peguei-a naquele dia. Espero que não se importe.

Ela estava surpresa, intrigada e estranhamente satisfeita.

- Não, não me importo. Estou contente porque o fez, mas qual o motivo?

- Eu queria... Examiná-la - replicou ele. Não conseguia obrigar-se a dizer que queria a ferramenta para se lembrar dela, Ayla, porque pensava que partiria sem ela. Não queria partir sem ela.

Ela levou as ferramentas de volta ao Acampamento de Tifáceas, e perguntou a Nezzie se tinha um pedaço de couro macio. Depois de entregá-lo a Ayla, Nezzie observou a jovem fazer a bolsa simples, pregueada.

- Parecem um pouco mais grosseiras, mas essas ferramentas funcionam realmente muito bem - falou Nezzie. - Para que é a bolsa?

- É o amuleto de Rydag, como o que fiz para o Festival de Primavera. Tenho que colocar um pedaço de ocre vermelho nele, e dar-lhe um nome, como o Clã faz. Devia ter um totem também, para protegê-lo em sua ida para o mundo dos espíritos. - Fez uma pausa, e enrugou a testa.

- Não sei o que Creb fazia para descobrir o totem de uma pessoa, mas era sempre certo... Talvez eu possa dividir o meu totem com Rydag. O Leão da Caverna é um totem poderoso, freqüentemente difícil de conviver com ele, mas foi testado muitas vezes. Rydag merece um totem forte, protetor.

- Há alguma coisa que eu possa fazer? Precisa ser preparado? Vestido? - perguntou Nezzie.

- Sim, eu também gostaria de ajudar - disse Latie, de pé à entrada com Tulie.

- E eu também - falou Mamut.

Ayla ergueu a cabeça e viu quase todo o Acampamento do Leão querendo ajudar e olhando para ela, aguardando instruções. Só faltavam os caçadores. Ela ficou cheia de afeição por aquelas pessoas que tinham aceitado uma estranha criança órfã e aceitaram-na como um deles, e de uma cólera justa contra os membros da Fogueira do Mamute que nem sequer lhe dariam um enterro.

- Bem, primeiro alguém pode conseguir um pouco de ocre vermelho, e depois deve amassá-lo como Deegie faz para tingir o couro, e misturá-lo com uma gordura para fazer uma pomada. Essa tem que ser esfregada em todo o corpo de Rydag. Deveria ser gordura do Urso da Caverna, para um funeral adequado do Clã. O Urso da Caverna é sagrado para o Clã.

- Não temos gordura do Urso da Caverna - disse Tornec.

- Não há muitos Ursos da Caverna por aqui - falou Manuv.

- Por que não gordura de mamute, Ayla? - sugeriu Mamut. - Rydag não era somente Clã. Era misto. Era parte Mamutoi também, e o mamute é sagrado para nós.

- Sim, acho que podíamos usar essa. Ele era Mamutoi também. Não deveríamos esquecer isso.

- E que tal vesti-lo, Ayla? - perguntou Nezzie. - Ele não usou as roupas novas que fiz para ele este ano.

Ayla franziu a testa, depois concordou com um gesto de cabeça.

- Por que não? Depois que estiver pintado com o ocre vermelho, como o Clã faz, poderia vestir seus melhores trajes, como os Mamutoi fazem, para os funerais. Sim, acho uma boa idéia, Nezzie.

- Eu jamais adivinharia que ocre vermelho era uma cor sagrada em seus funerais também - comentou Frebec.

- Eu nem imaginava que enterravam seus mortos - disse Crozie.

- Obviamente, a Fogueira do Mamute também não - disse Tulie.

- Vão ter uma surpresa.

Ayla pediu a Deegie uma das tigelas de madeira que ela lhe dera como um presente da adoção, feita no estilo do Clã, e usada para misturar o ocre vermelho com a gordura de mamute formando um ungüento colorido. Mas foram Nezzie, Crozie e Tulie, as três mulheres mais velhas do Acampamento do Leão, que o esfregaram em Rydag, e depois o vestiram. Ayla separou um pouco da pasta vermelha oleosa para mais tarde, e pôs um pedaço de minério de ferro vermelho na bolsa que havia feito.

- Não devia ser embrulhado? - perguntou Nezzie. - Não devia, Ayla?

- Não sei o que significa isso - respondeu Ayla.

Usamos um couro ou pele, ou alguma coisa para carregá-lo para fora, e depois embrulhamos o corpo com eles antes de ser colocado na sepultura.

Era outro costume Mamutoi, pensou Ayla, mas parecia que, vestindo-o tão ricamente e enfeitando-o com todos os seus adornos já havia mais hábitos Mamutoi do que do Clã em seu enterro. As três mulheres a olhavam, ansiosas. Ela olhou para Tulie, depois para Nezzie. Sim, talvez Nezzie estivesse certa. Deviam usar alguma coisa para carregá-lo, algum tipo de roupa ou coberta. Então, olhou para Crozie.

De repente, embora pensasse nele já há muito tempo, lembrou-se de algo: o manto de Durc. O manto que ela havia usado para carregar seu filho perto do seio, quando era bebê, e para sustentá-lo sobre seu quadril quando era um pouco mais velho. Fora à única coisa que ela trouxera do Clã que não tinha utilidade definida. No entanto, quantas noites, quando estava sozinha, o manto de carregar Durc lhe dera uma sensação de conexão com o único local seguro que conhecera, e com aqueles que havia amado? Quantas noites dormira com aquele manto? Será que chorara nele? Será que o embalara? Era a única coisa que possuía que havia pertencido ao seu filho, e ela não estava certa de poder cedê-lo, mas será que precisava realmente do manto? Iria levá-lo consigo pelo resto da vida?

Ayla viu Crozie olhando para ela, de novo, e lembrou-se da capa branca, que Crozie fizera para seu filho. Ela havia conservado a capa consigo por muitos anos, porque significava muito para ela. Mas a cedera por um bom propósito a Racer, para protegê-lo. Não era mais importante para Rydag ser enrolado em algo que viera do Clã, quando ela ia enviá-lo em seu trajeto para o mundo dos espíritos, do que para ela, carregar o manto de Durc consigo? Crozie havia, finalmente, se libertado da lembrança de seu filho. Talvez fosse hora de ela esquecer Durc também, e apenas ser grata porque ele era mais que uma lembrança.

- Tenho uma coisa para embrulhá-lo - disse Ayla. Correu para seu local de dormir e do fundo de uma pilha, tirou um couro dobrado e sacudiu-o, abrindo-o. Segurou o couro macio flexível, antigo manto de seu filho junto a sua face mais uma vez e fechou os olhos, lembrando-se. Depois, voltou e entregou-o à mãe de Rydag.

- Aqui está uma capa - disse a Nezzie -, um envoltório do Clã. Um dia, pertenceu ao meu filho. Agora, ajudará Rydag no mundo espiritual. E obrigada, Crozie - ajuntou.

P- or que me agradece?

- Por tudo que fez por mim, e por me mostrar que todas as mães devem esquecer, às vezes.

- Ora! - exclamou a velha, tentando parecer severa, mas os olhos brilhantes de emoção. Nezzie pegou o manto e cobriu Rydag.

Já estava escuro, então. Ayla planejara fazer uma cerimônia simples no interior da tenda, mas Nezzie pediu-lhe para esperar até amanhecer, e realizar a cerimônia fora, para mostrar a todos os presentes à Reunião a humanidade de Rydag. Também daria aos caçadores um pouco mais de tempo para voltar. Ninguém queria que Talut e Ranec perdessem o funeral de Rydag, mas não poderiam esperar demais.

Na manhã seguinte, carregaram o corpo para fora e estenderam-no sobre o manto. Muitas pessoas da Reunião se aglomeraram perto, e outras se aproximavam. Havia-se espalhado a notícia de que Ayla daria a Rydag um funeral dos cabeças-chatas, e todos estavam curiosos. Ela estava com a tigela pequena de pasta de ocre vermelha e o amuleto nas mãos, e havia começado a invocar os espíritos, como Creb sempre o fizera, quando outro alvoroço aconteceu. Para alívio de Nezzie, os caçadores voltaram, e com toda a carne de mamute. Tinham se revezado para arrastar os dois travois, e já planejavam fazer mudanças neles para fazer uma espécie de trenó que as pessoas pudessem puxar com mais facilidade.

A cerimônia foi adiada até a carne de mamute ser estocada, e Talut e Ranec serem postos a par do que acontecera, mas ninguém objetou quando foi feito um resumo breve. A morte da criança mista do Clã na Reunião de Verão havia criado um verdadeiro dilema. Rydag havia sido chamado de Abominação, animal, mas animais não eram enterrados; sua carne era estocada. Somente as pessoas tinham funerais, e não gostavam de deixar os mortos sem sepultura por muito tempo. Embora os Mamutoi não quisessem conceder a Rydag uma condição humana, sabiam que tampouco era um animal, realmente. Ninguém reverenciava o espírito de cabeças-chatas, como veneravam veados, ou bisões, ou mamutes, e ninguém estava pronto para estocar a carne de Rydag ao lado das carcaças de mamutes. Ele era uma aberração, exatamente porque viam sua humanidade, mas degradavam-na e não a reconheciam. Ficaram contentes ao deixar que Ayla e o Acampamento do Leão se encarregassem do corpo de Rydag de uma forma que parecia resolver o problema.

