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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS CÃES DA GUERRA / Frederick Forsyth
OS CÃES DA GUERRA / Frederick Forsyth

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

OS CÃES DA GUERRA Frederick Forsyth
O cheiro a pólvora, a exaltação arrebatadora da batalha, a liberdade de escolher o local da luta - eis a razão da existência para “Cat” Shannon. Pois
Shannon era um mercenário. Na sua obscura profissão, eivada de perigos, os homens combatem a soldo por povos e causas que os atraem. O plano
concebido por Sir James Manson atraiu Shannon.
Somente um magnata venal como Sir James poderia ter concebido semelhante plano, e apenas um homem com os conhecimentos e a audácia de Shannon poderia levá-lo a cabo. Shannon dispunha de cem dias.
  Cem dias para se apoderar de uma república.
  A acção deste fascinante romance e Forsyth desenrola-se a uma velocidade vertiginosa  decorre tanto nas capitais financeiras da Europa como no coração da África, apresentando um surpreendente e apaixonante desenlace.

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PRIMEIRA PARTE
A Montanha de Cristal
CAPÍTULO UM
NAQUELA noite não brilhavam estrelas nem luar sobre a pista de
aterragem do mato; apenas o negrume da África Ocidental envolvia,
como veludo tépido e húmido, os grupos dispersos. Os homens rezavam para que o manto de nuvens que se estendia sobre as copas
das árvores se mantivesse, a fim de os proteger dos bombardeiros.
  No fim da pista, o velho DC-4, que aterrara orientado pelas
luzes de sinalização, as quais apenas haviam permanecido acesas
durante quinze segundos, virou e avançou ruidosamente às cegas,
em direcção às cubatas de telhados de folhas de palmeira.
  Entre duas das cubatas, cinco brancos, encolhidos num Landõ-Rover, observavam atenta e silenciosamente os recém-chegados
inesperados. O mesmo pensamento ocupava o espírito destes homens: se não fugissem daquele enclave em desagregação antes que
as forças federais percorressem os poucos quilómetros que as distanciavam deles, não sairiam desse refúgio vivos. Constituíam o
último grupo de mercenários que combatera pela parte vencida.
  O piloto deteve o avião a vinte metros de um Constellation que
já se encontrava na pista e saltou em terra. Um africano foi ao seu
encontro. Após trocarem algumas palavras em voz baixa, dirigiram-se ambos para um grupo de homens que estava junto à orla do
palmar. O grupo deu-lhes passagem até que o piloto ficou frente a frente com o indivíduo que se encontrava ao centro. O piloto reconheceu nele o homem que viera procurar.
  - Sou o capitão Van Cleef - apresentou-se em inglês, com
sotaque africânder.
  O africano assentiu, e a barba roçou-lhe a frente do uniforme camuflado.
  - Noite perigosa para voar, capitão - observou secamente -,
e um pouco tarde para trazer mais provisões. Ou veio talvez por
causa das crianças?
  A sua voz era profunda e arrastada e o seu sotaque mais próprio
de um homem educado num colégio inglês - o que de facto acontecera - do que de um africano.
  - Vim buscá-lo a si. Se quiser ir, evidentemente.
  - Compreendo. Foi o seu governo que o mandou?
  - Não - respondeu Van Cleef. - A ideia foi minha.
  O africano assentiu lentamente com a cabeça.
  - Estou-lhe muito grato. Deve ter sido um voo difícil. Mas
tenho o meu próprio transporte, o Constellation, que espero me leve
para o exílio.
  Van Cleef sentiu-se aliviado. Não imaginava o que lhe estaria
reservado se regressasse a Libreville com o general.
  - Espero até que levante voo e parta - disse. Embora lhe apetecesse apertar a mão ao general, como não sabia se o deveria fazer,
virou as costas e regressou ao seu avião.
  - Porque fará um africânder uma coisa destas, meu general? - perguntou um dos negros, rompendo um prolongado silêncio.
  - Parece-me que nunca o saberemos - respondeu o general
com um breve sorriso, enquanto acendia um cigarro; a chama bruxuleante iluminou distintamente um rosto conhecido em meio Mundo.
  No limiar de um exílio que sabia de antemão solitário e humilhante, o general conservava a sua autoridade. Durante dois anos e
meio, e por vezes exclusivamente devido à sua forte personalidade,
mantivera unidos milhões dos seus compatriotas - acossados, sitiados, famintos, mas indomáveis. Embora os seus inimigos lhe tivessem contestado a autoridade, poucos dos que ali tinham estado
alimentavam dúvidas sobre ela. Mesmo depois de derrotado, quando o seu automóvel atravessara a última aldeia antes da pista de
aviação, os aldeãos tinham-se postado ao longo da estrada enlameada para proclamarem a sua lealdade. Este homem que o Governo
Federal queria ver morto ia partir agora porque o seu povo receava
que as represálias fossem muito mais violentas se ficasse.
  A seu lado, e dominado pela elevada estatura do general, encontrava-se o seu confidente, o Dr. Okoye. O professor decidira permanecer na zona, oculto no mato, até a primeira vaga de represálias
terminar. Os dois homens haviam combinado deixar passar pelo
menos seis meses antes de tentarem estabelecer qualquer contacto
entre si.
  Os mercenários brancos do Land-Rover seguiram com o olhar o
piloto que regressava ao avião.
  - Deve ser o sul-africano - observou o comandante, que se
encontrava sentado ao lado do motorista, um jovem negro com gales de tenente; depois voltou-se para um dos quatro homens da
retaguarda e acrescentou: - Janni, vai perguntar-lhe se arranja lugar para nós.
  Um homem alto e ossudo, com uniforme camuflado, desceu da
retaguarda do veículo e ajustou o barrete.
  - Trata de o convencer, hem? - insistiu o comandante. - Se
não nos escapamos daqui arriscamo-nos a ser feitos em pedaços.
  Janni encaminhou-se para o DC-4, sem que o capitão Van Cleef
o ouvisse aproximar-se.
  - Naand, meneer.
  O piloto virou-se rapidamente ao ouvir as palavras em africânder. Depois de avaliar a estatura do seu interlocutor e de reparar no
emblema com uma caveira e duas tíbias cruzadas que o mesmo ostentava no ombro esquerdo, perguntou, cauteloso:
  - Naand. Jy afrikaans?
  O homem fez um gesto de assentimento e disse, estendendo a
mão:
  - Jan Dupree. Waar gaan-jy nou?
  - Vou para Libreville logo que eles acabem de carregar. E você?
  - Eu e os meus companheiros estamos um pouco embaraçados
- respondeu Janni, sorrindo. - Se os federais nos apanham, liquidam-nos de certeza. Pode ajudar-nos a sair daqui?
  - Quantos são? - perguntou Van Cleef.
  - Cinco, ao todo.
  Como mercenário que era, Van Cleef não hesitou:
  - Embarquem, mas despachem-se. Assim que o Constellation
descolar, descolamos também.
  Dupree agradeceu com uma inclinação de cabeça e regressou
rapidamente ao Land-Rover.
  - Está tudo arranjado, mas temos de ir para bordo.
  - Óptimo. Deixem a “ferramenta” lá atrás. - O comandante
virou-se para o oficial negro sentado ao volante e acrescentou:
-Temos de nos ir embora, Patrick. Leve o Land-Rover e abandone-o, enterre as armas e assinale o lugar. Depois vá para o mato.
Não continue a combater. Compreendeu?
  O jovem,tenente aquiesceu sombriamente com a cabeça.
  - Lamento, mas acabou-se, Patrick - acrescentou o mercenário afavelmente.
  - Talvez - murmurou o tenente, inclinando a cabeça na direcção do Constellation, onde o general e os seus acompanhantes se
despediam. - Mas enquanto ele viver nós não o esqueceremos. Ele
parte apenas por uma questão de segurança, mas continua a ser o
chefe. Calamo-nos, mas não esquecemos.
  Quando o Land-Rover se virou e começou a, afastar-se, os mercenários brancos despediram-se e dirigiram-se para o DC-4.
  O comandante preparava-se para os seguir quando do mato surgiram duas freiras de mantos esvoaçantes que chamaram:
  - Major!
  O mercenário virou-se e reconheceu numa delas a enfermeira-chefe de um hospital que ajudara a evacuar alguns meses antes.
  - Irmã Mary Joseph! Que está a fazer aqui?
  Ela começou a falar ansiosamente, agarrando-se-lhe à manga.
  Ele assentiu.
  - Vou tentar. É tudo o que posso fazer.
  Afastou-se, falou com o piloto sul-africano e regressou depois
para junto das freiras.
  - Ele disse que sim, mas têm de se apressar, irmã.
  - Deus o abençoe - agradeceu a irmã Mary Joseph, e deu
instruções rápidas à companheira. que correu para a retaguarda do
avião e subiu os degraus de acesso à porta dos passageiros.
  A irmã Mary Joseph embrenhou-se de novo, apressadamente, no
palmar, de onde em breve surgiu uma fila de homens, cada um dos
quais sobraçando uma trouxa, a qual entregavam à jovem freira que
já se encontrava no DC-4. O co-piloto observou-a a depositar as três
primeiras trouxas, lado a lado, no interior do avião, após o que,
resmungando, começou a ajudá-a.
  - Deus o abençoe - murmurou a jovem freira.
  Uma das trouxas verteu um líquido que se depositou na manga
do co-piloto.
  - Raios o partam! - praguejou o homem, que, no entanto,
continuou a trabalhar.
  Ao ficar só, o comandante dos mercenários encaminhou-se para
o Constellation, cuja escada o general subia.
  - Vem aí o major Shannon - avisou alguém.
  O general virou-se, conseguindo esboçar um sorriso.
  - Então, Shannon, quer vir?
  Shannon fez a continência, que o general retribuiu, e respondeu:
  - Não, meu general, obrigado. Temos transporte. Queria des  pedir-me.
  - Sim ... creio que se acabou. Pelo menos por alguns anos.
  Custa-me a acreditar que o meu povo esteja condenado a viver sem  pre escravizado. A propósito, pagaram-lhes como previa o contrato'?
  - Pagaram sim, obrigado. Temos todas as contas em dia.
  - Bem, então adeus. Agradeço-lhes tudo quanto conseguiram
fazer. - O africano estendeu a mão, que Shannon apertou.
  - Estivemos a conversar, os rapazes e eu - disse Shannon. - Se ... se alguma vez precisar de nós, vimos todos, meu general.
  - Esta noite está cheia de surpresas - observou calmamente o
general. - Metade dos meus principais conselheiros e todos os ricos estão a atravessar a fronteira para caírem nas boas graças do
inimigo. Obrigado pela sua oferta, Mr. Shannon. Que vão agora os
mercenários fazer?
  - Temos de procurar outro trabalho.
  - Outro combate, major Shannon?
  - Outro combate, meu general.
  O general riu calmamente.
  - “Gritai: 'Destruir!', e soltai os cães da guerra” - murmurou.
  - Como, meu general?
  - É um excerto de Shakespeare, Mr. Shannon. Bem, tenho de
ir; o piloto está à espera. Mais uma vez adeus, e boa sorte.
  Shannon recuou um passo e fez uma última continência.
  - Boa sorte também para si - respondeu, e acrescentou, quase
como se falasse consigo próprio: - Bem precisará dela.
  Quando Shannon subiu para o DC-4, Van Cleef ligara já os
motores. Logo que o Constellation desapareceu por entre as nuvens,
aquele levantou voo. Na hora que se seguiu à descolagem, Van
Cleef conservou o cockpit às escuras, enquanto se esgueirava por
entre os bancos de nuvens a fim de tentar escapar à luz do luar que
o denunciaria a algum Mig desgarrado. Só quando já se encontrava
muito distanciado consentiu que se acendessem as luzes.
  Nas suas costas iluminou-se então um estranho espectáculo. O
piso do aparelho apresentava-se juncado de cobertores empapados.
O seu conteúdo esperneava em filas, de ambos os lados do espaço
destinado à carga; quarenta bebés, mirrados, enfezados, deformados
pela subnutrição, entre os quais as freiras se moviam. Os mercenários lançaram um olhar para os seus companheiros de viagem. Não
era a primeira vez que contemplavam semelhante espectáculo. No
Congo, no Iémen, no Catanga, no Sudão ... Sempre o mesmo drama, sempre as crianças esfomeadas.
  As luzes da cabina permitiram-lhes ver-se uns aos outros nitidamente, pela primeira vez desde o pôr do Sol. As suas fardas estavam manchadas de suor e terra vermelha e os seus rostos apresentavam-se tensos de fadiga.
  O comandante estava encostado a uma das paredes da cabina.
Carlo Alfred Thomas Shannon tinha trinta e três anos e usava o
cabelo louro mal cortado, em escova. Embora tivesse nascido no
condado de Tyrone, no Ulster, “Cat” Shannon frequentara um colégio em Inglatena, tendo perdido o sotaque característico da Irlanda
do Norte. Prestara serviço nos Fuzileiros Reais antes de se alistar
como mercenário no S.o Comando de Mike Hoare, em Stanleyville.
Vira Hoare partir e seguidamente juntara-se a Robert Denard. Dois
anos mais tarde, participara na rebelião de Stanleyville e acompanhara “Black Jack” Schramme na longa marcha para Bukavu. Após
ser repatriado pela Cruz Vermelha, oferecera-se como voluntário
para outra guerra africana justamente a que acabava de terminar e
na qual assumira o comando do seu próprio batalhão.
  Enquanto o DC-4 avançava, Shannon meditava no ano e meio
decorrido. Era-lhe mais difícil pensar no futuro, pois não imaginava
sequer onde encontraria o próximo emprego.
  À sua esquerda sentava-se um indivíduo que era considerado o
melhor lançador de morteiros a norte do Zambeze. De nome Jan
Dupree, tinha vinte e oito anos e nascera em Paarl, na província do
Cabo, África do Sul.
  Ao lado de Jan estirava-se Marc Vlaminck, o Pequeno Marc,
assim alcunhado devido à sua enorme corpulência. Flamengo de
Ostende, media um metro e noventa, de meias, quando as usava, e
pesava cento e quinze quilos. Era o tenor da Polícia de Ostende,
que se afirmava capaz de reconhecer um bar onde o Pequeno Marc
tivesse actuado pelo número de operários que eram necessários para
reparar os estragos. Marc era utilíssimo quando munido de uma
bazuca, que manejava com destreza exímia.
  Em face deles sentava-se Jean-Baptiste Langarotti, um corso baixo, magro e de pele cor de azeitona. A França mobilizara-o aos
dezoito anos para combater na Guerra da Argélia. Aos vinte e dois
batia-se do lado dos Argelinos e, após o malogro da insurreição de
1961, passara três anos na clandestinidade. Por fim, fora recapturado e passara, quatro anos nas prisões francesas. Era um prisioneiro
indisciplinado, como o comprovavam as marcas deixadas em dois guardas, que as conservariam até à morte. Em 1968, foi posto em
liberdade. Apenas temia a claustrofobia.
  Embarcara num avião para África, participara noutra guerra e
alistara-se no batalhão de Shannon. Adquirira também o hábito de
se treinar continuamente com a faca, que aprendera a manejar em
rapaz. Trazia no pulso esquerdo uma larga tira de couro para afiar
navalhas, fixada por duas molas. Nos
momentos de ociosidade, retirava-a,
virava-a e enrolava-a no punho. Durante toda a viagem para Libreville, a
lâmina de quinze centímetros moveu-se para trás e para diante no afiador.
  Ao lado de Langarotti seguia o elemento mais velho do grupo: Kurt
Semmler, um alemão de quarenta anos, autor do desenho da insígnia
com o crânio e as tíbias cruzadas, usada pela unidade de Shannon. Fora
também Semmler quem limpara de soldados federais um sector de oito
quilómetros, cuja linha da frente delimitou com estacas coroadas com as
cabeças dos inimigos mortos no dia
anterior. Durante o mês que se seguira a esta proeza, o seu sector fora o
mais calmo da campanha.
  Graduado da Juventude Hitleriana, Kurt fugira e, aos dezassete anos,
juntara-se à Legião Estrangeira Francesa. Oito anos depois, era
primeiro-sargento no 1.o Regimento Estrangeiro de Pára-Quedistas,
unidade de élite. Combatera na Indochina e na Argélia sob as ordens de um dos poucos homens que jamais respeitara, o lendário
comandante Le Bras. Após a independência da Argélia, associara-se
a um antigo camarada numa operação de contrabando no Mediterrâneo, tornara-se navegador experimentado e fizera fortuna, que perdera, atraiçoado pelo sócio. Esta a razão por que comprara uma
passagem para África, onde eclodira uma nova guerra, da qual tivera conhecimento pelos jornais, e fora contratado por Shannon.
  Faltavam ainda duas horas para amanhecer quando o DC-4 começou a sobrevoar o aeroporto. Acima do choro das crianças sobressaía o assobio de um homem. Era Shannon. Os companheiros
sabiam que ele assobiava sempre que entrava em combate ou quando o mesmo terminava. E assobiava sempre a mesma melodia, Spanish Harlem.
  Quando o DC-4 aterrou e se deteve no final da pista, aproximou-se um jeep com dois oficiais franceses, que fizeram sinal a
Van Cleef para os seguir até junto de um aglomerado de barracas,
no extremo do aeroporto. Decorridos segundos, assomou à porta do
avião o quépi de um oficial, cujo nariz, sob a pala, se franziu quando sentiu o mau cheiro. O oficial pediu aos mercenários que o
acompanhassem. Logo que estes desceram a escada, o DC-4 seguiu
para os edifícios principais onde as crianças eram aguardadas por
enfermeiras e médicos da Cruz Vermelha.
  Os cinco mercenários esperaram uma hora, sentados em cadeiras
desconfortáveis, numa das barracas, até que finalmente a porta se
abriu dando passagem a um oficial superior, de rosto duro e bronzeado, envergando um uniforme tropical castanho-amarelado, cuja
pala do quépi era debruada a dourado. Reparando nos olhos vivos e
irrequietos, nas tiras assinalando o número de campanhas feitas e no
salto de Semmler, que se perfilou em sentido, Shannon não necessitou de mais para saber que o visitante era o célebre Le Bras em
pessoa, comandante da Garde Républicaine da República do Gabão.
  Le Bras apertou a mão a cada um deles, sorriu e conversou por
momentos com Semmler, dirigindo-se depois a todos:
  - Vou mandá-los instalar confortavelmente. Tenho a certeza de
que vão gostar de tomar banho comer qualquer coisa e vestirem-se
à civil. Mas não podem sair das vossas instalações até podermos
transferi-los de avião para Paris. Há muitos jornalistas na cidade e é
necessário evitar qualquer contacto com eles.
  Uma hora depois, os homens encontravam-se confortavelmente
alojados no último andar do Hotel Gamba, onde permaneceram durante quatro semanas, esperando que o interesse da imprensa pelas
suas pessoas diminuísse. Até que uma noite receberam a visita de
um capitão do estado-maior do comandante Le Bras.
  - Messieurs, trago-lhes notícias. Partem esta noite de avião
para Paris, no voo das vinte e três e trinta da Air Afrique.
  Os cinco homens, naquele momento já terrivelmente aborrecidos, animaram-se.
  Pouco antes das dez horas da manhã do dia seguinte, chegavam
ao Aeroporto de Le Bourget e trocavam as suas despedidas. Dupree
  seguiria para a Cidade do Cabo, Semmler regressaria a Munique,
  Vlaminck a Ostende e Langarotti a Marselha.
  Combinaram manter-se em contacto e olharam Shannon. Este
era o seu chefe, a quem competia arranjar novo trabalho, outro contrato, outra guerra.
  - Vou ficar algum tempo em Paris - declarou Shannon. - Há
maiores probabilidades de arranjar trabalho aqui do que em Londres.
  Trocaram mutuamente as moradas - a posta-restante ou cafés
cujo barman se encarregaria de lhes transmitir as mensagens - e
cada um seguiu o seu caminho.
  Quando saiu do terminal, Shannon ouviu uma voz que o chamava pelo nome, em tom pouco amistoso. Voltou-se e franziu o sobrolho quando se Lhe deparou o homem que o interpelava.
  - Roux - murmurou.
  - Com que então, voltaste, Shannon - rosnou o francês.
  - Pois voltei.
  - Um conselho: não fiques por cá. Esta cidade é minha. Se
houver algum contrato a fazer aqui, sou eu que o faço. E também
sou eu que escolho a equipa.
  Como resposta, Shannon dirigiu-se para o táxi mais próximo e
atirou o saco para o banco da retaguarda. Roux seguiu-o, o rosto
rubro de cólera.
  - Ouve, Shannon, estou a avisar-te ...
  O irlandês voltou-se para ele:
  - Ouve-me tu, Roux. Vou ficar em Paris enquanto me apetecer. Nunca me meteste medo no Congo, e agora também não metes.
Por isso ... vai-te lixar.
CAPÍTULO DOIS
NAQUELA tarde de meados de Fevereiro, Sir James Manson, presidente do conselho de administração e director da Manson Consolidated Mining Company Limited, recostado numa cadeira de couro
no seu luxuoso gabinete, no décimo andar, estudava o relatório que
tinha sobre a secretária, assinado pelo Dr. Gordon Chalmers, chefe
do Departamento de Pesquisas da ManCon. Tratava-se do resultado
da análise feita às amostras de rocha que Jack Mulrooney trouxera
da República Africana de Zangaro, três semanas antes.
  O Dr. Chalmers não esbanjava palavras. Mulrooney encontrara
uma montanha com cerca de quinhentos e cinquenta metros de altura e quase mil metros de diâmetro de base, designada pelo nome de
Montanha de Cristal, que se erguia a uma ligeira distância de uma
cordilheira com o mesmo nome. Regressara com tonelada e meia de
rocha cinzenta, sulcada por veios de quartzo e cascalho dos leitos
dos rios que circundavam o monte. Os veios de quartzo, com pouco
mais de um centímetro de espessura, continham pequenas quantidades de estanho. Mas era a rocha em si que despertava interesse. Os
resultados de repetidas e diversas análises indicavam que tanto a
rocha como o cascalho continham avultadas quantidades de platina,
patente em todas as amostras e distribuída com bastante regularidade. Enquanto as concentrações da rocha de mais rico teor em platina
conhecida no Mundo atingiam cerca de 0,25, ou seja um quarto de
onça troy 1 por tonelada de rocha, a concentração média das amostras de Mulrooney era de 0,81.
  Sir James sabia que o preço de mercado da platina, de cento e
trinta dólares por onça troy, dada a crescente procura mundial desse
minério, teria de subir para cento e cinquenta ou mesmo duzentos
dólares. Fez alguns cálculos: a montanha continha provavelmente
duzentos e cinquenta milhões de metros cúbicos de rocha; a duas
toneladas por metro cúbico, pesaria cerca de quinhentos milhões de
toneladas, o que, tendo por base um rendimento mínimo de meia
onça por tonelada de rocha, representaria duzentos e cinquenta milhões de onças. Ainda que a descoberta de uma nova fonte mundial
de platina fizesse descer o preço deste metal para noventa dólares a
onça, e supondo que a inacessibilidade do local elevasse os custos
de extracção e refinação para cinquenta dólares a onça, o lucro atingiria ainda os ..
  Sir James Manson recostou-se na cadeira e assobiou baixinho.
  - Meu Deus! Uma montanha de dez mil milhões de dólares!

  O preço da platina é controlado por dois factores: a sua necessidade em determinados processos industriais e a sua raridade. A produção total mundial, independentemente da que é secretamente
armazenada como reserva, ultrapassa anualmente milhão e meio de
onças troy e procede, na sua maior parte, de três fontes: África do
Sul, Canadá e União Soviética, embora este último país não coopere
com o grupo. Enquanto os produtores de platina gostariam de manter o preço mundial relativamente estável, a fim de poderem planear
investimentos a longo prazo em novas minas e com novo equipamento, seguros de que uma repentina e importante aparição de metal não arruinaria o mercado, os Soviéticos, mediante o armazenamento de quantidades desconhecidas de metal, que podem lançar a
qualquer momento no mercado, mantêm este em tensão permanente.
  Embora não negociasse com platina quando recebeu o relatório
de Chalmers, James Manson estava ao corrente da situação mundial
no que se referia a este metal e conhecia também os motivos por
que algumas empresas estavam a comprar platina à África do Sul:
em meados da década de 1970, a América necessitaria de platina em
quantidades muito superiores às que o Canadá lhe poderia fornecer.
Como era pouco provável que, antes de 1980, fosse possível dotar
os automóveis de um sistema de escape de gases que utilizasse um
metal menos oneroso, existiam fortes probabilidades de todos os
carros americanos virem em breve a carecer de uma quantidade de
platina pura totalizando talvez um milhão e meio de onças por ano
- isto é, a produção regular mundial de platina teria de duplicar.
os Americanos não saberiam onde ir buscar a platina, mas James
Manson começava a alimentar a esperança de ele próprio poder vir a
ser capaz de fornecê-la. E com a procura mundial a ultrapassar de
longe a produção, poderia pedir um preço francamente interessante.
  Havia apenas um problema. Precisava de estar absolutamente
certo de que apenas ele deteria, com exclusividade, todos os direitos
de exploração mineira da Montanha de Cristal. Necessitava de saber
como o conseguir.
  O processo normal seria mostrar ao presidente da república o
relatório das análises efectuadas e propor-lhe um contrato segundo o
qual a ManCon asseguraria os direitos de exploração, o Governo
beneficiaria de uma cláusula de. participação nos lucros que iriam
atestar os cofres do Estado e o presidente de uma quantia significativa que seria regularmente depositada na sua conta num banco suíço.
  Se, porém, suspeitassem do que existia no interior da Montanha
de Cristal, três países, mais do que todos os outros, pretenderiam
adquirir o controle da exploração: a África do Sul, o Canadá e sobretudo a Rússia, pois o aparecimento no mercado mundial de uma
nova e abundante fonte de fornecimento confinaria a produção soviética ao nível do supérfluo.
  Manson já ouvira o nome de Zangaro, mas ignorava tudo sobre
o país. Premiu um botão do intercomunicador.
  - Miss Cooke, quer fazer o favor de vir aqui?
  Miss Cooke, sobriamente vestida, eficiente e severa, entrou no
gabinete de Manson.
  - Miss Cooke, chegou ao meu conhecimento que, recentemente, efectuámos uma pequena pesquisa em África, em Zangaro.
  - Efectuámos, sim, Sir James
  - Ah, sabe do que se passa! Óptimo. Agradecia-Lhe que averiguasse quem obteve a autorização desse Governo para efectuarmos
a pesquisa.
  - Foi Mr. Bryant, Sir James. Richard Bryant, da Secção de
' A onça troy equivale a cerca de 32 g. (N. do E.)
Contratos Intercontinentais. - Miss Cooke jamais esquecia o que
tivesse ouvido uma vez.
  - Terá apresentado algum relatório? - indagou Sir James.
  - Sim,'certamente, como é normal na companhia.
  - É capaz de mo mandar, Miss Cooke?
  O relatório de Richard Bryant, datado de seis meses antes, indicava que este se deslocara de avião a Clarence, capital de Zangaro,
onde tivera uma entrevista com o ministro dos Recursos Naturais.
Depois de longa discussão sobre a gratificação pessoal do ministro,
haviam acordado que um único representante da ManCon poderia efectuar uma prospecção, em busca de minério, na Montanha de Cristal.
  E era tudo. A única indicação sobre o país reduzia-se à referência a uma “gratificação pessoal” a um ministro corrupto.
  Quando acabou de ler o relatório, Manson premiu de novo o
intercomunicador:
  - Miss Cooke, é capaz de pedir a Mr. Bryant que venha falar
comigo? - Premiu outro botão e chamou: -Martin, por favor venha cá acima.
  Decorridos dois minutos, Martin Thorpe, cujo gabinete se situava no andar inferior aparecia no de Manson. Thorpe não aparentava
ser o jovem perito financeiro dotado de uma capacidade invulgar,
protege de um dos mais inflexíveis empreendedores de uma indústria tradicionalmente inflexível. Assemelhava-se mais ao capitão da
equipa de râguebi de um bom colégio - simpático, jovem e bem
parecido. Thorpe não frequentara um bom colégio e nada sabia,
nem pretendia saber, sobre jogos desportivos, mas era capaz de fixar mentalmente, ao longo do dia, as cotações alcançadas, a cada
hora, pelas acções das numerosas companhias subsidiárias da ManCon. Aos vinte e nove anos tinha ambições e a intenção de as realizar. A sua lealdade para com Manson baseava-se no seu ordenado
excepcionalmente elevado e na certeza de que a sua posição dentro
da companhia lhe permitiria reconhecer e aproveitar aquilo a que
chamava “a grande oportunidade,?.
  Quanto Thorpe entrou no seu gabinete, Sir James já guardara o
relatório de Chalmers e só tinha à sua frente o de Bryant.
  - Martin, tenho um trabalho para ser feito depressa e com discrição. Deve ocupá-lo metade da noite. - Não perguntou se Thorpe
tinha algum compromisso.
  - Está bem, Sir James. Posso cancelar com um telefonema o
que tenho combinado para esta noite.
  - Muito bem. Acabo de reparar neste relatório. Há seis meses,
Bryant, dos Contratos Intercontinentais, foi enviado a um lugar
chamado Zangaro e conseguiu autorização para procurarmos possíveis depósitos de minério numa cordilheira chamada Montanhas de
Cristal. Pretendo saber se esta prospecção já foi mencionada no
conselho de direcção. Vai ter de procurar nas actas. Se descobrir
alguma referência ao assunto subordinada ao título “Outras operações”, confira os documentos de todas as reuniões do conselho de
direcção dos últimos doze meses. Quero saber quem autorizou a
viagem do Bryant e quem mandou o engenheiro prospector, um indivíduo chamado Mulrooney. Quero também saber o que há na Secção de Pessoal sobre Mulrooney. Percebeu?
  - Percebi, Sir James. Mas Miss Cooke podia fazer isso em
meia ...
  - Pois podia. Mas eu quero que seja você a fazê-lo. Se o virem
consultar documentos da sala de reuniões ou nos ficheiros do pessoal, pensarão que se trata de qualquer assunto relacionado com
finanças, e portanto a operação mantém-se secreta.
  Martin Thorpe começou a compreender.
  - Quer dizer ... quer dizer que encontraram lá alguma coisa,
Sir James?
  - Não se preocupe com isso - resmungou Sir James. - Faça
o que lhe disse e mais nada.
  Martin Thorpe sorria quando saiu. “Raposa manhosa", pensou.
  - Está aqui Mr. Bryant, Sir James - anunciou Miss Cooke.
  Sorridente, Sir James avançou ao encontro do seu empregado.
  - Entre, Bryant. Sente-se - e indicou-lhe uma poltrona. Interrogando-se sobre os motivos que teriam levado Manson a chamá-lo,
mas tranquilizado com o tom cordial do patrão, Bryant deixou-se
afundar nas almofadas de camurça. - Uma bebida, Bryant? Espero
que não seja cedo para si.
  - Obrigado, Sir James. Whiskey, por favor.
  - Assim é que é! É o meu veneno favorito também, e por isso
faço-lhe companhia.
  Bryant, que se lembrava de uma festa no escritório em que Sir
James passara a noite a beber whiskey, constatava agora, enquanto o
patrão servia para dois o seu Glenlivet especial,.que a observação de
pormenores desse género se revelava sempre útil.
  - Com água ou soda?
  - É um whiskey velho, Sir James? Então puro, por favor.
  Ergueram os copos e depois saborearam a bebida.
  - Estive a dar uma olhadela a uma série de relatórios antigos e
encontrei um dos seus. O que fez acerca .. - como se chama a
terra? - ... acerca de Zangaro.
  - Ah, sim, Zangaro! Foi há seis meses.
  - E você viu-se atrapalhado com o camarada ministro.
  - Mas consegui a licença para a prospecção - redarguiu
Bryant, sorrindo ao recordar essa missão.
  - Isso é um facto! - Sir James sorriu. - Costumava fazer
essas coisas nos meus velhos tempos. Invejo os jovens como você,
que vão por aí fora arranjar contratos à maneira antiga. Fale-me do
caso. Zangaro é uma terra difícil?
  As sombras ocultavam-Lhe a cabeça recostada para trás, e Bryant
sentia-se demasiado confortável para prestar atenção à expressão
concentrada do seu interlocutor.
  - Muito difícil, Sir James. Uma ruína, e nitidamente em regressão desde a independência, há cinco anos. - E recordou outra
frase que já ouvira ao patrão: - A maioria dessas novas repúblicas
criou grupos de poder cuja actuação nem sequer os qualificaria para
dirigirem uma lixeira municipal.
  Sir James, suficientemente hábil para reconhecer um eco das
suas próprias palavras, sorriu novamente.
  - Mas então quem dirige por lá as coisas?
  - O presidente ... ou melhor, o ditador. Um homem chamado
Jean Kimba. Venceu as primeiras e únicas eleições, segundo algumas opiniões por meio do terrorismo e do voodoo. A maioria dos
eleitores não sabia sequer o que era votar, e agora também já não
precisa de saber.
  - É um tipo duro, esse Kimba? - inquiriu Sir James.
  - Não tâo duro como doido varrido. Um megalómano furioso,
rodeado de políticos bajuladores. Se discordam dele, vão parar às
antigas celas da Polícia Colonial. Consta que o próprio Kimba dirige pessoalmente a tortura. Nunca ninguém saiu de lá vivo.
  - Em que mundo vivemos, Bryant! E na Assembleia Geral da
ONU o voto dessa gente vale tanto como o da Inglaterra ou da
América. Quem são os conselheiros de Kimba?
  - Ninguém do seu próprio povo. Ele afirma que é guiado por
vozes divinas e o povo crê que ele possui um feitiço poderoso.
Mantém as pessoas num terror servil.
  - E as embaixadas estrangeiras?
  - Bem, à excepção dos Russos, estão todos tão aterrorizados
por este maníaco como o seu próprio povo. Os Soviéticos mantêm
lá uma importante embaixada. Zangaro vende a maioria dos seus
produtos a traineiras soviéticas e a maior parte do lucro das vendas
vai para o bolso de Kimba. Claro que as traineiras são navios espies electrónicos ou barcos de abastecimento para submarinos.
  - Portanto, os Russos são poderosos nesse país? Mais um
whiskey, Bryant?
  - Pois não, Sir James - respondeu Bryant, aceitando outro
glenlivet. - Kimba consulta-os sobre problemas de política externa. Um negociante que conheci no hotel disse-me que o embaixador
ou um conselheiro soviético iam quase todos os dias ao palácio.
  Manson já sabia o que pretendia. Quando Bryant acabou o seu
whiskey, acompanhou-o à porta com a mesma delicadeza com que o
recebera. Às cinco e vinte chamou Miss Cooke:
  - Temos ao nosso serviço um engenheiro chamado Jack Mulrooney. Gostava de falar com ele amanhã, às dez horas. E queria
aqui o Dr. Gordon Chalmers ao meio-dia. Arranje-me tempo para
convidá-lo para almoçar. Marque uma mesa no Wilton's. Agora não
quero mais nada, obrigado, a não ser o meu carro à porta daqui a
dez minutos.
  Quando Miss Cooke saiu, Manson premiu outro botão e murmurou: - Pode cá vir num instante, Simon?
  Simon Endean provinha de uma família socialmente elevada, era
inteligente e bem educado, mas tinha os valores morais de um rufião. Era o homem ideal para servir um Manson. As suas ambições
eram apenas um pouco mais modestas do que as de Thorpe. De
momento, bastava-lhe a sombra de Manson. Era o suficiente para
lhe permitir pagar o andar luxuoso, o Corvette e as amigas.
  - Chamou-me, Sir James?
  - Simon, amanhã almoço com um tipo chamado Gordon
Chalmers, director do laboratório de Watford. Quero informações
completas a seu respeito. A ficha pessoal, evidentemente, e tudo o
mais que consiga averiguar. Como é a sua vida doméstica, se tem
alguns fracos ... e sobretudo se tem necessidade urgente de dinheiro
para além do seu ordenado. Telefone-me para aqui amanhã, o mais
tardar ao meio-dia menos um quarto.
  Sir James nunca enfrentava um homem, amigo ou inimigo, sem
estar completamente informado a seu respeito. Conseguira submeter
diversos adversários utilizando este processo.
  Quando o seu Rolls-Royce se afastou do Edifício ManCon, Sir
James recostou-se no assento, acendeu o primeiro charuto da noite e recebeu das mãos do motorista a última edição do Evening Standard.
  Ao passarem frente à estação de Charing Cross, um parágrafo
despertou-lhe a atenção. Enquanto fixava as letras, começou a germinar-lhe uma ideia no espírito. Qualquer outro homem tê-la-ia
abandonado. Manson, porém, era um pirata do século xx e sentia
orgulho por esse facto. O parágrafo referia-se não a Zangaro, mas a
uma república africana igualmente obscura. O título anunciava:
NOVO GOLPE?DE ESTADO NUM PAÍS AFRICANO.

