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Ia ser um dia muito quente.
O Sol nasceu às 6.08, e à hora do pequeno-almoço a cidade sufocava. Os veraneantes tomavam o seu petit déjeuner (1) na varanda, à sombra; os motoristas baixavam a capotam dos seus convertíveis; os empregados de café abriram os chapéus das esplanadas. Os madrugadores já se encontravam na praia de seixos; esbeltas raparigas bronzeadas tiravam a peça de cima dos seus biquinis e revelavam pequenos seios bronzeados, e a gente local olhava com indisfarçada cobiça, ao passo que os visitantes fingiam que o banho de sol topless não era novidade para eles. Ao longo do passeio público - uma auto-estrada de seis faixas - o tráfego passava a rugir, poluindo o quente ar mediterrânico.
Ia estar um dia muito quente para os veraneantes, para os motoristas e para os empregados de café; e ia estar especialmente quente para Pierre Bigou. O termómetro passaria os 35°C, mas para Monsieur Bigou ia ficar muito mais quente.
Bigou era o controlador-chefe da principal filial do banco da Société Générale na Avenida Jean Médecin, 8, em Nice, França. Para ele, o dia 19 de Julho de 1976 começou como uma vulgar manhã de segunda-feira. O átrio principal do banco, de tecto elevado, estava fresco e em silêncio quando os caixas, em mangas de camisa, se preparavam para receber os seus primeiros clientes logo que as portas se abrissem às 8.30.
(1) Em francês no texto: pequeno-almoço. (N. do T.)
Às 8.28 comparou o relógio de pulso com o grande relógio de parede no átrio principal, depois entrou no seu gabinete, deixando a porta aberta, e começou a ler o jornal da manhã. Há muitos anos que estava no banco, atingira uma posição importante, e ninguém ia despedi-lo por ler o jornal durante as horas de serviço.
Van Impe ganhara a Volta a França em bicicleta, a 63ª edição do Tour. O laboratório espacial americano Viking I estava a caminho de Marte. A previsão meteorológica falava em calor e céu limpo. Estupendo.
Era o dia de Santo Arsénio, mas não havia qualquer ligação entre Arsénio - um santo católico perfeitamente respeitável - e Arsène Lupin, o Robin dos Bosques francês, o patrono dos ladrões distintos.
Exactamente às 8.30 dois funcionários do banco passaram pela porta de Bigou e desceram as escadas para a caixa-forte. A tarefa de abrir a porta da caixa-forte do banco todas as manhãs era feita por turnos entre os empregados menores, e esta semana era a vez deles. Cada um levava uma grande chave marcada com as letras F. B. - Fichet-Bauche, o maior fabricante de fechaduras e cofres de França.
O par de portas de aço no patamar das escadas deslizou suavemente para dentro das espessas paredes de concreto. Até agora tudo bem.
Lá dentro havia outra porta de aço, e esta era bastante especial. Com cinquenta anos, 90cm de espessura e pesando 20t, acreditava-se que era imune até a um laser. Os directores do banco haviam tido discussões com a sua companhia de seguros, a Lloyds of London, sobre a instalação de um moderno sistema de alarme, e as duas partes tinham-concordado que a poderosa porta era tão impenetrável que o moderno conjunto de câmaras escondidas e alarmes de vibração e sensores fotoeléctricos seriam supérfluos. Um cliente que alugara um cofre de depósito na caixa-forte quexara-se de falta de alarmes, mas o homem era um polícia reformado que lia demasiados romances policiais, e ninguém lhe deu ouvidos.
Às 8.34 os dois homens meteram as suas chaves simultaneamente. O mecanismo, feito à moda antiga, consistia em dois conjuntos de varetas entrecruzadas. Uma vez as chaves introduzidas, os homens libertaram as varetas, fazendo girar três grandes rodas colocadas na porta: cada roda rodou um quarto de volta à direita para as varetas horizontais, depois um quarto de volta à esquerda para as varetas verticais. À medida que procediam às operações necessárias, os homens apercebiam-se pelos débeis sons no interior que o mecanismo abria a porta.
Às 8.35 a porta estava destrancada, e um dos homens deu-lhe o suave empurrão final que a abriria de par em par.
Nada aconteceu.
A porta de 20t recusou-se a dar de si.
Foi então que o dia começou a correr mal para Pierre Bigou.
Os dois homens entreolharam-se, encolheram os ombros e recomeçaram.
As duas chaves metidas.
Roda nº 1: um quarto de volta para a esquerda, um quarto de volta para a direita.
Roda nº 2: o mesmo.
Roda nº 3: o mesmo.
Um dos homens sussurrou: “Abre-te, Sésamo.”
Um suave empurrão. Nada.
- Que se passa? - ouviu-se uma voz.
Os homens voltaram-se e viram um cliente parado nas escadas a observá-los.
- Não é nada - replicou um deles. - A porta está um pouco perra.
- Se não conseguem entrar, pelo menos podemos ter a certeza que não há possibilidade de assalto.
Os dois homens sorriram ao de leve e repetiram as manobras pela terceira vez. Nesta altura já havia uma pequena multidão nas escadas. As observações sarcásticas começaram a irritar os dois funcionários bancários, mas suportaram estoicamente os gracejos, pois o Société Générale é um banco de tradições e o cliente tem sempre razão.
Às 8.50 admitiram a derrota. A porta estava encravada. Pediram desculpa aos clientes que esperavam e subiram as escadas para informar os seus superiores.
A temperatura estava a 36°C, e subia
O directeur(1) gerente do banco veio cá abaixo pessoalmente para pedir desculpa aos clientes. Jacques Guenet era uma figura que inspirava confiança. Com 60 anos, bem constituído, muito conhecido como vice-presidente do Nice Rugby Club, possuía o que os Franceses chamam nerfs solides' - nervos de aço.
Sorriu com pesar e falou aos clientes num tom calmo, sem emoção. Era um inconveniente terrível, concordou, mas uma porta encravada não era o fim do mundo, pois não? Os especialistas estariam ali dentro de minutos para tratar da porta, mas não podia dizer quanto tempo levaria o trabalho.
Enquanto os levava a subir as escadas, foi falando:
- Posso sugerir que voltem cá às duas da tarde? Tenho a certeza de que tudo estará pronto nessa altura. É apenas uma pequena dificuldade... sem dúvida foi o calor que provocou isto ...
Quando voltou para a porta, Pierre Bigou, o seu delegado, observava os dois funcionários a tentar a fechadura uma última vez. Nem Guenet nem Bigou estavam demasiadamente
(1) Em francês no original. (N. do T.)
preocupados: a fechadura encravara uma vez durante os seus cinquenta anos de vida, e um serralheiro desencravara-a com uma gota de óleo.
Os funcionários repetiram a operação inúmeras vezes, com o mesmo resultado.
Às 9 horas Pierre Bigou voltou ao seu gabinete, pegou no telefone e marcou o 809761, o telefone do escritório local da Fichet-Bauche. O número estava impedido. Passou os olhos pelo jornal um momento. Dois turistas alemães tinham sido mortos a tiro, e um proxeneta recebera duzentos e quarenta mil francos por uma prostituta. Bigou, que fora alcunhado de S. Pedro por um jovem empregado pouco respeitador, sentiu um arrepio por dentro.
Nice dos anos 70 era uma desagradável reminiscência da Chicago dos anos 30. O major Jacques Médecin dera à cidade uma limpeza cosmética, mas fora incapaz de impedir que ela seguisse os passos de Marselha como mercado de narcóticos internacional. O milieu -o mundo do crime- encontrava-se dividido em duas facções que se guerreavam, os italianos e os corsos, e num período de dois anos foram assassinados doze proprietários de night-clubs. No Passeio Público dos Ingleses podia-se comprar qualquer coisa desde um par de doses de cocaína a uma prostituta. Dizia-se que era a cidade mais corrupta de França.
Bigou arrepiou-se outra vez - tanto crime! Era possível que a porta encravada da caixa-forte... Não, haveria sinais; ninguém podia ter aberto aquela porta sem deixar sinais.
Ninguém podia ter aberto aquela porta, ponto final.
Até as companhias de seguros tinham pensado nisso, e essas nunca eram lentas a recomendar melhor segurança.
Bigou pegou no telefone e voltou a marcar. Desta vez obteve resposta.
- Está... É do escritório Fichet-Bauche? Daqui fala do banco da Société Générale. Podem mandar alguém com urgência?... Não, a fechadura parece funcionar, mas a porta está encravada... Ficamos à espera.
Às 9.15 um Renault 4L preto e amarelo parou na Avenida Jean Médecin. Nas portas liam-se as palavras. Fichet-Bauche, Bigou deu um suspiro de alívio. Em breve acabariam os seus problemas.
Bigou e Guenet desceram as escadas com os dois serralheiros da Fichet-Bauche. Os especialistas pareciam confiantes e seguros de si quando se aproximaram da porta da caixa-forte e a examinaram. Não vendo sinais superficiais, pediram silêncio total e meteram as duas chaves. Com movimentos extremamente cautelosos, passaram por todas as fases do desferrolhar, cuidadosamente atentos ao mecanismo, procurando por todo o lado, como um par de aves à espera de uma minhoca.
Finalmente, um deles voltou-se para Guenet.
- A fechadura funciona perfeitamente. Posso assegurar-lhe que o mecanismo não tem problemas... as tranquetas movem-se absolutamente à vontade.
Seguiu-se um momento de silêncio.
- Então? - perguntou Guenet. O serralheiro encolheu os ombros.
- Então por que é que a porta não abre? - quis saber Guenet.
- A única coisa que penso é que qualquer coisa está a bloqueá-la do lado de dentro.
O banqueiro fitou o serralheiro com descrença. Era impensável .
- Não, não posso acreditar nisso - resmungou. Voltou-se e viu as escadas cheias de empregados curiosos.
- Voltem para o trabalho - disse, irritado. - Não quero ver ninguém nas escadas.
Os empregados desapareceram rapidamente. Os quatro homens fitaram mudos a porta. Não havia simplesmente maneira de libertá-la: fora projectada especificamente para impedir essa possibilidade.
Só restava aos serralheiros declarar o óbvio.
- Há apenas uma resposta. Não podemos passar pela porta, portanto teremos de ir pelo outro lado. Temos de abrir um buraco na parede.
Olharam para Guenet na expectativa. Ele pensava no custo, no barulho, nos inconvenientes, na perturbação das actividades.
- Não há alternativa? - perguntou.
- Não há alternativa. Guenet suspirou.
- Vamos pela parede.
Bigou subiu ao gabinete e voltou com uma série de plantas da caixa-forte. Os homens da Fichet-Bauche estudaram as folhas por uns momentos; depois um deles fez uma cruz à direita da porta, onde a parede era mais fina.
Às 9.30 ligaram o berbequim eléctrico.
Foi uma longa tarefa.
Primeiro fizeram sete ou oito pequenos furos distanciados de uns poucos centímetros. Depois serviram-se de martelo e escopro para estilhaçar o cimento entre os furos. A área na base da escada rapidamente cheia de pó e o chão pejado de bocados de cimento. Os dois serralheiros estavam sujos, suados, exaustos e fartos.
Era o suficiente para desencorajar o assaltante de bancos mais determinado.
Às 12.00 pousaram as ferramentas. O buraco tinha agora 20cm de largura. A fase seguinte era alargá-lo o suficiente para poder passar por ele um homem, mas primeiro dariam uma vista de olhos.
Guenet descera para ver como iam as coisas.
O serralheiro encostou a cara ao buraco e espiou lá para dentro.
- Putain de merde - disse sem alterar a voz.
A exclamação era uma obscenidade francesa particularmente indigna.
Afastou-se do buraco da parede e olhou para Guenet.
- Foram assaltados.
A temperatura era de 36°C, e subia. Jacques Guenet, o antigo jogador de râguebi, com físico impressionante e modos seguros, olhava pelo buraco da parede, os pés trémulos.
- Não é verdade - disse estupidamente. E voltou a repetir.
A caixa-forte era um caos. O pavimento era uma carpete de cheques, títulos de crédito e certificados de acções. Artigos de joalharia estavam espalhados como que deitados fora; um bracelete, um colar, uma taça embutida. Um par de cilindros de gás jazia entre os destroços.
Os dois serralheiros fitaram o estupidificado gerente do banco, que parecia incapaz de pensar correctamente. Um deles tocou-lhe no ombro e falou-lhe suavemente, para o tirar do seu estado de choque.
- Coragem. Tem de chamar a polícia. Guenet voltou-se.
- Ninguém deve saber disto! - disse em tom feroz. No seu pânico cego, agarrava-se à fraca esperança de que possivelmente, apenas possivelmente, os intrusos tivessem simplesmente posto a caixa-forte numa barafunda sem realmente roubarem nada.
Mas os outros tinham a certeza.
- Tem de chamar a polícia - repetiu o serralheiro.
Guenet, mudo, assentiu com um gesto de cabeça quando a razão começou a penetrá-lo. Subiu as escadas e dirigiu-se para o seu gabinete sem falar a ninguém, ignorando as pessoas que lhe perguntavam o que acontecera. Sentou-se pesadamente, pegou no telefone e fez a chamada para a esquadra da polícia, que ficava a uns 150m, na Avenida Foch.
