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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS CASAMENTOS ENTRE AS... / Doris Lessing
OS CASAMENTOS ENTRE AS... / Doris Lessing

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS CASAMENTOS ENTRE AS

ZONAS TRÊS, QUATRO E CINCO

 

Boatos geram comentários. Mais do que isso, geram canções. Nós, os Cronistas e cancioneiros da Zona Três, somos testemunhas de que as canções estavam entre nós, de uma extre­midade a outra da nossa Zona, muito antes de os dois dire­tamente interessados compreenderem o que significavam para eles as novas diretivas. E naturalmente o mesmo aconteceu na Zona Quatro.

 

Grande para Pequeno

Alto para Baixo

Quatro em Três

Não pode entrar.

 

Era um jogo infantil. Da minha janela via as crianças brincando e cantando depois de termos sabido das novas. E, na rua, uma delas correu para mim com uma adivinhação que ouvira dos pais: se você acasala um ganso com um cisne, qual deles ficará por cima?

Quanto aos comentários feitos nos acampamentos e quar­téis da Zona Quatro, preferimos não registrar. Não que se­jamos puritanos. Mas cada cronista tem o seu estilo.

Estou dizendo que os povos das duas Zonas se despre­zavam? Não. Não nos é permitido criticar abertamente as dispensações dos Provedores, mas digamos que nós, da Zona Três, não tínhamos esquecido como demonstravam os versos populares cantados naqueles dias:

 

Três vem antes de Quatro.

Nossos costumes são de paz e fartura

Os deles a guerra!

 

Muitos dias se passaram antes que alguma coisa acon­tecesse.

E, enquanto o casamento famoso era celebrado na ima­ginação dos dois reinos, os interessados permaneciam onde estavam. Não sabiam o que desejavam deles.

Ninguém esperava esse casamento. Não tinha nem mesmo sido objeto da especulação popular. As Zonas Três e Quatro estavam muito bem, com Al.Ith para nós, Ben Ata para eles. Pelo menos era o que pensávamos.

Independentemente do casamento em si, havia várias questões secundárias. O que poderia significar a ordem para que nossa Al.Ith fosse ao território de Ben Ata para a celebração do casamento?

O que, nesse contexto, seriam as núpcias?

O que, afinal, o casamento?

Quando Al.Ith soube da Ordem, pensou que era uma brincadeira. Ela e a irmã riram, toda a Zona Três ouviu suas risadas. E então chegou a mensagem que só podia ser interpretada como censura e o povo começou a se reunir em con­ferências e conselhos, em toda a Zona Três. Mandaram-nos chamar os Cronistas, os poetas, os cancioneiros e as Me­mórias. Durante semanas só se falava em núpcias e casamen­tos, e todas as antigas histórias que conseguimos encontrar foram examinadas em busca de informação.

Foram enviados mensageiros à Zona Cinco, onde, acreditávamos, ocorriam ainda cerimônias nupciais primitivas. Mas toda a fronteira da Zona Cinco com a Zona Quatro estava em guerra e eles não conseguiram atravessá-la.

Perguntamos se esse casamento deveria seguir os padrões antigos, se as Zonas Três e Quatro deveriam se unir em um festival. Mas as Zonas não podem se unir, são inimigas naturais. Nem sabíamos ao certo onde ficavam as fronteiras. Nosso lado não era guardado. Os habitantes da Zona Três que se aproximavam da fronteira, por acaso ou por curiosi­dade, especialmente as crianças e os jovens, eram repelidos pela atmosfera, pelo ar, por uma aversão que se manifestava como uma letargia gelada como o tédio. Não podemos dizer que a Zona Quatro tivesse para nós a atração e o fascínio do proibido; o mais exato seria dizer que havíamos nos esquecido dela.

Talvez o mais certo fosse realizar dois festivais simul­tâneos, um em cada Zona, ambos comemorando o fato de que nossos dois países, tão diferentes, podiam se refletir pelo me­nos desse modo. Mas qual seria a utilidade disso? Afinal, fes­tivais e celebrações não eram exatamente prazeres dos quais nos privássemos.

Deveria haver pequenas comemorações das núpcias, entre nós, para assinalar a ocasião?

Roupas novas? Decorações nos lugares públicos? Dádi­vas, presentes? Tudo isso era sancionado pelas antigas histórias e canções.

Mais tempo se passou. Sabíamos que Al.Ith estava triste e não saía de casa. Nunca fizera isso antes; estava sempre a nossa disposição, sempre pronta a nos ouvir. As mulheres es­tavam desanimadas e de mau humor.

As crianças começavam a sofrer.

Tivemos então a primeira manifestação visível dos novos tempos. Ben Ata enviou uma mensagem na qual dizia que seus homens viriam buscar Al. Ith para levá-la até ele. Essa atitude grosseira era exatamente o que esperávamos daquela Zona. Um reino em guerra não precisa se preocupar com cortesias. E provava que estávamos certos em não querer que a Zona Quatro nos dominasse.

Al.Ith ficou ofendida, revoltada. Não iria, anunciou.

Mais uma vez a Ordem, e dizia simplesmente que ela devia ir.

Al. Ith vestiu uma roupa azul-escura de luto, o único mo­do pelo qual lhe era permitido expressar seus sentimentos mais íntimos. Não deu instruções para o Pesar geral, mas era o que todos nós sentíamos.

Nossos sentimentos estavam confusos e eram — suspeitávamos — errados. Emoções desse tipo não têm valor para nós. Há tanto tempo não temos registro de nada diferente! Como indivíduos, não esperamos — e não são esperados de nós — choro, lamentos, sofrimento. O que pode nos acontecer que nãó aconteça a todas as' pessoas, em algum tempo de suas vidas? O pesar pela privação, pela perda pessoal é for­malizado, ritualizado em ocasiões públicas, consideradas por todos como canais e veículos para nossos pequenos sentimen­tos pessoais. Isso não significa que somos insensíveis! sig­nifica que os sentimentos devem ser sempre dirigidos para o exterior e usados para fortalecer o conceito geral de nós mes­mos e do nosso reino. Mas com essa nova Ordem para Al.Ith, o oposto parecia estar acontecendo.

Jamais a nossa Zona conhecera tantas lágrimas, tantas acusações, tanta hostilidade irracional.

Al.Ith mandou chamar todos os seus filhos e quando eles choraram não os impediu.

Disse que isso pelo menos lhe devia ser permitido sem que fosse considerado um ato de rebelião.

Alguns de nós muitos ficaram perturbados, outros a criticaram.

Não nos lembrávamos de nada parecido, e logo começa­mos a comentar há quanto tempo não recebíamos uma Ordem dos nossos Provedores. Ou quantas prévias mudanças das Necessidades sempre usávamos essa palavra, simplesmente, sem maiores definições tinham sido recebidas por nós? E por que agora essa inversão? Perguntávamos a nós mesmos se nos tínhamos habituado a uma falsa imagem das nossas pessoas. Mas como poderia ser errado aprovar as nossas próprias harmonias, a riqueza e amenidade da nossa terra? Acre­ditávamos que nossa Zona era igual a pelo menos uma outra em prosperidade e ausência de discórdia. Teria sido um erro nos orgulharmos disso?

E percebemos há quanto tempo não pensávamos no que havia para além das nossas fronteiras. Que a Zona Três era um dos muitos reinos administrados das Alturas, sabíamos. Quando pensávamos nisso, víamos a nós mesmos funcionando em interação com todos os outros reinos, mas de um modo abstrato. Talvez tivéssemos nos tornado insulares? Auto-suficientes?

Al.Ith esperava nos seus aposentos.

E, então, eles apareceram, um grupo de vinte cavaleiros com armaduras leves. Traziam escudos que os protegiam con­tra o ar mais rarefeito, o que era necessário. Mas para que a proteção na cabeça e os famosos coletes refratários que repeliam qualquer arma mortífera? Os que estavam nas proximi­dades do caminho escolhido por nossos visitantes indesejáveis os observavam sombrios e reprovadores. Estávamos decididos a não dar nenhuma demonstração de agrado. Os cavaleiros também não nos cumprimentaram. Em silêncio, o grupo de homens dirigiu-se ao palácio e parou sob as janelas de Al.Ith. Levavam consigo um cavalo arreado, sem cavaleiro. Al.Ith os viu chegar. Houve uma longa espera. Então, ela apareceu no alto da escadaria branca, uma figura de sombra, com roupas escuras. Ficou imóvel e silenciosa, observando os soldados cu­ja presença em seu país, nessas circunstâncias, só podia signi­ficar captura. Deixou que eles a observassem por algum tempo, que vissem a sua beleza, sua força, a auto-suficiência do seu porte. Desceu então os degraus, lentamente, desacompanhada. Caminhou diretamente para o cavalo que lhe fora designado, olhou-o nos olhos e colocou a mão no focinho do animal. O cavalo era Yori, que se tornou célebre a partir desse momento. Era um belo animal negro, em nada diferente dos que os soldados montavam. Depois de tê-lo cumprimentado, ela er­gueu a pesada sela das costas do animal. Segurou-a nos braços, olhando fixamente para os homens, até um soldado perceber o que ela queria. Al.Ith atirou a sela para o homem e a montaria dele trocou de pernas para equilibrar o peso extra. O cavaleiro fez uma careta ridícula. Olhou de relance para os companheiros, enquanto ela, com os braços cruzados, os observava. O homem a olhou como se olha uma criança que acaba de fazer algo acima de suas forças. Naturalmente, nada disso passou despercebido a Al.Ith e então, para demonstrar que não tinham ainda compreendido sua verdadeira intenção, tirou o freio e a rédea do cavalo, com movimentos lentos e deliberados, e atirou-os para o soldado.

Al.Ith inclinou a cabeça para trás e os cabelos, frouxa­mente presos, cascatearam por suas costas. Nossas mulheres usam vários tipos de penteados, e quando o cabelo, está pre­so, em tranças ou de outro modo, e elas sacodem a cabeça, soltando-o de determinada maneira, é sinal de pesar. Mas os soldados não compreenderam e limitaram-se a admirá-la com expressão intrigada; talvez o gesto fosse destinado às pessoas que observavam a cena, aglomeradas na pequena praça. Os lábios de Al. Ith curvaram-se com desprezo e impaciência. De­vo registrar aqui que esse tipo de arrogância — sim, tenho de usar essa palavra — não era o que esperávamos dela. Quando comentamos o incidente, todos concordaram que a amargura de Al.Ith por causa do casamento talvez a tivesse perturbado.

De pé, com os cabelos soltos e os olhos ardentes, ela colocou um véu preto e fino sobre a cabeça e os ombros, com movimentos vagarosos. Pesar, outra vez. Através da negra transparência, seus olhos brilhavam.

Um soldado fez menção de descer do cavalo para ajudá-la, mas Al.Ith estava montada antes que os pés dele tocassem o chão. Ela virou o animal e galopou, atravessando os jardins, para o leste, para as fronteiras da Zona Quatro. Os soldados a seguiram. Para nós, que os observávamos, era como se eles a estivessem perseguindo.

Quando saíram da cidade, ela pôs o cavalo a passo. Os soldados fizeram o mesmo. O povo, na estrada, a aclamava e olhava fixamente para os soldados, e agora não parecia mais uma perseguição, porque os homens estavam embaraçados e riam idiotamente, e ela era a Al.Ith que eles conheciam.

Há um declive que leva do alto do planalto central de nossas terras à planície, através de desfiladeiros e gargantas, onde não é possível andar depressa; além disso, Al.Ith parava sempre que alguém demonstrava desejo de falar com ela. Pu­xava as rédeas do cavalo e esperava que se aproximasse.

Agora os soldados pareciam aborrecidos e resmungavam, pois tinham planejado chegar à fronteira ao cair da noite. Afinal, quando outro grupo acenou, chamando por ela, Al.Ith ouviu as vozes iradas dos soldados, virou sua montaria e apro­ximou-se deles, parando a alguns passos da primeira linha de cavaleiros, obrigando-os a conter os animais, rapidamente.

Qual é o seu problema? — perguntou ela. — Não seria melhor se me dissessem francamente, em vez de ficarem se lamuriando como crianças?

Os homens se ofenderam e fizeram um movimento encolerizado, mas o comandante os conteve.

Temos nossas ordens — explicou ele.

Enquanto estiver no meu país — retrucou Al.Ith —, procederei de acordo com nossos costumes.

Percebeu que não tinham compreendido e disse:

Ocupo esta posição pela vontade do povo. Não tenho o direito de passar por eles arrogantemente, quando precisam falar comigo.

Entreolharam-se mais uma vez. A expressão do coman­dante era de indisfarçada impaciência.

Não esperam que eu sacrifique nossos costumes em fa­vor dos seus — acrescentou ela.

Só temos rações de emergência para uma refeição li­geira — explicou o comandante.

Al.Ith sacudiu a cabeça, incrédula, como se não pudesse acreditar no que ouvia.

Não tinha intenção de demonstrar desprezo, mas eles as­sim interpretaram o seu gesto. O comandante dos cavaleiros ficou vermelho e disse bruscamente:

Qualquer um de nós é capaz de ficar sem comer du­rante muitos dias, em campanha, se for preciso.

Não estou pedindo tanto — replicou Al.Ith, séria, e desta vez eles ouviram zombaria. Riram, aliviados, e ela sorriu levemente, suspirou e disse: — Sei que não estão aqui voluntariamente, mas por causa dos Provedores.

Mas, inexplicavelmente para ela, tomaram essas palavras como um insulto e um desafio, e seus cavalos moveram-se inquietos, contagiados pelas emoções dos cavaleiros.

Ela ergueu os ombros, virou a montaria e aproximou-se de um grupo de jovens que a esperava ao lado da estrada. Lá embaixo estendia-se a vasta planície; atrás deles, erguiam-se as montanhas. A planície, pincelada ainda de amarelo pelos raios do sol poente, os picos das montanhas luzindo ensolara­dos, mas, ali onde estavam, só frio e sombra. Os jovens ro­dearam a montaria de Al. Ith sem temor ou reverência e os rostos dos soldados refletiam estupefação. Quando um dos jo­vens ergueu a mão para acariciar levemente a cabeça do ca­valo da rainha, deixaram escapar um longo murmúrio de de­saprovação. Mas estavam inseguros. Não era possível desprezar esse imenso reino ou seus dirigentes, sabiam muito bem. Con­tudo, a cena a que assistiam era uma contradição de tudo o que consideravam certo.

Ela acenou uma despedida para os jovens e os soldados puseram-se em marcha, a esse sinal que não era para eles. Al.Ith cavalgou na frente até chegarem à borda da planície e, então, voltou-se, mais uma vez.

Sugiro que acampem aqui, com as montanhas às suas costas.

Em primeiro lugar — disse o comandante, aborrecido por ver que os soldados continuavam em frente, sem esperar por ele —, em primeiro lugar, não pensei em parar antes de chegarmos à fronteira. E, em segundo. .. — a cólera im­pediu-o de continuar.

Estou fazendo uma sugestão— explicou ela. — Va­mos levar nove ou dez horas até a fronteira.

Neste passo, sim.

Em qualquer passo. À noite, geralmente, sopra um vento leste extremamente forte na planície.

Senhora! O que pensa que são estes homens? O que pensa que somos?

Vejo que são soldados. Mas estava pensando nos ani­mais. Estão cansados.

Farão o que lhes for ordenado. E nós também.

Nossos Cronistas e artistas exploraram extraordinariamen­te essa troca de palavras entre Al.Ith e os soldados. Várias histórias começam nesse ponto. Ela, ereta sobre o cavalo, na frente deles, o animal com a cabeça baixa, depois da longa e difícil jornada. Al.Ith o acaricia com a mão carregada de jóias... mas Al. Ith era conhecida pela simplicidade no vestir e por não usar jóias ou adereços vistosos! Eles mostram seus longos cabelos negros flutuando ao vento, as pontas do véu presas na testa com um broche brilhante. Mostram o comandante irritado, o rosto crispado e os soldados com ar de escár­nio. O vento cortante é indicado por nuvens esgarçadas e coloridas e pela relva da planície que se dobra até o solo.

O quadro está repleto de pequenos animais de toda a espécie. Pássaros pairam sobre a cabeça dela. Um pequeno gamo, o animal favorito das nossas crianças, tendo alcançado a estrada de terra, ergue o nariz para a cabeça inclinada do cavalo, dando-lhe conforto ou transmitindo mensagens dos ou­tros animais. Esses quadros geralmente intitulam-se "Os Ani­mais de Al.Ith". Algumas histórias contam que os soldados tentaram apanhar os pássaros e o gamo, mas que foram repreendidos por Al.Ith.

Tomo a liberdade de duvidar que a ocasião tenha pa­recido tão dramática para os soldados ou para Al.Ith. Os homens queriam continuar a jornada e sair dessa terra que não compreendiam e que os perturbava. O comandante não desejava se colocar em posição de obedecer a ordens dela, mas também não estava disposto a cavalgar durante horas con­tra o vento frio.

Que, na verdade, começava a se fazer sentir.

Al.Ith estava agora mais senhora de si do que nas úl­timas semanas. Compreendia que em vez de se entregar à dor nos seus aposentos devia ter feito muitas outras coisas. Deveres tinham sido negligenciados. Lembrava-se de mensa­gens que tinham chegado e às quais não respondera, absorta nos seus pensamentos selvagens.

Percebia seu ato de desobediência e os resultados deste. E isso a fazia ser gentil agora com esse grupo de bárbaros e com seu comandante-menino.

Não me disse seu nome — falou Al.Ith.

Ele hesitou e depois respondeu:

Jarnti.

Comanda os cavaleiros do rei?

Sou comandante de todas as forças. Abaixo do rei.

Desculpe-me. — Al.Ith suspirou e todos ouviram. Interpretaram como fraqueza. Essa experiência com ela acendia neles o sentimento de triunfo típico das naturezas bárbaras ante qualquer sinal de fraqueza; do mesmo modo que se aco­vardam e se agrupam temerosos quando enfrentam a força.

Preciso deixá-los por algumas horas — disse ela.

Todos instintivamente, sem esperar a ordem do chefe,

agruparam-se em volta dela. Al.Ith estava dentro de um círculo de captores.

Não posso permitir — disse Jarnti.

Quais são as ordens do rei? — perguntou ela com voz calma e paciente, mas eles interpretaram como subser­viência.

E uma gargalhada sonora e uníssona cortou o ar. A ten­são contida explodiu. Riam e gritavam e o eco respondia nos picos rochosos. Pássaros, acomodados para a noite, voaram assustados. Na relva alta que ladeava a estrada, os animais escondidos fugiram ruidosamente.

O que Ben Ata tinha gritado para todos os seus homens fora:

Vão buscar aquela... e tragam-na aqui. Estou disposto a tudo se não...

Pois, enquanto Al.Ith chorava sua revolta, ele estava esbravejando e praguejando, para cima e para baixo, nos acam­pamentos dos seus exércitos. Não havia um soldado que não tivesse ouvido o que o rei pensava desse casamento que lhe fora imposto e todos simpatizavam com ele, bebendo, rindo, erguendo brindes irreverentes que eram repetidos de uma extre­midade a outra da Zona Quatro.

Esta é outra cena favorita dos nossos contadores de his­tórias e dos nossos artistas. Al.Ith ereta no seu cavalo can­sado, cercada pelos homens com suas risadas brutais. O vento frio da planície aconchega-lhe o manto contra o corpo. O comandante está inclinado para ela com expressão animalesca. Al.Ith está em perigo.

E na verdade estava. Pela primeira vez.

Era noite agora, Apenas o céu atrás deles estava ilu­minado. O pôr-do-sol enviava lampejos para o alto, colocando cintilações nos picos dos montes. A planície escura estendia-se à frente e, espalhadas na distância, piscavam as luzes das vilas e das povoações. No planalto tinham passado por cidades po­pulosas; era uma terra operosa, com muitos habitantes. Mas, agora, pareciam estar à beira do nada, da escuridão. A terra daqueles soldados era quase toda plana e baixa e não havia cidades construídas em colinas ou encostas. Não gostavam das alturas. Mais do que isso: como veremos, tinham aprendido a temê-las. Enquanto desciam estavam ansiosos para deixar aque­le platô assustador que se alteava entre os picos gigantescos. Uma vez lá embaixo, seus pensamentos associando planícies com a idéia de habitações encontraram apenas o vazio. Havia pânico nas suas risadas. Terror. Não podiam parar de rir. E, entre eles, a pequena figura silenciosa de Al.Ith, imóvel, enquanto os homens se agitavam nas selas, emitindo sons, acre­ditava ela, que pareciam vir de animais assustados.

Mas não podiam rir indefinidamente. E, quando pararam, tudo estava na mesma. Ela ainda estava ali. Não a tinham impressionado com todo aquele barulho. A escuridão infinita estendia-se ante eles.

Quais foram as ordens de Ben Ata? — perguntou Al.Ith novamente.

Uma explosão de risos irônicos, mas o comandante desta vez dirigiu um olhar severo aos homens, embora há pouco os tivesse acompanhado nas gargalhadas.

As ordens dele? — insistiu Al.Ith.

Silêncio.

Que deviam me levar a ele, creio.

Silêncio.

Não me levarão a ele antes de amanhã.

Ela nao se moveu. O vento uivava agora na planície e os cavalos mal conseguiam firmar o passo.

O comandante deu uma ordem breve, em tom constran­gido. O grupo se desfez, procurando na orla da planície um lugar para acampar. Al.Ith e o comandante continuaram onde estavam, montados nos animais exaustos, esperando. Normalmente, Jarnti estaria com os homens que, acostumados às or­dens e orientação, pareciam não saber o que fazer. Afinal, ele indicou um lugar e todos desmontaram.               

Os animais, habituados à atmosfera opressiva da Zona Quatro, estavam exaustos por causa da altitude, e seus corpos tremiam.

Atrás daquela rocha há um nascente — disse Al.Ith. Jarnti ordenou aos soldados que levassem os animais para tomar água. Al.Ith e ele desmontaram então. Um soldado levou os dois cavalos para o outro lado da rocha. Uma pequena fogueira crepitava entre duas pedras. As selas estavam no chão, a intervalos regulares. Serviriam de travesseiro para os soldados.

Jarnti continuava ao lado de Al.Ith. Não sabia o que fazer com ela.

Os homens retiraram as rações das mochilas e começaram a comer. O cheiro acre e rançoso da carne-seca. O odor ácido do álcool.

Jarnti disse, com um sorriso embaraçado:

Senhora, parece muito interessada em nossos soldados. São assim tão diferentes dos seus?

Não temos soldados.

Esta cena é também famosa entre nós. Os soldados ilu­minados pela luz do fogo, recostados nas selas, sobre a relva, comendo carne-seca e bebendo nos cantis. Outros trazem de volta os cavalos que levaram para tomar água. Al.Ith está ao lado de Jarnti, na entrada do pequeno forte natural. Observam os homens que conduzem os animais para um pequeno curral formado por rochas altas. Os cavalos estão com fome. Não há alimento para eles naquela noite. Al.Ith olha-os pesarosa. Jarnti, imenso ao lado da pequena figura indómita da nossa rainha, tem um ar arrogante e pretensioso.

Não têm soldados? — pergunta, incrédulo. Mas na­turalmente já tinha ouvido falar nisso.

Não temos inimigos — explicou ela. E ajuntou, sorrin­do para ele: — Vocês têm?

A pergunta deixou-o perplexo.

Mal podia acreditar nos pensamentos que essas palavras faziam surgir em sua mente.

Al.Ith sorria ainda quando um soldado deixou o pequeno acampamento e colocou-se de pé ao lado deles.

Por que ele está aqui?

Nunca ouviu falar de sentinelas? — perguntou Jarnti com sarcasmo.

Sim, ouvi. Mas ninguém vai atacá-los.

Sempre colocamos sentinelas.

Ela ergueu os ombros.

Alguns soldados já dormiam. Os cavalos, com as cabeças pendidas, descansavam ao lado das rochas altas.

Jarnti, vou deixá-los por algumas horas — disse ela.

Não posso permitir.

Se me impedir estará excedendo suas ordens.

Ele ficou calado.

Esta é também uma cena favorita. O fogo alto ilumi­nava as figuras dos soldados adormecidos, os pobres cavalos e Jarnti, que puxa a barba em atônita frustração. Al.Ith sorri para ele.

Além disso — observou Jarnti —, ainda não comeu.

Ela perguntou, com ar zombeteiro:

Tem ordens também para me obrigar a comer?

E então, desafiando-a, perturbado, obstinado, porque sen­tia-se virado pelo avesso, manipulado por ela e pela situação, ele disse:

Sim, a meu ver, minhas ordens implicam obrigá-la a comer. E talvez a dormir também, se for preciso.

Veja, Jarnti — disse ela, dirigindo-se a um pequeno arbusto, não muito afastado de onde ele estava. Colheu algu­mas pequenas frutas. Tinham a superfície irregular e eram envoltas em folhas finas como papel. Al.Ith retirou as folhas. Em cada uma delas havia fragmentos de uma substância bran­ca. Al.Ith comeu algumas, com expressão de desagrado. — Não coma, se não quer ficar acordado — disse ela. Mas na­turalmente ele não poderia resistir. Aproximou-se dos arbustos, apanhou algumas frutas e fez uma careta ao sentir o gosto amargo. — Jarnti — disse ela —, você não pode deixar este acampamento, uma vez que é o comandante, certo?

Certo — respondeu ele, tentando uma familiaridade desajeitada, o único modo que conhecia para corresponder ao tom amistoso dela.

Muito bem. Vou caminhar alguns quilômetros. Uma vez que pretende fazer com que esse pobre homem fique acordado a noite toda, para nada, sugiro que lhe dê ordem para me acompanhar, assim ficará certo de que voltarei.

Jarnti começava a sentir os efeitos dos frutos que comera. Estava alerta e sabia que não teria sono agora.

Vou deixá-lo de guarda e eu mesmo a acompanharei.

E afastou-se para dar as ordens.

Quando ele' se dirigiu para o pequeno acampamento, Al. Ith foi até onde estavam os cavalos e deu a cada um deles algumas frutas do arbusto. Antes mesmo de sair do curral improvisado, os animais estavam de cabeça erguida e com os olhos brilhantes.

Al.Ith e Jarnti caminharam na escuridão da planície, na direção do primeiro conjunto de luzes tremulantes.

Esta cena é também representada em quadro. O céu re­pleto de estrelas, uma fatia iluminada de lua, e o soldado an­dando com passos largos, destacando-se o brilho da armadura e do escudo. Ao seu lado, Al. Ith é apenas uma sombra escura, mas seus olhos brilham suavemente atrás do véu.

Essa imagem não poderia ser real. O vento frio e cortante açoitava-lhes o rosto. Ela envolvera a cabeça com o véu — a capa de Jarnti cobria a armadura — e o escudo era usado para protegê-los contra o vento. Ele havia resolvido acom­panhar aquela rainha em uma excursão nada agradável e na certa já estava arrependido.

Levaram três horas para chegar ao povoado. Era composto de tendas e cabanas de pastores. Passaram entre centenas de animais que erguiam a cabeça ao vê-los, mas não se aproximavam nem fugiam. Toda a sua energia estava sendo usada para resistir ao vento e não tinham forças para mais nada. Mas, quando se aproximaram das primeiras barracas protegidas por algumas árvores, os animais foram farejar Al.Ith no es­curo e ela falou com eles, estendendo as mãos para que chei­rassem, em forma de cumprimento.

Homens e mulheres estavam sentados ao redor de uma fogueira, do lado de fora das tendas.

Levantaram a cabeça ao perceber a aproximação de es­tranhos, e Al.Ith disse:

É Al.Ith.

Disseram-lhe que se aproximasse.

Tudo isso era espantoso para Jarnti, que a acompanhara até a fogueira, mas a alguma distância.

As pessoas ao redor do fogo pareceram surpresas ao vê-lo.

Este é Jarnti, da Zona Quatro — explicou Al.Ith, com voz calma. — Veio para me levar ao seu rei.

Em todo o país não havia uma só pessoa que desconhe­cesse seus sentimentos sobre esse casamento e por isso a examinaram com curiosidade, observando-lhe o rosto e os olhos. Mas ela demonstrou não estar preocupada com isso, no mo­mento. Esperou que trouxessem tapetes de uma tenda próxima e, quando os estenderam no chão, sentou-se, fazendo sinal a Jarnti para fazer o mesmo. Disse a eles que Jarnti não tinha comido e trouxeram creme de aveia e pão. Al.Ith não quis comer. Aceitou, porém, um copo de vinho e Jarnti tomou grande quantidade da bebida forte de paladar suave. Ele dava sinais de desconforto, de mal-estar mesmo; a altitude do nosso planalto o havia afetado, comera muitos frutos estimulantes e não se tinha alimentado. O vento cortante que passava sobre as cabeças dos homens e das mulheres, sentados perto do fogo, atingia-o, por causa da sua altura.

Esta é outra cena favorita dos artistas.

Mostra sempre Al.Ith alerta e sorridente, rodeada por homens e mulheres do povoado, o copo de vinho na mão, e ao lado dela Jarnti sonolento e entorpecido. Acima deles, o vento varre as nuvens e o céu está límpido e estrelado. As pequenas árvores inclinam-se quase até o solo. Os animais estão em volta da fogueira, atentos, à espera de um olhar da sua rainha.

Ela disse:

Quando saí da capital, na descida para o desfiladeiro, muitas pessoas falaram comigo. O que significa isso que estão dizendo sobre os animais?

O porta-voz dos pastores era um homem idoso.

O que lhe disseram, Al.Ith?

Que alguma coisa não está bem.

Al.Ith, enviamos mensageiros à capital com infor­mações.

Al.Ith ficou em silêncio por alguns segundos e depois falou:

A culpa é toda minha. Chegaram mensagens, mas eu estava muito preocupada com meu problema e não lhes dei atenção.

Jarnti estava sentado, a cabeça inclinada para a frente, meio adormecido, mas, ao ouvir isso, endireitou-se com um movimento brusco, deu uma risada rouca e triunfante e mur­murou:

Devem puni-la, espancá-la, ouviram? Ela admite! — e a cabeça rolou sobre o peito novamente. Estava com a boca aberta e a caneca de vinho frouxamente segura entre os dedos. Uma jovem tentou retirá-la cuidadosamente. Jarnti sentou-se, estendeu o lábio inferior, ergueu o queixo com beligerância, viu que a moça era bonita — e teria passado o braço pela sua cintura se ela não se afastasse agilmente, desaparecendo na sombra. Ele submergiu de novo na sonolência.

Os olhos de Al.Ith estavam marejados de lágrimas. As mulheres, depois os homens, vendo aquele homem rude e suas maneiras, compreenderam o que estava reservado para ela — e iam erguer as vozes em um lamento fúnebre, mas Al.Ith levantou a mão impedindo-os.

Não se pode fazer nada — disse, em voz baixa, os lábios trêmulos. — Temos nossas ordens. E é evidente que na Zona Quatro não estão mais satisfeitos do que nós.

Olharam interrogativamente para ela e Al.Ith fez um ges­to afirmativo com a cabeça.

Sim, Ben Ata está muito zangado. Deduzi das con­versas que escutei.

Ben Ata... Ben Ata... — resmungou o soldado, e sua cabeça rolou de um lado para outro. — Ele vai tirar suas roupas antes que o enfeitice com seus frutos mágicos e suas artimanhas.

Um dos homens levantou-se, disposto a arrastar Jarnti para longe, segurou-o pelas axilas, mas Al.Ith o interrompeu com um gesto.

Estou mais preocupada com os animais disse ela. O que dizia a mensagem que me enviaram?

Nada definido, Al.Ith. Apenas, que nossos animais parecem perturbados. Estão tristes.

E isso acontece em toda a planície?

Sim, em toda a nossa Zona, é o que ouvimos. Não lhe disseram o mesmo no planalto?

Já expliquei que a culpa é minha. Não estava aten­dendo aos meus deveres.

Silêncio. O vento sibilava sobre suas cabeças, mas com menor intensidade agora.

Jarnti estava meio deitado, o copo ainda na mão, olhando para o fogo e pestanejando. Na verdade, estava ouvindo, pois os frutos tinham a propriedade de manter a mente alerta, mesmo quando os músculos se afrouxavam e não obedeciam. Essa con­versa seria reproduzida em todos os campos militares da Zona Quatro, e inalterada, embora para eles a ênfase estivesse no fato de a rainha da Zona Três estar sentada "como uma serva" ao pé do fogo. E, naturalmente, o fato de que "lá" eles fala­vam sobre os animais como se fossem gente.

Al.Ith dirigiu-se ao ancião:

Já perguntou aos animais?

Tenho estado com os rebanhos desde que isso come­çou. Dia após dia, tenho estado com eles. Nenhum deles diz algo diferente. Não sabem por quê, mas estão tristes a ponto de morrer. Perderam o gosto pela vida, Al. Ith.

Estão concebendo? Procriando?

Ainda estão procriando. Mas tem razão em perguntar se estão concebendo...

Nesse momento, Jarnti resmungou:

Eles dizem à sua rainha que ela tem razão! Eles ou­sam! Levem-nos daqui! Açoitem-nos!...

Eles o ignoraram. Com compaixão, agora. Jarnti estava quase deitado, o rosto rubro, e para eles parecia pior do que um animal. Algumas mulheres choravam silenciosamente a sorte da sua irmã, enquanto o observavam.

Acreditamos que não estão concebendo.

Silêncio. O vento não sibilava agora. Era um lamento surdo. Os animais que estavam em volta deles ergueram os focinhos farejando o ar; logo o vento ia parar e o sofrimento noturno estaria terminado.

E vocês, o povo?

Todos fizeram um gesto afirmativo com a cabeça.

Acho que o mesmo está acontecendo conosco.

Quer dizer que começam a sentir o que os animais sentem?

Sim, Al.Ith.

E ficaram em silêncio por longo tempo. Entreolhavam-se interrogando, confirmando, os olhos se encontravam e se desviavam, transmitindo os sentimentos, até todos pensarem e sen­tirem como uma só pessoa.

Durante todo esse tempo, o soldado ficou imóvel. Mais tarde, ele diria aos companheiros que "lá" eles tinham drogas perigosas e as usavam inescrupulosamente.

O vento amainara. Tudo era silêncio. No céu varrido, as estrelas brilhavam. Mas farrapos de nuvens começavam a se formar a leste, sobre a fronteira da Zona Quatro.

Afinal, uma das jovens falou.

Al.Ith, estamos pensando se essa nova Ordem dos Provedores não será a causa da nossa tristeza?

Al.Ith assentiu com a cabeça.

Nenhum de nós tem lembrança de nada parecido —- disse o ancião.

Al.Ith observou:

As Memórias falam de tempos como este. Mas foi em época tão remota que os historiadores nada sabem a res­peito.

E o que aconteceu? perguntou Jarnti, subitamente alerta.

Fomos invadidos disse Al.Ith pela Zona Qua­tro. Não há nada na sua história? Em sua tradição?

Jarnti ergueu o queixo, sacudindo a barba em ponta na direção deles, e sorriu triunfante.

Não pode nos contar nada? perguntou Al.Ith.

Sorriu malicioso para uma das mulheres, depois para ou­tra, e a sua cabeça pendeu novamente sobre o peito.

Al.Ith disse uma jovem que estava sentada, imó­vel, com o rosto banhado de lágrimas. Al.Ith, o que vai fazer com estes homens?

Talvez Ben Ata não seja tão mau observou outra.

Este homem é o comandante de todos os exércitos - explicou Al.Ith, com um estremecimento.

Este homem? Este?

Jarnti sentiu o horror e a aversão que lhes inspirava e os teria punido se tivesse forças. Conseguiu erguer a cabeça, lançando a todos um olhar colérico, mas seu corpo tremia de fraqueza.

Ele vai ter de voltar ao acampamento no sopé das colinas disse Al.Ith.

Dois jovens entreolharam-se e se levantaram. Seguraram Jarnti pelas axilas e começaram a andar com ele de um lado para outro. Cambaleando, protestou a princípio, mas depois deixou-se levar, pois seu cérebro lúcido dizia-lhe que era necessário.

Esta cena é conhecida como "A Caminhada de Jarnti" e tem servido de veículo para o humor dos nossos artistas e contadores de histórias.

Creio que não posso fazer muita coisa disse Al. Ith.

Se for uma doença antiga, nossa medicina talvez nada saiba sobre ela. Se for nova, os médicos logo descobrirão do que se trata. Mas, se for um mal da alma, então os Provedores provavelmente saberão o que fazer.

Silêncio.

Já devem saber o que fazer disse ela, com um sorriso sem alegria. Por favor, digam a todos que estive aqui esta noite, que conversamos e meditamos.

Nós diremos, garantiram eles. Então, levantaram-se e a acompanharam na direção dos rebanhos. Uma jovem chamou três cavalos, que se aproximaram e ficaram imóveis esperando obedientemente. Um jovem colocou Jarnti sobre um deles, Al.Ith montou no segundo e a jovem no outro. Os animais cercaram e saudaram Al. Ith.

Na planície, de volta ao acampamento, a relva, alta agora, tinha tons acinzentados na luz fraca da alvorada e o céu parecia em chamas, no nascente.

Jarnti estava bem acordado e mantinha-se ereto sobre o cavalo, em postura militar.

Senhora — perguntou ele —, como é que o seu povo fala com os animais?

Vocês não falam com os seus?

Não.

Ficamos ao lado deles. Nós os observamos. Colocamos as mãos neles e sentimos o que sentem. Olhamos nos olhos deles. Ouvimos as cadências de suas vozes, dos seus chamados. Quando percebem que nós os compreendemos, comunicam-se e prestamos atenção às inflexões das coisas que nos dizem. Pois, se não os escutarmos, não tentarão de novo. Logo sentimos o que eles sentem e sabemos o que estão pensando, mesmo quando não nos dizem.

Jarnti ficou em silêncio por algum tempo. Os rebanhos tinham ficado para trás.

Naturalmente, nós observamos a aparência dos ani­mais, para verificar se estão doentes ou coisa assim.

Ninguém sabe interpretar o que dizem os animais?

Alguns de nós são bons com eles, sim.

Al.Ith não parecia disposta a continuar a conversa.

Talvez sejamos muito impacientes — disse Jarnti.

Al.Ith e a moça não disseram nada. Continuaram a ca­valgar na direção das colinas. Agora, os picos imensos estavam rosados e brilhavam na selvagem luz matutina.

Senhora — disse Jarnti, com voz áspera, porque não sabia tratar bem as pessoas —, quando estiver conosco, poderá ensinar essa habilidade aos homens encarregados dos cavalos?

Ela demorou para responder. Afinal, disse:

Sabe, sempre me chamam apenas de Al. Ith. Compreen­de que nunca fui chamada de senhora ou coisa parecida?

Foi a vez de Jarnti ficar em silêncio.

Muito bem, fará isso? — perguntou, mal-humorado.

Se puder, farei — concordou ela.

Jarnti lutou consigo mesmo para expressar gratidão, prazer. Não conseguiu.

Tinham vencido mais da metade do caminho.

Jarnti esporeou com o calcanhar das botas os flancos do cavalo, subitamente, e o animal relinchou e empinou. E ficou imóvel.

As duas mulheres pararam também.

Você queria passar na frente? — perguntou a moça.

Ele olhou-a taciturno.

— O cavalo não o levará agora — disse ela, desmontando graciosamente. Jarnti desmontou também. — Monte no meu.

Ele obedeceu. A moça acalmou o animal, que parecia con­fuso com o que tinha acontecido, e montou-o de um salto.

Pense que você quer cavalgar na nossa frente — disse a jovem.

Jarnti parecia embaraçado, envergonhado. Ficou vermelho.

Acho que deve fazer o que estamos dizendo — disse Al.Ith.

Quando avistaram o acampamento, ela saltou do cavalo, que deu meia-volta e galopou imediatamente na direção dos rebanhos. Jarnti desmontou também e seu cavalo fez o mesmo. O soldado olhava com admiração a bela jovem que se preparava para deixá-los.

Se for algum dia à Zona Quatro — gritou ele —, pro­cure-me.

A moça lançou um longo olhar de comiseração para Al. Ith e observou:

Tenho sorte por não ser uma rainha. — E galopou pela planície, com os outros dois cavalos relinchando alegremente ao seu lado.

Al.Ith e Jarnti caminharam para o acampamento, dando as costas para o nascente.

Muito antes de chegarem, sentiram o cheiro forte de carne queimada.

Al.Ith não disse nada, mas seus olhos falavam por ela.

Vocês não matam animais? — perguntou Jarnti, a contragosto, impelido pela curiosidade.

Só quando é necessário. Temos outros alimentos em abundância.

Como aquelas frutas horríveis — disse ele, tentando fazer humor.

Os soldados haviam caçado um gamo. Al.Ith não compartilhou a refeição.

Quando terminaram, os cavalos foram selados, menos o de Al.Ith. Ela olhava pesarosa para os outros animais, que ajustavam as rédeas na boca.

Al.Ith montou agilmente e murmurou algo para o cavalo. Jarnti a observava, desconfiado.

O que disse para ele? — perguntou.

Que sou sua amiga.

E mais uma vez ela cavalgou na frente, para o leste, através da planície.

Passaram a alguma distância dos rebanhos que tinham visto na noite anterior e os animais pareciam apenas uma mancha escura na paisagem.

Jarnti ia logo atrás de Al.Ith.

Agora, ele pensava na conversa da noite anterior, ao redor do fogo, na descontração de todos. Desejava algo parecido, algo que sentira haver entre eles, pois jamais conhecera aquela inti­midade. Exceto com uma mulher, disse para si mesmo, às vezes, depois de uma boa trepada.

Perguntou, com ansiedade na voz:

Pode sentir a tristeza daqueles animais?

AI. Ith olhava constantemente para o rebanho distante, com ar preocupado.

— Você não sente?

Jarnti percebeu que ela estava chorando, enquanto ca­valgava.

Ficou furioso. Irritado. Sentia-se completamente excluído de algo a que julgava ter direito.

Atrás deles, o tilintar metálico da companhia de soldados.

Ao longe, a fronteira. Subitamente, ela inclinou-se, murmurou alguma coisa, e seu cavalo abriu o galope. Jarnti e a companhia a acompanharam. Começaram a gritar. Al.Ith não tinha o escudo de proteção contra a atmosfera mortal — para ela — da Zona Quatro. Cavalgava como os ventos selvagens que varriam as planícies todas as noites, até de madrugada, os longos cabelos soltos esvoaçando, as lágrimas escorrendo pelo rosto.

Jarnti alcançou-a depois de alguns quilômetros. Levava o escudo que um dos soldados atirara para ele. Os cavalos estavam agora quase emparelhados.

Al. Ith — gritava ele —, você precisa disto! — E ergueu o escudo. Depois de muito tempo ela pareceu compreender. Voltou o rosto, sem diminuir a louca corrida, e Jarnti estremeceu ao ver a agonia na face pálida. Ergueu o escudo. Ela levantou o braço para apanhá-lo. Jarnti hesitou, porque era tuna peça pesada. Lembrou-se de como a jovem atirara a pesada sela para o soldado, no dia anterior, e jogou-lhe o escudo. Al.Ith apanhou-o com uma só mão, sem diminuir a velocidade do cavalo. Aproximavam-se da fronteira. Eles a observavam para ver como a densidade do ar iria afetá-la, pois tinham ficado doentes ao entrar na Zona Três, no dia anterior. Al.Ith atra­vessou a barreira invisível sem demonstrar fraqueza, embora estivesse pálida. Passada a linha da fronteira, lá estavam as torres de observação, a 500m umas das outras, repletas de soldados e armamentos. Ela não parou. Jarnti e os outros galopavam atrás dela, gritando para que os soldados das torres não atirassem. Al.Ith passou pelas torres sem olhar para elas.

Mais uma vez estavam no alto de uma descida que atra­vessava colinas e rochas, terminando em imensa planície. Quan­do chegou à borda da escarpa, ela parou.

Todos pararam atrás dela. Al. Ith olhava para aquela terra coberta de fortes e acampamentos.

Saltou do cavalo. Soldados correram dos fortes, na direção deles, levando cavalos descansados. Os animais da companhia, exaustos, eram levados para o descanso merecido. Mas o de Al.Ith não quis deixá-la. Estremecia e relinchava, dava voltas sobre si mesmo e, quando os soldados se aproximaram para segurá-lo, recusou-se a ir com eles.

Quer o cavalo de presente, Al . Ith? — perguntou Jarnti, e ela sorriu, satisfeita, apenas um leve sorriso, tudo o que as forças lhe permitiam.

Mais uma vez Al.Ith retirou a sela do cavalo descansado trazido pelos soldados, as rédeas, o bridão, e atirou-os aos ho­mens atônitos. E entrou na Zona Quatro na frente deles, com Yori trotando ao seu lado e continuamente encostando o focinho nela.

E assim Al. Ith passou para a Zona da qual tínhamos ouvido falar tanto, que nos intrigava e que não conhecíamos.

Embora protegida pelo escudo, não se sentia bem. O ar parecia parado, sem vida. A paisagem transmitia confinamento e opressão. Em nosso reino, para onde quer que se olhe há um vigor selvagem, expresso pelos contornos das montanhas, dos planaltos, pela turbulenta variedade. O planalto central, onde estão muitas das nossas cidades, não é regular, mas rodeado de montanhas e cortado por vales com rios de leitos profundos. Em nossa Zona, o olhar é atraído pelo movimento contínuo e volta-se sempre para os imensos picos nevados, esculpidos pelos ventos, e para o colorido do nosso céu. E o ar, frio e rarefeito, revigora o sangue. Mas, agora, Al.Ith olhava para a extensão plana e uniforme, cortada por canais e regatos dominados pelo homem, ladeados por árvores decotadas, e pontilhada de acam­pamentos militares. As cidades e as aldeias não pareciam maiores do que esses acampamentos. O céu era azul-acinzentado e refletia a cor baça das águas paradas. Sobre uma colina de pouca altura havia um parque, ou jardim, o único consolo na paisagem.

Desciam ainda a escarpa.

Uma volta da estrada revelou um enorme edifício circular de pedra cinzenta, pesadamente instalado entre dois canais. Parecia uma construção recente, porque as rochas e a terra ao lado dele estavam nuas e recém-partidas. A consternação de Al.Ith à idéia de que essa seria sua futura residência fez com que seu cavalo parasse indeciso. Os homens pararam atrás dela, e Al. Ith, voltando-se, viu o triunfo dissimulado nos olhos deles. Jarnti procurava reprimir um sorriso, como fazem os líderes quando querem indicar que gostariam de unir-se aos subordi­nados em uma demonstração qualquer. Então, enquanto estavam ali parados, os cávalos batendo com os cascos nas pedras do caminho, Al.Ith compreendeu que se enganara; o que temera não provocaria aquela expressão de triunfo que seus captores demonstravam.

Quando esperam chegar ao rei? perguntou, e Jarnti imediatamente viu na pergunta a intenção de fazê-lo recordar-se da autoridade dela. Olhou para os homens com ar de censura e voltou-se com atitude obediente.

Ela observava, compreendendo e se deu conta do quan­to eram bárbaros.

Tinham imaginado que Al. Ith estava intimidada com a famosa "fortaleza redonda de raios mortíferos", como a descrevia uma de nossas canções.

Disse a si mesma, não pela primeira, nem pela décima vez, que não se acostumaria com facilidade a esse povo com alma de escravo, e, para testá-los, dirigiu o cavalo para a estrada que levava ao edifício. Imediatamente Jarnti colocou-se ao seu lado, estendendo a mão para a cabeça do cavalo dela. Al. Ith parou.

Gostaria de ver o interior de umà das famosas forta­lezas circulares da sua Zona disse ela.

Oh, não, não, não deve, é proibido observou ele, cheio de importância.

Mas, por quê? Suas armas não estão apontadas para nós, estão?

É perigoso....

Mas, nesse momento, surgiu um bando de crianças ao lado do prédio, correndo e se espalhando, e duas delas entraram por uma porta que estava aberta.

Sim, estou vendo disse Al.Ith, e continuou o ca­minho pela estrada principal, sem olhar para Jarnti ou para os soldados.

Quando estavam quase na planície, viram um menino tomando conta do gado que pastava ao lado da estrada.

Jarnti chamou-o e o garoto correu para eles. Jarnti disse para Al.Ith:

Pode ensinar a ele o seu método de entender os animais?

Quando o menino chegou à estrada, pálido e assustado,Jarnti gritou:

Deite-se! Não vê que estamos levando a senhora para o rei?

O menino deitou-se de bruços na relva. Não fazia nem um minuto que Jarnti o tinha chamado.

O comandante dirigiu a Al. Ith um olhar que era um misto de súplica e autoridade, enquanto seu cavalo dançava alegremente sentindo o interesse do cavaleiro em aprender o modo de se comunicar com os animais.

Bem — disse ela —, acho que não se pode aprender nem ensinar muita coisa nestas condições.

Jarnti, percebendo que agira idiotamente, enrubesceu irrita­do e gritou.

A senhora aqui quer saber se seus animais estão bem.

Nenhuma resposta, e então, depois de algum tempo, um lamento quase inaudível:

Muito bem, sim, bem, senhor.

Al.Ith desceu do cavalo graciosamente, aproximou-se do menino e disse:

Fique de pé. — Era um comando, uma vez que co­mando era o que ele entendia. Tremendo, ele obedeceu e ficou parado, quase desmaiando de medo. Esperou que o garoto, depois de alguns olhares furtivos, visse que ela nada tinha de assustador, e disse:

Sou da Zona Três. Nossos animais não estão bem. Pode dizer se notou alguma coisa diferente nos seus?

O menino tinha as mãos cruzadas sobre o peito e ofegava, como se tivesse corrido quilômetros. Afinal, conseguiu falar:

Sim, sim, isto é, acho que sim.

Atrás deles, a voz de Jarnti, zombeteira e estridente:

Eles estão tendo pensamentos sombrios? — E toda a companhia riu com desprezo.

Al.Ith percebeu que nada mais podia fazer e disse para o menino:

Não tenha medo. Volte para os seus animais.

Esperou que ele se afastasse correndo e voltou para perto do seu cavalo. Mais uma vez Jarnti sentiu que agira desastradamente, mas foi mais forte do que ele, aquela mulher pequena e desarmada, ali de pé, ao lado do garoto indefeso e assustado, fizera surgir dentro dele a necessidade de exibir força e auto­ridade.

Ela montou rapidamente e prosseguiu, sem olhar para eles. Nossa pobre Al.Ith estava muito abatida. Foi seu pior momento. Sentia-se magoada pelo modo com que o menino tinha sido tratado; mas esse era o costume deles e não acreditava que, naquela hora triste, pudesse se comunicar com aqueles brutos. E, naturalmente, pensava no seu encontro com Ben Ata.

Cavalgaram, quase o dia todo, atravessando a planície cor­tada por valas e por infindáveis fileiras de árvores tristonhas. Ela ia na frente. Yori, o cavalo sem cavaleiro, logo atrás, ao lado de Jarnti, e depois a companhia de soldados. Todos esta­vam em silêncio. Al.Ith não fez nenhum comentário sobre o encontro com o menino, mas os homens imaginavam que quando se encontrasse com o rei por certo não falaria bem deles. Por isso estavam sombrios e amuados. Havia poucas pessoas ao lado da estrada ou nas barcas dos canais, mas os que os viram passar contaram que não havia nem a sombra de um sorriso nos rostos dos homens. Aquela procissão de casamento mais parecia um funeral. E o cavalo sem cavaleiro também provocou comentários. Diziam que Al.Ith sofrera uma queda e estava morta, pois a pequena figura que cavalgava à frente dos homens não tinha nada que chamasse atenção. Mais parecia uma serva, ou uma acompanhante, com o vestido simples azul-escuro e a cabeça coberta pelo véu negro.

Uma balada conta como o cavalo de Al.Ith acompanhou os homens para dizer ao rei que a sua noiva estava morta e que não ia haver casamento. O cavalo pára na entrada da câmara nupcial e relincha três vezes, Ben Ata, Ben Ata, Ben Ata e, quando o rei aparece, ele diz:

 

Frio e negro o seu leito nupcial,

Ó Rei, sua noiva está morta.

O reino sobre o qual ela impera está frio e escuro.

 

E tornou-se uma balada popular, que todos cantavam, mesmo depois de saber que Al.Ith não estava morta e que o câsamento tinha se realizado. Que não era o mais tranqüilo dos casamentos todos souberam desde o princípio. Como? Como se tornam conhecidas essas coisas? Estavam sempre adicionando novos versos à canção. Eis aqui três deles, feitos no alojamento dos soldados casados da Zona Quatro:

Bravo Rei, seu reino é forte e bom.

Onde os animais se acasalam e as mulheres estão ansiosas.

Serei sua escrava, bravo Rei.

 

Em nenhum lugar e em nenhum tempo, versos como esses poderiam ter sido compostos pelo nosso povo; tínhamos baladas ternas e cheias de compaixão sobre Al.Ith. Muitos dizem que onde há poder existe esse tipo de crítica, pois, não importa a altura do soberano, faz parte da natureza dos súditos o desejo de uma identificação no mais baixo nível. Dizemos que não é verdade, e a Zona Três é uma prova disso. Reconhecer e ce­lebrar os níveis quotidianos da autoridade não significa ca­luniá-la.

Essas baladas da Zona Quatro chegaram até nós e foram modificadas ao cruzar a fronteira. Em primeiro lugar, não precisávamos das inversões, das ambigüidades criadas pelo temor que inspira a autoridade arbitrária.

Podemos mesmo dizer que um certo tipo de balada não pode existir entre nós: a que se baseia em lamentações ou na comemoração de alguma perda.

Na Zona Quatro, o cavalo sem cavaleiro deu origem a canções de morte e de dor; na nossa, a baladas de amor e amizade.

A estrada que cortava a planície em linha reta, e era cruzada por outra bem no centro, começou a subir a pequena elevação que Al.Ith contemplara com alívio do alto da escarpa. Os canais tinham ficado para trás, com seu peso morto de água parada. Surgiam agora algumas árvores que não tinham sido cruelmente podadas como as da planície. No topo da colina havia jardins e a água corria rapidamente nos canais caindo em pequenas cachoeiras, de um nível para o outro, formando fontes. O ar era fresco e revigorante e Al.Ith sentiu-se mais ani­mada ao ver um pavilhão com pilares coloridos e arcos deli­cados. Mas não se via ninguém. Ela comparou o jardim vazio, aparentemente deserto, com a convidativa amplidão dos jardins da Zona Três. A uma ordem de Jarnti, a companhia fez alto. Os soldados desmontaram e cercaram Al.Ith, e, quando ela saltou do cavalo, conduziram-na em passo de marcha, como uma cativa de guerra e ela percebeu que não era a primeira vez que faziam isso, pela precisão dos seus movimentos.

Mas, quando fecharam o círculo à sua volta, Jarnti um pouco à frente, ela colocou a mão no pescoço de Yori, o cavalo que ganhara.

E foi assim que chegou aos degraus do pavilhão. Ben Ata apareceu na entrada, os braços cruzados, as pernas afastadas, um soldado com barba, vestido exatamente como Jarnti e os outros. Era alto e louro, os músculos fortes por causa das manobras militares constantes, o rosto e os braços morenos, quei­mados de sol. Seus olhos tinham um tom acinzentado. Ben Ata não olhava para Al.Ith mas para o cavalo, pois seu primeiro pensamento foi que sua noiva estava morta.

Al.Ith passou rapidamente pelos soldados, suspeitando de que devia haver outros precedentes que não desejava fossem levados a cabo, e ficou na frente de Ben Ata, segurando o cavalo.

Então ele olhou para ela, surpreso e com o cenho cerrado.

Sou Al.Ith disse ela —, e este cavalo é um pre­sente gentil de Jarnti. Quer, por favor, dar ordens para que seja bem tratado?

Ben Ata parecia incapaz de pronunciar uma palavra. Assentiu com a cabeça. Jarnti segurou o pescoço do animal e tentou levá-lo. Mas Yori deu um passo atrás, procurando libertar-se, e foi preciso que Al.Ith o confortasse, prometendo vê-lo muito em breve.

Hoje, eu juro. E, voltando-se para Jarnti: Por­tanto, não o leve para longe. E, por favor, providencie para que seja bem tratado e bem alimentado.

Jarnti parecia embaraçado, os soldados sorriam zombe­teiros, disfarçadamente, porque a expressão de Ben Ata não os encorajava. Normalmente, em ocasiões semelhantes, a mulher era empurrada brutalmente para dentro, de acordo com os cos­tumes, mas, agora, ninguém sabia o que fazer.

Al.Ith disse:

Ben Ata, suponho que tenha aposentos nos quais eu possa descansar por algum tempo. Cavalguei o dia todo.

Ben Ata estava se refazendo da surpresa. Sua expressão era severa, amarga mesmo. Não sabia o que esperar e tinha se preparado para ser cordato, mas essa mulher com roupas sombrias não lhe agradava. Ela não retirara o véu e tudo o que Ben Ata podia ver eram os cabelos escuros. Preferia mulheres louras.

Ele ergueu os ombros, olhou para Jarnti e entrou no pa­vilhão. E, assim, foi Jarnti quem a levou aos seus aposentos e providenciou para que tivesse tudo o que precisava. Al.Ith recusou comida e bebida e disse que dentro de alguns momentos estaria pronta para ver o rei.

E foi encontrar-se com ele, surgindo sem cerimônia dos seus aposentos, ainda com a roupa escura da viagem. Mas ti­rara o véu e o cabelo caía-lhe pelas costas em uma longa trança.

Ben Ata estava sentado em uma cama baixa, na sala clara e arejada, quase desprovida de móveis. Ela percebeu que era a câmara nupcial, preparada para a ocasião. O noivo, porém, com o cotovelo apoiado nos joelhos e o rosto na mão, não se le­vantou à sua entrada. Não havia outro lugar para sentar-se, por isso Al.Ith acomodou-se na beirada da cama, um pouco afastada dele, apoiando-se em uma das mãos, como se tivesse pousado ali, pronta para se levantar rapidamente. Olhou para ele, sem sorrir. Ele olhou para ela e não havia nem a sombra de um sorriso no seu rosto.

Muito bem, o que acha deste lugar? perguntou Ben Ata asperamente. Não sabia o que dizer ou o que fazer.

Então, foi construído especialmente?

Sim. Ordens. Construído segundo especificações. Exatamente. Terminaram esta manhã.

É muito elegante e agradável disse ela. Muito diferente de tudo o que tenho visto por aqui.

Não é o meu estilo observou ele. Mas, se lhe agrada, é tudo o que importa.

Era um galanteio, mas Ben Ata estava inquieto, suspirava continuamente e era óbvio que desejava sair dali o mais depressa possível.

Suponho que a finalidade era agradar a nós dois? perguntou ela.

A mim não importa — respondeu Ben Ata com rude violência, suas emoções vindo afinal à tona. — E, obviamente, a você também não.

Temos de fazer o melhor possível — observou ela, procurando demonstrar resignação, mas sua voz era desesperada e amarga.

Entreolharam-se, com uma troca sincera de cumplicidade; dois prisioneiros que nada têm em comum a não ser o cárcere.

Esse primeiro e tênue momento de compreensão foi fugaz.

Ben Ata deitou-se no leito nupcial com as mãos sob a cabeça e os pés, calçados de sandálias poeirentas, sobre as co­bertas, que eram de fina lã, tingida de cores suaves, e bordada. Em nenhum outro lugar pareceria tão deslocado. Enquanto olha­va para o teto, como se ela não estivesse presente, Al.Ith teve tempo de reconstruir na imaginação o ambiente habitual dele.

Ela examinou a sala. Era um aposento enorme com arcos que se abriam para o jardim, de dois lados. As outras duas pa­redes tinham portas discretas que davam para os aposentos onde ela já estivera e para os aposentos de Ben Ata. O teto era curvo, alto e canelado. A sala toda era pintada de marfim brilhante com desenhos em ouro, vermelho suave e azul, e as cortinas dos arcos eram bordadas e estavam seguras por prendedores incrus­tados de pedrarias. Ouvia-se o murmúrio das fontes e da água corrente. Não era muito diferente da alegria e da frescura dos edifícios públicos de Andaroun, a nossa capital, embora os apo­sentos de Al. Ith fossem mais simples do que estes.

O grande quarto não estava completamente vazio. Uma coluna erguia-se no centro e curvava-se, dividindo-se em várias outras, caneladas e ornamentadas de ouro, azul-celeste e ver­melho. O assoalho era de madeira suavemente perfumada. Além da grande cama baixa, havia uma pequena mesa, perto dos arcos, com duas graciosas cadeiras.

Um cavalo relinchou. Quase imediatamente, Yori apareceu em uma das portas em arco e teria entrado se Al.Ith não corresse para impedi-lo. Não era difícil adivinhar o que tinha acontecido. O animal fora confinado em algum lugar e fugira, sem que os soldados que o guardavam ousassem segui-lo nos jardins do pavilhão, que há semanas era motivo dos comentários de todos. Ela colocou as mãos nos dois lados do focinho de Yori, trouxe a cabeça dele para si, murmurou alguma coisa, primeiro em uma orelha e depois na outra, e o animal deu meia-volta e desapareceu no jardim, de volta à sua guarda.

Quando Al.Ith se voltou, Ben Ata estava de pé, perto dela, com expressão colérica.

Vejo que é verdade o que se comenta. Vocês são fei­ticeiros no seu país.

É uma feitiçaria fácil de aprender — respondeu Al. Ith, mas, como ele continuasse a encará-la com desagrado, perdeu a paciência, atravessou rapidamente a sala, foi até o grande leito, jogou no chão uma das almofadas e sentou-se sobre ela, com as pernas cruzadas sob o corpo. Não se preocupou com a idéia de que ele devia fazer o mesmo, ou se devia ficar sentado na cama, mas Ben Ata hesitou, como se tivesse sido desafiado e, jogando outra almofada para um canto, sentou-se como Al. Ith. De frente um para o outro, cada um na sua almofada.

Ela à vontade, pois sempre se sentava assim; ele, mal acomodado, parecia temer que a almofada escorregasse pelo assoalho polido ao menor movimento.

Sempre usa roupas como essa?

Vesti-as especialmente para você — respondeu ela, e Ben Ata enrubesceu. Desde a sua chegada, Al.Ith tinha visto mais homens irados e embaraçados do que já vira em toda a sua vida e começava a imaginar se não sofriam de algum dis­túrbio sangüíneo ou cutâneo.

Se soubesse que você ia chegar assim, teria providen­ciado alguns vestidos. Como ia saber que se veste como uma serva?

Ben Ata, nunca uso roupas luxuosas.

Ele olhava a simplicidade do vestido de Al.Ith com desa­grado e exasperação.

Pensei que fosse uma rainha.

Você se veste como os seus soldados.

Subitamente ele deu um largo sorriso e resmungou algo como: "Tire essa coisa e eu lhe mostro."

Al.Ith sabia que ele estava zangado, mas não imaginava quanto. Nas campanhas, quando o exército chegava a um novo território, levavam uma mulher para a tenda de Ben Ata e a faziam deitar-se no chão, aos seus pés. Quase sempre elas che­gavam chorando. Ou esbravejando e gritando insultos. Às vezes mordiam e arranhavam quando ele as possuía. Outras choravam o tempo todo, sem parar. Algumas cerravam os dentes, sem que se abatesse o ódio que sentiam por ele. Ben Ata não gostava de infligir sofrimento, por isso as mandava de volta para casa. Mas as que choravam ou opunham resistência de um determi­nado modo que ele conhecia davam-lhe prazer e lentamente as dominava. Essas eram as convenções. E ele lhes obedecia. Tinha possuído muitas mulheres, engravidado algumas. Mas jamais se casara, não pretendia se casar, pois esse arranjo com Al.Ith não correspondia ao conceito que fazia do casamento; tinha as idéias sentimentais e imaginosas de um homem que não conhecia as mulheres. Essa mulher que teria de suportar quase indefinida­mente era algo além da sua experiência.

Tudo nela o perturbava. Não deixava de ser bela, com os grandes olhos escuros, cabelos negros e todo o resto, mas nada em Al.Ith o excitava fisicamente.

Quanto tempo deverei ficar com você? — perguntou ela, exatamente com o tom de voz seco e frio que ele — som­briamente — esperava dela.

Eles disseram alguns dias.

Fez-se um longo silêncio. O quarto, espaçoso e agradável, estava repleto da sonoridade da água corrente e de reflexos das fontes e dos pequenos lagos.

Como fazem isso no seu país? — perguntou Ben Ata, reconhecendo que estava sendo rude, mas sem poder imaginar outro modo.

Fazemos o que?

Bem, todos sabem que têm muitos filhos, para começar.

Tenho cinco meus. Mas sou mãe de muitos mais. Mais de 50.

Al.Ith sentia que suas palavras aumentavam a distância entre eles.

Segundo nossos costumes, quando uma criança fica órfã eu passo a ser sua mãe.

Adota-a.

Não usamos essa palavra. Passo a ser sua mãe.

Suponho que rente por eles o mesmo que por seus filhos disse ele, como se estivesse arremedando algo que ela não dissera.

Não, não é isso. Além do mais, com 50 filhos não posso ter contato íntimo com todos.

Como são seus filhos, então?

Todos têm os mesmos direitos. E, sempre que posso, passo o mesmo tempo com eles.

Não é a idéia que faço da mãe dos meus filhos.

Acredita que é isso que esperam de nós?

A pergunta o deixou furioso. Não pensara muito nessa imposição chocante e ofensiva, reagira apenas emocionalmente. Mas supunha que teriam filhos "para cimentar a aliança" ou algo parecido.

Ora, e o que mais poderia ser? O que pretende? Uma ligação amorosa, com intervalos de várias semanas? Logo com você! Ben Ata riu com desprezo.

Al.Ith tentava não olhar fixamente para ele notara que o olhar direto e atento, como era seu costume, o em­baraçava. Além disso, Ben Ata a atraía menos do que ela a ele. Achava grosseiro esse soldado com a pele queimada, os olhos ardentes e cheios de ressentimento, o cabelo amarelado pelo sol, que fazia lembrar o pêlo de uma raça de carneiros das montanhas.

A união entre um homem e uma mulher é algo mais do que ter filhos observou ela.

O bom senso dessas palavras provocou um gemido surdo e Ben Ata bateu com o punho fechado no assoalho ao lado da almofada.

Bem, se é assim, devo supor que sabe muito sobre isso?

Sim, eu sei respondeu ela. De fato, é uma das especialidades da nossa Zona.

Oh, não, não, não, não. Ele levantou-se de um salto e começou a andar pelo quarto dando socos nas paredes delicadas.

Ela, imóvel, as pernas cruzadas, observava-o com inte­resse, como se ele fosse uma espécie nova e estranha.

Ben Ata parou. Aparentemente com esforço. Então, vol­tou-se e com os dentes cerrados foi até onde ela estava, er­gueu-a e atirou-a na cama. Pôs a mão sobre a boca de Al.Ith, como era seu costume, levantou o vestido dela, apalpou-se para verificar se estava pronto, penetrou-a e cumpriu a tarefa, com meia dúzia de movimentos rápidos.

Endireitou-se. Não tirara os pés do chão durante todo o processo. Ainda embaraçado, demonstrou reconhecer que algo estava errado, com um gesto pouco comum para ele: puxou o vestido de Al. Ith para baixo e retirou a mão do rosto dela, gentilmente.

Al.Ith ficou deitada, olhando para ele com expressão va­zia. Paralisada. Não chorava. Não arranhava. Não dizia de­saforos. Também não demonstrava a repulsa instintiva que ele temia ver nas mulheres que possuía. Nada. Ocorreu a Ben Ata que ela parecia estudar um fenômeno totalmente desco­nhecido.

Oh, você! resmungou ele, entre os dentes. Co­mo fui deixar que me impusessem esse fardo!

E ela deixou escapar uma risada zombeteira. Depois, sen­tou-se na cama, pôs as pernas para fora e de súbito começou a chorar silenciosamente, o corpo todo estremecendo, e, como tinha começado, parou e voltou para a sua almofada. Sentou-se de costas para a parede, os olhos fitos nele.

Ben Ata percebeu que Al.Ith estava com medo dele, mas não se comoveu.

Bem disse ele. É isso. — Olhou-a de relance, à espera de algum comentário.

É isso realmente o que você faz? perguntou ela. Ou é porque não gosta de mim?

Então, Ben Ata dirigiu-lhe um olhar que era um apelo e sentou-se na beirada da cama, batendo com, os punhos cerrados nas cobertas.