CAPÍTULO TRÊS
QUANDO chegou ao escritório, às nove e cinco, Manson era aguardado, na antecâmara do seu gabinete, por Martin Thorpe.
  - Que descobriu'? - perguntou-lhe Sir James, enquanto pendurava o sobretudo.
  Thorpe abriu um livro de apontamentos e respondeu-lhe:
  - Há um ano enviámos uma equipa de prospecção a uma república situada a norte de Zangaro. Foi acompanhada por uma unidade
de reconhecimento aéreo, que contratámos por intermédio de uma
firma francesa. Um dia, ao soprar um vento de feição mais forte do
que o previsto, o piloto sobrevoou várias vezes, em ambos os sentidos, toda a faixa abrangida pelo reconhecimento aéreo. Só quando o
filme foi revelado se verificou que em todos os voos realizados a
favor do vento o avião penetrara mais de sessenta quilómetros no
interior de Zangaro.
  - Quem se apercebeu disso primeiro? A companhia francesa?
- perguntou Manson.
  - Não, Sir James. Os franceses limitaram-se a revelar o filme.
Só depois, um tipo inteligente da nossa equipa, ao examinar com
atenção as fotografias, notou uma área montanhosa que apresentava
um tipo e densidade de vegetação diferentes. Um daqueles pormenores que é impossível notar no solo, mas que uma fotografia aérea
revela.
  - Sei como é - resmungou Sir James. - Continue.
  - A ampliação das fotografias que o tipo enviou à Secção de
Geofotografia confirmou a existência de vida vegetal diferente
numa área onde existia um monte com cerca de quinhentos e cinquenta metros de altitude. O mesmo homem identificou a cordilheira como sendo as Montanhas de Cristal e o monte em questão como
sendo, provavelmente, a Montanha de Cristal primitiva. Enviou o
material para a Secção de Contratos Intercontinentais e foi o chefe
desta, Willoughby, quem lá mandou o Bryant.
  - Não me disse nada - observou Manson.
  - Ele enviou um memorando, Sir James. O senhor estava no
Canadá, nessa altura ... Logo que o Bryant obteve a autorização de
Zangaro, a Secção de Prospecção do Solo acedeu a retirar um prospector, Jack Mulrooney, do Ghana e a mandá-lo investigar o local.
Mulrooney regressou há três semanas com umas amostras que se
encontram agora no laboratório de Watford.
  - O conselho de direcção teve conhecimento disso?
  - Não, Sir James - afirmou Thorpe com convicção. - Conferi as actas das reuniões dos últimos doze meses.
  A satisfação de Manson era evidente.
  - Mulrooney é inteligente?
  Como resposta, Thorpe estendeu-lhe um dossier da Secção de
Pessoal.
  Manson folheou-o.
  - Pelo menos é experiente - resmungou. - Estes veteranos
de África costumam ser muito perspicazes.
  E depois de mandar embora Martin Thorpe, murmurou para consigo: “Vamos lá ver até que ponto Mr. Mulrooney é perspicaz ...
  Quando o prospector entrou, Manson cumprimentou-o cordial?mente e pediu a Miss Cooke que lhes servisse café. O vício do café
constava da ficha de Mulrooney.
  Jack Mulrooney, que parecia deslocado naquele apartamento do
último andar de um prédio de escritórios londrino, dir-se-ia não
saber onde pôr as mãos. Era a primeira vez que se encontrava com o
homem a quem chamava “o velhinho”. Sir James não se poupou a
esforços para o pôr à vontade.
  - É exactamente isso, homem - ouviu-o Miss Cooke dizer
quando entrou com o café. - Você tem vinte e cinco anos de experiência duramente adquirida, a arrancar o diabo do material à terra.
- Jack Mulrooney sorria, encantado.
  Quando Miss Cooke saiu, Sir James apontou para as chávenas
de porcelana e observou:
  - Olhe para estas coisinhas delicadas. Dantes, bebia por uma
caneca; agora, dão-me dedais! Recordo-me de que, no Rand ...
  A entrevista com Mulrooney prolongou-se por uma hora. Quando saiu, o prospector estava convencido de que o velho era um
excelente homem, não obstante tudo quanto dele diziam. Também
Sir James Manson considerava Mulrooney excelente ... para arrancar amostras de rocha de montes sem fazer perguntas.
  - Apostava a minha vida em como há estanho naquele monte,
Sir James - dissera Mulrooney. - Resta saber se a sua extracção
será compensadora sob o ponto de vista económico.
  Sir James dera-lhe uma palmada nas costas e respondera:
  - Não se preocupe com isso. Sabê-lo-emos logo que tivermos o
relatório de Watford. E você, qual é a sua próxima aventura?
  - Não sei. Ainda me. - restam três dias de licença ...
  - Constou-me que gosta de lugares agrestes - observara Sir
James com uma expressão de franqueza cordial.
  - É verdade! Podemos ser senhores de nós próprios, nesses
locais.
  - Tem toda a razão - concordara Manson, sorrindo. - Quase
o invejo ... não, com a breca, invejo-o mesmo! Veremos o que se
pode fazer.
  O que Manson fez foi encarregar a Contabilidade de enviar a
Mulrooney um bónus de mil libras. Depois ligou para a Secção de
Prospecção do Solo:
  - Que prospecções têm pendentes? - Havia uma, que se prolongaria por um ano, numa região longínqua do Quénia. - Mandem o Mulrooney - ordenou Sir James.
  Olhou para o relógio: onze horas. Pegou no relatório sobre o Dr.
Chalmers que Endean lhe deixara. Era licenciado com distinção
pela Escola de Minas de Londres, tinha uma licenciatura em Geologia e outra em Química. Doutorara-se com a idade aproximada de
vinte e cinco anos e era chefe do Departamento de Pesquisas da
ManCon, em Watford, havia quatro anos.
  Às onze horas e trinta e cinco, o seu telefone particular tocou.
Era Endean, que lhe telefonava de Watford; após escutá-lo durante
dois minutos, Manson respondeu com um grunhido aprovador:
  - Interessante. Agora regresse a Londres. Quero informações
completas acerca da República de Zangaro. - Soletrou a palavra.
- História, geografia, economia, culturas, mineralogia, política e
grau de desenvolvimento. Há três assuntos fundamentalmente importantes. Primeiro, quero ser informado sobre a influência que os
Russos ou Chineses possam exercer sobre o Governo e o ascendente
que os comunistas locais possam ter sobre o presidente; segundo,
como ninguém minimamente ligado ao país deve tomar conhecimento das nossas investigações, não vá lá pessoalmente; terceiro,
em circunstância alguma deve dizer que pertence à ManCon. Portanto, use um nome suposto. Entendeu? Quero essas informações
dentro de vinte dias.
  Seguidamente, Manson chamou Thorpe. Vinte minutos depois,
Thorpe apresentava-lhe o papel pedido: a cópia de uma carta.
  O Dr. Gordon Chalmers apeou-se do táxi e pagou a corrida. Ao
percorrer a pé os últimos metros que o separavam do Edifício ManCon, o seu olhar foi atraído por um cartaz do Evening Standard
afixado no quiosque dos jornais: PAIS DAS VÍTIMAS DA TALIDOMIDA
RECLAMAM ASSISTÊNCIA URGENTE. COmproll O jOrnal. A nOtíCla informava que, após nova série de conversações entre representantes
dos pais das cerca de quatrocentas crianças britânicas nascidas deformadas em consequência da talidomida e a companhia que comercializara a droga, se chegara a novo impasse.
  Os pensamentos de Gordon Chalmers dirigiram-se para sua
casa, de onde saíra pela manhã; para Peggy, sua mulher, que acabava de perfazer trinta anos e já aparentava quarenta, e para Margaret,
de nove anos, sem pernas e com um único braço, que precisava de
um par de pernas artificiais - e para uma casa especialmente construída, cuja hipoteca lhe estava a custar uma fortuna. Depois de
durante quase dez anos ter visto outros pais sem dinheiro tentarem
fazer frente a uma empresa poderosa, Gordon Chalmers encarava os
capitalistas com ódio e amargura. Decorridos dez minutos, encontrava-se na presença de um dos mais importantes.
  Manson foi direito ao assunto:
  - Creio que imagina porque quero falar consigo, Dr. Chalmers.
  - Imagino, sim, Sir James. O relatório acerca da Montanha de
Cristal.
  - Exactamente. A propósito, fez muito bem em enviar-mo pessoalmente e num sobrescrito lacrado. Muito bem, mesmo.
  Chalmers encolheu os ombros. Ao aperceber-se do conteúdo das
amostras, o procedimento que seguira fora mera rotina.
  - Vou fazer-lhe duas perguntas e quero respostas concretas - prosseguiu Sir James. - Tem a certeza absoluta dos resultados?
  - Absoluta. Por um lado, as amostras em questão foram submetidas a todos os testes que existem para detectar a presença da
platina. Por outro lado, além de ter submetido todas as amostras a
todos os testes que conheço, repeti-os todos.
  Sir James anuiu com a cabeça, revelando admiração.
  - Alguém mais no seu laboratório conhece os resultados destas
análises?
  - Mais ninguém - respondeu categoricamente Chalmers. - Quando as amostras chegaram, foram embaladas como de costume
e armazenadas. O relatório de Mulrooney indicava a presença de
estanho. Como se tratava de uma prospecção pouco importante, entreguei o trabalho a um assistente, que, encarando apenas a hipótese
da existência de estanho nessas amostras, se limitou a realizar os
testes indicados para o detectar. Como não obtivesse resultados positivos, mandei-o fazer mais alguns testes, que também se revelaram negativos. À noite, quando o laboratório fechou, fiquei até
mais tarde para fazer outros testes. À meia-noite já sabia que a
amostra de cascalho continha platina. No dia seguinte, confiei outro
trabalho ao meu assistente e continuei os testes sozinho. Havia seiscentos sacos de cascalho e cerca de setecentos quilos de pedras provenientes de toda a montanha. Todas as áreas da formação contêm
depósitos de platina.
  Sir James fitou o cientista com uma expressão de simulado assombro.
  - É incrível! Sei que vocês, cientistas, preferem encarar os factos friamente, mas creio que até você se deve ter sentido emocionado. Pode ser a origem de uma nova fonte mundial de platina. Sabe
com que frequência se verifica tal facto, no caso dos metais raros?
Uma vez na vida!
  Embora se tivesse de facto sentido emocionado com a descoberta, Chalmers, nesse momento, limitou-se a encolher os ombros.
  - Bem, com certeza vai ser uma fonte de lucros para a ManCon.
  - Não necessariamente - redarguiu Manson para assombro de
Chalmers.
  - Não? Mas não há dúvidas de que é uma fortuna?!
  - Uma fortuna no solo, com certeza - replicou Manson. - Mas depende de quem a apanhar. Compreende ... Deixe-me explicar-lhe como as coisas se passam, meu caro doutor ... - Falou
durante trinta minutos e, por fim, concluiu: - Aí tem. É muito
possível que, se se tornar conhecida, a descoberta seja entregue
numa bandeja aos Russos.
  - Não posso alterar os factos, Sir James.
  Manson arqueou as sobrancelhas com uma expressão de horror.
  - Meu Deus, doutor! Claro que não pode. - Consultou o relógio. - É quase uma hora. Vamos comer qualquer coisa.
  As duas garrafas de Côtes du Rhône que acompanharam o almoço encorajaram Chalmers a falar do seu trabalho e da sua família.
  Quando o prospector se referiu à sua própria família, Sir James,
com uma expressão convenientemente pesarosa, recordou uma recente entrevista que Chalme'rs dera à televisão. '
  - Desculpe, ainda não me tinha lembrado ... refiro-me à sua
filha. Que tragédia!
  Lentamente, Chalmers começou a falar de Margaret ao seu superior.
  - Mas o senhor não pode compreender - observou a determinado momento.
  - Mas posso tentar - redarguiu Sir James serenamente. - Também tenho uma filha, como sabe. Claro que é mais velha ...
Retirou da algibeira um papel dobrado e acrescentou, aparentando
um certo embaraço: - Não sei como apresentar-lhe a questão,
mas ... enfim, sei quanto tempo e quanto trabalho dedica à companhia. Por isso, esta manhã dei estas instruções ao meu banco.
  Estendeu a Chalmers a cópia de uma carta na qual transmitia ao
gerente do Banco Coutts instruções no sentido de que no primeiro
dia de cada mês fossem enviadas para casa do Dr. Chalmers, por
carta registada, quinze notas de dez libras.
  - Obrigado - agradeceu Chalmers em voz baixa, ao notar no
rosto do patrão um misto de preocupação e embaraço.
  Sir James apoiou a mão no seu antebraço.
  - Bem, já falámos o suficiente deste assunto. A ora tome um
  brandy.
  g
  Já no táxi, Manson ofereceu-se para deixar Chalmers na estação.
  - Tenho de voltar ao escritório e continuar a trabalhar neste
  negócio de Zangaro e no seu relatório.
  - Que vai fazer? - perguntou-Lhe Chalmers.
  - Francamente, não sei. É pena deixar tudo aquilo ir parar a
  mãos estrangeiras, que é o que vai suceder quando o seu relatório
chegar a Zangaro ... Mas a verdade é que tenho de lhes mandar
  qualquer coisa.
 Seguiu-se uma longa pausa.
  - Posso ajudá-lo em alguma coisa? - perguntou o cientista.
  - Pode - respondeu Sir James, medindo as palavras. - Deite
fora as amostras do Mulrooney. Destrua os seus apontamentos. Faça
uma cópia fiel do relatório apenas com uma diferença: indique que os
  testes provaram a existência de quantidades marginais de estanho de
  teor pouco elevado, cuja extracção não seria economicamente com  pensadora. Queime o original e nunca diga uma palavra acerca do
assunto. Dou-lhe a minha palavra de honra de que, quando a situação
política mudar, a ManCon apresentará, de acordo com os processos
  normais, uma proposta para obter a concessão da mineração.
  Chalmers saiu do táxi e olhou o patrão.
  - Não sei se posso fazer isso, Sir James. Preciso de pensar.
- Evidentemente que precisa de pensar - admitiu Manson,
, anuindo com um movimento de cabeça. - Sei que estou a pedir-Lhe
  muito. Ouça, porque não discute o assunto com a sua mulher?
Nessa sexta-feira, Sir James jantou no seu clube com Adrian
  Goole, funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, que fora o intermediário entre o MNE e a Comissão da África Ocidental, da qual Manson era um membro importante, durante a Guerra Civil
Nigeriana. A Comissão advertira o MNE de que a facção federal
poderia vencer rapidamente com o apoio da Inglaterra e de que uma
vitória rápida seria essencial para os interesses britânicos na Nigéria. No entanto, a guerra prolongara-se por trinta meses, em consequência do que a ManCon, bem como a Shell-BP e outras empresas,
haviam sofrido perdas avultadas.
  Manson desprezava Adrian Goole, a quem considerava um idiota pedante. Essa a razão por que o convidara para jantar. Pesara
ainda nesta sua decisão o facto de Goole pertencer ao Departamento
de Espionagem Económica do MNE.
  Sentado à mesa na sua frente, Goole escutava-o atentamente,
enquanto Manson lhe revelava uma parte da verdade acerca da Montanha de Cristal, onde, segundo lhe afirmou, havia estanho em
quantidades que assegurariam a rentabilidade da extracção, embora,
segundo confessou, o assustasse a influência que os conselheiros
soviéticos exerciam sobre o presidente de Zangaro, em consequência do que poderia ser perigoso fortalecer o poder de Kimba através
de um aumento de riqueza. Seria então impossível prever os problemas que este criaria ao Ocidente.
  Goole acreditou em tudo quanto lhe foi dito.
  - Tem razão, é um verdadeiro dilema. Você tem de mandar o
resultado da análise a Zangaro e o conselheiro económico russo vai
certamente perceber que os depósitos de estanho são exploráveis.
  - O meu problema consiste em saber o que hei-de fazer - resmungou Manson.
  Após um momento de reflexão, Goole perguntou:
  - Que aconteceria se, no relatório, reduzisse a metade os números indicativos da quantidade de estanho por tonelada?
  - Bem, demonstrava que a exploração do metal é economicamente inviável.
  - E as amostras de rocha não poderiam ter vindo de outra região? Se o seu funcionário tivesse recolhido as amostras a uma distância de cerca de dois quilómetros do lugar onde efectivamente
trabalhou, o teor de estanho poderia ser cinquenta por cento mais
baixo?
  - Provavelmente. Mas ele trabalhou naquele local.
  - Sob fiscalização? - indagou Goole.
  - Não. Sozinho.
  - E não ficaram vestígios reveladores do local onde trabalhou?
  - Apenas algumas lascas de rocha. Além disso, ninguém vai lá
acima. - Manson fez uma pausa. - Sabe, Goole, você é um tipo
espantosamente inteligente. - E dirigindo-se ao criado: - Outro
brandy, por favor.
  Despediram-se, ambos jubilosos, nos degraus da entrada do clube.
  - Só mais uma coisa - disse o representante do MNE. - Não
fale sobre este assunto a mais ninguém. Vou ter de registar os factos
no meu departamento e arquivá-los como confidenciais, evidentemente, mas, à parte esse pormenor, ficará tudo entre o senhor e o
MNE.
  - Evidentemente - respondeu Manson.
  - Estou-lhe muito grato por ter achado conveniente dizer-me o
que se passa. Vou manter-me atento à situação em Zangaro e, se se
verificar alguma alteração na cena política, o senhor será o primeiro
a sabê-lo.
  Sir James fez sinal ao seu motorista.
  - O primeiro a sabê-lo - repetiu, imitando o outro, já instalado no seu Rolls-Royce, a caminho do Gloucestershire. - Não tenhas dúvidas nenhumas de que vou sê-lo mesmo, rapaz! Eu é que
vou desencadear essa alteração.
  UMA hora depois, Gordon Chalmers estava deitado ao lado da
mulher, cansado e exasperado.
  - Não posso fazer isso - afirmava. - Não posso falsificar um
relatório de mineração para ajudar indivíduos da laia do Manson a
ganhar mais dinheiro.
  - Mas que importa? - perguntou Peggy Chalmers em tom suplicante. - Que importa que seja ele ou que sejam os Russos a obter a
concessão? Que importa que os preços subam ou desçam? Nós precisamos desse dinheiro Gordon. Por favor, querido, faz o que ele quer!
  - Está bem - decidiu finalmente Gordon Chalmers. - Pois
sim, vou fazer o que ele quer.
  A mulher encostou a cabeça ao seu peito.
  - Obrigada, querido. Por favor não te preocupes. Vais ver
como esqueces tudo dentro de um mês.
  Dez minutos depois, Peggy dormia, exausta da luta de todas as
noites para dar banho a Margaret e deitá-la, bem como da discussão
com o marido, a que não estava habituada. Gordon Chalmers continuou de olhos abertos, fixando a escuridão.
  “Eles ganham sempre”, murmurou baixinho. “Esses miseráveis
ganham sempre.”
  No dia seguinte, sábado, redigiu um novo relatório destinado à
República de Zangaro, queimou os seus apontamentos e atirou para
o lixo as amostras de rocha mais comprometedoras.
  Na segunda-feira, Sir James Manson recebeu o relatório, que enviou para a Secção de Contratos Intercontinentais. Bryant recebeu
ordens para partir no dia seguinte, a fim de o entregar ao ministro dos
Recursos Naturais em Clarence, capital de Zangaro, juntamente com
uma carta na qual a companhia manifestava o seu pesar pelos resultados das análises.
  Na terça-feira, Jack Mulrooney partiu também para África, encantado por sair de Londres. Esperava-o o Quénia, o mato, a possibilidade de caçar um leão.
  Apenas dois homens conheciam o que realmente se ocultava no
interior da Montanha de Cristal. Um jurara pela sua honra guardar
silêncio; o outro planeava a sua próxima jogada.

CAPÍTULO QUATRO
SIIvtoN Endean entrou no gabinete de Sir James Manson sobraçando
um volumoso dossier sobre Zangaro.
  - Ninguém soube quem você era nem o que andava a fazer? - perguntou Manson, enquanto acendia um charuto.
  - Não, Sir James. Usei um pseudónimo e ninguém me fez perguntas. Expliquei que andava a preparar uma tese de licenciatura
sobre a África pós-colonial.
  - Muito bem. Depois leio o relatório. Agora diga-me o essencial.
  Endean abriu um mapa que representava em grande escala uma
parte da costa da África Ocidental.
  - Como vê, Zangaro confina a norte e a leste com esta república, a sul com esta aqui e a oeste com o mar. Tem a forma de um
rectângulo, cujo lado menor se estende pelo litoral ao longo de cento e dez quilómetros e cujos lados maiores se internam cento e sessenta quilómetros no interior. A capital, o porto de Clarence, fica
aqui, sobranceira ao mar, na extremidade desta pequena península,
ampla e pouco comprida, a meio da costa. Por detrás da capital
estende-se uma planície costeira que constitui a única área cultivada
do país, para além da qual corre, de norte para sul, o rio Zangaro,
que divide o país em duas zonas, uma plana e outra montanhosa.
  Manson observou atentamente o mapa.
  - E quanto a estradas? - perguntou.
  - Esta estrada aqui corre ao longo da crista da península e penetra cerca de dez quilómetros no interior, seguindo directamente na
direcção leste, até entroncar, aqui, com a outra estrada principal.
Para chegar à fronteira setentrional, vira-se aqui à esquerda. Na direcção sul, a estrada é de terra batida e não tem saída.
  - Há certamente uma estrada que conduz às montanhas?
  - É secundária e não está assinalada. Da estrada que segue
para norte sai um caminho para a direita que dá acesso a uma ponte
de madeira, em risco de se desmoronar, sobre o rio.
  - E é esse o único caminho que conduz de uma zona do país
para a outra? - perguntou Manson, assombrado.
  - O único para tráfego rodoviário. Os nativos viajam em canoas.
  - Quem são os nativos? Que tribos vivem em Zangaro?
  - Duas - respondeu Endean. - A leste do rio fica a região
dos Vindus, que vivem praticamente na Idade da Pedra e que, na
sua maioria, não saem do mato. A planície, incluindo a península, é
a região dos Cajas. Os Cajas, partidários do Governo Colonial, mas
um bando de ineptos, e os Vindus odeiam-se mutuamente. O presidente Kimba, que é vindu, ganhou as eleições organizando brigadas
com membros da sua tribo, que, através do terror, lhe asseguraram
a obtenção dos votos.
  - Qual é a população?
  - Quase impossível de contar, mas os números oficiais indicam
trinta mil cajas e cento e noventa mil vindus.
  - E 'a economia?
  - Um desastre. Estão falidos. O papel-moeda não tem valor, as
exportações estão reduzidas a zero e nenhum país os deixa importar.
Há um hospital administrado pela ONU e os Russos, a ONU e o
antigo Governo Colonial ofereceram medicamentos, insecticidas,
etc., mas como o Governo vende sistematicamente todos os produtos e guarda o dinheiro, mesmo essas ajudas cessaram.
  - Uma autêntica república das bananas, hem? - murmurou Sir
James.
  - Em todos os sentidos. Governo corrupto e tirano, povo doente e subalimentado. Há recursos, nomeadamente madeira e peixe, e
no tempo da administração colonial cultivava-se café, cacau, algodão e bananas. Esta produção, que tinha compradores garantidos,
assegurava a existência de divisas e permitia pagar as importações
necessárias. Agora ninguém trabalha. Cultivam o suficiente para
subsistir, mais nada.
  - É impossível que tenham sido sempre tão ociosos. Quem trabalhava nas plantações na época colonial?
  - O Governo Colonial levou para lá alguns trabalhadores negros vindos de outras regiões, que se estabeleceram e ainda vivem
em Zangaro. Com as famílias, devem ser cerca de cinquenta mil.
Mas como a potência colonial nunca lhes concedeu direito de voto,
não votaram nas únicas eleições efectuadas, aquando da independência. Se alguém trabalha naquele país, são eles.
  - Onde vivem?
  - Cerca de quinze mil ainda vivem em cubatas nas plantações,
embora não haja praticamente trabalho e a maquinaria esteja toda
avariada. Mas a maioria vive em bairros de lata.
  - Quantos europeus ainda lá estão?
  - Cerca de quarenta diplomatas e alguns técnicos da ONU.
Kimba é um racista fanático. Houve um tumulto em Clarence, há
cerca de seis semanas, e um elemento
da ONU foi espancado quase até à
morte.
  - O país tem amigos, diplomaticamente falando
  Endean acenou negativamente
com a cabeça.
  - Cria mesmo dificuldades à
Organização da Unidade Africana.
Ninguém quer investir, não por falta
de reservas naturais, mas porque nada
está ao abrigo de ser confiscado por
alguém que use a insígnia do partido “`”
de Kimba. Os seus métodos de intimidação são aterradores! Os Russos,
que têm a missão diplomática mais
numerosa, provavelmente exercem
alguma influência na política externa,
sobre a qual o presidente apenas sabe
o que lhe dizem dois conselheiros nativos especializados em Moscovo.
  - E quem foi, exactamente, o
criador desse paraíso terrestre?
  Em resposta, Endean apresentou a
Sir James Manson a fotografia de um africano de meia-idade, envergando uma casaca preta e com uma cartola de seda na cabeça,
que Manson observou atentamente. Era, evidentemente, um instantâneo tirado no decorrer das solenidades da independência, pois
viam-se em segundo plano alguns funcionários coloniais. O rosto
era longo e magro, mas os olhos chamavam a atenção - tinham
uma espécie de fixidez vítrea, como os de um fanático.
  - O Papa Doc Africano - observou Endean. - Doido varrido. Libertador do jugo do homem branco, relacionado com os espíritos, vigarista, chefe da Polícia, torturador: Sua Excelência o Presidente Jean Kimba.
  Sir James continuou a fitar o rosto do homem que, sem o saber,
estava sentado sobre dez mil milhões de dólares de platina. Perguntou a si mesmo se o Mundo se aperceberia do seu desaparecimento.
  NA manhã seguinte, Sir James solicitou de novo a presença de
Endean no seu gabinete.
  - Há um assunto acerca do qual preciso de mais esclarecimentos, Simon - declarou-lhe Sir James sem preâmbulos. - Falou de
um tumulto em Clarence. Que é que o originou?
  - Sabe-se que o presidente tem um medo psicopático de ser
assassinado. Por vezes, quando quer prender e executar alguém, faz
correr rumores de um atentado. Foi o que aconteceu ao comandante
do Exército, coronel Bobi. Disseram-me que o diferendo resultou
do facto de Kimba não ter recebido uma comissão suficientemente
elevada de um negócio realizado por Bobi com um carregamento de
drogas e medicamentos destinados ao hospital da ONU. O Exército
apoderou-se de uma parte e Bobi vendeu-a no mercado negro.
Quando o director do hospital protestou junto de Kimba e indicou o
valor real do material que faltava, este verificou que tal valor excedia em muito os lucros que Bobi repartira com ele. Encolerizado,
mandou os seus guardas prender Bobi. Eles não o encontraram, mas
apanharam o infeliz funcionário da ONU.
  - E o que aconteceu a Bobi? - perguntou Manson.
  - Já tinha atravessado a fronteira e estava a salvo.
  - Como é ele?
  - Parece um gorila. Não é inteligente, mas possui uma certa
astúcia animal.
  - Foi educado no Ocidente? Não é comunista? - insistiu Manson.
  - Não, não é comunista. Não tem ideias políticas.
  - Subornável? Cooperaria por dinheiro?
  - Com certeza. Deve estar a viver muito modestamente, exilado de Zangaro.
  - Encontre-mo, seja onde for que estiver.
  Endean fez um gesto afirmativo com a cabeça.
  - Devo contactá-lo?
  - Ainda não. O que me interessa imediatamente é uma descrição completa e pormenorizada da segurança militar na capital e nas
imediações do palácio do presidente. Quero saber o número de contingentes militares, onde estão as tropas aquarteladas, qual a sua experiência, qual a resistência que ofereceriam se fossem atacadas,
qual o tipo de armas usadas ... enfim, tudo.
  Endean fitou o patrão, estupefacto. Se fossem atacadas? Que
diabo planearia o velho?
  - Eu não posso dar-lhe essas informações, Sir James. Exigem
um conhecimento profundo de assuntos militares ... e de tropas
africanas.
  De pé junto à janela, Manson olhava a city, o coração financeiro
de Londres.
  - Bem sei- disse em voz baixa. - Precisávamos de um militar para obtermos um relatório desse género.
  - Estou convencido, Sir James, de que dificilmente poderá
encontrar um militar disposto a encarregar-se de semelhante missão.
Nem mesmo por dinheiro.
  - Há um tipo de militar que o faria - afirmou Manson. - Um
mercenário. Estou disposto a pagar bem. Arranje-me um mercenário
inteligente e com iniciativa. O melhor da Europa.
  CAT Shannon estava estendido na cama, num pequeno hotel de
Montmartre. enfastiado e sem dinheiro. depois de ter passado várias
semanas a viajar pela Europa em busca de trabalho.
  As ofertas eram poucas. Corriam boatos de que a CIA estava a
contratar mercenários para treinar meios anticomunistas no Camboja
e que alguns xeques do golfo Pérsico começavam a aborrecer-se dos
seus conselheiros militares britânicos e procuravam mercenários que
lutassem do seu lado ou se encarregassem da segurança dos seus
palácios. Shannon não confiava na CIA nem tão-pouco nos Árabes.
E visto que não surgiam guerras lucrativas, restava-lhe a possibilidade de trabalhar como guarda-costas de algum negociante de armas
europeu, um dos quais já o contactara em Paris nesse sentido.
  Embora não tivesse rejeitado definitivamente a proposta, Cat
não estava verdadeiramente interessado nesta. O negociante encontrava-se em apuros por ter atraiçoado o Serviço de Aprovisionamento do IRA, informando os Ingleses do local onde algumas armas por
ele vendidas seriam desembarcadas. Haveria com certeza tiroteio e
a Polícia Francesa não gostaria de ver as suas ruas semeadas de
fenianos sangrentos. Além do mais, como Shannon era protestante e
natural do Ulster, ninguém acreditaria que ele se limitara a executar
o seu trabalho.
  Cat permanecia deitado a olhar para o tecto e a recordar as extensões desertas de relva e árvores enfezadas que crescem ao longo
da fronteira entre os condados de Tyrone e Donegal e que considerava ainda como a sua terra, embora praticamente não a visse desde
que fora enviado para a escola, aos oito anos. Os seus pais haviam
morrido num acidente de automóvel há onze anos, quando ele tinha
vinte e dois e era sargento nos Fuzileiros Reais. Shannon regressara
à sua terra para assistir ao funeral, após o que fechara a casa.
  Como civil, o seu primeiro emprego fora numa empresa que
mantinha negócios em África. Familiarizara-se então com as complexidades da estrutura empresarial, do comércio e da banca, da
organização de grandes companhias e do valor de uma discreta conta num banco suíço. Após um ano de trabalho em Londres, fora
colocado como subgerente da sucursal da companhia no Uganda,
que deixara sem explicações, seguindo para o Congo. Havia já seis
anos que vivia como mercenário, sendo, na melhor das hipóteses,
considerado como um soldado de aluguer e, na pior, como um assassino a soldo. A dificuldade residia no facto de, uma vez conhecido como mercenário, não ser possível retroceder. Não que lhe fosse
difícil arranjar um emprego; o problema seria conservá-lo. Ficar
sentado num escritório, voltar aos livros de contabilidade e ao comboio que o transportaria de casa para o trabalho e vice-versa, e depois olhar pela janela e recordar a selva, as palmeiras ondulantes, os
rios, o cheiro a suor e a cordite, o gosto a cobre do medo imediatamente antes de um ataque e a alegria selvagem, cruel, de permanecer vivo depois dele - esta situação parecia-lhe insuportável.
  Assim, continuava estendido na cama fumando e perguntando-se
como Lhe surgiria o próximo trabalho.
  SIMoN Endean sabia que em Londres era possível descobrir o
que quer que fosse, incluindo o nome e a morada de um mercenário de primeira classe. O único problema era onde começar a procurar.
  Depois de uma hora de reflexão no seu gabinete e de algumas
chávenas de café, tomou um táxi e dirigiu-se para Fleet Street, onde
um amigo que trabalhava num dos mais importantes jornais londrinos Lhe proporcionou o acesso a praticamente todas as notícias publicadas nos últimos dez anos referentes a mercenários. Leu-as todas, prestando especial atenção aos nomes dos autores dos artigos,
pois nessa primeira fase não procurava ainda o nome de um mercenário. Havia inúmeros pseudónimos, nomes de guerra e alcunhas.
Interessava-lhe encontrar o nome de um repórter que conhecesse o
assunto sobre o qual escrevia. Ao cabo de duas horas, descobrira o
que procurava. Um telefonema para o seu amigo jornalista permitiu-lhe saber a morada do articulista.
  Cerca das oito horas da manhã seguinte, Simon Endean premiu
o botão da campainha ao lado da placa que ostentava o nome do
articulista, e um minuto depois ouviu perguntar, através da rede de
metal montada na ombreira:
  - Quem é?
  - Bom dia - cumprimentou Endean, falando para a rede. - Chamo-me Walter Harris. Gostava de falar consigo.
  Subiu, entrou no apartamento e dirigiu-se sem preâmbulos ao
homem que o esperava:
  - Represento um consórcio comercial com interesses num Estado da África Ocidental.
  O repórter assentiu cautelosamente, sorvendo um golo de café.
  - Fomos informados da possibilidade de um golpe de Estado
nessa república, possivelmente apoiado por comunistas. Está a
compreender-me?
  - Estou. Continue.
  - Para que o golpe triunfasse, seria necessário que os conjurados começassem por assassinar o presidente. Portanto, a questão da
segurança do palácio é vital. O Ministério dos Negócios Estrangeiros não encara sequer a possibilidade de enviar um oficial de carreira britânico para se encarregar dessa missão.
  - E então. - O repórter acabou o café e acendeu um cigarro.
  - Então o presidente aceitaria os serviços de um soldado profissional, por contrato, como conselheiro para todos os assuntos relacionados com a sua segurança pessoal. Pretende um homem capaz
de passar minuciosamente em revista os serviços de segurança do
palácio e corrigir qualquer falha.
  O repórter duvidou seriamente da veracidade da história de Harris. Se o que se pretendia era realmente a segurança do palácio, o
Governo Britânico não se escusaria a enviar um perito que superintendesse aos necessários aperfeiçoamentos técnicos. Além disso, na
Sloane Street, 22, em Londres, havia uma firma chamada Watchguard International, cuja especialidade era precisamente a requerida, facto para o qual chamou a atenção do visitante.
  - É evidente que preciso de ser um pouco mais sincero - observou Endean.
  - Seria talvez necessário.
  - A verdade é que o Governo poderia aceder a enviar um perito
com funções meramente consultivas, mas se se tornasse necessário
treinar os guardas do palácio, um inglês enviado pelo Governo não
poderia encarregar-se dessa missão. Quanto à Watchguard, se um
dos seus homens fizesse parte do pessoal do palácio e, não obstante
  a sua presença, o golpe fosse tentado, sabe o que o resto da África
  pensaria. Para eles, a Watchguard é o Ministério dos Negócios Estrangeiros.
  - Então que deseja de mim? - perguntou o repórter.
  - O nome de um bom soldado mercenário - respondeu Endean. - Um soldado com inteligência e iniciativa, que saiba merecer bem o dinheiro que ganha.
  - Eu escrevo para viver - lembrou o repórter.
  Endean retirou lentamente da algibeira duzentas libras em notas
  de dez que colocou sobre a mesa.
  - Então escreva para mim - disse. - Nomes e curriculum.
  Ou fale se prefere.
  - Escrevo.
O repórter consultou um ficheiro, sentou-se à máquina de escrever e por fim estendeu três folhas de papel a Endean.
i - Presentemente, são estes os melhores: alguns são veteranos
  do Congo, de há seis anos, e outros surgiram na Nigéria. Endean
segurou as folhas e leu-as com atenção:
  ROBERT DENARD: Francês. Antecedentes criminais. Participou
na secessão do Catanga em 1961-1962. Partiu depois do malogro da
secessão e do exílio de Tchombé. Comandou a operação de mercenários franceses no Iémen. Regressou ao Congo em 1964. Coman' dou o 6.o Destacamento. Participou na segunda revolta de Stanley; ville (o motim dos mercenários) em 1967. Gravemente ferido. Vive
  em Paris.