Foi atendido pelo comissário Albertin. Guenet falou.
- Daqui é da Société Générale. Fomos assaltados.
- Não toquem em nada - disse Albertin. - Vamos já para aí.
Jacques Albertin parecia mais um jovem executivo do que um detective. De 35 anos, era alto e magro, e usava óculos. Vestia com elegância e tinha o cabelo cortado curto, com risca à esquerda.
Na altura em que chegou, acompanhado de dois dectetives mais novos, os homens da Fichet-Bauche haviam alargado o buraco até aos 45 cm.
Guenet explicou que tinham nessa manhã encontrado encravada a porta da caixa-forte, e que os serralheiros não haviam podido abri-la, por isso fizeram o buraco na parede.
Albertin espiou por um momento pelo buraco, depois voltou-se para o seu assistente.
- Lecocq, és o mais magro. Vê se passas pelo buraco.
O inspector Lecocq meteu a cabeça com cautela no buraco. Enfiou os ombros e torceu-se. Meio dentro, parou: as calças ficaram-lhe presas no cimento áspero. Hesitou, depois puxou. Ouviu-se rasgar.
Com um suspiro de resignação, desapertou as calças e contorceu-se, deixando-as para trás.
Ocorreu-lhe que os ladrões talvez ainda se encontrassem na caixa-forte, por isso tirou o revólver do coldre de ombro.
A primeira coisa que notou foi o cheiro: uma nauseabunda mistura de fumo, borracha queimada e excrementos humanos.
Então viu as ferramentas: berbequins, martelos, maçaricos, cilindros de gás, luvas e máscaras. No pavimento havia anéis, peças de prata, um cheque não invalidado de cinquenta mil francos, um grosso maço de notas de quinhentos francos, cartas pessoais, certificados de acções e contratos.
Os “detritos” espalhados no pavimento de linóleo meio queimado valiam perto de 1,75 milhões de dólares.
E isso era o que os ladrões tinham deixado ficar.
Lecocq percorreu a caixa-forte de revólver em punho.
Contornou um cofre tombado, passou por cima de uma mesa de aço e chegou à extremidade da câmara subterrânea.
Soltou um suspiro de alívio. Não havia mais ninguém.
Um dos cofres que ficava junto à parede fora empurrado para diante. Lecocq olhou por trás dele. Viu um montículo de cascalho e um buraco com perto de 1 m de largura na parede, e a seguir um túnel, que parecia nunca mais acabar.
Agora sabia como haviam entrado.
Afastou-se, e algo chamou a atenção. Olhou mais de perto: era uma taça de prata belamente cinzelada cheia de excrementos. Sentiu vontade de vomitar.
O momento passou e ele voltou para a entrada da caixa-forte. Juntou o rosto ao buraco. Lá fora, o comissário Albertin e Monsieur Guenet cresciam de impaciência.
- Que trapalhada - disse Lecocq. - Entraram por um túnel do lado da Rua Gustave Deloye.
- Os esgotos - disse Albertin. - Devem ter usado os esgotos. - Pensou um momento. - Fica aí - disse para Lecocq. - Vou mandar dois homens para tentarem entrar pela rua.
Na esquina da Rua de l'Hotel des Postes com a Rua Gustave Deloye, do outro lado, em frente do parque de bicicletas usado empregados do banco, dois polícias retiraram a tampa pesada de um poço de inspecção e desceram para o esgoto.
Na base da escada de aço que dava acesso entraram na água e começaram a caminhar para norte, debaixo da Rua Gustave Deloye. A 3m do poço de inspecção as suas lanternas iluminaram a entrada para o túnel dos assaltantes.
Alguém ali fizera obra de mestre. O tecto do túnel estava escorado com pilares de madeira reforçados a aço. As paredes tinham sido cimentadas a preceito. O chão encontrava-se coberto por uma passadeira de corda.
Curvados, os dois polícias entraram no túnel. Notaram um cabo eléctrico serpenteando ao longo da passadeira, e um deles tropeçou num maçarico de oxi-acetileno ainda ligado ao cilindro de gás.
8 m mais à frente saíram do túnel para dentro da caixa-forte do banco, onde se encontraram com o inspector Le-cocq, que os esperava com aspecto deveras ridículo - em camisa, cuecas, meias e sapatos, de pistola em punho.
O banco deixou de pertencer a Jacques Guenet. Nessa tarde a polícia tomou conta dele.
A Albertin com os seus homens, que havia respondido à chamada telefónica, juntaram-se o comissário Tholance e a Brigada do Crime, mais o comissário principal Duma e o pessoal da Sureté Urbaine. A dirigir a operação estava o comissário principal Claude Besson, homem de ar insignificante nos seus 40 e muitos anos e que era famoso por um brilhante inquérito de evasão de impostos, de que resultara a prisão de nove advogados desonestos.
O seu primeiro passo foi mandar fotografar tudo. O fotógrafo da polícia, inspector Jacob, começou a bater fotos com uma Rolleiflex. O pesado Jacob de bigode tinha uma notável semelhança com o comissário Bourrel, da televisão francesa, e estavam sempre a arreliá-lo por causa disso.
A seguir recolheram-se as provas.
Havia uma tonelada delas.
Na caixa-forte e nos esgotos a polícia encontrou o seguinte:
Quarenta cilindros de oxigénio. Três maçaricos de oxi-acetileno. Dez alicates.
Dois barcos de borracha.
Um exaustor de fumos industrial com vários metros de mangueira flexível.
Vinte pés-de-cabra.
Fatos-macaco impermeáveis, do tipo usado pelos
trabalhadores de esgotos. Botas de borracha, luvas e impermeáveis. Garrafas de vinho Margnat Vittage. Garrafas de água mineral Volvic. Óculos de soldador. Quantidades de comida. Um fogão de gás portátil do género dos usados em
campismo.
Uma botija de gás para o fogão de gás. Várias caixas de charutos.
Um grupo de polícias fez o rol dos artigos enquanto outro punha tudo em sacos de plástico. Era uma tarefa revoltante, pois grande número de homens ocupara a caixa-forte com todo um fim-de-semana sem comodidades sanitárias, e com os hábitos desagradáveis dos ladrões de toda a parte. Os polícias de limpeza chamavam-se a si próprios o Destacamento da Merda. Faziam frequentes pausas para ir respirar ar fresco.
Encheram-se trinta e cinco grandes sacos de plástico com as ferramentas dos assaltantes mais o material do banco, papéis e joalharia, que haviam deixado espalhado por toda a caixa-forte.
As caixas de depósito em cofre revelaram alguns segredos curiosos.
Havia uma colecção de fotografias pornográficas, um tanto amadoras, mostrando homens e mulheres nus a fazer amor aos pares e em grupo. As pessoas das fotografias incluíam vários membros bem conhecidos da alta sociedade de Nice. Um dos assaltantes colara umas poucas de fotografias à parede com fita adesiva.
Ainda mais curioso foi um saco contendo sobras de comida: latas de sopa, dois quilos de açúcar, uns biscoitos e uma barra de chocolate. Por que razão alguém havia de guardar essas coisas numa caixa de cofre? Um empregado do banco explicou:
- Há muita gente reformada em Nice, e eles escondem os seus segredos nas caixas de depósito em cofre. Alguns vêm aqui à tarde comerem o bombom proibido ou fumar um cigarro. Latas de sopa? Estas pessoas lembram-se da guerra, e da falta de alimentos. Vem aqui um homem escrever as suas memórias. Levanta os escritos de manhã, trabalha neles todo o dia, e à tarde põe-nos de novo no cofre. Se as pessoas querem usar as nossas facilidades para esses fins excêntricos, quem somos nós para lhes dizer que não?
Um jovem detective chamou respeitosamente o comissário principal Besson.
- Olhe, senhor... deixaram uma mensagem.
Sete palavras sarrabiscadas na parede em letras grandes diziam: Sans armes, sans haine et sans violence. Sem armas, sem ódio e sem violência. A seguir à mensagem via-se uma cruz céltica, o símbolo de uma organização proscrita extremista chamada Ocidente.
Besson tomou uma nota e Jacob tirou uma fotografia.
O mistério da porta encravada foi rapidamente solucionado: os assaltantes haviam-na soldado do lado de dentro, presumivelmente para se precaverem contra a fraca possibilidade de alguém poder entrar na caixa-forte legitimamente no fim-de-semana.
Faziam-se mais descobertas nos esgotos. Um túnel sem saída sob a Rua de 1'Hotel des Postes fora usado como depósito para a terra e cascalho escavados. O cabo eléctrico branco, suspenso de ganchos no tecto de esgoto, corria ao longo de 300 m, passava por uma “sala-sifão” (usada pelo município da cidade para manter a queda da chuva) e entrava num parque de automóveis subterrâneo, por debaixo da Praça Massena, onde estava ligado a uma vulgar tomada de luz eléctrica. A energia para os berbequins eléctricos e outras ferramentas dos assaltantes fora fornecida de graça pela cidade.
Outros polícias seguiram a pista das coisas abandonadas - botas de borracha, maçaricos, ferros de soldar e variadas ferramentas para tratar dos túneis ao longo dos esgotos debaixo da Rua Gustave Deloye, Rua St. Michel, à esquerda para a Rua Gioffredo e para a direita de novo por debaixo da Rua Chauvain até à junção com a Rua Félix Faure. Por debaixo da Rua Félix Faure encontraram não um dreno vulgar, mas uma larga estrada subterrânea.
Nice tem um grande rio, o Paillon, que quase fica seco no Verão, mas que no Inverno corre por quatro largos túneis subterrâneos por debaixo da cidade até ao mar. Os túneis são flanqueados por duas estradas subterrâneas usadas para inspecção dos esgotos, As estradas têm a largura suficiente para passarem dois carros a par. O grupo que assaltou o Société Générale alcançara os esgotos por uma destas estradas.
Um polícia percorreu a estrada para o norte durante perto de 2 km até ao sítio onde ela surge à superfície, por detrás do salão de exibições. Aí, na areia do leito do rio seco, encontrou as marcas de pneus de um Land-Rover.
O quadro tornava-se rapidamente mais claro.
De novo na caixa-forte, Jacques Guenet, Pierre Bigou e o comissário principal Claude Besson entregavam-se a uma avaliação preliminar do montante do roubo dos assaltantes.
A caixa-forte era constituída por três salas. Na maior, a sala de depósitos em cofre, tinham sido arrombadas trezentas e dezassete das quatro mil caixas. O tesouro do banco, uma sala adjacente a que se tinha acesso por outra porta de aço, fora também arrombado, e tinham sido levadas todas as reservas de barras de ouro, juntamente com o dinheiro. A terceira sala, a mais pequena, era o cofre nocturno, onde os estabelecimentos locais podiam fazer os seus depósitos depois de o banco fechar. (O dinheiro, guardado em recipientes especiais, era metido por uma fenda na parede ao nível da rua e caía através de um tubo na sala.) Daqui os assaltantes levaram os depósitos de fim-de-semana do maior centro comercial da cidade e do seu supermercado.
Era uma suposição, mas calcularam cerca de sessenta
milhões de francos.
Quase doze milhões e meio de dólares.
Era o maior assalto bancário de todos os tempos.
Claude Besson, o detective de ar insignificante com um faro especial para a fraude financeira, não era facilmente impressionável. Hábeis advogados com bem conhecidos clientes não o impressionavam mais do que carteiristas e traficantes de droga. Os criminosos podiam ser hábeis, mas ele era-o mais.
Claude Besson estava impressionado. O assalto fora planeado como uma operação militar. As ferramentas, o fornecimento de electricidade, a maneira como haviam usado a estrada subterrânea... Jesus Cristo, até lá tiveram em baixo um exaustor de fumos industrial! E comida, e vinho... Fora preparado com tanto cuidado e tão eficientemente executado como os crimes financeiros mais complexos que ele deslindara.
Deviam ter sido dez homens, talvez vinte... uma quantidade de equipamento... meses de preparação... dias a trabalhar no túnel... muito barulho...
Todavia ninguém vira nada, ninguém ouvira sons, ninguém espalhara rumores sobre um assalto iminente.
O homem que se encontrava por detrás da operação devia ser extremamente brilhante: um pensador, um chefe, um administrador, um cérebro.
Também fora cuidadoso: nem uma simples pista para a sua identidade as pesquisas do dia tinham revelado.
Era este, então, o homem com quem Claude Besson tinha de haver-se. Era este o seu adversário.
Que diabo de homem podia ele ser?
O homem por detrás da operação
É com prazer que vejo todos os sinais de que uma era mais viril, mais guerreira, está prestes a começar, uma era que, sobretudo, tornará a honrar a bravura.
Friedrich Nietzsche, o filósofo favorito de Spaggiari.
Albert Spaggiari nasceu na aldeia de Laragne, nos Alpes Franceses, em 1932. O pai morreu quando ele tinha 2 anos e meio.
