Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS CATADORES DE CONCHAS
Terceira Parte
Duas mesas já estavam ocupadas. Um jovem e pálido tenente-aviador com sua namorada... ou talvez sua esposa... e um casal idoso, parecendo ter escolhido o Gaston's como uma variação para o tédio do Hotel Castle. Não obstante, a melhor mesa, a que ficava perto da janela, permanecia vazia.
Enquanto eles hesitavam, Grace ouvira o toque da sineta e aparecia pela porta de vaivém no fundo da sala, em passos vivos.
- Boa-noite. Major Lomax, não? O senhor reservou uma mesa. Vou colocá-lo ao lado da janela. Imaginei que gostaria da vista e... - Por cima do ombro, ela espiou Penelope. Seu rosto sardento e queimado de sol, sob a massa de cabelos oxigenados, mostrou um sorriso atônito. - Olá! O que está fazendo aqui? Não sabia que você viria!
- É, acho que não sabia. Como vai, Grace?
- Muitíssimo bem. Trabalhando duro como sempre, é claro, mas não vamos falar nisso. Trouxe seu pai?
- Não. Não esta noite.
- Oh, bem, é interessante sair sem ele de vez em quando, para variar.
Os olhos dela se viraram para Richard, com algum interesse.
- Você ainda não conhece o Major Lomax.
- É um prazer conhecê-lo. E agora, onde querem sentar-se? Contemplando a vista? Terão tempo suficiente para apreciá-la, embora logo tenhamos que fazer o lamentável black-out. Certamente vão querer algo para beber. Depois, então, trarei o cardápio e farão sua escolha.
- O que poderemos beber?
- Não muita coisa... - Ela franziu o nariz. - Temos algum sherry, mas é sul-africano e com gosto de uvas-passas. - Inclinando-se diante de Richard, ela fingiu arrumar seus talheres. – Gostaria de vinho? - sussurrou em seu ouvido. - Sempre reservamos uma ou duas garrafas para o Sr. Stern, quando vem cá. Tenho certeza de que ele não objetaria, se eu lhe servisse uma delas.
- Oh, mas é esplêndido!
- Bem, não faça muitas demonstrações a respeito, por favor. Há outros por perto. Farei com que Gaston o decante e, desta maneira, ninguém verá o rótulo.
Grace deu uma forte piscadela para ele, entregou o cardápio e os deixou fazendo a escolha. Depois que ela se foi, Richard recostou-se na cadeira, parecendo admirado.
- Que tratamento! Isto sempre acontece?
- Geralmente. Gaston e papai são amicíssimos. Ele nunca sai da cozinha, mas quando papai está aqui e os outros clientes se vão, emerge com uma garrafa de conhaque. Então, os dois ficam conversando e bebendo até altas horas, enquanto endireitam o mundo. A música foi idéia de Grace. Ela diz que o ambiente é acanhado e, assim, a música impede que uns ouçam a conversa dos outros. Sei bem o que ela pretendia. No refeitório do Castle, ouvem-se apenas sussurros e talheres roçando os pratos. Prefiro a música. Dá a sensação de estarmos em um filme.
- Você gosta disso?
- Cria uma ilusão.
- E quanto ao cinema?
- Adoro! Eu e Doris vamos duas vezes por semana, em certas ocasiões, quando chega o inverno. Nunca perdemos um filme novo. Nessas épocas, não há grande coisa para se fazer em Porthkerris.
- Antes da guerra era diferente?
- Oh, sem dúvida, tudo era diferente! Por outro lado, nunca ficávamos aqui no inverno, sempre estávamos em Londres. Tínhamos uma casa na Rua Oakley. Ainda a temos, porém não vamos mais para lá. - Ela suspirou. - Compreenda, uma das coisas que mais odeio. Desta guerra é ficar enfiada em um lugar. Já é difícil sair-se de Porthkerris, com apenas um ônibus diário e nenhuma gasolina para o carro. Creio ser o preço que pagamos, quando somos criados
para uma vida nômade. Papai e Sophie nunca ficaram muito tempo em um só lugar. Sem qualquer justificativa, de uma hora para outra, arrumávamos as malas e partíamos, para a França ou a Itália. Isto tornava a vida maravilhosamente excitante.
- Você foi filha única?
- Sim. E muito mimada.
- Não consigo acreditar.
- É verdade. Sempre convivi com gente crescida e era tratada como adulta. Meus melhores amigos eram os amigos de meus pais. Entretanto, não parece tão estranho, se pensarmos no quanto minha mãe era jovem. Na verdade, era mais como uma irmã para mim.
- Além de muito bonita.
- Oh, está pensando no retrato dela... Sim, Sophie era encantadora. Entretanto, mais do que isso, era cordial, divertida e amorosa. Furiosa em um momento, dando risadas no outro. Conseguia transformar qualquer lugar em um lar. Irradiava uma espécie de segurança. Não conheço ninguém que não a amasse. Ainda penso nela, todos os dias de minha vida. Há vezes em que parece estar morta, mas, em outras, fico achando que deve estar em qualquer lugar da casa, que uma porta se abrirá e ela estará ali. Somos tremendamente auto-suficientes -egoístas, imagino. Nunca quisemos outras pessoas, nunca precisamos delas. No entanto, quando reflito nisto, recordo que nossas casas viviam cheias de visitas, muitas vezes conhecidos casuais que, simplesmente, não tinham outro lugar qualquer para ficar. Havia amigos também. E parentes. Tia Ethel e os Clifford costumavam vir todos os verões.
- Tia Ethel?
- É a irmã de papai. Uma personalidade, tão aloucada quanto o chapeleiro de Alice. Entretanto, há anos que não vem a Carn Cottage, em parte porque Doris e Nancy apoderaram-se de seu quarto, mas também porque ela se mudou de Londres, foi morar na zona rural de Gales, com alguns amigos do peito, que criam cabras e fazem tecelagem manual. Pode rir, mas é verdade. Ele sempre teve os amigos mais excêntricos.
- E os Clifford? - perguntou ele, querendo ouvir mais.
- Aqui cessa a graça. Os Clifford não vêm, porque estão mortos. Foram mortos pela mesma bomba que matou Sophie...
- Sinto muito. Não sabia disso.
- Por que saberia? Eram os mais queridos amigos de papai. Dividiam a casa da Rua Oakley conosco. Quando tudo aconteceu, quando ele ouviu a notícia pelo telefone, mudou da água para o vinho. Ficou muito velho. Foi de repente. Diante dos meus olhos.
- Seu pai é um homem fantástico.
- Ele é muito forte.
- Solitário?
- Sim, mas creio que a maioria das pessoas idosas é solitária.
- Ele tem muita sorte em contar com você.
- Eu jamais o deixarei, Richard.
Foram interrompidos pela chegada de Grace, que irrompia das portas de vaivém com dois jarros para água, contendo vinho branco.
- Aqui estamos. - Ela depositou os dois jarros na mesa, com outra significativa piscadela, cuidadosamente escondida à os olhos dos demais clientes. - E agora, lamento, mas está ficando escuro e tenho que fazer o black-out. -Ela manejou destramente camadas de cortinas, enfiando-as com força nas laterais, a fim de que nenhum raio de luz se infiltrasse. - Já decidiram o que vão comer?
- Nem mesmo lemos o cardápio. O que nos recomendaria?
- A sopa de mexilhões e depois a torta de peixe. A carne está imprestável esta semana. Dura como sola, mais parecendo cerdas de escova.
- Muito bem, ficamos com o peixe.
- E que tal um gostoso brócolis fresco e feijões verdes? O sabor é excelente. Ficariam prontos em um momento.
Ela saiu, retirando pratos vazios das outras mesas, enquanto Richard servia o vinho. Ergueu o copo.
- Saúde! - brindou.
- Santé!
O vinho era leve, fresco e delicioso. Tinha um sabor da França, de outros verões, outras épocas. Penelope pousou seu copo na mesa.
- Papai aprovaria este.
- Muito bem, conte-me mais.
- Sobre o quê? Tia Ethel e suas cabras?
- Não. Sobre você.
- É enfadonho.
- Não acho. Fale-me sobre sua passagem nas Wrens.
- É a última coisa que eu gostaria de comentar.
- Não gostou?
- Odiei cada momento.
- Então, por que se alistou?
- Oh, por um impulso idiota. Estávamos em Londres e... aconteceu uma coisa...
Ele esperou.
- O que aconteceu? - quis saber.
Penelope encarou-o. Depois disse:
- Vai pensar que sou uma tola.
- Duvido que isso aconteça.
- É uma longa história.
- Temos tempo de sobra.
Ela então, respirando fundo, começou a contar. Iniciou o relato com Peter e Elizabeth Clifford, e chegou à noite em que ela e Sophie tinham subido ao apartamento dos amigos para um café, e lá conheceram os Friedmarm.
- Eram muito jovens, refugiados de Munique. Judeus. – Do outro lado da mesa. Richard ouvia, com os olhos fixos nela, impassível. Penelope viu-se falando coisas que jamais se animaria a contar para Ambrose. – Então, Willi Friedmarm começou a falar sobre o que estava acontecendo com os judeus na Alemanha nazista. Era aquilo que os Clifford vinham tentando dizer ao mundo durante anos sem que ninguém quisesse ouvir. Para mim isso tornava a guerra uma coisa pessoal. Horrorizante. Aterradora, mas pessoal. Assim, no dia seguinte saí e fui ao primeiro posto de recrutamento que encontrei, alistando-me nas Wrens. Fim da história. Na realidade, patético.
- Patético? De maneira nenhuma!
- Bem, nada haveria de patético se, quase imediatamente, eu não me arrependesse de minha atitude. Sentia saudades de casa, não fazia amizade com ninguém e odiava ter de viver com um bando de estranhas.
Richard se mostrou compreensivo.
- Você não seria a única a se sentir assim. Para onde a designaram?
- Para Whale Island. Para a Real Escola de Artilharia Naval.
- Foi onde conheceu seu marido?
- Foi. - Ela baixou os olhos, pegou o garfo e, com seus dentes, começou a desenhar riscos cruzados na toalha xadrez da mesa.
- Ele era um subtenente, fazendo o curso.
- Como se chamava?
- Ambrose Keeling. Por que pergunta?
- Pensei que talvez pudesse tê-lo conhecido. Não conheci.
- Não acredito que pudesse conhecê-lo - replicou ela, friamente. - Ele é muito mais novo do que você. Oh, bem... – Ela ergueu a voz, aliviada. – Aí vem Grace com a nossa sopa. - Acrescentou, rapidamente: - Só agora percebi a fome que sinto!
Assim, Richard pensaria que ficara aliviada com a chegada da sopa e não por haver bons motivos para interromper o comentário sobre Ambrose.
Eram onze da noite, quando finalmente saíram do restaurante, caminhando de volta para casa em alamedas escuras de casas com janelas trancadas, depois subindo a colina. O frio aumentara bastante, e Penelope aconchegou-se no xale de Sophie, grata por seu perfumado conforto. Muito acima, as nuvens corriam por um céu salpicado de estrelas e, enquanto eles subiam, deixando para trás e bem abaixo as torcidas ruas de Doumalong, o vento se fez sentir,
fresco e forte, soprando do Atlântico.
Por fim, chegaram à Garagem de Grabney e à última colina. Penelope fez uma pausa para afastar o cabelo do rosto e firmar o xale mais seguramente em volta dos ombros.
- Eu sinto muito - disse ele.
- O quê?
- Toda esta caminhada. Devia ter chamado um táxi.
- Não estou cansada. Já me acostumei a andar. Faço isso duas ou três vezes ao dia.
Ele lhe tomou o braço, entrelaçando os dedos nos dela, e recomeçaram a caminhar.
- Vou ficar bastante ocupado nos próximos dez dias - explicou - mas, havendo oportunidade, talvez passe em sua casa para vê-la. E jogar gamão novamente.
- Apareça quando quiser - disse ela. - É só chegar. Papai adoraria tornar a vê-lo. E sempre há alguma coisa na mesa para se comer, nem que seja apenas sopa e pão!
- É muita gentileza sua.
- De maneira nenhuma. Você é que tem sido gentil. Há anos não tenho uma noite tão boa... Já tinha esquecido como era ser convidada para jantar fora.
- E após quatro anos de vida militar, eu já havia esquecido como é estar em outro lugar que não uma cantina de oficiais, com um bando, de homens que só sabem falar sobre seu serviço. Assim, talvez estejamos nos prestando uma gentileza mútua.
- Haviam chegado ao muro, ao por tão alto. Ela parou e se virou para ele.
- Quer entrar para uma xícara de café?
- Não. Tenho que ir andando. Vou começar muito cedo amanhã.
- Pois é como falei, Richard. Venha quando quiser.
- Eu virei - disse ele. Pousou as mãos nos ombros dela e inclinou-se para beijar-lhe o rosto. - Boa-noite.
Ela cruzou o portão, atravessou o jardim e entrou na casa adormecida. Em seu quarto, parou diante do toucador e contemplou a jovem de olhos escuros refletida no espelho comprido. Afrouxou o nó do xale e o deixou cair no chão, a seus pés. Lentamente, foi desabotoando os botões de seu vestido vermelho com estamparia de margaridas, mas então parou e inclinou-se para a frente, a fim de examinar seu rosto. Com dedos leves, tocou a face que ele beijara. Viu-se enrubescendo, viu a coloração rósea invadir-lhe o rosto. Rindo de si mesma, ela se despiu, apagou as luzes, puxou as cortinas para trás e se deitou. Ficou espichada na cama com olhos abertos, contemplando o céu escuro além da janela escancarada, ouvindo o murmúrio do mar, sentindo as batidas de seu coração; mentalmente, repassou cada palavra que ele havia dito durante as últimas horas.
Richard Lomax foi fiel à sua promessa. Nas semanas seguintes, ele ia e vinha, e suas chegadas ao acaso, inesperadas e sem anunciar, logo se tornaram inteiramente uma certeza para os ocupantes de Carn Cottage. Inclinado à melancolia, no início de outro longo inverno preso em casa, Lawrence alegrava-se assim que ouvia a voz de Richard. Doris já decidira que ele era encantador, e o fato de ele estar sempre disposto a jogar futebol com seus filhos ou ajudá-los a consertar as bicicletas, em nada esfriava seu entusiasmo. Ronald e Clark, a princípio um tanto acanhados diante de tão respeitável figura, logo perderam todas as inibições, chamavam-no pelo primeiro nome e faziam perguntas intermináveis sobre em quantas batalhas tomara parte, se já saltara de pára-quedas de um avião e quantos alemães tinha abatido. Ernie gostava dele por achá-lo despretensioso, sempre disposto a sujar as mãos e, sem lhe pedirem, serrar, cortar e empilhar uma gigantesca montanha de toras para o fogo. Até Nancy finalmente entregou os pontos e, certo entardecer, quando Doris havia saído e Penelope se ocupava da cozinha, permitiu que Richard a levasse para o andar de cima e lhe desse um banho.
Para Penelope, aquela foi uma época extraordinária – uma época de redespertar, como se, até onde pudesse recordar, tivesse estado viva apenas a meio. Agora, dia a dia, sua visão interior clareava, e suas percepções eram aguçadas por uma nova conscientização. Uma manifestação disto era o súbito significado das canções populares. Na cozinha de Carn Cottage havia um rádio que raramente ficava desligado, porque Doris apreciava sua companhia. Colocado a um canto do aparador, ele irradiava Workers Playtime, a hora de lazer do trabalhador, tornava públicos boletins noticiosos, falava e cantava para si mesmo, para o mundo inteiro ouvir, como algum parente lunático, ouvido, mas não seguido. Uma manhã, no
entanto, enquanto descascava cenouras na pia, Penelope ouviu Judy Garland cantar.
Parece que antes já nos falamos assim,
Que então, do mesmo jeito, olhamos um para o outro,
Mas não sei recordar onde nem quando.
As roupas que estás usando são aquelas que usavas,
O sorriso que sorris, então sorrias também...
Doris irrompeu na cozinha.
- O que há de errado com você?
- Hum?
- Parada aí diante da pia, com uma faca na mão e uma cenoura na outra, espiando pela janela... Está se sentindo bem?
Havia outros exemplos, menos banais, de sua acentuada sensibilidade. A perspectiva mais rotineira a fazia parar e ficar olhando fixamente. As últimas folhas caíram das árvores, e os galhos nus formaram rendilhados contra o céu pálido. O sol, depois da chuva, tomava as ruas lajeadas azuis como escamas de peixe, ofuscando a vista. Os ventos de outono, fustigando a baía em um torvelinho de ondas coroadas de espuma branca, traziam com eles não o frio, mas um crescente senso de vitalidade. Ela se sentia impregnada de energia física, atirava-se a tarefas que levara meses adiando, polia talheres e pratas, trabalhava no jardim e, nos fins de semana, reunia as crianças e as levava em caminhadas homéricas, subindo à charneca e descendo até os penhascos além da Praia do Norte. O melhor, porém, e talvez mais estranho de tudo, era que não mergulhava em ansiosa especulação se Richard não aparecia durante vários dias. Penelope sabia que cedo ou tarde ele estaria lá, trazendo consigo a mesma aura de proximidade e familiaridade que percebera tão instantaneamente, na ocasião da primeira visita dele. Então, quando ele chegava, era como uma dádiva maravilhosa, um bônus de alegria.
Tentando analisar, encontrar um motivo para sua tranqüila aceitação da situação, ela descobriu que nada havia de efêmero, fosse em seu relacionamento com Richard Lomax ou na rara e nova qualidade de seus dias. Pelo contrário sentia - se cônscia apenas de uma espécie de intemporalidade, como se aquilo tudo fizesse parte de um plano, de um desígnio predestinado, concebido no dia de seu nascimento. O que lhe acontecia agora estava predeterminado para acontecer, ia continuar acontecendo. Sem qualquer início discernível, parecia impossível que um dia tivesse fim.
- ...havia um dia, em meados de cada verão, chamado Dia da Visitação. Todos os artistas limpavam seus estúdios... e alguns deles precisavam realmente de uma limpeza em regra... e expunham seu trabalho e suas telas inacabadas. Então surgia o público em geral, visitando, indo de um estúdio para outro, inspecionando, às vezes comprando. Claro que alguns visitantes simplesmente faziam aquela ronda por curiosidade... era como se bisbilhotassem casas alheias... porém também surgiam muitos compradores autênticos. Como falei, alguns estúdios eram encardidos e básicos, mesmo naquele tempo, mas Sophie sempre fazia uma tremenda faxina da primavera no de papai, enchia-o de flores, distribuía biscoitos amanteigados e copos de vinho aos visitantes. Ela dizia que uma gentileza ajudava nas vendas...
Estavam agora em fins de outubro, era domingo, a tarde mal começara. Em suas visitas esporádicas a Carn Cottage, Richard insistira várias vezes no desejo de visitar o estúdio de Lawrence Stern mas, fosse como fosse, não surgira ainda a oportunidade para tanto. Neste domingo, contudo, ele estava de folga e, impulsivamente, Penelope abandonou outros planos, a fim de levá-lo ao estúdio. Agora, estavam indo para lá, caminhando como sempre e, no bolso de seu cardigã, pesava a grande e antiga chave da porta.
O tempo era frio e fresco, o vento oeste soprava rajadas ensolaradas e sombras através do mar, as nuvens baixas se formavam e dispersavam-se, revelando vislumbres de um céu muito azul. A rua do porto estava quase deserta, os poucos veranistas há muito tendo partido. Todas as lojas tinham as portas fechadas, e os moradores, sendo metodistas que guardavam o sétimo dia, ficavam entregues a si mesmos, dormindo após os ajantarados domingueiros ou talvez cuidando de jardins escondidos.
- Ainda há telas de seu pai no estúdio?
- Céus, não! Bem, talvez apenas alguns esboços ou telas inacabadas, nada mais. Quando trabalhava, ele gostava se vendia tudo quanto produzia, às vezes com a tinta ainda secando. Era o nosso sustento, compreenda. Ele vendeu tudo, exceto “Os catadores de conchas”. Este jamais foi exposto. Por algum motivo, era um quadro muito pessoal, que ele nunca pensou em vender.
Eles haviam saído da rua do porto e agora subiam para o confuso labirinto de ruelas e aléias que ficava mais além.
- Fiz este mesmo trajeto - prosseguiu ela - no dia em que foi declarada a guerra. Vinha buscar papai, levá-lo para almoçar em casa. Quando o relógio da igreja bateu onze horas, todas as gaivotas encarapitadas na torre debandaram, voando pelo céu.
Eles dobraram a última esquina, e a Praia do Norte revelou-se. Como sempre, a força do vento chegou como um choque, fazendo com que vacilassem um segundo, recuperando o fôlego, antes de continuar descendo pela sinuosa alameda que levava ao estúdio.
Penelope enfiou a chave na porta maciça e a girou. A porta se abriu, ela entrou e foi imediatamente tomada de vergonha, porque há meses não estivera ali, e o enorme recinto ventilado apresentava uma imediata impressão de desmazelo e negligência. O ar era frio, mas, mesmo assim, confinado; tudo cheirava a terebintina, fumaça de lenha, alcatrão e mofo. A fria claridade do norte, penetrando em jorros pelas janelas altas, retratava em cruéis detalhes a dilapidação e a desordem gerais.
Atrás dela, Richard fechou a porta.
- Que confusão! - suspirou ela, desanimada. - E está úmido aqui dentro...
Cruzou o piso, puxou o fecho da janela e, com alguma dificuldade, forçou-a a abrir-se. O vento penetrou como uma inundação de água gelada. Ela viu a praia deserta, a maré muito baixa, a linha das ondas, esfumando-se em nevoenta espuma.
Richard chegou ao seu lado. Disse, com certa satisfação:
- “Os catadores de conchas...”
- Exatamente. Foi pintado desta janela. - Ela se virou, para supervisionar o ambiente do estúdio. - Sophie teria um ataque, se visse o estúdio de papai desse jeito!
O piso, assim como cada superfície horizontal, estava cobertos por uma fina camada de areia. Sobre uma mesa havia uma pilha de revistas muito manuseadas, um cinzeiro por esvaziar, uma toalha de banho esquecida. A cortina de veludo, que fazia fundo para a cadeira do modelo, estava desbotada e empoeirada. Na lareira diante da estufa bojuda e antiquada amontoava-se uma boa quantidade de cinzas. Mais além, dois divãs estavam dispostos no ângulo da parede, cobertos de mantas listradas e salpicados de almofadas. Estas, no entanto, estavam flácidas, e um camundongo aventureiro estivera em uma delas, tendo feito um buraco no canto e deixado uma trilha de recheio.
Mal sabendo por onde começar. Penelope tentou remediar um pouco a situação. Encontrou um velho saco de papel, dentro do qual esvaziou a almofada furada e o conteúdo do cinzeiro. Colocou o saco a um lado, para mais tarde ser depositado na lata de lixo mais próxima. Jogou as outras almofadas ao chão desnudou os divãs e levou as mantas até a janela aberta, onde foram vigorosamente sacudidas no ar fresco e frio. Excrementos de camundongos e pedacinhos de recheio foram levados pelo vento. Depois que mantas e almofadas - estas sacudidas e afofadas - foram recolocadas, o ambiente logo pareceu ficar um pouco melhor.
Enquanto isso e aparentemente pouco ligando para a desordem, Richard vistoriava, espiava tudo, fascinado pelas pistas e indicadores da vida inteira de outro homem, eventos dignos de serem recordados e objets trouvés, dos quais ali havia uma profusão. Conchas, seixos marinhos e pedaços de madeira trazidos pelo mar, colecionados e preservados por sua cor e formato; fotografias pregadas com percevejos às paredes; o molde em gesso de uma mão; uma caneca de cerâmica cheia de penas de aves marinhas e relvas secas, frágeis como poeira. Os cavaletes de Lawrence, montes de telas e cadernos de esboços, mostrando as marcas do tempo; as bandejas de tubos de tinta com o conteúdo ressequido; as velhas paletas e potes repletos de pincéis, manchados com o vermelhão, ocre, cobalto e siena queimada que ele adorava usar.
- Há quanto tempo seu pai deixou de trabalhar?
- Oh, anos...
- No entanto, tudo isto continua aqui!
- Ele jamais atiraria alguma coisa fora, e eu não teria coragem para isso.
Richard parou diante da estufa bojuda.
- Por que não acendermos o fogo? Isto ajudaria a secar o lugar, não acha?
- Sem dúvida, mas não tenho fósforos.
- Eu tenho.
Ele se agachou, abriu cautelosamente as portas da estufa e espalhou as cinzas da lareira, com a extremidade de um atiçador.
- Há um bocado de papel de jornal aqui - anunciou – além de alguns gravetos e madeira recolhida na praia.
- E se alguma gralha fez ninho na chaminé?
- Se fez, logo saberemos.
Endireitando-se, ele tirou a boina verde, jogou-a para um lado e desabotoou o blusão de campanha. Enrolando as mangas, meteu mãos à obra.
Enquanto Richard limpava as cinzas e fazia pequenas torcidas com retalhos de jornal, Penelope desencavou uma vassoura de trás de uma pilha de pranchas de natação e começou a varrer a areia das mesas e pisos. Encontrou uma folha de papelão, recolheu a areia nela e esvaziou tudo pela janela. A praia não estava mais deserta. À distância, brotando de algum lugar, surgiram duas figuras diminutas. Um homem e uma mulher, acompanhados de um cão. O homem atirava um pedaço de pau, e o cão corria nas ondas para recuperá-lo. Ela estremeceu. O ar estava frio. Fechou metade da janela e aferrolhou-a. Nada mais havendo para ser feito, enrodilhou-se no canto do divã, como fazia em criança, no sonolento final de um longo e ensolarado dia de natação e brincadeira recostada ao lado de Sophie para ler um livro ou ouvir uma história.
Agora, espiava Richard, e havia aquela mesma sensação de paz e segurança. De algum modo, ele conseguiu acender o fogo. Gravetos estalaram e crepitaram. Uma chama brotou. Ele a alimentou com um pouco de madeira, cautelosamente. Ela sorriu, porque ele lhe parecia tão concentrado como um colegial, acendendo uma fogueira de acampamento. Erguendo os olhos ele notou o sorriso.
- Você já foi escoteiro? - perguntou ela.
- Fui. Aprendi a dar nós e fazer uma padiola, usando dois pedaços compridos de madeira e uma capa de chuva.
Ajeitou na lareira um ou dois troncos, e a madeira ressequida imediatamente pegou fogo. Ele fechou as portas da estufa, ajustou o registro da chaminé e se levantou, limpando as mãos nos fundilhos da calça.
- Pronto, está aceso!
- Se tivéssemos um pouco de chá e leite, poderíamos ferver uma chaleira, para uma xícara quente de chá.
- É como dizer que, se tivéssemos bacon, poderíamos preparar bacon com ovos, se tivéssemos ovos. - Puxando uma banqueta, ele se sentou diante dela. Havia uma mancha de fuligem em sua face direita, porém Penelope não lhe falou sobre isso. -É o que vocês costumavam fazer? Preparavam chá aqui?
- Sim, depois de nadarmos. Não há nada melhor, quando se está com o corpo enregelado e tiritando. Aliás, sempre havia biscoitos de gengibre para molhar no chá. Em alguns anos, quando havia temporais durante o inverno, a areia chegava até a janela, em dunas enormes. Em outros anos, no entanto, era como hoje, uma descida de seis metros, obrigando-nos a usar uma escada de corda para chegar à praia. - Ela rearranjou as pernas, acomodou-se mais confortavelmente entre as almofadas. - Nada como a nostalgia... Sou como uma velha, não? Pareço falar o tempo todo sobre como eram as coisas. Você deve achar isso extremamente tedioso.
- Nada é tedioso, de maneira alguma. Às vezes, no entanto, fico com a impressão de que sua vida terminou no dia em que estourou a guerra. E isso está errado, porque você é muito jovem.
- Estou com vinte e quatro anos. - Ela emendou: - Recém-feitos.
Ele sorriu.
- Quando foi o seu aniversário?
- O mês passado. Você não estava lá.
- Setembro. - Ele pensou nisto por um momento, depois assentiu, com ar satisfeito. - Sim. Tem razão. Isso se ajusta.
- O que quer dizer?
- Já leu Louis MacNeice?
- Nunca ouvi falar nele.
- É um poeta irlandês. O melhor. Vou apresentá-lo agora a você, recitando de cor e, provavelmente, deixando-a muito embaraçada.
- Não fico embaraçada com facilidade.
Ele riu. Sem mais rodeios, começou:
"Setembro chegou, e é dela,
Cuja vitalidade salta para o outono,
Cuja natureza prefere
Árvores sem folhas e um fogo na lareira.
Assim, eu lhe dei este mês e o seguinte,
Embora meu ano inteiro devesse ser dela, que já tornou
Intoleráveis ou perplexos tantos de seus dias,
Mas tantos tão felizes.
Ela que deixou um perfume em minha vida,
Que deixou minhas paredes sempre dançando com sua sombra,
Cujos cabelos se entrançam nas minhas cataratas
E toda Londres, alastrada de beijos recordados.”“.
Um poema de amor. Inesperadamente, um poema de amor. Ela não ficou embaraçada, mas profundamente comovida. As palavras ditas na voz tranqüila de Richard, despertaram um jorro de emoções, mas também de tristeza. E toda Londres, alastrada de beijos recordados. Ela pensou em Ambrose e na noite em que tinham ido ao teatro, jantado fora e retornado à casa da Rua Oakley. Entretanto, as recordações eram insossas e descoloridas, em nada espicaçavam seus sentidos, como tinham feito as palavras do poema. Enfim, para dizer-se o mínimo, isso era algo deprimente.
- Penelope.
- Hum...?
- Por que nunca fala em seu marido?
Ela ergueu o rosto bruscamente, por um terrível instante imaginando que estivera pensando alto.
- Você quer que eu fale sobre ele?
- Não particularmente. No entanto, seria natural. Conheço vocês... deixe-me ver... há quase dois meses e, durante todo esse tempo, você nunca falou nele espontaneamente e nem mencionou seu nome. Digo o mesmo sobre seu pai. Sempre que nos aproximamos do assunto, mesmo remotamente, a conversa muda de rumo.
- O motivo é muito simples. Ambrose o aborrece. Ambrose também aborrecia Sophie. Eles nada tinham em comum. Nada para dizer um ao outro.
- E você?
Ela soube que teria de ser sincera não apenas com Richard, mas também consigo mesma.
- Não falo nele porque é algo de que não me sinto muito orgulhosa. Não me saí muito bem nisso.
- Seja o que quer que isto signifique, acha que eu pensaria mal de você?
- Oh, Richard, não tenho a menor idéia do que você pensaria!
- Experimente.
Ela deu de ombros, como se não encontrasse palavras.
- Casei com ele.
- Você o amava?
Mais uma vez, ela se forçou a ser verdadeira.
- Não sei. Entretanto, ele era atraente e gentil, foi o primeiro amigo que fiz após meu alistamento e ao ser enviada para Whale Island. Nunca havia tido um... - Ela hesitou, buscando a palavra correta, porém o que mais dizer, exceto namorado? - Eu nunca havia tido um namorado antes, qualquer tipo de relacionamento com um homem de minha idade. Ele era uma boa companhia, gostava de mim, tudo era novo e diferente.
- Isso foi tudo?
Richard não parecia nem um pouco perplexo, após esta explanação tão truncada.
- Não. Houve outro motivo. Fiquei grávida de Nancy. – Ela forçou um sorriso. - Isso o deixa chocado?
- Pelo amor de Deus, não me chocou em absoluto!
- Você pareceu chocado.
- Apenas porque, de fato, você casou com o homem.
- Eu não precisava casar com ele. - Era importante assegurar-lhe isto pois, do contrário, Richard estaria representando Lawrence com uma arma e Sophie em lágrimas de recriminação. - Papai e Sophie jamais fizeram questão disso. Eles eram as almas livres originais. As convenções sociais normais nada representavam para eles. Eu estava de folga, quando lhes contei sobre a vinda do bebê. Em circunstâncias normais, poderia simplesmente ficar em casa e ter Nancy, sem que Ambrose tomasse qualquer conhecimento do fato. No entanto, eu continuava nas Wrens, Minha folga terminou e precisei voltar a Portsmouth e, naturalmente, tinha de ver Ambrose de novo. Tive que falar a ele sobre o bebê. Era a atitude mais justa. Disse-lhe que não tinha qualquer obrigação de casar comigo... mas... - Ela hesitou, achando impossível recordar exatamente o que acontecera. - Na verdade... após acostumado à idéia, ele pareceu pensar que nos devíamos casar. Confesso que fiquei emocionada, porque não esperara dele semelhante decisão. Assim, uma vez decididos, não havia tempo a perder, porque ele já terminara seus cursos e estava prestes a ser enviado ao mar. Marcamos a data, e foi só. O Cartório de Registros em Chelsea, em uma bela manhã de maio.
- Seus pais já o tinham conhecido?
- Não, e tampouco foram ao casamento, porque papai adoeceu com bronquite. Assim, só o ficaram conhecendo meses mais tarde, quando ele teve uma folga de fim de semana e veio a Carn Cottage. E, no momento em que entrou em casa, percebi que estava tudo errado. Aquele havia sido o mais terrível, mais horrível erro. Ele não pertencia a nós. Não pertencia a mim. E eu me portei pessimamente com ele. Estava enorme com a gravidez, entediada e irritável. Nem mesmo procurei tomar a permanência dele agradável. Isto é algo de que me envergonho. Fiquei envergonhada, porque sempre me considerei madura e inteligente, mas acabara tomando a decisão mais tola que uma mulher poderia tomar.
- Refere-se ao casamento?
- Exato. Admita, Richard, você jamais faria algo tão tolo!
- Não tenha tanta certeza. Estive bem perto disso três ou quatro vezes, mas, no último momento, o bom-senso sempre me fez ver claro.
- Então, sabia que não estava apaixonado que um casamento não era o certo para você?
- Em parte. Também em parte porque, nestes últimos dez anos, eu já sabia que esta guerra se aproximava. Estou com trinta e dois anos agora. Tinha vinte e dois, quando Hitler e o Partido Nazista entraram em cena. Tive um grande amigo na Universidade, Claus von Reidorp. Era bolsista em Oxford e aluno brilhante. Não era judeu, mas membro de uma das antigas famílias germânicas. Conversávamos muito sobre o que estava acontecendo em sua pátria, já então, ele tinha lúgubres pressentimentos. Certo verão fui à Áustria fazer alpinismo no Tirol e pude sentir a temperatura pessoalmente, ver a escrita na parede. Seus amigos, os Clifford, não foram os únicos a perceber que teríamos tempos horrendos pela frente.
- O que aconteceu a seu amigo?
- Não sei. Ele voltou para a Alemanha. Durante algum tempo, trocamos correspondência, mas depois as cartas cessaram. Ele simplesmente desapareceu de minha vida. A esta altura, imagino que certamente esteja morto.
- Odeio esta guerra - disse ela. - Odeio-a tanto quanto qualquer um. Quero vê-la terminada, para que cessem as matanças, os bombardeios e as batalhas. No entanto, receio também o seu fim. Papai está cada vez mais idoso, não terá vida para muito tempo. Sem ele para cuidar e sem uma guerra, não terei alternativa senão voltar para meu marido. Vejo-me vivendo, juntamente com Nancy, em alguma horrível casinha em Alverstoke ou Keyham, uma perspectiva que me enche de terror.
A admissão fora feita. As palavras ficaram suspensas no silêncio entre eles. Penelope suspeitou de desaprovação e, mais do que tudo, precisava de reafirmação. Um tanto angustiada, virou-se para ele.
- Você me odeia por ser tão egoísta?
-Não. - Inclinando-se para diante, Richard pousou a mão na palma dela, virada para cima sobre a manta listrada. - É exatamente o contrário.
A mão de Penelope estava gelada, mas o toque da dele era quente. Fechou os dedos em torno do pulso de Richard, necessitando daquele calor, desejando que se espraiasse a cada parte de seu ser. Instintivamente, ergueu a mão dele e a pressionou contra o rosto. Então os dois falaram, precisamente no mesmo momento:
- Amo você.
Ela ergueu o rosto, fitou-o nos olhos. Havia sido dito. Havia sido feito. Jamais poderia ser desdito ou desfeito.
- Oh, Richard!
- Amo você - repetiu ele. - Acho que a amei desde o primeiro momento em que a vi, parada com seu pai no outro lado da rua, com seus cabelos esvoaçando ao vento, parecendo alguma cigana fascinante.
- Eu não sabia... Sinceramente, não sabia...
- Desde o começo sabia que era casada, porém isto não fazia a menor diferença. Eu não conseguia tirá-la do pensamento. Aliás, nem mesmo tentei. E quando me convidou para ir a Carn Cottage, pensei que fosse por causa de seu pai, porque ele apreciava minha companhia e os jogos de gamão. Então fui, depois voltei a vê-lo, naturalmente, mas também porque, estando com ele, sabia que você andaria por perto. Cercada de crianças e incessantemente ocupada, mas ali, nada mais importava.
- Para mim, também nada mais importava. Nem tentei analisar o que acontecia. Sabia apenas que tudo mudava de cor, quando você atravessava aquela porta. Era como se sempre o tivesse conhecido. Como se o melhor de tudo, no passado e no futuro, estivesse acontecendo ao mesmo tempo. Entretanto, não ousava chamar a isto de amor...
Richard agora estava ao lado dela, não mais a um metro de distância, mas bem junto, abraçando-a, mantendo-a tão apertada contra si, que ela podia ouvir-lhe as batidas fortes do coração. Penelope apertava o rosto contra o ombro dele, sentia os dedos que se introduziam e envolviam-se em seus cabelos.
- Oh, minha querida, minha garotinha querida...
Ela afastou o rosto, ergueu os olhos para ele e se beijaram, como apaixonados que haviam levado anos separados. E era como voltar para casa, ouvir uma porta sendo fechada e saber-se em segurança com o mundo intruso fechado lá fora e nada, ninguém intrometendo-se entre ela e a única pessoa no mundo com quem desejaria estar. Penelope se deitou de costas, os cabelos escuros espalhados sobre as velhas e desbotadas almofadas.
- Oh, Richard... - Era um sussurro, porque não se sentia capaz de mais do que isso. - Eu nunca soube... nunca imaginei que pudesse sentir-me assim... que pudesse ser assim...
Ele sorriu.
- Pode ser ainda melhor.
Olhando-o de frente, ela soube o que ele dizia como soube que nada mais desejava. Começou a rir, e a boca de Richard desceu sobre seus lábios ainda entreabertos no riso, e as palavras, por mais doces que fossem, imediatamente se tornaram inúteis e não mais suficientes.
O velho estúdio não desconhecia o amor. A estufa bojuda. ardendo bravamente. confortou-os com seu calor; o vento que penetrava em haustos pelas janelas abertas a meio já vira tudo aquilo antes. Os divãs cobertos de mantas, onde um dia Lawrence e Sophie haviam partilhado sua mútua alegria, acolheram este novo amor como cúmplices generosos. E mais tarde na profunda paz da paixão saciada, tudo foi tranqüilidade, e eles ficaram quietos, nos braços um do outro, olhando as nuvens que rolavam através do céu e ouvindo o estrondo imemorial das ondas quebrando na praia vazia.
- O que irá acontecer? - perguntou ela.
- O que quer dizer?
- O que faremos?
- Continuaremos a nos amar.
- Não quero voltar. Para coisas como eram antes.
- Nunca faremos isso!
- Oh, mas teremos que fazer! Não podemos fugir à realidade! No entanto, quero que haja um amanhã, outro amanhã e outro, quero saber que em todos esses amanhãs posso passar cada hora de minha vida com você.
- Eu também quero isso. - A voz dele era tristonha. - Entretanto, não pode ser.
- Esta guerra! Como a odeio!
- Talvez devêssemos ser gratos. Foi o que nos uniu.
- Oh, não! Nós nos encontraríamos. De algum modo. Em algum lugar. Estava escrito nas estrelas. No dia em que nasci, algum funcionário civil celeste pôs um carimbo em você, com meu nome nele, em grandes letras maiúsculas. Este homem está reservado para Penelope Stern!
- Exceto que, no dia em que você nasceu, eu não era um homem. Era um menino colegial, lutando com as obscuras dificuldades de minha gramática latina.
- Não faz diferença. Mesmo assim, éramos um do outro. Você sempre esteve lá.
- Sim, eu sempre estive lá... - Ele a beijou então, depois ergueu o punho com relutância, para consultar o relógio. - São quase cinco horas...
- Odeio a guerra, mas também odeio relógios.
- Infelizmente, minha querida, não podemos ficar aqui para sempre.
- Quando tomarei a vê-lo?
- Vai demorar um pouco. Terei de ausentar-me.
- Por quanto tempo?
- Três semanas. Eu não devia contar, portanto, não diga uma palavra a ninguém.
Ela ficou alarmada.
- Oh, e para onde é que vai?
- Não posso dizer...
- O que irá fazer? É perigoso?
Ele riu.
- Não, sua tolinha, claro que não é perigoso. Trata-se de um exercício de treinamento... parte de meu trabalho. Portanto, chega de perguntas.
- Fico aterrada, pensando que pode acontecer algo a você.
- Nada irá acontecer comigo.
- Quando voltará?
- Em meados de novembro.
- Nancy aniversaria em fins de novembro. Fará três anos.
- Até lá, já estarei de volta.
Ela pensou nisso.
- Três semanas! - suspirou. - Parece uma eternidade...
"A ausência é o vento que apaga a pequenina vela, mas que atiça as brasas, transformando-as em esplêndida fogueira."
- Ainda assim, eu preferiria dispensá-la.
- Acha que irá ajudá-la a recordar quanto a amo?
- Sim. Um pouco.
O inverno estava em cima deles. Cortantes ventos do leste fustigavam a zona rural e gemiam através da charneca. Turbulento e enfurecido, o mar adquiria uma tonalidade de chumbo. Casas, ruas, o próprio céu estavam desbotados pelo frio. Em Carn Cottage, as lareiras eram acesas assim que amanhecia e acesas permaneciam o dia inteiro, alimentadas por pequenas rações de carvão e tudo o mais que houvesse para queimar. Os dias ficavam mais curtos e, com as cortinas de black-out já fechadas à hora do chá, as noites alongavam-se. Penelope retomou a seu poncho e às grossas meias pretas. Levar Nancy para as caminhadas à tarde implicava um enorme envolvimento da criança em suéteres de lã, meias compridas, bonés e luvas.
Com os velhos ossos enregelados, Lawrence aquecia as mãos no fogo e ficava inquieto, rabugento. Estava entediado.
- Para onde foi Richard Lomax? Há três semanas ou mais que ele não aparece!
- Três semanas e quatro dias, papai - disse Penelope, que começara a contar o tempo.
- Antes, ele nunca ficou tanto tempo sem vir!
- Ele ainda virá jogar gamão com você.
- O que terá feito de si mesmo?
- Não consigo imaginar.
Mais outra semana passou, sem qualquer sinal dele. A despeito de si mesma, Penelope começou a se preocupar. Talvez ele nunca mais voltasse. Talvez algum almirante ou general, comodamente refestelado em seu gabinete, decidisse que Richard deveria incumbir-se de outras coisas e o designara para longe, para o norte da Escócia. Então, ela jamais tornaria a vê-lo. Ele não escrevera, mas talvez não lhe fosse permitido. Ou então... e isto era quase inconcebível...com a Segunda Frente assomando no futuro, o tivessem despejado de pára-quedas na Noruega ou Holanda, como observador avançado, a fim de aplainar o caminho para as tropas Aliadas... Sua imaginação ansiosa, atormentada, não quis aceitar tal perspectiva.
O aniversário de Nancy estava iminente, o que era uma boa coisa, porque dava a Penelope algo mais em que pensar. Ela e Doris planejavam uma festinha. Convites para o chá foram enviados a dez amiguinhas. Cupons de racionamento para alimentos foram esbanjados em biscoitos de chocolate e, com alguns gramas economizados de manteiga e margarina, Penelope fez um bolo.
Nancy já tinha amadurecimento suficiente para ansiar por seu aniversário; pela primeira vez em sua curta vida, entendia o motivo de toda aquela movimentação. Também havia os presentes. Após o desjejum, sentou-se no tapete diante da lareira da sala de estar e abriu seus embrulhos, contemplada com certo divertimento pela mãe e pelo avô e, adorativamente, por Doris. Não foi desapontada. Penelope deu-lhe uma boneca nova, e Doris, roupas para a boneca, amorosamente confeccionadas com retalhos de tecido e pedaços de lã para tricotar. Havia um rústico carrinho de mão em madeira, de parte de Ernie Penberth, e um jogo de quebra-cabeças dado por Ronald e Clark. Sempre vigilante por sinais de talento herdado, Lawrence comprara para a neta uma caixa de lápis de cor. Entretanto, o melhor presente de Nancy foi enviado por sua avó, Dolly Keeling. Era uma grande caixa a ser aberta, camadas e camadas de papel de seda a serem rasgadas e, finalmente, um vestido novo. Um vestido de festa. Camadas de organdi branco, arrematadas com renda e sombreadas em seda rosa. Nada poderia deixar Nancy mais encantada.
Largando a um lado os outros presentes, "quero vestir ele agora", conforme anunciou, ali mesmo começou a esforçar-se para despir seu macacão.
- Não, é um vestido de festa! Poderá vesti-lo esta tarde, para a sua festa. Veja, aqui está sua boneca, vista-a com suas roupinhas novas. Olhe o vestido de festa que Doris fez para ela. Também tem uma anágua com rendinhas...
Mais tarde, nessa manhã, Penelope disse ao pai:
- Vai ter que sair da sala de estar, papai. Faremos a festa aqui e precisamos de espaço para as brincadeiras.
Ela empurrara a mesa para um canto da sala.
- E para onde irei? O depósito de carvão?
- Nada disso. Doris acendeu o fogo do estúdio. Você pode ficar lá, tranqüilo e sem ser perturbado. Nancy não quer homens à vista. Deixou isto bem claro. Até Ronald e Clark ficarão fora do caminho. Os dois vão tomar chá com a Sra. Penberth.
- Não tenho permissão para vir comer um pedaço de bolo?
- E claro que tem! Não vamos permitir que Nancy fique mandona demais.
As pequenas convidadas chegaram às quatro horas, conduzidas até a porta da frente por mães ou avós. Durante uma extenuante hora e meia, Penelope e Doris foram as únicas tomando conta do bando. A festa seguiu os padrões costumeiros. Todas haviam trazido pequenos presentes para Nancy, os quais tinham de ser abertos. Uma menina chorou, dizendo que queria voltar para casa, e uma outra, uma imperiosa senhorita de cabelos encaracolados, perguntou se ia haver um mágico. Penelope respondeu, decididamente, que não haveria.
Chegou o momento dos jogos. Sentadas de pernas cruzadas, formando um círculo no chão da sala de estar, as menininhas cantaram em coro:
“Mandei uma carta”.
Pro meu namorado,
E no meio do caminho
Ela me caiu no chão...”“.
Uma das pequeninas convidadas, talvez superexcitada, terminou molhando os fundilhos das calças compridas e teve que ser levada ao andar de cima, para vestir outras de empréstimo.
“O fazendeiro tá no seu canto”,
O fazendeiro tá no seu canto,
Oh, que pena, papaizinho,
O fazendeiro tá no seu canto!”“.
Já exausta, Penelope olhou para o relógio, mal acreditando que eram apenas quatro e meia. Ainda teria que sobreviver por uma hora, antes que mamães e vovós reaparecessem para reclamar suas queridinhas e levá-las para casa.
Brincaram depois de "passar o embrulho". Tudo foi muito bem, até que a tiranazinha encaracolada acusou Nancy de lhe ter tomado o embrulho, quando era a sua vez de abrir o papel. Nancy objetou, tendo recebido da encaracolada um sopapo em cima do ouvido, o qual foi prontamente revidado. Penelope em seguida procurou ajeitar a situação e separou as duas diplomaticamente. Doris surgiu à porta, anunciando que o chá estava pronto. Nenhuma comunicação seria mais bem-vinda.
As brincadeiras foram alegremente abandonadas e precipitaram-se todas para a sala de refeições, onde Lawrence já estava sentado em sua cadeira de encosto lavrado, à cabeceira da mesa. Puxadas as cortinas, a claridade do dia penetrou e tudo ficou festivo. Por um momento, as crianças mantiveram-se silenciosas, talvez atemorizadas pela visão do velho, sentado ali como um patriarca, ou ante a perspectiva de comer. Ficaram espiando para a toalha branca engomada, as reluzentes canecas e pratos, os canudinhos para a limonada e as balas de estalo.(*) O festim incluía gelatinas e sanduíches, biscoitos glaçados ou com recheio de geléia, além do bolo, naturalmente. Acomodaram-se todas à volta da mesa e, por um longo momento, houve profundo silêncio, interrompido apenas pelo som de mastigação. Aconteceram acidentes, como era de prever: sanduíches derrubados no carpete e uma caneca de limonada que tombou, molhando a toalha da mesa, mas tudo rotineiro, rapidamente consertado. Então, as balas de estalo foram puxadas, chapéus de papel desdobrados e enfiados nas cabeças, alegres broches e quinquilharias presos às roupas. Finalmente, Penelope acendeu as três velas do bolo e Doris apagou a luz do teto. A sala em penumbra transformou-se em uma espécie de palco, um lugar mágico, as chamas das velas refletidas nos arregalados olhos das crianças à volta da mesa.
(*) Balas embrulhadas em papel vivamente colorido, que explodem inofensivamente, quando as pontas são puxadas. (N. da T.)
No lugar de honra ao lado do avô, Nancy ficou em pé em sua cadeira, e ele ajudou a cortar o bolo.
“Parabéns pra você...
Parabéns pra você!
Parabéns pra Nancy...
A porta se abriu, e Richard entrou.
- Eu não conseguia acreditar! Quando você apareceu, pensei que estivesse vendo coisas. Não acreditava que fosse verdade. – Ele parecia mais magro, mais velho, morto de cansaço. Precisava fazer a barba, seu uniforme de campanha estava sujo e amarrotado. - Por onde foi que andou?
- Pelos confins do além...
- Quando foi que voltou?
- Há cerca de uma hora.
- Você parece exausto.
- E estou - admitiu ele - mas havia prometido estar aqui para o aniversário de Nancy.
- Seu tolo! Isso não tinha importância! Você agora devia estar na cama.
Estavam sozinhos. As pequeninas visitantes de Nancy já tinham ido embora, cada uma levando um balão de gás e um pirulito. Doris levara a menina para cima, a fim de lhe dar um banho. Lawrence sugerira uma dose de uísque e fora em busca da garrafa. A sala de estar continuava em desordem, com os móveis fora do lugar, mas eles se sentaram em meio a tudo aquilo, despreocupadamente. Richard arriado em uma cadeira de braços e Penelope no tapete da lareira, aos pés dele.
- Todo o exercício demorou mais tempo... foi mais complicado do que... tínhamos imaginado. Nem pude escrever-lhe uma carta.
- Foi o que pensei.
Houve silêncio. Ao calor do fogo, as pálpebras dele caíram. Lutando contra o sono, ele se sentou ereto, esfregou os olhos, correu a mão pelo queixo com a barba despontando.
- Devo estar parecendo um destroço. Não fiz a barba e não durmo há três noites. Estou absolutamente incapaz, neste momento. O que é uma pena, pois planejara sairmos juntos e tê-la para mim pelo resto do anoitecer, com esperanças de que fosse também pelo resto da noite. Enfim, agora não me sinto em condições para isso. Estou imprestável. Cairia dormindo no meio da sopa. Você se importa? Pode esperar?
- Naturalmente! Nada mais importa agora, desde que você está de volta, são e salvo outra vez. Tive visões aterrorizantes, vendo-o praticar temeridades e sendo morto ou capturado.
- Você me superestima.
- Quando você partiu, tive a sensação de que era para sempre, mas agora que voltou, que posso vê-lo e tocá-lo... é como se nunca tivesse partido. Aliás, não fui eu apenas a sentir sua falta. Papai também, ansiando por seu gamão.
- Voltarei qualquer anoitecer e jogaremos uma partida. - Inclinando-se para a frente, ele lhe tomou o rosto nas mãos. Disse: - Você está tão sedutoramente bela como eu a recordava. – Seus olhos fatigados se franziram, divertidos. - Talvez ainda mais.
- O que há de tão engraçado?
- Você. Esqueceu que está usando um chapéu de papel inteiramente deslocado neste momento?
Ele demorou apenas mais um pouco, o suficiente para beber o uísque que Lawrence lhe trouxera. Depois disso, a exaustão foi mais forte e, contendo bocejos, ele se forçou a ficar em pé, desculpou-se por ser tão má companhia e disse boa-noite. Penelope o acompanhou à porta. Na escuridão além da porta aberta, eles se beijaram. Depois ele a deixou, atravessou o jardim e tornou para uma ducha quente, seu beliche e o sono.
Ela entrou, fechando a porta. Vacilou um momento, precisando de tempo para ordenar os pensamentos esvoaçantes, e por fim foi à sala de refeições, encontrou uma bandeja e entregou-se à tediosa tarefa de limpar os remanescentes da festa de Nancy.
Estava na cozinha, lavando na pia, quando Doris aproximou-se.
- Nancy já dormiu. Queria ir para a cama com o vestido novo. - Ela suspirou. - Estou mais morta do que viva! Pensei que a festa nunca chegaria ao fim... - Pescou uma toalha no cabide e começou a enxugar. - Richard já foi?
- Já.
- Pensei que fosse levá-la para jantar fora esta noite.
- Não. Ele antes precisa pôr o sono em dia.
Doris enxugou, e empilhou um monte de pratos.
- Mesmo assim, foi muita gentileza dele, aparecer de repente... Você o esperava?
- Não.
- Fala sério?
- Por que diz isso?
- Porque a estava espiando. Seu rosto ficou branco como cal. Os olhos eram um brilho só. Como se fosse desmaiar.
- Apenas fiquei surpresa.
- Oh, não é bem assim, Penelope! Não sou nenhuma tola. Quando os dois estão juntos, é como se explodisse um relâmpago. Pude reparar na maneira como Richard a olha. Está caído por você. E a julgar por sua aparência, depois que ele entrou em sua vida, a coisa e mútua...
Penelope lavava uma caneca Peter Rabbit. Girou-a nas mãos, dentro da água com sabão.
- Não pensei que transparecesse tanto.
- Ora, não precisa ficar tão desolada por causa disto! Não há de que se envergonhar, ter um flerte com um sujeito tão atraente como Richard Lomax.
- Não creio que esteja apenas tendo um flerte. Sei que não é. Estou apaixonada por ele.
- Fuja disso.
- E não sei ao certo o que fazer...
- E tão sério assim?
Penelope virou a cabeça e olhou para Doris. Os olhos de ambas encontraram-se e, naquele momento, ocorreu a ela que, no correr dos anos, as duas se tinham tornado muito íntimas. Partilhando responsabilidades e angústias, frustrações, segredos, alegrias e brincadeiras, tinham montado um relacionamento que ia além dos limites da mera amizade. De fato, mais do que qualquer outra pessoa, Doris... conhecedora do mundo, prática e infinitamente gentil... preenchera o dolorido vácuo deixado pela morte de Sophie. Por isto era tão fácil fazer-lhe confidência.
- Sim, é.
Houve uma pausa. Então Doris perguntou, maravilhosamente casual:
- Está dormindo com ele, não?
- Estou.
- Ora, e como, afinal, conseguiram?
- Oh, Doris, não foi tão difícil assim.
- Não... quero dizer... bem, onde?
- No estúdio.
- Raios me partam! - exclamou Doris, sem saber o que dizer.
- Ficou chocada?
- Por que deveria? Nada tenho a ver com isso, tenho?
- Bem... eu sou casada.
- Sim, infelizmente é casada.
- Você não gosta de Ambrose?
- Sabe que não. Eu nunca disse isto, porém uma pergunta direta merece uma resposta direta. Acho que ele é imprestável como marido e imprestável como pai. Mal apareceu para vê-las e não me venha dizer que foi por falta de folga. Também mal escreve para você. E nem mandou um presente de aniversário para Nancy! Francamente, Penelope, ele não a merece. Para mim, continua sendo um mistério, o motivo de ter casado com ele.
Penelope respondeu, desalentada:
- Eu estava esperando Nancy.
- Essa é a desculpa mais esfarrapada que já ouvi na vida.
- Nunca pensei que você dissesse isso.
- O que acha que sou? Alguma santinha?
- Quer dizer que não desaprova o que estou fazendo?
- Não, de jeito nenhum! Richard Lomax é um cavalheiro de fato, um cavalheiro de alto a baixo, e Ambrose Keeling nem lhe chega aos pés. Afinal, por que você não deveria divertir-se um pouco? Só tem vinte e quatro anos e, Deus é testemunha, vem levando uma vida francamente monótona, nestes últimos anos. Chego a ficar surpresa por você ainda não ter saído dos trilhos, sendo a mulher que é. Enfim, encaremos a realidade, antes da chegada de Richard, andávamos bem escassas de talentos locais...
A despeito de si mesma, e despeito de tudo, Penelope começou a rir.
- Doris, não sei o que seria de mim sem você!
- Seria muita coisa, imagino. Pelo menos, agora sei de que lado o vento sopra. E acho que é formidável.
- E como terminará?
- Temos uma guerra em andamento. Não sabemos como qualquer coisa irá terminar. Cabe-nos apenas agarrar firmemente cada momento de alegria que passar ao nosso lado. Se ele a ama e se você o ama, então, vão em frente! Estarei logo atrás dos dois e farei tudo que puder para ajudá-los. E agora, pelo amor de Deus, vamos tirar esses pratos do caminho, antes que os meninos voltem para casa e seja hora de começar a fazer o jantar.
Estavam em dezembro. Quase sem perceberem, o Natal caía sobre eles, com todos os seus preparativos por fazer. Nas lojas desguarnecidas de Porthkerris, era difícil comprar-se algo conveniente para quem quer que fosse, mas de algum modo os presentes foram reunidos, embrulhados e escondidos, da mesma maneira que em outro ano qualquer. Valendo-se de uma receita do Ministério da Alimentação, Doris preparou um Pudim de Natal para Tempo de Guerra, enquanto Ernie prometia torcer o pescoço de alguma ave, em substituição ao peru tradicional. O General Watson-Grant forneceu alguns espruces de sua horta e, da caixa dos enfeites para a árvore de Natal, Penelope desencavou os enfeites e penduricalhos que vinham de sua infância, os cones dourados de pinheiro, estrelas de papel e guirlandas de ouropel sem brilho.