  JACQUES SCHRAMME: Belga. Alcunha: Jacques, o Negro. Formou a sua própria unidade de catangueses em 1961. Destacou-se
  na tentativa de secessão. Em 1967, desencadeou o motim de Stanleyville, ao qual aderiram Denard e a sua unidade. Assumiu o
  comando conjunto após Denard ser ferido e conduziu a marcha
  para Bukavu.
  MITCH HOARE: Inglês nacionalizado sul-africano. Conselheiro na
  secessão do Catanga. Amigo íntimo de Tchombé. Em 1964 formou
  o 5.o Destacamento com soldados de língua inglesa. Retirou-se em
  Dezembro de 1965.
  CHARLES Roux: Francês. Incompatibilizado com Hoare, sob
cujas ordens combatera em 1964, juntou-se a Denard. Participou na
primeira revolta de Stanleyville, em 1966, na qual a sua unidade foi praticamente dizimada. Saiu secretamente do Congo, aonde regressou em 1968 para se juntar a Schramme. Foi ferido em Bukavu.
Não voltou a combater desde então, mas vive em Paris e pretende
ser o chefe de todos os mercenários franceses.
  CARLO SHANNON: Irlandês. Serviu sob o comando de Hoare, no 5º
Destacamento, e combateu com Schramme em Bukavu durante todo o
cerco. Foi repatriado em Abril de 1968. Comandou uma unidade própria durante toda a Guerra Civil Nigeriana. Supõe-se que está em Paris.
  Havia outros - belgas, alemães, sul-africanos e franceses; alguns como Shannon e Roux, tinham-se tornado famosos na Nigéria.
  Quando acabou de ler, Endean ergueu a cabeça e perguntou:
  - Estes homens estariam todos disponíveis?
  O jornalista abanou a cabeça negativamente.
  - Duvido. Mencionei todos os que poderiam - o que não significa que queiram - fazê-lo.
  - Diga-me, qual deles escolheria você?
  - Cat Shannon - respondeu o interpelado, sem hesitar. - É
um homem com capacidade inventiva e muita audácia. Pessoalmente,
escolhia o Cat.
  - Onde está ele?
  O repórter indicou um hotel e um bar de Paris onde seria possível
tentar encontrá-lo.
  - E se esse Shannon não estiver disponível, qual é o segundo
nome que aconselha?
  - O único que está, quase de certeza, disponível, e que tem a
experiência necessária é Roux - respondeu o repórter, após alguns
segundos de meditação.
  CAT Shannon subia pensativamente uma rua transversal, a caminho
do hotel, situado no cimo de Montmartre. Pouco passava das cinco horas
da tarde de um dia de Março e soprava um vento frio. O tempo condizia
com o estado de espírito de Shannon, que pensava no Dr. Dunois, o qual
acabara de lhe fazer um exame médico completo. Antigo pára-quedista e
médico militar, Dunois participara em expedições aos Himalaias e aos
Andes, como médico das equipas, e mais tarde oferecera-se como
voluntário para diversas missões arriscadas em África. Tornara-se conhecido como o médico dos mercenários, que, quando se sentiam
doentes, o consultavam em Paris, onde ele tinha consultório.
  Shannon entrou no hotel e dirigiu-se à recepção, a fim de recolher a sua chave. O velho recepcionista informou-o:
  - Monsiéur, têm estado a telefonar para si de Londres. Deixaram este recado.
  O recado garatujado pelo recepcionista dizia apenas: “Cuidado
com Harris”, e estava assinado por um jornalista inglês que Shannon conhecia.
  O velho apontou para a pequena sala que ficava do lado oposto
do átrio e acrescentou:
  - Está um senhor na sala à sua espera.
  O visitante levantou-se quando Shannon se aproximou.
  - Mr. Shannon?
  - Sim.
  - Chamo-me Walter Harris. Tenho estado à sua espera. Podemos conversar aqui?
  - Podemos. O velho não nos ouve. Sente-se.
  - Sei que é mercenário, Mr. Shannon.
  - Sou.
  - Foi-me recomendado. Represento um grupo de homens de
negócios londrinos. Precisamos de um trabalho que exige um homem
com alguns conhecimentos sobre assuntos militares e que possa viajar para um país estrangeiro sem levantar suspeitas. Um homem que
seja capaz de analisar uma situação militar e guardar silêncio.
  - Não mato por contrato - informou Shannon concisamente.
  - Também não queremos que o faça - redarguiu o falso Harris.
  - Muito bem, de que se trata? E quanto pagam?
  - Primeiro, teria de ir a Londres, para receber instruções - respondeu Endean, enquanto retirava um maço de notas do bolso.
- Pagamos-lhe cento e vinte mil libras pela viagem de avião e por
uma estada de uma noite. Se declinar a proposta, recebe mais cem
libras pelo incómodo; se aceitar, discutimos o resto.
  Shannon acenou afirmativamente com a cabeça.
  - Está bem. Quando?
  - Amanhã. Chegue à hora que quiser durante o dia e hospede-se no Hotel Post House, em Havearstock Hill. Depois de amanhã, às nove horas, telefono-lhe e marco-lhe um encontro para essa
mesma manhã. Está claro?
  Shannon aceitou o dinheiro e disse:
  - Reserve o quarto no hotel em nome de Keith Brown.
  Endean saiu do hotel e desceu a rua à procura de um táxi. Não
considerara necessário dizer a Shannon que já falara com outro mercenário, de nome Charles Roux, nem que, não obstante o interesse
evidente do francês, não o considerara o homem indicado para o
trabalho.
  VINTE e quatro horas depois, Shannon estava no seu quarto, no
Hotel Post House. Chegara no primeiro voo da manhã, servindo-se
do passaporte falso passado em nome de Keith Brown, que possuía
há muito tempo.
  A chegada a Londres, telefonara ao jornalista, que Lhe relatara a
visita de Harris. Seguidamente, dirigira-se a uma agência de detectives particulares, onde pagara um sinal de vinte libras, prometendo
telefonar na manhã seguinte a fim de transmitir instruções.
  Nessa manhã, Harris telefonou às nove em ponto.
  - Na Sloane Avenue há um prédio de apartamentos, o Chelsea
Cloisters. Aluguei o n.o 317. Faça favor de estar no átrio às onze
horas em ponto.
  Shannon desligou e telefonou à agência de detectives:
  - Quero um homem no átrio do Chelsea Cloisters, na Sloane
Avenue, às dez e um quarto, com transporte próprio.
  - Vai de motocicleta - respondeu o director da agência.
  Quando se encontrou com o funcionário da agência no local
combinado, a Shannon deparou-se-lhe um jovem de menos de vinte
anos e cabelos compridos. Observou-o com desconfiança e perguntou-Lhe:
  - Percebe do seu ofício?
  O rapaz fez um gesto afirmativo. Parecia cheio de entusiasmo,
que Shannon desejou que correspondesse a alguma astúcia.
  Entregou-Lhe um jornal e disse-lhe:
  - Sente-se ali a ler. Cerca das onze horas vai entrar um homem, com quem eu vou subir no elevador, que deve sair uma hora
depois. Nessa altura, você deve estar do outro lado da rua, montado
na motocicleta, fingindo que tem uma avaria. Percebeu?
  - Percebi.
  - O homem vai meter-se no próprio carro ou tomar um táxi.
Siga-o.
  O jovem sorriu e sentou-se, ocultando-se por detrás do jornal.
  Quarenta minutos depois, chegou o homem chamado Harris.
Shannon notou que viera de táxi e esperou que o pormenor também
não tivesse passado despercebido ao jovem. Harris dirigiu-se para o
elevador, seguido por Shannon.
  No apartamento n.o 317, Harris abriu a pasta, de onde retirou
um mapa que estendeu a Shannon. Shannon precisou apenas de três
minutos para se inteirar do que lhe interessava. Seguiram-se as instruções, uma prudente mistura de factos reais e fictícios. Os homens
que representava, declarou Harris, negociavam com Zangaro e todos haviam sido lesados durante o governo do presidente Kimba.
Descreveu com exactidão as condições vigentes na república, deixando para o fim o âmago da questão.
  - Um grupo de oficiais do Exército, que estão a pensar em
derrubar Kimba através de um golpe, entrou em contacto com alguns homens de negócios locais, um dos quais nos expôs o problema: apesar dos seus postos, os oficiais não têm praticamente qualquer experiência militar e não sabem como derrubar o indivíduo,
que passa a maior parte do tempo escondido no palácio, rodeado
pelos seus guardas. Com toda a franqueza, nem nós nem o povo de
Zangaro lamentaríamos a queda de Kimba. Queremos um relatório
completo sobre o poder militar do presidente.
  Cepticamente Shannon pensou que, se os oficiais do país não
tinham capacidade para fazer essa avaliação, tão-pouco seriam capazes de executar o golpe. No entanto, limitou-se a dizer:
  - Tinha de ir como turista, e não me parece que haja muitos
turistas em Zangaro. Não poderia a sua companhia enviar-me a visitar uma dessas empresas a ela ligadas?
  - Não é possível - respondeu Harris. - Se as coisas corressem mal, surgiriam problemas do diabo. Mas aceita o encargo, não?
  - Se for bem pago, aceito.
  - Muito bem. Amanhã de manhã receberá no seu hotel um bilhete de avião de ida e volta de Londres para a capital da república
vizinha de Zangaro. Vai ter de passar por Paris para obter o visto e
tomar um avião da Air Afrique; depois apanha o de ligação com
Clarence. Juntamente com os. bilhetes envio-Lhe quinhentas libras
em francos franceses para as despesas e mais quinhentas para si.
  - Mil para mim - corrigiu Shannon.
  - Dólares? Ouvi dizer que vocês trabalham com dólares americanos.
  - Libras. Equivale a dois mil e quinhentos dólares, ou seja a
dois meses de ordenado base em qualquer contrato normal.
  - Mas o senhor só vai estar fora dez dias! - protestou Harris.
  - Dez dias muito arriscados. Se o lugar é tão mau como o
descreveu, quem for apanhado a fazer o trabalho que me pede morrerá fatalmente, e terá uma morte dolorosa.
  - Está bem. Quinhentas agora e quinhentas quando regressar.
  Dez minutos depois, Endean saiu.
  Às três da tarde, Shannon telefonou para a agência de detectives.
  - Ah, sim, Mr. Brown! - exclamou a voz que o atendeu. - O meu empregado seguiu-o até à city e viu-o entrar no Edifício
ManCon, sede da Manson Consolidated Mining.
  - Sabe se ele trabalha lá? - perguntou Shannon.
  - Parece que sim. O meu empregado reparou que o porteiro
levou a mão ao boné e segurou a porta para ele entrar, o que não fez
em relação a um grupo de secretárias e escriturários que saíam.
  Shannon reconheceu que, afinal, o jovem realizara um bom trabalho. Deu mais algumas instruções e, nessa tarde, enviou pelo correio mais cinquenta libras à agência. Na manhã seguinte, abriu uma
conta num banco, onde depositou quinhentas libras. Depois tomou o
avião para Paris.
  À mesma hora que Shannon levantava voo para a África Ocidental, o Dr. Gordon Chalmers jantava com um antigo colega da universidade, agora também cientista. Quinze anos antes, quando ambos trabalhavam duramente para obterem o bacharelato, haviam participado, juntamente com milhares de outros jovens, numa marcha a
favor do desarmamento nuclear. A indignação que sentiam pelas
condições vigentes no Mundo tornara-os simpatizantes do Movimento da Juventude Comunista. Chalmers ultrapassara essa fase,
casara e fora absorvido pela classe média assalariada.
  As múltiplas preocupações que o haviam atormentado no decorrer das duas semanas antecedentes levaram-no a beber mais do que
o habitual copo de vinho ao jantar. Na altura do brandy, Chalmers
sentiu necessidade de confidenciar as suas preocupações a alguém
que, ao contrário da mulher, era cientista como ele e poderia compreendê-lo. Evidentemente que o assunto era altamente confidencial. O amigo, cujo olhar se toldou de compaixão quando o ouviu
falar da filha mutilada, mostrou-se solícito.
  - Não te preocupes, Gordon. Qualquer outro teria feito o mesmo.
  Chalmers sentiu-se melhor, como se tivesse, de certo modo,
compartilhado o seu problema.
  Quando interrogara o amigo sobre o decorrer da sua vida durante aqueles anos, ele mostrara-se levemente evasivo, e Chalmers não
insistira. Mesmo que o tivesse feito, seria pouco provável que o
amigo lhe tivesse confidenciado que se tornara um membro activo
do Partido Comunista.
CAPÍTULO CINCO
O Convair 440 que se preparava para aterrar em Zangaro, vindo da
república vizinha, inclinou-se acentuadamente sobre uma das asas
ao sobrevoar Clarence. Shannon olhou para baixo e viu a capital de
  Zangaro situada na extremidade da península e rodeada por três
  lados pelas águas do golfo orladas de palmeiras. A língua de terra
  mediria cerca de cinco mil metros de largura na base e aproximadamente mil e quinhentos no ponto onde a cidade estava situada,
  perto da extremidade. O litoral era formado por mangais. No extremo da península havia um pequeno porto com duas longas línguas
  de areia curvas que penetravam no mar. Shannon viu o mar encrespado pela brisa.
  Em terra o calor era abrasador. Enquanto preenchia um longo
formulário, Shannon não perdia de vista cerca de uma dúzia de soldados armados de espingardas que passeavam indolentemente no
pequeno edifício do aeroporto. As dificuldades começaram logo na
alfândega. Um civil ordenou-lhe secamente que entrasse numa sala
contígua, onde o seguiram quatro soldados com ar jactancioso. Foi
então que se recordou do Congo, imediatamente antes da mais sangrenta chacina dessa guerra, onde notara aquele mesmo ar de negligência ameaçadora, aquela sensação de poder sem justificação capaz de se transformar subitamente em violência frenética.
  O funcionário civil da alfândega despejou o conteúdo da mala de
Shannon sobre a mesa desconjuntada. Pegou na máquina de barbear
eléctrica que, quando ele premiu o interruptor, começou a zumbir
com violência. Sem alterar a expressão do rosto, guardou-a na sua
secretária e por meio de gestos, ordenou a Shannon que esvaziasse
os bolsos e ,despejasse o seu conteúdo sobre a mesa. Resmungou ao
ver os traveler's cheques e devolveu-os, mas guardou as moedas na
algibeira. Havia duas notas franco-africanas de cinco mil francos e
diversas notas de cem. Ficou com as de cinco mil e um dos soldados guardou o resto.
  O funcionário da alfândega levantou a camisa e bateu na coronha
de uma Browning de 9 mm, que trazia enfiada no cós das calças.
  - Polícia - declarou.
  Shannon, que sentia desejos de Lhe esmurrar a cara, limitou-se a
apontar o resto dos seus haveres, espalhados sobre a mesa. O homem fez um gesto de assentimento e Shannon começou a guardar os
seus objectos pessoais, percebendo que, atrás de si, os soldados se
retiravam. Decorrido o que lhe pareceu uma eternidade, o funcionário da alfândega apontou-lhe a porta, e Shannon saiu, sentindo o
suor escorrer-lhe pelas costas.
  Cá fora, na pequena praça, não havia transportes. Ouviu então
uma voz suave com sotaque irlandês e ressonância americana que
lhe perguntava:
  - Posso dar-lhe uma boleia até à cidade, meu filho?
  O convite era feito por um padre católico que se deslocara ao
aeroporto a fim de esperar o outro passageiro branco do avião, uma
jovem americana.
  Quando se afastaram num Volkswagen, o sacerdote olhou compreensivamente para Shannon.
  - Foi roubado?
  - Ficaram-me com tudo - respondeu Shannon.
  O prejuízo não era vultoso, mas ambos haviam percebido o estado de espírito dos soldados.
  - Aqui é preciso ter muito cuidado. Já tem hotel?
  Perante a negativa de Shannon, o padre conduziu-o ao Hotel
Independence.
  - O gerente chama-se Gomez e é boa pessoa.
  Geralmente, quando um rosto desconhecido chega a uma cidade
africana, os outros europeus costumam convidar o recém-chegado
para tomar uma bebida, o que o sacerdote, porém, não fez. Shannon
viria a saber que a tensão que reinava em Zangaro também afectava
os brancos. Nessa mesma noite, no bar do hotel, através de uma
conversa com Jules Gomez, começaria a inteirar-se mais profundamente da situação vigente.
  Gomez comprara o hotel cinco anos antes da independência.
Após esta ser declarada, fora inesperadamente informado de que o
hotel seria nacionalizado e que o indemnizariam em moeda local.
Embora não tivesse recebido qualquer indemnização - que, de
qualquer modo, representaria apenas papel sem valor -, permanecera como gerente do hotel, na esperança de que um dia a situação
melhorasse.
  Quando o bar fechou, Shannon convidou Gomez para tomar
uma bebida no seu quarto. Depois de o gerente ter esvaziado metade
de uma garrafa de whiskey que trouxera na mala e que os soldados
lhe haviam deixado, Shannon começou a sondá-lo cuidadosamente,
tentando obter informações. Gomez confirmou, numa voz que o
medo fazia baixar, que o presidente Kimba residia no seu palácio,
de onde raramente saía, e poderosamente escoltado, para uma visita
ocasional à sua aldeia natal, no território vindu.
  Quando Gomez se dirigiu, cambaleante, para o seu quarto,
Shannon conseguira recolher mais algumas pequenas informações.
Segundo aquele garantira, as armas que as três unidades - conhecidas, respectivamente, por Força Civil de Segurança, Gendarmaria
e Força Alfandegária - usavam não tinham munições, uma vez que
os seus utentes pertenciam ao povo caja, que não merecia confiança. O poder, na cidade, estava exclusivamente nas mãos dos vindus
de Kimba. A temida polícia secreta vestia civilmente e usava armas
automáticas. Os soldados do Exército estavam armados com espingardas não automáticas como as que Shannon vira no aeroporto. A
guarda pessoal de Kimba, totalmente leal ao presidente, alojava-se
no recinto do palácio e usava espingardas-metralhadoras.
  Na manhã seguinte, Shannon saiu a fim de proceder às suas
investigações. Decorridos segundos, notou um rapazito que corria a
seu lado. Só mais tarde soube a razão desta companhia. Era um
serviço prestado por Gomez a todos os seus hóspedes: se o turista
era preso e levado, o rapaz corria a avisar Gomez, que fazia chegar
a informação à Embaixada da Suíça ou da Alemanha Ocidental, a
fim de que se iniciasse o processo de libertação do turista antes que
o espancassem até à morte.
  Utilizando um mapa que Gomez lhe dera, Shannon dirigiu-se
para a periferia de Clarence, tendo calcorreado quilómetros sempre
com o rapazito na sua peugada. De novo na cidade, localizou o
banco os Correios, meia dúzia de ministérios, o porto e o hospital
da ONU, tendo verificado que cada um destes locais estava guardado por seis soldados mal fardados e indolentes, armados com velhas
espingardas Mauser 7,92 não automáticas. Avaliou o seu número
em cerca de cem e considerou nula a sua capacidade de combate,
certo de que fugiriam em caso de tiroteio. Atraíram-lhe a atenção as
suas cartucheiras, espalmadas, desprovidas de munições. Obviamente, cada Mauser tinha o seu cunhete fixo, mas a sua capacidade
era de apenas cinco balas.
  Shannon dedicou a tarde a percorrer o porto. As duas línguas de
areia que formavam o porto natural, cujas extremidades se erguiam
a cerca de dois metros acima do nível da água, tinham cerca de seis
metros de altura no ponto em que se afastavam da costa. Enquanto
de uma das extremidades não era possível avistar o palácio, oculto
por um armazém, da outra distinguia-se claramente o seu último
andar. A sul do armazém viam-se algumas canoas de pesca atracadas numa praia que Shannon considerou adequada para um desembarque.
  Por detrás do armazém desenhavam-se numerosos carreiros e
uma estrada que conduziam ao palácio. Shannon seguiu pela estrada. Ao chegar ao cimo da subida, pôde ver um espaço plano e,
cerca de duzentos metros adiante, a fachada de um edifício que deveria ter sido outrora a residência de um governador colonial.
Avançou cerca de cem metros e alcançou o cruzamento com uma
estrada lateral que seguia ao longo da costa, no qual se encontravam
quatro soldados, menos sonolentos e mais bem uniformizados que
os outros e armados com espingardas de assalto Kalashnikov AK 47,
que o seguiram com o olhar quando ele virou na direcção do hotel.
Eram os guardas do palácio. Obviamente, a partir do cruzamento, o
acesso ao palácio era interdito.
  Enquanto caminhava, foi registando mentalmente pormenores
do palácio. A sua fachada teria cerca de vinte e oito metros de
largura; as janelas do rés-do-chão estavam entaipadas com tijolo e o
acesso ao edifício principal realizava-se através de uma arcada onde
existia uma sólida porta de madeira alta e larga, reforçada com ferrolhos. No andar imediatamente acima havia sete janelas, e no superior, dez, de dimensões consideravelmente menores.
  Ainda antes do pôr do Sol, Shannon deu uma volta completa ao
palácio, embora de longe. Partindo de cada uma das- fachadas laterais do edifício, e prolongando-se cerca de oitenta metros para as
traseiras, erguia-se um muro recém-construído com cerca de dois
metros e meio de altura e coroado de garrafas partidas, cujas extremidades eram unidas por uma outra parede, formando um pátio.
Significativamente, apenas a porta da fachada principal dava acesso
a todo o recinto.
  Shannon sorriu ao rapazito, falando mais para si do que para
ele, que o fitava sem o compreender.
  - Imagina, rapaz, que aquele idiota julga ter-se protegido com
um grande muro e uma única entrada, quando na realidade se meteu
dentro de uma enorme ratoeira de cimento.
  À .noite, Gomez convidou Shannon para ir ao seu quarto. Decidido a conservar o seu disfarce de turista, Shannon teve de contentar-se com informações fragmentadas, sem sequência. Soube que
Kimba conservava o tesouro e o arsenal nacionais fechados à chave
na sua própria residência. A estação de rádio nacional também estava instalada no palácio. Além dos cem soldados dispersos pela cidade, havia mais cem nos arredores, total que perfazia metade do
Exército. A outra metade estava aquartelada em barracões de pé-direito reduzido, que se alinhavam a cerca de quatrocentos metros do
palácio. Esses homens, juntamente com os guardas do palácio,
aproximadamente em número de sessenta, que não possuam artilharia nem carros blindados; constituíam toda a força de defesa de
Kimba.
  Foi na terceira noite que Shannon encontrou o soldado. Conseguira observar de perto as traseiras e as alas laterais do palácio,
mas, ao tentar passar pela frontaria do edifício, fora interceptado
por dois guardas, que lhe haviam ordenado bruscamente que seguisse o seu caminho. Comprovara que havia sempre um grupo de soldados no cruzamento, onde já na véspera os vira, e concluíra também que, do local onde se encontravam, não podiam divisar o porto.
  No caminho de regresso ao Hotel Independente, e ao passar
diante de diversos bares, o soldado interceptara-o. Visivelmente
embriagado, avançara, cambaleante, na direcção de Shannon, agarrado à Mauser e resmoneando algo que o mercenário interpretou
como uma exigência de dinheiro. Sem dar tempo a Shannon para
retirar o dinheiro do bolso, o homem grunhiu um som ininteligível e
apontou-lhe a arma. A partir desse momento, tudo se passou rápida
e silenciosamente. Shannon sentiu uma dor lancinante subir-lhe do
braço até ao ombro, ao mesmo tempo que ouvia o estalar do pescoço do soldado, que tombou no solo, deixando cair a arma.
  Depois de olhar para ambos os lados da estrada e comprovar que
estava só, Shannon empurrou o corpo para uma vala e examinou a
espingarda, de cujo carregador extraiu as balas, apenas três, constatando que não havia mais nenhuma na câmara. Desapertou o coldre
e examinou o cano da arma à luz da Lua. Aos seus olhos depararam-se vários meses de sujidade e ferrugem. Tornou a colocar as
balas no carregador, atirou a arma para junto do cadáver e regressou
ao hotel.
  “Cada vez melhor ...”, murmurou ao meter-se na cama.
  Duvidava que procedessem a um inquérito policial e esperava
que atribuíssem a fractura do pescoço à queda na vala, provocada
pela embriaguez.
  No entanto, permaneceu o dia seguinte no hotel, a conversar
com Gomez, pretextando uma enxaqueca. Na manhã do outro dia,
embarcou no Convair para a república vizinha, situada a norte. Ao
ver a terra desaparecer, ocorreu-lhe subitamente ao espírito uma das
afirmações de Gomez. Não existiam, nem nunca haviam existido,
quaisquer operações de mineração em Zangaro.
  Quarenta horas mais tarde, encontrava-se de novo em Londres.
  O embaixador Lenida Dobrovolsky sentia sempre uma leve inquietação no dia da sua entrevista semanal com o presidente Kimba.
Como outros que haviam conhecido o ditador, estava convencido da
sua loucura. Porém, ao contrário desses, tinha ordens de Moscovo
para envidar todos os esforços possíveis a fim de estabelecer relações de trabalho com o despótico africano. Sentado à sua secretária
de mogno, o presidente Kimba parecia esforçar-se por se manter
imóvel. Dobrovolsky sabia que a entrevista podia começar de duas
formas diametralmente opostas: ou o dirigente zangaren-se falaria
lucidamente ou gritaria como um possesso.
  Kimba saudou os russos com uma leve inclinação de cabeça e
murmurou:
  - QueiraM dizer.
  Dobrovolsky soltou um suspiro de alívio, não obstante soubesse
que as más notícias de que era portador poderiam modificar o ambiente favorável.
  - Sr. Presidente, o meu governo comunicou-me que possui
informações sobre a possível inexactidão do relatório acerca de uma
prospecção mineira recentemente enviado para Zangaro por uma
companhia britânica. Refiro-me à prospecção efectuada há várias
semanas por uma firma de Londres, a Manson Consolidated.
  E o embaixador continuou a descrever o relatório que fora entregue por um certo Mr. Bryant ao ministro dos Recursos Naturais.
  - Resumindo, Excelência, recebi instruções para o informar de
que o meu governo crê que o relatório é inexacto no que se refere ao
que foi encontrado na Montanha de Cristal.
  - Em que aspecto é esse relatório inexacto? - perguntou Kimba em voz baixa.
  - Parece, Excelência, que as amostras de minério continham
mais elementos do que os indicados pelos ingleses.
  - Enganaram-me - disse Kimba, sempre em voz baixa.
  - É evidente, Excelência - atalhou Dobrovolsky -, que a
única maneira de adquirir uma certeza é encarregar outra equipa de
prospecção de examinar a área. Recebi instruções para solicitar a
Vossa Excelência autorização para que uma equipa do Instituto de
Minas de Sverdlovsky venha a Zangaro.
  Depois de ponderar a proposta, Kimba fez um gesto afirmativo
com a cabeça:
  - Concedido.
  Dobrovolsky inclinou-se. A seu lado, Volkov, aparentemente
segundo-secretário da embaixada, mas também membro da KGB,
lançou-lhe um olhar rápido.
  - O segundo assunto que nos preocupa é a segurança de Vossa
Excelência - prosseguiu Dobrovolsky.
  O ditador reagiu, finalmente. Endireitou bruscamente a cabeça e
lançou olhares desconfiados em redor da sala.
  - A minha segurança?
  - Para garantir a segurança absoluta da inestimável pessoa de
Vossa Excelência, e dada a recente traição de um dos vossos oficiais do Exército, sugerimos respeitosamente que um membro do
pessoal da minha embaixada seja autorizado a residir no palácio e a
prestar assistência à guarda pessoal de Vossa Excelência.
  A alusão à “traição” de Bobi arrancou Kimba do seu transe. O
dirigente zangarense começou a falar rapidamente, num tom de voz
progressivamente mais alto, enquanto olhava penetrantemente os
soviéticos. Apesar de se exprimir em vinci?, os russos compreendiam o essencial: o omnipresente periga de traição, os avisos que
recebera dos espíritos sobre conspirações e o seu conhecimento preciso da identidade de todos os traidores.
  Quando abandonaram o palácio, os dois homens transpiravam.
  - Amanhã instalo o meu homem - murmurou Volkov.
  - E eu mando vir os engenheiros de minas - declarou Dobrovolsky. - Esperemos que haja realmente alguma irregularidade no
relatório dos ingleses. Caso contrário, não sei que explicações vou
apresentar ao presidente.
  - Não queria estar na sua pele - grunhiu Volkov.
  CUNFURIVTE combinara com Harris antes de deixar Londres,
Shannon instalou-se no Hotel Lowndes, para onde, a partir do décimo dia da sua partida para Zangaro, Harris telefonaria diariamente, às nove horas da manhã, perguntando por Mr. Keith Brown.
Como chegou ao hotel ao meio-dia, Shannon estava livre até à
manhã seguinte.
  Depois de almoçar, ligou para a agência de detectives e pediu ao
director que lhe lesse pelo telefone o resultado das averiguações a
que procedera. O homem pigarreou e começou a leitura pedida.
  - Na manhã que se seguiu ao pedido do cliente, o meu detective esperou à entrada do parque de estacionamento subterrâneo do
Edifício ManCon. Pôde então ver perfeitamente o sujeito quando
este entrou, conduzindo um Corvette, no referido parque. O veículo
está registado em nome de Simon Endean, de Souto Kensington.
Endean é o assistente e braço direito de Sir James Manson, presidente e director da Manson Consolidated.
  - Obrigado - agradeceu Shannon, antes de desligar.
  NESSA mesma tarde, Simon Endean informava Sir James do resultado das diligências que efectuara:
  - Localizei Bobi - comunicou ao chefe.
  - Onde está ele?
  - No Daomé, num lugar chamado Cotonu, numa vivenda alugada, tentando passar despercebido.
  - E Shannon, o mercenário? - perguntou Manson.
  - Deve chegar de um dia para o outro, Sir James. Esta manhã,
às nove horas, ainda cá não estava.
  - Experimente agora - ordenou Manson.
  Endean foi informado de que Mr. Brown chegara de facto, mas
saíra.
  - Deixe um recado - resmungou Manson. - Diga que lhe
telefona esta tarde, às sete horas. Quero o relatório dele o mais
depressa possível.
  Shannon estava no quarto às sete horas para atender a chamada.
Passou o serão a coligir apontamentos e na manhã seguinte escreveu
o relatório. Começou por fazer uma narrativa concisa da sua visita e
descreveu pormenorizadamente a capital, cujo plano ilustrou com
esquiços. Depois fez uma descrição igualmente minuciosa da situação militar, incluindo o facto de não ter visto quaisquer indícios da
existência de uma força aérea ou naval. O único pormenor que não
mencionou foi a visita que fizera ao aglomerado de barracas dos
milhares de trabalhadores imigrantes, que conversavam entre si nas
várias línguas nativas, oriundas de regiões distantes.
  Terminou o relatório com o seguinte resumo:
  O próprio Kimba simplificou o problema da sua deposição. Se
perder o controle da planície costeira, que produz a maior parte dos
recursos nacionais, perderá o país. Os seus homens não poderiam
conservar essa área enfrentando o ódio de toda a população cada.
Também se perder o palácio, Kimba perderá a capital. Em resumo,
a sua política, de centralização reduziu os alvos a um único: o complexo do palácio. Os meios de o tomar também foram reduzidos a
um só, em virtude do muro que o cerca e da sua única porta: terá de
ser tomado de assalto.
  O palácio e os terrenos adjacentes poderiam ser tomados com
poucas baixas humanas, depois de serem pulverizados com fogo de
morteiro. O muro circundante, longe de constituir uma protecção
contra este. tipo de ataque, converte-se numa armadilha mortal para
os defensores. A porta poderia ser destruída com uma granada de
bazuca. Não vi vestígios de qualquer destas armas, nem uma única
pessoa apta a usá-las.
  Conclusão: qualquer facção do interior da república que pretenda apoderar-se do poder terá de destruir Kimba e os seus guardas
dentro do recinto do palácio. Para alcançar este objectivo, necessitaria da colaboração de especialistas com um elevado nível técnico
que não existem em Zangaro, pelo que tal assistência, bem como
todo o equipamento necessário, deveria provir do exterior do país.
Observadas estas condições, seria possível derrubar Kimba ao fim
de uma escaramuça que não duraria mais de uma hora.
  - Shannon sabe que não existe no interior de Zangaro nenhuma
facção que pretenda derrubar Kimba? - perguntou Sir James a
Endean no dia seguinte.
  - Disse-lhe que havia, no país, uma facção de dissidentes militares e que o consórcio comercial representado por mim pretendia
uma avaliação, sob o ponto de vista militar, das suas probabilidades de êxito. Mas ele não é parvo. Deve ter
  percebido que não há lá ninguém capaz de realizar semelhante operação.
  - Gosto deste Shannon - declarou Sir
  James. - Nota-se que é corajoso. O problema
  é se seria capaz de fazer o trabalho todo sozinho.
  Endean e Thorpe, confiando-lhes cargos demasiado elevados para as suas idades. Reconhecia em ambos uma falta
de escrúpulos que se equiparava à sua. Mas poderia confiar-lhes um
assunto confidencial de tal importância? Quando Thorpe entrou no
gabinete, já Manson sabia como garantir a lealdade de ambos.
  - Quero que pensem detidamente no que lhes vou perguntar:
até onde seriam capazes de chegar por cinco milhes. de libras, para
cada um, depositadas num banco suíço?
  Endean olhou-o, estupefacto, e respondeu pausadamente:
  - Até onde fosse preciso.
  Thorpe não respondeu. Sabia que chegara o momento da grande
oportunidade, razão por que se unira a Manson. Fez um gesto afirmativo com a cabeça.
  Manson falou ininterruptamente durante uma hora, acabando por
lhes revelar o que Chalmers detectara nas amostras da Montanha de
Cristal.
  Para elucidar Thorpe, leu uma grande parte dos relatórios de
Endean e Shannon. Sublinhou a influência soviética e também o
recente exílio de Bobi, cuja colocação no poder podia constituir
uma alternativa plausível.
  - Para que o plano tenha êxito, temos de montar duas operações paralelas e absolutamente secretas - declarou finalmente
Manson. - Numa delas, Shannon, dirigido por Simon, elabora
um projecto para destruir o palácio do presidente e entregar o poder a Bobi. Na outra, Martin teria de comprar uma empresa fictícia, sem revelar quem obteve o seu controle nem as razões por que
o fez.
  Endean franziu a testa e perguntou:
  - Qual é a necessidade da segunda operação?
  - Explique-lhe, Martin - ordenou Manson.
  - Uma companhia fictícia, Simon, é geralmente uma empresa
antiga e com pouco capital, cujas acções estão a um preço baixo,
digamos, um xelim cada uma. Suponhamos que alguém, através de
um banco suíço, comprava secretamente, por esse preço, uma parte
minoritária do milhão das acções que constituem o capital da companhia. Então, sem o conhecimento dos outros accionistas ou da
Bolsa de Valores, Sir James teria adquirido, através do banco suíço,
seiscentas mil dessas mesmas acções. Seguidamente, o presidente
Bobi vendia a essa companhia a concessão exclusiva de mineração
em Zangaro, válida por dez anos. Uma equipa de prospecção da
companhia desloca-se a Zangaro e descobre a Montanha de Cristal.
Que aconteceria às acções da Companhia X, quando a notícia chegasse à Bolsa?
  - Subiriam imediatamente - respondeu Endean.
  - Com alguma manipulação, cada acção subiria de um xelim
para muito mais de cem libras. A compra de seiscentas mil acções a
um xelim cada uma representa um desembolso de trinta mil libras.
A venda dessas mesmas acções ao preço mínimo de cem libras cada
uma resultaria nuns preciosos sessenta milhões de libras num banco
suíço. Não é assim, Sir James?
  - É assim mesmo. E, de preferência a vender as acções em
pequenos lotes, uma grande companhia poderia fazer uma oferta
para o total das seiscentas mil acções.
  Thorpe assentiu pensativamente e perguntou:
  - E de que companhia aceitaria o senhor a oferta?
  - Da minha - respondeu Manson. - A proposta da ManCon
seria a única aceitável. Deste modo, a concessão permaneceria em
mãos inglesas e a ManCon adquiriria um enorme capital.
  - Pagando o senhor sessenta milhões de libras? - estranhou
Endean.
  - Não - respondeu Thorpe serenamente. - Os accionistas da
ManCon pagariam a Sir James sessenta milhões de libras, embora
sem o saberem.
  Sir James Manson estendeu a cada um deles um copo de whiskey.
  - Meus senhores, aceitam a proposta? - perguntou.
  Os dois jovens acenaram afirmativamente.
  - Então bebamos à Montanha de Cristal.
  - Estejam amanhã aqui às nove em ponto - ordenou Manson
depois de terem bebido.
  À porta, Thorpe virou-se e observou:
  - Sir James, vai ser muitíssimo arriscado. Se consta uma só
palavra ..
  Sir James permaneceu de pé, de costas para a janela:
  - Assaltar um banco é uma operação pouco requintada. Assaltar toda uma república tem, parece-me, um certo estilo.
CAPÍTULO SEIS
- VOCÊ diz que não há no Exército nenhuma facção que tenha pensado derrubar o presidente Kimba?
  Cat Shannon encontrava-se no seu quarto de hotel com Endean.
  Endean respondeu com um gesto afirmativo.
  - Foi esse o único pormenor falseado da informação. Mas qual
é a diferença'? Você disse que os assistentes técnicos teriam, de
qualquer modo, de fazer eles próprios o trabalho todo.
  - Faz um raio de diferença! Tomar o palácio é uma coisa; manter a sua posse, outra. Quem vai assumir o poder?
  - Temos um homem em vista - respondeu Endean, cauteloso.
- Está exilado no Daomé.
  - Teria de estar instalado no palácio e comunicar pela rádio
que chefiara um golpe de Estado e assumira o governo do país a
meio-dia após a noite do ataque.
  - Isso será viável.
  - Outra coisa: as tropas leais ao novo regime têm de estar visivelmente presentes ao nascer do Sol desse dia. Caso contrário, estamos perdidos: um grupo de mercenários brancos encurralados no
interior do palácio, impossibilitados de se mostrarem por razes políticas e com a retirada cortada em caso de contra-ataque. O seu
exilado tem força de apoio suficiente?
  - Terá de deixar isso a nosso cargo - respondeu Endean secamente. - O que lhe pedimos é um plano de ataque que conduza à
morte de Kimba. Felizmente, há muito tempo que Kimba eliminou
todos aqueles que possuam iniciativa ou inteligência suficientes
para se tornarem seus rivais. Assim, não haverá ninguém para comandar um contra-ataque.
  - Sim ... E o povo acredita que ele tem um tabu, uma protecção poderosa contra a morte que lhe foi dada pelos espíritos. Ninguém apoiará o vosso homem antes de se saber que Kimba morreu;
mas, desde que vejam o cadáver, o homem que o tenha morto tornar-se-á o líder, por possuir um tabu mais poderoso que o do presidente. Assim, precisamos de ter a certeza absoluta de que Kimba
está no palácio quando atacarmos. Há só um dia em que é absolutamente certo que não sai: o Dia da Independência.
  - Quando é o Dia da Independência?
  - Daqui a três meses e meio.
  - É possível elaborar um plano nesse prazo? - perguntou
Endean.
  - Com sorte é, à justa. Quer que prepare um plano completo,
com cálculo de custos e datas?
  - Quero. Os custos são muito importantes para os meus ..
para os meus associados.
  - O plano vai custar-lhe quinhentas libras - declarou Shannon.
  - É um preço um pouco exagerado - observou Endean friamente.
  - Não diga disparates. Sou um especialista da guerra, sei onde
arranjar os melhores homens e as melhores armas e como embarcá-los. Essas informações custar-lhe-iam o dobro se tentasse obtê-las
pessoalmente ... o que de qualquer maneira lhe seria impossível,
pois faltam-lhe os contactos.
  Endean levantou-se.
  - Está bem. Receberá o dinheiro esta tarde. Passo a buscar o
relatório completo amanhã, às três horas.
  Não era a primeira vez que Shannon agradecia à sua boa estrela
a loquacidade de Gomez, que lhe referira o exílio de Bobi e o informara de que, sem Kimba, Bobi nada valia, pois era odiado pelos
Cajas e incapaz de comandar os Vindus. Este conhecimento colocava Shannon perante o problema de arranjar uma força de apoio negra que os substituísse na manhã seguinte ao ataque.
  Abriu os mapas e esquilos de Zangaro. A abordagem militar
clássica consistiria em desembarcar uma força na costa, avançar
para o interior e ocupar o cruzamento da estrada de Clarence. Esta
operação, que isolaria a península e a capital, impossibilitando-as
de receber reforços, anularia, por outro lado, o elemento surpresa.
  O talento de Shannon decorria do seu conhecimento de África e
de uma maneira de pensar muito própria. Para elaborar o seu plano,
baseou-se em três factos da guerra em África que aprendera por
experiência própria. Primeiro, que na escuridão o soldado africano
fica por vezes praticamente reduzido à impotência, devido ao medo
que sente pelo inimigo oculto; segundo, que a capacidade de recuperação do soldado africano desorientado é muito mais lenta do que
a do soldado europeu, o que exagera os efeitos normais da surpresa,
e terceiro, que um tiroteio ruidoso pode levar os soldados africanos
a entrarem em pânico e a fugirem desordenadamente, sem tomarem
em consideração o número real dos seus adversários.
  Consequentemente, Shannon baseou o seu plano num ataque
nocturno, totalmente inesperado e acompanhado de um barulho ensurdecedor.
  Enquanto trabalhava, assobiava uma melancólica melodia, que
quem quer que o conhecesse bem imediatamente reconheceria: Spanish Harpem.
  Nessa noite, Martin Thorpe manteve-se acordado até tarde. Sabia que o esperava um longo fim-de-semana, que dedicaria a consultar fichas para obter minuciosas informações sobre as quatro mil
e quinhentas sociedades comerciais registadas na Conservatória do
Registo Comercial da city.
  Há em Londres duas agências que fornecem informações sobre
empresas britânicas: a Moodies e a Exchange Telegraph, conhecida
por Extel. A ManCon utilizava os serviços da Extel, cujas fichas
Thorpe já tinha no seu gabinete. Porém, para a compra de uma
empresa fictícia, decidiu utilizar os serviços da Moodies, solicitando que enviassem as fichas para sua casa. Por uma questão de segurança, encarregara uma firma de advogados de encomendar um jogo
completo dessas fichas, sem mencionar o seu nome. Contratara
também uma furgoneta que na sexta-feira à tarde levaria a sua casa
os três armários-ficheiros.
  Estendido na cama, na sua luxuosa casa de Hampstead, Thorpe
planeava uma campanha, manejando accionistas com direito a voto
e lotes de acções do mesmo modo que Shannon movimentava bazucas e morteiros.
  ÀS três horas da tarde de sexta-feira, Shannon entregou a Endean o seu relatório de catorze páginas. Pressentindo a importância
do contrato que estava prestes a conseguir, resistira à tentação de
escrever na primeira página: “A atenção exclusiva de Sir James
Manson”, e continuava a aludir a Endean como a Harris.
  Em parte por curiosidade e em parte por pressentir que um dia
poderia necessitar da informação, desejava inteirar-se sobre a personalidade de Sir James Manson e os motivos que o teriam levado a
contratar um mercenário que lutasse por ele em Zangaro. Um
exemplar do Who's Who forneceu-lhe os dados essenciais sobre o
magnate que se fizera por si próprio. Encontrou referências a uma
filha, de aproximadamente vinte anos. Telefonou à agência de detectives que, a seu pedido, seguira e identificara Endean.
  - Preciso de informações sobre uma jovem que possivelmente
é alvo de referências nas colunas da vida social da imprensa londrina. Quero saber urgentemente o que faz e onde reside. Trata-se de
Judie Manson, filha de Sir James Manson.
  Cerca das cinco horas, e já na posse das informações que pretendia, Shannon telefonou ao seu amigo repórter que o recomendara
a Mr. Harris.
  - Olá - saudou secamente. - É Cat Shannon.
  - Cat! - exclamou o outro, surpreendido. - Onde tens estado?
  - Por aí. Só te queria agradecer por me teres recomendado
àquele tipo, o Harris.
  - De nada. Arranjou-te trabalho?
  - Sim, trabalho para uns dias - respondeu Shannon, cauteloso. - Já acabou, mas ainda tenho dinheiro. Não queres vir jantar
um dia comigo?
  - Acho óptimo.
  - Diz-me uma coisa. Ainda andas com a Careie? Ela era modelo, não era?
  - Exactamente. Ainda, ainda. Porquê?
  - Quero conhecer uma Judie Manson que também é modelo.
Podes perguntar à tua namorada se a conhece?
  - Claro que posso. Telefono à Careie e pergunto-lhe.
  Shannon teve sorte. As duas jovens estavam inscritas na mesma
agência e não foi difícil combinar um jantar para quatro naquela
noite: Careie e o namorado, Shannon e Judie.
  Comeram num pequeno restaurante, o Bater ad Open, uma
refeição do total agrado de Shannon: abundantes doses de carne assada à inglesa, regada com vinho Beaujolais. Cat gostou da comida
e gostou de Judie, alegre e atraente, com o cabelo castanho-escuro
caído até à cintura. Judie também pareceu interessar-se por ele.
  Careie aludiu à profissão de Shannon, mas este conseguiu evitar
o assunto durante o jantar. Quando saíram do restaurante, o repórter
pediu a Shannon que levasse Judie a casa.
  - Creio que estás garantido - murmurou.
  Quando chegaram ao seu apartamento de Mayfair, Judie convidou Shannon a entrar para tomarem um café. Só quando já se encontravam sentados a sorver a horrível beberagem que a jovem preparara, esta se referiu ao modo como ele ganhava a vida.
  - Já matou pessoas?
  - Já.
  - Quantas?
  - Não sei. Nunca as contei.
  - Nunca tinha conhecido um homem que tivesse matado comentou Judie, depois de um momento de reflexão.
  - Não pode sabê-lo - redarguiu Shannon. - Quem quer que
tenha participado numa guerra provavelmente matou.
  - Tem muitas cicatrizes? - Era uma das perguntas a que estava habituado.
  Fez um gesto afirmativo e respondeu:
  - Algumas. - Tinha cerca de vinte.
  - Mostre-mas.
  - Mostro-lhe as minhas se me mostrar as suas - respondeu
sorrindo.
  - Não tenho cicatrizes nenhumas! - replicou Judie, indignada.
  - Prove-o - insistiu Shannon laconicamente, virando-se para
colocar a chávena vazia numa mesa que se encontrava por detrás do
sofá.
  Quando se voltou, a estupefacção estampou-se-lhe no rosto. Em
menos de um segundo, Judie abrira o fecho de correr do vestido, que
lhe deslizara pelo corpo até aos tornozelos. Sob o vestido trazia
apenas, em torno da cintura, uma fina corrente de ouro.
  - Veja - disse suavemente -, nem uma única cicatriz.
  Shannon engoliu em seco.
  - Julgava que você era a menina ajuizada do papá.
  - Isso é o que todos julgam, incluindo o papá - redarguiu
Judie, soltando uma risada. - Agora é a sua vez.

  NESSE momento, Sir James Manson estava sentado na biblioteca
da sua residência de Gloucester, com o relatório de Shannon aberto
sobre os joelhos e um brandy com soda ao lado. Começou a ler:
  Objectivo da operação. Atacar e tomar o palácio presidencial de
Clarence, capital de Zangaro, e liquidar o presidente e os seus guardas pessoais, nele aquartelados. Tomar igualmente posse das armas
e do arsenal da república, do tesouro nacional e da emissora de
rádio, todos situados no interior do palácio.
  Plano de ataque. Não restam dúvidas de que o ataque deve ser
desencadeado directamente a partir do mar. Uma aterragem no
aeroporto não é viável, pois o transporte por via aérea das armas e
dos homens necessários despertaria suspeitas. Tão-pouco será possível um ataque por terra, pois homens e armas teriam de ser passados clandestinamente através da república vizinha, que possui um
eficiente sistema de segurança, pelo que se incorreria no grave risco
de detecção prematura da operação e subsequente detenção.
  Consequentemente, o único plano realista é o de um ataque por
meio de embarcações ligeiras que partam de um navio de maior
calado ancorado ao largo.
  Requisitos para o ataque. A força não deverá ser inferior a doze
homens, armados com morteiros, bazucas e granadas e todos eles
munidos de pistolas-metralhadoras para utilização a curta distância.
O desembarque deverá realizar-se entre as duas e as três da manhã,
altura em que toda a gente dorme em Clarence, e bastante antes do
alvorecer para que não se descubra que os atacantes são brancos.
  Nas seis páginas seguintes, Shannon descrevia a forma de contratação dos mercenários, as armas e munições necessárias, o tipo
de embarcações de ataque, uniformes, víveres e outras provisões
requeridas, os custos em que importaria a operação e o plano de
assalto ao palácio. No que se referia ao navio que transportaria a
força de ataque, declarava:
  Além das armas, a aquisição do navio será a operação mais difícil. Não recomendo o fretamento, o que implicaria uma tripulação e
um comandante que poderiam não merecer confiança. Aconselho a
compra de um pequeno cargueiro, tripulado por homens leais e pagos pelos interessados.
Sublinhava a necessidade de rigorosas medidas de segurança:
  Recomenda-se que Mr. Harris continue a ser o único intermediário entre os interessados e eu. As entregas do dinheiro necessário
devem ser-me feitas por Mr. Harris, a quem apresentarei contas das
despesas por mim efectuadas. Necessitarei de quatro auxiliares directos, nenhum dos quais, porém, deverá conhecer a natureza do
projecto antes de nos encontrarmos no mar alto. O equipamento
deverá ser comprado parcelarmente, em países diferentes e por pessoas diversas. Só eu próprio, Mr. Harris e os clientes deveremos
conhecer o plano em toda a sua extensão.
  Manson pegou na folha de custos. Segundo os cálculos de Shannon, e incluindo a viagem do mercenário a Zangaro, já paga, a
operação importaria numa despesa total de cem mil libras. Seguidamente, Manson estudou outra folha, que mencionava os prazos
previstos:
Fase preparatória: Recrutamento de pessoal. Abertura de conta bancária. Criação de uma companhia
com sede no estrangeiro que encubra as compras a
efectuar.                                              20 dias
Fase de aquisições: Compra de todo o material.         40 dias
Fase de recolha: Recolha a bordo do equipamento
e do pessoal.                                          20 dias
Fase de navegação: Transporte por mar, até Clarence,
de toda a força de ataque.                             20 dias

O ataque deverá ser desencadeado no dia em que se comemora a
independência de Zangaro, isto é, se o projecto for aprovado e iniciado na próxima quarta-feira, cem dias mais tarde.
  Sir James Manson leu o relatório duas vezes, encerrou-o no seu
cofre de parede e foi deitar-se.
  CA'r Shannon passou indolentemente a mão pelo corpo da jovem, que repousava semiatravessado sobre o seu. Era um corpo
 pequeno, mas extraor dinariamente erótico como tivera ocasião de
verificar durante a última hora.
  - É engraçado - murmurou, pensativo -, estamos aqui os
dois, assim, e eu não sei nada a teu respeito.
  - Nada como?
  - Por exemplo, onde é a tua casa, além deste apartamento.
  - Gloucestershire - murmurou.
  - Que faz o teu pai?
  Como não obtivesse resposta, agarrou-lhe numa madeixa de
cabelo e obrigou-a a voltar-se para ele.
  - Estás a magoar-me! Dirige uma companhia qualquer relacionada com minas. E essa a sua especialidade, e esta é a minha. Ora
vê ...
  Shannon riu-se.
  - Espera lá, fala-me do teu pai.
  - Do paizinho? Oh, é apenas um homem de negócios da city,
velho e chato.
  No sábado Sir James Manson saboreava o seu café do meio da
  manhã, no terraço da sua casa de campo, quando um telefonema de
  Adrian Goole o arrancou à tranquilidade do fim-de-semana:
  - É por causa daquela sua prospecção mineira, Sir James  disse o funcionário do MNE. - Lembra-se ...
  - Lembro. O relatório foi enviado e os números alterados,
  como você sugeriu. Não soube mais nada do assunto.
  - Mas nós soubemos. Não se trata de nada verdadeiramente
  inquietante, embora seja estranho. Ontem, ao fim do dia, constou-me que os Russos obtiveram autorização para mandar lá uma
  equipa de prospecção. Claro ...
  Sir James Manson olhava fixamente para o telefone, enquanto
  Goole continuava a palrar:
 - Pensei apenas, Sir James, que, se eles explorarem a mesma
  área que o seu funcionário, os resultados que obtiverem poderão ser
  um tanto ou quanto diferentes dos seus. Felizmente trata-se apenas
  de uma questão de quantidades insignificantes de estanho. No entanto, achei que devia informá-lo ... Está?
  Sir James foi obrigado a um enorme esforço para se arrancar aos
  seus pensamentos.
  - Estou, sim. Desculpe, meu caro amigo, estava a pensar. Foi
 muito amável em telefonar. Claro que não creio que vão pesquisar
  na mesma área, mas de qualquer modo é muito útil estar inteirado
  do que se passa.
  Regressou lentamente ao terraço, enquanto o seu cérebro trabalhava com redobrada energia. Coincidência? Era possível. No entanto, se os Russos se dirigissem directamente à Montanha de Cristal, não seria coincidência, mas pura sabotagem. Teria Chalmers
  falado? O homem cujo silêncio cria ter comprado? Rangeu os dentes. Sentiu-se predisposto a mandar Endean encarregar-se do Dr.
  Chalmers ... Essa medida, porém, em nada alteraria a situação.
 Sentou-se e começou a reflectir. Estava disposto a prosseguir
  com os seus planos, nos quais agora, porém, teria de considerar um
  novo elemento, o factor limite de tempo. Calculou que disporia de três meses. Se os Soviéticos descobrissem qual o conteúdo da Montanha de Cristal, imediatamente enviariam para Zangaro uma equipa
de “assistência técnica”, composta na sua maioria por elementos da
KGB. O prazo mínimo proposto por Shannon fora de cem dias, mas
provavelmente já não disporiam de tanto tempo.
  Aproximou-se de novo do telefone e ligou para Simon Endean.
  Na segunda-feira de manhã, Endean telefonou a Shannon e marcou uma entrevista para as duas da tarde, num apartamento de St'.
John's Wood. Segundo instruções de Sir James Manson, alugara
pelo período de um mês aquele apartamento, cujo telefone era directo, não passando a sua linha por qualquer quadro de distribuição
central.
  Não obstante ter chegado pontualmente, Shannon encontrou já à
sua espera o homem que tratava por Harris. O telefone estava equipado com um altifalante, o que permitiria aos ocupantes da sala
ouvirem o interlocutor do outro lado da linha.
  - O chefe do consórcio leu o seu relatório e quer falar consigo
- informou Endean.
  Quando o telefone tocou, Endean ligou um interruptor e Shannon ouviu pela primeira vez a voz de Manson.
  - Aprovo os seus cálculos e as suas conclusões, Mr. Shannon.
Se este contrato lhe fosse oferecido, executaria o plano?
  - Executaria, sim, senhor.
  - Verifico pelo seu orçamento que reserva para si a importância de dez mil libras. Que é que eu compro com o pagamento desses
honorários?
  - Compra os meus conhecimentos e os meus contactos com os
negociantes e traficantes de armas, contrabandistas e mercenários.
Compra também o meu silêncio, no caso de o plano falhar. Paga-me
três meses de trabalho muito duro e o risco constante de ser descoberto e preso, além do de ser morto em combate.
  - Acho justo. Vejamos agora o problema do financiamento. A
importância de cem mil libras será transferida para uma conta num
banco suíço, que vai ser aberta esta semana por Mr. Harris, o qual
Lhe pagará o dinheiro necessário parcelarmente, como e quando o
senhor necessitar. Quando se efectuarem as transacções, ele terá de
estar presente ou receber os respectivos recibos.
  - Isso nem sempre será possível. No negócio de armas não se
passam recibos, e muito menos no mercado negro, e a maioria dos
homens com os quais terei de negociar não consentirá a presença
de Mr. Harris. Sugiro a utilização de traveler's cheques e transferências de créditos bancários. Além do mais, e devido à minha própria segurança pessoal, não posso permitir que Mr. Harris, que eu
não conheço, me siga constantemente. O senhor tomou as suas precauções no que se refere a segurança, e eu tenho de tomar as minhas, o que implica que tenho de viajar e trabalhar sozinho, sem
vigilância.
  - O senhor é um homem cauteloso, Mr. Shannon.
  - Tenho de o ser. Ainda estou vivo.
  Ouviu-se uma gargalhada curta.
  - De acordo, Mr. Shannon, o contrato é seu. Tem cem dias
para roubar uma república. Cem dias.