A mãe, mulher independente e cheia de recursos, mudou-se para Hyères, perto do porto de Toulon, levando o pequeno Albert consigo. Abriu uma loginha de lingerie e deu-lhe o nome de Caprice des Dames. O negócio floresceu, mas apesar da sua independência financeira, voltou a casar.
Albert odiou o padrasto.
A princípio frequentou a Anatole France, a escola primária local, mas não se deu bem por lá, e o padrasto mandou-o para o Instituto de St. Joseph, uma escola preparatória particular. Também aí não foi mais feliz.
Tinha 12 anos quando fugiu pela primeira vez.
Quando a polícia o trouxe para casa, a mãe escreveu ao director da escola: “Bert é uma criança muito afectuosa; honesta, corajosa, leal e boa. Não é um rufião, mas é muito impulsivo.”
Aos 15 anos foi para a escola secundária de Jean Alcard. O seu trabalho era apenas médio, mas passou a ter uma paixão pela literatura. Os seus dois interesses particulares eram histórias de aventuras e ensaios políticos. Possuía uma imaginação invulgarmente viva. Tinha uma espingarda de ar, e embora nunca atirasse aos pássaros, costumava alvejar velhas latas de conserva e fazer de conta que eram pessoas.
Ficou obcecado por Salvatore Giuliano, bandido siciliano e herói popular romântico dos fins dos anos 40. Devorava tudo o que encontrava escrito sobre Giuliano e fantasiava um encontro com o homem. Com a idade de 16 anos voltou a fugir de casa, com destino à Itália.
Tomou uma rota indirecta, indo de barco para a Tunísia, viajando ao longo do Norte de África, apanhando depois outro barco para a Sicília. Nunca conseguiu passar pelo controlo de imigração italiano. Depois de passar vários dias na prisão, foi devolvido ao padrasto, coberto de piolhos.
A nota que deixava na mesa de cozinha pressagiava as suas ideias políticas futuras: La cause en vaut les moyens. Os fins justificam os meios.
Muitos rapazes adolescentes são rebeldes e sonham com a aventura: a maturidade geralmente traz-lhes os sonhos para a terra e modera-lhes o carácter com autodisciplina. Albert Spaggiari era diferente: de certo modo, nunca cresceu.
Em 1950, quando tinha 18 anos, alistou-se no exército e ofereceu-se como voluntário para a Força Expedicionária da Indochina. Os Franceses ainda não tinham sido expulsos do Vietname, e os Americanos ainda não tinham chegado.
A Ásia foi boa para Spaggiari. Gostava de viajar, a sua sede pela aventura foi satisfeita, e começou a desenvolver as suas ideias políticas no género de ambiente colonialista que alimenta o extremismo de direita. Foi transferido para o corpo de pára-quedistas do 3º Batalhão.
Foi um soldado útil, ganhando três condecorações, mas era avesso a receber ordens das outras pessoas, e esta falta excluiu-o da promoção: nunca passou de cabo.
Em 1954 foi considerado culpado do roubo e condenado a quatro anos de prisão. Estivera num prostíbulo de Saigão com uma série de soldados, e estalara uma rixa com a dona. Os outros soldados foram-se embora, mas Spaggiari ficou e roubou a gaveta do dinheiro. Os seus camaradas argumentaram que haviam sido enganados e que Spaggiari retirara simplesmente o dinheiro que era por direito deles; mas o tribunal militar não se impressionou com esta defesa.
Foi também o ano da batalha de Dien Bien Phu, um dos maiores desastres da história militar francesa, quando vinte mil soldados de elite foram derrotados por um exército de camponeses. Mas Spaggiari não estava lá: encontrava-se a ferros a bordo do Pasteur, a caminho de França. Com redução da pena, saiu da cadeia em 1957 e irá viver sossegadamente com a mãe em Hyères, por cima da loja. Aí conheceu Marcelle Audi, uma jovem enfermeira, com quem casou.
Audi -ele tratava-a sempre pelo apelido- era uma mulher pequena e simples, com cabelo castanho e olhos escuros. Era muito a enfermeira típica, com um andar vivo e [movimentos rápidos e precisos. Vestia de maneira simples, [mas com gosto, e tinha um carácter forte e um certo encanto sedutor. Ao contrário do marido, era um tanto cautelosa, introvertida, mais observadora do que actuante.
O casal não vivia apaixonado, mas eram muito bons amigos, mais leais do que fiéis um ao outro, e, o que é importante, partilhando das mesmas ideias políticas e filosóficas. Audi era uma âncora emocional na vida tempestuosa de Spaggiari; e se a sorte dele fosse irregular, ela poderia sempre ganhar a vida como enfermeira.
Por algum tempo pareceu que talvez Spaggiari assentasse. Na realidade, o ar calmo do campo sufocava-o. O grito da aventura tornou-se-lhe irresistível, e uma manhã de Primavera ele e a mulher tomaram um barco para Da-car, na colónia africana francesa do Senegal.
Aí ele trabalhou como caldeireiro e Audi como enfermeira. Planearam fazer fortuna. Não resultou. Por volta de 1960 estavam de novo em França.
Mudaram-se para Nice, e moravam na estrada de Marselha, no bairro da classe operária. Em França, uma enfermeira pode ter a sua própria clientela, fazendo tratamentos de primeiros socorros e dando injecções; e foi isto que Audi fez. Spaggiari tentou a sua sorte nos bens imobiliários, sem grande êxito.
Era a altura dos “ventos de mudança” em África, quando os países europeus se desenvencilhavam das suas colónias com maior ou menor grau de dificuldade. A Argélia Francesa sofria uma guerra brutal de morticínio quando os brancos argelinos lutavam contra o desalojamento Spaggiari juntou-se à Organisation Armée Secrete (OAS), movimento ilegal de apoio aos argelinos brancos. Tal como o IRA, a OAS abarcava pessoas de perspectivas mais ou menos militantes e de política vária (embora todos fossem de direita). Grupos internos incluíam a Catena, que ajudava os fugitivos a escapar à polícia, e o Comando Delta, que realizava assassinatos e assaltos a bancos para levantamento de fundos. Nos anos mais recentes, quando a libertação da Argélia se tornou um fait accompli (facto consumado), a OAS perdeu a sua raison d'être (razão de ser), mas permaneceu como cobertura dos extremistas de direita e dos neonazis.
Spaggiari quis fazer parte do Comando Delta, o grupo de operações especiais, mas parece que os chefes o achavam pouco digno de confiança, humilhação que se ia repetir mais do que uma vez na sua carreira.
O general Charles de Gaulle era odiado pela OAS. Direitista, fora antes abertamente sympathisant de l'Algérie Française, mas quando se tornou presidente a realidade surgiu. Deixou cair a Argélia como um tijolo quente, e a OAS sentiu-se amargamente traída.
Em 1961 Spaggiari foi a Espanha e teve uma reunião clandestina numa piscina de Madrid com Pierre Lagaillarde, antigo líder dos estudantes argelinos de direita, Spaggiari disse-lhe: “Estou à sua disposição. Farei qualquer operação que ache conveniente ordenar.”
Em Novembro desse ano Spaggiari teve a sua grande oportunidade. O injuriado presidente De Gaulle ia visitar Hyères, e a sua comitiva automóvel passaria pela loja de , lingerie Caprice des Dames. Spaggiari escreveu a Lagaillarde.
Registou a carta na dependência dos correios de Vinti-mille com um nome falso. A mensagem era melodramática: “Tenente Lagaillarde, só espero uma ordem sua - a ordem de execução.”
Spaggiari chegou a Hyères vindo de Nice na manhã do dia 8 de Novembro de 1961. As lojas estavam todas fechadas e com as persianas corridas para a visita presidencial. Escondeu a chave da loja da mãe, arrumou no pátio traseiro uma motocicleta para a fuga e foi para o apartamento vazio do primeiro andar. Tinha uma espingarda Mauser.
Por volta das 16 horas o cortejo de automóveis entrou na chamada Avenida Charles de Gaulle. Apesar do mau tempo, o presidente ia de pé na sua limousine, sorrindo e acenando para a multidão, que aplaudia. Às 16.12, De Gaulle estava à vista de Spaggiari, a menos de 5 m, alvo fácil para o homem que fora notável atirador entre as tropas paraquedistas do 3º Batalhão, destacamento de elite.
Spaggiari não puxou o gatilho, evidentemente. Lagaillarde nunca mandou a ordem de execução, pois tal como outros líderes da OAS não levou a sério o teatral Albert Spaggiari - e por uma vez na vida Spaggiari aceitou a autoridade.
Em Março de 1962, a polícia passou busca a uma residência em Villefranche sur Mer, estância de veraneio cara entre Nice e Cap-Ferrat. Encontraram uma máquina de imprimir ilegal, usada para produzir as folhas da OAS, e um esconderijo de armas. Um pequeno grupo de extremistas foi preso, e Spaggiari encontrava-se entre eles.
O tribunal do département dos Alpes Marítimos condenou-o a quatro anos na prisão de St. Martin, em Ré. Os seus camaradas ficaram em liberdade vigiada. Não é clara a razão por que Spaggiari recebeu tratamento especial, mas é provável que as autoridades soubessem da sua tentativa abortada para assassinar De Gaulle.
Foi libertado em 1966, e regressou a Nice para junto da mulher e dos amigos. Passou a interessar-se por fotografia e abriu um estabelecimento na Estrada de Marselha, 56, chamada Photo La Vallière.
Spaggiari passava as noites em tabernas e bares, conversando com amigos da OAS e antigos camaradas do Vietname. Ligou-se a outra organização de direita, a bizarra Irmandade de Armas SS.
Durante este período fez uma misteriosa viagem a Munique, centro do neonazismo alemão. Audi disse às pessoas que ele fora aprender alemão com a intenção de vir a ser tradutor profissional. Esta história improvável nunca foi corroborada por factos: em tempo algum tentou arranjar emprego como intérprete, e não passou a falar alemão com fluência.
Esta parte da sua história é notavelmente vaga. Parece ter aumentado os seus contactos com organizações direitistas por toda a Europa, e talvez tenha tido relações com a CIA. Esteve em contacto com os neofascistas italianos, e suspeita-se que esteve envolvido em contrabando de armas. Em 1969, quando os tanques russos rolavam pelas ruas de Praga, Spaggiari encontrava-se na Checoslováquia, com falsos papéis de identidade e um cartão de imprensa falsificado. Foi vago a respeito desta viagem: “Devemos fazer alguma coisa pelos nossos amigos”, disse. “Devíamos ajudar os patriotas checos.”
Mostrou certo talento como fotógrafo. Foi para o Norte de África e passou algum tempo no deserto do Sara, vivendo com os nómadas e tirando fotografias. A fotografia deu-lhe entrada num estrato bastante mais elevado de Nice, e tornou-se fotógrafo semioficial para a cidade. (É exagero dizer, como o dizem alguns habitantes de Nice, que a cidade é governada pela OAS; mas não há dúvida que Spaggiari não foi a única pessoa a ser aceite tanto nos círculos oficiais como entre os extremistas de direita.) Comendo e bebendo com uma classe mais rica, assegurou a sua posição tornando-se um grande gastador, e as suas gorjetas eram lendárias pela generosidade.
Em 1972 comprou uma casa de quinta arruinada na floresta de Bézaudun, não longe de Nice. Pagou muito pouco por ela, mas com a ajuda de um construtor local transformou o lugar. Trabalhou nela durante meses” pondo novas janelas, telhando-a de novo, acrescentando varandas e instalando aquecimento moderno. Empregou pedra e padeira e o tijolo vermelho da região, dando à casa um ar natural dentro do conjunto.
Ele e Audi apegaram-se muito à casa. Penduraram armas nas paredes, embora Spaggiari nunca as usasse: nem sequer matava os coelhos que lhe estragavam a horta, e se Audi quisesse um frango para o jantar tinha de levá-lo ao homem do talho da aldeia para o matar. Havia também na parede uma enorme fotografia de Hitler e um emblema SS. Quando chegava no Land-Rover e parava junto do velho carvalho de cem anos, Packa e Vesta, os seus fraldiqueiros de raça Doberman, vinham a correr saudá-lo, saldavam para o veículo e lambiam-lhe as mãos. Ao serão sentava-se à lareira e lia. A sua biblioteca era vasta: Bal-zac, Zola, Flaubert... e, é claro, Nietzsche.
Finalmente, arrendou o estabelecimento de fotografia ao gerente e mudou-se permanentemente para Bézaudun. Audi arranjou outra clientela de enfermagem, e Albert criava frangos.
De novo parecia que ia assentar; mas uma vez mais as aparências foram ilusórias.
Um seu conhecido, Gérard Rang, de 28 anos, andava a ser vigiado pela polícia, em 1974. Rang, louro e atarracado, era o proprietário do notório night-club Chi-Chi, no Haut de Cannes, onde o espectáculo do palco se caracterizava por sexo de grupo ao vivo. Rang, que ia figurar largamente no assalto do século, ficou sob suspeita em 1974 numa investigação policial sobre cheques falsificados. Rang, se era ele, não andava só a falsificar assinaturas, mas realmente a imprimir livros de cheques. Um dos livros foi encontrado na grade do esgoto do seu clube. Ocorreu à polícia que Spaggiari, um dos camaradas de direita de Rang, tinha todas as facilidades para a fotoimpressão dos cheques no seu estabelecimento de fotografia. Todavia, não conseguiu recolher provas suficientes para levar a uma acção judicial.