Nesse momento, Al. Ith compreendeu que ele era um me­nino, não passava de um garotinho. Comparou-o aos seus filhos mais velhos e pela primeira vez seu coração se abrandou.

Ainda com lágrimas nos grandes olhos negros, fitou-o e disse:

Sabe, acho que vocês podem aprender alguma coisa conosco.

Ele sacudiu a cabeça vigorosa como se muita coisa esti­vesse chegando aos seus ouvidos de uma só vez. Mas con­tinuou inclinado para a frente, sem olhar para ela, escutando.

Por exemplo, já ouviu dizer que se pode escolher o tempo para ter filhos?

Ele estremeceu. Mais uma vez ela falava sobre filhos. Bateu com o punho na cama e depois ficou imóvel.

Não sabe que a natureza de uma criança pode ser determinada pelo modo como é concebida?

Ele sacudiu a cabeça. Suspirou.

Se eu ficar grávida — o que pode acontecer — essa criança não terá motivo nenhum para nos agradecer.

Subitamente, ele atirou-se na cama, de bruços, e ficou imóvel, com os braços abertos.

Outro longo silêncio. O leve odor do sexo era uma desagradável lembrança do desejo animal, e Ben Ata ergueu os olhos para ela. Al.Ith estava sentada, as costas contra a pa­rede, muito pálida, cansada, e tinha uma marca ao lado da boca onde ele apertara com o polegar.

Ben Ata gemeu.

Parece que posso aprender com você — disse, e sua voz agora não era a de um garotinho.

Ela assentiu com a cabeça. Olhos nos olhos, compreen­deram que eram ambos infelizes e que não sabiam o que esperar um do outro.

Al.Ith levantou-se e foi sentar-se ao lado dele, na cama. Colocou as mãos pequeninas, uma de cada lado do pescoço de Ben Ata, enquanto ele continuava de bruços, com o queixo apoiado nas costas da mão fechada.

Afinal, ele virou-se. Custava-lhe olhar para ela.

Segurou as mãos de Al.Ith e ficou imóvel. Ela, em si­lêncio ao seu lado, tentou sorrir, mas seus lábios estavam trêmulos e as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto. Com uma exclamação breve, Ben Ata fê-la deitar-se ao seu lado. Com surpresa sentiu os próprios olhos marejados.

Tentou reconfortar aquela estranha mulher. Sentiu as mãos pequeninas nos seus ombros, com uma leve pressão de consolo e de pena.

E adormeceram juntos, cansados afinal.

Foi o primeiro ato de amor entre os dois, o aconteci­mento que acalorava a imaginação de dois reinos.

Ele acordou, imediatamente alerta. Todos os sentidos funcionando ansiosamente, mapeando o espaço que o rodeava de medo estranho, habituando os ouvidos aos sons murmuran­tes que sugeriam perigo. A entrada da tenda estava aberta... mas a abertura era maior do que deveria ser; teria sido des­mantelada pelo vento ou por um ataque inimigo? Água.., água corrente e subindo; os canais estavam transbordando e logo estaria dentro d'água? Pronto para aceitar nos tornozelos o abraço frio de uma calamitosa enchente, lançou as pernas para fora da cama, para o assoalho seco, e deu alguns passos largos, gritando para seu ordenança com uma voz assustada e rouca, própria dos pesadelos, quando percebeu que o que pensara ser a abertura da tenda era a curva da alta coluna central onde ela se encontrava com o teto. Lembrou-se ime­diatamente. Voltou-se, no escuro, esperando o riso zombeteiro daquela mulher, Al.Ith. Mas não conseguia ver a cama. Tudo o que desejava era sair daquele lugar para sempre. Compreendeu que confundira o canto das fontes com o rumor de uma

inundação e pensou, em pânico, que talvez estivesse fora de si. Sentia-se enfraquecido, castrado, um covarde... Estreme­ceu sentindo a amargura que secava sua boca. Estava simplesmente chocado com a situação, cons;go mesmo, com ela. Mas, se havia algo que compreendia muito bem era a obediência. Uma ordem o levara àquele pavilhão efeminado e o dever o levaria de volta àquela cama. Convencido de que ela devia estar acordada, observando-o, caminhou cuidadosamente no escuro, até suas pernas sentirem a maciez das cobertas. Inclinou-se e estendeu a mão, procurando o corpo dela procurando-a. E, então, suas mãos frenéticas apalparam a cama vazia. Ela fugira! Alívio! A culpa era exclusivamente

dela, não dele! Não teria de fazer nada! Mas esses sentimentos foram logo substituídos pela indignação e pelo desejo de conquista. Se ela escapara, devia ser apanhada. As confusões e indecisões dos últimos minutos combinaram-se, gerando um fluxo de energia. Chegou a assobiar alegremente — então, pensou que ela poderia estar no quarto, talvez atrás de uma coluna, observando-o. E rindo dele. Voltou-se rapidamente e tateou ao redor da coluna. Nada. Ia chamar o ordenança quando se lembrou de que não havia ninguém ali. Não se importava com isso: este rei sentia-se feliz quando em campanha, um soldado entre soldados, diferindo deles apenas na obrigação de tomar as decisões. Mas importava-se por estar a sós com ela, sem a presença nem mesmo de empregados. Encarcerado com uma mulher. Com esta mulher. Que, como feiticeira que era, devia estar em algum canto, enxergando no escuro. A cólera deu forças à sua decisão. Envolveu-se no manto militar e caminhou até a porta que dava para a fonte.

Acordara no escuro e não sabia as horas. Nos acampa­mentos, uma sentinela parava do lado de fora da sua tenda e anunciava — não com um chamado, mas com uma informa­ção — a passagem de cada meia hora. Se estivesse acordado, precisava saber em que região estava do país da noite. Do qual não gostava, que encarava com desconfiança. Gostava de deitar-se logo depois da refeição da noite e dor­mir até as primeiras horas da manhã, sem tomar conhecimento das horas noturnas — mas, se por algum motivo ficava acor­dado, esperava ouvir a voz grave e confortadora da sentinela.

Agora, parou no arco de entrada, o quarto escuro às suas costas, olhando os outros arcos e pórticos, e imediatamente teve certeza de que estava a uma hora do nascer do sol, embora não houvesse lua nem estrelas no céu e nuvens baixas passassem rapidamente. Um vulto irregular marcava o longo retângulo do pequeno lago onde brincavam sete jatos de água. As dimensões do pavilhão, das construções adjacentes, as vias de acesso, as galerias que o circundavam, os jardins, os vários lagos e fontes, as aléias e os degraus que levavam de um nível a outro — tudo especificado exatamente, determinado, medido, e nais medidas mais absurdas — em metades, quartos e pequenas frações e pedaços, irregularidades e formas inesperadas. Os arquitetos, que naturalmente jamais haviam construído outra coisa que não fossem fortes, torres e quartéis, durante anos, estiveram a ponto de se amotinar. De qualquer modo, esse lago especial, longo e estreito, ou canal, como ele o tinha classificado ao ver as plan­tas, devia ter, segundo as especificações, sete jatos d'água. Não dez, ou cinco, ou 20, mas sete. E o lago oval, atrás dele, tinha três, de tamanhos diferentes.. . um grupo de nove árvores de especiarias fora plantado ao lado dos lagos e sob elas ele dis­tinguiu alguma coisa sombria e estranha. Mas era grande demais para ser uma mulher. Ouviu o ruído de movimento. Percebeu que era um cavalo aquele maldito cavalo! e seus olhos, adaptados agora à escuridão, viram que ela estava sentada imóvel em uma das extremidades do longo lago, entre este e o lago oval, em uma elevação de pedra ou terraço formado por um círculo com o raio de exatamente 2,29m. Os pedreiros que o tinham construído disseram jocosamente que seria uma boa cama. Oh, as piadas, as brincadeiras, ele as abominara, estava farto delas, farto dessa coisa toda... não sabia se ela podia vê-lo. Mas ocorreu-lhe que, se ele a via, naturalmente Al.Ith podia enxergá-lo também.

Mas nada havia de ridículo em sua atitude, ali parado, as pernas afastadas, os braços cruzados, uma postura militar abso­lutamente correta.

Pensou que estava ainda alerta e pronto para o movimento porque persistiam ainda as expectativas de uma perseguição, de uma procura: se ela estava ali sentada, não seria preciso per­segui-la como a uma fugitiva desesperada pelos pântanos e alagados, com a metade do seu exército e ele à frente... portanto, ficou menos tenso.

Não faria o primeiro movimento de aproximação. Não que­ria cumprimentá-la. Não sentia nenhum impulso amistoso. Esquecera-se do momento de ternura que os unira, e, se pensasse nele, o teria repudiado.. . ficou ali parado por alguin tempo. Minutos. Ela não esboçou o menor movimento. Ben Ata distinguia o rosto de Al.Ith como uma mancha branca e bri­lhante. O vestido lúgubre e escuro naturalmente era absorvido pela noite. Acreditava que ela devia odiá-lo. Ben Ata sentia o cheiro da brisa leve e úmida que precedia o amanhecer. Gostava de ser acordado por aquele vento suave, que se esguei­rava sorrateiramente sobre a terra, movendo os arbustos, trazendo o odor da relva e da água. Durante as marchas do exército, sempre acordava quando esse vento soprava, comparando-o então com os ventos de chuva que açoitavam suas terras planas muitas vezes por semana, seguidamente... sem perceber, começou a andar ao longo do lago. Estava ainda com as sandálias e não era possível evitar o ruído dos seus passos e surpreendê-la. Estava ainda imóvel. Aproximara-se de Al.Ith, passando pelos sete jatos d'água idiotas, alcançando a borda do pequeno terraço, quando ela voltou a cabeça e observou:

Está muito agradável aqui, Ben Ata.

Posso ver que não dormiu bem!

Nunca durmo mais de duas ou três horas.

Isso o aborreceu: naturalmente ela estaria em casa du­rante a noite — onde mais poderia estar?

E como não havia nada mais a fazer, ele sentou-se na outra extremidade do terraço, longe dela.

Agora percebia que havia dois cavalos sob as árvores, o dela — negro — e outro, branco. Distinguia o primeiro apenas porque estava muito próximo do outro, tuna sombra escura contra a forma branca.

Vejo que no seu país vocês têm cavalos como nós te­mos cães.

Não, Ben Ata.

Ele ouvia na voz dela — mal podia distinguir-lhe o rosto — um tom conciliatório ou talvez um pouco temeroso? Sen­tiu o sangue acelerar-se nas veias à idéia de que ela estivesse com medo, mas logo se acalmou. Suspirou. Era como se es­tivesse sob a pressão de um peso leve. O entusiasmo evaporou- se. Todo o seu ser, suas memórias, suas esperanças diziam-lhe o quanto essa mulher era estranha, como essa estranheza pesava sobre ele, oprimindo-o. Vasculhava freneticamente na memória a lembrança de mulheres com as quais pudesse compará-la, para uma orientação, pois sinceramente Ben Ata pretendia tentar compreendê-la. Mas não havia nada parecido, nem mesmo remotamente. Sua mãe? Certamente que não! Sua mãe tinha sido uma mulher tola — na sua opinião. Mas, na verdade, não estivera com ela, realmente, depois dos sete anos, quando foi mandado para o exército, para começar seu treinamento. Suas irmãs? Também não voltara a vê-las a partir dessa idade, a não ser em breves encontros durante suas visitas à casa e tinham se casado e viviam em regiões distantes da Zona Quatro. As mulheres dos seus oficiais? A questão era que jamais fora perturbado por uma mulher, e era isso o que estava acontecendo agora. Ela nunca reagia de acordo com suas ex­pectativas. Ben Ata estava tenso e irritado como um cavalo malconduzido... cavalos outra vez. Na verdade, não gostava de cavalos. E não se lembrava de ter alguma vez pensado se gostava ou não; eles estavam ali, era tudo.

Ben Ata, quando me levantei e vim para cá, vi meu cavalo ao lado da fonte. Pensei que não tinha sido bem tratado, mas não era isso. Ele não estava com fome ou com sede...

Ambos ouviram o ar ser exalado lentamente dos pulmões de Ben Ata, não um suspiro de exasperação, mas de pura incredulidade, uma espécie de paciência atônita e imposta.

...mas ele estava perturbado e fugiu do curral para me encontrar. Por isso acordei, creio. Mas não é fácil saber exatamente o que aconteceu. Mandei que ele fosse buscar um dos seus amigos...

Mais uma vez Ben Ata soltou o ar lentamente: agora, um suspiro cauteloso.

O que me admira — disse ele com voz suave, hesi­tante, como se estivesse experimentando um novo tipo de sar­casmo — é você não ter ido aos estábulos para trazer o ca­valo.

Mas, Ben Ata, você sabe que não posso sair deste lugar. Não sem o meu escudo. Estou confinada ao pavilhão e aos jardins. Se sair, o ar da Zona Quatro me fará adoecer.

Está certo, está certo. Tinha me esquecido. Não, não me esqueci... mas... oh, pelo amor de Deus, não...

Imprecações de toda a espécie recusavam-se a sair dos seus lábios e ele ouviu as próprias palavras como se fossem pronunciadas por um estranho.

Ele se foi. Depois de algum tempo, trouxe este cavalo branco. Conhece este animal?

Não.

Os dois chegaram no momento em que você apareceu na porta. Olhe para eless Ben Ata.

De fato, ele podia ver que os animais estavam parados lado a lado com as cabeças baixas. Eram a própria imagem do desânimo.

Vou até lá. — E ela caminhou descalça, passando pelas fontes. Agora ele a distinguia claramente contra o céu do nascente. Uma imensa sombra cinzenta cobria a terra. Farrapos de nuvens passavam céleres e baixo. Ben Ata a seguiu, a contragosto, e os animais, ao vê-la, saíram de sob as árvores e aproximaram-se, de cabeça baixa. Ele a viu acariciar o ca­valo negro, depois o branco; viu-a curvar-se, falando ora com um, ora com o outro. Viu as mãos dela sobre o pêlo úmido. E, então, ela passou um braço ao redor do pescoço de cada um e ficou imóvel, entre eles. Em seguida, afastou-se, bateu palmas uma vez e eles desceram a colina a galope, saltando agilmente o muro da cocheira.

Al.Ith voltou-se. Agora ele podia ver seu rosto. Pálido e preocupado. O cabelo, solto sobre os ombros, umedecido com pequenas gotas de orvalho. Ao lado da boca, a marca de sua mão. Ao vê-la, Ben Ata sentiu uma necessidade pre­mente de agarrá-la e abraçá-la com força — não com amor ou desejo, com algo muito diferente. Um impulso de bruta­lidade quase tomou conta dos seus sentidos. Mas sentiu a mão pequenina na sua e ficou completamente desarmado. Talvez, em sua infância, alguém tivesse segurado sua mão com con­fiança e amizade, mas, depois disso, jamais.

Não podia acreditar! No momento em que tentava con­trolar impulsos de pura hostilidade e repulsa, ela colocou a mão na dele, como se fosse a coisa mais natural. A mão de Ben Ata estava rígida e esquiva.

Então, ela apressou o passo e andou na frente dele, pas­sando pelas flores, pelas fontes, até chegar ao terraço redondo, onde se sentou, com os pés descalços sob a saia do vestido.

Os pensamentos de Ben Ata giravam num torvelinho de atônito protesto. Esta grande rainha, esta conquista — pois não podia deixar de pensar dessa forma — era mais simples do que as mulheres que cuidavam do gado.

Ela ergueu os olhos para ele, insistente, preocupada:

Ben Ata, alguma coisa está errada.

Outro suspiro profundo.

Se você acha.

Sim. Sim, eu acho. Diga-me, seus rebanhos, seus ani­mais, tem havido algum caso de doença?

Agora ele a olhou de frente, sério, pensativo.

Sim, houve alguns relatórios. Mas, espere um pou­co... ninguém parece saber do que se trata.

E o índice de nascimentos entre eles?

Baixou. Sim, está mais baixo. — Embora confir­mando o que ela temia, não pôde conter o sarcasmo: — E o que os dois cavalos lhe contaram?

Não sabem o que está errado. Mas estão abatidos, todos eles. Perderam a vontade de se acasalar... — Perce­bendo a iminência da zombaria inevitável, continuou rapi­damente, ignorando-a — e ignorando-o, sentiu Ben Ata. — Não, escute-me, Ben Ata. São todos os animais. Todos. E os pássaros. E, como sabemos, isso significa o reino vegetal também, se não agora, muito em breve...

Como, sabemos?

Sim, naturalmente.

Apesar da tentativa de zombaria, os olhos dele fitaram os dela com seriedade, com uma interrogação interessada. Acreditava nela. Estava atento e pronto a fazer o que fosse possível. Esse modo de encarar o assunto os aproximou mais do que nunca, mas não no sentido de Ben Ata sentir conforto ou segurança no contato físico entre os dois.

O número de nascimentos continua o mesmo?

Não, não continua. Tem havido um decréscimo cons­tante.

Sim, entre nós também.

Certas partes da periferia da nossa Zona estão completamente abandonadas.

Sim, o mesmo se dá conosco.

Ficaram em silêncio por longo tempo. Varando o ar úmi­do do céu, a leste, a luz do sol nascente começava a surgir. As nuvens eram flocos de ouro pálido e uma névoa dourada envolvia tudo. As árvores perfumadas engrinaldavam-se de ar­co-íris, e lanças de luz opalina rasgavam a neblina que se erguia dos pântanos. A água jorrava das fontes e seu canto parecia abafado pela umidade geral.

Suponho que seja bonito — disse ela com voz baixa e desanimada, e de súbito deu uma gargalhada cheia de calor.

Ora, vamos, não é tão mau assim — disse ele. — Vai ver, quando o sol nascer e tudo estiver seco. Temos dias muito agradáveis aqui, pode estar certa.

Espero que sim! Ponha a mão no meu vestido, BemAta!

Mas esse convite os fez voltar no tempo. Não fora um ato provocante, e ser convidado a tocar o vestido dela por qualquer outro motivo o ofendia. Segurou a fazenda entre o polegar e o indicador e disse que estava úmida.

Ben Ata, erramos em alguma coisa. Nossas duas Zo­nas. Um erro sério. O que vamos fazer?

Ele largou o vestido. Franziu a testa.

Por que não nos dizem o que está errado, simples­mente, e acabam com isso? Assim poderíamos reparar o erro. — Ele viu o leve sorriso de Al.Ith. — Muito bem, o que há de errado nisso?

Acho que querem que encontremos a solução por nós mesmos.

Mas, por quê? Para quê? Qual a utilidade disso? É perda de tempo!

Não é assim que as coisas são conduzidas... creio que é isso — disse ela, quase num sussurro.

Como sabe? — Mas, ao fazer a pergunta, percebeu que a resposta já fora dada. — Há quanto tempo você não recebia uma Ordem?

Tanto que ninguém se recorda. Mas temos velhas his­tórias. E canções.

Bem, eu naturalmente não me lembro de nada. Quan­do me tornei rei nada me foi dito. Quando a Ordem chegou, lembrei-me apenas de que devia ser obedecida. Disso eu sabia. Mas era tudo.

Em toda a minha vida, não recebemos nada. Nem no tempo da minha mãe.

E a mãe dela?

Nada, durante gerações de Mães.

Ah! — exclamou ele, rápida e evasivamente.

Quer saber, acho que as coisas estão muito sérias. Muito mal. Perigosas. Só pode ser!

Você acha mesmo?

Bem, para estarmos juntos deste modo. Por causa da Ordem. Não percebe?

Ele ficou novamente em silêncio. Franziu a testa. Sus­pirou, sem perceber que o fazia, pelo esforço de pensamentos aos quais não estava habituado — não costumava questionar esses assuntos. Al.Ith o observava: este Ben Ata, quieto, pen­sando, tentando desvendar o significado daquele dilema — deste homem ela poderia vir a gostar. A respeitar. Mais uma vez sua mão procurou a dele, num impulso de amizade, e a mão forte de Ben Ata fechou-se sobre a dela como um alça­pão prendendo uma ave. Abriu-a rapidamente, e Al.Ith viu-o olhar para sua mão e a dele com ar de incredulidade. E, então, olhou-a com uma expressão indefesa no rosto moreno.

Ela suspirou, retirou a mão rapidamente e levantou-se.

Voltou as costas para o amarelo dourado do leste e olhou para o céu por sobre os ombros dele. Via as montanhas e os altos picos do seu reino.

Ohhhh — suspirou —, olhe... não tinha idéia... não tinha a menor idéia...

As montanhas da Zona Três erguiam-se a mais de um terço da altura da direção do zénite. Ela ficou com a cabeça inclinada para trás olhando para as formas majestosas ilu­minadas. O sol nascente refletia brilhos de cristal e os cumes agudos dos picos mais altos pareciam envoltos em nuvens cor-de-rosa, vermelhas e douradas — mas não eram nuvens, era a neve acumulada de milhares de anos. E lá embaixo, recortada sobre a massa de montanhas, estava a borda escura, rochosa, circundada por um forte de pedra, a escarpa que ela descera na véspera. A vasta planície que se estendia da escarpa e do sopé do planalto, a base das inúmeras cadeias de montanhas da nossa terra, não podia ser vista daquele ponto. Ninguém poderia adivinhar a sua existência. Os habitantes dessa zona baixa e pantanosa jamais poderiam imaginar, olhando para as cadeias de montanhas, as infinitas variações de uma pai­sagem e de um país invisíveis para eles. Al.Ith estava de pé, as mãos cruzadas atrás da cabeça, olhando para cima, mais para cima, sorrindo de satisfação e cheia de saudade, e cho­rando de felicidade.

Ben Ata observava-a atentamente. Sentia-se pouco à von­tade.

Não faça isso disse ele asperamente.

Com relutância, ela baixou os olhos e viu a desaprovação

dele.

Mas, por que não?

Não é direito.

O que não é direito?

Nós não encorajamos isso.

O quê?

Devaneio, nós chamamos.

Você quer dizer, as pessoas não olham para cima, para toda... toda aquela glória?

Ê debilitante.

Mas não acredito que seja, Ben Ata!

Mas é. Essas são as leis.

Se eu tivesse de viver lá embaixo, acho que não con­seguiria tirar os olhos dessa cena. Olhe, olhe... — E ela abriu os braços, exultante, para os vastos panoramas de luz e cor que enchiam os céus do nosso ocidente. Nuvens! cantou ela. Não são nuvens, é o nosso país, é lá que estamos.

Temos certos momentos para contemplar as monta­nhas. Momentos determinados. Festivais. De dez em dez anos. Fora disso, as pessoas que passam muito tempo olhando para elas são punidas.

E como são punidas?

Colocamos pesados fardos em suas cabeças para não poderem olhar para cima.

Ben Ata, isso é cruel.

Eu não fiz a lei. Sempre foi a nossa lei.

Sempre, sempre, sempre... como sabe?

Não acredito que isso tenha sido jamais questionado. Você é a primeira.

Al.Ith sentou-se ao lado dele. Bem perto. Mais uma vez Ben Ata evitou o contato, instintivamente. Essa exultação, esse encantamento eram detestáveis. Mal suportava olhar para o rosto dela radiante e sorridente. Mas sentiu-se aliviado; afinal ela não era sempre tão pálida e séria. O rosto de Al.Ith, iluminado agora pela luz rosada das montanhas distantes, tinha o colorido e a graça de uma face de menina, e os cabelos abundantes, pontilhados com pérolas de orvalho, dançavam, emoldurando o sorriso.

Mas:

Não deve olhar assim. É contra a lei. Enquanto estiver aqui, deve obedecer às nossas leis.

Sim, faz sentido murmurou ela, desviando os olhos.

Quando estiver no seu país naturalmente poderá agir como quiser. Ben Ata a fazia lembrar de seu irmão que fora administrador da sua casa por muitos anos, antes de pedir transferência para o posto de curador das Memórias.

Mas, no nosso país, é assim que somos, Ben Ata.

Como se atingida por um súbito raio luminoso, Al.Ith sen­tiu-se atordoada.

Ben Ata, tive uma... — mas já passara. Al.Ith se­gurou o rosto com as duas mãos e balançou-se para a frente e para trás, tentando lembrar-se daquilo que tão rapidamente pas­sara por ela.

Está doente?

Não, não estou. Mas quase cheguei a compreender al­guma coisa.

Muito bem, avise-me quando tiver compreendido.

Com essas palavras, o soldado levantou-se e por um

breve momento olhou para a glória das montanhas paradisíacas destacando-se contra o céu: Resmungou: "E muito certo proibir que as pessoas percam tempo com isso", e, des­viando os olhos resolutamente, marchou para os pavilhões. Al.Ith acompanhou-o, com passos lentos, ao lado do lago estreito, passando pelos jatos d'água, um, dois, três lançou tam­bém um último olhar ao seu país, desviou os olhos para os sete chafarizes que toldavam a superfície do lago, impedindo-a de refletir o céu cinzento e pesado.

Dentro do pavilhão, tudo os esperava. O quarto imenso, silencioso, arejado, reluzente, com seus desenhos delicados e cores brilhantes. A cama era baixa e larga, mal desfeita pelo encontro dos dois. Através dos arcos via-se apenas a paisagem acinzentada. Chovia e a encosta ajardinada que descia para os acampamentos estava envolta em névoa.

Ben Ata estava no meio do quarto, ao lado da coluna, observando Al.Ith com uma expressão de cômico embaraço. E ela sorriu para ele.

Nesse momento sentiram-se unidos por amizade. Companheirismo. Eram ambos, sem dúvida, representantes e perso­nificações dos seus respectivos países. Preocupados com seus reinos. Nele, essa preocupação tomava a forma de obediência. Dever. Nela, a compulsão restrita era amenizada pela respon­sabilidade sobre acontecimentos e situações, mas ainda eram iguais. Seu povo era o que eles eram, o que eram seus pensa­mentos. Suas vidas não poderiam ser nada mais, ou menos... contudo, agora ambos compreendiam profundamente, e isso os chocava no mais íntimo do ser, que todo esse cuidado e esses deveres não os tinham impedido de errar... Entreolhavam-se, sem desviar os olhos, tentando penetrar aqueles olhos acinzen­tados e pensativos dele, o brilho suave dos olhos negros dela, para alcançarem algo mais profundo, alcançar um ao outro.

O que vamos fazer, Ben Ata? murmurou ela.

Desta vez foi ele quem estendeu a mão e Al.Ith, aproximando-se, tomou-a entre as suas.

Precisamos pensar disse ela. Precisamos tentar descobrir...

Então, ele passou os braços fortes cuidadosamente pelos ombros dela, como se temesse que seu tamanho e seu peso a esmagassem, e como se estivesse tentando, experimentando sensações completamente novas e não de todo bem-vindas e, evi­tando a marca ao lado da boca de Al.Ith, olhou aquele rosto que lhe parecia feito de uma substância ou de uma luz que ele ja­mais esperaria, nem desejaria possuir. Beijou-a, desajeitado como um garoto. Sentiu os lábios dela respondendo com uma vivaci­dade que ainda o alarmava. Beijos rápidos e leves, o gosto sutil do sorriso e do companheirismo descontraído, a provocação, a resposta na resposta na resposta — tudo isso era uma imposição excessiva, e, depois de alguns minutos, ele levou-a mais uma vez para o grande leito. Não deixou de notar que, quando a manteve imóvel para penetrá-la, Al.Ith enrijeceu o corpo como se tudo nela o repudiasse. Sentiu isso e comparou com as ca­rícias sensuais que ele havia interrompido. Os modos dela pa­reciam-lhe estranhos, difíceis, além do seu alcance. E os seus pareciam-lhe agora rudes... ele só conseguia penetrá-la e pos­suí-la depois de um olhar furtivo à marca deixada pelo seu dedo no rosto dela, e isso o envergonhava agora, enquanto ejaculava, gemia e finalmente ficava imóvel. Ele estava estranhamente aca­brunhado pelo remorso.

Al.Ith ficou imóvel, os olhos muito abertos cheios de mágoa.

Muito bem — disse ele. — Sei que me acha um bruto.

Vocês têm péssimos hábitos no seu país — observou ela, afinal, com voz fria. Mas Ben Ata tinha esperança de que o companheirismo de há pouco voltasse.

Ele levantou-se rapidamente, envolveu-se no longo manto e cobriu as pernas dela com o vestido azul.

Sabe o que vou fazer? — sibilou, com voz autoritária. — Vou mandar vir alguns vestidos da cidade.

Al.Ith começou a rir. Balançava a cabeça levemente de um lado para outro, com a mão sobre a boca, mas estava rindo. Ben Ata sorriu, aliviado, embora soubesse que aquele riso podia muito bem ser pranto.

De qualquer modo, está na hora de comermos alguma coisa — disse ele. E, mais do que nunca, parecia o irmão de Al.Ith, o administrador, e ela riu, mas, depois, virou-se na cama, colocou os braços sobre a cabeça e disse:

Saia daqui, saia daqui, deixe-me sozinha!

Ben Ata obedeceu e foi rapidamente para os aposentos que lhe tinham sido destinados, à direita do pavilhão central.

Ele tomou banho, trocou de roupa. Vestiu uma túnica pró­pria para cerimônias especiais, pois não encontrou no guarda- roupa nada que lhe parecesse apropriado para esse encontro amoroso, para essa primeira refeição nupcial.

Voltou então ao quarto central. Al.Ith estava ainda nos seus aposentos. Ben Ata sentou-se à pequena mesa ao lado dos arcos, na frente de uma janela onde a chuva, trazida pelo vento úmido, batia sonoramente, e, apoiando o queixo na mão, medi­tou sobre os dilemas de ambos como soberanos. Assim ela o en­controu mais tarde, tão imerso em pensamentos que não a viu chegar.

Al.Ith encontrara um roupão de linho branco, leve, deixado por uma das empregadas que fizera a limpeza do pavilhão. Ti­rou o vestido azul, vestiu o roupão e foi para Ben Ata que reconheceu imediatamente a roupa da empregada, assim que deu pela presença dela.

Não fez nenhum comentário. Notou que o branco ficava bem nela. Pensou que Al.Ith era razoavelmente bonita, ou seria, se conseguisse demonstrar maior boa vontade para agradar-lhe. Mas ela estava séria novamente, o que combinava com o que ele sentia naquele momento.

Entre as duas cadeiras havia uma pequena mesa quadrada feita de madeiras coloridas e lavradas. Feita também segundo as especificações da Ordem.

Ben Ata perguntou:

O que quer comer?

Antes que ela pudesse responder, Ben Ata bateu palmas e apareceram sobre a mesa frutas, pão, uma bebida quente e aro­mática.

Muito frugal observou ele, e bateu palmas nova­mente. Desta vez surgiu um prato de carnes e um tipo de bis­coito sólido que os soldados costumavam comer quando em campanha.

Muito frugal observou ela.

Não está impressionada com o meu pequeno truque? perguntou Ben Ata, secamente, mas com uma insinuação de fraterno desafio.

Sim, mas creio que faz parte das coisas fornecidas pela Ordem.

Sim, é verdade. Já tinha visto algo parecido?

Não, nunca.

Bem, é só pensar em alguma coisa, e ela aparece. — E ela percebeu, pelo prazer infantil estampado no rosto dele, que Ben Ata estava a ponto de fazer algo mais se materializar.

Não, não faça isso — disse ela. — Não devemos abusar.

Tem razão. Naturalmente. — E ele começou a comer pondo enormes garfadas na boca.

A refeição foi deliberadamente prolongada pelos dois. Ao que parecia, apreciavam-se mais quando estavam desempe­nhando o papel de soberanos responsáveis — pensativos, sérios. Ben Ata dizia a si mesmo que teria preferido que Al. Ith se comportasse como as mulheres às quais estava acostumado, mas na verdade começava a aceitá-la, a confiar nela. Quanto a Al.Ith, só podia ignorar a aversão natural pelo tipo físico de Ben Ata e pelos seus modos quando o via pensativo, tentando aproxi­mar-se dela para compartilharem os problemas que os defron­tavam.

Falaram mais do que comeram e ficaram ali sentados, observando a chuva interminável que passava com o vento lá fora dos arcos, envolvendo-os em uma quietude tranqüila.

No fim da tarde, a chuva parou, e os dois, descalços, caminharam ao redor das fontes que fielmente se lançavam nos pequenos lagos, transbordantes agora. Andavam com os pés mer­gulhados na água morna. Ben Ata arrastava os pés e chutava a água, como uma criança. Al.Ith pensou que ele parecia estar preso a uma longa correia. Era uma imagem tola e desagradável. Ali estava um homem incapaz de se distrair descontraidamente. Parecia sentir-se culpado, passível de punição. Depois de algum tempo, ela sugeriu que entrassem, e a reação de Ben Ata, o ar sério e formal, parecia a de uma criança a quem tivessem cha­mado a atenção. Al.Ith olhou rapidamente para as montanhas do seu país, agora levemente iluminadas pelo sol que se punha atrás delas no céu azul cristalino, e viu-o apertar os lábios e sa­cudir a cabeça. Para ela não havia meio-termo — licença ou proibição, uma ou outra! Mas, quando chegaram ao pavilhão, estavam calmos e voltaram a conversar.

Não tinham chegado a nenhuma conclusão sobre o que estava errado nos dois reinos, nem sabiam onde tinham errado pois estava claro para ambos que esse tinha sido o caso. Contudo, a todo momento pareciam estar perto de uma revelação que continuava fora do seu alcance.

As sombras do cair da noite envolveram o pavilhão e as luzes se acenderam nas sancas caneladas do teto. Os dois esta­vam andando de um lado para outro na sua prisão. Ambos sabiam que era isso o que sentiam. Mas não lhes era possível colocarem-se um no lugar do outro o suficiente para uma com­preensão total. Ben Ata sentia, em cada partícula do seu ser, a necessidade de afastar-se daquele ambiente, e dela, daquela mu­lher cuja simples presença provocava nele uma resistência ir­ritada, enquanto andava para lá e para cá, sua passagem por ele provocando em seu corpo um protesto e uma repulsa. Jamais experimentara nada parecido em toda a sua vida. Mas também jamais passara tanto tempo sozinho com uma mulher, muito menos uma que conversava com ele e, em sua opinião, "com­portava-se como um homem". Esses surtos emocionais eram tão intensos que, quando diminuíam, sentia-se atônito, imaginando se não estaria doente. Voltaram os pensamentos das possíveis habilidades dela nas artes mágicas. Quanto a Al.Ith, estava pe­sarosa, triste, com vontade de chorar. Eram emoções estranhas para ela. Não se lembrava de ter sentido antes essa necessidade premente e intensa de chorar, sucumbir, deitar a cabeça no ombro de alguém não de qualquer um, e muito menos de Ben Ata. Entretanto, mais de uma vez surpreendeu-se desejando que ele a carregasse de novo para aquele leito baixo, não para "fa­zer amor" certamente que não, pois ele era um bárbaro —, mas para envolvê-la em seus braços. Essa urgência a intrigava e inquietava. Com certeza estava sofrendo os efeitos do ar dessa Zona, tão debilitantes e desanimadores. Apesar do escudo, das dimensões especiais do pavilhão, talvez tivesse sido corrompida de alguma forma. Todo o seu ser desejava estar livre e de volta ao seu reino, onde todos esperavam sentir uma leveza de espírito amiga e descontraída, e onde as lágrimas eram sinal de doença física.

A caminhada dos dois pelo grande quarto tornou-se tão intensa que ambos riram, mas de súbito ele deixou escapar uma exclamação abafada, que ela facilmente reconheceu como o si­nal de alguém chegando ao limite da resistência, e disse:

— Preciso sair e tratar de algumas coisas... — e desapa­receu na noite, descendo a pequena colina.

Ela sabia que ele fora para os acampamentos — eram o seu lar.

Al.Ith começou a respirar com mais facilidade. Mas, en­quanto continuava a andar pelo quarto, as palavras chegaram-lhe claras como se tivessem sido ditas ao seu ouvido: "Está na hora de você voltar para casa, agora, Al.Ith. Deverá voltar, mais tarde, mas agora vá para casa."

Não duvidou de que eram as palavras da Ordem. Animou- se imediatamente. Sem perder tempo para trocar de roupa, saiu como estava, correndo na direção oposta àquela que Ben Ata tomara, e, parando no meio das fontes, chamou o seu cavalo. Apenas pensou que ele devia vir para ela. Logo o ouviu galopar na subida da colina e atravessar os jardins e os lagos. Es­tava montada e na estrada que levava para oeste antes mesmo que Ben Ata tivesse chegado ao acampamento dos seus soldados.

Al.Ith não temia ser detida. Estava escuro. Tinha apenas de seguir a estrada reta, sem cruzamentos, sempre em frente, passando pelas linhas de árvores podadas que pareciam montes de ramos fracos cobertos de folhas, de um lado, e o canal, do outro. Poucas pessoas saíam à noite, nesse lugar. Na verdade, Ben Ata ficara chocado ao saber que em seu país aproveitavam a noite para visitas, festas e todo o tipo de divertimentos. Tinha concordado que o ar na Zona Três não era tão perigoso quanto, teve de admitir, o da sua Zona. Al.Ith achou-o desagradavelmente pesado e úmido, e, muito antes da aurora, a estrada co­meçou a subir, na direção da escarpa da beira do planalto. Não podia ser detida pelos soldados deste lado da fronteira. Arrancou as mangas do robe que usava e envolveu com elas as patas de seu cavalo. E continuou, silenciosamente.

Não viu os rebanhos ao passar por eles, mas ouviu-os e pensou no pobre menino assustado que se deitara aos seus pés. Não viu o grande vulto do lugar "perigoso", e prometeu a si mesma que, em sua próxima visita, que era inevitável, pergun­taria a Ben Ata sobre ele. Não viu pessoa alguma na estrada. Ouviu o canto e as vozes altas dos soldados, não muito longe da fronteira, mas passou por eles sem dificuldade.

Quando a aurora incendiou o céu atrás dela, e Al.Ith er­gueu os olhos para as neves maravilhosas das suas montanhas, ouviu o galope de um cavalo que a perseguia e pensou que era Ben Ata. Parou sua montaria e esperou pacientemente por ele. Era Jarnti, Estava sem armadura, mas levava o escudo e a capa do exército.

— Aonde vai, senhora?

Para casa. Como me ordenaram.

Ben Ata não sabe disso. Ele está na tenda, com os oficiais.

Tenho certeza de que está — disse ela, mas ele não respondeu à tentativa de humor. Não olhava para ela, mas para o lado. Tinha a expressão embaraçada e furtiva que ela lem­brava muito bem. Mas Jarnti parecia esforçar-se por manter os olhos desviados... então, com alguma dificuldade de movimen­tos, voltou a cabeça para o outro lado. Depois, pareceu querer erguer a cabeça sem conseguir.

Subitamente ela pensou estar a ponto de compreender.

Jarnti, você nunca olha para as montanhas?

Não — e ele fez seu cavalo negro voltar-se, em pro­testo.

Por quê?

É proibido.

Parece que muitas coisas são proibidas. Olhe agora, olhe como são belas.

Mais uma vez o cavalo negaceou e deu voltas na estrada, e Al.Ith viu que ele se esforçava por olhar para o alto. Mas seus olhos iam de um lado para o outro, sem que ele erguesse a cabeça. Não podia.

Quando era criança você devaneava?

Sim.

E era punido com o pesado capacete. Por quanto tempo?

Um longo tempo — respondeu ele, com cólera sú­bita à lembrança. E a obediência dominou-o novamente.

Muitas crianças desobedecem e olham para as mon­tanhas?

Sim, muitas. E às vezes os jovens também.

E todos eles usam capacetes como castigo e daí em diante ficam obedientes?

Sim, é isso.

Como soube que eu tinha partido?

Este cavalo ficou sozinho, pulou o muro de pedra e saiu galopando atrás do seu. Eu sabia que você tinha fugido, por isso montei-o.

Bem, devo continuar agora, Jarnti, e creio que nos veremos outra vez. Mas diga a Ben Ata que, se ele receber a Ordem para novo encontro aqui em sua Zona, não precisa mandar uma companhia de soldados.

Fazemos o que achamos que é certo.

Quantos soldados a Ordem especificou como neces­sários para me trazer aqui? Nenhum, creio eu.

Não é seguro viajar sozinha.

Cheguei em segurança até aqui, e, uma vez além da fronteira e no meu país, pode estar certo de que nada tenho a temer.

Eu sei disso — disse ele em voz baixa, com admira­ção e tanto sentimento que Al.Ith compreendeu seu desejo de voltar à Zona Três para o resto da vida. Embora ele mesmo não compreendesse por quê.

Al.Ith examinou o soldado e ele desviou os olhos.

Tinha a mesma constituição de Ben Ata, forte, pele quei­mada de sol, mas os cabelos e os olhos eram negros. Ela o conhecia intimamente, por causa de Ben Ata. Seria o mesmo com sua mulher ou suas mulheres: fanfarrão e grosseiro. Con­tudo, por um momento assaltou-a um desejo, que a surpreen­deu com sua intensidade, de estar entre aqueles braços fortes como pilares, "segura" e "a salvo". Disse:

Até logo, Jamti, e diga a Ben Ata que o verei quando for preciso.

A expressão constrangida do rosto de Jarnti foi a recom­pensa do seu assomo de malícia, e ela imediatamente sentiu remorso.

Diga a ele... diga.. . — mas ela não conseguia pen­sar em nada suave e delicado para dizer. — Diga que parti porque precisava — falou rapidamente, afinal, e pôs o cavalo num galope rápido subindo a encosta da escarpa. Voltou-se e viu Jarnti esforçando-se por erguer a cabeça para as monta­nhas proibidas. Mas não conseguiu: apenas levantou um pouco, mas logo abaixou-a novamente.

Al.Ith atravessou a fronteira usando o escudo protetor, e então, quando chegou ao ar fresco e cantante da sua terra, atirou o escudo para longe, saltou do cavalo e dançou em volta dele, rindo sem parar. E, nos picos das montanhas que se estendiam para o céu, a manhã se erguia escarlate e púrpura.

Desejava mais do que tudo estar no planalto, ao pé das montanhas, mas antes disso precisava verificar certas coisas. Assim, depois de dançar e cantar, recuperando seu habitual estado de espírito, tornou a montar e, deixando a estrada que levava ao planalto, tomou o caminho que o circundava e que a levaria às regiões periféricas da sua Zona. Eram, na sua maior parte, centros de criação de gado e fazendas de plan­tação, e Al.Ith sempre gostara de visitá-las... mas há muito não fazia essa viagem... há quanto tempo? Bem no fundo da sua mente estava a certeza de que fazia muito, muito tempo. O que tinha acontecido? Por que se descuidara desse modo? Pois fora descuidada. Irresponsável. Não existia palavra pior. Sentia-se castigada, açoitada por ela. Normalmente, depois do deleite de dançar e recuperar sua alegria de espírito, a ponto de cada átomo do seu corpo cantar e regozijar-se, ela caval­gava, andava ou corria sobre a relva perfumada da planície, perseguida apenas pelos prazeres do dia, a luz do sol, os ven­tos frescos e aromáticos, a mudança da luz, sempre diferente nos picos... mas não, desta vez não foi assim. Ela tinha er­rado. Por quê? Chegou mesmo a saltar do cavalo e abraçou o pescoço do animal, o rosto encostado no calor escorregadio do pêlo, como se a força dele pudesse transmitir compreensão à sua mente. Estivera especialmente ocupada? Não, não tinha sido isso. A vida fora como sempre deliciosa, com os filhos, os amigos, os amantes, a paz amiga do seu reino determinando o ritmo do corpo e do espírito para o bom humor, a bondade... pensando nos rostos sorridentes e satisfeitos da sua vida, re­voltava-se à idéia de haver algo errado — como era possível!

Uma voz de homem perguntou:

Precisa de ajuda?

Al.Ith voltou-se e viu um fazendeiro de uma das fazendas coletivas. Jovem, saudável, com aquele calor irradiante especial que era a marca do bem-estar e do bom humor, e que não existia no reino de Ben Ata.

Não, estou bem — disse ela. Mas ele a observava com expressão de dúvida. Al.Ith lembrou-se que usava ainda o leve robe branco, agora sem mangas e amassado, e as patas do cavalo estavam ainda envoltas em pano. Retirou os pedaços de fazenda das patas do animal, e ele exclamou:

Ah, vejo agora quem é. E como é o casamento na Zona Quatro?

Era o tipo de pergunta amistosa que ela devia esperar normalmente, mas Al.Ith lançou um olhar desconfiado ao fazendeiro, definido por ela própria de "olhar da Zona Quatro". Mas, não, naturalmente ele não estava sendo "impertinente" — uma palavra da Zona Quatro! Oh, como ela havia mudado em um dia e meio naquele lugar!

Tem razão, sou Al.Ith. E tinha me esquecido que es­tou usando isto. Diga-me, será que uma das mulheres da sua família poderia me emprestar um vestido?

Naturalmente. Eu vou buscar.

E ele correu para um conjunto de casas, cercado por re­banhos de vacas e ovelhas.

Enquanto esperava, Al.Ith soltou o cavalo para pastar e sentou-se à sombra de uma árvore.

Quando ele voltou correndo, com o vestido na mão, viu-a ali sentada e o cavalo pastando ao seu lado, de vez em quando acariciando-a com o focinho.

Como se chama o seu cavalo, Al.Ith?

Ainda não achei um bom nomé para ele.

Ah, então é um amigo especial?

Sim, ele me escolheu para amiga no momento em que nos encontramos.

Yori disse ele. Seu companheiro, seu amigo.

Sim, é muito bom! E ela acariciou o nariz do ani­mal, murmurando o nome Yori na sua orelha.

E eu também disse o homem. Naturalmente eu a conhecia, mas logo que a vi percebi que era minha amiga. Meu nome é Yori. E ele sentou-se na relva de frente para ela, apoiou os braços nos joelhos e inclinou-se para a frente, sorrindo.

Agora, Al.Ith estava completamente confusa. Ela sorriu, assentiu com a cabeça, mas ficou em silêncio. Se tudo estivesse normal, ela teria respondido imediatamente às palavras dele. Esse homem era igual a ela e seus físicos se comunicavam com facilidade, desde o primeiro olhar. Ali sentados, sobre a relva morna, seca e levemente perfumada, com a sombra da pe­quena árvore fazendo desenhos silenciosos, seria perfeitamente natural estender a mão para ele e passarem uma ou duas horas deliciosas. Mas dentro dela havia vozes que diziam: Não! Não! Por quê? Estaria grávida? Oh, esperava que não, pois no pas­sado sempre escolhera o momento da concepção de modo bem diferente. Mas, se estivesse grávida, então, pela ordem natural das coisas, na verdade por exigência e determinação, devia ser alimentada e inundada pelo ser individual desse homem, para que a criança fosse sustentada com as essências dele e ouvisse suas palavras. Das outras vezes, quando engravidava depois de escolha cuidadosa, pensada e longamente considerada —, assim que tinha certeza, escolhia, para influenciar benefica­mente a criança, vários homens, os quais, sabendo por que e para que tinham sido escolhidos, cooperavam com ela nesse ato de abençoar e favorecer a criança. Esses homens tinham um lugar especial no seu coração e nos anais da Zona Três. Eram tão Pais das crianças quanto os Pais Genéticos. Todas as crianças da sua Zona tinham Pais Espirituais, tão respon­sáveis por elas quanto os Pais Genéticos. Formavam um grupo com a Mãe Genética e com as mulheres que tomavam conta das crianças, considerando-se pais comuns, sempre à dispo­sição dela, ou dele, em qualquer momento, individual ou coletivamente. Se estivesse grávida, já era tempo de começar a es­colher as influências benéficas para a criança.

Yori... — o cavalo ergueu as orelhas e aproximou-se mais; os dois sorriram e o acariciaram gentilmente. — Você acha que eu estou grávida?

Não sei.

Saberia, se tudo fosse normal?

Sim, sempre soube.

Você é pai muitas vezes?

Duas vezes Pai Genético — e espero ser outra vez, dentro de cinpo anos, quando deverá chegar a minha vez. E sete vezes Pai Espiritual.

E sempre soube?

Sim, desde o primeiro.

Entreolharam-se pensativamente, um olhar que levaria ao jogo do amor, mas havia uma barreira entre os dois.

Se eu estivesse como sempre, escolheria você, acima de qualquer outro, e o escolheria também para Pai Genético, se precisasse ter um filho, mas...

As sombras corriam pela imensa estepe, a relva sibilava e murmurava, a árvore sob a qual estavam farfalhou, Yori, o cavalo, levantou a cabeça e relinchou como se estivesse se libertando de pensamentos dolorosos demais para serem guardados, e ela ficou imóvel, as lágrimas correndo-lhe pelo rosto.

Al. Ith! Você está chorando — disse ele, com voz baixa e chocada.

Eu sei. Não tenho feito outra coisa nos últimos dias. Por quê? Não compreendo a mim mesma! Não compreendo nada! — E ela cobriu o rosto com as mãos e chorou, enquanto Yori, o homem, lhe acariciava as mãos, e Yori, o cavalo, to­cava o braço dela com o focinho.

Ondas de compreensão passaram entre ela e o homem através de suas mãos, sua carne lamentava-se, porque os cor­pos sabiam que deviam estar unidos, e ela disse:

Aquele é um lugar horrível. Terei sido envenenada por ele?

Por que horrível? Como é?

Como vou saber? — Percebeu a irritação na própria voz e ficou chocada. Levantou-se de um salto. — Estou irri­tada! Zangada! Sinto necessidade de me atirar em braços fortes, e chorar — os seus... oh, não fique chocado, não tenha medo. Não vou fazer nada disso. Tornei-me desconfiada de palavras e olhares... diga você agora qual a natureza da Zona Quatro.

Sente-se, Al.Ith. — O tom de comando — pois foi como ela o interpretou — fez com que obedecesse; e sentou-se, pensando que ele não tivera intenção de dar uma ordem, um comando, apenas a sugestão de um amigo, mas ela ouvira uma ordem.

— É um lugar de compulsões — disse ela. — Existem pressões que não temos aqui, que nem conhecemos. Só rea­gem a ordens, à coerção.

Ordens?

Não, não a Ordem, não Ordem. Mas, faça isto. Faça aquilo. Não possuem o conhecimento intuitivo da Lei.

Sempre foram assim? — perguntou ele, com uma iluminação súbita que a fez inclinar-se e examinar seu rosto atentamente.

Sim — disse ela. — Deve ser isso. Você deve estar certo.

Al.Ith, as coisas estão muito ruins por aqui.

Sim, eu sei. Sei agora. Devia ter sabido antes. Se não tivesse sido negligente.

Sim, estamos comentando agora que você deve ter negligenciado seus deveres. Mas só agora. Pois só agora esses acontecimentos diferentes começam a formar um todo compreensível.

Por que ninguém foi falar comigo?... — E lembrou- se de que a tinham procurado, mas ela não os ouvira. — Oh, eu mereço ser punida... — exclamou, e a estranheza dessas palavras fez com que continuasse, em voz muito baixa: — Ouviu isso? É o que quero dizer sobre eles.

Eu ouvi.

Mais uma vez ficaram em silêncio, lado a lado, envoltos em harmonia.

Talvez se nos uníssemos você ficasse curada? su­geriu ele.

Al.Ith disse:

Quando você falou, meu primeiro pensamento foi de suspeita não, espere, ouça. "Ele está dizendo isso no próprio interesse." Não, não fique chocado. Estou tentando ex­plicar... lá é assim e eu fui infectada por eles... Acredito que, talvez, se nos uníssemos completamente, eu ficasse cu­rada ou pelo menos melhor. Mas existe em mim outra obri­gação, uma imposição à qual devo obedecer... sinto que não seria honroso.

Honroso?E seu sorriso era intrigado.

Sim. Honroso.

Você não pertence a Ben Ata e ao reino dele.

Quem sabe! E ela levantou-se outra vez. O fino robe branco quase não lhe cobria a nudez. Era o mesmo que estar sem roupas. Ele usava as roupas dos fazendeiros, calças largas e camiseta. Ficaram juntos, de mãos dadas. Yori, o cavalo negro, esticou o pescoço na direção dos dois. Esta é uma cena muito do agrado dos Cronistas e artistas do nosso reino. É chamada "A Separação". Ou, para as mentes mais sutis: "A Descida de Al.Ith ao Reino das Trevas".

Eu o convidaria para viajar comigo disse ela:. Mas não vou fazê-lo. Não me conheço mais. Não confio em mim mesma. Devo ir sozinha. E, agora, diga-me depressa como estão as coisas nesta parte da estepe.

Segurando as duas mãos dela, ele falou sobre a tristeza dos animais, das fracas colheitas, a inconstância do tempo, a diminuição da concepção entre animais e entre o povo.

Obrigada. Agora preciso vestir esta roupa. Diga-me a quem devo devolvê-la.

É da minha irmã. Ela a enviou com sua amizade.

Mandarei outra para ela, com minha gratidão, quando chegar em casa.

Ele a saudou com um sorriso e um beijo gentil no rosto, e afastou-se. Al.Ith tirou o robe branco, ficou por algum tempo nua entre as plantas aquecidas pelo sol e então pôs o vestido da irmã do fazendeiro, vermelho-escuro, do feitio de que ela mais gostava, justo no busto e nas mangas, folgado na saia.

Montou Yori e cavalgou para a região norte do seu reino.

Em todos os lugares em que parou, fazendas, acampa­mentos de pastores, para conversar e fazer perguntas, ouviu as mesmas notícias. Ou as coisas estavam piorando rapidamente em toda a parte ou estavam piores no Norte, onde o primeiro frio de um outono precoce espessava o ar.

Demorou-se apenas o tempo necessário em cada lugar. Era recebida com a bondade de sempre, embora todos, homens, mulheres e até crianças, concordassem que Al.Ith havia cometido algum erro e que esse casamento, essa aproximação com a Zona Quatro, relacionava-se com seu erro ou sua falha.

E, enquanto cavalgava pela região norte, mais selvagem, montanhosa, fartamente irrigada, às vezes agressivamente escarpada, lembrava-se — lembrava-se apenas — dos momentos descontraídos e lentos do passado, pois agora Ben Ata, Ben Ata, Ben Ata pulsava sonoramente no seu sangue, não podia esquecê-lo, embora cada lembrança fosse dolorosa e carregada de sofrimento; sabia, e a cada momento mais se convencia de estar prestes a descer às possibilidades que existiam dentro dela que jamais acreditara serem reais. E nada podia fazer para evitar.

Deixando a região norte, sempre com os maciços à sua esquerda, dirigiu-se para oeste. Aí estavam ainda no fim do verão e o sol quente e imóvel. Cavalgou pelas paisagens de abundância e plenitude, mas a informação era a mesma, e mulher, homem e criança a saudavam, perguntando: "Al.Ith, o que está errado? Onde foi que erramos? Onde foi que você errou?"

O peso incômodo que sentia, era culpa. No entanto, era-lhe desconhecida, pois jamais soubera da possibilidade de tal estado de espírito. Reconhecendo, entre as várias e calamitosas emoções que a assaltavam, que tomavam as mais diversas to­nalidades e pesos e formas, esta que voltava com insistência, parecendo afinal transformar-se na própria essência de todas as outras, Al.Ith sentiu seu gosto e textura. Culpa, ela a cha­mou. Eu, Al.Ith, sou culpada. Mas, sempre que esse pensa- mento a assaltava, procurava afastá-lo com desgosto e des­confiança. Como podia ela, Al.Ith, ser culpada, como podia ela, apenas ela estar errada... podia estar escravizada à Zona Quatro, mas não perdera o conhecimento, a base de todo o conhecimento, de que tudo era interligado e combinado, tu­do era uno, que não existe isso de um indivíduo estar errado, que não poderia existir. Se havia um erro, devia ser proprie­dade de todos, de todos, em todas as Zonas e, sem dúvida, além delas também. Esse pensamento atingiu-a violentamen­te, como uma advertência. Há muito tempo não pensava no que acontecia além das Zonas... na verdade, mesmo agora, pensou muito pouco sobre as Zonas Um e Dois e a Zona Dois estava bem ali, a noroeste, além do horizonte que parecia se dobrar e se desdobrar em azul ou púrpura... Não tinha se interessado há... há. .. nem podia se lembrar há quanto tempo. Estava em uma pequena elevação, no centro da região oeste. Desceu do nobre Yori, e com o braço sobre o pescoço dele, como procurando conforto, olhou para noroeste, para a Zona Dois. O que havia lá? Não tinha idéia! Jamais pensara nisso! Jamais imaginara! Ou teria pensado, há muito, muito tempo? Não se lembrava de ter estado assim como agora, olhando naquela direção, imaginando, deixando os olhos per­derem-se naquelas distâncias longas, azuis e enganadoras... seus olhos pareciam atraídos e seguiam, dissolvendo-se em azul, azul... um azul mesclado, variado, ondulante... Al.Ith voltou a si, depois de um lapso de tempo nas regiões mais profundas de si mesma, com um novo conhecimento que, esta­va certa, frutificaria. Não já, mas em breve... "Está lá", murmurava para si mesma. "Lá... se eu pudesse alcançá- lo..." Montou novamente e continuou a sua viagem circular, virando para a esquerda e passando para as regiões do Sul. Suas favoritas, sempre suas favoritas, sim, tinha arranjado des­culpas para visitá-las com mais freqüência do que as outras... estivera no Sul há pouco tempo, com todos os filhos e sua corte, e ao que parecia, com metade do povo do planalto. E como fora maravilhoso festas, canções —, agora, lem­brando o passado, parecia-lhe que tinham dançado e cantado durante todo o verão. E nunca parava por muito tempo em sua vida ocupada, para descansar os olhos no azul infinito da Zona que estava muito acima da Zona Três, tanto quanto esta estava da Zona Quatro... A idéia a deixou chocada, atingiu-a com a força de uma concepção — com a força que teria uma concepção devidamente preparada e orquestrada —, aí estava alguma necessidade urgente e poderosa, que ela devia estar satisfazendo, procurando alcançar...

Entretanto, enquanto atravessava as fazendas e ranchos do Sul, saudada por todos com bondade e reconhecimento pelo tempo maravilhoso que haviam compartilhado, lá estava outra vez, mais do que nunca — "Você é culpada, Al.Ith, culpada. (...)"

E seguiu seu caminho, dizendo para si mesma: não sou, não sou, como posso ser, se sou rainha foi porque vocês me escolheram, e me escolheram porque eu sou vocês, e todos sabem disso — sou a melhor parte de vocês, meu povo e eu os chamo de meus, como vocês me chamam de nossa, nossa Al.Ith, e portanto não posso ser mais culpada do que vocês — o erro está em alguma outra parte, em lugar mais profundo, em lugar mais alto? E continuou a cavalgar, subindo as colinas cobertas com as ricas vinhas do Sul, avistando a região noroeste, os olhos estendendo-se pelas montanhas azuis daquela outra terra — até dar a volta no maciço e perdê-las de vista, para só voltar a vê-las quando chegasse ao planalto, que pre­tendia cruzar rapidamente, parando apenas para ver seus filhos e todos nós e chegar na borda do mesmo, de onde se des­cortinava o Oeste e o Noroeste, para fitar a bruma azul até que aquilo de que se devia lembrar — e sabia que era importante — lhe viesse à mente.

Al.Ith percorreu as Zonas do Sul de ponta a ponta. Várias vezes encontrou-se com os homens que, se tudo esti­vesse normal, ela teria escolhido para transferir-lhe as quali­dades que seriam proveitosas para a criança que talvez tivesse concebido — mas, teria mesmo? E essa questão era também origem de amarga auto-recriminação e auto-insuficiência, pois já fazia um mês que tinha estado com Ben Ata e não tinha idéia se estava ou não grávida. Pois naturalmente era fácil reconhecer esse estado, pelas reações e pela intensificação da intuição de todo o ser, e não por causa de fatores puramente físicos. Culpa, oh, culpa... mas não era culpada, e esse pen­samento era em si mesmo motivo de culpa — tão tolo, tão voltado para ela mesma, tão fixo em sua pessoa. E assim viajava Al.Ith, agitada e em conflito. Sua mente estava calma, clara e equilibrada, mas sob ela contorciam-se e gemiam e balbuciavam emoções revoltas, que lhe pareciam ridículas.

Quanto ao resto, as altas regiões nas quais normalmente ela pairava, e nas quais confiava — aquelas distâncias no seu íntimo que sabia serem seu verdadeiro ser —, bem, pareciam extremamente remotas nesses dias. Era uma criatura decaída, a pobre Al.Ith, e sabia disso.

E, durante todo o tempo, Ben Ata, Ben Ata soava no pulsar do seu sangue e no passo do cavalo.

Quando voltou à estrada que levava das fronteiras da Zona Quatro diretamente ao planalto central, através da pla­nície, voltou o cavalo para a esquerda, na direção de casa. Mas a voz inconfundível soou de súbito e com clareza em sua mente: "Volte para Ben Ata...", e, como ela hesitasse: "Vá agora, Al.Ith."

E ela dirigiu o cavalo para o leste. Ao sair da Zona Quatro, na sua dança de alívio e triunfo, jogara longe o es­cudo, feliz por se ver livre dele. Não podia entrar agora sem proteção. Como não sabia o que fazer, não fez coisa alguma: eles deviam conhecer sua dificuldade e tomariam providências. Voltava a cabeça para trás constantemente para olhar a massa imensa, o coração de sua terra com seu brilho, suas luzes, suas sombras... e agora veio-lhe um pensamento com­pletamente novo... pensava, ao mesmo tempo, nas distâncias azuis além. Assim seu belo reino aparecia na sua mente di­latado ou aumentado; antes era finito, limitado, conhecido completamente em cada detalhe, fechado em si mesmo... mas agora desdobrava-se e ondulava para fora e para cima, para além, alcançando interiores que eram como possibilidades des­conhecidas da sua mente.

Sempre que olhava para trás, obrigava-se resolutamente a virar a cabeça para a frente e enfrentar o que a esperava.

Atrás, alturas, distâncias, perspectivas; à sua frente, a Zona Quatro.

E Ben Ata. E veio-lhe à mente a idéia de que esse homem desajeitado, há pouco tempo introduzido em sua vida, era uma forma de compensação para as alturas distantes e azuis da Zona Dois mas não sorriu. Não era agora uma criatura capaz de sorrir. O que começava a observar em si mesma era um impulso completamente estranho para idéias vazias. Nunca antes, em toda a sua vida, encontrara um ser, mulher, homem, criança, sem abrir completamente seu coração, sem que o fluxo de intimidade corresse imediatamente entre eles e, agora, artes e sutilezas sobre as quais nada sabia funcionavam dentro dela, contra a sua vontade, ou pelo menos acreditava que assim fosse. Quando se encontrasse com Ben Ata, agiria assim, e assim, e assime Al.Ith imaginava olhares, sorrisos, evasivas, a oferta de si mesma. E isso a revoltava.

Quando chegou à fronteira, viu, como esperava, uma fi­gura a cavalo, mas não era Jarnti, nem Ben Ata. Montada em uma bela égua castanha, lá estava uma mulher forte, os cabelos escuros trançados em volta da cabeça, como um dia­dema. Seu olhar era franco e honesto. Mas parecia insegura, toda ela expressava a necessidade de ser aceita, o que eviden­temente se esforçava por ocultar. Na parte da frente da sela pesada, a indispensável sela da Zona Quatro, Al.Ith viu dois objetos alongados de metal brilhante: o escudo para Al.Ith.

Sou Dabeeb, mulher de Jarnti disse ela. Ben Ata mandou que eu viesse.

As duas mulheres, cada uma em seu cavalo, examinaram-se com amistosa franqueza.

Dabeeb viu uma mulher bonita e esguia, o cabelo caindo-lhe pelas costas e olhos tão calorosos e tão cheios de bondade que teve ímpetos de chorar.

Al.Ith viu uma mulher bela que, em sua Zona, seria designada, imediatamente, para uma função da maior responsabilidade — no entanto, ali ela tinha a marca inconfundível da escrava.

Os olhos de Dabeeb não deixavam o rosto de Al.Ith, à procura de censura ou repúdio. Punição mesmo... contudo, na verdade ela estava, por assim dizer, desmanchando-se em sinceridade e simpatia.

Está tentando imaginar por que estou aqui, minha se­nhora?

Não... por favor, não! Meu nome é Al.Ith... — e a lembrança dos costumes de sua Zona fez com que todo o seu ser se encolhesse de dor.

É difícil para nós — observou Dabeeb. Mas sua voz tinha um tom de auto-respeito obstinado, que chamou a aten­ção de Al.Ith.

Nunca ouvi o nome Dabeeb antes.

Significa uma coisa amaciada com pancada.

Al.Ith riu.

Sim, é verdade.

E quem o escolheu para você?

Minha mãe.

Ah... compreendo.

Sim, ela gostava de uma piada, gostava mesmo.

Você sente falta dela! — exclamou Al.Ith, vendo lágrimas nos olhos de Dabeeb.

Sim, sinto. Ela compreendia as coisas como elas são, assim era a minha mãe.

E fez de você uma mulher forte — a que foi amaciada com pancada.

Sim. Como ela mesma. Sempre ceder, mas nunca dar-se por vencida. Era o que ela dizia.

Por que está aqui sozinha? Não é incomum uma mu­lher viajar sozinha?

É impossível — disse Dabeeb. — Nunca acontece. Mas acho que Ben Ata quis agradar-lhe... e tem mais. Jarnti estava pronto para vir encontrá-la...

Muito delicado da parte dele.

Um leve sorriso malicioso.

Ben Ata ficou com ciúmes... — um olhar rápido para ver como suas palavras eram recebidas. E ficou imóvel, a cabeça levemente abaixada, mordendo os lábios.

Com ciúmes? exclamou Al.Ith. Não conhecia a palavra, mas lembrou-se então de tê-la visto nas velhas crô­nicas. Tentando compreender o seu significado nesse contexto, viu que Dabeeb corara e parecia insultada; Dabeeb pensou que Al.Ith não considerava Jarnti à altura dela.

Acho que nunca senti ciúmes. Não estamos preparados para essa emoção.

Então, são muito diferentes de nós, minha senhora.

As duas mulheres atravessaram juntas o desfiladeiro. Avaliavam-se mutuamente, com todos os sentidos que possuíam, visíveis e invisíveis.

Os sentimentos de Dabeeb fizeram-na exclamar, depois de algum tempo:

Oh, queria ser como a senhora, oh, se pudesse ser como a senhora! É livre! Deixaria que a acompanhasse quan­do voltar para casa outra vez?

Se for permitido e ambas suspiraram, sentindo o peso da Ordem.

E Al.Ith pensava que essa mulher possuía uma força, algo obstinado e duradouro; sofrimentos e dores que Al.Ith sequer imaginava a tinham feito assim. Estava curiosa, ansiosa para conhecê-la melhor. Mas não sabia fazer as perguntas ou que perguntas fazer.

Se você, uma mulher, pode vir encontrar-se comigo com a permissão de Ben Ata, isso significa que as mulheres agora terão maior liberdade?

Ben Ata deu permissão. Meu marido não. E deu uma risada breve e maliciosa, que Al.Ith sabia agora ser característica.

Então, o que ele vai fazer agora?

Bem, estou certa de que descobrirá um modo de se fazer sentir.E esperou que Al.Ith a acompanhasse em uma das suas típicas risadas.

Acho que não compreendo o que quer dizer. — Mas, notando a expressão divertida e paciente de Dabeeb, compreendeu.

Já pensou em se revoltar?

Dabeeb abaixou a voz:

Mas é a Ordem... não é?

Eu não sei.

Não sabe?

Estou descobrindo que não sei muita coisa que pen­sava saber. Por exemplo, sabe quando uma mulher está grá­vida?

Naturalmente, você não?

Sempre soube, até agora. Mas não sei, neste momento. Não aqui.

Dabeeb compreendeu imediatamente, assentiu com a ca­beça, e disse:

Compreendo. Bem, a senhora não está grávida, posso garantir.

Bem, isso já é alguma coisa.

Está planejando não engravidar? — E mais uma vez ela baixou a voz, lançando olhares furtivos para os lados, em­bora estivessem na entrada dos campos e canais e não houvesse vivalma por perto.

Acho que usamos a palavra planejar de modo di­ferente.

Podia me ensinar? — veio o murmúrio quase inau­dível, abafado pelo ruído dos cascos dos cavalos na estrada de terra.

Eu lhe ensinarei o que puder. O que for permitido.

— Ah, sim... eu sei. — E o suspiro que deixou escapar

dizia tudo o que Al.Ith precisava saber sobre as mulheres da Zona Quatro.

Resignação, aceitação. Humor. E sempre, no fundo des­sas armaduras de vigilância, paciência e humor, o aguilhão permanente de uma terrível carência.