Ayla ficou de pé em um montículo para recomeçar a cerimônia, tentando recordar os sinais que Creb fizera naquela parte. Ela não sabia, exatamente, o que os sinais significavam, eram ensinados apenas a mog-urs, mas ela sabia a finalidade geral e conhecia o conteúdo, e explicava, enquanto prosseguia, para benefício do Acampamento do Leão e do resto dos Mamutoi presentes.

- Estou invocando os espíritos agora - disse ela. - O Espírito do Grande Urso da Caverna, do Leão da Caverna, do Mamute, todos os outros, e os Espíritos Antigos também, do Vento e da Neblina e da Chuva. - Depois, estendeu a mão para a pequena tigela. - Agora, vou-lhe dar nome e torná-lo parte do Clã - ajuntou, e enfiando o dedo na pasta vermelha, traçou uma linha da testa até o nariz de Rydag. Depois se levantou e disse, com sinais e palavras: - O nome do menino é Rydag.

Havia uma característica nela, o tom de voz, a intensidade de sua expressão enquanto tentava lembrar, exatamente, os movimentos e sinais corretos, até mesmo seu estranho maneirismo de fala, que fascinavam as pessoas. A história de que ela ficara em pé no gelo chamando os mamutes se espalhava depressa. Ninguém duvidava de que aquela filha da Fogueira do Mamute tinha todo direito de conduzir aquela cerimônia, ou qualquer outra, quer tivesse uma tatuagem de Mamut ou não.

- Agora, ele tem nome segundo o costume do Clã - explicou Ayla, mas também precisa de um totem para ajudá-lo a encontrar o mundo dos espíritos. Não conheço seu totem, por isso, partilharei meu totem, o Espírito do Leão da Caverna, com ele. É um totem muito poderoso e protetor, mas ele o merece.

Em seguida, ela expôs a pequena perna direita de Rydag, e, com a pasta de ocre vermelho, traçou quatro linhas paralelas em sua coxa. Depois se levantou e anunciou em palavras e sinais:

- Espírito do Leão da Caverna, o menino, Rydag, está entregue à sua proteção. - Em seguida, colocou o amuleto, amarrado a um cordão, em seu pescoço. - Agora, Rydag recebeu um nome e é aceito pelo Clã - disse ela, esperando, ardentemente, que fosse verdade.

Ayla havia escolhido um local um pouco afastado do acampamento e o Acampamento do Leão havia pedido e recebido permissão do Acampamento do Lobo para enterrá-lo ali. Nezzie envolveu o corpinho rígido no manto de Durc, depois Talut pegou o menino e carregou-o para o lugar do funeral. Não se envergonhava das lágrimas que caíam enquanto colo cava Rydag na sepultura vazia.

O povo do Acampamento do Leão permaneceu ao redor da escavação no solo que fora levemente aprofundada apenas, e observou as várias coisas que eram colocadas no túmulo com ele. Nezzie trouxe comida e a pôs ao lado do menino. Latie acrescentou o pequeno apito predileto de Rydag. Tronie trouxe um fio de ossos e vértebras de veado, que ele havia usado quando tomara conta dos bebês e crianças pequenas do Acampamento do Leão, no inverno passado. Era o que ele mais gostava de fazer, porque era algo útil que ele era capaz de realizar. Então, inesperadamente, Rugie correu para a cova e deixou cair ali sua boneca favorita.

A um sinal de Ayla, todos os membros do Acampamento do Leão pegaram uma pedra e, cuidadosamente, colocaram-na sobre o vulto envolvido no manto; o início de seu monte de pedras da sepultura. Foi então que Ayla começou a cerimônia do funeral. Não tentou explicar, o propósito parecia bastante claro. Usando os mesmos sinais que Creb utilizara no funeral de Iza, e que ela, em troca, havia usado para honrar Creb, quando o encontrara na caverna semeada de fragmentos de pedra, os movimentos de Ayla davam significado a um rito fúnebre que era muito mais antigo do que qualquer pessoa ali imaginava, e mais bonito do que tinham pensado.

Ela não usava a linguagem de sinais simplificada que ensinara ao Acampamento do Leão. Esta era a linguagem completa, complexa rica do Clã em que movimentos e posturas de todo o corpo tinham vislumbres e nuanças de significado. Embora vários sinais fossem esotéricos - até Ayla não conhecia o significado pleno - muitos sinais comuns também eram incluídos, alguns dos quais o Acampamento do Leão conhecia. Eram capazes de compreender a essência, saber que era um ritual para enviar alguém a outro mundo. Para o resto dos Mamutoi, o movimento de Ayla tinha a aparência de uma dança sutil, contudo expressiva, cheia de gestos manuais e movimentos de braços, posturas e sinais. Ela despertava neles, com sua graça silenciosa, o amor e a perda, a tristeza e a esperança mítica da morte.

Jondalar estava acabrunhado. Derramava lágrimas tão livremente quanto qualquer membro do Acampamento do Leão. Enquanto observava a bela dança silenciosa de Ayla, lembrou-se de um momento no vale - parecia fazer tanto tempo agora - quando ela, certa vez, havia-lhe tentado dizer alguma coisa com o mesmo tipo de movimentos graciosos. Mesmo então, embora ele não entendesse que era uma linguagem, havia sentido um significado mais profundo em seus gestos expressivos. Agora, que sabia mais, ficou surpreso com o quanto não sabia, contudo, como ele achava bonito quando Ayla se movia daquela maneira...

Ele recordou a postura que ela usara da primeira vez que se encontraram, sentando-se ao solo de pernas cruzadas e inclinando a cabeça, esperando que ele lhe desse um tapinha amistoso no ombro. Mesmo depois de ela ser capaz de falar, usava essa postura, às vezes. Sempre o embaraçava, principalmente, depois que soube que era um gesto do Clã, mas ela lhe havia dito que era sua forma de tentar expressar alguma coisa para a qual ignorava as palavras. Sorriu consigo mesmo. Era difícil acreditar que, quando ele a conhecera, ela fosse incapaz de falar. Agora, era fluente em duas línguas: a dos Zelandonii e dos Mamutoi; três, se ele contasse a linguagem do Clã. Ela chegara até mesmo a aprender um pouco de Sungaea durante o curto tempo que passara com eles.

Enquanto a observava mover-se segundo o ritual do Clã, cheio de recordações do vale e do seu amor, a quis mais do que já desejara qualquer coisa em sua vida. Mas Ranec estava de pé perto dela, tão fascinado quanto ele. Todas as vezes que Jondalar olhava para Ayla, não podia evitar de ver o homem de pele escura. Ranec, no instante em que chegara, a havia procurado e fez questão de deixar Jondalar saber que ela ainda estava prometida a ele. E Ayla parecera distante, esquiva. Ele havia feito algumas tentativas para falar com ela, expressar sua tristeza, mas depois dos primeiros momentos de dor partilhada, ela não pareceu querer aceitar seus esforços para consolá-la. Ele se perguntou se imaginava aquilo. Tão triste quanto estava Ayla, o que ele poderia esperar?

De repente, todas as cabeças se voltaram ao som de uma batida regular. Marut, o tamborileiro, havia ido ao Recinto de Música e trouxera seu tambor de crânio de mamute. A música sempre era tocada nos funerais dos Mamutoi, mas os sons que ele produzia não eram os habituais ritmos dos Mamutoi. Eram os ritmos desconhecidos, estranhamente fascinantes do Clã, que Ayla lhe havia ensinado. Então, o músico barbudo, Manen, começou a tocar tons simples de flauta que Ayla havia assobiado. A música se harmonizava, de forma inexplicável, com os movimentos da mulher que dançava um ritual tão evanescente quanto o som da própria música.

Ayla havia quase terminado o ritual, mas resolveu repeti-lo, já que tocavam sons do Clã. A segunda vez que tocaram, os músicos começaram a improvisar. Com sua perícia e habilidade, converteram os sons simples do Clã em algo que não era Clã, ou Mamutoi, mas uma mistura de ambos. Um acompanhamento perfeito pensou Ayla, para o enterro de um menino que era uma mistura dos dois.

Ayla fez uma repetição final com os músicos e não teve certeza quando suas lágrimas começaram, mas podia ver que não estava sozinha. Havia muitos olhos úmidos, e não apenas do Acampamento do Leão.

Quando terminou pela terceira vez, uma pesada nuvem escura que se aproximara do sudeste começou a esconder o sol. Era a estação das tempestades, e algumas pessoas procuraram abrigo. Em vez de água, uma poeira fina começou a cair, muito leve a princípio. Depois, a cinza vulcânica da erupção das montanhas distantes caiu com mais força.

Ayla ficou ao lado da sepultura de Rydag, sentindo a cinza vulcânica leve e frágil descer sobre ela, cobrindo seu cabelo, ombros, colando-se aos seus braços, sobrancelhas, e até pestanas, convertendo-a num vulto monocromo bege-acinzentado claro. A fina poeira cobriu tudo, as pedras da sepultura, o capim, até o pó marrom da trilha. Troncos e arbustos assumiram a mesma tonalidade. Cobriu as pessoas de pé ao lado da cova também e, para Ayla, todos começaram a ficar iguais. As diferenças desapareciam diante de forças tão terríveis quanto deslocamentos da terra e morte.

- Essa coisa é horrível! - exclamou Tronie, sacudindo uma coberta de cama à beira de uma ravina, e fazendo mais cinza subir ao ar. - Estamos limpando a cinza há dias, mas ela está na comida, na água, roupas, cama. Penetra em tudo e não se consegue ficar livre dela.

- Precisamos de outra boa chuva - falou Deegie, jogando fora à água suja que fora usada para lavar a cobertura de couro da tenda. Este é um ano em que esperarei ansiosa pelo inverno.