Foi também em 1974 que Spaggiari arrendou a caixa do depósito em cofre na caixa-forte do banco da Societé Générale na Avenida Jean Médecin.
Inquieto, indisciplinado, aventuroso, obsessivo: que é que faz um homem ser assim?
Um dos seus amigos mais chegados achou algo para dizer: “Talvez tivesse sido diferente se tivesse sido pai. Isso tê-lo-ia amadurecido, acalmado. Mas nunca aconteceu.”
Audi estava impossibilitada de dar à luz. O casal tentou a adopção, mas o facto de ser membro conhecido de uma organização ilegal desqualificava Albert para o efeito. Mesmo sem as suas ligações à OAS, o seu registo profissional teria sido por certo, considerado desfavorável pelas autoridades de adopção.
Com certeza que queria um filho. Ele próprio dizia: “Tentei tudo, mas os membros da OAS não estão autorizados a adoptar.”
Mas a chave para o carácter de Spaggiari encontra-se para trás, no passado.
(*) Os leigos imaginam ingenuamente que as crianças de tenra idade não prestam atenção à tragédia. A verdade é justamente o contrário. Um trauma nos primeiros anos de vida pode explicar muita coisa a respeito do eventual carácter de uma pessoa. O pai de Albert Spaggiari morreu quando ele tinha 2 anos e meio.
Para uma criança, um pai representa tanto a disciplina como o amor, e através desta combinação de características
(*) Os autores agradecem a José von Buehler pela sua assistência neste passo.
aparentemente contraditórias a criança aprende o conceito da autoridade benigna. O pai também proporciona uma imagem com que o filho se pode identificar, e dá-lhe um padrão para seguir.
É evidente que nem todas as crianças órfãs de pai ficam permanentemente estigmatizadas com o trauma. O lugar do pai morto pode ser ocupado por um tio, um amigo da família, ou um padrasto.
Mas por alguma razão Albert rejeitou o padrasto. Por isso, a figura de pai na sua vida representava a autoridade sem amor.
Este facto pode ser responsável por diversos traços da personalidade de Spaggiari.
O seu interesse por armas, a militância nos SS e a política podem representar uma obsessão com a autoridade tirânica (sem amor).
A adoração por histórias de aventuras, a identificação juvenil com o bandido Salvatore Giuliano e as fotografias de Hitler podem ser vistas como a busca da figura de um pai.
O padrão de indolência e irregularidade da sua vida viajar, mudar de emprego, nunca assentar- pode ser |devido a falta de um pai para imitar.
Mas o mais importante, a sua rebeldia e criminalidade São uma rejeição da autoridade que nunca aprendeu a amar.
Tem passado a vida a provar que sabe mais que o padrasto.
Spaggiari faz os seus cálculos
Non, je ne regrette rien (1)
Albert Spaggiari
(1) Em francês no texto: Não, não lamento nada. (N. do T.)
Nice é muito semelhante a Bournemouth, só que é melhor.
Fundada por volta de 350 a. C. por uma tribo de marinheiros gregos, permaneceu como aldeia piscatória até ao século XIX, quando veraneantes ingleses abastados inventaram a Riviera Francesa. Em 1822, a crescente colónia de ciosos ingleses construiu um longo passeio público de 4 km, a característica mais distinta da cidade, chamada agora o Promenade des Anglais - o Passeio Público dos ingleses.
Situada na baía dos Anjos, a 32 km da fronteira italiana, é a principal estância de veraneio da Cote d'Azur. É abrigada por colinas baixas do lado norte, e só chove sessenta vezes em média por ano. Tem aeroporto, universidade e vários museus de arte. A população anda à volta de trezentos e cinquenta mil.
O rio Paillon divide o lado oriental, com a baia, o bairro comercial e as ruas coleantes da cidade velha, do lado ocidental, constituído por urbanização mais recente e pelo aeroporto.
Como Bournemouth, possui uma larga população residente de reformados e pessoas idosas; e é esta característica que mais interessa a um banco como o da Société Générale. Um dos maiores bancos franceses, a sua principal filial de Nice destina-se a atrair pessoas de certa idade. A imponente fachada branca de pedra ocupa um quarteirão inteiro da cidade, e a sua arquitectura vagamente à italiana imita a do Palácio da Justiça, o edifício do tribunal da cidade. No interior do banco, o átrio principal tem um tecto extraordinariamente alto, assente sobre pilares de mármore.
As janelas em arco estão protegidas por grades de ferro trabalhado, muito diferentes das montras de placas de vidro dos bancos mais modernos.
Depois do assalto do século, o banco compreensivelmente sentiu necessidade de uma imagem mais moderna, e hoje parte do átrio principal é um enorme salão de escritório com mobiliário contemporâneo e decorado a laranja e branco, alumínio e vidro. Mas quando Albert Spaggiari entrou pela primeira vez pelas suas portas em Setembro de 1974, conservava ainda a atmosfera calma da sala de escritório de um solicitador tradicional.
Isto notava-se em particular na caixa-forte, muito usada por aquelas pessoas abastadas, retiradas dos negócios, que frequentemente preferem manter as suas riquezas em formas tangíveis de ouro e joalharia. Havia um velho sofá, algumas cadeiras e mesas de aço, e diversas tesouras grandes ligadas por correntes às mesas à moda antiga. O pavimento era coberto de linóleo castanho e os armários que continham as caixas de depósito em cofre tinham o mesmo aspecto antiquado das fachadas do banco.
Havia sete armários blindados, contendo um total de cerca de quatro mil caixas. As caixas eram de dois tamanhos: algumas, 30cm por 20cm de frente e 60cm de profundidade; outras 60 cm por 40 cm, com a mesma profundidade. Cada caixa possuía duas chaves, e tinham de se usar ambas para abrir a caixa. Uma era guardada pelo cliente, a outra ficava no banco.
Os armários eram abertos todas as manhãs. Quando o cliente queria ir à sua caixa, tinha primeiro de assinar o livro da caixa-forte. Então, um guarda acompanhava-o à sua caixa. O cliente introduzia a sua chave, o guarda introduzia a chave do banco, e a caixa abria-se. Depois disso, o guarda deixava o cliente sozinho. O cliente ficava o tempo que queria. Quando terminava o que vinha fazer, fechava a caixa e ela ficava automaticamente trancada. No fim do dia, os armários eram fechados à chave, e então o guarda fechava a porta de 20t da caixa-forte.
Dois anos mais tarde, Spaggiari diria ao magistrado instrutor: “Tive a ideia de o assaltar no preciso dia em que aluguei a caixa de depósito em cofre na Société Générale em Setembro de 1974. Desenvolveu-se na minha cabeça, pouco a pouco, até ao momento em que compreendi que realmente era possível fazê-lo.”
Todavia, Spaggiari disse muitas mentiras durante esse interrogatório.
“Todas as vezes que descia ao meu cofre eu aprendia um pouco mais sobre a caixa-forte. Medi a passos o tamanho da sala. Fiz pequenos desenhos. Até tirei fotografias... ninguém parecia preocupar-se.”
Mas, perguntaram-lhe, como sabia que não havia sistema de alarme?
“Comprei um relógio-despertador com uma campainha muito estridente. Armei-o para a 1 hora da manhã, depois pu-lo no meu cofre um dia, ao fim da tarde. À 1 hora da madrugada encontrava-me sentado junto da Taverne Alsacienne, do outro lado da rua, em frente do banco. Fiquei lá até às duas da manhã. Nada aconteceu. No dia seguinte abri o cofre. O relógio continuava lá, ainda a trabalhar, mas com o alarme descarregado.”
É possível que um sensível sistema de alarme moderno disparasse com o barulho do relógio-despertador; mas é improvável que um planificador tão cuidadoso como Spaggiari tivesse confiado num método de verificação tão dúbio. Em qualquer caso, tanto esta história como a outra de andar a medir a passo a caixa-forte e a tirar fotografias foram rapidamente desfeitas pela polícia. Pois o livro da caixa-forte - assinado por cada cliente sempre que lá entrava - revelou que Spaggiari estivera ali apenas duas vezes: uma quando arrendou a caixa de depósito em cofre, outra em Janeiro de 1975.
Quando se lhe apresentaram estes factos, veio com outra história.
“Há uma filial da Société Générale na Estrada de Marselha, 52, quase pegada à minha loja. Tenho ali uma conta e o caixa era cliente da loja. Éramos vizinhos, morávamos na mesma rua, e ele era palrador. Trabalhara na filial principal na Avenida Jean Médecin, e como caixa tinha acesso à caixa-forte. Pouco a pouco obtive dele os pormenores do esquema, sem que se apercebesse onde eu queria chegar.”
Spaggiari nomeou o caixa. Morrera recentemente.
A história podia ser verdadeira, mas um funcionário bancário linguarudo é uma raridade, e teria sido uma sorte notável que um patife encontrasse um deles logo ali na soleira da sua porta. Como é que Spaggiari obteve estas informações preliminares é uma questão que deve ficar portanto em aberto, com muitas probabilidades a favor de um informador lá de dentro, que talvez nunca seja identificado.
Spaggiari também precisava de saber o peso dos armários de aço. Afirmou que perguntou simplesmente ao guarda. A resposta que obteve foi de 30t, e ele considerou o dobro nos seus planos. Esta história é provavelmente verdadeira, pois explicaria a sua segunda visita à caixa-forte em Janeiro de 1975.
Não há, porém, mistério algum sobre a maneira como obteve os planos dos sistema de drenagem à volta do banco. Plantas de todo o sistema de esgotos da cidade encontravam-se à disposição de qualquer pessoa na câmara municipal. Spaggiari introduziu-se como promotor de discotecas e disse que queria construir um clube num local subterrâneo. Os funcionários do departamento de obras públicas foram muito prestativos, e deram-lhe um exemplar da planta nº 16, tirada à escala de 1:1000, um mapa grande e claro.
Com a planta, Spaggiari podia escolher o caminho mais curto do banco à estrada subterrânea ao lado do túnel do Paillon. Então verificou o trajecto a pé. A sua explicação para este período é basicamente crível, embora ligeiramente colorida.
“Passei seis noites numa secção dos esgotos, percorrendo a vau aquela porcaria cheia de ratazanas e mau cheiro. Explorei o sistema passo a passo até conhecer cada ângulo, cada beco. Sempre que me perdia, simplesmente subia a um poço de inspecção, levantava a tampa e via a rua, até me orientar outra vez.”
Não deve ter levado seis noites, e não teria sido tão louco ao ponto de meter a cabeça pelo buraco da rua; mas esta explicação estabelece uma série de pontos vitais:
1 - Era possível descer de veículo a partir da Avenida Marechal Lyautey por uma rampa construída de propósito para o leito seco do rio Paillon e daí, depois de remover uma barreira pouco sólida de chapa ondulada de cerca de meio metro de altura, directamente para a estrada subterrânea.
2 - O ponto em que a estrada passava mais perto do banco ficava debaixo da junção da Rua Félix Faure com a Rua Chauvain.
3 - Uma segunda entrada para a estrada subterrânea, para pessoas, mas não para carros, ficava na Praça Massena, ao cimo da Rua Félix Faure. Aqui havia um parque de estacionamento que dava para uma “sala-sifão”, onde os empregados do município podiam entrar para verificar o nível de precipitação da chuva. O parque de estacionamento era guardado com televisão de circuito fechado, e uma das câmaras apontava directamente para a porta da sala-sifão; mas o ângulo de visão da câmara podia ser efectivamente bloqueado simplesmente estacionando um carro entre ela e a porta. Utilizando esta entrada quando fosse possível, pouparia uma viagem de 3,5 km. Também aqui Spaggiari conseguiu retirar uma lâmpada e ligar o cabo para as suas lâmpadas e ferramentas eléctricas.
4 - Havia uma terceira entrada, muito mais próxima do banco, mas também mais perigosa: o poço de inspecção na esquina da Rua de l'Hôtel des Postes com a Rua Gustave Deloye. As peças mais pesadas de equipamento, que seriam difíceis de transportar através dos canos de esgoto a partir da estrada subterrânea para o banco, podiam ser descidas por este poço. Todavia, teria de ser usado o mínimo possível.
5 - Por debaixo da Rua de L'Hotel des Postes, em frente do banco, havia um dreno sem saída que podia ser usado para depositar a terra e as pedras resultantes da escavação.
6 - O túnel a partir do cano de esgoto até à parede da caixa-forte seria aberto nos esgotos por debaixo da Rua Gustave Deloye, junto ao poço de inspecção.
Os pontos mais delicados tinham ainda de ser delineados, mas o plano básico aí estava, e parecia absolutamente praticável. Agora, Spaggiari precisava de homens para realizá-lo.