Richard teria folga no Natal, mas viajaria para Londres, a fim de passar alguns dias com a mãe. Antes de partir, no entanto, foi a Carn Cottage, levando presentes para todos. Estavam embrulhados em papel castanho e amarrados com fitas vermelhas, etiquetadas com brilhantes adesivos de tordos e azevinhos. Penelope ficou profundamente comovida. Imaginou-o fazendo as compras, escolhendo a fita; talvez sentado na cama, em seu austero cubículo no QG da Marinha Real, embrulhando desajeitadamente e dando laços nas fitas. Tentou imaginar Ambrose fazendo algo tão pessoal e demorado, mas não conseguiu.
Para Richard, ela havia comprado um cachecol escarlate, em lã de carneiro. Custara-lhe não apenas dinheiro, mas também preciosos cupons para roupas. No fim, talvez fosse uma peça totalmente inútil para ele, já que não poderia ser usada com o uniforme, e Richard nunca estava à paisana. Entretanto, era um excelente cachecol, tão alegre e natalino, que ela foi incapaz de resistir. Embrulhou-o em papel de seda e encontrou uma caixa para acondicioná-lo. Quando Richard empilhou seus presentes debaixo da árvore, ela lhe entregou o embrulho, para levá-lo em sua viagem a Londres.
Ele o revirou entre as mãos.
- Por que não abri-lo agora mesmo?
Penelope horrorizou-se.
- Oh, não, não deve abri-lo! Terá que guardá-lo até a manhã do dia de Natal.
- Está bem. Se você quer assim...
Ela não queria despedir-se, mas desejou-lhe um "Tenha um feliz Natal". com um sorriso. Richard a beijou.
- Para você também. minha querida. - Era como ser dilacerada. - Feliz Natal!
A manhã do Natal começou mais cedo do que nunca e houve a costumeira confusão de excitação, com eles seis reunidos no quarto de Lawrence, os adultos bebendo canecas de chá, as crianças amontoadas na enorme cama do velho, abrindo suas meias com presentes. Cornetas foram tocadas, fizeram brincadeiras e comeram maçãs. Lawrence colocou um nariz postiço com um bigode de Hitler e todos se torceram de rir. O desjejum veio a seguir e então, tradicionalmente, trotaram todos até a sala de estar, para a abertura dos presentes colocados debaixo da árvore. A excitação aumentou. Logo, o chão estava juncado de papel e barbantes prateados, o ar cheio de gritos esganiçados, de risos e alegria.
- Oh, obrigado, mamãe, era justamente o que eu queria! Olhe só. Clark, uma buzina para a minha bicicleta!
Penelope pusera de lado o presente de Richard, reservando-o para ser aberto por último. Os outros não exigiam muito esforço de imaginação. Doris rasgou o papel do seu e, do envoltório, retirou uma echarpe de seda, de tamanho e riqueza extravagantes, em um padrão que ostentava todas as cores do arco-íris.
- Jamais tive nada igual antes! – cantarolou, começando a dobrá-la em triângulo, jogá-la por sobre a cabeça e atá-la debaixo do queixo. - Que tal fiquei?
Ronald lhe disse.
- Você parece a Princesa Elizabeth em seu pônei.
-Ooh! - exclamou. deliciada. - Muito elegante!
Para Lawrence, havia uma garrafa de uísque; para os meninos, catapultas profissionais, adequadamente letais. Para Nancy, um aparelho de chá para bonecas, em porcelana branca, orlada de ouro e pintada com diminutas florezinhas.
- O que foi que ele lhe deu. Penelope?
- Ainda não abri.
- Pois abra agora!
Ela assim fez, sentindo-se alvo de todos os olhares. Desatou o laço e puxou para trás o quebradiço papel castanho. No interior havia uma caixa branca, com bordas negras. Chanel Nº 5. Erguendo a tampa da caixa, ela viu o frasco quadrado acondicionado em dobras de cetim, a rolha de cristal, o precioso líquido ali contido.
Doris estava boquiaberta.
- Nunca vi um frasco de perfume tão grande! Fora das lojas, quero dizer. E Chanel Nº 5! Você jamais vai ficar tão cheirosa na vida! Ao lado da tampa havia um envelope azul, dobrado apertadamente. Em gestos furtivos, Penelope o apanhou e enfiou no bolso do cardigã. Mais tarde, enquanto os outros recolhiam a confusão de papel de presentes espalhada pela casa, ela subiu a seu quarto e abriu a carta.
Minha querida garota.
Feliz Natal! Isto veio através do Atlântico para você. Um amigo meu encontrava-se em
Nova York, enquanto reparavam seu cruzador, e o trouxe ao voltar para a Inglaterra. Para mim, a fragrância de Chanel Nº 5 evoca tudo que existe de fascinante e sensual, de despreocupação e alegria. Almoço no Berkeley. Londres em maio, com os lilazes desabrochando; riso, amor e você. Você nunca está fora dos meus pensamentos. Nunca está fora de meu coração.
Richard.
Era o mesmo sonho. Ela pensava naquele lugar como sendo o país de Richard. Sempre a mesma coisa. O terreno comprido e arborizado, com a casa no final, de teto achatado, uma casa mediterrânea. A piscina e Sophie nadando lá. Papai sentado diante de seu cavalete, o rosto sombreado pela aba do chapéu. E então, a praia vazia, a certeza de que não catava conchas, mas procurava uma pessoa. Ele chegou, ela o viu chegando, vindo de muito longe, sentiu-se tomada de alegria. Entretanto antes de poder chegar junto dele, a neblina rolou do mar, era um nevoeiro escuro, subindo como a maré, a ponto de primeiro ele parecer vadeá-la, afogando-se então.
- Richard!
Despertou, com os braços estendidos para ele. Entretanto, o sonho se dissolvera e ele se fora. Suas mãos sentiram apenas as cobertas geladas, no outro lado da cama. Podia ouvir o mar murmurando na praia, porém não havia vento. Tudo estava silente e imóvel. Então, o que a tinha perturbado, o que jazia na borda da consciência? Abriu os olhos. A escuridão se desfazia e, além da janela aberta, o céu pálido do alvorecer iminente, a meia claridade tornavam discerníveis os detalhes familiares de seu próprio quarto. O balaústre de latão aos pés da cama, sua mesa de cabeceira, o espelho em ângulos, refletindo o céu. Viu a pequena cadeira de braços, a mala aberta, no chão a seu lado, arrumada a meio...
Era isso. A mala. Hoje. Vou partir hoje. Em férias, durante sete dias. Com Richard.
Ficou deitada e pensou nele por algum tempo, então recordou o sonho enigmático. Nunca diferente. Sempre a mesma seqüência. Imagens nostálgicas de contentamento perdido; depois a busca. O todo esmaecendo para a incerteza e o senso final de perda. Entretanto, analisando, talvez tudo aquilo não fosse tão enigmático, porque o sonho primeiro invadira seu sono logo depois de Richard retomar de Londres, no início de janeiro, tendo recorrido a intervalos regulares, durante os dois últimos meses e meio. Aquele fora um período da mais dolorosa frustração, porque ele ficara tão ocupado e envolvido com suas funções, que não tinha tempo para vê-la. Os treinamentos, em proporção com o tempo ruim, haviam-se intensificado visivelmente. Isto se tornava evidente, pelo número crescente de tropas e veículos do Exército vistos por ali. Agora, era comum as ruas estreitas da cidade e do porto ficarem congestionadas por comboios. Além do mais, a sede dos Comandos, no Pier do Norte, fervilhava de atividade militar.
Obviamente, a situação estava esquentando. Helicópteros sobrevoavam o mar e, depois do Ano Novo, uma companhia de sapadores surgiu da noite para o dia, rumando para a charneca abandonada, além dos Penhascos Boscarben, lá estabelecendo uma área para treino de fogo de artilharia. O lugar parecia sinistro, com arame farpado, bandeiras vermelhas de perigo e enormes avisos do Departamento de Guerra, advertindo a população de que a entrada
era proibida, ameaçando com morte e destruição quem não obedecesse àquelas normas. Quando o vento soprava na direção certa, podiam ser ouvidos em Porthkerris, dia e noite, os estrondos esporádicos do fogo de artilharia. Aquilo se tomava particularmente inquietante à noite, quando a pessoa despertava com um sobressalto e o coração disparando, sem nunca ter certeza sobre o que realmente acontecia.
Richard aparecia de quando em quando, inesperadamente como sempre. Suas passadas no vestíbulo, sua voz alta, nunca deixavam de enchê-la de alegria. Em geral, tais visitas aconteciam depois do jantar, quando então ele se sentava com papai, bebia café e, mais tarde, jogava gamão até altas horas. Certa vez, telefonando e tomando providências no último momento, ele a levara ao Gaston's para jantar, onde beberam uma garrafa do excelente vinho do francês e puseram seus assuntos em dia, após semanas sem se verem.
- Fale-me sobre o Natal, Richard. Como foi?
- Sossegado.
- O que vocês fizeram?
- Fomos a concertos. Assistimos ao Serviço da Meia-Noite na Abadia de Westminster. Conversamos.
- Apenas você e sua mãe?
- Apareceram alguns amigos, mas em geral éramos sempre os dois.
Aquilo denotava afetividade. Ela ficou curiosa.
- Sobre o que conversaram?
- Uma infinidade de coisas. Você.
- Você falou a ela sobre mim?
- Falei.
- O que contou a ela?
Ele estendeu o braço através da mesa e lhe tomou a mão.
- Que havia encontrado a única pessoa no mundo com quem desejava passar o resto de minha vida.
- Disse para ela que sou casada, que tenho uma filha?
- Disse.
- E como reagiu ela a semelhante informação?
- Ficou surpresa. Depois entendeu, foi compreensiva.
- Ela deve ser uma pessoa generosa.
Ele sorriu.
- Eu gosto dela.
Então, antes mesmo de perceberem o que sucedia, o longo inverno estava chegando ao fim. A primavera chega cedo na Cornualha. Tornava-se evidente um perfume no ar, um calor no sol, enquanto o restante do país continuava a tiritar. Aquele ano não foi diferente. Por entre preparativos bélicos, fogo de artilharia e helicópteros revoluteando, as aves migratórias deram o ar de sua presença, em vales abrigados. A despeito das enormes manchetes nos jornais, da especulação e boatos sobre a iminente invasão da Europa, o primeiro daqueles dias balsâmicos os envolveu, com céu azul, ar perfumado, tranqüilo. Os brotos intumesciam nas árvores, a charneca estava enevoada de verde com plantas tenras, e as margens da estrada apareciam pontilhadas pelas faces cremosas das prímulas silvestres.
Precisamente em um desses dias, Richard viu-se livre, sem quaisquer demandas prementes sobre seu tempo. Por fim, eles puderam voltar ao estúdio. Puderam acender o fogo e deixá-lo iluminar seu amor. Novamente tomaram a habitar seu mundo secreto e particular; mitigaram suas separadas carências e voltaram a tornar-se uma única e rutilante entidade.
Mais tarde, ela quis saber:
- Quanto tempo demoraremos a voltar aqui outra vez?
- Eu gostaria de saber.
- Sou cobiçosa. Sempre quero mais! Sempre quero um amanhã!
Estavam sentados junto à janela. Mais além, tudo era ensolarado, as areias tinham um brilho ofuscante, o mar azul-forte dançava pontilhado de moedas de sol. Arrastadas pelo vento, as gaivotas batiam asas e grasnavam. Logo abaixo delas, perto de uma piscina em uma rocha, dois meninos pescavam camarões.
- Neste momento, os amanhãs são um dividendo.
- Está falando da guerra?
- Como o nascimento e a morte, ela é parte da vida.
Penelope suspirou.
- Tentarei não ser egoísta. Aliás, tento. Lembro-me de milhões de mulheres no mundo que dariam tudo o que possuem para estar em meu lugar, segura, aquecida, alimentada e com a família à minha volta. Entretanto, não adianta muito. Continuo ressentida, porque não posso ficar com você o tempo todo. O que de certa forma ainda piora isto é saber que você realmente está aqui. Não se encontra custodiando Gibraltar, lutando nas selvas de Burma ou em algum destróier no Atlântico. Está aqui. Não obstante, a guerra intromete-se entre nós, mantém-nos afastados. Bem, com todos esses boatos fervilhando, os rumores incessantes da invasão, tenho a terrível sensação de que o tempo está fugindo. Que tudo quanto posso agarrar são algumas poucas horas roubadas.
- Terei uma semana de folga no fim do mês - disse ele. - Você partiria comigo?
Enquanto falava, ela estivera olhando para os dois meninos e suas redes de pescar camarões. Um deles encontrara qualquer coisa, misturada à alga esverdeada. Ficou de cócoras para examiná-la, molhando os fundilhos da calça. Uma semana de folga. Uma semana! Virando a cabeça, ela olhou para Richard, certa de não ter ouvido bem ou de que talvez ele estivesse brincando com sua insatisfação. Vendo a expressão em seu rosto, Richard sorriu.
- Eu falei sério - tranqüilizou-a.
- Uma semana inteira?
- Isso mesmo.
- Por que não me disse antes?
- Estava guardando. O melhor para o final.
Uma semana! Longe de tudo e de todos... Apenas eles dois...
- E para onde iríamos? - perguntou, cautelosamente.
- Para onde você quiser. Poderíamos ir a Londres. Ficar no Ritz e fazer a ronda dos teatros e clubes noturnos.
Ela considerou a sugestão. Londres. Pensou na casa da Rua Oakley. Londres, no entanto, significava Ambrose, e a casa da Rua Oakley estava habitada pelos fantasmas de Sophie, de Peter e Elizabeth Clifford.
- Não quero ir para Londres - respondeu. – Existe alternativa?
- Sim. Uma antiga casa chamada Tresillick, no litoral sul, na península Roseland. Não é grande nem pomposa, mas tem jardins descendo até a água e uma enorme glicínia púrpura, espalhada por toda a fachada.
- Você conhece a casa?
- Conheço. Fiquei lá um verão, quando ainda estava na universidade.
- Quem mora lá?
- Uma amiga de minha mãe, Helena Bradbury. É casada com um homem chamado Harry Bradbury, capitão da Marinha Real, comandante de um cruzador com a Esquadra Metropolitana. Minha mãe escreveu a ela depois do Natal e há uns dois dias recebi uma carta dela, convidando-nos a ficar lá.
- Convidando-nos?
- Sim. Nós dois.
- Ela sabe a meu respeito?
- Evidentemente.
- Entretanto, se formos ficar com ela, não teremos que dormir em quartos separados, não precisaremos ser terrivelmente discretos?
Richard riu.
- Jamais conheci uma mulher como você, para criar dificuldades.
- Não estou criando dificuldades. Estou sendo prática.
- Não creio que surgissem tais problemas. Helena é conhecida por suas idéias abertas. Foi criada no Quênia e, por algum motivo, as senhoras criadas no Quênia raramente são adeptas das convenções.
- Você aceitou o convite dela?
- Ainda não. Queria primeiro falar com você. Há outras considerações. Seu pai é uma delas.
- Papai?
- Ele objetaria à minha idéia de viajarmos sozinhos?
- Oh, Richard! Pensei que o conhecesse melhor...
- Já falou a ele sobre nós?
- Não. Não em tantas palavras. - Penelope sorriu. – Mas ele sabe.
- E Doris?
- Eu direi a ela. Doris acha tudo esplêndido. Acha você fascinante. Como Gregory Peck.
- Neste caso, nada há para nos deter. Então... - Ele se levantou. - ... vamos. Ponha seus patins e comece a rodar. Temos muito o que fazer.
Havia uma cabine telefônica na esquina perto da loja da Sra. Thamas. Os dois comprimiram-se em seu interior, fecharam a porta, e Richard fez uma chamada para Tresillick. Estando tão perto dele, Penelope pôde ouvir o telefone tilintando na outra extremidade da linha.
- Alô? - A voz de mulher, soando alto e claro, era perfeitamente audível para Penelope e quase ensurdeceu Richard. – Aqui é Helena Bradbury!
- Helena! Aqui é Richard Lomax.
- Richard, seu demônio! Por que não ligou para mim antes?
- Sinto muito, mas, sinceramente, não houve oportunidade e...
- Recebeu minha carta?
- Sim. Eu...
- Vocês vêm?
- Se você não se importar.
- Maravilhoso! Estou admirada em pensar que você ficou todo este tempo em um lugarejo perdido. Só fiquei sabendo, quando sua mãe me contou... Quando virão?
- Bem, consegui uma semana de folga no fim de março. Seria conveniente para você?
- Fim de março? Oh, que pena! Eu não estarei aqui. Irei até Chatham, ficar um pouquinho de tempo com o meu velho. Não poderia transferir para outra época? Oh, é claro que não poderia. Droga de pergunta idiota! Bem, não importa. Venham assim mesmo. A casa é de vocês, basta tomarem posse! Há uma Sra. Brick, que mora no chalé. Ela tem uma chave. Entra e sai. Deixarei mantimentos na despensa. Fiquem à vontade...
- É muita gentileza...
- Não me venha com essa agora! Se quiser pagar a estadia, poderá aparar a grama para mim. Fico doente em pensar que não vou estar aqui. Não importa, fica para outra vez! Escreva um bilhete, dizendo quando a Sra. Brick deverá esperá-los. Preciso desligar agora. Gostei de falar com você. Adeus!
Ela desligou. Deixado como fone zumbindo na mão. Richard o pendurou lentamente no gancho.
- Uma senhora de poucas palavras e muita ação – disse ele.
Passou os braços em torno de Penelope e a beijou. Pela primeira vez, em pé na comprimida e pouco cheirosa cabine telefônica, ela se permitiu acreditar que aquilo ia realmente acontecer. Eles iam viajar sozinhos, não durante uma folga, aquela horrível palavra regulamentar, mas em férias.
- Nada pode impedir que isto aconteça, pode, Richard? Nada pode dar errado, não é mesmo?
- Exatamente.
- Como chegaremos lá?
- Teremos que estudar isso. Um trem para Truro, talvez. Um táxi.
- Não seria mais divertido irmos de carro? - Ela acabara de ter uma brilhante idéia. - Podemos ir no Bentley. Papai nos emprestaria o Bentley!
- Não esqueceu nada?
- O quê?
- A insignificante questão da gasolina.
De fato, ela havia esquecido.
- Sim, esqueci, mas... falarei com Sr. Grabney.
- O que pode ele fazer?
- Ele nos conseguirá gasolina. De algum lugar. De alguma forma. Até no mercado negro, se preciso.
- Por que ele faria isso?
- Porque é meu amigo e eu o conheci a vida inteira. Você se incomodaria de me levar a Roseland em um Bentley emprestado, movido a gasolina do mercado negro?
- Não. Desde que eu tenha uma garantia de empréstimo por escrito, para não acabarmos na cadeia.
Ela sorriu. Sua imaginação voava. Já se via partindo com ele, rodando para o sul em estradas marginadas de altas sebes. Com Richard ao volante e a bagagem de ambos empilhada no banco traseiro.
- Sabe de uma coisa? Quando formos, será novamente primavera. De fato, será primavera!
Era uma casa escondida, de difícil localização, enterrada em um recanto inacessível e remoto do país que, durante séculos, não havia alterado seus costumes ou sua aparência. Ficava invisível da estrada, protegida de todos os olhos por bosques e uma estradinha quase intransitável, marginada por altos barrancos de hortênsias. Finalmente, descoberta, revelou-se como uma casa que permanecera quadrangular durante séculos, reunindo à sua volta outras construções, estábulos e muros protetores, tudo verdejante de floridas trepadeiras, hera, musgos e samambaias.
Diante da casa, o jardim entre selvagem e cultivado, descambava em uma série de gramados e terraços até as margens de um riozinho serpenteante e boscoso, funcionando ao sabor da maré. Trilhas estreitas convidavam sedutoramente, esgueirando-se por entre maciços de camélias, azaléias e rododendros Pérola Rosada. Na beira d'água, a relva não cuidada se mostrava amarelada por profusões de narcisos silvestres, havendo um desconjuntado cais de madeira, ao qual estava amarrado um pequeno bote de remos.
A glicínia que encobria a fachada da casa ainda não florira, mas havia brotos por todos os lados e, ao longo da varanda, erguia-se uma frondosa cerejeira branca. Quando o vento a tocava, as pétalas voavam como flocos de neve.
Conforme o prometido, a Sra. Brick estivera lá para recebê-los, emergindo da porta da frente, assim que o velho Bentley rodou para os fundos da casa e ali fez sua gratificante parada. A Sra. Brick tinha emaranhados cabelos brancos e era estrábica, calçava meias grossas e exibia um avental atado à cintura.
- São o Major e a Sra. Lomax?
Penelope foi silenciada por aquela maneira de ser chamada, porém Richard continuou imperturbável.
- Exatamente - respondeu, descendo do carro. - E a senhora deve ser a Sra. Brick - acrescentou, aproximando-se dela com a mão estendida.
- Sim, senhor. - Era difícil decidir, exatamente, qual dos olhos estrábicos espiava. - Fiquei aqui apenas para recebê-los. Foi o que disse a Sra. Bradbury. Não estarei aqui amanhã. Querem trazer as malas?
Eles a seguiram para o interior da casa, entrando em um vestíbulo ladrilhado, com uma escadaria de pedra que se encurvava para o andar de cima. Os degraus da escada estavam gastos pelo uso dos anos e, no ambiente, pairava um cheiro úmido e abafado, não desagradável, recordando vagamente as lojas de antiguidades.
- Eu lhes mostrarei a casa. A sala de refeições e a de estar...bem, estão com os móveis cobertos por protetores de poeira. A Sra. Bradbury não tem usado mais os dois aposentos, desde a guerra. Ela usa a biblioteca, esta sala aqui. A lareira precisa ficar acesa, se quiseram aquecer-se. E se houver sol, podem abrir as janelas francesas e sair para a varanda. Agora, venham, e mostrarei a cozinha...
- Eles a seguiram obedientemente. - Precisarão tirar a cinza do fogão e enchê-lo a cada anoitecer, pois do contrário não haverá água quente... - Como demonstração, ela empunhou o puxador de cobre de uma gaveta, que puxou e empurrou uma ou duas vezes, provocando uma sinistra perturbação nas entranhas do antiquado fogão. - Há um presunto frio na despensa. Eu trouxe leite, ovos e pão. Como a Sra. Bradbury disse.
- Foi muita gentileza sua.
Ela, entretanto, não tinha tempo para trivialidades.
- Agora, vamos lá em cima. - Eles recolheram malas e sacolas, tornando a segui-la. - O banheiro e o lavatório ficam aqui, dando para o corredor. - A banheira sustentava-se em pés e tinha torneiras de cobre. O vaso sanitário exibia uma cisterna da qual pendia uma corrente e uma empunhadura, sobre a qual estava escrito a palavra PUXE. - Uma privada antiga e emperrada, esta aqui. Se não funciona da primeira vez, a gente precisa esperar um pouco e depois tentar novamente.
- Obrigado por nos explicar.
Entretanto, não havia tempo para se demorarem nas complexidades do encanamento. porque ela já se movimentava à frente deles, para abrir uma outra porta no alto da escada, com isto deixando passar para o patamar uma rajada de vento ensolarado vindo do aposento além.
- Aqui estamos! Botei os senhores no melhor quarto de hóspedes, posso garantir que terão uma bela vista daqui. Espero que as camas estejam a contento. Se botarem um saco de água quente, acabarão com a umidade. E tomem cuidado quando chegarem ao balcão. A madeira dos gradis está apodrecida. Poderiam cair. Bem, isto é tudo. - Ela havia cumprido a sua obrigação. -Agora vou embora.
Pela primeira vez. Penelope conseguiu dizer alguma coisa.
- Tornaremos a vê-la por aqui. Sra. Brick?
- Oh, eu estou sempre indo e vindo. A qualquer momento. Cuide deles, foi o que a Sra. Bradbury disse!
Com isto, ela se foi.
Penelope não podia olhar para Richard. Ficou parada, com a mão tapando a boca, de alguma forma conseguindo conter o riso até ouvir a batida da porta, sinal de que a Sra. Brick não os ouviria mais. Agora podia desabafar. Caiu de costas na cama enorme e bem-arrumada, depois começou a enxugar as lágrimas de hilaridade nas faces. Richard sentou-se ao seu lado.
- Vamos ter que descobrir qual é o olho são dessa senhora. Caso contrário, isso pode originar complicações intransponíveis.
- "Uma privada antiga e emperrada, esta aqui." Ela era o vivo retrato do Coelho Branco, dizendo "mais depressa, mais depressa!"
- Que tal se sente como a Sra. Lomax?
- É inacreditável.
- Imagino que foi a Sra. Bradbury quem disse isso.
- Entendo agora o que você queria dizer sobre senhoras que foram criadas no Quênia.
- Acha que será feliz aqui?
- Creio que posso dar um jeito.
- O que posso fazer para tomá-la feliz?
Ela começou a rir novamente. Estendendo-se ao seu lado, ele a tomou nos braços, carinhosamente e sem pressa. Além da janela aberta, pequenos sons se tomavam evidentes. O grasnido de gaivotas distantes. Mais perto, o arrulhar suave de um pombo silvestre. Uma brisa passou, roçando a galharia da cerejeira florida de branco. Lentamente, as águas da maré enchente ganharam volume, inundando as margens vazias e lodosas do riacho.
Mais tarde, eles desfizeram as malas e arrumaram suas coisas. Richard vestiu calças velhas de brim, um suéter branco com gola de pólo e calçou sapatos de couro cru, já muito usado. Penelope pendurou o uniforme dele na parte mais funda do guarda-roupa e depois chutaram as malas para debaixo da cama, onde ficaram fora de vista.
- Isto dá uma sensação de início de férias escolares – disse Richard. - Vamos explorar os arredores.
Primeiro inspecionaram a casa, abrindo portas, descobrindo passagens e corredores insuspeitados, sondando o ambiente. No andar térreo, na biblioteca, abriram as portas-janelas, olharam o título de alguns dos livros, encontraram um antiquado gramofone de corda e uma pilha de deliciosos discos. Delius, Brahms, Charles Trenet, Ella Fitzgerald.
- Podemos ter serões musicais!
O fogo ardia na enorme lareira. Richard inclinou-se para alimentá-la com mais troncos encontrados na cesta ao lado e, endireitando-se, deparou-se com um envelope dirigido a ele, recostado contra o relógio pousado no meio do aparador da lareira. Apanhou-o, abriu-o e, no interior, encontrou uma mensagem de sua ausente anfitriã.
Richard. O aparador de grama está na garagem, com uma lata de gasolina ao lado. A chave para a adega de vinhos está pendurada acima da porta do porão. Sirva –se à vontade do que encontrar lá dentro. Divirtam-se. Helena
Em seguida, eles saíram da casa, passando pela cozinha e por uma verdadeira coelheira de despensas, copas, paióis de víveres e lavanderias lajeadas, que jaziam além. Chegando à última porta, emergiram em um pátio de cavalariças pavimentado com pedras redondas, cruzado por varais para roupa lavada. As antigas cavalariças agora funcionavam como garagens, depósitos de ferramentas e de lenha para o fogo. Encontraram o aparador de grama, assim como dois remos e uma vela enrolada.
- Devem ser do bote - observou Richard, com ar satisfeito. - Quando a maré encher, podemos sair velejando.
Mais tarde, chegaram a uma antiga porta de madeira, incrustada em um muro de granito coberto de liquens. Richard a forçou com o ombro e ela se abriu. Viram-se no que um dia havia sido uma horta. Descobriram as desconjuntadas estufas envidraçadas e um gradil quebrado para pepinos se alastrarem, mas as garras do tempo tinham-se apoderado de tudo, e só o que se podia discernir da exuberância anterior era um punhado de ruibarbos com altura exagerada, um tapete de hortelã e uma ou duas velhas macieiras, retorcidas como homens muito idosos, mas, ainda assim, exibindo brotos de um rosa pálido. O ar cálido estava impregnado do perfume das flores.
Era entristecedor constatar-se tamanho abandono. Penelope suspirou, penalizada.
- Que tristeza! Isto aqui deve ter sido maravilhoso um dia. Com canteiros e sebes bem aparadas...
- Era assim, quando fiquei aqui antes da guerra. Só que naquela época, havia dois jardineiros. Hoje é impossível manter-se em funcionamento uma propriedade como esta, à própria custa.
Por uma segunda porta, chegaram a uma trilha que descia para o riacho. Penelope colheu um ramo de narcisos e os dois se sentaram no cais, espiando a maré que subia. Quando sentiram fome, retomaram à casa e comeram pão com presunto, acompanhados de algumas maçãs enrugadas que encontraram na despensa. Mais tarde, quando a maré estava alta, apanharam capas de oleado no armário dos Bradbury, recolheram os remos, a vela, e encaminharam-se para o pequeno bote. No abrigo do riacho, o progresso foi lento, mas quando chegaram em espaço aberto, foram apanhados pela brisa. Richard baixou a quilha móvel e içou a vela principal. A pequenina embarcação avançou de maneira alarmante, mas controlada. Eles começaram a deslizar, impelidos pelo vento e encharcados de borrifos d'água, cruzando as águas fundas e picadas do estreito.
Aquela era uma casa secreta e, igualmente, uma casa que parecia dormitar no passado. Era evidente que ali a vida sempre fora quieta e indolente, vivida a passo de tartaruga. Como um relógio muito antigo e errático ou talvez uma pessoa muito idosa e errática, ela havia perdido todo o senso de tempo. Esta suave influência era muito forte. Ao fim do primeiro dia, sonolentos e entontecidos pelo ar brando da costa sul, Richard e Penelope não resistiram à sedução do modorrento feitiço de Tresillick e, depois disso, o tempo deixou de ter importância ou mesmo de existir. Não viram jornais, nunca ligaram o rádio, e, se o telefone tocava, deixavam que tocasse, sabendo que a chamada não era para eles.
Os dias e as noites fundiram-se lentamente entre si, não sendo interrompidos pela necessidade de refeições regulares, de compromissos urgentes ou da tirania dos relógios. Seu único contato com o mundo exterior era a Sra. Brick que, fiel à sua palavra, ia e vinha. Suas visitas eram irregulares, para dizer-se o mínimo, de maneira que os dois nunca tinham idéia de quando ela apareceria. Às vezes, encontravam-na às três da tarde, polindo, esfregando ou passando um antiquado aspirador de pó sobre os tapetes surrados. Certa manhã, ainda muito cedo, eles continuavam na cama, quando ela irrompeu no quarto com uma bandeja de chá. Entretanto, antes que ambos se refizessem do sobressalto e encontrassem palavras para agradecer, ela já tinha puxado as cortinas, emitido comentários sobre o tempo, e desaparecido.
Conforme acentuou Richard, aquela chegada intempestiva poderia ter sido muito constrangedora.
Ao mesmo tempo, como algum gnomo benevolente, ela os mantinha providos de alimento. Indo à cozinha providenciar uma refeição, eles encontravam, na prateleira lajeada da despensa, um prato com ovos de pata, uma ave assada no espeto, um pote de manteiga caseira ou um pão recentemente assado. As batatas ficavam descascadas, e as cenouras, raladas. Em certa ocasião, ela lhes deixara duas tortas da Cornualha tão grandes, que até Richard não conseguira terminar a sua.
- Nem mesmo entregamos a ela nossos cartões de racionamento - comentou Penelope, com certo espanto. Tinha vivido tanto tempo à custa de cartões de racionamento, que aquela abundância lhe parecia algo miraculoso. - Afinal, de onde vem tudo isto?
Eles jamais chegaram a descobrir.
Naquele início de primavera, o tempo se mostrou caprichoso. Se chovia, era uma espécie de dilúvio, e precisavam vestir impermeáveis quando saíam para longas caminhadas molhadas, ou então ficavam à beira da lareira, lendo um livro ou disputando uma partida de piquê. Alguns dias eram azuis e cálidos como o verão. Então, saíam para o ar livre, faziam piquenique na relva ou espichavam-se em antigas e surradas espreguiçadeiras de jardim. Certa manhã, sentindo-se com energia, entraram no Bentley e cobriram o pequeno trajeto até St. Mawes, perambulando pela aldeia, inspecionando os barcos a vela e encerrando com um drinque na varanda do Hotel Idle Rocks.
Era um dia ensolarado e com nuvens, o sol aparecendo e desaparecendo, o vento oloroso e suave condimentado pelo frescor da brisa salitrada. Recostada em sua cadeira, Penelope contemplava um barco de pesca que, com sua vela castanha, abria caminho para o mar aberto.
- O que você pensa sobre luxo, Richard?
- Não anseio por ele, se é o que quer saber.
- Em minha opinião, luxo é a satisfação total dos cinco sentidos ao mesmo tempo. Estou aquecida e, se quiser, posso estender a mão e tocar a sua. Sinto o cheiro do mar e também que, dentro do Hotel, alguém está fritando cebolas. Um cheiro delicioso. Estou saboreando cerveja fria e posso ouvir as gaivotas, a água batendo e o motor do barco de pesca, fazendo tchuc-tchuc-tchuc, de uma forma plenamente satisfatória.
- E o que vê?
Ela virou a cabeça para fitá-lo, sentado ali com os cabelos em desalinho, usando o velho suéter, o casaco de tweed Harris, com reforços de couro nos cotovelos e cheiro de turfa.
- Vejo você. - Ele sorriu. - Agora é a sua vez. Diga-me qual o seu luxo!
Ele ficou calado, penetrando o espírito do jogo, considerando.
- Acho que talvez seja o contraste - disse-lhe por fim. - Montanhas e o frio cortante da neve, tudo cintilando sob um céu azul e um sol infernal. Ou estar deitado de costas, em uma rocha quente, sabendo que a qualquer momento, quando o calor ficar insuportável, o mar profundo e frio está a apenas um metro de distância, esperando que eu mergulhe.
- E o que me diz de voltar para casa em um dia enregelante e chuvoso, sentindo frio nos próprios ossos e poder mergulhar em uma banheira cheia, imensamente quente?
- É uma boa pedida. Ou passar um dia em Silverstone, ensurdecido pelos carros de corrida e então, a caminho de casa, parar em alguma vasta, incrivelmente bela catedral, e entrar, apenas para ouvir o silêncio.
- Que horrível seria, ansiar-se por arminhos. Rolls-Royces e esmeraldas, tão enormes quanto vulgares! Porque de uma coisa tenho certeza: assim que possuíssemos tais artigos, eles se tornariam diminuídos, apenas por serem nossos. Então, não os quereríamos mais, não saberíamos o que fazer com eles!
- Seria uma espécie errada de luxo, sugerir que almocemos aqui?
- Não, seria maravilhoso! Eu me perguntava quando você iria fazer a sugestão. Podemos comer cebolas fritas. Fiquei com a boca cheia d'água, nesta última meia hora.
Seus serões, no entanto, eram a melhor parte de tudo. Com as cortinas fechadas e o fogo crepitando, eles ouviam música, percorriam a coleção de discos de Helena Bradbury e revezavam-se, levantando para trocar a agulha e dar corda no velho gramofone de madeira. De banho tomado e roupas limpas, jantavam junto à lareira, arrastavam uma mesa baixa, preparavam-na com copos e talheres, comendo o que quer que a Sra. Brick houvesse deixado para eles e bebendo a garrafa de vinho que Richard, seguindo instruções da dona da casa, tinha ido buscar na adega. Lá fora, o vento noturno que vinha do mar fustigava as janelas e as fazia chocalhar, mas isto apenas servia para acentuar o isolamento deles, sua intimidade e imperturbada solidão.
Certa noite, já bem tarde, ouviram integralmente a Sinfonia do Novo Mundo. Richard se deitara no sofá, e Penelope estava sentada sobre um monte de almofadas no chão, com a cabeça apoiada na coxa dele. O fogo se reduzira a um monte de cinzas, mas quando as últimas notas finalmente morreram, eles continuaram imóveis. Simplesmente do jeito como estavam. Richard com a mão pousada no ombro dela. Penelope perdida em sonhos.
Ele por fim espreguiçou-se, quebrando o encanto.
- Penelope.
- Sim?
- Precisamos conversar.
Ela sorriu.
- Não temos feito outra coisa.
- É sobre o futuro.
- Que futuro?
- O nosso futuro.
- Oh, Richard...
- Não. Não pareça tão preocupada. Apenas ouça. Porque é importante. Compreenda, um dia poderei casar com você. Acho impossível imaginar um futuro sem você e, segundo penso, isto significa que devemos casar.
- Já tenho um marido.
- Eu sei, minha querida. Sei disso perfeitamente, mas, ainda assim, preciso perguntar-lhe. Quer casar comigo?
Ela se virou, tomou-lhe a mão e a pressionou contra o rosto.
- Não devemos tentar a Providência - disse.
- Você não ama Ambrose.
- Não quero falar a respeito. Não quero falar sobre Ambrose. Ele não faz parte deste lugar. Nem mesmo quero dizer o nome dele em voz alta.
- Eu a amo mais do que as palavras poderiam dizer.
- Eu também o amo. Richard. Você sabe disso. E não posso pensar em nada mais perfeito do que ser sua esposa, saber que nada jamais nos poderá separar outra vez. Só que, agora, não. Não falemos sobre isto agora.
Ele ficou calado por um longo momento. Depois suspirou.
- Tudo bem - disse. Inclinando-se, beijou-a. – Vamos dormir.
O último dia deles foi límpido e ensolarado. Cumprindo sua obrigação e retribuindo por sua permanência. Richard tirou o aparador da garagem e aparou a grama. Levou nisto muito tempo, e Penelope ajudou, transportando em um carrinho de mão a relva cortada até a pilha de adubo orgânico, no fundo do estábulo. Também aparou todas as margens, valendo-se de uma tesoura de comprida empunhadura. Só terminaram às quatro da tarde, porém a visão do relvado na encosta que descia, liso como veludo e estriado em dois matizes diferentes de verde, valia todo o esforço, era amplamente gratificante. Depois que limparam e azeitaram o aparador de grama, tomando a guardá-lo em seu lugar, Richard anunciou que estava sedento e ia preparar uma xícara de chá para eles. Penelope, então, retomou à frente da casa, sentou-se no meio da grama recém-aparada e esperou que ele lhe trouxesse o chá.
O cheiro da relva recém-cortada era delicioso. Apoiando-se nos cotovelos, ela ficou espiando um par de gaivotas da espécie pequena, que se empoleirara na extremidade do cais. Contemplou-as com admiração, considerando o quanto eram pequeninas e belas, comparadas às grandes e selvagens gaivotas pescadoras de arenques, que havia no norte. Suas mãos moveram-se sobre a grama, afagando-a, como se afagasse o pêlo de um gato. Seus dedos encontraram um dente-de-leão, que escapara ao aparador de grama. Puxou-o, forcejando com as folhas e a haste, tentando arrancá-lo pela raiz. Entretanto, era uma raiz vigorosa, como toda raiz de dente-de-leão. A haste se partiu, deixando-a com apenas metade da raiz na mão. Penelope olhou para ela, sentiu seu cheiro acre e ao mesmo tempo o cheiro fresco da terra úmida, que aderira às suas mãos e as sujara.
Ouviu as pisadas na varanda.
- Richard?
Ele chegou com o chá, duas canecas em uma bandeja. Agachou-se ao lado dela.
- Encontrei um novo luxo - disse-lhe Penelope.
- Qual é?
- É sentar-se sobre a grama recém-aparada, sozinha, sem a pessoa amada. Estou sozinha, mas sei que não ficarei só por muito tempo, porque meu amado afastou-se apenas por um momento, dentro em pouco estará de novo voltando para mim. - Ela sorriu. - Acho que este é o melhor luxo de todos.
Seu último dia! Amanhã, bem cedo, estariam partindo, voltariam a Porthkerris. Ela não quis pensar nisso, fechou a mente a tal perspectiva. Sua última noite. Como sempre, ficaram diante da lareira, Richard no sofá e Penelope enrodilhada no chão, ao lado dele. Não ouviram música. Em vez disto, ele leu para ela, em voz alta, o Autumn Journal, de MacNeice. Não apenas o poema de amor que lhe recitara naquele dia distante, no estúdio de papai, mas o
livro inteiro, do começo ao fim. Era muito tarde, quando chegou às últimas palavras.
“Dormir ouvindo a água corrente”.
Que amanhã será cruzada por funda que seja;
Não há um rio dos mortos ou Letes.
Esta noite dormiremos
Às margens do Rubicão - a sorte está lançada.
Para o exame das contas, mais tarde haverá tempo.
Mais tarde haverá sol
E a equação, afinal, surgirá.”“.
Ele fechou o livro lentamente. Ela suspirou não desejando que tivessem chegado ao fim.
- Tão pouco tempo! - disse Penelope. - Ele sabia que a guerra era inevitável...
- Creio que, pelo outono de novecentos e trinta e oito, quase todos nós já sabíamos disso. - O livro escorregou da mão dele para o chão. - Eu vou embora.
O fogo havia morrido. Virando a cabeça, ela fitou o rosto de Richard e o viu tomado de tristeza.
- Por que está assim?
- Porque sinto que a estou traindo.
- Para onde é que irá?
- Não sei. Não posso dizer.
- Quando será?
- Assim que retomarmos a Porthkerris.
O coração dela ficou opresso.
- Amanhã...
- Ou no dia seguinte.
- Você voltará?
- Não imediatamente.
- Eles o designaram para outro posto?
- Sim.
- Quem ficará em seu lugar?
- Ninguém. A operação acabou. Terminou. Tom Mellaby e seu pessoal administrativo permanecerão no Q.G da Marinha Real para encerrar tudo, mas os Comandos e os Rangers estarão partindo dentro de umas duas semanas. Assim, Porthkerris recuperará seu Pier do Norte e, tão logo o campo tenha sido desmilitarizado, os garotos de Doris voltarão a jogar futebol.
- Então, terminou tudo?
- Esta parte das operações, sim.
- O que acontecerá em seguida?
- Teremos de esperar para ver.
- Há quanto tempo você sabia disto?
- Duas, três semanas.
- Por que não me contou antes?
- Por dois motivos. Primeiro, porque isto ainda é segredo, informação sigilosa, embora dentro em breve não o seja mais. Segundo, porque eu não desejava que nada estragasse este pouco tempo que ficamos juntos.
Ela se sentiu inundada de amor por ele.
- Nada o estragaria. - Penelope pronunciou as palavras, e percebeu que eram verdadeiras. - Não devia ter guardado essa notícia com você. Não devia manter-me na ignorância. Nunca deverá guardar segredos de mim!
- Deixar você será a coisa mais difícil que já enfrentei na vida.
Ela pensou na partida dele e no vazio que resultaria. Tentou imaginar a vida sem ele e, melancolicamente, não conseguiu. Apenas uma coisa era certa.
- O pior será dizer adeus.
- Então, não o digamos.
- Não quero que isto termine.
- Não terminou, minha querida. - Ele sorriu. - Ainda nem começou.
- Ele partiu?
Penelope estava tricotando.
- Sim, papai.
- Nem veio aqui para se despedir.
- Seja como for, ele veio vê-lo; trouxe-lhe uma garrafa de uísque. Richard não queria despedir-se.
- Ele se despediu de você?
- Não. Apenas foi embora, cruzando o jardim. Foi como combinamos.
- Quando voltará?
Ela chegou ao fim da carreira tricotada, trocou de agulha e iniciou outra.
- Não sei.
- Está guardando segredos de mim?
- Não.
Ele ficou calado. Suspirou.
- Sentirei falta dele. - Através da sala, seus olhos escuros e compreensivos pousaram sobre a filha. - Mas não tanto quanto você.
- Estou apaixonada por ele, papai. Nós nos amamos.
- Eu sei. Sabia disso há meses.
- Somos amantes.
- Também sei disso. Eu a vi desabrochar, ficar radiosa. Havia um brilho em seus cabelos. Desejei ser capaz de segurar um pincel, pintar essa radiosidade, capturá-la para sempre. Além disso... - Ele se tornou prosaico. Você não partiria por uma semana com um homem e ficaria o tempo todo falando sobre o tempo. - Penelope sorriu para o pai, mas nada disse. - O que será de vocês dois?
- Eu não sei.
- E Ambrose?
Ela deu de ombros.
- Também não sei.
- Você terá problemas.
- Uma dedução maravilhosa.
- Lamento por você. Lamento pelos dois. Merecem uma sorte melhor do que um encontrar o outro no meio de uma guerra.
- Você... você gosta dele, não é, papai?
- Jamais gostei tanto de um homem. Passei a querê-lo como a um filho. Penso nele como um filho.
Penelope, que nunca chorava, imediatamente sentiu lágrimas ardendo no fundo dos olhos. Entretanto, aquele não era o momento mais adequado para sentimentalismos.
- Você é um malvado - disse ao pai. - Já lhe falei isto muitas vezes antes. - Misericordiosamente, as lágrimas recuaram. - Não devia estar aprovando isto. Devia estar estalando seu chicote e rangendo os dentes, desafiando Richard Lomax a ousar sujar sua soleira novamente.
Ela foi recompensada com um sorriso divertido.
- Você me insulta - respondeu seu pai.
Richard tinha partido, era a vanguarda de um êxodo geral. Por volta de meados de abril, ficou claro para os moradores de Porthkerris que o esquema de treinamento da Marinha Real, seu próprio e pequeno envolvimento na guerra, havia terminado. Os Rangers americanos e os Comandos tão sossegados e inconspicuamente como haviam chegado partiram de vez, e as ruas estreitas da cidadezinha ficaram vazias, estranhamente silenciosas, não mais ecoando com as pisadas de botas militares ou com o ruído de veículos oficiais. A barcaça de transporte de tropas desapareceu do porto, afastando-se dali certa noite, sob a cobertura da escuridão; barreiras de arame farpado foram removidas do Pier do Norte, e o Quartel General dos Comandos foi devolvido ao Exército da Salvação. No alto da colina, os galpões temporários da base americana levantavam-se abandonados e vazios e, dos campos de tiro, agora desertos, nos Boscarben, não mais vinha o som do fogo de artilharia.
Finalmente, tudo que permaneceu como evidência da atividade militar naquele longo inverno foi o Q.G da Marinha Real, no velho Hotel White Caps. Ali, no mastro principal ainda flutuava a bandeira do Corpo de Fuzileiros Navais, os jipes continuavam estacionados no pátio frontal, a sentinela permanecia montando guarda junto ao portão, e o Coronel Mellaby ia e vinha com seu pessoal. Sua presença continuada era um lembrete e dava crédito a tudo quanto havia acontecido.
Richard se fora. Penelope aprendeu a viver sem ele, porque não havia alternativa. É impossível dizer-se "não posso suportar isto", porque, quando não suportamos a situação, a única outra coisa a fazer é parar o mundo e desembarcar dele, porém não existe qualquer maneira prática de se fazer tal coisa. Para preencher o vazio, ocupar mãos e mentes, ela fazia o que as mulheres, quando tensas e em épocas de ansiedade, levaram séculos fazendo: imergir na domesticidade e na vida familiar. A atividade física revelou-se uma terapia mundana, mas consoladora. Ela limpava a casa, do sótão ao porão, lavava cobertas, trabalhava na horta. Isto não a impediu de sentir falta de Richard, mas, pelo menos, no fim de tudo, ficava com uma casa reluzente e cheirando bem, não se falando nas duas fileiras de repolhos novos, plantados recentemente.
Além disso, passava muito tempo com as crianças. O mundo deles era mais simples, tinham uma conversa básica e sem complicações, ela sentia conforto em sua companhia. Aos três anos, Nancy já se tornara uma pessoinha; sedutora, teimosa e determinada; seus comentários e observações acertadas eram uma fonte de permanente admiração e divertimento. Clark e Ronald, no entanto, estavam crescidos e ela achava incrivelmente amadurecidas as suas discussões e opiniões. Dava inteira atenção a eles, ajudava-os em suas coleções de conchas, ouvia seus problemas e respondia às perguntas que lhe faziam. Pela primeira vez, ela os viu como iguais, não apenas como dois garotos turbulentos, com duas bocas famintas que precisavam ser alimentadas. Eram pessoas por direito próprio. A geração futura.
Certo sábado, Penelope levou as três crianças à praia. Voltando a Carn Cottage, encontrou lá o General Watson-Grant, que já estava de saída. Ele fora visitar Lawrence. Haviam tido uma agradável conversa. Doris lhes dera chá. Agora, ele voltava para casa. Penelope acompanhou-o ao portão. Ele fez uma pausa, para tocar com a bengala e admirar uma moita de hostas, cerrada, com suas folhas carnudas e brancas flores pontudas.
- Coisas lindas - comentou ele. - Uma cobertura maravilhosa para o solo.
- Também gosto delas. São muito exóticas. - Eles seguiram em frente, ao longo da sebe de escalônias, que já explodiam em botões rosa-escuro. - É difícil acreditar que o verão esteja à porta. Hoje, quando estava na praia com as crianças, vimos o velho com cara de nabo limpando da areia os destroços trazidos pelas ondas. Também já há tendas sendo armadas, e a sorveteria foi aberta. Penso que, dentro em breve, estará chegando a primeira leva de visitantes. Como andorinhas.
- Teve notícias de seu marido?
- ...Ambrose? Acho que está bem. Faz algum tempo não tenho notícias dele.
- Sabe onde se encontra?
- No Mediterrâneo.
- Então, ele irá perder o espetáculo.
Penelope franziu a testa.
- Como disse?
- Eu disse que ele perderá o espetáculo. Ir para a Europa. A invasão.
- É verdade - respondeu ela, em voz fraca.
- Ele deu um maldito azar. Vou lhe dizer uma coisa, Penelope. Daria meu braço direito para ser jovem novamente, poder estar participando ativamente disto tudo. Levamos muito tempo para chegar a esta altura. Tempo demais. Agora, no entanto, o país inteiro está preparado e esperando o momento certo para atacar.
- Sim, eu sei... De repente, a guerra voltou a ser terrivelmente importante. Quando passamos por uma rua em Porthkerris, podemos ouvir o boletim noticioso inteiro, de uma casa para a outra. E todos compram jornais, todos os lêem, aqui e acolá, diante da papelaria. É como se estivéssemos na época de Dunquerque, da Batalha da Grã-Bretanha ou de El Alamein.
Tinham chegado ao portão. Tornaram a parar, com o general apoiado em sua bengala.
- Foi bom ver seu pai. Vim por um impulso súbito. Queria mexericar um pouco.
- Ele tem precisado de companhia estes dias. - Ela sorriu. - Sente falta de Richard Lomax e seu gamão.
- Sim, ele me disse. - Os olhos deles encontraram-se. A expressão do general era gentil e ela encontrou tempo para se perguntar o quanto Lawrence julgara adequada contar a seu velho amigo. - Para ser franco, eu não tinha percebido que o jovem Lomax se fora. Tem notícias dele?
- Tenho.
- E como está indo?
- Ele não diz ao certo.
- Era de imaginar. Acho que a segurança nunca foi tão rígida.
- Nem mesmo sei onde ele está. O endereço que me deu consta apenas de iniciais e números. E quanto ao telefone, é como se nunca tivesse sido inventado.
- Bem, sem dúvida logo terá notícias dele. - O general abriu o portão. - Agora tenho que ir mesmo. Adeus, minha querida. Cuide bem de seu pai.
- Obrigada por ter vindo.
- Foi um prazer.
De repente, ele ergueu o chapéu e inclinou-se para diante, a fim de beijá-la de leve na face. Penelope ficou sem palavras, porque o general jamais fizera semelhante coisa antes. Ficou quieta, vendo-o afastar-se, caminhando animadamente com sua bengala.
O país inteiro esperando. A espera era o pior. À espera da guerra: à espera de notícias: à espera da morte. Ela estremeceu, fechou o portão e tornou a cruzar o jardim lentamente, de volta à casa.
A carta de Richard chegou dois dias mais tarde. A primeira a descer para o térreo, ainda manhã cedo, Penelope a viu jazendo onde o carteiro a deixara, em cima da cômoda do vestíbulo. Viu a caligrafia negra em itálico, o envelope volumoso. Foi com ele para a sala de estar, aninhou-se na grande cadeira de papai e o abriu. Eram quatro folhas de fino papel amarelo, dobradas apertadamente.
De algum lugar da Inglaterra.
2O de maio de 1944.
Minha querida Penelope,
Nestas últimas semanas, por umas doze vezes me dispus a escrever para você. E, de cada vez, não fui além das primeiras quatro linhas, quando então era interrompido por algum telefonema, um chamado em voz alta, batidas à porta ou convocações urgentes, de um tipo ou de outro.
Finalmente encontrei um momento, neste obscuro lugar, em que posso ter alguma certeza de uma hora de quietude. Suas cartas chegaram sãs e salvas, tendo sido uma fonte de alegria para mim. Carrego-as comigo como um colegial apaixonado e as releio, vezes incontáveis. Já que não posso estar com você, pelo menos ouço a sua voz.
Bem, tenho muitas coisas a dizer-lhe. Na verdade, é difícil saber por onde começar, recordar o que falamos e quando ficamos calados. Esta carta é sobre o que não foi dito.
Você nunca quis falar sobre Ambrose e isto pareceu pouco importante quando estivemos em Tresillick, habitando nosso mundo particular. Entretanto, nestes últimos tempos ele raramente me sai da cabeça, ficando claro que é o único bloqueio entre nós e nossa eventual felicidade. Isto talvez soe terrivelmente egoísta, mas um homem não pode tirar a mulher de outro e continuar um santo. E minha mente, parecendo por volição própria, tem feito planos. Vivo pensando em confrontos, admissões, culpas, advogados, tribunais e um eventual divórcio.
Sempre existe a possibilidade de que Ambrose aja cavalheirescamente e lhe conceda o divórcio. Com franqueza, não vejo qualquer motivo pelo qual devesse agir assim, de maneira que estou inteiramente preparado para apresentar-me no tribunal como co-réu e, então, permitir que ele se divorcie de você. Se isto acontecer, ele deverá ter acesso a Nancy, porém essa é uma ponte que precisamos cruzar quando chegarmos a ela.
Importa apenas que fiquemos juntos e que eventualmente nos casemos - segundo espero, o mais cedo possível. Um dia, a guerra terminará. Serei desmobilizado e retomarei à vida civil, com agradecimentos e uma pequena indenização. Você pode encarar a perspectiva de ser esposa de um professor? Porque isto é tudo quanto quero ser. Não sei dizer para onde iremos, onde viveremos e como será, mas se me couber alguma escolha, eu gostaria de voltar para o Norte, a fim de ficar perto dos Lagos e das montanhas do distrito de Peak.
Sei que tudo isto parece muito distante. Há uma difícil estrada à frente, pontilhada de obstáculos que deverão ser transpostos, um por um. Entretanto, viagens de mil quilômetros começam com o primeiro passo e, quando pensamos um pouco, nenhuma expedição é a pior.
Ao reler o que escrevi, esta me parece a carta de um homem feliz, que espera viver para sempre. Por algum motivo, tenho esperanças de sobreviver à guerra. A morte, o último inimigo, ainda me parece muito longe, além da velhice e da enfermidade. Por outro lado, não é possível acreditar que o destino, após ter-nos reunido, não queira que continuemos assim.
Penso em todos vocês em Carn Cottage, tento imaginar o que estarão fazendo e desejaria estar aí com vocês, convivendo com o riso e afazeres domésticos daquele que passei a pensar como meu segundo lar. Foi tudo muito bom, em cada sentido da palavra. E, nesta vida, nada que seja bom é realmente perdido. Fica fazendo parte de uma pessoa, torna-se parte de seu caráter. Assim, uma parte sua acompanha-me a todo canto. E uma parte minha é sua, para sempre. O meu amor, minha querida, Richard.
Na terça-feira, seis de junho, as Forças Aliadas invadiram a Normandia. Iniciava-se a Segunda Frente e começara a ultima longa batalha. A espera havia terminado.
O dia onze de junho foi um domingo.
Tomada por um acesso de zelo religioso, Doris tinha levado seus meninos à igreja e Nancy à escola dominical, deixando a Penélope a tarefa de preparar o almoço. Por aquela vez, o açougueiro tivera mais sorte do que o esperado e, de sob o balcão, produzira um pequeno pernil de cordeiro de primavera. Agora, o pernil estava no forno, assando e exalando um aroma delicioso, circundado por crocantes batatas. As cenouras cozinhavam, e o repolho fora cortado. Como sobremesa, teriam pudim de ruibarbo e creme de leite.
Era quase meio-dia. Ela pensou em molho de hortelã. Ainda usando o avental da cozinha, saiu pela porta dos fundos e subiu a encosta que ia dar no pomar. Havia brisa. Doris lavara uma montanha de roupa e a estendera no varal, onde toalhas e lençóis agitavam-se e sacudiam-se ao vento como velas mal colocadas. Patos e galinhas, presos em seu galinheiro, viram Penelope chegando e iniciaram um coro de grasnidos e cacarejos, esperando comida.
Ela encontrou a hortelã, colheu rapidamente um molho perfumado. Entretanto, quando voltava para a casa por entre a relva alta, ouviu o som do portão de baixo, sendo aberto e fechado. Ainda era cedo para a volta dos que tinham ido à igreja, de maneira que ela tomou a direção dos degraus de pedra que levavam ao gramado à frente da casa e ficou lá, esperando para ver quem chegava.
O visitante apareceu, em passos lentos. Um homem alto, uniformizado. De boina verde. Por uma fração de instante, suficientemente longa para que seu coração saltasse, ela pensou que fosse Richard, mas logo viu que não era. O Coronel Mellaby chegou ao alto do caminho e parou. Erguendo a cabeça, viu que ela o espiava. De repente, tudo ficou muito quieto. Como um filme, emperrado em um só quadro, porque o projetor avariou-se. A própria brisa parou. Nenhum pássaro trinou. O gramado verde jazeu entre eles, como um campo de batalha. Ela permaneceu imóvel, esperando que ele fizesse o primeiro movimento.
Ele o fez. Com um clique e um zumbido, o filme recomeçou. Penelope foi ao encontro dele. O coronel parecia mudado. Ela não havia percebido o quanto estava pálido e abatido.
Penelope falou primeiro.
- Coronel Mellaby...
- Minha querida...
Ele soava como o General Watson-Grant, exibindo suas maneiras mais gentis e, a partir daquele segundo, Penelope adivinhou o que o coronel viera dizer-lhe, sem a menor sombra de dúvida.