- Estou certa de que sim - disse Tronie, depois a olhou de esguelha e riu-, mas acho que é porque estará unida, então, e vivendo com Branag.

Um belo sorriso mudou o rosto de Deegie, enquanto pensava nas futuras núpcias.

- Não nego isso, Tronie - disse ela.

- verdade que a Fogueira do Mamute falava sobre adiar o Matrimônio por causa desta cinza? - perguntou Tronie.

- É, e os Ritos de Feminilidade também, mas todos objetaram. Sei que Latie não quer esperar e eu também não. Afinal, concordaram. Não querem mais ressentimentos. Muitas pessoas acharam que eles estavam errados em relação ao funeral de Rydag - falou Deegie.

- Mas algumas concordaram com eles - disse Fralie, aproximando-se com uma cesta cheia de cinza. Virou-a na ravina. - Não importa o que decidissem, sempre alguém acharia que estavam errados.

- Acho que se precisava viver com Rydag para saber - disse Tronie.

- Não estou tão certa - disse Deegie. - Ele viveu conosco muito tempo, mas nunca pensei nele como totalmente humano, até Ayla chegar.

- Acho que ela não está tão ansiosa pelo Matrimônio quanto você, Deegie - disse Tronie. - Pergunto-me se há algo errado com ela. Está doente?

- Acho que não - respondeu Deegie. - Por quê?

- Ela não está agindo certo. Prepara-se para se unir, mas não parece ansiosa por isso. Está ganhando muitos presentes, e tudo, mas não tem aparência feliz. Devia ser como você. Toda vez que alguém fala “unir” você sorri, e fica com uma expressão sonhadora no rosto.

- Nem todo mundo anseia por uma união da mesma maneira - disse Fralie.

- Ela era muito unida a Rydag - comentou Deegie. - E está sofrendo, tanto quanto Nezzie. Se ele tivesse sido Mamutoi, provavelmente o Matrimônio seria adiado.

- Também sinto muito por Rydag, e tenho saudades dele... - era tão bom para Hartal - disse Tronie. - Todos sentimos, embora ele estivesse sofrendo tanto, que fiquei aliviada. Creio que alguma outra coisa está incomodando Ayla.

Ela não acrescentou que havia perguntado sobre a união de Ayla com Ranec desde o início. Não havia razão para isto se tornar tema de discussão, mas apesar do sentimento de Ranec por Ayla, Deegie ainda achava que Ayla gostava mais de Jondalar, embora ela parecesse ignorá-lo ultimamente. Ela viu o alto homem Zelandonii sair da tenda e caminhar em direção ao centro da área de Reunião. Parecia preocupado.

Jondalar sacudiu a cabeça afirmativamente, em resposta às pessoas que o cumprimentavam ao passar, mas seus pensamentos estavam voltados para seu íntimo. Será que ele estava imaginando, ou realmente Ayla o evitava? Depois de todo o tempo que ele passara tentando ficar fora do seu caminho, ainda não conseguia acreditar, agora que queria falar com ela sozinho, que ela o estivesse evitando. Apesar de sua promessa a Ranec, parte dele sempre acreditara que tudo o que tinha a fazer era deixar de evitá-la, e ela estaria disponível para ele, de novo. Não que ela parecesse ansiosa demais, exatamente, mas sim porque parecia aberta para ele. Agora, parecia fechada. Ele havia resolvido que o único meio de descobrir era enfrentá-la diretamente, mas tinha dificuldade em encontrá-la em um momento e lugar onde pudessem conversar.

Viu Latie vindo em sua direção. Sorriu e parou para observá-la. Ela caminhava com um passo largo, independente, agora, sorria com confiança para as pessoas que a saudavam. Há uma diferença, pensou ele. Sempre ficava admirado ao ver a mudança que os Primeiros Ritos causavam. Latie não era mais uma criança, ou uma menina nervosa, soltando risadinhas. Embora ainda jovem, caminhava com a segurança de uma mulher.

- Olá, Jondalar - disse ela, sorrindo.

- Olá, Latie. Parece feliz. - Uma jovem adorável, pensou ele consigo mesmo enquanto sorria. O olhar transmitiu seu sentimento. Ela respondeu com uma respiração contida e olhos arregalados, e depois com um olhar que dava resposta ao convite inconsciente de Jondalar.

- Estou. Eu já me cansava de ficar em um só lugar o tempo todo. Esta é a primeira chance que tive de dar uma volta sozinha... Ou com alguém que quero. - Aproximou-se um pouco mais enquanto erguia os olhos para ele. - aonde vai?

- Procuro Ayla. Você a viu?

Latie suspirou, depois sorriu de forma amigável.

- Vi. Ela estava vendo o bebê de Tricie. Mamut também está à sua procura.

- Não culpe a todos eles, Ayla - disse Mamut. Estavam sentados ao sol quente, à sombra de um grande amieiro.

- Houve muitos que discordaram. Eu fui um deles.

- Não o culpo, Mamut. Não sei se posso culpar alguém, mas por que são incapazes de ver? O que faz as pessoas odiá-los tanto?

- Talvez porque possam ver como somos parecidos, assim, procuram as diferenças. - Fez uma pausa, depois acrescentou: - Você devia ir à Fogueira do Mamute antes de amanhã, Ayla. Não pode se unir até fazer isso. E a última, sabe.

- Sim, acho que devia - disse Ayla.

- Sua relutância está dando esperança a Vincavec. Ele me perguntou hoje, novamente, se eu achava que você estava refletindo na proposta dele. Ele disse que se você não queria quebrar sua promessa, ele iria falar com Ranec sobre aceitá-lo como companheiro também. Sua proposta aumentaria seu Preço de Noiva substancialmente, e daria status muito elevado a todos vocês. O que pensa sobre isso, Ayla? Gostaria de aceitar Vincavec como “co-companheiro?” Juntamente com Ranec?

- Vincavec falou alguma coisa sobre isso na caçada. Eu teria que conversar com Ranec e saber o que ele acha - disse Ayla.

Mamut sentiu que ela mostrava muito pouco entusiasmo, de qualquer forma. Não era um bom momento para uma união por causa de sua tristeza ainda tão grande, mas com todas as propostas e atenção, era difícil aconselhar a esperar. Ele percebeu que ela ficou distraída, de repente, e se virou para ver o que ela observava. Jondalar se dirigia a eles. Ayla parecia nervosa e avançou um passo como se estivesse para se afastar rapidamente, porém não podia interromper, assim, sua conversa com Mamut, tão abruptamente.

- Aí está, Ayla. Tenho andado à sua procura. Gostaria de falar com você.

- Estou ocupada com Mamut agora - disse ela.

- Acho que terminamos, se quer falar com Jondalar - disse Mamut.

Ayla abaixou os olhos, depois encarou o velho, evitando o olhar fixo e perturbado de Jondalar, e disse, suavemente:

- Acho que não temos mais nada para dizer um ao outro, Mamut.

Jondalar sentiu o sangue fugir de seu rosto, depois um choque de calor que o ruborizou. Ela estivera evitando-o! Nem sequer queria lhe falar.

- Hum... Bem... Eu... Eu sinto muito ter incomodado você - disse ele, recuando. Depois, desejando encontrar um lugar onde se esconder, afastou-se correndo.

Mamut a observou com atenção. Depois que Jondalar se afastou, Ayla o acompanhou com o olhar, ainda mais perturbado que o dele. Ele sacudiu a cabeça, mas evitou falar enquanto voltavam juntos para o Acampamento do Leão.

Quando se aproximavam, Ayla reparou em Nezzie e Tulie dirigindo-se a eles. A morte de Rydag havia sido dura para Nezzie. No dia anterior, ela havia trazido a sobra de seu remédio, e ambas choraram. Nezzie não queria o medicamento por perto, como uma lembrança triste, mas não sabia se devia jogá-lo fora. Ayla compreendeu, então, que com a morte de Rydag, a necessidade de ajudar Nezzie a tratá-lo também desaparecera.

- Procurávamos você, Ayla - falou Tulie. Ela estava encantada consigo mesma, como alguém que planejara uma grande surpresa, e isso era raro na grande chefe. As duas mulheres abriram algo que estava dobrado cuidadosamente. Os olhos de Ayla se arregalaram, e as duas mulheres se entreolharam e sorriram.

- Toda noiva precisa de uma túnica nova. Em geral, é a mãe do homem que a faz, mas eu queria ajudar Nezzie.

Era um traje surpreendente de couro amarelo dourado, ricamente ornado; algumas partes estavam solidamente cheias de desenhos em contas de marfim, realçados por muitas pequenas contas de âmbar.

- Ë tão bonita e tão trabalhada! O trabalho com contas deve ter exigido dias e dias. Quando a fizeram? - perguntou Ayla.

- Nós a começamos depois que você anunciou sua promessa, e terminamos aqui - disse Nezzie. - Entre na tenda e experimente.

Ayla olhou para Mamut. Ele sorriu e concordou com um gesto de cabeça. Ele soubera do projeto, e até conspirara com elas sobre a surpresa. As três mulheres entraram na tenda, e foram ao local de dormir de Tulie. Ayla se despiu, mas não estava muito certa sobre como usar o traje. As mulheres a vestiram. Era uma túnica especialmente feita que se abria até em baixo, na frente, e era amarrada por uma faixa tecida a mão, de lã de mamute vermelha.

- Pode usá-la fechada assim, se quiser usá-la apenas para mostrar a alguém - disse Nezzie -mas, para a cerimônia, deve abri-la, assim.