Al. Ith fez seu cavalo parar. Dabeeb parou também. Al.Ith estendeu a mão. Depois de uma breve luta contra as cautelas e resistências, Dabeeb estendeu a sua. Al.Ith mur­murou:

Eu lhe direi tudo o que puder. Ajudarei no que puder. Serei sua amiga. Tanto quanto possível. Prometo. Pois sentira que as palavras eram necessárias. Esse tipo de pa­lavras. Jamais as usara na Zona Três, jamais imaginara que fosse preciso usá-las. Mas, agora, via as lágrimas descendo dos belos olhos de Dabeeb e orvalhando as faces coradas. As palavras eram certas e necessárias.

Obrigada, Al.Ith murmurou ela, com voz embar­gada.

Quando chegaram ao ponto da estrada de onde se avis­tava o pavilhão, Al.Ith disse:

Gostaria que me emprestasse um dos seus vestidos. Ben Ata acha que não me visto adequadamente.

Dabeeb olhou com apreciação para o vestido vermelho- escuro bordado que Al.Ith estava usando e respondeu:

Esse é mais bonito do que qualquer um da nossa Zona. Mas eles não vão entender isso, nem em um milhão de anos! Falou com a indulgência afetuosa que Al.Ith jamais pensaria em usar referindo-se a um adulto. E havia também em suas palavras um terrível desprezo. Você é elegante, Al.Ith. Gostaria de saber ser elegante...

E olhou para o próprio vestido, de fazenda estampada, bonito, mas sem o encanto e a elegância das roupas da Zona Três.

Não precisa se preocupar com isso. Todos estão co­mentando as roupas que Ben Ata encomendou na cidade para você. Os armários estão cheios... embora não possa imaginar o que vai fazer com elas.

Quando chegaram à subida da colina, onde começavam as fontes e os jardins, Dabeeb inclinou-se para o lado e abraçou Al.Ith com emoção.

Pensarei na senhora. Todas nós, todas as mulheres, estamos com a senhora, não se esqueça! E desceu a colina, suas lágrimas espalhando-se no vento, como chuva.

Al.Ith cavalgou lentamente até o fim dos jardins, des­montou, mandou que Yori fosse para a cocheira e caminhou atravessando os jardins, olhando para os pavilhões, esperando o momento de ver Ben Ata. Sentia a mais notável constelação de emoções estranhas, que, examinadas como um todo, definiam-se como uma espécie de antagonismo que não conhecia. E uma espécie de zombeteiro divertimento: "Vou lhe mostrar!" E mais: "Acha que vai me vencer!"

Não era animosidade contra Ben Ata, mas um desafio agradável e combativo.

Esperava mesmo ansiosamente pelo encontro, para que esse novo relacionamento pudesse começar. Não havia lágrimas no seu horizonte, naturalmente que não!

Estava completamente confiante e calma, todos os seus poderes controlados e prontos para serem usados.

Havia também nela um fundo de invencibilidade que reconheceu porque o sentira e avaliara em Dabeeb durante toda a travessia da planície.

Nesse estado de espírito, esperava o encontro com Ben Ata.

Este estava encostado na coluna central, braços cruzados, numa pose que refletia os pensamentos de Al.Ith. Ele sorriu, severo e zombeteiro.

Gostou da sua acompanhante? perguntou, fazendo-a lembrar-se de que ele sentira ciúmes.

Muito. Não tanto quanto teria apreciado a companhia do belo Jarnti, naturalmente.

Ele adiantou-se rapidamente com os olhos brilhando e Al.Ith percebeu que Ben Ata estava a ponto de agredi-la. Mas ele sorriu, e o sorriso dizia que Al.Ith pagaria por isso, mais tarde, e estendeu as duas mãos. Al.Ith segurou-as, balan- çando-as levemente, de um lado para outro, com um sorriso divertido.

É um belo vestido observou Ben Ata, pois tinha resolvido ser gentil.

Então, gosta de vermelho?

Acho que gosto de vocêdisse ele, abraçando-a, a contragosto, pois, na verdade, gostava dela cada vez menos. Deixando que seus sentidos o informassem que essa mulher provocante de vestido vermelho podia muito bem vir a agradar-lhe, Ben Ata esquecia-se da independência dela, que se expressava em cada sorriso, olhar, em cada gesto.

Al.Ith afastou-se, deslizando levemente para o outro lado do quarto, com um olhar de desafio lançado sobre o ombro que a deixou atônita — não compreendia o que se passava com ela! E Ben Ata, para provocá-la, não a seguiu. Ficou imóvel, uma figura imensa com a túnica verde curta, o cinto de couro, os braços cruzados. Al.Ith então, sorrindo "enigma­ticamente" — e ficou assombrada ao sentir esse tipo de sorriso nos próprios lábios —, colocou as mãos nos lados da coluna e balançou o corpo de leve, num movimento extremamente pro­vocante. Ben Ata ficou excitado, mas não pretendia ceder.

Ele sorria, ela se balançava...

Na noite em que Al.Ith o deixara, há tantas semanas, Ben Ata voltara relutante, à meia-noite, depois de ter se acal­mado com a companhia dos soldados, e não a encontrara. Fu­rioso, compreendeu que ela havia obedecido a ordens, e sentiu-se invadido por uma carência, uma necessidade, uma incapacidade que não sabia diagnosticar ou suprir. Não sentia falta de Al.Ith, disso tinha certeza.

Ben Ata era, acima de tudo, um homem minucioso.

Compreendera que tinha pouco conhecimento de certas práticas; na verdade, que seu conhecimento era falho em muitas coisas.

Desprezava os homens que freqüentavam a parte baixa da cidade; para ele era uma forma de auto-indulgência. Mas, agora, era para onde se dirigia. Depois de interrogar metodicamente Jarnti e outros oficiais, foi a um certo estabelecimento e pediu uma entrevista com a madame. Ela compreendeu o motivo dessa visita assim que ouviu dizer que Ben Ata ia procurá-la. Mas ouviu as explicações dele, constrangidas mas precisas, com um leve sorriso.

Levou-o a um quarto onde o esperava uma mulher à qual tinham sido dadas instruções detalhadas, pois a capacidade e as falhas de Ben Ata haviam sido discutidas, em todo o país, pelas mulheres. Afinal de contas, tantas campanhas, treinamento militar, tantos saques, estupros e pilhagens haviam dei­xado muitas mulheres violentadas ou desiludidas para comentar o assunto.

Ben Ata foi instruído nas artes do amor por uma mulher tão experiente que o surpreendeu. Não se pode dizer que tenha sido inteiramente do seu agrado essa prolongada dedicação ao prazer, pois continuava a considerar o ato como ocupação pouco masculina.

Mas a verdade é que Ben Ata mergulhara nos prazeres, o único jeito de descrever o que acontecera durante o mês em que Al. Ith percorreu seu reino, procurando saber o estado das coisas. Ele aprendeu, como se fosse em uma escola, uma imensa variedade de noções sobre a anatomia, as possibilidades, as potencialidades do corpo do homem e da mulher. Não foi um aluno exemplar. Mas também não era dos piores, e quando se decidia por alguma coisa ia até o fim.

Essa cortesã — pois não era uma prostituta comum —, escolhida entre muitas pela dona do bordel, viera de outra cidade, por causa de sua reputação, e ensinou a Ben Ata tudo o que sabia.

O que Elys conseguiu em um mês de trabalho duro foi ajustar a mente de Ben Ata para a idéia de que o prazer pode ser multifuncional. Essa era pelo menos a noção básica.

Ele pensava que agora sabia tudo o que havia para saber.

Mas, no momento em que Al.Ith entrou, graciosa e provocante, ele lembrou-se de algo que tinha afastado comple­tamente da lembrança durante aquele mês enervante. Os beijos leves, furtivos, excitantes, aos quais não soube corresponder, ha­viam desaparecido de sua mente. O convite, a resposta e per­gunta, a reação mútua, a contra-resposta — nada disso fazia parte dos ensinamentos da cortesã Elys, pois jamais em sua vida ela tivera esse tipo de relacionamento com um homem ou mulher.

Enquanto Al.Ith balançava-se com leveza e graça, sor­rindo e esperando, ele compreendeu que tinha de começar tudo de novo. Não havia outra saída. Não podia recusar, pois aquele mês como aprendiz entusiasmado era uma aceitação do que estava para acontecer.

Ben Ata estava desafiando e antagonizando uma igual seu olhar revelava isso. Então, ela afastou-se da coluna, aproximou-se dele e começou a ensiná-lo a ser igual e a se pre­parar para o amor.

Foi extremamente chocante para ele, porque viu-se expos­to a prazeres que sequer tinha imaginado com Elys. Não havia comparação possível entre a sensualidade pesada da cortesã e as mudanças e sensações desses ritmos. Estava exposto não somente a respostas físicas que jamais imaginara, mas, o que era pior, a emoções que não desejava sentir. Viu-se mergulhado em ternura, paixão, nas selvagens intensidades que não sabia se eram dor ou prazer... e tudo isso enquanto ela, completamente à vontade, em seu próprio país, conquistava-o mais e mais, um companheiro decidido mas inquieto.

Naturalmente, ele não agüentou muito tempo. A igual­dade não se aprende em uma ou duas lições. Por natureza, suas reações eram lentas e pesadas; sempre seria assim. Impos­síveis sempre seriam para ele os prazeres mercuriais. Mas, den­tro dos seus limites de resistência, fora introduzido a potencialidades muito além de tudo o que julgava possível. E, quando desistiram, ele meio aliviado e meio desgostoso com a inter­rupção das intensidades, ela não permitiu que Ben Ata deixasse o plano de sensibilidade que haviam atingido. Fizeram amor a noite toda, e no dia seguinte, e não pararam para se alimentar, embora tivessem pedido vinho, e quando afinal estavam inteira e completamente unidos, de modo que não poderiam distinguir, pelo tato, onde um começava e o outro acabava, sendo pre­ciso para isso a ajuda visual, caíram num sono profundo que durou outras 24 horas. E, quando acordaram, ao cair da noite, ouviram batidas de tambor vindas do jardim e sabiam que era o sinal, para todo o país, de que o casamento fora consumado. E o tambor deveria tocar sempre que se encontrassem, até ter­minarem, para que todo o povo soubesse que estavam juntos e compartilhasse do casamento, em espírito, em apoio e natu­ralmente, em emulação.

Ficaram abraçados como se estivessem nas profundezas do mar. Mas agora começava o lento e cauteloso afastamento da carne, a coxa da coxa, o joelho do joelho... era quase noite e embora ambos sentissem que suas personalidades co­muns não estavam de acordo com as maravilhas dos dias e noites que tinham passado, felizmente não percebiam nenhuma dissonância, pois já não podiam acreditar no que tinham feito. Ele, com um movimento terno e quase de desculpas, retirou o braço de sob o pescoço dela, sentou-se, depois levantou-se, espreguiçando-se. Havia alívio em cada movimento daqueles músculos fortes, e ele sorriu na semi-obscuridade. Quanto a ela, voltava a si do mesmo modo. Mas evidentemente ele acha­va que seria pouco delicado deixá-la imediatamente, e, envol­vendo-se em sua capa militar, sentou-se nos pés da cama.

Se nos arrumarmos um pouco, podemos nos encontrar para jantar disse ele.

Que ótima idéia! — Ela já estava na porta dos seus aposentos, pois tinha saído da cama sem que ele percebesse. E Al.Ith saiu do quarto.

Nada tinha mudado, exceto um armário, que cobria a parede inteira, agora repleto de vestidos, peles, pelerines. Al.Ith jamais vira coisa igual, e, resmungando que se tratava sem dúvida de um depósito de roupas para um exército de prostitutas tinha aprendido a palavra com ele —, começou a tirar tudo, peça por peça, de dentro do armário. As fazendas eram de boa qualidade, e ela examinou sedas, cetins, lãs, com a experiência de uma profissional sem dúvida este país sabia fabricar tecidos. Mas ficou estupefata com o mau gosto dos modelos. Não conseguia encontrar um que não fosse exagerado, de um modo ou de outro, que não fosse feito para enfatizar as nádegas ou os seios, ou expô-los, ou apertá-los incomodamente, ou, então, a cor ou a fazenda não combinavam com o estilo. Não havia o sentimento instintivo da combinação certa entre o modelo e a fazenda, e nenhuma su­tileza. Sentindo, porém, que a sedução imediata não era a ordem do dia ideal para as circunstâncias, escolheu um robe verde discreto que a deixou atônita por sua incrível disparidade em todos os sentidos, mas era o melhor de todos. Tomou banho, penteou o cabelo, procurando imitar o penteado de Dabeeb um estilo muito feminino, talvez —, e vestiu o robe verde. Então, voltou ao quarto central, onde Ben Ata a espe­rava, taciturno, sentado à pequena mesa perto da janela. Ao ver o vestido seus olhos brilharam, mas logo pareceu desa­pontado.

É um dos nossos? perguntou, duvidando.

E ela respondeu:

Sem dúvida, grande rei. E trocaram um sorriso ami­go e compreensivo dos que estão realmente unidos. Olhando-se agora, de volta às suas dissociações absolutas, aos seus outros eus, esses dois habitantes de reinos diferentes não podiam acre­ditar no que haviam conquistado durante aquelas horas de imersão completa um no outro. Para ele, ela era novamente uma mulher estranha, tudo nela diferente, embora querido, o que o afastava mais do que o unia, pois Ben Ata temia, no mais íntimo do seu ser, o que ela poderia fazer com ele. E Al.Ith, olhando para aquele soldado grande e forte, com o cabelo molhado ainda do banho, pensava que na verdade devia se congratular por ter conseguido levá-lo tão longe.

Mentalmente pediram uma refeição substancial e, durante algum tempo, comeram avidamente.

Enquanto isso, o tambor no jardim, batendo, batendo, batendo.

Assim que terminaram a refeição, levantaram-se e caminharam no jardim, de uma extremidade a outra. Não viram tambores. Mas o som ali estava... em algum lugar... aqui?, .. não, ali, pareciam sempre a ponto de chegar à origem do som, mas nada encontravam.

Compreendendo que jamais saberiam de onde vinham as batidas, voltaram ao pavilhão. Não de mãos dadas. Nem mesmo muito próximos um do outro. Ambos sentiam-se fechados, com­pletos, contidos em si mesmos, cada um absolutamente impe­netrável àquele e àquela pessoa estranha.

Entretanto disse ela, como se continuasse uma con­versa —, sem dúvida estou grávida.

Está? Tem certeza? Esplêndido! Sentindo que seria adequado pelo menos um abraço, ele fez menção de se aproximar, mas, vendo que Al.Ith absolutamente não precisava disso, interrompeu o gesto.

Naturalmente estou certa.

Por quê? Como?

Como as mulheres do seu país sabem, não como no meu país. — E ela riu. Riu, enquanto ele a observava poli­damente, esperando que parasse de rir.

Bem, ótimo, estou encantado.

Eu também, uma vez que provavelmente é o que espe­ravam de nós.

Tem certeza?

Não, é claro que não. Não tenho certeza de nada.

O que devemos fazer agora?

Como vou saber? Mas talvez eles queiram que eu volte para casa.

Ao ver a expressão de alívio no rosto dele, Al.Ith deu uma gargalhada, com o dedo indicador apontado para ele, e Ben Ata compreendendo que ela sentia a mesma coisa, co­meçou a rir também. Quando terminaram de rir viram que faltava muito ainda para a meia-noite, e que, livres um do outro, certamente se separariam.

Xadrez? — sugeriu ele.

Por que não?

Ele ganhou uma partida, ela ganhou a outra. Eram muito bons, na verdade mestres nesse jogo, nos respectivos reinos. Sendo assim, as partidas foram demoradas e o dia raiava quando terminaram.

Os dois imaginavam (esperando que o outro não adi­vinhasse) se seria adequada outra sessão amorosa, mas re­solveram que não era.

Mais uma vez, caminhando entre a bruma e as fontes do jardim, com a batida constante do tambor em todo o lugar, no seu sangue, em suas mentes, ela chamou a atenção de Ben Ata para as fileiras de soldados em formação entre a névoa da baixada. Al.Ith observou o rosto dele, respeitando o que via: o conhecimento completo do que se passava lá embaixo, e ela sabia que ele estava criticando e aprovando, dando ordens, dirigindo a perfeição do seu trabalho, o exército.

E quem são — perguntou ela com sinceridade — os seus inimigos?

Ben Ata ficou tenso, e ela compreendeu que ele estivera pensando desde que ela fizera a pergunta a Jarnti, que re­petira suas palavras ao rei, em tom zombeteiro, mas intima­mente perturbado.

Não temos inimigos, então para que temos exércitos? — perguntou ele, com seriedade, referindo-se à pergunta dela.

Contra quem lutam?

Ele continuou tenso e ficou silencioso por algum tempo. Al.Ith sabia que Ben Ata recordava-se das pilhagens e rapinagem de muitas campanhas, pensando se tudo isso não fora feito à sombra de uma idéia errônea...

Nós não somos seus inimigos — não é possível a uma pessoa da Zona Três cruzar a fronteira sem sentir os efeitos do ar — no entanto, vocês mantêm fortes em toda a extensão dos nossos limites, o mais próximo que podem chegar, sem que os soldados sintam os efeitos do nosso ar.

Ben Ata ergueu os ombros rapidamente, de forma estranha.

Há quanto tempo foi dado pelo menos um tiro de advertência nas fronteiras?

Ele riu brevemente, concordando.

Há tanto tempo que nem nos lembramos. Mas, veja bem, às vezes prendemos um espião... e o deixamos ir, depois.

Ela riu.

Então, para quê?

Temos exércitos grandes e eficientes.

Lá embaixo, entre a névoa dourada que se erguia quase verticalmente no ar, dissolvendo-se mais ou menos ao nível da pequena colina onde estavam, os soldados, com suas vestes co­loridas e armaduras brilhantes, marchavam e davam voltas, e ó som áspero das ordens parecia perder-se ao mesmo nível, como se névoa e som fossem uma só coisa.

E a Zona Cinco? Têm fortes lá? Uma fronteira?

E escaramuças, até mesmo batalhas.

Al.Ith espantou-se; esquecera-se de que havia guerra na Zona Cinco.

Naturalmente — disse ela. — Mas, naturalmente...

Sim, eu sei. — Desajeitado, embaraçado, apologético, como se estivesse em falta com ela e não com Eles — os Pro­vedores e os que emitiam as Ordens —, ele gaguejou: — Tenho pensado nisso desde que você tocou no assunto. É verdade... naturalmente, não se espera que cheguemos a lutar...

Batalhas de verdade?

Sim. Bem... nada muito sério...

Feridos? Mortos?

Feridos e mortos.

Al.Ith deixou escapar um suspiro longo e desalentado.

A expressão dele era consternada:

Sim, eu sej. Mas juro... aconteceu aos poucos. Nunca pensei... nenhum de nós jamais pensou... foi só quando você... — E Ben Ata bateu violentamente com o punho fe­chado no parapeito baixo do lago.

Quem começa a luta? A batalha? O povo desta Zona pode passar para a outra e voltar sem prejuízo ou perigo?

Em certa época tenho certeza de que era impossível passar de uma Zona para a outra, como acontece hoje entre a sua Zona e a nossa, sem escudos. Mas alguma coisa parece ter mudado. Não estou dizendo que seja fácil. Não há movi­mento em grande escala na fronteira. Nem freqüente. Mas a luta ocorre ao longo dos limites, às vezes deste lado, às vezes do outro... nunca muito no interior da Zona deles.

Você esteve lá?

Sim. Mais de uma vez.

E como é a Zona Cinco?

Ele estremeceu e passou as palmas das mãos nos braços, para aquecê-los. Sua aversão pela Zona Cinco o fizera empa­lidecer.

É tão ruim assim? disse ela, não sem ironia, pois sabia que era exatamente o que nós, da Zona Três, sentíamos pela Zona Quatro. Ele percebeu a ironia, assentiu com a cabeça e abraçou-a carinhosamente.

Sim, é tão ruim assim.

E, puxando-a para si, apoiou o rosto no cabelo dela mur­murando:

Mas o que vamos fazer, Al.Ith? O quê? Basta meu erro de só agora começar a pensar nisso.

Como eu fiz em relação às deficiências da nossa Zona. Sabe, Ben Ata, não tive tempo de lhe contar, mas percorri todas as regiões mais distantes da nossa Zona, depois que o deixei...

Sozinha? perguntou ele, com voz áspera e incrédula, instintivamente, e não pôde deixar de rir quando ela respondeu calmamente:

Naturalmente, sozinha, porque eu quis assim... mas não se trata disso, Ben Ata. Quando estava em uma parte alta do país, abaixo do maciço central, de onde avistava toda a região noroeste, vi... mas a verdade é que nenhum de nós fazia isso há muito tempo, tanto que nem sabemos quando foi a última vez. Vocês precisam de capacetes punitivos para evitar que seu povo olhe naquela direçãoe ela o fez voltar-se, de modo que os olhos deslumbrados de Ben Ata se erguessem para as grandes montanhas da Zona Três, nesse momento com todas as cores da opala de fogo. Seu povo não deve olhar para lá, não, fique atento, Ben Ata, porque nosso povo nunca olha para além das nossas fronteiras sem punições ou reprimendas. E nunca nos ocorre olhar. Somos muito prósperos, muito felizes, tudo é tão confortável e agradável entre nós, Ben Ata... não sei o que dizer ou o que pensar... — e ela ficou atônita, chocada mesmo ao perceber que lágrimas lhe corriam pelo rosto, enquanto Ben Ata se curvava para ela, esquecendo os altos picos de cores fascinantes, confortando suavemente aquelas lágrimas estranhas. Chegou a enxugar uma lágrima com o dedo forte, olhando depois para ela como se fosse diferente de todas as outras lágrimas que já tinha visto.

Nas canções, nos quadros e na história, esta cena é conhe­cida como "A Lágrima de Al.Ith". O povo acredita que re­produz as ternas emoções do casal, quando Al.Ith disse que estava grávida, mas a verdade é exatamente como acabei de contar.

Lá estava Al.Ith, acalentada ao peito forte daquele ho­mem, aconchegada e contente, soluçando, como tão freqüente­mente tinha vontade de fazer naqueles dias. O fato de ela não acreditar na eficácia das lágrimas não impedia que lhes aproveitasse o conforto, enquanto duraram.

Quanto a ele, estava satisfeito por ver que essa mulher tão auto-suficiente era capaz de chorar, como qualquer outra, e ao mesmo tempo não podia acreditar. Não estava de acordo com o que sabia dela, e sentiu-se aliviado quando ela se levantou, fungou, enxugou o rosto com as duas mãos e mais uma vez ficou ao lado dele no parapeito.

E como é a Zona Dois? — perguntou ele.

Você sabe mais sobre a nossa Zona do que eu lhe posso dizer sobre a Zona Dois. Tudo o que sei é que a gente olha, olha e nunca parece ser o bastante. É como se olhássemos para névoas azuis — ou água... ou... mas é azul, azul, um azul jamais visto...

Bem, não vejo a utilidade disso — observou ele —, não se realiza nada olhando.

Precisamente o que ela esperava dele; Al.Ith deu uma gargalhada, e Ben Ata acompanhou-a: e isso os levou de volta ao leito. A troca de carícias não foi de modo algum igual à dos últimos dias, mas uma confirmação de que era ainda possível — pois suas diferenças eram tão grandes que ambos constantemente eram assaltados pela sensação de espanto por estarem juntos. E assim sentiriam até o fim.

Era meio-dia outra vez; um dia úmido e quente, e ela o escandalizou ao entrar nua em uma das fontes. Ben Ata jamais pensara nas fontes nesse sentido, mas juntou-se a ela, embora sem o abandono de Al.Ith. Queixou-se de que os peixinhos lhe faziam cócegas, disse que estavam perturbando os peixes e que, além disso, "se alguém os visse..."

Mas, quem?

Aquele tambor — queixou-se ele. — Deve haver alguém por aí, é lógico — pois o tambor continuava sem parar, não importa o que dissessem ou fizessem.

O que devemos fazer — disse ela, quando, já vestidos, estavam sentados à pequena mesa — é isto. Você sabe que houve um tempo em que não era possível a mistura entre a Zona Quatro e a Zona Cinco. Agora, vocês se misturam... até lutam. Portanto, o que aconteceu? Precisamos descobrir. E, depois, descobrir para que serviam seus exércitos, originalmente. Por que vocês têm exércitos? Toda a riqueza da sua terra é absorvida pelo exército. Não admira que sejam tão pobres.

Nós somos pobres? O que quer dizer?

Ben Ata, vocês são pobres! Não sabem disso, mas são patéticos! O mais pobre pastor do nosso reino vive melhor do que você, o rei. Quanto às roupas naqueles armários! Oh, não estou dizendo que não sejam resistentes e bem-feitas... ou pouco adequadas. Para a finalidade a que se destinam. Mas não são roupas consideradas dignas de uma rainha, de acordo com as suas idéias — pois acham naturalmente que uma rainha deve usar um tipo de roupas, e a mulher de um soldado, outro...

Naturalmente. Deve haver uma hierarquia.

Naturalmente. Segundo vocês. Mas eu lhe digo que não é necessário. Por que precisam ter patentes e hierarquia? Por que são tão pobres? Por que precisa usar esse broche enorme prendendo sua capa, que indica que você é Ben Ata? Entre nós, todos sabem que eu sou Al.Ith. E saberiam se me ves­tisse de andrajos. Não compreende? Vocês são pobres, um povo pobre, Ben Ata. Tudo o que vi enquanto cavalgava até aqui oh, não falo deste pavilhão, que foi criado para esta ocasião e que provavelmente desaparecerá quando nos se­pararmos...

Vamos nos separar outra vez?

Mas, naturalmente! O que está imaginando? Que fi­caríamos juntos para sempre, Ben Ata? Estamos aqui para um determinado fim para curar nossos países e descobrir onde foi que erramos e o que devemos fazer, o que na verdade já devíamos estar fazendo...

Ela estava inclinada para a frente, fitando-o com um olhar persuasivo e apaixonado.

Ben Ata, recostado na cadeira, observava-a com sarcasmo. Sentia-se ofendido. Jamais lhe passaria pela mente a idéia de que seu país pudesse ser descrito como uma terra pobre ou que fosse considerado atrasado e carente pelos estrangeiros. Não lhe importava que essa mulher o achasse rude e inculto como evidentemente ela o achava. Era um soldado! Soldados eram... soldados. Mas seu reino, sempre o considerara um modelo. Sentia-se frio e indiferente com ela. E furioso, ao mesmo tempo. Fitava os olhos brilhantes de Al.Ith, o rosto iluminado, como se estivessem muito distantes separados por uma distância de total repúdio.

Subitamente, Ben Ata levantou-se e começou a andar pelo quarto furiosamente.

Você disse que o que importa é o luxo, você disse isso. Conforto. Facilidades. Tudo... você disse, você disse...

Sim, é verdade. — E naturalmente ele insistiu, uma admissão seria fraqueza, e Ben Ata, de pé, ria zombeteiramente apontando para ela.

Você é como um garoto crescido, Ben Ata — disse ela, erguendo-se da cadeira. — Quando somos ricos e temos tudo, isso só é prejudicial quando nos faz esquecer os obje­tivos importantes. Mas seu país é pobre e bárbaro porque toda a riqueza é absorvida pela guerra — uma guerra inútil, estúpida, sem sentido... — estava na frente dele, desafiando-o.

O ódio de Ben Ata culminou no gesto de erguer a mão para agredi-la. O punho enorme, quase do tamanho da cabeça de Al.Ith, estava pronto para o golpe — ela não se moveu, apenas olhou para ele.

Ben Ata, sou muito mais fraca do que você e pode fazer o que quiser, se usar violência. Não posso impedi-lo. E aqui, no seu estranho país, não posso fazer uso da verdadeira força para evitar...

Naturalmente ele tinha agora de levá-la para a cama e tratá-la como costumava tratar as mais fracas mulheres das suas noites de pilhagem.

Al.Ith não resistiu, mas virou a cabeça para o lado e fechou os olhos, ausentando-se completamente, como se esti­vesse morta.

Ben Ata estava violentando uma mulher morta, pelo menos era o que sentia. E odiava-se por isso. E odiava-a por forçá-lo a esse ato. Então, lembrou-se que ela estava grávida e que podia prejudicar o feto. Tudo isso evitou que repetisse o pro­cesso, o que teria feito em circunstâncias normais. Rolou o corpo para o lado, trêmulo com a aversão que sentia, e disse:

É isso. É isso.

No silêncio, ambos ouviram o silêncio dos tambores.

Al.Ith levantou-se com dificuldade, foi para seus apo­sentos e voltou, quase que imediatamente, com seu vestido vermelho. Não olhou para ele.

Não pode ir sem que eles ordenem — disse Ben Ata, violento e ameaçador.

O tambor parou, não ouviu? — respondeu ela com voz sem vida.

Al.Ith saiu do quarto e chamou seu cavalo. Imediata­mente ouviu-se o ploque-ploque dos cascos no jardim, entre as fontes.

Então, não volte — disse ele, vencido. Não podia acre­ditar no que estava acontecendo. Não conseguia combinar a primeira parte das suas relações com o que acabava de fazer.

Era como se tivesse estado na borda de uma paisagem que jamais imaginara existir e que agora desaparecia.

Pode voltar às suas malditas prostitutas — disse ela, montando em Yori. E acrescentou imediatamente, ouvindo as próprias palavras, que não eram suas, mas da Zona Quatro: — Oh, preciso sair deste lugar horrível — atingindo-o em cheio com a sinceridade das mesmas.

Al.Ith afastou-se a galope. Ben Ata apressou-se em apa­nhar seu cavalo e galopou atrás dela, alcançando-a quando já estava quase na metade da estrada que ia para oeste. Os dois animais, um branco e um preto, voavam lado a lado, e, como era o fim da tarde, havia luz ainda e muita gente nas estradas e nos barcos dos canais. Viram a rainha da Zona Três caval­gando como "um demônio" e o rei perseguindo-a, "pálido como a morte, o pobre homem".

Mas isso foi só na primeira parte da estrada, pois Al.Ith não levara o escudo e, perto da fronteira, inclinou-se para a frente, quase perdendo os sentidos, e agarrou-se à crina de Yori, sabendo que se desmaiasse morreria. Yori, sentindo que ela re­laxava o corpo, diminuiu o passo e caminhou cuidadosamente, e Ben Ata, vendo sua mulher quase inconsciente, tirou-a do cavalo e carregou-a nos braços. As pessoas que estavam na estrada contaram que a rainha desfaleceu de desgosto por ter de deixar a Zona Quatro e que o rei a embalou "como a uma criança" e que ambos choravam enquanto seguiam para a fron­teira.

Yori acompanhou o rei. Na fronteira, Ben Ata a colocou no chão, no lado da Zona Três — não muito longe de sua própria terra, porque não podia entrar sem proteção no reino de Al.Ith, e, logo que ela deu sinais de voltar a si, afastou-se um pouco, a mão no ombro da mulher, ajudando-a a se equi­librar. Ao abrir os olhos, tudo o que Al.Ith encontrou foi o negrume da noite e o vento que sempre soprava de leste na sua Zona e que a impelia para a frente. Viu Ben Ata pálido e carrancudo e pensou que ele estava zangado; não percebeu que ele se preocupava com ela.

Yori estava ao seu lado; montou-o e mulher e cavalo desapareceram na noite como uma folha na tempestade. E Ben Ata voltou aos seus acampamentos, pensando se a mandariam para ele outra vez.

Al. Ith não tinha cavalgado por muito tempo quando, de­pois de pensar profundamente e com simpatia, compreendeu o que Ben Ata fizera e desejou poder dizer-lhe que sabia que ele a tinha carregado através da fronteira colocando-a a salvo em sua terra, dizer-lhe que compreendia que a violência cometida contra ela era tão inacreditável para ele quanto era para ela o fato de ter criticado e acusado duramente o seu país!

Como podia ter feito isso! Ela, Al.Ith, incapaz de uma palavra cruel ou descuidada para qualquer pessoa do seu reino! Contudo, para esse 'homem que não era mais culpado do que ela própria, que era — não por escolha sua — o rei daquela terra triste, úmida e empobrecida, deixara que o veneno impreg­nasse as suas palavras.

Ele de volta aos seus exércitos, ela cavalgando para a sua capital, pensavam um no outro com compaixão.

Quando chegou ao topo do desfiladeiro que unia a pla­nície ao planalto, parou e olhou as montanhas à sua volta. Passara toda a vida entre essas montanhas, e a observação das mudanças que sofriam, de acordo com a situação atmosférica, fora sempre repouso e alimento para seu espírito. Agora, fazendo o cavalo girar lentamente, via-as como sempre as vira — mas também como lhe tinham parecido nas terras baixas, quando as contemplara com Ben Ata. Sabia que nesse momento ele estava com os olhos fitos nos altos picos, apesar da proibição de suas leis. Ben Ata não poderia deixar de fazê-lo. E seus oficiais, vendo-o perdido em si mesmo, no meio das barracas e das cercas do acampamento, iam olhar um para o outro com as sobrancelhas erguidas e, depois, levantariam os olhos e, em seguida, os soldados. Al.Ith pensava agora que as mulheres deviam ser as depositárias de muitas crenças secretas. Provavelmente muitas delas, quando não estavam sendo observa­das, contemplavam o céu de oeste, onde as neves das mon­tanhas se confundiam com as nuvens.

E lembrou-se de uma canção sim, ouvira-a distrai­damente quando estava nos braços de Ben Ata, mas o bastante para recordar-se das palavras agora. Naquele momento, a can­ção fora apenas uma parte dos prazeres crescentes que os surpreendiam.

 

Como alcançar a morada da luz,

Chegar ao berço do prazer?

No alto, nos cumes, a luz se altera,

A esperança mora.

Nuvens? — não

Neve...

Chuva aqui,

Lá, a neve.

Fogo branco congelado,

Luz faiscante.

Como chegar lá,

Escalar o ar desse lugar,

Acima, bem acima desta terra plana,

Nas terras altas,

Esse é o nosso caminho

Esse é o nosso caminho.

 

A voz doce, feminina, cantava enquanto faziam amor, e essas palavras estariam sempre unidas à memória dos dois.

Al.Ith sabia que um ouvinte ocasional, um soldado ou uma mulher não-iniciada não ouviriam as mesmas palavras — as mulheres iniciadas, ela e Ben Ata as tinham ouvido — ou teria ele? Perguntaria, na próxima vez em que se encontrassem.

Agora, grupos de pessoas nas estradas chamavam o seu nome, saudavam seu regresso. E Al.Ith parava para conversar, ouvia suas mensagens e contava-lhes que estava grávida. A notícia espalhou-se de boca em boca pelo planalto e, quando chegou à nossa capital, a multidão cantava e saudava a criança que ia nascer, e, em casa, Al.Ith sentiu-se de novo envolvida pela amizade descontraída, característica da Zona Três.

Na imensa escadaria, esperavam-na sua irmã Murti, e todas as crianças que a chamavam de Mãe. Acalentaram-na com seu carinho e saudações de boas-vindas e Al.Ith passou um dia e uma noite ouvindo-os contar o que tinha acontecido na sua ausência. E os sinos cantavam na nossa torre de infor­mações para que todos soubessem que Al. Ith estava de volta a salvo e que ia ter um filho.

Então, deixando as crianças com seus Pais Espirituais, para seus jogos e ensinamentos, retirou-se com a irmã para o lugar mais alto do palácio, onde os telhados se estendem em todas as direções sobre a cidade e de onde se podia subir à torre mais alta da capital.

De pé, na torre, ao lado de Murti, que se admirava com a determinação de Al. Ith de chegar a essas alturas nunca antes visitadas por ela, ouviu a irmã dizer:

— Olhe... olhe, lá... — e apontava para noroeste, para uma profunda passagem entre as montanhas. O azul da Zona Dois cintilava como uma imensa safira. A princípio, Murti não viu nada além da abertura entre as montanhas e uma névoa vaga.

Al.Ith, saciando os olhos naquele azul, pensou em Ben Ata com carinho, lembrando-se que ele dissera ser perda de tempo contemplar o azul, e sorriu. Murti olhou para a irmã e compreendeu que ela pensava no marido, pois esse sorriso não podia significar outra coisa. Riu alto, e estava a ponto de fazer perguntas sobre fatos e particularidades desse famoso Ben Ata, o grande soldado, quando Al.Ith falou:

Não, fique quieta e olhe... — Durante toda a sua vida ela, Al.Ith, tivera a oportunidade de subir até ali e con­templar a Zona Dois. Ninguém a proibira! Mas ninguém men­cionava a Zona Dois! Mas... sim, quando era criança subira a essa torre. Lembrava-se agora. Era muito nova, antes da ado­lescência. Sentira a necessidade de subir cada vez mais alto, primeiro até os telhados que se estendiam lado a lado, de modo que, se quisesse, podia passar de um para o outro, para lá e para cá, durante semanas. Mas vira a torre com a pe­quena porta e continuara a subir. Mais e mais. E tinha che­gado afinal ao topo da escada circular. Parou ofegante e estonteada na pequena plataforma onde estavam agora, envoltas pelas luzes do sol poente. Pássaros voavam céleres saudando-as. Sobre as montanhas, pairavam as águias, dando de quando em vez mergulhos rápidos no ar. Al.Ith lembrava-se de ter-se agarrado ao parapeito, olhando para cima e para a frente, e que todo o seu ser parecia querer partir, com uma necessidade premente de deixar-se absorver por aquele azul infinito — o azul, o azul, o azul! E só depois de muitas horas descera cautelosamente, a cabeça repleta do ar azul e... então o quê? Não conseguia se lembrar! Contara a alguém e fora censurada? Não contara, simplesmente esquecera?

E isso importava? O fato era que, durante toda a sua vida, tivera essa possibilidade, precisando apenas subir alguns lances de escada. Entretanto, era como se sua mente tivesse fechado uma porta sobre o que poderia fazer. O que devia fazer. O que desejava fazer...

A irmã segurava-se ao parapeito com as duas mãos, o perfil fino e nítido, os olhos brilhando. Parecia envolta em luminosidade; a luz do poente punha cintilações nos seus cabelos dourados e nos desenhos do vestido amarelo. Murti. estava vendo!

Voltou-se afinal para Al.Ith e tudo o que disse foi:

Por que nos esquecemos?

E Al.Ith não soube responder.

Depois disso, Al.Ith ordenou que tocassem os sinos, convidando todas as regiões a enviarem mensageiros, o mais de­pressa possível. Em seguida, jantou com a irmã, que estava curiosa sobre esse marido, e Al. Ith, que em circunstâncias normais teria contado tudo a Murti., sem considerar-se desleal, não conseguiu dizer nada. Por quê? Em parte porque os fatos sobre a Zona Quatro seriam tão estranhos para o espírito de Murti que teria de descrevê-los vezes sem conta, de ângulos diversos para que ela começasse a compreender, mas também porque sentia que Ben Ata pensava nela. Não lhe agra­dava essa ligação espiritual com ele. Não se lembrava de ter sentido por qualquer outro homem, pais dos seus filhos ou companheiros de prazer, essa inquietação, esse desejo dominador. Considerava-o pouco saudável — uma projeção daquela Zona onde todas as emoções eram tão fortes e carregadas. Mas era isso o que sentia, e não adiantava fingir o contrário. Murti percebeu a resistência da irmã, não a culpou mas sentiu-se excluída e retirou-se cedo para os aposentos onde seus próprios filhos a esperavam.

Um relacionamento que excluía outros era sem dúvida errado. Como podia ser certo?

Mas Al.Ith sabia que os problemas reais que precisava enfrentar agora eram mais urgentes do que as inquietudes sobre o seu marido, para o qual, sem dúvida, lhe ordenariam que voltasse no momento determinado — e não podia dizer se a idéia a aborrecia ou se desejava estar com ele.

Deitou-se e dormiu, para estar descansada no dia seguinte, que, esperava, lhe traria o discernimento tão necessário.

A Câmara do Conselho da nossa Zona não é muito gran­de, pois não precisa conter mais de 30 ou 40 pessoas de cada vez, o suficiente para nos representar; naturalmente, os representantes são diferentes, de acordo com suas funções. É uma sala quadrada, o teto não muito alto, e as janelas mostram o céu, as nuvens e as montanhas, de três lados.

No chão estão dispostos almofadões nos quais nos sen­tamos sem observar nenhuma ordem de precedência, e Al.Ith pode sentar-se em qualquer um deles; não precisa ficar em plano elevado, demonstrando preeminência sobre esse pequeno número de pessoas.

Nesse dia, ela chegou à Câmara antes de todos e foi de janela em janela, olhando as nossas ruas lá embaixo e as mon­tanhas, lá no alto, e depois contemplou por longo tempo um determinado ponto a noroeste. Eu estava lá nesse dia. Encontrei-a na sala quando cheguei fui o segundo a chegar. Impressionaram-me imediatamente a sua inquietação e ansiedade. Essa não era a mulher tão senhora de si que eu co­nhecia desde o seu nascimento: eu sou um dos Pais Espi­rituais de Al.Ith.

Fiquei ao lado dela, na janela, e Al.Ith olhou-me com a expressão da mais comovedora tristeza, depois apoiou a cabeça no meu ombro, aconchegando-se como uma criança. Mas, quando pequena, era muito decidida e independente para tal gesto, e fiquei mais perturbado do que posso explicar.

Logo ela se afastou.

Lusik, não me conheço.

Sim, posso ver.

Lá embaixo, na praça principal, havia um movimento desusado e nos inclinamos para ver, gratos pela distração de nossas ansiedades.

Chegavam representantes de todas as regiões, a cavalo, em burros, e crianças, montadas em bodes. Os animais eram entregues aos jovens encarregados desse serviço e conduzidos para a sombra das árvores, na extremidade sul da praça. Eu tinha viajado de camelo, pois moro no ponto extremo da nossa bela região do Sul. Esse animal, que raramente tem a oportunidade de conhecer outros de espécie diferente, pois criam-se tão bem entre nós que são nosso meio exclusivo de transporte, estava com o focinho encostado ao de uma bela égua negra, da região leste.

Era uma cena tão agradável e familiar que nos alegrou o coração. Mas Al.Ith disse:

Ainda assim, estamos com um sério problema, e não sei do que se trata.

A sala encheu-se de pessoas do nosso povo, homens, mu­lheres e duas meninas às quais dávamos oportunidade de aprender a arte de governar por demonstrarem grande incli­nação para ela.

Naquele dia éramos 25. Al.Ith sentou-se imediatamente sob a janela de oeste e arrumou cuidadosamente a saia do vestido amarelo sobre a almofada, pois sabia que gostávamos de vê-la bela e com boa aparência, e começou a falar:

Nós todos conhecemos a situação. Eu aceito a responsabilidade. — Esperou, olhando em volta. Todos assentiram com a cabeça, não com animosidade, mas reconhecendo um fato. Ela sorriu levemente, um sorriso sem cor.

O que precisamos saber é o seguinte: nos últimos 39 dias, houve alguma mudança na situação?

Nova pausa. Olhou atentamente um rosto depois do outro e sorriu para as duas meninas, que retribuíram com sorrisos de adoração e de submissão total ao desejo de serem iguais a ela, e melhores.

Em todas as regiões a mesma coisa. Animais doentes, sua fertilidade perdida. E nós também não somos o que éramos. Sei disso. Nós todos sabemos. E eu teria tomado conhecimento há mais tempo se tivesse dado a atenção devida aos seus relatórios.

Todos concordaram novamente. Era verdade.

Sei que todos acreditam que meu casamento com Ben Ata está de certo modo relacionado com este declínio. Não sabemos como, nem por quê. Mas devemos esperar alguma melhora entre nós. Como já anunciei, estou grávida. Isto provavelmente faz parte da fórmula para a nossa recuperação.

Ao fim de cada frase ela fazia uma pausa e olhava para todos, verificando se havia sinais de discordância e para que pudessem acrescentar algo.

Muito bem, faz 39 dias que fui levada a Ben Ata. A palavra levada foi dita com ênfase amarga, da qual ela logo se arrependeu, oferecendo-nos um sorriso de desculpas. A essa altura, não havia uma pessoa que não tivesse notado seu desgosto íntimo. Pairava na sala do Conselho uma atmosfera que eu jamais sentira. Mais do que qualquer outra coisa, o estado de espírito de Al.Ith nos dizia que era séria a situação do nosso reino.

Ela esperou imóvel.

Não houve nenhuma mudança durante este tempo? Não? Bem, estou grávida há cinco dias. Alguma mudança nes­tes dias?

Uma das meninas disse:

Minha ovelha teve gêmeos, ontem.

Nós rimos, e a sessão interrompeu-se, enquanto Al.Ith explicava à menina o tempo de gestação das ovelhas.

Durante esse intervalo, tentávamos nos lembrar se hou­vera alguma mudança nos últimos dias. Começamos a trocar impressões. Al.Ith ouvia atentamente. Então, ergueu-se de um salto e foi rapidamente de uma janela a outra, parando na do lado oeste e reclinando-se, contemplando fixamente a distância. Não era uma atitude normal dela. Depois de algum tempo, eu, como único Pai Espiritual presente, fui até a janela e segui a direção do seu olhar. Via apenas a massa compacta das cadeias de montanhas, a oeste.

Minha presença ao seu lado a fez lembrar-se dos seus de­veres e sentou-se novamente.

A menina que falara sobre a ovelha cantarolava baixinho.

Era a música de uma brincadeira infantil.

Encontre o caminho

E encontre o caminho

E siga-o até o fim.

Através do desfiladeiro

Devemos passar

E nos reunir no azul...

Al. Ith inclinava-se para a frente, ouvindo. Todos nós tínhamos escutado a canção uma centena de vezes. As crianças faziam desenhos com pedras e pulavam sobre elas, segundo um ritmo determinado, que variava de acordo com o jogo.

Pensamos que Al.Ith, como de hábito, estivesse dando atenção especial às crianças, e esperamos.

Mas ela continuava inclinada, atenta à menina, que, indiferente a essa atenção, balançava o corpo, cantarolava e batia palmas levemente. Era uma criança típica da região leste: uma coisinha de pele clara, olhos azuis e cabelo louro-pálido. Essas meninas magricelas transformavam-se nas mais estonteantes be­lezas, por mais estranho que pareça, e os homens também eram belos. Por ocasião dos nossos festivais, os corações acelera­vam-se quando chegavam os grupos do Leste, sedutores e sor­ridentes todos eles, conscientes do poder que exerciam sobre nós, com suas canções de um passado muito mais selvagem...

Como é o seu nome? — perguntou Al.Ith.

Greena.

Muito bem, pequena Greena, venha aqui.

A criança, com um movimento rápido, pôs-se de pé e foi sentar-se no colo de Al.Ith.

Como é o resto da canção?

Que canção, Al.Ith?

Você estava cantando. O que vem depois de "E nos reunir no azul"?

A menina tentou se lembrar. Olhou para a irmã, pedindo ajuda.

A essa altura nós todos sabíamos que algo importante es­tava acontecendo.

Quanto a mim, estivera presente a momentos excepcionais nessa sala, mas nenhum como esse. O ar estalava de expectativa e toda a lassidão de Al.Ith desaparecera. Voltara ao normal, alerta, viva, toda atenção.

A canção continua?

Mais uma vez a menina pediu ajuda com os olhos à irmã, outra garota franzina, mas esta sacudiu a cabeça. De súbito, levantou-se.

Sim, continua... eu acho... — e sentou-se.

Escutem — disse Al.Ith —, quero que façam uma coisa. Vão até a praça, lá onde estão os animais. Esqueçam-se de nós por algum tempo. Façam esse jogo. Apenas brinquem, como se estivessem em casa com seus rebanhos e sua família. E procurem se lembrar do que vem depois de "E nos reunir no azul".

As duas levantaram-se rapidamente e saíram correndo da sala do Conselho, de mãos dadas. E nós sorrimos, porque as víamos como seriam dentro de pouco tempo.

O que significa tudo isso, Al.Ith? — perguntou um jovem do Norte. Era, na verdade, seu filho adotivo e crescera ao lado dela. Era parecido com Al.Ith, como acontece freqüen­temente com filhos adotivos.

Estou chegando perto — disse Al.Ith, olhando atenta e demoradamente para cada um de nós. — Não sentem? Há alguma coisa! O quê! — E em sua ansiedade, levantou-se novamente e caminhou pela sala, desta vez parando perto das janelas, sem olhar para fora. — O que é? — Ficamos em silêncio. Esperamos. Sabemos que, quando um de nós está a ponto de alcançar a compreensão de uma coisa importante, po­demos ajudar pensando com ele e esperando. — Eu simples­mente não sei, não sei... — então, ela voltou-se rapidamente para a janela de oeste e debruçou-se sobre o peitoril. Todos os que cabiam no espaço da janela aproximaram-se, olhando para baixo. As duas meninas tinham feito o desenho de pedras e pulavam e cantavam.

Não podíamos ouvir as palavras.

Percebendo que as observávamos, pararam olhando para cima. Afastamo-nos da janela.

Devemos esperar — disse Al.Ith.

Sentamo-nos. Naturalmente esperávamos ouvir sobre as suas visitas à outra Zona, mas não queríamos trazer de volta aquela sombra sobre ela.

Al.Ith sabia o que estávamos pensando, e com um suspiro veio ao nosso encontro.

É difícil descrever -— disse, corajosamente, e vimos que toda a animação a abandonava. — É fácil descrever a aparência externa. Tudo é feito para a guerra. Para a luta. É um lugar desolado. Nada em nosso reino se compara. Quanto ao espírito do povo... — Ela hesitava, fazendo pausas entre as palavras. Mais uma vez percebemos que estava dominada por algum sentimento. — Guerra. Luta. Os homens... todos os homens do reino são soldados... — Sua voz esvaiu-se em silêncio. Praticamente parou de respirar. — Todos os homens de uniforme... — Parou novamente e seus olhos perderam o brilho, enquanto ela parecia abismar-se em si mesma. Ficamos absolutamente imóveis.

Uma economia inteiramente aparelhada para a guer­ra... mas não há muita guerra... quase nenhuma luta... mas cada homem é um soldado desde que nasce até a morte...

Mais uma vez o silêncio hermético, e ela ali sentada, o corpo ereto, tenso, os olhos vazios. Agora balançava-se para a frente e para trás, na almofada.

Um país para a guerra... mas sem guerra... são go­vernados por uma Lei severa... sua Lei é realmente rigoro­sa... guerra. Homens... todos os homens para a luta, mas não têm guerras, nenhuma guerra... o que é, o que significa?

A tensão em Al.Ith era um espetáculo aterrador. Uma mulher de idade que a observava atentamente adiantou-se, sentou-se ao seu lado e procurou acalmá-la, acariciando-lhe os braços e os ombros.

Chega, Al.Ith. Chega. Está me ouvindo?

Al.Ith estremeceu e voltou a si.

O que é? — perguntou ela, num sussurro.

A mulher, que a abraçava, disse:

Você vai saber. Acalme-se.

Al.Ith sorriu, fez com a cabeça um gesto de assentimento, e a mulher voltou ao seu lugar, dizendo:

O melhor que temos a fazer é conservar o pensamento intacto em nossa mente e deixá-lo crescer.

Al.Ith assentiu com a cabeça, novamente.

Assim terminou a parte mais difícil do Conselho. Murti. trouxe uma bandeja com sucos de frutas e saiu para apanhar comida leve para todos. Depois, juntou-se a nós, sentando-se ao lado da irmã.

E, então, as meninas voltaram. Pareciam desapontadas.

Ficaram de pé na frente de Al.Ith e de Murti e Greena disse:

Fizemos o jogo. Muitas vezes. Não conseguimos nos lembrar. Mas existem palavras depois daquelas. Disso nos lem­bramos.

Al.Ith indicou com um gesto que compreendia.

Não tem importância.

Devemos repetir o jogo quando chegarmos em casa, para ver se nos lembramos?

Por favor, façam isso... e tenho uma idéia...

Nós todos ficamos alertas, pensando que ela encontrara afi­nal a resposta que lhe fugia, mas Al.Ith sorriu e disse:

Não, sinto muito. Mas tive uma boa idéia. Vamos or­ganizar um festival. Logo. E será de canções e histórias não, não como os que temos sempre. Este será de canções e histórias que já esquecemos. Ou quase esquecemos. Todas as regiões de­vem mandar seus contadores de histórias, cantores e Memórias ela sorriu para mim, para suavizar o que ia dizer: Lusik, parece-me que todos vocês estão em falta. Como é que as crian­ças podem saber que foram esquecidos versos da canção do seu jogo?

Aceitei. Naturalmente, era verdade.

Logo depois, voltamos para nossas casas.

Agora, retomo a narrativa, não em primeira mão, como a sessão que descrevi na Câmara do Conselho, mas feita do melhor modo possível, juntando os pedaços, como um cronista.

As irmãs subiram para o apartamento de Al.Ith e ela disse que estava cansada. Essa gravidez anunciava-se mais di­fícil do que todas as outras. Agora, que pusera em andamento as providências necessárias, queria descansar por alguns dias.

Murti. estava preocupada com ela.

As duas belas mulheres sentaram-se de mãos dadas, na frente da janela que dava para as montanhas de oeste. Al.Ith disse que queria ir até a torre outra vez, mas Murti pediu-lhe que não fosse. Al.Ith concordou. Geralmente, nesses momen­tos de descanso, as duas mulheres conversavam, uma penteava o cabelo da outra, experimentavam vestidos, planejavam novas roupas, discutiam as inovações da moda que haviam notado em outras mulheres naquele dia e que poderiam ser úteis de um modo geral. Eram irmãs verdadeiras, a mesma Mãe, o mesmo Pai Genético, compartilhavam até mesmo os mesmos Pais Es­pirituais. Não havia segredos entre elas. Al.Ith disse:

Tem razão de estar magoada. Não posso evitar.

Murti beijou-a e retirou-se.

Al.Ith estava em casa há menos de um dia quando sentiu que devia voltar para Ben Ata. As palavras vieram-lhe à mente: "O tambor está tocando." Teve a impressão de ouvir as batidas. Levou a mão ao ventre, pensando que fosse o pequenino coração, mas era o tambor.

Abriu seus armários, desta vez procurando roupas que pudessem agradar a Ben Ata. Depois desceu correndo para o primeiro andar, onde deixaria um recado para Murti.

Cinco pessoas subiam a escada e a viram: uma menina, apenas saída da infância, seu Pai Genético e três dos seus Pais Espirituais. Al.Ith era a mãe da menina.

Essa criança tinha um problema que nada tem a ver com a nossa história. Este acontecimento é relatado porque, no momento em que o espírito de Al.Ith já estava com Ben Ata, com toda a perturbação e ajustamento que isso implicava, ela teve de entrar em uma sala tranqüila com um homem com quem mantivera, durante anos, uma amizade intensa, o pai verdadeiro da menina, e três homens que haviam sido igualmente íntimos, mas que não via há algum tempo, porque tinham viajado para lugares distantes no reino.

A sala dava para a do Conselho e tinha também almofadas no chão e mesas baixas. Al. Ith abraçou a menina e conservou-a junto a si quando todos se sentaram. Mas, quase imediatamente, percebeu que suas emoções turbilhonantes comunicavam-se à criança e não podia permitir isso. Levantou-se rapidamente e sentou-se em outra almofada, e a menina, sentindo-se rejeitada, deu as costas para a mãe com expressão infeliz. Isso perturbou mais ainda Al.Ith.

As seis pessoas, uma mulher, quatro homens e a menina, tinham-se reunido assim muitas vezes. E Al.Ith estivera com aqueles homens, juntos ou separados, constantemente. Eram as pessoas mais chegadas a ela, mais do que sua própria irmã. Não era possível isolar-se deles agora, nem mesmo para sua proteção. Procurou falar abertamente com eles, ao mesmo tempo sentin­do-se pronta para as exigências de Ben Ata que a reclamavam selvagemente. Ela tremia.

Os homens a abraçaram e sentaram-se perto dela. Felici­taram Al.Ith por sua gravidez. E ela sentia-se e parecia cada vez pior.

— Você não está bem — disse o pai verdadeiro da me­nina, Kunzor, e Al.Ith disse que não estava, que não podia evitar, que sentia muito. E desmaiou.

Chamaram Murti. e ela explicou que o estado de espírito de Al.Ith estava muito além de tudo o que podiam imaginar. Murti. cuidou de Al.Ith e consolou a menina, que, para surpresa de todos, torcia as mãos e dizia que Al.Ith estava doente por sua causa. Pareceu-lhes uma forma de desequilíbrio mental; jamais tinham ouvido coisa igual.

Quando Al.Ith voltou a si estava só com Kunzor, que procurava compreender o seu problema. Lembrava-se de tê-la visto em circunstâncias complexas, mas esta estava além de tudo o que podia entender.

Al.Ith em prantos e descontrolada era algo que ele nunca imaginara ser possível.

Ela lhe disse que precisava ir buscar o seu cavalo e partir e Kunzor acompanhou-a até a praça, chamou Yori e viu-a cavalgar para fora da cidade.

Quando Al.Ith chegou à planície, a noite caía, e cavalgou contra o vento frio do leste até chegar à fronteira.

Esperava que Ben Ata a estivesse esperando no outro la­do, e lá estava ele. Frio e silencioso, envolto na capa preta, ele esperava com os olhos fitos na estrada, pálido, atento, imóvel.

Quando o avistou seu coração apertou-se. Acontece que, enquanto cavalgava na planície contra o vento gelado, tendo como único conforto o calor de Yori, pensava na sua longa amizade com Kunzor e com os outros homens de quem fora íntima — já estava estranhando essas palavras que seu povo usava. No passado, ela não usava palavras, nem mesmo em sua mente. Sentia a intimidade com eles como parte da trama de sua vida. O encontro com um deles, premeditado ou por acaso, sempre os levava à união, de acordo com as intenções do mo­mento. Jamais os considerava como isto ou aquilo. Eram amigos. Agora, perguntava-se a si mesma: seriam seus maridos? Certa­mente que não, se Ben Ata era o seu marido! E durante a via­gem pensava também em Ben Ata, com quem logo estaria, como um amigo — com todo o bom senso e responsabilidade que a palavra implicava.

Vendo-o ali, sua ligação física e espiritual com os homens que a protegiam na Zona Três desfez-se, deixando-a vulnerável.

Ben Ata esperou que ela cruzasse a fronteira e entregou- lhe o escudo — ele tinha acertado ao. pensar que, mais uma vez, Al. Ith esquecera-se de trazer o seu. Ben Ata estendeu a mão para segurar o bridão do cavalo, mas não encontrou nenhum. Levou seu animal para perto do dela, Al.Ith voltada para a Zona Quatro, Ben Ata, para a Zona Três. Os olhos dele examinavam o rosto de Al.Ith como se procurassem a marca de um crime.

Qual é o problema? — perguntou ela, irritada.

O problema é que eu compreendi uma coisa.

Que coisa? — Suspirando alto para que ele ouvisse, ela se pôs a caminho e Ben Ata seguiu-a, encostando seu cavalo de tal modo no dela que Al.Ith teve de apertar a perna contra o flanco de Yori para não ser esmagada.

Você não me ama — declarou ele.

Al.Ith não respondeu.

As palavras simplesmente passaram por ela sem atingi-la. Percebia que Ben Ata estava perturbado e que não podia contar com ele para conforto e amparo. Procurava fortalecer a si própria.

Ele continuava muito junto dela e lançava-lhe olhares dramáticos, inclinando-se para ver o rosto de Al. Ith.

O dia estava nascendo. Cavalgavam na escarpa, sobre os campos dos quais se erguia a névoa costumeira, um belo espetáculo na luz fraca do sol.

Você não me ama. Não verdadeiramente — gritou ele.

Desta vez Al.Ith registrou a palavra "ama". Lembrou-se que as duas Zonas a usavam com sentido diferente.

O que tinha acontecido com Ben Ata foi o seguinte.

Quando ela o deixou na fronteira, sentiu-se tomado por emoções cuja existência desconhecia. Se Elys o fizera aceitar que não estava à par de muitos fatos físicos, sabia agora que um mundo de emoções lhe tinha sido negado até aquele momento. Levou seu problema à madame do bordel, que, depois de ouvi-lo atentamente, concluiu que não era de Elys que ele precisava — na verdade, ela já voltara para a sua cidade, muito satisfeita consigo mesma —, e sim de um verdadeiro caso amoroso.

Naturalmente ele sabia que muitas pessoas tinham casos amorosos, mas não os soldados!

Ao ver Dabeeb escovando o uniforme do marido, que era guardado ao lado dos outros, no alojamento dos oficiais casados, fez tuna avaliação das suas possibilidades. Imediatamente foi assaltado por centenas de emoções que o deixaram atônito, pois não compreendia de onde tinham vindo.

Dabeeb naturalmente ficou admirada, e resolveu usar de cautela, bom senso e discrição. É claro que tinha medo do marido. Tivera alguns casos, mas não com o objetivo de estimular Jarnti. Tinha, porém, mais medo de Ben Ata. Não era sua intenção entregar-se a ele, mas distraiu-o com beijos e ca­rícias leves, calculados para manter a situação enquanto ela pensava em coisa melhor.

Jarnti surpreendeu seu rei em atitude comprometedora com sua mulher.

Genas violentas. Ciúmes. Censuras. Os homens discutiram e resolveram que a amizade entre eles valia mais do que o amor de uma mulher, apertaram-se as mãos, beberam juntos uma noite inteira, mergulharam juntos no canal, de madrugada... tudo de acordo com os costumes.

Ben Ata estava agora violentamente apaixonado por Al. Ith.

Cavalgando juntos na névoa dourada, ele rilhava os dentes e inclinava-se para ela, cheio de desejo. Al.Ith murmurou:

Tem algum dicionário no pavilhão?

O quê?

É a palavra "amor". Nós a usamos de modo diferente.

Fria. Fria e sem coração.

Estou fria mesmo. Gelada até os ossos.

Ben Ata arrependeu-se, mas esse não era um sentimento apropriado para a ocasião.

Muito bem, como é que vocês usam a palavra "amor"?

Acho que não usamos. Significa estar com alguém. Responsabilizar-se por tudo o que acontece entre os dois. Entre os interessados e, naturalmente, com todas as outras pessoas en­volvidas.

Ocorreu a Ben Ata que durante esses seis dias tumultuados ele havia esquecido como era a verdadeira Al.Ith.

Seu entusiasmo arrefeceu. Afastou o cavalo do dela e, assim distantes, mas lado a lado, os animais galoparam colina acima, até os jardins dos pavilhões onde os tambores batiam desde a noite anterior.

Quando saltaram dos cavalos, soltando-os para que fossem para a cocheira, caiu uma pancada súbita de chuva e os dois correram para o pavilhão, onde Al.Ith deixou uma trilha de água no caminho para os seus aposentos. Os armários estavam vazios agora dos vestidos da cidade e ela, depois de enxugar-se, escolheu entre os que trouxera um que combinasse com o aba­timento em que se encontrava. O amarelo brilhante da vés­pera era como a plumagem de um pássaro fora de estação. O marrom era muito deprimente, mas achou mais alegre o cor de laranja escuro, que parecia algo a que poderia aspirar se tudo corresse bem. Penteou o cabelo em tranças ao redor da cabeça, como as matronas da Zona Quatro, e chegou ao quarto central no momento em que Ben Ata aparecia na porta no outro lado. Não havia a mínima sugestão de armadura na roupa dele. A túnica parecia ter sido escolhida com a intenção de agradar a ela e o cabelo estava escovado, delineando sua bonita cabeça.

Tudo isso, e mais seu olhar hostil e sedento, fez com que ela

ficasse o mais longe possível dele, e sentou-se à pequena mesa. Ben Ata, que há 24 horas não pensava em outra coisa, adiantou-se e estava a ponto de carregá-la para a cama, quando se lembrou de que fora isso que provocara todo o turbilhão da última visita, o qual, comparado com a realidade visível de Al.Ith, parecia agora inapropriado, para não dizer mais.

Praguejando vigorosamente, ele sentou-se na frente dela, dando mais do que nunca a impressão de que o menor movimen­to poderia derrubar não só a mesa delicada, mas todo o pavilhão. Ele inclinou-se para trás, suspirou, e parecia mais controlado.

Ambos consideravam corajosamente o tempo indeterminado durante o qual teriam de suportar sua incompatibilidade.


Eu gostaria de saber — disse ele — tudo sobre os cos­tumes para esse tipo de coisa no seu país.

Ora, Al.Ith já havia pensado nesse problema. Não imagi­nava, nem por um minuto, que ele aceitasse os hábitos da Zona Três, em nenhuma circunstância. Foi direto ao centro da inquietação de Ben Ata dizendo:

Não há dúvida nenhuma — não pode haver nenhuma dúvida — de que esta criança é sua.

Não disse nada sobre isso — protestou ele, enquanto a satisfação do seu rosto demonstrava que ela havia acertado.

Ele esperou.

Percebendo que precisava se alimentar, Al.Ith pensou no que desejava e logo surgiu à sua frente um prato fino de seu país, feito com mel e nozes. Ela começou a comer pedacinhos pequenos. Sem cerimônia, Ben Ata estendeu a mão, apanhou um pedaço, experimentou, revirou os olhos para o teto e pareceu resignado.

É muito bom para mulheres grávidas.

Espero que esteja se cuidando bem! Afinal, essa crian­ça será o monarca da Zona Quatro.

Essa idéia também já tinha ocorrido a Al.Ith. Conten­tou-se em observar:

Se os Provedores assim decidirem.

O gesto contido de rebelião mostrou claramente o que ele pensava — o que pretendia fazer.

Presumo — disse ele, positivamente radiante de sarcasmo — que sou apenas um dos seus amantes.

Ela reclinou-se na cadeira, levantou as duas mãos e co­meçou a contar nos dedos, com um ar de brejeira satisfação, hesitando no terceiro dedo com um leve franzir de lábios, vol­tando para o segundo, de novo para o terceiro, com um mo­vimento afirmativo da cabeça, depois para o quarto, o quinto — mudando de mão com deliberação, seis, sete, oito —, demorando na contagem do nono, com um sorriso cheio de re­miniscência; ouviu a respiração ruidosa e ultrajada dele e ima­ginou se ousaria voltar a outra mão, 11, 12, 13, e voltou, com ar descuidado, 14, 15, e terminou no 19? com um pequeno gesto decidido de cabeça, como um competente administrador que não se esqueceu de nada.

Olhou para ele, convidando-o a rir dela, dele, mas Ben Ata estava verde de raiva.

Você compreende começou ela, mas ele terminou, furiosamente:

As coisas são diferentes com vocês! E sou muito grato por isso. Decadentes. Cheios de vontades. Imorais.

Na verdade, não posso imaginar você seguindo os nossos costumes.

Muito bem, quantos amantes você teve?

O rosto dela crispou-se ao ouvir a palavra e ele notou. Não sem interesse, um interesse desapaixonado. Isso a enco­rajou a explicar embora se tivesse decidido antes a não fazer essa tentativa com a intenção real de convencê-lo do barbarismo da sua percepção.

Em primeiro lugar, essa palavra não tem o menor significado para mim, para qualquer mulher da nossa Zona. A pior de nós, e naturalmente temos fracassos, como vocês... — Percebeu que ele notara o uso diferente da palavra, dita com ênfase jamais usada na Zona Quatro. A pior de nós seria incapaz de usar uma palavra que descreve o homem como uma espécie de brinquedo.

Isso lhe valeu um olhar apreciativo. Sentindo que gostava dele o bastante, ela continuou, explicando os costumes sexuais da Zona Três. Enquanto ela falava, a atitude e os punhos de Ben Ata tornaram-se tão tensos que Al.Ith pensou em parar; mas então ele pareceu absorver-se no que ela contava, ou­vindo atentamente, sem perder nada.

Em certos momentos ela temia que todo o orgulho pessoal de Ben Ata fosse subir-lhe à cabeça e explodir em violência, mas ele controlou-se. Quando Al.Ith terminou, toda a agressividade o abandonara, dando lugar ao filósofo.

Ela pensou em vinho, e, a um gesto de Ben Ata, para ele também, porém mais forte. Ben Ata aceitou o copo das mãos dela com um gesto de agradecimento.

Não adianta fingir que eu poderia me adaptar a essas coisas declarou ele, afinal.

Pois me parece — respondeu ela, com humor — que vai ter de fazê-lo. — Mas, ao ver os sinais ameaçadores de novos problemas, ela disse que, desde seu primeiro encontro, certas exigências (ela não pretendia dizer das "mais altas") se tinham feito sentir, e, ao que parecia, absoluta fidelidade à Zona Quatro era a ordem do dia para ela.