- E sobre Richard? - perguntou.
- Sim, é. Eu sinto muitíssimo.
- O que aconteceu?
- São más notícias.
- Pode dizer.
- Richard... foi morto. Ele morreu.
Ela esperou sentir alguma coisa. Nada sentiu. Somente o molhinho de hortelã, apertado firme em sua mão; uma mecha de cabelo contra o rosto. Erguendo a mão, Penelope a afastou. Seu silêncio continuou jazendo entre eles, como um grande abismo intransponível. Ela sabia disto e lamentava por ele, mas nada podia fazer.
Por fim, com enorme e visível esforço, ele prosseguiu:
- Fiquei sabendo esta manhã. Antes de partir, ele me pediu... disse que se alguma coisa lhe acontecesse, que eu viesse imediatamente comunicar a você.
Ela por fim encontrou voz.
- Foi muita gentileza sua. - Era uma voz que não parecia a sua. - Quando foi que aconteceu?
- No Dia D. Ele acompanhou os homens que havia treinado aqui. O Second United States Rangers.
- Ele tinha que ir?
- Não, mas quis estar com eles. E eles sentiram-se orgulhosos em tê-lo junto.
- O que aconteceu?
- Eles desembarcaram no flanco da Praia de Omaha, com a Primeira Divisão dos Estados Unidos, em um lugar chamado Pointe de Hué, perto do fundo da península de Cherburgo. - A voz dele era mais segura agora e falava sem emoção, de assuntos que entendia. - Do que posso deduzir, tiveram alguma dificuldade com seu equipamento. Os arpéus lançados por foguete ficaram molhados durante a travessia, deixando de funcionar adequadamente. No entanto, eles escalaram o penhasco e assaltaram o ninho de artilharia alemã no alto. Alcançaram seu objetivo.
Ela pensou nos jovens americanos que haviam passado o inverno ali, em Porthkerris, a um oceano de distância de seus lares, de suas famílias.
- Houve muitas baixas?
- Sim. No decorrer do assalto, pelo menos metade deles pereceu.
E Richard com eles. Ela disse:
- Ele não achava que seria morto. Disse que a morte, o último inimigo, ainda parecia muito longe. Foi bom ter pensado assim, não?
- Sem dúvida. - Ele mastigou o lábio. - Ouça, minha querida, você não precisa ser corajosa. Se quiser chorar, não tente sufocar suas lágrimas. Sou um homem casado e com filhos. Eu compreenderia.
- Também sou casada e tenho uma filha.
- Eu sei.
- E há anos que não choro.
Ele erguia a mão para o bolso do peito, desabotoava a aba. Desse bolso, tirou uma fotografia.
- Um de meus sargentos deu-me isto. Estava com a máquina fotográfica e bateu a foto certo dia, quando estavam todos nos Boscarben. Ele achou... eu achei... que você gostaria de possuí-la.
Entregou-lhe a foto. Penelope observou-a. Viu Richard, virando-se como que para olhar por sobre o ombro, para ser apanhado despercebido e sorrindo para o fotógrafo. De uniforme, mas com a cabeça nua, tendo um rolo de corda de escalar pendendo do ombro. Devia ser um dia de brisa, como agora, porque tinha o cabelo desarrumado. No fundo jazia o longo horizonte do mar.
- Foi muita consideração - disse ela. - Obrigada. - Eu não tinha um retrato dele.
O coronel ficou calado. Os dois permaneceram ali, parados, sem saber o que dizer mais.
- Você está bem? - perguntou ele finalmente.
- Sim, claro.
- Então, vou deixá-la. A menos que haja algo que eu possa fazer.
Ela pensou a respeito.
- Sim. Sim, há uma coisa. Meu pai está lá dentro. Na sala de estar. Poderá encontrá-lo sem dificuldade. Quer ir lá, agora, e dar-lhe a notícia sobre Richard?
- Quer mesmo que eu faça isso?
- Alguém tem que dizer a ele. E não sei se eu teria coragem suficiente.
- Muito bem.
- Estarei lá em um momento. Eu lhe darei tempo para comunicar a notícia e então chegarei.
Ele foi. Seguiu o caminho até os degraus da porta da frente e cruzou a porta. Não era apenas um homem gentil, mas também corajoso. Penelope ficou onde ele a deixara, com seu molhinho de hortelã entre os dedos e a fotografia de Richard na outra mão. Recordou a manhã espectral do dia em que Sophie morrera, lembrou-se de como havia ficado furiosa e chorara. Agora, ansiava pelo mesmo fluxo de emoção, porém nada acontecia. Estava simplesmente entorpecida, fria como gelo.
Olhou para o rosto de Richard. Nunca mais. Nem mais uma vez. Nada restara. Viu o sorriso dele. Recordou-lhe a voz, lendo para ela.
Evocou as palavras. De repente, lá estavam elas, enchendo-lhe a mente como uma canção um dia esquecida.
...a sorte está lançada,
Para o exame das contas, mais tarde haverá tempo,
Mais tarde haverá sol
E a equação, afinal, surgirá.
Mais tarde haverá sol. Devo dizer isso a papai, pensou ela. Então, isto lhe pareceu um meio tão bom como qualquer outro, a fim de reiniciar o resto de vida que tinha pela frente.
DORIS
Podmore's Thatch. Um pássaro trinou, seu trinado varando o silêncio do alvorecer acinzentado. O fogo havia morrido, porém a luz acima de “Os catadores de conchas” continuava brilhando, como brilhara a noite inteira. Penelope não havia dormido, porém agora espreguiçava-se, como o adormecido despertando de um sono profundo e tranqiiilo. Espichou as pernas por baixo da espessa manta de lã, estendeu os braços e esfregou os olhos. Espiou em volta; à claridade suave, viu sua própria sala de estar, a tranqüilidade de seus bens, flores, plantas, escrivaninhas, quadros; a janela aberta para seu próprio jardim. Viu os galhos mais baixos do castanheiro, os brotos que ainda não haviam despontado como folhas. Não dormira,
porém a vigília não a deixara fatigada. Pelo contrário, sentia uma espécie de calmo contentamento, uma tranqüilidade que talvez se originasse da rara auto-indulgência da evocação total.
Agora, ela tinha chegado ao fim. A peça terminara. A ilusão do teatro era forte. As luzes da ribalta amorteciam-se e, à claridade agonizante, os atores se viravam, para sua saída do palco. Doris e Ernie, jovens como nunca mais seriam. Também os velhos Penberth, os Trubshot e os Watson-Grant. E papai. Todos mortos. Mortos havia muito. O último a se retirar do palco fora Richard. Recordou-o sorrindo e percebeu que o tempo, aquele grande e velho curador finalmente cumprira sua tarefa. Agora, através dos anos, a face do amor não mais despertava agonias de pesar e amargura. Ao contrário, o sentimento que restava era simplesmente de gratidão. Porque sem Richard para recordar, o passado seria indescritivelmente vazio. Era melhor ter amado e perdido, ela disse para si mesma, do que jamais ter amado. E Penelope sabia que isto era verdade.
No aparador da lareira, seu relógio de corda dourado bateu as seis horas. A noite se fora. Agora era amanhã. Outra quinta-feira. O que tinha acontecido aos dias? Tentando decifrar o enigma, ela descobriu que haviam escoado duas semanas desde a visita de Roy Brookner, quando ele levara consigo os painéis e os esboços. E até agora não dera notícias.
Ela tampouco tivera notícias de Noel ou de Nancy. Com aquela última briga ainda azedando entre todos eles, os dois simplesmente haviam preferido distanciar-se da mãe e permanecer incomunicáveis. Isto a preocupava bem menos do que seus filhos talvez imaginassem. Com o tempo, sem dúvida, voltariam a estabelecer contato, não apresentando desculpas, mas agindo como se nada de anormal tivesse acontecido. Até lá, Penelope tinha muita coisa em que pensar e não dispunha de energias para desperdiçar em rixas infantis e sentimentos feridos. Havia coisas melhores em que se entreter e muitíssimo mais a fazer. Segundo o costume, casa e jardim haviam reclamado a maior parte de sua atenção. Como era típico, os dias de abril alteravam-se continuamente. Céu cinzento, folhagens lívidas, chuvaradas de encharcar os ossos e, então, sol novamente. As forsítias chamejavam amarelo-manteiga; o pomar se tomou um tapete de narcisos, violetas e prímulas.
Quinta-feira. Danus viria esta manhã. E, talvez hoje, Roy Brookner telefonasse de Londres. Considerando esta possibilidade, Penelope teve certeza de que hoje ele telefonaria. Era mais do que uma sensação. Era mais forte do que isso. Uma premonição.
A esta altura, o pássaro solitário cantava em coro com mais uma dúzia de outros, e o ar estava cheio de seus trinados. Era impossível pensar em dormir. Ela se levantou do sofá, apagou a luz e foi ao andar de cima, preparar para si mesma um banho bem quente e com muitíssima água.
Sua premonição era acertada. Ele ligou durante o almoço.
O doce alvorecer transformara-se em um dia cinzento, com nuvens baixas e carregadas, não oferecendo qualquer perspectiva para um piquenique ao ar livre ou na estufa de plantas. Assim, ela, Antonia e Danus acomodaram-se à mesa da cozinha, dispostos a consumir uma enorme terrina de espaguete à bolonhesa e uma travessa de frios. Por causa do tempo, Danus passara a manhã fazendo uma faxina na garagem. Indo até sua escrivaninha para encontrar um número de telefone, Penelope acabara ficando por lá, apanhada de surpresa pela papelada amontoada, saldando contas vencidas, relendo cartas antigas e jogando fora uma boa quantidade de envelopes com relatórios comerciais, que nunca se dera ao trabalho de tirar dos envelopes. Antonia preparara o almoço.
- Você não é apenas um excelente ajudante de jardineiro, mas uma cozinheira de primeira classe - disse-lhe Danus, espalhando queijo parmesão sobre seu espaguete.
O telefone tocou.
- Quer que eu atenda? - perguntou Antonia.
- Não é preciso. - Penelope largou o garfo e levantou-se. - Seja lá quem for, deve ser mesmo para mim.
Em vez de responder à chamada na cozinha, foi para a sala de estar, fechando portas à sua passagem.
- Alô?
- Sra. Keeling?
- Ela mesma.
- Aqui fala Roy Brookner.
- Pois não, Sr. Brookner?
- Lamento ter ficado tanto tempo sem me comunicar com a senhora, mas o Sr. Ardway estava visitando amigos em Gstaad, só tendo voltado a Genebra há dois dias. Foi quando encontrou minha carta, esperando em seu hotel. Voou para Heathrow esta manhã e agora está aqui, em meu escritório. Mostrei os painéis a ele e ficou muito grato pela oportunidade. Ofereceu cinqüenta mil por cada um deles. Serão cem mil pelo par. Em libras esterlinas, naturalmente, não dólares. Seria uma soma aceitável para a senhora ou gostaria de algum tempo para pensar a respeito? Ele pretendia retornar a Nova York amanhã, porém está disposto a adiar a viagem, se for preciso, a fim de que a senhora tenha tempo para chegarem a um acordo. Pessoalmente, acho uma oferta bastante razoável, mas se...Sra. Keeling? Está ouvindo?
- Sim. estou ouvindo.
- Perdão, pensei que a ligação houvesse caído.
- Não. Continuo ouvindo bem.
- A senhora tem algum comentário a fazer?
- Nenhum.
- A soma que mencionei seria aceitável para a senhora?
- Sim. É perfeitamente aceitável.
- Então, gostaria que eu fosse em frente e finalizasse a venda?
- Faça isso. Por favor.
- Nem preciso dizer-lhe que o Sr. Ardway está encantado.
- Fico satisfeita em saber.
- Entrarei em contato com a senhora. E, claro, o pagamento será efetuado assim que a transação for encerrada.
- Obrigada, Sr. Brookner.
- Talvez este não seja o momento mais apropriado para mencionar, porém é claro que haverá consideráveis impostos a pagar. - A senhora compreende, não?
- Sem dúvida.
- A senhora tem algum contador ou alguém que cuide de seus negócios?
- Tenho o Sr. Enderby, de Enderby, Loosebye Thring. São advogados, na Gray's Irm Road. O Sr. Enderby cuidou de tudo, quando vendi a casa da Rua Oakley e comprei esta em que moro hoje.
- Sendo assim, talvez fosse conveniente a senhora entrar em contato com ele e colocá-lo a par da situação.
- Sim. Sim, farei isso...
Houve uma pausa. Penelope perguntou-se se ele iria desligar.
- Sra. Keeling?
- Diga, Sr. Brookner.
- A senhora está bem?
- Por quê?
- Não estará um pouco... atordoada?
- Deve ser porque acho difícil parecer outra coisa.
- Está inteiramente satisfeita com o arranjo?
- Estou. Inteiramente satisfeita.
- Neste caso, até outra ocasião, Sra. Keeling...
- Um momento, Sr. Brookner! Por favor. Há algo mais.
- Estou ouvindo.
- É sobre “Os catadores de conchas”.
- Sim?
Ela lhe disse o que queria que ele fizesse.
Penelope tornou a depositar o fone no gancho, muito lentamente. Estava sentada à sua escrivaninha recentemente arrumada e ali permaneceu por alguns momentos. Estava tudo muito quieto. Da cozinha, podia perceber o murmúrio de vozes. Antonia e Danus pareciam nunca ficar sem assunto para conversar um com o outro. Voltou ao encontro deles e os viu ainda à mesa, já tendo terminado seu espaguete e agora passando às frutas, queijo e café. Seu próprio prato havia desaparecido.
- Coloquei seu prato no forno, para não esfriar - disse Antonia.
Ela se levantou para apanhá-lo, mas Penelope a deteve.
- Não. Não se preocupe. Não quero mais comer.
- E que tal uma xícara de café?
- Não. Nem mesmo café.
Sentou-se em sua cadeira, com os braços dobrados em cima da mesa. Sorriu, porque não podia deixar de sorrir, porque amava os dois jovens e porque estava prestes a oferecer-lhes o que considerava a mais preciosa dádiva no mundo inteiro. Era um presente que oferecera a cada um de seus três filhos, mas que eles haviam recusado, um a cada vez.
- Tenho uma proposta a fazer - disse ela. - Vocês iriam à Cornualha comigo? Iriam à Cornualha, para passarmos lá a Páscoa? Juntos. Apenas nós três?
Podmore's Thatch.
Temple Pudley.
Gloucestershire.
17 de abril de 1984.
Minha querida Olivia.
Escrevo a você para contar-lhe várias coisas que aconteceram e outras que estão
prestes a acontecer. Nesse último fim de semana, quando Noel trouxe Antonia e fez a faxina no sótão, tendo Nancy vindo para o almoço do domingo, tivemos uma forte discussão, e estou
certa de que você de nada ficou sabendo. Inevitavelmente, foi acerca de dinheiro e sobre o fato de eles considerarem que eu devia vender os quadros de meu pai imediatamente, agora, quando o mercado está em alta. Eles me garantiram que estavam preocupados apenas comigo mesma, porém a verdade é que os conheço bem demais. Eles é que precisam do dinheiro.
Depois que finalmente partiram, tive tempo para refletir em tudo que aconteceu e, na manhã seguinte, decidi telefonar para o Sr. Roy Drookner, da Boothby's. Ele veio até aqui, viu os painéis e os levou consigo. Encontrou para mim um comprador particular, um americano, que me ofereceu cem mil libras pelo par. Aceitei a oferta.
Há muitas maneiras pela quais eu poderia gastar este dinheiro caído do céu, mas no momento vou fazer uma coisa que venho desejando há muito tempo, que é voltar à Cornualha. Já que nem você, Noel ou Nancy encontraram tempo ou vontade de ir comigo, convidei Antonia e Danus. Danus hesitou a princípio, mas terminou aceitando o meu convite. Para ele, foi algo inteiramente inesperado e acho que ficou constrangido, talvez achando que, de certa forma, eu sentia pena dele e me mostrava um tanto protetora. Imagino que seja um rapaz muito orgulhoso. Finalmente o convenci de que nos estaria prestando um favor; nós duas precisaríamos de um homem forte para lidar com bagagens, carregadores e garçons. Por fim, ele concordou em falar com seu empregador e saber se poderia tirar uma semana de folga. Foi o que fez e, desta maneira, estaremos partindo amanhã cedo, eu e Antonia revezando-nos na direção. Não pretendemos ficar com Doris, porque em sua casinha não há espaço para três hóspedes. Assim, reservei acomodações no Hotel The Sands, e lá chegaremos por volta da Páscoa.
Escolhi The Sands, porque recordo esse hotel como sendo despretensioso e aconchegante. Quando eu era criança, famílias inteiras iam de Londres para as férias do verão. Elas continuavam indo, ano após ano, levavam seus filhos, motoristas, babás e cachorros. Todos os verões, a gerência do hotel organizava um pequeno torneio de tênis e havia uma festa ao anoitecer, quando os adultos dançavam foxtrotes em trajes a rigor, com as crianças dançando Sir Roger de Coverley (*) e ganhando balões de gás. Durante a guerra, o hotel foi transformado em hospital e se encheu de pobres rapazes feridos, envoltos em mantas vermelhas; lá, bonitas auxiliares voluntárias ensinavam a eles como confeccionar cestas.
Entretanto, quando falei a Danus para onde íamos, ele pareceu um pouco surpreso. Aparentemente, The Sands agora é muito caro e pomposo, acho que ele ficou preocupado, da maneira mais delicada possível, com a questão do dinheiro. Evidentemente, o que agora menos importa é o preço. É a primeira vez na vida que escrevo esta frase. Com isto, experimento a sensação mais extraordinária e tenho a impressão de que, repentinamente, me tornei uma pessoa diferente por completo. Aliás, tal coisa não me provoca a menor objeção, e estou excitada como uma criança.
Ontem, eu e Antonia fomos de carro a Cheltenham e fizemos compras. Esta nova Penelope é quem manda agora, e você não teria reconhecido sua mãe, sempre tão econômica, mas creio que a teria aprovado. Foi como se houvéssemos enlouquecido. Comprei vestidos para Antonia, uma linda saia de cetim creme, jeans e pulôveres de algodão, bem como um impermeável amarelo e quatro pares de sapatos. Em seguida, ela desapareceu em um salão de beleza, para que lhe aparassem a franja, enquanto eu continuei sozinha a gastar dinheiro em coisas deliciosas e desnecessárias para as minhas férias. Um novo par de sapatilhas de lona, com cordéis amarrando no peito do pé, talco e um frasco enorme de perfume. Filmes fotográficos e cremes faciais, além de um pulôver de caxemira cor de violeta. Comprei uma garrafa térmica e uma toalha xadrez (para piqueniques), bem como uma pilha de livros de bolso para me distrair (incluindo O sol também se levanta – há anos não leio Hemingway). Comprei um livro sobre pássaros britânicos e um outro cheio de mapas, maravilhoso.
(*) Música e dança rural. (N. da T.)
Quando encerrei minha orgia de compras cheguei até o banco, depois ofereci-me uma xícara de café, para então ir apanhar Antonia. Quando a vi, era uma pessoa inteiramente estranha e muito bonita. Não somente mandara aparar o cabelo, como tingira as pestanas. Tal medida modificou inteiramente sua aparência. A princípio, ficou um pouco constrangida pela mudança, mas agora está acostumada à idéia, podendo ser observada lançando olhares admirativos ao espelho, de quando em quando. Há muitíssimo tempo não me sinto tão feliz.
Quando vier amanhã, a Sra. Plackett limpará e trancará a casa, depois que partirmos. Voltaremos no dia vinte e cinco, quarta-feira.
Falta apenas um coisa. “Os catadores de conchas” já se foi. Doei-o à Galeria de Arte de Porthkerris, em memória de meu pai, que ajudou em sua fundação. Curiosamente, não preciso mais dele e gosto de pensar que outros - pessoas comuns - poderão partilhar o prazer e a delícia que ele sempre me proporcionou. O Sr. Brookner tomou providências para seu transporte até lá; um furgão chegou, como programado, e o levou. O vazio acima da lareira ficou bastante visível, mas um dia voltarei a preenchê-lo com alguma outra coisa. Nesse ínterim, anseio ter o quadro pendurado em seu novo lar, para que todos o vejam.
Não escrevi a Nancy e nem a Noel. Eles acabarão sabendo tudo, mais cedo ou mais tarde; provavelmente ficarão muito ressentidos e aborrecidos, mas nada posso fazer para remediar isso. Dei a eles tudo o que pude, mas estão sempre querendo mais. Talvez agora parem de importunar-me e cuidem de suas próprias vidas.
Acredito que você, no entanto, compreenderá.
Aceite o meu amor, como sempre, Mamma.
Nancy não se sentia muito bem consigo mesma. O motivo disto era não ter tido contato com sua mãe desde aquele malogrado domingo, quando ocorrera a terrível discussão sobre as pinturas, com Penelope se voltando contra eles dois, dizendo a ela e a Noel palavras tão desagradáveis e constrangedoras.
Não que Nancy se sentisse culpada. Pelo contrário, ficara profundamente ofendida. Sua mãe fizera acusações que jamais deveriam ter sido pronunciadas, e ela fora deixando que os dias corressem, em frígida incomunicabilidade, pois esperava que Penelope fizesse o primeiro movimento. Ela poderia telefonar, se não para se desculpar, então para conversar, indagar dos netos, talvez sugerir uma reunião. Isto provaria a Nancy que tudo fora esquecido, que as relações entre ambas estavam novamente seguindo o curso normal.
Entretanto, nada acontecera. Não houve telefonema algum. No início, Nancy se manteve decididamente ofendida, acalentando seu ressentimento. Não gostava da sensação de ter caído no desagrado materno. Afinal de contas, nada fizera de errado. Apenas dissera o que pensava, preocupada com o bem de todos eles.
Aos poucos, no entanto, foi ficando preocupada. Sua mãe não costumava guardar ressentimentos. Seria possível que não estivesse bem? Ela parecera ficar muito transtornada e, certamente, isso não poderia ser bom para uma mulher de idade, que sofrera um ataque cardíaco. A discussão tivera repercussões? Nancy estremecia a tal idéia, procurava expulsar a ansiedade da mente. Claro que não. Se tivesse acontecido alguma coisa, certamente Antonia comunicaria. Ela era jovem e talvez irresponsável, mas sua irresponsabilidade não chegaria a tais extremos.
A preocupação transformou-se em idéia fixa e Nancy não conseguia afastá-la da mente. Durante os últimos poucos dias, aproximara-se algumas vezes do telefone e de fato o erguera do gancho, a fim de discar o número de Podmore's Thatch, porém tornava a recoloca-lo, sem saber o que iria dizer e não encontrando qualquer razão para falar. Então, teve uma inspiração súbita. A Páscoa se aproximava. Convidaria a mãe e Antonia para o almoço da Páscoa, no velho vicariato. Isto não envolveria constrangimento de sua parte e, durante o cordeiro assado com batatas frescas, as duas chegariam à reconciliação total.
Ocupava-se da não muito árdua tarefa de limpar os móveis da sala de refeições, quando lhe ocorreu o brilhante plano. Largando o espanador e a lata de lustra-móveis, ele foi diretamente para a cozinha e o telefone. Discou o número e esperou, sorrindo socialmente, de todo decidida a colocar em sua voz o mesmo sorriso. Ouviu a campainha retinindo no outro extremo do fio. Ninguém respondeu. Seu sorriso esmaeceu. Esperou bastante tempo. Por fim, vendo que ligava inutilmente, desligou.
Tomou a ligar às três da tarde e, mais uma vez, às seis. Pediu o auxílio de "Consertos", solicitando que checassem o número.
- Está chamando - informou o encarregado.
- Eu sei que está chamando. Ouvi o toque da campainha o dia inteiro. Deve haver algo errado.
- Tem certeza de que a pessoa para quem liga está em casa?
- Claro que ela está em casa! Trata-se de minha mãe. Ela sempre esta em casa.
- Se aguardar um momento, farei uma checagem e ligarei para a senhora.
- Obrigada.
Nancy esperou. O homem ligou para ela. Nada havia de errado com a linha. Ao que tudo indicava, sua mãe, simplesmente, não estava lá.
A esta altura, a preocupação de Nancy se tornara realmente angustiosa. Ligou para Olivia, em Londres.
- Olivia?
- Alô?
- Aqui é Nancy...
- Sim, foi o que pensei.
- Escute, Olivia, estou tentando ligar para mamãe, porém ninguém atende em Podmore's Thatch. Tem alguma idéia do que aconteceu?
- É claro que ninguém atenderia. Ela foi à Cornualha.
- À Cornualha?
- Exatamente. Foi passar a Páscoa lá. Foi de carro, juntamente com Antonia e Danus.
- Antonia e Danus?
- Não fique tão horrorizada! - A voz de Olivia estava cheia de divertimento. - Por que ela não iria? Há meses vinha querendo ir e, como nenhum de nós a acompanharia, então levou eles dois.
- Bem, mas certamente não vão ficar todos em casa de Doris Penberth, não? Lá não haveria espaço.
- Oh, não! Não foram ficar com Doris. Estão hospedados no The Sands.
- No The Sands?
- Oh, Nancy, pare de repetir tudo quanto digo!
- Bem; o The Sands é o melhor. Um dos melhores hotéis do país. Está anunciado em toda parte. Custa os olhos da cara!
- Você não sabia? Mamãe pode pagar os olhos da cara. Vendeu os painéis a um milionário americano, por cem mil libras.
Nancy ficou em dúvida se iria passar mal ou desmaiar. Provavelmente desmaiaria. Podia sentir o sangue refluindo de seu rosto. Os joelhos ficaram bambos. Ela estendeu a mão para uma cadeira.
- Cem mil libras... Não é possível! Eles não podiam valer tanto! Nada vale cem mil libras!
- Nada vale, a menos que alguém o queira. Também existe o valor da raridade. Tentei explicar tudo isto a você, no dia em que almoçamos no L’Escargot. As obras de Lawrence Stern raramente aparecem no mercado, e esse americano, seja lá quem for, provavelmente queria aqueles painéis, mais do que tudo no mundo. E não se preocupou com o que pagaria por eles. Felizmente para mamma. Eu não poderia ficar mais satisfeita por ela.
A mente de Nancy, entretanto, galopava. Cem mil libras!
- Quando foi que tudo isto aconteceu? - conseguiu finalmente perguntar.
- Oh, não sei ao certo. Sei apenas que foi bem recente.
- E como é que você sabe?
- Ela me escreveu uma longa carta, contanto tudo. Falou-me sobre a briga que teve com você e Noel. Vocês não se emendam! Já cansei de dizer para que a deixem em paz, mas não adianta. Insistem em importuná-la incessantemente e, por fim, ela não suportou mais! Acho que foi isso que a levou a negociar os painéis. Provavelmente percebeu que seria a única maneira de acabar com os atenzamentos intermináveis de vocês.
- Isto é absolutamente injusto!
- Oh, Nancy, pare de fingir para mim e pare de fingir para si mesma!
- Eles é que passaram a dominá-la!
- Eles, quem?
- Danus e Antonia! Você nunca devia ter mandado essa garota ficar com mamãe! E não tenho um pingo de confiança nesse Danus!
- Noel também não.
- E isso não a preocupa?
- Nem remotamente. Tenho grande confiança no julgamento de mamma.
- E o que me diz do dinheiro que está desperdiçando com eles? Neste exato momento. Hospedada com toda pompa no hotel The Sands. E com seu jardineiro!
- Por que ela não deveria desperdiçar o dinheiro? Afinal, é dela, não? E por que não deveria gastá-lo consigo mesma e dois jovens que aprecia? Como falei, ela pediu a todos nós que a acompanhássemos, porém nenhum aceitou o convite. Tivemos nossa chance e a rejeitamos. Só podemos culpar a nós mesmos.
- Quando ela me convidou, o hotel The Sands não foi mencionado. Seria para ficarmos comendo e dormindo na casa de Doris Penberth. Ocupando seu quarto vago.
- Foi isso que a impediu de aceitar? A idéia de ficar hospedada em um quarto apertado na casa de Doris? Você aceitaria, se o hotel The Sands fosse acenado diante de seu nariz, como uma cenoura diante de um jumento?
- Você não tem o direito de falar assim!
- Tenho todo o direito! Sou sua irmã, que Deus me perdoe! E ainda há mais uma coisa que devia saber. Mamma foi a Porthkerris, porque era o seu sonho de anos e anos, mas também porque foi ver “Os catadores de conchas”. Ela o doou para a Galeria de Arte de lá, em memória de seu pai. Então, quis vê-lo ocupando seu novo lar.
- Ela o doou? - Por um momento, Nancy pensou ter ouvido mal ou não ter entendido bem as palavras da irmã. - Está querendo dizer que o deu?
- Isso mesmo.
- Oh, mas ele talvez valha milhares. Centenas de milhares!
- Tenho certeza de que todos os envolvidos fazem a mesma avaliação.
“Os catadores de conchas”. Perdido para sempre. O senso da injustiça perpetrada contra ela e sua família deixou Nancy lívida de raiva.
- Ela sempre nos disse que não poderia viver sem esse quadro - falou, em tom amargo. - Repetia que era parte de sua vida.
- E foi. Foi mesmo, durante anos. Entretanto, acho que ela agora se sente capaz de viver sem ele. Mamma quer partilhá-lo. Quer que outras pessoas possam também vê-lo e apreciá-lo.
Era evidente que Olivia estava do lado da mãe.
- E quanto a nós? Quanto à sua família? Seus netos! Noel! Noel já sabe disto?
- Não sei. Creio que não. Nunca mais o vi nem soube dele, depois que levou Antonia a Podmore's Thatch.
- Eu contarei a ele – disse Nancy, em tom de ameaça.
- Conte mesmo - respondeu Olivia, e desligou.
Nancy deixou o fone cair no gancho com força. Maldita Olivia! Maldita! Tornou a erguer o fone, e foi com mãos trêmulas que discou o número de Noel. Que se lembrasse, nunca estivera tão perturbada.
- Noel Keeling falando.
- Aqui é Nancy.
Ela falava em voz firme, sentindo-se importante, convocando uma conferência familiar.
- Oi - disse ele, não parecendo nem um pouco entusiasmado.
- Acabei de falar com Olivia. Tentei ligar para mamãe, mas ninguém atendia, de maneira que falei com Olivia, porque ela talvez soubesse o que estava acontecendo. Ela sabia, porque mamãe lhe escreveu uma carta. Escreveu para Olivia, mas não se deu o trabalho de entrar em contato comigo ou com você.
- Não faço a menor idéia do que está falando.
- Mamãe viajou para a Cornualha. Levou Danus e Antonia a com ela.
- Santo Deus...
- Os três estão hospedados no hotel The Sands.
Isto chamou a atenção dele.
- No The Sands? Pensei que ela fosse ficar com Doris. E com que vai pagar a hospedagem no The Sands? É um dos mais infernalmente caros hotéis do país!
- Eu lhe direi com quê. Mamãe vendeu os painéis. Por cem mil libras. E, diga-se de passagem, sem discutir o assunto com qualquer de nós. Cem mil libras, Noel! Uma soma que, segundo parece, ela pretende esbanjar. E isso não é tudo. Ela se desfez de “Os catadores de conchas”. Doou o quadro à Galeria de Arte de Porthkerris, sim, senhor! Simplesmente, deu-o de mão beijada - e Deus sabe o quanto valeria. Acho que ela deve estar louca. Não creio que mamãe saiba o que está fazendo. Falei a Olivia sobre isso. Aqueles dois jovens, Antonia e Danus, devem ter adquirido um sinistro domínio sobre ela... Entenda, isso às vezes acontece. A gente lê a respeito nos jornais. E um ato criminoso! Não deveria ser permitido. Deve haver
algo que possamos fazer para acabar com isto, Noel! Noel? Está me ouvindo?
- Estou.
- E o que você acha?
- Merda! - respondeu ele, e desligou.
Hotel The Sands,
Porthkerris,
Cornualha.
Quinta-feira, 19 de abril.
Querida Olivia,
Bem, aqui estamos nós e já passamos um dia inteiro neste lugar. Não saberia dizer-lhe o quanto tudo isto é lindo. O tempo parece o auge do verão, e há flores por todo canto. Também há palmeiras, ruelas pavimentadas de lajes redondas, o mar do mais maravilhoso azul. Um azul mais esverdeado do que o do Mediterrâneo, passando a azul muito escuro no horizonte. É como Ibiza, só que melhor, porque tudo está verde e exuberante, mas também porque, quando anoitece, depois que o sol se põe, tudo fica úmido, com cheiro de folhagem.
Fizemos uma viagem maravilhosa. Dirigi a maior parte do tempo, e depois Penelope dirigiu um pouco; Danus não, já que ele não dirige. Assim que pegamos a auto-estrada, a viagem quase não demorou, e sua mãe mal acreditava o quanto estávamos indo rápido. Chegando a Devon, pegamos a antiga estrada sobre Dartmoor e almoçamos em piquenique no topo de uma rocha, com vista para todas as direções. Lá havia uns pôneis felpudos, que ficaram encantados em comer as crostas de nossos sanduíches.
O hotel é fora de série. Jamais estive em um hotel antes e, como acho que Penelope também nunca tenha estado, então tudo se toma uma nova experiência.
Ela insistia em contar como ele era confortável e aconchegante, mas quando finalmente manobramos para a entrada (entre maciços de hortênsias), imediatamente ficou óbvio que tínhamos vindo para uma existência de luxo. Havia um Rolls e três Mercedes no pátio do estacionamento e um porteiro uniformizado para cuidar de nossa bagagem. Danus a chama de nossa bagagem equivalente, porque cada uma de nossas malas é tão surrada e vergonhosa como as outras.
Penelope, no entanto, logo acostumou-se a tudo. Por tudo, quero dizer tapetes incrivelmente espessos, piscinas de natação, banheiras jacuzzi, banheiros privados, televisão ao lado da cama, enormes terrinas de frutas frescas e flores por todo o canto. Nossos lençóis e toalhas são mudados diariamente. Nossos quartos ficam no mesmo corredor e têm balcões adjacentes, dando para os jardins e para o mar. De vez em quando, saímos ao balcão e conversamos uns com os outros. Bem como em Vidas Privadas, de Noel Coward.
Quanto ao refeitório, é como sermos levados para jantar fora no mais dispendioso restaurante de Londres. Tenho certeza de que ficarei esnobe sobre ostras, lagostas, morangos frescos, creme da Cornualha e bifes de filé. É esplêndido Danus estar conosco, porque ele se incumbe perfeitamente de decidir o que iremos beber com esta comida deliciosa. Ele parece muitíssimo entendido em vinhos, porém nunca bebe álcool. Não sei por quê; da mesma forma como não sei por que não dirige um carro. Há muita coisa para se fazer aqui. Esta manhã fomos até a cidade, e nosso primeiro passeio foi a Carn Cottage, onde sua mãe havia morado. Entretanto, foi triste porque, como aconteceu a tantas outras casas aqui, Carn Cottage hoje é um hotel, demoliram o belo muro de pedras e nivelaram a maioria do jardim, que agora é um pátio de estacionamento para veículos. Entretanto, estivemos no que restou do jardim, e a senhora encarregada do hotel trouxemos uma xícara de café. Então, Penelope nos contou como
era tudo antes, como sua mãe havia plantado todas as velhas roseiras e as glicínias. Depois nos contou como ela foi morta em Londres, durante a Blitz. Eu nada sabia a respeito. Quando ela nos contou, senti vontade de chorar, mas não chorei, apenas abracei-a, porque vi seus olhos brilhando, marejados de lágrimas. Enfim, foi só o que me ocorreu fazer.
Depois de Carn Cottage, prosseguimos o passeio, indo até o coração da cidadezinha, onde fica a Galeria de Arte, para ver “Os catadores de conchas”. A Galeria não é grande, mas tem um ar particularmente atraente, com paredes caiadas de branco e uma enorme clarabóia dando para o lado norte. Eles penduraram “Os catadores de conchas” na posição mais importante possível, e o quadro parece inteiramente à vontade, banhado pela fria e brilhante luminosidade de Porthkerris, onde foi originalmente concebido. A senhora encarregada da Galeria de Arte era idosa, e acredito que não se lembrasse de Penelope, mas certamente sabia quem ela era e não sabia mais o que fazer para agradá-la. Fora isto, parece não haver muitas pessoas ainda vivas que ela conheça ou que se lembrem dos velhos tempos. Com exceção de Doris, naturalmente. Ela pretende visitar Doris amanhã à tarde e tomar chá com ela. Está ansiosa por vê-la, parece excitada com a perspectiva da visita. No sábado, tomaremos a estrada de Lands End e faremos piquenique nos penhascos, em Penjizal. O hotel fornece piqueniques em enfeitadas caixas de papelão, com talheres de verdade, mas Penelope acha que assim não seria realmente um piquenique. Então, faremos uma parada no trajeto, para comprar pão e manteiga frescos, patê, tomates, frutas frescas e uma garrafa de vinho. Se o dia estiver tão quente como hoje, espero que eu e Danus possamos nadar.
Na segunda-feira, eu e Danus iremos até a costa sul, a Manaccan, onde um homem chamado Everard Ashely possui um jardim-horto. Danus foi colega dele na Faculdade de Horticultura. Pretende dar uma espiada no horto e talvez obter informações a respeito, pois e o que pretende fazer daqui a algum tempo. Entretanto, é difícil, porque isto exige um bom capital e ele nada tem ainda. Não importa, sempre vale a pena trocar idéias com alguém que entenda do assunto, além de ser divertido irmos até lá e vermos o outro lado desta região mágica.
Ao ficar sabendo de tudo isto, você pode adivinhar o quanto estou feliz. Jamais acreditaria que, tão cedo após a morte de Cosmo, eu poderia voltar a ser feliz. Espero não estar enganada. Não creio que esteja, porque tenho a sensação de que tudo isto é verdadeiro.
Obrigada por tudo. Por ser tão incansavelmente gentil e paciente, assim como por arranjar minha estada em Podmore's Thatch. Porque, se você não tivesse feito isso, eu não estaria aqui, levando a vida de Riley, ao lado das duas pessoas a quem mais aprecio em todo o mundo. Com exceção, naturalmente, de você.
Receba o meu abraço, Antonia
Seus filhos, Nancy, Olivia e Noel estavam... Penelope era forçada a admitir... absolutamente certos. Porthkerris havia mudado, em todos os sentidos. Carn Cottage não era a única casa com o jardim e a horta aplainados por tratores, uma tabuleta de hotel acima do portão e guarda-sóis listrados colocados no terraço recentemente construído. O velho hotel White Caps havia sido hediondamente ampliado e transformado em apartamentos para feriados. A estrada do porto, onde um dia os artistas tinham morado e trabalhado, transformara-se em uma feira com galerias de diversões, lojas de disco, restaurantes de comida rápida e lojas de souvenirs. No porto em si, desaparecera a maioria dos barcos de pesca. Agora somente havia lá um ou dois, e as amarras vazias estavam cheias de ofertas para viagens de recreio em barcos, por somas de dinheiro incrivelmente inflacionadas, viagens diárias para mostrar as focas e a atração adicional de algumas constrangedoras horas para a pesca de cavalinhas.
Curiosamente, no entanto, a mudança não havia sido total. Agora, na primavera, a cidade ainda se encontrava relativamente vazia, porque a primeira leva de turistas só chegaria na época do Pentecostes. Havia espaço para perambular, espaço para parar e espiar. E nada jamais poderia alterar aquele azul maravilhoso, a curvatura suave da baía ou a encosta do promontório e, tampouco, a embaralhada confusão das ruas com casas de teto de ardósia, descendo pela colina até a borda da água. As gaivotas continuavam enchendo o céu com seus grasnidos, o ar continuava pesado com o aroma do vento salitrado, alfenas e escalônias, as ruelas estreitas da cidade velha como um labirinto, eram tão confusas como sempre haviam sido. Penelope saiu a pé para visitar Doris. Era agradável estar sozinha. A companhia de Antonia e Danus havia sido uma total delícia, mas, ainda assim, por algum tempo, a solidão era bem-vinda. Ao sol do quente entardecer, ela caminhou por entre os perfumados jardins do hotel, saiu na rua acima da praia, passou por fileiras de casas vitorianas e desceu até a cidade.
Tentou encontrar um florista. Aquele de que se lembrava agora era uma loja de roupas femininas, exibindo todo o tipo de trajes que as turistas inevitavelmente comprariam, loucas para gastar seu dinheiro. Bustiês elásticos para banho de sol em rosa-choque, enormes camisetas enfeitadas com ilustrações de astros da música pop e jeans de fundilhos tão apertados, que se sentia dor, só em olhar para eles. Penelope finalmente encontrou uma loja de flores em uma esquina sinuosa onde, muito tempo atrás, um velho sapateiro com avental de couro pusera novas solas em seus sapatos, tendo cobrado um xelim e três pence pelo trabalho. Entrando, ela comprou um enorme buquê para Doris. Não de anêmonas ou narcisos, mas de flores mais exóticas. Cravos, íris, tulipas e frésias, uma braçada de flores, envoltas em papel de seda engomado, azul-pálido. Um pouco mais abaixo na rua, entrou em um estabelecimento de bebidas e comprou uma garrafa de uísque The Famous Grouse, para Ernie. Carregada com suas compras, ela seguiu em frente, internando-se em Doumalong, onde as ruelas eram tão estreitas, que não havia espaço para calçadas. as casas caiadas de branco amontoadas de cada lado, com íngremes degraus de granito subindo para portas pintadas em cores vivas.
A casa dos Penberth estava imprensada no próprio coração daquele labirinto. Ali Ernie residira com os pais. Penelope e Nancy haviam percorrido aquelas aléias nas tardes de inverno em tempo de guerra, quando visitavam a velha Sra. Penberth e ganhavam bolinhos de açafrão, com o chá forte contido em um bule cor-de-rosa.
Agora, recordando, parecia extraordinário a Penelope quanto tempo demorara a perceber que Ernie, à sua maneira tímida e silenciosa, cortejava Doris. Aliás, talvez não fosse tão extraordinário. Ele era uma pessoa de poucas palavras, e sua presença em Carn Cottage falando pouco e trabalhando como dez homens, acabara sendo, com a maior naturalidade, algo que todos aceitavam como garantido. Oh, Ernie dará um jeito nisso! era a exclamação quando algo realmente horrível precisava ser feito, como torcer o pescoço de uma galinha ou limpar os esgotos. E ele sempre dava conta do recado. Ninguém havia pensado nele como um pretendente; era alguém da família, sem exigências ou queixas, perpetuamente bem-humorado.
Somente no outono de 1944 é que aquilo finalmente foi entendido. Penelope entrava na cozinha de Carn Cottage, certa manhã, e encontrado Doris e Ernie tomando uma xícara de chá. Estavam sentados à mesa da cozinha, em cujo centro podia-se ver um buquê azul e branco, transbordando de dálias. - Oh, Ernie, não sabia que você estava aqui...
Ele ficou embaraçado.
- Apenas de passagem - respondeu, empurrando a xícara levantando-se.
Penelope olhou para as flores. Eles não cultivavam mais dálias em Carn Cottage, devido ao trabalho que davam.
- De onde vieram as dálias?
Ernie empurrou o boné para trás e coçou a cabeça.
- Meu pai as cultiva em seu loteamento. Trouxe algumas para vocês.
- Nunca vi dálias mais lindas. São enormes!
- Sim, são. - Ernie ajeitou o boné e arrastou os pés. – Tenho que cortar um pouco de lenha.
Quando caminhou para a porta, Doris lhe disse:
- Obrigada pelas flores.
Ele se virou, assentindo.
- Foi uma boa xícara de chá - respondeu.
Saiu. Momentos depois, elas podiam ouvir sons de lenha sendo cortada, no pátio dos fundos. Penelope sentou-se à mesa. Contemplou as flores. Olhou para Doris, que desviou o rosto.
- Tenho a curiosa sensação de que interrompi alguma coisa - falou.
- Como o quê?
- Não sei. Espero que me diga.
- Não há nada para dizer.
Ele não trouxe estas flores para nós, certo? Ele as trouxe para você.
Doris virou a cabeça.
- Que diferença faz, saber-se para quem ele trouxe as flores?
Foi quando a percepção surgiu, e Penelope não sabia imaginar por que não adivinhara antes.
- Acho que Ernie está caído por você, Doris.
Doris ficou imediatamente mordaz.
- Ernie Penberth? Oh, invente outra coisa!
Penelope, entretanto, recusou-se a desistir.
- Ele já lhe disse alguma coisa?
- Ernie nunca é de falar muito, concorda?
- Eu sei, mas você gosta dele, não gosta?
- Não desgosto...
As maneiras dela eram demasiado esquivas, para serem convincentes. Ali havia algo.
- Ele a está cortejando, Doris.
- Cortejando? - Doris levantou-se bruscamente, recolhendo xícaras e pires, com o máximo de espalhafato. - Ele não saberia cortejar uma mosca! - Ela colocou a louça na tábua de escorrer e abriu as torneiras. - Por outro lado - acrescentou, acima do ruído da água - ele é um sujeito de aparência muito esquisita.
- Você jamais encontraria alguém mais gentil e...
- E francamente - cortou ela - não tenho a menor intenção de terminar meus dias com um homem que nem tem a minha altura!
- Só porque ele não é nenhum Gary Cooper, isto não é motivo para você torcer o nariz! Se quer saber, eu o acho bastante simpático! Gosto de seus cabelos negros e olhos escuros.
Doris fechou as torneiras e deu meia-volta, recostando-se contra a pia, de braços cruzados.
- Tudo bem, mas ele nunca diz coisa alguma, entendeu?
- Com você falando sem parar o tempo todo, nunca surge uma folga para ele dar uma palavrinha! Por outro lado, acho que atitudes falam mais alto do que palavras. Veja isto, trazendo-lhe flores! - Penelope rememorou. - Aliás, Ernie nunca pára de fazer coisas para você! Emenda o varal de roupas e lhe traz coisinhas apetitosas, tiradas do balcão da mercearia do pai...
- E daí? - Doris franziu a testa suspeitosamente. - Está querendo casar-me com Ernie Penberth? Tentando livrar-se de mim ou coisa assim?
- Estou simplesmente - declarou Penelope, com ar solene - pensando em sua felicidade futura!
- Nunca! Bem, é melhor pensar em outra coisa. No dia em que fiquei sabendo da morte de Sophie, prometi a mim mesma que não iria embora daqui enquanto esta maldita guerra não terminasse. E quando Richard foi... bem, isso apenas me deixou mais decidida do que nunca. Não sei o que você irá fazer... voltar para aquele Ambrose ou nunca voltar, mas o fim da guerra está próximo e você vai ter que decidir. E eu estarei por perto, dando-lhe um braço forte, seja qual for sua decisão. Se voltar para ele, então quem irá cuidar de seu pai? Pois eu lhe direi, neste momento. Eu vou! Portanto, não falemos mais em Ernie Penberth, muito obrigada. Ela manteve a palavra. Não casou com Ernie porque não pretendia deixar papai. Somente depois da morte do velho, ela finalmente se viu com liberdade para pensar em si mesma, em seus filhos e seu futuro. Havia tomado a decisão. Dentro de dois meses, tornava-se a Sra. Ernie Penberth e deixava Carn Cottage para sempre. O pai de Ernie tinha falecido pouco antes, e a velha Sra. Penberth fora morar com a irmã, de maneira que Doris e Ernie teriam uma casa para si próprios. Ernie assumiu a mercearia da família e também os filhos de Doris, mas eles dois jamais tiveram filhos.
E agora... Penelope fez uma pausa, olhando em volta e procurando orientar-se. Estava chegando ao seu destino. A Praia do Norte ficava perto. Podia sentir a força do vento, aspirar seu cheiro salgado. Dobrando uma última esquina, começou a descer uma empinada ladeira, em cujo final se erguia o chalé branco, recuado da rua, tendo à frente um pátio lajeado. Ali, um varal tinha roupas lavadas agitando-se à brisa, vasos e recipientes espalhados pelo pátio estavam radiosos de narcisos, crocos, jacintos azuis e trepadeiras. A porta da frente era pintada de azul. Ela atravessou o pátio, abaixando-se ao passar pelo varal de roupas, e ergueu o punho fechado para bater. Entretanto, antes de poder fazer isto, a porta se abriu, e ali estava Doris.
Doris. Animada e com roupas vistosas; bonita e de olhos brilhantes como sempre, nem mais gorda e nem mais magra. Os cabelos estavam prateados, curtos e anelados; havia linhas em seu rosto, é claro, porém o sorriso não se alterara e nem a sua voz.
- Estive esperando por você. Espiando da janela da cozinha.
- Ela poderia ter chegado naquele mesmo dia, diretamente de Hackney. - Por que demorou tanto? Esperei quarenta anos por isto - Doris. De batom e brincos, um cardigã escarlate sobre uma blusa branca com babados. – Oh, pelo amor de Deus, não fique aí parada, vamos entrando!
Penelope entrou, diretamente na cozinha minúscula. Deixou as flores e o embrulho do uísque em cima da mesa da cozinha, e Doris fechou a porta atrás delas. Ela se virou. As duas encararam-se, sorrindo como idiotas, não encontrando palavras. Então, os sorrisos transformaram-se em risadas, caíram nos braços uma da outra, abraçando-se e abraçando-se, como duas colegiais que se encontrassem.
Ainda rindo e ainda sem palavras desfizeram o abraço. Foi Doris quem falou primeiro.
- Não posso acreditar, Penelope! Pensei que não a reconheceria, mas você continua tão alta, de pernas tão compridas e tão bonita como sempre. Tinha tanto receio de que tivesse ficado diferente, mas você não...
- É claro que fiquei diferente. Tenho cabelos grisalhos e estou idosa.
- Se está com cabelos grisalhos e idosa... então já me sinto com um pé na sepultura! Chegando aos setenta, é o que estou. Pelo menos, é o que Ernie sempre me diz. quando fico um pouco espevitada.
- Onde está Ernie?
- Ele achou que gostaríamos de ficar sozinhas algum tempo. Disse que não agüentaria estar presente. Resolveu ir até seu loteamento. É a sua higiene mental, desde que se aposentou do negócio da mercearia. Falei para ele que, se abandonasse as cenouras e nabos terminaria sofrendo dos sintomas da aposentadoria.
Ela riu, com a velha, ruidosa e familiar hilaridade.
- Eu lhe trouxe umas flores - disse Penelope.
- Oh, são lindas! Não era preciso... Bem. vou colocá-las em um jarro e, enquanto isso, vá para a sala de estar, fique à vontade. Também porei a chaleira no fogo, acho que gostará de uma xícara de chá...
A sala de estar ficava além da cozinha, através de uma porta aberta. Entrar ali era um pouco como recuar ao passado porque tudo era aconchegante e atravancado, bem semelhante ao que Penelope recordava da época da velha Sra. Penberth, e os tesouros da idosa senhora continuavam em evidência. Viu a porcelana lustrosa, no armário de frente envidraçada, os cães Staffordshire e a cada lado da lareira, os sofás e poltronas encaroçados, com protetores de braços e espaldar orlados de rendas. Entretanto, também havia mudanças. O enorme aparelho de televisão reluzia de novo, assim como as cortinas de chintz, em vivo estampado. E, acima da lareira, onde um dia uma foto em sépia, muito ampliada do irmão soldado da velha Sra. Penberth, morto na Primeira Guerra Mundial, ocupara o lugar de honra, pendia agora o retrato de Sophie, pintado por Charles Rainier, que Penelope dera a Doris, - após o funeral de Lawrence Stern.
- Você não pode dar-me isto - havia dito Doris.
- Por que não?
- O retrato de sua mãe?
- Quero que ele fique com você.
- Sim, mas por que eu?
- Porque você amou Sophie tanto quanto qualquer um de nós. E porque também amou papai e cuidou dele por mim. Nenhuma filha teria feito mais.
- É demasiada bondade sua. Não mereço tanto!
- Não é suficiente! No entanto, é tudo o que tenho para lhe dar.
Ela ficou parada no meio da sala, olhando para o retrato. Concluiu que, após quarenta anos, ele nada perdera de sua beleza, encanto e alegria. Sophie aos vinte e cinco anos, com seus olhos amendoados, o sorriso fascinante e os cabelos curtos de garoto, uma echarpe franjada, de seda escarlate, atada descuidadamente sobre os ombros queimados de sol...
- Contente em tornar a vê-lo? - perguntou Doris.
Penelope se virou, quando ela cruzou a porta, trazendo o jarro com as flores já arranjadas, que depois colocou com certo cuidado no centro de uma mesa.
- Sim. Já tinha esquecido o quanto é bonito.
- Aposto como gostaria de não se ter separado dele.
- Nada disso. Apenas, é bom tornar a vê-lo.
- Dá a esta sala um toque de classe, não acha? Tem sido muito admirado. Já me ofereceram uma fortuna por ele, mas eu não o venderia. Não trocaria esse quadro por todo o chá da China. Bem, agora vamos sentar um pouco, ficar à vontade e conversar, antes que o velho Ernie volte. Desejava muito que viesse ficar uns tempos aqui, convidei-a tantas vezes... Está mesmo hospedada no The Sands? Com todos aqueles milionários! O que aconteceu? Ganhou na loteria ou coisa assim?
Penelope explicou-lhe a mudança de sua situação. Contou a Doris a gradual e miraculosa reavaliação da obra de Lawrence Stern, no mundo do mercado de arte; falou-lhe sobre Roy Brookner e a oferta pelos painéis. Doris estava estupefata.
- Cem mil libras por aqueles dois quadrinhos! Nunca ouvi nada semelhante. Oh, Penelope, fico felicíssima por você!
- E doei “Os catadores de conchas” à galeria de Porthkerris.
- Eu sei. Li a respeito em nosso jornal local. Depois, eu e Ernie fomos até lá, dar uma espiada. Curioso, ver aquele quadro lá...Trouxe-me um mundo de recordações. E você não sentiu falta dele?
- Um pouco, mas a vida continua. Estamos todos envelhecendo. E hora de colocar a casa em ordem.
- Vejam só quem fala! E já que a vida continua, o que me diz de Porthkerris? Aposto como não reconheceu a casa antiga. Nunca se sabe o que as pessoas farão em seguida, embora Deus saiba que os promotores da modernização pintaram e bordaram, por um ou dois anos depois da guerra. O antigo cinema agora é um supermercado... Espero que tenha reparado. O estúdio de seu pai foi demolido, construíram exatamente no local um bloco de apartamentos para veranistas, dando para a Praia do Norte. E nós tivemos alguns anos de hippies, o que foi bastante desagradável, posso garantir. Dormiam na praia, urinavam em qualquer lugar que bem entendessem. Era nauseante!
Penelope riu.
- E o velho White Caps também virou um prédio de apartamentos. Quanto a Carn Cottage...
- Não fez você chorar? Aquele jardim maravilhoso de sua mãe... Pensei em escrever-lhe, avisando como andavam as coisas por aqui.
- Foi bom não ter escrito. Enfim, não importa. De algum modo, isso deixou de ter importância.
- Eu não pensaria assim, vivendo com todo o luxo no The Sands! Lembra-se de quando era um hospital? Ninguém se aproximava de lá, a menos que estivesse com duas pernas quebradas.
- Ouça, Doris, não é apenas por me sentir rica que decidi ficar no The Sands, em vez de com você. Acontece que trouxe dois jovens amigos e sei que você não teria espaço para todos nós.
- Tem razão. E quem são eles, esses amigos?
- A moça chama-se Antonia. Seu pai faleceu recentemente e ela agora está morando comigo. O rapaz chama-se Danus. Ajuda-me no jardim e na horta, em Gloucestershire. Você irá conhecê-los. Os dois acham que é esforço demais para uma velha senhora voltar subindo a colina, de maneira que prometeram vir buscar-me de carro.
- É muita consideração. Bem, eu gostaria que você tivesse trazido Nancy. Adoraria ver a minha Nancy novamente! E por que não voltou a Porthkerris antes? Não se pode esperar que, em apenas duas horas, ponhamos em dia o acontecido em quarenta anos...
Não obstante, conseguiram fazer um bom resumo dos acontecimentos, quase perdiam o fôlego falando, faziam perguntas, davam respostas, mencionaram filhos e netos.
- Clark casou com uma moça de Bristol e tem dois filhos...lá estão eles, na lareira: aquela é Sandra, e aquele é Kevin. Ela é uma garotinha muito viva. E aqueles são os de Ronald... Ele mora em Plymouth. Seu sogro dirige uma fábrica de móveis e o colocou no negócio... Eles vêm aqui nas férias de verão, mas não há espaço para todos, de maneira que ficam hospedados em uma pensão, mais acima na rua. Agora, fale-me sobre Nancy. Que amorzinho de criança ela era!
Então, foi a vez de Penelope, mas, naturalmente, ela não trouxera quaisquer fotos. Falou a Doris sobre Melanie e Rupert; com algum esforço, conseguiu dar a impressão de serem atraentes.
- E moram perto de você? Consegue vê-los sempre?
- Vivemos a trinta quilômetros de distância.
- Oh, mas é muito longe, não? E você gosta de morar no campo? Acha melhor do que Londres? Fiquei francamente horrorizada, quando escreveu me contando sobre Ambrose, saindo de sua vida daquele jeito. Que coisa! Enfim, ele sempre foi um sujeito mais ou menos inútil. De bela aparência, claro, mas nunca achei que fosse o melhor para você. E, ainda por cima, abandonando-a! Sujeito egoísta! Os homens só pensam neles mesmos. É o que digo a Ernie, quando larga as meias sujas no chão do banheiro.
Então, com maridos e famílias já devidamente postos em dia, as duas começaram a recordar, relembrando os longos anos da guerra que tinham vivido juntas, partilhando não apenas as tristezas, os medos e o tédio, mas também os acontecimentos bizarros e engraçados que, analisados agora, tinham sido histericamente hilariantes.
O Coronel Trubshot, com seu capacete de metal e a braçadeira com as iniciais PAA, caminhando cautelosamente pela cidade e perdendo o rumo em meio ao black-out, com o que, havia transposto o muro do porto e caído no mar. A Sra. Preedy, falando sobre a Cruz Vermelha para um bando de mulheres desinteressadas e ficando enredada em suas próprias ataduras: O General Watson-Grant treinando a Guarda Nacional no pátio de recreio da escola, e o velho Willie Chirgwin furando o dedão do pé com uma baioneta, após o que, teve que ser levado de ambulância para o hospital.