- Puxou para trás a parte superior da túnica, abrindo-a, e tornou a amarrar a faixa. - Uma mulher exibe orgulhosamente seus seios quando se une, quando traz sua fogueira para formar uma união com um homem.

As duas mulheres recuaram para admirar a futura noiva. Ela tem seios de que se orgulhar, pensou Nezzie. Seios de mãe, que podem amamentar. Pena que não tenha mãe aqui, consigo Ayla faria qualquer mulher orgulhosa.

- Podemos entrar agora? - perguntou Deegie, espreitando. Todas as mulheres do acampamento entraram para admirar Ayla em seu traje refinado. Parecia que todas tinham planejado a surpresa.

- Feche a túnica, agora, para poder sair e mostrar aos homens - disse Nezzie, tornando a amarrar a túnica. - Não deve usá-la aberta em público até a cerimônia.

Ayla ficou de pé fora da tenda para o prazer e aprovação sorridente dos homens do Acampamento do Leão. Outros, que não eram do acampamento, também observavam. Vincavec soubera da surpresa e fez questão de estar por perto. Quando a viu, resolveu que, de alguma forma, se uniria a ela, mesmo se tivesse que dividi-la com mais dez homens.

Outro homem que não era do Acampamento do Leão, embora a maioria das pessoas o considerasse membro, também via a cena. Jondalar havia seguido Ayla de volta, não querendo aceitar sua rejeição, ou sequer acreditando nela. Danug lhe contou sobre o traje, e ele esperou com os outros. Quando ela saiu, ele encheu os olhos com sua visão, depois os fechou e sua testa se franziu de dor. Ele a perdera. Ela mostrava a intenção de se unir a Ranec no dia seguinte; Ele respirou fundo e rangeu os dentes. Não podia ficar para vê-la unida ao escultor de pele escura do Acampamento do Leão. Era hora de partir.

Depois de Ayla trocar a roupa e tornar a sair com Mamut, Jondalar correu para a tenda. Estava contente por encontrá-la vazia. Fez sua bagagem, agradecendo a Tulie novamente por ter-lhe dado o equipamento de viagem, arrumou tudo o que iria levar e depois cobriu com uma pele de dormir. Planejava esperar até de manhã, dizer adeus a todos, e partir imediatamente após a refeição matinal. Não diria a ninguém até então.

Durante o dia, Jondalar visitou alguns amigos especiais que fizera na Reunião, sem dizer adeus, mas pensando na despedida. À tarde, passou o tempo com cada membro do Acampamento do Leão. Eram como uma família. Seria duro ir embora, sabendo que nunca mais tornaria a vê-los. Era ainda mais difícil encontrar um meio de falar com Ayla, ao menos uma vez mais. Ele a observou, e quando ela e Latie saíram para o abrigo dos cavalos, ele as seguiu rapidamente.

As palavras da conversa foram superficiais e incômodas, mas havia uma intensidade nele que encheu Ayla de tensão e inquietude. Quando ela entrou, ele ficou e escovou o jovem garanhão até escurecer. Na primeira vez que Jondalar havia visto Ayla, ela estava ajudando Whinney a dar à luz. Ele nunca havia visto algo assim antes. Também seria difícil deixar o animal. Jondalar tinha maior sentimento por Racer, do que jamais julgara possível gostar de um animal.

Finalmente, entrou na tenda e arrastou-se para a cama. Fechou os olhos, mas o sono não veio. Jazeu acordado e pensou em Ayla, em seus momentos no vale e em seu amor que crescera devagar. Não, não devagar. Ele a amou desde o início, apenas demorara a reconhecê-lo, demorara a apreciá-lo, demorara tanto que a perdera. Tinha jogado fora o amor de Ayla, pagaria pelo resto da vida. Como pudera ser tão estúpido? Ele nunca a esqueceria, ou o sofrimento de perdê-la, e jamais se perdoaria.

Foi uma noite longa, difícil, e quando a primeira claridade da alvorada se infiltrou escassamente pela abertura da tenda, ele não pôde mais suportar. Não podia dizer adeus, a ela ou a ninguém, tinha apenas que ir embora. Silenciosamente, reuniu sua bagagem e esgueirou-se para fora.

- Resolveu não esperar. Foi o que pensei - disse Mamut.

Jondalar girou.

- Eu... Eu tenho que ir. Não posso mais ficar. É hora... Ah... - gaguejou.

- Eu sei, Jondalar. Desejo-lhe boa viagem. Tem um longo caminho a seguir. Deve decidir sozinho o que é melhor, mas lembre-se disto, não se pode fazer uma escolha senão há ninguém para escolher. - O velho se inclinou para entrar na tenda.

Jondalar franziu a testa e caminhou para o abrigo dos cavalos, O que Mamut quisera dizer? Por que Aqueles Que Serviam a Mãe sempre diziam palavras inexplicáveis?

Quando viu Racer, teve um impulso fugaz de cavalgá-lo, ao menos levar o animal, mas Racer era de Ayla. Acariciou os dois animais, abraçou o garanhão pelo pescoço, e então viu Lobo, e lhe deu uma esfregadela carinhosa. Depois, endireitou o corpo e começou a descer a trilha.

Quando Ayla acordou, o sol entrava. Parecia um dia perfeito. Então, lembrou que era o dia da celebração do Matrimônio. O dia não pareceu mais tão perfeito. Ela se sentou e olhou ao redor. Alguma coisa estava errada. Sempre tivera o hábito de olhar na direção de Jondalar quando acordava. Ele não estava lá. Jondalar está de pé cedo, hoje, pensou. Não podia vencer a impressão de que alguma coisa estava muito errada.

Levantou-se, vestiu-se e foi para fora a fim de se lavar e encontrar um graveto para os dentes. Nezzie estava ao lado do fogo, olhando para ela, estranhamente. A impressão de que algo estava errado cresceu ainda mais. Ela lançou um olhar ao abrigo dos animais. Whinney e Racer pareciam bem, e lá estava Lobo. Ela voltou à tenda e olhou ao redor, novamente. Muitas pessoas tinha acordado e saído. Então, notou que o lugar de Jondalar estava vazio. Ele não havia apenas saído. Seu rolo de dormir e bornais de viagem, tudo faltava. Jondalar fora embora!

Ayla saiu correndo, em pânico.

- Nezzie! Jondalar foi embora! Ele não está no Acampamento do Lobo, em lugar algum, foi embora! E abandonou-me!

- Eu sei, Ayla. Tenho esperado por isso. Você não?

- Mas nem sequer disse adeus! Pensei que ia ficar até o Matrimônio.

- Essa é a última coisa que ele quereria fazer, Ayla. Jamais quis ver você unida com outro homem.

- Mas... Mas Nezzie... Ele não me queria, O que mais eu podia fazer?

- O que quer fazer?

- Quero ir com ele! Mas, ele se foi! Como pôde me abandonar? Ele ia me levar! Foi isso que planejamos. O que aconteceu com tudo o que planejamos, Nezzie? - disse ela, numa súbita explosão de lágrimas.

Nezzie estendeu os braços e consolou a jovem soluçante.

- Os planos mudam, Ayla. A vida muda. E Ranec?

- Não sou a mulher certa para ele. Deve-se unir a Tricie. É ela que o ama - disse Ayla.

- Você não o ama? Ele ama você.

- Eu queria amá-lo, Nezzie. Tentei amá-lo, mas amo Jondalar. Agora, Jondalar foi embora. - Ayla soluçou novamente. - Ele não me ama.

- Tem tanta certeza?

- Ele me deixou e nem disse adeus. Nezzie, por que ele partiu sem mim? O que fiz de errado? - implorou Ayla.

- Acha que fez alguma coisa errada?

Ayla parou e franziu a testa.

- Ele quis falar comigo ontem, e não falei com ele.

- Por quê?

- Porque... Porque ele não me queria. Durante todo o inverno, quando eu o amava tanto, e queria estar com ele, ele não me quis. Nem se quer falava comigo.

- Assim, quando ele quis falar com você, recusou-se a falar com ele - disse Nezzie. - Isso acontece, às vezes.

- Mas quero falar com ele, Nezzie. Quero estar com ele. Mesmo se ele não me amar, quero ficar com ele. Mas, agora, foi-se embora. Levantou-se e foi embora. Não pode ter ido embora! Não pode estar... Longe...

Nezzie olhou para ela e quase sorriu.

- A que distância ele pode estar, Nezzie? Posso caminhar depressa, talvez possa alcançá-lo. Talvez eu deva ir atrás dele e saber o que ele queria me dizer. Oh, Nezzie, eu devia estar com ele! Eu o amo.

- Então, vá atrás dele, filha. Se o quer, e o ama, vá atrás dele. Diga-lhe o que sente. Ao menos, dê-lhe a chance de lhe dizer o que desejava.

- Tem razão! - Ayla enxugou as lágrimas com a palma da mão e tentou pensar. - É isso que devo fazer e vou fazê-lo! Agora! - disse, e começou a descer a trilha correndo, antes de Nezzie poder dizer outra palavra. Ela correu através das alpondras e entrou no campo. Então, parou. Ela não sabia que caminho ele tomara, teria que seguir sua pista, e ela levaria tempo demais para alcançá-lo dessa forma.

De repente, Nezzie ouviu dois assobios agudos. Sorriu quando o lobo passou rapidamente por ela, e Whinney levantou as orelhas e o seguiu. Racer correu atrás. Ela observou o declive, quando o lobo saltou em direção à jovem.

Quando ele se acercou mais, Ayla fez sinais e falou:

- Encontre Jondalar, Lobo! Encontre Jondalar!