Tenho a impressão — disse Al.Ith — de que há uma repulsa em meu corpo — em algum lugar do meu corpo — que me impede de aceitar não apenas o contato com outro homem, mas com qualquer outra pessoa.

Ele sorria, e Al.Ith continuou:

E isso não é bom, ó grande rei, nada bom. Considero pernicioso, hostil, mas estamos ambos presos a modos diferentes dos nossos e precisamos continuar assim.

Ben Ata tinha na ponta da língua frases como "então, você deve me amar, afinal de contas", mas o tom calmo e explanatório de Al.Ith o impedia de pronunciá-las. A melancolia apossou-se dele." E envolveu-a. O motivo era simples: toda a vez que florescia em um deles a vitalidade natural, era imediatamente suprimida pela disposição contrária da natureza do outro.

E a melancolia os levou para a cama com um sentimento de camaradagem, emprestou ao ato de amor murmúrios de condolências por aquela união desafortunada, provocou um fluxo de simpatia entre eles, transformou seu jogo amoroso —

se assim se poderia chamar aquela fúnebre troca de carícias — em algo tão diferente dos seus encontros prévios que não se reconheciam mais, e terminaram com gemidos e exclama­ções que não passavam de queixas contra a má administração de absolutamente todas as coisas.

Mas Al.Ith notara em si mesma, e com grande conster­nação, um prazer agudo — como o de um ferimento estranho — ao sentir-se triturada por esses êxtases de submissão ao destino. Jamais sentira nada parecido e não podia acreditar que sentiria novamente.

Enquanto isso, choveu. Nos braços um do outro, ouviam o chapinhar e o movimento da chuva, e ambos se maravilharam com as infinitas possibilidades de variações que nem mes­mo suspeitavam existir dentro deles.

Chovia ainda pesadamente quando se levantaram, toma­ram banho, vestiram-se e voltaram ao quarto central do pa­vilhão — ela com o vestido cor de laranja, numa tentativa desesperada de trazer um pouco de sol a esse casamento.

Estavam tão unidos e casados quanto qualquer Ordem poderia desejar.

Mas havia também em suas vozes o fio áspero e cortante que acompanha infalivelmente esse estado de espírito conubial.

Ela queria descobrir a verdade sobre a Zona marcial de Ben Ata.

Quer dizer — assim começaram suas perguntas, en­quanto. ele, sentado, o queixo apoiado nas mãos, o cotovelo na mesa, tinha o ar de quem admite tudo por ser obrigado, mas que, apesar disso, conserva sua independência interior.

Quer dizer que aqueles peitorais, cujas virtudes apre­goam tanto, não passam de mentiras? Não fazem coisa alguma? Não repelem armas?

São muito bons para proteger da chuva.

Quer mesmo dizer que esses medonhos edifícios re­dondos e cinzentos, espalhados por toda a Zona Quatro, não têm nenhum raio da morte? É uma mentira, também?

Todos pensam que os possuímos. Dá tudo no mesmo.

Ben Ata, às vezes não acredito no que estou ouvindo!

Por que tanto barulho por tão pouca coisa? Para começar, a construção daquelas fortalezas de raios mortais é um trabalho muito complexo. Temos pouca pedra. Tem de ser trazida às vezes da outra extremidade da Zona Quatro. Nem sei quantas vezes, quando o exército começa a reclamar, pedindo uma boa luta, eu os faço construir uma ou duas for­talezas de raios mortais. Foi a melhor idéia que já tive!

Quer dizer que foi sua idéia?

Bem... ouvi falar em algo parecido.

Quem? Quando?

Um homem passou por aqui, certa vez, e mencionou as fortalezas. E mais todo tipo de idéias parecidas.

Que homem? Da Zona Cinco?

Zona Cinco! Não sabiam nem o que eram lanças antes de verem as nossas. Ainda assim, preferem as catapultas. Não. Um homem passou por aqui. Foi no tempo de meu pai. Eu era menino. Escutei. Ele disse que era de... de onde mesmo? Não da Zona Cinco. Talvez da Zona Seis?

Sei alguma coisa sobre a Zona Seis. Não pode ter sido de lá.

De muito longe, estou certo. Falava de um lugar onde havia armas jamais imaginadas por nós. Usam o próprio ar para fabricar armas.

Mas se podem usar o ar para fabricar armas, podem usá-lo para coisas úteis?

Não disse nada sobre isso. É um lugar, não sei onde. Um planeta. Uma raça cruel. Matam e torturam o tempo todo, só por prazer... não, Al.Ith, não me olhe desse modo! Não somos iguais a eles, aqui na Zona Quatro — nem parecemos. Mas, pensei nisso tudo, e foi quando começamos a espalhar os boatos sobre nossos coletes invulneráveis e nossos raios mortais.

Parece que a Zona Cinco não se impressiona muito com eles.

De qualquer modo, a intenção não é essa. Já disse que mantém muita gente ocupada.

Muito bem — concluiu ela —, penso o seguinte: nove décimos da riqueza do seu país são usados nos preparativos para a guerra. Com exceção dos verdadeiros agricultores que plantam alimentos e dos vendedores de alimentos e de utensílios domésticos, todos estão no exército, de um modo ou de outro. Contudo, vocês não se lembram de nenhuma guerra. Quanto às guerras que fizeram, basta elaborar uma lista das supostas razões que as determinaram e você tem de admitir que são inadequadas. E, além disso, ocorreram em gerações pas­sadas. Suas escaramuças nas fronteiras com a Zona Cinco são devidas ao fato de que, quando se colocam dois exércitos lado a lado, naturalmente há escaramuças, e um sempre põe a culpa no outro. O nível de vida do seu povo é muito baixo — ele deu um gemido surdo, concordando —, mas, Ben Ata, tudo isso é determinado por Lei. Pelos Provedores. Cada um por si. Portanto, o que saiu errado? — Al.Ith notou que durante essa análise mais ou menos pretensiosa não tivera a menor sensação de estar perto da descoberta, como acontecera na vés­pera. Coloque-se uma pessoa junto de outra, dê-se a essa união o nome de amor, pensava ela, e então terá de se contentar com o mais baixo denominador comum.

Ben Ata bocejou.

É muito cedo para dormir, você sabe — disse ela. — A tarde nem deve ter terminado ainda — se pelo menos pudéssemos ver o céu no meio desta chuva toda. — Pois a chuva continuava intensa.

Muito bem, Al.Ith, quero que descreva seus proble­mas para mim, como descreveu os da minha Zona.

Al. Ith hesitou, pois ocorreu-lhe perguntar a si mesma por que não fizera ainda essa análise —, uma vez que, embora esse modo de pensar não conduzisse a conclusões de alto ga­barito, pelo menos era útil para esclarecer a mente.

Ora, vamos, Al. Ith, sempre está disposta a me criticar.

Sim, eu estava apenas... muito bem. A economia do nosso país não depende somente de um produto. Plantamos grande variedade de cereais, vegetais e frutas...

Mas nós também — observou ele.

Não na mesma quantidade.

Continue.

Temos várias espécies de animais e usamos seu leite, sua carne, sua pele e sua lã... — Vendo que ele ia interrom­pê-la, disse: — É uma questão de grau, Ben Ata. Metade da nossa população produz essas coisas. Um quarto é de artesãos que usam ouro, "prata, ferro, cobre, estanho e muitas pedras preciosas. Um quarto é de comerciantes, fornecedores, negociantes e contadores de histórias, guardiães das Memórias, pin­tores e escultores e cancioneiros ambulantes. Nem uma parte mínima da nossa riqueza se destina à guerra. Não existem armas em nosso país. Não encontrará nada além de facas ou machados para uso doméstico ou dos pastores, em qualquer casa da nossa Zona.

E se forem atacados por um animal selvagem? Se uma águia ataca um cordeiro?

Os animais são nossos amigos — disse ela, e viu a incredulidade nos olhos dele. Além disso, Ben Ata estava achando essa descrição desprovida de qualquer interesse.

E o que ganharam com isso? A não ser o que temos agora, problemas... pelo menos é o que você diz...

O índice de natalidade da sua Zona está baixando ou não?

Está. Muito bem, as coisas não vão bem. Admito. E agora, Al. Ith, nesse seu paraíso, quero saber o que fazem os homens?

Não fazem guerra!

O que fazem o dia todo?

Exatamente o que todos nós fazemos — de acordo com o seu trabalho.

Parece-me que, com as mulheres governando, a única coisa que um homem pode fazer é...

Fazer amor, é isso que ia dizer?

Mais ou menos isso.

E cozinhar, cuidar da terra, do gado, cultivar cereais, comerciar, trabalhar em minas e fundições, fazer artefatos e tudo o que se precisa fazer para alimentar as crianças, mental e emocionalmente, e organizar arquivos e manter a Memória, compor canções e contar histórias e... Ben Ata, até parece que eu o insultei.

Tudo isso é trabalho de mulher.

Como é possível que Eles esperem que nos entenda­mos? Se colocassem você no meio do meu país, não seria capaz de entender nada do que estava acontecendo. Sabia que assim que entro em sua terra deixo de ser eu mesma? Tudo o que digo é distorcido e diferente. E quando consigo agir naturalmente, tudo é tão difícil, e só serve para fazer as coisas diferentes. Às vezes, sento-me aqui com você e penso no que eu sou, em casa, com Kunzor, por exemplo, e não posso...

Kunzor é o seu marido?

Ela ficou em silêncio, desarmada ante a completa impossibilidade de dizer alguma coisa que pudesse conservar a subs­tância de verdade.

Muito bem, diga de uma vez. Ele é, não é? Oh, você não me engana.

Mas não lhe disse que Kunzor é o nome de um dos homens com quem eu estou?

Mas o rosto de Ben Ata conservou a aparência de um homem que conseguiu alcançar a verdade. Sua atitude, braços cruzados, pernas separadas, pés firmes no solo, anunciava que não estava nem um pouco influenciado ou intimidado.

Contudo, ela via que de fato ele tentava compreender; seria um erro permitir que a defensiva automática de Ben Ata a afastasse dele. Algo que Al.Ith respeitava com a maior sinceridade do seu espírito estava se formando nele.

Mais uma vez Ben Ata sorriu com sarcasmo, automaticamente.

E esse seu Kunzor naturalmente é um homem muito melhor do que eu em todos os aspectos.

Al.Ith não respondeu, apenas disse:

Se não é para nos compreendermos, o que estamos fa­zendo aqui, afinal?

Do mais profundo do seu pensamento, um pensamento na verdade protegido por sua atitude defensiva, que ele sempre classificara de "força", Ben Ata disse, ou deixou emanar lentamente:

Mas o que é... eu preciso entender... o quê? Nós temos de compreender... o que... — sua voz perdeu-se no silêncio, os olhos fixos em uma xícara sobre a mesa. E ela percebeu, com imenso prazer e alívio, que na verdade Ben Ata estava trabalhando com aquela parte do seu íntimo pronta e aberta para receber a compreensão — como acontecera com ela na sala do Conselho. Al.Ith ficou completamente imóvel, controlando a respiração, não permitindo que seus olhos se demorassem no rosto dele, para não perturbá-lo.

A respiração de Ben Ata diminuiu de ritmo, ele parecia petrificado, os olhos fixos na xícara nada viam — estava imerso nas profundezas do próprio ser.

O que... — murmurou. — Alguma coisa... que precisamos... eles querem que nós... aqui estão os soldados... soldados sem guerra... vocês são... vocês são... o que são vocês? O que somos nós... para que estamos... é isso, é isso...

Como se falasse num sonho, ele dizia as palavras len­tamente, sem inflexão, cada uma um sumário, uma nota breve ou abstrata de um longo processo de pensamento profundo.

A chuva lenta derramava-se sem cessar, eles estavam no interior de uma concha cintilante dentro d'água, dentro de um silêncio de som marulhante. Nenhum dos dois fez um movi­mento. Ele parecia não respirar. Ela esperou. Muito tempo de­pois, ele voltou a si, viu-a ao seu lado, pareceu surpreso, olhou para o frio espaço desse lugar de encontro, lembrou-se de tudo, e imediatamente seu rosto, olhos e corpo voltaram à incredu­lidade alerta.

Ele não sabia o que tinha acontecido. Mas Al.Ith podia ver no seu rosto a maturidade que refletia o profundo processo que ocorrera em seu íntimo.

Al.Ith agora não tinha mais a sensação de estar indefesa contra uma auto-depreciação que não controlava e não podia dirigir; estava apoiada e confortada, sabendo que, apesar de tudo, estavam na verdade conseguindo o que deviam conseguir... e, falando com a mais pura intenção, com base na melhor compreensão do que era necessário, ela destruiu esse precioso estado de espírito que beneficiava a ambos.

O que ela disse foi o seguinte:

Ben Ata, será que posso ver Dabeeb... você sabe, a mulher de Jarnti?

Ele ficou tenso e olhou fixamente para ela. A reação foi tão violenta que Al. Ith teve de reconhecer que voltara ao pon­to em que não podia esperar vir a compreendê-lo um dia.

É que nós... quero dizer, na nossa Zona... vamos fazer um festival de canções e histórias...

O rosto dele crispava-se cheio de desconfiança. Os olhos vermelhos estavam coléricos.

O que há?

Oh, você é mesmo uma bruxa. Não finja que não é.

Mas, Ben Ata, eu acho que poderemos descobrir o que queremos saber... ou pelo menos ter uma idéia, ouvindo as antigas canções. Histórias. Não essas que todos cantam constantemente. As que... saíram de... uso... e... — Mas ele levantara-se violentamente e estava inclinado sobre ela, agarrando seus ombros, o rosto a poucos centímetros do de Al.Ith.

Então quer entrevistar Dabeeb?

Qualquer uma das mulheres. Mas Dabeeb eu conheço.

Pois vou lhe dizer uma coisa, não vou participar des­sas suas orgias, todos mundo andando com todo mundo.

Ben Ata, não sei o que aconteceu, mas você está outra vez no caminho errado...

Estou, não é? O que acontece quando um grupo de suas mulheres e seus Pais se encontram? Posso imaginar!

Você está imaginando coisas que você mesmo experimentou, Ben Ata, coisas que acontecem quando seus soldados invadem alguma pobre aldeia e... — mas percebeu que não adiantava continuar. Ergueu os ombros. Aguilhoado por seu desprezo, pois era o que o gesto significava, ele endireitou o corpo e, com passos largos, foi até a entrada em arco que dava para a colina ao pé da qual estavam os acampamentos do seu exército. Gritou para a chuva, uma, duas, três vezes... um grito em resposta, o som de pés correndo na chuva, e Ben Ata gritando:

Diga a Dabeeb para vir aqui. Imediatamente,

Voltou-se para o interior do quarto, os braços cruzados,

apoiando o peso do corpo no batente da porta, sorrindo triunfantemente para ela.

Bem, quero falar com Dabeeb e estou satisfeita por­que ela vem. Mas não sei por que você está agindo desse modo.

Talvez você queira possuir Dabeeb? Quem sabe as su­jeiras que você e seu povo costumam fazer.

Possuir. Possuir. Que palavra é esta, possuir? Como se pode possuir outra pessoa? Não admira que você não con­siga — mas ela ia dizer: "Não admira que você não possa fazer amor quando está pensando em termos de possuir" e naturalmente se conteve.

É melhor apanhar o escudo para protegê-la ou qual­quer coisa assim disse Al.Ith. Ela não suportará o ar daqui.

Muito obrigado. Isso já tinha me ocorrido, sabe? Co­mo pensa que todas essas coisas foram feitas?

E ele indicou os objetos destinados à proteção das pessoas que tinham trabalhado, ou que ainda trabalhavam na colina, de tempos em tempos grandes pregadores ou broches usa­dos na altura da garganta.

O som de pés chapinhando na água e Dabeeb apareceu, envolta em uma grande capa escura, uma velha capa militar de Jarnti. Ela ficou parada na porta, sem olhar para Ben Ata, mas muito perto dele, fitando Al.Ith com expressão astuta. Al.Ith sorriu. Ela aceitou o broche que Ben Ata lhe ofereceu de uma substância amarela baça, muito pesada prendeu-o no decote do vestido e entrou no grande quarto com passos leves, deixando a capa do lado de fora dos arcos, no chão do terraço.

Não olhou para Ben Ata; esperou por Al.Ith, que subi­tamente compreendeu o provável motivo para todo o drama. Dabeeb não olhara para Ben Ata. Nesse lugar terrível, onde o antagonismo era companheiro inseparável de estar junto — do sexo, como diziam —, isso talvez significasse que eles tinham se possuído. Ela o tinha possuído ou ele a possuíra — segundo o ponto de vista desses bárbaros —, mas, nesse momento, Al.Ith não estava disposta nem mesmo a pensar nisso.

Ao ver Dabeeb, a bela matrona, bem-vestida, capaz, com a expressão de humor malicioso ali de pé, esperando, Al.Ith resolveu aproveitar a situação do melhor modo possível.

Por favor, sente-se, Dabeeb e indicou, com um movimento de cabeça, a cadeira que Ben Ata acabava de deixar. E, então, Dabeeb olhou para Ben Ata. O risco real dessa situação como ela a via não fora suficiente para que erguesse os olhos para ele, mas agora precisava de uma ordem, uma orientação, e olhou para o seu amo.

Mas Ben Ata deixou tudo a cargo de Al.Ith e ficou ali parado como uma sentinela, observando a cena.

Dabeeb sentou-se.

Vamos ter um festival de canções e histórias no meu país. Sempre temos esse tipo de festival, mas este vai ser diferente.

Dabeeb estava alerta e em guarda; as mulheres olhavam- se nos olhos e os de Dabeeb transmitiam uma advertência; Al.Ith moveu a cabeça de leve, como se dissesse. "Eu sei, mas não tenha medo." Ben Ata não percebeu essa troca impercep­tível de olhares, mas sabia agora que tinha se enganado. O qua­dro que formavam as duas mulheres, uma na frente da outra, ambas prontas para a troca do que tinham de melhor, acalmou-o, perturbando-o ao mesmo tempo. A imediata compreen­são entre as duas o fazia sentir-se excluído, rejeitado.

Ben Ata exagerou a expressão sarcástica e a pose militar.

Queremos saber se existem canções das quais talvez nos tenhamos esquecido e que nos esclareçam alguma coisa.

Compreendo, senhora.

Mais uma vez entreolharam-se interrogativamente.

Mas não há nada a temer... — Al.Ith fez uma pausa, e depois continuou — ... se não se lembrar de nenhuma. Para isso pedi a Ben Ata que chamasse você aqui. Não deve se preocupar... — outra pausa, e Dabeeb assentiu de leve com a cabeça — ... com isso. Foi apenas uma idéia que tive. Um capricho! — E adotou uma expressão de quem é sujeita a caprichos e está acostumada a satisfazê-los, um ar de fatui­dade e de auto-congratulação.

Compreendo, senhora.

Gostaria que me chamasse pelo meu nome.

É difícil de lembrar. — Como quem se desculpa, quase uma súplica.

Temos todo o tipo de canções, mas, por exemplo, no outro dia, ouvindo as crianças cantarem, compreendi que al­gumas partes devem ter sido esquecidas ou alteradas... ou coisa assim. E talvez o mesmo se dê com vocês.

Talvez.

Ouvi uma canção da outra vez em que estive aqui. O ritmo é este... — E Al.Ith apoiou a mão na mesa e tam­borilou com os dedos:

Dabeeb assentiu com a cabeça.

Ê talvez uma canção das mulheres?

Todos a cantam, senhora.

Talvez palavras diferentes sejam adaptadas à mesma música, em tempos diferentes — disse Al.Ith despreocupada­mente.

Acho que isso acontece às vezes aqui — observou Dabeeb.

Ben Ata estava mais alerta do que já estivera em toda a sua vida.

Sabia muito bem que esse encontro das duas mulheres es­tava combinando níveis de compreensão que no momento ele não podia alcançar. Mas pretendia descobrir. Contudo, mais for­te nele, envolvendo pensamentos e intuições diferentes, dominava a suspeita. E estava tão desamparado e rejeitado quanto uma criança que vê uma porta fechar-se à sua frente.

Tem algo a ver com luz? — sugeriu Al.Ith.

Luz? Creio que não. Não me lembro de ter ouvido essa.

Mas seus olhos diziam que sim, e pedia, implorava a Al.Ith que não as traísse. Al.Ith percebia que sua idéia sobre as mulheres não era apenas correta — mas também inteiramente incompleta. Existia algo como um movimento secreto, subterrâneo.

Quer que eu cante uma das versões para a senhora? É muito popular.

Sim, eu gostaria.

É uma canção muito antiga, senhora. — E Dabeeb pigarreou, ficou de pé atrás da cadeira, segurando o encosto com uma das mãos. Sua voz era forte e clara e evidentemente usada com freqüência.

"Olhe para mim, soldado! Ele está olhando!

Ê para mim que ele olha!

Logo vou sorrir, não para ele,

Isso o conquistará!"

E as duas mulheres ouviram a respiração tensa e furiosa de Ben Ata.

Não olharam para ele; sabiam que iam ver um homem dominado por frenéticos ciúmes. Tudo estava perfeitamente claro agora para Al.Ith. Admirou-se da própria falta de tato; e também da conveniência dos acontecimentos, que sempre iam ao encontro da sua vontade, encadeando-se inevitável e satisfa­toriamente, revelando facetas da verdade, as possibilidades de desenvolvimento, uns transmitindo luz aos outros.

Tinha certeza de que Ben Ata desejara possuir essa mulher, e que ela se negara a ser possuída. Sabia que a mente de Ben Ata estava ardendo de ciúmes e suspeitas. Nada mais podia fa­zer do que deixar-se levar pelos acontecimentos — esperar para ver.

Dabeeb estava cantando:

 

"Brilham os olhos —

Os dele e os meus.

Sei como agradecer-lhe

Simplesmente provocando-o.

Farei com que fique faminto

Lânguido e furioso,

E que pague meu soldo

O soldo de um cabo."

 

A voz forte deixou um silêncio intenso, acompanhado pela chuva.

— Cantamos essa canção nos festivais das mulheres — sabe, quando as mulheres se reúnem.

Vendo o sorriso satisfeito de Al. Ith, ela disse, sem atentar à ousadia e encantada consigo mesma -— e até mesmo olhando para Ben Ata com um erguer de ombros malicioso para a fúria dele:

Há outra versão, mas naturalmente não é apropriada para os seus ouvidos, senhora.

Oh, não se preocupe — disse Ben Ata. — Não deixe que essa idéia a intimide. Se você soubesse o que fazem lá na Zona dela...

Dabeeb piscou um olho maliciosamente para Al.Ith e corou com a própria ousadia. E começou a cantar.

"Venha, marido! Amaciar minha... almofada...

Não deve cantar isso — disse Ben Ata, com um ar de superioridade moral muito calma.

Talvez a Sr.a Al.Ith deseje conhecer o que temos de pior, bem como o que temos de melhor, senhor — observou Dabeeb, com voz quente e tranqüila, maternal. E como Ben Ata não insistisse, continuando apenas a andar de um lado para o outro bufando sua insatisfação, ela recomeçou:

"Venha, marido!

Amaciar minha... almofada.

Rápido, continue..."

 

Dabeeb fez uma pausa, tamborilando com os dedos na mesa.

 

"Estou faminta como... o inverno.

Nenhum pecado nisso..."

 

Tamborilou outra vez:

 

"Aqueça-me

Encha a minha taça..."

 

Tamborilou.

 

"Agora... vá.

Rápido. Lentamente."

 

Ela tamborilou. Piscou para Al.Ith outra vez e, ani­mada pela canção, piscou para Ben Ata também, e ele não conseguiu conter um sorriso de apreciação.

 

"Dura como madeira

É esta velha cama..."

 

Tamborilou.

 

"Um, dois, três, quatro

Um, dois, três, quatro..."

 

Tamborilou, sorrindo, a própria imagem animada do de­safio e do convite.

 

"É assim que fazemos.

É assim que fazemos.

Esse é o nosso modo.

Esse é o nosso modo."

 

Um tamborilar longo e contínuo, e Dabeeb estava com os dentes à mostra.

Vai fazer uma bela idéia de nós, senhora.

Ben Ata estava de pé, braços cruzados, pés firmes no chão, sorrindo. A canção criara uma corrente intensa entre ele e Dabeeb, que o provocava com olhares confiantes e maliciosos.

Al.Ith observava com interesse. Como se estivesse vendo os movimentos de aproximação de um casal de cavalos.

Nós temos uma canção... — disse ela com voz calma, e Dabeeb deixou que a tensão entre ela e Ben Ata se abrandas­se, voltando sua atenção para Al. Ith.

Esta pensava que a mentira que ia dizer não teria sido possível na Zona Três, onde jamais havia ocasiões para mentiras.

E, agora, dizia:

Temos uma canção... — quando na verdade não ti­nham nada parecido.

 

"Como chegaremos à morada da luz?

Venha para onde está o prazer..."

Oh, não interrompeu Dabeeb —, não temos nada parecido. Não gostamos desse tipo de coisas. Estava obviamente assustada.

Não acha que seria uma boa idéia fazer um festival de canções aqui? perguntou Al. Ith.

Oh, uma ótima idéia. Muito boa mesmo disse Da­beeb com entusiasmo. E seus olhos imploravam.

Talvez possamos falar sobre isso, Ben Ata disse Al.Ith, e imediatamente passou a dirigir-se a ele: Dabeeb teve a delicadeza de me dar um dos seus vestidos. Eu gostaria de lhe dar um dos meus.

Mas ela tem dúzias. Ficou com todos aqueles que não eram bastante bons para você. O que fez com eles, Dabeeb? Rasgou-os?

Vendi alguns, senhor. Não serviam em mim. E, para Al.Ith: Ficaria muito grata. Se pudéssemos... quero dizer, se eu pudesse ter um dos seus vestidos...

Então venha comigo disse Al. Ith, dirigindo-se para seus aposentos.

Senhora, será que poderia me dar esse que está usan­do? Nunca vi nada igual.. .

As duas mulheres entraram nos aposentos de Al.Ith e Ben Ata chegou perto da porta e inclinou-se tentando escutar. Ouviu-as falar sobre roupas, sobre tecidos e costura. Al. Ith tira­va o vestido e Dabeeb parecia encantada com ele.

Oh, é muito fino para mim, oh, é tão bonito, oh, oh, que lindo...

Quando vocês fazem um vestido para uso diário, sem­pre fazem cópias para ocasiões especiais?

Uma breve pausa.

Quase sempre, Al.Ith.

Deve ser interessante usar um vestido simples e pen­sar no que se vai usar em uma ocasião especial.

Sim, é. Mas naturalmente não temos tantas ocasiões especiais assim. Somos muito pobres, aqui.

"Oh, então somos pobres, não é?", pensava Ben Ata. E voltou rapidamente para a mesa sentando-se na cadeira que Dabeeb tinha ocupado. Tamborilava com os dedos. Elas não o tinham enganado. Não tinha certeza do que estava acontecendo, mas sabia que algo pairava no ar. Faria Dabeeb lhe contar. Se não conseguisse a informação de Al.Ith, antes.

As duas mulheres voltaram à sala e ele estava sentado sorridente, a própria imagem do bom humor.

Olhou para ambas com extrema admiração. A beleza mo­rena e cheia de vida de Dabeeb combinava perfeitamente com o vestido de seda castanho claro que Al. Ith acabava de despir. O vestido de Al. Ith era amarelo brilhante e parecia absorver a luz suave do grande aposento — e devolvê-la. Os cabelos negros, soltos, brilhavam, os olhos brilhavam, cheios de alegria e malícia. Ben Ata pensava no prazer de possuir as duas ao mes­mo tempo — uma possibilidade que jamais passara por sua mente antes das lições de Elys. Lembrou-se do desprezo de Al. Ith pela palavra possuir. Com a cabeça levemente abaixada, ele as observava, os olhos atentos sob as sobrancelhas grossas — e seu espírito parecia debater-se, tentando ultrapassar os próprios limites. Um lampejo de compreensão o fez entender por que Al. Ith censurava sua linguagem. Mas apagou-se logo. A suspeita sombria assaltou-o novamente ao ver Al.Ith acompa­nhar Dabeeb até o arco da entrada; Dabeeb colocou a capa militar sobre os ombros, sorriu para ele, disse algo breve e ín­timo para Al. Ith e correu para fora, desaparecendo na espes­sura cinzenta da chuva.

Al.Ith viu-a partir e sorriu. Voltou-se para Ben Ata e sorriu. Com aquele vestido ensolarado, pareceu a Ben Ata mais bela do que ele podia acreditar e — naquele momento — mais bela do que julgava merecer. Via-a como uma criaturinha cheia de vida, volátil, ardente com uma chama que ele oprimia e apagava, Mas o ciúme o consumia.

Al Ith o convidava. Tudo nela, naquele sorriso tentador, o encantava. Ben Ata lançou-se pesada e desajeitadamente para ela, mas Al.Ith esquivou-se, não por provocação, mas desapontada.

— Não, não, Ben Ata, não estrague tudo agora. — Ela tentava uma união suave e alegre como tinham tido há pouco tempo, naquelas horas em que Ben Ata se sentira tão acima de tudo o que conhecia e de tudo o que era, que não podia acreditar que tais coisas fossem reais, como não acreditava ainda que conseguira erguer os olhos para a vasta região mon­tanhosa que se desenhava no céu, a oeste. Agarrou-a e ela resistiu.

— Espere, espere, Ben Ata. Não quer ter o que tivemos uma vez?

Oh, sim, ele queria, muito, desesperadamente, ardia de desejo por aquilo e nada mais — mas nada podia fazer, por ela ou por si mesmo —, tinha de agarrar, esmagar, eliminando toda possibilidade de ternura e de alegria, da lenta escalada do prazer compartilhado. Possuiu-a. E depois, toda a vida apagada dentro dela, Al.Ith o possuiu. Não era uma experiência nova para ele, depois de Elys, mas durante todo o tempo lem­brava-se daquela outra vez com Al. Ith, e tudo parecia forçado e sem encanto, simplesmente porque aquela vez era o passado, não estava mais com eles. Al.Ith não chorou, e nem se deixou pulverizar em submissão. Deu o melhor que tinha, palavras escolhidas por ela, entre outras tantas, entregando-se a ele com um sorriso de indiferença, de zombaria.

Depois de algumas horas desse intercâmbio obstinado, tudo o que restou foi hostilidade e depressão.

Quando se levantaram para tomar banho e se vestir, o belo quarto grande e alegre parecia despojado de toda cintila­ção e o tambor parara de tocar.

Dessa vez agiram com eficiência e ordem. Ela envolveu-se em uma manta, lembrou-se de apanhar o escudo e saiu para o jardim, pela porta oposta à usada por Dabeeb ao partir na chuva. As fontes cantavam frias sob o frio azul do céu.

Ben Ata acompanhou-a, envolto também em sua capa militar. Al. Ith chamou os cavalos e os dois, um branco e outro preto, subiram a colina a galope. Montaram e, sérios, foram em direção da estrada de oeste. Conversavam sobre o que viam ao lado da estrada — as plantações, os canais, os campos.

Não se poderia imaginar nada mais sensato e conjugal. Mas o espírito de Al.Ith estava tão longe de Ben Ata que ele não conseguia dela nem um momento de verdadeira atenção. Estava claro que ela não queria nada dele — apenas livrar-se da sua presença. E Ben Ata sabia que a culpa era toda sua.

Na fronteira pararam por um momento, e Al.Ith prepara­va-se para atravessar a imensidão ensolarada da planície sob as montanhas, quando Ben Ata exclamou, com voz rouca:

Al.Ith, espere!

Ela voltou-se com o mais frio e zombeteiro dos sorrisos.

Suponho que agora vai para Kunzor — gritou ele, fu­rioso.

E para os outros — respondeu ela. E partiu.

Ben Ata resmungou algo sobre chamar Dabeeb de volta, mas sabia que não faria isso. Pensava. Compreendia que, em­bora o ciúme, o ressentimento e a suspeita o dominassem, envenenando seus pensamentos, estava a ponto de compreender outras coisas. E resolveu que ia desvendá-las.

As pessoas que o viram voltar pela estrada observaram que o rei estava cabisbaixo. Aquela estrangeira não lhe trazia nenhum satisfação, fosse lá o que fosse que ela estivesse fazendo!

Exatamente como na última vez, Al. Ith e Ben Ata, ela entrando na Zona Três, ele voltando para a Zona Quatro, sentiam que o fardo de suas emoções não tinha sido aliviado como espe­ravam, ao contrário, parecia mais pesado. Quando estavam juntos, provocavam um no outro sentimentos indesejados, iso­lados, pensamentos que atormentavam e feriam. Ben Ata sentia que carregava consigo uma maldição, um demônio que não lhe permitia estar com Al.Ith do único modo que poderia condu­zi-los a uma incrível felicidade. Al. Ith sentia-se presa ao marido pelo mais doloroso dos grilhões — uma palavra que ela exami­nava e reexaminava como se fosse um novo traço de um desenho complicado ou um novo metal trabalhado nas oficinas do Norte, onde ficavam as minas. Ben Ata era um peso atado a ela, não, um peso no seu ventre, onde estava a criança, mas esta não passava de um ponto, uma partícula de matéria nova, e não poderia fazê-la sentir-se assim sobrecarregada. Cavalgando para oeste, seu espírito estava com Ben Ata, e ele dirigia-se com determinação para os campos baixos e úmidos... Devia ter-lhe perguntado isto, procurado saber aquilo... se tivesse feito isto e não aquilo... pois, longe dele, não conseguia acreditar que tivesse realmente agido daquele modo. Quando voltara ao quar­to central do pavilhão, aquele aposento claro, de teto alto, estava vibrante e fortalecida pela conversa com Dabeeb, cheia de vivacidade e confiança, esquecida da disposição sombria de Ben Ata. O vestido amarelo vivo servia-lhe tão bem quanto a própria felicidade. Mas nada havia acontecido além da punição que Ben Ata chamava de amor.

E agora, atravessando a planície onde a relva brilhava suavemente nos dois lados da estrada e o céu sobre sua cabeça tinha tons tranqüilos de azul, sentia como se essa terra lhe fosse estranha ou como se ela fosse estranha à terra. O inesperado da sensação fê-la descer do cavalo e ficar parada ao lado dele, o rosto encostado no focinho do animal, murmurando: Yori, Yori, o que vamos fazer? Mas até esse amigo querido parecia impacientar-se com ela.

Caminhou na terra macia da estrada e Yori a acompanhou de perto. Esse era o seu lar, estava na sua terra, ela, Al. Ith, era o coração e a alma desse país mas sentia-se como um fantasma, sem substância.

Chegando a uma estrada que cortava a do oeste, na dire­ção norte sul, tomou o rumo norte, sempre a pé, caminhando lentamente como se não quisesse chegar ao seu destino. Andou durante o dia todo, Yori acompanhando-a e, às vezes, encos­tando o focinho interrogativamente no rosto dela. Mas Al.Ith não queria montar. Pensava: "Se eu andar, um passo depois do outro, sobre este solo que é meu, talvez eu o obrigue a receber- me de volta, a aceitar-me dentro dele..."

Quando a noite começava a cair, viu um cavaleiro que vi­nha em sua direção. Era Kunzor. Ele desceu do cavalo, segurou as mãos de Al.Ith e olhou-a nos olhos.

Os dois cavalos encostaram os focinhos trocando notícias.

Senti que você estava com problemas, Al.Ith.

Sim, estou, mas não sei o que é.

Saíram da estrada e depois de algum tempo encontraram um regato com vegetação baixa marcando suas margens e sentaram-se de mãos dadas.

Al.Ith tentava, com todas as suas forças, identificar-se com Kunzor, sentir o que ele era, como ele era... observava a si mesma fazendo esse esforço, cheia de desalento, pois não costumava ser assim. Quando se encontrava com alguém, espe­cialmente com os que lhe eram mais chegados, aquilo que eles eram, suas personalidades reais imprimiam-se imediatamente nela nítidas, claras e inconfundíveis, únicas, ele ou ela...

Sempre achara isso natural o momento do reconhecimento. A personalidade de Kunzor, individual e única, tinha um sabor que Al. Ith jamais poderia confundir. Era uma força masculina poderosa, ágil, seca. Cortante e enérgica como os ventos que vêm da neve, antes da nevasca.

Mas nunca antes precisara pensar sobre isso, esforçar-se para alcançar essa união e falhar. Incapaz de unir seu espírito ao dele, Al.Ith examinou-o cuidadosamente como se a avaliação externa fosse um substituto.

Kunzor, entre os homens com quem ela estava, era o mais próximo de Al.Ith. Eram até parecidos. O corpo dele era também esguio, os movimentos ágeis e rápidos, os olhos negros como os dela, profundos e pensativos. Quando estavam juntos, um sabia o que o outro pensava. Seus sentimentos sempre passavam através das mãos unidas como se fossem uma corrente sangüínea. Podiam passar dias, semanas, quase sem dizer uma palavra. Agora, até o canto da água corrente parecia uma barreira a essa união e, quando ela começou a chorar, Kunzor simplesmente assentiu com a cabeça.

Você está diferente observou ele. Não ouve o que eu sou. E tudo o que posso ouvir de você é que seu espírito está confuso e pesado.

O pior é que não quero voltar para casa, para o meu reino. É como se não me pertencesse. Pareço uma estranha para você, Kunzor?

Sim. É como se você, Al.Ith, sua forma, tivesse to­mado outra substância. Mas posso falar com você e você me compreende.

Em certos momentos não o compreendo. Sua voz pa­rece ficar distante e depois voltar, e às vezes eu a sinto em mim, como sinto seus pensamentos, quando sou eu mesma. Mas então vejo que você está fora de mim e não dentro da minha mente.

Ele disse em voz baixa e vacilante:

Mas agora você hospeda uma criança de lá.

Sim, e quando ela nascer, nascerei também? Acha que sim?

Você não pode hospedar uma alma daquela terra tão distante e não se perder para ela, Al.Ith.

O que devo fazer?

Al.Ith, bem sabe que não há nada que possa fazer.

O céu perdeu a luminosidade e coloriu-se com os tons da uva madura e o vento leste começou a agitar a relva. Os cavalos desceram cuidadosamente até a margem do regato, abrigando-se do vento. E a mulher e o homem ficaram sentados, muito juntos, de mãos dadas, em profundo desamparo, apoiando-se um no outro.

Nas reproduções dessa cena, eles aparecem separados, sem se tocar. Al.Ith com a cabeça baixa, triste, e Kunzor observa-a com consternação fraterna. Eu acho que a verdade é como a descrevi. Pois, se ela se sentia afastada dele, esse homem que fora sempre parte dela mesma, conheciam-se desde crianças, pensava que enquanto ela não saísse da sombra da Zona Quatro — era assim que sentia —, não seria capaz de aproximar-se realmente de Al. Ith. Contudo, segurou a mão dela a noite toda e tentou consolá-la quando ela chorava.

O céu clareou novamente e os ventos amainaram de súbito. Al. Ith levantou-se, retirou as sementes de relva e a poeira que o vento trouxera para o vestido cor do sol, que acentuava a palidez do seu rosto, e agradeceu a Kunzor por ter ido ao seu encontro.

Tinha de subir ao planalto, quisesse ou não.

Separaram-se e ela voltou à estrada que levava para oeste. Yori parecia satisfeito por voltar e trotava alerta e cheio de energia, mas Al.Ith percebeu que a pressão dos seus joelhos transmitia a ele seu estado de espírito, portanto, para não apagar o prazer de Yori, procurou sentir-se tão satisfeita quanto ele.

Enquanto subia o desfiladeiro, Al.Ith pensava que, uma vez no planalto, sua terra a receberia novamente. Esperava que isso acontecesse quando encontrasse algum conhecido. Viu um grupo de jovens andando ao lado da estrada, na direção de uma cidade na colina, e diminuiu a marcha para que a vissem e falassem com ela, como sempre acontecia, mas pareciam nem tê-la visto. Vinham em sua direção e Al.Ith esperou, mas eles olhavam para outro lado e não interromperam as conversas e as risadas. Ela disse em voz alta:

Meus cumprimentos! Tudo vai bem com vocês?

E eles responderam:

Cumprimentos! Sim, obrigado, esperamos que com você também...

E ela compreendeu que não fora reconhecida como Al. Ith. Isso nunca acontecera antes. Mergulhada nas profundezas do pensamento que a assaltou, nem se deu conta de ter transposto a distância que a separava de Andaroun. Tinha a vaga lem­brança de passar por pessoas que não a reconheciam e de Yori diminuir o passo, deprimido, refletindo os sentimentos dela. E entrou na nossa capital lentamente, como se temesse ser mal recebida ou até mesmo punida. Sentia-se ainda como se não fizesse parte do seu amado reino, pesada como uma pedra no dorso do cavalo, um fardo de má sorte, sçm nada para retri­buir o encanto amistoso das nossas ruas, avenidas e jardins. Sua terra não a conhecia. Estava repleta de uma substância estranha àquela terra hostil, mas não sabia como. E agora, pensando em levar ao estábulo o seu companheiro, o pobre Yori, seu único amigo nesse momento, e subir as escadarias para encontrar-se com a irmã e com os filhos, com os quais normalmente passava várias horas todos os dias, quando não estava viajando pelo reino, não acreditou que tivesse forças para tanto. Uma impostora. Era como se sentia agora. E entre ela e Ben Ata o vínculo pesado e poderoso, e podia sentir os pensamentos dele, vibrantes e persistentes. Esperava que ela voltasse, e, ao mesmo tempo, a certeza dessa volta enchia-o de desespero e de angústia. Ele estava no pavilhão, não com os soldados. Sentado, sozinho, pensando. Ou andando de um lado para o outro. Tentando compreender, descobrir aquilo que ambos precisavam saber. E Al.Ith devia estar ali com ele. Mas o tambor estava mudo. Ela sabia. Podia ouvir o suave murmúrio das fontes. Os gritos e ruídos metálicos dos soldados em exercícios na planície. Mas o tambor estava silencioso e Ben Ata aguçava o ouvido, desejando que ele tocasse, tanto quanto Al.Ith desejava. E temia.

A própria essência da Zona Quatro — conflito e batalha e guerra. Em tudo, tensão e luta em sua própria substância; cada sensação, cada pensamento continha em si o seu oposto.

Quando chegou ao palácio que ocupava dois lados da praça principal, Al.Ith desceu do cavalo e, como sempre fazia, ergueu os olhos para ver quem a estaria esperando na larga escadaria branca. Ninguém, nada. Caminhou até as árvores da praça onde ficavam os cavalariços, sempre prontos a tratar dos animais que chegavam de viagem, e um deles levou Yori — mas não a recebeu como rainha. Foi delicado, mas quase indiferente. Al.Ith voltou à escadaria e subiu lentamente, sentindo a carícia da saia do vestido amarelo nas pernas. Nunca, nunca chegara a essa entrada do palácio sem que as pessoas corressem de todos os lados para recebê-la, vindas do palácio, dos jardins e de outras partes da praça. "Al.Ith", exclamavam. "Al.Ith está aqui!" No silêncio profundo, acentuado pelo arrulhar dos pombos nas árvores, subiu até as salas do primeiro andar, passando rapidamente por elas, para ver quem estava traba­lhando, o que estava acontecendo; em uma das salas, sua irmã e umas 20 pessoas mais ou menos reuniam-se em Conselho. Ninguém levantou os olhos quando ela parou na porta. Dis­cutiam uma doença misteriosa que estava assolando o gado na região oeste — então, nada havia melhorado, nada estava melhorando ainda. Mas, naturalmente, ia melhorar agora. Murti estava de costas para ela, mas habitualmente isso não a teria impedido de pressentir a presença de Al.Ith e de se voltar para cumprimentá-la. Uma jovem que Al.Ith conhecia bem, uma das órfãs da qual se tornara mãe, finalmente le­vantou a cabeça e olhou em sua direção, mas desviou os olhos imediatamente, como se Al.Ith não estivesse ali.

Recolheu-se a seus aposentos. Os quartos estavam inun­dados pela luz amarela do sol poente e Al.Ith sentou-se ao lado da janela, envolta em amarelo, forte e alentador, mas sentindo-se uma sombra apenas, um fantasma. Nesses apo­sentos, simples e agradáveis, onde cada peça fora escolhida por ela por sua afinidade de formas e cores, sempre conseguia mergulhar no próprio ser, que crescia e se expandia nesse ambiente, sorrindo... mas, agora, todo o refinamento de tons e texturas, toda a sutileza se recusavam a aceitá-la; ela estava pesada, desajeitada, não combinava. Provavelmente não deveria ter voltado.

Subiu para os telhados e caminhou sobre eles contem­plando o sol poente que iluminava as montanhas. Lá embaixo estendia-se a nossa capital, as ruas e jardins familiares. Conhecia cada praça, cada construção pública, cada casa — algumas intimamente, por ser amiga dos moradores, mas todas as outras, pelo menos a aparência, a fachada, os telhados, os desenhos das janelas — tudo isso parte dos seus hábitos mentais. Mas não era bem-vinda agora.

Esperando encontrar no alto da torre aquela parte de si mesma que parecia ter perdido, subiu a escada em espiral e lá nas alturas vertiginosas, no mesmo plano das montanhas, das nuvens e da neve, com os pássaros passando ante os seus olhos, contemplou a passagem entre as cordilheiras onde os campos azuis a esperavam, mas murmurou: Longe. Muito longe... e não podia acreditar que há pouco tempo, nessa mesma torre, sentira que bastava deixar-se levar por aquele azul cerúleo para lugares que jamais conhecera ou imaginara, sentindo que um passo para fora da torre a transportaria através do céu cintilante, mais leve do que o ar e que desapareceria no azul como nuvens dissolvidas pelo calor do sol. Agora sentia-se pesada e presa à terra e sentia que era errado estar ali. Não era bem-vinda.

Desceu rapidamente para seus aposentos, onde encontrou a irmã. Murti espantou-se ao vê-la. Não a esperava. Ficaram atônitas e consternadas. Nunca antes lhes acontecera ignorar o paradeiro uma da outra ou o que estavam fazendo, mesmo quando separadas por grandes distâncias.

Al.Ith sentou-se perto da janela com Murti ao seu lado, mas separadas. Examinavam-se mutuamente cheias de mágoa e como estranhas. Al.Ith via em Murti uma criatura etérea, toda chama e brilho, como uma fonte que se renova a cada instante em nascentes que eram agora um mistério para Al.Ith, e, para Murti., a irmã era uma criatura a quem toda a lu­minosidade tivesse sido roubada.

Ás crianças têm perguntado por mim? — perguntou Al.Ith, com voz suplicante e humilde.

E Murti, o rosto crispado ao ouvir esse tom de súplica, respondeu com dificuldade:

Não.

Não sentiram a minha falta?

Falam como se você estivesse morta, Al.Ith. — Inclinou-se para a frente, segurou a mão de Al.Ith entre as suas, levada pelo hábito antigo, para renovar as correntes que fluíam entre elas. Mas, com um suspiro, retirou a mão va­garosamente.

Você diz a eles que não estou morta, que vou voltar?

Depois de alguns momentos, os olhos compassivos e brilhantes de Murti desviaram-se dos da irmã e ela disse:

É diferente. Não sei por quê. Al. Ith, é difícil para nós nos lembrarmos de você. Compreende isso?

A angústia de Al.Ith conteve a dor e ela não chorou. E guardou a angústia, essa sensação que não fazia parte do seu belo reino, onde a dor e o sofrimento eram sinais de doença, que devia ser tratada com carinho, compaixão e cuidado para que o mal não afetasse os outros.

Al.Ith levantou-se. A luz fulgurante do sol mergulhava no horizonte e as ruas e aléias estavam na sombra, enquanto os raios dourados aqueciam ainda os telhados. Chegavam até elas os gritos e as vozes da cidade: calor, vida, energia.

Al.Ith comprimiu as mãos contra o corpo como para evitar que seu contato contaminasse outras pessoas.

As coisas melhoraram para nós? Os animais estão ainda deprimidos? Ainda se sentem abandonados?

Estão abandonados, Al.Ith? — As duas irmãs estavam próximas uma da outra, mas não como no passado, não com os braços entrelaçados, os rostos às vezes se encostando, uma sentindo o ritmo da outra como se fosse o seu. Estavam próximas mas não se tocavam e a linguagem do olhar era cheia de reticências.

Sim, estão tristes e solitários — murmurou Al.Ith. Falavam em voz baixa, embora não pudessem ser ouvidas ali onde estavam. — Uma égua no meio da manada sente-se só, sem entender o que sente, e fica parada, trêmula à espera de uma palavra, de uma voz, e só ouve o silêncio. Um garanhão atravessa galopando a pradaria, de um extremo ao outro, acossado pelo vazio. O gado, todos os animais do rebanho, erguem as cabeças ao mesmo tempo e dizem que estão sofrendo...

Eu os ouvi, Al.Ith, eu os ouvi — murmurou Murti.

Na colina, centenas de ovelhas desgarram-se, os pas­tores correm atrás delas, chamando-as, procurando acalmá-las. Os animais sentem a perda terrível de alguma coisa, Murti... mas estão melhorando, o sofrimento está diminuindo?

Murti balançou a cabeça e suspirou:

Acho que não.

E nós todos estamos ainda sem esperanças? Não tem havido nascimentos?

Tudo está na mesma, Al.Ith; faz pouco tempo que você foi levada a outra Zona. Parece muito, para você?

Muito, muito tempo. Oh, tanto... — E as lágrimas jorraram dos olhos de Al.Ith.

Teremos de aceitar lágrimas e sofrimento como parte do funcionamento normal da nossa Zona? — perguntou Murti com revolta na voz.

Não, não, você está certa.

Se compete a você, nesta série de eventos, ir àquele outro lugar e conhecer lágrimas e dor e...

Você não sabe, Murti, nem pode imaginar!

Não. Mas não fui eu a destinada a esse casamento, Al.Ith! Estou certa de que é uma missão muito alta, muito mais importante do que podemos imaginar — mas você não deve envenenar-nos com seu sofrimento.

Falava com voz seca, resoluta e irada. Al. Ith compreendeu que sua bela irmã, seu outro eu, estava tão decidida a proteger o reino quanto ela própria sempre estivera. Murti era agora a terra, o reino. Ela o personificava e o continha.

Al.Ith murmurou:

Nossos animais estavam deprimidos e inquietos muito antes da minha ida para a Zona Quatro.

É verdade. Mas agora, quando você volta, traz con­sigo uma nuvem negra. Ah, se pudesse vê-la, minha irmã! Não. Não deve voltar mais até...

Até o quê? E não estou obedecendo à minha vontade, mas a deles.

Murti assentiu com a cabeça.

Isso não me diz respeito. O que posso dizer é que você está trazendo algo contagiante. Não é sua culpa. Nada é sua culpa, Al.Ith. Como poderia ser? Mas tem um papel a desempenhar. Para o bem de nós todos.

Al. Ith balançou a cabeça. Sem olhar para a irmã, foi até os seus armários e começou a encher duas sacolas de sela com todo o tipo de objetos necessários.

E o festival de canções e histórias, está sendo providenciado?

É importante?

Al.Ith voltou-se rapidamente e olhou para Murti com intensidade:

Sim, é. Muito.

Então, eu providenciarei. Sabe por quê?

Você terá de compreender por si mesma — disse Al. Ith exatamente com a expressão humilde que havia perturbado Murti. — Existe alguma coisa que devemos descobrir, Murti, tenho certeza, sei que... —- E aproximou-se da irmã, esque­cendo-se da distância que as separava. Mas o apartamento estava agora na penumbra. A alta janela retangular mostrava uma luz escura que morria, e as estrelas tinham aparecido.

Murti deu um passo atrás, afastando-se do contato contaminador. Mas parou imediatamente.

O que é?

Alguma coisa que nós devíamos ter feito. E que não fizemos.

Mal podiam ver o rosto uma da outra agora, e incli­navam-se para a frente.

Você não sabe o que é?

Não. Tem algo a ver com o reino azul além das mon­tanhas a noroeste. Mas, o que, Murti? O quê? Essa é a questão.

E é o que precisamos descobrir. Precisamos descobrir por que estamos aqui.

E Al.Ith voltou-se e correu para fora do apartamento, desceu a escada até o andar inferior onde ficavam as salas do Conselho, e continuou até chegar aos degraus brancos da entrada, que desceu também apressadamente, e na praça dirigiu-se para a pequena rua ao lado do palácio, na qual ficavam os estábulos, e encontrou Yori. Montou-o e saiu da cidade, cavalgando a noite toda, até chegar ao desfiladeiro de ma­drugada. Atravessou então a planície durante a manhã e chegou à fronteira ao cair da noite. Mas o tambor não estava tocando. Sabia disso. Desmontou, levou seu Yori para perto de um regato onde havia alguma relva para pastar e sentou-se sozinha durante as horas da noite escura, contemplando o movimento das estrelas. Não podia entrar na Zona Quatro: não tinha chegado a hora. E não a queriam em sua própria terra.

E foi assim que a nossa rainha, Al.Ith, vagueou entre as duas Zonas, desconhecida, sem saber o que queriam dela ou qual seria o seu futuro, faminta, com frio, sozinha, exceto pela companhia do seu cavalo. E, antes da manhã, Yori dei­tou-se em um monte de palha, Al.Ith aconchegou-se ao calor do seu corpo e esperaram o nascer do sol.

Al.Ith cantava para si mesma:

Pesar, qual é o seu nome!

Se soubesse seu nome, poderia alimentar você...

Poderia satisfazê-lo, imobilizá-lo e abandoná-lo!

Mágoa, se eu conhecesse sua natureza,

Eu a apascentaria.

Por qual caminho devo conduzir você?

Qual o alimento que devo dar a você?

 

Quando acordou ao nascer do sol, Al.Ith estava enco­lhida sobre a relva da margem do regato, como um animalzi­nho abandonado pela mãe; seu cavalo pastava ali perto. Co­lheu as finas sementes da relva e comeu-as, bebeu água do regato e sentou-se, contemplando as montanhas do seu reino.

Sonhava com as viagens que fizera pelo seu país, para o norte, oeste e sul, onde cresciam as vinhas e os olivais, e para o leste novamente, onde vagava agora. Como era variada, maravilhosa e rica essa sua terra, da qual estava agora banida, onde não era bem-vinda. Quanto tempo andara por ela, reunindo e realizando em si mesma todo o seu potencial. Ela, Al.Ith, a bela, agora uma fugitiva, não-desejada em lugar algum, sen­tou-se na beira do rio, tentando lembrar-se por quanto tempo gozara de toda aquela riqueza. Mas não conseguia lembrar-se.

Esperou durante todo o dia, o rosto erguido na direção das altas cadeias de montanhas de sua terra, e à noite o cavalo deitou-se outra vez e ela encostou-se nele para se abrigar do vento cortante que começava ao pôr-do-sol, soprando das planícies de leste. Deitou a cabeça no flanco de Yori e escutou o coração que batia forte, e imaginou que eram os tambores nos pavilhões de Ben Ata. Mas não eram. Ben Ata estava sozinho, andando por aqueles quartos vazios e ao redor das fontes, esperando, copio Al.Ith, que os tambores recomeçassem.

Mas não tocaram.

Passaram-se dias.

Enquanto havia claridade, ela caminhava pela margem do regato, observava os pássaros que se banhavam nas águas claras, ou sentava-se, contemplando as suas montanhas. Às vezes a luz atingia-as em cheio e cada vale, cada rocha, tornava-se visível e definido. Mas, outras vezes, as montanhas pareciam flutuar, cintilantes ou na sombra, e seus picos e silhuetas mis­turavam-se ao azul do céu. À noite abrigava-se ao lado do cavalo, e não dormia, mas cantava lamentos de exílio e espe­rava a batida do tambor.

Mas não se ouvia nada dos pavilhões de Ben Ata.

Al.Ith perdeu a noção do tempo, não sabia quantos dias haviam passado. Imaginava que talvez tivesse errado o caminho. Ou talvez suas visitas a Ben Ata tivessem terminado, e ela falhara, e havia sido afastada e condenada a esperar ali até a morte. Mas então lembrava-se da criança, que não passava de um ato de fé para ela, uma vez que a nova vida não se fizera ainda sentir. Se ela não era necessária para osProvedores ou para a Necessidade, pelo menos a criança devia ser.

Ou talvez estivesse sendo punida... Quando esse pensa­mento surgiu insistente, ela procurou afastá-lo, pois lembrava- se ainda que em sua terra, quando alguém deixava idéias desse tipo tomarem conta do seu espírito, era sinal de doença mental, de um egoísmo chocante e monstruoso.

Mas a compulsão para acreditar que estava tremendamen­te errada era mais forte e continuava pressionando-a. Afinal, era na Zona Três que essas idéias eram interpretadas erroneamente, não na Zona Quatro e era a esta última, tudo indi­cava, que ela pertencia! Se é que pertencia a algum lugar agora mas como poderia saber? Se era culpada, qual era sua culpa, e por quç seria esta a punição acertada? Esses pen­samentos ou seriam emoções? giravam em sua mente ou seria no seu coração que ferviam e se agitavam?

Às vezes chamava Yori e olhava para os olhos meigos e inteligentes do animal.

Yori, Yori, então eu sou má? Você sabe o que foi que eu fiz?

Mas só via o amor do animal a ela, e toda a sua bondade, e logo Yori baixava a cabeça, como fazem os animais, para pastar.

Ele sentia-se tão solitário quanto ela, nesse lugar. Certo dia, uma manada de cavalos selvagens, as crinas ao vento, atravessou a planície, e Yori chamou-os e galopou para eles, o solo vibrando sob seus cascos. Durante todo o dia longo e feliz, Yori correu com eles, rolou no calor perfumado da relva, e em determinado momento correu com eles até se perder de vista, e Al.Ith pensou que ele não ia voltar. Mas voltou, sozinho, ao pôr-do-sol, e ela percebeu que estava triste e gostaria de ter ficado com os companheiros. Mas Yori encostou o nariz macio no pescoço dela cumprimentando-a, e pacien­temente deitou-se, porque os ventos de leste começavam a so­prar e era hora de protegê-la.

Passaram-se os dias.

Certa noite, quando a luz do sol já tinha quase desapa­recido, ela viu, no outro lado do regato, muito distante, um homem que se parecia com Ben Ata. Cruzou o regato, pas­sando sobre as pedras, e correu para o homem que estava no outro lado da fronteira, entre as Zonas. Parou quando sen­tiu a mudança na densidade do ar, e viu que não podia ser Ben Ata, pois era um homem abatido e desesperado, sem nada da força poderosa do rei da Zona Quatro. Mas o desejo de correr para ele era muito forte e Al.Ith compreendeu que era na verdade Ben Ata. Separados pela impossibilidade, fi­caram imóveis, olhando fixamente, e então ela chamou:

Ben Ata!

E depois de algum tempo, a voz áspera:

Al.Ith!

Suas vozes eram estranhas, fazendo-os lembrar suas di­ferenças e o quanto era abrasivo seu contato real. Mas per­maneceram ali, enquanto a noite descia e nada mais podiam ver além de sombras.

Ela não chamou outra vez, ele também não, mas mais tarde descobriram que ambos tinham ficado ali no escuro, com olhos muito abertos, inclinados para a frente, durante muitas horas. Ela voltou ao regato e ao abrigo do seu cavalo quando o vento se tornou forte demais para suportar. Naquela noite, sentiu o movimento leve que indicava que a criança era mais do que um amontoado de células. Colocou a mão protetoramente sobre o ventre, saudando-a, mas seu espírito estava di­vidido e em conflito.

Quanto a Ben Ata, que estivera atormentado pelo desejo de revê-la e de não mais se encontrar com ela, desde que a deixara na fronteira, quando a viu no outro lado, na semi- obscuridade, um frágil fragmento de mulher com o vestido amarelo brilhante, sentira uma verdadeira revolução no seu íntimo, e voltara a toda pressa para os acampamentos, passando pelos pavilhões onde estivera durante todos aqueles dias, sem perceber a passagem do tempo, como Al.Ith na beira do regato, e sentindo outra vez que ela perturbara sua razão. Mas, de volta ao acampamento, em sua tenda, com Jarnti e os outros oficiais que o saudaram delicadamente, continuava atormentado, como nos pavilhões... mas o que o atormenta­va? Não conseguia dormir. Não comia. Não podia ficar parado. Dabeeb, lavando a roupa da família em uma grande tina nos fundos da casa, viu Ben Ata saltar a pequena cerca e caminhar para ela com passo decidido como se fosse derrubá-la, a tina de água e as roupas molhadas e torcidas da bacia. Ele parou na frente dela e, segurando o queixo de Dabeeb, ergueu-lhe a cabeça e fitou-a nos olhos, esquadrinhando cada pedaço do seu rosto. Ele franzia a testa ante a imensidade de comparações que fazia. Dabeeb percebeu e não o culpou por isso. Pobre rei, está mesmo muito apaixonado, pensava ela, en­quanto sorria, escondendo pudicamente seus pensamentos por detrás dos olhos tranqüilos. Huuuuum. Não lhe fez mal ne­nhum, pensou ela, quando Ben Ata, sem se desculpar, voltou-se e se afastou. E Dabeeb sorriu para si mesma felicitando Al.Ith, imaginando como ela usaria esse desespero e essa fúria.

Mas Ben Ata não podia mais suportar esse torvelinho de emoções. Estava na hora de iniciar outra campanha. Febrilmente mandou pedir os últimos relatórios sobre todas as fron­teiras e descobriu — o que não era de surpreender — que tinha havido escaramuças nas fronteiras da Zona Cinco. "Es­tá na hora de lhes dar uma lição", murmurou, com outras frases rotineiras e rituais, e foi para a barraca dos oficiais para compartilhar a sua idéia e levantar um pouco os ânimos. Como sempre, todos ficaram encantados com a idéia de uma nova campanha. Sentado em sua tenda, agora, Ben Ata pensava em Al.Ith, e no desprezo dela por ele, suas guerras, campanhas. Pensava na última campanha, e, pela primeira vez, lembrou-se dos mortos e feridos, pois até agora jamais sentira necessidade de se lembrar deles.

Não podia cancelar essa campanha, pois o faria parecer fraco e vacilante, mas também não suportava a idéia de ca­valgar à frente dos soldados, "suportar toda aquela tagarelice", resmungava ele, desanimado, e "agüentar aquilo tudo durante dias e semanas intermináveis". Esses pensamentos lhe pareciam traição, e deixou escapar um rugido surdo de raiva, que foi ouvi­do pelos seus ajudantes, os quais se entreolharam, trocando co­mentários silenciosos que não ousariam dizer nem mesmo em um murmúrio.

Ben Ata lançou-se para fora da tenda, apanhou o primeiro cavalo que encontrou na cocheira e cavalgou na direção da fronteira de leste que era adjacente à da Zona Cinco. Não deixara nem um pouco da sua infelicidade para trás!

O que vou fazer? murmurava, enquanto alterna­damente soltava as rédeas do animal e puxava-as, batendo com a mão de leve no pêlo macio... a boca do cavalo estava cheia de espuma, o bridão o incomodava... Ben Ata lem­brou-se de que Al. Ith e todos no seu país cavalgavam sem elas ou arreios, que não batiam nos animais, não usavam nada do que para eles, da Zona Quatro, parecia necessário. Soltou a rédea e chegou a murmurar algumas palavras de compaixão para o animal mas ao fazer isso sentiu-se um traidor no­vamente. E por que estava indo na direção da Zona Cinco? Detestava aquele lugar. Muito antes de chegar à fronteira, o solo pesado e profundo, os campos ricos, os canais, as valas e os lagos, nas planícies intermináveis da Zona Quatro, que para ele até recentemente pelo menos significavam o que um país deve ser, cediam lugar a cerrados e areia e o ar era fino, com sabor de poeira. Jamais tinha penetrado no interior daquele lugar horrível, mas os cativos e mulheres que os soldados faziam desfilar à sua frente ou que atiravam na sua tenda eram sempre criaturas magras e esfarrapadas, as faces e os membros cobertos de poeira, com cabelo amarelo e sujo. Ele supunha que essa poeira seca era característica de toda a Zona, mas não tinha certeza. Jamais perguntara. Pen­sando nisso agora, lembrava-se de que nunca dissera a um prisioneiro ou a uma mulher mais do que palavras de comando, nunca lhes perguntara coisa alguma, apenas os punia ou usava.

Ben Ata não chegou até a fronteira, mas apenas ao ponto de onde podia avistar as colinas de areia, escarpas pedregosas e vegetação rasteira. Montado no seu cavalo, acariciando o pescoço do animal sem perceber que o fazia, e pensando na boca ferida da pobre criatura, lembrou-se das mulheres capturadas, a acre aspereza dos seus corpos, suas lágrimas, sua revolta.

Ben Ata chorou. Sabia perfeitamente que não ia iniciar nenhuma guerra contra esse lugar tão infeliz: daria uma contra-ordem assim que chegasse ao campo. Sabia que os soldados iam dizer que estava sendo vítima de uma mulher e que não servia mais como soldado. Dava razão a eles. Não queria voltar à sua própria terra, onde todos os seus pensamentos eram agora discordantes ou sediciosos.

Resolveu ficar onde estava. Desmontou, tirou a sela e as rédeas do cavalo, e voltado para sua terra, dando os costas para a Zona Cinco, sentou-se sobre sua capa, para uma vigília. E assim Ben Ata, rei da terrível Zona Quatro, estava longe dos seus exércitos e dos acampamentos, sozinho, quando o tambor começou a tocar. Ele não o ouviu.

Depois de uma noite insone e solitária, voltou. Ouviu o tambor quando chegou ao acampamento e ia correr diretamente ao encontro de Al.Ith, quando lhe ocorreu que talvez fosse muito tarde. Subiu a colina para os pavilhões, no exato momento em que ela aparecia no outro lado.

Os dois entraram no grande quarto central, por arcos opostos, e pararam, examinando-se mutuamente. Como sem­pre, a primeira coisa que notavam eram as diferenças: ambos, comparando os longos dias de incerteza, de desejo, de saudade com a realidade desse indivíduo obstinadamente controlado, sentiam apenas uma exaustão extrema.

Ambos demonstravam à primeira vista seu cansaço. Ambos estavam queimados de sol e esguios. Ambos abrigavam no íntimo um turbilhão de desejo e inquietação. Seus olhos flamejavam nas órbitas. Ali de pé, ambos se consumiam em um desejo faminto que nenhum dos dois era capaz de entender.

E, juntos, afinal, deitaram-se lado a lado na grande cama, olharam-se nos olhos, passaram as mãos pelos braços e pelas pernas um do outro. E, tendo se certificado de que ele, ela, estavam ali, real e absolutamente presentes, a longa tensão desfez-se. Suspiraram, bocejaram, e adormeceram abraçados. Dormiram um dia e uma noite, quase sem se mover.

Quantos foram os dias que se seguiram, cada pensamento e movimento numa lentidão carregada de sensações e de questionamentos! Pois esse lugar, essa fase, estavam sendo expe­rimentados pela primeira vez por ambos, e tudo o que diziam ou faziam vinha como uma surpresa.

Para começar, estavam juntos, só os dois, e suspeitavam de que seria assim por um longo tempo, porque para ambos suas vidas quotidianas — as vidas que haviam perdido? — pareciam-lhes proibidas. Eram exilados, e os reinos que os estavam expulsando eram criados e sustentados pelo companheirismo, pelas ligações e necessidades de outros. Nenhum dos dois ja­mais estivera a sós com outra pessoa durante dias... e dias... e dias. E noites.

Faziam amor como nunca tinham feito antes: sério e prolongado, como se chegar ao fim significasse a perda da possibi­lidade de compreensão, como se fosse uma tarefa exploratória deliberada, como se unindo-se desse modo criassem uma força, um lugar inexpugnável à dúvida e a algo pior — hostilidade de certa espécie e de alguma origem — calamidades, caos. E enquanto lutavam, ou se abraçavam, ou se protegiam, lan­çavam sobre essa cena, com mais freqüência do que o outro gostaria, um olhar frio e desapaixonado, que concordava com­pletamente com qualquer julgamento que alguém — quem? o desconhecido hostil? — pudesse estar pronunciando sobre os dois. Contudo, contra esse julgamento revoltavam-se e pro­tegiam-se, em pensamento e em ação, pois o que significava esta necessidade — sempre crescente — de aconchegar Al.Ith, de aconchegar Ben Ata, dentro dos braços fortes, senão co­locar barricadas no lado de fora de uma caverna onde uma criatura pequenina e infinitamente vulnerável se escondia?