SEGUNDA PARTE
Os cem dias
CAPÍTULO SETE
Depois de Manson ter desligado, Endean e Shannon fitaram-se
mutuamente. Shannon foi o primeiro a quebrar o silêncio.
  - Parto amanhã de avião para a Bélgica e abro uma conta bancária. Volto à noite e informo-o do nome do banco. Preciso de uma
transferência de dez mil libras, sobretudo para salários.
  - Onde posso contactar consigo? - perguntou-Lhe Endean.
  - Era exactamente o assunto que ia abordar. Vou precisar de
uma base segura para receber telefonemas e cartas. Pode ser este
apartamento?
  - Está alugado por um mês e pago adiantadamente.
  - Nesse caso, fico com ele e pago o aluguer. Como deduzo que
não vai querer dar-me o seu número de telefone, arranje uma morada na posta-restante, em Londres, e vá lá duas vezes por dia verificar se chegou algum telefonema. Se precisar de lhe falar, mando-lhe
um telegrama a indicar o número de telefone onde estou e a hora a
que deve telefonar-me. Entendido?
  - Entendido. Amanhã já tenho o dinheiro. Mais alguma coisa?
  - Sim. Durante toda a operação vou usar o nome de Keith
Brown. Tudo quanto receber assinado por Keith provém de mim.
Quando telefonar para um hotel, peça que chamem Keith Brown. Se
alguma vez lhe responder “Fala Mr. Brown”, desligue imediatamente, pois é sinal que há problemas.
  Endean saiu. Shannon reservou lugar num avião que partia na
manhã seguinte para Bruxelas e seguidamente enviou quatro telegramas iguais: um para Paarl, província do Cabo, África do Sul,
outro para Ostende, um terceiro para Marselha e o último para Munique. O texto era o seguinte: URGENTE. TELEFONA-ME LONDRES
507-0041 À MEIA-NOITE DE UM DOS PRÓXIMOS TRÊS DIAS. SHANNON.
Por fim, dirigiu-se de táxi ao Hotel Lowndes, onde liquidou a sua
conta. Não deixou qualquer morada.
 EMBORA em Londres a noite já tivesse caído, na província do
Cabo ainda estava uma clara e soalheira tarde de Verão. Janni Dupree ia a caminho de casa, depois de passar o dia a nadar. Embora
no fim de um contrato lhe fosse sempre agradável regressar a Paarl,
acabava inevitavelmente por se aborrecer depressa. Estava ansioso
por partir para outra guerra.
  MARC Vlaminck encostou-se ao balcão e engoliu de um trago
mais uma caneca de cerveja espumante. Através das janelas da casa
que a sua namorada, Anna, geria por conta dele, via as ruas do
bairro de bordéis de Ostende, nesse momento quase desertas. A
época de veraneio não se iniciara ainda. E começava a aborrecer-se.
  Durante o primeiro mês, apreciara com prazer os banhos quentes
e as conversas com os amigos. Porém, a inactividade começava a
enfastiá-lo. No andar de cima ouvia o ruído dos passos de Anna,
que fazia a limpeza do apartamento de ambos. Justamente quando
se erguia do tamborete e começava a subir a escada das traseiras, a
porta abriu-se e um telegrama foi lançado para o interior da casa.
  ESTAVA um claro entardecer primaveril e a água do Porto Velho
de Marselha parecia de vidro. Le Panier era uma caldeira fervilhante de gente onde apenas a polícia seria ilegal. Sentado a uma mesa
no canto de um pequeno bar, Jean-Baptiste Langarotti olhou para o
relógio, suspirou e terminou a sua bebida. Estava na hora de passar
pelo posto dos Correios, aberto toda a noite, para saber se tinha
notícias de Shannon sobre um possível contrato.
  O corso não se aborrecia tanto como o sul-africano e o belga. Os
anos de prisão haviam-no ensinado a suportar longos períodos de
inactividade. Aliás, recebera já uma proposta. Charles Roux telefonara-Lhe de Paris, propondo-lhe que aceitasse trabalhar exclusivamente para ele. Porém, após receber algumas informações, Langarotti concluíra que as propostas de Roux não se apoiavam em nenhuma base sólida, pois o francês não realizara qualquer operação
desde que regressara de Bukavu, em 1967, com um braço ferido.
  EM Munique, sob um frio cortante, Kurt Semmler, a caminho
dos Correios, onde todas as noites se dirigia, tiritava no seu casaco
de cabedal. Como a maioria dos veteranos do Exército, detestava a
vida civil, desprezava a política e ansiava por aquela outra vida
onde a rotina e a acção se interligavam. Bebera demasiado, fumara
demasiado, frequentara vários bordéis e começava a sentir-se verdadeiramente entediado. Nessa noite não havia nada para ele nos
Correios.
  À meia-noite, Marc Vlaminck telefonou de Ostende. Shannon
recomendou-lhe que estivesse às dez horas no Aeroporto de Bruxelas com um automóvel.
  As vantagens que a Bélgica oferece a quem deseja movimentar
secretamente uma conta bancária legal superam as concedidas pelo
sistema bancário suíço. As leis bancárias belgas permitem entradas
e saídas de quantias ilimitadas de dinheiro sem interferência governamental, e os banqueiros belgas são tão discretos como os suíços.
  A caminho do Kredietbank, em Bruges, onde Shannon lhe pedira que o conduzisse, o alentado belga não traiu a curiosidade que o
acometia. Durante o trajecto, Shannon informou-o sucintamente de
que firmara um contrato para realizar uma operação para a prossecução da qual necessitaria de quatro auxiliares e perguntou-lhe se
estaria interessado em participar, ao que o Pequeno Marc respondeu
afirmativamente. Shannon explicou-lhe que o trabalho não era exclusivamente de natureza bélica, mas que também implicava a montagem de toda a operação.
  - Não assalto bancos - avisou Marc.
  - Nem eu. Preciso de embarcar algumas armas a bordo de um
navio. Temos de ser nós próprios a tratar do assunto. Depois ...
África e um belo tiroteio.
  Marc sorriu.
  - Uma campanha demorada ou um trabalho rápido? - perguntou.
  - Um ataque - respondeu Shannon. - Nota, no entanto, que,
se for bem sucedido, talvez nos assegure um contrato prolongado. E
um bónus substancial, se tivermos êxito.
  - Está bem, conta comigo - decidiu Marc.
  No Kredietbank, Shannon apresentou-se ao chefe da secção de
contas estrangeiras e identificou-se como Keith Brown por meio do
seu passaporte. Quarenta minutos depois, abrira uma conta de cem
libras esterlinas, informara que deveriam chegar dez mil libras num
dos próximos dias e dera instruções no sentido de metade dessa
importância ser imediatamente transferida para o seu banco em
Londres. Deixou várias assinaturas em nome de Keith Brown e
combinou um método de comprovação da sua identidade por telefone: a enumeração, pela ordem inversa, dos doze algarismos do
número da sua conta, seguidos da data do dia anterior. Desse modo,
poderia transmitir por telefone instruções sobre transferências e levantamentos, sem necessidade de se deslocar a Bruges.
  Cerca do meio-dia e meia hora, uma vez esse assunto resolvido,
juntou-se a Vlaminck, que o esperava cá fora. Almoçaram, após o
que Marc o conduziu de novo ao Aeroporto de Bruxelas. Shannon
entregou-lhe cinquenta libras e recomendou-lhe que estivesse no
apartamento de Londres às seis horas da tarde do dia seguinte.
  Também Simon Endean tivera um dia movimentado. Tomara o
primeiro avião para Zurique e desembarcara no Aeroporto de Kloten
ao mesmo tempo que Shannon aterrava em Bruxelas. Uma hora
depois, abrira uma conta no Handelsbank de Zurique e informara
que, no decorrer da semana, seria transferida para a nova conta a
importância de cem mil libras, dez mil das quais o banco deveria
transferir para uma conta na Bélgica, cujo número ele indicaria por
escrito.
  Antes das seis da tarde, Endean encontrava-se de novo em Londres.
  Na tarde dessa mesma terça-feira, Martin Thorpe chegou exausto
ao escritório. Passara três dias a examinar as quatro mil e quinhentas
fichas da Moodies, à procura de uma pequena companhia cuja fundação remontasse de preferência há bastantes anos e cuja situação financeira fosse de momento pouco favorável, com uma capitalização
de mercado inferior a duzentas mil libras. Encontrara cerca de duas
dezenas de companhias que preenchiam esses requisitos, mas precisava de informações mais pormenorizadas. A meio da tarde, encontrava-se na Conservatória do Registo Comercial de Londres.
  Enviou aos arquivistas uma lista das primeiras oito companhias
que escolhera e pagou a taxa que lhe outorgava o direito de examinar todos os documentos a elas referentes. Enquanto esperava pelos
dossiers, relanceou as cotações da Bolsa, verificando que nenhuma
delas estava cotada a mais de três xelins por acção.
  Quando o Registo Comercial fechou, ao fim do dia de trabalho,
Thorpe concluíra a sua busca. Na manhã seguinte indicaria ao patrão o nome da companhia que escolhera. Os dados que sobre ela
recolhera pareciam extremamente auspiciosos.
  O telefone de Shannon tocou à meia-noite menos um quarto. Era
Semmler. Shannon informou-o de que tinha trabalho e declarou-lhe
que devia estar em Londres às seis da tarde do dia seguinte. As
despesas seriam pagas.
  Dez minutos mais tarde telefonou Langarotti, de Marselha, que
também concordou em estar em Londres às seis horas da tarde, no
apartamento de Shannon.
  A última chamada, à meia-noite e meia hora, foi a de Janni
Dupree, que prometeu estar no apartamento de Shannon na quinta-feira à noite.
  Depois de atendido o último telefonema, Shannon entregou-se,
durante uma hora, à leitura de Armas Ligeiras Mundiais, após o que
adormeceu. Terminara o primeiro dia.
  Na quarta-feira de manhã, Sir James Manson saboreou um suculento pequeno-almoço na primeira classe do Trident-3, no qual viajava a caminho de Zurique. Pouco antes do meio-dia, era conduzido
ao gabinete do Dr. Martin Steinhofer, do Zwingli Bank. O banco
actuara diversas vezes em nome de Manson, comprando acções que,
adquiridas em seu próprio nome, teriam triplicado de valor. Depois
de Lhe serem servidos café e charutos, Sir James abordou o assunto:
  - Tenciono adquirir brevemente a maioria das acções de uma
companhia britânica, uma sociedade anónima. Embora de início
esta transacção não vá envolver somas importantes, tenho razões
para crer que, mais tarde, chegarão ao conhecimento da Bolsa de
Valores dados que terão um efeito interessante sobre a cotação das
acções da companhia.
  Manson não necessitava de explicar ao banqueiro suíço as normas da Bolsa de Valores de Londres. Segundo a lei que rege as
sociedades britânicas, qualquer pessoa que adquira dez por cento ou
mais das acções de uma sociedade anónima deve identificar-se perante os directores da mesma. Uma das formas de iludir essa norma
e de obter o controle secreto de uma sociedade consiste na utilização de compradores nominais. No entanto, qualquer firma corretora
respeitável não tardaria a descobrir se o comprador real de um considerável lote de acções seria um homem que actuava por intermédio de compradores nominais e cumpriria a lei.
  Um banco suíço, porém, não abrangido pelas leis britânicas,
recusa-se pura e simplesmente a revelar a identidade de quem quer
que se encontre por detrás dos nomes que indica como sendo os
seus clientes, e tão-pouco fornece informações, mesmo que suspeite
de que esses nomes pertencem a pessoas inexistentes. Os dois funcionários que se encontravam no gabinete do Dr. Steinhofer estavam perfeitamente ao facto de todos esses pormenores técnicos.
  - A fim de efectuar a necessária aquisição das acções, arranjei
seis sócios. Concordaram todos em abrir pequenas contas no Zwingli Bank e pedem-lhes o favor de proceder às aquisições em seu
nome - prosseguiu Sir James.
  - Isso não apresenta qualquer problema - declarou prudentemente o Dr. Steinhofer. - Esses senhores virão cá abrir as contas?
  - É possível que estejam demasiado ocupados e não possam vir
pessoalmente. Encarreguei o meu assistente financeiro, Mr. Martin
Thorpe, de me representar. Talvez os outros seis sócios desejem
utilizar o mesmo processo. Faz alguma objecção a que não compareçamos pessoalmente?
  - Evidentemente que não - murmurou o Dr. Steinhofer.
  - Nesse caso, aqui tem a minha procuração, assinada por mim
e devidamente reconhecida pelo notário. Tem cá a minha assinatura
para comparar. Dentro de dez dias, Mr. Thorpe vem a Zurique para
concluir as restantes démarches.
  O Dr. Steinhofer fez um gesto afirmativo com a cabeça.
  - Não há qualquer problema, Sir James.
  Manson apagou o charuto e levantou-se:
  - Nesse caso, despeço-me, Dr. Steinhofer.
  Trocaram um aperto de mão e um funcionário acompanhou Sìr
James Manson à porta. Quando a sólida porta de carvalho se fechou
silenciosamente atrás dele, Manson entrou na limusina que o esperava.
  NAQUELA manhã, o subsecretário adjunto Sergei Golon não estava de bom humor. A sua dispepsia crónica atormentara-o inexoravelmente durante todo o dia e a sua secretária não comparecera ao
trabalho por se encontrar doente. Para lá das janelas do seu gabinete
do Departamento da África Ocidental do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, os boulevards de Moscovo, varridos pelo vento, cobriam-se de neve semiderretida, de um tom cinzento-sujo à luz fraca
da manhã. Golon pegou num dossier que o subsecretário lhe deixara
com a indicação: “Estude e ordene a actuação necessária.” Começou a examinar, com ar sombrio, o conteúdo do dossier, cujo primeiro documento era um memorando dos serviços de informação
estrangeira e cujo último era um telegrama do embaixador Dobrovolsky recomendando acção imediata.
  “Como se não tivéssemos mais nada com que nos preocupar”,
resmungou Golon.
  Não compreendia por que motivo teria importância a existência
ou inexistência de estanho em Zangaro. A União Soviética possuía
estanho suficiente.
  No entanto, como bom funcionário público, procedeu de acordo
com as directrizes recebidas, uma vez que a acção fora autorizada
pelas vias superiores. Pediu uma estenógrafa à secção de dactilografia e ditou-lhe uma carta dirigida ao director do Instituto de Minas
Sverdlovsk, solicitando-lhe que seleccionasse uma equipa de engenheiros e geólogos a fim de estudarem uma possível jazida de estanho na África Ocidental.
  NA quarta-feira, no fim do almoço, Cat Shannon telefonou ao
seu amigo repórter.
  - Julgava que tinhas saído da cidade - observou o repórter. - A Carrie disse-me que a Julie tem andado à tua procura e que está
sempre a falar em ti. Telefonou para o Hotel Lowndes e informaram-na de que tinhas partido sem deixar direcção.
  Shannon prometeu que telefonaria à jovem e deu ao amigo o
número do telefone do apartamento, mas não a direcção. Depois de
mais alguns segundos de conversa banal, pediu a informação que
desejava.
  - Acho que podia - respondeu-lhe o amigo, duvidoso. - Mas, para te ser franco, tenho de lhe telefonar primeiro, para saber
se está de acordo.
  - Está bem, telefona. Diz-lhe que sou eu, que preciso de o ver
e estou disposto a ir lá passar umas horas com ele. Frisa que não o
incomodava se não tivesse a certeza de que é importante.
  O repórter acedeu a fazer a chamada e a telefonar-lhe depois
para lhe dar uma morada, se o homem em questão acedesse a falar
com Shannon.
  O primeiro mercenário a chegar a Londres foi Marc Vlaminck,
que telefonou a Shannon pouco depois das cinco horas da tarde. Cat
consultou a lista dos três hotéis existentes nas imediações e deu-lhe
o nome de um deles. Kurt Semmler telefonou dez minutos depois de
Vlaminck. Tomou nota do nome do hotel que Shannon lhe indicou,
para o qual seguiu de táxi. Langarotti, o último a chegar, também
tomou um táxi para o seu hotel.
  Às sete horas, Shannon telefonou a todos e convocou-os para
uma reunião no seu apartamento.
  Só tiveram conhecimento da presença uns dos outros quando se
viram e cumprimentaram. Os seus largos sorrisos denotavam em
parte o prazer de reverem velhos amigos e em parte a certeza de que
o facto de Shannon os ter chamado a todos a Londres significava
forçosamente que tinha dinheiro. Quando este os informou que
Dupree também viria, de avião, da África do Sul, compreenderam
que se tratava de um assunto importante.
  - O trabalho que me confiaram tem de ser organizado a partir
do zero - declarou Shannon. - O objectivo é montar um ataque
estilo comando a uma cidade da costa da África Ocidental. Temos
de ocupar um edifício, liquidar todos os seus ocupantes e retirar.
  Vlaminck sorriu, Semmler murmurou: “Klasse”, e Langarotti
passou a lâmina da faca pela tira de cabedal preto que trazia enrolada em torno do pulso esquerdo.
  Shannon desdobrou um mapa no chão e descreveu o tipo de
ataque que propusera ao seu cliente, com o qual os três homens
concordaram. Nenhum deles perguntou exactamente onde teria lugar a operação, sabendo que ele não lhes revelaria essa informação,
não por falta de confiança, mas por razões de segurança.
  - E pronto - concluiu Shannon. - As condições são mil duzentos e cinquenta dólares por mês, a partir de amanhã e durante
três meses, bem como as despesas e um bónus de cinco mil dólares,
em caso de êxito. Duas das coisas a ser feitas nas fases preparatórias são ilegais: uma travessia da fronteira da Bélgica para a França
e o carregamento de alguns caixotes num navio, algures no Sul da
Europa. Participaremos todos em ambas as missões. Que dizem?
  Langarotti perguntou, sem deixar de afiar a lâmina da faca:
  - É contra os interesses franceses?
  - Dou-te a minha palavra de que não é.
  Os quatro apertaram as mãos e o contrato ficou selado.
  - Muito bem - disse Shannon. - Kurt, começa a procurar
um barco. Preciso de um pequeno cargueiro que não atraia as atenções, com cadastro limpo e a documentação em ordem. Interessa-me mais que seja de confiança do que veloz. O preço não deve
ultrapassar as vinte e cinco mil libras. Deve estar totalmente abastecido de combustível e provisões para partir para a Cidade do Cabo
dentro de sessenta dias. Percebeste?
  Semmler fez um gesto de concordância e começou imediatamente a pensar nos contactos que mantinha no mundo da navegação, no
Mediterrâneo.
  - Jean-Baptiste, tu regressas a Marselha e arranjas-me três barcos de borracha grandes, infláveis e semi-rígidos. Do tipo fabricado
para desportos náuticos, copiado do modelo básico da embarcação
de assalto de comandos dos fuzileiros. Quero que sejam pretos.
Compra-os em fornecedores diferentes e leva-os para o armazém de
um agente de navegação respeitável, a fim de serem exportados para
Marrocos. Compra também três motores fora de borda de sessenta
cavalos, com arranque por bateria e escapes submersos, para funcionarem silenciosamente. Abre uma conta bancária e informa-me
pelo correio do número e do nome do banco. Eu mando o dinheiro
por transferência de crédito. Está bem?
  Langarotti acenou afirmativamente e continuou a afiar a faca.
  - Marc, disseste-me uma vez que conhecias um homem, na
Bélgica, que assaltou um grande depósito de pistolas-metralhadoras
Schmeisser, completamente novas, em 1945. Se ele ainda tiver algumas, quero cem que funcionem perfeitamente. Procura-o, marca-me um encontro com ele e comunica-me para esta morada o dia e
hora. Entendido?
  Às nove e meia todos tinham recebido as suas instruções e
Shannon levou-os a jantar ao Paprika. Todos se sentiam entusiasmados com a perspectiva de voltarem de novo a lutar sob o comando de Cat Shannon.
  NA margem oposta do canal, outro homem pensava em Carlo
Alfred Thomas Shannon, enquanto percorria o seu apartamento de
um extremo ao outro, reflectindo nas informações que acabara de
receber de Marselha.
  Se o repórter que recomendara Charles Roux a Simon Endean
como alternativa possível conhecesse melhor o carácter do francês,
tê-lo-ia descrito de modo menos lisonjeiro. Ignorava também o ódio
acerbo que Roux nutria pelo mercenário irlandês.
  Depois da sua entrevista com Endean, Roux esperara quinze
dias por um segundo contacto por parte do homem que dissera chamar-se Harris. Como este contacto não se verificara, chegara à conclusão de que, ou o projecto fora abandonado ou o trabalho fora
confiado a outro homem. Depois de proceder a várias investigações,
teve conhecimento de que Shannon estivera em Paris. Este facto
alarmara-o, pois, segundo cria, após as palavras que haviam trocado
em Le Bourget, Shannon partira. Ao verificar que se enganara, encarregou um dos seus sequazes, de nome Henri Alain, de localizar o
odiado irlandês. Alain informou-o de que Shannon estivera instalado num hotel de Montmartre, do qual partira, sem deixar qualquer
direcção, na manhã que se seguira à visita de um homem vindo de
Londres. Roux não teve dúvidas quanto à identidade do visitante.
Obviamente? Mr. Harris contactara dois mercenários em Paris, e
ele, Roux, fora preterido.
  Encarregou Alain de vigiar o hotel durante quatro dias, mas
Shannon não regressou. Lembrando-se então de que os jornais haviam associado o nome de Shannon ao de Langarotti nos recentes
combates na África Ocidental, enviou Alain a Marselha. Este acabava de comunicar-lhe que Langarotti partira de Marselha para
Londres.
  Depois da partida de Alain, Roux reflectiu nos factos. Shannon
estava a recrutar homens, sem dúvida porque aceitara o contrato de
Walter Harris - contrato que, estava pessoalmente convencido, lhe
pertencia. Arriscava-se a perder o domínio que exercia sobre os
mercenários franceses se não arranjasse qualquer tipo de trabalho.
Se Shannon desaparecesse - para sempre -, provavelmente Mr.
Harris voltaria a procurá-lo.
  Sem mais delongas, fez um telefonema local.
  O novo visitante de Roux, Raymond Thomard, era um assassino
por instinto e profissão. Também combatera no Congo, onde Roux
o utilizara para trabalhos sórdidos. Crendo, embora erradamente,
que Roux era um homem importante, Thomard era-Lhe tão leal
quanto um indivíduo comprado o pode ser.
  - Tenho um contrato para ti - informou-o Roux. - Cinco mil
dólares.
  Thomard sorriu.
  - Quem é o homem que queres limpar?
  - Cat Shannon.
  O sorriso apagou-se do rosto de Thomard, mas Roux prosseguiu, sem lhe dar tempo a responder:
  - Sei que ele é bom, mas tu és melhor. Ele conhece-te?
  Thomard abanou a cabeça.
  - Nunca nos encontrámos.
  - Então não precisas de te preocupar - declarou Roux, dando-lhe uma palmada nas costas. - Mantém-te em contacto comigo.
Digo-te onde podes encontrá-lo.
  EM Londres, o jantar praticamente terminado, o Pequeno Marc
propôs que fizessem o brinde do Congo:
Vive la mort, vive la guerre,
Vive le sacré mercenaire.
  De espírito desanuviado, enquanto os outros se embriagavam,
Cat Shannon interrogou-se sobre o grau de violência que se desencadearia quando soltasse aquela matilha de cães no palácio de Kimba. Silenciosamente, bebeu pelos cães da guerra.
CAPÍTULO OITO
Pouco depois das nove horas da manhã de quinta-feira, Martin
Thorpe apresentou-se no gabinete de Sir James Manson com os
dados que obtivera.
  - Não há dúvida de que tem razão acerca da Bormac, Martin
- confirmou Manson, depois de estudar os documentos. - Mas
porque é que ainda não a compraram ao accionista maioritário?
  A Bormac Trading Company fora criada para explorar a produção de vastas plantações de borracha no Bornéu, empregando
trabalhadores chineses. O seu fundador fora um escocês inflexível chamado Ian Macallister. Em 1904, Macallister e um grupo
de homens de negócios britânicos haviam constituído a Bormac
com uma emissão de meio milhão de acções. O escocês ficara
com cento e cinquenta mil acções, um lugar na administração e a
gerência das plantações. Decorridos dez anos, e graças a lucrativos contratos de guerra, o preço das acções subira de quatro xelins para mais de duas libras. A explosão de lucros consequente
da guerra prolongou-se até 1918. Verificou-se uma quebra brusca
imediatamente após a I Guerra Mundial, mas a loucura dos automóveis na década de 1920 aumentou consideravelmente a procura da borracha, necessária para o fabrico de pneus. Realizou-se
uma nova emissão de acções ao par, elevando-se para um milhão
o número total de acções e para trezentos mil o lote de Sir Ian.
  A depressão da década de 1930 fez descer de novo a cotação
das acções. Em 1937, a companhia começava a recuperar quando
um dos coolies chineses enlouqueceu e, enquanto Sir Ian dormia,
o assassinou com um parang de lâmina afiada. Faltava ao subgerente que o substituiu no cargo a garra do patrão assassinado,
pelo que a produção decresceu. A companhia foi-se mantendo
numa situação económica muito desfavorável, acabando por perder irrecuperavelmente as suas possessões após a  Guerra Mundial, em consequência do nacionalismo indonésio. Quando Martin Thorpe consultou os livros da firma, as suas acções valiam
um xelim cada uma.
  O conselho de administração da Bormac era composto por
cinco directores que controlavam apenas dezoito por cento do total
de um milhão de acções. Das restantes, cinquenta e dois por cento
estavam distribuídos por seis mil e quinhentos accionistas. Era, porém, um único lote de trezentas mil acções, pertencentes à viúva de
Sir Ian Macallister, que interessava a Thorpe e Manson.
  Era estranho que este lote não tivesse há muito sido vendido,
pois com ele o comprador adquiriria a possibilidade de dispor da
estrutura da outrora florescente companhia. Tal como estava montada, era ideal para a exploração dos recursos naturais de qualquer
país fora do Reino Unido.
  - Ela deve ter pelo menos oitenta e cinco anos - disse Thorpe. - Vive num apartamento lúgubre em Kensington, ao cuidado
de uma dama de companhia.
  - Já foi, com certeza, abordada ... - murmurou Sir James,
pensativo. - Martin, informe-se a seu respeito. Deve ter um ponto
fraco qualquer que possamos explorar para a persuadir a vender.
Descubra-o, seja ele qual for.
  Seguidamente, Manson retirou da gaveta da secretária seis impressos de pedidos de abertura de contas numeradas no Zwingli
Bank, em Zurique, e explicou, rápida e concisamente, o que queria
que se fizesse.
  ENDEAN telefonou a Shannon pouco depois das duas horas e foi
pormenorizadamente informado das providências por este tomadas e
das suas necessidades imediatas:
  - Quero que na próxima segunda-feira, até ao meio-dia, transfira por telex do vosso banco suíço para crédito da minha conta, isto
é, a de Keith Brown, no Banque de Crédit, no Luxemburgo, cinco
mil libras, e mais cinco mil para o Landesbank, em Hamburgo.
  Explicou que necessitava do dinheiro essencialmente para provar
o seu crédito, antes de iniciar negociações para as compras. Mais
tarde, transferiria a maior parte dessa soma para Bruges.
  Endean prometeu enviar imediatamente as instruções necessárias
para Zurique.
  NA quinta-feira, quando Janni Dupree chegou da Cidade do
Cabo, realizou-se nova reunião para celebrar. Quando ouviu as condições de Shannon, o rosto de Janni abriu-se num sorriso.
  - Conta comigo, Cat.
  - Óptimo. Quero que fiques em Londres e compres o vestuário
de que vamos precisar. Vou dar-te uma lista completa.
  - Está bem. Quanto custará?
  - Cerca de mil libras. Fazes as compras em lojas diferentes,
pagas a pronto e levas imediatamente tudo o que comprares. Não
dês a ninguém nem um nome nem uma morada verídicos. Guarda
tudo num armazém, manda encaixotar para exportação e consulta
quatro despachantes diferentes. Paga a cada um deles para enviar a
encomenda a outro despachante de Marselha, a fim de ser levantada
por Monsieur Jean-Baptiste Langarotti.
  - Qual é o despachante de Marselha? - perguntou Dupree.
  - Ainda não sabemos - respondeu Shannon, voltando-se em
seguida para o corso: - Jean, quando souberes o nome do agente
que tencionas utilizar para a exportação dos barcos de borracha e
dos motores, manda-nos o nome e a morada pelo correio; uma cópia
para aqui, para mim, e outra para Jean Dupree, Posta-Restante de
Trafalgar Square. Falemos agora de dinheiro.
  Shannon retirou da sua secretária quatro cartas dirigidas ao Kredietbank de Bruges, no espaço em branco de cada uma das quais
escreveu respectivamente o nome do banco de cada mercenário.
Nessas cartas pedia-se ao Kredietbank que, no próprio dia da recepção das mesmas, transferisse mil duzentos e cinquenta dólares para
a conta de cada um dos nomes e bancos mencionados. A mesma
transferência deveria repetir-se nos dias 5 de Maio e 5 de Junho.
Finalmente, Shannon entregou a cada um deles o dinheiro necessário para despesas de hotel e passagens de avião e recomendou-lhes
que se lhe reunissem às onze horas da manhã do dia seguinte, à
porta do seu banco em Londres.
  Quando todos saíram, e depois de confirmar por telefone junto
do seu amigo repórter que poderia fazê-lo, Shannon sentou-se e escreveu uma extensa carta a um homem de África. Nessa noite,
Shannon jantou sozinho.
  NA sexta-feira de manhã, em Zurique, Martin Thorpe entregou
ao Dr. Steinhofer, do Zwingli Bank, seis formulários para abertura
de contas numeradas em nome dos Srs. Adãms, Ball, Carter, Davies, Edwards e Frost. Apensas a cada formulário estavam duas cartas: uma passava procuração a Mr. Martin Thorpe para movimentar
as contas; a outra, assinada por Sir James Manson, pedia ao Dr.
Steinhofer que transferisse para a conta de cada um dos seus associados a quantia de cinquenta mil libras.
  O Dr. Steinhofer aceitou os formulários sem fazer qualquer observação. Se um inglês rico decidia contornar as complexas normas
legais do seu país, o problema era dele.
  - A empresa que temos em vista chama-se Bormac Trading
Company - disse Thorpe a Steinhofer. - Vamos tentar persuadir
Lady Macallister a vender os trinta por cento de acções da Bormac.
Como sabe, não é permitido a um único comprador adquirir mais de
dez por cento de acções de uma companhia sem revelar a sua identidade. Consequentemente, os quatro compradores serão Mr.
Adams, Mr. Ball, Mr. Carter e Mr. Davies, cada um dos quais
adquirirá sete e meio por cento do lote. Pedimos-lhe que actue em
nome deles.
  O banqueiro fez um gesto de consentimento. Tratava-se de uma
prática corrente.
  - Vou tentar convencer a senhora a assinar os certificados de
transferência sem que neles se mencione o nome do comprador - acrescentou Thorpe.
  - Compreendo perfeitamente - redarguiu calmamente o Dr.
Steinhofer. - Depois de ter conversado com a senhora, estudamos a
melhor maneira de proceder. Diga a Sir James que não se preocupe.
Thorpe estava de regresso a Londres ao anoitecer, a tempo de
gozar o fim-de-semana.
  QUANDO saiu do banco, Shannon trazia consigo quatro sobrescritos castanhos contendo dinheiro e instruções. Os quatro mercenários, que o esperavam no passeio, receberam os respectivos sobrescritos e seguiram diferentes direcções.
  Chegado ao apartamento, Shannon redigiu um relatório para
Endean, que nessa mesma noite enviou pelo correio. Como tinha o
fim-de-semana livre, telefonou a Julie Manson e convidou-a para
jantar. Ela foi buscá-lo, conduzindo o seu MGB vermelho.
  - Vamos jantar a um lugar que eu conheço - propôs a jovem.
- Assim posso apresentar-te a alguns dos meus amigos.
  Shannon sacudiu a cabeça num gesto de negação.
  - Nem penses. Não vou passar a noite toda a ouvir perguntas
idiotas a respeito de como se matam pessoas.
  Ela fez beicinho.
  - Por favor, Cat! Não digo o que fazes.
  Shannon deixou-se convencer.
  - Está bem, mas com uma condição. Chamo-me Keith Brown
e não dizes mais nada a meu respeito nem a respeito do que faço.
Entendido?
  Julie soltou uma breve gargalhada.
  - Formidável! Venha daí, Mr. Keith Brown.
  Levou-o ao Tramp's, cujo gerente a cumprimentou com um beijo e apertou a mão a Shannon.
  Uma vez sentados à mesa, Shannon olhou à sua volta, observando a clientela. Notando os cabelos compridos e o vestuário informal, deduziu que quase todos os presentes deveriam pertencer ao
mundo do teatro e similares. Havia, no entanto, também alguns jovens homens de negócios que pretendiam seguir a moda, entre os
quais não tardou a descobrir uma cara conhecida. Quando terminou
o seu cocktail de lagosta, pediu licença e encaminhou-se na direcção do vestíbulo, como se pretendesse dirigir-se ao lavabo dos homens. Decorridos segundos, sentiu uma mão no ombro e virou-se
para enfrentar Simon Endean.
  - Está doido? - perguntou-lhe este rispidamente.
  Shannon olhou-o com pretensa surpresa e ar inocente.
  - Creio que não. Porquê?
  Endean estava pálido de cólera, pois sabia o carinho que Manson dedicava à sua “inocente” filha. Porém, provocar uma altercação com aquele indivíduo pelo facto de este jantar com uma jovem
de apelido Manson revelaria a sua máscara e a do patrão.
  - Que está aqui a fazer? - perguntou, confuso.
  - A jantar - respondeu-lhe Shannon com ar intrigado. - Escute, Harris, apeteceu-me sair e jantar fora e ninguém tem nada
com isso.
  - Quem é ela?
  Shannon encolheu os ombros.
  - Chama-se Julie e conheci-a num café.
  - É um conhecimento de acaso? - perguntou Endean, horrorizado.
  - Sim, mais ou menos. Porquê?
  - Por nada. Mas tenha cuidado com as mulheres, com todas.
Seria mesmo melhor se as deixasse em paz por uns tempos.
  - Não se preocupe, Harris. Não haverá indiscrições, na cama ou
fora dela. Além disso, disse-lhe que me chamava Keith Brown.
  Endean saiu para que Julie Manson não o visse.
  Shannon e Julie tiveram a sua primeira discussão quando regressavam ao apartamento dele. Cat recomendara-lhe que não dissesse
ao pai que saía com um mercenário e que não mencionasse o seu
nome.
  - Ele mandava-te embora, para longe daqui.
  Em resposta, Julie decidira irritá-lo, afirmando que sabia perfeitamente manejar o pai e que, além do mais, ele, Shannon, poderia
salvá-la.
  - De qualquer modo, não recebo ordens de ninguém - acrescentou quando entraram no apartamento.
  - Recebe-las de mim - replicou Shannon, furioso. - Quando
estiveres com o teu pai, proíbo-te que lhe digas uma única palavra a
meu respeito.
  - Hei-de fazer o que muito bem me apetecer!
  Shannon agarrou-a, sentou-se numa cadeira e deitou-a nos joelhos. Durante cinco minutos, confundiram-se na sala os gritos de
protesto da jovem e o estalar da mão de Shannon. Quando ele a
libertou, ela correu para o quarto a soluçar alto.
  Shannon fez café e bebeu-o lentamente, junto da janela. Quando
entrou no quarto, escuro e silencioso, distinguiu um pequeno vulto
no extremo da cama, na beira da qual se sentou.
  - És detestável - murmurou Julie.
  - E tu és uma menina mimada - respondeu, enquanto Lhe afagava o pescoço.
  - Não sou nada! - Houve uma pausa. - Sou, sim.
  Ele continuou a acariciá-la.
  - Cat, pensas realmente que o meu pai me afastava de ti, se eu
lhe dissesse?
  - Sim. Tenho a certeza.
  - Diz-me uma coisa ...
  - O quê?
  - Porque vives assim? Porque és mercenário e andas por aí a
fazer guerras?
  - Eu não faço guerras. O mundo em que vivemos é que as
faz ... um mundo governado por homens que fingem ser moralistas,
quando na maioria dos casos não passam de uns bandalhos interesseiros e egoístas. Eu limito-me a combater nas guerras, porque é
desse modo que gosto de viver. Não se trata apenas do dinheiro.
Muitos de nós combatemos pela mesma razão: gostamos de viver
duramente, gostamos de combater.
  - Mas porque tem de haver guerras?
  - Porque só há duas espécies de pessoas neste mundo: os predadores e as presas. E os predadores triunfam sempre, porque estão
preparados para lutar pelos seus objectivos e para destruir os que se
Lhes opôem. Os predadores tornam-se os potentados, e os potentados nunca estão satisfeitos. Procuram incessantemente a moeda que
adoram. No mundo comunista, a moeda é o poder. Cada vez mais
poder. No mundo capitalista, a moeda é o dinheiro. Cada vez mais
dinheiro ... que acaba também por ser uma forma de poder. Se é
necessário fazer uma guerra para o conseguir, faz-se a guerra. O
resto, o chamado idealismo, é conversa fiada.
  - Algumas pessoas lutam por idealismo.
  - Pois lutam. E noventa e nove por cento são enganadas. Os
GI's do Vietname, por exemplo: pensas que morrem pela vida, pela
liberdade e para alcançar a felicidade? Morrem pelo índice Dow
Jonesl. E os soldados britânicos que morreram no Quénia e em
Chipre? Estavam nessas terras porque o seu coronel recebeu ordem
do Ministério da Guerra, que a recebera do Governo, interessado
em manter o controle britânico sobre os poderes económicos. É tudo
uma grande farsa Julie. A diferença, no meu caso, é que ninguém
me diz quando devo combater nem por quem. É por isso que os
políticos, os regimes, odeiam os mercenários. Não nos podem controlar. Escolhemos os nossos próprios contratos.
  - És um rebelde, Cat - murmurou Julie.
  - Pois sou. Sempre fui. Não, nem sempre. Sou rebelde desde
que estive nos fuzileiros e enterrei seis dos meus companheiros em
Chipre. Foi então que comecei a duvidar da sensatez e da integridade dos nossos dirigentes.
  - Mas podes morrer numa dessas guerras inúteis.
  - Pois posso, e também podia ganhar um salário inútil, num
escritório inútil, à espera de uma reforma inútil. Prefiro viver à
minha maneira ... e morrer à minha maneira, com uma bala no peito e uma arma na mão. E agora dorme, amor. Já está a amanhecer.
  NA segunda-feira seguinte, no Luxemburgo, Shannon identificou-se no Banque de Crédit como Keith Brown e perguntou pelas
cinco mil libras depositadas em seu nome. O crédito acabara de
chegar. Levantou mil libras em francos luxemburgueses e mandou
transferir o saldo para a conta de Keith Brown em Bruges.
  Ainda teve tempo de engolir um almoço rápido antes de se dirigir à firma de contabilistas Lang & Stein, onde tinha uma entrevista
marcada com Mr. Emil Stein, um dos sócios da respeitável sociedade.
  - Nos próximos meses - disse ao grisalho cidadão luxemburguês -, um grupo de homens de negócios ingleses pretende realizar
uma série de operações comerciais na área do Mediterrâneo. Desejávamos, para esse efeito, constituir uma sociedade holding no Luxemburgo.
  - Isso não constitui problema - respondeu Mr. Stein, que recebia diariamente pedidos semelhantes. - Naturalmente, haverá
que cumprir todos os requisitos legais exigidos pelo Grão-Ducado
do Luxemburgo. Tem de haver um mínimo de sete accionistas,
cujos nomes e acções ficam normalmente registados. Mas existe uma
cláusula respeitante à emissão de acções ao portador que não exige
o registo da identidade do accionista maioritário. O portador da
  ? Índice de cotação das acções de companhias industriais na Bolsa de Wall Street
que reflecte a oscilação das mesmas no mercado da Bolsa. (N. do E.)
maioria controla a companhia sem necessidade do menor vestígio de
prova que demonstre como adquiriu as acções. Está a compreender-me, Mr. Brown?
  Shannon compreendia-o. Deixou um depósito de quinhentas libras em dinheiro e declinou o nome da sociedade a constituir, a
Tyrone Holdings SA. Decorrida aproximadamente uma semana,
organizar-se-ia uma reunião geral que assinalaria a sua constituição,
podendo então Semmler proceder à compra do navio à sombra de
uma sociedade que era impossível controlar.
  Na manhã seguinte, Shannon partiu de avião para Hamburgo.
Desta vez ia procurar armas.
  Depois do tráfico de narcóticos, o de armas letais é o mais lucrativo do Mundo. Todas as grandes potências têm equipas de vendedores encarregadas de percorrer o Globo e persuadir os potentados
de que não têm armas suficientes ou que devem substituir as que
possuem. Não interessa aos vendedores o objectivo com que serão
utilizadas essas armas. Por vezes, porém, as perspectivas de lucro e
a estabilidade política entram em conflito, pelo que os países cooperam em certa medida nas vendas de armas e qualquer pedido de
aquisição apresentado a qualquer potência é geralmente sujeito a um
minucioso estudo.
  Um negociante autorizado, habitualmente residente no seu próprio país, só vende depois de consultar o seu governo, para se certificar de que a transacção é admissível. Este o processo normalmente
seguido ao nível mais elevado do negócio privado de armas. A um
nível inferior encontra-se o traficante mais duvidoso, o negociante
autorizado que não tem armas, mas possui um alvará que o autoriza
a negociar a sua venda. E a escória do negócio engloba os traficantes do mercado negro, que, embora desprovidos da respectiva licença, fazem negócio, pois são de grande utilidade aos compradores de
armas clandestinas, que não podem efectuar transacções mediante
contratos intergovernamentais.
  O documento fundamental no negócio de armas é o chamado
certificado de último destino, que comprova que as armas foram
compradas, directa ou indirectamente, pelo último destino, o qual,
no mundo ocidental, é, na maioria dos casos, um Estado soberano.
O problema crucial dos certificados de último destino é o facto de
alguns países procederem a rigorosas averiguações para se assegurarem da sua autenticidade, enquanto outros são conhecidos como
vendedores “que não fazem perguntas". Os certificados de último
destino, como qualquer documento, são susceptíveis de ser falsificados. Foi neste mundo que Shannon penetrou cautelosamente ao
chegar a Hamburgo.
  Dois países haviam adquirido a reputação de fazer poucas perguntas sobre a autenticidade da procedência dos certificados de último destino apresentados. Um deles era a Espanha, cujas fábricas
CETME produziam uma vasta gama de armas, e o outro, recentemente surgido no mundo dos fabricantes de armas, a Jugoslávia,
que produzia um excelente morteiro de infantaria ligeira e uma bazuca razoável. Como estas mercadorias eram novas, Shannon cria
que seria fácil a um negociante persuadir Belgrado a vender uma
pequena quantidade de armas daquele tipo - um mínimo de dois
morteiros de 60 mm com trezentas granadas e duas bazucas com
quarenta granadas de bazuca. Poderia sempre pretextar-se que o
cliente desejava proceder a algumas experiências antes de fazer uma
encomenda mais importante.
  Shannon sabia que não estava em situação de negociar com governos ou com importantes negociãntes devidamente legalizados. O
problema consistia em que as características e quantidade das armas
que procurava traíam o fim a que se destinavam: uma única operação, tal como o assalto a um edifício num curto espaço de tempo.
Consequentemente, concluíra que seria mais seguro, porque mais
discreto, dividir o total das aquisições necessárias em lotes menores
e comprar apenas a cada vendedor um único tipo de armas.
  De um dos homens com quem tencionava contactar pensava
conseguir quatrocentos mil cartuchos de 9 mm, do tipo que serve
simultaneamente para pistolas automáticas e para pistolas-metralhadoras. Não só era este o género de munições de que poderia necessitar a força policial de qualquer pequeno país que pretendesse refazer
o seu sortido bélico, como tal encomenda não despertaria suspeitas,
uma vez que não incluía quaisquer armas. Para conseguir este objectivo, precisava de encontrar um negociante de armas autorizado,
que não teria dificuldade em incluir uma encomenda tão insignificante entre o conjunto de outras mais avultadas. Embora autorizado,
o negociante deveria estar disposto a fazer um negócio ilícito através de um certificado de último destino forjado, que apresentaria
posteriormente a um governo fornecedor pouco rigoroso nas suas
averiguações sobre a veracidade do mesmo.
  Shannon deslocara-se a Hamburgo para fazer as suas encomendas a primeira das quais a um certo Johann Schlinker, que, tendo
embora licença para negociar com a CETME em Madrid, gozava de
uma reputação que permitia pensar que seria capaz de apresentar um
certificado de último destino forjado. O seu segundo contacto seria
um antigo conhecimento - Alan Baker -, um comerciante ilegal
bem relacionado com os Jugoslavos.
  Shannon começou por dirigir-se ao Landesbank, onde levantou,
mediante um cheque passado em seu nome, as cinco mil libras já ali
depositadas.
  Seguidamente, dirigiu-se ao modesto escritório de Johann
Schlinker, um homem gordo e jovial.
  - O que o traz por cá, Mr. Brown?
  - Falaram-me de si, Herr Schlinker, como um dos negociantes
de material bélico mais dignos de confiança.
  Schlinker sorriu e fez um gesto afirmativo com a cabeça.
  - Posso perguntar quem me recomendou."
  Shannon mencionou o nome de um homem de Paris, estreitamente relacionado com assuntos africanos como representante de
determinado serviço governamental francês, a quem prevenira de
que usaria o nome de Brown.
  Schlinker arqueou as sobrancelhas e pediu:
  - Dá-me licença, só por um minuto?
  Quando voltou, sorria abertamente.
  - Precisei de telefonar a um amigo de Paris. Queira continuar.
  - Quero um lote de munições de 9 mm - respondeu Shannon
sem rodeios - para um grupo africano do qual sou conselheiro
técnico. A entrega deverá ser feita por barco.
  - Qual o total da encomenda? - perguntou o alemão.
  - Quatrocentas mil cargas.
  - Não é muito - comentou Schlinker com displicência.
  - Neste momento, um pequeno investimento, que poderá conduzir a outros mais tarde.
  - Tem um certificado de último destino?
  - Lamento, mas não tenho. Pensei que não fosse difícil conseguir um.
  - Oh, evidentemente que não! Posso oferecer-lhe balas de
9 mm a sessenta e cinco dólares por milhar, mais uma sobretaxa de
dez por cento para o certificado e outros dez por cento para colocação a bordo.
  Para colocação a bordo significava que o preço abrangia todas as
despesas, incluindo licença de exportação, despacho alfandegário e
carga a bordo do navio, no próprio porto. Shannon fez um cálculo
rápido: vinte e seis mil dólares para as munições, mais cinco mil e
duzentos dólares para o restante. Excessivamente caro.
  - Qual seria a modalidade de pagamento?
  - Cinco mil e duzentos dólares imediatamente e o pagamento
integral quando eu tiver o certificado. Preciso também do nome do
navio para arranjar uma licença de exportação. O navio deverá estar
devidamente registado ou pertencer a uma companhia de navegação
registada.
  Shannon concordou.
  - Quanto tempo decorrerá entre o pagamento e o embarque?
  - Em Madrid são um bocado lentos ... Cerca de quarenta dias.
  Shannon levantou-se. Saiu e, decorrida uma hora, voltou com o
dinheiro. Enquanto esperava que Schlinker passasse o recibo, os
seus olhos caíram sobre um catálogo de uma empresa que fabricava
material de pirotecnia não militar, nomeadamente bombas luminosas e foguetes.
  - Está relacionado com esta companhia, Herr Schlinker?
  - É minha - respondeu o alemão com um largo sorriso. - É
através dela que sou conhecido pelo grande público.
  Excelente cobertura para um armazém repleto de caixotes com a
advertência: PERIGO DE EXPLOSÃO, pensou Shannon. Elaborou rapidamente uma lista de artigos.
  - Pode satisfazer esta encomenda?
  Schlinker olhou a lista, que incluía dois tubos lança-foguetes,
dez foguetes luminosos de magnésio presos a pára-quedas, duas
potentes sereias de nevoeiro, quatro conjuntos de binóculos nocturnos, três conjuntos de transmissores-emissores portáteis e cinco
bússolas de pulso.
  - Com certeza - respondeu. - Tenho todo esse material. E
como não está classificado como material bélico, não há problemas
quanto à exportação.
  - Óptimo. Quanto custaria tudo isso, com frete pago para um
agente exportador de Marselha?
  - Quatro mil e oitocentos dólares - respondeu o alemão.
  - Comunico consigo dentro de doze dias - declarou Shannon.
- Envio-lhe um cheque pelo pagamento deste material e a morada
do agente em Marselha. Dentro de trinta dias pago-lhe os vinte e
seis mil dólares das munições e indico-Lhe o nome do navio.
  Nessa noite, Shannon jantou com Alan Baker, que conhecia a
sua verdadeira identidade. Magro e resistente, Baker era um ex-sapador do Exército Real que se fixara na Alemanha após a guerra,
onde se dedicara ao contrabando de armas para pequenos grupos
nacionalistas ou anticomunistas.
  - Sim, é possível arranjar-se - disse, depois de ouvir o pedido
de Shannon. - Mas neste momento tenho um problema.
  - Qual é?
  - Os certificados de último destino. Até agora contava com a
ajuda de um diplomata da África Oriental colocado em Bona, que
assinava o que quer que fosse mediante pagamento, mas foi mandado regressar ao seu país. Tenho tido dificuldades em encontrar um
substituto.
  Como não era um negociante autorizado, Baker não podia obter
um certificado legal, semelhante ao de Schlinker.
  - Os Jugoslavos são exigentes quanto a certificados de último
destino? Se eu conseguisse arranjar um certificado de um país africano, serviria?
  - Sem dúvida, desde que a documentação estivesse em ordem.
Quanto ao preço, um lança-morteiros de 60 mm custar-lhe-ia mil e
cem dólares, isto é, dois mil e duzentos o par. As granadas custam
vinte e quatro dólares cada uma.
  - Está bem - concordou Shannon. - Quero trezentas.
  - Então são sete mil e duzentos dólares pelas granadas. Um par
de bazucas custa dois mil dólares. Com quarenta granadas de bazuca a quarenta e dois dólares e meio cada uma são ... são ...
  - Mil e setecentos dólares - respondeu Shannon. - Treze mil
e cem dólares no total.
  - Mais dez por cento para colocação a bordo do seu navio,
Cat. Vejamos as coisas como são, é uma encomenda pequena, mas
mesmo assim acarreta-me despesas. Digamos catorze mil e quinhentos dólares, está bem?
  - Digamos catorze mil e quatrocentos - redarguiu Shannon.
- Arranjo o certificado e envio-lho pelo correio, com um sinal de
cinquenta por cento. Quando o material estiver na Jugoslávia, embalado e pronto para seguir, pago mais vinte e cinco por cento, e liquido
o resto quando o navio sair do porto. De quanto tempo precisa?
  - Cerca de trinta e cinco dias, a partir da recepção do certificado de último destino.
  Já fora do restaurante, apertaram as mãos, e Baker disse:
  - Não se preocupe, Cat. Pode confiar em mim.
  “É o podes!”, murmurou Shannon, enquanto se afastava.
  Na manhã seguinte - o décimo nono dia - regressou a Londres de avião.