Nos princípios de 1976, Spaggiari tomou contacto com um grupo conhecido como Le Gang des Marsaillais, a Quadrilha dos Marselheses. Marselha fora durante muito tempo a capital do crime de França, e embora o negócio dos narcóticos se tivesse mudado para leste, para Nice, Marselha era ainda o lugar onde se ia buscar a perícia no crime.
O bando ficou interessado nos planos de Spaggiari, e concordou em enviar um grupo para examinar o terreno. Todavia, surgia uma dificuldade: o seu perito em túneis, um italiano conhecido como o Pedreiro, encontrava-se na cadeia. Teria de ser libertado... por conta de Spaggiari. Spaggiari engoliu esta história um tanto dúbia, esportulou seis mil e duzentos dólares, e o Pedreiro saiu da prisão de Bourgues(1).
(1) Os autores - e na realidade, a polícia - conhecem o nome verdadeiro de o Pedreiro; mas ele nunca foi apanhado, e sob a lei francesa ele não pode ser identificado enquanto não for condenado ou confessar o crime. Pela mesma razão, o leitor encontrará vários criminosos referidos pelas alcunhas ou simplesmente por uma inicial.
O grupo de Marselha entrou no sistema de esgotos pelo parque subterrâneo de estacionamento da Praça Massena, via sala-sifão. Viram a estrada subterrânea, percorreram os esgotos e observaram o local onde Spaggiari planeava fazer o túnel, O Pedreiro examinou a textura do solo.
- Isto é pudim - comentou. - O túnel terá de ser reforçado.
Viram o banco pelo lado de fora, e deram uma vista de olhos à entrada do leito do rio para a estrada subterrânea.
Gostaram do plano.
Não gostaram de Spaggiari.
Rejeitaram-no.
Tal como o exército, a OAS e Pierre Lagaillard, a quadrilha de Marselha via qualquer coisa em Spaggiari que não lhes inspirava confiança: uma sugestão de irrealidade, um toque de megalomania, uma personalidade obsessiva e instável.
Devolveram-lhe as botas de borracha e desapareceram. Apenas o Pedreiro ficou, talvez por um sentido de gratidão; assim, Spaggiari obteve alguns juros pelo seu investimento de seis mil e duzentos dólares.
Contudo, Spaggiari tinha agora de organizar um grupo. Era o seu problema mais difícil, e no fim a escolha dos colaboradores foi a deficiência básica da operação.
A maneira como recrutou Francis Pellegrin foi típica.
Na Rua Félix Faure havia um café, também chamado o Félix Faure. Em 1976, era o local de encontro mais em moda de Nice. O barman fazia excelentes coquetéis de champanhe e servia diversas aguardentes de bourbon americano. A comida era boa, e a clientela jovem, atraente e belamente vestida. Os automóveis ficavam estacionados em duas filas em frente do café (o estacionamento em duas filas é de rigueur para os elegantes de Nice) e o passeio ficava bloqueado de motocicletas. (Na Riviera, as motos não são prerrogativas dos Anjos do Inferno, e no clima ameno não é preciso uma pessoa vestir-se de montanhista para conduzir uma.) Foi neste chique oásis que Spaggiari encontrou Pellegrin.
Pellegrin era um trapaceiro barato, aquilo que os Franceses chamam um demi sei (meio-sal). Míope, sem graça, a cara minada pela acne, não tinha encanto algum. Nem era esperto. Para não dizer mais, era completamente estúpido.
Chegara recentemente à sua pequena cidade de Beau-lieu sem um centavo no bolso. Spaggiari inspirou-lhe um temor respeitoso. Spaggiari parecia elegante, frio, um génio louco com muita classe. Mal podia acreditar que Albert era um criador de frangos.
“Goebbels também criava galinhas, não era?”, disse-lhe Spaggiari.
Pellegrin não sabia se ele estava a gracejar se não.
O demi sei ficava pouco à vontade com Spaggiari, e sentia-se inferior, mas, para sua surpresa, Albert, uma noite, chamou-o à parte.
“Sei que posso confiar na tua discrição. Preciso de fazer uns bons contactos muito rapidamente. Se puderes ajudar-me, não te arrependerás.”
A maior parte do grupo foi recrutado desta maneira. Houve quatro excepções: G. e P. eram argelinos brancos e camaradas da OAS; o capitão V. era veterano do Vietname; e o Pedreiro era da quadrilha de Marselha. Outros dezanove patifes foram contactados por meio do diz-se-diz-se subterrâneo: Pellegrin encontrava alguém que conhecia um motorista; Spaggiari tinha um amigo que conhecia pessoas que andavam à procura de fazer umas massas; e por aí adiante.
E aqui surge o primeiro dos vários mistérios que rodearam a acção da polícia neste caso. Qualquer força de detectives medianamente competente possui os seus informadores entre os patifes locais: homens que são basicamente criminosos e aceites como tais por outros criminosos, mas que não são avessos a fazer um pouco de dinheiro extra dando informações confidenciais à polícia. Os detectives ingleses chamam-lhes snouts; os franceses chamam-lhes indics.
Ora, criminosos profissionais inteligentes e bem sucedidos fazem segredo dos seus planos, pois sabem muito bem que não podem confiar em ninguém senão nos seus associados mais chegados. Mas Spaggiari andava activamente a dar publicidade à sua necessidade de homens por cada bar louche (duvidoso) da cidade. É muito difícil acreditar que nem um só dos indics de Nice acabasse por ouvir falar da obra que estava iminente. Não obstante, ninguém na polícia de Nice tinha qualquer ideia de que Spaggiari andava a planear algo. Este género de aparente incompetência ocorre mais que uma vez na história do assalto do século, e é um tema a que voltaremos.
A tarefa seguinte de Spaggieri foi adquirir o equipamento necessário, e fez isto com a sua habitual e escrupulosa cautela.
Para transportar as ferramentas comprou vários sacos feitos de lona forte do tipo utilizado nos iates. Estes vieram do centro comercial Rinascente, de Milão.
Dez tesouras de aço sueco, feitas em Estocolmo, foram compradas a dinheiro na Bélgica.
Comprou vinte martelos pequenos, doze martelos grandes, e várias colheres de pedreiro; trinta escopros de várias espécies e tamanhos, um rolo de sacos de plástico, seis cargas de dinamite e três maçaricos de oxi-acetileno.
Trinta lanternas, todas de marca Super-Limijet, foram adquiridas em diversas lojas da cidade velha de Nice, no centro comercial Cap 3000, de Villeneuve Loubet. Foram compradas à unidade na sua maior parte; e Spaggiari ficou furioso quando descobriu que um dos seus demi seis comprara três numa loja.
Comprou um carrinho de mão e vários baldes para retirar a terra escavada do túnel; tábuas e traves de madeira para sustentar o tecto do túnel; e uma série de sacos de cimento, de 55 kg, para as paredes.
300 m de cabo eléctrico foram adquiridos em várias porções de 45 m nas lojas do ramo em Nice, Menton e Antibes.
Comprou dois berbequins eléctricos AEG, um macaco hidráulico potente e um pequeno laser, que custou para cima de dois mil dólares e que cortava 10 cm de concreto reforçado por minuto.
Comprou um estojo de primeiros socorros consideravelmente sofisticado, um fogão portátil, cilindros de combustível para os maçaricos de oxi-acetileno, botas de borracha e fatos-macacos impermeáveis do tipo usado pelos trabalhadores de esgotos, e dezenas de pares de luvas, que iam do género de luvas de couro de protecção até a luvas de cirurgião.
Comprou um exaustor de fumos industrial para manter respirável o ar do túnel.
Quase os únicos artigos roubados foram várias dúzias de grampos reforçados, pregados ao tecto do cano de drenagem para manter o cabo eléctrico bem acima do nível da água. Estes vieram de uns terrenos para construção em Grasse. Sem dúvida que algum criminoso insignificante, instruído para comprar os grampos, não pôde resistir à tentação de os roubar e meter ao bolso o dinheiro dado por Spaggiari para o efeito.
Para transportar todo o equipamento ao longo das várias centenas de metros dos esgotos, Spaggiari arranjou dois barcos de borracha e uma série de câmaras-de-ar de pneus de camião.
Pás de escavar e de transporte, chaves-de-fenda, óculos de protecção, pés-de-cabra... a lista parece nunca mais acabar. Este material foi comprado por toda a Europa Ocidental; nunca em grandes quantidades, sempre em pequeno número, e frequentemente em grandes centros comerciais. Spaggiari fazia tenções de que o equipamento que o seu grupo deixasse atrás de si depois do assalto desse à polícia muito trabalho para não obter absolutamente resultado algum; e foi isto exactamente o que aconteceu.
Spaggiari precisava agora de um local para guardar todo este equipamento, por isso pediu emprestada uma vivenda em Castagniers, aldeia a uns poucos de quilómetros de Nice. Podia ter guardado tudo na sua quinta, mas decidiu que a vivenda seria muito mais segura. Foi um erro muito grave.
Uma esposa ciumenta
O ouvido do ciúme ouve todas as coisas
A Sabedoria de Salomão
A detecção de As Ratazanas dos Esgotos, como o grupo de Spaggiari veio a chamar-se, começou realmente dez dias antes do roubo; e começou com “O Caso da Esposa Ciumenta”.
A mulher era a esposa de um homem de negócios de meia-idade, que adorava divertir-se e que era proprietário de uma companhia de transporte de mercadorias. De cabelo grisalho, possuía um corpo elegante: era atraente para a sua idade e sabia-o muitíssimo bem. Apreciava brincadeiras e gostava de exibir o físico na praia de Villeneuve Lou-bet. O negócio ia bem, e o casal tinha um filho de 20 anos.
Nos princípios de 1976, a mulher -chamemos-lhe Ma-dame V. - descobriu que o marido instalara uma amante numa vivenda de Cagnes sur Mer. Ficou furiosa, e conversou com um advogado a respeito do divórcio, mas no fim decidiu não fazer nada, não dizer nada, e esperar que o caso terminasse.
No dia 8 de Julho de 1976, Monsieur V. foi a Lião em negócios. Nessa noite, a esposa descobriu que faltava uma chave. Era a chave de uma vivenda em Castagniers, que pertencia não a Monsieur V. mas a um seu amigo. O amigo morava a alguma distância, e o casal concordara em dar uma olhadela pela vivenda, arejá-la uma vez por outra e fazê-la parecer ocupada para desencorajar os ladrões. Ora Madame V. suspeitou que o marido não fora a Lião em negócios, mas sim que arranjara outra ninfa para a vivenda de Castagniers.
No dia seguinte, 9 de Julho, Madame V. pegou no seu Peugeot creme e foi a Castagniers. Não tinha planos específicos quando passou a 80 km/h pelos terrenos de construção para o novo arranha-céus de Nice-Matin, pelo posto de gasolina de Azur e pelo elegante Servelle Restaurant. Fumava cigarro após cigarro, e o seu rosto de 40 anos estava marcado de tensão.
A vivenda ficava a curta distância da estrada principal, mas numa área sossegada. Construída no estilo de uma casa de quinta provençal, era rodeada de oliveiras, tinha um telhado vermelho e paredes de revestimento grosseiro cor de casca de ovo. Situada no cimo de uma encosta, tinha, uma vista encantadora.
Madame V. parou o carro a alguma distância. Via-se que as persianas estavam abertas. A vivenda estava ocupada.
Hesitou por um momento, depois voltou o carro num. rápido círculo e afastou-se a grande velocidade. Vira o suficiente; ficou firmemente convencida que o marido lhe estava a ser infiel outra vez, mas não teve a coragem de bater à porta e apanhá-lo com as mãos na massa.
Foi para casa e tentou não chorar.
Tinha motivos confusos para o que fez a seguir. Queria ter a certeza que o marido se encontrava ali, queria que ele soubesse que ela sabia o que ele andava a fazer, e queria; embaraçá-lo. Pegou no telefone e fez uma chamada para o proprietário da vivenda.
- Você arrendou a vivenda? - perguntou ela. :
- Não, não. Porquê? !
- Por acaso passei por lá há pouco e notei que as persianas estavam abertas. Achei que era melhor verificar.
- Não, não devia estar lá ninguém. Ainda tem as chaves, não tem?
- Sim - mentiu ela.
- O seu marido não podia passar por lá e verificar?;
- Não está cá... Foi a Lião em negócios. - Uma pausa; então Madame V. continuou: - Estou preocupada. Há tantos assaltos na Cote d'Azur, agora com todos estes hippies...
Aquela última deixa parece que atingiu o alvo.
- Está bem... Trata-se da minha vivenda. Vou chamar a polícia.
A França tem duas forças policiais. As grandes cidades têm a Police Judiciaire, que opera de maneira muito semelhante à força de polícia citadina inglesa e é igualmente controlada pelo Ministério do Interior. A província e as pequenas cidades são policiadas pela Gendarmehe, um corpo militar sob controlo do ministro do Exército. Os gendarmes andam sempre uniformizados e não têm detectives: são obrigados a relatar os assuntos criminais à Police Judiciaire, que então fica responsável pela investigação.