Mas não lhes chegava nem uma palavra, nenhum sinal exterior. O tambor batia continuamente. E sabiam que devia continuar tocando. Pelo menos durante mais algum tempo.

Al.Ith recostava-se nas almofadas, no leito, nua, a mão apoiada onde essa criaturinha híbrida dos dois abria caminho para fora do reino das possibilidades, e sentia-a pulsar, acompanhando o ritmo do tambor. E Ben Ata, nu, aproximava-se dela, percebendo, pela concentração daquele rosto agora tão perto e tão amado, que não se surpreenderia se o visse ao olhar-se no espelho, que ela estava se comunicando com o fu­turo senhor dessa Zona, tirava a mão dela cuidadosamente do lugar e colocava a sua, ouvindo com sua palma e seus dedos. Ou encostava a orelha no ventre dela, fazendo desaparecer todos os sons dessa casa adorada e familiar, para ouvir apenas o tum, tum, batendo nos seus ouvidos e determinando o ritmo do seu sangue.

Agora ficavam nus a maior parte do tempo, pois essa nudez a dois era o mesmo que estar vestidos, de tal modo seus corpos se diversificavam e se exprimiam. Ele olhava para a luz úmida que vinha do jardim e que emoldurava os ombros dela, pensando como era bela essa sua Al.Ith, esguia e forte como o arco da coluna contra a qual se apoiava; e ela olhava a linha das costas dele e pensava que poderia contemplar os movimentos e a tensão daqueles músculos pelo resto da vida, sem jamais se cansar. E ele punha a mão no cabelo negro que lhe cobria as costas e admirava-se de por tanto tempo ter levado uma vida morta, quando nem sequer notava ou pelo menos lhe parecia agora as infinitas complexidades de uma pequena cabeça feminina, com um mundo de diferenças, que seus dedos exploravam, acariciando mecha por mecha de cabelo; e ela estendia o braço sobre os ombros morenos e fortes e sabia que a linguagem e mensagens de suas superfícies dérmicas, tocando-se levemente, ou resvalando uma pela outra, seriam suficientes para ela para o resto da vida.

Quando por capricho ou coquetismo ela se vestia, a roupa era tirada imediatamente, pois a provocação maliciosa era um insulto para essa atitude séria que ambos exploravam pela primeira vez; e se ele se envolvia em sua capa militar, quando o vento soprava gelado desde a colina, sentia-se mal com ela, quase como se não tivesse direito de usá-la. E voltavam para debaixo das cobertas do grande leito, de volta ao seu mundo, seu tempo... que não mudavam, não podiam mudar... mas que mudaram, e muito cedo, pois certo dia, quando estavam sentados à pequena mesa ao lado do arco, de onde avistavam os campos no sopé da colina, pediram a refeição, em pensamento, e nada aconteceu. E, enquanto imaginavam o que po­deria significar, viram Dabeeb subindo a colina, inclinada para a frente para se proteger do forte vento que parecia querer arrancar-lhe a velha capa militar; e ela trazia pratos cobertos e bebidas. Deixou-os cuidadosamente no terraço, sob os arcos, e voltou rapidamente, sem olhar para eles.

Cobriram sua nudez e saíram para o terraço a fim de apanhar a comida, que vinha da cantina dos oficiais, como Ben Ata notou imediatamente, e consistia em feijão co­zido e pão.

Notou, com alívio, quando começava a comer, que Al.Ith comia avidamente, como se não sentisse falta dos seus doces com perfume de rosa, suas frutas e suas geléias.

Esses pavilhões, esses prédios mágicos tinham-se tornado muito prosaicos para os dois. Certa vez Al.Ith os considerara como uma imitação muito falha das elegâncias e sutilezas de sua própria terra. Não fazia muito tempo que representava para Ben Ata um lugar encantador sem dúvida mas irritante, afeminado, que tinha de suportar. Mas agora nada havia na­quele quarto que lhe parecesse importante. A sala arejada, com a coluna central que se erguia como uma fonte, suas sombras, altura imensa e desenhos no teto canelado a sala que usava para tomar banho e trocar de roupa, na qual ela entrava com toda a liberdade, os quartos destinados a ela, onde ele entrava e saía à vontade tudo isso era simplesmente um lar agora: seu e de Al.Ith. Ben Ata tinha vivido em tendas de campanha, sem desejar nada melhor. Naturalmente voltaria a elas... lem- brando-se dessas obrigações agora tão distantes, retirou-se para seu quarto, e sentado, completamente nu, à mesa simples que mandara trazer para seu uso, escreveu uma ordem para que os exércitos fizessem manobras e guerras simuladas, porque se recordava de que lhes tinha prometido uma guerra e não cum­prira a promessa. Isso "os enrijecerá um pouco", murmurou ele, enquanto com a cabeça apoiada na mão imaginava qual a parte do seu país que seria mais apropriada, na ocasião, para uma guerra simulada... tnas seus oficiais podiam tratar disso muito bem, resolveu afinal, com um estranho misto de pena por não participar dessa guerra, e alívio por não ter de suportar semanas e semanas de tédio, fingindo que os ataques eram reais, que tinham um objetivo real... e, com esse pensamento, lembrou-se de que Al.Ith não acreditava que essa sua ocupação tivesse alguma finalidade... mas, ao pensar no seu filho, incubado nesse momento no corpo delicioso de Al.Ith, via-o sempre a cavalo, com ele, à frente dos exércitos.

Era um filho, naturalmente. Al.Ith sabia e ele sabia. Por­que era necessário e normal que essa união produzisse um filho. O casamento da Zona Três com a Zona Quatro devia produzir um filho: era evidente.

Voltou e encontrou Al. Ith vestida, pela primeira vez em muitos dias.

Os guarda-roupas do seu apartamento estavam outra vez cheios de vestidos feitos nesse país e não no dela. Não os desprezava agora. Em parte porque as mulheres estavam fazendo roupas mais simples e mais cômodas, depois de terem desmanchado e estudado cada ponto do vestido que dera a Dabeeb. E em parte porque Al.Ith estava mudada, e já não consi­derava os produtos dessa terra impossíveis para seu uso. Usava agora um robe rosado que lhe ia bem e acentuava o início da sua gravidez.

Estava sentada à mesa, a cabeça apoiada na mão, pen­sando.

Ben Ata — disse ela, como ele já pressentira —, há muitas coisas das quais precisamos cuidar.

Antes de responder, ele sentou-se ao lado dela. Não queria concordar muito rapidamente. Olhando para trás — para os dias que pareciam tão distantes agora —, quando as visitas de Al.Ith ao seu país tinham sido breves e irregulares, ele lembrava-se especialmente das discussões. A culpa fora dele, por não tê-la enfrentado. Ela era autoritária. Ben Ata gostava do relacionamento que tinham agora. Casados. Era como ele o definia. Estamos casados agora, e ela não pode fazer o que bem entende, como antes.

Quanto a ela, ficou em silêncio, porque se lembrava também daqueles dias. Oh, não como estavam agora... não como ela era agora .. Entre Al. Ith e seu reino no planalto ha­via uma cortina ou nuvem. Lembrava-se de que as coisas tinham sido muito diferentes. Essa diferença, ela a sentia como uma descontração, uma leveza, uma ternura, e acima de tudo uma maravilhosa camaradagem em tudo. Lembrava-se de todos os seus filhos, da lógica e da necessidade de ficarem juntos. Lembrava-se de que tinha uma irmã, bela, e que costumavam sentar- se juntas todas as noites contemplando o cair da noite, vendo a luz se extinguir, ou caminhavam sobre os telhados... a lem­brança dos maravilhosos passeios pelos telhados era dolorosa para Al.Ith. Não podia fazer isso agora — parecia temer alturas, ficar no mesmo plano que os pássaros e as montanhas... e havia outra coisa, uma torre, e de lá de cima — mas uma saudade imensa assaltou-a, um sentimento tão opressivo que Al.Ith se pôs de pé num salto, torcendo as mãos. Estava ali parada, sem fazer nada, e não era isso o que devia fazer...

O que foi? — perguntou Ben Ata, calmo e dominador. — Não devia pular desse jeito, não acha? Não é bom para a criança.

Considerando o que tinham feito durante dias e noites, achou melhor ignorar essa observação. Mas sentou-se, devagar, e acalmou-se. Pois sentia que se não pudesse comunicar a Ben Ata a natureza do que persistia em suas memórias e na substância do seu passado — embora ela não fosse mais a mesma —, então não valia a pena insistir em nada mais.

Está certo — disse ele delicadamente, mas com certa indiferença.

Ele estava pensando que quando esse filho nascesse teriam festividades e comemorações de todo o tipo. Portanto, precisava certificar-se de que a guerra simulada estaria terminada por esse tempo. Apanhou o papel onde tinha escrito a ordem para a guerra e fez uma alteração na data.

E acho que quando fizermos as festas — observou ele, como se já a tivesse informado dos seus planos —, as outras crianças deverão tomar parte, como acompanhantes. Ou qualquer coisa parecida.

Al.Ith sabia que Ben Ata era pai de inúmeros filhos, que eram colocados em regimentos militares logo que começavam a andar O Exército das Crianças era parte da vida da Zona Quatro. Ficara indignada quando ouviu falar nisso pela primeira vez — mas sua indignação fora absorvida pela necessidade de compreender.

Ela não respondeu. Ben Ata percebeu que Al.Ith estava em silêncio há muito tempo, e, depois de corrigir a ordem, colocou-a no cinto e sorriu para ela.

Está bem, minha querida?

Gostaria de conhecer o seu país, Ben Ata. Não, tenho certeza de que não fará mal agora. Já estou aclimatada.

Ele animou-se imediatamente.

Oh, ótimo. Poderá viajar comigo durante as manobras. Gostaria disso?

Al.Ith ficou pensativa. Tinha a expressão de alguém que experimenta uma comida ou uma situação desconhecida.

Não vejo por que não... mas estava pensando em pedir que as mulheres organizassem um festival de canções. Nós costumávamos fazer isso, se bem me lembro. Em casa. Alguma coisa parecida.

Oh, elas não gostariam disso, minha querida! Têm suas próprias idéias, você sabe. Os homens não podem nem chegar perto das suas cerimônias — não se dá valor à masculinidade. — E ele recostou-se na cadeira ridiculamente pequena e deu uma gargalhada ruidosa, extremamente divertido.

Na verdade, não estava pensando em você. Eu posso ir. Como mulher.

Então, já está farta de mim!

Talvez seja bom nos separarmos, pelo menos uma noite.

Provaram suas boas intenções com pequenos beijos, mas havia algo de cerimonioso entre eles, sem dúvida nenhuma.

Escreverei uma nota para Dabeeb, quando ela vier trazer a refeição.

Eu mesma falo com ela.

Oh, não, é sempre muito melhor escrever, evita mal-entendidos.

Al.Ith não fez oposição, apenas resolveu chamar a atenção de Dabeeb e falar pessoalmente com ela. Sorriu gentilmente para Ben Ata, como se concordasse plenamente.

Logo depois viram Dabeeb subindo a colina.

Ben Ata foi até a varanda para que ela não desaparecesse, logo depois de colocar os pratos no chão.

Al. Ith viu quando ele entregou o papel com as ordens para a guerra simulada e ouviu-o dizer que da próxima vez teria tuna ordem de Al.Ith mas que ainda não a tinha escrito.

Oh, que bom disse Dabeeb com voz suave —, será um prazer atender aos desejos da senhora. Mas, antes disso, posso dar uma palavrinha com ela?

Entre disse ele, afastando-se da porta, e foi direto para seu quarto escrever as ordens de Al.Ith.

As duas mulheres estavam a sós. Al.Ith levantou-se e foram rapidamente para a extremidade da sala mais afastada dos quartos de Ben Ata.

Al.Ith disse em voz baixa o que queria, e Dabeeb, compreendendo imediatamente, observou:

As mulheres ficarão contentes. Na verdade estavam falando em convidá-la. Queriam que lhe pedisse ordem para alguma coisa parecida e agora já não é preciso.

Nesse momento Ben Ata entrou na sala, a imagem do ma­rido benevolente. Mas, enquanto se aproximava delas, pensava em como seria agradável ter Dabeeb só para si por uma ou duas noites; imaginara-a atônita com tudo o que ele havia aprendido nesse longo período mas censurou a palavra prisão e substituiu-a por prazercom Al.Ith. Esse pensamento refletiu-se no seu rosto sob a forma de um sorriso auto-suficiente, e as duas compreenderam.

Ele entregou o bilhete para Dabeeb, que o abriu, leu e observou com voz doce:

É tão melhor escrever as coisas. Mas, Ben Ata, senhor, há um porém: não se trata de ter um festival de canções quando estivermos dispostas, é tolice nossa, não dê atenção a isso, mas temos tempo e estações apropriados para eles.

Muito bem, então, quando chegar o tempo ou a estação, convidem Al.Ith e eu me encarrego de fazer com que ela chegue lá em boa ordem.

Muito obrigada. Ficaremos muito honradas. Quan­do se voltou para sair, piscou levemente para Al.Ith e, desejando-lhes bom apetite, correu colina abaixo.

Passaram uma noite carinhosa e de manhã Ben Ata con­fessou que não acreditava que os exercícios para a guerra pudessem ser feitos sem a sua supervisão, e pediu licença para se ausentar por alguns dias e tratar dos negócios do seu reino.

Al.Ith a princípio sentiu-se desolada ao pensar em afastar-se dele por uma hora que fosse, depois teve um lam­pejo de pânico que considerou como manifestação patológica, em seguida, indignação por ele desejar separar-se dela, e finalmente, sem dúvida nenhuma, alívio. Oh, que maravilhosa opor­tunidade de localizar seu próprio eu novamente — que parecia tão remoto a ponto de duvidar de sua capacidade para re­conhecê-lo — e permanecer, pelo menos por algum tempo, no seu interior, com seus próprios e reais objetivos... fossem lá quais fossem. Pois Al.Ith não se lembrava.

Ben Ata, interpretando o silêncio dela como tristeza, e temendo que Al.Ith chorasse ou lhe implorasse para ficar, disse que providenciaria para que ela o acompanhasse pelo menos uma parte da guerra, mas que naturalmente ela devia voltar para casa antes do começo dos jogos, porque não seria bom para ela excitar-se demais.

Al.Ith concordou com tudo, despedindo-se dele no topo da colina com um beijo caloroso e demorado, que não se lembrava de ter dado jamais, pois parecia conter uma boa parcela de submissão.

E, depois de acenar para ele enquanto podia ver a figura forte marchando energicamente na direção dos acampamentos, voltou a seu quarto, tomou banho, perfumou-se e escolheu um vestido branco de lã bordada, com desenhos floridos de todas as cores, e estava pronta para sair pela outra porta, para os jardins cheios de fontes, de onde vinha o som do tambor — mas de onde? de todos os lados, primeiro de um, depois do outro — quando Dabeeb apareceu subitamente, dizendo em voz baixa que Al.Ith devia acompanhá-la, pois nessa noite as mulheres iam realizar sua cerimônia, e que naturalmente não dissera a Ben Ata, porque nenhum homem devia saber quando elas se reuniam. Não os avisavam, e o único homem que ousara infiltrar-se em uma das reuniões secretas arrependera-se amargamente.

Al.Ith agasalhou-se com a capa militar de Ben Ata, se­gundo o costume da Zona Quatro, e as duas, de mãos dadas, desceram correndo a colina úmida, atravessaram as linhas de barracas de campanha sem serem vistas, pois os soldados es­tavam muito ocupados com a sua guerra, que começaria exa­tamente dentro de dois dias, e faziam exercícios na planície.

Correram sem parar sobre a relva molhada, perturbando os rebanhos de gado melancólico e cruzando inúmeras pontes, saltando sobre valas e canais até chegarem, embriagadas e animadas com todo esse movimento, apesar do ar pesado e irritante, a um grande edifício de pedra, que parecia deserto. Era um velho forte, relíquia de alguma guerra passada, e quase todo em ruína.

Mas, depois de passarem ao largo de alguns grupos de árvores e de arbustos, e de atravessarem um grande arco, vi­ram-se em um imenso salão de pedra, repleto de mulheres de todas as idades, sentadas em bancos, em volta de longas mesas de madeira sobre as quais havia comida e vinho. No centro havia um espaço livre onde um grupo de jovens cantava, fa­zendo movimentos variados com o corpo e com os braços. Todas riam alegremente. Ao verem Al.Ith, levantaram-se, er­gueram as mãos acima das cabeças e bateram palmas vigorosas, dando-lhe as boas-vindas, depois sentaram-se de novo e con­tinuaram a assistir ao número das meninas. Indicaram a Al. Ith um lugar na cabeceira de uma das longas mesas, e sem mais cerimônias ela sentou-se, com Dabeeb ao seu lado. Não notou imediatamente o resto do salão porque estava interessada nas cinco meninas que, com entusiasmo, representavam as palavras cantadas, solenemente e com atenção, com cuidado para não cometer nenhum erro, de modo que era enorme o contraste dessa atitude concentrada com o que, sem dúvida, devia ter sido, pelo menos no princípio, um jogo infantil.

Juntas, cantavam:

 

"Achei um colar de contas,

Pendurei-o em uma árvore,

Um colar de contas mais lindo

Jamais se viu."

 

E então, cada uma cantava um verso:

 

"Não vieram de você,

Não vieram de você,

Não vieram de você,

Contas tão lindas como estas

São muito raras e distantes."

 

Juntas outra vez:

 

"Achei um colar de contas,

Pendurei-o em uma cadeira,

Contas lindas como estas

Só podem ter vindo de lá."

 

E separadamente:

 

"Lá onde elas crescem

É para onde devemos ir,

Embora o Rei diga não.

Onde as nuvens são neve,

Não temos contas iguais a estas

Fieiras de nuvens e de neve."

 

E as cinco meninas, com saias rodadas coloridas e corpetes decotados, as roupas típicas das mulheres, rodopiaram numa dança rápida cujos passos, como Al.Ith notou, eram precisos e determinados nos mínimos detalhes. Pararam, todas ao mesmo tempo, as saias rodando em volta das pernas. Todas as mulheres, jovens e meninas, levantaram-se dos bancos e correram para o espaço aberto onde estavam as dançarinas. Só então Al.Ith notou que a parede oeste do grande salão tinha sido aberta em dois terços da sua altura, permitindo que se avistassem as montanhas da Zona Três. Os picos mais altos não eram visíveis e a multidão de mulheres, os braços levan­tados em um ritual de adoração ou de lembrança, inclinava a cabeça para trás para ver as montanhas. A noite começava a cair e a luz tinha uma densidade tristonha e significativa. Al.Ith lembrou-se, com espanto, de que, durante o tempo em que estivera enclausurada — era como sentia agora — com o rei, nem uma vez levantara os olhos para contemplar o seu reino, as suas montanhas. Simplesmente nem pensara em fazê-lo. Agora, ali de pé, a cabeça inclinada para trás, fazendo tensão sobre o pescoço, mais e mais para trás, sentia dificuldade e os seus músculos não lhe obedeciam. Era evidente que a maioria das mulheres não conseguia também manter essa po­sição mais do que por alguns momentos e com alívio deixava a cabeça voltar ao normal. Outras, porém, não só conservavam a cabeça bem inclinada, como sustentavam com as mãos as cabeças das mais jovens, empurrando seus queixos para trás. Algumas protestavam, mas ficavam firmes, e, quando eram liberadas, sentavam-se nos bancos massageando o pescoço, ali­viadas. De súbito, todas voltaram aos seus lugares.

Doze mulheres de meia-idade reuniram-se no espaço aber­to entre os bancos, com as mesmas saias e blusas coloridas usadas pelas meninas, mas eram mulheres grandes, algumas gordas demais, todas bem-humoradas e sorridentes, com a ex­pressão de sabedoria astuta que aparentemente esperavam de­las e, com entusiasmo, balançando as cadeiras e fazendo gestos sugestivos que provocavam gargalhadas na platéia, começaram a cantar:

 

"Quem caiu no canal a noite passada

Pregando-lhe tamanho susto?

Arregace sua saia e apanhe sua capa

Arregace a saia e corra.

Quem entrou debaixo da sua saia a noite passada,

Pregando-lhe tamanho susto?

Vamos subir para onde estão as neves,

Para as neves vamos subir.

Quem a acordou daquele sonho a noite passada,

Sonho de nuvens, neve e luz,

Vindo de muito longe,

Vindo de muito longe?

Quem nos contou que o caminho estava lá,

Claro como o dia e sempre lá,

Indo para muito longe,

Indo para muito longe?..."

 

E mais uma vez, quando a canção terminou, todas vol­taram ao espaço no centro da sala e inclinaram a cabeça para trás contemplando as montanhas, escuras agora, sua silhueta delineada por uma luminosidade azulada, talvez das estrelas -mas não se viam as estrelas no céu, pois toda a vasta janela aberta nas ruínas estava tomada pelas montanhas. Al.Ith acompanhou as mulheres e ficou no meio delas. Os músculos do seu pescoço estavam doloridos e resistiram, e viu que as jovens cujas cabeças as mais velhas forçavam para trás tinham lágrimas nos olhos e mordiam os lábios por causa do esforço.

Então, depois de um curto espaço de tempo, pois era evidente que esse tipo de exercício não podia ser suportado mais do que isso, todas voltaram aos seus lugares. Travessas com comida foram trazidas da cozinha, na extremidade do salão, e as jovens serviam o vinho.

A festa ou cerimônia. — pois era na verdade um ritual -continuou noite adentro. Sempre que uma canção, jogo ou declamação terminava, todas corriam para o centro e executavam o exercício de distender os músculos e conservá-los dis­tendidos — pois era evidente que essa era a finalidade do ritual. Os grupos de mulheres e de jovens continuavam a con­tribuir com suas canções, todas uma repetição de algo feito muitas vezes antes, pois muitas vezes as palavras nada tinham a ver com os gestos que as acompanhavam. Gestos sensuais, acenos de cabeça e piscadelas ilustravam versos perfeitamente inocentes, e vice-versa. Contudo, todas as mulheres sabiam quais as palavras e gestos que deviam ser ditos ou executados, pois mais de uma vez corrigiram as cantoras e atrizes exclamando: "Não, o braço deve ficar deste modo" ou "Não deve sorrir nesta parte, é no verso seguinte".

Um ritual. Um rito. E havia um entusiasmo especial, uma energia nova nessa noite, graças à presença de Al.Ith, e ela percebeu que todas a observavam, aberta ou discretamente, segundo a natureza de cada uma, para ver se ela estava gos­tando — e com tanta esperança!

Muito depois da meia-noite, quando as montanhas começavam a empalidecer, Dabeeb, a um sinal de uma das mulheres, que agia como coordenadora do espetáculo, caminhou para o centro da sala e esperou que fizessem silêncio. Ninguém havia cantado ou dançado sozinha.

O silêncio era denso e atento.

Ela cantou:

 

"Se eu lhe disser, você è um homem,

Você apanha uma vareta,

Atira-a longe para que um cão a apanhe:

E você estudou!

Muito bem, vamos bancar os bobos!

 

E todos cantaram em coro:

 

"Vamos bancar os bobos!"

"Eu lhe digo, você é um homem!

Não há trabalho para vocês?

Não lhe deram uma tarefa?

Não faz parte das suas regras?

 

E todas:

 

"Então... banque o bobo!"

"Eu o observo, homem e homem e homem,

Jogando pedras da margem,

Para ver quem joga mais perto ou longe:

E você foi à escola:

Para bancar o bobo."

 

A estrofe seguinte estava sendo esperada, pois Al.Ith viu todas as mulheres com expressão irada, o rosto corado, incli­nadas para a frente, cantarem junto com Dabeeb:

 

"Ô menininho, querida criança,

Por que você é tão lerdo e tolo?

Cambaleante e tolo..."

[Isso foi mais sibilado do que cantado, com amarga intensidade.]

"Foi para isso que foi à escola?

Para bancar o bobo?"

 

E agora Dabeeb cantou sozinha novamente:

 

"As montanhas maciças enchem o céu,

Suas, para ter e conhecer,

Você vagueia embaixo,

Essas são as suas regras,

Bancar o bobo.

Junte suas mulheres, homens e homem,

Sem você eles não podem,

Sem você eles não são capazes

De subjugar a regra

Que o faz bancar o bobo.

Homem, você é homem bastante para dominar

E fazer a estrada, o cajado, a ferramenta?

Não?...

 

[E, agora, todas as mulheres cantaram num frenesi de cólera e amargura.]

 

"— Então, banque o bobo!

Muito bem, vamos bancar os bobos!

Nós todos vamos bancar os bobos!"

 

E quando a voz suave e cava de Dabeeb se calou, todas se levantaram apressadamente e dirigiram-se, não para o centro, como antes, mas para fora do grande salão. Al.Ith e Dabeeb saíram atrás delas. No lado de fora havia um pátio circundado por prédios baixos. As montanhas agora eram visíveis desde o sopé até os picos mais altos. Das estrelas cintilantes emanava uma luz azulada, mas o céu amaciava-se com um tom dourado a leste'. E as montanhas erguiam-se majestosas, como se fossem iluminadas do interior, e seus picos pareciam muito mais bai­xos do que o zénite. As mulheres ficaram de pé, as cabeças inclinadas para trás, algumas trêmulas e cambaleantes pelo esforço, outras maldizendo sua inabilidade, e outras ainda, co­mo sempre, ajudadas pelas companheiras. Desta vez permane­ceram um longo tempo nessa posição, comparado às breves tentativas no salão, lutando obstinadamente para manter a ca­beça inclinada, para contemplar tudo o que havia para ver naquelas maravilhosas montanhas que pareciam flutuar na né­voa azulada, os picos engrinaldados de nuvens que eram neve.

Al.Ith estava chorando, como as outras, mas era por sua falta de fé naquelas mulheres, e ela amparava a cabeça com as mãos cruzadas na nuca. E então, mais uma vez, todas endireitaram a cabeça ao mesmo tempo. Ela viu uma coisa assombrosa: muitas, a maioria jovens, apanharam capacetes pesados de metal, que estavam empilhados ao lado de uma parede, e os colocaram na cabeça. Eram tão pesados e incô­modos que tinham dificuldade em manter a cabeça erguida. E elas franziam os olhos marejados de lágrimas, tentando olhar diretamente para a frente. Olharam para Al.Ith com imensa ansiedade. Chegavam perto dela e murmuravam: — Al.Ith, ajude-nos, ajude-nos, Al.Ith —, e, com a celeridade que, Al. Ith sabia agora, era a sua maneira de fazer tudo, correram para fora do pátio, em grupos de duas ou três, enquanto a mulher que estava de sentinela em um dos telhados mais altos avisava quando podiam sair. Al.Ith e Dabeeb saíram por úl­timo, e tudo o que viam era a paisagem deserta da madrugada, pois as mulheres pareciam ter sido absorvidas pela névoa da luz incerta da manhã. Mas Al.Ith viu uma menina que, amparando a cabeça com as duas mãos para sustentar o peso do capacete de metal, chorava e praguejava, o andar trôpego. E voltaram-lhe aos ouvidos as súplicas: — Al.Ith, ajude-nos, ajude-nos, Al.Ith...

E agora precisamos nos apressar — disse Dabeeb, com sua voz calma e eficiente, e as duas voltaram como tinham vindo, aproveitando tudo o que servia para ocultá-las e cor­rendo entre os rebanhos que encontravam. Dabeeb, ofegante, explicava algumas coisas, como o fato de que a cerimônia era realizada quatro vezes por ano. Sempre em lugares diferentes, "pois o que não nos faltam são velhos fortes e fortalezas e coisas assim!" — e que os homens, naturalmente, sabiam das cerimônias e as toleravam. Para eles era uma válvula de escape.

Se uma de nós quebrar a promessa e contar ao seu homem o que fazemos, que objeção podem apresentar? Nenhuma de nós contaria que tiramos nossos capacetes punitivos e que olhamos para as montanhas. Nenhuma! Pois nós a mataría­mos ... é no interesse de todos, compreenda, pois há muito nossos homens se esqueceram do que deviam estar fazendo...

e agora tinham chegado ao pé da colina sobre a qual se erguiam os pavilhões, graciosos e brancos no sol da manhã.

Vou deixá-la aqui, se não meu marido me dá uma sova por chegar tarde... — e, dando meia-volta, Dabeeb correu para casa.

Al.Ith subiu a colina lentamente, o ouvido atento ao to­que do tambor, sentindo a criança acordar com o dia; via-a espreguiçando-se no seu ventre, sob o calor de sua mão.

O que Dabeeb dissera: o que os homens deviam estar fazendo... Naturalmente! Era perfeitamente simples! E poderia ter compreendido há muito tempo, pois não havia nada complexo.

O que os homens deviam estar fazendo não era guerra, simulada ou não. A guerra tinha substituído alguma coisa, outro objetivo ou função, alguma ação comum que tinham esquecido... e não só esquecido, como proibido. Mas, por quê? O que acontecera? E, acima de tudo, como? Essa era a pala­vra. Os homens deviam... deviam... mas como?

As canções e danças daquela noite não tinham sequer insinuado a resposta. Se "escalar montanhas" era uma atividade própria de homens, então o que significava? Sabia que se perguntasse a Dabeeb: "Muito bem, qual é a atividade própria dos homens?", ela apontaria para as montanhas. Sim, mas o que significava isso?

E agora vou interromper esta narrativa e voltar brevemente à Zona Três.

A idéia de Al. Ith, o festival de canções e histórias, na esperança de encontrar alguma informação ou pelo menos insinuações ou sugestões de conhecimento semi-esquecido... es­tava certa. Mas errada quanto ao local. O local certo era, na verdade, a cerimônia ou comemoração das mulheres da Zona Quatro: seus rituais, seus atos de deliberada preservação. Enquanto participava entusiasticamente daquela noite, Al.Ith pensava em como se pode estar tão certa sobre tuna coisa, mas apenas com metade da certeza... pois agora ela sabia mas não sabia que sabia que o festival da Zona Três não lhe daria nenhuma informação útil. E foi exatamente o que aconteceu.

Murti não se esqueceu do pedido da irmã.

Mas teve dificuldades.

Em primeiro lugar, como já disse, tínhamos festivais desse tipo pelo menos uma vez por ano, além dos festivais regionais. Assim, como conseguir o que Al.Ith precisava? Devíamos insinuar que nossas velhas canções e poesias, até mesmo as mais tolas e mais conhecidas, podiam ter alguma utilidade e que deviam ser apresentadas com essa idéia em mente? A expe­riência me ensinou que uma abordagem muito direta nesses assuntos geralmente é improdutiva. Não, é através do ines­perado, do indireto, que a verdade chega até nós... portanto eu meditei profundamente, tive de meditar, pois estava envol­vido com os preparativos: no fim, Murti. deixou tudo por minha conta. Seria talvez uma questão de ouvirmos de forma diferente? Isso me parecia uma solução. Na verdade nossas canções e nossas histórias não tinham mudado muito através do tempo; talvez o mais certo fosse dizer que estávamos tão habituados com elas que não procurávamos nada mais... estou dizendo abertamente o que já fora insinuado que o mal-estar geral ou a estagnação (mas era difícil usar essa palavra em relação à nossa bela terra) estava bem estabelecido entre nós, os Cronistas, os pintores de quadros, os cancionei­ros... embora, como sempre acontece, só muito mais tarde tenhamos passado a usar palavras como estagnação.

Nossos festivais eram belos. Uso esta palavra depois de pensar muito. É exatamente o que eram. Possuíam uma rica e ondulante rotundidade. Infundiam segurança. Comparecer a eles era comq participar de um banquete longo e abundante. Mas não havia inesperado ou surpresa. Nenhum momento de choque. Não eram estimulantes.

Este não é o lugar apropriado para discorrer sobre a finalidade dos festivais. Na fase de preparativos, esse assunto era discutido exaustiva e inutilmente. Minha experiência me ensinou que a discussão é infrutífera. O que define e demonstra é a observação dos eventos, é viver esses eventos e com­preendê-los...

Os preparativos para esse festival foram confusos. Nin­guém sabia o que era exigido de cada um. Al.Ith queria o festival, portanto devia ser feito... mas ela não estava aqui, estava? Pretendia voltar para a ocasião? Se não, qual seria a utilidade disso tudo? Tinha sido ordenado pelos Provedores? Mas achávamos que não.

Quando foi realizado, durou uma semana e foi o maior e mais concorrido em muitos anos. Todas as nossas regiões enviaram cantores e contadores de histórias. Como de hábito tudo foi encantador e... delicioso. Uso esta palavra com certa dúvida...

Eu e outros de nós profissionais, os organizadores tínhamos de ser desconfiados. E frios. E desapontados. Nada aconteceu que não tivesse acontecido milhares de vezes antes. Cada canção, cada poesia, cada lenda era cantada e decla­mada com muita facilidade e alegria, e por mais atentos que estivéssemos, tentando ouvir com os ouvidos de Al.Ith, nada escutamos que sugerisse o que já sabíamos.

Murti. assistiu do princípio ao fim, naturalmente, e de certo modo ela era Al. Ith... mas não era convincente. Pa­recia apática, indiferente mesmo, como quem cumpre um dever desinteressante.

E, quando o festival chegou ao fim, tudo estava termi­nado.

Acho que não estou fantasiando quando digo que isso se deveu, pelo menos em parte, ao fato de já ter sido realizado o festival — em outro lugar. Afinal de contas, a história de Al. Ith nos ensina que os acontecimentos que ocorrem em uma Zona afetam a outra, mesmo quando há hostilidade entre as duas ou quando nos esquecemos de tudo o que acontece fora das nossas fronteiras. Compartilhamos e permutamos até mesmo nossos períodos de apatia, insularidade, auto-congratulação. Quando aquelas mulheres lutavam ferozmente para conservar a cabeça erguida, a fim de contemplar nossas montanhas que dominavam sua planície, era como se estivessem secretamente alimentando de energia e de força as nascentes que nos ali­mentam a todos. Quando Al.Ith desceu obrigada àquela terra árida, o fez por nós todos... paradoxalmente, uma das razões de nosso festival não ter sido um sucesso foi porque as coisas começavam a melhorar em nossa Zona. Essa melhora come­çava a ser sentida, embora não fosse ainda abertamente re­conhecida. Por exemplo, os animais vindos de todas as regiões e postos no mesmo pasto dos nossos em Andaroun nada tinham de melancólicos e demonstravam maior alegria, cada um ao seu modo. Com piruetas e brincadeiras, todos os tipos de competições, e observando-os dizíamos com bom humor que essa reunião teria como resultado uma boa leva de novos ani­mais. E naturalmente procurávamos entre o povo sinais de um novo espírito — e acreditávamos encontrá-lo. Embora não se comentasse muito, a maré tinha virado... já olhávamos para trás, para os maus tempos do passado. E, no pensamento geral, Al.Ith estava ligada àquele tempo, e era com relutância que falávamos nele, portanto cada vez menos se falava em Al.Ith. Naturalmente suas visitas eram comentadas; havia vá­rias versões sobre elas. E todas, a faziam parecer estranha. Como se estivesse maculada, contaminada. A experiência en­sinou-me que as pessoas se recusam a abrir suas mentes aos prejudicados, aos feridos, a não ser que sejam obrigadas a isso. O medo é a raiz dessa atitude; medo de serem arras­tadas para baixo também. Devo registrar que, à medida que a atmosfera na Zona Três se desanuviava, e nós e nossos ani­mais recobrávamos a confiança e a moral, Al.Ith era cada vez mais esquecida ou lembrada até mesmo com aversão. Temo que esta seja a palavra exata.

Um dos objetivos desta crônica é criar nos corações e na memória do nosso povo outra idéia de Al.Ith, restaurar sua posição na nossa história. Não é suficiente que uma mi­noria a procure, identifique-se com ela, tente viver perto dela, quando a grande maioria pensa em Al.Ith apenas como algo dentro de nós que representa perigo e de que não queremos nos aproximar...

Al.Ith entrou no pavilhão com passos lentos, cansada, precisando repousar por algumas horas — e lá estava Ben Ata, no meio da cama, os pés calçados com as sandálias de herói, as pernas afastadas, olhando para ela com uma expressão determinada no rosto pálido. Levantou-se e foi ao encontro de Al.Ith com gestos teatrais e ela percebeu que, naquele momento, ele era capaz de agredi-la.

Por onde andou, Al.Ith?

Fui a um festival. Com as mulheres — respondeu ela, com a voz mais controlada e mais admirada do mundo, jogando água nas chamas da ira de Ben Ata, e o punho fechado que se erguera baixou lentamente.

E por que devo acreditar em você?

E por que não deve acreditar em mim? — falou com a voz tranqüila da verdadeira Al. Ith, que até há pouco ela pen­sava ter perdido para sempre.

Subitamente, ele a apertou contra o peito, escondendo o rosto no pescoço dela, no cabelo — que, ela percebeu, ele cheirava, tentando descobrir odores de outros homens, Jarnti, talvez? Mas provavelmente Jarnti tinha estado com Ben Ata o tempo todo, fazendo os planos para a guerra. E Al.Ith não pôde deixar de sentir-se satisfeita, como uma professora com um aluno promissor. Pois, quando se conheceram, Ben Ata não teria sido capaz de um puro ato físico de bom senso, como cheirar seus cabelos, e muito menos fazer o que fazia agora, tomá-la pela mão, sentar-se ao seu lado na cama e, olhando-a de frente — ainda pálido e com os olhos injetados, é verdade, mas bastante razoável —, dizer:

— Al.Ith, não deve fazer isso outra vez! Quase perdi a razão, preocupando-me com você.

Al.Ith, indulgentemente, não disse que no seu país não ocorreria a ninguém preocupar-se com ela; na verdade, cada vez era mais difícil lembrar-se do seu país — mas, ainda mais difícil, encontrar na memória as razões para esse procedimento. Pois há tempo estava cercada por símbolos de graduação ou hierarquia que começava a depender deles, anulando suas faculdades reais de discriminação.

Assegurou que não tivera a mínima idéia de preocupá-lo, que a paz de espírito dele era o que mais desejava — e disse tudo isso sem esforço, porque era verdade, mas não talvez como ele queria acreditar. Além disso, nesse lugar delicioso e tranqüilo, sozinha com ele, a Al.Ith que era o outro eu de Ben Ata estava de volta. Examinando o rosto que aprendera a estudar como se fosse essa agora a imagem que via no espelho, que insistia em ser a dela, percebeu que Ben Ata realmente tinha sofrido naquela noite. Havia marcas de an­siedade na testa dele e a linha da boca revelava verdadeiro sofrimento. Viu-o inclinar-se para ver seu rosto, olhar seus olhos como se fossem para ele um mistério que um juiz ine­xorável o obrigava a compreender. Com um suspiro, contido para não se transformar em lamento, mais uma vez ela o via como companheiro de cela, sem poder acreditar que esse ho­mem tenso, marcado pela dor, fosse o mesmo Ben Ata gros­seiro e corpulento dos primeiros dias, e ela o abraçou e o amor que fizeram foi o símbolo de consolo e renovada con­fiança. Quando a mão de Ben Ata procurou a criança, que agora reagia vigorosamente ao ato de amor, como se dele quisesse participar — como se fosse a promessa de um festival —, foi com respeito a uma promessa, e não a uma extensão de si mesmo, ou dela, mas uma saudação às possibilidades de ambos; uma saudação consciente e respeitosa, e Al.Ith, ao sentir a força delicada contida naqueles dedos, compreendeu que as potencialidades que ele reconhecia eram do desconhecido e do inesperado, bem como do prazer familiar. Pois essa união de incompatibilidades não podia ser nada menos do que um desafio.

Al.Ith sentiu que amava esse homem completamente, e foi isso o que a uniu finalmente às mulheres com quem tinha estado naquela noite nas cerimônias de lembrança.

Mas com que desalento reconheceu esse compromisso para com ele — lembrava-se agora do que sentia pelos homens com os quais estiverano seu reino, e sabia que não era nada pa­recido. Era como se estivesse trocando o ar e a luz por vínculos que se apertavam a cada respiração, penetrando fundo em sua carne.

Quando saíram daquela imersão mútua, Al. Ith tinha nova tarefa a cumprir.

Devia desfilar, ao lado dele, na frente dos exércitos.

Para começar, Ben Ata acompanhou-a ao apartamento dela e, com o cenho franzido em concentração, examinou os vestidos, um depois do outro, retirando do guarda-roupa, afinal, um vestido de tecido dourado suntuoso e magnífico. A perícia dessa escolha era impessoal, pois não se relacionava com ele ou com ela, mas ao seu papel como rainha daquela terra.

E naturalmente, mãe do futuro herdeiro.

Ela o vestiu, enquanto Ben Ata observava, encostado na parede, os braços cruzados, considerando as possibilidades. Depois, fez com que ela desse uma volta, e franziu as sobrancelhas. Al. Ith portou-se passivamente, súdita do rei. Afinal, ele assentiu com a cabeça, mas seu olhar indicava que o cabelo solto não era apropriado. Ela o trançou e enrolou as tranças ao redor da cabeça. Ben Ata ainda não parecia satisfeito, e Al.Ith prendeu entre as tranças uma fita de tecido dourado que parecia confinar mais ainda aquele cabelo abundante no qual, quando faziam amor, ele enfiava os dedos, encostava o rosto, e que envolvia os dois como se essa tenda de mechas revoltas pudesse afastá-los do mundo para sempre.

Fora do pavilhão, entre as fontes, Yori esperava, morden­do o bridão, tentando afrouxá-lo, com uma sela pesada de couro, com enfeites dourados, sob a qual se viam camadas de tecido cor de ouro. Como Ben Ata previa, Al.Ith demonstrou seu desagrado, mas foi só um olhar, deixando entender que o sacrifício de Yori seria tolerado apenas para essa ocasião. E Ben Ata, com os braços cruzados, as pernas separadas, não esperava que ela se rebelasse contra a necessidade, e seu ar não era de desconforto ou desafio. Al.Ith, por seu lado, não foi petulante, nem agressiva.

Ele a colocou sobre a sela, arrumou-lhe o vestido, puxando-o para baixo, para deixar bem visível a curva da gra­videz. E ela o ajudou.

Ben Ata conduziu Yori pela rédea, entre as fontes, en­quanto Al.Ith passava a mão no pescoço do animal dizendo-lhe que essa indignidade e desconforto terminariam logo.

No sopé da colina, perto das cocheiras, ele chamou o seu cavalo, que saltou o muro de pedras e lhe correu ao encontro, já selado e arreado. Ben Ata montou e os dois, rei e rainha, galoparam pelas planícies onde os exércitos marchavam e faziam exercícios, formando desenhos azuis, vermelhos e doura­dos sobre léguas de verde nevoento, entre os canais cobertos de vapor.

Quando Ben Ata e Al.Ith apareceram, todo o movimento cessou, os clarins brilhantes soaram, levados em movimento simultâneo aos lábios de centenas de corneteiros, os tambores retumbaram numa batida que fazia tremer o solo e superava o pulsar suave do tambor da solidão de Al.Ith e Ben Ata, e a esse clamor juntou-se o som das vozes que se ergueram quando os dois soberanos chegaram no campo de manobras, e que só cessaram quando saíram, muito mais tarde. Os sol­dados não se cansavam de olhar para Al. Ith, a rainha lendária da Zona Três, ereta no seu cavalo negro, que há muito era parte de suas canções e histórias. Ali estava ela, afinal, para que todos vissem, tão linda com o vestido dourado, e ali es­tava a prova do casamento, a acentuada e triunfante curva do seu ventre.


A aclamação era como uma tempestade correndo sobre campos e florestas, era como a chuva caindo em torrentes, era como o vento contínuo soprando de todos os lados do céu ao mesmo tempo.

E os tambores soavam, e os clarins se erguiam, fanfarra após fanfarra.

Naturalmente há uma diferença — e tem de haver! — entre as reproduções dos nossos artistas e dos artistas da Zona Quatro, dos vários incidentes da história da nossa rainha e do rei deles.

Não faltam estudiosos que dedicam suas vidas à análise deste ou daquele quadro, desta ou daquela balada, e, embora isso me pareça uma atividade infrutífera, devo confessar que tenho estudado as diferenças de ênfase atribuída aos mesmos, nos dois reinos. Cenas que são populares entre nós são en­caradas por eles com indiferença, por exemplo; e, naturalmen­te, o inverso é também verdadeiro.

Essa cena da apresentação de Al.Ith aos exércitos sem­pre foi uma das favoritas da Zona Quatro. Na verdade, pode-se mesmo concluir que foi o único fato importante do casamento, a julgar pelo número e tamanho dos quadros, pelas baladas, canções, histórias. Não seria exagero dizer que, se têm quadros em suas casas' e edifícios públicos, certamente esse é um deles.

De um modo geral, não está muito longe da verdade — pois, por que a Zona Quatro precisaria distorcer ou melhorar a aparência do que presenciaram naquele dia?

Ben Ata ia na frente. Como de hábito, vestia-se como o mais humilde dos seus soldados. Usava uma túnica de couro que ia até, a metade da coxa, e sandálias nos pés nus. Sobre a primeira, outra túnica, leve e de material prateado brilhante: o colete "invulnerável". Levava a famosa espada que, segundo a lenda, só ele podia levantar; mas muitos dos fortes soldados do seu exército sabiam que eram capazes de manejá-la tão eficientemente quanto Ben Ata. Em um exército onde o menor grau de diferença era assinalado por galões, atavios e ornamen­tos de toda a espécie, um exército hierárquico nos menores detalhes, a simplicidade de Ben Ata era uma questão de boa política. Em primeiro lugar, protegia os postos mais baixos. Nessa massa de homens, que nunca combatiam tanto quanto desejavam, onde as campanhas eram racionadas como alimen­to extraordinário, onde muitas vezes tinham de se contentar, durante anos, com guerras simuladas e exercícios, naturalmente havia divergências internas. E um soldado, encontrando outro no escuro, ou pensando em começar uma briga no bar, nunca estava certo se o desconhecido era ou não Ben Ata. Essa uma das razões. A outra era que, identificando-se dessa forma com o mais humilde, os oficiais competitivos e orgulhosos sabiam que ele estaria sempre acima e separado deles e que para Ben Ata não valiam mais do que o mais inexperiente recruta. Cons­tantemente pressionavam Ben Ata para que desenhasse um uniforme magnífico para si mesmo, mas ele se recusava.

Quando passava em revista os exércitos, sua figura nunca deixava de causar emoção. Todos os olhos se fixavam nele, no rei, firme na sela, as pernas fortes e morenas como dois troncos de árvores, os olhos cinzentos cheios de benevolência.

Atrás dele, com a metade do tamanho do marido, está Al.Ith no seu cavalo negro. O pescoço de Yori está arqueado por causa da rédea curta. Ela está sentada de lado e muito grávida. Em alguns quadros, a criança já nasceu e aparece na sela com Al.Ith; uma criança grande, que quase esconde a figura da mãe. O rosto de Al.Ith é convencional, com os tra­ços rudes e sólidos do povo da Zona Quatro. Está sorrindo e tem a palma de uma das mãos voltada para cima segurando um objeto que para eles significa a Zona Três: uma montanha.

Essa cena nunca foi do nosso agrado, como se pode compreender. Por muito tempo não foi reproduzida de modo algum. Não só porque a considerávamos dolorosa e humilhante. Não apenas por isso. Havia uma ambigüidade nela que todos po­diam sentir, embora poucos compreendessem os que estão preparados para compreender o que significava para Al.Ith descer àquela Zona, desse modo.

Mais tarde, porém, alguns dos nossos artistas mais ousa­dos tentaram reproduzi-la — exatamente por causa da dificuldade.

As primeiras reproduções, muito toscas, não agradaram; algumas delas chegavam a mostrar Al.Ith com as mãos amarradas ou com uma corrente ao redor do pescoço. Mas a sa­bedoria dos artistas deu mais atenção aos soldados do que a Al.Ith, que aparece como uma patética boneca, montada no seu cavalo. Os soldados não estão aclamando com entusiasmo, mas têm nos rostos uma expressão de animais à espera de um banquete iminente. Em resumo, esses primeiros quadros tendiam mais para a caricatura.

Mais tarde, uma escola de pintura séria passou a repre­sentar a cena mais ou menos como era representada na Zona Quatro — o que não deixa de ter uma certa ironia, natural­mente muito apreciada por nós.

Os quadros preocupam-se especialmente com o vestido dourado de Al. Ith — seu vestido opulento e suntuoso, e com o cabelo trançado e preso. Ela parece cambalear ao peso de enfeites e jóias. Sua gravidez não é ignorada, mas também não é enfatizada. O rosto é apenas indicado. Ela aparece entre fi­leiras de homens cujos uniformes são reproduzidos nos menores detalhes. Esses quadros são conhecidos como O Vestido de Al.Ith!

E havia alguns versos muito engraçados também, sobre o vestido de Al.Ith e suas aventuras, como se Al.Ith não estivesse dentro dele.

Mas nenhuma dessas reproduções está de acordo com os sentimentos reais de Al.Ith enquanto cavalgava atrás de Ben Ata, por horas e horas, naquela umidade cheia de vapor, em meio àquele barulho metálico e latejante que a atordoava.

O fato é que ela observava Ben Ata atentamente. Não sorria, nem acenava para os soldados, pois sabia que não es­peravam que o fizesse — ela não passava de um símbolo. Com­petia a Ben Ata mostrar-se a todos, através da expressão do seu rosto e dos seus olhos. Ele estava atento a tudo. Al. Ith percebeu que, com um único olhar, ele notava cada detalhe das companhias pelas quais passavam. Sabia que ele estava anotando mentalmente tudo o que via para comentar mais tarde. Sabia que, quando estivesse com seus oficiais, tudo o que ha­via visto seria discutido e providenciado.

Al.Ith não pensara muito nele nesse papel, que era, afi­nal, o verdadeiro, seu objetivo e sua vida — o representante e líder dos seus homens. E isso ela compreendia e respeitava, pelo conhecimento que tinha de si mesma e das suas funções.

Concluiu, enquanto observava Ben Ata, que ele estava absoluta e completamente no comando do que se exigia dele.

Respeitava-o por isso. Amava-o.

Dentro daquele vestido chocante, talvez ela sentisse que estavam exigindo quase mais do que podia suportar, mas, por outro lado, era óbvio — e ela sabia tão bem quanto Ben Ata — que isso era necessário.

Al.Ith, naquela planície úmida e nevoenta, entre milha­res e milhares de soldados de Ben Ata, não era uma cativa, pois observava e aprovava o marido.

Não acredito que nossos artistas, cancioneiros ou poetas tenham chegado nem mesmo perto da verdade, ao reproduzir aquela cena. E talvez os quadros da Zona Quatro que mos­tram a criança já nascida, às vezes montando seu próprio ca­valo, na frente de Ben Ata e de Al. Ith, tenham se aproximado mais dessa realidade.

Quando a parada terminou afinal, e a planície se encheu de soldados marchando para o acampamento, os dois estavam muito longe do pavilhão e a noite chegava.

Havia um velho forte não muito distante e cavalgaram até ele, lado a lado agora, em perfeita paz. Ele não estava agradecido pela boa vontade de Al.Ith, pois a gratidão não se aplica quando alguma coisa deve ser feita, mas sabia que esse dia fora um esforço muito grande para ela. Além disso, AI.Ith estava pálida e queixando-se de dor de cabeça. Chegando ao forte, ele ajudou-a a tirar o bridão e a sela do pobre Yori, antes de afrouxar as correias do seu cavalo. Os dois foram deixados soltos para a noite, depois de Al. Ith lhes dizer que estivessem ali de manhã. Os animais saíram a galope, levan­tando poeira, sacudindo as crinas e relinchando, aliviados com a liberdade, e rolaram sobre a relva macia, enquanto Ben Ata e Al.Ith os observavam.

— Está certo, Al.Ith, está certo, não diga nada — ex­clamou ele.


Não é preciso — observou ela com voz suave e de­cidida —, não há nenhuma necessidade. Por que transformar em escravas criaturas que fazem o que queremos, por amor?

Ele a abraçou, com pedido de desculpas resmungado, e soltou os cabelos dela para mergulhar neles o rosto. E ficaram assim até sentirem frio e perceberem que a neblina estava quase chegando às suas cinturas. Entraram no forte. Os dois estavam sempre dispostos a aceitar o desconforto quando fosse necessário, e na verdade satisfeitos por tirarem férias das facilidades e prazeres do seu pavilhão. Esse imenso salão de pedra, com o chão de lajes nuas e o teto em ruínas, através do qual brilhavam as estrelas, combinava perfeitamente com o estado de espírito dos dois. Sentaram-se lado a lado, iluminados pela luz das estrelas, e procuraram afastar o pensamento de comida ou bebida.

No meio da noite, ouviram os dois cavalos conversando lá fora, saíram e os acariciaram. Estava frio e o céu chame­jante de estrelas. Ambos ergueram os olhos para o maciço de montanhas cobertas de neve que enchia o céu. Ben Ata disse, de súbito, com veemência e tristeza:

Oh, Al.Ith, você ficará feliz em voltar à sua terra, eu sei, mas... — Ele a abraçou com força e ela agarrou-se a ele.

Naturalmente ela sabia que essa visita à Zona Quatro só podia ser temporária, e naturalmente queria que terminasse, mas nenhum dos dois havia dito isso há algum tempo: que ela teria de deixá-lo. Al.Ith chorou. Estava imersa em desgosto e mágoa.

Que isso pudesse ser verdade era mais do que ela podia compreender ou aceitar. Era como se há muito tempo tivesse flutuado para longe de tudo o que podia compreender; jo­gada de um lado para o outro entre as oposições em sua mente.

E agarrou-se a ele, sentindo que sem ele não seria nada. È Ben Ata abraçou-a, pensando que sem ela ele seria apenas metade de si mesmo.

Logo que o sol apareceu, montaram novamente, o cavalo de Ben Ata com sela e bridão, o dela sem nada.

Ele havia prometido uma excursão por uma parte do seu reino, e esta era a hora apropriada, antes de Al.Ith ficar pe­sada demais para andar a cavalo por muito tempo.

Nem toda a terra era baixa e úmida. Deixaram as terras baixas para trás e subiram para uma região mais seca e cheia de florestas onde havia vilarejos esparsos. Eram pequenos e pobres, circundados por campos de boa terra, cultivados com indiferença.

Nos campos trabalhavam mulheres, crianças e velhos — os jovens estavam no exército.

Todos interrompiam o trabalho quando eles passavam. Não os aclamavam, nem mesmo faziam algum sinal de reconhecimento. Al.Ith compreendeu que não sabiam que aquele era o seu rei, não sabiam que tinham, embora por pouco tempo, uma rainha.

Usavam roupas de tecido grosseiro marrom e os instru­mentos mais rudimentares. Instrumentos de lavoura que estão nos nossos museus há muito tempo.

Ao passarem pelas choupanas e casas dos vilarejos, Al. Ith procurava mercados, lugares de reunião, de dança. Procurava armazéns e celeiros, lojas de artesanato, manufaturas.

Nos últimos dias, as particularidades da Zona Três haviam fugido de sua memória, mas aqueles pobres vilarejos trouxeram de volta as lembranças. Foi invadida por uma chocante tris­teza ao comparar as riquezas e confortos do seu país com essa pobreza que nem mesmo tinha consciência do seu estado.

A princípio, observava Ben Ata, para ver sua reação, mas percebeu, pelos olhares disfarçados do marido, que ele queria aprender com ela. E deixou de olhar para ele, temendo demonstrar o quanto a impressionava a pobreza daquele país. Não queria magoá-lo. Mas, depois de cavalgarem quase o dia todo, atravessando bosques, onde ela podia ver que o solo era bom e capaz de produzir muito, chegando aos terrenos pantanosos que circundavam as vilas, varridos pelos ventos, e de­pois, atravessando as vilas que nada mais eram do que agru­pamentos de habitações toscas, destinadas — ao que tudo indicava — apenas a oferecer abrigo, Al.Ith sentiu o coração frio e pesado.

Perguntou se podia ver o interior de uma das casas. Esta­vam atravessando uma das melhores vilas, onde os habitantes haviam colocado algumas pedras na estrada que a cortava de um lado ao outro as outras eram construídas sobre pantanais de lama ou no solo seco e poeirento.

Uma velha, com saia marrom espessa e uma espécie de jaqueta de pele que deixava à mostra os braços ressequidos, estava sentada na frente da casa, em um tronco de árvore, e levantou-se quando eles foram em sua direção. Parecia curiosa e intrigada. Aparentemente sabia que eram pessoas importantes e poderosas, talvez soubesse mesmo que estava na presença do seu soberano, pois esboçou um sorriso e ensaiou uma espécie de mesura que quase a derrubou. Ben Ata saltou do cavalo rapidamente e amparou-a, dizendo:

Podemos entrar em sua casa e descansar por um momento?

Perceberam que jamais alguém fizera esse pedido, pois ela pareceu ter dificuldade para compreendê-lo. Então, assentiu com um gesto de cabeça, e entrou na frente deles em tuna sala não muito pequena, mas que devia acomodar pelo menos umas dez pessoas. Num canto estavam empilhados peles e cobertores de lã, para que o espaço pudesse ser usado durante o dia. O telhado era de palha trançada, bem fechado, mas sem qualquer arte. O assoalho era de lajes. Havia uma lareira da qual pendiam presuntos e outras carnes secando na fumaça. Nos caibrosdo teto estavam pendurados vegetais e ervas. A única porta, nos fundos, levava a outro quarto cheio de jarros e tonéis, o que indicava que essa família, ou tribo, tinha alimento suficiente, embora não tivesse nada mais.

Na sala principal havia apenas dois bancos e um tear.

A mulher acompanhou-os, olhando-os fixamente e sorrindo indecisa, e de tempos em tempos passava a mão nos cabelos brancos e ralos, como se achasse que devia fazer alguma coisa nesse sentido. Sorriu e fez outra reverência quando eles agradeceram e saíram sem ter descansado, montaram e continuaram

seu caminho, passando por crianças que chegavam às portas para vê-los e por alguns velhos.

E assim passou o dia. Ao cair da noite chegaram a uma pequena cidade, com melhor aparência, e Ben Ata estava disposto a se mostrar orgulhoso, como se achasse que era necessário, mas ela estava desanimada e incapaz de sorrir. Havia uma espécie de estalagem, que consistia em uma grande sala onde os viajantes podiam comer e passar a noite, sentados em bancos. Foram reconhecidos, e toda a cidade foi para a rua a fim de vê-los. Tomaram sopa com pão e carne de ave com alguns viajantes que estavam intimidados demais pela sua pre­sença para comer, e, quando terminaram, agradeceram ao povo da cidade e continuaram a viagem rumo à floresta, onde passaram mais uma noite sem dormir, apenas cochilando de vez em quando.

Ben Ata não perguntou o que ela estava pensando e Al.Ith não lhe disse. Mas planejava secretamente uma visita dele à sua terra, para que visse por si mesmo; se ela havia conseguido se aclimatar à atmosfera pesada e sem vida desse reino, por que ele não se acostumaria à atmosfera da Zona Três? Mas seria permitido? Os Provedores encorajariam essa idéia? Imaginando se ele estaria pensando a mesma coisa, ela sentou-se, protegida pelos braços fortes de Ben Ata, sob a imen­sa árvore que haviam escolhido para abrigo, sentindo o cheiro forte do solo argiloso e certa de que nada havia no seu reino que ela não pudesse fazer neste. Se isso fosse, na verdade, parte do que tinha sido ordenado.

A excursão durou vários dias. Encontravam às vezes gran­des cidades, mas a maioria era de vilas, todas com o funcionamento limitado de centros que servem apenas uma localidade — nada mais. As vilas eram numerosas. Em todo lugar encon­traram a marca da quase-pobreza. E não se viam jovens ou adultos, nem mesmo homens de meia-idade. As mulheres eram assombrosas e muito fortes, como se tivessem sido obrigadas a engolir ferro quando pequenas e nunca o tivessem digerido. Os velhos tinham no olhar a expressão de quem não espera nada da vida. As crianças não pareciam alegres e bem-dispostas, seu olhar era frio e desconfiado. Al.Ith agora se lem­brava de tudo do seu país, embora cada pensamento fosse tão doloroso que ela quase desejou esquecer-se novamente. Invadia-a uma inquietação terrível, uma dor causada pelo con­flito. Tudo dentro dela parecia partido e dividido, em luta contra si mesma. Acima de tudo, pensava que a criança no seu ventre iria governar essa terra desgraciosa e empobrecida e essa idéia era fria e pesada, fazendo-a sentir-se estranha ao seu filho. Geralmente gostava de apoiar a mão sobre o ventre e saudar a pequena criatura. Gostava de sentir os movimentos, uma prova de sua existência. Precisava sentir que lhe trans­mitia força e confiança. Mas agora essa mão amiga estava vazia, e queria se afastar da criança, como se o contato pudesse enviar mensagens de dúvida e de insegurança. Não podia ima­ginar qual seria o futuro deles; uma névoa a separava das coisas que estavam por vir e não se lembrava de não saber o qup devia esperar, para estar preparada.

A Al.Ih que finalmente disse ao marido que já vira o suficiente, já viajara bastante e estava pronta para voltar para "casa" para o pavilhão, ela queria dizer, não para o seu reino —, era muito diferente da mulher que saíra para ser apresentada ao exército.

Voltados na direção das terras baixas do centro, retor­naram lentamente, fazendo refeições nas cidades que tinham estalagens, mas sempre passando as noites nas florestas ou em algum velho forte ou ruína.

Durante todo o caminho de volta, Al.Ith tentava ima­ginar o que teria acontecido a esse lugar para chegar a esse ponto, ou como teria sido num passado distante, antes de a guerra ser sua única função e do que poderia convencer Ben Ata a fazer para mudá-lo.

E Ben Ata estava inquieto e queria voltar aos seus exércitos.

Vira, no dia da inspeção das tropas, que eles não se contentariam por muito tempo com exercícios, revistas e paradas tinha de lhes dar algo parecido com uma guerra ou não con­tinuaria no poder por muito tempo.

Além disso, sabia muito bem, por tudo quanto Al. Ith não havia dito, mas que era incapaz de esconder, que seu país era realmente muito pobre.

Estava confuso, enfrentando um problema além do seu poder e inseguro de si mesmo e dos seus objetivos.

Uma nova fase começava para eles.

Mais tarde, lembrando-se desse tempo, ambos compreenderam que essa excursão pelo reino fora a culminação do seu casamento, os momentos de maior união entre eles. Pois, agora, ele voltava-se para seus homens e ela sabia que as mulheres precisavam dela, e passava mais tempo com elas do que com Ben Ata.

A criança nasceria em breve e não havia uma só mulher na Zona Quatro que não soubesse de sua visita, que não esti­vesse envolvida com cada movimento dessa aventura.

Ben Ata voltava tarde todas as noites, geralmente sujo de lama e sempre cansado. A comida era trazida das cozinhas do acampamento, e, depois de tomar banho, ele sentava-se para jantar, sempre preocupado, mas pronto a responder às perguntas de Al.Ith e sempre disposto a ouvir seus comentários. Mas a guerra não era uma das coisas que ela compreendia, e, embora se interessasse pelos detalhes dessa vida tão estranha, pouco podia contribuir. Portanto, muitas vezes ele ficava em silêncio. Deitava-se cedo, porque se levantava com o nascer do dia. E ela, nessa época, estava pesada e não dormia bem. Mas abra­çavam-se no grande leito por amizade e para conforto mútuo. Ele gostava de deitar-se com a mão grande e forte no ventre dela, sentindo os movimentos da criança, até que o peso se tornasse incômodo, e então a fazia deitar-se de lado, de costas para ele, e colocava o braço sob a curva do corpo dela. Faziam amor gentilmente. Al.Ith não tinha feito amor muitas vezes quando estava grávida pelo menos pensava que não. Sem dúvida passara muito mais tempo da gravidez com os Pais do que com Ben Ata agora. Parecia-lhe que passava os dias com os homens que eram os pais dos seus filhos, sentindo-se apoiada e segura, e que esse viver a dois durante a gravidez era da maior importância. Contudo, era um conceito tão distante do tipo de vida de Ben Ata que nem valia a pena mencionar.

Assim, quando Ben Ata, depois de tomar banho, vestir-se e beijá-la, disse que esperaria ansioso o momento de estar com ela à noite e saiu, ao raiar do dia, deixando-a ainda enrodilhada na grande cama, os pensamentos de Al.Ith voltaram-se imediatamente para as mulheres que logo subiriam a colina, vindas dos acampamentos. Seu bebê estava sendo sustentado, pelo menos durante o dia, por mulheres, pela conversa das mulheres, o amor das mulheres, que desejavam seu nascimento tanto como tinham desejado o dos próprios filhos. E isso era outra coisa que Al.Ith não se lembrava de ter visto antes — essa identificação ardente com o nascimento de uma criança, como se fosse uma espécie de auto-satisfação. Mais: como se o nascimento representasse o triunfo sobre uma ameaça ou mesmo um erro, merecendo o selvagem brado exultante do guerreiro ao vencer o inimigo. Seus filhos, no passado — seus filhos verdadeiros —, tinham sido considerados mais como o resultado ou a confluência e o reforço de influências e here­ditariedade. A criança, ao nascer, era recebida como um espírito companheiro, um prazer, uma dádiva — mas teria havido essa necessidade apaixonada de ter, conservar e exultar? Bem, talvez tivesse sido assim...

Outra coisa era diferente. Al.Ith nunca estava comple­tamente só. Na sua terra, embora os Pais, e as mulheres envol­vidas na criação das crianças e que eram consideradas Mães, estivessem quase sempre com ela, lembrava-se de longas horas de solidão em comunhão consigo mesma e com a criança. Mas, agora, esse desejo de sua parte era considerado indício de fra­queza ou distúrbio mental. Estava triste, talvez? Ou assustada? Todas agiam como se este fosse o seu primeiro filho e ela não conseguia lhes dizer como tinha sido a sua vida como Mãe de vários filhos, os seus e os órfãos, porque elas eram incapazes de compreender qualquer coisa que não fosse a possessão do que lhes pertencia — segundo o seu costume.

E essa criança era o filho de Ben Ata. Não de Al.Ith. Ela era apenas o canal, o instrumento. Era uma sensação estranha e embaraçosa e muitas vezes Al.Ith parecia perder seu precário equilíbrio mental e imaginava se ela não estaria errada e as outras certas. Mas como? Essa atitude de meu, meu, meu a respeito da criança era um tributo à carne, mas onde estava o reconhecimento das influências mais altas e per­feitas que alimentavam todas as crianças — ou seja, as crianças às quais elas eram proporcionadas? Qualquer pessoa pode lam­ber uma criança como fazem os animais — mas, de onde viera esse pensamento? Que idéia estranha! E qualquer pessoa podia agarrar a criança e pôr uma marca nos seus traços: "Este nariz é meu, e aquele é seu, e aquele é da minha mãe e este do pai dele..." Qualquer um, até mesmo um cavalo ou um cão, podia calcular os fluxos da hereditariedade desse modo. E era sem dúvida agradável, ninguém decerto poderia negar o prazer de observar o aparecimento deste ou daquele traço em uma criança. Mas não era nem a metade... não se devia, definitivamente não se podia dizer, de uma criança, "minha, minha", ou "nossa, nossa" — significando apenas paternidade. Pois, o que era real, bom e precioso no novo ser relacionava-se somente com... outra coisa...

Onde? A mente de Al.Ith aturdiu-se e vacilou. "Azul...", murmurou ela. "Sim, azul... mas, onde?" E, segurando a cabeça com as mãos, fechava os olhos procurando se lembrar... via uma infinidade de azul, um campo azul-celeste cintilando entre os altos picos. Mas onde? E agora ela sentia mãos sobre seus ombros, e alguém a estava sacudindo carinhosamente. "Al.Ith, o que há, alguma coisa errada?" E quando estava quase a ponto de realmente se lembrar, era trazida de volta, puxada de volta. Todas estavam preocupadas, todas aquelas mulheres amigas, e Dabeeb a abraçava e elas exclamavam e a animavam e não ficavam quietas. Tagarelavam, tagarelavam, era tudo o que sabiam fazer. Contudo, amava-as e estava agradecida pelo seu apoio. Pois, afinal, ela ia ter um filho nesta terra que não era a sua e não sabia o que esperar.