CAPÍTULO NOVE
NAQUELA quarta-feira de manhã, quando Martin Thorpe entrou no
gabinete de Sir James Manson, este convidou-o a sentar-se.
  - Andei a investigar Lady Macallister - informou Thorpe.Tem oitenta e seis anos, é muito irritável e tão agarrada à tradição
escocesa que todos os seus assuntos são tratados por um solicitador
de Dundee. Parece ter uma obsessão na vida, mas não se trata de
dinheiro. Tem fortuna pessoal. O seu pai era um proprietário rural
com mais terras do que dinheiro disponível. Quando morreu, ela
herdou todos os seus bens e os direitos de pesca e caça renderam-lhe
uma pequena fortuna. Já duas pessoas tentaram comprar-lhe as acções da Bormac. Creio que lhe ofereceram dinheiro, mas isso não
Lhe interessa.
  - Que diabo Lhe interessa então? - perguntou Sir James.
  - Tentou mandar erigir uma estátua ao marido, mas o Conselho
Municipal de Londres recusou. Mandou erguer um memorial na
cidade natal do marido. Creio que é essa a sua obsessão: a memória
do velho traficante de escravos com quem foi casada.
  Thorpe expôs a sua ideia, que Manson escutou pensativamente.
  Pouco depois do meio-dia, Shannon encontrava-se de novo no
seu apartamento de Londres, onde o esperava um telegrama enviado
por Langarotti, de Marselha, informando-o da direcção do hotel
onde se instalara com o nome de M. Lavallon. Shannon fez um
telefonema para M. Lavallon, que saíra, e deixou-lhe um recado
pedindo-lhe que telefonasse a Mr. Brown, para Londres. Depois,
dactilografou uma carta pedindo informações ao corso sobre um
homem de Paris a quem ele se referira como a pessoa indicada para
obter certificados de último destino de uma das embaixadas africanas. Seguidamente, telegrafou a Walter Harris, comunicando-lhe
que gostaria de o ver na manhã seguinte, às onze horas. Passou a
tarde a dactilografar um relatório completo das suas viagens ao
Luxemburgo e a Hamburgo. No preciso momento em que o terminava, bateram à porta. Era Janni Dupree.
  Este informou-o de que a maior parte do vestuário estaria pronta
na sexta-feira. Na semana seguinte, ocupar-se-ia dos sacos-camas,
mochilas e calçado. Shannon prometeu informá-lo do nome do
agente de navegação de Marselha ao qual deveria consignar esse
material. Depois entregou-lhe uma carta destinada a Langarotti,
endereçada ao cuidado do principal posto dos Correios de Marselha,
e pediu-lhe que a expedisse imediatamente por correio expresso.
  Às oito horas, quando finalmente Langarotti telefonou, sentia-se
esfomeado. Perguntou-lhe por meias palavras - medida de precaução que recomendara para as conversas telefónicas - como decorriam os trabalhos.
  - Escrevi a três fabricantes de barcos a pedir catálogos. Quando encontrar o material apropriado, posso comprá-lo a vendedores
locais - respondeu-Lhe Langarotti.
  - Boa ideia. Agora escuta. Preciso do nome de um bom agente
de navegação de Marselha. Proximamente, vão seguir daqui alguns
caixotes e um de Hamburgo.
  - Preferia utilizar um agente de Toulon - disse Langarotti.
  Shannon calculou por que motivo. A Polícia de Marselha começava a exercer uma vigilância mais apertada no porto e o novo chefe
da alfândega tinha uma terrível fama. Embora o seu objectivo fosse
dificultar o tráfico de heroína, a busca a um barco à procura de
droga poderia facilmente revelar a existência de armas.
  - Acho bem - aprovou Shannon. - Telegrafa-me o nome
quando o tiveres. E também a resposta a uma carta que vais receber.
  Na manhã seguinte, Shannon reservou lugar num voo de fim-de-semana da BEA para determinado local de África, via Paris.
  Endean chegou ao apartamento às onze horas em ponto.
  - Vejo que avançou muito - observou, depois de ler o relatório de Shannon.
  - Pois avancei. Quero ter todas as encomendas feitas até ao
vigésimo dia, o que me deixa quarenta dias para executar o plano.
Precisamos de uma margem de vinte dias para reunir todo o material
e colocá-lo a bordo. A data da partida do navio terá de ser o octogésimo dia para podermos atacar na data prevista. A propósito, em
breve vou precisar de mais dinheiro.
  Depois de algumas objecções iniciais, Endean acedeu a depositar mais vinte mil libras na conta belga de Shannon, após o que
saiu.
  A sala do apartamento sobranceiro a Cottesmore Gardens, não
longe da ICensington High Street, era extremamente sombria. Das
paredes pendiam retratos de antepassados: Montroses e Monteagles,
Farquhars e Frazers. Impondo-se a todos os outros, numa enorme
moldura suspensa sobre um fogão de sala jamais aceso, via-se o
retrato de um homem vestido de kilt, o rosto enquadrado por um par
de suíças ruivas. Sir Ian Macallister, cavaleiro do Império Britânico.
  Martin Thorpe desviou de novo o olhar para Lady Macallister,
afundada numa cadeira.
  - Já recebi outras ofertas, Mr. Thorpe. Mas não vejo motivo
para vender a companhia do meu marido. Foi o seu trabalho. Não
vendo ...
  - Mas, Lady Macallister ..
  - Compreende, a companhia foi a herança que ele me deixou.
  - Lady Macallister ... - recomeçou Thorpe.
  - Tem de falar directamente para o aparelho auditivo - atalhou a dama de companhia de Lady Macallister. - Ela é surda
como uma porta.
  Thorpe inclinou a cabeça, num agradecimento, e reparou pela
primeira vez devidamente na dama de companhia, que devia orçar
pelos setenta anos e parecia o género de pessoa coagida, por necessidades financeiras, a colocar-se na dependência de outrem.
  O visitante inclinou-se mais para o aparelho auditivo e disse:
  - Lady Macallister, as pessoas que represento não querem
modificar a companhia. Querem apenas torná-la de novo próspera e
famosa, como no tempo em que o seu marido a dirigia.
  Acendeu-se um pequeno clarão nos olhos da anciã.
  - Como o meu marido ...
  - Sim, Lady Macallister - gritou Thorpe. - Queremos recriar a obra da sua vida e transformar as propriedades Macallister,
em homenagem à sua memória.
  - Não quiseram erguer um monumento à memória do meu Ian.
  - Se a companhia fosse rica, poderia insistir no monumento - gritou Thorpe. - Poderia criar uma Fundação Sir Ian Macallister.
  - Custaria muito dinheiro - lamuriou ela. - Não sei ... Se
Mr. Dalgleish aqui estivesse ... Ele assina todos os documentos por
mim. Mrs. Barton, quero ir para o meu quarto.
  - Já não é sem tempo - redarguiu bruscamente a dama de
companhia.
  Mrs. Barton ajudou a anciã a levantar-se, acompanhou-a e regressou sozinha à sala, decorridos poucos minutos.
  Thorpe ergueu-se e sorriu desoladamente.
  - Parece que falhei. E, no entanto, as acções dela não valem
nada, se não se modernizar a companhia. Desculpe-me tê-la incomodado.
  - Estou habituada a ser incomodada - redarguiu Mrs. Barton,
cujo rosto, não obstante, se suavizou. - Quer tomar uma chávena
de chá antes de se ir embora?
  O instinto aconselhou Thorpe a aceitar. Quando se sentaram na
cozinha a beber o chá, Mrs. Barton falou-lhe de Lady Macallister:
  - Ela não compreende todos os seus argumentos convincentes,
Mr. Thorpe; nem sequer compreendeu quando se propôs erguer um
monumento em memória do velho papão.
  Thorpe ficou surpreendido. Obviamente azeda, Mrs. Barton sabia pensar por si própria.
  - Ela faz o que a senhora lhe diz - observou.
  - Mais uma chávena de chá, Mr. Thorpe? - Enquanto o servia, disse calmamente: - Faz, faz o que lhe digo! Sabe que, se me
fosse embora, nunca mais arranjava outra dama de companhia.
  - Não deve ser uma vida muito agradável para si, Mrs. Barton.
  - Pois não, mas tenho de aguentar. É o preço que tenho de
pagar.
  - Por ser viúva? - perguntou Thorpe delicadamente.
  - Sim.
  Na prateleira da chaminé via-se o retrato de um jovem com o
uniforme de piloto da RAF.
  - É seu filho?
  - É. Foi abatido em França, em 1943.
  - O que significa que, quando Lady Macallister morrer, não
vai ter quem cuide de si.
  - Não, mas cá me hei-de arranjar. Ela há-de deixar-me qualquer coisa em testamento. Há dezasseis anos que estou ao seu serviço.
  Quando saiu, uma hora depois, naquela tarde de quinta-feira,
Thorpe procurou imediatamente uma cabina telefónica. Um corretor
de seguros do West End concordou em recebê-lo às dez horas da
manhã do dia seguinte.
  NA sexta-feira, imediatamente a seguir ao almoço, Sir James
Manson chamou Endean ao seu gabinete. Lera o relatório de Shannon e estava agradavelmente surpreendido com a rapidez com que o
mercenário trabalhava. Mas o que mais lhe agradava era o telefonema que acabava de receber de Thorpe.
  - Você diz que Shannon estará no estrangeiro na próxima semana, Simon, o que é óptimo. Tenho uma tarefa para si. Arranje
um dos nossos contratos-tipo de emprego, cubra o nome da ManCon com uma tira de papel branco e escreva no seu lugar o nome da
Bormac. Tire uma fotocópia e preencha o contrato, com a validade
de um ano, pelos serviços de Antoine Bobi, com um ordenado mensal de quinhentas libras. Especifique que o ordenado será pago em
francos do Daomé, para que ele não fuja.
  - Bobi? - perguntou Endean. - Refere-se ao coronel Bobi?
  - Exactamente. Não quero que o futuro presidente de Zangaro
nos escape. Na segunda-feira, você vai ao Daomé convencê-lo de
que a Bormac o quer contratar como consultor. Diga-lhe que as suas
atribuições Lhe serão comunicadas mais tarde e que, de momento, a
única condição do emprego é que permaneça onde está até que você
o vá de novo visitar. Quanto à data do contrato, providencie para
que o último algarismo do ano fique ilegível.
  NESSA mesma tarde, às quatro horas, Thorpe saiu do apartamento de Kensigton com as quatro escrituras de transferência de acções
de que necessitava assinadas por Lady Macallister, na presença de
Mrs. Barton, que servira como testemunha. Levava também uma
carta que comunicava a Mr. Dalgleish, de Dundee, que devia entregar a Mr. Thorpe os títulos das acções, contra apresentação do cheque respectivo.
  Lady Macallister não notara que o nome do comprador das acções não constava das escrituras de transferência. Só de pensar que
Mrs. Barton poderia fazer as malas e partir ficara completamente
transtornada. Antes de anoitecer, o nome do Zwingli Bank, na qualidade de procurador de Messrs. Adams, Ball, Carter e Davies,
ocuparia os espaços deixados em branco.
  Sir James Manson pagara dois xelins por cada uma das trezentas
mil acções, ou seja um total de trinta mil libras. Despendera outras
trinta mil na aquisição de uma pensão vitalícia que asseguraria um
fim de vida sem preocupações a uma dama de companhia-governanta.
  BENOIT Lambert, conhecido pelos amigos e pela Polícia de Paris
como Benny, era um membro insignificante do submundo que se
considerava um mercenário e traficante de armas. Embora, na verdade, não fosse mercenário, a variedade dos contactos que mantinha
permitira-lhe arranjar ocasionalmente, aqui e ali, uma ou outra arma
- geralmente armas ligeiras para o mundo do crime. Também travara conhecimento com um diplomata africano que, por dinheiro, se
prontificara a arranjar úteis certificados de último destino, facto que
mencionara dezoito meses antes, num bar, a Langarotti.
  O corso telegrafou esta informação a Shannon, em resposta à
sua carta, e telefonou a Benny para lhe marcar um encontro no
fim-de-semana. O traficante de armas ficara surpreendido ao saber
que ia receber a visita de Cat Shannon, de quem já ouvira falar.
Ouvira igualmente dizer que Charles Roux estava disposto a pagar
informações sobre o paradeiro do mercenário irlandês.
  - Sim, posso arranjar esse certificado - disse Benny Lambert
a Shannon. E mencionou um preço exorbitante.
  - Merde - replicou-lhe o irlandês. - Pago-lhe mil libras.
  - Está bem - concordou Lambert, depois de fazer os seus cálculos.
  - Se disser uma palavra a este respeito, corto-lhe o pescoço - avisou Shannon. - Melhor ainda, encarrego o corso desse trabalho.
  - Não digo uma palavra, juro. Arranjo-lhe o documento dentro
de quatro dias.
  Quando ficou só, Benny Lambert meditou no assunto e decidiu
arranjar o documento, receber o dinheiro e informar Roux mais tarde.
  Na noite seguinte, Shannon partiu de avião para África.
  A Shannon era-lhe indiferente o trajecto longo e penosamente
íngreme, bem como o calor e o ruído ensurdecedor do táxi. Mesmo
após seis horas de voo sem dormir, o irlandês desfrutava do prazer
de se encontrar de novo em África. Era-lhe familiar o espectáculo
das mulheres da aldeia a caminho do mercado, equilibrando na cabeça cabaças ou trouxas, e dos aldeãos que tagarelavam à sombra
dos telhados de folhas de palmeira. Aspirou o cheiro das palmeiras,
do fumo de lenha e do rio lodoso e estagnado. Chegou à casa pouco
antes do meio-dia.
  Os guardas de serviço ao portão revistaram-no minuciosamente.
No interior, reconheceu um dos colaboradores pessoais do homem
que ia visitar, o qual o conduziu a uma sala vazia.
  Shannon olhava pela janela quando ouviu o ranger de uma porta
que se abria. Virou-se.
  O aspecto do general não sofrera praticamente alteração desde
que se haviam despedido na pista de aterragem mergulhada em escuridão: a mesma barba densa e a mesma voz profunda de baixo.
  - Já de volta, major Shannon? Não é capaz de viver fora de
África?
  Shannon sorriu ante esta ironia, que lhe era familiar.
  - Preciso de uma coisa, meu general, e tenho uma ideia que
me parece conveniente discutirmos.
  - Não creio que um exilado empobrecido tenha muito para lhe
oferecer, mas estou sempre interessado em escutar as suas ideias.
Se a memória não me atraiçoa, costumava ter algumas muito boas.
  - Há uma coisa que o senhor tem e que me poderia ser útil. O
senhor ainda conta com a lealdade do seu povo, e eu preciso de
homens - disse Shannon.
  Falaram longamente e delinearam o plano durante toda a tarde.
  Quando anoiteceu, Shannon traçava gráficos. Só às três da manhã o
  carro foi chamado para conduzir o mercenário ao aeroporto.
  - Eu mantenho-me em contacto consigo, meu general - prometeu Shannon quando se despediram.
  - E eu tenho de enviar imediatamente os meus emissários. Mas
  dentro de sessenta dias os homens lá estarão.
  Shannon sentia-se exausto. A tensão das viagens constantes
  começava a fazer-se sentir. Chegou a Le Bourget às seis horas da
  tarde de terça-feira e instalou-se num hotel do centro do 8.o Arrondissement de Paris. Desistira do seu esconderijo de Montmartre,
  onde era conhecido pelo seu próprio nome. Decidiu, porém, que
  não havia perigo em ir jantar ao seu restaurante preferido. Perguntou por Madame Michèle e encomendou um filet mignon, após o
  que pediu duas chamadas telefónicas com aviso prévio, a primeira
  das quais para M. Lavallon, de Marselha.
  - Já arranjei o agente de navegação em Toulon - informou-o
Langarotti. - Agence Maritime Duphot. Tem armazém próprio na
alfândega. Envia as encomendas registadas em nome de J. B. Langarotti
  - ?Óptimo - aprovou Shannon. Seguidamente, o irlandês telefonou a Janni.
  O sul-africano comunicou-lhe que tinha quatro caixotes prontos
para embarque.
  - Bom trabalho - elogiou Shannon, e indicou-lhe o nome e a
direcção do agente de navegação em Toulon.
  Em seguida, fez mais uma chamada, desta vez para Ostende.
  - Estou em Paris - informou quando ouviu a voz de Vlaminck. - Aquele homem que tem a mercadoria que eu queria inspeccionar ..
  - Está disposto a encontrar-se contigo e a discutir condições.
  - Convida-o para o pequeno-almoço, na sexta-feira, no Holiday Inn do Aeroporto de Bruxelas.
  - Queres que eu vá também? - perguntou o belga.
  - Com certeza. Pergunta por Keith Brown. Compraste a furgoneta de que te tinha falado?
  - Comprei, porquê?
  - Esse homem de que estamos a falar já a viu?
  Após reflectir um momento, Vlaminck respondeu:
  - Não.
  - Então não a leves a Bruxelas. Aluga um carro e vai buscar o
homem. Compreendes?
  - Compreendo - respondeu Vlaminck, perplexo. - Tudo o
que quiseres.
  Enquanto Shannon saboreava em Paris aquele tão desejado jantar, Simon Endean embarcava no avião da noite para o Daomé.
Shannon não ficaria surpreendido se tivesse conhecimento desta
viagem, pois presumia que o zangarense exilado, Bobi, tinha um
papel a desempenhar no plano de Manson. Porém, se se tivesse
inteirado da visita de Shannon, na mesma região africana, Endean
não teria certamente conseguido adormecer a bordo do UTA DC-8,
apesar do comprimido que tomara.
  Às dez horas da manhã seguinte, no seu quarto de hotel, Shannon telefonou a pedir o pequeno-almoço; quando saiu do chuveiro,
o café e os pãezinhos já se encontravam sobre a mesa. Telefonou
para Benny Lambert e perguntou-lhe se os documentos estavam
prontos.
  - Estão. - A voz de Benny pareceu-lhe tensa. - Quando os
quer?
  - Esta tarde.
  - Está bem. Venha a minha casa às quatro horas.
  - Não - recusou Shannon. - Encontro-me aqui consigo. - E indicou o nome do hotel a Lambert, pois parecia-lhe mais seguro
encontrar-se com um escroque num lugar público. Para sua surpresa, Lambert concordou com a proposta. Embora Lhe parecesse que
havia algo de incongruente na atitude de Lambert, não conseguiu
definir claramente o quê.
  Seguidamente, telefonou a Mr. Stein, da firma Lang & Stein, do
Luxemburgo.
  - Acerca da reunião para o lançamento da minha sociedade
holding, a Tyrone Holdings ...
  Marcaram um encontro para as três da tarde do dia seguinte no
escritório de Stein.
  A dez mil quilómetros de distância, Simon Endean falava com o
coronel Bobi na pequena moradia alugada por este no bairro residencial de Cotonu.
  Bobi era um homem de estatura gigantesca, andar pesado e rosto
abrutalhado. Endean não se preocupava com as consequências desastrosas que o governo de Bobi poderia ocasionar em Zangaro.
Fora apenas procurar um homem que pudesse conceder os direitos
de mineração da Montanha de Cristal à Bormac Trading Company a
troco de uma insignificância e de um suborno avultado.
  O coronel sentir-se-ia encantado por aceitar o lugar de consultor
da Bormac na África Ocidental. Fingiu estudar o contrato, mas continuou a pretensa leitura quando se Lhe deparou uma página que
Endean agrafara ao contrário. Era analfabeto.
  Endean explicou-lhe, pacientemente os termos do contrato,
numa mistura de francês elementar e calão inglês. Acenando gravemente, num gesto de assentimento, Bobi apôs no documento uns
rabiscos que passariam por uma assinatura. Só mais tarde seria informado de que a Bormac o colocaria no poder em Zangaro em
troca dos direitos de mineração.
  Ao nascer do dia, Endean seguia de avião para norte, de regresso a Inglaterra.
  O encontro com Benny Lambert efectuou-se na sala do hotel.
Lambert entregou a Shannon um sobrescrito, do qual este retirou
duas folhas de papel, ambas com o carimbo do embaixador do
Togo. Uma das folhas estava em branco, exceptuando uma assinatura e um selo da embaixada. A outra era uma carta em que o signatário declarava ter sido autorizado pelo seu governo a contratar os
serviços de ... para requerer ao Governo de ... a aquisição das armas
de guerra constantes da lista anexa.
  Shannon entregou as mil libras a Lambert e saiu do hotel. Alan
Baker preencheria com o seu nome um dos espaços em branco, e
com o da Jugoslávia o outro.
  Como a maioria dos homens de natureza fraca, Lambert era um
indeciso. Durante três dias, estivera prestes a comunicar a Charles
Roux que Shannon se encontrava na cidade procurando obter um
certificado de último destino. Temia Roux e considerava necessário
avisá-lo. Mas também receava Shannon. Decidiu esperar até à manhã seguinte.
  Quando, finalmente transmitiu a Roux a informação que possuía era demasiado tarde. Roux telefonou para o hotel às nove da
manhã e perguntou por Mr. Shannon. O recepcionista respondeu-lhe, com toda a verdade, que o nome de Mr. Shannon não constava
dos registos do hotel. Poucos minutos depois, Henri Alain, o homem de confiança de Roux, apresentou-se na portaria do hotel.
Chegou à conclusão de que um indivíduo cuja descrição correspondia exactamente à de Cat Shannon passara a noite no hotel, registado com o nome de Keith Brown, e partira nessa mesma manhã para
o Luxemburgo. Alain obteve também a descrição do francês com
quem Mr. Brown fora visto a falar na sala. Ao meio-dia, comunicou
as informações obtidas a Roux.
  Roux, Henri Alain e Raymond Thomard reuniram-se em conselho de guerra. A decisão final coube a Roux:
  - Henri, tu vigias o hotel. Faz-te amigo do pessoal. Se o Shannon voltar a instalar-se lá, informa-me. Entendido?
  Alain fez um gesto de compreensão.
  Roux ocupou-se então de Thomard:
  - Quando ele voltar, Raymond, encarregas-te dele. Entretanto,
faz com que o Lambert não possa andar nos próximos seis meses.
  O lançamento da companhia que seria conhecida por Tyrone
Holdings ficou concluído em cinco minutos. Shannon foi convidado
a entrar no gabinete de Mr. Stein, onde já se encontravam Mr. Lang
e um outro sócio mais novo. Ao longo de uma das paredes perfilavam-se as três secretárias dos três sócios. Na presença dos sete accionistas exigidos pela lei, Shannon entregou quinhentas libras a
Mr. Stein, após o que foram emitidas mil acções. Todos os circunstantes, à excepção de Shannon, receberam uma acção e assinaram o
respectivo recibo, entregando-as seguidamente a Mr. Stein, que
concordou em guardá-las no cofre da sociedade. Shannon recebeu
um total de novecentas e noventa e quatro acções reunidas num
único título e assinou o respectivo recibo. As actas da constituição
da sociedade foram também devidamente assinadas, e fizeram-se
cópias para serem entregues no Registo Comercial do Grão-Ducado
do Luxemburgo. Tudo estava em ordem. A Tyrone Holdings já tinha existência legal.
  Shannon chegou ao Holiday Inn do Aeroporto de Bruxelas pouco antes das oito horas.
  Na manhã seguinte, o Pequeno Marc bateu à porta de Shannon,
acompanhado por um homem que apresentou como M. Boucher. Ao
vê-los, Shannon pensou que ambos formavam um par cómico: Marc
era consideravelmente mais alto do que o companheiro, o qual, por
sua vez, era tão gordo que parecia redondo. M. Boucher transportava uma volumosa maleta.
  Shannon serviu o café e entrou directamente no assunto:
  - M. Boucher, represento um grupo que estaria interessado
em adquirir cerca de cem pistolas-metralhadoras. Mr. Vlaminck
disse-me que talvez o senhor estivesse em condições de me fornecer
algumas Schmeissers de 9 mm, fabricadas no tempo da guerra, mas
sem terem sido utilizadas. Sei também que não será possível obter
uma licença de exportação. As pessoas que represento aceitam esse
facto.
  Boucher fez um gesto de assentimento.
  - Poderia - respondeu, cauteloso - reunir uma quantidade
dessas peças. Mas numa base rigorosa de pagamentos a dinheiro.
  Quando jovem, M. Boucher trabalhara como cozinheiro nas
casernas SS belgas em Namur. Em 1944, aquando da retirada dos
Alemães, um camião carregado de Schmeissers recém-fabricadas
avariara-se na estrada que partia de Namur. Como não havia tempo
para reparações, o carregamento fora transferido para uma casamata
próxima, e a entrada, dinamitada. Boucher, que assistira às operações, regressara mais tarde ao local, removera os escombros com
uma pá e apoderara-se das mil armas que, desde então, se encontravam enterradas sob o pavimento da garagem da sua casa de campo.
Até àquele momento, desfizera-se de metade do material.
  - Se essas armas estão em bom estado e funcionam - observou Shannon -, aceitamos todas as condições razoáveis impostas
por si. Contamos com discrição absoluta.
  - Estão completamente novas, monsieur. Ainda têm a massa
protectora do fabricante e estão embrulhadas separadamente em
papel impermeável, com os selos intactos. Devem ser as melhores
pistolas-metralhadoras que já se fabricaram.
  - Posso ver? - perguntou Shannon.
  Boucher colocou a maleta sobre os joelhos, rodou a fechadura e
abriu-a.
  Shannon pegou na Schmeisser. Era uma bela arma. Passou as
mãos pelo metal liso, experimentou a alça e sentiu-lhe a leveza.
Verificou diversas vezes o mecanismo da culatra e espreitou pelo
cano, comprovando a inexistência de marcas no interior.
  - As outras - afirmou Boucher, ofegante - são iguais. Não
foram usadas.
  Pousando a arma, Shannon perguntou:
  - E a respeito de carregadores?
  - Posso conseguir cinco por cada arma.
  Após duas horas de conversações, fecharam o negócio: cem
Schwceissers a cem dólares cada uma. Marcaram um local e uma
hora - quarta-feira seguinte, depois do escurecer - e combinaram
a forma de entrega.
  Shannon ofereceu-se para levar Boucher a casa, mas o obeso
belga preferiu chamar um táxi. Não se surpreenderia se o irlandês,
que estava certo pertencer ao IRA, o levasse para um local afastado
a fim de o obrigar a revelar a localização das armas escondidas. A
confiança é uma fraqueza supérflua no tráfico de armas.
  - Compreendes agora o que eu queria dizer a respeito da furgoneta que compraste? - perguntou Shannnn a Vlaminck.
  - Não.
  - Temos de a utilizar para a recolha das armas e não vi motivo
nenhum para que Boucher ficasse a conhecer as verdadeiras chapas
de matrícula. Arranja outro jogo para quarta-feira à noite. Se o
Boucher resolver informar alguém depois da entrega, procurarão a
furgoneta errada.
  - Está bem, Cat.
  Shannon escrevera duas cartas: uma a Schlinker, informando-o
do nome e da direcção do agente de navegação de Toulon e enviando-lhe o dinheiro destinado ao pagamento das mercadorias encomendadas, e a outra dirigida a Alan Baker, contendo o certificado
de último destino e a quantia necessária para pagamento das compras realizadas na semana anterior. Uma vez as cartas no correio,
Mare conduziu-o a Ostende, onde Shannon tomou o ferry-boat da
noite para Dover.
  Na noite seguinte, perto da hora do jantar, apresentou a Endean
o seu terceiro relatório.
  - Tem de transferir mais dinheiro se quer que avancemos - concluiu. - Vamos comprar as mercadorias mais dispendiosas: as
armas e o navio.
  - De quanto precisa imediatamente? - indagou Endean.
  - Duas mil libras para salários, quatro mil para barcos e motores, quatro mil para pistolas-metralhadoras e mais de dez mil para
munições de 9 mm ... Enfim, trinta mil.
  Endean fitou-o friamente e observou com secura:
  - É melhor que faça algumas compras com todo esse dinheiro.
  - Não me ameace, Harris - redarguiu Shannon, fitando-o
longamente. - Já muita gente o tentou; custa uma fortuna em flores.
  No sábado à noite jantou sozinho. Sabia que Julie Manson já se
encontrava em casa, com os pais, no Gloucestershire.
  A meio da manhã de domingo, Julie decidiu telefonar-Lhe para o
apartamento. Lá fora, uma chuva de Primavera tirava-lhe toda a
esperança de poder montar o cavalo que o pai lhe oferecera. Para
que a mãe, que se encontrava perto do telefone da entrada, não ouvisse a chamada, resolveu servir-se do do gabinete do pai.
  Já levantara o auscultador do telefone, que se encontrava sobre a
secretária, quando reparou num dossier pousado sobre o mata-borrão, que abriu distraidamente, a fim de relancear a primeira página;
imediatamente lhe saltou aos olhos um nome que a gelou, enquanto
o sinal de ligação lhe soava violentamente ao ouvido. Esse nome era
o de Shannon.
  Percorreu a página com o olhar. Números preços, uma segunda
referência a Shannon, duas referências a um homem chamado Clarence. O girar da maçaneta da porta interrompeu-a.
  Fechou o dossier, sobressaltada, e começou a falar com um interlocutor inexistente. O pai encontrava-se parado, à porta.
  - Está bem, Christine, vai ser óptimo. Então vemo-nos na segunda-feira. Adeus.
  A expressão do pai adoçara-se ao ver a filha.
  - Que estás tu a engendrar? - perguntou-lhe com fingida severidade.
  - Estava só a telefonar a uma amiga, pai - respondeu com a
  sua voz de menina. - Como a mãe andava pelo hall, vim para
  aqui.
  - Hum ... Tens um telefone no teu quarto. Por isso, se fazes
favor, utiliza-o para os teus telefonemas particulares.
  - Está bem, pai. Venha ajudar-me a selar o “Tamerlane” para
eu poder dar um passeio assim que deixar de chover.
  Manson sorriu.
  - Dá-me só uns minutos e vou ter contigo.
  Julie teve a certeza de que Mata Hari não teria agido mais engenhosamente.
CAPÍTULO DEZ
O vigésimo terceiro dia - quarta-feira 28 de Abril - começou para
Shannon com uma viagem de avião a Bruxelas e uma visita ao Kredietbank em Bruges. Ele e Marc Vlaminck dispunham de quatro
horas livres até ao encontro marcado com M. Boucher. Partiram
para o local combinado momentos antes de começar a escurecer.
  Há um troço pouco frequentado na estrada que liga Bruges a
Gante, no local onde a velha estrada segue paralelamente à nova
auto-estrada E5. A meio caminho deste troço, os dois mercenários
encontraram o letreiro desbotado de uma quinta abandonada, oculta
por um maciço de árvores. Shannon, que conduzia a furgoneta, ultrapassou-o e estacionou. Marc foi verificar se a propriedade estava,
de facto, abandonada.
  - Tanto a porta da frente como a das traseiras estão fechadas à
chave - informou. - Não há qualquer indício de estarmos a ser
observados. Vi os celeiros e os estábulos. Não há ninguém.
  Shannon consultou o relógio.
  - Esconde-te nas traseiras e fica de vigia. Eu daqui vigio a
frente.
  Quando Marc se afastou, Shannon colocou sobre as duas chapas
de matrícula originais outras falsas, que retirariam quando estivessem longe do .local. Espreitando para o interior do veículo e comprovando que, de acordo com as suas instruções, Marc o carregara
com seis grandes sacas de batatas, Shannon continuou tranquilamente a sua vigilância.
  A furgoneta que esperava apareceu às oito menos cinco. Quando
o veículo tomou o carreiro em direcção à propriedade, Shannon distinguiu, ao lado do motorista, a figura esférica e inconfundível de
M. Boucher. O veículo desceu o carreiro e desapareceu por entre as
árvores.
  Shannon esperou três minutos, após o que enveredou pelo mesmo caminho. Parou três metros à retaguarda de Boucher e apeou-se,
deixando acesas as luzes de posição.
  - Mr. Boucher - chamou, penetrando na escuridão.
  - Mr. Brown - ouviu Boucher responder na sua voz ofegante,
ao mesmo tempo que o obeso belga aparecia acompanhado por um
homem corpulento mas de movimentos lentos.
  Sabendo que Marc era capaz de se mover com a agilidade de um
bailarino, Shannon não receou que surgissem problemas.
  - Trouxe o dinheiro? - perguntou Boucher ao aproximar-se.
  - Está na furgoneta. Trouxe as Schmeissers?
  Boucher apontou com a mão balofa na direcção da sua própria
furgoneta.
  - Estão ali atrás - respondeu.
  - Podíamos talvez ambos descarregar as mercadorias e colocá-las no chão, entre as duas furgonetas - sugeriu Shannon.
  Boucher dirigiu algumas palavras em flamengo ao seu ajudante,
que se dirigiu para a retaguarda da furgoneta. O mercenário permaneceu em guarda. Se estavam reservadas surpresas, surgiriam quando as portas do veículo se abrissem. Mas tudo correu pelo melhor.
A luz mortiça dos seus próprios faróis iluminou dez pequenos caixotes e uma caixa de cartão aberta.
  Shannon assobiou e o Pequeno Marc surgiu de trás de um celeiro.
  - Vamos à troca - disse Shannon, ao mesmo tempo que enfiava o braço no porta-luvas, de onde retirou um volumoso sobrescrito. - Dez maços de cinquenta notas de vinte dólares cada uma.
  Manteve-se ao lado de Boucher enquanto este conferia cada um
dos maços, contando as notas com uma velocidade surpreendente
para umas mãos tão gordas e observando-as seguidamente, a fim de
se assegurar de que não eram falsas.
  - Tudo em ordem - declarou finalmente. E o seu ajudante
afastou-se das portas da furgoneta.
  Shannon fez sinal a Marc, que se aproximou da furgoneta, da
qual retirou o primeiro caixote, que colocou no chão. Levantou a
tampa com uma alavanca e contou as dez Schmeissers. Retirou uma
das armas e verificou o funcionamento do mecanismo de disparo e o
movimento da culatra. O exame dos dez caixotes durou vinte minutos. Por fim, Marc observou a caixa de cartão aberta, que continha
quinhentos carregadores, um dos quais experimentou, a fim de se
certificar de que se ajustava à Schmeisser.
  - Tudo em ordem - anunciou por sua vez.
  - Importa-se de pedir ao seu amigo que nos ajude a carregá-las? - perguntou Shannon a Boucher.
  Em cinco minutos, as sacas de batatas foram retiradas e os dez
caixotes pequenos e a caixa de cartão carregados na furgoneta de
Marc.
  Este sacou de uma faca, cortou a primeira saca e espalhou as
batatas sobre as espingardas. Soltando uma gargalhada, o segundo
belga começou a ajudá-lo, até os caixotes ficarem completamente
ocultos pelas batatas.
  - Se não se importa, partimos primeiro - disse Shannon a
Boucher.
  Só depois de Marc inverter a marcha da furgoneta, o mercenário
se afastou de Boucher e saltou para o veículo. A meio do percurso
abria-se no carreiro uma cova que obrigou Marc a diminuir a velocidade. Shannon murmurou algumas palavras, saltou do veículo e
ocultou-se entre os arbustos.
  Dois minutos depois, passou a furgoneta de Boucher, que também abrandou a marcha, quase parando, para ultrapassar o buraco.
Shannon saiu do meio dos arbustos e cravou uma faca no pneu traseiro do lado direito. Ouviu o silvo do ar que saía e novamente se
ocultou entre os arbustos, reunindo-se em seguida a Marc na estrada
principal, onde o belga acabara de retirar da furgoneta as chapas de
matrícula falsas. Shannon nada tinha contra Boucher, mas precisava
de meia hora de avanço sobre ele.
  Às dez e meia estavam em Ostende. A furgoneta, carregada de
batatas, foi oculta numa garagem. Seguidamente, no bar de Marc,
na Kleinstraat, os dois homens brindaram-se mutuamente com canecas de cerveja espumosa.
  Na manhã seguinte, Marc encontrou-se com Shannon no hotel.
Enquanto tomavam o pequeno-almoço, o irlandês explicou-lhe que
as Schmeissers tinham de ser passadas clandestinamente para França
através da fronteira belga, a fim de serem carregadas num navio
num porto do Sul da França. Durante meia hora, explicou a Vlaminck o destino a dar às pistolas-metralhadoras.
  - Está bem - concordou o belga. - Posso trabalhar de manhã, na garagem, antes da abertura do bar. Quando as levamos para
o Sul?
  - Lá para 15 de Maio. Vamos utilizar a estrada do champanhe.
  Shannon encontrava-se novamente em Londres ao princípio da
noite.
  O correio da manhã de sexta-feira levou-Lhe um conjunto de catálogos expedidos por Langarotti. O tipo de barco de borracha inflável que pretendia era fabricado por três firmas europeias. Uma
firma italiana pareceu-lhe a mais indicada para o que procurava. Do
modelo maior, com cerca de cinco metros e meio, havia dois barcos
para entrega imediata, um numa loja de Marselha e outro em Cannes. Um fabricante francês tinha um modelo de cerca de cinco metros que poderia ser adquirido em Nice.
  Shannon escreveu a Langarotti dando-Lhe instruções para que
comprasse os três barcos e os respectivos motores fora de borda,
mas em estabelecimentos diferentes. Informou o corso de que ia
transferir para a sua conta o equivalente a quatro mil e quinhentas
libras. Com esse dinheiro deveria pagar os barcos e os motores, e
com o restante adquirir uma furgoneta em segunda mão, em bom
estado, onde pudesse carregar os barcos de ataque e os motores,
para os entregar pessoalmente ao seu agente de navegação em Toulon, que os guardaria em armazém até serem exportados. Todo o
material deveria estar pronto para embarque no dia 15 de Maio. Na
manhã desse dia, Langarotti deveria dirigir-se na furgoneta a Paris,
onde se encontraria com Shannon.
  Depois de pôr no correio esta carta, bem como outra dirigida ao
Kredietbank de Bruges, Cat Shannon deitou-se. A tensão das últimas semanas produzia os seus efeitos. Sentia-se exausto. Tudo parecia correr de acordo com o plano, excepto no que respeitava ao
navio. Semmler continuava a procurar.
  O tinir do telefone obrigou Shannon a levantar-se.
  Era Julie. Lamentou que não fosse Semmler.
  - Estás na cidade este fim-de-semana? - perguntou-lhe ela.
  - Sim, devo estar.
  - Óptimo. Vamos aproveitá-lo para fazer coisas.
  - Que coisas? - indagou Shannon, a quem o cansaço parecia
ter coarctado a imaginação.
  Ela começou a mencioná-las pormenorizadamente, até que ele a
interrompeu e lhe disse que viesse a sua casa exemplificá-las.
  Na excitação de o rever, Julie esquecera-se da novidade que tinha para lhe dar. Já era quase meia-noite quando se lembrou.
  - Ah, a propósito, outro dia vi o teu nome! Num dossier que
estava em cima da secretária do meu pai.
  Se pretendera surpreendê-lo, teve sucesso. Shannon sentou-se de
um salto, agarrou-lhe os braços com força e fitou-a com uma intensidade que a assustou.
  - Estás a magoar-me - protestou, quase a chorar.
  - Que dossier era esse que estava em cima da secretária do teu
pai?
  - Era um dossier - respondeu, chorosa. - Só queria ajudar-te.
  A expressão de Shannon suavizou-se.
  - Diz-me como foi. Conta-me tudo.
  Quando acabou de falar, Julie rodeou-lhe o pescoço com os braços.
  - Amo-o, Mr. Cat. Foi só por isso que li. Fiz mal?
  Shannon reflectiu uns instantes. Ela já sabia demais e havia apenas duas maneiras de assegurar o seu silêncio.
  - Amas-me? Gostavas que me acontecesse algum mal, devido
a qualquer coisa que fizesses ou dissesses?
  Ela fitou-o intensamente. Era como um sonho de colegial.
  - Nunca, nunca falaria! Fizessem-me o que me fizessem ...
  Shannon pestanejou.
  - Ninguém te vai fazer nada. Basta que não digas ao teu pai