- E as idas ao cinema - recordou Doris, enxugando do rosto as lágrimas da hilaridade. - Lembra-se de nossas idas ao cinema? Costumávamos ir duas vezes por semana, nunca perdíamos um filme novo... Lembra-se de Charles Boyer em Hold Back the Daum? Não havia um olho seco no cinema inteiro! Molhei três lenços e ainda chorava quando saímos...
- Sim, era maravilhoso, não? Suponho que também pouco mais havia para se fazer. Exceto ouvirmos A hora de lazer do trabalhador, no rádio, e o Sr. Churchill injetando-nos doses de coragem, de quando em quando.
- O melhor era Carmem Miranda! Nunca perdi um filme de Carmem Miranda! - Doris levantou-se e colocou a mão na cintura, com os dedos bem abertos. “Ai-ai-ai-ai-ai, I love you very much! Ai-ai-ai-ai-ai, I think you're grrrand...”“.
A porta bateu, e Ernie entrou. Achando aquela interrupção ainda mais engraçada do que sua imitação de Carmem Miranda, Doris caiu de costas no sofá e ficou lá, incapaz de conter as lágrimas em seu acesso de riso. Embaraçado, Ernie olhou de uma para a outra.
- O que há com vocês duas? - perguntou.
Percebendo que a esposa dele não tinha condições para responder, Penelope procurou compor-se, levantou-se de sua poltrona e foi cumprimentá-lo.
- Oh, Ernie... - Ela enxugou os olhos, procurando conter o riso. - Eu sinto muito! Que dupla idiota somos nós duas! Estivemos recordando coisas e rindo de morrer. Por favor, perdoe-nos...
Ernie parecia ainda mais baixo do que antes, além de mais velho também, com os antigos cabelos negros agora inteiramente prateados. Usava uma velha blusa de pescador, tirara as botas de trabalho e calçara as sapatilhas de sola de corda para andar em casa. Sua mão na dela tinha um toque rude e calejado como sempre, e Penelope ficou tão alegre em vê-lo, que quis abraçá-lo, mas percebeu que isso só o tornaria ainda mais constrangido.
- Como vai? - perguntou então. - É formidável tornar a vê-lo!
- Também é muito bom ver você novamente. – Eles apertaram-se as mãos com solenidade. Os olhos de Ernie se voltaram para a esposa, agora já sentada, assoando o nariz e mais ou menos controlada. - Ouvi aquele barulho chiado e pensei que alguém estivesse matando o gato, já tomaram chá?
- Não, ainda não. Nem tivemos tempo para o chá. Estivemos conversando sem parar!
- A chaleira acabou de secar no fogo. Tornei a enchê-la quando entrei.
- Oh, céus, sinto muito! Eu tinha esquecido! - Doris levantou-se. - Vou fazer agora mesmo um bule de chá. Penelope lhe trouxe uma garrafa de uísque, Ernie.
- Que ótimo! Fico muito agradecido. - Ele puxou o punho da blusa de pescador e olhou para seu grande relógio de pulso. - Cinco e meia. - Ergueu o rosto com um brilho estranho no olhar.
- Por que não esquecemos o chá e vamos direto ao uísque?
- Ernie Penberth! Seu velho beberrão! Que idéia!
- Pois eu acho - declarou Penelope com firmeza - que o momento não podia ser melhor. Afinal de contas, há quarenta anos não estamos juntos. Se não comemorarmos agora, quando iremos comemorar?
Assim, o encontro dos três transformou-se em uma espécie de festa. O uísque teve o dom de afrouxar a língua de Ernie, e eles poderiam ter continuado a tagarelar até noite alta, se não fosse a chegada eventual de Danus e Antonia. Penelope havia perdido toda a noção de tempo, de maneira que o toque da sineta da porta a deixou tão surpresa quanto Ernie e Doris.
- Ora, quem poderá ser? - exclamou Doris, ressentida com a interrupção.
Penelope olhou para seu relógio.
- Santo Deus, já são seis horas! Não pensei que fosse tão tarde. Devem ser Danus e Antonia, que vieram para me buscar...
- O tempo passa depressa, quando estamos nos divertindo - comentou Doris, levantando-se para ir até a porta. Penelope e Ernie a ouviram dizer: - Entrem, ela está pronta para vocês. Um pouquinho alta, mas ainda dando para o gasto...
Rapidamente, Penelope terminou sua bebida e colocou o copo vazio na mesa, para os recém-chegados não pensarem que estavam interrompendo alguma coisa. Entraram todos na pequenina sala e Ernie esforçou-se para ficar em pé. Foram feitas as apresentações. O dono da casa foi até a cozinha e volto com mais dois copos. Danus coçou as costas da cabeça e olhou em volta, parecendo divertido.
- Pensei que iam tomar chá.
- Oh, chá! - exclamou Doris, rejeitando a idéia de algo tão monótono. - Até esquecemos o chá! Estivemos falando e rindo tanto, que esquecemos inteiramente o chá...
- Que sala encantadora! - disse Antonia. - É exatamente o tipo de casa que mais aprecio. Adorei todas as suas flores no patiozinho.
- Eu o chamo de meu jardim. Seria ótimo ter um jardim de verdade, mas, como se diz, a gente não pode ter tudo.
Os olhos de Antonia caíram sobre o retrato de Sophie.
- Quem é a moça do quadro?
- Aquela? Oh, e a mãe de Penelope. Nota a semelhança?
- Ela é linda!
- Sim, era encantadora. Jamais houve alguém como ela. Era francesa... não, Penelope? Falava de uma maneira tão sexy, parecia Maurice Chevalier. E quando estava zangada...ooh! Deviam ouvi-la! Parecia uma mulher de pescador, se parecia!
- Está tão jovem no retrato...
- Oh, sim, ela era muito jovem. Anos e anos mais nova do que o pai de Penelope. Vocês eram como irmãs, não é mesmo Penelope?
Querendo chamar a atenção, Ernie pigarreou ruidosamente.
- Aceita um drinque? - perguntou a Danus.
Danus sorriu e negou com a cabeça.
- É muita gentileza sua, e espero que não me considere descortês, mas a verdade é que não bebo.
Naquele momento, Ernie pareceu absolutamente pasmo.
- Não está bem de saúde?
- Estou ótimo. Apenas a bebida não combina comigo.
Sem dúvida, Ernie não conseguia acreditar no que ouvia. Sem muita esperança, virou-se para Antonia.
- E você? Também não aceita?
Antonia sorriu.
- Não, obrigada. E também não estou sendo descortês, mas tenho que dirigir o carro na subida da colina e depois enveredar com ele por todas aquelas curvas íngremes. Acho melhor não beber.
Ernie balançou a cabeça tristemente e tornou a colocar a tampa na garrafa. A reunião terminara. Era tempo de irem embora. Penelope levantou-se, alisou os vincos de sua saia, checou os grampos na cabeça.
- Precisa mesmo ir agora? - Doris relutava em terminar tudo.
- Temos que ir, Doris, embora fosse meu último desejo no mundo. Já fiquei tempo demais aqui.
- Onde deixou o carro? - Ernie perguntou a Danus.
- No alto da colina - respondeu Danus. - Não encontramos nenhum lugar mais próximo daqui, sem uma linha amarela dupla.
- Um aborrecimento, não? Regras e regulamentos por toda parte. É melhor eu subir até lá com vocês e ajudar na manobra. Não há muito espaço por lá e não vão querer começar a discutir com um muro de granito...
Danus aceitou a oferta, agradecido. Ernie colocou o boné e tornou a calçar as botas. Danus e Antonia despediram-se de Doris.
- Foi um prazer conhecê-los - disse ela.
Os três partiram juntos, para trazer o Volvo. Novamente, Doris e Penelope ficaram juntas. Agora, no entanto, por algum motivo o riso desaparecera. Houve um silêncio entre elas. Era como se, após terem falado tanto, tivessem ficado sem assunto. Penelope sentiu que Doris a fitava e virou a cabeça, a fim de encarar aquele olhar fixo.
- Bem, onde foi que você o encontrou? - perguntou Doris.
- Danus? - Penelope procurou parecer casual. - Já lhe contei. Ele trabalha para mim. É meu jardineiro.
- Um jardineiro de categoria superior.
- Sem dúvida.
- Ele parece Richard.
- Sim. - O nome dele saíra. Fora dito. - Percebe que ele foi a única pessoa que não mencionamos, a tarde inteira? Falamos de todo mundo, menos dele.
- Não parecia fazer sentido. Só falei o nome agora, porque aquele rapaz é muito parecido com ele.
- Eu sei. Também notei, assim que o vi pela primeira vez. Levei... algum tempo para me acostumar.
- Ele tem algo a ver com Richard?
- Não. Pelo menos, acho que não. E originário da Escócia. A semelhança é apenas uma extraordinária coincidência.
- Foi por isso que se apegou tanto a ele?
- Oh, Doris! Você me faz parecer uma velha tristonha, com um gigolô a reboque.
- Ele a enfeitiçou, não?
- Gosto muito dele. Gosto por sua aparência e pela maneira como é. Tem uma natureza gentil. É uma boa companhia. Faz-me rir.
- Trazê-lo aqui... a Porthkerris... - Doris olhou com ansiedade para sua amiga. - Não estaria... tentando reviver velhas lembranças? - Não. Pedi a meus filhos que viessem comigo. Pedi a cada um deles, separadamente, porém nenhum podia ou queria. Nem mesmo Nancy. Eu não pretendia dizer-lhe isto, mas agora tenho que dizer. Assim, Danus e Antonia vieram no lugar deles.
Doris nada comentou. Por um momento, as duas ficaram em silêncio, cada uma ocupada com seus pensamentos.
- Francamente - disse Doris - Richard ser morto daquela maneira... foi cruel! Sempre achei difícil perdoar Deus por permitir que semelhante homem fosse morto. Se já houve alguém que devesse ter vivido... é uma coisa que não esqueço, o dia em que ficamos sabendo. Foi uma das piores coisas que aconteceram durante a guerra. E jamais me saiu da cabeça que, quando morreu, ele levou parte de você junto, sem deixar parte de si mesmo para trás.
- Ele deixou parte de si mesmo.
- Sim, mas nada que você pudesse tocar, sentir, segurar. Seria melhor se tivesse tido um filho dele. Assim, haveria uma boa escusa para nunca mais ficar com Ambrose. Você, Nancy e o bebê teriam tido uma boa vida juntos.
- Também pensei nisso muitas vezes. Jamais fiz alguma coisa para não ter um filho de Richard; simplesmente, não concebi nenhum. Olivia foi meu consolo. Foi o primeiro bebê que tive depois da guerra, era filha de Ambrose, mas, por algum motivo, sempre a considerei especial. Não diferente, mas especial. - Ela prosseguiu cuidadosamente, escolhendo as palavras, admitindo para Doris algo que mal admitira para si mesma e, certamente para nenhuma outra pessoa viva. - Foi como se alguma parte física de Richard tivesse permanecido dentro de mim. Preservada, como uma comida saborosa em uma geladeira. E quando Olivia nasceu, algum átomo, algum corpúsculo, alguma célula de Richard se tomasse parte dela, através de mim.
- Sim, mas ela não era dele.
Penelope sorriu, balançou a cabeça.
- Não.
- No entanto, era como se fosse.
- Exatamente.
- Posso compreender.
- Eu sabia que você compreenderia. Por isso é que lhe falei. E compreenderá também, quando eu lhe disser que fiquei satisfeita por demolirem o estúdio de papai, fazendo-o desaparecer para sempre, a fim de que em seu lugar construíssem um prédio de apartamentos. Sei agora que tenho forças suficientes para manejar quase tudo, porém acho que não seria forte o bastante para voltar lá.
- Sim. Posso compreender isto também.
- Há mais uma coisa. Quando voltei a morar em Londres, entrei em contato com a mãe dele.
- Eu me perguntava sobre isso.
- Levei muito tempo reunindo coragem, mas finalmente telefonei para ela. Almoçamos juntas. Foi uma provação para ambas. Era muito simpática, muito amistosa, porém nada mais tínhamos para falar além de Richard e, por fim, compreendi que isso também era demais para ela. Assim, eu a deixei em paz; nunca mais tomei a vê-la. Se me tivesse casado com ele, poderia tê-la confortado e consolado. Da maneira como estavam as coisas, acho que eu simplesmente aumentava seu senso pessoal de tragédia.
Doris nada disse. Do exterior, além da porta aberta, chegou até elas o som do Volvo, descendo cautelosamente a rua íngreme e estreita. Penelope inclinou-se e recolheu sua bolsa.
- O carro está chegando. Tenho de ir agora...
As duas saíram juntas, através da cozinha, para o patiozinho ensolarado. Abraçaram-se e beijaram-se, com grande afeição. Havia lágrimas nos olhos de Doris.
- Adeus, Doris querida. E obrigada por tudo.
Doris esfregou as lágrimas que teimavam em aparecer.
- Volte breve - disse. - Não espere outros quarenta anos, pois talvez não estejamos mais por aqui...
- No ano que vem. Virei no ano que vem, sozinha, e ficarei aqui com você e Ernie.
- Como nos divertiremos!
O carro surgiu, parou a um lado da rua. Ernie desembarcou e, como um motorista, ficou empertigado, mantendo a porta aberta para Penelope.
- Adeus, Doris.
Ela se virou para ir, porém Doris ainda não terminara.
- Penelope!
Ela se virou para trás.
- Sim?
- Se ele é Richard, então quem seria Antonia?
Doris nada tinha de tola. Penelope sorriu.
- Eu?
- Eu tinha sete anos, quando vim aqui pela primeira vez. Foi uma grande ocasião, porque papai havia comprado um carro. Nunca tínhamos tido um antes, e aquela era a nossa primeira excursão. Foi a primeira de muitas, mas sempre me lembro daquela porque, simplesmente, era para mim espantoso o fato de papai saber como ligar o motor e depois dirigir o carro.
Os três estavam sentados nos penhascos de Penjizal, muito alto acima do Atlântico azul, em um vão relvoso e abrigado da brisa por um enorme paredão de granito, coberto de liquens. Por toda parte, despontando da relva exuberante, havia moitas e maciços de prímulas silvestres e os botões penugentos e azul-pálido das escabiosas. O céu era sem nuvens, o ar se enchia com o estrondo dos vagalhões e os grasnidos das aves marinhas. O dia estava a meio e, em abril, tão quente como em meados de verão. O calor era tal, que tinham estendido a nova manta xadrez sobre a qual se reclinavam indolentemente, e encontrado uma sombra fresca para a cesta do almoço.
- Que tipo de carro era? - perguntou Danus, apoiado em um cotovelo.
Ele havia tirado a suéter e enrolara as mangas da camisa. Os braços musculosos estavam queimados pelo sol, e seu rosto, virado para ela, estava entretido e interessado,
- Um Bentley quatro litros e meio - respondeu ela. - Já era bem velho, mas ele não podia comprar um carro novo. O Bentley, afinal, se tomou o orgulho de seu coração.
- Que esplêndido! Devia ter correias de couro para firmar o capô, não?
- Exatamente. Também tinha estribos e uma capota que jamais conseguimos manejar, de maneira que nunca a levantávamos, mesmo chovendo torrencialmente!
- Um carro assim valeria uma fortuna hoje. O que foi feito dele?
- Quando papai morreu, eu o dei para o Sr. Grabney. Não podia imaginar que outra coisa fazer com o carro. Por outro lado, o Sr. Grabney sempre fora muito bondoso, guardando-o para nós em sua garagem durante toda a guerra, sem nunca nos cobrar um penny de aluguel. E em certa ocasião... uma ocasião realmente importante... ele arranjou uma boa quantidade de gasolina para mim, no mercado negro. Jamais pude agradecer-lhe suficientemente por isso.
- Por que não ficou com o carro?
- Eu não podia manter um carro em Londres e, na realidade, não precisava de um. Estava sempre andando por todo canto, empurrando carrinhos cheios de bebês e compras. Ambrose ficou furioso, quando soube que eu havia dado o Bentley. Foi a primeira coisa que perguntou, assim que retomei do funeral de papai. Quando lhe disse o que tinha feito, ele ficou emburrado uma semana.
Danus foi compreensivo.
- Sinceramente, eu não o censuraria.
- Eu sei. Pobre homem! Deve ter ficado terrivelmente desapontado.
Penelope sentou-se, a fim de espiar pela borda do penhasco e verificar o estado da maré. Estava refluindo, mas não em vazante completa. Quando isto acontecesse, conforme prometera a Danus e Antonia, seria finalmente revelada a grande piscina na rocha, como uma enorme jóia azulada, cintilando à luz do sol e perfeita para nadar e mergulhar.
- Mais uma meia hora - anunciou - e poderão tomar banho!
Ela voltou a reclinar-se sobre a manta, apoiada na rocha, tornando a ajeitar as pernas. Usava sua velha saia de brim, uma camisa de algodão, os tênis novos e um surrado chapéu de palha para jardinagem. O sol era tão brilhante que se sentia grata por aquela sombra pintalgada da aba. Ao lado dela, Antonia estivera deitada de olhos fechados, aparentemente cochilando, mas agora rolava sobre o estômago e descansava a face sobre os braços cruzados.
- Conte mais, Penelope. Você vinha sempre aqui?
- Não sempre. Era um longo trajeto de carro e depois uma boa caminhada desde a casa da fazenda em que o deixávamos. Naquele tempo não havia alguma estrada para os penhascos. Assim, tínhamos que abrir caminho entre tojos, samambaias e amoreiras silvestres, até chegarmos a este ponto. Além disso, sempre precisávamos ter certeza de que era maré baixa, a fim de que eu e Sophie pudéssemos nadar.
- Seu pai não nadava?
- Não. Ele dizia que era velho demais. Ficava sentado aqui em cima, com seu chapéu de aba larga, o cavalete e o banquinho dobrável, pintando ou desenhando. Depois de, naturalmente, ter aberto uma garrafa de vinho, enchido um copo, acendido um charuto e, de um modo geral, ficar à vontade.
- E durante o inverno? Também vinham aqui?
- Nunca. No inverno, íamos para Londres. Ou Paris, Florença... Porthkerris e Carn Cottage pertenciam ao verão.
- Que perfeito!
- Não menos perfeito do que a divina casa de seu pai, em Ibiza.
- Imagino que sim. Tudo é relativo, não? - Antonia rolou de lado sustentando o queixo na mão. - E você. Danus? Aonde ia no verão?
- Esperava que ninguém me perguntasse isso.
- Ora, vamos! Conte para nós
- Bem, eu ia para North Berwick. Meus pais ocupavam uma casa lá, todos os verões; eles jogavam golfe, enquanto eu, meu irmão e minha irmã ficávamos sentados na praia frígida, com nossa babá, construindo castelos de areia em meio ao vento uivante.
Penelope franziu a testa.
- Seu irmão? Não sabia que você tinha um irmão. Pensei que havia apenas uma irmã.
- Sim, eu tive um irmão. Ian. Era o mais velho dos três. Morreu de meningite aos quatorze anos.
- Oh, céus, que tragédia!
- Sim. Realmente, foi uma tragédia. Minha mãe e meu pai nunca conseguiram superar o trauma. Ele era o menino de ouro, inteligente e bonito, um disputador natural de jogos – o filho que todos os pais sonham possuir. Para mim, era uma espécie de deus, porque sabia como fazer tudo. Quando teve idade suficiente, passou a jogar golfe. Eventualmente, minha irmã começou a jogar também, mas eu sempre fui um desastrado e nem mesmo sentia interesse em jogar. Costumava ausentar-me sozinho, de bicicleta, a fim de observar pássaros. Achava isso infinitamente mais interessante do que lutar, com as complexidades do golfe.
- North Berwick não me parece um bom lugar para ir - comentou Antonia. - Você nunca ia a outro lugar?
Danus riu.
- É claro que ia. Meu maior amigo na escola chamava-se Roddy McCrae. Seus pais possuíam um Croft, bem ao norte de Sutherland, perto de Tongue. Além disso, tinham direitos de pesca no Naver, e o pai de Roddy ensinou-me a pescar com rede. Quando superei a época de North Berwick, passava a maioria de minhas férias com eles.
- O que é um croft? - perguntou Antonia.
- Uma casinhola de dois aposentos, com um a mais no exterior. Era uma espécie de cabana de pedras. Contendo apenas o básico. Nada de encanamento, eletricidade, telefone. O fim da linha, o fundo do além, fora de contato com o mundo. Era formidável- Houve silêncio. Ocorreu a Penelope que talvez aquela fosse somente a segunda vez que ouvia Danus falar de si mesmo. Sentiu pena dele. Perder um irmão muito amado em tão tenra idade devia ter sido uma experiência traumatizante. E, possivelmente, sentir que jamais chegaria à altura daquele irmão era ainda pior. Ela esperou, imaginando que, após quebrado o gelo de sua reserva e sentindo-se confiante, ele pudesse continuar. Entretanto, Danus ficou calado. Espreguiçou-se, estirou-se e finalmente se pôs de pé.
- A maré baixou - disse para Antonia. - A piscina na rocha está nos esperando. Tem coragem bastante para nadar?
Eles tinham ido, escalando com dificuldade a borda do penhasco e depois tomando a estreita trilha que levava aos rochedos mais abaixo. A piscina esperava, imóvel como vidro, cintilante e rutilantemente azul. Esperando para vê-los reaparecer, Penelope pensou em seu pai. Recordou-o com o chapéu de aba larga, o cavalete, o vinho e sua solidão, satisfeita e concentrada. Uma das frustrações de sua vida era o fato de não ter herdado o talento paterno. Não sabia pintar, nem mesmo desenhar, mas a influência dele havia sido incrivelmente forte; convivera com ela por tanto tempo que, com a maior naturalidade, era capaz de observar qualquer perspectiva, com seu olho penetrante de artista que tudo vê. E tudo permanecia exatamente como antes, exceto pela sinuosa fita verde da estrada do penhasco, palmilhada por andarilhos, que afundava e subia através do verdejante matagal novo, seguindo os contornos da costa.
Olhou para o mar, tentando decidir como, se fosse papai, se incumbiria de pintá-lo. Porque, embora ele fosse azul, era um azul composto de mil matizes diferentes. Cobrindo a areia, era raso e translúcido, um verde-jade estriado de água-marinha. Sobre as rochas e algas, escurecia para o índigo. Mais além, onde um pequeno barco pesqueiro abria caminho através das ondas, transformava-se em forte azul-da-prússia. Havia pouco vento, porém o oceano vivia e respirava; intumescia-se desde profundidades distantes, formando ondas. O sol, brilhando com seus raios através delas quando se encurvavam para rebentar, transformava-nos em esculturas móveis de vidraçaria verde. E, finalmente, tudo era afogado em luz, aquele único e ofuscante brilho que atraíra pintores à Cornualha, que instigara os impressionistas franceses à paixão pela criatividade. Uma composição perfeita. Faltavam apenas figuras humanas que infundissem proporção e vitalidade. Elas surgiram. Muito abaixo e miniaturizados pela distância. Antonia e Danus faziam uma lenta travessia por sobre as rochas, em direção à piscina. Ela os viu avançando. Danus carregava as toalhas de banho. Quando finalmente alcançaram a rocha achatada que ficava acima da piscina, ele as deixou cair e caminhou até a borda da rocha. Flexionou o corpo e mergulhou, mal espalhando água, quando se infiltrou nela. Antonia o seguiu. Nadando, eles rompiam a superfície da piscina em
estilhas ensolaradas. Ela ouviu suas vozes altas, seus risos. Outras vozes, outros mundos. Foi bom, e nada que é bom jamais ficará perdido. A voz de Richard. Ele se parece com Richard.
Penelope jamais havia nadado com Richard porque seu amor acontecera em tempos de guerra, fora um amor de inverno. Agora, no entanto, observando Danus e Antonia, voltou a sentir, com uma intensidade física que ficava além da mera recordação, aquele choque entorpecente da água fria. Recordou a euforia, a sensação de bem-estar, tão claramente como se seu corpo ainda fosse jovem, intocado pela doença ou pela passagem dos anos. E havia outros prazeres, outras delícias. O doce contato de mãos, braços, lábios, corpos. A paz da paixão saciada, a alegria de acordar para sonolentos beijos e risos irracionais...
Fazia muito tempo, quando ainda era bem pequena, papai a apresentara às fascinantes delícias de um compasso e um lápis de ponta aguçada. Ensinara-lhe a desenhar padrões, botões de flores, pétalas e curvas, porém nada lhe dera tanto prazer como simplesmente desenhar um círculo, em uma folha branca de papel. Tão belo, tão preciso... O lápis se movendo, desenhando uma linha na retaguarda e terminando, com maravilhosa precisão, exatamente onde havia começado.
Um anel era o signo aceito de infinito, eternidade. Como se sua vida tivesse sido aquela linha feita a lápis, cuidadosamente desenhada, de repente ela compreendeu que as duas extremidades aproximavam-se. Fiz o círculo completo, disse para si mesma, perguntando-se o que tinha acontecido com todos aqueles anos. Era uma pergunta que, de tempos em tempos, dava-lhe certa ansiedade e a deixava atormentada por terrível sensação de perda. Agora, no entanto, a pergunta se tomava irrelevante e, quanto à resposta, fosse ela qual fosse, não mais encerrava qualquer importância.
- Olivia!
- Mamma! Que agradável surpresa!
- Percebi que nunca lhe havia desejado uma feliz Páscoa. Sinto muito, porém talvez ainda não seja demasiado tarde. Aliás, não tinha certeza de encontrá-la; pensei que se poderia ter ausentado.
- Voltei este anoitecer. Estive na Ilha de Wight.
- Com quem você ficou?
- Com os Blakison. Lembra-se de Charlotte? Era a editora de alimentação na Venus, mas depois saiu para se casar e ter filhos.
- Foi bom?
- Divino! Sempre é bom ficar com eles. Foi uma reunião de muita gente em casa dela. E tudo feito sem qualquer esforço visível.
- Aquele americano simpático estava com você?
- Americano simpático? Oh, está falando de Hank. Não, ele voltou para os States.
- Pensei que ele fosse uma pessoa muito querida.
- E foi. Aliás, é. Irá procurar-me novamente, da próxima vez em que vier a Londres. Bem, mamma, fale-me sobre você. Como estão indo as coisas?
- Estamos tendo momentos maravilhosos. Vivendo no maior luxo.
- Já não era sem tempo, após tantos anos. Recebi uma longa carta de Antonia. Ela parecia infinitamente feliz.
- Ela e Danus vão ficar fora o dia inteiro. Foram com o carro até a costa sul. Vão procurar um rapaz que possui um horto. A esta altura já devem ter voltado.
- E como Danus está se portando?
- Ele tem sido um enorme sucesso.
- Ainda o aprecia da mesma forma?
- Sem dúvida, talvez até mais. Entretanto, nunca conheci um homem tão reservado. Talvez seja assim mesmo, entre os escoceses.
- Ele já lhe contou por que não bebe nem dirige?
- Não.
- Provavelmente é um alcoólatra regenerado.
- Se for, isso é com ele.
- Conte-me o que tem feito. Já esteve com Doris?
- É claro! Parece estar desabrochando. Animada como sempre. No sábado, passamos o dia nos penhascos, em Penjizal. E ontem de manhã, ficamos todos muito devotos e fomos à igreja.
- A cerimônia foi bonita?
- Linda! A igreja de Porthkerris é particularmente bela e, claro, estava inundada de flores, os bancos cheios de pessoas com chapéus incríveis, a música e o coral francamente excepcionais. Havia um bispo bastante tedioso em visita, que pregou para nós, porém a musica compensou o tédio de seu sermão. No final, houve uma volumosa procissão, todos ficamos em pé e cantamos "Por todos os santos que de seus labores descansam". Na volta para casa, eu e Antonia decidimos que era realmente um de nossos hinos favoritos.
Olivia riu.
- Oh, mamma! Isso, partindo de você! Eu nem mesmo sabia que tinha um hino favorito!
- Meu bem, eu não sou precisamente uma descrente. Não posso negar que seja um tanto cética. Enfim, a Páscoa é sempre algo perturbador, com a Ressurreição e a promessa do após-vida. Com franqueza, jamais consegui acreditar nisto. E, embora adorasse tornar a ver Sophie e papai, há dúzias de outras pessoas que eu passaria muito bem sem nunca mais voltar a ver. Além disso, imagine o aperto! Ser convidada para o maior, mais tedioso cocktail-party, onde passaria o tempo todo procurando as pessoas amigas que realmente quisesse ver...
- E quanto a “Os catadores de conchas”? Você o viu?
- Ficou maravilhoso. Absolutamente em casa. Como se tivesse estado lá a vida inteira!
- Não se arrepende de o ter doado?
- Nem por um segundo!
- E agora, o que esteve fazendo? Neste momento?
- Tomei um banho, espichei-me na cama, lia “O sol também se levanta” e liguei para você. Depois vou ligar também para Noel e Nancy, trocar de roupa e descer para jantar. Aqui é tudo sempre muito pomposo e, no restaurante, há um homem que fica dedilhando um piano de cauda. Como no Savory.
- Quanto refinamento! O que você vai usar?
- Meu cáftan. Está praticamente no fim, mas, semicerrando os olhos, a gente não enxerga os buracos.
- Você vai ficar fantástica, mamma. Quando voltam para casa?
- Na quarta-feira. Chegaremos a Podmore's Thatch ao anoitecer de quarta-feira.
- Darei um telefonema para lá .
- Faça isso minha querida. Que Deus a abençoe!
- Até lá, mamma!
Penelope discou o número de Noel, esperou um momento, ouviu o telefone tocar, mas ninguém atendeu. Ela desligou. Provavelmente ele fora para algum lugar, qualquer lugar no campo, em um de seus prolongados e sociais fins de semana. Tornou a erguer o fone, discando então o número de Nancy.
- O velho Vicariato!
- George?
- Ele mesmo.
- Aqui é Penelope. Feliz Páscoa!
- Obrigado - disse George, mas não retribuiu.
- Nancy está aí?
- Deve estar em algum lugar. Você quer falar com ela?
- Se for possível. (Por que mais eu ligaria, sujeito idiota?)
- Espere um instante. Vou chamá-la.
Ela esperou. Era agradável ficar ali, relaxada e aquecida, recostada em enormes e macios travesseiros, mas Nancy demorou tanto a responder, que Penelope começou a se impacientar. O que estaria ela fazendo? Para passar o tempo, pegou seu livro e já até conseguira ler um ou dois parágrafos, quando ouviu a voz da filha.
- Alô?
Penelope baixou o livro.
- Nancy? Onde é que estava? No fim do jardim?
- Não.
- Teve uma boa Páscoa?
- Tive, obrigada.
- O que foi que fez?
- Nada de particular.
- Teve visitas?
- Não.
A voz era frígida. Nancy exibia seu aspecto mais desagradável, parecendo extremamente ofendida. O que teria acontecido agora?
- O que há de errado, Nancy?
- Por que deveria haver algo errado?
- Não sei, mas evidentemente houve alguma coisa. - Silêncio. - Acho melhor me dizer o que há, Nancy.
- Eu apenas... estou um pouco magoada e perturbada. Nada mais.
- Sobre o quê?
- Sobre o quê? Ora, você ainda pergunta, como se não soubesse perfeitamente o que há!
- Se soubesse, eu não perguntaria.
- Não ficaria magoada, se estivesse em meu lugar? Há semanas que não tenho notícias suas. Nem uma palavra! E quando ligo para Podmore's Thatch, querendo convidar você e Antonia para virem passar a Páscoa conosco, descubro que viajou. Foi para a Cornualha, levando Antonia e o jardineiro em sua companhia, e tudo sem uma só palavra a mim ou a George!
Então era isso.
- Se quer saber francamente, Nancy, não pensei que você estivesse interessada.
- Não é uma questão de estar interessada, mas de me deixar preocupada. Ausentar-se sem mais nem menos, sem avisar a ninguém! Poderia acontecer-lhe alguma coisa, e nós nem saberíamos onde é que estava.
- Olivia sabia.
- Oh, Olívia... Sim, claro que ela sabia, e aposto como deve ter ficado bem satisfeita, ao me dar a informação. Acho incrível que você considere necessário dizer a ela o que pretende fazer, esquecendo de me dar qualquer notícia. - Ela agora estava a pleno vapor. - Tudo que acontece parece chegar até mim em segunda mão, através de Olivia. Tudo que você faz! Tudo que você decide! Contratar aquele jardineiro! Ter Antonia morando com você, quando levei semanas gastando um bom dinheiro em anúncios no jornal, à procura de uma governanta! Depois, a venda dos painéis e a doação de “Os catadores de conchas”! Sem uma palavra de consulta, a mim ou a George! Afinal de contas, sou sua filha mais velha. Se não me
deve nada, pelo menos podia pensar em meus sentimentos. Em seguida, desaparece para a Cornualha desse jeito, com Antonia e o jardineiro a reboque. Dois perfeitos estranhos! No entanto, quando sugeri que Melanie e Rupert fossem, você rejeitou firmemente a idéia. Seus próprios netos! E leva dois estranhos! Duas pessoas sobre as quais nada sabemos. Eles estão tirando proveito de você, mamãe! Pode ter certeza disso. Claro, você sempre teve coração mole, mas não pensei que fosse tão cega. É tudo tão ofensivo... tão desconsiderado de sua parte...
- Nancy...
- ... se foi assim que se portou com o pobre papai, não é de admirar que ele a tenha abandonado. Ninguém gosta de se sentir rejeitado e indesejável. Vovó Keeling sempre dizia que jamais conheceu mulher tão insensível como você. Eu e George tentamos assumir responsabilidades em seu nome, porém você não torna as coisas fáceis para nós. Viajar, sem uma palavra... e gastando todo esse dinheiro. Todos sabemos o que essa hospedagem no The Sands irá custar-lhe... e desfazer-se de “Os catadores de conchas”... quando sabe o quanto todos nós estamos necessitados... Oh, é muito doloroso...
Os ressentimentos acumulados efervesciam. A esta altura, quase incoerente, Nancy perdera o fôlego. Penelope conseguiu uma brecha. - Terminou? - perguntou polidamente. Nancy não respondeu. - Posso falar agora?
- Se quiser.
- Liguei para você a fim de lhe desejar Feliz Páscoa. Não para ter uma discussão. Entretanto, se quer uma, farei sua vontade. Ao vender os painéis, simplesmente fiz o que você e Noel vinham insistindo comigo para que fizesse, durante meses. Obtive cem mil libras por eles, como Olivia provavelmente lhe contou e, pela primeira vez em minha vida, decidi gastar um pouco desse dinheiro comigo mesma. Você sabe que eu planejava voltar a Porthkerris, porque a convidei para vir comigo. Convidei Noel e também convidei Olivia. Vocês todos apresentaram escusas, nenhum de vocês quis vir comigo.
- Mamãe eu lhe disse meus motivos...
- Escusas - repetiu Penelope. - Eu não tinha a menor intenção de vir sozinha. Queria uma companhia alegre para partilhar o meu prazer. Assim, Antonia e Danus vieram comigo. Não estou tão senil, a ponto de não poder escolher meus próprios amigos. E quanto “Os catadores de conchas”, aquele quadro era meu! Jamais esqueça isto! Papai o deu para mim, como presente de casamento. E agora, vendo-o pendurado na Galeria de Arte em Porthkerris, tenho a sensação de, simplesmente, tê-lo devolvido a ele. A ele e a milhares de pessoas comuns, que agora poderão ir lá e ver o quadro, talvez sentindo parte do consolo e prazer que ele sempre me deu.
- Você não pode ter idéia do quanto ele vale.
- Tenho muito mais idéia de seu valor, do que vocês jamais tiveram. Viveram com “Os catadores de conchas” a vida inteira e mal olharam para o quadro.
- Não foi isto que eu quis dizer.
- Não, eu sei que não foi.
- E que... - Nancy ficou à cata de palavras. - E como se você realmente quisesse magoar-nos... como se não gostasse de nós...
- Nancy!
- ... e por que você sempre conta tudo para Olivia, nunca para mim?
- Talvez porque você sempre pareça ter tanta dificuldade em compreender qualquer coisa que eu faça.
- Como posso compreender, se você se porta de maneira tão extraordinária, nunca querendo confiar em mim...tratando-me como se eu fosse uma tola. É sempre tudo com Olivia. Você sempre gostou mais dela! Quando éramos crianças, Olivia era apontada como o máximo, tão inteligente e tão interessante. Você jamais procurou compreender-me... e se não fosse por vovó Keeling...
Nancy atingira aquele ponto em que, transbordando de auto-piedade, estava pronta a evocar qualquer erro de um remoto passado, que imaginava lhe ter sido infligido. Esgotada pela conversa. Penelope subitamente decidiu que não suportava mais. Já havia levado uma carga demasiado pesada e ainda tinha que ouvir os desabafos adolescentes de uma mulher de quarenta e três anos? Oh, era mais do que podia agüentar.
- Acho que devemos encerrar esta conversa.
Nancy – disse não sei o que teria sido de mim sem vovó Keeling. Poder contar com ela é que tornou minha vida apenas suportável...
- Adeus. Nancy.
- ... porque você nunca teve nenhum tempo para mim... nunca me deu nada...
Desligando cuidadosamente. Penelope encerrou a conversa com a filha. A voz irada e alterada foi, misericordiosamente, silenciada. Nas janelas abertas, cortinas transparentes agitaram-se à brisa. Seu coração como sempre acontecia nestas ocasiões perturbadoras, estava batendo em desencontradas palpitações. Ela estendeu a mão para suas pílulas, tomou duas, que engoliu com água, e recostou-se nos travesseiros fofos, fechando os olhos. Pensou em, simplesmente, entregar os pontos. Sentia-se exaurida por completo e, naquele momento, pronta a sucumbir à exaustão, até mesmo às lágrimas. Só que não admitia ser perturbada por Nancy. Não choraria.
Após um momento, depois que seu coração voltou a ficar estável, ela afastou as cobertas e saiu da cama. Usava um robe leve e fresco, estava com os compridos cabelos soltos. Foi ao toucador e sentou-se espiando a própria imagem sem muita satisfação. Depois pegou a escova e começou a escovar o cabelo, em longos e lentos movimentos.
Sempre tudo com Olivia. Você sempre gostou mais dela.
Era verdade. Desde que ela nascera e Penelope a vira pela primeira vez, um bebezinho moreno, com um nariz grande demais para o pequenino rosto, sentira aquela indescritível proximidade com a filha. Por causa de Richard, Olivia era especial. No entanto, isso era tudo. Jamais a amara mais do que amara Nancy e Noel. Amara todos eles, seus filhos. Amara mais cada um deles, mas por motivos diferentes. Ela descobrira que o amor tinha um curioso meio de se multiplicar. De duplicar-se, triplicar-se. À medida que cada filho chegava, sempre havia amor mais do que suficiente para dar. E Nancy, a primogênita, recebera mais do que o seu devido quinhão de amor e atenção. Pensou em Nancy pequena, tão teimosa e sedutora, caminhando aos tropeções pelo jardim em Carn Cottage, sobre as perninhas curtas e gordas. Correndo atrás das galinhas, empurrando o carrinho de mão que Ernie lhe tinha feito, mimada e idolatrada por Doris, perpetuamente cercada de braços amorosos e rostos sorridentes. O que acontecera àquela garotinha? Seria mesmo possível que Nancy não guardasse a menor recordação daqueles primeiros tempos?
Infelizmente, parecia que assim era.
Você nunca me deu nada.
Não era verdade. Penelope sabia que não era verdade. Dera a Nancy o que tinha dado a todos os seus filhos. Um lar, segurança, conforto, interesse, uma casa aonde levar amigos, uma robusta porta da frente para os manter a salvo do mundo lá fora. Pensou no grande porão da Rua Oakley, cheirando a alho e ervas, aquecido pela enorme estufa e pela lareira aberta. Recordou todos eles, tagarelando como andorinhas e famintos como cães de caça, irrompendo da escola nos escuros crepúsculos dos invernos; livrando-se das mochilas, despindo os agasalhos e instalando-se para consumir enormes quantidades de salsichas, massas, bolos de peixe, torradas amanteigadas, bolo de ameixas e chocolate. Recordou daquele aposento maravilhoso na época do Natal, com o cheiro resinoso da árvore e cartões de Natal espalhados por toda parte, pendurados em varais de fita vermelha como roupa lavada na corda. Pensou nos verões, nas portas-janelas que se abriam para o jardim mais além, na sombra das árvores, no perfume dos pés de tabaco e das trepadeiras. Pensou nas crianças que brincavam naquele jardim, gritando garrulamente. Nancy fora uma delas.
Ela dera tudo isto a Nancy, porém não lhe fora capaz de dar o que ela queria (Nancy jamais dizia "queria” dizia “precisava"), pois nunca houvera dinheiro suficiente para comprar os bens materiais e presentes luxuosos que a menina cobiçava. Vestidos de festa, carrinhos de boneca, um pônei, estudo em internatos, saídas para dançar e uma temporada londrina de debutante. Um grande e ostentoso casamento havia sido o pico de suas ambições, mas só obtivera este desejo de seu coração através da oportuna intervenção de Dolly Keeling, que providenciara (e custeara) todo o dispendioso e constrangedor assunto.
Penelope finalmente largou a escova. Ainda estava irritada com Nancy, mas aquele ato simples de escovar os cabelos a tinha acalmado. Uma vez mais composta, sentiu-se melhor, mais fortalecida, dona de si mesma, capaz de tomar decisões. Apanhou e torceu os extremos da cabeleira, pegou suas travessas de tartaruga e firmou o coque no lugar, com certa força, de maneira perfeita.
Meia hora mais tarde, quando Antonia veio procurá-la, já tinha voltado para a cama. Sentada, com os travesseiros afofados, os pertences ao alcance e seu livro no colo.
Houve uma batida à porta, depois a voz de Antonia.
- Penelope?
- Entre.
A porta se abriu e Antonia assomou com a cabeça.
- Eu só vinha... - Ela entrou e fechou a porta. - Você está na cama! - Sua expressão era da maior preocupação. – Alguma coisa errada, Penelope? Não se sente bem?
Penelope fechou o livro.
- Não, eu estou bem. Sinto-me apenas um pouco cansada e sem vontade de descer para jantar. Sinto muito. Estavam à minha espera?
- Não esperamos muito tempo. - Antonia inclinou-se acima da borda da cama. - Descemos até o bar, mas como você não aparecia, Danus pediu que eu subisse, para saber o que estava acontecendo.
Penelope viu que Antonia se vestira para a noite. Usava uma estreita saia negra, juntamente com a folgada blusa de cetim creme que elas duas, juntas, haviam comprado em Cheltenham. Seus cabelos cobre-alourados pendiam reluzentes e perfeitos sobre os ombros. O rosto mostrava a pele limpa de uma suave maçã, sem sinais de artifícios. Excetuando-se, é claro, aquelas pestanas negras, admiravelmente longas.
- Quer comer alguma coisa? Gostaria que eu ligasse para a copa, pedindo que lhe enviem uma bandeja?
- Talvez. Mais tarde. Enfim, eu mesma posso fazer isso.
- Eu espero - disse Antonia, acusadoramente - que você não tenha exagerado, caminhando além da conta, sem que eu e Danus estivéssemos por perto.
- Não exagerei em nada. Apenas estou aborrecida.
- Ora, mas o que houve para deixá-la aborrecida?
- Liguei para Nancy, a fim de lhe desejar Feliz Páscoa, mas recebi uma enxurrada de acusações, em retribuição.
- Oh, que lamentável da parte dela... E como foi isso?
- Houve de tudo. Nancy parece achar que estou senil. Que não lhe dei importância quando era criança e que fiquei perdulária na velhice. Que guardo segredos dela, que sou uma irresponsável e não sei escolher meus amigos. Penso que tudo isto levou algum tempo fermentando dentro dela, e que o fato de haver trazido você e Danus comigo a Porthkerris foi a gota que fez o copo transbordar. Então, tudo ferveu e foi despejado em cima de mim. - Ela sorriu. - Oh, ainda bem! É melhor soltar do que reter, como costumava dizer meu querido pai.
Não obstante, Antonia ficou indignada.
- Como foi possível ela perturbá-la tanto?
- Não permiti que me perturbasse. Em vez disto, fiquei furiosa! É muito mais saudável. E, convenhamos, toda situação sempre tem seu lado cômico. Desliguei com ela ainda falando e posso imaginá-la correndo para o marido, em um dilúvio de lágrimas destoantes, para descarregar sobre ele todas as iniqüidades de sua mãe irresponsável. Imagino também George refugiando-se atrás do jornal, sem abrir a boca. Ele sempre foi o menos comunicativo dos homens. Por que Nancy decidiu casar com ele, antes de mais nada, é algo que me foge à compreensão. Portanto, não admira que os filhos deles sejam tão antipáticos. Rupert, com seus modos descorteses, e Melanie, com aquele olhar funesto, sempre mascando a ponta do rabo-de-cavalo!
- Acho que não está sendo muito gentil.
- E não estou mesmo! Estou sendo malévola. No entanto, até foi bom que acontecesse, porque me ajudou a tomar uma decisão.
Sua volumosa bolsa de couro estava sobre a mesa de cabeceira. Penelope remexeu fundo em seu interior, vasculhando as vastas entranhas da bolsa. Por fim, seus dedos encontraram o que buscavam, apanharam o surrado estojo de couro para jóias.
- Tome - disse, entregando-o a Antonia. - É para você.
- Para mim?
- Sim. Quero que fique com eles. Pegue! Abra o estojo!
Quase relutante, Antonia obedeceu. Pressionou o diminuto fecho e a tampa se abriu com um estalido. Penelope observou-lhe o rosto. Viu-a arregalar os olhos em descrença, ficar boquiaberta de espanto.
- Oh, mas... eles não podem ser para mim!
- São seus. Eu os estou dando para você. Quero que fique com eles. São os brincos da Tia Ethel. Ela os deixou para mim quando a morreu, e os levei a Ibiza, daquela vez que fiquei com vocês. Usei-os na festa de Cosmo e Olivia. Lembra-se?
- É claro que me lembro! Mesmo assim, não os pode dar para mim! Tenho certeza de que são muito valiosos.
- Não mais do que nossa amizade. Não mais do que o prazer que você me deu.
- Eles devem valer milhares de libras. Penelope!
- Creio que valem quatro mil. Como nunca tive dinheiro suficiente para segurá-los, deixava-os guardados no banco. Apanhei-os naquele dia em que fomos a Cheltenham. Como acho que você tampouco terá dinheiro sobrando para o seguro, provavelmente terão que retomar ao banco. Pobres coisas, não têm levado uma vida muita boa, concorda? Entretanto, você pode usá-los agora, esta noite. Suas orelhas são furadas, não os irá perder. Coloque-os e deixe-me ver como ficam.
Antonia, no entanto, ainda hesitava.
- Ouça, Penélope, se eles valem tanto, não seria melhor guardá-los para Olivia ou Nancy? Ou para sua neta? Talvez Melanie é que devesse ficar com eles.
- Olivia desejará que você fique com os brincos, posso garantir. Eles a fariam recordar Ibiza e Cosmo. Ela concordará comigo que nada melhor do que ficarem com você. Quanto a Nancy, tornou-se tão tediosamente ambiciosa e materialista, que nada merece. E duvido muito que Melanie um dia chegasse a apreciar o quanto são belos. Vamos, coloque-os!
Antonia continuava duvidosa, mas fez o que ela pedia. Retirou os brincos, um de cada vez, do veludo gasto em que repousavam, depois deslizou os finos aros de ouro nos lóbulos de suas orelhas. Jogou o cabelo para trás.
- Que tal ficaram?
- Perfeitos! Exatamente o que faltava como acessório para seu traje tão bonito. Vá até o espelho e veja você mesma.
Antonia assim fez, levantando-se da beira da cama, cruzando o quarto e parando diante do espelho do toucador. Penelope viu seu reflexo e pensou que nunca vira alguma jovem parecer tão sensacional.
- De lato, são perfeitos para você. Uma mulher precisa ter altura bastante para usar jóias tão belas. E, se algum dia ficar apertada de dinheiro, sempre os poderá empenhar. Será um pequeno pé-de-meia para os momentos difíceis.
Antonia, entretanto, permanecia silenciosa, sem palavras diante da magnificência do presente. Então, após um momento, afastou-se do espelho e voltou para junto da cama de Penelope. Sacudindo a cabeça, disse:
- Estou sem palavras. Não imagino por que deveria ser tão generosa, tão gentil comigo...
- Um dia, quando tiver a minha idade, acho que encontrará a resposta para isso.
- Farei um trato com você. Usarei os brincos esta noite, mas amanhã cedo talvez você tenha mudado de idéia. Se mudar, eu os devolverei!
- Não vou mudar de idéia, fique certa. Agora que os vi em suas orelhas, fiquei mais certa do que nunca de que lhe deveriam pertencer. Bem, não falemos mais disto. Sente-se outra vez e conte-me como foi seu dia. Danus não se incomodará. Ele pode esperar mais dez minutos. Quero ouvir tudo. Não adorou aquela costa sul? Tão diferente daqui, cheia de florestas e água... Certa vez, durante a guerra, passei lá uma semana. Em uma casa com um jardim que descia para um riacho. Lá havia narcisos silvestres por toda parte e pequenas gaivotas pousadas no final do ancoradouro. Às vezes me pergunto o que terá sido feito daquela velha casa e quem morará lá agora. - Isso, entretanto, agora não vinha ao caso. - Muito bem. Aonde foram? Com quem estiveram? Foi divertido?
- Sim, foi maravilhoso. Uma viagem fascinante. E interessante também. Estivemos em um imenso mercado de plantas, com estufas envidraçadas, prateleiras de mudas e uma loja, onde se pode comprar plantas, regadores e coisas assim. Eles cultivam tomates, batatas prematuras e todo tipo de vegetais exóticos, como ervilhas mange-tout.
- Quem é o dono?
- Umas pessoas chamadas Ashley. Everard Ashley freqüentou a Faculdade de Horticultura com Danus. Por isso é que fomos lá.
Ela se calou, como se nada mais houvesse a ser dito. Penélope esperou por mais, porém Antonia continuou em silêncio. Tal reticência era inesperada. Olhou fixamente para a jovem, mas ela baixara os olhos, e suas mãos ocuparam - se com o estojo de jóias vazio, abrindo-o e tornando a fechá-lo. Alguma coisa estava errada. Ela insistiu, delicadamente:
- Onde foi que almoçaram?
- Com os Ashley, na cozinha de sua casa.
Agradáveis visões de um almoço íntimo em um pub, em alguma deliciosa estalagem, esmaeceram e morreram.
- Everard é casado?
- Não. Mora com os pais. A fazenda é de seu pai. Eles dirigem o negócio juntos.
- E Danus pretende fazer alguma coisa no mesmo ramo?
- Ele diz que sim.
- Você já discutiu o assunto com ele?
- Sim. Até certo ponto.
- Antonia... o que há de errado?
- Eu não sei.
- Vocês brigaram?
- Não.
- Ora, mas alguma coisa aconteceu!
- Não aconteceu nada. Eis o que está errado. Consigo chegar até um certo ponto, mas dali não passo. Fico pensando que o conheço, que estou próxima dele, mas então me vejo diante de um muro de retraimento. Como ter uma porta fechada na minha cara.
- Você gosta dele, não gosta?
- Oh, sim!
Uma lágrima surgiu por baixo das pestanas descidas, começando a deslizar pela face de Antonia.
- Apaixonada por ele, imagino.
Houve um longo silêncio. Antonia assentiu.
- E você acha que ele não a ama?
As lágrimas agora caíam rapidamente. Erguendo a mão, Antonia as limpou.
- Não sei. É possível. Ficamos tanto tempo juntos, nestas últimas semanas... a esta altura, ele certamente saberia, de um modo ou de outro... a situação atinge um ponto de não retorno, e creio que já o ultrapassamos.
- A culpa é minha - disse Penelope. - Tome...
Apanhou um monte de lenços de papel na mesa de cabeceira e os passou para Antonia. Ela assoou o nariz ruidosamente, depois perguntou:
- Por que deveria ser culpa sua?
- Porque estive pensando apenas em mim mesma. Eu queria companhia, velha egoísta que sou! Então, convidei você e Danus para virem aqui comigo. Talvez até estivesse interferindo um pouco. Bancando a casamenteira, algo sempre fatal. Imaginei estar sendo inteligente, mas, talvez, este tenha sido o mais terrível engano.
Antonia parecia em desespero.
- O que há com ele, Penelope?
- É do tipo reservado.
- É algo mais do que reserva.
- Então orgulho, talvez.
- Seria orgulhoso demais para amar?
- Não é bem isso. Enfim, acho que ele não tem dinheiro. Sabe o que quer, porém não tem dinheiro para empregar. Qualquer tipo de negócio requer um bom capital, atualmente. Assim, ele fica sem perspectiva e talvez não se sinta em condições de ficar envolvido.
- Um envolvimento não significaria necessariamente a responsabilidade do casamento.
- Acho que, em se tratando de um homem como Danus, provavelmente significaria.
- Eu podia apenas ficar com ele. Trabalharíamos em alguma coisa, juntos. Nós nos entendemos bem trabalhando. Em todos os sentidos.
- Já lhe disse isto?
- Não pude. Tentei, mas não pude.
- Sendo assim, creio que deveria tentar novamente. Em benefício de ambos. Diga-lhe como se sente. Ponha suas cartas na mesa. Afinal, pelo menos são bons amigos. Acha que poderia ser sincera com ele?
- Está querendo dizer, confessar que o amo, que quero passar o resto de minha vida com ele, que não me importo se não tem dinheiro algum em seu nome e que nem mesmo me importo se não casar comigo?
- Dito desta maneira, admito que ficaria um pouco rude. Bem... sim. Acho que foi o que eu quis dizer.
- E se ele responder que devo ir cuidar de minha vida?
- Você ficará machucada e ofendida, mas, pelo menos, saberá onde está pisando. E, por algum motivo, não creio que ele lhe dirá para ir cuidar de sua vida. Acredito que será honesto com você, e acabará descobrindo que a explicação para a atitude dele é algo inteiramente distinto e separado do relacionamento entre ambos.
- Como seria possível tal coisa?
- Não sei. Gostaria de saber. Também gostaria de saber por que ele não bebe e nem dirige. Eu nada tenho com isso, claro, mas confesso que me intriga. Ele esconde algo, disso tenho certeza, mas, após conhecê-lo, não creio que seja alguma coisa vergonhosa.
- Na realidade, eu não me incomodaria se fosse - disse Antonia, agora tendo cessado as lágrimas. Ela tornou a assoar o nariz e acrescentou: - Eu sinto muito. Não pretendia fazer toda esta choradeira.
- Às vezes, é o melhor. É melhor soltar do que reter.
- Acontece que ele é o primeiro homem por quem já me senti realmente atraída ou com afinidades. Se tivesse havido muitos outros, talvez fosse mais fácil manejar a situação. Entretanto, nada posso fazer sobre a maneira como me sinto e acho que não suportaria a idéia de perdê-lo. Quando o vi a primeira vez, em Podmore's Thatch adivinhei que ele era especial, soube que seria alguém muito importante em minha vida. E, de certa forma, enquanto estávamos lá, tudo ia bem. Havia naturalidade, podíamos conversar e trabalhar juntos, plantar coisas, sem qualquer tensão. Aqui, no entanto é diferente. Formou-se uma situação irreal, há qualquer coisa sobre a qual pareço não ter controle algum...
- Oh, minha querida, sou eu a culpada! Sinto muito. Pensei que este passeio seria romântico para você, especial. Ora, não recomece a chorar. Acabará estragando seu rostinho bonito e também o resto da noite...
- Eu gostaria de não ser eu... - soltou Antonia. – Gostaria de ser Olivia. Ela jamais se meteria em tal confusão!
- Você não é Olivia. Você é você. É bonita e jovem. Tem tudo pela frente. Jamais deseje ser outra pessoa, nem mesmo Olivia!
- Ela é tão forte, tão sensata...
- Você também será. Agora, vá lavar o rosto, penteie o cabelo e desça para dizer a Danus que prefiro ficar aqui no quarto, tranqüila e comigo mesma. Depois, tome um drinque com ele, vá jantar e, enquanto estiverem comendo, diga-lhe tudo o que me disse. Você não é uma criança. Nenhum dos dois é. Esta situação não pode continuar, e não permitirei que se sinta infeliz. Danus é um rapaz educado. O que quer que aconteça, o que quer que ele diga, jamais a magoaria e delideradamente.
- Sim, eu sei disso.
Elas se beijaram. Antonia levantou-se da cama e foi ao banheiro, lavar o rosto. Quando emergiu, parou diante do toucador e usou o pente de Penelope para ajeitar o cabelo.
- Os brincos lhe darão sorte - disse-lhe Penelope. - E lhe darão coragem. Agora, apresse-se, é hora de ir. Danus deve estar perguntando-se o que terá acontecido a nós duas. E, lembre-se: diga o que pensa e não tenha medo. Jamais tenha medo de ser sincera e verdadeira!
Tentarei ser corajosa.
- Boa-noite, minha querida.
- Boa-noite.
DANUS
Penelope acordou para outra manhã de céu claro e puro, para os sons agradáveis e conhecidos - o mar, quebrando-se suavemente na praia muito abaixo; gaivotas grasnando, e um tordo, logo abaixo de sua janela, fazendo um grande escarcéu sobre qualquer coisa; um carro subindo a rua, mudando a marcha, depois parando na entrada de cascalho; um homem assobiando.
Eram oito e dez. Ela havia dormido oito horas corridas. Sentia-se repousada, cheia de energia, faminta. Era terça-feira. O último dia das férias. Tal certeza a encheu de melancolia. Amanhã de manhã, deviam arrumar as malas e preparar-se para a longa viagem até Gloucestershire. Penelope se sentiu instigada por uma sensação de urgência egoísta, porque havia várias coisas que ainda não fizera e que gostaria de fazer. Ficou elaborando uma lista mental, por aquela vez colocando as próprias prioridades antes de tudo. Danus e Antonia, o dilema em que se encontravam, por ora ficavam em segundo lugar. Mais tarde, ela pensaria nos problemas dos dois. Mais tarde falaria com eles. Por ora, o tempo precisava ser seu apenas.