Enquanto Al.Ith passava os dias assim, Ben Ata estava terrivelmente ocupado. Organizava exercícios complexos para seus homens e visitava-os freqüentemente, inspirando-os com discursos estimulantes e com exortações, mas tudo isso começava a fazê-lo sentir-se envergonhado, embaraçado. Mais de uma vez surpreendeu-se pensando que era uma boa coisa o estado de Al.Ith não permitir que ela assistisse a tudo aquilo. O resto do tempo passava percorrendo seu reino de uma extremidade a outra. Queria vê-lo com sua nova visão — uma dádiva de Al.Ith. Além disso, havia distritos que Al.Ith não tinha conhecido naquela longa excursão que haviam feito; Ben Ata tivera o cuidado de evitar que ela os visse, pois eram piores do que todos os outros. Via agora a privação extrema do seu povo com clareza e com desgosto, e imaginava como deviam ser as coisas lá no alto, na Zona Três, para que a visão do seu reino provocasse nela aquele silêncio e aquela angústia. Não podia imaginar um país sem exércitos. A idéia provocava-lhe um sentimento de desprezo que a princípio não reconheceu como tal. Então, percebendo que sempre que pensava na Zona Três tinha uma sensação desagradável como quando seus exércitos conquistavam uma vitória mesmo em uma guerra simulada sobre o inimigo, foi forçado a reco­nhecer que se tratava de desprezo. E sentia-se confuso, e di­minuído intimamente porque o sentimento de vencer, de ser superior, era o combustível da sua energia. Que era formidável. De um lado a outro da sua Zona, o rei era conhecido como um homem capaz de cavalgar dia e noite, de trabalhar nos planos de organização praticamente sem dormir, por um tempo quase ilimitado. E tudo isso por quê? Não sabia antes, mas soube agora: porque nessas ocasiões sentia-se como se es­tivesse calcando ao pé um inimigo. Estaria realmente inclinado a sentir o mesmo por Al.Ith e pelo seu povo?

Na primeira vez que teve essa idéia, rejeitou-a por comple­to, ela voltou, foi admitida experimentalmente, afastada de novo, voltou inexorável e, desta vez, direta e franca e Ben Ata sentiu-se mal. Com tonturas e náusea. Estava atravessando uma das florestas pelas quais tinha passado com Al.Ith, seu outro eu. Agora, sozinho, era como se visse à sua frente, na clareira verde com pássaros cantando, o solo rico, ele, Ben Ata, com Al.Ith, radiante no seu vestido dourado, o cabelo negro cascateando pelas costas, a mão pequenina acariciando o cavalo.

E subitamente Ben Ata começou a chorar. Tudo isso era tolice! Chocante mesmo. Mas saltou do cavalo e, trêmulo e soluçando, aproximou-se de uma esguia bétula na borda da clareira. Abraçou-se à árvore e chorou. Al.Ith, Al.Ith repetia várias vezes, beijando o revestimento branco da bétula, como se Al.Ith estivesse morta ou tivesse desaparecido para sempre do seu reino.

Mas como poderia suportar esse tumulto de emoções sem ela! Como viveria! Não era mais ele mesmo, o guerreiro, o grande soldado. Era um homem que abominava os seus mo­tivos mais profundos, que via nascer dentro dele sentimentos inimigos, um homem cujos objetivos se tinham evaporado.

— Al.Ith — gemeu, como se lamentasse sua morte — e ocorreu-lhe então que ela estava a um dia de viagem apenas. Tudo o que tinha a fazer era virar seu cavalo e galopar pelos campos e pelas valas até chegar à colina e entrar no encantador pavilhão, onde o tambor tocava suavemente, e tocava, tocava — e tomá-la nos braços.

Mas se fizesse isso iria encontrá-la em seu apartamento, recostada em uma cadeira baixa, o ventre crescido agredindo-o com sua estranheza, rodeada por — parecia — metade das mulheres dos acampamentos. Dabeeb estaria ao lado dela, talvez abanando-a com um leque, ou acariciando seus braços, ou massageando-lhe os tornozelos. Al.Ith ficaria embaraçada, irritada, e movendo a cabeça de um lado para o outro, enquanto uma das mulheres — talvez Dabeeb outra vez! — escovava os belos cabelos negros que ele tanto amava. Assim as tinha visto na véspera. Entrara no quarto e todas estavam lá. Al.Ith erguera os olhos e sorrira — exatamente como um prisioneiro sem esperanças de liberdade. Mas quem a ti­nha aprisionado? Não ele, Ben Ata!

Saíra do quarto com uma desculpa apressada. O sorriso que Dabeeb lhe dirigiu fora eloqüente e tranqüilizador, como o de um amigo.

Tendo-lhe sido negados a beleza de Al.Ith, o desafio do seu vigoroso bom senso, Ben Ata pensava em Dabeeb quase como se ela fosse Al.Ith. Imaginava-se saindo da barraca dos oficiais ou caminhando para sua própria tenda e encontrando Dabeeb, sorridente, no seu caminho. E sentia-se fortalecido e consolado. Sorria quando se afastou da pequena árvore e montou em seu cavalo.

Não se apressaria em voltar para as mulheres. Percorreria o país, observando tudo o que pudesse, sem esconder nada, conservando o rosto de Al.Ith na mente como medida e lembrança — o rosto de Al.Ith que vira durante a viagem pelo seu reino, só os dois, através de bosques e campos e florestas, sentados juntos, abraçados a noite toda ou de mãos dadas. Tanta felicidade teria realmente lhe pertencido — aos dois? Pois tudo o que via — quando pensava em como Al.Ith es­tava agora — era um rosto afogueado, inchado, com olhos que pediam — e pediam. Mas, o quê? Não tinha tudo? E, de qualquer modo, como poderia chegar perto dela, com todas aquelas malditas mulheres amontoadas à sua volta?

Encontrou tuna cidade onde havia uma guarnição e man­dou o oficial encarregado enviar mensagens de tambor para o campo no sopé da colina, anunciando que ele não voltaria naquela noite. E talvez nem na noite seguinte, ou na outra, ou na outra. Sorrindo, lembrou-se de que Al.Ith dissera que na Zona Três as mensagens eram enviadas através das árvores. Sim, pelas árvores. No seu reino havia inúmeras árvores capa­zes de transmitir qualquer mensagem urgente. Um viajante atra­sado, alguém que não pudesse estar em casa na hora prometida, procurava uma dessas árvores, que Al.Ith descrevera como altas e bem desenvolvidas, com um desenho especial na disposição dos galhos, murmurava o recado a esse ser — pois era como Al. Ith se referia a essas árvores transmissoras, como se fossem dotadas de sentimentos e de conhecimento. Os pensa­mentos ou sentimentos da árvore aceitavam os pensamentos ou sentimentos de quem enviava a mensagem e os transmitiam através de qualquer distância ao marido, ao filho, à família. Muitas vezes, ouvira Al.Ith dizer que, quando estava muito distante do seu palácio, dos seus filhos, da irmã, e natural­mente dos seus homens — resmungou Ben Ata irritado, sen­tindo-se imediatamente rubro e trêmulo de ciúmes —, tinha encontrado uma árvore para enviar mensagens.

E agora uma cólera inesperada e uma sensação de des­conforto eliminaram todos os seus pensamentos ternos sobre Al.Ith, e Ben Ata fervia de raiva dela.

Oh, sim, tudo era amor e amor e bondade, tudo sorrisos e beijos, mas ele era apenas um dos — nem sabia quantos! Quando lhe perguntara — nos primeiros dias somente — quan­tos, quem, quantas vezes, e todas essas coisas, Al.Ith rira, chamando-o de selvagem, bárbaro, tolo — tinha uma infinidade de nomes para ele. Mas agora não. Agora ela contentava-se em aconchegar-se nos braços dele e ficar quieta, descansando. Mas o que aconteceria mais tarde — ou a seguir? Qualquer coisa era possível com uma criatura capaz de se adaptar a todas as ocasiões.

Assim, Ben Ata percorreu seu reino, extravasando cólera e sofrimento, de vilarejo em vilarejo, de cidade em cidade, sempre comparando-os secretamente, em espírito, aos vilarejos e cidades da Zona Três, dos quais não tinha a mínima idéia. Como seria uma cidade sem uma guarnição, sem soldados nos bares e tavernas, sem toques de clarim para anunciar o começo e o fim do dia? Uma vila onde todos os homens ficassem em casa, fazendo trabalho de mulher — e ouviu o riso de Al.Ith. Al.Ith estava rindo dele! Oh, sim, provavelmente no íntimo ela sempre estivesse rindo dele, disfarçadamente. Oh, ela era astuciosa, a grande Al.Ith, sem dúvida nenhuma.

Chegando a uma cidade quando a luz começava a di­luir-se no céu, ele parou e olhou para as montanhas. As mon­tanhas de Al.Ith, murmurou, invadido por imensa saudade dela. Aquelas montanhas a tinham criado, a bela Al.Ith — e a via correndo para ele, os braços estendidos, sorrindo — e Ben Ata, praguejando, saltou do cavalo, ordenou a um sol­dado que por ali passava que o levasse às cocheiras e entrou na estalagem mais próxima. Lá encontrou a mulher de um soldado que estava em manobras, em cujo rosto julgou ver algo de Al.Ith, como ela era no seu primeiro encontro, ágil, esguia e dócil, não como estava agora, hostil, entrincheirada atrás do ventre enorme, e foi para a cama com a mulher. Mas não conseguiu tomar essa mulher como fazia no passado, sem pensar nela como um indivíduo. Perguntou sobre sua vida, seus filhos, que dormiam no quarto ao lado, sobre o marido, o que ele achava dos novos exercícios — não estava satisfeito, concluiu Ben Ata, porque eram somente exercícios e não guer­ra, sem oportunidades de pilhagem — e quando fizeram amor precisou se conter para não chamar Al.Ith, Al.Ith.

Jamais se sentira tão atormentado. Nunca pensara em ou­tra mulher quando fazia amor. E não dormiu a noite toda, ali deitado com essa mulher nos braços, ela completamente adormecida, cansada, porque, segundo dissera, o filho mais novo estava dando muito trabalho com a dentição. Ben Ata não sabia coisa alguma sobre dentição de crianças. Não tinha idéia da idade da criança, e não queria demonstrar ignorância per­guntando. Mas sentiu as mãos úmidas e compreendeu que havia leite nos reconfortantes seios da mulher, o que lhe causou repulsão e aborrecimento. Por que não lhe tinha dito? Por que não o avisara? Como podia ser tão indecorosa e tão ávida por dormir com ele, o rei, sem confessar que os grandes seios estavam repletos de leite... ocorreu-lhe que talvez ela não considerasse o fato digno de ser confessado. Pensou que os seios de Al.Ith logo estariam cheios de leite e úmidos sob suas mãos. Mais uma vez sentiu repulsa, ao mesmo tempo desejando estar com Al.Ith... e assim se passou aquela noite, com Ben Ata atormentado a cada minuto por novas emoções e pensamentos que, na sua opinião, eram efeminados. Dementes, mesmo.

Enquanto isso, Al.Ith estava dando à luz seu filho, o novo herdeiro, Arusi.

Foi extremamente cansativo. Não difícil, ou doloroso de­mais, pois afinal ela era veterana no assunto. Mas não entendia todo aquele movimento das mulheres, os conselhos para não fazer isto, fazer aquilo, e a criança acalentada por todas, menos por ela, como se fosse uma inválida ou estranhamente enfraquecida por um processo que, no passado, considerara sempre como extremamente gratificante.

Lembrava-se claramente que das outras vezes fora para o quarto com a irmã, deixando os Pais reunidos — tendo-os chamado para dar-lhes apoio com sua presença e seus pensa­mentos —, e agachara-se sobre uma pilha de tecidos macios. Quase que imediatamente, a criança estava nas mãos de Murti. ou nas suas. As duas mulheres seguravam o recém-nascido, davam-lhe as boas-vindas, enrolavam-no em mantas e, quando a placenta aparecia, cortavam o cordão. Murti. ajudava Al. Ith a se lavar e sentavam-se ao lado da janela, com a criança, apresentando-lhe o céu, as montanhas, o sol, as estrelas. Era sempre um momento de alegria e amizade, quando a criança olhara para elas com seus olhos límpidos e ambas a acari­ciavam transmitindo-lhe segurança. Felicidade! Era disso que Al.Ith lembrava. Uma felicidade tranqüila e abençoada, e não podia pensar em nada semelhante. Então, quando estavam mais descansadas e a criança acostumada ao seu contato e seus rostos, iam até onde os Pais estavam esperando, e era uma nova felicidade. As outras mulheres chegavam também, as que iam ajudar a cuidar da criança. Mulheres e homens, e então todos os outros filhos de Al.Ith davam as boas-vindas à nova criaturinha... era assim no seu reino.

Nada parecido com isto.

Al.Ith estava exasperada com todo aquele movimento, todo aquele cuidado exagerado pela sua pessoa.

E não havia nem um homem presente, e era óbvio que nenhum ia aparecer. Como podia ser bom e saudável para uma criança nascer no meio dessa ninhada de mulheres? Onde estava Ben Ata? E tinha chegado uma mensagem dos acam­pamentos dizendo que ele estava viajando e não voltaria tão cedo — os tambores haviam transmitido essa informação. Não o tambor particular dos dois, que tocava suavemente entre as fontes. Os tambores do exército... nenhuma das mulheres achava isso estranho, pelo contrário, uma ou duas, entre elas Dabeeb, tinham dito que: ainda bem, pois não era o lugar, nem a hora para um homem.

Al.Ith desistiu de tentar compreender os costumes dessa terra bárbara — pois mais uma vez lhe parecia atrasada e inculta, e insistia em que era a única com direito de segurar o seu filho — pois até ali parecia que as mulheres achavam que era um direito de todas elas. A criança estava irritada e chorava. Al.Ith não se lembrava de nenhum dos seus filhos ter chorado ao nascer. Por que deviam chorar? Mas as mu­lheres pareciam encantadas com o desconforto de Arusi, con­siderando-o prova de força.

Al. Ith levantou-se da cama — tinham trazido outra, pois ela se recusara a ter a criança no seu leito nupcial —, apanhou a criança, sentou-se em uma cadeira e pediu impacientemente que a deixassem sozinha. Até o seu mau humor parecia ser prova de algo que aprovavam e esperavam. Trocaram olhares e acenos de cabeça que deixaram Al.Ith perplexa, quando estava pronta a se desculpar. Saíram, sorrindo, com olhares de aprovação para Al.Ith, ali sentada com a criança no colo. Arusi não chorava mais, apenas olhava em volta com expressão inteligente, e era um garoto forte e perfeito. Dabeeb tinha ficado no quarto, mas aparentemente compreendia que Al.Ith queria silêncio e tranqüilidade, por isso ocupava-se com milha­res de detalhes que, para Al.Ith, pareciam completamente des­necessários, preparativos para lavar e vestir a criança.

Al.Ith queria Ben Ata. Precisava dele. Já estava na hora de a criança ver o pai. Ser carregada pelo pai. Alimentar-se com os pensamentos do pai. Talvez por isso olhava para todos os lados, continuamente — queria o pai. Nunca antes Al.Ith tinha, desejado a presença do pai dos seus filhos — eles sempre estavam lá.

Al . Ith sentia seu espírito debater-se entre emoções que lhe desagradavam e que considerava impróprias. Enquanto Dabeeb insistia com ela para chorar se estivesse com vontade, Al.Ith fervia de irritação, que procurava controlar. Quando Dabeeb lhe disse para dar o seio à criança, o pobrezinho, Al. Ith sacudiu a cabeça — alimentar seu filho agora seria alimentá-lo com carência e irritação.

Mas não queria ofender ou desapontar Dabeeb, que tinha sido boa e paciente, não como sua irmã Murti, mas a melhor substituta possível, nesse lugar inculto.

Mais tarde, enquanto Al.Ith tomava banho e se vestia, Dabeeb segurou a criança. Al.Ith trançou os cabelos e pren­deu-os conforme o costume da Zona Quatro. E então disse a Dabeeb que queria ficar sozinha até de manhã. Dabeeb não tinha a mínima intenção de deixar Al.Ith sozinha — era ob­viamente capricho de uma pobre mulher sob tensão — mas fingiu concordar, e saiu do pavilhão, sentando-se na varanda que dava para os acampamentos, recostada em uma coluna, A noite não estava fria, apenas úmida. Dali poderia ouvir Al.Ith se ela chamasse, e pretendia espiar freqüentemente pa­ra ver se tudo estava bem.

E foi o que fez. Viu Al.Ith andando pelos aposentos, cantando para a criança, falando com ela — uma linguagem estranha que perturbou Dabeeb. Então, viu Al.Ith abaixar-se, com o menino nos braços, perto da janela que dava para as grandes montanhas. Ela estava mostrando as montanhas para o bebê! E Dabeeb desceu correndo a colina para contar a no­vidade às outras mulheres.

Depois disso, na luz dourada que vinha dos picos de neve, Al.Ith tirou as roupas da criança para limpá-la gentilmente, como sempre fizera antes — mas para sua própria surpresa viu-se lambendo o filho, acariciando-o com o rosto como uma égua com o potro recém-nascido ou uma cadela com sua ninhada. Ficou chocada, mas ao mesmo tempo sentiu-se unida por um amor encantado a essa criança, e lambê-lo como um animal parecia-lhe a coisa mais natural do mundo. E o bebê parecia pensar o mesmo, pois respondia à carícia do rosto dela perto do seu e ao contato dos seus cabelos enquanto ela o lambia todo, às vezes rudemente, como um animal, para que o sangue e a vitalidade corressem com mais vigor nas veias da criança.

Quando terminou, vestiu o menino outra vez e apertou-o contra o peito, completamente possuída pelos mais selvagens sentimentos de amor e possessão — mas jamais sentira isso antes e estava perturbada agora. Não era o que devia estar sentindo. O seu amor ao bebê era algo opressivo como se — tinha ouvido a frase de uma das mulheres — "fosse capaz de devorá-lo".

Bem, essa era a Zona Quatro, esses os costumes da Zona Quatro, portanto provavelmente nada mais havia a fazer.

Mas onde estava Ben Ata? Onde estava Ben Ata? Onde estava ele? Como podia deixá-la, traí-la desse modo? Como podia abandonar a criança faminta pela sua presença? Que tipo de monstro era ele, afastando-se no momento em que ela e a criança mais precisavam dele?

Ben Ata voltava para casa, insatisfeito em todos os sen­tidos. Aquela noite com a mulher deixara-o mais curioso a respeito de Al.Ith, a quem via como uma criatura cheia de segredos, os quais deliberadamente escondia dele. Se estivesse em estado de concentrar sua inquietude em uma definição diria que não conseguia reconciliar uma animalidade (embora essa não fosse uma palavra que Ben Ata teria usado para definir Al.Ith) sentida, obviamente, como fonte de força e sinceridade, com uma inteligência que, sabia, estava acima da sua. Mas não estava com disposição analítica, apenas atormentado por contradições. Sua companheira da noite fizera-o sentir simplesmente porque pela primeira vez ele permitira a combinação do entendimento com um ato sexual impulsivo que desde o começo do seu aprendizado até seu casamento ele tinha sido um animal, e não estava acostumado a aceitar palavras como essas a seu respeito. Compreendeu que havia gerado filhos com mais indiferença do que os animais. Orgulhava-se do Exército de Crianças, onde seus filhos viviam com os dos seus oficiais. Muitas vezes, durante as paradas, olhava aqueles rostos jovens, tentando descobrir os que se pareciam com ele. Esperava que esses meninos alguns já crescidos e correspondendo a todas as suas expectativas fossem exemplos para seus exércitos.

Mas não fora um pai.

Nem desconfiava de que poderia haver uma visão diferente sobre esse assunto.

Parecia-lhe que passara a maior parte da vida cego à sua própria natureza.

E mais, e pior, muitas coisas ditas ou sugeridas pela mulher, da qual se tinha separado ao nascer do dia, quando ela saiu para cuidar dos filhos, diziam-lhe que seu reino era, sob todos os aspectos, mais pobre e mais brutal do que suspei­tava, e seu povo muito mais descontente.

E nunca lhe tinha ocorrido sequer pensar sobre isso.

Agira, como sempre, como seu pai tinha agido, e o pai de seu pai ao que sabia, mas a verdade é que não tinha pen­sado nisso também.

Começava a anoitecer quando ele chegou aos acampa­mentos no pé da colina, e viu que os soldados e suas mulheres e filhos sorriam e davam demonstração de amistosa alegria. O que Ben Ata interpretou, no seu estado de espírito de amarga insatisfação consigo mesmo, como hipocrisia e até mesmo traição. Não correspondeu e subiu a colina carrancudo, os pen­samentos cheios de Al.Ith e de sua intenção de compreendê-la, o que significava que no futuro não pretendia deixar-se enganar por ela. Mas desejava-a — desejava algo que era muito mais do que o que aquela mulher lhe dera. Não pensava no filho.

Na varanda que rodeava o pavilhão viu uma mulher com uma criança nos braços, e pensou desanimado que antes de ficar só com Al.Ith precisava livrar-se de todas aquelas mu­lheres. Então pensou que poderia ser Dabeeb, e seu aborreci­mento diminuiu; pretendia fazer amor com ela na primeira oportunidade, pois queria compreendê-la também. Dabeeb qua­se sempre tinha um bebê ou uma criança com ela, já estava acostumado a isso. Mas, quando chegou mais perto, teve um momento de estonteante confusão, pois pensou que não era Dabeeb, mas Al .Ith.

Na verdade, era Dabeeb. As últimas semanas de atenção contínua à sua senhora a tinham feito perder peso e refinaram seus traços. A alegria que sentira com o nascimento dessa criança acendera nela uma chama que tinha origem na crença de todas as mulheres, de que Arusi ia redimi-los de algum modo e, através deles todos, ao reino. E a proximidade de Al. Ith transmitira-lhe algo das elevadas pulsações daquela terra que dominava a sua com suas alturas.

Estava radiante. Mas quando Ben Ata se inclinou para abraçá-la, para olhar o seu rosto e exigir — em um momento de completa sinceridade — que Al.Ith lhe revelasse tudo o que escondera dele até agora, viu que se tratava de Dabeeb. Mais confuso ainda, entrou, sem olhar para a criança que ela lhe estendia.

Uma mulher estava de pé na sala central, numa das portas em arco, com os braços cruzados. Mais uma vez praguejando intimamente que sua vida estava infestada de mulheres, mulheres, mulheres, ia passar por ela quando viu que era Al.Ith. Parou, petrificado, sem conseguir dizer uma palavra.

Al.Ith estava mais pesada, deselegante, quase grosseira. Os olhos dela procuravam os dele com uma expressão intrigada. Envolvia-a um odor de sangue. Apenas os fartos cabelos negros pareciam reconhecê-lo.

— Onde esteve? — perguntou ela, muna voz que não era a sua. Tendo se debatido entre tantas emoções, todas desagradáveis, não podia agora enfrentar outra, a suspeita de que essa mulher tinha, de certo modo, passado todo o seu encanto, seu ardor, sua luminosidade para a sua serva, Dabeeb, usando artes mágicas.

Então percebeu que ela não estava mais pesada e grávida. E, lentamente, concluiu que a criança tinha nascido. E que o bebê pelo qual acabara de passar era o seu filho.

Era demais para ele, e com passos largos foi para seu apartamento e sentou-se com a cabeça nas mãos.

Al.Ith a princípio não se moveu. Em espírito estava de volta à sua terra, tentando descobrir algo em sua experiência que combinasse com o que acabava de acontecer.

Não olhou para Dabeeb, cuja expressão era de quem a incitava a seguir o marido, levando o filho para ele. Al.Ith vira Ben Ata aproximar-se de Dabeeb com um desespero cons­trangedor, uma interrogação que, acreditava, por tê-los visto tantas vezes, fossem destinados a ela. Isso era "amor" nessa Zona: desespero, incerteza, insatisfação.

Al.Ith estava possuída por uma dor lancinante que jamais sentira. Era como se a estivessem privando de ar ou como se a tivessem obrigado a chegar à beira de um precipício. Não sabia o que era essa estranha e nova angústia, mas sentia-se atordoada. Subitamente foi para seus aposentos e, como Ben Ata, sentou-se com a cabeça entre as mãos.

Não lhe agradava o que estava sentindo, embora não sou­besse o que era. Eram infindáveis as misérias e humilhações nesse lugar terrível.

A dor apertava-lhe o peito, encurtava a respiração e a impedia de abrir os olhos, pois, quando o fazia, o quarto parecia rodar em volta dela.

Agora estava escuro lá fora e Dabeeb levou a criança para dentro, porque Arusi estava com fome. Ela puxou a manga de Al.Ith, e Al.Ith apanhou a criança apaticamente. Arusi começou a chorar. Dabeeb esperava que ela o amamentasse, mas Al. Ith não o fez. Estava pensando que a dor que sentia — uma dor maléfica, tinha certeza — poderia envenenar o bebê, que além de privado da presença do pai receberia más in­fluências da mãe. Não podia explicar isso para Dabeeb, que era selvagem demais para entender, apesar de toda a sua bon­dade. Levantou-se com dificuldade, pois sentia-se mal, e ca­minhou de lá para cá com a criança, procurando acalmá-la. Mas o bebê chorava incansavelmente.

Dabeeb pensava se não devia ir dizer a Ben Ata que fosse ter com a mulher, quando ele apareceu. Sua expressão, ao ver Al.Ith andando com o filho, era a de uma criança. Ficara atordoado, chocado, com um sentimento de perda total, privação. Mas agora Al.Ith parecia-lhe completa e perfeita segurando o bebê, e a exaustão, a sonolência que se refletiam no rosto dela pareciam-lhe belas. Se tivesse chegado à porta de uma casa que contivesse tudo o que desejava na vida, esperando ser bem recebido, e lhe tivessem fechado a porta na cara, não se teria sentido pior. Encostou-se no arco de entrada, cruzou os braços e sombriamente observou o rosto magro e pálido da mulher.

Dabeeb não estava nem um pouco perturbada. Sabia exatamente o que estava acontecendo. Os dois estavam com ciúmes. Era perfeitamente natural. Sua compreensão das coisas naturais, igual à compreensão de Al.Ith das camadas mais elevadas da natureza, dizia-lhe que tudo acabaria bem. Todas as vezes que estivera grávida, seu querido marido tinha achado alguma mu­lher, geralmente quase no fim da gravidez, extremamente atraente — e ela ficara com ciúmes. E ele depois a vira como uma mulher completa, com a criança, e reagira como um menino. Naturalmente Al.Ith podia compreender isso? Às vezes essa grande rainha levava muito tempo para entender as coisas, embora não competisse a ela, Dabeeb, dizer ou pensar isso.

Confiando na natureza, humilde em sua fé, Dabeeb discretamente desejou boa-noite e desceu a colina para dizer às mu­lheres que tudo estava normal.

— Por que não quer olhar para mim, Al.Ith?

Porque você me traiu, a mim e à criança res­pondeu Al. Ith com sua nova voz estridente, que a surpreendeu.

Naturalmente, ele pensou que, de algum modo, ela sou­bera de sua escapada da noite anterior, e imediatamente adotou uma expressão encabulada, que ela percebeu e em seguida compreendeu. Pois já sabia há algum tempo que esse olhar de tolo estava ligado a culpa sobre sexo. Agora ela simplesmente detestou Ben Ata e a si mesma por gostar dele. Al.Ith havia descido tanto, estava tão longe do que costumava ser, que não pôde deixar de ouvir atentamente, na esperança de que o tambor, por uma feliz e suprema coincidência, tivesse parado, para chamar seu cavalo e sair desse reino de névoas baixas e fervilhantes.

Quanto a ele, percebia que Al.Ith estava se contorcendo de raiva como um garoto camponês, e estava atônito porque não se sentia culpado. Ao contrário, estava orgulhoso do que aprendera na noite que tinha passado com outra mulher, embo­ra tivesse sido só uma vez, como se ela fosse digna de todo o seu respeito.

Al.Ith disse:

Seu filho... este é o seu filho... — com voz embar­gada e fraca.

Ben Ata compreendeu que era realmente um filho, como naturalmente esperava que fosse, porque do contrário nada nesse casamento forçado teria sentido; ainda assim, sentiu-se invadido por imensa alegria. Não tinha idéia de como expressá-la, mas queria tomar os dois nos braços. Aproximou-se e desajeitadamente abraçou a mãe e o bebê. Sorria, com um largo sorriso. A criança, porém, começou a gritar e Al.Ith sentou-se de costas para Ben Ata.

Muito bem disse ele com amargura —, vocês fazem as coisas de modo diferente no seu país.

Al.Ith não respondeu, mas desnudou um dos seios, que a criança pegou imediatamente. Silêncio. Ben Ata foi para o outro lado, ignorando o fato de Al.Ith ter-lhe dado as costas, o que significava que queria afastá-lo dali, e seus lábios abriram-se em um largo sorriso. Estava tão feliz que não podia acreditar na frieza de Al.Ith.

E, depois de alguns minutos, ela suspirou e sua expressão adoçou-se.

Em nossa terra — disse ela — os pais da criança estão presentes para receber o recém-nascido. Para... ali­mentá-lo...

As palavras "os pais da criança" simplesmente caíram no vazio. Como se o próprio ar as recusasse. Assim que as pronunciou, Al.Ith arrependeu-se, temendo que ele as julgasse uma provocação deliberada. Mas foi pior do que isso. Ele olhou para Al.Ith com expressão incrédula:

Mas, mesmo no seu país, é uma mulher que alimenta a criança?

Não com leite — explicou ela, com o tom frio e sar­cástico que Al.Ith não podia acreditar estivesse saindo dos seus lábios. — Há outros alimentos, Ben Ata. Acredite ou não. A criança não é apenas... um monte de carne.

A amamentação não ia bem. Tanta cólera e censura espalhavam-se pelo ambiente que chegavam a Arusi levadas pelo ar, pelo leite e através do corpo da mãe. Ele largava o seio, chorava, mexia-se inquieto, e, quando isso acontecia, do grande seio de Al.Ith — que Ben Ata não podia acreditar que fosse dela, e que sem dúvida não reconhecia como o que considerava seu — o leite jorrava, molhando o vestido azul já bastante manchado. Para Ben Ata tudo isso era chocante. Mas continuava a sorrir, desejando a amizade dela.

Suponho que se sentam todos em círculo — disse ele, tentando ser sarcástico, embora na verdade estivesse interessado — e deliciam-se com lembranças felizes?

Ora, saia daqui — disse ela —, saia daqui. Vá para... Dabeeb!

Isso o surpreendeu. Não podia compreender como ela percebera sua intenção — afinal de contas não tinha demonstrado. Sentiu também um pouco de medo dela, como sentia no começo.

Mas não saiu. Deu as costas à cena por algum tempo, e olhou, pela janela, para o maciço escuro de montanhas, que parecia tenebroso nessa noite, e hostil. Ouvia o ruído da criança mamando, que parou depois de alguns instantes. Silêncio.

Voltou-se afinal, cautelosamente, e viu Al.Ith sentada, tranqüila, o menino adormecido no colo, e agora a expressão dela era agradável, convidativa mesmo.

Venha vê-lo — murmurou.

Ben Ata aproximou-se ansioso e, para ficar no mesmo nível de Al.Ith e da criança, ajoelhou-se perto da cadeira. Ambos sorriam. Ela afrouxou uma das peças da roupa do bebê, deixando as perninhas livres. Juntos examinaram cuidadosamente o filho, membro por membro, traço por traço.

Arusi era um bebê saudável e forte. As mãos e pés indi­cavam que seria grande e alto. A cabeça era recoberta por uma penugem castanha brihante.

Ele vai ter o seu corpo — murmurou ela —, mas vai também se parecer comigo... tem os olhos do meu país.

E, então, mostrou o corpo todo da criança, para que ele visse que era um filho e que era em tudo perfeito e sau­dável.

Depois, vestiu-o gentilmente, deixando só o rosto à mostra, e disse: — Agora, segure.

Ben Ata cerrou os dentes ante a enormidade do desafio, segurou a criaturinha e, então, sorrindo orgulhoso por ser capaz disso, levantou-se.

— Agora, ande um pouco com ele — murmurou Al.Ith, com um largo sorriso, encantada, confiante.

Ben Ata andou de lá para cá por algum tempo, e, quando fez menção de devolver a criança, Al.Ith disse:

Não, não, fique com ele. Pense nele. Faça com que saiba que você está aqui, com ele.

Ben Ata compreendeu, e fez o que ela dizia. Mais tarde, depois de terem comido alguma coisa — pois nenhum dos dois se havia alimentado durante dias, pelo menos era o que sentiam — e depois de Al.Ith alimentar o bebê outra vez, ela colocou o filho entre os dois na cama, insistindo em que era necessário que ele passasse a noite ali.

Para que possa conhecer a nós dois — explicou ela.

E os dois dormiram tranqüilos a noite toda, com Arusi entre eles, e Al. Ith sentiu-se recuperada, porque finalmente Arusi estava sendo alimentado pelo pai.

E aquela noite foi maravilhosa para Ben Ata, que sentia estar sendo admitido nos costumes da Zona Três e nos pensa­mentos dela, o que ele sabia precisava conseguir — para o bem de todo o seu povo.

Mas, no dia seguinte, tudo mudou. Para começar, todas as mulheres voltaram, tomando conta de tudo, e seus largos sorrisos para ele, como se tivesse feito algo maravilhoso, fizeram Ben Ata lembrar-se dos outros filhos que tinha — afinal, este não era de modo algum seu primeiro filho! E, além disso, sozinha com ele, fazendo questão de que ele compartilhasse o filho, Al.Ith não tinha sido a mulher agora outra vez ator­mentada, preocupada, até mesmo feia — pois ele teve de reconhecer que, para achá-la bonita, tinha de pensar na viagem que haviam feito juntos e isso parecia ter sido há tanto tempo.

Contudo, embora ela estivesse ocupada com a criança todos os minutos do dia, procurava pelo marido o tempo todo, seus olhos sempre indagando: onde está ele, o que está fa­zendo?

Na verdade, o que Ben Ata estava fazendo era imagi­nando um modo de escapar, e à tarde foi ao acampamento, ouvindo as acusações gritadas de Al.Ith, tão envergonhado por ela quanto ela própria — e Ben Ata sabia disso e sentia pena.

Além disso, ele queria ver Dabeeb. Não sabia por que e não se importava. Dizia a si mesmo que queria uma descrição do parto diretamente da parteira-chefe, mas na verdade não se importava muito com isso. Encontrou Dabeeb, como espe­rava — ela não tinha estado com Al.Ith durante todo aquele dia —, em casa, à noite, quando voltava dos jogos de guerra, onde deixara Jarnti naturalmente, como o grande general que era, encarregado de providenciar tudo. Ben Ata e Dabeeb, de­pois de se certificarem de que as crianças estavam dormindo — o fato de compartilhar esse cuidado o fazia sentir-se muito responsável e adulto —, foram imediatamente para a cama, e de­leitaram-se com imenso prazer. Dabeeb chorou um pouco, quei­xando-se de que estava sendo perversa, e, mais ainda, de que ele também era e que todos os homens eram iguais — mas, como isso fazia parte da experiência de toda a vida de Ben Ata, de um modo ou de outro, não se abalou e considerou-se exonerado de culpa. Acima de tudo, não tinha a sensação de culpa por insensibilidade ou falta de sentimentos; começava a acreditar que esse novo homem, criado por Al.Ith, destruíra nele todo o prazer, para sempre.

E na manhã seguinte partiu para os exercícios de guerra, encarou Jarnti de frente, como um rei deve encarar o seu general, e só voltou à noite. Isto é, Ben Ata ficara ausente durante dois dias. Esperava as vituperações de Al.Ith.

Mas ela estava com um vestido que ele não conhecia, rosa brilhante. O cabelo penteado como os das matronas da Zona Quatro, o que ele não apreciava muito. Ben Ata achou o vestido pouco apropriado, pois sugeria sensualidade e a fazia parecer mais gorda. Percebeu que ela tentava parecer atraente, o que o chocou e produziu efeito completamente oposto; achava impróprio fazer amor nessa ocasião, quando ela ainda não se refizera do parto. Mas, depois que ela amamentou a criança e a pôs para dormir — não no leito nupcial, mas no berço ao lado —, Ben Ata fez amor com Al.Ith e não podia acreditar que fosse a mesma mulher. Ela agarrou-se a ele, suplicante, agressiva, envergonhada.

Ben Ata sentiu que ela na verdade não o desejava, não tinha necessidade desse amor, mas queria provar alguma coi­sa — para ela ou para ele, não tinha a menor idéia. O corpo de Al.Ith parecia insensível e frouxo, e Ben Ata não con­seguia afastar a imagem desse corpo deformado e dilacerado pela criança que dormia no berço e que, vista desse ângulo, parecia enorme. Penetrando Al.Ith, Ben Ata pensava apenas na criança forçando a saída. Na verdade foi horrível. Ele detestou.

Logo que pôde, virou-se para o outro lado, fingindo dor­mir, e dormiu afinal pensando que o que sentia por Al.Ith agora era pena. Gostaria de segurá-la nos braços como se fosse uma criança e confortá-la. Mas evidentemente não era o que ela queria.

Quanto a Al.Ith, a vergonha a torturava. Nunca fizera isso antes, não podia ter feito. Não se reconhecia nessa mulher perturbada, de voz estridente, ciumenta. Contudo, tendo ouvido uma das mulheres usar a palavra em outro contexto como as palavras sempre aparecem, numa cena ou situação, para nos informar sobre uma verdade ou outra —, Al.Ith sabia que estava com ciúmes. Assim que a palavra foi usada, ela a acei­tou. Jamais sentira ciúmes antes. Não acreditava que isso fosse possível. Se o ciúme fosse definido para ela, em casa, entre os seus iguais, seus verdadeiros amigos, não teria acreditado.

Mas tinha se vestido para atrair Ben Ata, o que jamais fizera antes nem mesmo jamais tivera vontade —, e sentira que era necessário fazerem amor. Para quê?

Al.Ith ficou acordada, ouvindo a respiração profunda do marido, e a respiração leve e irregular do filho, e ouvindo o tambor tocando suavemente lá fora, e desejou uma única coisa. Que parasse de tocar e a libertasse.

De manhã, Ben Ata fez várias referências casuais a Dabeeb, que não havia chegado ainda, e Al.Ith soube exatamente o que havia acontecido. Uma parte dela tremeu de raiva: não era justo, não era direito, ela estava em desvantagem, fora enganada uma gama de sentimentos que a outra parte de Al.Ith considerava lunáticos. A partida de Ben Ata para os seus exércitos livrou-a desse conflito. E, quando Dabeeb chegou, Al.Ith recebeu-a com um beijo, tanto para a sua paz de espírito quanto para a de Dabeeb, porque não podia desempenhar o papel de carcereira, possuidora e acusadora.

Além disso, fora um erro desejar para esse filho tudo aquilo. a que as crianças da sua terra tinham direito. Arusi seria fisicamente alimentado e com mais aquilo que ela lhe pudesse dar, o que lhe dera, do seu reino. Não conheceria a natureza da paternidade como Al.Ith a compreendia. Nada mais podia fazer. E talvez tivesse cometido um erro em desejar mais e tentar mais na sua primeira noite com Ben Ata.

Via muito pouco Ben Ata. Ele passou vários dias, depois semanas, com o exército. Al.Ith ouviu dizer — mas não o censurou por isso — que estava planejando uma campanha real contra a Zona Cinco. Quando ele chegava tarde da noite e deitava-se ao seu lado, ela deixava claro que estava cansada, ou mesmo que preferia dormir nos seus aposentos, para que a criança não o incomodasse. Eram agora como estranhos, obrigados a estar juntos pelas circunstâncias, e que fazem o possível para se tratar cortesmente.

Nem mesmo pensava na possibilidade ou não de Dabeeb ter dormido com o marido. Recusava-se a pensar nisso por­que desprezava a criatura que vivia dentro dela e que essa idéia trazia à tona.

Arusi era saudável e forte, e Al.Ith estava pensando em deixar de amamentá-lo.

E então ela teve um sonho. Estava iniciando Arusi sexualmente. O filho era simultaneamente uma criança, um me­nino, um rapaz, e foi um sonho de prazer intenso, e de inte­gridade, pois era a maior intimidade possível, expressa do modo mais natural. E repleto de intensa pena, pois esse ato o libertava para as outras mulheres. E de responsabilidade, pois não era uma ação culposa, mas um ritual e uma neces­sidade, sancionado por todos. Quando acordou, a passagem daquele mundo, onde era certo que uma mulher iniciasse o filho no ato sexual, para este, onde esse ato era inconcebível, depravado, perigoso, foi tão chocante que ela sentiu-se perdida em algum lugar onde nenhum desses mundos era real, nenhum deles era válido.

Ao ver Dabeeb subindo a colina, estendendo as mãos para os ramos das árvores a fim de libertar o aroma das fo­lhas, sua energia alegre e sólida foi como um desafio para Al.Ith, que se sentia perversa e envergonhada por ter so­nhado com tal coisa, e tão intensamente que estava ainda envolta na atmosfera do sonho.

Al.Ith estava sentada sobre uma grande almofada ver­melha e o bebê deitado em outra, azul, dormindo. Dabeeb, como sempre, abriu um largo sorriso de carinhosa satisfação ao vê-los. Então, sensível como era, percebeu que algo estava errado com Al.Ith e parou, com as mãos cruzadas, ao lado da coluna central, numa pose de quem está pronta a servir, com expressão preocupada.

O contraste entre aquela mulher forte e as curvas deli­cadas e complexas da coluna pareceu a Al.Ith o resumo de todos os seus pensamentos.

Dabeeb — disse ela —, tive um sonho muito estranho.

Teve mesmo, senhora — exclamou Dabeeb com o tom complacente próprio para a mãe de um recém-nascido.

Sente-se, Dabeeb. Será que nunca vai aprender a ser minha amiga em vez de serva?

Dabeeb sentou-se na beirada do leito nupcial, pois não gostava muito de sentar-se no chão sobre almofadas.

Sim, sonhei que este menino tinha crescido, mas ao mesmo tempo era muito novo, sete anos mais ou menos. E um bebê também. E eu... era minha tarefa ensinar-lhe sexo. — Al.Ith parecia chocada consigo mesma por não conseguir se expressar adequadamente. Puritanismo era uma qualidade da Zona Quatro...

Mas Dabeeb não se abalou, embora lançasse um olhar nervoso na direção do arco que levava aos aposentos de Ben Ata, cujas cortinas estavam fechadas.

Acontece que ele havia voltado há poucos instantes e estava trabalhando nos seus planos militares.

Tinha observado Dabeeb subindo a colina e ouvira as pa­lavras de Al.Ith. Agora, apareceu na porta em arco e ficou ali parado observando as duas mulheres. Sua expressão era de indiferença.

Dabeeb deu sinais de querer escapar, e levantou-se da cama, mas a um sinal de cabeça de Al.Ith voltou a sentar-se.

Ben Ata, tive um sonho extraordinário.

Sim, eu ouvi o que disse.

Sentia-se perturbado pela proximidade das suas duas mulheres.

Freqüentemente imaginava como se tinha envolvido nessa situação que ofendia todos os instintos de discrição e de ordem.

Teria preferido que as duas jamais se tivessem encontrado, que não se conhecessem... que Al.Ith fizesse uma cena e expulsasse Dabeeb qualquer coisa, menos essa intimidade chocante.

O instinto de Dabeeb de levantar-se para sair pareceu-lhe admirável. A indiferença de Al.Ith assim ele a interpretava era indecorosa, um insulto.

Muito bem, Dabeeb, não vai dizer nada? Posso ver que tem muito a comentar sobre isso tudo.

Eu também tive esse sonho, Al.Ith disse Dabeeb embaraçada, mas decidida.

Ben Ata fez um movimento de impaciência e corou.

Al.Ith percebeu esse gesto e sorriu:

Eis aí, Ben Ata. Não sou a única perversa!

Eu não disse que você era perversa! protestou ele.

Al.Ith riu.

Tive esse sonho com todos os meus filhos. Tenho quatro filhos homens confessou Dabeeb. Estava rindo, mas não muito à vontade. Na primeira vez pensei que era uma mulher depravada. Mas agora eu sei...

O que é que você sabe?

Se falar com as outras mulheres verá que todas tiveram esse sonho. Ele acontece quando a criança é muito nova, mas no sonho ela pode ter qualquer idade. Geralmente sete anos ou mais ou menos 12.

Ben Ata afastou-se da porta dos seus aposentos, fechan­do as cortinas firmemente, como que insistindo em manter uma barreira, e foi até os arcos que davam para os acampa­mentos, ao pé da colina. Ficou de pé, as mãos cruzadas nas costas, os pés separados, numa atitude característica. Todo o seu ser lhe dizia que estava sofrendo um assalto e não podia submeter-se a isso.

De onde será que vêm esses sonhos?

Por que pergunta isso, Al.Ith?

Bem, evidentemente não faz parte dos seus costumes, não é, Dabeeb?

Pelo amor de Deus, como pode dizer tal coisa! Como deve desprezar-nos!

Estava brincando apenas.

Pergunte a ela se é um costume da Zona Três sugeriu Ben Ata, de costas para elas. Fazia o possível para dar à voz um tom de humor.

Al.Ith, com pena dele, disse com voz conciliadora que até ter o sonho a idéia jamais havia passado pela sua mente.

Ben Ata não pôde conter um suspiro de alívio, e mudou de posição como se lhe tivessem tirado um peso dos ombros.

Naturalmente você não imagina... oh, Ben Ata, você me conhece há tanto tempo e ainda alimenta as mais extraordinárias idéias a nosso respeito!

E por que isso a surpreende? Esquece-se de que al­gumas das coisas que vocês fazem, e das quais não vêem razão para se envergonharem, são execráveis para mim. Naturalmen­te não passo de um bárbaro.

Bem, dou-lhe a minha palavra.

Dabeeb olhava rapidamente de um para o outro durante essa conversa, como sempre demonstrando prazer e alívio por estarem se dando bem e não discutindo, pois quando o faziam sentia-se infeliz, pensando que era por sua culpa. Em parte, pelo menos.

É curioso que diga isso, Al.Ith. Na semana passada, uma das mulheres que tinha dado à luz seu primeiro filho teve esse sonho e nos contou estava muito embaraçada e então outra vez a mesma pergunta, de onde vem esse sonho? Porque naturalmente teríamos vergonha, aqui na Zona Quatro, de fazer isso, jamais pensaríamos em tal coisa, nunca viria à nossa mente se não fossem esses sonhos engraçados. Mas sonhamos.

Provavelmente uma lembrança do passado sugeriu Al.Ith.

Não gostaria de pensar que fosse da nossa Zona disse Dabeeb virtuosamente. Nunca. Não é certo nem mes­mo pensar a respeito.

Não tenho muita certeza disse Al.Ith. Essa é exatamente a questão. O sonho não só foi extremamente agradável, como também indicava que era um ritual, o que o faz mais estranho. Alguma coisa obrigatória. Que esperavam que eu fizesse... mas agora que estou acordada não me parece certo.

Ben Ata deu um gemido.

Acho que não deviam estar falando desse modo na frente do rei. Não é muito agradável para ele, não acham? Deve ser chocante.

Por quê? Ele teve mãe! — disse Al.Ith, e Ben Ata resmungou gemendo mais uma vez.

Oh, Al.Ith — protestou Dabeeb.

Não adianta, vocês sempre acabam me deixando cho­cado. Acho que nenhuma das duas compreende porquê, mas essa é a verdade. Como é que vocês mulheres podem tratar seus homens como se fossem inimigos, ou idiotas em quem não podem confiar, ou garotinhos?

Ben Ata e Dabeeb ficaram em silêncio; o silêncio obsti­nado dos que tentam preservar sua dignidade contra pressões pesadas e estranhas.

Se eu tivesse esse sonho na Zona Três, podem estar certos de que nós todos teríamos discutido e dado opiniões a respeito e chamaríamos as Memórias e os historiadores, todo mundo, e teríamos descoberto o maior número de informa­ções possíveis. Jamais nos ocorreria guardar o segredo apenas entre as mulheres.

Silêncio novamente. Então Ben Ata disse com voz áspera e magoada, ainda de costas, que sentia muito eles serem tão atrasados, mas que precisariam de muito tempo para se acostumarem a essas idéias.

Talvez eu prefira ser tratado como um idiota e um garotinho.

Voltou-se e aproximou-se da cama, sorrindo, decidido a adotar uma atitude amistosa e sorridente, e não se exaltar como todos os seus instintos mandavam que fizesse.

Pensando também que tanto fazia ser enforcado por uma ovelha como por um rebanho, sentou-se ao lado de Dabeeb, na cama, formando um casal, e os dois olharam para Al.Ith na almofada, no chão, com o bebê. Ela sorriu para eles, com o rosto erguido. Na verdade, os três estavam perturbados. Mas procuravam não demonstrar.

Talvez o sonho venha da Zona Cinco disse Dabeeb. Todos nós sabemos as coisas que aqueles selvagens fazem.

Nunca ouvi nada a respeito observou Ben Ata, pensando que jamais dera a si mesmo a oportunidade de ouvir muita coisa que não tratasse de guerra e pilhagem.

Tem de vir de algum lugar insistiu Al. Ith. Está nas mentes das mulheres desta Zona. Com tal intensidade que agora, aqui com vocês, estou tendo o mesmo sonho. Isso significa que está também em alguma parte da sua mente, Ben Ata.

Se você insiste, Al.Ith.

Riram, mas não descontraídos. Era um momento difícil para os três. Ben Ata lutava contra sua desconfiança da coisa toda, o sonho sendo apenas uma parte, pois simplesmente não lhe agradava esse negócio de estarem os três tão unidos e em harmonia pelo menos aparentemente.

E Dabeeb sentia-se culpada, mas dizendo a si mesma que não tinha procurado Ben Ata e que não competia a ela recusar nada ao seu rei, e que, uma vez que Al.Ith continuava a demonstrar amizade e estima, naturalmente não a julgava culpada.

E Al.Ith estava enciumada. Mas não no sentido comum da palavra. Sentia-se só. Vendo os dois, seu marido e a mulher, lado a lado, tão semelhantes em estrutura e força e com uma qualidade de sólida permanência, sentia-se uma estranha, excluída. Em algum lugar do seu íntimo uma criança chorava, uma parte de si mesma que até então não conhecia. Oh, não sou amada, sou rejeitada, eles se amam mais do que amam a mim.

Quando eu for embora, pensava Al.Ith, Dabeeb ficará com meu marido, e devo ficar satisfeita, pois não quero que fi­que sozinho, mas a verdade é que têm muito mais em comum um com o outro do que comigo... e a angústia a oprimia. Mas continuava sorrindo amistosamente.

Al.Ith disse Dabeb —, para nós o sonho significa que a criança deve parar de mamar.

É assim que vocês o interpretam?

Sim. Deixamos de amamentar os meninos, se já não o fizemos antes, quando o sonho chega. Significa que no íntimo, embora não saiba, vocês dois já se separaram. Ele começa a sentir-se como um homem.

Muito bem, farei isso.

Dabeeb levantou-se e foi aos aposentos de Al.Ith, discretamente deixando-os a sós. E Ben Ata, depois de alguns instan­tes, depois de fazer uma observação sobre a aparência saudá­vel do menino, pediu desculpas e saiu; não podia agüentar por mais tempo esse jogo de vaivém. Dabeeb, Al.Ith, então Al.Ith, Dabeeb interminavelmente. Além disso temia que Al.Ith quisesse dormir de novo com ele e, por algum motivo, Ben Ata não desejava de modo algum fazer isso.

Assim, desceu a colina e muito mais tarde, naquela noite, foi procurar Dabeeb. Estava num estado de ansiedade, pensan­do no sonho de Al.Ith, que era bastante desagradável, mas preocupado por Dabeeb ter dito que todas as mulheres tinham o mesmo sonho. Era como se todos os perigos que ele associava à Zona Três se resumissem em uma espécie de traição sorri­dente, que nunca poderia ser condenada ou recusada, pois de certo modo era tida pelos Provedores como melhor e mais alta era como se todos esses perigos se tivessem aproximado de Dabeeb, se instalado nela permanentemente e jamais pudessem ser afas ados. Parecia-lhe que a metade do seu reino, as mu­lheres, formava um perigoso pantanal de onde iam surgir monstros. E esse perigo tinha sido apresentado a ele recente­mente, de forma súbita; chegava a desejar sua atitude anterior, quando não se preocupava em pensar nas mulheres. Tinha uma vaga esperança de que, quando Al.Ith afinal partisse, sua men­te voltasse à antiga condição mas não acreditava que fosse possível.

Naquela noite, Dabeeb, ante a insistência de Ben Ata, falou sobre todos os tipos de sonhos que as mulheres tinham, crenças, idéias, só insinuando vagamente a natureza das suas reuniões secretas, e ele teve a impressão de entrar em um plano de conforto e segurança infinitos o corpo grande e com­petente de Dabeeb e que, enquanto estava lá, estivesse re­cebendo choque após choque de informações não-desejadas. Entre as duas, Dabeeb e Al.Ith, estava completamente arrasado! Quem poderia pensar que esta Dabeeb, a mulher de um soldado, tão sensata, atraente e comum, pudesse transformar-se em um ninho de problemas, como as sementes de relva que entra­vam sob sua camisa quando estava em exercícios e sobre as quais nada mais podia fazer a não ser sorrir? Pois onde pode­ria ele agora encontrar o conforto real e profundo, o esqueci­mento, que era como ele passara a definir as mulheres, se não podia encontrar uma que não lhe apresentasse problemas e pen­samentos e comparações que muitas vezes remontavam à histó­ria, a um passado muito remoto... "De onde vêm esses sonhos?", perguntavam as mulheres uma às outras, falando sobre essas coisas, mas jamais contando aos homens o que pensavam e o que imaginavam. Assim meditava Ben Ata, com Dabeeb, acordado, naquela noite e em outras noites em que entre ele e Al.Ith pareciam erguer-se barreiras invisíveis.

Nesse meio-tempo, Al.Ith desmamara o bebê e sentia-se inquieta e cheia de novas energias.

Não tinha muito com que se ocupar. No seu reino, traba­lhava tanto em coisas tão variadas! Não conseguia pensar em outra coisa que não fosse renovar o guarda-roupa, uma ocupa­ção que a melhor parte do seu espírito achava tediosa, e encomendou vários vestidos às costureiras da cidade — assim pelo menos estimulava a manufatura. Estava esguia novamente e cheia de disposição e precisava de novas roupas que combinas­sem com essa nova Al.Ith — como via a si mesma, e como as mulheres a viam, comentando entre risadas que estava na hora de ter outro filho.

Mas Al. Ith sentia que outro filho não era exigido dela. Oh, não, cumprira seu dever... contudo o tambor tocava, e tocava; será que estava determinado que tivesse outro filho de Ben Ata?

Ben Ata chegou tarde da noite, olhou para Al.Ith e sentiu-se atraído por ela novamente, como se fosse uma nova mu­lher. E Al.Ith naturalmente não se recusou e não o desen­corajou. Ao contrário. Descobria que estava faminta de amor. Isto também era algo que não conhecia; atribuiu às longas horas passadas cuidando apenas da própria aparência, estudando este ou aquele vestido, que acentuavam esta ou aquela linha dos seios, das pernas, dos braços, penteando os cabelos, sob a su­pervisão experiente de Dabeeb, que adorava ajudar sua senhora a ficar bonita outra vez. Quando se devota tanta energia à aparência, à disposição exata das partes do próprio corpo, e sempre com uma idéia, a de ser vista, de atrair — provavelmen­te isso é o bastante para provocar um desejo ardente. Causa e efeito. Uma energia despendida deste modo será respondida deste modo... assim Al. Ith diagnosticou seu estado, mas isso não a impediu de receber Ben Ata dentro dela — como se es­tivesse faminta por ele.

E Ben Ata, embora deliciando-se de prazer, perguntou:

Lembra-se de como fazíamos amor?

E como era? — disse ela, sabendo muito bem.

Não se lembra daquela vez... — pois agora parecia que tinha durado um longo tempo, uma eternidade, um paraíso perdido. Al. Ith não era como agora, mas leve e delicada tam­bém — protegendo Ben Ata do seu próprio mundo, que ele sabia ser o desconhecido, o difícil, o ameaçador —, ela soubera ser sutil e era como se dançasse de um prazer para o outro, até que sua separação insuportável turbilhonasse em chamas que consumiam os dois, de um modo que não acontecia agora. E como seria possível, se cada um tinha uma abordagem completamente diversa do ato do amor?

E como éramos, então? — perguntou ela, interessada. Mas sabia muito bem.

Ah, você era diferente.

E agora?

Agora... É como se eu fosse um arado e você a terra, onde eu abro sulcos profundos.

Ah, sim — murmurou ela, estremecendo. — Sim, é isso, e eu preciso. Você deve continuar. Preciso.

Oh, não estou me queixando — disse ele com bom hu­mor, como um marido complacente e apreciativo. — Não pense que estou me queixando.

Mas está sim !

É como se você quisesse que eu a apagasse completa­mente. Você fica deitada, gemendo, e eu... penetro profunda­mente.

Sim. Sim. Agora, Ben Ata. Fico tão tensa, tão... tenho a impressão de que vou me fazer em pedaços. Preciso que você... me complete. Que.. . faça, Ben Ata. Agora. Você deve. Eu preciso.

E ele obedeceu. Penetrou nela com violência, demoradamente, ritmadamente, enquanto Al.Ith gemia e morria sob o corpo dele.

Mas não era disso que ele se lembrava, olhando para o passado, para uma experiência tão superior a tudo o que tivera com qualquer outra mulher que às vezes duvidava que tivesse acontecido.

Mas acontecera. Era assim que tinham estado juntos. Uma reação mútua maravilhosa, contato por contato, olhar por olhar, um desafio que usava acordes e respostas que tinham agora es­quecido completamente.

Essa mulher desesperada e carente podia ser a mesma Al.Ith risonha que lhe ensinara delícias jamais experimentadas ou imaginadas?

Por que não podemos ser outra vez como antes? — perguntou ele, e repetiu a pergunta.

Mas, isso foi quando eu era de lá, Ben Ata.

Mas você ainda é de lá! De onde mais poderia ser?

Oh, não, Ben Ata. Não sou. Garanto a você que não sou.

E agarrou-se a ele como se estivesse se afogando e só pudesse ser salva pelo corpo do marido.

Ela sentia que se ele não fizesse isso, se não a extinguisse, não a amasse com violência, não a lançasse no mais profundo abismo, retirando dela toda a tensão, toda a eletricidade, ficaria louca, explodiria. Por quê? Não tinha a menor idéia. Esta era a Zona Quatro! E assim eram as coisas.

Contudo, seus ouvidos estavam sempre atentos ao tambor, imaginando que ia parar de bater para que ela pudesse cavalgar de volta ao seu país e ao seu próprio eu.

Algum dia ele ia parar e ela estaria livre.

Imaginava até que depois de se refazer, no ar rarefeito e frio da sua verdadeira personalidade, talvez se encontrasse com Ben Ata e então pudessem "fazer aquilo" novamente, aquilo de que ele se lembrava com tanta admiração.

Entretanto, mesmo pensando assim, parecia-lhe impossível que viesse a ser verdade.

E então aconteceu o seguinte.

Ben Ata deixou seu exército certa manhã e subiu a colina. Não encontrou Al.Ith no pavilhão e foi procurá-la no jardim. Ela estava com o filho numa plataforma redonda elevada, na outra extremidade do extenso lago. Entre ele e ela subiam os jatos de água e a batida do tambor enchia o ar. Atrás de Al.Ith ficava o pequeno lago com muitas fontes. Das árvores evolava-se um suave perfume. O sol brilhava e a água e o verde dos jardins i            cintilavam. A luz vinha de todos os lados. A batida do tambor

parecia ecoar sonoramente. E ali, no meio do ar dourado de sol e de som, estava Al. Ith com o filho, este deitado em uma man­ta branca com desenhos azuis. Al.Ith parecia feita de luz e resplandecia. O vestido amarelo deixava ver os braços morenos e finos, e as pernas. Estava inclinada sobre a criança numa concentração intensa, que os fechava para o mundo e para Ben Ata. Aproximou-se com seu passo pesado de soldado, amorteci­do pelo ruído da água e pela batida do tambor. Chegou bem perto, sem que ela o visse. Al.Ith estava absorta, perdida na contemplação do filho. Arusi movimentava os braços e as per­nas, balbuciando docemente, sentindo a adoração da mãe — se essa era a palavra certa para aquilo! — disse o coração de Ben Ata com amargura. O bebê parecia fulgurar de contenta­mento e de amor. Al.Ith tocou nos pezinhos, segurou-os entre as mãos, acariciou as pernas. Olhou para o rosto da criança, inclinando-se mais para a frente, com uma atenção concentrada e séria que Ben Ata jamais vira na mulher. Jamais a vira assim! Então, enquanto ele ficava imóvel, quase contendo a respiração, decidido a compreender o que via — pois sentia que precisava compreender; o ciúme o sufocava — ela tirou a roupa da crian­ça, deixando-a nua. Era um menino pálido, em contraste com a pele morena da mãe, e parecia lento e pesado ao lado dela. Ben Ata foi obrigado a reconhecer algo que lhe desagradava: uma antipatia instintiva pela nudez do seu filho. Talvez não tanto uma antipatia, quanto uma curiosidade cuja origem des­conhecia. Curiosidade de quê? Era como se alguma coisa no seu íntimo dissesse não... o menino era bem conformado, uma criança saudável e normal. Os órgãos genitais eram iguais aos seus, não tinha dúvida. Mas eles o perturbavam, o embaraça­vam. Por que ela estava expondo a criança desse modo? Al. Ith examinava minuciosamente o filho, olhando bem de perto, com o mesmo olhar sério e concentrado.

Cada parte do corpo, cada dobra.. . e ela o tocava, aca­riciava, segurava os braços e as pernas entre as mãos, movimentando-os para a frente e para trás. Ben Ata teve uma sensação dolorosa, de solidão... iria ela segurar os órgãos genitais do menino? Olhou, assustado. Mas ela não o fez, em­bora durante a inspeção — como se estivesse procurando uma prova, pensou Ben Ata, surpreendido consigo mesmo — ela encostasse o rosto no corpo da criança, rindo, e Arusi, agarrando o cabelo da mãe, puxava-o com força, rindo também. Ben Ata estava assistindo a uma cena de amor, e disse a si mesmo que ela não o manuseava com tanto prazer, não mer­gulhava o rosto no seu corpo... imaginava os cílios de Al.Ith na própria pele, e uma cólera desesperada cresceu dentro dele. Mas ela havia feito amor assim com ele — uma vez. Oh, há muito tempo. Sim, mas não fazia mais. Agora, ela apenas se agarrava como pedindo para ser salva. Ela virou o menino de bruços e ele tentou ficar de joelhos, sem conseguir, e Al.Ith continuou o longo ritual de amor, inspeção, devoção. Ou seria paixão? Encostou o dedo levemente na parte de trás dos joe­lhos, como se procurasse sentir a pulsação ou alguma men­sagem. Segurou as pequenas nádegas com as duas mãos. Beijou a nuca do filho. Acariciou os ombros com o lado das mãos. E parecia estar envolvendo a criança inteiramente, possuindo-a, assim inclinada sobre o filho, uma mulher esguia e morena com vestido cor de sol, o cabelo iridescente de luz. O menino pálido e comprido não parecia filho dela, mas de uma impos­tora — e, para Ben Ata, havia algo errado e até perverso no modo pelo qual ela o possuía e o tomava para si... e ainda não tinha percebido a presença dele. Ben Ata estava agora ao lado de Al. Ith e sua sombra estendia-se quase até a borda da pequena plataforma redonda, na qual, parecia-lhe agora, ele e Al.Ith tinham feito amor centenas de vezes. Era o pe­destal, o cenário do seu amor, o amor dos dois...

Subitamente, Arusi conseguiu dobrar os joelhos sob o corpo — como nas outras tentativas, as perninhas ficaram firmes e ele ficou de quatro, como um cãozinho, pensou Ben Ata. Ele estava sufocado, inundado de emoções. Era tão vul­nerável aquele bebê! Ora, podia matá-lo simplesmente pegando-o pelas pernas e deixando-o cair sobre o mármore branco. Quando pensava nisso, Arusi agarrou-se aos cabelos de Al.Ith e levantou-se — o menino estava de pé. Os olhos de Ben Ata ficaram vermelhos de raiva. Procurou controlar-se, acalmou-se e, quando sua visão clareou novamente, viu que Al.Ith o ob­servava, sorrindo.

O sorriso pareceu-lhe impudente. Não havia o menor si­nal de culpa nele! Contudo, ela o havia traído, centenas de vezes.

Al.Ith sorria, um sorriso caloroso e íntimo, sem dúvida para a criança, não para ele, Ben Ata! Ela estendeu a mão, encostou a palma no joelho dele, como fizera com a criança. Desavergonhada, pensou Ben Ata, sentindo o choque daquele contato subir pelo seu corpo como uma chama. Ela sorriu. Queria que ele sentasse com ela e com a criança, que compartilhasse aquele ritual de amor. Não havia um pingo de re­morso ou vergonha nela, ele percebeu atônito... Ignorando o filho, tomou-a nos braços e começou a levá-la para o pavilhão.

Ben Ata — gritou estridentemente —, o bebê, o bebê, não podemos deixá-lo sozinho.

Mas seu grito chamou a atenção de Dabeeb, que já saía do pavilhão para o jardim, percebendo que devia apanhar a criança e tomar conta dela. Seu rosto era todo sorrisos e insinuações maliciosas, como se, pensou Ben Ata, que evitava olhar para ela, por tuna necessidade instintiva de proteger a priva­cidade dos dois, sua e de Al.Ith, Dabeeb, em certa época de sua vida, tivesse aprendido todas as reações apropriadas para as diversas ocasiões. Quando o amo carrega a senhora para o leito nupcial, então a serva fiel deve adotar tuna certa expressão. No pavilhão, ele pôs Al.Ith de pé sobre o assoa­lho lajeado. Ela estava rindo, ele também. Toda a cólera de Ben Ata tinha desaparecido, desfeita pelo encantamento lumi­noso e quente do corpo de Al.Ith nos seus braços. Ficaram de pé, um de cada lado do grande leito, em guarda, observan­do-se como duelistas, com um antagonismo risonho e divertido. Iguais. Um equilíbrio... o ato do amor seria agora para eles diferente daquilo que Ben Ata começava a considerar como amor "conjugal". Uma leveza, uma naturalidade... uma graça.

E assim foi, exatamente como tinha sido "há tanto, tanto tempo" — de acordo com Ben Ata.

E acordaram juntos ao cair da noite, sentindo-se curados de uma terrível e estranha separação que os afligira, inesperada e imprevisível, que desaparecia agora, permitindo que respirassem em uníssono e em paz.

E em silêncio.

Ouviam a água cantando lá fora.

Que silêncio... parecia encher seus corpos, deslizar ao longo e ao redor dos seus membros, submergi-los dentro dele.

Um silêncio.

O tambor tinha parado de tocar. E subitamente, num só movimento, ambos sentaram-se, olhos nos olhos, e deixaram escapar um suspiro que era mais um gemido.

Oh, não, não, não — murmurou ele, apertando-a con­tra o peito. E ela colocou as duas mãos no cabelo de Ben Ata, encostando a cabeça dele no seu corpo, para guardá-lo, mas em parte para não ver o rosto dele... Al.Ith tremia toda, soluçando.

E, então, ele a abraçou acalentando-a. Acalentaram-se. Estavam de joelhos, um na frente do outro, consolando-se e abraçando-se, com uma dor terrível. Seguravam um o rosto do outro com as duas mãos, olhavam-se nos olhos, como pro­curando a explicação dessa cruel sentença.

Separarem-se agora... não, não era possível.

E foi nesse momento que Dabeeb entrou no pavilhão, segurando a criança, e depois de pigarrear gentilmente disse:

Tenho uma mensagem para os dois.

E Ben Ata e Al.Ith se afastaram, cada um para uma extremidade do leito, já separados, sabendo que a mensagem de Dabeeb seria alguma sentença final que não poderiam suportar... os seus corações disparados lhes diziam isso.

E o rosto de Dabeeb estava consternado. Ela estava ferida com o que acontecia aos dois. E, ao mesmo tempo, animada.

Quem lhe deu a mensagem, Dabeeb? — perguntou ele.

Um menino.

Não conhecia esse menino?

Nunca o vi antes, e já estava escuro. Não poderia tê-lo visto e ele desceu a colina imediatamente.

Um silêncio. Ouviam as próprias respirações, entrecor­tadas e temerosas.