que me conheces nem que meteste o nariz nos seus papéis. Compreendes, ele contratou-me para reunir informações sobre prospecções
mineiras em África. Se soubesse que nos conhecíamos, despedia-me
e eu tinha de procurar outro emprego, muito longe daqui.
  O argumento produziu o efeito desejado.
  - Não digo nada - prometeu Julie.
  - Só quero que fales de dois pormenores - continuou Shannon. - Disseste que viste o título das folhas com os preços do
minério. Qual era?
  Julie franziu a testa.
  - Como se chama aquilo que se põe nas canetas de tinta permanente caras? Platina? Poderia ser platina?
  - Platina - repetiu Shannon, pensativo. - E o título da capa
do dossier? Lembras-te qual era?
  - Oh, lembro-me perfeitamente - exclamou, feliz. - Parecia
tirado de um conto de fadas: Montanha de Cristal.
  Shannon suspirou.
  - Sê um amor e vai fazer café, anda.
  E encostou-se à cabeceira da cama.
  - Canalha manhoso - murmurou. - Mas não será assim tão
barato, Sir James, não, não será mesmo nada barato! - Depois
riu-se, na escuridão.
  Nesse sábado à noite, Benny Lambert dirigia-se para casa após
ter passado o serão no seu café preferido, onde pagara uma série de
rodadas aos amigos para festejar o dinheiro que recebera de Shannon. Não reparou no automóvel que avançava lentamente atrás de
si. Tão-pouco ligou grande importância quando o carro acelerou na
sua direcção, ao aproximar-se de um terreno vago. No momento em
que se apercebeu do que se passava e começou a protestar, já um
homem gigantesco se apeava do veículo.
  Os seus protestos foram silenciados por um soco que o gigante
lhe aplicou no plexo solar, que o derrubou. O desconhecido retirou
então do cinto uma barra de ferro de sessenta centímetros que produziu um ruído surdo quando se abateu sobre a rótula de Lambert,
despedaçando-lha instantaneamente. Lambert soltou um grito agudo, como um rato apanhado numa ratoeira, e desmaiou. Já não sentiu que lhe quebravam a outra rótula.
  Vinte minutos depois, Thomard telefonava ao seu patrão.
  - Óptimo - disse Roux depois de o escutar. - Agora ouve. O
Alain acaba de me informar que no hotel de Shannon reservaram
um quarto em nome de Mr. Keith Brown para a noite do dia 15.
Estás de sentinela, perto do hotel, a partir do meio-dia desse dia.
Percebeste? Esperas que ele saia sozinho e apanha-lo. Dou-te cinco
mil dólares.
  Quando o telefone tocou, no domingo de manhã, Shannon estava deitado na cama, enquanto Julie preparava o pequeno-almoço.
  - Carlo? - Era a voz de Semmler. - Estou em Génova e já
tenho o barco. Serve para o que queremos. Mas há mais alguém
interessado em comprá-lo e talvez tenhamos que subir a oferta.
Podes vir vê-lo?
  - Vou amanhã. Em que hotel estás?
  Semmler deu-lhe a informação pedida.
  Shannon sorria quando desligou. Julie entrou com o café. Se
Kurt tivesse razão, poderia fechar o negócio do barco nos próximos
doze dias e estar em Paris no dia 15 para o seu encontro com Langarotti.
CAPÍTULO ONZE
A luz do Sol poente banhava o porto de Génova quando Kurt
Semmler conduziu Cat Shannon ao longo do cais até ao local onde o
Toscana, um cargueiro, se encontrava ancorado. Ferrugento, velho,
deselegante, semelhante a milhares de pequenos cargueiros que realizam o tráfico costeiro, a embarcação facilmente passava despercebida tal como Shannon pretendia.
  Subiram a bordo e desceram às instalações da tripulação, onde
foram recebidos por um homem musculoso e de feições duras, orçando os quarenta e cinco anos.
  - Carl Waldenberg, o imediato - apresentou Semmler.
  Waldenberg fez um gesto brusco com a cabeça e apertou-lhes a
mão.
  - Veio ver o nosso velho Toscana? - perguntou em bom inglês, embora com sotaque. E sem esperar o regresso do comandante
italiano, mostrou-lhes o navio.
  Shannon estava interessado em três pormenores: as condições do
navio para alojar doze homens além da tripulação, a possibilidade
de esconder alguns caixotes nos pores e o bom funcionamento dos
motores. Depois de responder cortesmente às perguntas de Shannon, o marinheiro alemão ofereceu cervejas aos visitantes. Enquanto as saboreavam sob um toldo de lona por detrás da ponte, deram
início às negociações. Os dois alemães conversaram na sua própria
língua, após o que Waldenberg olhou atentamente para Shannon e
disse em inglês:
  - É bem possível.
  Semmler explicou:
  - Waldenberg está interessado em saber por que motivo um
homem como tu, que evidentemente não conhece o negócio de fretes marítimos, quer comprar um cargueiro.
  Shannon fez um gesto de assentimento com a cabeça.
  - Compreendo perfeitamente. Kurt, quero trocar uma palavra
contigo.
  Afastaram-se em direcção à ré e debruçaram-se na amurada.
  - Que ideia fazes deste tipo, Semmler?
  - Agrada-me. O barco pertence ao comandante, que quer reformar-se. Waldenberg gostaria de ser comandante. Tem carta de
piloto, conhece o barco por dentro e por fora e também conhece o
mar. Quanto a estar disposto a transportar uma carga perigosa, creio
que vai depender do preço.
  - Então a primeira coisa a fazer é comprar o barco. Ele poderá
depois decidir se aceita o lugar. Se não ficar, podemos encontrar
outro comandante.
  - Não. Simplesmente porque teríamos de lhe dizer antecipadamente o suficiente para ele ficar a saber qual o género de trabalho
de que se trata. Se, depois de estar de posse dessa informação, quiser ir-se embora, pomos em perigo a segurança da operação.
  - Se ele souber qual é o trabalho e não o aceitar, só sairá por
um caminho - declarou Shannon, apontando a água.
  - Há ainda outra coisa, Cat. O comandante tem confiança nele.
Se o imediato estiver do nosso lado, poderá persuadir o comandante
a vender-nos o Toscana.
  A lógica do argumento convenceu Shannon, que resolveu converter Waldenberg num aliado. Voltaram para o toldo.
  - Vou ser franco consigo - disse Shannon ao alemão. - Se
comprar o Toscana, não será para transportar amendoins. Preciso de
um comandante competente, e Kurt garante que você é bom. Portanto, vamos ao que importa. Se eu comprar este barco, ofereço-lhe
o lugar de comandante com um contrato por seis meses e um salário
que seja o dobro do que ganha actualmente, além de um bónus de
cinco mil dólares pelo primeiro carregamento.
  Waldenberg sorriu.
  - Acaba de contratar um comandante.
  - Óptimo - declarou Shannon. - Mas primeiro temos de
comprar o barco.
  - Não há problema. Houve uma oferta de vinte e cinco mil
libras. Quanto estaria disposto a gastar?
  - Ofereço vinte e seis mil. O comandante aceitará?
  - Por essa quantia, e tendo-me como comandante, vende-lhe o
barco.
  - Quando posso falar com ele? Amanhã de manhã?
  - Muito bem. Amanhã, às dez horas, aqui a bordo.
  E os dois mercenários afastaram-se, depois de apertarem as
mãos ao alemão.
 Enquanto a furgoneta fechada permanecia estacionada no exterior, no beco, Vlaminck trabalhava no interior da garagem que alugara. Junto de uma das paredes alinhavam-se cinco grandes banis
pintados de verde, que visivelmente tinham contido óleo lubrificante. Marc cortara um disco do fundo do primeiro da fila, cuja posição
invertera, colocando-o sobre o que fora o topo.
  Retirara da furgoneta dois caixotes com as Schmeissers e as
vinte pistolas-metralhadoras estavam quase prontas para ocupar o
seu novo esconderijo. Cada arma, com cinco carregadores, fora
cuidadosamente revestida de uma pegajosa fita adesiva. Uma vez
assim embrulhada, cada uma delas fora introduzida num resistente
saco de plástico, ao qual Marc extraíra todo o ar, após o que o
amarrara firmemente com fio e o fechara num segundo saco. Não
duvidava de que, assim acondicionadas, as armas se conservariam
secas. Depois, com fortes tiras de lona, reuniu os vinte volumes
num único, que colocou no barril de óleo.
  A tarefa seguinte consistiu em fechar de novo o tambor com
outro disco de folha-de-flandres. Precisou de meia hora para ajustar
e soldar o novo disco ao fundo. Quando a solda arrefeceu, pintou
essa área à pistola com tinta verde exactamente igual à dos restantes
barris; uma vez a tinta seca, repôs o barril na posição inicial, retirou-lhe o tampão e encheu-o de óleo lubrificante.
  O líquido espesso verde-esmeralda, encheu os espaços vazios
entre as paredes do barril e o fardo das pistolas-metralhadoras.
Quando o barril ficou cheio, Marc, com uma lanterna eléctrica,
observou a superfície do líquido. Não havia o mínimo vestígio do
que se encontrava oculto no fundo.
  Satisfeito, o belga ficou convencido de que poderia ter os banis
prontos no dia 15 de Maio.
  O Dr. Ivanov estava irritado, e não pela primeira vez.
  - A burocracia - gritava, furioso, à mulher, sentada na sua
frente à mesa do pequeno-almoço -, a estúpida, incompetente e
ridícula burocracia deste país é inacreditável!
  - Acho que tens toda a razão - concordou a mulher.
  - Se o mundo capitalista soubesse quanto tempo é preciso neste país para arranjar um par de parafusos e porcas, morria a rir!
  Havia semanas que o director o informara de que deveria chefiar
uma equipa de prospecção na África Ocidental e que teria de se
encarregar pessoalmente dos pormenores da missão. Obedecera à
ordem, embora esta implicasse o abandono de um projecto em que
estava profundamente interessado. A sua equipa estava pronta e o
equipamento preparado e embalado até à mais ínfima pastilha para
purificação da água. Com sorte, pensara poderia efectuar a prospecção e regressar com as amostras antes de o breve Estio siberiano
terminar. A carta que tinha na mão, porém, informava-o de que o
processo não seguiria os trâmites normais.
  Fora-lhe enviada directamente pelo seu director, e comunicava-lhe que em virtude da natureza confidencial da prospecção, o Ministério dos Estrangeiros considerara preferível que a equipa embarcasse num cargueiro soviético que passasse pela costa da África
Ocidental a caminho do Extremo Oriente. Quando terminassem a
prospecção, deveriam informar o embaixador Dobrovolsky, e outro
cargueiro de regresso ao país recolheria a bordo a equipa e os caixotes de amostras.
  - Todo o Verão! - gritava Ivanov. - Vou perder um Verão
maravilhoso! E lá vou encontrar a estação das chuvas.
  NA manhã seguinte, Cat Shannon e Kurt Semmler encontraram-se a bordo do navio com o comandante, um homem velho e
magro de nome Alessandro Spinetti. Waldenberg serviu de intérprete e o comandante Spinetti aceitou a transacção nas condições propostas na véspera por Shannon ao imediato. A restante tripulação,
  um maquinista e um marinheiro, poderia permanecer por mais seis
  meses ou retirar-se, recebendo uma indemnização. Shannon decidira persuadir o marinheiro a despedir-se e tentar por todos os meios
  conservar o maquinista, um siberiano rude cuja competência Waldenberg garantia.
  Por razões de natureza fiscal, o comandante criara havia longo
  tempo uma pequena empresa privada, a Companhia de Navegação
  Spinetti Manttimo sociedade com cem acções, das quais possuía
  noventa e nove. A outra pertencia ao seu advogado, um certo Si  gnor Ponti. Consequentemente, a venda do Toscana, única propriedade da empresa, incluía a venda da companhia de navegação o
  que convinha perfeitamente a Shannon. O que já não lhe agradou
  tanto foram os dias perdidos em conversações com Ponti, antes de
  tudo estar resolvido. Só no trigésimo primeiro dia do calendário de
  cem dias de Shannon, Ponti começou a redigir os contratos. E as
  burocracias ainda se prolongariam.
  Entretanto, Cat Shannon enviou uma série de cartas escritas no
  seu hotel de Génova. A primeira destinava-se a informar Johann
  Schlinker de que o navio que transportaria as munições de Espanha
  seria o Toscana, da Spinetti Marítimo, de Génova. Precisava de
  que Schlinker lhe comunicasse qual o destino das armas, para que o
  comandante pudesse preencher a declaração conveniente.
  Enviou uma carta similar a Alan Baker para que este fornecesse
  às autoridades jugoslavas os dados para a licença de exportação.
  Seguidamente, escreveu a Mr. Stein, pedindo-lhe que convocasse uma reunião de directores da Tyrone Holdings para o dia 14 de
  Maio, com a seguinte ordem do dia: a aquisição da Spinetti Marítimo por vinte e seis mil libras e a emissão de mais vinte e seis mil
  acções ao portador para Mr. Keith Brown.
  Rabiscou também umas linhas a Vlaminck, informando-o de que
  a recolha da carga em Ostende teria de ser adiada para 20 de Maio;
  a Langarotti, adiando o encontro em Paris para o dia 19, e a Dupree pedindo-lhe que seguisse de avião para Marselha.
  Finalmente, escreveu a Simon Endean pedindo-lhe que transferisse para a sua conta, até ao dia 13, vinte e seis mil libras.
  JANNI Dupree sentia-se feliz. Quatro volumosas encomendas de
vestuário e equipamento seguiam a caminho de Toulon e recebera
uma carta de Shannon dizendo-lhe que fosse para Marselha, se alojasse em determinado hotel e aguardasse contacto.
  Ao anoitecer do dia 13 de Maio Langarotti viajava na furgoneta
a caminho de Toulon. Também ele estava contente com a vida.
Levava no veículo os dois últimos motores fora de borda, ambos
equipados com tubos de escape submersos, para navegação silenciosa, que entregaria no armazém, onde já se encontravam três barcos
de borracha pretos, infláveis, o outro motor e quatro grandes caixotes enviados por Dupree.
  Lamentavelmente, fora obrigado a abandonar o hotel. Um encontro ocasional com um antigo amigo do mundo do crime forçara-o a retirar-se apressadamente. Não pudera informar Shannon da
sua nova direcção, pois desconhecia o paradeiro do irlandês. Este
pormenor, porém, não o preocupava, pois dentro de quarenta e oito
horas, no dia 15, encontrar-se-ia em Paris.
  NA sequência da reunião realizada no Luxemburgo no dia 14 de
Maio, a Tyrone Holdings passou a ser a proprietária legítima da
Spinetti Marittimo. Ponti enviou, por correio registado, as cem acções da companhia para o escritório da Tyrone Holdings e acedeu a
guardar, fechado no seu cofre, um volume que Shannon Lhe confiou. Ficou com dois exemplares de assinaturas de Shannon, isto é,
Keith Brown, para poder autenticar quaisquer ordens recebidas relativamente ao referido volume. Este, sem que Ponti o supusesse,
continha as vinte e seis mil novecentas e noventa e quatro acções
da Tyrone.
  Quando regressou a Génova, Shannon ordenou a Semmler que
tivesse o Toscana pronto para zarpar, vistoriado e abastecido de
combustível e víveres.
  - Tens de estar em Toulon no dia 1 de Junho, o mais tardar.
Estarei lá com o Marc, o Jean-Baptiste e o Janni. Até à vista e
felicidades.
  SE Jean-Baptiste estava vivo, devia-o, pelo menos em parte, à
sua faculdade de pressentir o perigo. No dia 15, à hora marcada,
sentou-se na sala do hotel de Shannon, em Paris. Depois de duas
horas de espera dirigiu-se à recepção onde foi informado que não
estava hospedado no hotel nenhum Mr. Keith Brown, de Londres.
Presumindo que Shannon se atrasara por qualquer motivo, o corso
decidiu comparecer de novo no dia seguinte no lugar combinado.
Assim, no dia 16 de Maio, à mesma hora, ocupou um lugar na sala
do hotel. Shannon não apareceu, mas a sua atenção foi despertada
pelo facto de, por duas vezes, um empregado do hotel - sempre o
mesmo - ter espreitado dissimuladamente para dentro da sala, desaparecendo imediatamente. Decorridas mais duas horas, o corso
saiu do hotel. Ao descer a rua, reparou, de relance, num indivíduo
no vão de uma porta que aparentava um estranho interesse por uma
montra que exibia espartilhos.
  O corso ocupou as vinte e quatro horas seguintes a percorrer os
bares de Paris onde os mercenários habitualmente se reuniam. Continuou a passar todas as manhãs pelo hotel. onde no dia 19 de Maio
encontrou Shannon. Enquanto tomavam café na sala, Shannon informou-o da compra do navio.
  - Não houve problemas? - perguntou Langarotti. O irlandês
abanou negativamente a cabeça. - Pois aqui em Paris temos um.
  Impossibilitado de afiar a faca num lugar público, o corso conservava as mãos ociosas abandonadas no colo. Shannon pousou a
chávena. Se Langarotti falava em problemas, o caso era sério.
  - De que género? - perguntou em voz baixa.
  - Há um contrato para te liquidar. E caro: cinco mil dólares.
  Os dois homens permaneceram silenciosos. O irlandês reflectia
sobre as notícias.
  - Sabes quem fez o contrato? - perguntou finalmente.
  - Não. Diz-se que só um homem exímio ou um estúpido aceitaria um contrato para te liquidar. Mas há alguém que aceitou.
  Shannon praguejou mentalmente. Teria havido alguma indiscrição nesta operação? Seria o próprio Manson devido a Julie? Tanto
quanto lhe era dado saber. não ofendera entidades como a Mafia ou
a KGB. Tratava-se certamente do ódio pessoal de alguém. Mas
quem poderia ser?
  - Eles sabem que estou em Paris?
  - Creio que sim. E que te hospedas aqui. Estive cá há quatro
dias ..
  - Não recebeste a minha carta a adiar o encontro para hoje?
  - Não. Tive de deixar o meu hotel em Marselha há uma semana.
  - Ah! Continua.
  - A segunda vez que cá vim, o hotel estava sob vigilância, e
ainda está. Perguntei por ti pelo nome de Brown, por isso creio que
a indiscrição proveio do próprio hotel. Alguém conhece o nome de
Keith Brown.
  Shannon começou a pensar com rapidez. Gostaria de falar com o
homem que oferecera o contrato, o qual só poderia ser identificado
por quem o aceitara. Expôs a sua ideia ao corso, que fez um gesto
sinistro com a cabeça.
  - Sim, mon ami. É preciso utilizar uma isca para atrair o homem.
  Depois de discutirem o plano e estudarem um mapa da cidade,
Langarotti saiu.
  Durante todo o dia, Langarotti manteve a furgoneta estacionada
num local previamente combinado. À tarde, Shannon perguntou ao
recepcionista, que, segundo o corso, o espionava, se era possível
deslocar-se a pé até determinado restaurante muito conhecido.
  - Sem dúvida, monsieur. São quinze minutos, talvez vinte.
  Shannon agradeceu-Lhe e, utilizando o telefone da recepção, reservou uma mesa para as dez horas dessa mesma noite.
  Exactamente às nove e quarenta, saiu do hotel e começou a subir a rua, na direcção do restaurante. O caminho que escolheu não
era directo, mas seguia por ruelas mal iluminadas. Shannon vagueou pelas ruas até bastante mais tarde do que a hora para que
reservara a mesa. Por vezes, no silêncio, parecia-lhe ouvir atrás de
si o ruído de passos suaves.
  Eram mais de onze horas quando chegou à ruela que localizara
previamente no mapa. Era um beco sem saída, não iluminado, onde
se encontrava estacionada uma furgoneta, cujas portas da retaguarda
se apresentavam abertas. Shannon dirigiu-se para a retaguarda do
veículo e, quando ali chegou, deu uma volta sobre si próprio. Sentiu-se aliviado ao enfrentar o perigo. Enquanto caminhava ao longo
do beco, de costas viradas para a entrada, sentira os cabelos da nuca
arrepiarem-se-lhe. Se psicologicamente tivesse cometido um erro,
naquele momento estaria morto. Mas jogara certo. O homem que o
perseguira ao longo das ruas desertas mantivera a distância esperando uma oportunidade semelhante à que se apresentava naquele
momento.
  Imóvel, o mercenário fitou a enorme sombra que, de súbito,
obliterou a luz mortiça da entrada da ruela e aguardou, esperando
que não se produzisse nenhum ruído. A sombra avançou silenciosamente na sua direcção. Shannon conseguiu distinguir o braço direito estendido, apontado em frente. O vulto deteve-se, ergueu a
arma e apontou. Depois, de braço esticado, baixou-a de novo, lentamente, como se tivesse mudado de ideias. De olhos fitos em
Shannon, caiu lentamente sobre os joelhos, enquanto se ouvia o
ruído de uma pistola automática que rolava pela calçada. Por fim,
os braços do homem baixaram e este caiu para a frente, num charco
formado pelo próprio sangue.
  Shannon soltou um assobio e Langarotti surgiu calmamente rua
abaixo.
  - Pensei que tivesses esperado demasiado - murmurou Shannon.
  - Non. Nunca. Ele não teve a menor hipótese de premir o gatilho da arma em momento algum desde que saíste do hotel.
  As traseiras da furgoneta apresentavam-se cobertas com plástico
resistente, colocado sobre um oleado. Ao fundo, via-se uma pilha
de corda e tijolos. Os dois homens colocaram o corpo sobre o plástico; Langarotti apoderou-se novamente da faca e fechou as portas.
  - Conhece-lo? - perguntou Shannon quando o veículo arrancou.
  - Conheço. É Raymond Thomard, assassino profissional. Mas
não estava à altura de um trabalho deste tipo. Trabalha para Charles
Roux.
  Shannon praguejou em voz baixa, furiosamente. Endean devia
ter também entrevistado Roux. Era preciso desencorajar definitivamente o francês, a fim de o afastar da Operação Zangaro de uma
vez para sempre. Durante alguns segundos, o irlandês trocou com
Langarotti umas palavras rápidas.
  O corso concordou com um gesto de cabeça.
  - Gosto da ideia. Vai liquidá-lo.
  NESSE dia, Charles Roux sentia-se fatigado. Desde o momento
em que recebera o telefonema de Thomard comunicando-lhe que
Shannon se dirigia a pé para o restaurante, ficara aguardando notícias. À meia-noite não recebera ainda qualquer informação. Nem ao
nascer do Sol. A meio da manhã, ao mesmo tempo que Langarotti e
Shannon cruzavam a fronteira com a Bélgica conduzindo a furgoneta vazia, Roux desceu e foi abrir a caixa do correio.
  Esta, com cerca de 30 cm de altura, 2,5 de largura e 22,5 de
profundidade, estava aparafusada à parede alinhada com as dos
outros inquilinos. Roux abriu-a com a sua chave e permaneceu cerca de dez segundos imóvel. O seu rosto rubicundo tornou-se acinzentado e o estômago revolveu-se-lhe. A cabeça de Raymond Thomard olhava-o, do interior da caixa do correio, com uma expressão
de sonolenta tristeza, os olhos semicerrados e os lábios colados.
Roux fechou a porta da caixa, correu para casa e serviu-se de brandy. Estava necessitado de beber abundantemente.
  Em Belgrado, Alan Baker deixou, satisfeito, o departamento
jugoslavo de armas do Estado. Após receber o pagamento inicial de
Shannon, no valor de sete mil e duzentos dólares, e o certificado de
último destino emitido pelo diplomata do Togo, procurara um negociante de armas autorizado que já conhecia, o qual se deixara convencer pelo seu argumento de que a esta pequena encomenda se
seguiriam provavelmente outras de montante superior. Haviam escolhido nos armazéns do Estado os dois lança-morteiros e as duas
bazucas bem como caixotes de munições para ambas as armas.
Após obtida a respectiva licença de exportação, a mercadoria seria
enviada num camião militar para um armazém da alfândega do porto de Ploce a noroeste de Dubrovnik. Ninguém pusera em dúvida a
autenticidade do certificado de último destino do Togo. Baker receberia um lucro de quatro mil dólares.
  O Toscana embarcaria o material em Ploce, a partir do dia 10 de
Junho. Baker seguiu de avião para Hamburgo sem qualquer preocupação.
  Nessa manhã de 20 de Maio, Johann Schlinker estava em Madrid com o certificado de último destino comprado a um diplomata
venal da Embaixada do Iraque em Londres por mil libras. As formalidades espanholas eram mais complexas do que as ultrapassadas
por Baker em Belgrado. Eram necessárias duas licenças, uma para a
aquisição do material e outra para a sua exportação. A licença de
compra fora estudada pelos três ministérios madrilenos encarregados de tais assuntos: o das Finanças, o dos Estrangeiros e o da
Defesa. O dossier fora aprovado ao cabo de dezoito dias de diligências. Seguidamente, os caixotes de munições foram retirados da
fábrica da CETME e guardados num depósito militar situado nos
arredores de Madrid.
  Schlinker deslocara-se a Madrid a Im de apresentar pessoalmente o pedido de licença de exportação. Quando ali chegara, já conhecia todas as características do Toscana e pudera assim preencher o
questionário de sete páginas. Esperava que não surgissem problemas, pois o Toscana era um barco insuspeito. Atracaria em Valência entre os dias 16 e 20 de Junho, receberia a carga e, segundo a
documentação, seguiria para Latakia, na Síria. Daí, os Iraquianos
transportariam o material de camião para Bagdade. A licença de
exportação não tardaria mais de duas semanas, e seguidamente seria
passada uma ordem de marcha autorizando a retirada dos caixotes
do armazém e encarregando um oficial do Exército de escoltá-los,
com dez soldados, até ao cais, em Valência.
  Schlinker partiu para Hamburgo com a certeza de que os caixotes estariam em Valência a tempo de serem embarcados no Toscana.
  NA pequena cidade portuária de Dinant, no Sul da Bélgica,
Shannon e Langarotti foram acordados, pouco depois do anoitecer,
por Marc Vlaminck. Estavam ambos estendidos na parte de trás da
furgoneta francesa.
  - São horas de ir andando - disse o belga.
  - Julguei que tinhas dito pouco antes do nascer do Sol - resmungou Shannon.
  - Essa é a hora de atravessarmos a fronteira - corrigiu Marc.
- Mas temos de levar estas furgonetas para fora da cidade antes
que se tornem notadas. Podemos estacioná-las numa berma da estrada o resto da noite.
  Não existem grandes dificuldades para cruzar a fronteira franco-belga, em qualquer sentido, com um carregamento clandestino. A
fronteira estende-se ao longo de vários quilómetros e é atravessada
por dezenas de estradas secundárias e carreiros abertos por entre a
floresta, a maioria dos quais não está vigiada. Ambos os governos
procuram estabelecer um certo controle por meio de brigadas alfandegárias móveis, que escolhem uma estrada secundária ao acaso,
onde montam um posto de fiscalização. Quando as brigadas móveis
de um dos países se fixam numa destas estradas não vigiadas, todos
os veículos que por ela passam são revistados. Os contrabandistas
de champanhe francês não vêem qualquer razão para que esta bebida tão intimamente ligada à alegria seja alvo das atenções de algo
tão pouco regozijante como o imposto de importação belga. Consequentemente, inventaram um sistema que lhes permite localizar uma
estrada não vigiada.
  Como proprietário de um bar, Marc Vlaminck conhecia este sistema. Denominado “estrada do champanhe”, exigia a utilização de
dois veículos. Pouco antes do amanhecer, Marc puxou dos mapas e
deu instruções a Shannon e a Langarotti. Uma das furgonetas vazia
e com a documentação em ordem, seguiria pela estrada indicada por
Marc. Este, com o carregamento, esperaria exactamente vinte minutos, a uma distância de quilómetro e meio da fronteira. Se os Belgas
ou os Franceses tivessem montado um posto alfandegário, Langarotti seria obrigado a parar a fim de ser revistado e, como não transportava qualquer carregamento, seguiria para sul em direcção à estrada
principal, onde retrocederia, e regressaria à Bélgica, passando pelo
posto alfandegário permanente. Se as brigadas móveis estivessem
em funcionamento, não seria possível à primeira furgoneta regressar
nos vinte minutos previstos; assim prevenido, o veículo carregado
- neste caso o de Marc - regressaria a Dinant e tentaria cruzar a
fronteira num outro dia.
  - A fronteira é ali em baixo - apontou Marc. - Se não voltarem dentro de vinte minutos, encontramo-nos no café de Dinant.
  Langarotti acenou afirmativamente e engatou. A uma distância
de quilómetro e meio da fronteira, exactamente Shannon avistou
uma pequena barraca, porém deserta. Tão-pouco havia vigilância do
lado francês. Tinham decorrido cinco minutos. Contornaram mais
duas curvas, mas não avistaram ninguém.
  - Dá a volta! - ordenou Shannon. -Alle?! - Agora o tempo
era precioso.
  Langarotti desembocou na estrada principal como a rolha que
salta de uma garrafa do melhor champanhe. Apenas distinguiram a
furgoneta carregada de armas de Marc, .angarotti fez um sinal com
os faróis. Um segundo depois, Trlarc seguia a toda a velocidade para
França. Estaria fora da zona de perigo dentro de quatro minutos. Se,
por azar, surgissem alguns funcionários da alfândega durante aqueles minutos vitais, restava-lhe a esperança de que os barris de óleo
resistissem a uma inspecção minuciosa.
  Mas tão-pouco desta vez a zona estava vigiada. Langarotti seguiu Marc ao longo de estradas secundárias até encontrarem uma
estrada transitável, onde avistaram um marco que indicava a direcção de Reims. Irresistivelmente, soltaram um grito de satisfação.
  Procederam à transferência do material num parque de estacionamento que se situava próximo de um café de camionistas, a sul de
Soissons. Encostaram as traseiras das furgonetas uma à outra, com
as portas abertas, e o corpulento belga passou os pesados barris de
óleo para o veículo francês. Langarotti não teria problemas: a furgoneta estava legalmente registada em seu nome e a carga não seria
revistada.
  A furgoneta de Marc velha e lenta, foi abandonada numa pedreira, e as respectivas chapas de matrícula foram lançadas ao rio.
Após esta operação, os três mercenários viajaram juntos. Deixaram
Shannon nos arredores a sul de Paris, de onde este seguiria para o
Aeroporto de Orly.
  - O Toscana deve chegar no dia I de Junho, o mais tardar - informou Shannon ao despedir-se. - Vemo-nos antes. Felicidades.
  Ao pôr do Sol estava em casa, em St. John's Wood. Dos cem
dias de que dispunha gastara quarenta e seis.
  Quando, dois dias mais tarde, Endean se apresentou no apartamento, Shannon precisou de uma hora para Lhe explicar tudo quanto
acontecera desde o seu último encontro.
  - Preciso de voltar a França dentro de cinco dias para superintender ao carregamento no Toscana da primeira parte do material.
Tudo quanto se relaciona com o embarque é legal, excepto o conteúdo dos barris de óleo, que vão embarcados como combustível de
reserva do navio. É uma enorme quantidade, mas penso que não
haverá problemas.
  - E se houver? Se a Alfândega de Toulon os revistar?
  - Será um fracasso - respondeu Shannon com simplicidade.
- O navio será apreendido, o exportador preso e a operação ficará
gorada.
  - Um fracasso muitíssimo dispendioso - observou Endean. - Podia ter comprado as armas legalmente, através da Espanha.
  - Pois podia, mas se tivesse comprado simultaneamente as
armas e as munições teria levantado suspeitas e Madrid poderia recusar-se a conceder a licença. Também podia ter comprado as armas
em Espanha e as munições no mercado negro, mas o contrabando de
munições é mais arriscado. De qualquer maneira haveria um risco.
E quem se vai arriscar sou eu e os meus homens. Você está protegido.
  - Mesmo assim, não me agrada - afirmou Endean, irritado.
  - Que se passa? - perguntou Shannon, trocista. - Está a perder a coragem?
  - Não.
  - Então acalme-se. Tudo quanto tem a perder é dinheiro.
  Endean esteve prestes a confessar-lhe quanto ele e o seu patrão
se arriscavam a perder, mas conteve-se.
  Falaram de finanças durante mais uma hora. Shannon explicou
por que motivo queria imediatamente à sua disposição o restante do
orçamento total previamente combinado.
  - Além disso - acrescentou -, quero a segunda metade do
meu salário depositada na minha conta suíça antes do fim-de-semana e o restante transferido para Bruges.
  - Porquê neste momento?
  - Porque os riscos de prisão começam a partir da próxima semana e não conto voltar a Londres. O barco parte para Brindisi
enquanto eu preparo a entrega das armas jugoslavas. Segue-se Valência e o embarque das munições espanholas, e depois partimos a
caminho do objectivo. Se chegar adiantado, matamos tempo, em
  segurança, no mar. A partir do momento em que houver material de
  guerra a bordo, quero o barco o menos tempo possível nos portos.
  Endean considerou os argumentos expostos, que lhe pareceram
  lógicos. No dia seguinte, telefonou a Shannon comunicando-lhe que
  ambas as transferências tinham sido autorizadas.
  Shannon reservou passagem para Bruxelas no dia 26 de Maio.
  Passou essa noite e a seguinte com Julie, após o que fez as malas,
  enviou as chaves do apartamento, pelo correio, à agência que lho
  alugara e partiu. Julie conduziu-o no seu automóvel ao aeroporto.
  - Quando voltas? - perguntou-lhe, perto da entrada exclusivamente reservada aos passageiros.
  - Não volto - respondeu ele, e deu-lhe um beijo.
  - Voltas, sim. Tens de voltar.
  - Não volto - repetiu ele serenamente. - Arranja outro qualquer, Julie.
  - Não quero outro qualquer - retrucou a jovem, prestes a
romper em lágrimas. - Amo-te. Tens outra mulher, é isso ...
  - Não há outra mulher - afirmou, enquanto Lhe afagava os
cabelos.
  Shannon sabia que não haveria outra mulher nos seus braços.
Apenas uma arma, a carícia fria e reconfortante do aço brilhante
contra o peito, à noite. Julie ainda chorava quando ele a beijou,
junto à porta de embarque.
  No jacto, a caminho de Bruxelas, um dos passageiros queixou-se à hospedeira de que alguém estava a assobiar uma melodia
monótona.
  Cat Shannon necessitou de duas horas para liquidar a sua conta
em Bruges. Levantou metade do dinheiro em dois cheques visados e
o restante em traveler's cheques.
  Na manhã seguinte, seguiu de avião para Marselha, onde tomou
um táxi que o conduziu ao hotel dos arredores onde Langorotti estivera algum tempo instalado sob o nome de Lavallon e onde agora o
esperava Janni Dupree. Shannon e Dupree seguiram juntos para
Toulon de automóvel. Quando chegaram ao porto naval francês,
inundado de sol, o quinquagésimo segundo dia tocava o seu termo.
  TINHAM marcado encontro no passeio defronte do escritório da
agência de navegação. Foi ali que, às nove em ponto, Shannon e
Dupree se reuniram a Vlaminck e Langarotti. O Toscana devia estar
já a navegar ao longo da costa, trazendo Semmler a bordo. Por
sugestão de Shannon, Langarotti telefonou para a capitania e foi
informado de que o Toscana era esperado na manhã seguinte e reservara lugar para ancorar.
  Como não tinham nada mais a fazer durante esse dia, aproveitaram o tempo para nadar e tomar banhos de sol. Shannon não conseguia descontrair-se. Se um dos inspectores insistisse em perscrutar o
interior dos barris de óleo, um deles passaria meses, ou talvez anos,
a transpirar em Les Baumettes, a grande e sinistra prisão-fortaleza
pela qual haviam passado entre Marselha e Toulon. O pior era sempre a espera.
  O Toscana ancorou, suave e pontualmente, no local que lhe fora
reservado. Do seu posto de observação, num poste de amarração, a
meio quilómetro de distância, Shannon via Semmler e Waldenberg
deslocando-se na coberta. Não avistava o maquinista, mas distinguia outros dois vultos que enrolavam rapidamente os cabos. Dois
novos tripulantes recrutados por Waldenberg sem dúvida.
  Junto do portaló estacionou um Renault, do qual saiu um francês
rubicundo. Era o representante da Agence Maritime Duphot. Waldenberg foi ao seu encontro e dirigiram-se. ambos para o barracão da
alfândega. Uma hora depois, surgiam de novo e o agente de navegação partiu.
  Decorridos trinta minutos, Shannon subiu o portaló e entrou no
Toscana. Semmler fez-lhe sinal para entrar no camarote.
  - Até agora, tudo correu bem - informou. - Mandei fazer
um exame completo às máquinas e comprei uma enorme quantidade
de cobertores e colchões de espuma de borracha. Ninguém me fez
perguntas. O comandante pensa que vamos embarcar emigrantes
para a Grã-Bretanha.
  - E quanto ao óleo lubrificante?
  - Waldenberg queria comprá-lo em Génova, mas eu opus-me e
disse que o compraríamos aqui em Toulon.
  - Óptimo. Diz-lhe que o encomendaste. Assim, quando o carro
da companhia de combustíveis chegar, ele vai achar natural. O Langarotti é que o conduz. Cuidado como tratam os barris, para não
inundarmos o cais de Schmeissers.
  - Quando embarcam os outros?
  - Esta noite, depois de escurecer. Vêm só o Marc e o Janni; o
Jean-Baptiste ainda tem umas coisas a fazer. Quando podem partir?
  - A qualquer hora. Esta noite. A propósito, para onde vamos?
  - Para Brindisi. Conheces?
  - Claro que conheço. O que embarcamos lá'?
  - Nada. Eu estou na Alemanha. Mando-te um telegrama a indicar o porto seguinte e a data em que devem chegar. Depois, encarrega um agente local de telegrafar para o porto jugoslavo que eu
te indicar e reservar lugar para atracarem.
  - Como deves calcular, o Waldenberg vai perceber o que vamos receber a bordo na Jugoslávia. Ele não desconfia dos barcos de
borracha, dos motores, dos transmissores portáteis e nem do vestuário, que considera carregamento normal, mas com as armas é diferente.
  - Bem sei. Vai-nos custar dinheiro. Mas nessa altura, tu, o
Marc, o Janni e eu já estamos todos a bordo. O Waldenberg há-de
cooperar. E nessa altura podemos dizer-lhe o que contêm os barris
de óleo. Que achas dos dois novos tripulantes?
  - São italianos. Tipos duros, mas eficazes. Creio que ambos
  são perseguidos pela Polícia. Ficaram encantados por poderem
embarcar.
  Ao meio da tarde, duas furgonetas pertencentes à Agence
Maritime Duphot, acompanhadas pelo mesmo indivíduo que aparecera de manhã, pararam junto do Toscana. Um funcionário da
alfândega francesa, empunhando um livro de apontamentos, saiu
do barracão da alfândega e foi marcando com um visto os caixotes à medida que estes eram levados para bordo, sem sequer verificar o seu conteúdo, pois conhecia bem a agência. Quando o
funcionário carimbou a declaração da carga, Waldenberg disse
algumas palavras em alemão, que Semmler traduziu, explicando
ao agente que o comandante precisava de óleo lubrificante para
as máquinas.
  - Cinco banis - especificou.
  - Isso é muito - observou o agente.