Levantou-se, tomou um banho, arrumou o cabelo, vestiu-se. Então, refrescada e perfumada, enfiada em roupas limpas, sentou-se à secretária em seu quarto e escreveu uma carta para Olivia, no espesso e caro papel timbrado, fornecido pelo hotel. Não era muito longa, quase um bilhete, informando a Olivia que dera para Antonia os brincos da Tia Ethel. Por algum motivo, era importante que Olivia ficasse a par disto. Enfiou a carta em um envelope, endereçou-o, selou-o e o fechou. Depois, recolhendo sua bolsa e as chaves, saiu do quarto.
Encontrou o saguão deserto, as portas giratórias abertas para o ar puro e os frescos aromas matinais. Somente o recepcionista estava atrás de seu balcão, e uma mulher de macacão azul passava o aspirador no carpete. Disse bom-dia para os dois, postou sua carta e foi para o refeitório vazio, pedir o desjejum. Suco de laranja, dois ovos cozidos, torradas, geléia e café preto. Quando ia chegando ao fim, um ou dois hóspedes entraram, acomodaram-se e abriram seus jornais, para discutir o novo dia. Foram planejados jogos de golfe e excursões turísticas. Penelope ouvia a conversa, satisfeita por não ter que considerar qualquer outra pessoa mais. Ainda não havia qualquer sinal de Danus ou Antonia, pelo que se sentiu vergonhosamente grata.
Saiu do refeitório. Agora eram quase nove e meia. Quando cruzava o saguão, parou junto ao balcão do recepcionista.
- Vou até a Galeria de Arte. Sabe a que horas abre?
- Creio que por volta das oito, Sra. Keeling. Vai dirigindo?
- Não. Irei andando. Está uma manhã muito bonita. Enfim, quando eu quiser voltar, se ligar para o senhor, gostaria que mandasse um táxi apanhar-me.
- Perfeitamente.
- Obrigada.
Ela o deixou, encaminhando-se com consciente prazer para a claridade do sol e as doces rajadas de ar fresco, o que intensificava seu senso de liberdade e irresponsabilidade. Quando era criança, as manhãs de sábado infundiam a mesma sensação de vazio e falta do que fazer, a perspectiva de que as horas seriam preenchidas por delícias inesperadas. Caminhou devagar, saboreando odores e sons, parando para contemplar jardins, a cintilante expansão da baía, um homem passeando com seu cão pela praia. Assim, quando finalmente abandonou a rua do porto e começou a subir a inclinada rua lajeada que conduzia à Galeria, viu que as portas do prédio estavam abertas. Entretanto, àquela hora e àquela época do ano, descobriu que estava compreensivelmente deserto, com exceção do jovem sentado à sua mesa, na portaria. Era um indivíduo cadavérico, de comprido cabelo anelado, usando jeans remendados e uma folgada suéter pintalgada. Bocejava como se não houvesse dormido, mas, quando Penelope surgiu, ele engoliu o bocejo, empertigou-se na cadeira e prontificou-se a vender-lhe um catálogo.
- Não, não preciso de um catálogo, obrigada. Mais tarde, talvez compre alguns cartões-postais.
Mortalmente fatigado, ele tomou a afundar em sua cadeira. Penelope gostaria de saber quem o empregara como encarregado, mas então decidiu que ele provavelmente executava aquele trabalho por amor.
“Os catadores de conchas” esperava por ela, magnífico em seu novo lar, pendurado no centro da comprida parede sem janelas. Ela caminhou pelo piso ecoante e acomodou-se confortavelmente no antigo sofá de couro onde anos antes, costumava sentar-se com papai. Ele tinha razão. Eles tinham vindo, aqueles jovens artistas, como seu pai havia dito. “Os catadores de conchas” estava flanqueado, emoldurado, por abstratos e primitivos, todos explodindo de colorido, de luz e vida. Os pintores menores que, nos tempos antigos, haviam preenchido os grandes espaços haviam desaparecido (Barcos de pesca à noite; Flores em minha janela). Agora, ela identificava as obras de outros pintores, dos novos artistas que os tinham vindo substituir. Ben Nicholson. Peter Lanyon, Brian Winter. Patrick Heron. Entretanto, de maneira alguma eles superavam “Os catadores de conchas”. Pelo contrário, intensificavam os azuis e cinzas, os brilhantes reflexos do quadro favorito de papai. Ela imaginou que era como entrar em um aposento mobiliado com belos móveis, tanto tradicionais como gritantemente modernos, onde nenhuma peça desmerecia sua vizinha nem contrastava com ela, simplesmente porque cada uma era a criação de um artesão habilidoso e o melhor de sua época.
Ela ficou ali, contente e em paz, alegrando e enchendo os olhos.
Quando ocorreu a interrupção e chegou outro visitante, entrando pela porta atrás dela, mal percebeu o sucedido. Houve uma conversa murmurada. Depois passos, caminhando devagar. E, de repente, foi como havia sido antes, naquele ventoso dia de agosto durante a guerra, e ela novamente estava com vinte e três anos, tinha buracos nos tênis e papai sentado ao seu lado. E Richard entrara na galeria e em suas vidas. E papai dissera a ele, “Eles virão... pintar o calor do sol e a cor do vento". E assim é que tudo começara.
Os passos aproximaram-se. Ele estava ali, aguardando sua atenção. Ela virou a cabeça. Pensando em Richard, viu Danus. Desorientada, perdida no tempo, olhou para ele; um estranho.
- Eu a estou perturbando - disse ele.
A voz familiar rompeu o estranho feitiço. Ela procurou compor-se, expulsou o passado, ajeitou as feições em um sorriso.
- É claro que não. Eu estava em um sonho.
- Devo deixá-la sozinha?
- Não, não. - Ele estava só. Usava uma blusa de pescador azul-marinho. Voltados para ela, os olhos de Danus pareciam estranhamente brilhantes, intensamente azuis, fixos. - Estou me despedindo de “Os catadores de conchas”. - Penelope mudou de posição, deu um tapinha no couro gasto do assento ao seu lado. – Venha e junte-se a mim, em minha comunhão solitária.
Ele assim fez, sentando-se meio de lado para ela, com um braço ao longo das costas do sofá, as pernas compridas cruzadas.
- Está melhor esta manhã?
Ela não recordava ter-se sentido indisposta.
- Melhor?
- À noite passada, Antonia disse que a senhora não se sentia muito bem.
- Oh, isso! Eu estava apenas um pouco cansada. Sinto-me perfeitamente bem esta manhã. Como sabia onde encontrar-me?
- O recepcionista do hotel me disse.
- Onde está Antonia?
- Arrumando as malas.
- Arrumando as malas? Tão cedo? Ora, só partiremos amanhã de manhã!
- Ela está arrumando minhas malas. Foi isto que vim dizer-lhe. Isto e muitas outras coisas mais. Tenho que ir embora hoje. Vou embarcar no trem para Londres e depois, ainda esta noite, tomarei o que vai para Edimburgo. Tenho que ir em casa.
Ela só podia imaginar um motivo para atitude tão precipitada e urgente.
- Sua família. Aconteceu alguma coisa. Há alguém doente?
- Não. Não se trata disso.
- Então, por quê?
Seus pensamentos voaram para a noite anterior e para Antonia. Antonia em lágrimas, sentada na beira de sua cama. Você deve ser sincera e verdadeira, tinha dito a ela, certa, com toda a arrogância da experiência, de estar dando somente o conselho mais sensato. No entanto, tudo parecia indicar que simplesmente se intrometera, interferira e destruíra. O plano dera errado. O gesto corajoso de Antonia, pondo as cartas na mesa, de maneira alguma esclarecera a situação; a franqueza resultara em um confronto - talvez uma briga irremediável - e agora, ela e Danus haviam decidido que a única solução era o afastamento. Não podia haver outra explicação. Sentiu-se próxima das lágrimas.
- Eu sou a culpada - censurou-se. - Foi tudo culpa minha.
- Ninguém tem culpa. O que aconteceu nada tem a ver com a senhora.
- Oh, mas eu é que disse para Antonia...
Ela a interrompeu.
- E estava certa! E se, ontem à noite, ela nada tivesse dito, eu diria. Porque ontem, o dia que passamos juntos, foi uma espécie de catalisador. Tudo mudou. Foi como vadear um rio. Tudo ficou muito simples e muito claro.
- Ela o ama, Danus! Certamente, você percebeu isso.
- Daí o motivo de minha partida.
- Antonia significa tão pouco para você?
- Pelo contrário, justamente o contrário. É mais do que amor. Ela se tomou parte de mim. Dizer-lhe adeus será como dilacerar minhas próprias raízes, mas será preciso.
- Estou estupefata.
- Não a censuro.
- O que aconteceu ontem?
- Acho que nós dois subitamente amadurecemos. Também pode ser que tenha amadurecido o que vinha ocorrendo entre nós. Até ontem, tudo quanto havíamos feito juntos tinha sido sem importância, muito trivial e inofensivo. Trabalhar no jardim e na horta em Podmore's Thatch, nadar na piscina rochosa em Penjizal... Nada importante. Nada sério. Creio que isto provavelmente tenha sido culpa minha. Eu não procurava um relacionamento significativo. Era a última coisa que desejava. Então, ontem fomos a Manaccan. Já havia falado antes sobre meus sonhos de um dia ter meu próprio negócio, e Antonia discutira tudo isso comigo, porém da maneira mais casual e impessoal. Nunca percebi o quanto se interessava por aquelas discussões. Então, Everard Ashley começou a mostrar-nos o que tinha feito e, enquanto o acompanhávamos, aconteceu uma coisa extraordinária. Nós dois nos tornamos um casal. Era como se, o que quer que fizéssemos, fôssemos fazê-lo juntos. Antonia parecia tão entusiasmada e interessada como eu, fervilhava de perguntas, idéias e planos. Foi quando de repente, bem no meio de uma estufa cheia de tomateiros, eu soube que ela era parte de meu futuro. Parte de mim agora. Não consigo imaginar a vida sem ela. Seja lá o que eu for fazer, quero fazê-lo com ela, e o que quer que aconteça a mim, quero que aconteça a nós dois.
- E por que isso não pode acontecer?
- Há dois motivos. O primeiro é estritamente prático. Nada tenho para oferecer a Antonia. Estou com vinte e quatro anos e não tenho dinheiro, uma casa, rendimentos privados, nada. Meu salário semanal é o de um jardineiro-operário. Um horto, um negócio só meu, é apenas um sonho distante, talvez irrealizável. Everard Ashley entrou no negócio com o pai, mas eu teria de comprá-lo e não disponho de capital.
- Há bancos que emprestam dinheiro. Não seria possível uma subvenção do governo? - Penelope pensou nos pais dele. Por alguns fiapos de informação soltados por Danus de quando em quando, a impressão deixada era de uma família, se não nadando em dinheiro, pelo menos com um razoável quinhão de bens materiais.
- Seus pais não poderiam ajudá-lo?
- A tal ponto, creio que não.
- Já perguntou a eles?
- Não.
- Já discutiu seus planos com eles?
- Ainda não.
Tamanho derrotismo era inesperado e sumamente irritante. Decepcionada com ele, Penelope acabou perdendo a paciência.
- Sinto muito, mas não consigo entender qual é o problema. Você e Antonia encontraram-se, amam-se e querem passar juntos o resto de suas vidas. Vocês têm que agarrar a felicidade, segurá-la bem firme, nunca deixá-la fugir! Agir de outro modo é moralmente errado. Tais oportunidades nunca aparecem duas vezes. Que diferença faz, se tiverem que viver com aperto? Antonia pode arranjar um emprego; é o que faz a maioria das esposas jovens. Outros casais jovens mantêm a cabeça acima d'água, simplesmente encaminhando suas prioridades no rumo certo. - Ele nada objetou a isto e ela franziu o cenho. - Imagino que seja o seu orgulho. O estúpido, obstinado orgulho escocês. Se for, acho que está sendo tremendamente egoísta. Como pode ir embora e deixá-la, tomá-la tão infeliz? O que há de errado com você, Danus, para virar as costas ao amor?
- Eu disse que havia dois motivos. Só lhe contei um deles.
- E qual é o outro?
- Eu sou epiléptico - disse ele.
Ela se sentiu gelada e imóvel, sem palavras, impotente. Fitou o rosto dele, olhos nos olhos, e a expressão de Danus permaneceu imperturbável. Não baixou os olhos. Ela desejou abraçá-lo, apertá-lo contra si, confortá-lo, porém não fez nada disto. Pensamentos ao acaso ganharam forma, voaram desordenados em todas as direções, como aves espantadas. A resposta a todas aquelas perguntas não respondidas. Este homem é Danus.
Ela respirou fundo. Perguntou:
- Você já contou para Antonia?
- Já.
- Quer contar para mim?
- Por isto vim aqui. Antonia enviou-me. Ela disse que a senhora, mais do que ninguém, tinha que saber. Antes que eu parta e a deixe, preciso dizer-lhe os meus motivos.
Penelope pousou a mão no joelho dele.
- Estou ouvindo.
- Creio que tudo começou com meu pai e minha mãe. E com Ian. Já lhe disse, imagino, que meu pai é advogado. A família dele tem sido de advogados há três gerações, e o pai de minha mãe foi um jurista, membro dos tribunais escoceses. Ian estava destinado a imitar o exemplo de meu pai, juntando-se à firma familiar e, de modo geral, seguindo a tradição. E ele teria sido um bom advogado, porque tudo em que punha as mãos era sempre um sucesso. Entretanto, aos quatorze anos, Ian morreu. Inevitavelmente, competia a mim tomar-lhe o lugar. Eu ainda nem havia pensado no que queria fazer. Sabia apenas que aquela era a minha obrigação. Como se eu fosse programado, como um computador. Bem, fui estudar e, embora jamais tivesse sido tão brilhante como Ian, consegui ser aprovado nos exames necessários e obtive um lugar na Universidade de Edimburgo. Contudo, sendo ainda muito novo, antes de ir para a Universidade decidi tirar dois anos de folga para viajar, ver um pouco do mundo. Fui para a América. Vaguei de costa a costa, fazia qualquer trabalho que me surgisse pela frente e fui terminar no Arkansas, trabalhando em um rancho de gado, para um homem chamado Jack Rogers. Ele possuía terra como quê, estendendo-se por quilômetros e quilômetros. Tornei-me um dos vaqueiros, ajudando a recolher o gado e a consertar cercas. Vivia em um galpão, juntamente com mais três trabalhadores.
“O rancho era incrivelmente distante. Sleeping Creek, a cidade mais próxima, ficava a sessenta e cinco quilômetros, não muito longe, para quem estivesse acostumado àquelas distâncias. Eu costumava dirigir até lá algumas vezes, levando Sally Rogers para compras nas lojas ou recolhendo mantimentos e equipamentos para Jack. Era um dia inteiro de viagem, com o caminhão sacolejando por uma estrada de terra e terminando coberto por uma poeira da marrom”.
“Certo dia, quando já chegava ao fim de minha temporada no rancho, fiquei doente. Sentia-me péssimo, comecei a vomitar e tiritar, depois tive uma febre altíssima. Devo ter ficado delirante, porque não recordo ter sido removido do galpão para a casa do rancho, mas foi onde me encontrei, com Sally Rogers cuidando de mim. Ela fez um bom trabalho e, após cerca de uma semana, consegui recuperar-me e ficar de pé novamente. Concluímos que eu sofrera alguma virose e, quando pude dar três passos sem ficar de pernas bambas, retomei ao trabalho”.
“Então, pouco mais tarde, sem qualquer aviso... nada... perdi os sentidos. Caí sobre um tronco abatido, bati com as costas e permaneci uma meia hora inconsciente. Parecia não haver qualquer motivo, mas uma semana mais tarde aquilo tomou a acontecer e fiquei passando tão mal, que Sally me botou no caminhão e levou-me ao médico, em Sleeping Creek. Ele ouviu meu relato dos fatos e fez alguns exames. Uma semana mais tarde voltei para vê-lo, quando então ele me disse que eu tinha epilepsia. Deu-me remédios para tomar, quatro vezes ao dia. Disse que tudo correria bem comigo, se não deixasse de tomar os remédios. Acrescentou que nada mais podia fazer por mim”.
Danus calou-se. Penelope sentiu que ele esperava algum comentário seu, mas não imaginava o que dizer, que não fosse cediço ou banal.
- Eu nunca havia estado doente na vida. Jamais tivera algo pior do que sarampo. Perguntei ao médico, por quê? Ele me fez algumas perguntas e finalmente chegamos a uma pancada que levei na cabeça, quando jogava rúgbi na escola. Havia sofrido uma concussão, porém nada pior. Até aquele momento. Agora, eu estava com epilepsia. Tinha quase vinte e um anos e era epiléptico.
- Contou isso às pessoas para quem trabalhava?
- Não. E fiz o médico prometer que honraria o sigilo profissional. Eu não queria que ninguém soubesse. Se não conseguisse lidar com aquilo sozinho, então não haveria mais qualquer jeito. Eventualmente, voltei para cá. Voei até Londres e tomei o trem noturno para Edimburgo. A esta altura, já decidira não aceitar aquele lugar na Universidade de Edimburgo. Com tempo para pensar a respeito, acabara descobrindo a verdade, isto é, que jamais tomaria o lugar de Ian. Receava fracassar, decepcionar meu pai. Ao mesmo tempo durante aqueles últimos meses descobrira algo mais. Eu precisava trabalhar ao ar livre, com minhas mãos. Não queria ninguém observando-me de perto, esperando de mim uma coisa que eu jamais conseguiria realizar. Explicar tudo isto a meus pais foi uma das piores coisas que tive que fazer. A princípio, eles não acreditaram. Depois ficaram magoados, profundamente desiludidos comigo. Não os censurei. Eu estava destruindo todos os planos que tinham feito. Por fim, conformaram-se e aceitaram a situação, pois não havia alternativa. No entanto, foi impossível contar a eles sobre a epilepsia.
- Você nunca contou a eles? Como pôde ficar calado?
- Meu irmão morreu de meningite. Eu achava que, com uma coisa e outra, eles já tinham bastante para enfrentar. Não lhes faria bem algum se eu os sobrecarregasse com mais preocupações e angústias. Por outro lado, tudo estava bem comigo. Eu tomava a medicação e não perdia mais os sentidos. Estava perfeitamente normal. Tudo que tinha a fazer era procurar outro médico, um médico jovem... um homem que ignorasse meu histórico clínico. Ele me forneceu uma prescrição permanente para meus medicamentos. Depois disso, matriculei-me por três anos na Faculdade de Horticultura em Worcestershire. Lá, também, tudo correu bem. Eu era apenas mais um sujeito comum. Fazia tudo que faziam os outros alunos. Embriagava-me, dirigia, jogava futebol. No entanto, continuava epiléptico. Sabia que, deixando de tomar os remédios, tudo recomeçaria. Eu procurava não pensar nisso, mas ninguém consegue estancar o que nos vai dentro da cabeça. Era uma coisa que estava sempre lá. Um peso enorme, como uma mochila carregada, que nunca podemos arriar.
- Se você partilhasse seu problema, ele talvez não lhe parecesse tão pesado.
- Eventualmente, foi o que fiz. Por força das circunstâncias. Ao terminar os estudos, consegui o emprego com a Autogarden, em Pudley. Vi um anúncio no jornal, ofereci-me e fui aceito. Trabalhei até o Natal e então fui em casa, por umas duas semanas. Por volta do Ano Novo, peguei uma gripe e fiquei cinco dias de cama. Minha medicação esgotou-se. Era impossível sair para comprá-la, de maneira que finalmente precisei pedir a minha mãe que fizesse isso por mim. É claro que tive de contar tudo.
- Então, ela sabe! Graças a Deus por isso! Sem dúvida, deve ter desejado estrangulá-lo, por ser tão sigiloso.
- Curiosamente, acho que ela ficou aliviada. Já parecia desconfiar de alguma coisa e imaginara o pior, mas guardava seus temores para si mesma. Este é o problema com minha família: nunca fazemos confidências. Tem algo a ver com ser escocês e independente, não querer ser considerado um estorvo. Fomos criados desta maneira. Minha mãe nunca foi muito demonstrativa, nunca o que se poderia chamar de particularmente afetuosa; entretanto, naquele dia, depois que trouxe minhas pílulas da farmácia, sentou-se à minha cama e conversamos durante horas. Ela chegou até a falar sobre Ian, uma coisa que jamais fizera antes. Recordamos os bons tempos e rimos. Então, falei -lhe que sempre me considerara um segundo-lugar, que nunca poderia substituir Ian. Com isto, ela voltou a seu antigo jeito enérgico e prático, disse-me que não devia ser um idiota tão emproado; eu era eu, ela não me queria de outra maneira; seu único desejo era ver-me bom novamente. Isto significava outro diagnóstico e uma segunda opinião. Assim que saí da cama, depois daquela gripe, vi-me sentado no consultório de um eminente neurocirurgião, respondendo a mil perguntas. Houve mais exames e um EEG... uma cintilografia cerebral... mas no fim do dia, fiquei sabendo que nenhum diagnóstico acurado poderia ser feito, enquanto eu permanecesse tomando medicamentos. Assim, eu teria que suspendê-los durante três meses e então voltar para uma segunda consulta. Se fosse cuidadoso, nada prejudicial aconteceria comigo, mas, em hipótese alguma, deveria dirigir ou ingerir álcool.
- E quando terminam os três meses?
- Já se esgotaram. Há duas semanas.
- Ora, mas que tolice! Você não deve perder mais tempo!
- Foi o que Antonia me disse.
Antonia. Penelope quase esquecera Antonia.
- O que aconteceu ontem à noite, Danus?
- A senhora já sabe a maior parte. Fomos para o bar e ficamos à sua espera, mas, como não aparecesse, Antonia foi ao seu encontro. Enquanto fiquei sozinho, fiz uma lista mental de cada coisa que diria a ela. Imaginei que fosse terrivelmente difícil, vi-me escolhendo as palavras acertadas, compondo frases ridiculamente formais. Então, ela voltou e vinha usando os brincos que a senhora lhe deu. Parecia tão sensacionalmente adulta e bonita, que todas aquelas frases preparadas com tanto cuidado voaram pela janela, e terminei dizendo a ela o que havia em meu coração. Eu estava falando, quando Antonia começou a falar também, e então começamos a rir, porque percebemos que ambos dizíamos a mesma coisa.
- Oh, meu querido rapaz...
- O que eu temia era magoá-la ou entristecê-la. Ela sempre me pareceu tão jovem, tão vulnerável... No entanto, foi admirável. Imensamente prática. E, como a senhora, ficou horrorizada em saber que as semanas iam passando, sem que eu marcasse a segunda consulta médica.
- E agora, já marcou?
- Já. Telefonei às nove horas desta manhã. Serei examinado pelo neurocirurgião na quinta-feira e, então, farei outro EEG. Os resultados serão quase imediatos.
- Ligue para nós em Podmore's Thatch e conte-nos tudo!
- Naturalmente.
- Se você ficou três meses sem medicamentos e sem perda dos sentidos, certamente o prognóstico é esperançoso.
- Não quero ficar pensando nisso. Não ouso ter esperanças.
- Seja como for, voltará para nós?
Pela primeira vez, Danus pareceu incerto sobre o que fazer.
- ... Ainda não sei. A questão é que talvez tenha que ser submetido a alguma espécie de tratamento. Isso pode durar meses. Então, terei que ficar em Edimburgo...
- E Antonia? O que acontecerá a Antonia?
- Não sei. Não sei nem o que acontecerá comigo. Neste exato momento, não vejo qualquer perspectiva de poder dar a ela a vida que merece. Antonia está com dezoito anos. Poderia fazer alguma coisa com sua vida, ter alguém. Basta ligar para Olivia e, dentro de alguns meses, estará na capa de cada revista de luxo do país. Não posso permitir que se comprometa comigo, enquanto eu não tiver certeza de um futuro de alguma sorte para nós dois. Realmente, não há alternativa.
Penelope suspirou. No entanto, contra sua opinião, respeitou o raciocínio dele.
- Se vocês tiverem que ficar separados por algum tempo, talvez fosse melhor Antonia voltar para Londres e ficar com Olivia. Ela não pode, simplesmente, ficar parada em Podmore's Thatch, comigo. A pobrezinha morreria de tédio. Será melhor ter um emprego. Novos amigos. Novos interesses...
- Acha que estará bem lá, sem ela para lhe fazer companhia?
- Oh, mas claro que estarei! - Ela sorriu. - Pobre Danus, lamento por você. A doença é algo odioso seja que forma assuma.
Eu sou doente. Sofri um ataque cardíaco, porém não admito isto para ninguém. Saí do hospital e disse para meus filhos que os médicos são uns idiotas. Insisti em que nada havia de errado comigo, mas é lógico que há. Se fico perturbada, meu coração salta no peito como um ioiô, e sou obrigada a tomar uma pílula. Ele pode descontrolar-se inteiramente a qualquer momento e, então, ficarei caída, com os dedos do pé virados para cima. Só que, enquanto isso
não acontece, sou muito mais feliz fingindo que nada houve, absolutamente nada. Você e Antonia não se devem preocupar por eu ficar sozinha. Conto com a minha querida Sra. Plakett. Entretanto, não vou fingir que não sentirei falta de vocês dois. Tivemos ótimos momentos juntos! Eu não poderia desejar companheiros melhores nesta última semana. Sou muito grata aos dois, por terem vindo a este lugar tão especial.
Ele balançou a cabeça, em sorridente perplexidade.
- Nunca soube por que a senhora sempre se mostrou tão excepcionalmente gentil comigo.
- A explicação é fácil. Apeguei-me a você desde o começo, devido aos seus traços físicos. É estranhamente parecido com um homem que conheci durante a guerra. Foi como se, logo no início, eu já o conhecesse. Doris Penberth também reparou na semelhança, naquele anoitecer em que você e Antonia foram apanhar-me em casa dela. Doris, Ernie e eu somos as únicas pessoas que ainda podem lembrar-se dele. Chamava-se Richard Lomax e foi morto no
Dia D na Praia de Omaha. Dizer que alguém foi o amor de nossa vida soa como o clichê mais banal, porém é isso que ele significou para mim. Quando morreu, algo em mim morreu também. Nunca houve mais ninguém.
- E seu marido?
Penelope suspirou. deu de ombros.
- Receio que o nosso casamento nunca tenha sido muito satisfatório. Se Richard tivesse sobrevivido à guerra. eu deixaria Ambrose, levaria Nancy e iria viver com ele. Com Richard morto, voltei para Ambrose. Parecia a única coisa a fazer. Aliás, sinto-me um pouco culpada com ele. Eu era jovem e egoísta quando nos casamos, para nos separar quase em seguida. O casamento nunca teve uma chance antes. Achei que pelo menos, devia essa chance a Ambrose e, por outro lado, ele era o pai de Nancy. Além disso, eu queria mais filhos. Por fim, descobri que jamais amaria de novo, inteiramente. Não poderia haver outro Richard e assim pareceu-me sensato tirar o melhor proveito do que eu tinha. Devo admitir que eu e Ambrose nunca tivemos muito sucesso em nossa vida a dois, porém havia Nancy, depois tive Olivia e mais tarde, Noel. Filhos pequenos apesar do trabalho que dão podem ser um grande consolo.
- Nunca falou a seu filhos sobre este outro homem?
- Nunca. Jamais contei a eles, jamais pronunciei seu nome. Levei quarenta anos sem falar nele. Somente há dias, quando estive com Doris, ela falou em Richard, como se ele tivesse saído da sala naquele momento. Foi maravilhoso! Não havia mais tristeza. Vivi entristecida tempo demasiado. Em uma solidão que nada nem ninguém poderiam amenizar. Entretanto, no correr dos anos, acabei conformada com o sucedido. Aprendi a viver interiormente, a cultivar flores, a ver meus filhos crescendo, a olhar para quadros e ouvir música. Os suaves poderes. Eles são admiravelmente consoladores.
- Sentirá falta de “Os catadores de conchas”.
Ela ficou comovida pela percepção dele.
- Não. Danus! Não sentirei mais. “Os catadores de conchas” se foi, como Richard se foi. Provavelmente, jamais tomarei a pronunciar o nome dele. E você guardará consigo o que lhe contei, para sempre.
- Tem a minha palavra.
- Ótimo. Agora como parece que já falamos tudo o que havia para falar, não será hora de irmos andando? Antonia irá pensar que desaparecemos para sempre. - Danus levantou-se e estendeu a mão, a fim de ajudá-la a ficar em pé. Penelope descobriu que seus pés doíam. - Estou cansada demais para subir a colina caminhando. Pediremos àquele rapaz de cabelos compridos, que telefone pedindo um táxi para nos levar ao hotel. Deixarei para trás “Os catadores de conchas” e todas as lembranças do meu passado. Bem aqui, nesta singular e pequenina Galeria, onde todos eles começaram e onde é inteiramente apropriado para terminar seus dias!
PENELOPE
Resplendente em seu uniforme verde-escuro, o porteiro do saguão do hotel The Sands bateu a porta do carro e desejou a elas um boa viagem. Antonia dirigia. O velho Volvo rodou para diante, dobrou a curva da entrada de carros, por entre os canteiros de hortênsias, e ganhou a rua. Penelope não olhou para trás.
Era um bom dia para partirem. O feitiço do tempo perfeito parecia temporariamente interrompido. Um nevoeiro surgira do mar durante aquela noite e envolvia tudo em neblina, dispersando-se e tornando a se juntar novamente, como fumaça. Somente uma vez, pouco antes de elas chegarem à auto-estrada, o nevoeiro rareou, admitindo uma difusa claridade solar, capaz de revelar o estuário. Era maré vazante. As praias lodosas apareciam vazias de vida, com exceção das eternas aves marinhas rapinantes. A distância, podiam ser vislumbrados os alvos vagalhões do Atlântico, quebrando-se contra os bancos de areia. Então, a íngreme rampa da nova estrada empinou-se em direção ao céu, e tudo se foi.
Desta maneira, a partida, a despedida, terminava. Penelope preparou-se para a longa jornada. Pensou em Podmore's Thatch e descobriu que ansiava chegar em casa. Com satisfação, viu-se chegando, entrando em sua casa, inspecionando seu jardim, desfazendo malas, abrindo janelas, lendo sua correspondência...
Ao seu lado, Antonia perguntou:
- Você está bem?
- Achou que eu devia debulhar-me em lágrimas?
- Não, mas é sempre doloroso deixar algum lugar que amamos. Você esperou tanto tempo para voltar... E, agora, estamos novamente indo embora.
- Sou uma mulher de sorte. Tenho meu coração em dois lugares, de maneira que fico contente, onde quer que esteja.
- Acho que deve voltar no ano que vem. Fique com Doris e Ernie. Isso lhe proporcionará algo por que ansiar. Cosmo sempre dizia que a vida não merece ser vivida, a menos que tenhamos uma expectativa.
- O querido homem, como tinha razão! - Penelope pensou nisto. - Receio que, por enquanto, seu futuro pareça um pouco triste e solitário.
- Só por enquanto.
- É melhor ser realista, Antonia. Se ficar preparada para ouvir o pior, em relação a Danus, então, tudo que for melhor chegará como um maravilhoso bônus.
- Eu sei. Aliás, não tenho qualquer ilusão sobre ele. Percebo que isso talvez demore muito tempo e odeio tal perspectiva, por causa dele. Entretanto, quanto a mim, sei egoisticamente que o fato de ele estar doente torna tudo mais fácil. Nós nos amamos de verdade e nada mais importa... Isto é o principal e é a isto que me apegarei.
- Está sendo muito corajosa. Sensata e corajosa. Não que eu esperasse outra coisa de sua parte. Sinceramente, estou muito orgulhosa de você.
- No fundo, nada tenho de corajosa. Entretanto, nada é tão ruim, se podemos fazer alguma coisa. Na segunda-feira, voltando de Manaccan, sem nenhum de nós dizendo uma palavra e sabendo que havia algo errado, embora sem idéia do que fosse... bem, isso foi o pior. Achei que ele se cansara de mim, que não desejava a minha presença, que teria preferido ir ver seu amigo sozinho. De fato, foi terrível. O desentendimento não é a coisa mais horrível do mundo? Jamais permitirei que isso aconteça comigo outra vez. E sei que nunca mais acontecerá entre Danus e eu.
- Foi tanto culpa dele, como sua. No entanto, acho que essa dolorosa reserva é natural nele, foi herdada dos pais, sendo também grande parte devido à maneira como foi criado.
- Ele me disse que era isso o que tanto aprecia em você. Sua maneira de estar sempre mais do que disposta a discutir qualquer coisa. E, mais importante ainda, a ouvir. Danus me contou que, em criança, nunca de fato conversou com os pais, nunca se sentiu realmente próximo deles. Muito triste, não? Eles provavelmente o adoravam, mas nunca pensaram em dizer-lhe isto.
- Antonia, se Danus tiver que ficar em Edimburgo e submeter-se a um tratamento, talvez tendo que ficar hospitalizado algum tempo... já pensou no que pretende fazer?
- Já. Se possível, ficarei mais uma ou duas semanas com você. Até lá, deveremos saber para que lado o vento irá soprar. Se a ausência dele for prolongada, então ligarei para Olivia e aceitarei sua oferta de ajuda. Não que eu queira ser modelo fotográfico. Na realidade, não há um trabalho que eu detestasse mais, porém se puder ganhar algum dinheiro decente com isso, conseguirei sustentar-me e economizar um pouco. Assim, quando Danus ficar bem novamente, pelo menos teremos um pequeníssimo começo para iniciar vida nova. Isso será meu estímulo para trabalhar. Não irei sentir que estou desperdiçando meu tempo inteiramente.
Enquanto elas viajavam, subindo para a espinha dorsal do condado e deixando para trás o litoral, o nevoeiro se dissipara por completo. Em terras altas, o sol batia em cheio nos prados, fazendas e charnecas, as antigas casas de máquinas de minas de estanho, em desuso, apontando para o céu límpido de primavera, irregulares como dentes quebrados.
Penelope suspirou.
- Que estranho! - exclamou.
- O que é estranho?
- Primeira foi a minha vida. Depois a de Olivia. Então, apareceu Cosmo. Depois você. E agora, é de seu futuro que falamos. É uma estranha progressão.
- Sem dúvida. - Antonia hesitou, depois prosseguiu. – Há uma coisa sobre a qual não precisa preocupar-se. Nem tudo está errado com Danus. Quero dizer, ele não é importante ou coisa assim.
O significado desta observação levou um instante para ser digerido. Penelope virou a cabeça e olhou para Antonia. O perfil sedutor da jovem estava voltado para a estrada diante delas, porém um leve rubor lhe aquecia as faces.
Tornando a virar-se para espiar pela janela, Penelope sorriu secretamente para si mesma.
- Fico satisfeita - respondeu.
O relógio da igreja de Temple Pudley batia as cinco horas, quando elas cruzavam o portão de Podmore's Thatch e logo depois paravam. A porta da frente estava aberta e uma coluna de fumaça desprendia-se da chaminé. A Sra. Plackett encontrava-se lá, esperando-as. A chaleira cantava e ela havia feito uma batelada de bolinhos. Nenhuma acolhida ao lar teria sido mais bem-vinda.
A Sra. Plackett falava ruidosamente, dividida entre querer ouvir as novidades delas e oferecer as suas.
- Vejam só, como estão queimadas! Lá deve ter feito o mesmo bom tempo que aqui. O Sr. Plackett teve que regar nossas verduras, de tão seco que o solo ficou. E, obrigada pelo cartão-postal, Antonia. Era do seu hotel, com todas aquelas bandeiras esvoaçando? Para mim, mais parecia um palácio! Tivemos vândalos no cemitério, quebraram todos os vasos de flores e escreveram palavras horríveis sobre as sepulturas, com tinta-spray. Trouxe algumas coisinhas para vocês; pão e manteiga, leite e umas duas costeletas para seu jantar. Fizeram uma boa viagem?
Elas finalmente conseguiram dizer-lhe que sim, tinham feito uma boa viagem, as estradas haviam estado ótimas e agora só pensavam em uma xícara de chá. Foi somente então que a Sra. Plackett reparou no detalhe; das três pessoas que haviam partido para a Cornualha, apenas duas retomavam.
- Onde está Danus? Na certa o deixaram na Sawcombe's, não foi?
- Não, ele não veio conosco. Teve que voltar à Escócia. Tomou o trem ontem.
- À Escócia? Um tanto inesperado, não é mesmo?
- Sem dúvida, mas ele precisava ir. De qualquer modo, tivemos cinco dias maravilhosos juntos.
- Isso é o que importa. Viu sua velha amiga?
- Doris Penberth? Sim, é claro. E posso dizer-lhe, Sra. Plackett, que conversamos até nos secar a bocal - A Sra. Plackett preparava o chá. Penelope sentou-se à mesa e pegou um bolinho. - A senhora foi muito bondosa, ficando aqui para nos receber.
-Bem, eu disse para Linda que achava melhor vir para cá. Arejar a casa. Colher algumas flores... Sei que não gosta de sua casa sem flores. Oh, temos mais uma novidade: o Darren, filhinho de Linda, começou a andar. Ainda outro dia, estava engatinhando pela cozinha... - Ela serviu o chá. - Ele faz anos na segunda-feira. Eu disse que daria uma ajudazinha a Linda; queria saber se não se incomoda se eu vier na terça-feira, em vez de na segunda. Já limpei as janelas, coloquei a correspondência em sua secretária... - Ela puxou uma cadeira e sentou-se também, os braços grossos e competentes cruzados sobre a mesa à sua frente uma pilha e tanto, acumulada em cima do capacho, atrás da porta...
Ela finalmente se foi para casa, pedalando majestosamente sua bicicleta, a fim de servir o chá do Sr. Plackett. Enquanto as duas bisbilhotavam, Antonia havia descarregado o carro e levado suas malas para cima. Presumivelmente estaria guardando tudo nos armários, porque não tornou a aparecer. Então, assim que a Sra. Plackett foi embora, Penelope fez o que desejava fazer, logo que entrara em casa. Primeiro sua estufa de plantas. Encheu um regador e regou todas as plantas nos vasos. Depois apanhou as tesouras de jardinagem e foi para o jardim. O gramado precisava ser aparado, as íris haviam despontado e, no extremo oposto do canteiro marginando o muro, havia uma massa de tulipas vermelhas e amarelas. Os primeiros rododendros tinham florido precoces, e ela colheu apenas uma das flores, maravilhando-se com sua perfeição rosa-pálido, emoldurada em rígidas folhas verde-escuro. Concluiu que nenhuma mão humana jamais conseguiria tão satisfatório arranjo de pétalas e estames. Após um momento contemplando a flor, com ela na mão vagou pelo pomar, cheio de fruteiras floridas. depois cruzou o portão para a margem do rio. O Windrush fluía sossegadamente, esgueirando-se por baixo dos ramos pendentes dos salgueiros. Havia primaveras desabrochadas e moitas de malva amarelo-pálidas. Enquanto ela caminhava, uma pata selvagem emergiu de um espesso de juncos e começou a nadar corrente acima, para encantamento de Penelope, seguida por meia dúzia de penugentos patinhos. Ela continuou andando até a ponte de madeira e, por aquele momento dando-se por satisfeita, fez lentamente o caminho de volta para casa. Quando cruzava o gramado, Antonia chamou, da janela de seu quarto no andar de cima.
- Penélope! - Penelope parou e olhou para cima. A cabeça e os ombros de Antonia estavam emoldurados em um emaranhado de madressilvas. - Já passa das seis horas. Posso telefonar para Danus? Prometi a ele que telefonaria, para dizer que chegamos bem!
- Claro que pode. Use o telefone de meu quarto. E dê lembranças minhas a ele.
- Eu darei.
Na cozinha, encontrou um jarro de vidro, encheu-o de água e colocou dentro dele a flor do rododendro. Levou o jarro para a sala de estar, já profusamente decorada pelas mãos não profissionais, mas amorosas da Sra. Plackett. Depositou o jarro em sua secretária, recolheu a correspondência e instalou-se em sua cadeira de braços. Os enfadonhos envelopes pardacentos, sem dúvida contendo contas, foram deixados no chão. Os outros... ela os folheou. Um grosso envelope branco parecia interessante. Reconheceu a caligrafia comprida e fina de Rose Pilkington. Fendeu o envelope com o polegar. Ouviu um carro entrando no portão, aproximar-se e parar diante da porta da frente.
Não se moveu da poltrona. Um estranho tocaria a sineta da porta, e um amigo simplesmente iria entrando. Foi o que fez este visitante. Pisadas cruzaram a cozinha, o vestíbulo. A porta da sala de estar se abriu, e seu filho Noel entrou no aposento.
Dificilmente ela ficaria mais surpresa.
- Noel!
- Olá!
Ele usava calças de sarja castanho-claras, uma suéter azul-celeste e um lenço de algodão pintalgado de vermelho, atado ao pescoço. Estava muito queimado e parecia admiravelmente atraente. A carta de Rose Pilkington ficou esquecida.
- De onde foi que surgiu?
- De Gales. - Ele fechou a porta atrás de si. Penelope ergueu o rosto, esperando um dos beijos superficiais do filho, porém ele não se inclinou para tal, em vez disto, postando-se com alguma graciosidade diante da lareira, os ombros recostados no aparador, as mãos enfiadas nos bolsos da calça. Atrás de sua cabeça, a parede onde “Os catadores de conchas” estivera pendurado agora estava nua e vazia. - Estive lá, para o fim de semana da Páscoa. Agora, estou
indo para Londres e pensei em dar uma passada por aqui.
- Fim de semana da Páscoa? Bem, hoje já é quarta-feira!
- Foi um longo fim de semana.
- Muito conveniente para você. Divertiu-se?
- Bastante, obrigado. E como foi, na Cornualha?
- Uma viagem mágica. Chegamos por volta das cinco horas. Ainda nem desfiz as malas.
- E onde estão seus companheiros de viagem?
A voz dele tinha um tom cortante. Ela o fitou agudamente, mas ele evitou seu olhar, desviando o rosto.
- Danus está na Escócia. Foi para lá ontem, de trem. E Antonia está lá em cima, em meu quarto, telefonando para ele, a fim de dizer que chegamos bem.
Noel ergueu as sobrancelhas.
- A partir de tão pouca informação, é difícil adivinhar exatamente o que aconteceu. Essa volta à Escócia parece indicar que as relações ficaram tensas, enquanto desfrutavam do The Sands. Contudo, neste momento, Antonia fala com ele ao telefone. Você precisará explicar melhor.
- Nada há para explicar. Danus tinha um compromisso na Escócia, ao qual não podia faltar. Nada mais simples do que isso. - A expressão de Noel deixava entender que ele não acreditava.
Penelope resolveu mudar de assunto. - Quer ficar para o jantar?
- Não. Tenho que voltar a Londres.
Entretanto, ele continuou onde estava.
- Um drinque, então... gostaria de um drinque?
- Não, está tudo bem comigo.
Ela pensou. Não deixarei que ele me intimide. Falou:
- Pois eu gostaria de um. Gostaria de um uísque com soda. Poderia ter a gentileza de servi-lo para mim?
Ele hesitou, depois foi à sala de refeições. Ela ouviu armários sendo abertos, o retinir de copos. Reuniu as cartas que jaziam em seu colo e as colocou bem empilhadas na mesa ao lado da poltrona. Quando Noel voltou, Penelope viu que ele mudara de idéia sobre o drinque, pois trazia dois copos. Entregando-lhe um, ele retomou à posição anterior.
- E “Os catadores de conchas”? - perguntou ele.
Então era isso. Ela sorriu.
- Foi Olivia quem lhe falou sobre “Os catadores de conchas” ou foi Nancy?
- Nancy.
- Nancy ficou profundamente ofendida por eu ter feito tal coisa. Pessoalmente ofendida. É o que sente também? Foi isso que veio me dizer?
- Não. Eu só queria saber o que, em nome de Deus, a induziu a fazer semelhante coisa.
- Meu pai o deu para mim. Doando-o à Galeria, achei que simplesmente o devolvia a ele.
- Tem alguma idéia do valor daquele quadro?
- Sei o quanto ele vale para mim. Quanto a uma avaliação financeira, como ele nunca foi exibido antes, nunca foi avaliado.
- Eu liguei para meu amigo Edwin Mundy e contei a ele o que você havia feito. Ele nunca viu o quadro, naturalmente, mas tinha uma noção bastante clara do preço que alcançaria em um leilão. Sabe em quanto ele o avaliou...?
- Não sei e nem quero saber. - Noel abriu a boca para dizer-lhe, mas se viu na outra extremidade de um olhar de advertência tão formidável, que tomou a fechá-la sem pronunciar palavra. - Você está com raiva - ela prosseguiu. - Porque, por algum motivo, como Nancy, acha que me desfiz de algo que, por direito, pertence a vocês. Não, Noel, não pertence! Nunca pertenceu! Quanto aos painéis, devia mostrar-se satisfeito por eu ter seguido o seu conselho. Você insistiu para que eu os vendesse, foi quem me apontou a Boothby's e o Sr. Roy Brookner. O Sr. Brookner encontrou-me um comprador particular, que me ofereceu cem mil por eles. Aceitei o preço. O dinheiro está aí, para ser incluído em meus bens, quando eu morrer. Isso não o satisfaz? Quer mais?
- Você devia ter discutido o assunto comigo. Afinal de contas, sou o seu filho.
- Já havíamos discutido o assunto. Vezes sem conta. E, a cada vez, a discussão dava em nada, quando não terminava em briga. Sei o que você quer, Noel. Você quer dinheiro, agora! Na sua mão! Para jogá-lo fora em alguma idéia louca, que com toda probabilidade dará em nada. Conseguiu um emprego perfeitamente bom, mas quer um melhor. Corretagem de ações. E quando se cansar disso e, no processo, perder cada penny que possuir, então será algo mais... algum outro caldeirão de ouro, no final de um arco-íris inexistente! Felicidade é tirar o máximo proveito do que se tem, e riqueza é tirar o máximo proveito do que se conseguiu. Você tem tanta coisa caminhando em sua direção! Por que não enxerga isto? Por que sempre deseja mais?
- Você fala como se eu pensasse apenas em mim mesmo. Não é verdade. Estou pensando também em minhas irmãs e em seus netos. Cem mil libras parecem uma montanha de dinheiro, mas depois de pagos os impostos, se você continuar a esbanjar com qualquer cão aleijado que cruze seu caminho e lhe caia no agrado...
- Não fale comigo como se eu estivesse senil, Noel! Estou absolutamente lúcida, na posse de todos os meus sentidos; posso escolher meus amigos e tomar minhas próprias decisões! Ir a Porthkerris, ficar no The Sands, levando Danus e Antonia para me fazerem companhia; foi a primeira vez em minha vida, a primeiríssima vez, que experimentei as alegrias de gastar dinheiro, de ser generosa. Pela primeira vez na vida, não tive que pesar o valor de cada penny. Pela primeira vez, pude dar sem me preocupar com o custo. Foi uma experiência que jamais esquecerei e que tomou tudo mais gratificante, pela dignidade e gratidão com que foi recebido.
- É isso que você quer? Gratidão incessante?
- Não, mas penso que você devia tentar entender. Se não confio em você, em suas necessidades e esquemas, é porque já passei por tudo isto antes com seu pai, e não pretendo recomeçar agora.
- Certamente não pode censurar-me por meu pai.
- E não o censuro. Você era apenas um garotinho, quando ele abandonou todos nós. Entretanto, em você, ele deixou muita coisa de si mesmo. Boas coisas. A semelhança física, o encanto e suas indubitáveis aptidões. No entanto, deixou também outras características não muito recomendáveis... Grandes idéias, gostos extravagantes e nenhum respeito pela propriedade alheia. Sinto muito. Odeio dizer tais coisas, mas parece que chegou o momento, para nós dois, de sermos inteiramente francos um com o outro.
- Não pensei que você me detestasse tanto - disse ele.
- Noel, você é meu filho. Não pode compreender que, se não o amasse tanto, jamais me daria ao trabalho de dizer estas coisas?
- Você tem uma curiosa maneira de demonstrar amor. Dando a estranhos tudo o que possui... e nada para seus filhos.
- Você fala como Nancy. Ela me disse que nunca lhe dei nada. O que há de errado com vocês dois? Você, Nancy e Olivia foram a minha vida. Durante anos, vivi apenas para vocês. E, neste momento, ouvindo-o dizer tais coisas, encho-me de desespero. Sinto que, em algum ponto e de algum modo, falhei total e inteiramente com vocês!
- Acredito - disse Noel lentamente - que de fato falhou!
Depois disso, parecia nada mais haver a ser dito. Ele terminou seu drinque, virou-se e colocou o copo sobre a lareira. Evidentemente, estava disposto a ir embora, e a idéia de ele partir com a amargura da discussão pendendo entre eles era mais do que Penelope podia suportar.
- Fique para jantar conosco, Noel! Não demoraremos! Você estará em Londres por volta das onze horas...
- Não! Eu preciso ir.
Ele começou a andar para a porta. Penelope levantou-se da poltrona e o seguiu, através da cozinha e passando pela porta. Sem olhar para ela ou encontrar-lhe os olhos, ele entrou no carro, bateu a porta com força, afivelou o cinto de segurança e ligou o motor.
- Noel! - Ele se virou para a mãe, as feições atraentes sem sorrir, antagonizantes, não demonstrando amor. - Eu sinto muito. - Ele assentiu brevemente, aceitando o pedido de desculpas. Ela forçou um sorriso. - Volte logo!
Entretanto, o carro já se movia, as palavras dela ficaram perdidas no rugido estrondoso do motor. Depois que ele se foi, Penélope tornou a entrar. Ficou parada junto à mesa da cozinha e pensou no jantar, mas não conseguia imaginar o que fazer. Com um esforço de vontade, procurou controlar-se. Foi até a despensa, apanhou batatas e caminhou com elas para a pia. Abriu a torneira de água fria. Ficou vendo a água correr e pensou em lágrimas, mas estava além do choro.
Permaneceu ali, incapaz, durante alguns momentos. Então, o telefone da cozinha tocou bruscamente uma vez, sobressaltando-a, trazendo-a de volta à realidade. Abriu uma gaveta e dela tirou sua faca pequena e afiada. Quando Antonia desceu a escada, correndo ao seu encontro, ela descascava batatas tranqüilamente.
- Sinto muito, mas conversamos durante séculos! Danus disse que pagará a ligação. Deve ter custado um monte de libras! - Antonia sentou-se à mesa e cruzou as pernas. Estava sorrindo, parecia doce e satisfeita como um gatinho. - Ele mandou mil lembranças para você, disse que irá escrever-lhe uma longa carta. Não uma carta tipo pão-com-manteiga ou torrada-com-marmelada. Oh, e irá ver o médico amanhã e telefonará para nós, assim que souber qual será o veredicto. Estava ótimo, não parecia nem um pouco preocupado. Disse que o sol está brilhando, mesmo em Edimburgo. Tenho certeza de que é um bom sinal, e você? Um sinal de esperança. Se estivesse chovendo, eu não ficaria tão alegre por ele. Terei ouvido vozes? Você teve algum visitante?
- Sim, tive. Era Noel a caminho de Londres, voltando de um fim de semana em Gales. Um longo fim de semana, conforme garantiu. - Estava tudo nos eixos, sua voz soava ótima, normal, com naturalidade e firmeza. - Convidei-o a ficar para o jantar, mas ele queria voltar para casa. Assim, tomou um drinque e foi embora.
- Que pena não o ter visto! Enfim, havia tanta coisa para dizer a Danus... Eu não conseguia parar de tagarelar. Quer que eu descasque essas batatas? Ou devo encontrar um repolho ou qualquer outra coisa? Ou prefere que eu ponha a mesa? Não é formidável estar em casa? Sei que não é a minha casa, mas ela me dá essa sensação e, francamente, só sei dizer que é ótimo estar de volta. Você também se sente assim, não é? Não se arrepende de alguma coisa?
- Não - respondeu Penelope. - Não me arrependo de nada!
Na manhã seguinte, às nove horas, ela deu dois telefonemas para Londres e marcou dois compromissos. Um deles era com Lalla Friedmarm.
A consulta de Danus seria às dez horas e, na noite anterior, haviam combinado que ele só conseguiria telefonar pelo menos às onze e meia, a fim de lhes comunicar qual fora o veredicto do médico. Entretanto, o telefonema foi dado pouco antes das onze, e Penélope atendeu, porque Antonia estava no pomar, pendurando à brisa um varal de roupa lavada.
- Podmore's Thatch.
- Aqui é Danus.
- Danus! Oh, céus, Antonia está lá fora, no jardim. Quais são as novidades? Conte-me imediatamente! O que tem para nos dizer?
- Não há novidade alguma.
O coração de Penelope contristou-se, desapontado.
- Você esteve no médico?
- Sim, estive. Depois fui ao hospital para o EEG, mas... você não vai acreditar nisto... o computador estava avariado, de maneira que não puderam dar-me os resultados.
- Não acredito! Oh, mas que coisa exasperante! E quanto tempo vai ter que esperar?
- Não sei. Eles não sabiam informar.
- E agora, o que irá fazer?
- Lembra-se de eu lhe ter falado sobre meu amigo Roddy McCrae? Estive com ele ontem à noite no "The Tilted Wig" e soube que está partindo amanhã para uma semana de pesca, em Sutherland. Ele me convidou a acompanhá-lo e ficar no croft, de maneira que decidi aceitar o convite e aguardar, enquanto isso. Se tenho que esperar dois dias para saber os resultados do cintilograma cerebral, posso perfeitamente esperar uma semana. Pelo menos, não estarei perambulando dentro de casa, roendo as unhas até o sabugo e deixando minha mãe fora de si.
- Então, quando voltará para Edimburgo?
- Provavelmente na quinta-feira.
- Não existe algum meio de sua mãe entrar em contato com você no croft e dar-lhe alguma notícia?
- Não. Como lhe disse, aquilo fica no fundo do além. E, para ser franco, já convivi tanto tempo com esta coisa, que posso muito bem esperar mais sete dias.
- Neste caso, talvez seja melhor você ir. E, enquanto isso, ficaremos cruzando os dedos. Não deixaremos de pensar em você um só momento. Promete telefonar, assim que voltar para casa?
- Naturalmente. Antonia está por aí...?
- Vou chamá-la. Aguarde um instante!
Ela deixou o telefone pendurado pelo fio e saiu pela estufa de plantas. Antonia vinha cruzando o relvado, com a cesta vazia da roupa lavada presa debaixo do braço. Usava uma blusa rosa, as mangas enroladas até os cotovelos, e uma saia de algodão azul-marinho, que se enfunava ao vento.
- Antonia! Depressa, é Danus...
- Já? - A cor lhe fugiu das faces. - O que foi que ele disse? O que aconteceu?
- Ainda não há novidades, porque o computador está avariado... mas espere ele mesmo dizer. Está no telefone. Vamos... Dê-me a cesta!
Antonia entregou-lhe a cesta e voou para dentro. Levando a cesta, Penelope foi sentar-se na cadeira de jardim que ficava do lado de fora da janela da sala de estar. Francamente, a vida era demasiado cruel. Se não era uma coisa, era outra. Entretanto, em vista das circunstâncias, era melhor que Danus se ausentasse com o amigo. A companhia de um velho companheiro por vezes era a resposta, em ocasiões semelhantes. Ela imaginou os dois jovens naquele mundo de charnecas intermináveis e montanhas muito altas, em meio ao frio cortante dos mares do norte e dos rios profundos, de águas castanhas e rápida correnteza. Eles pescariam juntos. Sim, Danus havia feito a melhor escolha. Diziam que pescar era imensamente terapêutico.
Um movimento prendeu sua atenção, pelo canto do olho. Espiou e viu Antonia emergir da estufa de plantas, depois cruzar o gramado, em direção a ela. A jovem parecia abatida, arrastando os pés como uma criança. Deixou-se cair ao lado de Penelope e disse:
- Que droga!
- Concordo. É tudo muito frustrante. Para todos nós.
- Maldito computador antigo. Por que eles não conseguem pôr essas coisas funcionando? E por que tinha de acontecer logo com Danus?
- Se quer saber acho que foi uma terrível má sorte. Entretanto, o que podemos fazer? Só nos resta esperar e torcer pelo melhor.
- Com ele está tudo bem; ficará fora uma semana, pescando.
Penelope teve de sorrir.
- Você está parecendo uma esposa abandonada - disse.
- É mesmo? - Antonia pareceu ressabiada. - Não era a minha intenção. Apenas acho que mais uma semana vai parecer interminável!
- Eu sei. No entanto, é muito melhor que ele não fique sem ter o que fazer, vagando de um lado para outro, enquanto espera o telefone tocar. Nada neste mundo é mais desmoralizador. Acho muito melhor que ele fique ocupado em alguma coisa que o deixe feliz. Tenho certeza de que não o censurará por isso. Assim, a semana passará. Nós duas também procuraremos ocupar-nos e distrair-nos. Vou a Londres na segunda-feira. Gostaria de ir comigo?
- A Londres? Para quê?
- Quero apenas rever velhos amigos. Há muito que não vou lá. Se você for comigo, poderemos ir de carro. Entretanto, se preferir ficar aqui, me levaria de carro até Cheltenham e lá eu pegaria o trem.
Antonia pensou na sugestão. Depois respondeu:
- Não. Acho que vou ficar. Talvez eu tenha que voltar para Londres em breve, e seria uma pena desperdiçar um dia inteiro na cidade, em vez de aproveitar o campo. Além disso, a Sra. Plackett não virá na segunda-feira por causa do aniversário de Darren. Ficando aqui, farei os trabalhos domésticos e prepararei um jantar delicioso, para quando você chegar em casa. Por outro lado – ela sorriu, parecendo um pouco mais dona de si mesma - sempre existe a ligeira possibilidade de que Danus se veja a uns quinze quilômetros de algum telefone e resolva ligar para mim. Seria uma tragédia, se eu não estivesse aqui!
Desta maneira, Penelope foi a Londres sozinha. Conforme haviam combinado, Antonia a levou de carro até Cheltenham e ela tomou o trem das 9:15. Em Londres, visitou a Academia Real e almoçou com Lalla Friedmarm. Depois disso, tomou um táxi que a levou à Gray's Irm Road e aos escritórios de Enderby, Looseby & Thring, Advogados. Forneceu seu nome à jovem sentada atrás da mesa de recepção e foi conduzida por dois lances de uma estreita escada até o gabinete particular do Sr. Enderby. A jovem bateu à porta e depois a abriu.
- A Sra. Keeling deseja vê-lo, Sr. Enderby.
A recepcionista recuou. Quando Penelope cruzou a porta, o Sr. Enderby levantou-se e saiu de trás de sua mesa, a fim de recebê-la.