O lobo começou a cheirar o terreno e as correntes de ar, e quando partiu, Ayla viu pistas leves de capim pisado e gravetos partidos. Ela montou Whinney e seguiu o lobo.

Somente depois de começar a cavalgar, foi que a pergunta lhe ocorreu. O que vou dizer a ele? Como lhe dizer que ele prometeu me levar consigo? E se ele não me ouvir? E se ele não me quiser?

A chuva havia lavado o revestimento de cinza vulcânica das árvores e folhas, mas Jondalar caminhava através dos campos de arvoredos da planície aluvial, indiferente à beleza de um lindo dia de verão. Ele não sabia exatamente para onde ia, apenas seguia o rio, mas a cada passo que o afastava mais, seus pensamentos se tornavam mais pesados.

Por que estou partindo sem ela? Por que viajo sozinho? Talvez eu devesse voltar, perguntar-lhe se quer vir comigo? Mas, ela não quer vir comigo. É uma Mamutoi. Estas pessoas são seu povo. Ela escolheu Ranec, não você, Jondalar, disse a si mesmo. Sim, escolheu Ranec, mas você lhe deu alguma opção? Então, parou. O que Mamut dissera? Algo sobre escolha? “Não se pode fazer uma escolha quando não há ninguém para escolher.” O que ele quisera dizer?

Jondalar balançou a cabeça, exasperado, e depois compreendeu, soube. Nunca a deixei escolher. Ayla não escolheu Ranec, ao menos, não no início. Talvez na noite da adoção, ela teve uma opção... Ou não? Foi criada pelo Clã. Ninguém nunca lhe disse que ela podia escolher. E então, eu a afastei. Por que não lhe dei uma opção antes de partir? Porque ela não queria falar comigo.

Não, porque você tinha medo de que ela não o escolhesse. Pare de mentir a si mesmo. Após todo aquele tempo, ela resolvera, afinal, não falar com você, e você teve medo de não ser escolhido por ela, é por isto, Jondalar. Assim, não lhe deu uma chance. Está se sentindo melhor agora?

Por que não volta e a deixa escolher? Ao menos, por que não faz uma proposta? Mas, o que lhe dirá? Ela está se preparando para a grande cerimônia. O que lhe oferecerá? O que pode lhe oferecer?

Poderia propor de ficar. Até propor de partilhar a fogueira com ela e Ranec. Você suportaria isso? Seria capaz de dividi-la com Ranec? Se a única opção fosse não tê-la senão assim, seria capaz de ficar aqui e dividi-la?

Jondalar ficou imóvel, os olhos fechados, a testa enrugada. Somente se não tivesse outra escolha. O que ele mais queria era levá-la para casa, e torná-la a casa dela. Os Mamutoi tinham aceitado Ayla, seriam os Zelandonii mais severos? Alguns deles talvez, não todos, mas ele não podia fazer promessas.

Ranec tem o Acampamento do Leão, e muitas outras associações. Você não pode sequer oferecer a Ayla seu povo, suas ligações. Não sabe se eles a aceitarão, ou aceitarão você. Não tem nada a oferecer, a não ser você mesmo.

Se ele não pudesse oferecer mais que isso, o que fariam se seu povo não a aceitasse? Poderíamos ir para algum outro lugar, até voltar para cá. Franziu atesta. Muitas viagens. Talvez devesse apenas se oferecer para ficar, estabelecer-se ali. Tarneg disse que queria um quebrador de sílex para seu novo acampamento. E Ranec? Mais importante, e Ayla? E se ela não o quisesse, de modo algum?

Estava tão absorto em seus pensamentos que não ouviu o ruído monótono de patas até Lobo saltar sobre ele, repentinamente.

- Lobo? O que está... - ergueu os olhos e fixou, incrédulo, enquanto Ayla desmontava do dorso de Whinney.

Ela caminhou para ele, tímida agora, tão temerosa que ele lhe desse as costas novamente. Como podia lhe dizer? Como fazê-lo ouvir? O que poderia fazer se ele não a ouvisse? Então, recordou aqueles primeiros dias sem palavras, e a forma como ela havia aprendido a pedir a alguém para ouvir, há muito tempo atrás. Caiu ao solo, graciosamente, pela longa prática, e inclinou a cabeça e esperou. Jondalar arregalou os olhos para ela, não entendeu por um instante, depois lembrou. Era o seu sinal. Quando ela queria contar alguma coisa importante a ele, mas não sabia as palavras, usava aquele sinal do Clã. Mas por que ela lhe falava agora na linguagem do Clã? O que ela queria lhe dizer que era tão importante?

- Levante-se - disse ele. - Não precisa fazer isso. - Então, recordou a resposta adequada, e deu um tapinha no ombro de Ayla. Quando ela levantou a cabeça, tinha lágrimas nos olhos. Ele ficou abaixado, sobre um joelho para limpá-las.

- Ayla, por que está fazendo isto? Por que está aqui?

- Jondalar, ontem você tentou me dizer alguma coisa, e eu não quis ouvi-lo; Agora, quero lhe dizer uma coisa. E difícil de dizer, mas quero que ouça. E por isto que peço desta maneira. Você ouvirá e não irá embora?

A esperança queimava tanto que ele não conseguiu falar. Apenas balançou a cabeça e lhe segurou as mãos.

- Antes, você queria que eu fosse embora com você - começou ela -, e eu não queria sair do vale. - Parou para respirar fundo. - Agora, quero ir com você, a qualquer lugar, com você. Uma vez você me disse que me amava, que me queria. Agora, acho que não quer me amar, mas mesmo assim, quero ir com você.

- Levante-se, Ayla, por favor - disse ele, ajudando-a. - E Ranec? Pensei que o queria. - Seus braços ainda estavam ao redor dela.

- Não amo Ranec. Amo você, Jondalar. Nunca deixei de amá-lo. Não sei o que fiz para você parar de me amar.

- Você me ama? Você ainda me ama? Oh, Ayla, minha Ayla - disse Jondalar, apertando-a contra ele. Depois olhou para ela como se a visse pela primeira vez, e seus olhos se encheram de amor. Ela ergueu a cabeça e sua boca encontrou a dele. Uniram-se, abraçados, com uma paixão arrebatada e terna, cheios de amor, cheios de desejo.

Ayla não podia acreditar que estava nos braços de Jondalar, que ele a abraçava, desejando-a, amando-a, depois de tanto tempo. As lágrimas encheram-lhe os olhos, depois ela tentou detê-las, temerosa de que ele as interpretasse mal novamente. Em seguida, não se importou e deixou as lágrimas rolarem.

Ele abaixou os olhos para o rosto bonito:

- Está chorando, Ayla.

- Somente porque amo você. Tenho que chorar. Faz tanto tempo e amo tanto você - disse ela.

Ele lhe beijou os olhos, as lágrimas, a boca e sentiu-a aberta para ele, gentil, firmemente.

- Ayla, está realmente aqui? - perguntou ele. - Pensei que a tinha perdido, e sabia que era apenas culpa minha. Amo você, Ayla, nunca deixei de amá-la. Deve acreditar nisso. Nunca deixei de amá-la, embora eu saiba por que você pensou o contrário.

- Mas você não queria me amar, não é?

Ele fechou os olhos e sua testa se franziu com a dor da verdade. Concordou com um gesto de cabeça:

- Eu me envergonhava por amar alguém que viera do Clã, e odiava-me por sentir vergonha da mulher que amava. Nunca fui tão feliz com alguém como com você. Amo-a, e quando éramos só nós dois, tudo era perfeito. Mas quando estávamos com outras pessoas... Sempre que você fazia alguma coisa que aprendera com o Clã, eu me sentia embaraçado. E sempre temia que você dissesse alguma coisa, e então, todos saberiam que eu amava uma mulher que era... Uma aberração. - Mal conseguiu pronunciar a palavra. - Todos sempre me diziam que eu poderia ter qualquer mulher que quisesse. Nenhuma mulher me rejeitaria, diziam, nem mesmo a Própria Mãe. Parecia ser verdade, O que eles ignoravam era que jamais conheci uma mulher que quisesse, realmente, antes de você. Mas o que diriam se eu a levasse para casa? Se Jondalar podia ter qualquer mulher, por que trouxe para casa... A mãe de um cabeça-chata... Uma abominação? Eu temia que eles não a aceitassem, e me rejeitassem também, a menos... Que eu desse as costas a você. Eu tinha medo de fazer isso, se tivesse que escolher entre o meu povo e você.

Ayla franzia a testa, a cabeça abaixada.

- Eu não compreendi. Seria uma decisão muito difícil para você.

- Ayla - falou Jondalar fazendo-a erguer o rosto para ele. - Amo você. Talvez somente agora eu compreenda como isso é importante para mim. Não apenas o fato de você me amar, mas de eu a amar. Agora, sei que só existe uma escolha para mim. Você é mais importante para mim do que meu povo, ou qualquer pessoa. Quero ficar com você para sempre. - Os olhos de Ayla se encheram de lágrimas, novamente, embora se esforçasse para detê-las. - Se quer ficar aqui e viver com os Mamutoi ficarei e me tornarei Mamutoi. Se quiser que eu partilhe você com Ranec... Farei isso também.

- É isso que quer fazer?

- Se for o que você quer... - começou a dizer Jondalar, então, recordou as palavras de Mamut. Talvez devesse dar a ela uma opção, falar sobre sua preferência. - Quero estar com você, e acredite, isto é o mais importante. Eu ficarei aqui, se você quisesse, mas se me pergunta o que desejo quero ir para casa e levar você comigo.