  - Esta velha banheira devora óleo - explicou Semmler, rindo.
  - Quando precisam dele? - perguntou o agente.
  - As cinco da tarde, convém-lhe?
  - É melhor às seis - redarguiu o agente, antes de partir.
  Às cinco horas, Semmler dirigiu-se ao cais, telefonou para a
agência e cancelou a encomenda, alegando que o comandante encontrara um barril completamente cheio.
  Às seis horas surgiu no cais uma furgoneta que parou em frente
do Toscana. Era conduzida por Jean-Baptiste Langarotti, que vestia
fato-macaco verde-vivo com o nome da companhia fornecedora. O
corso abriu as portas da retaguarda da furgoneta e, cautelosamente,
fez deslizar os cinco grandes barris de óleo por uma prancha. O
funcionário da alfândega assomou à porta do barracão.
  Waldenberg indicou-lhe os banis com um gesto.
  - Posso embarcar? - gritou.
  O funcionário fez um gesto afirmativo com a cabeça e recolheu-se. Por ordem do comandante, os dois tripulantes colocaram
estrados sob os banis e içaram-nos para bordo, um a um. Os banis
desapareceram no porão do Toscana e pouco depois a escotilha fechava-se de novo.
  Havia muito tempo já que Langarotti partira na furgoneta. Shannon observara o embarque de longe, contendo a respiração. Quando
tudo terminou, Semmler foi ao seu encontro, com uma expressão
sorridente.
  -Não houve problema, como te tinha dito.
  Shannon sorriu também, aliviado, e recomendou-lhe:
  - Agora volta para bordo e toma conta daquela carga como de
uma galinha choca!
  Pouco depois da meia-noite, Janni Dupree e Marc Vlaminck
subiram silenciosamente para bordo. Às cinco horas da manhã, observado do cais por Shannon e Langarotti, o Toscana começou a
fazer-se ao largo.
  Langarotti acompanhou o irlandês ao aeroporto, onde este apanharia um avião, a meio da manhã, para Hamburgo. Enquanto tomavam o pequeno-almoço, Shannon dera ao corso as últimas instruções e confiara-lhe o dinheiro necessário para as executar.
  - Preferia ir contigo - disse Jean-Baptiste.
  - Bem sei, mas preciso de alguém de confiança para fazer esse
trabalho. E tu tens ainda a vantagem de ser francês. O Janni não
poderia entrar com um passaporte sul-africano e eu preciso do Marc
para intimidar a tripulação se houver problemas e do Semmler
para vigiar o Waldenberg. Portanto, só de ti depende que tudo corra
bem, Jean-Baptiste. Se à nossa chegada não encontrarmos uma força de apoio, a expedição pode fracassar. Voltamos a ver-nos daqui a
um mês.
CAPÍTULO DOZE
- Pode recolher os morteiros e as bazucas em qualquer altura
depois de 10 de Junho - disse Alan Baker a Shannon - num
pequeno porto chamado Ploce, a meio caminho entre Split e Dubrovnik.
  - Pequeno porto em que medida?
  - Meia dúzia de cais e dois grandes armazéns. Muito discreto.
O pessoal da alfândega é composto provavelmente apenas por um
homem. Se ele receber uma gratificação, põe tudo a bordo em poucas horas.
  - Pois seja, Ploce. No dia 11 de Junho. Tem algum problema a
pôr-me?
  Baker hesitou um instante.
  - Tenho um: o preço. Bem sei que lhe dei preços fixos, num
total de catorze mil e quatrocentos dólares. Mas tive de arranjar um
sócio jugoslavo, pelo menos assim se intitula. É cunhado do funcionário do Ministério do Comércio. Não deixam escapar uma oportunidade para receber uma gratificação.
  - E então?
  - E então... ele exige uma gratificação para despachar a papelada no Ministério de Belgrado. Pensei que lhe valeria a pena, a si,
ter a mercadoria pronta para embarque a tempo e horas sem atrasos
burocráticos.
  - Quanto custará isso?
  - Mil libras esterlinas. Em dólares. E tem de ser em dinheiro,
não em cheques.
  Shannon reflectiu um momento. O seu interlocutor poderia ou
não falar verdade. No primeiro caso, a recusa da quantia pedida
obrigaria Baker a pagar do montante da quantia que auferiria, o que
reduziria a sua margem de lucros de tal modo que poderia fazê-lo
perder o interesse pelo negócio. E Shannon continuava a precisar do
seu apoio.
  - Está bem. Quem é esse sócio?
  - É um tipo chamado Ziljak. Neste momento está fora, a tratar
do transporte da encomenda para o armazém de Ploce; e depois,
quando o navio chegar, encarrega-se de fazer a mercadoria passar
pela alfândega e de a embarcar a bordo.
  - Está bem, pago-lhe em dólares. Mas você recebe o seu dinheiro em cheques.
  - Não me importo - concordou Baker. - Quando quer partir?
  - Depois de amanhã. Seguimos de avião para Dubrovnik e passamos uma semana ao sol. Estou a precisar de descanso. Mas se
preferir, pode ir ter comigo no dia 8 ou 9, mas não mais tarde. No
dia 10 seguimos de carro para Ploce e eu mando o Toscana atracar
nessa noite.
  - Nesse caso, vou ter consigo daqui a uma semana. Tenho cá
que fazer.
  - Se não aparecer, vou procurá-lo - avisou Shannon.
  Johann Schlinker estava tão confiante como Baker de que poderia satisfazer a encomenda de munições nos termos previstos.
  - É provável que o porto indicado seja Valência, embora ainda
não seja certo - disse a Shannon. - Em Madrid informaram-me
que o carregamento tem de se efectuar entre 16 e 20 de Junho.
  - Preferia que fosse a 20. O Toscana atracaria na noite de 19 e
carregaria durante a manhã.
  - Eu digo isso ao meu sócio de Madrid. Não deve haver problema.
  - Não pode haver nenhum problema - corrigiu Shannon. - O
navio já sofreu um atraso e eu não disponho de qualquer margem de
tempo.
  A afirmação não correspondia à verdade, mas queria fazê-lo crer
a Schlinker.
  - E também quero embarcar em Valência.
  - Isso é difícil - disse o negociante de armas. - O porto está
isolado e a entrada só é permitida mediante autorização. Tinha de
passar pelo controle de passaportes.
  - O comandante não poderá contratar mais um tripulante em
Valência?
  Schlinker estudou a sugestão.
  - Se o comandante informasse o agente de que autorizara um
homem a deixar o navio no último porto, a fim de ir a casa de avião
para assistir ao funeral da mãe, e que esse tripulante regressaria ao
barco em Valência, creio que não levantariam objecções. Mas precisava de ter uma cédula marítima da marinha mercante.
  - Está bem, posso arranjar uma.
  Schlinker consultou a agenda e informou:
  - Estou em Madrid nos dias 19 e 20 para tratar de outros negócios. Se precisar de comunicar comigo, estou no Hotel Mindanao.
Se o embarque se efectuar a 20, o mais provável é que a mercadoria
seja conduzida até à costa durante a noite de 19, sob escolta militar.
Se de facto o senhor vai embarcar, deve fazê-lo antes da chegada da
escolta.
  - Posso estar em Madrid a 19. Comunico consigo para saber se
a escolta partiu, de facto, a tempo, e depois, se guiar depressa,
consigo chegar a Valência antes deles.
  - Isso depende de si - respondeu Schlinker. - Eu encarrego
os meus agentes de tratarem do frete, do transporte e do embarque.
Foi a isso que me comprometi. Se correr riscos ao tentar embarcar,
o problema é seu. Devo, no entanto, adverti-lo de que os navios que
transportam armas estão sujeitos a vigilância, têm de abandonar as
águas espanholas seis horas depois do carregamento e a declaração
de carga tem de estar perfeitamente em ordem.
  - Estará. Vejo-o em Madrid no dia 19.
  Shannon escreveu a Semmler, ao cuidado da capitania do porto
de Brindisi, dizendo-lhe que estivesse no porto de Ploce, na Jugoslávia, no dia 10 de Junho. Encarregou-o também de comprar uma
cédula marítima, devidamente selada e actualizada, para um marinheiro de' nome Keith Brown.
  A última carta que meteu no correio, antes de partir de Hamburgo, destinava-se a Simon Endean, a quem recomendava que estivesse em Roma no dia 16 de Junho e adquirisse determinadas cartas
marítimas.
  CA'r Shannon passou uma semana em Dubrovnik, comportando-se como qualquer outro turista. Quando chegou, Alan Baker
encontrou o irlandês bronzeado e com aspecto saudável, embora
mais magro. Trocaram impressões enquanto tomavam uma bebida
no terraço do hotel. Tanto o Toscana como Ziljak, o sócio de Baker, chegaram na data prevista. Os caixotes já se encontravam no
armazém de Ploce, sob vigilância. Shannon sentiu-se, de súbito,
optimista.
  Na manhã seguinte, alugaram um táxi e dirigiram-se a Ploce. À
hora do almoço estavam instalados num hotel, onde esperaram que
a capitania do porto reabrisse, às quatro horas. Quando se aproximavam do edifício, um pequeno Volkswagen amolgado parou, com
um chiar de pneus, a poucos metros de distância, buzinando ruidosamente. Shannon ficou petrificado. A sua primeira impressão foi
de que havia perigo. O homem que se apeou do pequeno automóvel
podia ser um polícia. Olhando, porém, para Baker, Shannon notou,
com alívio, os seus ombros descaídos.
  - Ziljak - murmurou Baker, e foi ao encontro do jugoslavo.
  Este, um homem corpulento e desgrenhado, estreitou Baker num
caloroso abraço, apertou a mão de Shannon quando este lhe foi
apresentado e murmurou algumas palavras em servo-croata, segundo pareceu ao irlandês. Baker e Ziljak falavam alemão entre si.
  Ziljak despenou o director do posto alfandegário, que os conduziu ao armazém. O funcionário trocou algumas palavras com o
guarda e, num canto do edifício, depararam-se-lhes os caixotes.
Eram treze, sem qualquer indicação do conteúdo, mas marcados
com números de série e a palavra Toscana, aposta em stencil. Ziljak
e o director do posto falaram durante alguns instantes, após o que o
primeiro se dirigiu a Baker no seu alemão vacilante. A resposta
deste, traduzida pelo jugoslavo, fez o chefe do posto afastar-se com
uma expressão sorridente.
  - De que falaram? - perguntou Shannon.
  - O funcionário da alfândega perguntou se não havia uma pequena lembrança para ele - explicou Baker. - Ziljak respondeu-lhe que certamente haveria se não surgissem complicações com a
papelada e o barco fosse carregado a tempo.
  Baker, a quem Shannon já entregara a primeira metade do bónus
de Ziljak, afastou-se um pouco com o jugoslavo para lhe entregar o
dinheiro. A efusão patente na expressão do indivíduo acentuou-se
mais ainda. Em seguida dirigiram-se todos para o hotel a fim de
celebrarem o êxito com um pouco de slivovitz. “Um pouco” foi a
expressão usada por Baker, mas os Jugoslavos, quando se sentem
felizes, nunca se contentam com um pouco da forte aguardente de
ameixa. O Sol pôs-se e o crepúsculo adriático começou a insinuar-se pelas ruas, enquanto Baker se via em apuros para traduzir as
palavras do exuberante Ziljak, que revivia os anos que passara nos
montes da Bósnia, caçando e escondendo-se com os resistentes de
Tito.
  Shannon perguntou-lhe se, agora, era comunista activista.
  - Guter Kommunist! - exclamou Ziljak, apontando para si
próprio.
  Imediatamente a seguir, porém, anulou o efeito com uma piscadela de olho e uma sonora gargalhada, enquanto emborcava novo
golo de sdivovitz. Shannon riu-se também, lamentando que o gigante
os não acompanhasse a Zangaro. Depois, em passos cambaleantes,
voltaram ao cais para ver o Toscana atracar.
  Quando Baker regressou de novo ao hotel, acompanhado de Ziljak, Shannon subiu o portaló e entrou no exíguo camarote do comandante. Semmler foi chamar Waldenberg e regressou com ele,
fechando a porta atrás de si. Cautelosamente, Shannon informou
Waldenberg do material que o Toscana estava prestes a receber a
bordo. O rosto do alemão manteve-se inexpressivo.
  - Nunca transportei armas - declarou quando Shannon terminou. - O senhor afirma que este carregamento é legal. Até que
ponto?
  - Perfeitamente legal. É um carregamento perfeitamente legal
segundo as leis da Jugoslávia.
  - E segundo as leis do país para onde se dirige? - indagou
W aldenberg.
  - O Toscana não entrará nas águas territoriais do país onde as
armas serão usadas - afirmou Shannon. - Depois de Ploce, fará
escala em dois portos, em qualquer deles apenas para receber carga.
Como sabe, os navios nunca são inspeccionados quando aportam
apenas para receber carga, a não ser que tenha havido uma denúncia.
  - O que já tem acontecido - insistiu Waldenberg. - Se estas
armas forem descobertas, o barco é apresado e eu sou preso. Não
fui contratado para transportar armas. Com o Setembro Negro e o
IRA em acção, anda toda a gente à procura de armas.
  - Foi contratado para levar imigrantes ilegais para a Grã-Bretanha.
  - Só são ilegais depois de pisarem o solo britânico - precisou
o comandante. - O Toscana estaria fora das águas territoriais. Os
imigrantes podiam desembarcar em barcos a motor. Mas com armas
  é diferente. Se não constam da declaração, o seu transporte neste navio
  é ilegal. Porque não foram registadas na declaração?
  - Porque, se o navio transportar armas, as autoridades espanholas
  não permitem a entrada do navio em nenhum porto espanhol.
  - E se a Polícia Espanhola revistar o barco?
  - Não revista. Mas se revistar, os caixotes estarão lá em baixo,
  nos porões.
  - E se a Polícia os encontrar passamos o resto da vida na prisão.
  Vão pensar que a mercadoria se destina aos Bascos.
  A conversa prolongou-se até às três da manhã e custou a Shannon
cinco mil libras: cinquenta por cento antes e cinquenta por cento após
Valência.
  - Encarrega-se da tripulação? - perguntou Shannon.
  - Encarrego, não se preocupe - respondeu Waldenberg com
firmeza.
  De regresso ao hotel, Shannon pagou a Baker o terceiro quarto do
preço das armas e tentou dormir. Transpirava copiosamente e o Toscana atracado e as armas guardadas no armazém da alfândega não lhe
saíam do pensamento. Rezou para que não surgissem problemas. Sentia-se já muito próximo do ponto em que ninguém poderia detê-lo,
mesmo que o tentasse.
  O embarque da carga iniciou-se às sete e às nove estava terminado.
  Enquanto assistia à saída do Toscana do porto Shannon entregou a
Ziljak e a Baker o resto do pagamento combinado. Sem que nenhum
deles o soubesse, encarregara Vlaminck de abrir cinco dos caixotes,
escolhidos ao acaso, e verificar o seu conteúdo, não se desse o caso de
conterem apenas ferro velho, fenómeno frequente no mundo das armas.
  Era o sexagésimo sétimo dia do calendário de cem dias que Sir
James Manson concedera a Shannon para desferir o golpe.
  Apenas o Toscana se encontrou ao largo, o comandante Waldenberg chamou ao seu camarote os três tripulantes para uma pequena
conversa. Se algum deles se tivesse recusado a cooperar, verificar-se-ia
um acidente desagradável a bordo. Poucos lugares são tão apropriados
para um desaparecimento sem deixar rasto como um navio no mar alto,
numa noite escura. Porém, ninguém levantou objecções, especialmente
quando o comandante dividiu entre eles mil libras.
  Seguidamente, os caixotes recentemente embarcados foram
abertos e o seu conteúdo oculto nas profundezas do navio, sob o
piso do porão. As tábuas do soalho foram repostas no local e cobertas com o inofensivo carregamento de vestuário, barcos de borracha
e motores fora de borda.
  Em seguida, Semmler ordenou a Waldenberg que ocultasse os
barris de óleo no fundo do porão, explicando-lhe a razão desta
ordem. Desta vez, Waldenberg perdeu a calma e empregou algumas expressões que poderiam ser qualificadas como lamentáveis.
Em breve, porém, Semmler conseguiu acalmá-lo e sentaram-se a
beber cerveja, enquanto o Toscana seguia em direcção ao sul.
  Por fim, Waldenberg começou a rir.
  - Schmeissers! - exclamou. - Schmeissers dos diabos!
Mensch, há quanto tempo não são ouvidas neste mundo!
  - Vão voltar a ouvir-se - garantiu-lhe Semmler.
  Waldenberg pareceu melancólico.
  - Quem me dera desembarcar com vocês! - confessou finalmente.
CAPÍTULO TREZE
SHANNON foi encontrar Simon Endean a ler o Times, que comprara
nessa manhã em Londres antes de partir para Roma. A sala do Excelsior estava quase deserta, pois a maioria dos clientes que habitualmente tomavam café a meio da manhã fazia-o no terraço, contemplando o caótico tráfego de Roma, que avançava lentamente e
esforçando-se por que as suas vozes se sobrepusessem ao ruído do
trânsito.
  Shannon instalou-se numa cadeira ao lado da de Endean.
  - Esteve muito tempo sem comunicar - observou Endean, fitando-o.
  - Um navio leva algum tempo para ir de Toulon à Jugoslávia
- respondeu Shannon. - A propósito, trouxe as cartas marítimas
que lhe pedi?
  - Claro que trouxe - respondeu Endean, apontando para a
sua volumosa pasta. Logo que recebera a carta do mercenário,
comprara mapas de toda a costa africana, de Casablanca à Cidade
do Cabo.
  - Por que diabo precisa de tantas? - indagou, agastado.
  - Por uma questão de segurança - respondeu Shannon secamente. - Se o navio fosse revistado num porto, um único mapa
assinalando o destino do navio representaria uma denúncia. Assim,
ninguém, incluindo o comandante e a tripulação, pode descobrir
qual a zona da costa que na realidade me interessa. Trouxe também
os diapositivos?
  - Trouxe.
  Outra das tarefas de Endean consistira em mandar fazer diapositivos das fotografias que Shannon tirara em Zangaro e dos mapas e
esboços de Clarence e do litoral. O próprio Shannon já enviara para
bordo do Toscana, quando este se encontrava atracado em Toulon,
um projector de diapositivos adquirido na free-shop do Aeroporto de
Londres.
  Endean escutou em silêncio, tomando apontamentos que transmitiria a Manson, toda a exposição de Shannon sobre o trabalho
realizado e os planos para os próximos dias: o carregamento das
munições de 9 mm em Valência e a partida para o objectivo final. O
mercenário não aludiu ao facto de um dos seus homens já se encontrar em África.
  - Agora preciso de saber o que acontece depois do ataque - acrescentou. - Como já lhe disse, não podemos esperar muito
tempo antes da instauração de um novo regime pela radiodifusão da
notícia do golpe.
  - Essa é a parte mais importante da operação - declarou Endean em voz suave, enquanto retirava da pasta três folhas de papel.
- Aqui tem as suas instruções, a partir do momento em que se
apoderar do palácio. Leia, decore e destrua estas folhas aqui mesmo, antes de nos separarmos.
  Shannon passou uma vista de olhos rápida pela primeira folha,
que não lhe causou surpresas, pois já calculara que o homem escolhido por Manson seria fatalmente o coronel Bobi. O resto do plano
era elementar, do seu ponto de vista. Olhou para Endean e perguntou-lhe:
  - Onde estará o senhor?
  - Cento e sessenta quilómetros a norte.
  Shannon compreendeu que o inglês se referia à capital da república situada a norte de Zangaro.
  - Tem a certeza de que capta a minha mensagem? - perguntou.
  - estarei munido do melhor rádio portátil que existe no mercado. Apanhará tudo no raio de alcance da emissora do seu navio.
  - Vamos esclarecer bem um ponto. Eu transmitirei na frequência indicada e às horas combinadas de bordo do Toscana, que se
encontrará algures ao largo, provavelmente a cinco ou seis milhas
da costa. Mas se o senhor não me ouvir, se houver demasiada electricidade estática, não posso ser responsabilizado por essa circunstância.
  - A frequência foi experimentada - afirmou Endean. - O
meu receptor permite captar a rádio do Toscana a uma distância de cento e sessenta quilómetros. Se repetir a mensagem durante trinta
minutos, ouço-o com certeza.
  - Muito bem - concordou Shannon. - Uma última coisa. É
preferível que as notícias dos acontecimentos de Clarence não cheguem ao posto fronteiriço zangarense. Isso significa que ele continuará na posse dos Vindus. Compete-lhe a si arranjar um processo
de passar. Também pode haver vindus próximo de Clarence, espalhados pelas estradas, tentando esconder-se no mato, mas perigosos.
Suponhamos que não conseguem passar ..
  - Passamos - afirmou Endean. - Temos ajuda.
  Shannon supôs, judiciosamente, que essa ajuda seria proporcionada pela pequena equipa que a ManCon enviara para trabalhos de
prospecção na república vizinha. Ser-lhes-ia fácil arranjar um jeep e
talvez alguns homens armados para escoltarem um director da companhia. Pela primeira vez, o mercenário considerou a possibilidade
de Simon Endean possuir uma certa coragem, a par do seu espírito
sórdido.
  Depois de ler as instruções e decorar as palavras de código e a
frequência de rádio que deveria utilizar, Shannon, com a ajuda de
Endean, queimou as folhas no lavabo dos homens. Depois separaram-se. Não havia mais nada a dizer.
  No quinto andar de um prédio de uma das ruas de Madrid, o
coronel Antonio Almela, director do Departamento de Exportação
do Ministério do Exército Espanhol (Venda de Armas ao Estrangeiro), analisava o dossier de documentos que tinha diante de si. Era
um homem simples, de uma lealdade firme. Devido à sua fidelidade
absoluta para com a sua querida Espanha, fora-lhe confiado um trabalho confidencial e altamente secreto. Nenhum espanhol tem conhecimento de que a Espanha exporta armas praticamente para todos os que as solicitam. O Governo Espanhol sabia que podia confiar em absoluto que Almela manteria sigilo completo sobre qualquer concessão ou recusa de licenças de exportação.
  O dossier que o coronel tinha agora à frente chegara-lhe às mãos
havia quatro semanas e fora minuciosamente estudado. O primeiro
documento era um pedido de movimentação de caixotes de Madrid
para Valência, a fim de embarcarem no Toscana. A licença de exportação estava assinada por ele próprio.
  Notando um pormenor, o oficial fitou o funcionário civil que se
encontrava à sua frente.
  - Qual a razão da mudança de porto? - indagou.
  - Simplesmente porque nas próximas duas semanas não há local disponível para atracar em Valência, Señor Coronel. A capacidade do porto está esgotada.
  O coronel Almela resmungou entre dentes. A explicação era
aceitável. Durante os meses de Verão, a lotação do porto de Valência mantinha-se esgotada. No entanto, não lhe agradavam modificações. Tão-pouco lhe agradava aquela encomenda, cuja insignificância lhe levantava suspeitas. E não confiava em Herr Schlinker. Mas
toda a documentação estava perfeitamente em regra, incluindo o
certificado de último destino. Se ao menos descobrisse uma discrepância ... Estava tudo em ordem, porém. Ao cabo de alguns momentos, o coronel rabiscou a sua assinatura na autorização de transferência.
  - Está bem - resmungou. - Seguem para Castellón, e não
para Valência.
  - Tivemos de mudar o porto de embarque para Castellón - informou Schlinker, duas noites depois. - Não havia outra alternativa. A capacidade de Valência estava esgotada por muitas semanas.
Quando comunicar pela rádio o Toscana será avisado da mudança.
  Cat Shannon estava sentado no quarto do negociante de armas
alemão, no Hotel Mindanao.
  - Onde fica Castellón? - perguntou.
  - Quarenta quilómetros mais a norte, no litoral. É um porto
pequeno, mais indicado para si.
  - E o meu embarque?
  - Informei o agente de navegação de que um marinheiro chamado Keith Brown deve embarcar no Toscana. E os seus documentos?
  - Estão em ordem - redarguiu Shannon.
  - O agente em Castellón é o Señor Moscar. A camioneta parte
de Madrid com escolta, à meia-noite de amanhã e a sua chegada à
alfândega do porto de Castellón está prevista para as seis da manhã,
à hora de abertura. Dei instruções ao director dos transportes para
me telefonar para aqui logo que a escolta parta.
  Nessa tarde, Shannon alugou um potente Mercedes.
  Às dez e meia da noite seguinte, o irlandês estava de novo no
Hotel Mindanao, com Schlinker, esperando pelo telefonema. Ambos se sentiam nervosos como é habitual quando a execução de um
plano cuidadosamente elaborado se encontra dependente de terceiros. Schlinker sabia que se algo corresse mal, poderia ser ordenada
uma investigação completa do seu certificado de último destino, o
que implicaria uma consulta ao Ministério do Interior de Bagdade.
Se fosse desmascarado naquela operação, perderia todos os seus
lucrativos negócios com Madrid.
  Bateu a meia-noite. E decorreu mais meia hora. Shannon percorria o aposento, descarregando a sua frustração em palavras ásperas contra o obeso alemão. A meia-noite e quarenta minutos, o telefone tocou. De um salto, Schlinker atendeu a chamada.
  - Que se passa? - perguntou Shannon, ansioso.
  O alemão fez um gesto com a mão pedindo-lhe silêncio, após o
que sorrindo, desligou. Mas o mercenário já desaparecera.
  A velocidade que o Mercedes atingia ultrapassava largamente a
do transporte militar que conduzia as munições. Shannon observava
atentamente as centenas de camionetas que seguiam na direcção da
costa à medida que as ultrapassava. A oeste de Valência, os seus
faróis iluminaram os jeeps militares que escoltavam uma camioneta
coberta de oito toneladas; quando a ultrapassou, viu escrito na parte
lateral o nome da empresa de camionagem que Schlinker Lhe indicara.
  Chegou a Castellón pouco depois das quatro horas. Como acontece habitualmente nos portos mediterrâneos, havia três portos independentes: um para cargueiros, outro para embarcações de recreio e
o terceiro para barcos de pesca. O porto comercial de Castellón está
protegido por uma vedação de rede de ferro e os seus portes são
guardados dia e noite por sentinelas armadas. Àquela hora, os portes estavam fechados à chave e a sentinela dormitava na sua guarita, mas Shannon espreitou pela vedação e confirmou, com alívio,
que o Toscana já estava ancorado.
  Às seis horas voltou para junto dos portes, perto dos quais os
jeeps e a camioneta se encontravam agora estacionados. As seis e
  dez chegou um veículo particular, do qual se apeou um espanhol
baixo e elegante, a quem Shannon se dirigiu:
  - Señor Moscar?
  - Si.
  - Chamo-me Brown e tenho de embarcar aqui no meu navio.
  O espanhol - franziu as sobrancelhas.
  - Brown - insistiu Shannon. - Toscana.
  - Ah, si! El marinero. Entre, por favor.
  O portão já fora aberto e Moscar exibiu o seu salvo-conduto.
  Falou em seguida com a sentinela e apontou para Shannon cujo
  passaporte e cédula da marinha mercante foram examinados. Seguidamente, o mercenário seguiu Moscar até ao escritório da alfândega. Uma hora depois estava a bordo do Toscana.
  A revista começou às nove horas, sem aviso prévio. A declaração do comandante fora apresentada e conferida. O capitão da escolta militar trocou algumas palavras com dois funcionários da alfândega após o que estes últimos subiram a bordo, seguidos por Moscar. Limitaram-se a conferir a carga para se certificarem de que era
  a que constava da declaração. Abriram a porta do paiol, contemplaram a confusão de correntes, barris de óleo e latas de tinta e tornaram a fechá-la. A revista demorou uma hora. O que mais interessou
  saber aos funcionários foi o motivo por que precisava o comandante
Waldenberg de sete homens num barco tão pequeno. Foi-lhes explicado que Dupree e Vlaminck eram empregados da companhia que
haviam perdido o seu navio em Brindisi e seriam desembarcados em
Malta. Quando lhe perguntaram o nome do navio, Waldenberg indicou o nome de um que vira no porto de Brindisi. Vinte minutos
após o desembarque dos funcionários da alfândega, deram início ao
carregamento.
  Ao meio-dia e meia hora, o Toscana desacostou do porto de
Castellón e aproou para sul, na direcção do cabo San Antonio. Cat
Shannon que se sentia indisposto em consequência da tensão das
últimas horas, estava encostado à amurada da ré quando Waldenberg se aproximou por detrás.
  - Foi esta a última paragem? - perguntou.
  - A última em que tivemos de abrir as escotilhas - respondeu-lhe o mercenário. - Temos de recolher alguns homens na costa de
África, mas vêm ao nosso encontro de lancha. Marinheiros nativos.
Pelo menos é a esse título que embarcam.
  - Não tenho cartas marítimas para além de Gibraltar - objectou Waldenberg.
  Shannon introduziu a mão no bolso do blusão, de onde retirou
um maço de mapas.
  - Estas chegam até Freetown, na Serra Leoa. É aí que recolhemos os homens. Vêm ao nosso encontro no dia 2 de Julho.
  O comandante afastou-se, a fim de traçar a rota, e Shannon ficou sozinho com as gaivotas. Quem escutasse com atenção, ouviria,
por entre os gritos das aves, o assobio de um homem entoando Spanish Harlem.
  Mais ao norte, a uma distância considerável, o navio Komarov
deixava o porto de Arcangel.
  A popa, o Dr. Ivanov e um dos seus técnicos estavam debruçados à amurada, sob a bandeira onde ondeavam a foice e o martelo.
  - Camarada doutor, já esteve alguma vez em África? - perguntou o mais jovem.
  - Já estive no Ghana.
  - Como é?
  - É tudo selva, pântanos, mosquitos, serpentes e pessoas que
não compreendem uma única palavra do que dizemos.
  - O comandante disse-me que devemos chegar a Clarence dentro de vinte e dois dias, no dia em que celebram a independência.
  - Bravo por e?es - resmungou Ivanov, afastando-se.
  Passado o cabo Espartel e quando saiu do Mediterrâneo para
entrar no Atlântico, o Toscana transmitiu para Gibraltar, pela rádio,
um telegrama que devia ser retransmitido a Mr. Walter Harris, de
Londres. O texto dizia apenas: PRAZER COMUNICAR SEU IRMÃO
COMPLETAMENTE RESTABELECIDO. A mensagem significava que o
Toscana seguia o seu rumo sem ter sofrido qualquer atraso.
  - Excelente - comentou Sir James quando Endean lhe deu a
notícia. - Quanto tempo tem ainda Shannon para chegar ao objectivo?
  - Vinte e dois dias. Vai adiantado.
  - E ataca logo que chegar?
  - Não, Sir Manson. O dia do ataque continua a ser o centésimo
dia.
  - Muito bem. Meta-se num avião e instale o nosso novo empregado, o coronel Bobi, nesse local próximo de Zangaro. Quando
Shannon lhe comunicar que vai atacar, dê a notícia a Bobi. Depois
convença-o a assinar a concessão de mineração, como presidente de
Zangaro, date o documento de um mês mais tarde e envie-me três
cópias em três sobrescritos diferentes. Mantenha Bobi vigiado até
receber o segundo sinal de Shannon comunicando que foi bem sucedido. Parta, então. A propósito, esse guarda-costas que vai levar
consigo está preparado?
  - Pela gratificação que vai receber, está preparado para tudo.
  - É preciso cuidado, Shannon pode causar-nos dificuldades.
  - Sou capaz de lidar com ele - afirmou Endean, sorrindo. - Como todos os mercenários, tem o seu preço.
  DEPOIS de deixarem a Espanha, Shannon insistiu em que a carga
permanecesse como estava, intacta, prevendo a possibilidade de
uma busca em Freetown. Apenas consentiu que se desembalassem
as mochilas compradas em Londres por Dupree, que foram transformadas de forma a ficarem munidas de bolsas estreitas, cada uma
delas com capacidade para transportar uma granada de bazuca. As
mochilas mais pequenas também foram modificadas, a fim de poderem transportar vinte granadas de morteiro cada uma.
  A uma distância de seis milhas ao largo de Freetown, o Toscana
anunciou a sua presença à capitania da cidade, sendo autorizado a
ancorar na baía. Como não havia mercadorias para carregar ou descarregar e se limitava a receber tripulantes, prática frequente por
parte de navios costeiros, não precisava de atracar no cais.
  Enquanto a âncora era largada os olhos de Shannon perscrutavam a terra à procura do hotel onde Langarotti os deveria aguardar.
  O irlandês observou então uma pequena pinaça que saía do barracão onde funcionava a alfândega, transportando um homem fardado, de pé, à popa. Shannon recebeu-o, apertou-lhe calorosamente a
mão e conduziu-o ao camarote do comandante, onde o esperavam
três garrafas de whiskey e dois pacotes de cigarros. O funcionário
suspirou de prazer e lançou um olhar isento de curiosidade à nova
declaração, segundo a qual o Toscana embarcara em Brindisi peças
de máquinas e víveres para uma companhia prospectora de petróleo
na costa dos Camarões. Carimbou a declaração e uma hora depois
partiu.
  Já passava das seis horas quando Shannon notou um longo barco
que se afastava da praia. Os dois nativos encarregados de conduzirem passageiros para os navios ancorados ao largo inclinavam-se
sobre os remos. A popa viam-se sete africanos transportando trouxas e à proa divisava-se um europeu solitário. Quando a embarcação
se deteve, com uma manobra suave, ao lado do Toscana, Jean-Baptiste Langarotti subiu agilmente a escada que descia até à água,
seguido pelos sete africanos, seis dos quais jovens e sendo o sétimo
um homem de mais idade, de aspecto digno. Embora fosse imprudente semelhante procedimento à vista de terra, Vlaminck, Dupree e
Semmler bateram calorosamente nas costas dos sorridentes africanos, enquanto Shannon fazia sinal ao comandante para se fazer ao
largo.
  Mais tarde, enquanto o navio navegava para sul, Shannon apresentou os seus recrutas ao intrigado Waldenberg: Patrick, Johnny,
Jinja (Ginger, de alcunha), Sunday, Bartholomew e Timothy. Cada
um deles fora pessoalmente treinado por um dos mercenários; cada
um deles fora inúmeras vezes posto à prova em combate e revelara-se capaz de aguentar, por muito dura que fosse a luta. E cada um
deles era leal ao seu chefe. O sétimo, o homem mais idoso, foi
apresentado por Shannon como sendo o Dr. Okoye.
  - Como vão as coisas no seu país? - perguntou-lhe Shannon.
  - Não vão bem - respondeu o Dr. Okoye, abanando tristemente a cabeça.
  - Amanhã começamos a treinar-nos - decidiu o mercenário.
TERCEIRA PARTE
A grande matança
CAPÍTULO CATORZE
DURANTE o resto da viagem, Cat Shannon obrigou os seus homens
a trabalhar incansavelmente. Apenas aquele a quem tratavam por
“doutor” estava dispensado. Os outros formaram grupos, a cada um
dos quais foi atribuída uma tarefa diferente.
  Vlaminck e Semmler abriram os cinco barris de óleo, de onde
retiraram as Schmeissers. Os seis soldados africanos ajudaram a
desembrulhar as pistolas-metralhadoras e a retirar-lhes a massa protectora, familiarizando-se assim com o seu funcionamento. Em seguida, abriram as caixas de munições de 9 mm, com as quais os
oito homens, sentados no convés, carregaram os carregadores, colocando as primeiras quinze mil cargas nos quinhentos carregadores
de que dispunham. Entretanto, Langarotti desfez os volumes de vestuário comprados por Dupree e preparou conjuntos de uniformes.
Logo que ficava completo, cada conjunto era introduzido num saco-cama juntamente com uma Schmeisser e cinco carregadores envoltos num tecido impermeável e protegidos por um saco de plástico.
Cada saco-cama guardava, assim, o vestuário e o armamento necessários a um soldado.
  Dupree desmanchara os três caixotes de munições e refizera-os
de modo que se ajustassem perfeitamente nos motores fora de borda. Revestidas com espuma de borracha, as novas caixas abafariam
o ruído dos motores.
  Em seguida, Vlaminck e Dupree dedicaram a sua atenção às
armas que utilizariam no ataque. Janni familiarizou-se com os mecanismos de pontaria dos seus dois morteiros e preparou as granadas
respectivas. Marc concentrou-se nas bazucas. Escolhera Patrick
para o assistir, pois já haviam trabalhado juntos. O africano transportaria uma Schmeisser e dez granadas de bazuca. Marc transportaria doze granadas e uma bazuca.
  Shannon ordenou que o Toscana se afastasse bastante para o
largo, para que os homens experimentassem as suas Schmeissers.
Os brancos já haviam, em alturas diversas, utilizado pistolas-metralhadoras diferentes em número suficiente para não terem problemas,
mas os africanos só haviam manejado Mausers simples, de
7,92 mm, ou a automática standard da OTAN, de 7,62 mm. Cada
um dos homens disparou novecentas vezes até se habituar ao manejo da arma. Seguidamente, os barris de óleo, vazios, foram postos a
flutuar à ré, para treino de bazuca. Antes de o exercício terminar,
todos os homens haviam conseguido esburacar um barril a cem metros de distância. Assim se afundaram quatro deles. O quinto era ó
alvo de Vlaminck. Este deixou-o afastar-se até uma distância de
duzentos metros, colocando-se em seguida à popa. A primeira granada assobiou sobre o barril e explodiu com um esguicho de água.
A segunda acertou no centro do alvo, arrancando ovações dos observadores. Sorridente, Marc dirigiu-se a Shannon:
  - Disseste que querias arrancar uma porta, não foi, Cat?
  - Sim, um raio de uma enorme porta de madeira, Pequeno.
  - Entrego-ta transformada em fósforos. Está prometido.
  Em virtude do ruído que haviam provocado Shannon ordenou a
Waldenberg que se afastasse com o Toscana. A paragem seguinte
destinou-se a experimentar os barcos de assalto. Com as caixas silenciadoras colocadas e a potência dos motores reduzida a um quarto, quase não se ouvia ruído num raio de trinta metros. Os transmissores portáteis foram experimentados até uma distância de seis quilómetros e meio. Shannon ordenou aos dez homens, brancos e negros, que efectuassem exercícios nocturnos no mar para habituarem
a visão ao negrume do céu e do oceano, condições em que teriam de
operar quando atacassem.
  Waldenberg assistia aos exercícios cheio de curiosidade.
  - Por mais que me esforce, não consigo ouvi-los no mar - disse a Shannon. - A não ser que eles tenham guardas muito atentos, vocês conseguem desembarcar onde quer que seja: A propósito,
aonde vão?
  - Acho melhor que fiquem todos a saber.
  E, até ao amanhecer, todos escutaram Shannon, que, utilizando
o projector e os diapositivos, descreveu pormenorizadamente o plano do ataque.
  Quando terminou a exposição, o silêncio era absoluto.
  De repente, Waldenberg exclamou:
  - Gott im Himmel!
  Seguiram-se as perguntas. O comandante quis obter a garantia
de que, se o plano fracassasse, os sobreviventes regressariam a bordo e, antes de nascer o Sol, o Toscana se encontraria muito para
além da linha do horizonte. Shannon concedeu-lha.