Nos velhos tempos de penúria, Penelope teria ido da Gray's Irm Road até a estação de Paddington de ônibus ou de metrô. Na verdade, era o que tinha planejado fazer agora, mas, quando eventualmente deixou o prédio dos escritórios de Enderby, Looseby & Thring, descobriu que a perspectiva de mover-se em Londres em um transporte público de repente se tornava insustentável. Um táxi vazio aproximava-se. Adiantando-se, ela lhe fez sinal.
No táxi, recostou-se no banco traseiro, satisfeita por estar sozinha, e absorveu-se em seus pensamentos, recordando a conversa com o Sr. Enderby. Muito havia sido discutido, decidido e realizado. Nada mais havia a ser feito. O empreendimento fora cumprido, porém tudo se revelara exaustivo demais, de maneira que se sentia no fim das forças, tanto física, como mentalmente. Sua cabeça doía; os pés pareciam grandes demais para os sapatos. Em adição, sentia-se também encardida e acalorada, porque embora nublada e sem sol, a tarde estava quente, o ar era pesado, abafado e poluído. Olhando pela janela do táxi, enquanto esperavam que as luzes do trânsito mudassem do vermelho para o verde, ela subitamente se sentiu esmagada e deprimida por tudo que via. O tamanho da cidade, os milhões de seres humanos enxameando pelas ruas, seus rostos ansiosos e preocupados, todos caminhando apressadamente, como se receassem chegar atrasados a algum compromisso de vida ou morte. Um dia, também ela morara em Londres. Ali tivera seu lar. Ali criara sua família. Agora, no entanto, não podia imaginar como suportara todos aqueles anos.
Pretendia tomar o trem das 16:15, mas o trânsito em Marylebone Road assumira proporções tão assustadoras que, quando o táxi passou pelo museu de Madame Tussaud, ela já se conformava em perder esse trem e tomar um outro mais tarde. Em Paddington, precisou juntar várias notas para pagar a enorme e inflacionada corrida do táxi, depois checou os horários dos trens e, encontrando uma cabine telefônica, ligou para Antonia, a fim de informar que estaria chegando em Cheltenham às quinze para as oito. Feito isto, comprou uma revista, entrou no Hotel da estação, pediu um bule de chá e sentou-se para esperar.
A viagem desconfortável no trem quente e lotado pareceu durar uma eternidade, de maneira que foi imenso o alívio de finalmente chegar, desembarcar e saber que havia terminado. Antonia estava na plataforma quando ela desceu do trem, e era uma bênção ser acolhida, beijada, levada pelo braço, não mais responsável por si própria. Passaram pela roleta e saíram para o pátio de estacionamento. Penelope ergueu os olhos para o céu límpido do anoitecer, sentiu o cheiro das árvores e da relva, e então respirou fundo, enchendo os pulmões com o ar puro e fresco.
- Tenho a sensação - disse para Antonia - de que fiquei fora algumas semanas.
Instalada em seu velho Volvo, ela e Antonia rodaram para casa.
- Teve um bom dia? - perguntou Antonia.
- Sim, mas estou absolutamente exausta. Sinto-me suja e cansada, exatamente como uma velha refugiada. Já tinha esquecido o pandemônio que Londres pode ser. Apenas ir-se de um lugar para outro consome a maior parte do dia. Daí eu ter perdido meu trem. Aquele em que consegui embarcar, vinha lotado de pessoas voltando do trabalho, e um homem com o maior traseiro do mundo decidiu sentar justamente ao meu lado.
- Teremos fricassê de galinha para o jantar, mas talvez você preferisse descansar um pouco antes.
- O que realmente quero é um banho quente e depois minha cama...
- Então, assim que chegarmos, é isso que terá! Depois que estiver na cama, irei perguntar-lhe se deseja comer alguma coisa e, se sentir fome, prepararei uma bandeja para você, poderá comer tranqüilamente.
- Você é uma criança adorável!
- Vou lhe dizer uma coisa. Podmore's Thatch fica esquisita, sem a sua presença.
- Como foi que passou seu dia solitário?
- Aparei a grama. Liguei o motor do aparador e fiz um trabalho que parece de profissional.
- Danus ligou?
- Não, mas era o que eu já esperava.
- Amanhã é terça-feira. Mais dois dias, e estaremos recebendo notícias dele.
- Sim - disse Antonia.
As duas silenciaram. A estrada à frente delas começava a subir para a região das Cotswold.
Ela pensou que dormiria, mas não foi assim. O sono repousante teimava em fugir-lhe; cochilava 'e voltava a acordar. Remexeu-se, virou-se e cochilou novamente. Sonhos aparentes eram apoquentados por vozes, palavras e fiapos de conversa que não faziam sentido. Ambrose estava ali, bem como Dolly Keeling, tagarelando sobre um certo aposento que pretendia decorar em tons magnólia. Depois Doris, falando pelos cotovelos, casquinando com suas risadas estridentes. Lalla Friedmarm, jovem novamente. Jovem e amedrontada, porque seu marido Willi estava perdendo o juízo. Você nunca me deu nada! Você nunca nos deu nada! Você deve estar insana! Eles estão tirando proveito de você! Antonia embarcava em um trem e ia embora para sempre, tentava dizer algo que Penelope não ouvia, porque soava o apito do trem e só podia ver-lhe a boca, que se abria e fechava. Ficou agitada, sabendo que Antonia queria dizer algo que era de imensa importância. Então, o antigo sonho entrou em cena: a praia vazia, o nevoeiro sepultando tudo, e a desolação, porque no mundo não havia ninguém mais além dela.
A noite escura não terminava. De vez em quando ela se soerguia na cama, acendia a luz e olhava e relógio. Duas da madrugada. Três e meia. Quatro e quinze. As cobertas da cama estavam enroladas e amarfanhadas, ali não havia consolo para os membros pesados por incômoda fadiga. Penelope ansiava pela luz do dia.
Por fim, chegou a claridade. Ela a viu chegar, e isso a acalmou. Imediatamente cochilou um pouco mais, depois abriu os olhos. Viu os primeiros raios baixos do sol, o céu pálido e sem nuvens. Ouviu os pássaros, trinando, chamando e respondendo. Depois, foi a vez do tordo no castanheiro.
Felizmente, a noite chegava ao fim. Às sete horas, desassossegada e, estranhamente, mais cansada do que nunca, saiu da cama com lentidão, calçou os chinelos e vestiu o robe. Tudo parecia requerer um esforço enorme, a ponto de atos tão simples como aqueles exigirem pensamento e concentração. Foi até o banheiro, lavou o rosto e escovou os dentes, movendo-se com cautela, procurando evitar qualquer ruído capaz de perturbar Antonia. De volta ao quarto, vestiu-se, sentou-se à frente do espelho e escovou os cabelos, que depois enrolou em um coque e prendeu com grampos. Percebeu as manchas, semelhantes a equimoses abaixo dos olhos escuros, o pálido de sua pele.
Desceu para o térreo. Pensou em fazer uma xícara de chá, mas depois desistiu. Saiu da casa pela estufa de plantas, abrindo a porta envidraçada e chegando ao jardim. O ar era frio e cortante como lâmina afiada. Seu impacto a fez estremecer e aconchegar o cardigã à volta do corpo, porém também era refrescante, da maneira como é refrescante a água fria da primavera ou o mergulho em uma piscina de água gélida. A grama recém-cortada cintilava com o orvalho, porém os primeiros raios aquecidos do sol haviam tocado um canto e, ali, com o orvalho se derretendo, a relva mostrava uma diferente tonalidade de verde.
Sua disposição de espírito melhorou, como sempre acontecia ante a visão da relva, árvores, canteiros... seu próprio santuário, criado por ela mesma, no correr de cinco anos de árduo e satisfeito trabalho. Passaria ali o dia inteiro. Havia muito a ser feito.
Chegou ao terraço, onde ficava o velho assento de madeira. Nas fendas entre as lajes cinzento-escuras, tinham sido plantadas moitas de tomilho e aubriécias (que, mais adiante no ano, tornar-se-iam gordas almofadas de flores brancas e violetas) - mas também cresceriam as inevitáveis ervas daninhas. Um atrevido dente-de-leão atraiu-lhe o olhar e ela se inclinou para arrancá-lo, puxando-o pela teimosa e firme raiz. Entretanto, parecia que até mesmo este pequeno esforço físico era demasiado porque, ao endireitar o corpo, sentiu-se tão esquisita, de cabeça estonteada e desorientada, que lhe ocorreu a idéia de estar prestes a desmaiar. Instintivamente, sua mão apoiou-se no encosto da cadeira e, firmando-se nele, conseguiu abaixar-se até ficar sentada. Incerta, esperou o que aconteceria em seguida. Aconteceu quase instantaneamente. Uma dor, como uma corrente elétrica em brasa, subiu-lhe pelo braço esquerdo, circundou-lhe o tórax e se fechou ao redor do peito, como uma apertada fita de aço. Não conseguia respirar e jamais conhecera tamanha agonia. Fechou os olhos e abriu a boca para gritar, afugentar a dor, mas nenhum som lhe brotou dos lábios. A existência resumiu-se em dor. Em dor e nos dedos de sua mão direita, ainda engalfinhados em torno dos remanescentes do dente-de-leão. Por algum motivo, era imensamente importante continuar aferrada a ele. Podia sentir a terra fria e úmida que aderia às raízes; às suas narinas chegou a fragrância forte e pungente daquela terra. Muito longe, fracamente, ela ouviu o tordo cantar.
E então, sobrepondo-se sub-repticiamente, chegaram outros cheiros e outros sons. A relva recém-cortada de um gramado de muito tempo atrás; um gramado que descia até a beira d’água, onde cresciam os narcisos silvestres. O cheiro salitrado da maré enchente, avolumando-se para encher o riacho. O grasnido das gaivotas pequeninas. As pisadas de um homem.
O luxo definitivo. Ela abriu os olhos. A dor desaparecera. O sol se fora. Talvez se houvesse escondido atrás de uma nuvem. Não importava. Nada importava.
Ele estava chegando.
- Richard...
Ele estava ali.
Em Ranfurly Road, às nove e quinze da manhã de terça-feira, quatorze de abril, Olivia estava em sua pequena cozinha, fazendo café, fervendo um ovo para seu desjejum e folheando a correspondência matinal. Já penteara o cabelo e se maquilara, como de costume, porém ainda não estava vestida para o dia de trabalho. Entre a correspondência, encontrou uma foto vivamente colorida de Assis, onde um dos editores de arte fora passar as férias. Virou-a para ler o jocoso bilhete do verso e, ao fazê-lo, o telefone tocou.
Ainda segurando o cartão-postal, cruzou a sala de estar para atender.
- Olivia Keeling.
- Srta. Keeling?
Era uma voz de mulher, uma voz do campo.
- Ela mesma.
- Oh, ainda bem que a encontro em casal Tinha tanto medo de que já houvesse saído para trabalhar...
- Não, eu só saio de casa às nove e meia. Quem está falando?
- A Sra. Plackett. De Podmore's Thatchl
A Sra. Plackett. Com doloroso cuidado, como se aquilo fosse da máxima importância, Olivia colocou o jovial cartão-postal sobre o aparador da lareira, recostado à moldura dourada do espelho. Sua boca estava seca.
- Mamma está bem? - conseguiu perguntar.
- Srta. Keeling, eu receio que... bem, são notícias tristes. Eu sinto muito. Sua mãe faleceu, Srta. Keeling. Esta manhã. Ainda muito cedo, antes que qualquer de nós estivesse aqui.
Assis, sob o céu de um azul inteiramente impossível. Ela nunca estivera em Assis. Mamma estava morta.
- Como foi que aconteceu?
- Um ataque do coração. Deve ter sido de repente. No jardim. Antonia é que a encontrou, apenas sentada lá, na cadeira do jardim. Tinha estado arrancando ervas daninhas. Havia um velho dente-de-leão em sua mão... Deve ter tido algum aviso antes, e então quis sentar-se. Ela... ela não parecia angustiada, Srta. Keeling.
- Ela andava indisposta?
- De maneira alguma. Voltou da Cornualha queimada como um bago, era a mesma pessoa de sempre. Só que ontem passou o dia todo em Londres...
- Mamma esteve em Londres? Por que não me contou?
- Não sei, Srta. Keeling. Não sei por que ela foi. Tomou o trem em Cheltenham e, quando Antonia foi apanhá-la na estação, ao anoitecer, disse que achou a Sra. Keeling muito cansada. Ela tomou um banho e foi para a cama, assim que chegou em casa, mas Antonia lhe levou uma refeição ligeira, em uma bandeja. Bem, talvez tivesse exagerado no que andou fazendo.
Mamma, morta! O terrível, o inimaginável tinha acontecido. Mamma se fora para sempre, e Olivia, que a tinha amado mais do que a qualquer outro ser humano, nada podia sentir, além de um frio horrível. Envoltos nas mangas largas do robe, seus braços estavam inteiramente arrepiados. Mamma tinha morrido. As lágrimas, a angústia e a sensação lancinante de perda estavam ali, mas ainda abaixo da superfície, pelo que ela era grata. Eu a chorarei mais tarde, disse para si mesma. Por enquanto, o pesar seria posto de lado, como um embrulho a ser aberto em momento mais conveniente. Era o velho artifício que aprendera através da dura experiência. O fechamento do compartimento estanque, a concentração focalizada inteiramente no problema prático, a prioridade máxima. As primeiras coisas primeiro.
- Fale-me a respeito. Sra. Plackett - pediu.
- Bem... Eu cheguei aqui esta manhã, às oito horas. Em geral, nunca venho às terças-feiras, mas ontem foi aniversário de meu neto, de maneira que troquei o dia. Cheguei bem cedo, porque nas terças-feiras também faço a faxina da Sra. Kitson. Entrei com minha chave e não vi ninguém pela casa. Estava começando a lidar com o boiler, quando Antonia desceu de seu quarto. Perguntou onde estaria a Sra. Keeling, porque vira a porta do quarto dela aberta e a cama vazia. Bem, não podíamos imaginar... Então, vi a porta da estufa de plantas aberta e falei para Antonia, "Ela está lá fora, no jardim". Antonia foi ver. Então, ouvi quando gritou meu nome e fui correndo. E vi.
Olivia reconheceu gratamente na voz da Sra. Plackett os tons de uma mulher do campo que já experimentara crises semelhantes antes. Era uma senhora de anos maduros. Provavelmente já enfrentara a morte e a manejara muitas vezes, de modo que isto não lhe infundia mais medos ou horrores.
- A primeira coisa que fiz foi acalmar Antonia. A coitadinha estava chocada demais, chorando e soluçando e tremendo como um gatinho. Dei-lhe umas palavrinhas de consolo, fiz ela sentar à mesa com uma xícara de chá e acabou se revelando uma moça corajosa, agora está aqui sentada, na cozinha, comigo. Assim que ela ficou melhor, liguei para o doutor, em Pudley, e ele chegou aqui em dez minutos. Então, tomei a liberdade de também chamar o Sr. Plackett. Atualmente ele trabalha no último turno da fábrica de artigos eletrônicos, de modo que pôde vir de bicicleta. Ele e o médico trouxeram a Sra. Keeling para dentro, subiram a escada e a deixaram em seu quarto. Ela está lá agora, em sua cama, decente e em paz. A senhorita não precisa se preocupar com isso.
- O que disse o médico?
- Disse que foi um ataque do coração, Srta. Keeling. Provavelmente fulminante. Também assinou o atestado de óbito. Deixou ele comigo. Então, eu disse para Antonia, "É melhor ligar para a Sra. Chamberlain", mas ela falou que primeiro ia ligar para a senhorita. Eu talvez devesse ter dado a notícia mais cedo, mas não queria que a senhorita pensasse em sua pobre mãe morta e ainda lá fora, no jardim.
- Foi muita consideração sua, Sra. Plackett. Quer dizer que ninguém mais sabe?
- Não, Srta. Keeling. Apenas a senhorita.
- Muito bem. - Olivia olhou para seu relógio. - Ligarei agora para a Sra. Chamberlain e também para meu irmão. Depois irei de carro para Podmore's Thatch, assim que me organizar. Chegarei por volta da hora do almoço. A senhora ainda estará aí?
- Não se preocupe com isso, Srta. Keeling. Ficarei aqui o tempo que a senhorita quiser que eu fique.
- Deverei ficar aí alguns dias. Talvez pudesse preparar-me uma cama no outro quarto vago. E certificar-se de que há alimentos suficientes na casa. Se preciso, Antonia pode pegar o carro e fazer algumas compras em Pudley. Será bom para ela ter alguma coisa para fazer. - Uma idéia ocorreu-lhe de repente. - E sobre aquele jovem jardineiro... Danus? Ele está por aí?
- Não, Srta. Keeling. Está na Escócia. Foi direto da Cornualha para lá. Tinha um compromisso importante.
- Bem, é uma pena, mas nada se pode fazer. Dê lembranças minhas a Antonia.
- Quer falar com ela?
- Não - disse Olivia. - Não. Agora não. Isso pode esperar.
- Eu sinto muito, Srta. Keeling. Lamento ter sido eu a dar a notícia para a senhorita.
- Alguém teria que fazer isso. E, Sra. Plackett... muito obrigada.
Olivia desligou. Espiou pela janela e, só então, viu que era um lindo dia. Uma perfeita manhã de maio, e mamma estava morta.
Mais tarde, depois de tudo terminado, Olivia iria perguntar-se o que, afinal, eles teriam feito sem a Sra. Plackett. Apesar de toda a sua experiência de vida, jamais tivera antes que lidar com um funeral. Descobriu que havia muita coisa a ser feita. E que o obstáculo inicial, quando chegou a Podmore's Thatch, seria a tarefa de manejar Nancy.
George Chamberlain tinha atendido o telefone no velho vicariato, quando Olivia ligara de Londres. Pela primeira vez na vida, ela ficou profundamente grata em ouvir os tons lúgubres do cunhado. Comunicara a ele o ocorrido, da maneira mais simples e rápida que pôde, explicando que ia diretamente para Podmore's Thatch, em seguida desligando e deixando para o cunhado a incumbência de dar a triste nova a Nancy. Esperava que por ora aquilo fosse tudo, mas, ao cruzar os portões de Podmore's Thatch com seu Alphasud, viu o carro de Nancy e compreendeu que a situação não iria ser tão fácil quanto imaginara.
Mal havia saído do carro, Nancy já estava ali, irrompendo pela porta aberta, os braços estendidos, os olhos azuis brilhando, o rosto inchado de chorar. Antes que Olivia pudesse recuar, Nancy já a apertava nos braços, pressionando o rosto afogueado contra a face pálida e fresca da irmã, novamente dissolvendo-se em ruidosos soluços.
- Oh, minha querida... Vim imediatamente! Quando George me contou, vim em seguida! Tinha que estar com todos vocês! Eu... eu tinha que estar aqui...!
Olivia ficou rígida como pedra, suportando o desagradável e lacrimoso abraço pelo tempo que considerou aceitável. Então, desligou-se delicadamente da irmã.
- Foi muito bom ter vindo, Nancy, mas não havia necessidade...
- Foi o que George disse. Ele falou que eu só estorvaria. - Nancy tateou a manga de seu cardigã, encontrou um lenço ensopado, dedicou-se a assoar o nariz e controlar-se de maneira geral. No entanto, é lógico que eu não podia ficar em casa. Tinha que estar aqui. - Sacudiu-se ligeiramente, jogou os ombros para trás. Estava sendo resoluta. - Eu sabia que tinha de vir! A viagem foi um pesadelo; estava abaladíssima quando cheguei, mas a Sra. Plackett fez-me uma xícara de chá e já me sinto melhor agora.
A perspectiva de aturar Nancy em seu pesar e ter de suportá-la nas horas seguintes era quase mais do que Olivia podia agüentar.
- Você não devia ficar - disse à irmã, enquanto procurava algum motivo indiscutível para tirá-la dali. Surgiu a inspiração. - Você precisa pensar em seus filhos e George. Não deve abandoná-los. Eu só tenho que pensar em mim mesma, portanto, sou a pessoa óbvia para ficar aqui.
- E seu trabalho?
Voltando ao carro, Olivia apanhou uma maleta no banco de trás.
- Tudo providenciado. Só voltarei ao escritório na manhã de segunda-feira. Venha, vamos entrar. Tomaremos um drinque e então você pode ir para casa. Se não está precisando de um gim-tônica, eu estou.
Começou a caminhar, e Nancy a seguiu. A cozinha familiar estava limpa e arrumada, aconchegante, mas terrivelmente vazia.
- E quanto a Noel? - perguntou Nancy.
- O quê?
- Comunicou-se com ele?
- Naturalmente. Assim que dei a notícia a George. Falei com ele, em seu escritório.
- E ele ficou muito, muito chocado?
- Sim, acho que ficou. Não falou muito.
- Ele virá aqui?
- Não por enquanto. Falei que o avisaria, se precisasse dele.
Como que incapaz de sustentar-se em pé por mais de dois minutos, Nancy puxou uma cadeira e sentou-se à mesa. Sua dramática viagem de casa até Podmore's Thatch aparentemente não lhe deixara tempo para pentear o cabelo, empoar o nariz ou encontrar uma
blusa que combinasse com a saia.
Ela parecia não apenas abalada, mas totalmente fora de si, o que fez Olivia sentir renascer a velha e irritada impaciência. O que quer que acontecesse, de bom ou de ruim, Nancy sempre transformava em drama e, além disso, colocava-se no papel principal.
- Ela foi ontem a Londres - dizia Nancy. - Não sabemos por quê. Apenas tomou o trem, sozinha, ficando fora o dia inteiro. A Sra. Plackett disse que ela voltou para casa totalmente exausta.
Nancy soava ofendida como se, mais uma vez, Penelope lhe houvesse pregado uma peça. Olivia quase esperou vê-la acrescentar- E ela nunca nos disse que pretendia morrer! Tentando mudar de assunto, perguntou:
- Onde está Antonia?
- Foi a Pudley, fazer algumas compras.
- Você já esteve com ela?
- Ainda não.
- E a Sra. Plackett?
- Está lá em cima, acho que preparando seu quarto.
- Neste caso, vou subir com minha mala e ter uma palavrinha com ela. Fique aqui. Quando eu voltar, tomaremos aquele drinque, e então você pode voltar para George e as crianças...
- Oh, mas eu não posso, simplesmente, deixá-la sozinha...
- É claro que pode - replicou Olivia friamente. - Ficaremos em contato por telefone. Aliás, ficarei melhor estando sozinha.
Nancy finalmente partiu. Depois que ela se foi, Olivia e a Sra. Plackett por fim puderam tratar de coisas práticas.
- Teremos que chamar um agente funerário, Sra. Plackett.
- Joshua Bedway. É o melhor homem para a tarefa.
- E onde o encontraremos?
- Aqui mesmo, em Temple Pudley. E o carpinteiro da aldeia e faz sepultamentos como trabalho secundário. Trata-se de um bom homem, com muito tato e discrição. Faz um belo trabalho. – A Sra. Plackett olhou para o relógio. Quase quinze minutos para uma da tarde. - Ele agora deve estar em casa, almoçando. Quer que eu lhe telefone?
- Oh, faria este favor? Peça-lhe para vir o mais breve possível.
A Sra. Plackett assim fez, sem histrionismo, sem um baixar piedoso de voz. Forneceu uma explicação simples e fez um simples pedido. Foi como se lhe pedisse para vir consertar um portão. Quando desligou, tinha a expressão satisfeita de quem executou um bom trabalho.
- Tudo combinado, então. Ele estará aqui às três horas. Eu o acompanharei. Ficará mais fácil para a senhorita, se eu estiver aqui.
- Sim - concordou Olivia. - Ficará muito mais fácil.
As duas sentaram-se à mesa da cozinha e fizeram listas. A esta altura, Olivia estava em seu segundo gim-tônica, enquanto a Sra. Plackett aceitara um cálice de vinho do porto. Uma verdadeira delícia, confessou a Olivia. Tinha grande predileção por aquele tipo de vinho.
- A pessoa seguinte a ser chamada, Srta. Keeling, é o vigário. Naturalmente, a senhorita desejará uma cerimônia religiosa e um sepultamento cristão. Em seguida, deve ser escolhido um local no cemitério e marcados dia e hora para o funeral. Ainda há a questão dos hinos e coisas assim. Espero que queira hinos. A Sra. Keeling adorava seus concertos, e um pouco de música fica muito bem em um funeral.
A discussão de detalhes práticos deixou Olivia sentindo-se marginalmente melhor. Retirou a tampa de sua caneta.
- Como se chama o vigário?
- É o Reverendo Thomas Tillingham. Mais conhecido como Sr. Tillingham. Mora no vicariato, próximo à igreja. Seria bom dar-lhe um telefonema e talvez convidá-lo para vir aqui, amanhã cedo. Tomaria uma xícara de café.
- Ele conhecia minha mãe?
- Oh, sim! Todos na aldeia conheciam a Sra. Keeling.
- Ela nunca foi uma freqüentadora regular de igrejas.
- Não. Talvez não. No entanto, estava sempre disposta a colaborar para o fundo de compra do órgão ou na quermesse do Natal. Além disso, de vez em quando convidava os Tillingham para almoçar. Colocava na mesa os melhores guardanapos rendados e uma garrafa de seu melhor clarete.
Não era difícil imaginar. Pela primeira vez naquele dia, Olívia se viu sorrindo.
- Receber amigos... Sim, era do que ela realmente gostava!
- Era uma dama encantadora, em todos os sentidos! A gente podia conversar com ela sobre qualquer coisa. - A Sra. Plackett bebericou elegantemente seu vinho. - Há mais uma coisa, Srta. Keeling. Deverá comunicar ao procurador da Sra. Keeling que ela não está mais conosco. Contas de banco, esse tipo de coisas. Tudo isso precisa ser feito.
- Sim, eu já havia pensado nesse ponto. - Olivia escreveu: Enderby, Looseby & Thring. - Também teremos que inserir comunicados nos jornais. The Times e The Telegraph, talvez...
- Há também as flores na igreja. É bonito ter flores e talvez a senhorita não disponha de tempo para isso. Há uma prestativa jovem em Pudley, que tem um pequeno furgão. Quando a idosa sogra da Sra. Kitson faleceu ela arranjou flores maravilhosas.
- Bem, depois veremos isto. Antes de mais nada, precisaremos decidir quando será o funeral...
- E depois do funeral... - A Sra. Plackett hesitou. – Hoje em dia, muita gente não considera necessário, mas creio que é agradável as pessoas virem à casa e terem uma xícara de chá com qualquer coisa para comer. Bolo de frutas ficaria muito bem. Naturalmente, tudo depende do tempo de cerimônia na igreja, mas quando os amigos vêm de longe - e, sem dúvida, haverá muitos que cobrirão grandes distâncias - pareceria descortês mandá-los embora sem ao menos uma xícara de chá. E, de certa forma, isto torna as coisas mais fáceis. A senhorita poderá conversar um pouco, e a conversa abranda parte da tristeza. Faz com que a gente não se sinta só.
O antiquado costume rural de um velório não tinha ocorrido a Olivia, mas compreendeu o senso-comum na sugestão da Sra. Plackett.
- Tem toda a razão, Sra. Plackett. Organizaremos alguma coisa. Entretanto, devo dizer-lhe que sou uma inutilidade como cozinheira. A senhora terá de me ajudar.
- Deixe por minha conta! Bolo de frutas é a minha especialidade.
- Sendo assim, parece que isto é tudo. - Olivia largou a caneta e recostou-se na cadeira. Por sobre a mesa, ela e a Sra. Plackett entreolharam-se em silêncio durante um momento. Depois Olivia disse: - Acredito, Sra. Plackett, que provavelmente foi a melhor amiga de minha mãe. E, neste momento, sei perfeitamente que será a minha.
A Sra. Plackett ficou embaraçada.
- Não fiz nada mais do que deveria, Srta. Keeling.
- Antonia está bem?
- Creio que sim. Ficou abalada, mas é uma menina sensata. Foi uma boa idéia mandá-la fazer compras. Dei-lhe uma lista do comprimento de meu braço. Assim, ficará ocupada. Fará com que se sinta útil. - Com isto, a Sra. Plackett sorveu seu último gole de vinho, depositou o cálice na mesa e levantou-se. - Bem, se estiver tudo certo para a senhorita, vou em casa dar ao Sr. Placket alguma coisa para comer. Entretanto, voltarei às três, trazendo Joshua Bedway. Ficarei aqui, até ele terminar tudo e ir embora.
Olivia acompanhou-a a porta e a viu partir, solene como sempre, pedalando sua bicicleta. Parada ali, ouviu o som de um carro que se aproximava e, no momento seguinte, o Volvo cruzava o portão. Olivia continuou onde estava. Apesar da afeição que sentia pela filha de Cosmo e lamentando a jovem ainda pela morte do pai, sabia-se incapaz de enfrentar mais outro dilúvio de emoção, outro abraço molhado e lacrimoso. Por enquanto, a carapaça de reserva, forte como uma armadura, era sua única defesa. Viu o Volvo parar, viu Antonia desafivelar e cinto de segurança e sair de trás do volante. Enquanto ela fazia isto, Olivia cruzou os braços, um gesto de rejeição física, na linguagem corporal. Os olhos das duas encontraram-se, acima do teto do carro, através da pouca distância de cascalho que as separava. Houve uma pausa, Antonia fechou a porta do carro com uma batida suave e depois caminhou para ela.
- Você está aqui - foi tudo quanto disse.
Olivia descruzou os braços e pousou as mãos nos ombros dela.
- Sim, estou aqui.
Inclinou-se para diante e a beijou formalmente, tocando as faces. Tudo ia correr bem. Não haveria espalhafatos. Olivia ficou grata por aquela acolhida, mas também se sentiu triste, porque sempre é triste vermos alguém que conhecemos ainda criança finalmente tornar-se adulto, e saber que aquela pessoa jamais será, de fato, jovem novamente.
Às três horas em ponto, Joshua Bedway chegava lá, dirigindo seu pequeno furgão, com a Sra. Plackett ao lado dele. Olivia receara que ele aparecesse trajando negro retinto, com uma expressão lúgubre que combinasse com a indumentária. No entanto, tudo que ele fizera tinha sido trocar o macacão por um terno decente e gravata preta, e seu rosto queimado de homem do campo dava a impressão de não poder permanecer sombrio por muito tempo.
No momento, contudo, ele se mostrava entristecido e solidário. Disse a Olivia que sentiriam muita falta de sua mãe na aldeia. Acrescentou que, nos seis anos em que ela morara ali, em Temple Pudley, havia-se tornado parte integrante da pequena comunidade.
Olivia agradeceu suas palavras gentis e, encerradas as formalidades, o Sr. Bedway tirou seu caderno de notas, de algum bolso. Ele lhe disse que havia um ou dois detalhes, e começou a enumerá-los. Ao ouvi-lo, ela percebeu que, em seu trabalho, era um verdadeiro profissional, ficando por isto profundamente grata. Ele falou sobre o terreno para a sepultura, o coveiro e o arquivista. Fez perguntas, às quais ela respondeu. Quando finalmente fechou o caderno de notas, tornou a colocá-lo no bolso, dizendo:
- Creio que é tudo, Srta. Keeling. Pode deixar o resto comigo, sem preocupações.
Ela assim fez e, reunindo-se a Antonia, saiu da casa. Não desceram até o rio, mas cruzaram o portão, atravessaram a estrada, subiram o degrau que permitia a passagem sobre uma cerca e seguiram por uma antiga trilha para cavalos que subia pela colina, atrás da aldeia. A trilha continuava através de campos com ovelhas e seus filhotes pastando; as sebes de pilriteiros começavam a florescer, e valas musgosas atapetavam-se de prímulas silvestres. No topo da colina havia algumas faias antigas, de raízes expostas, erodidas por séculos de vento e intempéries. Chegando ali, afogueadas e sem fôlego por causa da subida, sentaram-se, com a sensação de alguma façanha realizada, e então contemplaram a vista.
A paisagem estendia-se por quilômetros, uma vastidão de pura zona rural inglesa, aquecendo-se ao cálido sol de uma tarde excepcional de primavera. Fazendas, prados, tratores, casas, tudo ficava minimizado pela distância, do tamanho de brinquedos. Logo abaixo delas, Temple Pudley dormitava; um punhado de casas construídas de pedra dourada, dispostas ao acaso. A igreja ficava quase escondida pelos teixos, mas Podmore's Thatch e as paredes brancas do pub "Sudeley Arms" eram claramente visíveis. Como altas plumas cinzentas, a fumaça se erguia das chaminés e, em um jardim, um homem acendera uma fogueira.
Tudo era maravilhosamente sossegado. Os únicos sons ouvidos eram o balir das ovelhas e o roçar da brisa nos ramos das faias, acima delas. Então, muito alto no céu azul, como uma abelha sonolenta, surgiu um avião cortando os ares preguiçosamente, mas nada fazendo para perturbar a paz.
Elas ficaram silenciosas por algum tempo. Desde que se tinham reunido, Olivia passara todo o tempo dando ou recebendo telefonemas (dois deles, ambos sem significado, provindos de Nancy), de maneira que ainda não haviam tido chance para conversar. Olhou para Antonia, sentada sobre a relva espessa, a apenas um metro de distância, em seus jeans desbotados e uma blusa cor-de-rosa de algodão. A suéter, despida durante a longa e calorenta subida da colina, jazia ao lado dela, e seus cabelos caíam para a frente escondendo-lhe o rosto. Antonia de Cosmo. A despeito de sua profunda infelicidade, Olivia sentiu o coração ficar com ela. Dezoito anos...Jovem demais para suportar tantas coisas terríveis. Entretanto, nada podia ser mudado, e Olivia sabia que, com a perda de Penelope, Antonia se tornara, mais uma vez, responsabilidade sua.
Perguntou, rompendo o silêncio:
- O que você pretende fazer?
Antonia se virou e olhou para ela.
- O que quer dizer?
- Quero dizer, o que irá fazer agora? Com a morte de mamma, não tem mais motivos para ficar em Podmore's Thatch. Terá que começar a tomar decisões. Pensar em seu futuro.
Antonia tomou a virar-se, ergueu os joelhos e descansou o queixo sobre eles.
- Eu tenho pensado.
- Quer vir para Londres? Aceitar aquela minha oferta?
- Sim, se for possível. Eu gostaria, mas eventualmente. Não já.
- Não compreendo.
- Pensei que talvez... fosse uma boa idéia se pudesse ficar aqui, pelo menos um pouco mais. Quero dizer... o que será feito da casa? Vai ser vendida?
- Imagino que sim. Eu não poderia morar aqui, nem Noel. Tampouco acho que Nancy queira mudar-se para Temple Pudley. A aldeia não é suficientemente pomposa para ela e George.
- Neste caso, as pessoas quererão vir e dar uma espiada, não? E certamente conseguirão um preço muito melhor, se estiver mobiliada, com flores nos vasos e o jardim bem tratado. Pensei que talvez pudesse ficar e cuidar de tudo, mostrando a casa aos candidatos e mantendo a grama cortada. Então, quando ela for vendida e tudo estiver terminado, talvez eu pudesse voltar a Londres.
Olivia estava surpresa.
- Oh, Antonia, mas você ficará sozinha! Apenas você, morando na casa. Não se incomodaria?
- Não. Não me incomodaria nem um pouco. Não nesta casa! Não acho que chegasse a me sentir realmente sozinha nela.
Olivia considerou esta idéia e percebeu que, de fato, era bastante sensata.
- Bem, se estiver certa disso, creio que todos lhe ficaremos infinitamente gratos. Porque ninguém da família poderá ficar aqui, à disposição de prováveis compradores e, quando à Sra. Plackett, tem outros compromissos. Naturalmente, nada ficou decidido ainda, mas tenho certeza de que a casa será vendida. - Ela pensou em algo mais. - Entretanto, não vejo por que você deveria cuidar também do jardim. Sem dúvida, Danus Muirfield voltará a trabalhar.
- Não sei dizer - respondeu Antonia.
Olivia franziu o cenho.
- Ele não tinha ido a Edimburgo apenas por causa de um compromisso?
- Sim. Com o médico.
- Ele está doente?
- Ele tem epilepsia. É epiléptico.
Olivia ficou horrorizada.
- Epiléptico? Oh, mas que coisa terrível! E mamma sabia?
- Não. Nenhuma de nós sabia. Ele só nos contou no final daquela semana de férias na Cornualha.
Olivia sentiu-se intrigada. Nunca havia posto os olhos no rapaz, mas tudo que tinha ouvido dele, através da irmã, de sua mãe e de Antonia, apenas lhe tinha aumentado o interesse.
- Que pessoa reservada ele deve ser! - Antonia nada comentou, e ela pensou em algo mais. - Mamma me tinha contado que ele não bebia nem dirigia. Você também mencionou isso em sua carta. Suponho que a doença seja o motivo.
- E é.
- O que houve em Edimburgo?
- Ele foi ao médico e submeteu-se a outra cintilografia cerebral, mas o computador do hospital estava quebrado, de maneira que não pôde obter os resultados dos exames. Ligou para nós, contando isto. Foi na última quinta-feira. Então decidiu pescar com um amigo, durante uma semana. Achava que assim era melhor do que ficar em casa, vagando sem destino.
- E quando voltará dessa viagem de pesca?
- Na quinta-feira. Depois de amanhã.
- Então, já terá sabido do resultado da cintilografia?
- Já.
- E depois disso, como será? Ele pretende voltar a Gloucestershire para trabalhar?
- Não sei. Acho que depende da extensão de sua doença.
Tudo aquilo soava bastante triste e desesperançado. No entanto, ao refletir melhor, Olivia não achou tão surpreendente. Desde que se podia lembrar, uma sucessão de pessoas esquisitas e incapazes fizera parte da sua vida de sua mãe - eram como abelhas atraídas pelo mel. Mamma jamais deixara de apoiá-las e sustentá-las, e esta generosidade de energia - às vezes também de dinheiro sonante - era uma das coisas que enfureciam Noel. Talvez, por isto
ele sentira tão instantânea antipatia por Danus Muirfield.
- Mamma gostava dele, não? - perguntou.
- Sim, acho que gostava muito dele. E Danus era amável com ela, cuidava dela.
- Ela ficou muito preocupada, quando ele falou da doença?
- Ficou. Não por si mesma, mas por causa dele. Foi um choque, ficar sabendo. Algo inimaginável. A Cornualha era mágica, estávamos nos divertindo tanto... era como se nada ruim pudesse acontecer. E isto, faz apenas uma semana. Quando Cosmo morreu, pensei que nada seria pior. No entanto, creio que nenhuma semana já foi tão terrível ou tão longa quanto esta.
- Oh, Antonia, eu sinto muito...
Olivia receou que Antonia terminasse sucumbindo às lágrimas, porém ela se virou para fitá-la e, com alívio, reparou que tinha os olhos secos e que o rosto, embora sério, estava composto.
- Não se deve lamentar, mas ficar contente por ter havido tempo suficiente para ela voltar à Cornualha, antes de morrer. Penelope adorou cada momento lá! Acho que, para ela, foi como ficar jovem outra vez. Nunca lhe faltou energia ou entusiasmo. Os dias eram cheios. Ela não perdeu um só momento!
- Mamma tinha grande afeição por você, Antonia. Tê-la aqui, deve ter-lhe duplicado o prazer.
Antonia disse, doloridamente:
- Há mais uma coisa que preciso contar-lhe. Ela me deu os brincos. Os brincos que a Tia Ethel lhe deixou. Eu não queria aceitá-los, mas Penelope insistiu. Estão agora em meu quarto, em Podmore's Thatch. Se achar que devo devolvê-los...
- Por que você os devolveria?
- Porque são muito valiosos. Valem quatro mil libras. Na minha opinião, deviam ficar para você ou para Nancy. Ou para a filha de Nancy.
- Se mamma não quisesse que fossem seus, não os teria dado. - Olivia sorriu. - Aliás, não precisava falar sobre os brincos, porque eu já sabia. Ela me escreveu uma carta, para dizer o que tinha feito.
Antonia ficou perplexa.
- Ora, mas por que ela fez isso?
- Suponho que estaria pensando em você e em seu bom nome. Evidentemente, não queria que ninguém a acusasse de os ter tirado de sua caixa de jóias.
- Estranho, não? Poderia ter-lhe contado a qualquer momento.
- Certas coisas ficam melhor por escrito.
- Você não acha que Penelope tinha alguma espécie de premonição? Que sabia que ia morrer?
- Todos nós sabemos que vamos morrer.
O Reverendo Thomas Tillingham, vigário de Temple Pudley, chegou a Podmore's Thatch às onze horas da manhã seguinte. Olivia não ansiava pela entrevista. Seu relacionamento com vigários era escasso e não tinha bem certeza de como lidariam um com o outro. Antes da chegada dele, decidiu preparar-se para qualquer exigência, porém era difícil, sem saber que espécie de homem seria ele. Talvez fosse um indivíduo idoso e cadavérico, de voz anasalada e conceitos arcaicos. Ou jovem e avançado, a favor de esquemas bizarros para modernizar a religião, convidando sua congregação a apertar as mãos uns dos outros e esperando que todos cantassem hinos alegres e inovadores, acompanhados pelo grupo pop local. Qualquer das perspectivas era aterradora. Seu maior temor, no entanto, era que o vigário pudesse sugerir que, juntos, ele e Olivia se ajoelhassem em oração. Ela decidiu então que, se tão tenebrosa eventualidade surgisse, fingiria uma leve dor de cabeça, alegaria uma indisposição qualquer e desapareceria da sala.
Todos os seus receios, no entanto, misericordiosamente não se realizaram. O Sr. Tillingham não era jovem nem velho, mas apenas um amável e comum homem de meia-idade, com um paletó de tweed e colarinho eclesiástico. Agora, compreendia perfeitamente por que Penelope gostara de convidá-lo para almoçar. Recebeu-o à porta e o levou para a estufa de plantas, certamente o lugar mais agradável em que poderia pensar. Isto se revelou acertado, porque discutiram as plantas envasadas de Penelope, em seguida o seu jardim e, com naturalidade, a conversa chegou ao assunto principal.
- Todos nós sentiremos terrivelmente a falta da Sra. Keeling -disse o Sr. Tillingham. Suas palavras tinham um toque de sinceridade, e Olivia acreditou sem dificuldade que ele não se referia nostalgicamente aos deliciosos almoços que não mais saborearia. – Ela era muitíssimo amável e adicionou grande qualidade à nossa vida de aldeia.
- Foi o que disse o Sr. Bedway. Achei-o um homem muito gentil. E foi especialmente amável comigo, pois, compreenda, nunca me vi envolvida em um funeral antes. Quero dizer, jamais tive que providenciar algum. Entretanto, a Sra. Plackett e o Sr. Bedway cuidaram de tudo para mim.
Como se isto fosse uma deixa, a Sra. Plackett surgiu em cena, trazendo uma bandeja com duas canecas de café e um prato de biscoitos. O Sr. Tillingham misturou uma boa dose de açúcar ao seu café e, em seguida, passou a tratar dos assuntos da igreja. Não demorou muito. O funeral de Penelope seria no sábado, às três da tarde. Eles combinaram a formula da cerimônia, e então chegaram à questão da música.
- Minha esposa é a organista - o Sr. Tillingham informou a Olivia. - Ela ficaria feliz em tocar, se a senhorita assim desejar.
- É muita gentileza... Sim, eu gostaria que ela tocasse, mas não música de luto. Alguma coisa bonita, que as pessoas conheçam. Deixarei que ela decida quanto a isso.
- E sobre os hinos?
Eles chegaram a um acordo sobre um hino.
- Uma leitura de alguma passagem da Bíblia?
Olivia hesitou.
- Conforme lhe disse, Sr. Tillingham, sou absolutamente novata neste tipo de coisa. Talvez fosse melhor ficar a seu critério.
- Seu irmão não gostaria de ler a passagem?
Olivia respondeu que não, não achava que fosse algo da vontade de Noel. O Sr. Tillingham abordou mais um ou dois detalhes, que foram rapidamente resolvidos. Então, terminou seu café e levantou-se. Olivia acompanhou-o, através da cozinha e pela porta da frente, até onde o surrado Renault do visitante estava parado, no caminho de cascalho.
- Adeus, Srta. Keeling.
- Adeus, Sr. Tillingham. - Eles apertaram-se as mãos. – O senhor foi muito amável - disse ela.
O vigário sorriu, um sorriso de inesperado encanto e cordialidade. Não havia sorrido antes, mas agora suas feições despretensiosas se tinham transformado a tal ponto, que de repente Olivia parou de pensar nele como um vigário e, em decorrência, não sentiu qualquer constrangimento em expor algo que lhe fermentava no fundo da mente, desde que ele havia entrado na casa.
- Não entendo, sinceramente, por que o senhor deveria ser tão amável e obsequioso. Afinal, ambos sabemos que minha mãe não era uma assídua freqüentadora da igreja. Jamais foi uma mulher muito religiosa. Para ela era difícil acreditar na idéia da ressurreição e no após vida.
- Eu sei disso. Certa vez discutimos o assunto porém não chegamos a nenhum acordo.
- Nem mesmo tenho certeza de que ela acreditasse em Deus.
Ainda sorrindo, o Sr. Tillingham balançou a cabeça, enquanto estendia a mão para a maçaneta da porta do carro.
- Em seu lugar eu não me preocuparia muito com isso. Ela pode não ter acreditado em Deus, mas tenho absoluta certeza de que Deus acreditava nela.
Perdida a sua dona, a casa era uma casa morta, o invólucro de um corpo, cessadas suas batidas do coração. Desolada, estranhamente silenciosa, ela parecia esperar. A quietude era uma coisa física, inescapável, sufocando como um peso. Nenhum rumor de passos, de vozes, de panelas na cozinha. Nenhum Vivaldi ou Brahms, murmurejando de maneira confortadora no toca-discos sobre o aparador da cozinha. Portas fechadas, permanecendo fechadas. A cada vez que subia a escada estreita, Antonia se via face a face com a porta fechada do quarto de Penelope. Antes, ela sempre ficara aberta, permitindo vislumbres de roupas jogadas sobre uma cadeira, rajadas de ar soprando pela janela aberta, o cheiro suave que era da própria Penelope. Agora, apenas uma porta.
No andar térreo não era melhor. Sua cadeira de braços, vazia junto à lareira da sala de estar. O fogo apagado, cerrado o tampo da secretária. Não mais conversas amistosas, risos, abraços cálidos e espontâneos. No mundo em que Penelope vivera, existira, respirara, ouvira e recordara, tinha sido possível acreditar que nada tão terrível um dia pudesse acontecer. Ou que algo errado ocorresse. E se ocorresse... se Penelope passasse por isso... então haveria meios de enfrentar, de aceitar, de recusar-se a admitir a derrota.
Ela estava morta. Naquela manhã espectral, ao sair da estufa e chegar ao jardim, ao ver Penelope estirada na velha cadeira de madeira do jardim, com as pernas compridas espichadas e os olhos fechados. Antonia havia dito rispidamente para si mesma que ela estava apenas descansando por um momento; saboreava o ar rijo da manhã, o débil calor do sol nascido pouco antes. Por um insano instante, o óbvio era demasiado horrificante e final para ser considerado. Era impensável a existência sem aquela fonte de constante delícia, aquela rocha de segurança. No entanto, o impensável acontecera. Ela se fora.
O pior era atravessar cada dia. Dias que anteriormente nunca eram longos o bastante para conter suas várias atividades, agora estendiam-se à eternidade - uma era contada entre o nascer do sol e a escuridão. O próprio jardim não infundia mais conforto, porque Penelope não estava lá para trazê-lo à vida, e constituía um enorme esforço sair da casa e encontrar algo para fazer, como arrancar ervas daninhas ou colher uma braçada de narcisos, que seriam arranjados em um jarro e colocados em algum lugar. Qualquer lugar. Não importava agora. Nada mais importava.
Estar tão só era uma experiência aterradora. Ela jamais soubera o que era sentir-se tão sozinha. Antes, sempre houvera alguém. A princípio, Cosmo; então, quando Cosmo morrera, a confortadora certeza de que Olivia estava lá. Em Londres, talvez, a muitos e muitos quilômetros de Ibiza, mas lá, mesmo assim. No final de uma ligação telefônica, dizendo-lhe, "Está tudo bem, venha ficar comigo, eu cuidarei de você". Entretanto, por ora Olivia era inacessível. Prática, organizada, fazendo listas, falando ao telefone – parecia que ela nunca largava o telefone. Sem precisar dizer nada, deixara perfeitamente claro para Antonia que aquele não era o momento para longas e íntimas conversas, não havia tempo para confidências. Antonia teve a sagacidade de perceber que, pela primeira vez, estava presenciando o outro lado de Olivia: a mulher de negócios, calma e competente, que lutara para abrir caminho na profissão, subir ao posto de editora de Venus e, no processo, aprendendo a ser impiedosa ante as fragilidades humanas, intolerante com o sentimentalismo. A outra Olivia, aquela que Antonia conhecera em uma época que já considerava "os velhos tempos", com toda probabilidade estava vulnerável demais para se expor e, por ora, fechava-se em si mesma. Antonia compreendia e respeitava isto, porém tal situação não tornava as coisas mais fáceis para si própria.
Em vista da barreira que se erguera entre elas e também por ser evidente que Olivia já tinha mais do que o suficiente em seu prato, Antonia pouco lhe confiara sobre Danus. Tinham-no mencionado com naturalidade, no alto ventoso da colina, enquanto o Sr. Bedway se desincumbia das coisas inimagináveis que fora fazer em Podmore's Thatch, porém nada de importante fora dito. Pelo menos, nada realmente importante. Antonia dissera, ele tem epilepsia, ele é epiléptico, mas não tinha dito, eu o amo. Ele é o primeiro homem que já amei e sente o mesmo por mim. Ele me ama e fomos para a cama juntos. Isso não foi amedrontador, do jeito que sempre imaginei que fosse, mas pura magia, o tempo todo. Não me incomodo com o que o futuro nos reserva, não me importa se ele não tem dinheiro algum. Quero que volte para mim tão depressa quanto seja possível e, se estiver doente, esperarei até que fique bom de novo. Eu cuidarei dele, iremos morar no campo e plantar repolhos juntos.
Ela nada havia dito sobre isto, sabendo que Olivia tinha a mente concentrada em outras coisas... havendo ainda a possibilidade de que não estivesse interessada em suas confidências, não as quisesse ouvir. Morar na mesma casa que Olivia era como sentar-se ao lado de um estranho em um trem. Não existia qualquer ponto real de contato, de modo que Antonia se sentia isolada na própria infelicidade.
Antes, sempre houvera alguém. Agora, não havia nem mesmo Danus. Ele estava longe, muito distante, no norte de Sutherland, inatingível por telefone, telegrama ou qualquer meio normal de comunicação. Disse para si mesma que ela não se desligaria dele mais completamente, do que se houvesse decidido subir o Amazonas de canoa ou guiar uma matilha de cães pela gelada calota polar. Era quase insuportável não poder entrar em contato com ele. Penelope estava morta, e Antonia precisava dele. Como se a telepatia fosse alguma espécie de sistema confiável de radar, ela ficava enviando-lhe mensagens positivas, durante a maioria de suas horas de vigília. Insistia para que Danus as recebesse e fosse impelido a estabelecer contato. A ir de carro, se preciso, cobrindo trinta quilômetros até a cabine telefônica mais próxima, a discar o número de Podmore's Thatch e descobrir o que havia de errado.
Contudo, nada acontecia e isso não a surpreendia. Para se consolar, dizia a si mesma que ele ligaria na quinta-feira. Danus voltará para Edimburgo na quinta e então telefonará, na primeira oportunidade. Ele prometeu. Vai ligar para me contar... a nós?... os resultados do cintilograma cerebral e o prognóstico do médico. (Como era extraordinário que, agora, isso parecesse ser de menor urgência!) Então, direi a ele que Penelope está morta, e Danus virá, de um jeito ou de outro, estará aqui e conseguirei ser forte novamente. Antonia precisava daquela força, a fim de suportar a provação que seria o funeral de Penelope. Sem Danus ao seu lado, não sabia se conseguiria enfrentar a situação.
As horas passaram lentamente. Lentíssimas. A quarta-feira chegou ao fim, amanheceu a quinta-feira. Ele vai telefonar hoje. Na manhã de quinta-feira. Ao meio-dia de quinta-feira. À tarde de quinta-feira.
Não houve telefonema algum.
Às três e meia da tarde. Olivia saiu. Foi andando até a igreja encontrar-se com a jovem de Pudley que prepararia as flores para a cerimônia do funeral. Deixada sozinha. Antonia vagou sem rumo pelo jardim, sem fazer coisa alguma, depois foi até o pomar, recolher do varal um monte de toalhas de chá e fronhas. O relógio da igreja bateu as quatro horas e, imediatamente, como uma revelação, ela soube que não podia esperar um só momento mais. Chegara a hora de agir positivamente e, se não fizesse isso logo, teria um ataque histérico ou rolaria pela encosta das margens do Windrush afogando-se no rio. Abandonou a cesta da roupa lavada, cruzou o jardim, entrou pela porta da estufa, chegou à cozinha e, pegando o telefone, discou o número de Edimburgo.
Era uma tarde quente e modorrenta. As palmas de sua mão estavam pegajosas, ela sentia a boca seca. O relógio da cozinha tiquetaqueava os segundos em ritmo mais rápido do que as batidas de seu coração. Enquanto esperava que alguém atendesse, viu-se indecisa, sem saber ao certo o que dizer. Se Danus não estivesse lá, se a mãe dele é que chegasse ao telefone, então teria que deixar uma mensagem para ele. A Sra. Keeling morreu. Por favor, pode dizer isto a Danus! E peça-lhe que ligue para mim. Antonia Hamilton. Ele sabe o número. Até aí, tudo bem. Como teria coragem de prosseguir, de perguntar à Sra. Muirfield se havia alguma notícia do hospital? Não seria uma intromissão, uma enorme insensibilidade? Supondo-se que já houvesse um diagnóstico e que este fosse negativo, a mãe de Danus dificilmente partilharia sua natural angústia com uma perfeita estranha, uma voz incorpórea, ligando das profundezas de Gloucestershire. Por outro lado...
- Alô?
Com os pensamentos voando em todas as direções. Antonia foi apanhada desprevenida e quase deixou o fone cair.
- Eu... oh... é a Sra. Muirfield?
- Não. Sinto muito, mas a Sra. Muirfield não está aqui no momento.
A voz que falava era de mulher, muito escocesa e imensamente refinada.
- Bem... Sabe quando ela voltará?
- Lamento, mas não faço idéia. Ela foi a uma reunião do Fundo de Ajuda à Criança, e penso que depois irá tomar chá com uma amiga.
- E o Sr. Muirfield? -O Sr. Muirfield está trabalhando. - A resposta foi enérgica, como se Antonia houvesse feito uma pergunta idiota - e fizera - cuja resposta fosse óbvia. - Ele só chegará a casa às seis e meia.
- Quem está falando?
- Sou a diarista da Sra. Muirfield. - Antonia vacilou. A voz, cuja dona talvez quisesse prosseguir com a limpeza, tornou-se impaciente. - Quer deixar algum recado?
Com certo desespero, Antonia perguntou:
- Danus está aí?
- Danus está fora, pescando.
- Eu sei; mas ele ficou de voltar hoje e pensei que já tivesse chegado.
- Não. Ele não veio e não imagino quando chegará.
- Bem, sendo assim... - Não havia alternativa. - ...a senhora podia anotar um recado?
- Espere um momento, enquanto apanho papel e lápis. - Antonia esperou. Passou-se algum tempo. - Pode dizer.
- Escreva apenas que Antonia ligou. Antonia Hamilton.
- Dê-me um momento, enquanto anoto. An-To-Nia Ha-Mil-Ton.
- Sim, é isso mesmo. Diga apenas... diga a ele... que a Sra. Keeling faleceu terça-feira de manhã. E que o funeral é em Temple Pudley, às três horas da tarde de sábado. Ele compreenderá. É possível que - disse ela, rezando para que ele pudesse, para que estivesse ali - ele queira vir.
Em Podmore's Thatch, o telefone tocou às dez horas da manhã de sexta-feira. Era o quarto telefonema após o desjejum e todos tinham sido atendidos por Antonia, que voava de onde quer que estivesse, para ser a primeira pessoa a pegar o fone. Agora, no entanto, ela estava fora, tinha ido à aldeia recolher os jornais do dia e o leite, de maneira que foi Olivia, sentada à mesa da cozinha, quem se levantou para atender.
- Podmore's Thatch.
- Srta. Keeling?
- É ela quem fala.
- Aqui é Charles Enderby, de Enderby, Looseby & Thring.
- Bom-dia, Sr. Enderby.
Ele não ofereceu as condolências usuais, porque já o tinha feito quando Olivia lhe telefonara para comunicar formalmente que sua mãe falecera, uma vez que era o procurador de Penelope.
- Srta. Keeling, naturalmente viajarei até Gloucestershire no sábado, a fim de comparecer ao funeral da Sra. Keeling, mas ocorreu-me que talvez fosse conveniente, para todos os interessados, que após terminado o sepultamento, eu promovesse uma reunião com a senhorita, seu irmão e sua irmã. Será apenas para abordarmos os pontos do testamento de sua mãe, os quais talvez precisem ser explicados, além de fornecer a todos o quadro geral. Parece-me talvez um tanto precipitado e, sem dúvida, a senhorita tem toda a liberdade de sugerir uma data alternativa. No entanto, acredito que essa seja uma boa oportunidade, com toda a família sob um mesmo teto. Não levaria mais do que meia hora.
Olivia considerou a sugestão.
- Não posso imaginar por que recusaríamos. Quanto mais cedo melhor, não sendo freqüente estarmos nós três juntos.
- A senhora sugeriria uma hora oportuna?
- Bem, a cerimônia começa às três e, depois disso, haverá uma xícara de chá para aqueles que quiserem vir até a casa. Imagino que por volta de cinco horas esteja tudo encerrado. O que acha de cinco horas?
- Esplêndido. Anotarei a hora. A senhorita poderia informar à Sra. Chamberlain e ao seu irmão?
- Sim, é claro.
Olivia ligou para o velho Vicariato.
- Nancy? Aqui é Olivia.
- Oh, Olivia, eu ia mesmo ligar para você! Como está? E como vão as coisas aí? Precisa de mim em Podmore's Thatch? Poderei ir sem problema algum. Não imagina o quanto me sinto inútil e...