E Dabeeb disse:

Em primeiro lugar, peço que me perdoem pelo que vou lhes dizer.

Está perdoada, Dabeeb.

Minha senhora, deve voltar à sua terra... mas já sabe disso, pois o tambor parou.

Sim, eu sei.

E o meu senhor Ben Ata deve... deve... o senhor deve casar-se com a senhora que governa o país do Leste. Deve casar-se com a Zona Cinco, meu senhor.

Al.Ith estava sentada na beira da cama com a cabeça entre os braços, procurando controlar a respiração.

Perguntou:

Essa é toda a mensagem?

Não. O menino deve ficar aqui. Conosco. Mas a se­nhora passará tempos com ele. Seis meses por ano.

Al.Ith deixou escapar um gemido de animal ferido e ati­rou-se de bruços na cama, batendo com os punhos cerrados aos lados da cabeça.

Ben Ata olhou fixamente para aquela portadora de más novas — como só podia ser interpretada sua mensagem nessa hora — e fez menção de dizer alguma coisa. Mas finalmente sacudiu a cabeça, desamparado, e Dabeeb saiu chorando.

E assim ficaram os dois.

 

Durante a noite toda conservaram-se abraçados, choran­do, tentando consolar-se mutuamente.

E de manhã aguçaram os ouvidos para a batida do tam­bor pois talvez recomeçasse com a luz do dia. Mas tudo era silêncio, apenas a água cantava.

Logo Dabeeb chegou com o bebê e entregou-o a Al.Ith, que se sentou com ele por um momento, contemplando-o, acariciando-o brevemente, com o toque das mãos e o olhar não indiferentes, mas distantes. Não beijou o filho e devolveu-o a Dabeeb, que naturalmente estava chorando muito.

Ben Ata, de costas para o quarto, contemplava os campos lá embaixo.

Adeus, Ben Ata disse Al.Ith com voz neutra e seca, quase fria e saiu para o jardim onde seu cavalo a esperava.

E, assim, Al.Ith afastou-se do seu filho, do seu lar ado­tivo e do seu marido, Ben Ata.

A Al.Ith que cavalgava seu querido Yori na direção da Zona Três era uma pessoa completamente diversa daquela que fizera o mesmo caminho na última vez que deixara Ben Ata. Mal podia lembrar-se de si mesma. Sabia que daquela vez sentira-se feliz por partir. Seria possível? Sim. Deixara esse lugar cheio de água como se tivesse sido libertada.

Voltara para sua terra como uma exilada. E agora, pen­sava apenas que seu corpo estava tão pesado com a dor que não conseguia absorver, que teria escorregado do cavalo para afogar-se dentro de um dos canais sem uma queixa. Ergueu os olhos para as montanhas prateadas de luar, onde cintilava a neve, e sentiu que nunca, nunca mais teria forças para esca­lá-las novamente. E para o que estava voltando? Lembrava-se vagamente que da última vez não fora amada, nem bem rece­bida; ao contrário, sentira-se como se não pertencesse àquele lugar, como se fosse invisível. Como podia voltar agora àquela vida, como se nada tivesse acontecido?

Contudo, dentro de seis meses percorreria essa estrada outra vez para encontrar seu marido casado com essa desco­nhecida rainha do Leste.

Mas isso era impossível. Nem ela nem Ben Ata pode­riam... como era possível que se casasse com aquela mulher, fosse lá quem fosse? Ora, os dois, Al.Ith e Ben Ata, estavam tão casados agora que formavam uma só pessoa.

Ainda assim, ele ia casar-se com outra, e o pequeno Arusi seria criado meio órfão. Não, como era possível? Como permitiam? Sem dúvida os Provedores tinham cometido um erro, um erro de julgamento... assim pensava Al.Ith, conduzindo o cavalo para a fronteira. Pelo menos tinha se lembrado do escudo. Não poderia entrar no próprio país sem ele. Ora, per­tencia de tal forma à Zona Quatro agora, que mal se lembrava da Al. Ith da Zona Três. Mas precisava. Devia tentar...

Pela noite longa e escura vai Al.Ith, vendo o reflexo dos canais que acabava de deixar e o brilho branco dos montes da Zona Três, à sua frente. O cavalo anda devagar e cautelosamente. E toda a noite as lágrimas correm pelo rosto dela.

Assim é reproduzida a cena. E assim foi.

Viajava há algum tempo em sua terra quando se deu conta de onde estava. Lembrava-se vagamente de efeitos sú­bitos e dolorosos no cruzamento da fronteira, mas o escudo pendia da sela, não-usado, mas por que a sela? Apeou, jogou para longe a sela e o escudo, falou com Yori, que erguia a cabeça cheirando o ar e relinchava de prazer por voltar à terra da qual se lembrava. Al.Ith não estava sentindo nenhum mau efeito. Na luz da madrugada, as montanhas pareciam mais próximas e não tão difíceis ou impossíveis como no dia an­terior.

Al.Ith ficou imóvel, vendo o céu iluminar-se, sentindo voltarem-lhe à mente pensamentos há tanto esquecidos. Saudava-os e os reconhecia: ora, você! Tinha me esquecido! Bem-vindo! Quanta coisa abandonara enquanto estava na terra de Ben Ata — contudo ainda desejava estar com ele.

Vagueou por algum tempo, entre os arbustos e samam­baias da borda da planície, acompanhada por Yori, e agora esperava conscientemente a volta do seu eu há muito esquecido, e o restabelecimento dele no seu espírito. Queria que a mulher angustiada e cheia de dor da Zona Quatro desaparecesse e fosse esquecida. Mas aparentemente estava acontecendo outra coisa. Logo estava pensando na sua estada na Zona Quatro com calma equanimidade, mas com distância; em espírito, podia percorrer toda aquela terra, como se ela se abrisse à sua frente. Sabia tudo sobre a Zona Quatro, compreendia isso e a Al.Ith que vivia lá estava ali também, visível, e podia observá-la sem repugnância e sem saudade.

Voltou a montar em Yori e cavalgou lentamente, espe­rando com paciência sua reintegração ao que fora e à sua terra. Estava distante. Como uma observadora. Alguém que viajasse por ela mas que não lhe pertencia.

Al.Ith começou a sentir medo. Mas não tinha importância, logo encontraria alguém e sua reação lhe diria... e encontrou. Um grupo de pessoas cavalgava em sua direção, vindo das montanhas, e saudou-a com um aceno de mão e um cumprimento. As pessoas continuaram. Não haviam dito o seu nome. Portanto, elas a viam. Mas não era Al.Ith para elas.

Atravessou o desfiladeiro, encontrou várias pessoas, mas nenhuma a chamou de Al.Ith, embora todos a cumprimentassem amavelmente.

Al.Ith percorria essa bela terra que era sua, reconhe­cendo cada curva do caminho, cada ângulo das montanhas, sentindo-se tão árida e leve quanto uma folha seca. Uma parte do seu espírito sabia o que estava acontecendo, e compreendia, e transmitia-lhe resignação que era como uma dor contida.

Não seria aceita de volta pelò seu outro eu, nem por sua terra. Estava isolada de tudo o que via. A identificação maravilhosa com o solo, as árvores, o ar, o ser parte do seu povo de modo a saber imediatamente o que havia com ele, pois era esse povo, tanto quanto ela mesma, tudo isso lhe fora roubado. E não fazia parte da Zona Quatro também, e jamais faria depois das visitas de seis meses, teria de voltar e iria visitar um filho ainda criança e um marido casado com aquela estranha que não conhecia não, pensando nisso tudo, em como seria, sentia-se distante de tudo o que já tinha sido mais leve, mais seca, mais ela mesma, de certo modo, do que jamais imaginara. Mas condenada a ser uma estranha onde quer que fosse.

Quando chegou ao palácio, levou o cavalo às cocheiras, e os rapazes e moças que cuidavam dos animais a princípio olharam fixamente para ela, cochicharam e tornaram a olhar. Al.Ith tinha mudado muito e não podiam aceitá-la. Ficaram felizes quando ela deixou o cavalo com eles e se afastou.

Subiu a grande escadaria do palácio, passou pelas salas onde todos pareciam tão confortáveis sem ela, e entrou no seu apartamento. Mas percebeu imediatamente que não era mais seu. A cama baixa na qual dormia tinha sido usada. Nos grandes guarda-roupas havia roupas estranhas.

Sentou-se ao lado da janela à espera da irmã, que, naturalmente, ocupava agora o seu lugar. E que não precisava dela.

Murti não pareceu surpresa ao vê-la pois todo esse caso determinado pelos Provedores... não deixava margem para surpresas, mas Al.Ith percebeu pela expressão de Murti. que sua presença significava um problema que teria de resolver.

As irmãs sentaram-se ao lado da janela contemplando o céu que escurecia com a chegada da noite, e tentaram se aproximar novamente. Mas nada havia em toda a sua experiência na Zona Quatro que Al.Ith pudesse comunicar a Murti.

E agora pertencia à Zona Quatro. Foi a conclusão a que chegou ao ver a reação da irmã à notícia de que passaria seis meses na outra terra com sua família... que não era a sua família! E o mesmo aconteceu com todos com quem falou nos dias seguintes. Sabiam que ela era Al.Ith. Era ou tinha sido a sua rainha Murti. estava no seu lugar agora. Tinha se afastado deles, por ordem dos dirigentes invisíveis de suas vidas, e partiria novamente. Era tuna estranha. E o modo como falavam com ela, como a olhavam, a fez compreender essa verdade. Ficou na frente de um espelho durante horas que­ria descobrir o que em seu rosto dizia a todos que não era mais uma cidadã desta terra, da sua terra. Mas aos seus olhos não parecia diferente. Não, não completamente... havia um brilho animal, seria isso? Não, não era a palavra certa; quando percorrera as terras do seu marido, a palavra que murmurava para si mesma tinha sido "grosseiros" um povo pesado, apagado, grosseiro. Sem os movimentos livres e calorosos do seu povo. Teria se transformado em terra? Uma camponesa? Virou o corpo, observando-o. Inclinou-se para o espelho, tentando ver o que os outros viam... seus olhos, o que diziam eles quando não estavam prevenidos, observando? Não, não parecia grosseira. Mas havia uma espécie de magreza, uma angularidade. Onde estava a resposta sorridente e rápida do seu povo? Que não era mais o seu povo. Não agora. Não mais. Murti., encontrando-a na frente do espelho, e compreendendo imediatamente o que a irmã fazia, colocou-se ao lado dela. As duas mulheres olharam-se no espelho.

O que é? murmurou Al.Ith para Murti., agora com os olhos rasos de lágrimas.

Oh, Al.Ith, você está muito longe de nós... muito longe.

E isso aparentemente era tudo o que podia dizer. Durante alguns minutos as duas choraram juntas, ao lado da janela, mas nada era como antes. Logo Murti. precisou deixá-la para atender aos seus deveres os antigos deveres de Al.Ith. E ela compreendeu que jamais seria chamada para sua antiga posição, nem para compartilhá-la com a irmã.

E seus "maridos"? Seus outros eus? Vagueando pelos seus aposentos, pelo seu palácio, pelos lugares por onde costumava passear, as ruas da sua cidade, ela encontrava-se com eles, era cumprimentada, contavam-lhe as novidades mas o que ela lhes podia contar?

Se lhes descrevesse o casamento com o rei guerreiro, não acreditariam.

Portanto, parecia que esses elos estavam também partidos. E os que a ligavam ao seus "filhos". Al.Ith começou a ima­ginar o que teriam significado esses elos, se agora outra pessoa ocupava o seu lugar e ninguém parecia sentir a sua falta. Eles a cumprimentavam, os seus filhos: Al.Ith, Al.Ith, onde esteve esse tempo todo? — Rodeavam-na. Mas ela ficava em silêncio, incapaz de responder, pensando naquele elo doloroso e estranho que a ligava a Ben Ata e ao filho, que cresceria para ser provavelmente general dos exércitos da Zona

Quatro, e os sorrisos dos filhos logo se apagavam, perdiam o interesse por ela, tão silenciosa e tão distante, e corriam para as outras mulheres, suas outras mães e para a encantadora e amável Murti.

"Não pertenço a esta terra. Não pertenço a lugar nenhum, a que lugar pertenço?", Al.Ith murmurava para si mesma vagueando entre suas memórias.

Repetia as palavras de Murti., "Está muito longe de nós agora...", e certo dia subiu aos telhados, de lá até a torre, pela escada em espiral, e contemplou as montanhas, as neves, e então as etéreas distâncias azuis da Zona Dois.

E agora subia à torre todos os dias, enchendo os olhos com aquele azul.

Logo foi apanhar Yori nas cocheiras, disse a Murti. que estava inquieta e queria viajar sozinha por algum tempo e di­rigiu-se para noroeste. Percorrendo estradas e veredas que naturalmente tinha percorrido muitas vezes. Passando por pessoas cujos rostos reconhecia, embora não a reconhecessem apa­rentemente. Passando por vilas e fazendas e cidades que com­parava com a triste pobreza do país do seu marido, e desejando que ele as pudesse ver. Quánta fartura! Quanta segurança! Quantos rostos saudáveis e tranqüilos... e Al. Ith via em sua mente os rostos pálidos e mal-alimentados dos pobres da Zona Quatro e... subitamente começou a achar as pessoas da sua Zona gordas e estúpidas.

Ficou chocada e voltou a si. Não, não desejava para esta terra as privações do país da guerra. Não desejava que esses rostos fossem menos rosados, calorosos e risonhos. Não queria ver telhados de sapé esburacados, fendas nas telhas ou estradas enlameadas ou esburacadas em lugar destas bem pavimentadas e conservadas. Não, nada disso... mas, enquanto ela própria desejava ardentemente e sentia falta não sabia de quê, imaginava como este povo, o seu povo, podia viver sem desejar nada além do que tinha.

Deixara para trás as regiões que conhecia, e o cavalo subia penosamente uma estrada estreita na direção de uma crista que antigamente era cortada por um desfiladeiro. O desfiladeiro que levava, ela sabia, à abertura nas montanhas azuis... ouvindo a respiração ofegante e lenta do seu Yori, lembrou-se de que ele estava velho, era um velho cavalo agora, e desmontou, caminhando ao lado dele, a mão apoiada no pescoço do animal. Yori olhou para Al.Ith perguntando por que ela estava tão inquieta, sempre em movimento, sem nunca descansar. Parecia perguntar se ela não o deixaria viver em paz, com seus amigos, no lugar que lhe era próprio... Al.Ith acariciou o pêlo macio, elogiou Yori, dizendo que ele era seu único amigo, e continuaram juntos, para cima e mais para cima...

O que costumava ver eram distâncias azuis, sempre azuis, expressando-se em cor, mas esperava que a proximidade dissolvesse o azul. Mas não era o que estava acontecendo. Havia um suave tom de azul em tudo — lá na frente, onde a estrada dava a volta em um maciço de rochas e onde um ar azulado parecia chamá-los. As colinas eram cor de púrpura e a ve­getação levemente azulada. Acima da volta da estrada, lá na frente o céu era azul, não por causa da distância, mas porque o ar era essencialmente azul. E entre as árvores dançavam névoas de cor violeta.

O ar era diferente de tudo o que conhecia. Ela e o pobre cavalo respiravam com dificuldade. E sua mente não estava clara como devia estar e como ela precisava que estivesse. Era como se uma falsidade azul reclamasse seu espírito. Que falsidade?

Olhou em volta cautelosamente, procurando manter a consciência de como as coisas deviam ser, e pensou que todo aquele azul era somente a parte interna de algo diferente, assim como as chamas amarelas têm uma base azul. O azul era o que ela podia ver — o que era capaz de ver. Provavelmente, para outros olhos, os olhos de alguém muito melhor do que Al.Ith, esse mundo pelo qual caminhava se revelasse como uma imensa fogueira. Uma iridescência de chamas sobre esse azul desbotado... Yori parou, abaixou a cabeça e estreme­ceu. Al.Ith mandou que ele voltasse para um lugar onde se sentisse melhor e para esperá-la. Não ia demorar... viu-o partir, andando lentamente e com dificuldade, agradecido por essa libertação, mas incapaz de demonstrar alegria com um galope, e, quando ele desapareceu de vista, ela voltou-se e entrou na Zona Dois. Embora, na verdade, não soubesse onde ela começava. Lembrou-se de que, para viajar entre as Zonas Três e Quatro, precisava de escudos e ajustamentos e que aqui ela estava se aventurando sem nenhuma proteção. Pensou que ninguém a mandara ir a esse lugar... contudo, parecia a coisa certa e natural. Por que as pessoas não vêm aqui ocasionalmente, nem fazem deste lugar parte de suas vidas? Por que a Zona Três jamais pensa nesses vizinhos dos quais nem mesmo uma fronteira a separa...

Estava realmente sentindo-se muito... doente? Não. Mas não era ela mesma.

Cambaleava naquele espesso ar azul que seus pulmões tinham dificuldade para aceitar. Era como leite tingido de azul ou como... de qualquer modo, mais líquido do que ar... o ar não estava muito longe do líquido... o ar tinha peso, momentos de leveza... rolava e fazia piruetas... vi­sível, sob a forma de nuvens o ar tinha milhares de estranhe­zas e movimentos... o ar era...

Al.Ith continuou obstinadamente.

Perdeu os sentidos. Voltou a si, muito tempo depois, em uma vasta planície onde o ar tinha o mesmo tom de azul mas era leve e cintilante. Nada era familiar. Não conhecia essa terra se era terra aquela substância líquida e cristalina que a mantinha sobre sua superfície, que se movia, deslizava e tinha resistência. Não conhecia aquelas árvores ou plantas, que mais pareciam chamas ou fogueiras. Não eram esses os seus céus, de um selvagem rosa flutuante. Contudo, a sensação mais forte era a de que conhecia esse lugar, era-lhe familiar estava em casa, embora não se lembrasse de nada do que via.

Compreendeu que as emoções turbilhonantes e violentas que sentia não tinham importância, eram apenas reações de um organismo tenso ou provocadas por estímulos estranhos. Sabia que os pensamentos que passavam por sua mente como filetes ou pedaços de nuvem? —, que surgiam e desapareciam sem cessar, não deviam ser levados em conta por serem criaturas desse lugar estranho. Contudo, ela, Al.Ith, conhecia esse lugar. E esperava — quem ou o quê? — que viria para ela. Para explicar? Para avisar? Para aconselhar?

Al.Ith ficou onde estava. Nesse sonho que sonhava, ou nessa idéia que lhe viera à mente, não importava ficar imóvel ou tentar vencer barreiras e limites que não podia ver, procurando desmanchá-los... já tinha ultrapassado os limites en­trando ali.

Alguém viria.

Tinha a impressão de que à sua volta, acima dela, havia pessoas — não, seres, alguma coisa, ou alguém, invisível, mas presente. Estava no meio de uma população que podia vê-la, observá-la, mas a qual não era capaz de ver. Mas estava ali. Quase os via. Quase, no tênue azul desse ar rarefeito, tinha a impressão de ver chamas transformarem-se em seres — chamas grandes e pequenas, frágeis e sólidas, selvagens e pacíficas. Em certos momentos podia vê-las — quase. E então não as via, e tudo estava vazio.

Vozes. Estaria ouvindo vozes? Havia um som murmurado, vozes, sob os silêncios desse reino, mas, quando aguçava o ouvido, pareciam estalar com violência, deixando-a surda por algum tempo. E seus olhos, tentando ver, escureciam. Al. Ith dormiu ali mesmo, exausta da tentativa de conseguir algo para o que não estava preparada, e, quando acordou, a paisagem era a mesma, vazia, povoada pela multidão invisível que pare­cia comprimir-se, murmurando ao seu redor. Mas agora sabia mais do que antes de dormir.

No seu sono aprendera o que precisava saber.

"Al.Ith, Al.Ith, não é assim, não é desse modo, volte, Al.Ith, não pode vir para nós assim... volte, volte lá para baixo, vá..."

Al.Ith levantou-se e cambaleou para longe do ar crista­lino da planície com o céu rosado e turbilhonante, para a névoa azul que circundava — ou guardava — esse lugar, e desceu a estrada do desfiladeiro.

Sabia que precisava voltar. Mas de modo diferente. Pre­parada. Mas como?

Enquanto descia a encosta, de volta, sua mente ficou mais claras lembrou -se do amigo Yori. Por alguma razão esse pensamento não a consolou. Pelo contrário, sentiu-se extrema­mente aflita... via-o agonizante, morto; ele esperara ansiosa­mente por ela para levá-la daquele lugar e quando na última volta do caminho chegou aonde brilhava a lua comum do seu reino, viu Yori deitado na relva ao lado da estrada. Correu para ele e chegou a tempo de vê-lo erguer a cabeça com dificuldade, fitá-la com o olhar amigo adeus, Al.Ith —, e morrer.

Al.Ith sentou-se ao lado de Yori na relva morna e limpa do desfiladeiro sentindo no rosto uma brisa súbita e farfalhante e ergueu os olhos sabendo que veria uma águia nos céus mas o grande pássaro estava pousando em uma árvore perto dela. Olhou à sua volta e viu águias e aves de rapina pousadas nas rochas e nas árvores, até mesmo no chão.

Esperou que o corpo do amigo esfriasse completamente, para ter certeza de que seu espírito já partira, e então ficou de pé e chamou os pássaros:

Venham, podem pegá-lo, devolvam-no à nossa terra e continuou a descer o desfiladeiro, sem olhar para trás.

Quando chegou à região de ar leve e claro do seu país, Al. Ith encontrou um pequeno regato e sentou-se à sua margem. Pensava há quanto tempo ela e seu cavalo haviam parado à beira de um regato, sozinhos, esperando, e seu coração apertou- se. Seu coração parecia uma grande dor, pois não podia esque­cer-se de Ben Ata, que provavelmente estava se casando com a nova mulher.

Ela não tinha ninguém.

Passou a noite ali sentada, contemplando as estrelas e seu brilho e pensando no céu da Zona Dois, ali tão perto, logo depois da curva da estrada, céus que não conheciam pelo menos ela assim pensava após o breve período em que lá esteve estrelas. Não essas estrelas. Não com essa forma. Mas, naturalmente, devia haver estrelas, uma vez que é delas que somos feitos, elas nos governam devia haver estrelas na Zona Dois, mas ela não as tinha visto... e estivera lá, lembrava-se agora, durante um longo tempo. Subira o desfiladeiro com Yori no começo da primavera, com plantas verdes e novas por todo o lado, e os pássaros construíam seus ninhos, e agora era quase inverno, a relva estava seca e quebradiça e a água do regato espessava-se com o frio.

- Para aquela Zona ela levara a consciência da Zona Três e naturalmente da Zona Quatro, da qual era cidadã agora, mas tentara avaliar aquela região sem possuir o que era necessário para uma avaliação. Quem poderia dizer o que teria visto se estivesse melhor preparada, seus sentidos mais afinados com a Zona Dois? Como apareceriam aqueles céus cor-de-rosa e violentos a outra pessoa, a um habitante daquele reino? Talvez não uma massa turbilhonante de cor magenta perolada e de fogo. Talvez tivesse visto apenas estrelas, com olhos não-preparados para vê-las! As estrelas da Zona Dois — bem, algum dia ela seria capaz de vê-las, como via essas agora, nessa noite —, as estrelas amigas e conhecidas de sua vida, frias, geladas, enormes, as estrelas de inverno da Zona Três.

E seus olhos veriam as chamas frias alimentadas pela base azul, tudo o que pudera divisar... e ela veria...

Al. Ith, sentada à margem do regato gelado, sob as estre­las brilhantes, abraçou os joelhos tentando se aquecer, cochilou, ou entrou em transe, e na frente das pálpebras fechadas dançavam formas e figuras que nunca tinha visto. Sonhando, acre­ditava que fossem os seres invisíveis da Zona Dois — e quantos, todos diferentes, belos e tão estranhos —, todos eles, ela conhe­cia, ou parecia conhecer, e era como se lhes estendesse a mão numa súplica: "Sou Al.Ith, levem-me, deixem-me entrar..."

Mas a barreira entre eles era absoluta, a barreira da substância espessa e tosca de Al.Ith.

Quantas formas ela viu naquela noite! Algumas pa­reciam-lhe tão familiares quanto Murti ou seus filhos. Outras pertenciam a velhas lendas, velhas histórias, velhas canções; os contadores de histórias as descreviam como se as tivessem visto e as conhecessem intimamente! E talvez as conhecessem, pensou Al.Ith, ali sentada, balançando o corpo para a frente e para trás, sob as estrelas, sentindo o frio penetrar-lhe os ossos. Quando os contadores de histórias dizem: e então apa­receu um anão corcunda ou uma jovem belíssima feita de vento — bem, a audiência pensa que é um modo de falar, mas, afinal, esses contadores de histórias, ou seus ancestrais, talvez tenham realmente visto homens e mulheres pequeninos e fortes que vivem no interior das montanhas, ou uma raça de seres diáfanos e puros, capazes de passar através de paredes e que vivem entre as chamas ou no vento... ou pelo menos esses seres fazem parte da consciência das Zonas mais baixas, na medida em que os pensamentos ou as palavras dos con­tadores de histórias podem dar-lhes vida — lá estavam agora, claros, vivos, movimentando-se na mente de Al.Ith, perfeitos e criados, mas tão distantes; contudo, podia vê-los, não tocá-los. E lá estavam os monstros estranhos dos contadores de histórias, e os animais conhecidos também. Quem sabe, quando voltasse à Zona Dois, adequadamente preparada, encontraria seu Yori, mas uma versão modificada dele... assim sonhou Al.Ith durante toda a noite, encolhida na relva gelada.

E neste ponto devo erguer minha voz, dizer alguma coisa — não por mim, pois não existe "eu", aqui, mas apenas "nós", iguais e companheiros. Al.Ith estava lá sonhando conosco, os cancioneiros, os contadores de histórias, imaginando se vemos o que contamos... e o que podemos dizer sobre isso?

Suponhamos que Al.Ith, naquele momento, tremendo de frio, com os braços ao redor dos joelhos, a cabeça repleta de seres chamejantes, não ela mesma, fosse na verdade — e não menos do que qualquer um de nós supostamente diferentes e dotados e especializados — uma contadora de histórias, uma compositora de baladas, uma Cronista, por si mesma, por sua própria conta. O que somos quando nos dizemos Cronistas, cancioneiros, rainha ou fazendeiro, amantes, encarregados das crianças, amigos dos animais? Somos os aspectos evidentes e visíveis de um todo compartilhado, formado por todos nós. Al.Ith fora a maior parte de sua vida uma rainha... a substância da Zona Três expressa naquela forma... rainha. Ou, em outras ocasiões, mãe, amiga, conhecedora dos animais. E, quando ela desceu à Zona Quatro, como poderemos saber a extensão em que por seu intermédio a Zona Três penetrou, forçadamente, naquele reino, como mulher de Ben Ata, rainha ao lado do marido, protetora de Yori, amiga de Dabeeb... sim, mas o que significam esses aspectos, essas apresentações? Apenas representações do que nós todos somos em tempos di­ferentes, de acordo com as circunstâncias e necessidades. Des­crevo com essas palavras despretensiosas as mais profundas lições da minha vida, a verdadeira substância de tudo o que aprendi. Não sou apenas um Cronista da Zona Três, ou par­cialmente, pois compartilho com Al.Ith a condição de di­rigente, na medida em que posso escrever sobre ela, descrevê-la. Com ela sou mulher (embora seja homem), quando descrevo sua feminilidade — e a de Dabeeb. Sou Ben Ata quando o trago à minha mente e procuro fazê-lo real. Eu sou. .. o que sou no momento em que...

Nós, Cronistas, temos razão para sentir medo ao nos apro­ximarmos dessas partes de nossas histórias (nossas naturezas) que tratam do mal, da depravação, das trevas da ignorância. Descrevendo-os, neles nos tornamos. Chegamos até mesmo — e já vi isto acontecer e me apavorei — a evocá-los. O mais inocente poeta pode escrever sobre horrores e forças que conhe­ce apenas superficialmente — e assim trazê-los para a sua vida. Eu lhes digo, já vi acontecer, observei... não, não devemos tratar dessas coisas frivolamente. Contudo, há um mis­tério que não entendo: sem esse estímulo da estranheza, até mesmo da maldade, sem as energias terríveis da parte mais profunda da saúde, sanidade, bom senso, nada funciona, nada pode funcionar. Digo-lhes que a bondade — o que nossa parte consciente chama de bondade, o comum, o decente — não é nada sem os poderes ocultos que emanam continuamente do lado sombrio do nosso eu. Seus aspectos ocultos controlados e temperados. Não descrevi aqui, por exemplo, as várias facetas do reino de Ben Ata, que fazem daquela região um lugar de ter­ror, não só para as Zonas da fronteira de leste, mas também pa­ra o povo e para as áreas da própria Zona Quatro. Não o fiz por sentir certa relutância. Estou certo de que todos sabemos os resultados da extrema pobreza e privação: mesquinharia, des­peito, crueldade e desgaste espiritual... exceto para aqueles poucos nos quais a pobreza floresce em generosidade e com­paixão. A pobreza do povo de Ben Ata produzia monstros — como tinha de ser.

Não conhecemos as formas escolhidas pelas forças das trevas na Zona Três. Letargia, talvez? A estagnação que nos afligiu até Al.Ith nos libertar dela? E quanto à Zona Dois — não, não podemos nem imaginar. Contudo, precisamos saber que nesses lugares elevados existem os lados escuros, e pro­vavelmente são sombrios e terríveis, pior do que tudo o que nós, com nossa experiência limitada das Zonas mais baixas, podemos imaginar. O mais alto tem de ser compensado pelo mais baixo... até mesmo alimentado por ele... mas esse não é um pensamento com o qual me reconcilio facilmente ou sobre o qual desejo escrever. É muito difícil para mim. Eu me considero apenas um relator, escrevo as coisas que acontecem... portanto, registrarei aqui somente que, quando Al.Ith sonhou com a Zona Dois, ela era a Zona Dois, embora de modo dis­tante e impreciso, e o fato de imaginar os seres imaculados nascidos do fogo a levou para perto deles, e, quando pensou em nós, os Cronistas, ela era nós... e assim, agora, nesta nota sobre os pensamentos de Al.Ith naquela noite, eu sim­plesmente dou por terminada a apresentação da minha causa: Al.Ith eu sou, e eu Al.Ith, e todos nós, em toda a parte somos aquilo que imaginamos. Nem mais, nem menos. Somos a base azul opaca das mais sutis e selvagens chamas. Al.Ith sonhou a noite toda com pessoas conhecidas e desconhecidas, criaturas reais e imaginárias, viu, sem ver, ocorrências e fe­nômenos que não faziam parte da sua vivência.

E de manhã, sozinha, toda ela uma grande dor pela perda de Yori e pelo marido — mas tinha de conter a dor, afastá-la, pois não era certo desejar dolorosamente um homem que, afinal de contas, não devia estar pensando nela —, levantou-se, movimentou os membros enrijecidos e pôs-se a caminhar, procurando uma aldeia ou outro lugar qualquer onde pudesse alimentar-se.

E enquanto andava ia murmurando: — Uma canção. Quero encontrar uma canção. Deve haver uma. Canções e lendas, sim, elas nos contam. Elas falam. Cantam. Nos en­sinam...

Oh, se pelo menos tivesse ainda o seu Yori para...

Conduzirei meu coração trovejante através das planícies, murmurava. Sim. Meu coração trovejante percorrerá... Sim. É isso. Meu coração...

Quando chegou a uma aldeia e perguntou se havia alguma estalagem, esperando ser convidada a entrar na casa onde parara, como Al.Ith, não foi reconhecida, mas tomada por uma mendiga algo chocante e impróprio, pois nosso país não compreende a extrema pobreza. Deram-lhe uma fatia de pão velho e sugeriram que, se procurava trabalho, havia uma vaga na fábrica para polir e colocar pedras. Ou nos armazéns onde as frutas e nozes eram preparadas para o inverno. Ou ainda, se quisesse pois a mulher agora olhava essa pedinte magra e malvestida, duvidando que fosse capaz de trabalhar no campo —, se tivesse forças, poderia trabalhar com o gado e os cavalos.

E foi assim que Al.Ith passou a trabalhar com os animais da aldeia, tomando conta deles, alimentando-os, exercitando-os nas veredas e nos campos.

Ela estava esperando sem entusiasmo ou prazer a ordem para voltar à Zona Quatro. Pois fazia seis meses que a deixara.

Sabia que, de um modo ou de outro, seria avisada, instruída, e nada mais tinha a fazer senão esperar, alerta e em guarda.

Agora voltaremos a seis meses atrás, ao momento em que Ben Ata se viu sozinho nos pavilhões do seu amor com Al. Ith, quando ela partiu sem olhar para trás com lágrimas quentes correndorlhe pelo rosto.

Ele não estava tão só quanto ela, pois tinha Dabeeb e seu filhinho.

Dabeeb levou a criança para ele e Ben Ata deitou-o no grande leito, brincou com o filho por algum tempo, consciente­mente tentando imitar, embora não fosse capaz dos mesmos sentimentos de prazer e não tivesse a experiência, o que vira Al.Ith fazer com o menino. Tudo o que sentia era pena, uma necessidade de proteger. Mas, felizmente, ali estava

Dabeeb, na verdade uma espécie de mãe. Arusi não seria privado, não realmente... pensava Ben Ata, segurando o pezinho com sua mão enorme, sentindo o esforço que a criança fazia para se livrar, numa tentativa de auto-afirmação. In­clinou-se para olhar o rosto do menino, os olhos que Al.Ith dissera serem "olhos da Zona Três". Sim, eram os olhos de Al.Ith que o fitavam no rostinho do bebê, mas não possuíam a alma de Al.Ith... e Ben Ata sentiu-se invadido por uma saudade fria. Desolado, sentindo a perda em todo o seu corpo, em cada célula, compreendeu que metade dele se fora com Al.Ith. E o que devia fazer agora era algo que não desejava e de que não se sentia bastante capaz.

O que significava casar-secom a mulher que governava a Zona Cinco aquele lugar bárbaro e atrasado? O que de­veria fazer? Como poderia localizá-la? Ou ela simplesmente apareceria na Zona Quatro? Ou será que precisava enviar sol­dados novamente para escoltar uma mulher contrariada e fu­riosa para compartilhar a sua vida? Da sua cama, pelo menos. Como se a luta para se adaptar à grande rainha da Zona Três não fosse suficiente! Uma luta que quase o destruíra! E quando ele e Al.Ith pareciam ter alcançado um platô ou um plano de equilíbrio, que não era nem a sua selvageria com ela, pois agora reconhecia sua atitude como tal, nem o desejo ávido dela por ele pois não podia aceitar o fato de ser usado (como pensava), como algo decente, ordenado e próprio —, nem bem se estabelecera um equilíbrio entre os dois, todo baseado no ato do amor que era uma maravilha de leveza, alegria, espírito e chama, e ela partira. Desaparecera.

Parecia-lhe agora que tudo o que desejava, o que sempre desejara, era sentar-se com Al.Ith, segurar o rosto dela com as mãos e olhar naqueles olhos que continham tudo o que desejava aprender... olhos que lhe haviam ensinado tudo, não esses olhos de criança que o fitavam felizes e tão vazios.

Dabeeb, como sempre por perto para atender ao menor desejo do seu amo, apanhou o bebê e levou-o dali. Seu olhar para Ben Ata foi sério e amigo e dizia que podia confiar nela completamente.

Pois ela o amava. Ele sabia. De certo modo, ela era sua esposa.

Seria esposa de Jarnti também? Então, ele e seu grande general compartilhavam a mesma mulher? Tais pensamentos não teriam sido possíveis antes de conhecer Al.Ith. Não teria sentado durante horas com as mãos vazias, na beirada de um leito desarrumado que guardava o odor provocante da pele e da carne da sua perdida Al.Ith, imaginando o que era uma esposa, o que era um marido... o que isso significava? Qual era a diferença entre Ben Ata, o jovem soldado, bárbaro com desejos casuais — assim se via agora — agarrando uma pobre mulher, possuindo-a e não pensando mais nela, e ser casado, como fora com Al.Ith? E como era com a mulher de Jarnti, Dabeeb, que o amava e que protegia e cuidava do seu filho, exatamente como protegia e cuidava dos seus próprios — os de Jarnti. O que significava casar-se com a Zona Cinco? Havia um mistério nisso tudo, era demais, sua mente não compreendia. Onde estava Al.Ith, a quem poderia perguntar, e que, depois de rir e zombar dele, explicaria, se não em palavras, com seus olhos e sua carne?

Oh! Ben Ata estava deprimido, perdido e vazio; inclinou a grande e bela cabeça de soldado e mortificou-se e lamentou-se, e quando Dabeeb, depois de ter posto o menino para dormir, trouxe comida do acampamento, colocou-a na frente dele e ficou de pé ao seu lado, com as mãos cruzadas, ele teve ver­gonha de chorar na frente dela.

Mas o que vou fazer, Dabeeb? — perguntou, e ela respondeu:

Eles — isto é, os Provedores — deram instruções no caso de Al. Ith, e farão o mesmo agora. Espere e observe.

Ela passou a noite com o bebê, nos aposentos de Al.Ith, enquanto ele andava de um lado para o outro, lamentando sua perda, e assim se passaram vários dias. Em espírito, ele estava com sua mulher, imaginando como esta teria encontrado as coisas no seu reino — e pensando também nos seus "homens" e nos seus "maridos" que sem dúvida reclamavam sua posse novamente. E não procurou Dabeeb. Os três permaneceram quietos no pavilhão, à espera. Das instruções. Que não vinham.

Mas o ímpeto dos acontecimentos já iniciados levou-o à ação, pois recebeu uma mensagem de Jarnti dizendo que sua presença era necessária na guerra da fronteira da Zona Cinco.

Uma vez que aparentemente não servia para mais nada, resmungava Ben Ata, resolveu vestir toda a sua parafernália de guerra e partir para a fronteira.

Seu coração não estava na guerra para a qual se dirigia. No caminho, olhava os pobres vilarejos e cidadezinhas tristes, imaginando como poderia melhorar tudo isso.

Quando chegou ao acampamento que se estendia por toda a fronteira, passou em revista algumas tropas, como pensava ser o seu dever, e retirou-se para sua tenda. Era uma bela tenda, branca e brilhante, bordada a ouro; tinha dois apo­sentos, um deles o quarto de dormir; no outro estavam a mesa de trabalho, uma cadeira resistente, que o acompanhara em muitas campanhas, e um armário para seu equipamento. Não havia guardas na porta; Ben Ata orgulhava-se em dizer que não tinha necessidade deles.

Tarde da noite envergou a capa negra que todos conhe­ciam como a roupa do rei — ele costumava dizer brincando a Jarnti que, quando eles o saudavam, era à capa que estavam prestando homenagem, não a ele — e caminhou sozinho pelo acampamento. As tendas dos soldados pareciam estender-se infinitamente; cobriam uma longa elevação montanhosa de onde se avistavam as fronteiras da Zona inimiga. Sentinela após sentinela ficavam alerta perscrutando a escuridão, e quando re­conheciam o rei apresentavam armas e ficavam imóveis, obser­vando a sua passagem. O acampamento parecia não ter fim... quantos homens dormiam agora, prontos para a batalha, que provavelmente seria travada no dia seguinte, embora Ben Ata não se lembrasse muito bem dos motivos para a mesma.

Qual era o motivo dessa guerra? Oh, sim, naturalmente, o território disputado, que se estendia desde esta pequena elevação até a outra, na qual podia avistar uma espécie de mancha negra e cerrada como um enxame de moscas. Os soldados da Zona Cinco não dormiam confortavelmente em tendas, mas enrolados em capas — feitas de peles de animais. Não recebiam ração normal de soldados, preparada no rancho do próprio acampamento, carregavam sacolas com passas de frutas e carne-seca. Ben Ata chegava a invejar os líderes que não precisavam se preocupar com os vagões de suprimentos, a cozinha, a can­tina e todo aquele ritual de armar o acampamento e depois levantar acampamento, e as filas de soldados com os pratos de lata três vezes por dia... mas isso era tolice, o exército da Zona Cinco era de bárbaros, nem mesmo era um exército, e havia ali mulheres lutando ao lado dos homens, e às vezes eram piores do que eles...

E assim Ben Ata, enquanto andava entre as inúmeras tendas sob o suave luar, uma figura sombria... e sua mente estava sombria revendo o que sabia sobre a Zona Cinco, Ben Ata tentava imaginar como seria essa mulher com quem deveria casar-se.

A presença, o peso, a massa daqueles milhares de tendas começavam a deprimi-lo... sim, fizera isso muitas vezes antes, esse passeio no meio da noite entre seus soldados, mas não recentemente... pensava nos homens que dormiam ali. E em várias conversas que tivera com Al.Ith. E com Dabeeb também.

"Não há necessidade de enviar uma embaixada ao nosso país. Não se trata de vocês não terem as artes e artesanatos na Zona Quatro apenas não os praticam. Não os desen­volvem. Como poderiam, se todos os homens, dos 18 aos 60 anos, estão brincando de guerra?" Al.Ith, naturalmente.

"Mas, Ben Ata, não está vendo? Não há homens nas aldeias ou nas cidades. Apenas velhos e velhas, os doentes e as crianças. Os meninos são criados por mulheres. Então, quan­do têm 11 ou 12 anos vão para o exército das crianças e voltam-se contra as mães e irmãs. Naturalmente você vê isso, Ben Ata? Os garotos precisam voltar-se contra as mulheres, quando só conheceram mulheres até ali, para se tornarem ver­dadeiros homens há muito de feminino neles... ser criado por mulheres é criar uma nação de soldados. Homens sem ter­nura para com as mulheres, apenas desprezo e rudeza." Isso dito por Dabeeb.

"Mas, Ben Ata, naturalmente o seu país é rico. Tem tudo o que o nosso tem sem dúvida, tanta água quanto nós! Mas riqueza só é riqueza quando passa pelas mãos do novo."

"Bem, obviamente, Al.Ith."

"Não é óbvio de modo nenhum, Ben Ata. Porque não põem em prática. Suas mulheres não podem fazer tudo, en­quanto os homens brincam de guerra. Assim, a sua riqueza fica na terra e nas rochas e na mente do povo, que sabe muito bem como as coisas deviam ser. Por que não lhes per­gunta? Um homem que pode cortar uma tira de couro de uma pele mal-curada para fazer a correia do capacete é capaz de fazer uma sela — já que insistem em usá-las — que durará cem anos ou mais. Uma mulher que prepara a cerveja para as festas dos acampamentos possui a arte e o instinto para fabricar vinhos e licores finos. Sim, é verdade, Ben Ata — no seu reino tudo está em estado potencial."

"E, no seu, tudo é facilidade e conforto e um grande nada" — assim se desenvolvera essa discussão.

E se mandasse para casa — digamos — a metade desses homens? Por toda a sua pobre terra fluiria a força agora contida no exército. A força fluiria nas artes, nos artesanatos da Zona Quatro. Telhados seriam consertados, canais de irrigação abertos, os campos seriam arados adequadamente. As colheitas encheriam os celeiros e as mulheres fariam conservas e pi­cles... e não veria mais rostos emaciados e infelizes quando percorresse o seu país. Sim, amanhã discutiria com Jarnti sobre o que devia ser feito... não que esperasse a concor­dância do grande general, que estava no exército desde os seis anos de idade. Não, precisava apresentar o caso de alguma outra forma. Dar a entender que o desligamento de metade dos homens seria, no futuro, de alguma forma benéfico para o exército... assim pensava Ben Ata enquanto voltava para sua tenda, que brilhava à luz da lua sobre uma pequena elevação.

Entrou, lavou o rosto e as mãos e sentou-se envolto na capa, as pernas estendidas para a frente. Pensando. Pensava em Al. Ith. Parecia-lhe agora que ela lhe oferecera um tesouro de pensamentos e de experiência que poderia ter usado, do qual poderia ter se aproveitado — mas deixara passar a oportunidade. Quanto ela sabia! Quanto tinha lhe ensinado — e agora, o fim. Pois seu coração lhe dizia que, quando Al.Ith voltasse para a visita de seis meses, suas relações não seriam as mesmas. Não, naturalmente que não. Fora forçado a ca­sar-se com Al.Ith, detestando a coisa toda, e acabara se apai­xonando por ela e agora não compreendia a vida sem ela oh, não estava reclamando ou se queixando; não se re­clamava nem se queixava das ordens dos Provedores, que natu­ralmente sabiam o que era melhor —, mas, quando casasse com essa outra mulher, provavelmente tudo ia se repetir de um modo ou de outro. Portanto, não podia esperar nunca mais ver Al.Ith galopando colina acima, vinda da terra das montanhas para viver com ele o seu casamento no pavilhão. Tudo acabado.

Teria duas mulheres no pavilhão, duas esposas? Não con­seguia imaginar isso. Al.Ith não era Dabeeb, nascida para se adaptar a cada nova necessidade e a cada ocasião. E havia essa mulher selvagem, essa rainha... não recebera nenhuma indicação deles sobre esse casamento.

Lembrou-se do que Dabeeb dissera ao transmitir a men­sagem do garoto: Al.Ith deveria passar a metade do ano com o filho. Até esse momento acreditara que isso significava que Al.Ith voltaria à Zona Quatro. E sabia que Al.Ith pensara o mesmo. Contudo, talvez não fosse isso que queriam dizer? Ao pensamento de que seu filho poderia ser afastado dele para passar seis meses na Zona Três, sentiu-se tomado por um ciúme feroz e violento, uma negação que o possuiu inteiramente... mas ninguém dizia não a esses ucasses.

Veio-lhe à mente a idéia de que esse seria um meio de Arusi aprender os comportamentos e as graças da Zona Três para depois ensinar tudo o que pudesse para a Zona Qua­tro... Ben Ata estava sentado, numa concentração feroz e sombria, lutando com seus pensamentos novos e antigos, quan­do a abertura da tenda foi violentamente erguida, e dois sol­dados, que tinham saído em patrulha, jogaram para dentro uma jovem ofegante, que os arranhava com toda a violência de um gato selvagem, embora tivesse as mãos amarradas.

Os soldados exibiam largos sorrisos, como era de praxe. Ficaram de pé, os braços cruzados, do lado de dentro da tenda,

esperando que Ben Ata demonstrasse sua satisfação. Ele sorriu com esforço, agradeceu aos homens, completou com as piscadelas e olhares maliciosos necessários, e atirou para os dois algumas moedas que trazia no bolso para essas ocasiões.

A mulher estava caída no chão, incapaz de se levantar. Os soldados saíram. O primeiro pensamento de Ben Ata foi que ela devia estar sentindo desconforto, se não dor. Preparava-se para dar-lhe algumas peles para se deitar, e até mesmo desatar as mãos dela, quando compreendeu que estava atra­vessando uma crise moral. Tinha direito de violentar essa mulher. Mais do que isso, era seu dever. Quisesse ou não. Nunca antes lhe faltara vontade — ou melhor, nunca pensara a respeito. Agora estava pensando, lembrando-se desanimado de como as mulheres da Zona Cinco eram ásperas e empoei­radas. E pensou também em Al.Ith e em Dabeeb, e na mulher da noite em que seu filho nascera.

Na verdade, o desejo assomava em Ben Ata, lambendo os beiços — mas não excessivamente.

Percebeu que a mulher não estava lutando.

Olhou rapidamente para ela, e desviou os olhos. Era uma mulher esplêndida, alta, grande, com uma espessa cabeleira dourada presa de modo a deixar livre o rosto. Os olhos tinham a cor cinzenta brilhante e selvagem das mulheres da Zona, Cinco. As pernas e braços eram fortes e longos. Usava calças de couro e uma jaqueta justa, de pele.

Enquanto ele evitava olhar diretamente para ela, a mulher o observava calmamente e sem medo, e esperava.

A idéia de possuir à força essa criatura selvagem, que parecia um gavião caçador, o revoltava, estivesse sua honra de soldado em jogo ou não. Por outro lado, precisava fazer alguma coisa. Se soltasse as cordas que a prendiam, ela fugiria e Ben Ata seria ridicularizado por todo o exército. Olhou disfarçadamente, temendo demonstrar fraqueza, para ver se ela estava bem amarrada. As cordas não pareciam estar ferindo seus pulsos ou tornozelos.

E ele não tinha certeza do que devia fazer. Ficou ali sentado, envolto na capa preta, olhando fixamente pela aber­tura da tenda, que os soldados haviam esquecido de fechar, para a noite escura. Uma brisa perfumada e suave vinha de fora e brincava com o cabelo solto da mulher — Ben Ata viu, embora não estivesse olhando diretamente para ela.

Pensava outra vez em Al.Ith, que tirara o velho coração do seu corpo e não colocara nada em seu lugar. Como poderia viver, meio homem, não mais soldado, não um homem de paz, não um marido, pois fora privado da presença dela, nem mes­mo um pai, pois aparentemente havia a possibilidade de per­der o filho para a Zona Três durante seis meses, todos os anos... essas mensagens dos Provedores... não que fossem ambíguas, mas era preciso esperar que os acontecimentos as interpretassem.

Quem era ele? O que devia fazer?

Ocorreu-lhe que Al.Ith devia ter pensado e sofrido as­sim enquanto esperava que os seus soldados a fossem buscar e a levassem, à força, para ele. Ela sabia que sua vida, seu modo de pensar, seus hábitos, seus direitos, tudo estava para ser destroçado, destruído, reestruturado e remodelado por um bárbaro, e que ela nada podia fazer para evitar.

E nada Ben Ata podia fazer para evitar.

Al.Ith fora violentada — sim, podia agora usar essa palavra — selvagemente por ele, o bárbaro, e agora ia ter de fazer o mesmo com uma rainha suja e primitiva... com o canto do olho Ben Ata percebeu algo que lhe escapara. Virou a cabeça mais um pouco, ainda sem olhar de frente para a mulher, e notou que ela trazia, nos braços magníficos, brace­letes pesados, de ouro, ornamentos de ouro primitivos, mas belos, nas pernas, encastoados com pedras de todas as cores, nos dedos anéis, também de ouro, e um, especialmente, tão pesado e enfeitado que só poderia significar uma posição de prestígio, e ao redor do pescoço um selo, ou símbolo, numa corrente de ouro.

Pressentiu a verdade imediatamente e perguntou:

Você é a rainha da Zona Cinco?

Sim, naturalmente — respondeu ela.

Ben Ata riu. Não esperava, mas riu, pois era tudo tão claro, tão apropriado, um desafio magnífico assim o clas­sificou no seu íntimo —, esperado mesmo, como se não pu­desse ter sido de outra forma. E ele riu. Em pouco tempo ela estava rindo com ele, mostrando os dentes fortes e belos.

E assim, enquanto o acampamento acordava com o sol, a primeira coisa que os soldados ouviram na tenda do rei foi a risada de Ben Ata e a da mulher desconhecida que, segundo contavam, era uma guerreira apanhada no outro lado e levada à tenda do rei para seu divertimento.

Estão se divertindo, aqueles dois comentavam os soldados, com um misto de admiração e inveja, como é comum aos subordinados. E logo depois, quando souberam que era a rainha da Zona Cinco e que ela ia se casar com o seu rei, o desgosto de saber que não haveria uma batalha transformou-se em alegria e comemorações.

Nos dois lados da fronteira os exércitos da Zona Quatro e da Zona Cinco comemoraram e dançaram durante uma se­mana. Trocaram visitas, uniram-se em incursões e pilhagens contra a infeliz população local, por simples prazer e de um modo geral conheceram-se melhor. Pois, por incrível que pareça, os dois países estavam em guerra, esporadicamente, por gerações e gerações, mas nada sabiam um sobre o outro.

Enquanto isso, o que se passava na tenda do rei não era o que os soldados imaginavam.

Naturalmente foram retiradas as amarras que prendiam a rainha, levaram-lhe comida e bebida e ergueram para ela uma tenda quase tão magnífica quanto a de Ben Ata.

Sua atitude não era a de uma cativa recentemente atirada com tanta indignidade na tenda do rei como um saco de aves caçadas. Ben Ata, que afinal de contas era um soldado antes de tudo, percebeu, desde o princípio, que as coisas não eram exatamente o que pareciam e, antes de a rainha ter devorado a segunda galinha assada, ela confessou rindo às gargalha­das, mal podendo se manter na cadeira, que evidentemente não era sua forma preferida de sentar-se —, contou que deixara que a capturassem porque queria conhecer o rei e — foi a primeira a tocar no assunto — casar-se com ele.

Ben Ata ficou sabendo que os hábitos e métodos dos seus soldados e sentinelas, bem como das suas patrulhas de reconhecimento, eram tais que os guerreiros da rainha "sabiam o que iam fazer com dois dias de antecedência" — que a disciplina, ordem, as regras marciais dos seus exércitos eram motivo de zombaria dos seus oponentes, que, pelo menos na opinião deles, faziam o que queriam quando queriam.

Mas, se é esse o caso — perguntou ele polidamente —, por que essa guerra não tinha terminado há muito tempo?

Mas por que deveria terminar? — disse a rainha, ti­rando os últimos pedaços de carne da carcaça da galinha e lambendo os dedos de um modo que chocava e atormentava seu futuro marido.

Discutiram longa e amistosamente, os dois antigos anta­gonistas, e Ben Ata aprendeu muito, embora aparentemente ela não tivesse aprendido nada... o estilo ou o modo da sua união já estava determinado, e não mudaria por algum tempo.

Escarrapachada, à vontade, ela erguia os braços, espreguiçava-se, bocejava, balançava as pernas como se a cadeira fosse uma pedra no sopé da colina ou talvez um cavalo — enfim, parecia incapaz de restringir sua vivacidade selvagem a essa sóbria tenda militar. Ria continuamente, de bom humor, dele, do seu modo de falar, de pensar — mas tudo isso com­binava com ela.

Quanto a Ben Ata, quanto mais ela demonstrava — na opinião dele, exibia — essa confiança descuidada e sensual, mais ele se enrijecia, lembrando-se do dever e da autodis­ciplina.

E Ben Ata conseguiu observar a si mesmo com olhos que sabia serem os de Al.Ith — ou, pelo menos, sua dádiva para ele. Naturalmente, antes de conhecê-la, não seria capaz de ver o humor da situação.

Para começar, suspeitava que o melhor teria sido vio­lentá-la imediatamente, como mandava o protocolo; era o que ela esperava. Pois não podia deixar de sentir que essa exuberância toda e essa selvageria eram, em parte, devidas ao nervosismo e até mesmo à incerteza. Possivelmente — e isso não o surpreenderia — desprezo por esse homem. Que naturalmente ela não considerava pouco masculino, pois contara que muitas vezes o tinha observado à frente dos seus homens, escondida em uma das colinas ou em uma toca de animais, e que o achava atraente.

Agora, por certo, não era mais o caso de jogá-la na cama e acabar com isso, uma hipótese que, examinada por ele, foi imediatamente posta de lado. Ela porém era perturbadoramente atraente. Mas Ben Ata não sabia como se comportar, agora que a ordem natural das coisas estava perturbada. E seus instintos confusos, porque afinal de contas estava ainda casado com Al.Ith, o que automaticamente proibia qualquer ato de amor fortuito ou momentâneo com essa rainha.

Supunha que o certo seria conter-se até a hora do casa­mento — que, segundo ela, seria em breve, e ia haver uma noite de núpcias tradicional. Mas, antes disso, ele sabia que precisava provar alguma coisa. A rainha da Zona Cinco, tinha sido informado, recompensava os vencedores das competições entre seus soldados com uma noite na sua tenda, e Ben Ata naturalmente devia ter um desempenho pelo menos igual aos deles. E ele começava a perceber, pelos olhares longos, frios e insolentes, mas naturais — pois ela não tinha qualquer inibição — que avaliavam suas possibilidades, militares e outras, que ela duvidava dele. Era a atitude de Ben Ata: tão rígida, tão convencional, "tão Zona Quatro", como ela dizia.

Discutiram assuntos militares, cada um defendendo seus próprios métodos... que na verdade se defendiam implicitamente, pelo simples fato de nenhum dos dois ter conseguido arrebatar ao outro o menor pedaço de território, em todas aquelas gerações de luta.

Cada vez mais se tornava evidente que a Zona Quatro encarava a guerra com a Zona Cinco quase como uma obrigação, uma necessidade cuja origem ninguém mais lembrava, e que a atitude da Zona Cinco não era muito diferente.

A guerra — como eles a entendiam, naturalmente — era um modo de vida para a rainha e para seu povo. Era um modo de se porem à prova, preservando a honra e o auto-respeito, sua principal diversão.

Por que então ela queria terminar com a guerra?

Ela mostrou-se vaga a esse respeito, tão obviamente despreocupada que Ben Ata achou divertido, como se ela fosse uma criança esperta.

Ben Ata precisou de alguns dias para divisar um quadro satisfatório e no qual achava que podia confiar.

A Zona Quatro pensava que a Zona Cinco era uma re­gião de desertos e terras áridas, onde umas poucas tribos nô­mades mudavam constantemente seus acampamentos à procu­ra de alimento e água. Isso porque tudo o que viam do seu lado da fronteira eram rochas e areia e vegetação rasteira, e jamais tinham visto o resto do povo. Mas esses desertos are­nosos eram apenas parte da Zona. Na região leste havia ricos pastos, plantações, vilas e até mesmo grandes cidades — um reino enfraquecido pela riqueza e que não podia defender-se contra Vahshi e seus cavaleiros. Essa mulher não herdara a posição de líder da sua tribo, embora fosse filha de um chefe, mas tinha lutado por ela. Sob seu governo havia se consolidado uma federação de tribos que a chamavam de rainha. A guerra com a Zona Quatro tinha continuado, como sempre, mas ela logo percebera que não valia a pena desperdiçar recursos nessa atividade; pilhar as grandes plantações era, sem dúvida, muito mais sensato. E então, depois de dominar a região fértil e submetê-la ao seu governo, seus bandos de homens maltrapilhos, que podiam passar semanas tomando apenas o leite das éguas e pequenas porções de passas de frutas e carne-seca, passaram a aterrorizar as cidades. Ela reunira representantes de todas as regiões da Zona Cinco em uma grande assembléia e fizera-se coroar rainha perante todos.

Por que deveria preocupar-se com a Zona Quatro? Podia antever um reinado de fartura, cobrando tributo daqueles insetos que dominara, e capturando o que precisava ou o que desejava ter.

E o casamento com Ben Ata, como se encaixava nesses planos?

Os magníficos olhos cinzentos da rainha fecharam-se levemente, ela adotou um ar de confissão franca, sorriu convidativa e sedutoramente... mas Ben Ata percebeu que o ca­samento não tinha a menor importância para ela, exceto pelo fato de garantir a fronteira e dar-lhe completa liberdade.

Tarde da noite, quando ele a mandou — polidamente, é claro — voltar à sua tenda, enfrentou os olhares zombeteiros dela com um autocontrole que, ele tinha certeza, seria objeto de todo o tipo de zombarias e canções quando ela voltasse ao seu povo para os preparativos do casamento.

E então ele ficou acordado no escuro, os braços cruzados sob a cabeça, pensando. Naquela mulher selvagem, com quem prometia a si mesmo compartilhar todo o tipo de prazeres, mais satisfatórios porque ela não os esperava.

Em Al.Ith, cujos pensamentos pareciam fluir à sua vol­ta... e Ben Ata sentiu-se mais do que revoltado. Sabia que estava para sempre ligado, se não a ela, pelo menos ao seu reino, seus costumes — de modo que não podia mais agir sem pensar e refletir sobre sua própria condição. E não se quei­xava, embora alguma coisa no seu íntimo lhe dissesse que Al.Ith o havia enfeitiçado — e que devia estar exultante nesse momento, sabendo que a nova rainha estava rindo dele na sua tenda.

Não podia mais voltar a ser o que fora, o Ben Ata que jamais tivera dúvidas quanto ao que devia fazer; nem conse­guia reagir com uma parte mais elevada, ou melhor. Estava no meio, e terrivelmente indeciso.

Pensando em Al.Ith e nos seus encantamentos astuciosos e injustos, sua mente voltou-se para os Provedores, e pela primeira vez tentou penetrar o pensamento deles... sim, sa­bia que era tolice e, provavelmente, passível de punição. Mas não pôde evitar. Acreditava ver o esboço dos seus planos para a Zona Cinco, não para a Zona Três — que estava muito além da sua compreensão. E pensava que "se estivesse no lugar deles" certamente não permitiria que aqueles selvagens continuassem destruindo, saqueando e pilhando. Os enfeites de ouro de Vahshi, por exemplo, todos roubados das oficinas das ci­dades. As peles cinzentas que acentuavam a sua beleza não eram produto do trabalho do seu povo, mas tinham sido rou­badas dos mercados. Todas as mulheres das tribos cobriam-se agora de ouro e pedras preciosas e até os cavalos usavam cordões de ouro e os cães, coleiras do precioso metal. Cada grupo de tendas tinha um centro comercial, tendas onde se empilhavam sedas e algodão fino e vestidos, que as mulheres usavam apenas em dias de festa, e faziam festivais sempre depois de uma pilhagem. A vida deles não era difícil e austera agora, mas cheia de facilidades. Ben Ata disse à rainha que logo suas tribos estariam tão enfraquecidas e solapadas quanto os povos que desprezavam, mas os olhos dela tinham-se des­viado dos dele, com seu modo característico, e o sorriso pare­cera incerto apenas por um momento, e logo, lançando a ca­beça para trás, ela o desafiara dizendo: Mas como, enfraquecida? — você verá o quanto estamos enfraquecidos!

E, pouco antes da festa de núpcias, ele de fato viu.

As tendas negras cobriam o que parecia ser quilômetros e quilômetros do deserto, mas armadas em grupos separados — a separação e a solidão eram a base da natureza desse povo do deserto. Havia manadas de cavalos com milhares de animais. Travessas com ovelhas inteiras ou novilhos, dois ou três de cada vez. Era como se o vale fosse todo ele uma vasta oferta de alimento, e Ben Ata e seus soldados tiveram uma recepção que poderia tê-los destruído. Durante os dias em que a rainha se ocupava em preparar seu povo para o casamento — e naturalmente Ben Ata sabia que o quadro que lhes estava sendo apresentado não era igual ao que ele via —, estivera se preparando para o momento em que teria de derrotar os campeões da rainha. Ben Ata era um bom cavaleiro, mas há muito tempo não dava provas disso para si mesmo ou para qual­quer outra pessoa. Houve um tempo em que não podia ser ven­cido por nenhum homem dos seus exércitos — mas não re­centemente. Foram chamados os melhores cavaleiros e lutadores da Zona Quatro e Ben Ata colocou-se nas mãos deles, recobrando assim sua habilidade e força da juventude.

Ben Ata estava quase certo de poder derrotar os cam­peões da rainha — e assim aconteceu. Num campo aberto, ao lado do enxame de tendas negras, rodeado por mulheres e crianças e pelos cavaleiros conduzidos pela rainha, Ben Ata competiu e derrubou, um depois do outro, 12 dos homens mais bem-dispostos, ágeis e capazes que já encontrara.

A rainha não esperava isso e — como sempre incapaz de controlar sua expressão facial ou a expressão corporal — mostrou-se francamente desapontada enquanto o premiava pe­la vitória.

Ben Ata sabia que ela esperava sua derrota na corrida dos cavaleiros, na qual todos os homens da tribo partiam de um determinado ponto e corriam até serem ultrapassados ou até vencerem. A única condição dessa corrida era não forçar o cavalo até a morte ou causar dano permanente ao animal. O cavalo de Ben Ata era o melhor do seu reino — estava certo disso. Mas, enquanto esperava o sinal para o início da corrida (um uivo estridente das mulheres), examinava os concorrentes e ficou em dúvida. Alguns deles eram verdadeiros azougues, esguios e ágeis, e montavam antes mesmo de aprenderem a andar. Ben Ata compartilhava a expectativa da rainha de sua derrota, mas apegava-se a um único pensamento, que os Provedores, no seu entender, deviam querer que ele vencesse, e, se fosse o caso, ele ganharia. E venceu. Foi uma corrida longa e extenuante, por quilômetros e quilômetros de deserto, num fim de tarde quente e empoeirado, o sol à sua esquerda, e Ben Ata tinha a impressão de que não era con­duzido por sua vontade, mas por uma energia nervosa que lhe era injetada continuamente. Um após outro deixou para trás os cavaleiros do deserto, e voltou sozinho para o local da partida.

A rainha agora não ficou amuada, mas pensativa, e pa­recia pronta a se submeter. Tudo em sua natureza mandava que honrasse esse homem — agora seu marido, por direito de vitória —, enquanto o espírito prático reforçava seus ins­tintos.

Nem por um momento acreditara que ele pudesse vencer, e embora isso não evitasse o casamento, necessário para a execução dos planos que tinha para seu povo, teria feito a dádiva de si mesma como um ato de desprezo.


Conforme o costume, os dois foram acompanhados à tenda nupcial por um bando de mulheres ululantes, e cavaleiros, que galopavam ao redor da tenda e saltavam por cima dela, até a rainha dar um grito mandando que fossem embora parte do ritual, que informava ao povo que esse homem era exatamente o que ela esperava.

Na verdade, Ben Ata, insistindo nos seus direitos adqui­ridos na sua opinião, sua experiência com Al.Ith lhe con­feria certa superioridade —, indicara à noiva que, enquanto aqueles selvagens dela não se afastassem, ele não tinha intenção de fazer coisa alguma, e, sentado calmamente sobre uma pilha de tapetes, descrevia com todos os detalhes a corrida que aca­bara de vencer, quase levando-a à histeria.

Quando, afinal, ele se preparava para satisfazer a ex­pectativa da rainha, tudo aconteceu exatamente como ele pre­vira: ela era tão pouco sutil quanto ele tinha sido na primeira vez com Al.Ith. Para começar, ela o achou inexplicavelmente indireto, mas depois concluiu que não tinha o menor motivo para desprezar a Zona Quatro.

E assim eles se casaram, e as festividades, banquetes, corridas e torneios duraram um mês. Foram concebidas crianças aos montes e a rainha Vahshi anunciou que ela também estava grávida e que a criança seria um penhor da eterna aliança com a Zona Quatro. Isso, em parte, tinha como objetivo acalmar seu novo marido, e fazer com que ele voltasse para casa, pois ela não via a hora de reiniciar sua agradável atividade de extorquir das terras da Zona Cinco todas as suas riquezas.

Mas Ben Ata não parecia ter pressa de voltar.

Longe de agir como um rei só no nome, por um casamento com fins estratégicos, ele demonstrava a intenção de influenciar a política da Zona Cinco. Isso não fazia parte dos planos de Vahshi. Em sua opinião, ele pretendia tornar a vida do seu povo monótona e ordenada como a da Zona Quatro. Ben Ata não aprovava suas atividades guerreiras, recusava-se a apoiar seus planos de pilhagem perpétua e advertia-a constantemente de que, se não mudasse sua política, logo seria a rainha de um exército de degenerados que viviam só para comer...


E — sim — quando discutia esses pontos com sua nova rainha, Ben Ata tinha consciência da ironia de sua posição. Pois parte de sua mente estava ocupada com planos para que sua gente se interessasse por melhorar suas vidas. Três quartos do seu exército foram mandados para casa "em licença por tempo indefinido" — com instruções para elevar o nível de vida das suas vilas e cidades. Jarnti não recebeu bem essa determinação, pediu e suplicou — não podia compreender e estava convencido de que a feiticeira estranha das terras altas pusera um encantamento no seu rei. E naturalmente ele viu a verdade daquela "licença por tempo indeterminado". Não era possível manter um exército nessas condições... suspeitava que Ben Ata estivesse perdendo o interesse pelas glórias marciais da Zona Quatro. Suspeitava muitas outras coisas — mas sua mente, voltada para a guerra durante toda a vida, não era capaz de acompanhar o pensamento de Ben Ata. Viu-se obrigado a apelar para Dabeeb, e o que ela lhe contou confirmou seus temores.

Havia mais de uma ironia na mente de Ben Ata.

A Zona Quatro, uma vez restauradas a paz e a fartura, continuaria a ser bem policiada e a ordem seria mantida, quan­to a isso não havia dúvida. Nada de anarquia! Nenhum re­laxamento da disciplina, que Ben Ata respeitava do fundo do coração.