- Levar-me com você? Não sente mais vergonha de mim? Não se envergonha do Clã e de Durc?

- Não, não me envergonho de você. Orgulho-me de você. E tam pouco sinto vergonha do Clã. Você e Rydag me ensinaram uma coisa muito importante, e talvez seja hora de tentar ensinar a outros. Aprendi tantas coisas que quero levar de volta ao meu povo. Quero lhes mostrar o arremessador de lanças, e os métodos de Wymez de trabalhar sílex, e suas pedras-de-fogo, e a agulha que puxa o fio, e os cavalos e Lobo. Com tudo isso, talvez até desejem ouvir alguém lhes dizer que o povo do Clã também é filho da Mãe Terra.

- O Leão da Caverna é seu totem, Jondalar - disse Ayla, com a finalidade de saber absoluto.

- Você disse isso antes, O que a faz ter tanta certeza?

- Recorda quando falei que é difícil conviver com totens poderosos? Suas provas são áridas, mas suas dádivas, o que você aprende com eles, faz com que tudo valha a pena. Você passou por uma dura prova, mas lamenta agora? Este ano foi duro para nós dois, mas aprendi tanto sobre mim mesma e sobre os Outros! Não tenho mais medo deles. Você também aprendeu muito sobre si mesmo e o Clã. Acho que temia o Clã, de maneira diferente. Agora, você venceu esse temor. O Leão da Caverna é seu totem, e você não odeia mais o Clã.

- Acho que tem razão, e estou contente porque um totem do Leão da Caverna do Clã me escolheu, se isso significa que sou aceitável para você. Não tenho nada a lhe oferecer, Ayla, exceto eu mesmo. Não posso prometer quaisquer associações, nem sequer com meu povo. Não posso fazer promessas, porque não sei se os Zelandonii aceitarão você. Se não aceitarem, teremos que encontrar outro lugar para viver. Eu me tornarei um Mamutoi, se quiser, mas eu preferia levá-la para casa e fazer o Zelandoni dar o nó para nós.

- Isso é como uma união? - perguntou Ayla. - Você nunca me pediu para unir-me a você. Pediu-me para ir com você, mas jamais me pediu para fazer uma fogueira com você.

- Ayla, Ayla, o que há de errado comigo? Por que tenho como certo que você já sabe tudo? Talvez seja porque você sabe tanto o que não sei, e aprendeu tanta coisa, tão depressa, que esqueço que acabou de aprendê-la. Talvez eu deva aprender um sinal para dizer as coisas para as quais não tenho palavras.

Então, com um sorriso divertido de prazer, inclinou-se diante dela com um joelho contra o solo. Ele não estava sentado exatamente de pernas cruzadas, com a cabeça abaixada, como ela fazia sempre, mas tinha a cabeça erguida para ela. Ayla ficou obviamente desconcertada e pouco à vontade, o que agradou Jondalar, porque era sempre assim que ele se sentia.

- O que está fazendo, Jondalar? Os homens não devem fazer isso. Não precisam pedir permissão para falar.

- Mas tenho que pedir, Ayla. Voltará comigo, e se unirá a mim, e terá o Zelandoni dando o nó, e fará uma fogueira comigo, e fará filhos para mim?

Ayla recomeçou a chorar, e se sentia tola por causa de todas as lágrimas que andara abrigando.

- Jondalar, nunca quis outra coisa. Sim, é minha resposta a tudo isso. Agora, por favor, levante-se.

Ele se levantou e tomou-a nos braços, sentindo-se mais feliz que nunca na vida. Beijou-a, depois manteve-a junto de si como se tivesse medo de soltá-la, medo de perdê-la, talvez, como quase acontecera.

Tornou a beijá-la e o desejo por ela cresceu com a maravilha de tê-la ali. Ela o sentiu, e seu corpo correspondeu e ficou pronto para ele. Mas não queria arrebatá-la desta vez. Queria-a total, completamente. Recuou e tirou dos ombros o bornal que ainda usava. Depois, tirou uma coberta de chão e abriu-a. De repente, Lobo saltou para ele.

- Terá que ficar longe um pouco - disse Jondalar e sorriu para Ayla.

Ela deu ordem a Lobo para se afastar e retribuiu o sorriso de Jondalar. Ele se sentou sobre a coberta e ergueu a mão para ela. Ayla se reuniu a ele, já ansiosa, na expectativa, e desejando-o muito.

Ele a beijou levemente, e estendeu a mão para seu seio, e saboreou mesmo a pequena familiaridade de sua forma túrgida, redonda, através da túnica fina. Ela se lembrava também, e de muito mais. Depressa, despiu a túnica. Ele a segurou com as duas mãos e no instante seguinte ela estava deitada de costas, a boca de Jondalar firmemente sobre a sua. A mão dele acariciou-lhe o seio, e encontrou um mamilo e depois uma boca cálida e molhada estava sobre o outro bico. Ela gemeu enquanto a sensação arrebatadora enviava ondas de sentimento ao íntimo, ao local que ansiava por ele. Ela acariciou-lhe os braços, e as costas largas, depois a nuca e cabelo. Por um instante apenas, ficou surpresa porque o cabelo não era muito crespo. O pensamento morreu tão depressa quanto surgiu.

Ele a beijava de novo, a língua sondando suavemente. Ela a aceitou em sua boca, depois retribuiu a busca, lembrando que o toque de Jondalar jamais era excessivo, ou frenético demais, mas sensível e hábil. Ela sentiu prazer na recordação, e na sua renovação. Era quase como a primeira vez, conhecendo-o novamente, e lembrando-se de como ele a conhecia bem. Quantas noites ela havia ansiado por ele?

Ele provou-lhe a calidez da boca, depois o sal de sua garganta. Ela sentiu arrepios agradáveis caminhando por seu maxilar, em seguida, o lado do pescoço. Ele beijou-lhe o ombro, mordiscou de leve e sugou, brincando com os locais sensíveis que sabia onde estavam. Inesperadamente, tomou-lhe o mamilo de novo. Ela arquejou diante do aumento repentino de emoção. A seguir, suspirou e gemeu de prazer enquanto ele brincava com os dois mamilos.

Então, ele se sentou e olhou-a, depois fechou os olhos como se quisessem memorizá-la. Ela sorria quando ele tornou a abri-los.

- Amo você, Jondalar, e tenho desejado tanto você!

- Oh, Ayla, eu sofria com meu desejo por você, e, no entanto, quase desisti de você. Como pude fazer isso, amando-a tanto? - Beijou-a mais uma vez, abraçando-a com força como se temesse perdê-la de novo, talvez. Ela se agarrou a ele com o mesmo ardor. E de repente, não houve espera. Ele segurou-lhe os seios e depois desamarrou a cintura de sua calça. Ela ergueu os quadris e tirou as calças de verão, três-quartos, enquanto ele desatava a sua, tirava a camisa e se livrava do calçado.

Ele a abraçou pela cintura, a cabeça sobre seu ventre, depois se moveu para baixo, entre suas pernas, beijando o montículo de pêlos. Em seguida deteve-se um pouco, lhe separou as pernas, e com as duas mãos manteve-as assim, e olhou para as dobras de um rosa vivo, como suaves pétalas úmidas. Então, como uma abelha, mergulhou e provou. Ela gritou e arqueou-se para ele enquanto Jondalar explorava cada pétala, cada dobra, cada vinco, mor discando, sugando, provocando, deleitando-se em lhe proporcionar prazer, como havia desejado por dias sem conta.

Aquela era Ayla. A sua Ayla. Aquele era o seu sabor, seu mel e seu próprio membro estavam tão crescidos e ansiosos! Queria esperar, queria que perdurasse, mas de repente, ela não conseguiu. Ela respirava entrecortadamente, e depressa, arquejando, arfando, gritando por ele. Ela estendeu a mão para ele, puxou-o para cima, depois estendeu a mão para guiá-lo até seu poço profundo, tépido.

Ao escorregar para dentro Jondalar soltou um suspiro profundo, e deixou o fuste inteiro deslizar para o interior, até ela o envolver completamente. Aquela era a sua Ayla, a mulher a quem ele convinha, aquela que se ajustava a ele, que o conservava inteiro. Ele permaneceu por um momento, vicejando no abraço total. Desde a primeira vez havia sido assim com ela, e todas às vezes. Como ele pudera sonhar em desistir dela? A Mãe devia ter feito Ayla somente para ele para que pudessem honrá-la completamente a fim de que pudessem agradá-la com seus prazeres, como Ela queria que acontecesse.

Ele recuou e sentiu-a atirar-se para ele, enquanto ele investia para Ayla. Jondalar recuou de novo, e avançou, e retrocedeu e investiu outra vez. Então, de súbito ele estava pronto, e ela gritava, e recuaram e investiram mais uma vez, e a onda cresceu e atingiu o cume, e quebrou-se sobre eles em uma liberação de deleite trêmulo, esgotado.

O descanso era parte do prazer. Ela amava a sensação do peso de Jondalar sobre ela, então. Ele jamais era pesado. Em geral, ele se levantava primeiro, antes que ela estivesse pronta para isso. Ela sentia seu próprio odor nele, e isso a fazia sorrir, lembrando-se dos prazeres que acabavam de partilhar. Ela nunca se sentia tão completa, quanto então, quando terminavam, e ele ainda permanecia lá, dentro dela.

Ele gostava da sensação do corpo inteiro de Ayla sob o seu, e fazia tanto tempo, tão estupidamente... Mas, ela o amava. Como ela era capaz de amá-lo ainda, depois de tudo? Como ele podia ter tanta sorte? Nunca, nunca mais ele a abandonaria.