Olivia a interrompeu de súbito.
- Nancy, o Sr. Enderby acabou de telefonar. Ele quer uma reunião de família após o funeral de mamma, para pôr o testamento dela em ordem. Cinco da tarde. Poderá estar aqui?
- Cinco da tarde? - A voz de Nancy soou estridente e alarmada. Olivia poderia ter sugerido algum compromisso clandestino e suspeito. - Oh, não, cinco horas, não! Será impossível para mim.
- Pelo amor de Deus, por que não?
- George tem uma reunião com o vigário e o arquidiácono. Sobre a remuneração do coadjutor. É terrivelmente importante. Teremos que voltar para casa diretamente, após o funeral...
- Isto também é importante. Diga a ele para esquecer a reunião.
- Olivia, eu não poderia fazer isso!
- Sendo assim, vocês terão que vir ao funeral em dois carros. Depois, você voltará sozinha para casa. É imperioso que esteja aqui...
- Não podemos marcar outra data com o Sr. Enderby?
- Sim, claro que podemos, porém não seria tão conveniente. Por outro lado, já disse ao Sr. Enderby que estaremos aqui, de maneira que, sinceramente, você não tem alternativa. - A voz de Olivia, mesmo para ela própria, soava rude e ditatorial. Acrescentou, em tom mais amável: - Se não quiser dirigir sozinha para casa, à noite, pode dormir aqui e voltar de manhã. O principal é que esteja aqui.
- Oh, está bem! - cedeu Nancy, embora relutante. – Entretanto, não dormirei aí, obrigada. Será o dia de folga da Sra. Croftway e terei eu mesma que preparar o jantar das crianças.
A malandra da Sra. Croftway. Olivia parou de tentar ser gentil.
- Neste caso, ligue para Noel e diga-lhe que também deverá estar presente. Será uma coisa a menos para eu fazer e espero que assim você pare de se sentir inútil!
Após um longo período de seca, durante o qual o nível do rio havia baixado desastrosamente, deixando rasas e quietas as charcas dos salmões, as chuvas chegaram a Sutherland. Foram sopradas em gordas nuvens cinzentas que rolavam do oeste, encobrindo o céu e o sol, instalando-se no topo das montanhas, afundando nas ravinas, transformando-se de névoa em ligeiros afagos de pingos de chuva caindo. Ressecada como mecha, a urze bebia a umidade, absorvia-a e expelia o excesso em riachinhos que se escoavam para riachos menores depois para riachos maiores que desciam as encostas das montanhas, ao encontro do rio. Um sólido dia de chuva tinha sido suficiente para revitalizar o fluxo da água. Ela inchou, ganhou força, alvamente vomitada sobre fundos lagos naturais, inundou-os, desceu a encosta suave da ravina e encaminhou-se para mar aberto. Na manhã de quinta-feira, a perspectiva de pescaria que até então se mostrara inteiramente improdutiva, imediatamente se encheu de excitantes possibilidades.
Quinta-feira era o dia em que os dois rapazes pretendiam retornar a Edimburgo. Agora, parada à porta aberta do desolado croft , eles contemplavam a chuva e discutiam. Após uma semana de indiferente permanência ali, era difícil resistirem à tentação de adiar a volta. No entanto, havia obstáculos.
- Só terei que ir trabalhar na segunda-feira - disse Roddy eventualmente. - Portanto no que me diz respeito, tanto posso estar aqui como acolá. A decisão é sua, meu velho. Você é que quer voltar para casa e descobrir o que resolveram os malditos médicos. Se não pode esperar um dia mais para ouvir o veredicto, arrumamos as mochilas e partimos agora! Entretanto, já que esperou tanto, acho que não faria diferença esperar um dia mais e, enquanto isso, divertir-se pescando. Não creio que sua mãe vá ter um acesso de nervos, caso não o veja aparecer por lá ainda hoje. Você já é bem crescidinho e, se ela tiver ouvido a previsão do tempo, na certa adivinhará o que aconteceu.
Danus sorriu. A maneira casual com que Roddy ia direto ao âmago de seu dilema o deixava tomado de gratidão. Eram amigos há anos, mas nos últimos dias, tendo apenas um ao outro por companhia, haviam-se tornado imensamente próximos. Ali, naquela remota e inacessível parte do mundo, os divertimentos eram poucos e, ao anoitecer, após terem preparado seu jantar e feito fogo com carvão de turfa, conversar era a única alternativa. Falar fazia bem a Danus, porque desabafava tudo o que, infeliz e envergonhadamente, guardara consigo por tanto tempo. Contou a Roddy sobre a América e o início de sua repentina doença. Agora, expostas livremente, suas experiências tinham perdido muito do antigo terror. Falou a Roddy sobre seu trabalho em Podmore’s Thatch. Descreveu a idílica semana na Cornualha. Finalmente, falou a respeito de Antonia.
- Case com ela - havia sido o conselho de Roddy.
- É o que desejo fazer. Um dia. Entretanto, primeiro quero ter certeza.
- Certeza de quê?
- Se casarmos, teremos filhos. Não sei se a epilepsia é hereditária.
- Ah, droga, claro que não é!
- Além disso, meu trabalho não é o que se poderia chamar de lucrativo. De fato, não tenho duas moedas tilintando juntas.
- Peça um empréstimo ao seu velho. Ele não deve andar apertado de finanças.
- Eu poderia fazer isso, claro, mas não farei.
- O orgulho não o levará a parte alguma, rapaz!
- Acho que tem razão. - Danus pensou a respeito, mas não se comprometeu. - Verei o que vou fazer - foi tudo o que disse.
Agora, com o rosto voltado para o céu gotejante, ele pensava em voltar para casa, para o veredicto final que aguardava a sua chegada. Pensou também em Antonia, enchendo dias vazios em Podmore's Thatch, atenta ao telefone, aguardando sua ligação.
- Prometi a Antonia que telefonaria hoje para ela, assim que voltasse para Edimburgo.
- Poderá telefonar amanhã. Se ela for a garota que imagino, sem dúvida compreenderá. - A esta altura, o rio era uma enxurrada. Mentalmente, Danus sentiu o peso e o agradável equilíbrio de seu caniço para salmão, ainda por usar. Ouviu o giro do carretel, sentiu o puxão da mordida. Havia uma certa lagoa natural onde ficavam os peixes maiores. Roddy ficou impaciente. - Vamos, decida-se de uma vez! Vivamos perigosamente, concedamos mais um dia a nós mesmos! Até agora só pegamos trutas e as comemos. O salmão está lá embaixo, à nossa espera. Devemos a eles uma chance de serem apanhados.
Evidentemente, Danus ardia em desejo de pescar. Virou a cabeça e encarou o amigo. As feições sardentas de Roddy ofereciam a expressão de um garotinho ansiando pelo deleite sonhado a vida inteira. Soube que não teria coragem de lhe recusar aquele prazer.
- Está bem - sorriu, entregando os pontos. - Vamos ficar!
No dia seguinte, bem cedo, eles partiram para o sul. A traseira do carro de Roddy estava lotada de sacolas, caniços, arpões, botas impermeáveis de cano longo, cestos de pescaria e também os dois enormes salmões que haviam capturado durante a tarde anterior, pois a decisão de ficarem mais um dia valera a pena. O pequeno croft, arrumado, limpo e seguramente fechado, desapareceu nas montanhas atrás deles. À frente, estendia-se a longa e estreita estrada, serpenteando e mergulhando na desolada charneca de Sutherland. A chuva cessara, mas o céu continuava manchado de nuvens aquosas, cujas sombras eram impelidas através dos quilômetros intermináveis de turfeiras e urzes. Finalmente cruzada a charneca, os
dois chegaram ao Lairg e cruzaram o rio pela ponte Bonar, em seguida contornando as águas azuis do Dornoch Firth. Dali, recomeçaram a subir as serpenteantes e íngremes encostas de Struie, até a Ilha Black. Agora, a estrada era ampla e permitia que ganhassem velocidade. Antigos marcos rodoviários corriam ao lado deles, eram alcançados e ultrapassados em incrível rapidez. Inverness. Culloden, Carrbridge, Aviemore, e então a estrada se curvava ao sul de Dalw. Hirmie, para escalar as Cairngorms pelas áridas montanhas de Glengarrie. As onze horas haviam deixado Perth para trás e ganhavam a auto-estrada, deslizando através de Fife como um bisturi de cirurgião. Surgiram as duas pontes que se estendem sobre o Forth, cintilando à radiosa luz da manhã, parecendo terem sido construídas de fios. Cruzaram o rio e aproximaram-se da estrada para Edimburgo. Observadas a distância, as espiras e torres da antiga cidade, o alcantil e a massa do Castelo, com sua bandeira agitando-se no mastro principal, apresentavam, como sempre, uma silhueta imemorial e imutável, como uma velha gravura.
A auto-estrada terminou. O carro diminuiu para sessenta, depois cinqüenta quilômetros horários. O trânsito intensificou-se. Eles chegaram a casas, lojas, hotéis, sinais de trânsito. Mal haviam falado, durante toda a viagem. Agora, Roddy rompia o silêncio.
- Foi formidável - disse. - Voltaremos a repetir a dose.
- Sim. Uma outra vez. Não sei como agradecer-lhe.
Roddy tamborilou com as unhas no volante.
- Como se sente?
- Estou bem.
- Apreensivo?
- Não tanto. Realista. Se tiver que conviver com esta coisa pelo resto da vida, então não tenho alternativa.
- A gente nunca sabe. - As luzes ficaram verdes. O carro rodou para diante. - Talvez haja boas novas!
- Não estou pensando nisto. Antes, espero o pior e quero estar pronto para enfrentá-lo.
- Seja o que for... o que quer que eles tenham encontrado...você não permitirá que isso o abata, não é mesmo? Quero dizer, se as coisas parecerem demasiado negras, não as guarde para si mesmo. Se não houver mais ninguém com quem possa falar, estarei sempre aqui, pronto e disponível.
- O que pensa sobre visitas a um doente hospitalizado?
- Café pequeno, rapaz. Sempre tive queda por uma enfermeira bonita. Eu lhe levarei uvas e comerei todas sozinho.
Rua Queensferry, a Ponte Dean. Agora, rodavam por ruas espaçosas e os terraços perfeitamente proporcionais da Cidade Nova. Recentemente limpas, banhadas pela luz do sol, sua cantaria tinha da cor do mel; em Moray Place, as árvores ficavam indistintas, com sua profusão de folhagem verde e nova e as cerejeiras estavam carregadas de flores.
Heriot Row. A casa alta e estreita que era o seu lar. Roddy freou junto ao meio-fio e desligou o motor. Os dois saíram e descarregaram os pertences de Danus, incluindo-se o cesto que continha seu precioso peixe. Ficou tudo empilhado na calçada.
- Muito bem - disse Roddy em seguida, mas ainda hesitante, como se relutasse em abandonar o velho amigo. – Quer que eu entre com você?
- Não - respondeu Danus. - Estarei ótimo.
- Ligue para meu apartamento ao anoitecer.
- Eu ligarei.
Roddy deu um tapa afetuoso no ombro de Danus.
- Então, adiós, meu velho.
- Foi muito legal, Roddy.
- Desejo-lhe boa sorte.
Roddy tomou a entrar no carro e afastou-se. Danus o viu ir, depois enfiou a mão no bolso do jeans e apanhou a chave da maciça porta pintada de negro. Abriu-a. Viu o tão familiar vestíbulo, a graciosa escadaria encurvada que levava ao segundo andar. Tudo imaculado e ordenado, o silêncio rompido apenas pelo tiquetaquear do alto relógio que, um dia, pertencera a seu bisavô. Os móveis reluziam com polidor e anos de cuidados, e um jarro de jacintos estava sobre a cômoda, junto ao telefone, enchendo o ar com seu aroma forte e sensual.
Ele vacilou. No alto, uma porta se abriu e fechou. Passos. Danus ergueu os olhos, quando sua mãe surgiu à vista, pronta para descer.
- Danus!
- A pescaria ficou boa. Resolvi ficar mais um dia.
- Oh, Danus...
Ela tinha a aparência de sempre, bem tratada e elegante. Usava uma saia lisa de tweed e um suéter de lã de carneiro, sem um fio dos cabelos grisalhos fora de lugar. No entanto, parecia diferente. Descia a escada em direção a ele... descia os degraus correndo, o que, em si, era extraordinário. Danus olhou fixamente para ela. No último degrau ela parou, os olhos no mesmo nível dos dele, a mão fechando-se sobre a polida balaustrada no final da escada.
- Você está bem - disse ela. Não chorava, mas seus olhos azuis brilhavam, como que marejados. Ele nunca a vira antes em tal estado de excitamento emocional. – Oh, Danus, está tudo bem! Não há nada de errado com você! Nunca houve! Eles telefonaram ao anoitecer de ontem e tive uma longa conversa com o especialista. O diagnóstico que fizeram na América estava inteiramente errado. Todos estes anos... e você jamais teve epilepsia, em absoluto! Nunca foi epiléptico!
Ele nada conseguia dizer. Seu cérebro deixara de funcionar, ficara opaco, não conseguia ter um pensamento coerente. Então, um único pensamento.
- Bem, mas... - Precisou esforçar-se para falar, e o som de sua voz parecia um grasnido. Engoliu em seco, começou de novo.
- E as perdas de sentido?
- Foram causadas pelo vírus que você contraiu e por sua febre alta, altíssima. Aparentemente isso pode acontecer. Aconteceu com você. Entretanto, não se trata de epilepsia! Nunca foi epilepsia, entende? E se você não agisse como um idiota retraído, guardando tudo para si mesmo, teria poupado todo estes anos de angústia!
- Eu não queria preocupá-los. Pensava em Ian... Não queria vê-los passando por um transe semelhante mais uma vez.
- Eu preferia arder no fogo do inferno, a ver você infeliz. E tudo por nada! Sem nenhum motivo! Você está em perfeita saúde!
Perfeita saúde. Jamais houvera epilepsia. Nunca fora epiléptico. Era tão atordoante como um pesadelo, porém jamais acontecera realmente. Ele era saudável. Nada mais de pílulas, de incertezas. O alívio pareceu deixá-lo sem peso, como se a qualquer momento pudesse flutuar e chegar ao teto. Agora podia fazer qualquer coisa. Tudo. Podia casar com Antonia. Oh, bom Deus, eu posso casar com Antonia, nós poderemos ter filhos e, simplesmente, não sei como agradecer-lhe. Obrigado por seu milagre. Sou tão agradecido! Jamais deixarei de ser grato. Jamais esquecerei. Eu lhe prometo que jamais esquecerei. Eu...
- Oh, Danus, não fique aí parado, como um tolo! Não endendeu?
- Entendi - respondeu ele. Depois disse: - Eu a amo!
Embora fosse verdade, sempre tivesse sido verdade, ela não recordava já ter dito antes semelhante coisa para ela. Sua mãe imediatamente debulhou-se em lágrimas, o que era uma outra nova experiência. Danus pousou os braços em torno dela, abraçou-a tão apertadamente, que após um instante, sua mãe parou de chorar, começou a fungar e buscou seu lenço. Os dois finalmente separaram-se, ela assoou o nariz e enxugou os olhos, depois tocou o cabelo, ajeitando-o no lugar.
- Que tolice a minha - disse ela. - A última coisa que eu pretendia era chorar. No entanto, foi uma notícia tão maravilhosa! Eu e seu pai ficamos doentes de frustração, por não podermos entrar em contato com você e dar-lhe a notícia, encerrando assim sua preocupação. Bem, agora que já lhe contei, penso que precisa saber de mais uma coisa. Ontem à tarde, deixaram um recado telefônico para você. Eu havia saído, mas foi anotado pela Sra. Cooper. Ela o deixou à vista, para que eu o encontrasse. Receio que sejam notícias tristes, mas espero que não fique demasiado perturbado...
Ali, diante de seus olhos, ela retomava as maneira práticas de sempre. Por enquanto, estavam encerradas as demonstrações de emoção e afeto. Enfiando o lenço na manga, ela afastou Danus gentilmente do caminho e foi até a cômoda em que ficava o telefone, a fim de apanhar o bloco de recados, junto ao aparelho, como de hábito. Folheou as páginas.
- Aqui está. O recado é de alguém que se chama Antonia Hamilton. É melhor você mesmo ler.
Antonia.
Ele pegou o bloco e viu a caligrafia floreada da Sra. Cooper
Antonia Hamilton telefonou 4 da tarde quinta. dizendo que a Sra. Keeling faleceu terça funeral 3 da tarde sáb Temple Pudley acha que você talvez quisesse estar lá espero ter anotado
direito. L Cooper.
A família reuniu-se para o funeral de sua mãe. Os primeiros a chegar foram os Chamberlain, Nancy em seu próprio carro, e George dirigindo seu pesado e antiquado Rover. Nancy usava um conjunto azul-marinho, com um chapéu absolutamente destoante. Suas feições, abaixo da aba protuberante, mostravam-se cheias de consternação e coragem.
Procurando ânimo e compostura, Olivia envergou seu Jean Muir favorito, cinza-escuro. Cumprimentou e beijou a irmã e o cunhado. Beijar George era como beijar um osso saliente, e ele recendia a naftalina e desinfetante brando, como um dentista. Como se fossem visitantes e estranhos, ela os conduziu à aconchegante e florida sala de estar. E, também como se os dois fossem visitantes, Olivia se viu tentando manter uma conversa, justificando-se.
- Sinto muito, mas não pude convidá-los para o almoço. Enfim, como provavelmente viram, a Sra. Plackett preparou a mesa da sala de refeições para o chá e colocou lá todas as cadeiras. Eu e Antonia passamos a manhã fazendo sanduíches. Almoçamos as crostas.
- Não se preocupe. Comemos alguma coisa, em um pub no caminho. - Com um suspiro de alívio, Nancy instalou-se na poltrona de mamma. - A Sra. Croftway tira sua folga hoje, de maneira que levamos as crianças para ficarem com amigos, na aldeia. Deixamos Melanie em lágrimas. Ficou terrivelmente abalada por Vovó Pen. Pobre criança, é sua primeira experiência com a morte! Frente a frente com a morte, por assim dizer! - Olivia não imaginou o que responder a isto. Nancy descalçou as luvas pretas. - Onde está Antonia?
- Lá em cima. Trocando de roupa.
George olhou para seu relógio
- Seria bom ela se apressar. Faltam apenas vinte e cinco minutos para as três.
- Leva-se exatamente cinco minutos a pé daqui até a igreja, George.
- Talvez, mas não queremos chegar correndo, no último momento. Não ficaria bem.
- E mamãe? - perguntou Nancy, em um cochicho. – Onde está mamãe?
- Está lá na igreja, pronta e esperando por nós – respondeu Olívia, com certa rispidez. - O Sr. Bedway sugeriu uma procissão familiar partindo da casa, mas, de certo modo, a perspectiva não me agradou. Espero que vocês concordem.
- E Noel? Quando é que chega?
- Espero que a qualquer momento. Virá de carro, de Londres.
- Em um dia de sábado, o trânsito é sempre congestionado - declarou George. - É provável que ele se atrase.
Sua soturna profecia, entretanto, revelou-se infundada. Cinco minutos mais tarde, a quietude do campo foi abalada pelos sons familiares da chegada de Noel; o rugido do motor do Jaguar, o chiado de pneus no cascalho, quando ele pisou no freio. a batida estrondosa de uma porta de carro. Um momento mais tarde ele se juntava aos outros, parecendo imensamente alto, moreno e elegante, em um terno cinza que, sem dúvida, mandara fazer tendo em mente dispendiosos almoços de negócio, mas que de certo modo era demasiado ostentoso para um simples funeral no campo.
Fosse como fosse, ele estava ali. Sentados, Nancy e George olharam para ele, mas Olivia levantou-se e foi dar-lhe um beijo. Ele cheirava a Eau Sauvage, não a desinfetante, um pequeno alívio pelo qual ela ficou grata.
- Como foi a viagem?
- Não de todo ruim, mas o trânsito estava infernal. Olá, Nancy. Oi, George. Olivia, quem é o velhote de terno azul, nas imediações da garagem?
- Oh, deve ser o Sr. Plackett. Ficará por aqui, enquanto estivermos todos na igreja.
Noel ergueu as sobrancelhas.
- Estaremos esperando bandidos?
- Não, mas é o costume local. A Sra. Plackett insistiu. Deixar a casa vazia durante um funeral pode dar má sorte e não é comme il faut. Assim, ela designou o Sr. Plackett para ficar aqui com a incumbência de manter os fogos acesos, colocar chaleiras para ferver, coisas assim.
- Tudo muito bem organizado...
George tornou a consultar seu relógio. Estava ficando inquieto.
- Francamente, acho que devíamos ir andando. Vamos, Nancy!
Nancy levantou-se e foi até o espelho acima da secretária de mamma, a fim de checar o ângulo de seu terrível chapéu. Feito isto, calçou as luvas.
- E quanto a Antonia?
- Irei chamá-la - disse Olivia.
Antonia, no entanto, já tinha descido e esperava por eles na cozinha, sentada à mesa de tampo muito bem esfregado, conversando com o Sr. Plackett, que havia entrado e assumira seu posto de zelador. Quando eles cruzaram a porta da cozinha, ela se levantou e sorriu polidamente. Usava uma saia de algodão listrada de azul-marinho e branco e uma blusa branca de gola franzida, sobre a qual pusera um cardigã azul-marinho. O cabelo reluzente fora repuxado para trás em um rabo-de-cavalo, amarrado com uma fita azul-marinho. Parecia jovem e tímida como uma colegial, além de terrivelmente pálida.
- Você está bem? - perguntou Olivia.
- Sim, claro.
- George acha que está na hora de irmos...
- Estou pronta.
Olivia encabeçou a fila e saíram todos para a luminosidade pálida do sol. Os outros a seguiram, um grupo pequeno e sombrio. Estavam seguindo pelo caminho de cascalho, quando começou um novo som. Era o sino da igreja, dobrando gravemente. Badaladas medidas ressoavam pela tranqüila região rural e, perturbadas, as gralhas fugiram do topo das árvores, dispersando-se. Estão tocando o sino por mamma, pensou Olivia e, subitamente, tudo ficou gélido, real. Fez uma pausa, esperando que Nancy a alcançasse, para caminharem lado a lado. Ao fazer isto, virou-se, e então viu que Antonia parava de repente. Ela estivera pálida antes, mas agora ficara branca como um lençol.
- O que foi, Antonia?
Antonia parecia tomada de pânico.
- Eu... eu esqueci uma coisa.
- O que foi que esqueceu?
- Eu... um... lenço. Estou sem lenço. Vou apanhar um... não me demoro nada. Não precisam esperar. Vão andando... logo os alcanço...
Ela disparou de volta à casa.
- Que extraordinário – comentou Nancy. - Ela está bem?
- Creio que sim. Está apenas perturbada. Talvez fosse melhor eu a esperar...
- Você não pode esperar - disse-lhe George, em tom firme. - Não há tempo para esperar. Acabaremos chegando atrasados! Antonia estará bem. Guardaremos um lugar para ela. Ande, Olivia, vamos...
Entretanto, enquanto estavam ali parados, hesitantes, ocorreu mais uma interrupção: o som de um carro, sendo dirigido a demasiada velocidade pela estrada que cortava a aldeia. Ele surgiu pela esquina junto ao pub, diminuiu a marcha e freou a apenas alguns metros de distância, ao lado do portão aberto de Podmore's Thatch. Era um Ford Escort verde-escuro e não familiar. Silenciados pela surpresa, eles ficaram olhando enquanto o motorista saía de trás do volante, descia do carro e batia a porta. Um rapaz que, como seu carro, não conheciam. Um homem que Olivia nunca vira antes na vida.
Ele ficou parado. Todos o fitavam e, como ninguém dissesse nada, por fim foi ele quem rompeu o silêncio.
- Sinto muito - disse - por chegar tão precipitadamente e tão atrasado. Foi uma longa viagem. - Olhando para Olivia, notou a total perplexidade em todo o seu rosto. Sorriu. - Acho que não nos conhecemos. Você deve ser Olivia. Eu sou Danus Muirfield.
Oh, mas é claro! Alto como Noel, porém mais corpulento, de ombros largos e um rosto profundamente bronzeado pelo sol. Um jovem muito bem-apessoado e, em seguida, Olivia percebeu por que, exatamente, mamma se apegara tanto a ele. Danus Muirfield. Quem
mais poderia ser?
- Pensei que você estivesse na Escócia - foi tudo quanto lhe ocorreu dizer.
- E estava mesmo. Até ontem. Somente ontem fiquei sabendo sobre a Sra. Keeling. Não sabe o quanto lamento...
- Estamos a caminho da igreja. Se você...
Ele a interrompeu:
- Onde está Antonia?
- Entrou em casa novamente. Tinha esquecido alguma coisa- Creio que não irá demorar. Se você quiser esperar, o Sr. Plackett está na cozinha...
A esta altura tendo chegado ao fim de sua paciência, George não quis ouvir mais.
- Olivia, não temos tempo para ficar parados conversando. E não se trata de esperar mais. Temos que ir! Agora! Este jovem pode apressar Antonia e fazê-la não chegar atrasada. Vamos, já perdemos tempo demais!
Ao falar, ele começou a instigar os outros para a frente, como se fossem carneiros.
- Onde encontrarei Antonia? - perguntou Danus.
- Acho que em seu quarto - disse Olivia. Depois falou, por sobre o ombro, elevando a voz: - Guardaremos lugar para os dois! Danus encontrou o Sr. Plackett sentado tranqüilamente à mesa da cozinha, lendo seu Racz'ng News.
- Onde está Antonia, Sr. Plackett?
- Foi lá para cima. Achei que estava chorando.
- Posso ir procurá-la?
- Fique à vontade - disse o Sr. Plackett.
Danus o deixou e subiu a escada estreita. correndo, de dois em dois degraus.
- Antonia! - Não conhecendo a geografia da casa no segundo andar, abriu portas, encontrou um banheiro e um armário para vassouras. - Antonia!
Desceu ao pequeno patamar e viu uma terceira porta dando para um quarto, obviamente ocupado, mas, no momento vazio. No outro lado desta porta havia uma outra, levando ao extremo oposto da casa. Sem bater ele irrompeu no aposento e lá a encontrou, sentada tragicamente na beira da cama e lavada em lágrimas.
O alívio o deixou delirante.
- Antonia!
Em duas largas passadas estava ao lado dela, sentava-se, tomava-a nos braços, apertava-lhe a cabeça contra seu ombro, beijava o topo daquela cabeça, a testa, os olhos lacrimosos e inchados. As lágrimas tinham um sabor salgado, e as faces de Antonia estavam molhadas, mas nada importava, exceto que ele a encontrara, que a abraçava, que a amava mais do que qualquer ser humano na terra e que nunca, jamais se tornariam a separar.
- Você me ouviu chamá-la? - perguntou por fim.
- Ouvi, mas não pensei que fosse verdade. Aliás, eu nada mais ouvia direito, além daquele terrível sino. Estava tudo certo, até o sino começar, e então... de repente, eu soube que era como desfazer em pedacinhos. Não podia ir com os outros. Sinto tanta falta dela! Tudo é terrível sem ela... Oh, Danus, ela está morta, e eu a queria tanto! E sinto falta dela. Sinto falta dela o tempo todo...
- Eu sei - disse ele. - Eu sei!
Ela continuou soluçando contra o ombro dele.
- Tudo tem sido tão horrível... Desde que você partiu. Horrível demais... Não havia ninguém...
- Eu sinto muito...
- E estive pensando demais em você. O tempo todo. Ouvi você chamando, mas não podia acreditar... que estivesse aqui. Era apenas aquele sino horrível, fazendo-me ouvir coisas. E eu queria tanto que você estivesse aqui!
Ele nada disse. Antonia continuou a chorar, mas os soluços foram diminuindo, cessava o pior de sua tormenta de pesar. Após um momento, Danus afrouxou o abraço e ela recuou, erguendo o rosto para ele. Um anel de cabelo escorregara-lhe para a testa, ele o empurrou de volta e depois, tomando seu lenço limpo, entregou-o a ela. Contemplou Antonia ternamente, vendo-a enxugar os olhos e então, vigorosamente como uma criança, assoar o nariz.
- Oh, Danus, mas onde é que estava? O que aconteceu? Por que não telefonou?
- Só chegamos a Edimburgo ontem ao meio-dia. A pescaria estava boa demais para ser abandonada e, por outro lado, não tive ânimo de estragar o prazer de Roddy. Quando cheguei em casa, minha mãe deu-me seu recado. No entanto, sempre que eu tentava ligar para cá, o telefone dava sinal de ocupado.
- Ele não parou de tocar...
- Por fim, mandei tudo ao diabo, peguei o carro de minha mãe e dirigi até aqui.
- Você dirigiu até aqui - repetiu ela. Demorou um segundo a digerir o significado daquilo. - Você dirigiu? Você mesmo?
- Sim. Posso voltar a dirigir. E também embriagar-me como um idiota, se quiser. Está tudo bem comigo! Não sou epiléptico e jamais fui! Tudo começou com um diagnóstico falho daquele médico do Arkansas. Estive doente. Fiquei muito doente por algum tempo, mas nunca foi epilepsia!
Durante um terrível momento, Danus pensou que ela fosse explodir em lágrimas novamente. No entanto, tudo que Antonia fez foi passar os braços em seu pescoço e apertá-lo com tanta força, que ele receou morrer sufocado.
- Oh, Danus, meu querido, é um milagre!
Ele se soltou delicadamente, mas continuou a segurar-lhe as mãos.
- Isto não é o fim, mas apenas o começo. De um começo inteiramente novo. Para nós dois. Porque, faça eu o que fizer, quero que façamos juntos. Não sei que diabo vai acontecer e ainda nada tenho para lhe oferecer, mas, por favor, se me ama, não permita que nos separemos outra vez.
- Oh, não! Jamais nos separaremos. Nunca! - Ela havia parado de chorar, as lágrimas tinham sido esquecidas, era novamente a sua amada Antonia. - Teremos aquele horto. De algum modo. Algum dia. E encontraremos o dinheiro em algum lugar...
- Com franqueza, não quero que você vá para Londres ser modelo.
- Eu não iria, mesmo você querendo. Devem existir outros meios. - Imediatamente ela teve uma idéia brilhante. Já sei! Posso vender os brincos! Os brincos da Tia Ethel! Eles valem pelo menos quatro mil libras... Sei que não é muito, mas já poderia ser um começo, não? Esse dinheiro significaria algo para começarmos. E Penelope não se incomodaria. Quando os deu para mim, disse que eu poderia vendê-los, se quisesse.
- Você não pretende conservá-los? Como recordação dela?
- Oh, Danus, não preciso dos brincos como recordação. Tenho mil motivos para recordar Penelope!
O tempo todo em que conversavam, o sino da igreja continuara a tanger. Blão, blão, blão, através da região rural. Agora, de repente, ele parava. Os dois entreolharam-se.
- Precisamos ir - disse ele. - Temos que estar lá. Não podemos chegar atrasados.
- Sim, claro...
Levantaram-se. Depressa, refeita, ela ajeitou o cabelo, passou os dedos pelas faces, limpando-as.
- Parece que estive chorando?
- Só um pouquinho. Ninguém irá reparar.
Ela afastou-se do espelho.
- Estou pronta - disse para Danus.
Ele lhe tomou a mão e, juntos, saíram do quarto.
Enquanto a família caminhava para a igreja, o toque do sino ficou mais alto, ecoando acima deles, silenciando todos os demais sons da aldeia. Olivia viu os carros estacionados junto ao meio-fio, a pequena corrente dos que compareciam à cerimônia religiosa, passando pelo portão do cemitério e subindo a trilha sinuosa entre as vetustas e inclinadas lajes das sepulturas.
Blão!... Blão!... Blão!...
Ela parou um instante, a fim de trocar uma palavra com o Sr. Bedway, e depois seguiu os outros, entrando na igreja. Após a cálida luz solar do exterior, ali dentro estava frio, um frio que se irradiava do piso lajeado e das pedras não aquecidas. Era mais ou menos como entrar em uma cave, e havia um forte cheiro de mofo, sugerindo, um bolor de besouros e de órgão. Entretanto, nem tudo era soturno, porque a moça de Pudley havia feito seu trabalho e, para onde quer que se olhasse, lá estava uma profusão de flores da primavera. Também a igreja, sendo tão pequena, ficara apinhada. Isto confortou Olivia, que sempre achara profundamente depressiva a visão de bancos de igreja vazios.
Quando começaram a caminhar pelo corredor central, as badaladas do sino cessaram abruptamente. No silêncio que se seguiu, sua pisadas repicaram nas lajes nuas. Os dois bancos frontais permaneciam vazios e eles ali se acomodaram, ocupando as vagas. Olivia, Nancy, George e depois Noel. Este era o momento que ela temera, pois o ataúde esperava, nos degraus do altar. Pontilhando o mar de rostos do campo, não familiares... os moradores de Temple Pudley, supôs ela, vindo prestar seus últimos respeitos... Olivia descobriu outros, conhecidos durante anos, que tinham vindo de muito longe. Os Atkinson, de Devon; o Sr. Enderby, de Enderby, Looseby & Thring; Roger Wimbush, o retratista que, anos atrás, quando ainda estudante de arte, fizera seu lar no velho estúdio de Lawrence Stern, no jardim da casa da Rua Oakley. Viu Lalla e Willi Friedmarm, distintos como sempre, com seus rostos cultos e pálidos de refugiados. Viu Louise Duchamp, imensamente chique em um vestido inteiramente negro - Louise, a filha de Charles e Chantal Rainier, uma das mais antigas amigas de Penelope, que fizera a longa viagem de Paris à Inglaterra, a fim de estar ali. Louise ergueu o rosto, seus olhos encontraram os de Olivia, e ela sorriu. Olivia retribuiu o sorriso, emocionada por ela sentir-se impelida a vir de tão longe, grata por sua presença.
Com os sinos em silêncio, a música começou espalhando-se pela poeirenta quietude da igreja. Conforme prometera, a Sra. Tilligham tocava o órgão. O órgão de Temple Pudley não era um instrumento excelente, mas idoso e ofegante como um velho, porém nem mesmo tais defeitos conseguiram prejudicar a serena perfeição de Eine Kleine Nacht Musik, Mozart. A favorita de mamma. A Sra. Tilligham estaria a par do detalhe ou simplesmente fizera uma inspirada escolha?
Olivia viu também a idosa Rose Pilkington, já beirando os noventa anos, mas garbosa como nunca, usando uma pelerine negra de veludo e um chapéu de palha, em tom violeta, tão surrado, que parecia ter viajado duas vezes ao redor do mundo. E, provavelmente, viajara mesmo. Franzido como uma noz, o rosto de Rose estava tranqüilo. Daquela face, seus olhos cansados mostravam uma pacífica aceitação do que acontecera e estava prestes a acontecer. Apenas olhar para Rose deixou Olivia envergonhada de sua covardia. Olhou para diante, ouviu a música, contemplou o ataúde de mamma. Entretanto, mal conseguia vê-lo, porque estava coberto de flores. Dos fundos da igreja, da porta aberta, chegaram os sons de uma pequena alteração, de vozes sussurradas. Depois, passos apressados soaram rapidamente no corredor central e, virando-se, Olivia viu Antonia e Danus deslizando para o banco vazio atrás deles.
- Oh, chegou a tempo...
Antonia inclinou-se para a frente. Parecia recuperada, novamente com cores no rosto.
- Lamento estar atrasada - sussurrou.
- Chegou na hora exata.
- Olivia... este é Danus.
Olivia sorriu.
- Eu sei - respondeu.
Acima deles, bem acima, o relógio da torre bateu três horas.
Com a cerimônia quase encerrada e após prestado um breve tributo falado, o Sr. Tilligham anunciou o hino. A Sra. Tillingham executou os primeiros compassos, e a congregação se levantou, com seus hinários abertos.
Por todos os santos que de seus labores repousam,
Aqueles que diante do mundo, pela fé confessaram
Seus nomes, Ó Jesus. abençoados sejam para sempre!
Aleluia!
Os moradores de Temple Pudley estavam familiarizados com a melodia e, elevadas, sua vozes fizeram estremecer as vetustas vigas comidas pelo cupim. Aquele talvez não fosse o hino mais adequado para um funeral, mas Olivia o escolhera por ser o único que sabia ser do agrado de mamma. Ela não devia esquecer qualquer uma das coisas que sua mãe realmente apreciava; não apenas a bela música, não apenas receber visitas, cultivar flores e telefonar para longas conversas, quando mais se esperava que ela fizesse isso. Havia também outras coisas - como rir, ter fortaleza de espírito, tolerância e amor. Olivia sabia que não podia deixar estas qualidades fugirem de sua vida, apenas porque mamma se tinha ido. Porque se deixasse, então o lado mais belo de sua complexa personalidade se encolheria e pereceria, só lhe restariam sua inteligência nata e sua incansável, impelente ambição. Jamais contemplara a segurança do casamento, mas precisava dos homens - se não como amantes, então como amigos. Para receber amor, devia permanecer uma mulher preparada para dá-lo, pois do contrário terminaria como uma velha amarga e solitária, com língua ferina e provavelmente nenhum amigo no mundo.
Os próximos meses, entretanto, não seriam fáceis. Enquanto mamma vivia, Olivia sabia que alguma pequenina parte de si mesma continuava sendo uma criança, mimada e adorada. Talvez uma pessoa jamais crescesse inteiramente, enquanto tivesse mãe viva.
Tu foste sua rocha, sua fortaleza e seu poder,
Tu, Senhor, foste seu capitão na batalha bem ganha!
Ela cantou. Alto. Não porque tivesse uma voz particularmente retumbante, mas porque, como aquela criança assobiando no escuro, aquilo a ajudava a ganhar coragem.
Na temida escuridão, tu foste sua verdadeira luz,
Aleluia!
Nancy sucumbira às lágrimas. Durante toda a cerimônia conseguira mantê-las sob controle, resolutamente, mas de repente não se importava mais, deixava que fluíssem. Seus soluços eram ruidosos e certamente embaraçantes para os outros, porém nada havia que ela pudesse fazer a respeito, exceto assoar fortemente o nariz de quando em quando. Logo teria gasto todos os lenços de papel que, precavidamente, enfiara em sua bolsa.
Acima de tudo o mais, ela desejaria ter podido ver sua mãe outra vez... Pelo menos falar com ela... após aquela última e terrível conversa telefônica, quando mamãe ligara da Cornualha para desejar feliz Páscoa a todos eles. Entretanto, mamãe se portara da maneira mais extraordinária e, sem qualquer dúvida, era melhor que certas coisas fossem ditas, ventiladas, expostas francamente. Por fim, mamãe havia desligado quando ela ainda falava, não quisera ouvi-la mais. Então, antes que Nancy tivesse tempo ou oportunidade de conciliar a situação entre elas, mamãe morrera.
Nancy não se censurava. Ultimamente, no entanto, acordando no meio da noite, ela se sentira estranham ente só na escuridão, e havia chorado. Tornava a chorar agora, não se incomodando se os outros vissem, não se importando se ouvissem seu pesar. Esse pesar era evidente e ela não estava envergonhada. As lágrimas correram, Nancy não fez qualquer esforço para estancá-las, deixando que fluíssem como água, umedecendo as duras e quentes brasas de seu próprio remorso não reconhecido.
Ó, possam teus fiéis, sinceros e audazes soldados
Lutar como os santos que nobremente lutaram outrora
E com eles conquistar a dourada coroa da vitória!
Aleluia!
Noel não se juntou ao canto, nem mesmo procurou segurar um hinário aberto. Permaneceu em pé no final do banco, imóvel, com uma das mãos no bolso do paletó e a outra repousada no anteparo de madeira à sua frente. Seu rosto atraente não mostrava qualquer expressão, sendo impossível alguém imaginar o que estaria pensando.
Ó, abençoada comunhão! Divinas hostes!
Enquanto fracamente lutamos, em glória eles cintilam!
Perto dos fundos da igreja, a Sra. Plackett elevou a voz, em jubiloso louvor. Mantinha seu hinário bem alto, o busto considerável empinado para diante. Era uma cerimônia encantadora. Música, flores, e agora um hino vibrante... justamente o que a Sra. Keeling teria apreciado. E houvera uma bela afluência também. Toda a aldeia comparecera. Os Sawcombe, o Sr. e a Sra. Hodgkins, do pub "Sudeley Arms". O Sr. Kitson, gerente do banco de Pudley, Tom Hadley, dono do estabelecimento de jornais e revistas mais uma dúzia ou coisa assim de outros. E a família se portava muito bem, exceto aquela Sra. Chamberlain, soluçando sem controle, a ponto de todos ouvirem. A Sra. Plackett não era adepta de demonstrações emocionais. Mantenha-se reservada, sempre fora o seu lema. Este era um dos motivos pelos quais ela e a Sra. Keeling sempre tinham sido tão amigas. Sim, a Sra. Keeling fora uma verdadeira amiga. Ia deixar um enorme vazio na vida da Sra. Plackett. Agora, relanceando os olhos pela igreja repleta, ela fez alguns cálculos mentais. Quantos deles iriam até a casa para o chá? Quarenta? Talvez uns quarenta e cinco. Com um pouco de sorte, o Sr. Plackett não teria esquecido de colocar as chaleiras no fogo.
No entanto, são todos um em ti, porque todos são teus.
Aleluia!
Ela esperava que houvesse bolo de frutas suficiente.
Às cinco e quinze da tarde o chá do funeral terminara, os últimos retardatários se tinham despedido e voltado para casa. Levando-os até a porta, Olivia espiou o último carro dobrar a esquina perto do portão e então, com certo alívio, deu meia-volta, tornando a entrar na casa. A cozinha fervilhava de atividade. O Sr. Plackett e Danus, que na última meia hora tinham ficado dirigindo o trânsito e ordenando vários carros estacionados inadequadamente, agora haviam entrado e ajudavam a Sra. Plackett e Antonia a recolher e lavar todos os utensílios do chá. A Sra. Plackett estava diante da pia, com a água espumosa de sabão lhe chegando aos cotovelos. Prestimoso como sempre, o Sr. Plackett estava ao seu lado e enxugava o bule de prata do chá. A lavadora de pratos zumbia, Danus cruzou a porta com mais uma bandeja de xícaras e pires, e Antonia tirava o aspirador de pó do armário em que era guardado.
Olivia se sentiu inútil e perdida.
- O que há para eu fazer? - perguntou à Sra. Plackett.
- Coisa nenhuma. - A Sra. Plackett não se virou da pia. Suas mãos avermelhadas colocavam pires na prateleira aramada, com a velocidade e a precisão de uma esteira transportadora. - É como sempre digo, muitas mãos tornam o trabalho ligeiro.
- Foi um chá fantástico! Não sobrou uma migalha do seu bolo de frutas!
A Sra. Plackett, no entanto, não estava com tempo ou disposição para tagarelar.
- Por que não vai para a sala de estar e tira o peso de cima de seus pés? A Sra. Chamberlain, seu irmão e o outro cavalheiro estão lá agora. Em mais dez minutos, a sala de refeições estará arrumada e pronta para sua pequena reunião.
Era uma excelente sugestão, e Olivia decidiu segui-la. Estava muito cansada e suas costas doíam, por ficar em pé tanto tempo. Ao cruzar o vestíbulo, pensou em esgueirar-se pela escada, mergulhar em um banho bem quente e depois ir para a cama, com lençóis frescos, travesseiros macios e um livro absorvente. Mais tarde, prometeu a si mesma. O dia ainda não terminara. Mais tarde. Na sala de estar, na qual não havia mais qualquer sinal da reunião para o chá, encontrou Noel, Nancy e o Sr. Enderby, todos acomodados à vontade e abordando trivialidades, polidas e ligeiras. Nancy e o Sr. Enderby sentavam-se nas poltronas aos lados da lareira, mas Noel assumira sua postura habitual, de costas para o fogo, os ombros apoiados contra o aparador da lareira. Quando Olívia apareceu, o Sr. Enderby ficou em pé. Era um homem de quarenta e poucos anos mas, com sua cabeça calva, óculos sem aros e roupas sóbrias, parecia muito mais velho. A despeito disto, suas maneiras eram naturais e relaxadas e, durante o correr da tarde, Olivia o observara fazendo-se conhecido dos demais presentes, tornando a encher xícaras de chá, oferecendo sanduíches e bolo. Também passara algum tempo conversando com Danus, o que fora grande amabilidade sua, porque Nancy e Noel tinham preferido ignorar o rapaz. A viagem à Cornualha por conta de mamma e a louca extravagância da hospedagem no hotel The Sands certamente continuavam efervescendo.
- Lamento, Sr. Enderby. Acho que passamos um pouco da hora...
Ela se sentou gratamente no canto do sofá, e o Sr. Enderby tornou a se sentar.
- Não tem importância. Não estou com pressa.
Da sala de refeições, chegaram sons do aspirador de pó em funcionamento.
- Eles estão apenas limpando as migalhas, e então poderemos começar. E você, Noel? Tem algum compromisso premente em Londres?
- Não esta noite.
- Nancy? Acha que haverá tempo para você?
- Mais ou menos. Terei que recolher as crianças e prometi a elas que não chegaria muito tarde. - Após ter-se debulhado em lágrimas durante a maior parte da cerimônia na igreja, Nancy já se recuperara e agora parecia perfeitamente controlada e jovial. Talvez porque houvesse tirado o chapéu. George já se fora, separando-se deles no cemitério, com advertências em voz alta da esposa para dirigir com cuidado e apresentar seus cumprimentos ao arquidiácono, tendo ele prometido fazer ambas as coisas. - Aliás, eu gostaria de voltar antes de escurecer. Não gosto de dirigir sozinha e à noite.
O som do aspirador de pó cessou. No momento seguinte, a porta se abriu, e a Sra. Plackett assomou a cabeça, ainda usando seu chapéu do funeral.
- Já está tudo em ordem, Srta. Keeling.
- Muito obrigada, Sra. Plackett.
- Se não se incomodar, eu e o Sr. Plackett iremos agora para casa.
- Claro. E não sei como agradecer suficientemente a ambos!
- Foi um prazer para nós. Vejo-a amanhã.
Ela partiu. Nancy franziu o cenho. Amanhã é domingo. Por que ela viria amanhã?
- Porque irá ajudar-me a pôr em ordem o quarto de mamma. Olivia levantou-se.
- Vamos?
Conduziu-os à sala de refeições. Ali estava tudo em ordem, e uma toalha de reps verde fora estendida sobre a mesa. Noel ergueu as sobrancelhas.
- Dá a impressão de uma reunião de diretoria - falou.
Ninguém comentou sua observação. Sentaram-se todos - o Sr. Enderby à cabeceira, tendo Noel e Olivia a cada lado seu. Nancy acomodou-se perto de Noel. Abrindo sua pasta, o Sr. Enderby retirou dela vários papéis, que depositou à sua frente. Tudo muito formal, com ele presidindo. Os outros esperavam que começasse.
O Sr. Enderby pigarreou.
- Para começar, quero dizer que fico muito grato a todos, por haverem concordado em ficar após o funeral de sua mãe. Espero que isto não lhes traga inconvenientes. Sem dúvida, não é estritamente necessária uma leitura formal do testamento, porém já que estão todos juntos sob um mesmo teto, pareceu-me uma fortuita oportunidade de os pôr a par de como sua mãe desejou dispor dos próprios bens e, sendo necessário, explicar-lhes quaisquer pontos que
não compreendam inteiramente. Muito bem...
Entre os papéis à sua frente, o Sr. Enderby escolheu um envelope, do qual retirou um documento volumoso e dobrado. Desdobrando-o, ele o estendeu sobre a mesa. Olivia viu Noel desviar os olhos, inspecionar as unhas, como que ansioso em não ser visto espiando de esguelha, à maneira de um colegial colando nos exames. O Sr. Enderby ajustou os óculos.
- Aqui estão o testamento e as últimas vontades de Penélope Sophia Keeling, nascida Stern, datado de oito de julho de 198O. - Ele ergueu os olhos. - Se não se importam, não farei uma leitura textual, mas simplesmente um esboço em linhas gerais dos desejos de sua mãe, à medida que chegarmos a eles. -Todos concordavam com a sugestão. Ele prosseguiu. - Para começar, temos dois legados não pertinentes à família. Para a Sra. Florence Plackett, 43 Hodges Road, Pudley, Gloucestershire, a soma de duas mil libras. E para a Sra. Doris Penberth, 7 Wharf Lane, Porthkerris, Cornualha, cinco mil libras.
- Muito justo - disse Nancy, por aquela vez aprovando a generosidade da mãe. - A Sra. Plackett é um verdadeiro tesouro. Não posso imaginar o que mamãe faria sem ela.
- E Doris também - disse Olivia. - Doris foi a mais querida amiga de mamãe. Passaram juntas o período da guerra; tomaram-se muito íntimas.
- Acredito que tenha conhecido a Sra. Plackett - disse o Sr. Enderby - porém acho que a Sra. Penberth não esteve hoje conosco.
- Não. Ela não podia vir. Telefonou explicando. Seu marido está doente e era impossível deixá-lo sozinho. No entanto, ficou profundamente abalada.
- Neste caso, escreverei a estas duas senhoras, comunicando-lhes os respectivos legados. - Ele fez uma anotação. - Muito bem. Com isto resolvido, passemos a assuntos familiares. - Noel recostou-se em sua cadeira, apalpou o bolso do peito do paletó e retirou sua
caneta de prata. Começou a brincar com ela, liberando o topo com o polegar, depois tornando a apertá-lo para fechar-se. - De início, existem itens específicos do mobiliário que ela desejava ver na posse de cada um. Para Nancy, a mesa-sofá do quarto de dormir. Acredito que sua mãe o usava como toucador. Para Olívia, a escrivaninha da sala de estar, outrora propriedade do pai da Sra. Keeling, o falecido Lawrence Stern. E, para Noel, a mesa da sala de refeições, com seu jogo de oito cadeiras, que, imagino, sejam estas em que nos sentamos agora.
Nancy se virou para o irmão.
- Onde irá colocá-las, naquele apartamento que mais parece uma casinhola de coelhos? Lá não há espaço para se atirar um gato!
- Talvez eu compre outro apartamento.
- Que precisará ter uma sala de refeições!
- Terá - disse ele lacônico. - Por favor, continue, Sr. Enderby.
Nancy, entretanto, ainda não terminara.
- Isso é tudo?
- Não entendi, Sra. Chamberlain.
- Quero dizer... e sobre as jóias dela?
Pronto, lá vamos nós, pensou Olivia.
- Mamma não possuía jóias. Nancy. Vendeu seus anéis há anos, a fim de pagar dívidas de nosso pai.
Nancy refreou-se, como sempre fazia, quando Olivia falava naquela voz dura sobre o querido e falecido papai. Não havia motivos para ser tão rude, para dizer aquelas coisas diante do Sr. Enderby.
- E o que diz dos brincos da Tia Ethel? Aqueles que Tia Ethel deixou para ela? Devem valer pelo menos quatro ou cinco mil libras. Aí não há referência a eles?
- Ela já tinha dado os brincos - informou Olivia. – Para Antonia.
Houve silêncio após suas palavras. Foi rompido por Noel, que colocou o cotovelo sobre a mesa e correu os dedos através do cabelo, em um gesto de desespero.
- Oh, santo Deus! - exclamou.
Por cima do reps verde, Olivia encontrou os olhos da irmã. Muito azuis, fixos, cintilando de ultraje. O rubor ganhou as faces de Nancy.
Ela disse, finalmente:
- Isto não pode ser verdade!
- Receio que seja - declarou o Sr. Enderby, em voz pausada.
- A Sra. Keeling deu os brincos a Antonia, enquanto estavam juntas na Cornualha, passando aquelas férias. Ela me falou sobre o presente, no dia em que me procurou em Londres, na véspera de sua morte. Foi inflexível, quanto a desejar que não houvesse qualquer discussão sobre os brincos ou questionamentos sobre direitos de posse.
- Como é que você sabia que mamãe fez tal coisa? - perguntou Nancy a Olivia.
- Porque ela me escreveu, contando.
- Aqueles brincos deviam ficar para Melanie!
- Antonia foi muito bondosa para mamãe, Nancy. E mamãe sentia grande afeição por ela. Antonia tomou suas últimas semanas de vida imensamente felizes. Além disso, acompanhou-a à Cornualha e lhe fez companhia, o que nenhum de nós se preocupou em fazer.
- Quer dizer que devíamos ser gratos por isso? Se quer saber, acho que devia ser exatamente o contrário...
- Antonia é grata...
A discussão se teria prolongado indefinidamente, se mais uma vez o Sr. Enderby não a interrompesse, pigarreando com discrição. Nancy se fechou em ultrajado silêncio, e Olivia soltou um suspiro de alívio. No momento, o assunto fora encerrado, mas tinha certeza de que tornaria a ser discutido, que o destino dos brincos da Tia Ethel ainda seria abordado e dissecado por muito tempo no futuro.
- Sinto muito, Sr. Enderby. Nós o estamos estorvando. Por favor, continue.
Ele enviou a Olivia um olhar de gratidão e voltou a falar.
- Agora, passaremos ao montante líquido da herança. Quando a Sra. Keeling redigiu este testamento, deixou bem claro para mim que não queria qualquer desentendimento entre os três filhos sobre a transmissão de seus bens. Diante disto, decidimos que tudo deveria ser vendido, e a soma obtida dividida igualmente entre os três. A fim de que isto fosse feito, tomou-se necessária a indicação de curadores de seus bens, ficando resolvido que os executores testamentários, Enderby, Looseby & Thring cuidariam disto. Está tudo bem claro e perfeitamente aceitável? Ótimo. Neste caso... - Ele começou a ler: - "Eu lego e transmito à custódia de meus curadores toda minha propriedade, tanto real como pessoal, a fim de que vendam, resgatem e transformem a dita propriedade em dinheiro." Entendido, Sra. Chamberlain?
- Não sei o que isso significa.
- Significa o montante líquido dos bens da Sra. Keeling, aí estando incluídos esta casa e respectivo conteúdo, sua carteira de títulos e ações e sua conta - corrente bancária.
- Tudo vendido, depois somado e dividido em três?
- Exatamente. Claro está que após terem sido pagos débitos pendentes, taxas, impostos e despesas do funeral.
- Parece terrivelmente complicado.
Noel enfiou a mão no bolso e tirou sua agenda. Abriu-a em uma página em branco e pressionou o topo da caneta.
- Talvez o senhor pudesse elucidar-nos, Sr. Enderby, a fim de efetuarmos um cálculo aproximado.
- Perfeitamente. Comecemos pela casa. Podmore's Thatch, com suas construções anexas e plantações produzindo, valerá, se não me engano, não menos de duzentas e cinqüenta mil. Sua mãe a comprou por cento e vinte mil, porém isso foi há cincos anos, tendo o valor da propriedade aumentado consideravelmente, desde então. Além do mais, trata-se de um imóvel altamente agradável, dentro de uma distância de Londres que pode ser facilmente coberta. Sobre o conteúdo da casa, não posso ter tanta certeza. Dez mil libras, talvez? Temos ainda a carteira de títulos e ações da Sra. Keeling, no presente momento orçando em cerca de vinte mil.
Noel assobiou.
- Tudo isso? Eu não fazia idéia.
- Nem eu - disse Nancy. - De onde veio todo esse dinheiro?
- Foi o montante líquido da venda da casa da Rua Oakley. Cuidadosamente investido, após sua mãe ter comprado Podmore's Thatch.
- Entendo.
- E sua conta-corrente?
Noel havia registrado todos estes números em sua agenda e, obviamente, ardia em desejos de somá-los, para chegar a um total geral.
- No momento, sua conta-corrente está alta, após a injeção das cem mil libras que ela recebeu pela venda dos dois painéis pintados por seu pai, Lawrence Stern, adquiridos por um comprador particular, através da Boothby's. Tudo isto, naturalmente, será sujeito a taxas e impostos.
- Ainda assim... - Noel efetuou seus rápidos cálculos. - Temos um total de trezentas e cinqüenta mil libras. - Ninguém fez qualquer comentário sobre tão perturbadora soma. Em silêncio, ele tornou a pressionar o topo da caneta, deixou-a sobre a mesa e recostou-se em sua cadeira. - Consideradas todas as circunstâncias, meninas, é uma boa contagem!
- Fico contente - disse secamente o Sr. Enderby - em saber que está satisfeito.
- Então era isso! - Noel estirou-se inteiramente e fez menção de levantar-se da cadeira. - O que acham de um drinque para todos? Aceitaria um uísque, Sr. Enderby?
- Com prazer, porém não agora. Receio que nossos negócios ainda não estejam encerrados
Noel franziu a testa.
- E o que mais há para discutir?
- O testamento de sua mãe possui um codicilo, datado de 13 de abril de 1984. Naturalmente, isto implica uma nova data para o testamento anterior, porém em nada modifica o que já ficou estipulado, isto é irrelevante.
Olivia refletiu.
- Treze de abril... O dia em que ela foi a Londres. Na véspera de sua morte.
- Exatamente.
- Ela foi - expressamente para vê-lo, Sr. Enderby?
- Acredito que sim.
- Procurou-o para que redigisse este codicilo?
- Sim.
- Então, talvez fosse melhor lê-lo para nós.
- É o que farei agora, Srta. Keeling. Entretanto, antes disso, creio dever mencionar que foi escrito na caligrafia da Sra. Keeling e assinado por ela, na presença de minha secretária e meu funcionário. - Ele começou a ler em voz alta: - “Para Danus Muirfield, Chalé do Tractorman, Fazenda Sawcombe, Pudley, Gloucestershire, deixo quatorze esboços a óleo de obras importantes, pintados por meu pai, Lawrence Stern, entre os anos de 1890 e 1910. Tais esboços têm os seguintes títulos: O jardim do terazzo, A chegada do amante, O galanteio do barqueiro, Pandora...Os esboços a óleo! Noel suspeitara de sua existência, confidenciara tais suspeitas a Olivia; revistara a casa da mãe atrás deles, sem nada ter encontrado. Agora. virando a cabeça, ela olhava para o irmão através da mesa. Viu-o sentado e petrificado. Intensamente pálido. Um tique nervoso repuxava o ângulo de seu maxilar. Olivia perguntou-se quanto tempo ele continuaria calado. antes de explodir um furioso protesto”.
- “... As aguadeiras, Um mercado em Túnis, A carta de amor...”
Onde é que haviam estado os esboços durante todos aqueles anos? Quem os tinha possuído? De onde tinham vindo?