O proprietário da vivenda de Castagniers telefonou para a brigada de gendarmes de Plan du Var. O telefonema foi atendido pelo gendarme Claude Destreil, o qual, como todos os gendarmes, era um jovem bem constituído, com cabelo curto e uma camisa de caqui azul. Tal como os polícias da província, ficava interessado em qualquer coisa fora do habitual que acontecesse na zona. E, como na altura não tinha nada mais interessante a fazer do que um maçador relatório, pegou no seu colega gendarme Patrick Gruau e foram até à vivenda.
Destreil estacionou a pequena carrinha azul debaixo de uma oliveira, e os dois homens olharam à sua volta. Gruau subiu os dezassete degraus até à porta da entrada e bateu diversas vezes, não obtendo resposta. Ambos admiraram a vista que se estendia pelo vale do rio Var.
As persianas da vivenda estavam na verdade abertas, e uma janela também. A garagem estava fechada à chave, mas eles conseguiram olhar lá para dentro e ver a chapa de matrícula de um Peugeot 504 cinzento-metalizado, novo em folha, que aí se encontrava.
Não havia sinais de arrombamento.
Os gendarmes voltaram à carrinha. Nessa tarde descobriram que o Peugeot estava registado em nome de um vendedor de instrumentos musicais de Béziers, a 320 km.
Às 18.30 voltaram à vivenda para uma segunda verificação. Desta vez tiveram mais sorte.
Estavam dois automóveis caros no desvio - um Mercedes e um Renault 17-, e quatro homens sentados nos degraus.
Os gendarmes começaram a interrogá-los. O mais velho dos quatro deu a explicação:
- Arrendámos a vivenda, e estamos à espera de um amigo que traz as chaves.
O proprietário dissera de maneira absolutamente clara que não arrendara a vivenda a ninguém. Os gendarmes pediram os documentos de identificação aos homens e anotaram as informações:
Dominique Poggi, residente na Rua Fourmillière, 23, Antibes, nascido a 16 de Fevereiro de 1926, em Farinole, Córsega.
Daniel Michelucci, residente na Rua Samatan, 20, Marselha, nascido a 6 de Outubro de 1947, em Marselha.
Christian Duche, residente na Esplanada de La Tourette, 36, Marselha, nascido a 8 de Março de 1947, em Marselha.
Alain Pons, sem documentos.
- Sabemos que o proprietário não arrendou a vivenda - disse-lhes Destreil.
Poggi sorriu.
- Bem, de facto não fomos nós que a arrendámos - disse. - Foi um amigo nosso, o Raymond, que tratou disso, e vai-nos trazer a chave. Podem verificar... ele tem um restaurante na praia de St. Laurent du Var.
Os gendarmes não ficaram impressionados. Poggi piscou o olho.
- Vamos fazer esta noite aqui uma pequena festa... só entre nós... percebe o que quero dizer?
Não se viam por ali mulheres nenhumas, e estes quatro indivíduos não pareceram aos gendarmes manifestamente homossexuais.
- Muito bem - disse Destreil. - Vamos ver esse Raymond.
Poggi hesitou.
- De facto não é bem ele que tem a chave. É um amigo.
- E onde vive o amigo?
- Perto do estádio.
- Então vamos lá.
Os quatro homens encolheram os ombros e levantaram-se. Os gendarmes ouviram o motor de um automóvel. Voltaram-se e viram o tejadilho de um carro por cima da copa das árvores. O veículo parou de repente, inverteu a marcha e afastou-se. Todavia, os gendarmes conseguiram identificá-lo como um Renault 5.
Os seis homens partiram. Destreil e Gruau na sua carrinha da polícia, Duche no Mercedes e os outros três no Renault.
O endereço a que se dirigiram foi o de Madame V., que iniciara tudo aquilo porque suspeitara da infidelidade do marido. Encontrava-se em casa. O filho estava lá também, e ela parecia ter estado a chorar.
Agora encontravam-se oito pessoas na sala de estar.
O gendarme Gurau interrogou Madame V.
- A senhora tem as chaves da vivenda de Castagniers?
- Não. O meu marido levou-as. Anda a enganar-me com uma prostituta na vivenda.
- Isso não é verdade - interrompeu Poggi. - Ele deu a chave a Raymond, que havia de dá-la a nós.
Isto foi como que um choque para Madame V.
- Mas porquê?
Poggi tornou a entrar na sua velha história.
- Íamos fazer uma pequena festa... compreende. Destreil já ouvira este número. Decidiu cortar cerce.
Voltou-se para o filho de Madame V.
- Faça favor de telefonar a este Monsieur Raymond e faça-o vir aqui imediatamente. Diga-lhe que os seus amigos querem vê-lo.
O jovem fez o que lhe mandaram, e Raymond chegou quinze minutos depois. Quando soou a campainha da porta, os gendarmes pediram a todos para saírem da sala para poderem interrogar Raymond sozinho e ver se a sua história condizia. Todavia, não tinham experiência destas coisas, e Poggi trocou-lhes as voltas respondendo à porta e sussurrando umas tantas palavras a Raymond.
Tudo aquilo parecia altamente suspeito, mas não se tratava propriamente de matéria susceptível de prisão.
Destreil olhou para Gurau e encolheu os ombros.
- Perdemos.
Os gendarmes fingiram interrogar Raymond, mas a sua surpresa e a sua história condizia exactamente com a de Poggi. Os gendarmes relataram o incidente a Pierre Du-four, o chefe de bigodes da brigada de Plan du Var, que encolheu os ombros e lhes disse para manterem o assunto em aberto. No fim das contas, a única pessoa satisfeita foi Madame V., que ficara a saber que o marido não lhe fora infiel.
Nos dias seguintes os gendarmes levaram o inquérito até onde foi possível. Descobriram que nenhum dos automóveis usados pelos quatro homens era propriedade de qualquer deles: o Mercedes estava registado em nome de Alain Benisson, residente na Rua Massenole, 28, Marselha, nascido a 3 de Setembro de 1942, e o Renault estava em nome de Louis Belayle, residente na Avenida Camipelletan, 88, Marselha, nascido a 18 de Fevereiro de 1951, em Marselha. Conseguiram seguir a pista do Renault 5 cujo tejadilho tinham avistado por instantes a inverter a marcha e a afastar-se da vivenda. Uma mulher que vivia perto da vivenda queixara-se de que o carro fizera a manobra em cima do seu relvado e ela tirara o número da matrícula. Não foi capaz de dar uma descrição do condutor, mas os gendarmes conseguiram estabelecer que o veículo estava registado em nome de André Fénouil, residente na Rua du Chapitre, 5, Nimes, nascido a 13 de Dezembro de 1931, em Oran, Argélia. Fénouil tinha registo criminal: fora condenado a doze anos de prisão por assassínio.
Havia apenas seis gendarmes no posto de Plan du Var: o chefe Dufour, Destreil, Gruau, André Diminato, Ed-mond Sanchez e Patrice Sloma. Todos ficaram intrigados com o mistério da vivenda de Castagniers. Não havia razão para contactar os detectives de Nice, pois não se cometera crime algum, e na realidade não tinham qualquer informação a dar - apenas vagas suspeitas. Além disso, acharam o caso bastante emocionante. Não era muito frequente que os homens de camisa azul de caqui tivessem a oportunidade de provar que sabiam mais que os detectives da cidade com os seus fatos feitos à medida e a sua loção aftershave.
Também os gendarmes tinham os seus indics. Um, em particular, era o dono de uma taberna, que fazia uns dinheiros por fora recebendo apostas ilegalmente. Diante de um Vichy-Fraises, disse-lhes: “Os vossos quatro visitantes estiveram aqui. Disseram-me que andavam metidos num trabalho. Um grande trabalho.”
Foi até onde chegaram os gendarmes antes do assalto. Todavia, é verdadeiramente espantoso que eles tivessem tido quatro carros, dez nomes e um boato, quando a polícia de Nice -os tais que seriam os detectives- não tinham nada. É como se um polícia de trânsito em Surbiton soubesse de um assalto iminente a um banco do West End que a Scotland Yard ignorasse totalmente. Todavia, talvez este ponto tenha sido acentuado em demasia.
O incidente de Castagniers sobressaltou Spaggiari. A vivenda era, na verdade, o seu quartel-general, onde armazenara a grande quantidade de equipamento para o assalto. E este pequeno atrito com as forças da lei e da ordem surgiu quase em cima da hora zero. De facto, o assalto fora originalmente planeado exactamente para essa noite, e fora adiado quando Spaggiari soube que Nice ia ter uma visita muito importante nesse fim-de-semana.
Às 17.30 de sábado 10 de Julho de 1976, o jacto presidencial Mystère 20 tocou na pista do aeroporto de Nice e Giscard d'Estaing saiu dele. Esta era a única área do Sul da França que votara por ele: os outros départements do Sul foram a favor de Mitterrand, que perdeu as eleições. O presidente surgiu do avião de fato cinzento, aspecto calmo e tostado pelo sol. Acenou para a multidão postada no terraço do aeroporto.
Seguiu em cortejo ao longo do Passeio Público dos Ingleses, apinhado de adeptos a agitar bandeiras tricolores, até ao St. Jean Cap-Ferrat para uma parada naval. Depois regressou ao Palácio Massena de Nice, a residência do presidente do município, para uma recepção.
Recebeu flores das mãos de duas meninas em trajo nacional, assinou o seu nome no livre d'or, aceitou uma escultura de coral do presidente do município, Jacques Médecin (que também era ministro do Turismo do governo D'Estaing), e apertou a mão a alguns dos seiscentos convidados.
Um dos convidados era um homem bem vestido, fato de alpaca, com uma capa pelos ombros. De forte constituição, tinha um andar de felino. O rosto moreno era muito característico: olhos escuros cintilando de irónica diversão, com alguns fios cinzentos no cabelo castanho; um nariz francês comprido, queixo forte, sorriso pronto. Parecia à vontade, mas atento. Era o fotógrafo semioficial do presidente do município, Albert Spaggiari, mas não estava a tirar fotografias. Observava a segurança presidencial com interesse profissional.
Alguns dos guardas tinham pequenos alfinetes vermelhos na lapela; outros não eram superficialmente identificáveis. Spaggiari olhou duas vezes para uma mulher que usava a sua caixa de pó-de-arroz, e decidiu que era guarda de corpo. Lá fora, nos telhados, localizou mais outros.
Reforços policiais tinham vindo de Cannes, Toulon e até de Marselha. Nice fervilhava de polícias. A cidade encontrava-se sob segurança máxima. Estavam provavelmente até a verificar os esgotos à procura de bombas.
Eram os esgotos que preocupavam Spaggiari. Os seus planos estavam tão perto da materialização; mas houvera ontem o incidente de Castagniers, e hoje talvez estivessem a verificar os esgotos. Oh, Deus, e ele que gastara algum trabalho nesses esgotos...
Abrir o túnel desde a rede de esgotos até à parede da caixa-forte do banco levara a maior parte de Maio e Junho.
Dia sim, dia não, o Peugeot 504 cinzento-metalizado entrava no parque de estacionamento subterrâneo na Praça Massena por volta da hora da ceia e estacionava a um par de metros da porta da sala-sifão, bloqueando a visibilidade da câmara de televisão de circuito fechado. Então, uma furgoneta Citroen 2CV parava por detrás do Peugeot, escondida da câmara e portanto invisível para o funcionário da garagem no seu gabinete:
O Pedreiro e os seus ajudantes saíam da furgoneta Citroen, pegavam no seu equipamento, passavam pela sala-sifão e seguiam para a estrada subterrânea. Daí passavam pelos esgotos, curvados - os canos tinham menos de 1 m de altura -, na direcção do banco.
Dois homens trabalhavam à frente do túnel, um soltando a terra com picareta e outro removendo-a à pá. Um terceiro homem levava-a pelos poucos metros que os separavam do cano sem saída que servia como entulheira.
O túnel tinha apenas 70 cm de diâmetro no ponto em que dava para a rede de esgotos. Spaggiari insistiu que a entrada para o túnel tinha de parecer como se tivesse sido feita pelos operários dos esgotos da cidade, ou pela companhia dos telefones: as paredes de concreto tinham de ser pintadas da cor exacta. A ideia era que qualquer pessoa que tivesse de fazer trabalho legítimo na rede de esgotos durante o dia passasse pelo túnel de Spaggiari sem dar um segundo olhar. Para o fim-de-semana da visita presidencial a boca do túnel foi bloqueada com tábuas e pintada.
A medida que o túnel avançava, o Pedreiro seguia atrás dos cavadores, pondo pilares para sustentar o tecto do túnel e cimentando as paredes. O Pedreiro era um profissional, filho de um construtor, que verificara que os seus serviços atraíam recompensas mais elevadas da parte dos criminosos do que da indústria de construção. Foi ele que supervisionou esta fase da operação.
Spaggiari aparecia de tempos a tempos verificando o andamento dos trabalhos e trazendo sempre umas tantas garrafas de vinho para a garganta empoeirada dos trabalhadores. Uma vez pediu aos homens para ligarem os berbequins eléctricos enquanto passava por cima para saber se seriam ouvidos da rua.