Afinal, ele saiu, rolou sobre si mesmo e sorriu para Ayla.

- Jondalar? - disse ela depois de algum tempo.

- Sim.

- Vamos nadar? - O rio não fica longe. Vamos nadar como fazíamos no vale, antes de voltarmos ao Acampamento do Lobo.

Ele se sentou ao lado dela e sorriu.

- Vamos! - exclamou, pondo-se de pé em um instante e ajudando-a a levantar-se também. Lobo também ficou de pé e abanou o rabo.

- Sim, pode vir conosco - disse Ayla enquanto pegavam suas coisas e se dirigiam ao rio. Lobo saltou atrás deles, ansioso.

Depois de nadarem e se banharem e brincarem com Lobo no rio, e os cavalos terem rolado e pastado e descansado longe da multidão, Ayla e Jondalar se vestiram, sentindo-se revigorados e famintos.

- Jondalar? - disse Ayla, de pé ao lado dos cavalos.

- Sim.

- Vamos montar Whinney. Quero sentir você perto de mim.

Durante todo o caminho de volta, Ayla pensou sobre como diria a Ranec. Não ansiava por esse momento. Quando chegaram, ele a estava esperando e, obviamente, não estava feliz. Estivera à sua procura. Todo mundo andara se preparando para o Matrimônio naquela tarde, quer para assistir ou participar. Tampouco agradou a Ranec ver Ayla cavalgando com Jondalar sobre Whinney e Racer seguindo-os.

- Onde esteve? Já devia estar vestida.

- Tenho que lhe falar, Ranec.

- Não temos tempo para conversar - disse ele, com uma expressão desvairada no olhar.

- Sinto muito, Ranec. Temos que conversar. Em algum lugar onde possamos ficar sozinhos.

Ele só pôde concordar. Ayla entrou na tenda primeiro, e tirou algo da sua mochila. Caminharam encosta abaixo em direção ao rio, e ao longo de sua margem. Ayla parou, enfiou a mão no interior da túnica e tirou a escultura de uma mulher convertendo-se em sua forma espiritual de ave, a muta que Ranec havia esculpido para ela.

- Tenho que lhe devolver isto, Ranec - disse Ayla, estendendo-lhe.

- Mas, por quê? Por quê? Por que agora, tão de repente? - perguntou Ranec, a voz aguda, quase estrangulada.

- Porque tenho que partir agora. É a melhor época para viajar, e temos um longo caminho a percorrer. Vou com Jondalar. Eu o amo. Nunca deixei de amá-lo. Achei que ele não me amava...

- Quando achou que ele não a amava, então, eu era suficientemente a escultura.

Ranec saltou para trás, como se o houvessem queimado.

- O que quer dizer? Não pode devolver isso! Precisa dela para fazer uma fogueira. Precisa dela para nosso Matrimônio - falou, uma ponta de pânico na voz.

- É por isto que preciso devolver. Não posso fazer uma fogueira com você. Vou embora.

- Vai embora? Não pode, Ayla. Você prometeu! Tudo está providenciado. O Matrimônio é esta noite. Você disse que se uniria a mim. Amo você, Ayla. Não compreende? Amo você. - O pânico crescia na voz de Ranec a cada declaração.

- Eu sei - disse Ayla suavemente. O choque e o sofrimento nos olhos de Ranec a magoavam. - Eu prometi, tudo está arranjado. Mas tenho que partir.

- Bom? Foi assim? - disse Ranec. - Todo o tempo que passamos juntos, você desejava que fosse ele. Nunca me amou.

- Eu quis amar você, Ranec. Eu gosto de você. Nem sempre desejava que fosse Jondalar, quando estava com você. Você me fez feliz muitas vezes.

- Mas não sempre. Eu não era bastante bom. Você era perfeita, mas nem sempre fui perfeito para você.

- Nunca procurei a perfeição. Eu o amo, Ranec. Quanto tempo você poderia me amar sabendo que amo outro homem?

- Posso amar você até morrer, Ayla, e no outro mundo também. Não compreende? Nunca mais amarei outra mulher como amo você. Não pode me deixar. - O escultor escuro atraente, suplicava, com lágrimas nos olhos. Jamais havia suplicado coisa alguma em sua vida.

Ayla sentia a dor dele e queria poder fazer alguma coisa para diminuí-la. Mas não podia dar-lhe a única coisa que ele queria. Não era capaz de amá-lo como amava Jondalar.

- Lamento, Ranec. Por favor, fique com a muta. - Estendeu novamente a escultura.

- Guarde-a! - exclamou ele, com tanto veneno quanto era capaz.

- Talvez eu não seja bastante bom para você, mas não preciso de você. Posso ter a melhor mulher deste lugar. Vá em frente, fuja com seu quebrador de sílex. Não me importo.

- Não posso guardar a escultura - disse Ayla, colocando a muta no solo, aos pés dele.

Abaixou a cabeça e deu meia-volta para se afastar.

Ela voltou pela margem do rio, com dor no coração pelo sofrimento que causara. Ela não tivera a intenção de magoá-lo tão profundamente. Se houvesse outra maneira, ela a teria escolhido.

Esperava que ninguém mais a amasse quando ela não pudesse corresponder.

- Ayla? - gritou Ranec.

Ela se virou e esperou que ele a alcançasse.

- Quando vai partir?

- Assim que arrumar minhas coisas.

- Sabe, não é verdade. Eu me importo. - Seu rosto estava marcado pelo sofrimento e tristeza. Ela queria correr para ele, consolá-lo, mas não desejava encorajá-lo. - Eu sempre soube que você o amava, desde o início - disse ele. - Mas eu a amava tanto, desejava tanto você, que não queria ver isso. Tentei convencer-me de que você me amava, e esperava, com O tempo, que me amasse, realmente.

- Ranec, sinto muito - disse ela. - Se eu não tivesse amado Jondalar primeiro, teria amado você. Poderia ter sido feliz com você. Era tão bom para mim, e sempre me fazia rir. Sabe, amo você. Não da forma que quer, mas sempre amarei você.

Os olhos negros estavam cheios de angústia.

- Nunca deixarei de amá-la, Ayla. Jamais esquecerei você. Levarei este amor à minha sepultura - falou Ranec.

- Não diga isso! Merece mais felicidade que essa!

Ele riu, um riso amargo, implacável.

Não se preocupe, Ayla. Não estou pronto, ainda, para essa sepultura. Ao menos, não o suficiente para fazê-la acontecer. E um dia, talvez, eu me una a uma mulher, faça uma fogueira e ela terá filhos. Talvez até a ame. Mas nenhuma outra mulher será você, e eu jamais sentirei por outra mulher o que sinto por você. Você só pode acontecer uma vez na vida de um homem. - Começaram a regressar.

- Será Tricie? - perguntou Ayla. - Ela ama você.

Ranec sacudiu a cabeça afirmativamente.

- Talvez. Se ela me aceitar. Agora, que tem um filho, será ainda mais requisitada, e ela tinha muitas propostas antes.

Ayla parou e olhou para Ranec.

- Acho que Tricie aceitará você. Está magoada agora, mas isso porque ama você, muito. Porém, há mais uma coisa que deve saber. Seu filho. Ralev é seu filho, Ranec.

- Quer dizer que ele é o filho do meu espírito? - Ranec franziu a testa. - Provavelmente tem razão.

- Não, não quero dizer que ele é o filho do seu espírito. Quero dizer que Ralev é seu filho, Ranec. Ele é o filho de seu corpo, de sua essência. Ralev é seu filho exatamente como é filho de Tricie. Você o fez crescer dentro dela, quando partilhou prazeres com ela.

- Como sabe que partilhei prazeres com ela? - perguntou Ranec, um pouco constrangido. - Ela era uma “pé vermelho” no ano passado, e muito dedicada.

- Sei porque Ralev nasceu e é seu filho. É assim que toda vida começa. E por isto que os prazeres honram a Mãe. É o começo da vida. Eu sei, Ranec. Prometo-lhe, é verdade, e esta promessa não pode ser quebrada - disse Ayla.

Ranec enrugou a testa, refletindo. Era uma idéia nova, estranha. As mulheres eram mães. Davam à luz filhos, e filhas. Mas um homem podia ter um filho? Ralev podia ser seu filho? No entanto, Ayla o dissera. Tinha que ser. Ela carregava a essência de Mut. Ela era a Mulher-Espírito. Talvez ela fosse a Grande Mãe Terra encarnada.

Jondalar verificou a bagagem de novo, depois conduziu Racer para o início da trilha, onde Ayla dizia adeus. Whinney estava com os fardos e esperava pacientemente, mas Lobo corria excitadamente entre eles, sabendo que alguma coisa ocorria.

Tinha sido difícil para Ayla abandonar as pessoas que amava quando fora expulsa do Clã, mas não tivera escolha. Dizer adeus voluntariamente às pessoas que amava no Acampamento do Leão, sabendo que nunca mais as veria, era ainda mais difícil. Já havia derramado tantas lágrimas naquele dia, que se perguntava como ainda tinha mais, no entanto, seus olhos se enchiam delas novamente, cada vez que abraçava um dos amigos.

Talut - soluçou, abraçando o grande chefe de cabelos ruivos.

- Já lhe disse que foi seu riso que me fez resolver visitá-los? Eu tinha tanto medo dos Outros, estava pronta para cavalgar de volta ao vale, até ver você rindo.

- Você me verá chorar dentro de um instante, Ayla. Não quero que vá.