- “... O espírito da primavera, Manhã do pastor; Jardim de Amoretta..."
Noel não se conteve mais.
- Onde é que eles estavam? – perguntou, em tom que claramente indicava o quanto se sentia ultrajado.
Apesar de tão rudemente interrompido o Sr. Enderby continuou mostrando uma calma admirável. Sem dúvida, já esperava uma explosão semelhante. Olhou para Noel, por sobre os aros dos óculos.
- Se permitir que eu termine, Sr. Keeling, poderia explicar em seguida.
Houve uma pausa desconfortável.
- Está bem, prossiga.
Foi o que fez o Sr. Enderby, sem demonstrar qualquer pressa.
- "O deus do mar, O souvenir, As rosas brancas e O esconderijo. No momento, tais esboços encontram-se em poder do Sr. Roy Brookner, da casa Boothby's, Negociantes de Belas Artes, New Bond Street, Londres Wl, porém programados para serem postos à venda em Nova York, na primeira oportunidade possível. Caso eu venha a falecer antes que essa venda aconteça então os ditos esboços deverão ser entregues a Danus Muirfield, seja para que os conserve ou os venda, segundo seu desejo pessoal."
Recostando-se na cadeira, o Sr. Enderby esperou algum comentário.
- Onde é que eles estavam?
Ninguém disse nada. O ambiente se tornara desconfortavelmente tenso. Então, Noel repetiu sua pergunta:
- Onde é que eles estavam?
- Durante vários anos, sua mãe os manteve escondidos nas costas do guarda-roupa do quarto em que dormia. Ela própria os colocou lá, encobrindo-os depois com papel de parede, a fim de que não fossem encontrados.
- Ela não queria que soubéssemos?
- Não creio que ela tivesse feito isso pensando nos filhos. A Sra. Keeling escondeu os esboços para que o marido não os encontrasse. Ela os tinha achado no velho estúdio do pai, na casa da Rua Oakley. Naquela época, a família atravessava certas dificuldades financeiras, mas ela não queria que os esboços fossem vendidos apenas para conseguir algum dinheiro.
- Quando foi que eles finalmente vieram à luz?
- Ela solicitou ao Sr. Brookner que viesse a Podmore's Thatch, a fim de avaliar e possivelmente comprar duas outras obras pintadas pelo avô dos senhores. Foi então que mostrou a ele a pasta dos esboços.
- E quando foi que o senhor ficou sabendo de sua existência?
- A Sra. Keeling relatou-me toda a história no dia em que redigiu o codicilo. Na véspera de sua morte. Deseja dizer alguma coisa, Sra. Chamberlain...?
- Sim, desejo. Não entendi uma palavra do que o senhor está dizendo! Não sei do que estão falando! Ninguém jamais mencionou esses esboços para mim, sendo esta a primeira vez que ouço falar neles. E por que toda esta agitação? Por que Noel parece considerá-los tão importantes?
- Eles são importantes - disse-lhe Noel, com saturada paciência - porque são valiosos.
- Meros esboços? Pensei que coisas assim fossem jogadas fora.
- Não, quando se tem alguma sensatez.
- Pois bem, e quanto valem?
- Quatro, cinco mil libras cada um. E há quatorze deles. Quatorze! - repetiu, gritando a palavra como se Nancy fosse surda. Basta fazer a soma, caso você tenha capacidade para tão avançada aritmética, uma coisa que duvido muito!
Mentalmente, Olivia já tinha efetuado a soma. Setenta mil. Apesar do estarrecedor comportamento de Noel, sentira uma pontada de pena dele. Estivera tão certo de que os esboços estariam ali, em algum lugar, em Podmore's Thatch... Chegara a passar um longo e lugubremente chuvoso sábado encarcerado no sótão, a pretexto de fazer uma faxina nas velharias que a mãe guardava lá, mas, na realidade, procurando os esboços. Ela se perguntou se Penélope adivinhara o verdadeiro motivo daquela atividade inusitada e, em caso afirmativo, o que a induzira a calar-se. Provavelmente, a resposta era que Noel se tornara uma cópia fiel do pai, de maneira que Penelope não confiava de todo nele. Assim, nada dissera, preferindo entregar os esboços à custódia do Sr. Brookner para, finalmente, na véspera de sua morte, legá-los a Danus.
Entretanto, por quê? Por que motivo agira assim?
- Sr. Enderby... - Era a primeira vez que ela falava, após ter sido levantada a questão do codicilo. Ele pareceu aliviado ao ouvir sua voz tranqüila e dedicou-lhe inteira atenção. Ela explicou algum motivo que a fizesse deixar os esboços para Danus Muirfield? Quero dizer - Olivia procurou escolher as palavras com cuidado, não querendo parecer ressentida ou ambiciosa - evidentemente, eles eram muito especiais, além de bens pessoais... e ela só conhecia Danus há pouco tempo.
- Claro está que não poderei responder a isto, porque ignoro a resposta. Não obstante, era óbvio que a Sra. Keeling sentia grande apreço pelo rapaz e creio que desejaria ajudá-lo. Parece-me que ele pretende iniciar um pequeno negócio e, assim, ficaria grato por esse capital.
- Podemos contestar? - perguntou Noel.
Olivia se virou para o irmão.
- Não vamos contestar coisa alguma! - disse-lhe, em tom categórico. - Mesmo que fosse legalmente possível, nada quero ter a ver com isso!
Nancy, que estivera às voltas com sua aritmética mental, agora tomava a entrar na discussão.
- Ora, mas cinco vezes quatorze é setenta! Está querendo dizer que esse rapaz ficará com setenta mil libras?
- Se ele vender os esboços, ficará, Sra. Chamberlain.
- Não há dúvida de que isto é um tremendo erro! Ela mal o conhecia! Ele era seu jardineiro! - Nancy precisou apenas de alguns momentos, para ficar em estado de grande agitação. – Isto é ultrajante! Eu estava certa sobre ele, o tempo todo! Sempre disse que esse rapaz tinha alguma influência sinistra sobre mamãe! Eu disse isso para você, não foi, Noel? Lembra-se? Naquele dia em que lhe falei sobre ela ter doado “Os catadores de conchas”. E os brincos da Tia Ethel... dados! Agora isto! É a última gota. Tudo! Simplesmente, dado! Ela não podia estar em seu juízo perfeito! Já estivera doente, seu julgamento ficou afetado. Não há outra explicação possível. Deve existir alguma coisa que possamos fazer!
Por esta vez, Noel estava do lado de Nancy.
- Quanto a mim, não vou ficar de braços cruzados, deixando que tudo isto aconteça...
- ... sem a menor dúvida, ela não estava em seu juízo perfeito...
- ... há multa coisa em jogo...
- ...tirando proveito dela...
Olivia não agüentou mais.
- Parem com isto. Calem a boca!
Ela falou em voz baixa, mas com a fúria controlada que a equipe editorial de Venus, no correr dos anos, aprendera a temer e respeitar. Quanto a Noel e Nancy, jamais lhe tinham ouvido aquele tom de voz antes. Ficaram olhando fixamente para ela, com certo espanto e, apanhados desprevenidos, não souberam o que dizer. No silêncio que se seguiu, Olivia começou a falar.
- Não quero ouvir mais nem uma palavra sobre isto. Está tudo encerrado. Mamma está morta. Nós a sepultamos hoje. Quem os ouvisse discutindo como dois cães sarnentos, pensaria que esqueceram isso. Não conseguem pensar ou falar em outra coisa que não seja o que vão extrair dela. Agora já sabemos, porque o Sr. Enderby acabou de dizer-nos. E mamma nunca esteve menos lúcida... pelo contrário, foi a mulher mais inteligente que já conheci. Era prática, sabia planejar com antecedência. O que mais pensam que ela fazia, durante todos aqueles anos em que estávamos crescendo, mal tendo dois pennies tilintando um no outro e com um marido que jogava cada moeda em que podia pôr as mãos? No que me diz respeito, estou mais do que satisfeita e acho que vocês deviam estar também. Mamma proporcionou a todos nós uma infância mágica, um incrível impulso na vida, e agora que está morta fica evidente que deixou cada um de nós confortavelmente aquinhoado. Sobre os brincos - ela olhou para Nancy, em gélida acusação - se ela quis que Antonia ficasse com eles, em vez de você ou Melanie, tenho certeza de que possuía bons motivos. - Nancy baixou os olhos. Recolheu um pequenino cisco na manga do casaco. - E se foi Danus quem ficou com os esboços, em vez de Noel, tenho certeza de que ela também possuía bons motivos para agir assim. - Noel abriu a boca, então mudou de idéia e tornou a fechá-la, sem dizer uma palavra.
- Ela fez seu próprio testamento. Fez o que queria fazer. E isto é tudo que importa, ninguém vai dizer mais uma só palavra!
Sem levantar a voz uma só vez, ela havia dito tudo. Na desconfortável pausa que se seguiu, Olivia ficou esperando que Noel ou Nancy oferecessem objeções às chicotadas verbais que desferira contra eles. Após um momento, no outro lado da mesa, Noel remexeu-se
na cadeira. Olivia lançou-lhe um olhar furibundo, preparou-se para um posterior combate, mas parecia que ele nada tinha a dizer. Em um gesto que admitia a derrota, mais claramente do que qualquer palavra expressa, ele ergueu a mão para esfregar os olhos, depois alisou para trás os cabelos escuros. Endireitando os ombros, ajeitou o nó da gravata de seda preta. Estava de novo controlado. Chegou a esboçar um sorriso de banda.
- Após este pequeno desabafo - disse a todos em geral - penso que merecemos aquele drinque. - Ele se levantou. - Um uísque, Sr. Enderby?
Desta maneira, maciamente, ele conduziu a reunião a um final e, ao mesmo tempo, rompeu a tensão. Obviamente muito mais aliviado, o Sr. Enderby aceitou a oferta e começou a recolher seus papéis, recolocando-os em seguida na pasta. Murmurando algo sobre empoar o nariz, Nancy reuniu sua esfarrapada dignidade, pegou a bolsa e saiu da sala. Noel foi atrás dela, em busca de gelo. Olivia e o advogado ficaram sozinhos.
- Eu sinto muito - disse ela.
- Não há motivos. Foi um esplêndido discurso!
- O senhor não acha que mamma estivesse fora de seu juízo perfeito, acha?
- Nem por um só instante!
- Esteve conversando com Danus esta tarde. Ele lhe pareceu ser de caráter desonesto?
- Exatamente o contrário. Eu diria que é um rapaz íntegro.
- Ainda assim, eu gostaria realmente de saber o que a impulsionou a deixar para ele um legado tão significativo.
- Acho que jamais ficaremos sabendo, Srta. Keeling.
Ela aceitou esta resposta.
- Quando irá dizer a ele?
- Assim que encontrar um momento oportuno.
- Acha que agora seria um momento oportuno?
- Sim, caso pudesse falar com ele em particular.
Olivia sorriu.
- Quer dizer, depois que Noel e Nancy partirem.
- Seria melhor esperar até então.
- Isso não atrasaria muito sua volta para casa?
- Talvez, mas eu poderia telefonar para minha esposa.
- Naturalmente. Quero que Danus fique a par o quanto antes, uma vez que ele talvez esteja por aqui amanhã. Então as coisas poderiam ficar algo tensas entre nós, se eu soubesse, mas ele não.
- Compreendo perfeitamente.
Noel voltou, trazendo o balde de gelo.
- Há um recado para você na mesa da cozinha, Olivia. Danus e Antonia foram tomar um drinque no "Sudeley Arms". Voltarão as seis e meia.
Ele falou com naturalidade, pela primeira vez pronunciando seus nomes sem ressentimento ou veneno. Dadas as circunstâncias, era algo bastante animador. Olivia se virou para o Sr. Enderby:
- Acha que poderia esperar até lá?
- Naturalmente.
- Fico-lhe muito grata. O senhor foi infinitamente paciente conosco.
- Faz parte de meu ofício, Srta. Keeling. Apenas parte de meu ofício...
Tendo passado algum tempo no segundo andar, arrumando o cabelo, empoando o nariz e recompondo-se de um modo geral, Nancy tornou a juntar-se a eles na sala de refeições e anunciou que ia para casa.
Olivia ficou surpresa.
- Não fica para um drinque conosco?
- Não. É melhor eu ir andando. Tenho um longo trajeto pela frente e não quero arriscar-me a um acidente. Adeus, Sr. Enderby, e obrigada por sua ajuda. Não se levante, por favor. Adeus, Noel. Tenha uma boa viagem para Londres. Fique onde está, Olivia, não precisa acompanhar-me.
Olivia, no entanto, largou o copo e saiu com a irmã. Fora da casa, as duas viram que o incomparável dia de primavera mergulhava num crepúsculo fresco e fragrante. O céu estava sem nuvens, manchado de rosa na direção oeste. Uma brisa roçava os galhos mais altos das árvores e, da colina atrás da aldeia, chegaram claramente até elas os balidos das ovelhas e seus cordeiros.
Nancy olhou em torno.
- Que sorte tivemos com o tempo. Permitiu que tudo fosse possível. Saiu-se muito bem, Olivia! Arranjou tudo perfeitamente.
- Obrigada - disse Olivia.
- Foi um bocado de trabalho. Posso perceber isso.
- Sem dúvida. Exigiu alguma organização. Ainda há um ou dois detalhes a providenciar. Uma lousa para a sepultura de mamãe... Enfim, podemos falar sobre isso em outra ocasião.
Nancy entrou no carro.
- Quando volta para Londres?
- Amanhã à noite. Tenho que estar no escritório na manhã de segunda-feira.
- Entrarei em contato com você então.
- Faça isso. - Olivia hesitou, mas então recordou suas boas resoluções daquela tarde. Mamma jamais deixaria um filho seu partir sem um beijo de despedida. Inclinando-se pela janela aberta do carro, beijou Nancy na face. - Dirija com cuidado - disse para a irmã, e então, sentindo-se imprudente (já que começara, devia ir até o fim), acrescentou: - Lembranças minhas a George e às crianças.
Tornando a entrar, viu que os dois homens haviam trocado a sala de refeições pelo aconchego da sala de estar. Noel puxara as cortinas e tinha acendido o fogo, mas assim que terminou seu uísque com soda, olhou para o relógio, levantou-se e anunciou que era hora de ir embora. O Sr. Enderby sugeriu que aquele podia ser um momento oportuno para telefonar à esposa, de maneira que Olívia o deixou fazendo a ligação e acompanhou Noel até a porta da frente.
- Tenho a sensação de não ter feito outra coisa, o dia inteiro, senão levar pessoas à porta - disse ela.
- Você deve estar cansada. É melhor ir dormir cedo.
- Acho que, provavelmente, todos estamos cansados. Foi um longo dia. - Estava esfriando e ela cruzou os braços, contra um arrepio. - Lamento pela maneira como as coisas resultaram, Noel. Teria sido bom você ficar com os esboços. Deus sabe que trabalhou duro, procurando por eles. Entretanto, do jeito como estão as coisas, nada há que um mortal possa fazer a respeito. E, admita, nenhum de nós ficou de mãos abanando. Esta casa alcançará um preço fenomenal. Portanto, não fique cismando sobre injustiças imaginárias. Caso contrário, terminará com a pior espécie de indigestão espiritual, confuso e amargo.
Ele sorriu. Sem muita alegria, mas mesmo assim era um sorriso.
- É uma pílula dos diabos para ser engolida, mas parece que não há alternativa. No entanto, eu bem gostaria de saber por que ela nunca falou sobre aqueles esboços conosco, jamais nos disse que existiam. E por que os teria deixado para esse rapaz?
Olivia deu de ombros.
- Será que ela o apreciava? Sentia pena dele? Queria ajudá-lo?
- Tem que haver algo mais do que isso.
- É possível - admitiu ela. Deu-lhe o beijo de despedida. - Entretanto, acho que jamais descobriremos.
Ele entrou em seu Jaguar e afastou-se. Olivia ficou parada, ouvindo o barulho do motor diminuir, esperou até que o ruído do imperfeito cano de descarga desaparecesse na quietude da noite, e que nada mais ouvisse. Os sons rurais novamente ganharam ímpeto os balidos das ovelhas nos ondulados prados do outro lado da estrada, o vento aumentando e fustigando os galhos altos, um cão latindo. Ouviu um rumor de passos lépidos, aproximando-se da direção da aldeia, misturado a vozes jovens. Danus e Antonia, retornando do pub "Sudeley Arms". Suas cabeças surgiram acima do muro, enquanto caminhavam para o portão aberto, ela viu Danus com o braço passado pelos ombros de Antonia, que tinha um cachecol escarlate à volta do pescoço e as faces rosadas. Erguendo os olhos, ela viu Olivia esperando-os.
- Olívia! O que faz sozinha aqui fora?
- Noel acabou de partir. E então, divertiram-se?
- Fomos apenas tomar um drinque. Espero que não tenha se importado. Eu nunca havia entrado no pub antes. É interessantíssimo! Realmente antiquado, e Danus lançou dardos com o carteiro.
- Você venceu? - perguntou Olivia a ele.
- Perdi. Não havia jeito. Tive que pagar meio litro de Guinness para ele.
Entraram juntos na casa. Na cozinha aquecida, Antonia tirou seu cachecol.
- A reunião de família já terminou?
- Sim. Nancy também já foi embora, mas o Sr. Enderby continua aqui. - Ela se virou para Danus. - Ele quer falar com você.
Danus pareceu achar difícil acreditar.
- Comigo?
- Exatamente. Ele está na sala de estar. Talvez seja melhor não o deixar esperando. O pobre homem quer ir para casa, sua esposa o espera.
- Sim, mas o que ele tem para me dizer?
- Não faço a menor idéia - mentiu Olivia. - Por que não vai lá e tira as dúvidas?
Danus foi, parecendo perplexo. A porta se fechou atrás dele.
- Ora, mas o que ele quereria falar com Danus? - perguntou Antonia, com um ar de profunda apreensão. - Você acha que é alguma coisa terrível?
Olivia recostou-se contra a borda da mesa da cozinha.
- Não, não creio que seja qualquer coisa assim. - Antonia, entretanto, não parecia convencida. Querendo encerrar o assunto, Olivia perguntou: - Muito bem, o que iremos jantar? Danus comerá conosco?
- Sim, se você não se importa.
- É claro que não me importo. Aliás, seria melhor também que ele passasse a noite aqui. Nós lhe encontraremos uma cama em algum lugar.
- Isso tomaria tudo bem mais fácil. Há duas semanas que ele está ausente de seu chalé. Lá deve estar úmido e solitário...
- Conte-me o que aconteceu em Edimburgo. Danus foi declarado em bom estado de saúde?
- Sim, foi. Está tudo bem com ele, Olivia. Danus não tem nada! Não é epiléptico nem nunca foi!
- Ora, mas são excelentes notícias!
- Sim. Até parece um milagre...
- Ele significa muito para você, não é?
- Sim.
- E você para ele, imagino.
Antonia assentiu, radiante.
- Então, que planos já fizeram?
- Danus quer começar um horto... trabalhar por conta própria. E eu irei ajudá-lo. Vamos fazer isso juntos.
- E quanto ao emprego dele na Autogarden?
- Ele voltará a trabalhar na segunda-feira, dando a eles um mês de aviso prévio. Foram todos muito bons para ele, sobre essa temporada que precisou faltar. Danus acha que abandoná-los repentinamente seria a última coisa que podia fazer.
- E depois disso?
- Iremos embora, procurar um local para alugar ou comprar, que esteja ao nosso alcance. Em Somerset, talvez. Ou Devon. Entretanto, confirmo o que lhe disse sobre ficar aqui, e não iremos embora enquanto Podmore's Thatch não for vendido e retirados os móveis. Como disse, posso mostrar a casa e o terreno aos interessados. Enquanto isso, Danus cuidaria do jardim.
- Uma idéia muito boa. Entretanto, ele não devia voltar para seu chalé, mas ficar aqui com você. Eu me sentiria bem melhor sabendo-o por aqui, não a deixando sozinha. Aliás, ele pode ficar usando o carro de mamma, e você manterá contato comigo, sobre o número de candidatos que forem aparecendo. Também manterei a Sra. Plackett, se ela quiser, até que a casa seja vendida. Ela pode fazer uma boa faxina de primavera por aqui e seria uma companhia para você, enquanto Danus estiver aparando o gramado de outras pessoas. - Ela sorriu, como se houvesse planejado tudo aquilo sozinha. - Tudo vai funcionar direitinho.
- Há só uma coisa. Não voltarei para Londres.
- Foi o que deduzi.
- Você foi muito generosa, querendo ajudar-me. Fiquei sinceramente agradecida, mas sei que não seria grande coisa como modelo. Sou inibida demais.
- Talvez tenha razão. Deve sentir-se muito mais feliz calçando botas e com as unhas cheias de terra. - As duas riram. – Você está feliz, não está, Antonia?
- Sim. Nunca pensei que pudesse voltar a ser tão feliz... Este dia me pareceu muito singular. Tremendamente feliz e horrivelmente triste ao mesmo tempo. Entretanto, de certo modo acho que Penelope teria entendido. Eu estava aterrada com a idéia do funeral. O de Cosmo foi o único a que já havia comparecido, e foi tão dolorosamente terrível, que eu temia ir a outro. Esta tarde, contudo, se tornou bem diferente. Na realidade, pareceu mais uma comemoração.
- Exatamente como desejei que fosse. Como planejei. E agora... - Olivia bocejou... - felizmente já terminou. Acabou!
- Você parece cansada.
- Você é a segunda pessoa a dizer-me isto esta noite. Em geral, significa que estou parecendo velha.
- Você não parece velha! Vá lá para cima e tome um banho. Não se preocupe com o jantar. Eu faço isso. Há um pouco de sopa na despensa e costeletas de carneiro na geladeira. Se quiser, posso levar-lhe uma pequena bandeja e poderá comer na cama.
- Não estou tão velha e cansada assim! - Afastando-se da mesa, Olivia arqueou as costas doloridas. - De qualquer modo, vou tomar um banho. Se o Sr. Enderby for embora antes que eu torne a aparecer, poderia desculpar-se com ele por mim?
- É claro!
- E despeça-se dele por mim. Diga-lhe que depois telefonarei.
Cinco minutos mais tarde, quando Danus e o Sr. Enderby entraram na cozinha, já encerrada a sua conversa. Antonia raspava cenouras diante da pia. Ela se virou e sorriu para eles, esperando que algo fosse dito, que um dos dois explicasse o que tinham estado falando. Contudo, nenhum deles disse qualquer coisa e, ante tamanha solidariedade masculina, ela ficou sem coragem de perguntar. Preferiu dar ao Sr. Enderby o recado de Olivia.
- Ela estava muito cansada e subiu para tomar um banho. Pediu que me despedisse do senhor em seu nome e que apresentasse suas desculpas. Olivia espera que o senhor compreenda.
- Sim, é claro que compreendo.
- Ela disse que depois entrará em contato com o senhor.
- Obrigado por dizer-me. Bem, agora devo pôr-me a caminho. Minha esposa espera-me em casa para o jantar. - Ele transferiu a pasta para a mão esquerda. – Adeus, Antonia.
- Oh... - Apanhada desprevenida, ela enxugou rapidamente a mão no avental. - Adeus, Sr. Enderby.
- Desejo-lhe muito boa sorte.
- Obrigada.
Ele saiu cruzando a porta em largas passadas, seguido por Danus. Sozinha. Antonia voltou às cenouras, porém seu pensamento não estava no que fazia. Por que ele lhe desejara boa sorte e, afinal de contas, o que estava acontecendo? Danus não parecera particularmente abatido, portanto, isto significava que a conversa fora amável entre eles. Talvez – uma feliz idéia - o Sr. Enderby houvesse simpatizado com Danus, enquanto conversavam durante o chá, e lhe tivesse oferecido ajuda para levantar algum dinheiro, possibilitando a compra do horto de ambos. Isto não parecia muito provável, mas que outro motivo teria ele para querer aquela entrevista...? Ouviu o carro do Sr. Enderby afastar-se. Parou de raspar as cenouras e recostou-se na pia, esperando, com a faca em uma das mãos e a cenoura na outra que Danus tomasse a entrar.
- O que foi que ele lhe disse? - perguntou, ainda antes de ele haver cruzado a porta. - Por que queria falar com você?
Danus tirou-lhe a faca e a cenoura das mãos, colocou ambas sobre o secador e a tomou nos braços.
- Tenho uma coisa para contar-lhe.
- O que é?
- Você não precisará vender os brincos da Tia Ethel.
- Iu-huuur!
- Sra. Plackett?
- Onde é que está, Srta. Keeling?
- Aqui em cima, no quarto de mamma!
A Sra. Plackett subiu a escada.
- Quer dizer que já começou?
- Ainda não. Estava apenas tentando decidir como é que faremos. Acho que por aqui não há nada que mereça ser guardado. Todas as roupas de mamma eram tão velhas e fora de moda que, tenho certeza, ninguém irá querê-las! Trouxe para cá estes sacos de lixo. Vamos enchê-los e deixá-los lá fora, para os lixeiros levarem.
- A Sra. Tillingham fará um bazar no mês que vem. Em benefício do Fundo para a Compra do Órgão.
- Bem, veremos... Deixarei que a senhora decida. Poderia começar esvaziando o guarda-roupa, enquanto faço a limpeza na cômoda.
A Srta. Plackett lançou mãos à obra, escancarando as portas do guarda-roupa e começando a tirar de lá braçadas de peças de roupa, surradas e amorosamente familiares. Enquanto as depunha sobre a cama. Algumas tão usadas que estavam no fio, Olivia desviou o rosto. Parecia-lhe indecente até mesmo espiá-las. Havia temido tão triste tarefa, a qual parecia ser ainda mais penosa do que imaginara. Estimulada pela presença prática da Sra. Plackett, ela
ficou de joelhos e puxou a última gaveta. Suéteres e cardigãs, muito cerzidos nos cotovelos. Um xale branco de Shetland, para crianças; uma blusa de marinheiro, azul-marinho, que mamma costumava usar quando trabalhava no jardim.
- O que irá acontecer agora a esta casa? - perguntou a Sra. Plackett, enquanto trabalhavam.
- Será posta no mercado e vendida. Foi desejo de mamma e, por outro lado, nenhum de nós desejaria morar aqui. No entanto, Antonia e Danus continuarão na casa, a fim de mostrá-la aos interessados e mantendo tudo em funcionamento, até quando ela for vendida. Depois disso, daremos um fim nos móveis.
- Antonia e Danus? - Assentindo sabidamente para si mesma, a Sra. Plackett considerou as implicações de fato. - Será muito bom!
- Quando tudo estiver terminado, eles partirão e procurarão algum pedaço de terra que possam alugar ou comprar. Os dois querem iniciar um horto juntos.
- A mim, isso dá a impressão de que eles estão juntando seus pauzinhos - disse a Sra. Plackett. - Por falar nisto, onde é que estão? Não vi nenhum dos dois quando cheguei aqui.
- Eles foram à igreja.
- Foram?
- Parece aprovadora, Sra. Plackett.
- Acho bonito, quando jovens vão à igreja. Hoje em dia é uma coisa que não acontece com muita freqüência. E fico satisfeita em saber que vão ficar juntos. Um se dá maravilhosamente bem com o outro, foi o que sempre achei! Afinal, os dois são jovens. De um modo geral, eles parecem ter a cabeça no lugar. O que faremos disto? Olivia olhou. A velha pelerine da Marinha, de mamma. Houve um súbito relance de dolorosa recordação. Mamma chegando ao aeroporto de Ibiza, em companhia de Antonia ainda praticamente menina; mamma usando a pelerine, Antonia correndo para atirar-se aos braços de Cosmo. Tudo aquilo parecia ter acontecido há muito, muitíssimo tempo atrás.
- Acho que está boa demais para ser jogada fora - respondeu. - Separe-a para a quermesse da igreja.
A Sra. Plackett, no entanto, pareceu relutar em fazer isto.
- Grossa e quente como poucas... Ainda tem muitos anos de uso!
- Então, fique com ela. A pelerine a manterá aquecida e confortável em sua bicicleta.
- É muita bondade sua, Srta. Keeling. Fico imensamente agradecida. - Ela deixou a pelerine sobre uma cadeira. - Pensarei em sua mãe, cada vez que a usar.
Outra gaveta. Roupas íntimas, camisolas, malhas de lã, cintos, echarpes; um xale de seda chinesa, fartamente franjado e bordado com peônias escarlates. Uma mantilha de renda negra.
O guarda-roupa estava quase vazio. A Sra. Plackett remexeu em suas profundezas.
- Veja só isto! - exclamou. - Eu nunca o vi antes!
Suspendeu o vestido, ainda em seu cabide acolchoado. Era um traje jovem, sem fartura de tecido, feito de alguma fazendinha barata, que pendia flacidamente. Um vestido vermelho, estampado de margaridas brancas, com decote quadrado e volumosas ombreiras - Nem eu - disse Olivia. - Gostaria de saber por que mamma guardou isso. Deve ter sido algum vestido que usou durante a guerra. Jogue-o fora, Sra. Plackett.
A gaveta de cima. Cremes e loções, lixas para unhas, frascos antigos de perfume, uma caixa de pó, um pufe em penugem de cisne. Um colar de contas de vidro cor de âmbar. Brincos. Peças desencontradas e bijuteria barata.
Por fim, os sapatos. Todos os sapatos dela. Os sapatos eram o pior de tudo, mais intensamente pessoais do que qualquer outra coisa. Olivia se tomou cada vez mais impiedosa. As sacolas de lixo avolumaram-se.
Finalmente, em meio a tantas recordações penosas, tudo foi feito. A Sra. Plackett amarrou fortemente a boca dos sacos de plástico e, em seguida, elas duas os arrastaram escada abaixo e para fora da casa, até onde ficavam as latas do lixo.
- Haverá coleta amanhã cedo. Então, será o fim disto para a senhorita.
De volta à cozinha, a Sra. Plackett vestiu seu casaco.
- Não sei como agradecer-lhe por tanta gentileza, Sra. Plackett - disse Olivia, espiando enquanto ela dobrava cuidadosamente a pelerine da Marinha e a bolsa-bagageira. - Eu não teria coragem de fazer esta tarefa sozinha.
- Fiquei muito feliz em poder ajudar. Bem, tenho que ir agora. Preparar o almoço do Sr. Plackett. Desejo-lhe uma boa viagem de volta a Londres, Srta. Keeling. Procure se cuidar, experimente descansar um pouco. Foi um fim de semana muito agitado.
- Manterei contato com a senhora, Sra. Plackett.
- Tudo bem. E volte para nos visitar! Não gosto de pensar que nunca mais tornarei a vê-la.
Ela montou em sua bicicleta e afastou-se, uma figura robusta e ereta, com a sacola-bagageira pendurada do guidom.
Olivia retornou ao quarto de sua mãe. Despojado de todos os bens pessoais, ele parecia incrivelmente vazio. Antes que se passasse muito tempo, Podmore's Thatch seria vendido, e aquele quarto pertenceria a outra pessoa. Haveria outros móveis, outras roupas, outros cheiros, outras vozes, outros risos. Sentando-se na cama, ela viu, além da janela, as novas folhas verdes do castanheiro florido. O tordo estava cantando, escondido em algum lugar entre os galhos.
Ela olhou em torno. Viu a mesa de cabeceira, com seu abajur de louça branca e a cúpula de pergaminho pregueado. A mesa tinha uma pequena gaveta. Haviam esquecido de revistá-la, durante a limpeza do quarto. Olivia abriu e encontrou um vidro de aspirinas, um botão solitário, o toco de um lápis e uma agenda antiquada. E, no fundo, um livro.
Enfiando a mão na gaveta, ela o apanhou. Era um livro fino, encadernado em azul. Autumn journal, de Louis MacNeice. Estava estufado por algum marcador volumoso e, onde este havia sido inserido, o livro se abriu espontaneamente. Ali ela encontrou um maço de fino papel amarelo, dobrado apertadamente... uma carta, talvez? E também uma fotografia.
A foto mostrava um homem. Olivia a olhou de relance e então, colocando-a de lado, começou a desdobrar a carta, mas seus olhos foram atraídos por um trecho de poesia que pareceu saltar das páginas do livro, mais ou menos como um nome recordado saltaria de uma folha de jornal...
Setembro chegou, e é dela,
Cuja vitalidade salta para o outono,
Cuja natureza prefere
Árvores sem folhas e um fogo na lareira.
Assim, eu lhe dei este mês e o seguinte.
Embora meu ano inteiro devesse ser dela. que já tornou
Intoleráveis ou perplexos tantos de seus dias,
Mas tantos tão felizes.
Ela que deixou um perfume em minha vida.
Que deixou minhas paredes sempre dançando com sua sombra.
Cujos cabelos se entrançam em todas as minhas cataratas
E toda Londres alastrada de beijos recordados.
As palavras não eram novas para ela. Quando estudava em Oxford, Olivia descobrira McNeice, ficara encantada e havia devorado vorazmente tudo que ele já escrevera. E ainda agora, após a passagem de tantos anos, percebia-se tão tocada e emocionada, como em seu primeiro encontro com o poema. Tornou a lê-lo e então largou o livro. Qual teria sido seu significado para mamma? Apanhou a foto novamente.
Um homem. Usando algum tipo de uniforme, mas de cabeça nua. Virava-se para o fotógrafo e sorria, como se houvesse sido apanhado de surpresa, com um rolo de corda para escalar pendurado ao ombro. Tinha os cabelos desarrumados e, bem ao fundo, muito distante, via-se a linha do horizonte marinho. Um homem. Alguém que Olivia desconhecia, mas que, de alguma curiosa maneira, também parecia familiar. Ela franziu o cenho. Uma semelhança? Aquela semelhança era como um lembrete. Sim, mas de quem? De alguém que...?
Oh, mas claro! Após efetuada a identificação, tornava-se obvio. Danus Muirfield. Não suas feições nem os olhos, porém uma semelhança mais sutil. Devia ser o formato da cabeça, a maneira de levantar o queixo. O calor inesperado do sorriso.
Danus.
Seria este homem, portanto, a resposta à pergunta que nem o Sr. Enderby, Noel ou ela própria tinham podido descobrir?
A esta altura profundamente intrigada, ela pegou a carta e desdobrou as páginas frágeis. Era um papel pautado, coberto por uma caligrafia culta, as letras perfeitamente formadas por uma pena de escrever de bico largo.
De algum lugar da Inglaterra.
2O de maio de 1944.
Minha querida Penelope,
Nestas últimas semanas, por umas doze vezes me dispus a escrever para você. E, de cada vez, não fui além das primeiras quatro linhas, quando então era interrompido por algum telefonema, um chamado em voz alta, batidas à porta ou convocações urgentes, de um tipo ou de outro.
Finalmente encontrei um momento, neste obscuro lugar, em que posso ter alguma certeza de uma hora de quietude. Suas cartas chegaram sãs e salvas, tendo sido uma fonte de alegria para mim. Carrego-as comigo como um colegial apaixonado e as releio, vezes incontáveis. Já que não posso estar com você, pelo menos ouço a sua voz...
Ela estava muito cônscia de encontrar-se sozinha. À sua volta, a casa jazia silenciosa e vazia. O quarto de mamma estava silente, a quietude perturbada apenas pelo sussurro das páginas, que após lidas eram postas de lado. O mundo, o presente ficaram esquecidos. O que Olivia agora desvelava era o passado, o passado de mamma, até então insuspeitado e jamais imaginado.
Sempre existe a possibilidade de que Ambrose aja cavalheirescamente e lhe conceda o divórcio... Importa apenas que fiquemos juntos e que eventualmente nos casemos - segundo espero, o mais cedo possível. Um dia, a guerra terminará... Entretanto, viagens de mil quilômetros começam com o primeiro passo e, quando pensamos um pouco, nenhuma expedição é a pior.
Ela deixou a página de lado e passou para a seguinte.
...Por algum motivo, tenho esperanças de sobreviver à guerra, A morte, o último inimigo, ainda me parece muito longe, além da velhice e da enfermidade. Por outro lado, não é possível acreditar que o destino, após ter-nos reunido, não queira que continuemos assim.
Entretanto, ele havia sido morto. Somente a morte poderia ter posto um ponto final em semelhante amor. Ele fora morto e nunca voltara para mamma. Todas as esperanças daquele homem e seus planos para o futuro tinham dado em nada, finalizados para a eternidade por alguma bala ou granada. Havia sido morto e ela, simplesmente, seguira em frente. Retomara para Ambrose, batalhara pelo resto da vida sem remorso ou amargura, sem qualquer traço de autopiedade. E seus filhos jamais tinham sabido, tampouco imaginado. Ninguém ficara sabendo. De algum modo, isto parecia o mais triste de tudo. Você devia ter falado sobre ele, mamma. Falado comigo. Eu compreenderia. Eu desejaria ouvi-la. Para sua surpresa, descobriu que tinha os olhos marejados de lágrimas. Lágrimas que agora deslizavam por suas faces, produzindo uma sensação estranha e não familiar, como se aquilo estivesse acontecendo a outra pessoa, não a ela. Não obstante, chorava por sua mãe. Eu queria que você
estivesse aqui. Agora, queria falar com você. Eu preciso de você...
Talvez fosse bom chorar. Não havia chorado por mamma quando ela morrera, mas chorava agora. Reservadamente, sem ninguém para zombar de sua fraqueza, permitiu que as lágrimas continuassem caindo à vontade. A severa e intimidante Srta. Keeling. Editora-chefe da Venus, parecia nunca ter existido. Era novamente uma colegial, irrompendo pela porta daquele enorme aposento do porão, na casa da Rua Oakley, chamando "Mamma!” e sabendo que, de algum lugar, mamma responderia. E, enquanto ela chorava, a armadura que erigira em torno de si mesma - aquela rígida concha de autocontrole - se quebrava e desintegrava. Sem essa armadura, não conseguiria atravessar os primeiros dias de existência em um mundo onde mamma deixara de viver. Agora, liberada pelo pesar, voltava a ser humana e novamente ela própria.
Após um instante, mais ou menos recomposta, Olivia apanhou a última página da carta e a leu até o fim.
...e desejaria estar aí com você, convivendo com o riso e afazeres domésticos daquele que passei a pensar como meu segundo lar. Foi tudo muito bom, em cada sentido da palavra. E, nesta vida nada que seja bom é realmente perdido. Fica fazendo parte de uma pessoa, torna-se parte de seu caráter. Assim, uma parte sua acompanha-me a todo canto. E uma parte minha é sua, para sempre. O meu amor, minha querida, Richard.
Richard. Ela pronunciou o nome em voz alta. Parte minha é sua, para sempre. Olivia dobrou a carta e tornou a colocá-la entre as páginas de Autumn Journal, juntamente com a fotografia. Fechou o livro e, recostando-se aos travesseiros, ficou espiando para o teto e pensando, agora que sabia tudo. Entretanto, sentia que faltava saber mais, que precisava, acima de tudo, ficar a par de cada detalhe mínimo do que tinha acontecido. Como eles se haviam conhecido; como ele entrara na vida de Penelope; como eles haviam ficado tão inevitável e profundamente apaixonados; como ele tinha sido morto.
Quem poderia contar-lhe? Apenas uma pessoa. Doris Penberth. Doris e mamma tinham passado juntas todo o período da guerra. Sem dúvida, não haveria segredos entre elas. Excitadamente, Olívia fez planos. Em alguma oportunidade... talvez em setembro, quando o movimento no escritório em geral se aquietava tiraria alguns dias de folga, tomaria o carro e partiria para a Cornualha. Primeiro, escreveria a Doris, sugerindo uma visita. Era quase certo que Doris a convidaria a ficar em sua casa. Então, Doris falaria, recordaria Penelope e, pouco a pouco, traria o nome de Richard à conversa. Eventualmente, Olivia ficaria sabendo de tudo. Tudo, no entanto, não se resumiria em conversas. Doris lhe mostraria Porthkerris e todos os lugares que possuíam tanto significado na vida de mamma, lugares que ela, Olivia, jamais conhecera. Doris a levaria para conhecer a casa onde mamma vivera um dia, visitariam a pequena Galeria de Arte que Lawrence Stern ajudara a fundar e, lá, tornaria a ver “Os catadores de conchas” mais uma vez. Olivia pensou nos quatorze esboços, executados por seu avô na virada do século, agora propriedade de Danus. Recordou Noel, no anoitecer do dia anterior, à hora da despedida. Por que ela os teria deixado para esse rapaz.? Será que ela o apreciava? Sentia pena dele? Queria ajudá-lo? Tem que haver algo mais do que isso. É possível. Entretanto, acho que jamais descobriremos. Sua suposição fora errada. Mamma deixara os esboços para Danus por vários motivos. Atazanando-a incessantemente, Noel a impelira para além dos limites da paciência, mas, em Danus ela encontrara uma pessoa que merecia ser ajudada. Enquanto estavam em Porthkerris, Penelope vira crescer e florescer o amor que ele sentia por Antonia, adivinhara que, no decorrer do tempo, Danus provavelmente casaria com a jovem. Os dois eram especiais para ela e estava ansiosa por proporcionar-lhes algum tipo de começo de vida. Entretanto, o motivo mais importante de todos, era que Danus
a fazia recordar Richard. Ela devia ter notado - da primeira vez em que pusera os olhos nele -a extraordinária semelhança física, e então sentira uma imediata e íntima proximidade com o rapaz. Talvez, através de Danus e Antonia, sua mãe sentisse que lhe estava sendo oferecida uma espécie de segunda chance de felicidade. ..uma identificação substitutiva com eles. Fosse o que fosse, os dois jovens tinham tornado imensamente felizes suas últimas semanas de vida
e, por isto, ela procurara agradecer-lhes, à sua maneira geralmente espetacular. Olivia olhou para seu relógio. Quase meio-dia. Dentro em pouco, Danus e Antonia voltariam da igreja. Levantando-se da cama, ela foi fechar e aferrolhar a janela do quarto pela última vez. Ao passar diante do espelho, parou para inspecionar sua imagem e certificar-se de que o rosto não delataria qualquer sinal de lágrimas. Então, apanhando o livro com a carta e a fotografia presas entre as páginas, saiu do quarto e fechou a porta. No térreo, na cozinha deserta, ela pegou o pesado atiçador de ferro e o usou para erguer a tampa do boiler. Um calor de fornalha subiu com ímpeto, fazendo suas faces arderem. Olivia deixou que o segredo de mamma caísse bem no centro das vivas brasas vermelhas e ficou espiando, enquanto era queimado.
Foram apenas alguns segundos e, então, tudo desapareceu para sempre.
SRTA. KEELING
Era meados de junho, o verão estava no apogeu. A cálida e prematura primavera havia mantido a promessa, de maneira que o país inteiro era assolado por uma onda de calor. Olivia deleitava-se com isto. Saboreava o calor e as ruas de Londres, tostadas ao sol; a visão de multidões de turistas, perambulando em trajes leves; os guarda-sóis listrados que eram instalados nas calçadas, diante dos pubs; os namorados que se deitavam abraçados à sombra das árvores do parque. Tudo conspirava para gerar a sensação de viver perpetuamente no estrangeiro e, enquanto outros feneciam, sua própria vitalidade intensificava-se. Ela era novamente a Srta. Keeling, exibindo seu maior dinamismo, com Venus reclamando sua inteira atenção. Olivia era grata à terapia do trabalho absorvente e satisfatório que, no momento, contribuía para deixar a família e tudo que acontecera fora de sua mente. Desde o funeral de Penelope, não tornara a ver Nancy ou Noel, embora houvesse falado com eles por telefone, de quando em quando. Colocado no mercado, Podmore's Thatch fora abocanhado quase imediatamente e por uma soma exorbitante, muito além dos mais arrebatados sonhos de Noel. Concluída a transação, e vendido em leilão o conteúdo da casa, Danus e Antonia haviam partido. Danus comprara o antigo Volvo de mamma e os dois haviam colocado dentro do carro seus poucos pertences, em seguida tomando a direção do West Country,(*) em busca de algum local onde pudessem estabelecer um pequeno horto de sua propriedade. Tinham-se despedido de Olivia por telefone, mas isto fora um mês atrás e, desde então, ela não tivera notícias deles.
Agora, era a manhã de uma terça-feira e ela estava sentada atrás de sua mesa de trabalho. Uma nova e jovem editora de modas se juntara à equipe, e Olivia lia as provas de seu primeiro trabalho. Seu melhor acessório é você. Isso era muito bom. Imediatamente intrigante. Esqueça echarpes, brancos, chapéus. Concentre-se nos olhos, na pele luminosa, no brilho de uma saúde radiosa...
O interfone zumbiu. Sem erguer os olhos, Olivia pressionou o botão.
- Sim?
- Srta. Keeling - disse sua secretária - há uma ligação de fora para a senhorita. Antonia está na linha. Quer falar com ela?
Antonia! Olivia hesitou, procurando assimilar aquilo. Antonia se fora de sua vida, confinada em algum lugar no West Country. Por que telefonaria agora, inesperadamente? Sobre que pretenderia falar? Olivia ressentiu-se da interrupção. Afinal, que hora para telefonar! Suspirando, tirou os óculos e recostou-se na cadeira.
- Está bem, complete a ligação.
Enquanto falava, estendeu a mão para o telefone.
- Olivia? –perguntou a voz juvenil, familiar.
- Onde está você?
- Aqui, em Londres. Sei que você é terrivelmente ocupada Olivia, mas poderia dar um jeito de almoçarmos juntas?
- Hoje? - Olivia não pôde disfarçar o desalento em sua voz. Aquele era precisamente um dia congestionado de compromissos e tinha planejado uma hora de almoço no trabalho, com um sanduíche em sua mesa. - É um tanto em cima da hora, não?
- Eu sei e sinto muito, mas é realmente importante! Por favor, diga que virá, caso lhe seja possível!
A voz de Antonia retinia de urgência. O que, afinal, tinha acontecido agora? Relutante, Olivia verificou sua agenda para o dia.
(*) Oeste do país. Parte da Inglaterra que fica a oeste de urna linha partindo da ilha de Wight e chegando à foz do rio Severo. (N. da T.)
Um encontro com o diretor às onze e meia e, às duas, uma reunião com o gerente de publicidade. Fez alguns cálculos rápidos. O diretor provavelmente não reclamaria mais de uma hora de seu tempo, mas isso não permitiria...
- Oh, Olivia, por favor!
Ela acabou cedendo, ainda com relutância.
- Está bem, mas terá que ser um almoço razoavelmente rápido. Preciso estar de volta ao escritório às duas da tarde.
- Você é um amor!
- Onde nos encontraremos?
- A escolha é sua.
- Pois bem, no L’Escargot.
- Reservarei uma mesa.
- Não, eu cuido disso. - Olivia não tinha a menor intenção de se sentar a alguma mesa indistinta, perto da porta da cozinha.
- Pedirei a minha secretária que faça a reserva. Uma da tarde e, por favor, não se atrase!
- Não me atrasarei...
- Ouça, Antonia, onde está Danus?
Antonia entretanto, já havia desligado.
O táxi abriu sua lenta caminhada sacolejando através do trânsito do meio-dia e das congestionadas ruas em pleno verão. Olívia seguia naquele táxi, vagamente apreensiva. No telefone, a voz de Antonia traía certa agitação, era difícil prever que acolhida teria, chegando ao restaurante. Imaginou o encontro de ambas. Viu-se entrando e Antonia à sua espera. Ela estaria com os costumeiros jeans surrados e a blusa de algodão, parecendo inteiramente deslocada naquele luxuoso ponto de reunião de homens de negócios de alta representação. É realmente importante. O que poderia ser tão importante para reclamar-lhe uma hora de seu precioso dia, sem querer aceitar uma negativa como resposta? Era difícil acreditar que alguma coisa talvez tivesse dado errado para Antonia e Danus, mas sempre era melhor estar preparada para o pior. Teriam surgido eventualidades. Eles não haviam conseguido descobrir um lugar adequado para sua plantação de repolhos e, agora, Antonia queria discutir um plano alternativo. Os dois tinham encontrado o terreno, porém não gostavam da casa vendida com ele e queriam que Olivia viajasse a Devon, visse o imóvel e desse sua opinião. Antonia estava grávida. Ou então, talvez houvessem percebido que pouco tinham em comum e, sem um futuro a partilhar, tinham decidido separar-se. Desanimada com tal perspectiva. Olivia rezou para que não fosse este o caso.
O táxi parou à frente do restaurante. Ela desceu, pagou a corrida, cruzou a calçada e depois a entrada. O interior, como sempre, estava apinhado e quente, fervilhando de atividade. Também como sempre, exalava cheiros de deixar água na boca, de café fresco e charutos caros. Os prósperos homens de negócios estavam lá, contornando o bar. Lá igualmente, ocupando uma pequena mesa, estava Antonia. Entretanto, não se encontrava sozinha, pois tinha Danus ao lado. Olivia não os reconheceu, porque não usavam seus trajes costumeiros, casuais e confortáveis. Para aquela ocasião, tinham caprichado na indumentária. O brilhante cabelo de Antonia fora recolhido atrás da cabeça, ela usava os brincos da Tia Ethel e um delicioso vestido azul de Wedgwood, salpicado de enormes flores brancas. Quanto a Danus. estava elegante e arrumado como um cavalo de corrida, em um terno cinza-escuro de tão bom caimento, que encheria de inveja o coração de Noel, os dois tinham uma aparência sensacional: jovens, ricos e felizes. Eram belos.
Eles viram Olivia imediatamente, levantaram-se e foram ao seu encontro.
- Oh, Olivia...
Apalermada. Olivia procurou compor-se. Beijou Antonia e se virou para Danus.
- Isto é algo inesperado. Não sei por que, mas pensei que você não estaria aqui...
Antonia riu.
- Justamente o que eu queria que pensasse. Tinha que ser uma surpresa!
- Uma surpresa?
- Este é o nosso almoço de casamento! Por isso era tão importante que você viesse. Nós nos casamos esta manhã!
Danus oferecia o almoço. Pedira champanha, e a garrafa descansava em um balde de gelo, ao lado da mesa. Afoita pela comemoração, por aquela vez Olivia infringiu sua norma de não beber à hora do almoço e foi ela quem ergueu a taça. brindando à felicidade do casal.
Conversaram. Muito havia para ser dito e ouvido.
- Quando foi que chegaram a Londres?
- Ontem de manhã - disse Antonia. - Passamos a noite no Mayfair, que é quase tão pomposo como The Sands. Quando voltarmos lá hoje à tarde, será para entrar no carro, viajar para Edimburgo e passarmos uns dois dias com os pais de Danus.
- E quanto aos esboços? - perguntou Olivia a Danus.
- Passamos a tarde de ontem com o Sr. Brookner, da Boothby's. De fato, foi a primeira vez que os vimos.
- Pretende vendê-los?
- Sim. Serão despachados no mês que vem para Nova York e leiloados lá, em começos de agosto. Irão treze esboços, pelo menos. Vamos ficar com um. O jardim do terrazzo. Achamos que devíamos ficar com um para nós.
- Sem dúvida. E sobre o horto? Tiveram alguma sorte?
Eles lhe contaram. Após muita procura, tinham encontrado em Devon o que buscavam. Três acres de terra, outrora a horta murada de uma grande casa antiga. A propriedade incluía um pequeno jardim e estufas envidraçadas, de bom tamanho e em razoável estado de conservação. Danus fizera uma oferta, que tinha sido aceita.
- Oh, mas isto é muito bom! E onde ficarão morando?
- Oh, também havia um chalé, não muito grande e bastante arruinado. Entretanto, devido ao seu mau estado, bem, isso baixou o preço e pudemos comprá-lo.
- O que estão usando como dinheiro, enquanto os esboços não forem vendidos?
- Conseguimos no banco um empréstimo para preencher a lacuna. Aliás, para poupar dinheiro, nós mesmos tentaremos restaurar o chalé, até onde nos for possível.
- E, nesse meio tempo, onde ficarão morando?
- Alugamos um trailer! - exclamou Antonia, mal contendo a excitação. - E Danus comprou um arado, vamos plantar uma boa lavoura de batatas, apenas para limpar o solo. Depois disso é que poderemos realmente começar. Eu vou criar galinhas e patos, vender os ovos...
- A que distância ficam da civilização?
- A apenas cinco quilômetros do mercado de uma cidadezinha... que é onde venderemos nossos produtos. Também teremos plantas e flores. A estufa ficará apinhada de flores prematuras. E também plantas em vasos, e... Oh, Olivia, mal posso esperar para mostrar tudo a você! Quando a casa ficar pronta, você irá ficar alguns dias conosco?
Olivia considerou o convite. Já havia bebido três taças do delicioso champanha e não tinha intenção de assumir compromissos precipitados, que mais tarde talvez lamentasse.
- Seu chalé terá aquecimento?
- Vamos instalar aquecimento central.
- E terá encanamento geral? Não terei que descer até a horta, sempre que tiver que ir ao banheiro?
- Tem a nossa palavra de que não precisará fazer isso!
- E haverá água quentíssima para o banho, a qualquer hora do dia?
- Fervendo!
- E vocês terão um quarto de hóspedes? Que eu não tenha de dividir com nenhum ser humano, gato, cachorro ou galinha?
- Terá um quarto só para você!
- E o quarto terá um guarda-roupa cheio, não com os bolorentos vestidos de noite de outra pessoa e casacos de pele comidos de traças, mas com vinte e quatro cabides, novos em folha?
- Todos eles acolchoados!
- Sendo assim - Olivia recostou-se na cadeira. - É melhor começarem a dar duro. Porque eu irei!
Mais tarde, na calçada, ficaram em pé ao calor do sol, esperando o táxi que conduziria Olivia de volta ao escritório.
- Foi muito bom estarmos juntos. Adeus, Antonia!
As duas abraçaram-se apertadamente e beijaram-se com grande afeição.
- Oh, Olivia... obrigada por tudo, mas, principalmente, obrigada por ter vindo hoje.
- Eu é que deveria agradecer por me terem convidado. Há anos não tenho uma surpresa tão agradável, nem tão delicioso almoço regado a bebida! Depois de tanto champanha, duvido muito que consiga agir com alguma sensatez, pelo resto da tarde...
O táxi parou junto deles. Olivia se virou para Danus.
- Adeus, meu caro rapaz. - Ele a beijou nas duas faces. Cuide bem de Antonia. E um mundo de sorte para os dois!
Danus abriu a porta do táxi para ela, Olivia entrou e ele bateu a porta.
- Vênus! - ordenou ela rapidamente ao motorista.
Quando o táxi se moveu, Olivia acenou furiosamente pela janela traseira. Antonia e Danus acenaram de volta. Antonia também jogou beijos e, então, os dois se viraram, começando a caminhar na direção oposta, distanciando-se de Olivia, de mãos dadas.
Ela se recostou no banco, com um suspiro de satisfação. Tudo terminara bem para Antonia e Danus. E mamma estivera certa em seu julgamento, porque eles eram o tipo de jovens que mereciam encorajamento e, caso necessário, também uma ajuda. Penelope fizera isso. Agora, o resto era por conta deles, com seu chalé arruinado, seu arado, galinhas e planos para o futuro, aliados ao seu maravilhoso, inabalável otimismo.
E quanto aos filhos de Penelope? Como conduziriam sua boa sorte e a parte da herança que lhes coubera? Nancy, decidiu ela, sem dúvida gastaria algo consigo mesma, de algum modo. Talvez comprasse um Range Rover, com o qual se tomaria a senhora absoluta entre as amigas íntimas, durante as corridas locais de point-to-point, porém não iria além disso. O restante seria investido integralmente no símbolo de status que era a mais dispendiosa educação em estabelecimentos particulares, para Melanie e Rupert. Só que, no final, ambos emergiriam mal-agradecidos e provavelmente sem qualquer aproveitamento.
Olivia pensou em Noel. Continuava trabalhando no mesmo emprego, mas assim que pudesse pôr as mãos em sua herança, ela podia imaginar, com bastante perspicácia, que seu irmão daria um chute na publicidade e maquinaria algum brilhante esquema no qual trabalhasse por conta própria. Corretagem de ações ou talvez algum altíssimo negócio imobiliário. O mais provável é que malbaratasse seu capital, para terminar casando com alguma rica, bem relacionada e horrorosa jovem, que o idolatraria e adoraria, embora ele lhe fosse consistentemente infiel. Olivia percebeu-se sorrindo. Noel era um rapaz impossível, mas afinal era seu irmão e, de todo coração, ela lhe desejava o melhor.
Restaria apenas ela, porém aqui não havia pontos de interrogação. Olivia saberia investir prudentemente o dinheiro de mamma, tendo em mente a velhice e a aposentadoria. Imaginou-se dali a vinte anos - sozinha e solteira, ainda morando na casinha de Ranfurly Road. Contudo, independente, até mesmo dispondo de mais do que o suficiente para viver. Capaz de permitir a si mesma os pequenos prazeres e luxos que sempre apreciara. Ir ao teatro e a concertos, receber amigos, passar férias no exterior. Como companhia, talvez tivesse um pequeno cão. Também iria a Devon, em visita a Danus e Antonia Muirfield. E quando eles viessem a Londres, trazendo consigo a penca de filhos que certamente teriam, iriam vê-la e ela levaria aquelas crianças a seus museus e galerias prediletos, ao balé e à pantomima no Natal. Seria como uma tia amável. Não, não uma tia, mas uma avó amável. Seria como ter netos. Então, ocorreu-lhe que esses netos seriam também os netos de Cosmo. O que era estranho. Algo como ver um emaranhado de fios soltos se desenredarem para compor um cordão entrançado que se estendia para a frente, em direção ao futuro.
O táxi parou. Espiando para fora, ela viu com certa surpresa que já tinham chegado, estavam diante do imponente prédio que abrigava os escritórios de Venus. A pedra cremosa e os vidros laminados refletindo a luz do sol. com os pavimentos mais altos verrumando o céu muito azul.
Ela desceu e pagou a corrida.
- Fique com o troco.
- Oh! Muito obrigado, meu bem!
Ela subiu os amplos degraus brancos que levavam à sólida entrada e, ao fazê-lo, o porteiro uniformizado adiantou-se, a fim de manter a porta aberta.
- Está um lindo dia. Srta. Keeling!
Olivia fez uma pausa e ofereceu-lhe um sorriso, cuja radiosidade ele jamais vira antes.
- Sim - disse ela. - Está um dia particularmente lindo!
Olivia cruzou a porta. Para o seu reino, o seu mundo.
Rosamunde Pilcher
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