O trabalho de abrir o túnel era debilitante para os dois homens da frente. Uma noite, um deles desmaiou. Houve um momento de pânico: o homem -G., o membro mais jovem do grupo- começou a tremer todo, e depois cedeu. Foi transportado para a sala-sifão e conduzido a casa.
A partir de então Spaggiari impôs aos trabalhadores do túnel um regime rigoroso. Cada grupo trabalhava um dia e descansava dois. Antes de descerem, tinham de abster-se de álcool e café, e deviam dormir dez horas. Deu-lhes tranquilizantes, e preparou injecções de estimulantes para o coração. Cada par trabalhava durante dez minutos e descansava outros dez. Finalmente Spaggiari trouxe o exaustor de fumos para manter fresco o ar do túnel.
Também durante este período instalou e verificou um elaborado sistema de vigilância.
O vigia nº 1 ficava ao nível da rua, mesmo à entrada do parque de estacionamento subterrâneo, sentado num Renault 5. Em caso de perigo, entrava no parque e passava pela sala-sifão até Marcel. Marcel então corria pela estrada subterrânea, entrava na rede de esgotos e fazia soar um apito.
O vigia nº 2 encontrava-se à entrada da estrada subterrânea do lado do rio, a cerca de 2 km, montado numa motocicleta. As suas instruções eram seguir pela estrada subterrânea, desmontar, entrar na rede de esgotos e apitar.
Assim, em caso de perigo em qualquer das duas entradas, os homens do túnel teriam oportunidade de escapar através da entrada de alternativa.
Para dupla segurança, o Renault 5 e a motocicleta estavam em contacto via rádio. (Spaggiari também queria ter contacto via rádio com a caixa-forte, mas a massa de concreto tornava isso impossível.)
Verificaram os apitos e descobriram que os homens do túnel conseguiam ouvi-los a uma distância de 180 m através da rede de esgotos, mesmo com três maçaricos a trabalhar a toda a força.
Também cronometraram o tempo que o motociclista levava da entrada aos esgotos. Um minuto e quinze segundos.
Uma noite na primeira semana de Julho os homens do túnel bateram na parede de concreto da caixa-forte do banco. Abriram uma área de cerca de 1 m de comprimento e Pousaram as ferramentas. O Pedreiro completou o seu trabalho de cimento e observou a obra. Estava tudo pronto.
A visita do presidente levou ao adiamento, mas ninguém descobriu o túnel de Spaggiari. O incidente de Cas-tagniers fez o grupo passar alguns maus momentos, mas os gendarmes pareciam ter esquecido o assunto.
O dia D foi marcado para sexta-feira 16 de Julho. O assalto estava em marcha.
A entrada
QUAND LA REALITÉ DÉPASSE LA FICTION
(Quando a Realidade Ultrapassa a Ficção...)
Título do Nice-Matin, 21 de Julho de 1976
SEXTA-FEIRA, 10.30 da noite
O Chinês meteu travões a fundo. O Land-Rover parou com uma chiadeira. Os quatro homens do assento de trás deitaram a mão aos cilindros de gás para os impedir de tombar. O condutor do autocarro de transportes públicos, que quase colidira com o Land-Rover, soltou uma obscenidade em surdina e continuou pela Rua de L'Hotel des Postes abaixo. O Chinês limpou a testa com um lenço aos quadrados.
- Porra - disse um dos homens.
- Não tive a culpa - retorquiu o Chinês. - O estúpido do autocarro...
- Continua a guiar - disse Albert Spaggiari, que ia sentado à frente ao lado do Chinês. - Ninguém te está a culpar. Vira à esquerda.
Com fingida indiferença pôs os pés no tablier e acendeu um charuto.
O Chinês não gostava do Land-Rover, mas Spaggiari insistia em usá-lo. Fazia-o lembrar-se da guerra da Indochina. O Chinês também não gostava da guerra. De facto, ele não gostava de Spaggiari, que lhe irritava os nervos ao querer parecer uma pessoa muito importante.
Voltou para a Avenida Pauliani e seguiu-a até à Praça do Quinzième Corps. Na altura da Igreja Nôtre-Dame Auxiliatrice meteu pela Avenida Dom Bosco. Um muro alto ladeava a rua. Por detrás dele ficava a cadeia da cidade.
Spaggiari mordeu a ponta de plástico do seu charuto e voltou-se para os homens que iam atrás.
- Começamos a partir da prisão. Não é um bom augúrio?
Ninguém se riu. Henri, o Soldador, levantou os dedos cruzados. Depois começou a falar a respeito do Tour de France, a corrida de bicicletas. Os outros juntaram-se-lhe um pouco ansiosos. Estavam nervosos.
Só um louco conseguia estar calmo.
O jipe chegou à margem do Paillon e parou.
A luz azul e branca da Gendarmerie - um quartel, não um posto da polícia - estava apagada. O salão de exposições da cidade, à distância, estava também na escuridão. O Chinês fez sinais com as luzes do veículo: dois longos, um curto. No leito do rio outra luz respondeu: dois longos, um curto. Tudo livre.
O Chinês desviou para a rampa de acesso, desceu por ali até à areia do leito do rio. O homem com a lanterna caminhou ao lado do Land-Rover. Outro homem deslocou a barreira baixa da estrada subterrânea, o jipe deu um solavanco ao penetrar pela boca do túnel e parou.
Spaggiari saltou para o chão.
- Tudo bem?
- Sim. - O homem que respondeu puxou de um walkie-talkie de dentro do casaco, pô-lo perto da boca e premiu o botão de transmissão. - Aqui é Roseau - disse baixo. - O lance está completo. Terminado.
- Aqui Massena. Manda-nos a mobília. Spaggiari falou ao homem da lanterna.
- Onde está a moto?
O homem atirou a cabeça para trás.
- Acolá. Não te enerves.
Spaggiari ergueu as sobrancelhas. O homem notou a reacção à luz da lanterna.
- Desculpa - disse rapidamente. Spaggiari começou então:
- Se acontecer alguma coisa...
- Aviso-te num minuto e quinze segundos.
- Depois abandonas a moto e desapareces pelo parque subterrâneo.
- Certo.
Spaggiari voltou a subir para o Land-Rover. O Chinês ligou as luzes laterais, fez passar o jipe por debaixo do arco e seguiu pelo túnel. O motociclista e o homem da lanterna tornaram a colocar a barreira baixa.
O Land-Rover ganhou velocidade, e o Chinês ligou os máximos. Os faróis iluminaram os restos de um terreno de construções: sacos vazios de cimento, tijolos, jornais velhos, cochos de pedreiro. Falara-se em transformar esta estrada numa auto-estrada que faria a circulação do tráfego dos arredores da cidade mesmo até ao Passeio Público dos Ingleses, mas o projecto nunca passou da prancheta. As únicas pessoas que usavam a estrada eram os trabalhadores do departamento de esgotos.
O jipe passou por um arco à esquerda, por onde se podia ouvir o fio de água de Verão do rio Paillon. Um pequeno exército de ratazanas pestanejou com as luzes, depois desapareceu por trás de um molhe de tábuas apodrecidas. O ar cheirava a mofo. Mais à frente, os faróis iluminaram um grupo de homens parado, à espera. O Land-Rover abrandou e parou ao lado deles.
O segundo grupo viera da Praça Massena, pelo parque de estacionamento subterrâneo e sala-sifão. Transportavam fatos de borracha, botas altas de água, luvas, ferramentas extras, mais dois barcos de borracha e várias câmaras-de-ar de camião. Encontravam-se agora na estrada subterrânea, junto à entrada da rede de esgotos, e metiam ar nos barcos de borracha.
Num quarto de hotel próximo, um médico estava instalado numa poltrona. Ia ficar de serviço permanente durante as próximas sessenta horas. Não era um verdadeiro médico, embora o tivesse sido até as autoridades descobrirem que andava a realizar abortos ilegais. Desde que perdera a sua licença encontrara um pouco de trabalho no milieu, assistindo a vítimas feridas a tiro que tinham razões para evitar os hospitais, polícias e esse género de coisas. Não o mantinha exactamente ocupado, mas servia para pagar a renda.
Spaggiari não dissera ao médico precisamente o que se ia passar neste fim-de-semana, mas não era difícil de adivinhar. Os problemas médicos que poderia ter de tratar incluíam asfixia, claustrofobia e ferimentos de natureza mecânica. Eles deviam andar a escavar um túnel algures. O médico não queria saber dos pormenores. Na segunda-feira de manhã receberia o seu dinheiro, iria para casa e sofreria um ataque de amnésia. Um homem tem de fazer pela vida.
Hoje em dia os abortos estavam a ser legalizados em metade do mundo, mas isso era a ironia da vida.
Na Avenida Verdun, perto do banco, mas não demasiado, estava estacionado um Renault 4 exactamente como os usados pela companhia de electricidade. Lá dentro tinha cinco cilindros de gás e um macaco hidráulico. O macaco era uma peça essencial do equipamento, mas era muito pesado. Quase tudo quanto Spaggiari precisava podia ser transportado ao longo dos próprios esgotos nos barcos de borracha e nas câmaras-de-ar; mas o macaco hidráulico teria afundado os barcos, de modo que tinha de entrar por um poço de inspecção em frente do banco. Esta seria a parte mais arriscada de toda a operação. Os homens do Renault fumavam nervosamente e esperavam pela palavra.
Na estrada subterrânea os homens que esperavam abriram a parte de trás do Land-Rover e baixaram uma rampa de descarga. A atmosfera era tensa: ninguém falava. Deliberadamente, Spaggiari apertou a mão a cada um, sorrindo, trocando umas palavras, procurando animá-los. Resultou.
Descarregaram o jipe e começaram a transferir o equipamento para o cortejo de barcos de borracha e câmaras-de-ar. O Pedreiro trouxera também um par de colchões-de-ar, de praia. Os barcos, os colchões e as câmaras-de-ar foram ligados como uma série de barcaças. Quando terminou o carregamento, os homens entraram na imundície dos esgotos e começaram a jornada através da rede de drenagem até ao banco. O Pedreiro era o primeiro da fila.
Caminharam a vau, dobrados - os canos tinham menos de 1 m de diâmetro -, por uma distância de 100 m por debaixo da Rua Chauvain; voltaram à esquerda por debaixo da Rua Gioffredo e mesmo na Rua St. Michel; e tiveram de vencer mais outros 200m até ao banco. O Chinês praguejava: as botas ficavam-lhe pegadas à lama do fundo dos canos de esgotos.
O cortejo parou à entrada do túnel que o bando fizera. O Pedreiro entrou no túnel e desenrolou o tapete de corda, que tornaria mais fácil puxar equipamento pesado pelos 8m de túnel até à parede da caixa-forte. Os outros começaram a descarregar o material.
O túnel cheirava a imundície e a acetona. Henri, o Soldador, encostou à parede dois cilindros de gás, ligou-lhes o maçarico e baixou a pala azul dos óculos de soldar. Estava a dar uma última lição ao Corso.
Ligou o maçarico e acendeu o isqueiro. A longa chama cor de laranja fez surgir sombras gigantes nas paredes do túnel.
- Quando baixares a chama, fica mais quente. - Fez a demonstração, e o maçarico começou a ficar azul e a sibilar.
Tirou uma lata de solda do saco e pôs-lhe a chama por cima.
- Aponta sempre para o fundo , e solda com curtos toques; de outro modo a substância escapa-se do metal e não pega.
Ouviu-se um grito dos esgotos.
- Oh, merda! Era o Chinês.
Alguém riu.
- Que aconteceu?
- Escorregou e ficou com a bota cheia de porcaria. O riso aliviou a tensão.
O equipamento estava amontoado no túnel e os barcos foram buscar outra carga. Nos noventa minutos seguintes, 1t de material foi transferida da estrada subterrânea para o túnel.
O Pedreiro inspeccionou o tecto e verificou que algumas das estacas na segunda metade do túnel tinham afundado na lama. Pôs-se ao trabalho para pô-las em posição firme. De volta ao parque de estacionamento subterrâneo da Praça Massena alguém ligou a ficha do cabo eléctrico, e de repente dois projectores inundaram o túnel de luz.
Uma patrulha da polícia atravessou a Praça Massena. No Renault 5, o vigia levou aos lábios o seu walkie-talkie.
- Aqui Massena. A gaivota voa baixo.
À entrada para a estrada subterrânea o outro vigia atendeu.
- Recebido. Chamou o motociclista.
- Chuis perto do parque subterrâneo.
O motociclista montou na moto e pô-la a trabalhar.
O carro-patrulha passou pela entrada do parque subterrâneo e continuou para a Avenida Jean Médecin. O vigia do Renault 5 riu-se, aliviado.
- Tudo limpo - disse para o walkie-talkie. O motociclista desligou a moto.
SÁBADO, 1.30 da manhã
O Pedreiro e o Corso estavam deitados lado a lado do túnel, a brocar. Os projectores de 200 W e as ferramentas eléctricas tornavam a atmosfera terrivelmente quente, e o suor saía das costas musculadas dos dois homens. O exaustor de fumos trabalhava a toda a força.