E tentava convencer Vahshi, não a abandonar comple­tamente todos os hábitos selvagens do deserto, mas apenas a não mais roubar e pilhar. Mas, se ela voltasse à vida tradi­cional do seu povo, isso significava — na opinião de Ben Ata — uma anarquia controlada. Cada tribo ou grupos de tribos alinhadas professavam entre si uma lealdade fanática e fan­tástica de vida e morte. Um homem, ao pedir proteção contra outro membro da tribo, tinha o direito de exigir a vida do seu inimigo e assumia o compromisso de retribuir o favor, quando fosse necessário. Existiam entre eles honra, confiança e generosidade absolutas — mas no relacionamento de tribo para tribo, de grupo para grupo, não havia limite para a traição, falsidade, mentira, desonra. Roubavam gado e ovelhas das outras tribos e também suas mulheres. Mas estas eram tratadas como as do seu próprio grupo e eram todas livres, orgulhosas, gozando de direitos e privilégios. Cortavam a garganta de um ladrão de ovelhas e matavam o homem que dormia na areia do deserto, envolto em sua manta esfarrapada, para roubar-lhe a água que trazia. E Ben Ata dizia à sua nova esposa que essa situação era melhor do que a atual, com exércitos ou guerreiros pilhando e assaltando indiscriminadamente a Zona Cinco, roubando tudo o que podiam encontrar.

Tudo era relativo, consolava-se Ben Ata, procurando conformar-se com o novo papel que estava desempenhando. E, para seu próprio espanto, defendia sem cessar o mesmo argu­mento: os hábitos saudáveis da vida do deserto estariam con­denados a desaparecer se as tribos não voltassem à vida árdua e frugal, ao trabalho pesado, ao desconforto.

Em certos momentos desejava ter Al.Ith ao seu lado para compartilhar o seu espanto — a ironia da situação? Como tinha chegado a isso? Estaria fazendo o que era certo, o que esperavam que fizesse? O que pensariam os Provedores — estariam satisfeitos com ele?

E, enquanto Vahshi tentava pôr ordem no seu reino, Ben Ata sentava-se sozinho entre as dunas, ou na sua tenda, pensando. Teria cometido algum erro? Tudo, porém parecia estar acontecendo de acordo com um plano invisível e po­deroso. Esperavam dele algo que não podia ver? Pois tinha a impressão de estar cego a potencialidades evidentes e óbvias. Assim ele meditava, ponderava, e, quando Vahshi o encontrava assim, sentava-se em silêncio, permitindo que sua mente re­cebesse os primeiros clarões de pensamento. Antes de conhecer Ben Ata, jamais imaginara que um homem podia ser tão res­peitado; mas ela o respeitava. Era algo além de sua com­preensão, tinha de reconhecer, mesmo em segredo.

Sua preocupação pela possível degeneração do seu povo, sim, ele estava certo, embora não tão certo nos seus motivos. Vahshi podia ver com os próprios olhos: havia um afrouxamento, uma lassidão que lhe desagradavam.

Pensava que quando ele voltasse para sua terra sentiria falta dos seus conselhos. Ben Ata era sólido. Lento. Mas não era estúpido. Havia um equilíbrio entre os dois, sim, era isso.

Bem, talvez ela pudesse visitá-lo — afinal de contas ia ter um filho dele. Não tinham dúvida de que seria uma menina; ela, porque a força selvagem da sua feminilidade só podia gerar a si mesma; ele, porque sentia a mesma adequação, o mesmo ajustamento de quando Al. Ith esperava o filho. Ben Ata dissera a Vahshi que a menina seria rainha da Zona Quatro e da Zona Cinco, dividindo o poder com seu filho — sobre o qual ele falava muito vagamente. Ser vago sobre qualquer coisa não era do estilo de Ben Ata, por isso ela desconfiava dele nesse particular. Se havia alguma falsidade, só podia ser relacionada com ataques e pilhagens, e ela deixava sua mente funcionar: via-se como mãe do soberano daquela Zona rica do Oeste, compartilhando o poder com o soberano da Zona da pilhagem. Além disso, suas tribos que habitavam as proximidades da fronteira a haviam informado de que as guarnições de Ben Ata estavam ainda estacionadas de um lado a outro, o que a fazia imaginar se ele podia ler os pensamentos dos outros, pois con­siderara a possibilidade de ataques de surpresa à Zona Quatro — esporádicos, naturalmente, com o objetivo principal de re­lembrar prazeres proibidos. Pretendia desculpar-se, alegando que os povos da fronteira estavam ali há tanto tempo que não se podia esperar que mudassem da noite para o dia.

Ben Ata deixou-a subitamente. Certa manhã ele acordou depois de ter sonhado com o pavilhão e com a batida do tambor. Apoiado no cotovelo ao lado dela, contemplou a paisagem pela porta aberta da tenda, onde as areias levantadas pelo vento eram tingidas de amarelo pela luz empoeirada do sol, ouvindo ainda o toque do tambor — e sentindo-o no corpo todo, uma pulsação de mágoa e de perda. Levantou-se de um salto, abraçou Vahshi, chamou seus soldados e partiu antes que ela compreendesse o que estava acontecendo.

E, depois que ele se foi, Vahshi ficou na sua tenda du­rante muitos dias, permitindo-se pensamentos que se asseme­lhavam aos de Ben Ata quando Al.Ith recebera ordens de deixá-lo. Nada havia nesse casamento que ela tivesse desejado ou esperado — não podia dizer que gostava, pois trouxera muitas coisas novas e desconfortáveis. Mas tudo nela estava mudado, sentia-se separada da vida do seu povo e investida de uma responsabilidade que jamais conhecera. De tudo o que fazia, suas decisões, era obrigada a dar satisfação — mas, a quem? Ben Ata falava daqueles a quem ele chamava de Pro­vedores. Quem eram? Como sabiam de sua existência? Incomodava-a a idéia de estar sendo vigiada, controlada, e até mesmo dirigida, como ele havia sugerido. Ben Ata tinha dito que a Zona Quatro não era tudo — havia a Zona Três, e uma de suas mulheres tinha vindo de lá. E além, outros reinos, dos quais ele conhecia apenas os nomes.

Seu povo dizia, e cantava, que a rainha estava sofrendo. Deixou que acreditassem nisso. Oh, não, não estava triste com a partida de Ben Ata. Estava alegre — ele representava um peso, uma opressão que não conseguia afastar para voltar a ser ela mesma. Desejava uma única coisa: ser novamente o que era antes da noite em que os soldados a jogaram na tenda onde o rei soldado, Ben Ata, sentava-se — pensativo. Vahshi não sabia que era possível pensar. Não queria pensar! Era perfeitamente feliz antes de Ben Ata ensinar-lhe esse hábito estranho e lento de meditar...

Ben Ata chegou ao pavilhão e encontrou o filho com as mulheres que cuidavam dele supervisionadas por Dabeeb. O menino já estava andando. O primeiro pensamento de Ben Ata foi que gostaria de pôr o filho na sela à sua frente e desfilar para seus exércitos — mas não havia mais exércitos.

Dabeeb parecia senhora da situação. Jarnti estava ocupado, mantendo o moral das tropas que restavam.

Ben Ata resolveu inspecionar seu reino para ver a vida e a força fluindo para ele com a volta dos homens.

Mas, antes disso, passou algum tempo com o filho no jardim, entre as fontes. Sentou-se com Arusi na plataforma de mármore branco e fez com que ele contemplasse as montanhas de Al.Ith, sua mãe, e falou-lhe sobre a Zona Três e que um dia ele a visitaria para aprender os hábitos da­quele povo.

Dabeeb os observava de uma das janelas do pavilhão, e logo toda a Zona Quatro soube que o rei estava ensinando o filho a olhar para cima. A punição para quem contemplasse a neve das montanhas ficou sem efeito e todos olhavam agora abertamente para o reino proibido, que não estava mais fora do seu alcance. As cerimônias das mulheres eram triunfantes e cheias de alegria e pela primeira vez os homens juntaram-se a elas. Esse novo espírito que fluía em sua Zona e nas vizinhanças dela alegrou Ben Ata e deu ao seu filho confiança e força. Mas Ben Ata esperava pelo som do tambor que ouvira em seus sonhos, mas ele continuava silencioso.

Ben Ata começou a falar em uma visita à Zona Três, com o filho, para ver Al. Ith. Mas isso não tinha sido ordenado como o faziam lembrar os silêncios de Dabeeb. A Zona Três estaria proibida para ele? Tudo, porém, indicava que Arusi devia visitá-la...

Viu que Dabeeb e outras mulheres faziam preparativos para uma viagem e, antes mesmo de perguntar, Ben Ata sabia aonde elas iam. Ele, o rei, que há algum tempo atrás as teria aprisionado, ou mandado colocar capacetes em suas cabeças, ouviu dizer que as mulheres iam visitar sua esposa, no seu reino, e que levariam Arusi.

E como sabiam que era o que deviam fazer?, perguntou a Dabeeb.

Ela respondeu que todas achavam todas as mulheres que tinham o direito de ir, pois elas haviam conservado viva a velha tradição, por tanto tempo.

Mas tinham recebido ordens? Haviam mandado um mensageiro?

Dabeeb empertigou-se, com um ar de quem está certa, e certa de um modo que não admite dúvidas ou desafios. Seus propósitos tendo sido desfeitos e redirigidos, Ben Ata não se opôs.

Arusi tinha dois anos quando partiu com as mulheres. A despedida das planícies úmidas que fora cenário de tanta eficiência militar foi um acontecimento, mas não oficial. O povo homens, mulheres e crianças gritava e cantava as canções adaptadas agora para uso geral, e demonstrava o orgulho que sentia dessas mulheres gratificadas que pareciam, simbolizar a nova Zona Quatro, onde tanta coisa estava sendo mudada.

Eram 20 mulheres, a maioria quase de meia-idade. Usa­vam vestidos copiados dos de Al.Ith, pois ela havia inspirado novas fazendas, cores sutis e corte e estilo nunca antes ima­ginados. Todas estavam com os cabelos soltos, num desafio orgulhoso e consciente, encarando os seus homens que não se sentiam completamente felizes de frente, e rindo, com a força da sua união. E todas montavam cavalos em pêlo. Não tinham a experiência de Al.Ith e o modo como manejavam os animais suscitou alguns comentários duvidosos, mas não se saíram mal. Tamanha era a sua confiança na recepção que teriam na Zona Três que, a princípio recusaram os escudos, e até mesmo os broches e prendedores de proteção, mas, quando começaram a subida na direção da fronteira, Dabeeb teve de colocar o escudo à sua frente, e as outras a imitaram.

Era um grupo belo e forte, com o menino na frente, com Dabeeb, e outras crianças, pois as mulheres achavam que "deviam ter oportunidade de aprender outros costumes".

Passaram para o ar cintilante e límpido da Zona Três, sem outro efeito que não fosse um estímulo de suas forças, e atravessaram a grande planície ao cair da noite, quando co­meçava a soprar o vento inclemente.

No desfiladeiro, a meio caminho para o planalto, pa­raram em uma grande estalagem e pediram hospitalidade em nome de Al.Ith. O povo do lugar se aglomerou para vê-las e os encarregados levaram os cavalos para as cocheiras.

Esperavam uma recepção especial por causa do nome de Al.Ith, mas logo perceberam que a cortesia com que esta­vam sendo tratadas não se devia a esse nome que, na ver­dade, não pareceu impressionar os seus hospedeiros e sim porque era costume desse reino a hospitalidade para com estranhos.

Pareçia-lhes, porém, uma cortesia sem calor, indiferente.

Sentaram-se a uma longa mesa na sala principal e foram servidas atenciosamente, observadas pelos outros freqüentadores da estalagem, mas não ostensivamente. As mulheres começaram a falar e rir ruidosamente, sacudindo os longos cabelos e de­monstrando a amizade que as unia, sentindo, ao mesmo tempo, abalada a sua confiança. O que tinham esperado? Natural­mente, as boas-vindas em seu lar. Como se fossem exiladas. Assim tinham sentido durante os longos meses de preparativos.

Mas consolavam-se dizendo para si mesmas: esperemos, quando nos encontrarmos com Al.Ith tudo será diferente — mas o que realmente as incomodava era a consciência de suas figuras rudes nesse ambiente. As melhores, as mais finas, as mais ousadas de sua terra sentiam-se deslocadas nesse lugar. Bem, podiam su­portar e compreender isso, pois, afinal, era o que faziam há gerações e gerações, sempre lhes tendo sido negado o que havia de melhor, bem como a expressão de sua potencialidade.

O ambiente que as cercava afligia-as, fazia com que compreendessem aquilo de que tinham sido privadas.

Naturalmente existiam estalagens e hotéis de todos os ti­pos em sua terra. E, à primeira vista, algumas não eram muito diferentes dessa. Mas, quando ficaram à vontade, observando e tocando, começaram a compreender.

Na sua terra todas as estalagens tinham um salão prin­cipal, uma lareira, bancos ou mesas... ah, mas que diferen­ça... mas, se tivessem entrado nessa sala, na Zona Quatro, não teriam notado imediatamente o quê? Detalhe. A varie­dade, a imaginação carinhosa estampada em cada peça.

A cornija da lareira era ornamentada com entalhes gra­ciosos e divertidos — o bastante para absorver a atenção por muito tempo. Não havia apenas bancos, mas cadeiras e ban­quetas, com almofadas cujos bordados, como os entalhes da lareira, valiam por uma noite de histórias e canções. Os pra­tos eram de louça, que pouco conheciam, e tinham uma beleza estranha. As surpresas pareciam infindáveis — e isso sem contar o alimento, que todas aquelas donas-de-casa experientes sabiam estar muito acima de qualquer coisa que seu rei já tinha provado.

A paz então era isso. Um reino em paz. Estavam impressionadas e encorajadas com as mudanças no seu próprio país — os tetos das casas reparados, afinal, construções novas de pedra e tijolo, campos arados, onde antes só cresciam junco e rãs ou pedras e ervas daninhas — isso, tinham dito, era a paz.

Foram acomodadas em quartos para dois ou três hóspe­des, grandes e confortáveis, mas não dormiram, excitadas com a novidade dos acolchoados, travesseiros e tapetes e até mes­mo as camas, cuja elegância e solidez jamais teriam imagi­nado existir. Iam de quarto em quarto, não menos excitadas do que as crianças que as acompanhavam, com exclamações de surpresa, tentando gravar na memória tudo o que viam, até o estalajadeiro lhes pedir gentilmente que deixassem os outros hóspedes dormir.

De manhã, depois de uma refeição a que não estavam acostumadas, nem sabiam que era necessária, foram para as cocheiras, esperando mais surpresas. E saíram, sérias, suspirando e murmurando entre si que muitas pessoas da Zona Quatro viviam pior do que os cavalos deste reino.

E mais calmas, seguiram seu caminho sob os picos ne­vados que, agora que estavam perto, pareciam zombar delas com sua distância — mas era uma distância diferente. Pas­saram em silêncio pelas pessoas na estrada, esperando ser cumprimentadas, toda a alegria da véspera perdida agora. Andavam lentamente, porque queriam ver tudo, e ao meio- dia pararam em uma pequena cidade na orla de um planalto rochoso onde o gado pastava, pois o solo não era usado para a agricultura. Os animais estavam bem protegidos, eram fortes e nenhum deles sacrificado pelo excesso de trabalho.

As casas da cidade eram de pedra, altas, algumas com 10 ou 12 andares. Mas não eram regulares ou uniformes, e espalhavam-se, com ângulos e extensões de telhados onde as pessoas se sentavam para descansar e para contemplar as mon­tanhas. Quadrados, retângulos e círculos nas superfícies dos prédios cintilavam refletindo o céu, as nuvens e os pássaros — como se fossem pequenos lagos suspensos... tinham fi­cado maravilhadas com os vidros na estalagem — não por sua existência, pois tinham vidro no seu reino, mas jamais poderiam imaginar que pudesse ser usado desse modo, em janelas, com desenhos artísticos ou para fazer com que uma cidade inteira desse a impressão de que o céu fora costurado nas paredes e que a água corria pelos telhados e das torres... ficaram pa­radas na pequena praça central arborizada, olhando para cima boquiabertas... eram campônias e sabiam disso. Procuraram outra estalagem. Era diferente da outra, tão diferente que não a teriam reconhecido como tal. Terraços cobertos circunda­vam a grande sala central que estava aberta, mas podia ser fechada com portas de vidro. As pessoas sentavam-se ao redor de mesas distribuídas pelos diferentes níveis dos terraços, co­mendo e bebendo, e crianças brincavam ao seu lado. Os picos cobertos de neve refletiam-se nos vidros, como se montanhas, neve e céu varrido pelo vento fossem parte de sua própria substância. Essa cena tão comum, de pessoas à vontade, re­pousadas, era uma punição para seus corações abatidos. Exa­minando detalhe por detalhe, nada havia de notável: um ho­mem ensinando um menino a se portar à mesa, uma mulher sorrindo para seu companheiro — seu marido? Se era marido, sem dúvida não pertencia à Zona Quatro! — mas, tomado como um todo, o espetáculo parecia envolto em uma luz clara e pálida que lhes falava do desejo que é a substância secreta de certos sonhos: a consciência de um exílio amargo.

Disseram a si mesmas que estavam contemplando... o prazer. Era o que viam. Bem-estar sem objetivo, pressão ou censura. Mas a palavra prazer devia ser eliminada. Dabeeb disse que Al.Ith tinha esse ar de tranqüilidade, pelo menos na primeira vez que foi à Zona Quatro; fora o que mais im­pressionara Dabeeb, a princípio: a imensidão da liberdade de ser de Al.Ith. Mas isso não era prazer, não era nem mesmo deleite; porém, o que Dabeeb levara para sua pequena casa, depois daquele primeiro encontro com Al.Ith, tinha sido uma convicção reverente, triunfante mesmo, de que a felicidade era possível. Mas a força de Al.Ith originava-se de alguma coisa — de algum lugar — diferente...

O que viam agora, a essência dessa cena, não era prazer ou felicidade, palavras que — não importa o quanto parecessem distantes na Zona Quatro — pareciam designar qualidades insignificantes, desprezíveis — mas algo que não podiam nem começar a compreender.

Sentiram-se amarga e poderosamente aniquiladas. O abis­mo entre isso e tudo o que a Zona Quatro poderiar esperar ser um dia representava centenas de anos. Era... tempo, mas tempo que superava uma medida mais alta e melhor. Oh, sim, a Zona Quatro podia construir edifícios altos como esses, até mesmo enfeitá-los com uma renda de vidro, se ensinassem ao povo como eram feitos. Podiam fazer com que os pratos de sua mesa falassem por meio de desenhos, que se assemelha­vam à linguagem. Podiam vestir seus empregados com roupas que tivessem esse padrão de linguagem simbólica, impressas. Mas para as reais diferenças teriam de aprender a se alimentar dessa nova dimensão que apenas começavam a entrever. Por exemplo: a atitude descontraída e comum das pessoas que serviam na estalagem, como iguais e companheiros — quanto tempo levaria para que a Zona Quatro aprendesse essa absoluta igualdade, indivíduo para indivíduo, quando divisões e classes e posição e respeito por tudo isso — servidão — estavam há tanto tempo gravados na sua substância mais pro­funda? Até mesmo esse aspecto parcial da Zona Três parecia impossivelmente distante, e o sorriso amável da moça que per­guntava o que queriam comer, para elas, emanava de um reino muito acima delas.

Deixaram a estalagem, ou melhor, foram expulsas dali por seus próprios sentimentos e afastaram-se da cidade de pedra brilhante que tinha água, céu e neve e luz e montanhas como parte da sua estrutura, voltando a cabeça constantemente e erguendo Arusi e as outras crianças para que pudessem ver tudo, sentissem e lembrassem — e para que fossem os primeiros indivíduos da Zona Quatro a possuir no seu íntimo os conhecimentos da Zona Três.

E ao cair da noite entraram em Andaroun e, depois de pedir informações, chegaram à pequena praça cheia de árvores e de jardins. E pararam junto da larga escadaria branca, perguntando por Al.Ith.

O nome de Al.Ith provocou olhares curiosos, mas não hostis.

Depois de uma longa espera, uma jovem aproximou-se lentamente.

Dabeeb reconheceu imediatamente a irmã de quem Al. Ith lhe falara, porque era Al.Ith, de cabelos louros e pele clara.

Dabeeb conteve o impulso — por causa desse lugar maravilhosamente belo, do ar leve e límpido, dos balcões e colunatas, das cores claras e delicadas — de ajoelhar-se, suplicante: minha senhora! Pois sabia que esse não era o costume da Zona Três.

Quando falou em Al.Ith, Murti fez um sinal de assenti­mento e disse apenas:

— Mas ela não está aqui.

As mulheres perceberam que era uma declaração final, significando que não receberiam o que esperavam.

Este é o filho dela — disse Dabeeb, mostrando o me­nino.

Murti segurou Arusi por algum tempo, e seu gesto dizia que era raro não ter uma criança nos braços, e disse:

Minha irmã não está aqui.

Não é a rainha, agora?

Acho que não compreende — foi a resposta. — Faço o trabalho para ela, agora, se é isso que está perguntando. Poderá encontrá-la lá... — e Murti apontou para noroeste.

Aparentemente era tudo o que pretendia dizer.

Mas, quando elas voltavam para partir, perguntou:

Por que estão aqui?

E então ficaram embaraçadas, e coraram, envergonhadas, porque era exatamente o que perguntavam a si mesmas. Murti perguntava como Ben Ata tinha feito, se tinham o direito de estar ali.

Deve perguntar à minha irmã o que devem fazer — disse Murti, devolvendo Arusi para Dabeeb, e subiu correndo os degraus até a porta do palácio.

Mais uma vez elas estavam em uma estalagem. Abatidas, cheias de maus pressentimentos, embora todos as tratassem com cortesia. Comeram e dormiram de graça, pois não tinham meios de pagar o que estavam recebendo. E pensavam que podiam vol­tar para casa e contar o que tinham visto, e que, mesmo que acreditassem, não teria nenhuma utilidade, pois só podiam explicar e repetir que, se a riqueza e a abundância da terra não fossem desviadas para a guerra, tudo, tudo começaria a crescer e florescer, com beleza e esplendor. Nas mãos e nas mentes viviam habilidades e inteligência que precisavam somente ser alimentadas e usadas... com paciência.

O lugar onde passaram a noite oferecia jardins e plantas aos hóspedes. Havia todos os tipos de jardins e, no meio deles, apartamentos. Ficaram em um desses conjuntos e a comida lhes foi levada ali mesmo. Nessa noite não examinaram as cobertas das camas, nem as maçanetas das portas, mas passearam nos jardins. Para elas, os jardins entre as fontes do pavilhão de

Ben Ata e Al.Ith eram belos e perfeitos, mas viam agora que não passavam de um símbolo, uma amostra do que podia ser feito.

E foi assim por muitos dias. Viajavam em silêncio, obser­vando tudo, tentando não se deixar vencer pelo desânimo ou pelo sentimento de inferioridade, e passaram as noites em diferentes tipos de estalagens, pois parecia-lhes não ter fim a varie­dade de prazer e de interesse que essa terra oferecia aos via­jantes.

Perguntavam por Al. Ith por onde passavam, e muitas ve­zes era como se nunca tivessem ouvido falar nela. Como se Al.Ith tivesse sido esquecida. Mas, de um modo geral, a res­posta era: "Dizem que está em algum lugar, lá em cima."

Assim, continuaram até avistar uma cadeia de montanhas com uma passagem onde rodopiava uma névoa azul.

Certa noite chegaram a uma pequena vila, dispostas a atravessá-la sem parar, mas, quando perguntaram por Al.Ith, dis­seram-lhes que ela estava nas cocheiras.

Al.Ith trazia alguns cavalos do campo. Ficou surpreendi­da ao ver as mulheres. Mas deu-lhes as boas-vindas. E pegou o filho nos braços com uma avidez e um pesar que contavam toda a sua história.

E elas tiveram a certeza de que não deviam estar ali.

Pois, a julgar pelos acontecimentos, bons ou maus, a res­posta era evidente: ali estavam, com Al.Ith, e não havia lugar para dormirem, pois a vila era pequena demais para ter uma estalagem.

Al. Ith foi falar com as pessoas que, em nome dos habitan­tes da vila, tomavam as decisões e perguntou se as mulheres podiam dormir nos pomares, uma vez que estavam ainda no verão. Ficou acertado que podiam e tinham permissão para tirar os frutos que quisessem.

E assim aconteceu que as 20 mulheres, as crianças e o filho de Al. Ith passaram aquela noite sobre a relva dos pomares, sob o céu acolhedor do fim de verão.

Pode-se dizer que, pela primeira vez, desde que tinham deixado a Zona Quatro, estavam em um ambiente familiar mas até isso é apenas parte da verdade. Pois nada havia naZona Quatro que se comparasse a esses antigos e ricos pomares, e até mesmo algumas frutas lhes eram desconhecidas.

Contaram da nova situação na Zona Quatro e falaram de Ben Ata, cautelosas quando se referiam à nova rainha, com a qual, afinal de contas, Ben Ata passara muito tempo. Descre­veram como a pior parte da pobreza estava sendo eliminada e como os celeiros e armazéns começavam a ficar repletos. Con­taram como o pequeno Arusi, adormecido agora no colo de Al.Ith, tinha sido criado, as doenças que tivera, os pequenos acidentes.

Mas só depois de muito tempo falaram de Al. Ith e perguntaram o que ela fazia naquele lugar, uma exilada da sua antiga vida. Isso porque elas já sabiam* e compreendiam.

Se elas desejavam ardentemente essa terra, a Zona Três, era natural que Al.Ith desejasse, de todo o coração, aquele lu­gar mais alto e mais belo cuja entrada podiam ver, erguendo os olhos.

Era estranho para essas mulheres estarem ali sentadas na relva baixa e perfumada, contemplando, como há tanto tempo tinham feito com Al.Ith, as maravilhosas montanhas da Zona Três. Não estavam ainda nem preparadas, nem tinham o direito de entrar nessa Zona — e ela já tivera tudo o que queria e es­tava pronta para deixá-la. Sabiam de tudo isso. Mas não conhe­ciam os pormenores da história.

Esta é uma cena especialmente querida dos nossos artistas que a adornam com uma vasta lua amarela colocada perto ou atrás da cabeça de Al.Ith. Ou uma lua crescente com uma ou duas estrelas. E geralmente acrescentam um grande pavão, cuja cauda cintilante enche o pomar de reflexos luminosos.

Mas, de um modo geral, é uma reprodução realista, e digo isso por ser a última das cenas verdadeiras. Pois, a partir desse ponto, há alguma coisa na história de Al.Ith que ultrapassa o gosto popular. Estamos falando sobre uma grande e amada rainha que — mas, não, ela não dá as costas ao seu reino. Ela não o repudia. Mais fácil, mais dramático se tivesse feito. Mas é como se já estivesse vivendo, pelo menos com uma parte do seu ser, em algum outro lugar. E essa é a dura verdade. Árida. Insultuosa até, pois é difícil acreditar que as ternuras e satisfações quotidianas não estejam sendo desprezadas completa­mente por essa pessoa que, vista de fora, por olhos não-experientes, não demonstra mudança ou crescimento interior — como o crescimento e a fermentação no interior da crisálida não são sequer suspeitados pelos ignorantes. Não, é necessário, é perdoável que nós, os cancioneiros e os Cronistas e os pin­tores, procuremos amenizar certos fatos.

Por exemplo — seu cavalo Yori. O fato é que Al. Ith não voltou à Zona Quatro. Nunca mais o tambor soou para ela. Durante longo tempo, ela esperou, esperou — ou era um misto de espera e de medo —, pensou em todo o tipo de possibilida­des, como a de estar cometendo um erro, permanecendo nessas altas fronteiras, que tinha abandonado suas responsabilidades. Mas estava, e procurava conforto nessa idéia, sempre pronta para partir. E ainda tinha saudades, com o que restava do seu coração, do marido, Ben Ata. Mas todas essas esperanças e desejos conflitantes não a levaram a nada, pois o que realmente aconteceu — e muito mais tarde, depois de algumas vicissitudes — foi que seu filho passou a fazer longas visitas à Zona Três. Mas, na verdade, para passar o tempo com Murti.. E assim os acontecimentos burlaram suas expectativas... ou semi-expectativas... ou nenhuma, pois cada vez mais Al.Ith sentia que nada lhe era devido.

Um dos quadros mais populares é o que mostra Al.Ith entrando na Zona Quatro com o filho, este com seis anos mais ou menos, sentado na frente dela. Ben Ata sorridente e bem- humorado está atrás e em plano mais baixo, de modo que AI.Ith domina a cena. Os três estão à frente de um batalhão de crianças da Zona Quatro, de volta de uma visita educacional. Os meninos parecem pequenos selvagens domados. O cavalo montado por Al. Ith é Yori. Não, não exatamente, pois os artistas têm o cuidado de acentuar pequenas diferenças, para o caso de ser questionada a realidade do quadro. Pode-se dizer que Yori não morreu; certas mortes nunca são aceitas pela ima­ginação do povo. E naturalmente existem milhares de cavalos chamados Yori, em sua honra.

Outra personagem que jamais foi reproduzida com realis­mo é Dabeeb, quase sempre apresentada como uma cantora, como se fosse essa a sua profissão.

Ao nascer do dia, quando a maioria das mulheres dormia e Al.Ith cochilava, enrodilhada sobre a relva, Dabeeb, triste demais para dormir, cantava baixinho:

 

"Conduzirei meu coração trovejante pela planície,

Afastando-me de todos, deixando-me ficar para trás...

Quem sou eu neste animal grande e orgulhoso

Quem sabe onde posso cavalgar melhor do que faço agora?

Oh, não gosto de olhar para trás e me ver lá,

Pequena entre os que ficam em casa, os preguiçosos.

Não, estimulo o conteúdo da minha alma para o desejo

Até que meu coração se erga para as terras altas

Deixando-me para trás.

Ensina-me a amar minha fome,

Envia-me os ventos ásperos dos desertos..."

O que está cantando? — perguntou Al.Ith, sentando-se.

Uma nova canção.

Sim, eu sei, nunca a ouvi. De onde é?

Do deserto. Da Zona Cinco — disse Dabeeb, como quem pede desculpas.

De lá... — Al.Ith estava ajoelhada, inclinada para a frente, as mãos apertadas uma contra a outra. E Dabeeb não pôde deixar de sorrir.

Oh, você mudou tanto, Al.Ith!

Pois lembrava-se de Al.Ith na primeira vez que fora à Zona Quatro — como se essa memória tivesse alguma reivin­dicação sobre o presente.

Como se o encanto sorridente dessa rainha tivesse o poder de condenar Al.Ith ao que era agora, ajoelhada na relva, os picos nevados atrás dela, o rosto vermelho, a expressão selva­gem, uma mulher magra e gasta que parecia devorada por uma chama invisível.

Cante inteira! — pediu Al.Ith.

Mas, Al.Ith, eles não têm canções como as nossas. Vo­cê conhece as canções da Zona Quatro — eles usam palavras diferentes em tempos diferentes, mas nós sabemos o que elas significam. E ensinamos algumas aos nossos filhos, palavra por palavra. Umas são somente para as meninas e dizemos que levarão uma boa sova se errarem uma sílaba. Sim, é assim que fazemos. Mas lá, segundo nos contam, as canções são feitas enquanto caminham. Cavalgam naquelas areias — e é um lugar terrível, dizem, seco, com pouca água, e quente a ponto de mudar a cor da pele — não devemos nos queixar, na Zona Quatro, mas nos queixamos. Eles vivem na terra dos lagartos, há uma cobra sob cada pedra e podemos sacudir escorpiões das nossas saias. Sim, sinto muito, a canção, vou chegar lá... sobre as canções deles, um grupo de cavaleiros sai pelo deserto e um canta um verso, outro canta o segundo, um terceiro canta o seguinte, e assim por diante, criando a canção enquanto caval­gam, às vezes durante dias e noites inteiros. E, quando fazem suas festas, há prêmios para os que criarem as melhores can­ções ali mesmo. Alguém canta o primeiro verso, digamos: "Aqui estamos no meio do pomar", bem, não poderia ser pomar para aqueles coitados, o mais certo seriam tempestades de areia. Essa canção chegou até nós quando a guarda pessoal de Ben Ata voltou para a cidade. Tornou-se popular. Nós todos a can­tamos. Mas não me surpreenderia se eles já a tivessem esqueci­do. Devem ter alguma coisa nova, com certeza.

Tinha de vir de lá — murmurou Al. Ith. —. De lá.

Combinaram que as mulheres passariam mais alguns dias,

mas sem esquecer que logo a temperatura ia mudar. Enquanto estivessem ali podiam trabalhar na colheita.

Al. Ith, seu filho e Dabeeb foram juntos até o desfiladeiro azul. No meio da subida, Al.Ith desmontou para mostrar a Dabeeb ossos brancos sobre a relva.

Os três foram envolvidos pela névoa azul ondulante. Dabeeb achou-a assustadora. Respirava com dificuldade. O me­nino, bravo e forte, parecia a ponto de chorar, mas continha as lágrimas.

Ben Ata diz que homem não chora — anunciou, para a mãe e para Dabeeb.

Al.Ith disse que ficassem onde estavam e esperassem por ela.

Posso subir sozinha. Cada vez vou mais longe... Posso me demorar mais tempo agora. Mas hoje não vou fi­car... oh, Dabeeb, se você soubesse o quanto desejo entrar aí, como espero ansiosamente que me recebam...

Mas eu sei, Al.Ith!

Dabeeb sentou-se com Arusi perto dos ossos brancos e contou histórias do melhor e mais amoroso cavalo que já exis­tiu, até Al.Ith voltar. Não parecia ter sido muito tempo, mas Dabeeb viu nos olhos de Al.Ith o quanto ela se tinha dis­tanciado deles.

Al.Ith sentou-se, pôs o filho no colo, olhou-o nos olhos e transmitiu-lhe o que trouxera do lugar onde tinha estado.

Leve-o com você murmurava ela. — Leve-o para o seu pai. Dê para a Zona Quatro alimento, nutrição, força, resistência...

O que você vê lá em cima? perguntou Dabeeb.

Não posso ver. Mas cada vez distingo melhor... se­res como chamas, como fogo, como luz.. . é como se o ven­to se tivesse transformado em fogo ou em chamas... o azul é a matriz da verdadeira luz, Dabeeb, e, quando fecho os olhos e ela fechou os olhos —, posso ver imagens, formas, reflexos... são altos e belos, Dabeeb, não são como nós, para eles somos apenas... têm pena de nós e nos ajudam, mas somos apenas...

Al.Ith estava quase incoerente.

E Dabeeb disse:

Sim, para eles somos apenas...

Abatida, Dabeeb estava. Enquanto Al.Ith, que ela sentia ser seu coração, seu eu, sua irmã, sua senhora, sua amiga se afastava mais e mais desse seu reino e seu lar, ela, Dabeeb, preparava-se para voltar para baixo, para baixo, para baixo e era como se estivesse condenada.

De volta ao pomar, ela disse às mulheres que precisavam voltar para casa, e todas concordaram. Disse a Al.Ith que o menino devia ficar com ela, como se sugerisse uma reparação, mas o rosto de Al.Ith a fez lembrar-se do quanto estava errada.

Sinto muito — lamentou-se. — Não sei por que eu estava tão certa de que devíamos vir mas vejo agora. . . o que deu em mim? E causei dano, sim, nós todas compreen­demos isso.

Mãe e filho separaram-se, e foi terrível. Como um adul­to, ele estava silencioso, controlando a dor, e ^cavalgou com Dabeeb, que o segurava junto a si, suas lágrimas caindo so­bre os cabelos macios de Arusi. Ele não voltou a cabeça para olhar a mãe, que o viu partir, seu rosto vazio.

O grupo de mulheres que voltou para casa não era o mesmo que viera das terras baixas, mas silencioso e evitando ser visto.

E as pessoas com quem cruzavam nas estradas obser­vavam-nas com olhar crítico, e nas estalagens eram recebidas cortesmente, mas com extrema frieza.

Os resultados desse erro foram sem dúvida graves. Na Zona Três e nunca fomos indulgentes para com o povo "lá de baixo" todos comentavam sobre as mulheres mal- educadas e arrogantes. Sua visita foi considerada inoportuna. Tinham causado mais dano do que os soldados emproados e estúpidos que haviam escoltado Al. Ith naquela primeira vez. E o que havia de errado com o lugar, afinal, que as mulheres tinham de vir em bando, como os soldados, os ho­mens, tinham vindo como se fosse a coisa mais natural do mundo sem mulheres. Suas roupas das quais elas tanto se orgulhavam —, seus cabelos, tudo nelas foi condenado, e isso refletiu pessimamente em Al.Ith, que, em todo caso, parecia ter cometido algum erro ou ter sido afetada, pelo casamento. E todos nós questionamos o casamento outra vez, e nos sentimos solapados; alguns até pareciam em dúvida so­bre os Provedores teriam cometido um erro ou por des­cuido tinham permitido que suas ordens fossem mal interpre­tadas? Esses pensamentos eram novos para nós, e uma corren­te de mal-estar e inquietação percorreu a Zona Três.

Na Zona Quatro, o que as mulheres contaram em nada ajudou o trabalho lento de reparo e regeneração. Muitos não acreditaram naquela história de um modo de vida elevado, fino e sutil. E ninguém o compreendeu. As mulheres diziam a verdade, mas nada na Zona Quatro refletia ou explicava o que tinham visto. Os comentários sobre as decorações e as cores, os desenhos e a arte "lá de cima" tiveram como resul­tado uma explosão de toda a sorte de mau gosto extravagante na Zona Quatro. Ben Ata teve de passar uma lei proibindo extravagância desnecessária, o que provocou descontentamento: por que eles podem ter e nós não?

E o próprio casamento, e o filho, herdeiro das duas Zo­nas — embora, de certa forma, isso não fosse compreendido ainda — foram pela primeira vez alvos de crítica. Definiram Al.Ith como distante e caprichosa, e o sentimento público tornou-se favorável à nova consorte, que estava visitando Ben Ata no pavilhão. O povo todo divertia-se com as novidades trazidas pelas mulheres que serviam no pavilhão. A nova rai­nha estava dando uma boa lição em Ben Ata! Ela era mesmo uma selvagem, se era! E esses comentários faziam bem ao povo, porque podiam sentir-se superiores àqueles comedores de areia, "lá de baixo", e libertar-se da opressiva incapa­cidade e deficiência que provocavam as histórias da Zona Três.

Mas estou me antecipando...

Quando Dabeeb subiu a colina do pavilhão com o me­nininho, que estava ainda sentido e magoado, e que se agar­rava a ela, não encontrou ninguém. As mulheres que cuida­vam de Arusi estavam em suas casas, e Ben Ata estava com Jarnti, organizando um exército menor e mais flexível.

Dabeeb levou Arusi para sua casa, onde estavam seus filhos. Sabia que o menino fora prejudicado com a viagem desastrosa e condenável e precisava agora do conforto e da segurança de uma pessoa conhecida.

Ao saber que as mulheres haviam chegado, Ben Ata vol­tou e encontrou Dabeeb com o menino. Arusi reconheceu o pai, mas parecia desconfiar desse homem cujas idas e vindas eram imprevisíveis.

Um menino mais velho levou Arusi para outra parte da casa, e Ben Ata e Dabeeb ficaram a sós.

Dabeeb estava mais magra e tinha no rosto uma expres­são de sofrimento e desamparo. Ben Ata achou-a bela de um modo diferente, que punha uma distância entre eles e ao mesmo tempo fazia-o lembrar-se de Al. Ith.

Ficaram sentados em silêncio na pequena sala quase desprovida de móveis que ainda não „fora afetada pelo novo es­pírito da Zona Quatro. Ben Ata pensou em fazer alguma coisa para amenizar esse frugalidade exagerada sem saber que as maravilhas vistas por Dabeeb a tornavam indiferente a qualquer coisa que se pudesse fazer ali, pois nada mais parecia ser digno de ser tentado.

Eu me enganei disse Dabeeb, olhando-o de frente, com bravura.

Sim, acho que sim.

Ben Ata, você simplesmente não pode imaginar como é maravilhoso... — e descreveu, com voz pesada, dolorida e carente o que tinha visto, como se precisasse falar, conseguindo apenas comunicar a impressão de que havia sofrido um golpe ou um ferimento no seu íntimo.

Al.Ith pediu Ben Ata —, como está ela? Está bem?

Dabeeb suspirou e sacudiu a cabeça.

Não sei se posso explicar. Não podemos compreen­der, sabe... mas, Ben Ata, alguma coisa está errada, pelo menos foi o que senti. Nem todas as mulheres concordam algumas acham que tudo está certo, porque ela sempre foi uma pessoa estranha, não é verdade?

Mas, Dabeeb, qual é o problema?

É como se ela estivesse sendo punida. É a impres­são... é a sua irmã. Oh, ela é uma mulher inflexível, Ben Ata!

Murti, inflexível! protestou ele, lembrando-se do que Al. Ith lhe havia contado sobre a irmã, que era "seu outro eu".

Eu já disse... o que se aprende lá é que estão acima de nós e não compreendemos realmente... mas juraria uma coisa. Murti. está contra Al.Ith. Oh, pelo menos está satis­feita por Al.Ith não estar mais com eles.

Mas, onde está ela?

Afinal ele conseguiu uma vista geral da situação e con­cordou com ela que não podiam julgá-la.

Ficou consternado com a estranheza de Al.Ith. Com a mudança — "oh, você não a reconheceria!" E — "ela está muito afastada de nós, Ben Ata, e não podemos saber onde realmente está".

"Mas logo ficou preocupado com Dabeeb, a quem, afinal de contas, amava também.

Não lhe ocorreu acariciá-la com beijos ardentes no rosto e no pescoço, enquanto ela protestava, e levá-la para a cama, depois de encostar um móvel na porta, para evitar que as crianças entrassem.

Aproximou sua cadeira da de Dabeeb, segurou as duas mãos dela, acariciou-lhe os cabelos e abraçou-a ternamente, enquanto ela chorava, e ficaram assim até a hora de dar comida às crianças. Incluindo o seu Arusi. E combinaram que, por enquanto, o menino ficaria com ela, para sentir-se amado e parte de uma família.

E assim Ben Ata consolou Dabeeb; e passou a visitá-la freqüentemente, para ver o filho, para ouvir mais sobre Al.Ith e discutir o que deveriam fazer agora.

Pois, se Al.Ith não ia visitá-lo, ele iria vê-la.

Mas nada aconteceu. O tambor estava silencioso. Não vinham mensagens de lugar nenhum. Arusi, que era, afinal de contas, o herdeiro de dois reinos, desenvolvia-se maravilho­samente naquele lar comum.

Quando o tambor tocou foi para Vahshi. Ela não queria ir. Ben Ata teve de ir buscá-la. Os dois chegaram com uma escolta dupla — os cavaleiros selvagens do deserto e os soldados de Ben Ata. Os homens de Vahshi provocaram inciden­tes, anunciando em altos brados sua surpresa e desgosto por esse pequeno reino seguro, doméstico e manso, enquanto os soldados de Ben Ata marchavam firmes olhando para a frente.

Enquanto Vahshi esteve com Ben Ata, os homens do de­serto percorreram toda a Zona Quatro, pois não gostavam de ficar parados em um lugar. As coisas que disseram às mulheres que conquistaram, e às crianças fascinadas, contribuíram para aumentar o fermento da mudança, e, quando Vahshi voltou para sua terra, havia-se formado uma companhia de jovens que pe­diu a Ben Ata permissão para ir para a Zona Cinco e aprender os costumes aventureiros do deserto.

E então... nada aconteceu. Al.Ith não voltou. E Ben Ata não foi chamado. Dabeeb sabia, e o rei também, que os planos tinham sido alterados por causa dos efeitos desfavorá­veis da excursão imprudente das mulheres. A incerteza pesava sobre eles.

Foram tempos difíceis para todos — além da excitação, das exigências das inovações...

Especialmente para os «homens, a maioria idosos ou de meia-idade, para quem o exército tinha sido sua vida.

Jarnti, por exemplo.

Não que o novo exército reduzido não lhe desse trabalho, mas não havia glória nele.

Ficava em casa mais tempo. Parecia que uma dúzia de crianças de todas as idades amontoava-se na pequena casa do alojamento dos casados; não havia lugar para Jarnti e nada para fazer, a não ser que se contentasse em consertar portas, pintar paredes — esse tipo de coisa. Jarnti fazia essas tarefas ajudado pelos meninos mais velhos, mas, enquanto estes adoravam a convivência com o pai, que antes quase não viam, Jarnti trabalhava com uma expressão atônita de incredulidade, como se não pudesse acreditar que estava desempenhando esse papel. E Dabeeb, observando-o, sentia-se grata e ao mesmo tempo compartilhava o constrangimento do marido, pois sabia o quanto custava para ele.

Ou, então, Jarnti andava de um lado para o outro, in­quieto, na pequena casa, fazendo-a parecer pobre e frágil, aquele grande soldado que, mesmo com os velhos uniformes, há muito relegados para o uso civil, sem divisas e amarrotados, era um soldado.

Uma das janelas da frente dava para a colina onde se erguiam o gracioso pavilhão entre jardins, e, mais além, as mon­tanhas da Zona Três. Jarnti sentava-se numa banqueta militar e olhava diretamente para a frente, pois os músculos do pescoço, punidos durante tanto tempo, eram incapazes de levan­tar mais sua cabeça.

Dabeeb às vezes entrava na sala e via Jarnti esforçando-se para erguer a cabeça... e falhando. Ela saía mansamente para que ele não soubesse que vira seu fracasso. Procurava alimen­tar o orgulho de Jarnti porque sentia pena dele.

Dabeeb, você compreende que toda a minha vida foi inútil?

Não, como poderia ser, querido?

Como poderia ser... não use esse tom de voz comigo! Mas o que fui durante toda a vida? E o que sou agora?

Dabeeb estava de pé ao lado dele, que, sentado na ban­queta, olhava sombriamente, dolorosamente, para fora. Ela murmurava palavras de simpatia.

Sabe o que é isso? Fui uma coisa durante a vida toda. E isso é o que eu sou.

Talvez não tudo o que você é — consolou Dabeeb.

Não admito que use esse tom! Por que me trata como a esses seus moleques mimados?

Sinto muito, mas acho...

Não importa o que você acha! Minha vida... aca­bou-se, foi cancelada, apagada. Antes tínhamos orgulho do nosso exército. Podíamos andar de cabeça erguida com nossos melhores... — Mas, nesse ponto, interrompeu-se e o silêncio tornou-se vibrante por causa da impropriedade da última frase. — De qualquer modo, sabíamos onde estávamos. Mas, de re­pente, de um dia para o outro, tudo se inverteu, o preto virou branco.

Sinto muito, Jarnti.

Que diferença faz você sentir ou não! E meu pai? O que isso tudo faz da vida do meu pai? Cumpriu o dever, como o entendia. E o pai dele — o que esta mudança faz de nós todos? Nada, isso é o que somos.

Bem, meu querido...

Não se atreva a oferecer uma xícara de leite quente agora ou alguma coisa gostosa para comer... dou-lhe uma sova se fizer isso... e tem mais. Como é que você, de repen­te, ficou delicada demais para ser tocada? Parece que vai se desmanchar em pedaços se eu encostar um dedo. Não sou seu filho, Dabeeb, não sei como só agora percebi que me trata como a uma criança.

Dabeeb não disse nada. Morria de vontade de confortá-lo, abraçá-lo, consolá-lo, infundir-lhe segurança. Os dois tinham perdido suas ocupações!

Às vezes ela entrava silenciosamente na sala onde ele fi­cava dia após dia, tentando levantar a cabeça, contra os há­bitos e o treinamento de vidas inteiras dele e dos seus an­cestrais —, para contemplar as montanhas proibidas. E Dabeeb sentava-se ao lado dele, sem falar, esperando que sua presença servisse de conforto ao marido.

Ela ensinava os filhos a respeitarem o pai pelo que ele tinha sido, e mais ainda por sua corajosa tentativa agora; e dizia-lhes que deviam exercitar suas mentes na contemplação das montanhas que pairavam sempre sobre eles para que, quan­do chegasse o momento, pudessem compartilhar as suas influências. E era uma espécie de mãe adotiva para Arusi. Dabeeb pensava o tempo todo em Al.Ith, sem dizer nada a ninguém e identificando-se com ela; pois, se Al.Ith estava se afastando de sua terra, Dabeeb, no íntimo, despedia-se da Zona Quatro.

Quando se sentava ao lado do velho marido pois ele envelhecera muito com o golpe de ver seus grandes exércitos subitamente degradados e demolidos —, estendia a mão para ele, esperando que Jarntí não interpretasse o gesto como o que se faz a uma criança, e às vezes ele segurava a mão de Dabeeb e inclinava-se para a frente olhando-a fixamente como se nun­ca a tivesse visto antes.

Dabeeb! dizia, com voz entrecortada, mas obstinada.

Dabeeb, você fala dos Provedores. Você fala deles... pa­rece que os conhece, do modo como fala! Mas eles nos tiram tudo. Isso é o que fazem... levam-nos por um caminho, ou deixam que sigamos um caminho durante toda a nossa vida, que vivamos do que fazemos, acreditando que isso é tudo o que existe e então puff! Desaparecem! Desaparecem... Dabeeb, o que diz a isso, o quê? Diga-me!

Temos de acreditar que eles sabem o que fazem, querido.

Temos mesmo? Será que temos? Não estou tão certo.

E ele virava para o lado o rosto de soldado, para que Dabeeb não visse as lágrimas nos seus olhos. Não vê, Dabeeb? Não é só que nos dizem que o exército não vale nada agora e que tudo aquilo de que nos orgulhávamos tanto nada signi­fica e que o importante é construir celeiros e abrir canais de irrigação. Mas é que isso anula o passado também. Não compreende? Apenas o vazio e tolices ultrapassadas.

Não vejo assim, Jarati.

Não? Pois eu vejo.

Cinco invernos tinham passado desde a viagem de Dabeeb, quando ela foi procurar o rei para dizer que ele devia ir à Zona Três. Ben Ata estava montado e a caminho, quase antes de ela acabar de falar.

Na fronteira foi interpelado, não por suas guarnições, suas sentinelas, mas por uma companhia de mulheres e homens jovens da Zona Três, armados e ameaçadores. Ben Ata ficou tão surpreso que parou, atônito. Em primeiro lugar, com a idéia de que pudesse ser barrado após os Provedores terem dado a ordem. E depois, com as armas. Jamais vira nada semelhante nas ilustrações de armas obsoletas. Os jovens tinham maças, tinham catapultas. Tinham varas com cordas finas nas pontas, em cujas extremidades havia pesos e pedras. Segura­vam pedras enormes nas mãos. Usavam as roupas comuns da Zona Três e sua aparência era completamente civil. Não se tratava de as armas serem desprezíveis; eram suficientes para incitar o rei e seus homens... Até pouco tempo atrás Ben Ata teria rido e seus soldados o teriam acompanhado zombe­teiros. E então se teriam divertido, perseguindo essa pobre gen­te, fariam prisioneiros e os atormentariam como as crianças ignorantes torturam os animais. Mas Ben Ata conteve seus sol­dados e ficou imóvel, pensando. Então, dispensou seus homens e voltou para Dabeeb.

Havia na mensagem alguma coisa que você não me disse?

Dabeeb disse que sim.

Mas parecia tão ridículo, Ben Ata...

A mensagem dizia que ele devia ir com seu exército.

Dabeeb e Ben Ata sentaram-se lado a lado, sombrios. Conversaram e Ben Ata foi procurar Jarnti. Agora, na Zona Quatro, todos os jovens faziam dois anos de serviço militar e depois davam baixa do exército por tempo ilimitado; isso garantia o que Ben Ata considerava indispensável — que todos os moços deviam aprender a disciplina e a ordem. Pediu três companhias a Jarnti. Cada uma com 100 homens. Estavam ar­mados com espingardas, facas e espadas. Mas o importante para Ben Ata era a aparência deles e a isso devotou toda a atenção.

Quando Ben Ata voltou para a fronteira, ia à frente de soldados equipados para a luta, armados até os dentes, capacetes reluzindo, lanças em riste, e os famosos coletes refratários. Um tambor e cornetas marcavam o ritmo da tropa.

Os bandos de jovens com suas pedras e varas fizeram menção de resistir, mas o assombro os venceu, pois não ti­nham compreendido ainda que um exército podia ser tão ine­xorável e inflexível. E não sabiam que 300 homens podiam transformar-se em um só — os indivíduos completamente absorvidos nessa força enorme e aterradora.

E o próprio Ben Ata, o marido da sua Al.Ith, era uma grande e impressionante figura, com as pernas fortes nuas até os joelhos, os braços como troncos de árvores. Sua jaqueta de couro, cinturada, parecia-lhes tão pavorosa que devia ter um objetivo de punição ou sadismo. E o capacete de metal era um símbolo de brutalidade.

E assim, por todo o caminho da fronteira, através do desfiladeiro e do planalto, até a capital, essas companhias de, soldados fizeram parar todo o movimento nas estradas, enquanto passavam por grupo após grupo de pessoas que se julgavam possuidoras de uma figura marcial e até mesmo cruel, agora indefesas, boquiabertas e desarmadas por sua inocência.

Acamparam por uma noite. No meio do dia seguinte o exército de Ben Ata chegou à pequena praça. Ben Ata não desmontou mas conduziu o cavalo até a escadaria do palácio de Al. Ith e esperou. Rostos apareciam nas janelas, o povo vinha de todos os lados e olhava, murmurava, boquiaberto.

Afinal, Murti desceu a escada, como tinha feito para receber Dabeeb, sozinha.

Ben Ata quase vacilou ao vê-la. Era Al.Ith, com todo o encanto e atração, mas com os cabelos louros da magnífica selvagem Vahshi, que tanto o deleitava e exasperava.

— Vejo que veio com seu exército, Ben Ata — disse ela.

Nem a metade, Murti.

Mas um exército. Armado.

Como os seus jovens na fronteira.

Estavam fazendo o melhor que podiam.

E eu estou fazendo o que me ordenaram.

Ben Ata olhou fixamente para ela. Murti. devolveu o olhar, mas afinal desviou os olhos e suspirou.

Você não obedece mais, Murti?

Quando estou certa do que querem que faça.

O cavalo de Ben Ata movia-se inquieto, balançando a cabeça, tentando livrar-se da peça de metal entre os dentes. Murti. sorriu de leve, com uma expressão de desprezo.

Sim, eu sei — disse ele. — Temos costumes diferentes. Mas num deles somos iguais.

Ben Ata, este nosso reino vivia em paz. Contente. Ninguém pensava em mudança ou destruição.

Murti, contentamento não é o bem mais alto. Mais uma vez seus olhos se encontraram, firmes... e firmes. Ela não desviou o olhar. Ben Ata sorria tristemente.

Não vejo motivo para sorrir.

Estava pensando nos meus combates com Vahshi, da Zona Cinco. Mas ela defende a liberdade absoluta em todas as coisas, licenciosidade... anarquia. Na minha opinião. Para ela eu represento a lei. Auto-satisfação. Contentamento. Para não dizer — presunção.

Murti. permitiu-se um breve sorriso, ficou séria outra vez.

E o que é essa sua nova grande rainha, Ben Ata?

A grande rainha da Zona Cinco é a líder tribal de centenas de pessoas que, graças à habilidade e bravura dela, conseguiram dominar 50 outras pobres tribos, e vivem todos em uma estreita faixa de deserto ao longo da fronteira da Zona Cinco com nosso país. A Zona Cinco é um rico país comercial que cultiva tantas variedades de cereais e de frutas quanto vocês. Mas essa mulher faz com que todos paguem tributos a ela, porque são preguiçosos e sem ambição. E ela pode assim roubar e saquear à vontade.

Você sem dúvida gosta de variedade em suas mulheres.

Mas Vahshi já não aterroriza todo o resto da Zona, porque eu não permito. Porque sou mais forte do que ela.

Uma história muito edificante, Ben Ata.

Devo supor que está tentando evitar que eu veja Al.Ith?

Ela disse, obstinada:

Digamos que estou tentando evitar que Al.Ith... bem, não é fácil de explicar.

Venha a provocar desordens?

Sim.

Tenho a impressão, Murti, de que sejam quais forem os efeitos deste nosso casamento, agora é muito tarde para alterar as coisas.

Podemos evitar o pior — como, por exemplo, quando aquelas estúpidas mulheres apareceram aqui como tolas.

Sim. Foi um erro. Isso foi desobediência.

Murti suspirou. Ficou em silêncio por um longo mo­mento.

Não posso impedir que vá ter com Al.Ith — disse ela. — É mais forte do que nós. Eu não tinha idéia! Antes de ver o seu exército, hoje, não tinha a mínima idéia! E não o admiro, Ben Ata.

Voltou-se e entrou no palácio.

Ben Ata e seus soldados marcharam para nordeste.

O que aconteceu foi o seguinte:

Logo depois que Dabeeb voltou para casa, uma mulher chegou à vila de Al. Ith, perguntou por ela e dirigiu-se para as cocheiras. Pediu que lhe permitissem ficar e trabalhar. Queria ficar com Al.Ith, disse. Arranjaram-lhe trabalho. Logo depois chegou outra pessoa — um menino. No fim do inverno havia umas 12 pessoas novas na vila. Na verdade, não havia lugar para mais. Mas a primavera trouxe outros. O fato era comentado nas vilas próximas e depois nas mais distantes — até que certo dia, Murti chegou e sentou-se com Al.Ith no pomar. Era doloroso para elas esse encontro — estavam tão distantes agora, quando no passado seus pensamentos eram paralelos e uma sabia o que a outra estava fazendo e onde estava, mesmo quando separadas.

Murti estava mudada. Mais amarga, mais velha, mais arbitrária.

Al.Ith era uma sombra, apagada.

Precisa sair daqui, Al.Ith — disse Murti. com voz áspera e brusca, por causa da dificuldade do que devia dizer. — E não deve voltar a este reino.

Então, onde vou viver?

Onde vive agora — aparentemente. Ouvi dizer que está muito mais perto de lá que de nós.

Você não compreende.

Compreendo o que vejo.

Isso não é muito, Murti. — disse Al.Ith com voz suave, mas obstinada, e Murti ficou em silêncio por algum tempo.

Então:

Preciso perguntar-lhe uma coisa, Al.Ith. E sei que responderá honestamente. Suponha que, antes do seu casamento com Ben Ata, quando não tínhamos problemas e tudo era como devia ser...

Mas, Murti. — observou Al. Ith, com reprovação —, sabe muito bem...

Não! Precisa me ouvir. Escute! Você era nossa Al. Ith e nós lhe pertencíamos. Suponha então que você tivesse des­coberto a existência de um espírito selvagemente inquieto que atormentava nossa Zona, que o povo falava de todo o tipo de mudanças e desafios dos quais nunca tínhamos ouvido falar, de modo que tudo estivesse diferente, até os animais estivessem perturbados, teria tomado medidas para pôr um fim a essa situação?

Naturalmente — respondeu Al. Ith. — Mas...

Então, isso é tudo — disse Murti..

Murti. fugiu rapidamente, desesperada, como se Al.Ith a estivesse perseguindo ameaçadoramente. Chegou perto do seu cavalo, quando Al.Ith exclamou:

Murti!

Murti, com sua pressa terrível, já estava montando.

Murti. — disse Al.Ith, desta vez numa voz suave de comando.

E ela parou o cavalo, olhou para a irmã e escutou.

Você se esqueceu, Murti! As coisas estavam péssimas quando fui mandada para Ben Ata. Estávamos tristes, desanimados e doentes. Não nasciam crianças como antes, e os ani­mais estavam no mesmo estado.. .

Oh, não sei coisa alguma sobre isso — disse Murti com palavras rápidas e iradas. Mas ficou ali, ouvindo, compe­lida pela força de Al.Ith sobre ela.

Mas é verdade. E agora, em vez de letargia, desânimo e tristeza, em vez da queda na natalidade e de animais que não se acasalam, temos o oposto. O oposto, Murti!

Mas isso era tudo o que Murti podia suportar e ela virou o cavalo e partiu velozmente, como se Al.Ith tivesse mandado um bando de animais hostis e cruéis no seu encalço.

E neste ponto vou fazer uma observação sobre um fenô­meno que não é exatamente desconhecido para nós:

Quando duas pessoas foram muito unidas, como Al.Ith e sua irmã, e uma delas se afasta, para uma nova experiência, que parece diferente e até mesmo capaz de destruir todo o equilíbrio e a compreensão do passado, a outra fecha-se em si mesma, ou sofre uma regressão, como procurando proteger um ferimento ou um lugar exposto e vulnerável... sim, mas isto estava acontecendo na Zona Três, e a reação não tomou essa forma, pelo menos, não assim cruamente. Nós, que observáva­mos, achamos que, embora Murti não tivesse sido exposta às influências da Zona Quatro diretamente, sentia os efeitos atra­vés da irmã, que, afinal de contas, era o seu outro eu. Murti não escapara à "descida", embora possa parecer o contrário. Simplesmente, esse nível de comportamento irrefletido, predes­tinado, vingativo mesmo, não era o que esperávamos de Murti.

Temos retratos de Murti., onde aparece com uma expres­são amarga e severa, montada a cavalo, olhando para baixo, para a pobre Al.Ith, a proscrita, entre seus humildes animais.

Bem, na verdade aconteceu e foi registrado. Mas eu cos­tumo meditar sobre essa cena, e tenho mais pena de Murti do que de Al.Ith. Esta não é a história de Murti.. Não temos tem­po para contá-la. Mas é suficiente sugerir que, se ela sofreu indiretamente com as dificuldades criadas pela estada de Al.Ith na úmida Zona Quatro, fatalmente deve ter experimentado tam­bém, de forma remota, algo do que Al.Ith sentiu — e o que iria sentir — durante sua lenta osmose com a Zona Dois. Mur­ti foi nossa amável e amada e encantadora soberana por longo tempo — na verdade, ainda é, embora esteja velha agora, e tenha se retirado para o segundo plano, a fim de ceder lugar aos outros, Arusi entre eles. Mas sempre houve algo de enig­mático e distante, e acima de tudo, de solitário nela, desde a sua separação de Al.Ith — e acredito que, se pudéssemos saber o que ela tem passado, descobriríamos que não está muito distan­te de Al. Ith agora, à seu próprio modo.

No dia seguinte ao da visita de Murti apareceu um bando de jovens, armados, com seu equipamento de amadores, mas sem dúvida esmerado, que insistiram com Al.Ith para que os acompanhasse. Não pareciam embaraçados com o que faziam. Al.Ith mal podia acreditar que era a mesma gente entre a qual até pouco tempo ela vivia como uma irmã, ou como uma parte deles, invisível e reconhecida por ambos os lados — tudo o que ela pensava era transparente para eles, os pensamentos deles abertos para ela. Agora erguia-se uma barreira entre ela e esse povo; eles a viam, mas ela não era vista...

Levaram-na até a entrada do desfiladeiro que se abria para as névoas azuis. Lá havia uma pequena cabana. Um pedaço de terra para cultivar vegetais, e uma vaca no pequeno pasto. Seguindo as instruções de Murti, tinham colocado alguns objetos na cabana. Afastaram-se alguns passos e tomaram posi­ções. E dali em diante, foi mantida uma guarda permanente. Não era uma guarda terrível ou apavorante, longe disso — ape­nas uma fila de jovens, que se revezavam constantemente, pois não pretendiam passar a vida inteira fazendo isso. Mas uma guarda para evitar que Al.Ith voltasse à sua Zona e — ao mesmo tempo — para evitar a aproximação dos amigos que queriam estar com ela.

Al. Ith via esses amigos reunidos do outro lado da fila de jovens. Havia mais ou menos 50. Olhavam para cima, para a pequena cabana, e ela acenava para eles. Falavam com os guar­das — e só recebiam recusa. Depois de discutirem a situação, dispersaram-se. O que aconteceu, então, embora Al.Ith não             soubesse, foi que todos arranjaram lugar para ficar nas fazen­das e vilas próximas, e, à medida que mais e mais pessoas chegavam, pessoas iguais a Al.Ith e que se sentiam atraídas por ela, iam se instalando na região noroeste da nossa Zona. Logo, todas as fazendas e vilas num círculo extenso estavam ocupadas exclusivamente por elas.

Quando Ben Ata foi procurá-la, foi informado de tudo isso na vila onde ela havia trabalhado. E parou para conversar com as pessoas que tinham vindo para ficar perto dela. Todos tinham a mesma característica — não-visível, à primeira vista, mas, depois que se chegava a conhecê-los, era como uma marca gravada a fogo. Todos eles eram incapazes de viver na Zona Três, como se ela não fosse bastante. Enquanto outros de nós se desenvolviam irrefletidamente nesse mundo maravilhoso, eles só viam em nossa vida o vazio. Alimentando-se de migalhas e esperando apenas o nada, eram candidatos à Zona Dois antes mesmo de terem consciência disso, e muito antes de a estrada ser aberta para eles pela longa vigília de Al.Ith.

Ben Ata dispersou os soldados entre aquela boa gente, deixou seu cavalo com eles e subiu o desfiladeiro, para a cabana onde estava sua mulher.

Al.Ith estava sentada numa banqueta na porta da ca­bana e, quando ele se aproximou, levantou-se de um salto, procurando avidamente — como Ben Ata percebeu logo — pelo filho.

Sinto muito, Al.Ith, mas não disseram nada sobre Arusi.

Ela assentiu com a cabeça, sorriu e ficou imóvel, espe­rando por ele. Ben Ata chegou perto dela, tomou-lhe as mãos, suspirou e sentaram-se muito juntos na porta da casa, sorrindo.

Oh, Al. Ith — disse ele —, ainda bem que vim tomar conta de você.

Ela riu descontraidamente, com seu riso antigo, e logo os dois estavam rindo juntos.

Mas você é uma prisioneira!

Eu me importava com isso — terrivelmente. Mas ago­ra já não me importo.

Bem, não será prisioneira por muito tempo. Parece- me que Murti. compreendeu que sou mais forte do que ela — pelo menos nisso.

E ele contou-lhe tudo, todas as novidades daqueles anos, explicou o que havia acontecido.

Não mencionou Vahshi enquanto ela não perguntou. E, então, Ben Ata riu, um misto de prazer, assombro e raiva, e contou tudo — e por um momento os olhos de Al.Ith en­cheram-se de lágrimas. Que ela secou com determinação.

Ela é como uma criança — disse ele. — Você não tem idéia. Ela pensa que quando quer uma coisa tem de con­seguir! Mas está melhor do que era — acho. E tem acessos de raiva — você nunca viu coisa igual! Mas nisso também está melhor — bem, um pouco...

Ele a beijou, ao ver a expressão no seu rosto.

Bem, Al.Ith, eu tinha de amá-la — depois de conhe­cer você!

Ela interpretou as palavras exatamente como ele as interpretava, e sorriu.

Ficaram sentados, abraçados, os rostos unidos, contem­plando o desfiladeiro e a névoa azul, e pensando que ainda es­tavam casados, por mais distantes que estivessem.

Ben Ata demorou-se alguns dias. Dispensou os guardas, que se afastaram satisfeitos, pois achavam a tarefa tediosa e cada vez mais incrível. Ben Ata estava determinado a instalar Al. Ith com todo o conforto numa casa perto da vila, mas ela disse que amava a pequena cabana e não queria deixá-la. Seus amigos — pois era assim que se julgavam — podiam falar com ela, e ela os visitaria.

Mais tarde, naquele mesmo ano, Ben Ata voltou, sem soldados, desta vez com Arusi e Dabeeb. Antes de partirem, deixaram Arusi com Murti para aprender os costumes da Zona Três.

Esse estado de coisas continuou, mas não por muito tempo. Certo dia, Al.Ith subiu a estrada para visitar a Zona Dois e não voltou. Alguns dos seus amigos desapareceram, do mesmo modo como — não muitos, mas sempre havia alguns — indivíduos da Zona Quatro vinham para a nossa Zona e ficavam, muitas vezes para o resto da vida, tendo encontrado lugar entre nós. Dabeeb, por exemplo.

Havia agora um movimento contínuo da Zona Cinco para a Zona Quatro. E da Zona Quatro para a Zona Três — e da nossa Zona para o desfiladeiro. Havia uma leveza, uma frescura, curiosidade e inovação e inspiração, onde antes só existia in­diferença estagnada. E fronteiras fechadas.

Pois é assim que vemos isso tudo agora.

O movimento não é unidirecional — de modo algum.

Por exemplo, nossas canções e histórias são conhecidas não só no reino úmido "lá embaixo" — como conhecemos as suas —, mas são contadas e cantadas nos acampamentos are­nosos e ao redor das fogueiras acesas nos desertos da Zona Cinco.

 

                                                                                            Doris Lessing

 

 

                      

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