  - Só temos a sua palavra de que eles não têm canhoneiras ...
  - Nesse caso, a minha palavra tem de bastar - replicou secamente o mercenário.
  Os jovens africanos não fizeram pergunta alguma. O doutor perguntou onde estaria durante o combate e aceitou a decisão quando
lhe foi respondido que ficaria no Toscana.
  Sentados no convés, depois de recebidas as instruções, os cinco
mercenários conversaram até o Sol estar alto no horizonte. Aprovaram todos o plano do ataque, embora soubessem que eram em número muito reduzido, perigosamente exíguo para realizarem a operação que se propunham, e que não havia margem para erro. Aceitaram o facto de terem de vencer em vinte minutos ou serem obrigados a regressar aos barcos e retirarem-se o mais rapidamente possível - os que pudessem fazê-lo. Sabiam que, se algum dentre eles
encontrasse um camarada gravemente ferido, tinha o dever de lhe
oferecer a última dádiva de um mercenário a outro: um fim limpo e
rápido. Essa era uma das suas normas.
  NA manhã do nonagésimo nono dia, todos acordaram cedo.
Shannon passara metade da noite levantado, ao lado de Waldenberg, observando a linha da costa surgir no mostrador de radar.
  - Quero que se aproxime até ficar ao alcance visual da costa,
mesmo ao sul de Clarence, e passe a manhã a navegar para norte,
paralelamente ao litoral, para que ao meio-dia nos encontremos aqui
- dissera Shannon ao comandante, assinalando com o dedo a capital da república que se situava a norte de Zangaro.
  A primeira mensagem para Endean estava programada para o
meio-dia.
  A manhã passou lentamente. Shannon observou, através do óculo de bordo, o estuário do rio Zangaro, uma linha longa e baixa de
mangais que se desenhava no horizonte. A meio da manhã, conseguiu localizar uma brecha na linha verde de vegetação, correspondente ao local onde se situava a cidade de Clarence, e passou o
óculo sucessivamente a Vlaminck, Langarotti, Dupree e Semmler,
cada um dos quais observou a costa em silêncio. Depois, tensos e
enfadados, fumaram e vaguearam pela coberta.
  Ao meio-dia, Shannon começou a transmitir. A mensagem constava apenas de uma palavra, “Espiga”, que significava que se encontravam em posição.
  A vinte e duas milhas de distância, Endean captou-a e começou
a explicar laboriosamente ao ex-coronel sob a sua guarda que, dentro de vinte e quatro horas ele, Antoine Bobi, seria presidente de
Zangaro. Sorrindo ao simples pensamento das represálias que exerceria, Bobi estabeleceu o acordo com Endean. Assinou o documento que outorgava à Bormac Trading Company a concessão exclusiva
de mineração das Montanhas de Cristal, válida por dez anos, e observou Endean a encerrar num sobrescrito um cheque visado no valor de meio milhão de dólares.
  Entretanto, em Clarence, prosseguiam os preparativos para o
Dia da Independência. Os seis presos que jaziam, após ferozes espancamentos, nas celas situadas nas traseiras da esquadra da Polícia
sabiam que voltariam a ser espancados até à morte, no largo principal, como parte do programa dos festejos organizados por Kimba.
  No palácio, rodeado de guardas, Jean Kimba, sentado à secretária, sonhava com o advento do seu sexto ano de governo.
  durante a tarde, o Toscana, com a sua carga letal, virou e
começou a navegar lentamente para sul, ao longo da costa.
  - Mantenha-o a norte da fronteira até anoitecer - recomendou
Shannon ao comandante. - Às nove horas, navegue diagonalmente
em direcção à costa. Às duas da manhã, devemos estar quatro milhas ao largo e uma milha a norte da península.
  - A que horas é arriado e parte para terra o primeiro barco de
borracha?
  - Às duas. O primeiro será o Dupree e os homens com os morteiros. Os outros dois barcos partem uma hora depois. Entendido?
  - Entendido - respondeu Waldenberg. - Eu levo-o até ao
ponto indicado.
  Já estava de posse das instruções referentes às etapas seguintes
da operação. Após o início do tiroteio, atravessaria a embocadura
do porto, mantendo-se a uma distância de quatro milhas ao largo, e
viraria a duas milhas a sul da extremidade da península. Através do
transmissor portátil, inteirar-se-ia sobre o decorrer do combate. Se
não surgissem problemas, manter-se-ia no local até ao nascer do
Sol; se, porém, a operação fracassasse, acenderia as luzes do navio
para guiar os homens de regresso ao Toscana.
  Quando anoiteceu, Shannon começou a organizar a partida das
embarcações de assalto. A primeira a ser lançada borda fora foi a de
Dupree. Semmler e o sul-africano colocaram o pesado motor fora de
borda na posição devida, aparafusaram-no firmemente e cobriram-no com o silenciador.
  Semmler subiu de novo para o Toscana e arriou para o barco de
borracha o equipamento, que Janni recebeu: os pratos-bases e os
aparelhos de pontaria dos dois morteiros, os dois morteiros e sessenta granadas, todas espoletadas e activadas. Janni levava ainda
os foguetes luminosos e os respectivos canos de lançamento, uma
sereia de nevoeiro accionada a gás e um transmissor portátil, além
da Schmeisser que lhe pendia ao tiracolo. Seguidamente, os africanos que deviam acompanhá-lo, Timothy e Sunday, desceram também pela escada e reuniram-se-lhe.
  Shannon fitou os três rostos que o olhavam, iluminados pela luz
fraca da lanterna eléctrica.
  - Felicidades - desejou-lhes em voz baixa.
  Como resposta, Dupree levantou o polegar e fez um aceno com
a cabeça. Quando o barco de assalto foi arrastado até à popa do
Toscana, Semmler amarrou a sua bossa à balaustrada da ré.
  Seguiu-se o barco de borracha de Vlaminck e Semmler, com os
seus homens de apoio, Patrick e Jinja. Quando a embarcação ficou a
flutuar à popa do Toscana, Shannon passou a bossa do barco a
Semmler, que a fixou ao seu próprio barco.
  A última embarcação conduziria Langarotti e Shannon, além de
Johnny, que já trabalhara com o irlandês, e Bartholomew.
  No momento em que Shannon, que seria o último homem a
embarcar, se preparava para descer a escada, Waldenberg surgiu,
vindo da ponte.
  - Talvez tenhamos um problema - avisou calmamente. - Está um navio ao largo de Clarence, um pouco afastado do nosso.
  Shannon ficou como que petrificado.
  - Quando o viu pela primeira vez?
  - Há algumas horas - respondeu Waldenberg. - Pensei que
navegava para sul, paralelamente à costa, mas dirige-se para ela.
  - Tem alguma indicação do tipo de navio ou da sua nacionalidade?
  - Tem as dimensões de um cargueiro. Não sei qual a sua nacionalidade.
  - Se você o viu, presumivelmente eles também nos viram, não?
  - É mais do que provável. Estamos no seu radar.
  - O radar poderá captar os barcos de borracha?
  - Não é provável - respondeu o comandante. - Estão muito
perto da água.
  - Vamos para a frente - decidiu Shannon. - Agora já é demasiado tarde para retroceder. Somos forçados a concluir que se
trata de um cargueiro que espera pelo anoitecer.
  - Mas vai ouvir o tiroteio - lembrou Waldenberg.
  - E que poderá fazer, se ouvir?
  - Pouca coisa. Mas se vocês falharem e não estivermos fora
  daqui antes do nascer do Sol, vê o Toscana com os binóculos.
  - Nesse caso, não podemos falhar. Proceda de acordo com o
  combinado.
  Waldenberg regressou à ponte. O africano de meia-idade, que
  assistira em silêncio aos preparativos, aproximou-se e desejou:
  - Felicidades, major. Deus o acompanhe.
  - Assim o espero - respondeu Shannon, transpondo a amurada.
  Na escuridão, o silêncio era total, interrompido apenas pelo bater da água nos cascos de borracha das embarcações. Encontravam-se fora do alcance auditivo de terra e, quando se aproximassem
o suficiente para serem ouvidos, já passaria bastante da meia-noite
e, com um pouco de sorte, toda a gente estaria a dormir.
  Às nove horas, o Toscana emitiu um ruído surdo e sob a popa a
água começou a redemoinhar; as ondas brancas de espuma fosforescente foram embater contra a proa achatada do barco de assalto de
Shannon. Partiram. As cinco horas seguintes passaram como um
pesadelo que aumentava gradualmente a tensão experimentada por
todos os homens participantes da operação.
  O relógio de Shannon assinalava duas horas e cinco minutos
quando os motores do Toscana deixaram de trabalhar. De cima, da
amurada, partiu um assobio breve que rasgou as trevas. Era o sinal
de Waldenberg para avançarem. O motor do barco de Dupree soltou
um ronco e começou a trabalhar.
  Ao leme do seu barco de assalto, Janni consultou o indicador de
velocidade ao mesmo tempo que mantinha a bússola o mais firme
possível sob os olhos. Dirigiu-se para o lado exterior da faixa setentrional que descrevia uma curva em torno do porto, onde deveria
desembarcar decorrida meia hora. Se os outros lhe concedessem
uma hora para instalar os morteiros e os lança-foguetes luminosos,
desembarcariam exactamente no momento em que daria por completa essa tarefa. Porém, durante essa hora, Timothy, Sunday e
ele estariam absolutamente sós em Zangaro.
  Decorridos vinte e dois minutos, Dupree ouviu um psst! abafado, procedente de Timothy, que seguia à proa. Ergueu os olhos da
bússola e o que viu fê-lo travar rapidamente. Encontravam-se já
perto da costa e o luar revelava à sua frente uma linha mais escura:
mangais. Dupree ouviu o murmurar da água que corria por entre as
raízes. Alcançara terra a norte do porto.
  Virou o barco, mantendo o motor a trabalhar a pouca velocidade, e aproou de novo ao mar. Na extremidade da península virou
mais uma vez para terra, lentamente. A duzentos metros de distância distinguiu a língua baixa de areia e cascalho que procurava.
Desligou o motor e deixou o barco flutuar até tocar no fundo com
um roçar suave.
  Passou as pernas sobre a proa e ficou à escuta. Quando se certificou de que não haviam sido notados, retirou um espigão do cinto,
cravou-o no cascalho e amarrou-lhe o cabo do barco. Depois correu
em direcção ao cabeço que se erguia à sua frente, cujo topo se
elevava a cerca de cinco metros acima do nível do mar. À sua esquerda a língua de terra alargava-se, perdendo-se na escuridão. À
sua frente estendia-se o espelho calmo do porto abrigado. A língua
de terra terminava à direita, a cerca de dez metros.
  Silenciosamente, Dupree e os dois africanos descarregaram e
montaram o equipamento. O morteiro principal devia ficar no extremo da língua de terra. Se os cálculos de Shannon estivessem correctos - do que Janni não duvidava -, a distância do local onde se
encontravam ao centro do pátio do palácio seria de setecentos metros. Calculou a elevação do primeiro morteiro para poder lançar
uma primeira granada de ensaio tão perto quanto possível desse
ponto.
  Instalou o segundo morteiro apontando-o às casernas. Neste
caso, a exactidão era menos importante, pois pretendia-se apenas
disparar ao acaso para criar o pânico e dispersar as tropas. Timothy
encarregar-se-ia dessa tarefa.
  Instalou os dois morteiros entre os dois lança-foguetes luminosos e introduziu um foguete em cada cano, deixando outros oito ao
alcance da mão. Cada foguete luminoso tinha uma duração de vinte
segundos, pelo que teria de trabalhar depressa para manejar o morteiro, aproveitando os momentos rápidos de iluminação da área-alvo. Sunday passar-lhe-ia as granadas de morteiro da pilha que já
formara ao lado da peça de artilharia. Dupree consultou o relógio:
três horas e vinte e dois minutos. Os outros dois barcos deviam estar
a aproximar-se do porto. Ligou o transmissor portátil e premiu três
vezes, com intervalos de um segundo, o botão comutador.
  À distância de uma milha, os olhos de Shannon esforçavam-se
por perscrutar as trevas que o envolviam. À esquerda, Semmler,
que mantinha a segunda embarcação em ordem de formação, captou
o sinal de Dupree e transmitiu-o a Shannon com um rápido assobio.
Dois minutos depois, Shannon distinguiu o clarão breve da lanterna
eléctrica de Dupree, bastante afastada e à sua direita, pelo que guinou para estibordo, apontando a um objectivo cem metros à direita
da luz, onde sabia que encontraria a entrada do porto.
  As duas embarcações com os motores a menos de um quarto da
sua potência e não fazendo mais ruído do que um moscardo, passaram pelo local onde Dupree se encontrava acocorado. O sul-africano
distinguiu o brilho da sua esteira até que os barcos desapareceram
na entrada do porto.
  O silêncio continuava a ser total quando os olhos atentos de
Shannon distinguiram os contornos do armazém recortados contra o
céu. O irlandês virou para estibordo e varou na praia de pescadores
entre canoas e redes de pesca. Semmler parou a seu lado e ambos os
motores emudeceram. Os oito homens permaneceram imóveis durante alguns minutos, temendo um sinal de alarme que não se verificou. Seguidamente, Shannon e Semmler desembarcaram, cravaram os espiges na areia e amarraram os barcos. Os outros desembarcaram também. Com um “Vamos!” em voz abafada, Shannon
começou a subir a encosta que conduzia ao terrapleno de duzentos
metros que separava o porto do palácio adormecido.
  Os oito homens subiram a encosta a correr, encolhidos, e desembocaram no cimo plano. Passava das três e meia e o palácio
encontrava-se totalmente imerso em escuridão. Shannon sabia que à
sua frente se estendia a estrada da costa, em cujo cruzamento se
encontrariam pelo menos dois guardas do palácio. Calculava que
não conseguiria liquidar ambos em silêncio e que, após o início do
tiroteio teriam de percorrer de rastos os últimos cem metros.
  Na língua de areia, Janni Dupree aguardava o tiro que Lhe daria
o sinal para entrar em acção - o primeiro tiro, fosse quem fosse
que o disparasse.
  Shannon e Langarotti, que se adiantaram aos outros seis, foram
os primeiros a chegar ao cruzamento. Os seus rostos, pintados com
uma tinta sépia já estavam sulcados de suor. Shannon distinguiu a
linha do telhado recortada no céu, mas só reparou nos guardas
quando tropeçou num deles, deitado no chão, que ressonava.
  Enquanto Shannon retomava o equilíbrio, o guarda vindu ergueu-se de um salto e deu um grito de surpresa, que despertou o seu
companheiro, o qual se levantou também por entre a erva alta, soltou uma espécie de gorgolejo quando a faca do corso lhe cortou a
garganta e caiu de novo, sufocado pelo próprio sangue. Shannon
atingiu com a sua faca o ombro do outro soldado, que soltou novo
grito e começou a fugir.
  Não foi possível saber quem disparou primeiro. Um tiro ao acaso, disparado do portão do palácio, e a rajada de meio segundo
disparada por Shannon, que cortou o fugitivo ao meio, confundiram-se. À retaguarda, o céu pareceu explodir numa ofuscante luz
branca. Num vislumbre, Shannon distinguiu o palácio, em cujo portão se encontravam dois vultos, e teve a sensação de que os seus
homens se. desdopravam em leque, à sua esquerda e à sua direita.
No momento seguinte, encontravam-se todos de bruços na erva alta
e avançavam rastejando.
  Quando o primeiro foguete luminoso se elevou com um silvo
nos ares, Janni Dupree introduziu a granada no cano do morteiro. O
estampido desta, ao iniciar a sua trajectória parabólica em direcção
ao palácio, coincidiu com o rebentar do foguete. De olhos semicerrados devido à intensidade da luz, o sul-africano esperou a queda do
projéctil, que atingiu a cornija direita da frente do telhado do palácio, fazendo voar as telhas. Dupree fez girar para a esquerda a manivela de direcção e introduziu a segunda granada, precisamente
quando o primeiro foguete luminoso se apagava. O segundo foguete
desfez-se em luz sobre o palácio e, quatro segundos depois, a segunda granada caía, desta vez exactamente sobre a porta principal.
Dupree ajustou um pouco a boca do cano do morteiro. A terceira
granada passou sobre o telhado do palácio e caiu no pátio, nas traseiras. Durante uma fracção de segundo, Dupree contemplou o clarão. Sabia que conseguira obter a direcção e a distância exactas.
Agora não haveria mais tiros curtos que pusessem em perigo os seus
próprios homens.
  Entre a segunda e a terceira explosões, Shannon ouviu gritos
vindos do interior da fortaleza. Foram os únicos sons emitidos pelos
defensores antes de o fragor das explosões abafar os outros ruídos.
  Quando o fogo principal de Janni começou a atingir o palácio,
deixaram de ser necessários os foguetes luminosos. A explosão das
granadas de morteiro no pátio lajeado das traseiras do palácio fazia
irromper, de dois em dois segundos, fulgurantes chamas vermelhas.
  Marc Vlaminck era o único dos oito homens que tinha que fazer.
Encontrava-se à esquerda dos companheiros, quase exactamente
defronte do portão principal. De pé, voltado para o palácio, apontou
com cuidado e disparou a primeira granada de bazuca. Uma língua
de chamas de seis metros jorrou da parte posterior do cano, enquanto
o projéctil percorria velozmente o seu trajecto, acabando por explodir na parte superior direita da porta dupla, arrancando um gonzo da
parede e abrindo na madeira um quadrado com um metro de lado.
  De joelhos a seu lado, Patrick passava-Lhe os projécteis. A segunda granada explodiu no arco sobre a porta e a terceira atingiu a
fechadura central. As portas oscilaram e ruíram, revelando uma fornalha ardente para lá da arcada, que, aparentemente constituía um
acesso interno ao pátio das traseiras. Quando o fogo de Dupree cessou, Shannon ergueu-se e gritou: “Vamos!, Disparava enquanto
corria e sentia, mais do que via, a presença de Langarotti à sua
esquerda e a aproximação de Semmler à sua direita. Para lá do portão, o espectáculo era aterrorizador.
  Os primeiros disparos de Dupree, para regulação do tiro, tinham
atraído os guardas de Kimba para o exterior das suas cubatas e os
seguintes haviam-nos surpreendido no centro da zona lajeada, onde
se amontoavam agora os corpos dos mortos e moribundos. Dois
camiões militares e três automóveis civis - entre os quais o Mercedes presidencial - estavam desfeitos contra uma parede.
  A direita e à esquerda havia escadas de acesso aos andares superiores. Sem esperar ordens, Semmler dirigiu-se para a da direita e
Langarotti para a da esquerda. Em breve se ouviam as rajadas das
Schmeissers com que os dois mercenários varriam o andar de cima.
Shannon gritou aos africanos que ocupassem o rés-do-chão sabendo
que não necessitava de os advertir de que disparassem sobre o que
quer que se movesse.
  Lenta e cautelosamente, Shannon avançou pela arcada que conduzia ao pátio da retaguarda, de onde poderia partir uma contra-ofensiva, em caso de se verificar alguma resistência. De súbito,
surgiu à sua esquerda um homem empunhando uma espingarda, que
se precipitou, gritando, na sua direcção. Shannon rodou sobre os
calcanhares, disparou e o homem dobrou-se, caindo num charco de
sangue. O sangue e o medo dominavam todo o palácio.
  Ouviu passos atrás de si e virou-se no momento em que um
homem saía de uma das portas laterais. Ambos se viram simultaneamente e o homem disparou. Shannon sentiu o sopro quente da
bala passar-lhe rente à face. Um segundo depois disparou, mas o
inimigo era ágil e lançou-se ao chão, rolou e ergueu-se, preparado
para disparar novamente. Shannon, que esvaziara o carregador da
Schmeisser com os cinco tiros que disparara e que haviam passado
sobre o corpo do adversário quando este se lançara ao chão, protegeu-se por detrás de uma coluna para carregar a arma; quando surgiu de novo, disparando, o homem desaparecera.
  Só então teve consciência de que o indivíduo, nu da cintura para
cima e sem sapatos, não era africano. Praguejou e retrocedeu, correndo, para o portão principal, mas era demasiado tarde.
  Ao mesmo tempo que o fugitivo saía a correr do palácio em
ruínas, o Pequeno Marc encaminhava-se para a arcada, segurando a
bazuca com ambas as mãos. Sem parar de correr, o homem disparou
dois tiros rápidos. Mais tarde, a arma foi encontrada por entre a
erva solta: era uma Makarov de 9 mm.
  Os tiros acertaram ambos no peito do belga e uma das balas
atravessou-Lhe um pulmão. Quando o desconhecido passou junto de
Marc tentando escapar da zona iluminada pelos foguetes luminosos
que Dupree continuava a lançar, Shannon viu Vlaminck, movendo-se como que em câmara lenta, levantar a bazuca, apontar e disparar.
  Não é frequente ver um projéctil de tais dimensões atingir um
homem no fundo das costas. Quando o procuraram, encontraram
apenas alguns fragmentos do tecido das suas calças.
  Shannon, que foi forçado a atirar-se por terra para evitar o jacto
de chamas que irrompeu da parte traseira da bazuca quando o Pequeno Marc disparou o seu último tiro, encontrava-se ainda na
mesma posição quando, a oito metros de distância, o enorme belga
caiu de bruços, de braços abertos, sobre a terra dura em frente do
portão.
  JANNI Dupree endireitou-se, depois de lançar o último foguete
luminoso, e gritou a Sunday que permanecesse de guarda aos morteiros e ao barco. Depois, fazendo sinal a Timothy para o seguir,
começou a correr pela língua de terra, na direcção de Clarence.
Ainda lhe restava a missão de silenciar as casernas do Exército.
Decorridos dez minutos, alcançavam a estrada que atravessava a
extremidade da península. Janni sabia que nesse ponto aquela descrevia uma curva para a esquerda antes das casernas.
  O perigo encontrava-se exactamente nessa curva. Destroçado
pelas granadas de morteiro de Timothy, o exército de Kimba fugira,
mergulhando nas trevas. Cerca de uma dúzia de homens, porém,
reagrupara-se na escuridão e encontrava-se agora na orla da estrada.
Quando os viram, Dupree e Timothy encontravam-se já muito próximo deles. O grupo era composto por dez homens completamente
nus, sem dúvida arrancados ao sono, e por outros dois vestidos e
armados, que na altura do ataque se encontravam de sentinela, um
dos quais segurava uma granada de mão.
  Ao ver os soldados, Dupree gritou: “Fogo!”, e disparou. Quatro
foram abatidos pela rajada de balas da Schmeisser. Os restantes fugiram, perseguidos pelos tiros de Janni, que abateram mais dois; um
deles, porém, voltou-se enquanto corna e arremessou o objecto que
segurava na mão; era o seu orgulho e sempre desejara arremessá-lo.
  A granada elevou-se no ar e ao cair atingiu Timothy no peito. O
  veterano africano agarrou o projéctil que o derrubara e, sentado no
  chão, identificou-o, verificando que o inexperiente soldado que lançara a granada se esquecera de lhe retirar a cavilha. Timothy ergueu-se, puxou a cavilha e arremessou o engenho com toda a sua
  força na direcção dos soldados vindos em fuga. Este, porém bateu
  contra uma árvore e caiu no solo. Nesse momento, Janni Dupree
  lançou-se em perseguição do grupo. Timothy gritou-lhe uma advertência, mas Dupree continuou a correr, sem deixar de disparar.
  Encontrava-se a dois metros da granada quando esta explodiu.
  Quando recuperou os sentidos, jazia na estrada e percebeu que
  estava alguém ajoelhado a seu lado que lhe amparava a cabeça.
  Experimentava uma agradável sensação de sonolência. Ouviu uma
  voz murmurar algumas palavras, insistente e ansiosamente, cujo
  sentido não apreendeu: “Perdoa-me, Janni, perdoa-me, per  doa-me ...” Viu a Lua, resplandecente como uma pérola gigantes  ca, semelhante à rocha de Paarl depois de uma chuvada, na sua
  terra. Era bom estar de novo em casa. Fechou os olhos e morreu.
  Às cinco e meia, a claridade que se filtrava através das nuvens,
  para além do horizonte, permitiu aos homens que se encontravam
  no palácio apagar as lanternas eléctricas.
  O corpo de Vlaminck jazia numa sala do rés-do-chão. A seu
  lado descansavam Dupree, transportado por Timothy, e Johnny, que
  fora provavelmente atingido pelos tiros da Makarov disparados pelo
  guarda-costas branco.
  Semmler chamou Shannon ao andar superior para lhe mostrar o
  homem, que abatera quando este tentava fugir pela janela.
 - É ele - disse Shannon. - É Kimba.
  Shannon utilizou os serviços dos seis sobreviventes do pessoal
 doméstico, que retiraram os cadáveres para o pátio das traseiras.
  Mandou pendurar um grande tapete na entrada destroçada, a fim de
  ocultar o sinistro espectáculo.
  Às cinco horas, Semmler regressara ao Toscana num dos barcos
  de borracha, rebocando os outros dois. Às seis e meia, estava de
 volta com o Dr. Okoye e os barcos carregados com provisões, as
  restantes Schmeissers e cerca de uma tonelada de munições.
  Às seis horas, obedecendo a instruções de Shannon, Waldenberg
  começara a transmitir pela rádio três palavras, na frequência combinada com Endean: “Papira”, “mandioca" e “manga”. A mensagem
 significava que a operação se desenrolara como fora planeado, fora
  coroada de êxito e Kimba estava morto.
  Quando o Dr. Okoye se apercebeu da carnificina ocorrida no
  palácio, soltou um suspiro e comentou:
  - Suponho que era necessário.
  - Era - afirmou Shannon, e pediu a Okoye que iniciasse a
tarefa que lhe fora destinada.
  Às nove horas, o processo de limpeza do pátio estava quase
terminado. Proceder-se-ia à sepultura dos vindus logo que chegassem mais homens. Dois dos barcos de borracha estavam de novo a
bordo do Toscana; o outro encontrava-se oculto numa enseada próxima. Todos os vestígios de morteiros e lança-foguetes luminosos
  haviam sido removidos da língua de terra. O resto do material fora
levado para o interior do palácio, onde, além da porta destruída e de
  três janelas partidas, nada revelava a agressão sofrida.
  As dez horas, Semmler e Langarotti reuniram-se a Shannon na
  sala de jantar do primeiro andar e comunicaram o resultado das suas
  pesquisas. O transmissor conservava-se intacto; o tesouro encontrava-se num cofre na cave; o arsenal continha armas e munições em
abundância.
  - E agora? - perguntou Semmler.
  - Agora esperamos - respondeu-lhe Shannon, pensando em
Janni Dupree, no Pequeno Marc e em Johnny.
  - Esperamos o quê? - indagou Langarotti, enquanto afiava
  lentamente a lâmina da faca na tira de couro presa à volta do pulso.
  - Esperamos o novo governo - respondeu Shannon.
  Pouco depois da uma hora da tarde, chegou uma camioneta de
uma tonelada que transportava Simon Endean, a qual era conduzida
por um gigantesco homem do East-End londrino, de nome Ernie
Locke a quem haviam pago generosamente para proteger Endean.
Encolhido sob a lona da retaguarda, viajava Bobi, que, evidentemente, não ascendera ao posto de coronel devido à sua coragem
pessoal. Foi ainda preciso convencê-lo de que Kimba estava morto.
  Debruçado à janela, Shannon viu Endean apear-se do camião,
olhar com desconfiança para o tapete que cobria a entrada e observar os oito guardas negros em posição de sentido diante do portão.
  - Correu tudo bem? - perguntou para cima.
  - Perfeitamente - respondeu-lhe Shannon. - Mas não fique
aí a mostrar-se. Ainda ninguém se mexeu, mas é provável que não
tardem a disparar.
  Endean conduziu Bobi e Locke ao andar superior e pediu a
Shannon um relatório da batalha. Como resposta, Shannon levou-o
à janela da retaguarda e apontou para o pátio, onde zumbiam milhares de moscas. Endean olhou para fora e recuou.
  - E o Exército?
  - Vinte morreram e os restantes fugiram. As suas armas e o
  arsenal do presidente encontram-se aqui, na cave, sob vigilância. A
  estação de rádio nacional está intacta.
  Endean acenou com a cabeça, satisfeito.
  - Nesse caso, falta apenas que o novo presidente anuncie o
  êxito do seu golpe e a formação de um novo governo. A propósito,
  deixe-me apresentar-lho - acrescentou, indicando com um gesto o
  coronel zangarense, que sorria agora francamente. - Ex-comandante do Exército Zangarense e, perante o Mundo, autor triunfante
  de um golpe de Estado: coronel Antoine Bobi.
  Shannon inclinou a cabeça.
  - Talvez o presidente queira ver o gabinete presidencial - disse, dirigindo-se para uma porta ao fundo da sala, enquanto Endean
  traduzia as suas palavras.
  Bobi acenou afirmativamente, atravessou, com passos pesados,
  a sala e transpôs a porta, seguido por Shannon. Esta fechou-se atrás
  deles e ouviu-se o estampido de um tiro.
  Quando Shannon reapareceu, Endean fitou-o e perguntou desnecessariamente:
  - Que foi aquilo?
  - Um tiro.
  Endean ergueu-se de um salto, atravessou o aposento e deteve-se à entrada do gabinete, cuja porta ficara aberta. Virou-se com
  o rosto cor de cinza.
  - Matou-o - murmurou. - Depois de todo este maldito trabalho, matou-o. Você é doido, Shannon, é doido, seu mercenário idiota!
 Shannon recostou-se na cadeira. Pelo canto do olho, viu Locke
  introduzir a mão sob a camisa. O segundo estampido pareceu ainda
 mais forte a Endean, pois soou mais perto. Ernie Locke deu uma
  reviravolta e estatelou-se no solo. Estava morto. Shannon retirou a
  mão debaixo da mesa e pousou sobre esta a automática Makarov. de
  cujo cano saía uma pequena nuvem de fumo azulado.
  Os ombros de Endean pareciam descair, como se o conhecimento da fatalidade da perda da sua fortuna pessoal se agravasse com a
  súbita descoberta de que Shannon era o homem mais perigoso que
  jamais conhecera.
  Semmler surgiu à porta do gabinete e Langarotti avançou tranquilamente pelo corredor. Empunhavam ambos as Schmeissers.
  Shannon levantou-se e ordenou:
j - Venha. Vou conduzi-lo à fronteira. A partir de lá, pode seguir a pé.
  No corredor encontraram um africano de meia-idade em trajo
  civil.
  - Está tudo a correr bem, doutor? - perguntou-lhe Shannon.
  - Sim, por enquanto. Os meus compatriotas vão enviar cem
voluntários para terminar a limpeza. Esta tarde chegam mais cinquenta soldados. Sete notáveis zangarenses acederam a prestar a sua
colaboração.
  - Excelente. Talvez seja conveniente arranjar tempo para radiodifundir o primeiro comunicado. Peça a Semmler que o ajude a
manejar o rádio.
  - Acabo de falar com Semmler - respondeu o doutor. - Ele
esteve em contacto com o Toscana, através do transmissor portátil.
O comandante Waldenberg comunica que se encontra ao largo um
navio que está tentando contactar com as autoridades do porto de
Clarence a fim de lhes pedir autorização para entrar.
  - Identificaram-nos? - perguntou Shannon.
  - O navio identifica-se como sendo o cargueiro soviético Komarov.
  - Diga a Mr. Semmler que se apodere imediatamente do rádio
do porto e que responda ao Komarov: “Autorização recusada. Permanentemente.
  O veículo que trouxera Endean encontrava-se no pátio. Encolhidos nas suas traseiras, viam-se três soldados africanos segurando
pistolas-metralhadoras. Outros vinte, completamente uniformizados
e equipados, estavam em formatura no exterior do palácio. Shannon
ocupou pessoalmente o lugar do motorista.
  - Quem era aquele homem? - perguntou Endean com azedume, ao passarem velozmente pelo bairro de lata dos trabalhadores
imigrantes, onde parecia reinar grande alvoroço e actividade.
  Nos cruzamentos viam-se soldados bem equipados, munidos de
Schmeissers.
  - É o Dr. Okoye - respondeu Shannon. - Doutorado em Filosofia por Oxford.
  - Muito bem - comentou Endean após um longo silêncio. - Você arruinou um dos mais importantes golpes jamais tentados. Só
gostava de saber uma coisa: porquê? Porquê, em nome de Deus?
  - Cometeu dois erros, Endean - respondeu Shannon. Endean
estremeceu ao ouvi-lo pronunciar o seu verdadeiro nome. - Você
pensou que, como sou mercenário, sou estúpido. Parece nunca Lhe
ter ocorrido que você também é mercenário, assim como Sir James
Manson. O seu segundo erro foi julgar que todos os negros são
iguais.
  - Não o compreendo.
  - Você realizou investigações sobre Zangaro e até ficou a saber
da existência de milhares de trabalhadores imigrantes que virtualmente mantinham o país a funcionar. Esses trabalhadores constituem uma comunidade própria, a mais inteligente e activa do país.
Se lhes for dada uma pequena oportunidade, poderão desempenhar
um papel na vida política da nação. Você não se apercebeu desse
facto. Tão-pouco se apercebeu de que o novo Exército de Zangaro
podia ser recrutado entre eles, em vez de ser constituído por vindus
ou cajas. De facto, é isso mesmo que acaba de acontecer. Dentro de
cinco dias, haverá mais de quatrocentos novos soldados em Clarence, sem treino, evidentemente, mas com a eficiência bastante para
fazerem respeitar a lei e a ordem. A partir de agora, serão eles o
verdadeiro poder neste país. A noite passada houve um golpe de
Estado, sem dúvida, mas não em nome do coronel Bobi.
  - Em nome de quem, então?
  - Do general que o Dr. Okoye representa.
  - Qual general?
  Shannon pronunciou um nome e Endean fitou-o, boquiaberto e
horrorizado.
  - Ele, não! Foi derrotado e exilado.
  - Temporariamente. Não para a eternidade. Os trabalhadores
imigrantes fazem parte do seu povo, são conhecidos como os judeus
da África. Existe um milhão e meio deles espalhados por este continente.
  - Esse grande escroque idealista e estúpido ...
  - Cuidado - advertiu-o Shannon. - Levamos três soldados
dele connosco e todos falam inglês.
  Endean virou-se para trás e olhou para os três rostos negros e
impassíveis emoldurados pelos canos das Schmeissers.
  - Que vai acontecer agora? - perguntou.
  - Assume o poder o Comité de Reconciliação Nacional, constituído por quatro membros vindus quatro cajas e dois representantes
da comunidade de imigrantes. Mas o Exército será formado por
homens como esses que vão atrás de si. E este país será a base a
partir da qual poderão, no futuro vingar o que foi feito ao seu
povo. Talvez o general venha residir para aqui.
  - Espera conseguir tudo isso?
  - Você esperava conseguir impor como governante aquele
macaco idiota do Bobi. Pelo menos o novo governo será moderadamente justo. Sem dúvida que acabarão por encontrar o depósito
de minério ou o que quer que fosse que vocês pretendiam, que, sem
dúvida também, será explorado. Mas se vocês o quiserem, terão de
pagá-lo por um preço justo.
  Ultrapassada a curva, surgiu à vista o posto fronteiriço. Shannon
parou e disse:
  - Pode fazer o resto do caminho a pé.
  Endean apeou-se e olhou para Shannon com indisfarçável ódio.
  - Ainda não explicou porquê.
  Shannon olhou fixamente para a estrada que se estendia à sua
frente e respondeu:
  - Durante quase dois anos vi morrer de fome entre meio milhão e um milhão de crianças. Isso acontecia para que pessoas como
você e Manson pudessem aumentar os seus lucros e fazia-se em
nome da lei e da ordem. Posso ser um homem de guerra, um assassino, mas não sou um sádico sanguinário. Descobri à minha custa
como e porquê se faziam essas coisas e quem eram os homens que
agiam nos bastidores. Oportunistas como o seu querido Manson.
Por isso fiz o que fiz. Diga-o ao Manson quando regressar. Gostava
de ser eu a dizer-lho pessoalmente. Agora vá-se embora.
  Depois de percorrer dez metros, Endean virou-se para trás e gritou:
  - Nunca mais volte a Londres, Shannon. Lá sabemos lidar com
pessoas como você.
  - Não volto - respondeu Shannon, e acrescentou baixinho: - Nunca mais terei de voltar.
EPÍLOGO
O novo governo assumira o poder e, até ao momento, havia actuado
com justiça e humanidade. Os jornais europeus limitaram-se a mencionar o golpe. Apenas Le Monde publicou uma breve notícia segundo a qual unidades dissidentes do Exército Zangarense haviam
derrubado o presidente na véspera do Dia da Independência.
  Janni Dupree e Marc Vlaminck foram enterrados na língua de
terra à sombra das palmeiras, onde sopram os ventos do golfo, em
sepulturas que, a pedido de Shannon, não ostentavam qualquer inscrição. Johnny foi levado pelos seus compatriotas, que o choraram à
sua maneira.
  Simon Endean e Sir James Manson guardaram silêncio. Na realidade, nada podiam declarar publicamente.
  Shannon deu a Jean-Baptiste Langarotti as cinco mil libras em
dinheiro que lhe restavam do orçamento da operação, e o corso regressou à Europa. Ao despedir-se de Shannon, na praia, afirmou:
  - De facto, não é por dinheiro. Nunca foi por dinheiro.
  Poucos meses depois, encontrava-se de novo em África, treinando guerrilheiros de outra guerra civil.
  Shannon escreveu cartas ao Signor Ponti, de Génova, em nome
de Keith Brown, ordenando-lhe que repartisse entre o comandante
Waldenberg e Semmler as acções ao portador referentes à propriedade do Toscana, Decotrido um ano, Semntler, de novo saudoso da
vida de soldado, vendeu as suas acções a Waldenberg. Morreu no
Sul do Sudão, ao colocar uma mina.
  O último acto de Shannon foi ordenar ao seu banco suíço a
transferência de cinco mil libras para crédito dos pais de Janni Dupree, em Paarl, na província do Cabo, e igual importância para crédito de uma mulher chamada Anna, que dirigia um bar na Kleinstraat, de Ostende.
  Morreu um mês depois do golpe, do modo como afirmara a Julie
Manson que desejaria morrer: com uma arma na mão, sangue na
boca e uma bala no peito. A sua própria arma e a sua própria bala.
Não foi o combate que o aniquilou, mas a pequena verruga negra
que tinha na nuca. O Dr. Dunois, em Paris, avisara-o: viveria menos de seis meses se realizasse esforços, o último dos quais seria de
sofrimento. Assim, quando julgou chegado o momento, internou-se
sozinho na selva, com a pistola e um sobrescrito que continha documentos dactilografados endereçado a um amigo de Londres.
  Segundo declararam os nativos que o viram penetrar na selva e
mais tarde trouxeram o seu corpo para o sepultarem, ia a assobiar
uma melodia que desconheciam. Era a Spanish Harlem.

 

 

                                                                  Frederick Forsyth

 

 

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