- Já estou chorando - falou Latie. - Também não quero que vá. Lembra-se da primeira vez que me deixou tocar Racer?

- Lembro quando ela deixou Rydag montar Whinney - disse Nezzie.

- Acho que foi o dia mais feliz da vida dele.

- Também sentirei falta dos cavalos - gemeu Latie, agarrando-se a Ayla.

- Talvez, um dia, consiga um pequeno cavalo para você, Latie - falou Ayla.

- Também sentirei falta dos cavalos - disse Rugie.

Ayla a pegou no colo e apertou-a nos braços.

- Então, talvez também consiga um cavalinho.

- Oh, Nezzie! - chorou Ayla. - Como lhe agradecer? Por tudo? Sabe, perdi minha mãe quando era criança, mas tenho muita sorte. Tive duas mães para substitui-Ia. Iza tomou conta de mim quando eu era menina, mas você era a mãe de quem eu precisava para me tornar uma mulher.

- Aqui - disse Nezzie, entregando-lhe um pacote, tentando não ceder inteiramente às lágrimas.

- E sua túnica Matrimonial. Quero que fique com ela para sua união com Jondalar. Ele também é como um filho para mim. E você é minha filha.

Ayla abraçou Nezzie novamente, depois ergueu a cabeça para seu filho grande e robusto. Quando ela abraçou Danug, ele também a abraçou sem acanhamento. Ela sentiu a masculinidade de sua força, e a calidez de seu corpo, e uma centelha fugaz de sua atração por ela quando cochichou:

- Gostaria que tivesse sido minha “pé vermelho”.

Ela recuou e sorriu.

- Danug! Você será um homem e tanto! Gostaria de ficar para vê-lo se converter em outro Talut.

- Talvez, quando eu for mais velho, faça uma longa jornada e vá visitá-la!

Ela abraçou Wymez em seguida, e procurou Ranec, mas ele não estava por perto:

- Sinto muito, Wymez - disse ela.

- Eu também. Queria que ficasse conosco. Gostaria de ver os filhos que você traria para a fogueira dele. Mas Jondalar é um bom homem. Que a Mãe abençoe sua jornada.

Ayla pegou Hartal dos braços de Tronie e encantou-se com suas risadinhas. Então Manuv pegou Nuvie ao colo para Ayla beijar.

- Ela está aqui somente por sua causa. Não esquecerei, e tampouco ela esquecerá - disse Manuv.

Ayla o abraçou, e depois abraçou Tronie e Tornec. Frebec tinha Bectie no colo, enquanto Ayla se despedia de Fralie e dos dois meninos. Depois, abraçou Crozie. Ela recuou, rígida, no começo, embora Ayla a sentisse tremer. Depois a velha a abraçou com força e uma lágrima brilhou em seus olhos.

- Não esqueça como fazer couro branco – ordenou, ela.

- Não esquecerei, e tenho a túnica comigo - disse Ayla, depois acrescentou com um sorriso malicioso: - Mas Crozie, de agora em diante, lembre-se. Nunca jogue o jogo dos ossinhos com um membro da Fogueira do Mamute.

Crozie a olhou, espantada, e depois riu quando Ayla se virou para Frebec. Lobo se juntara a eles, e Frebec coçou atrás de suas orelhas.

- Vou sentir falta deste animal - disse.

- E este animal - falou Ayla, dando-lhe um abraço - sentirá sua falta!

- Também sentirei saudades, Ayla - falou ele.

Ayla se encontrou no meio de uma porção de pessoas da Fogueira dos Auroques, quando todas as crianças e Barzec se amontoaram ao seu redor. Tarneg também estava ali, com sua mulher. Deegie esperava com Branag, e depois, as duas jovens caíram nos braços uma da outra com um novo derramamento de lágrimas.

- De alguma forma, é mais difícil dizer adeus a você do que a qualquer outra pessoa, Deegie - falou Ayla. - Nunca tive uma amiga como você, da minha idade e que pudesse me compreender.

- Eu sei, Ayla. Não posso acreditar que esteja indo embora. Agora, como saberemos quem terá um bebê primeiro?

Ayla recuou e olhou para Deegie com ar crítico, depois sorriu.

- Você terá. Já tem um iniciado.

- Eu me perguntava sobre isso! Acha isso, realmente?

- Sim. Tenho certeza.

Ayla viu Vincavec de pé ao lado de Tulie. Ela roçou levemente seu rosto tatuado.

- Surpreendeu-me - disse ele. - Eu não sabia que seria ele. Por outro lado, todo mundo tem fraquezas. - Lançou um olhar astuto a Tulie.

Vincavec estava aborrecido porque sua avaliação da situação fora tão falha. Ele não havia contado, de modo algum, com o homem louro e alto, e estava um pouco zangado com Tulie porque ela havia aceitado os pedaços combinados de âmbar sabendo que não era provável que ele conseguisse aquilo que queria, apesar de que ele havia quase forçado a aceitação das pedras. Ele andara fazendo comentários mordazes implicando que ela aceitara o âmbar por causa da fraqueza que tinha por ele, e que não dera o valor adequado. Desde que o âmbar havia sido, ostensivamente, um presente, ela não podia devolvê-lo, e Vincavec tirava o máximo proveito de seus comentários contundentes.

Tulie lançou um olhar a Vincavec antes de se aproximar de Ayla, certificando-se de que ele observava, depois deu um abraço sincero e afetuoso na jovem.

- Tenho uma coisa para você. Estou certa de que todos concordarão, são perfeitas para você - disse ela, depois deixou cair os dois pedaços de âmbar na mão de Ayla.

- Combinarão com sua túnica Matrimonial. Deve pensar em usá-los nas orelhas.

- Oh, Tulie! - exclamou Ayla. - Isto é demais. São tão bonitos!

- Não são demais, Ayla. Destinavam-se a você - disse, lançando um olhar triunfante a Vincavec.

Ayla viu Barzec sorrindo também, e Nezzie balançava a cabeça, concordando.

Também foi difícil para Jondalar deixar o Acampamento do Leão. Eles lhe tinham dado boas-vindas, e ele viera a amá-los. Muitas de suas despedidas foram chorosas. A última pessoa com quem falou foi Mamut. Abraçaram-se e roçaram as maçãs do rosto, depois Ayla se juntou a eles.

- Quero lhe agradecer - disse Jondalar. - Acho que sabia, desde o início, que eu tinha uma dura lição a aprender. - O velho concordou com um gesto de cabeça. - Mas aprendi muito com você e os Mamutoi. Aprendi o que tem importância e o que é superficial, e conheço as profundezas do meu amor por Ayla. Não tenho mais restrições. Ficarei ao lado dela contra meus piores inimigos ou melhores amigos.

- Vou lhe dizer outra coisa que precisa saber, Jondalar - disse Mamut. - Eu sabia, desde o começo, que o destino dela era com você, e, quando o vulcão entrou em erupção, eu sabia que ela partiria breve com você. Mas, lembre-se disto: o destino de Ayla é muito maior do que qualquer um imagina. A Mãe escolheu-a e sua vida terá muitos desafios, e a sua também. Ela necessitará de sua proteção, e da força que seu amor adquiriu. Por isto teve que aprender essa lição. Nunca é fácil ser escolhido, mas há sempre grandes benefícios. Tome conta dela, Jondalar. Sabe, quando ela se preocupa com os outros, esquece de tomar conta de si mesma.

Jondalar sacudiu a cabeça, concordando. Então, Ayla abraçou o velho, sorrindo através de olhos úmidos.

- Queria que Rydag estivesse aqui. Sinto tanta falta dele. Também aprendi lições. Eu queria ir buscar meu filho, mas Rydag ensinou-me que eu devia deixar Durc viver a vida dele. Como lhe posso agradecer por tudo, Mamut?

- Não é necessário agradecer, Ayla. Nossos caminhos estavam destinados a se cruzar. Esperava por você sem saber, e você me deu grande alegria, minha filha. Você não estava destinada a voltar para buscar Durc. Ele foi sua dádiva ao Clã. As crianças são sempre uma alegria, mas sofrimento também. E todos devem aprender a viver suas próprias vidas. Até Mut deixará Seus filhos seguirem seu caminho, um dia, mas temo por nós se a negligenciarmos. Se esquecermos de respeitar nossa Grande Mãe Terra, Ela reterá Suas bênçãos e não mais proverá nossa subsistência.

Ayla e Jondalar montaram os cavalos, acenaram e disseram os últimos adeuses. A maioria do acampamento viera lhes desejar boa viagem. Quando começaram a se afastar, Ayla continuou procurando uma última pessoa. Mas Ranec já se tinha despedido e não poderia enfrentar mais um adeus em público.

Finalmente, Ayla o viu, quando começaram a descer a trilha, de pé, sozinho. Com grande peso no coração, ela parou e acenou para ele.

Ranec acenou também, mas em sua outra mão segurava, apertado contra o peito, um pedaço de marfim esculpido na forma de uma figura transcendente de mulher-ave. Em cada entalhe esculpido, em cada linha gravada, ele havia cinzelado amorosamente cada esperança de sua alma estética e sensível. Ele a fizera para Ayla, esperando que iria seduzi-la para a sua fogueira, como havia esperado que seus olhos sorridentes e espírito brilhante a seduzissem para o seu coração. Mas, quando o artista de grande talento e encanto e riso observou a mulher que amava afastar-se a cavalo, nenhum sorriso embelezava-lhe o rosto, e os olhos negros, risonhos, estavam cheios de lágrimas.

 

 

                                                                                                    J. M. Auel

 

 

 

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