A parede da caixa-forte, de concreto reforçado” tinha 30 cm de espessura, mas o grupo conseguira na semana anterior chegar a metade dessa espessura. Na primeira noite Spaggiari ficara parado em frente do banco enquanto o grupo no túnel fazia funcionar quatro martelos de compressão simultaneamente: não ouviu nada.
O Pedreiro e o Corso abriram com berbequins catorze buracos a intervalos de 1,5 cm. Então recuaram de rastos para deixar entrar o Chinês. Spaggiari passou-lhes toalhas e garrafas de água mineral, e eles beberam sofregamente.
O Chinês, com martelo e escopro bateu no concreto entre os buracos para o desfazer. Usava óculos de protecção, mas uma lasca já lhe ferira a face. Contou cinquenta golpes com o martelo grande, depois trinta com o pequeno; então recuou e deixou P. tomar o seu lugar. Oitenta pancadas era tudo quanto conseguiam dar de cada vez.
Atrás deles um quinto homem ia retirando os detritos à pá para dentro de sacos, e um sexto homem levava-os dali num carrinho de mão.
O Pedreiro esvaziou a garrafa de água e pôs um braço pelos ombros de Spaggiari.
- Que é que estamos a perder esta noite na TV?
- Os Intocáveis - disse Spaggiari. Riram todos.
A atmosfera estava calma, mas tinha havido antes um momento de tensão. Os homens estavam a fazer conta de usar o laser sobre a parede de concreto, mas Spaggiari anunciara que não era possível: a máquina criava demasiado calor, gás e fumo para se usar com segurança num espaço confinado, especialmente sem o vestuário especial necessário. Apenas comprara a máquina para manter elevado o espírito dos homens. Houvera queixas de amotinação quando descobriram que iam enfrentar outra noite a trabalhar com os berbequins, martelos e escopros; mas, como Spaggiari calculara, estavam demasiado próximo da meta para se rebelarem agora. O momento passou.
Marcel, o vigia da sala-sifão, chegou.
- Como vai?
- Que estás a fazer aqui? - perguntou-lhe Spaggiari.'
- O Roger ficou em meu lugar.
Roger estava a cumprir pena de três anos de prisão em Marselha, e fora autorizado a sair com licença de fim-de-, -semana para visitar a mãe. Em vez de ir a casa decidira ganhar um milhão de francos antes de regressar à cela.
- Como vai? - repetiu Marcel.
- A parede parece um pouco oca desta vez - respondeu P. - Acho que estamos quase lá. Devemos provavelmente entrar desta vez.
SÁBADO, 10.30 da manhã
Os escopros estavam rombos e os homens meio mortos, mas a parede mantinha-se firme. Quatro homens; encontravam-se estendidos no tapete de corda, demasiado cansados para se mexerem: o Pedreiro, Henri, o Soldador, Marcel e Roger. Nos esgotos, outros oito homens, com botas de água, faziam exercícios para activar os músculos com cãibras: agitando os braços, esticando-se, balouçando-se. A única coisa que não podiam fazer era porem-se completamente direitos. Roger praguejou.
- Ainda aqui estaremos amanhã. Vamos ter de usar o laser.
- Não - disse Spaggiari com firmeza. - Não compreendes o que significa uma temperatura de cinco mil graus num espaço como este? Ficávamos todos fritos.
- Podíamos montar a máquina e esperar nos esgotos.
- O fumo ia asfixiar-nos. Aliás, o fumo ia subir pelos pecos de inspecção para a rua. Podíamos também entregar-nos já à polícia.
Seguiu-se um silêncio significativo. Spaggiari acendeu um charuto.
- Quem quiser desistir só tem de dizer.
O Pedreiro assentiu com um gesto fatigado, levantou-se e voltou para a parede. O Chinês foi ter com ele.
Spaggiari escondeu um suspiro de alívio. A crise passara.
SÁBADO, 4.00 da tarde
- Santa Mãe de Deus.
O Pedreiro estava prestes a ter um colapso. O escopro parecia estar soldado à pele da sua mão. Os olhos ardiam-lhe, sentia-se quente de mais e precisava desesperadamente de dormir. O cimento despegava-se um pedaço de cada vez das varas de aço que o reforçavam.
Descontrolou-se. Aplicou o escopro no cimento e lançou o martelo com toda a sua força. O concreto esmigalhou-se; o escopro escorregou por ali dentro; e a força do golpe actuou tanto no cabo do escopro como no Polegar do homem, indo ambos para dentro do espaço. O Pedreiro gritou de dor e desmaiou.
Ficaram passados.
Num relâmpago, Spaggiari estava ao lado do Pedreiro. Suavemente, puxou a mão do homem de dentro do buraco.
Arrepiou-se todo: o polegar parecia um bocado de bife cru. Deu-lhe logo uma injecção de novocaína.
Só então olhou para a parede.
- Que aconteceu? - perguntou o Chinês.
- Conseguimos! - disse Spaggiari. - Furámos a maldita parede.
Todos começaram a rir e a aplaudir.
Foram precisas outras cinco horas para fazer o buraco suficientemente largo para um homem passar por lá confortavelmente. O Pedreiro estava fora de acção, ainda a tomar drogas por causa da dor, mas agora ninguém se importava com o trabalho. Quando o resto do cimento foi desfeito e levado dali, o Chinês atacou as varas de aço enterradas na parede, cortando-as com o maçarico de oxi-acetileno e dobrando depois as pontas para desimpedir a passagem.
Quando terminou, fez sinal a Spaggiari.
Albert ajoelhou-se no tapete de corda e espiou para dentro do buraco. No outro lado, como esperara, encontrava-se a parte de trás de um dos armários blindados que continham as caixas de depósito em cofre. 30t, dissera o guarda que pesava. Spaggiari voltou-se e falou para René.
- Vai. Comunica ao Marcel.
SÁBADO, 9.00 horas da noite
René, a quem chamavam o Poeta por causa dos seus olhos românticos e cabelos compridos, seguiu apressado por ali fora, as mãos a raspar ao longo dos lados do cano.
Chegou à estrada subterrânea e correu para a sala-sifão, onde Marcel estava à espera.
- O macaco hidráulico - arfou ele.
Marcel entrou no parque de estacionamento subterrâneo, foi a correr até às escadas e saiu para a rua - a Rua Félix Faure. Levantou a lanterna, apontou-a para o outro lado da rua e deu dois sinais de luz rápidos.
O Renault 5 que aguardava replicou com dois curtos sinais dos faróis, depois afastou-se e entrou na Avenida Verdun. O Renault 4, que tinha o aspecto de uma furgoneta da companhia de electricidade, encontrava-se aí à espera, luzes apagadas. O Renault 5 deu uma buzinadela rápida quando passou pelo carro mais pequeno.
O capitão V., o veterano de Vietname, e G., o argelino, não estavam dentro da furgoneta, mas sentados ali perto, no muro baixo que circundava o Parque Albert I. Haviam esperado quase vinte e quatro horas - muito mais do que contavam. Viram o Renault 5 desaparecer na Rua Paradis, depois entraram na furgoneta.
No lugar da frente, enfiaram com dificuldade os fatos-macaco azuis e os bonés a condizer dos trabalhadores da companhia de electricidade. O argelino pôs a furgoneta em movimento.
Pararam a um sinal vermelho no Passeio Público dos Ingleses, diante do Hotel Meridiano. Na borda do passeio encontravam-se dois polícias a falar com três motociclistas, examinando-lhes as licenças. O semáforo passou a verde.
O argelino seguiu em redor do quarteirão, Avenida dos Phocéens, Praça Massena, Rua Gioffredo, Rua St. Michel... a furgoneta parou na esquina da Rua Gustave De-loye com a Rua de LHôtel des Postes. O argelino parou o motor e ambos os homens saíram.
Mexiam-se rapidamente, mas tentavam agir naturalmente, como se tivessem todo o direito de estar ali. Do outro lado da rua, os bebedores nocturnos na Taverne Alsacienne observaram, despreocupados, das suas mesas da esplanada.
O argelino colocou uma luz azul e um sinal de “Perigo - Homens a trabalhar” ao lado do poço de inspecção. O capitão V. tirou uma picareta da parte de trás da furgoneta e usou-a para levantar a tampa do poço de inspecção. A tampa estava marcada com o nome do fabricante, Pontamousson. O capitão V. deslizou para dentro do poço.
O argelino levantou o macaco hidráulico da parte de trás da furgoneta com considerável esforço. Pesava 50 kg. Com cuidado, desceu-o para dentro do poço de inspecção.
O capitão V. tomou o peso, depois passou o macaco hidráulico para os homens que estavam à espera nos esgotos por debaixo dele.
Saiu do poço e voltou a colocar a tampa.
Os dois homens de fatos-macaco azuis tiraram a luz azul e o sinal de perigo e voltaram para a furgoneta. O argelino pôs o motor a trabalhar e o veículo afastou-se.
A furgoneta parara ali precisamente vinte e seis segundos.
No esgoto alguém tornou a acender a luz. O Chinês e o Corso tinham o macaco hidráulico em cima dos ombros. Cautelosamente, com dificuldade, transportaram-no ao longo do cano de drenagem até à entrada do túnel. O Pedreiro guiava-os; tinha o polegar ferido envolto numa ligadura e o braço suspenso com uma tira de pano.
Pousaram o macaco hidráulico no tapete de corda e puxaram-no por todo o túnel até ao buraco na parede da caixa-forte.
Roger, o preso com licença de quarenta e oito horas, estava a fixar uma escora para o macaco. Escolhera uma trave pesada e metera-a a prumo entre o chão e o tecto do túnel.
Spaggiari e P. levantaram o macaco hidráulico, puseram-lhe uma cunha na base contra a escora de madeira e manobravam-lhe a cabeça através do buraco da parede. O Chinês começou a accionar o macaco. A cabeça da máquina tocou na parte de trás do armário de aço de 30t no interior da caixa-forte, e a máquina ficou em tensão. Gingerly, Spaggiari e P. soltaram. O macaco hidráulico actuava em forma de cunha.
O Chinês continuou a manobrar a máquina. O armário tinha de mover-se quase 60 cm. Spaggiari calculou esta distância com precisão: 50 cm. Seria o suficiente para deixar passar os homens, mas não o suficiente para fazer tombar o armário e fazê-lo cair de frente.
O Chinês começou a transpirar abundantemente. P. mediu a distância que o cofre se movera até então. René segurava uma trave com exactamente 50 cm de comprimento.
- Muito bem... é isso - disse P.
O armário movera-se aproximadamente 52 cm. René meteu a trave no espaço ao longo da alavanca do macaco hidráulico, e o Chinês aliviou a máquina.
Com dolorosa lentidão o armário de aço inclinou-se para trás e veio descansar na trave de René. A trave rangeu, fazendo força contra a escora do túnel, mas aguentou-se.
O Chinês baixou o macaco hidráulico até ao chão.
Spaggiari meteu-se pelo buraco e entrou na caixa-forte do banco.
A saída
PORNO E EMPADAS NA FESTA DE “GANGSTERS” MILIONÁRIOS
Título do Daily Express de Londres
DOMINGO 2.00 horas da manhã
A lanterna de Spaggiari lançou um facho esmaecido pelo mobiliário da caixa-forte: mesas de aço, cadeiras velhas, armários brindados. Era um mundo morto.
Henri, o Soldador, foi o segundo a passar pelo buraco, arrastando atrás de si o seu maçarico e os depósitos de gás. Sabia o que tinha a fazer. Rapidamente, sem falar, foi até à porta da caixa-forte. Acendeu o maçarico, depois com cuidado soldou a porta ao caixilho. Agora, na hipótese improvável de que os funcionários bancários tivessem uma razão para entrar na caixa-forte durante o domingo, encontrariam a porta encravada e dariam muito tempo ao bando para se escapar.
O Corso cobriu o caixilho da porta com cimento plástico, vedando as fendas. Fez o mesmo às grades de ventilação das paredes da caixa-forte. Agora, nem luz, nem fumo, nem barulho poderiam sair para o mundo exterior.
Só então é que Spaggiari ligou as luzes.
O resto do grupo entrou rapidamente na caixa-forte, trazendo o equipamento consigo, e foi trabalhar com determinação .
O Boxer serviu-se de uma serra de aço para deitar abaixo a grade de ferro que separava a sala de depósitos da sala do tesouro; depois fez o mesmo ao separador semelhante que fechava o cofre nocturno.
O Chinês e o Corso foram trabalhar nos cofres. Derreteram as dobradiças, depois fizeram um buraco de 15 cm na porta para utilizarem a força de alavancas. Finalmente arrancaram a porta com picaretas e malhos. Uma vez dentro do armário, foi uma simples questão de abrir as caixas individuais de depósito em cofre actuando nas portas com o maçarico e com o martelo nas linguetas e forçando-as com um pé-de-cabra.
A histeria atingiu-os de súbito.
Num momento o grupo trabalhava com eficiência e calma, profissionalmente: com a consciência tensa pelo perigo em que se encontravam, concentrados em retirar tanto do tesouro quando pudessem nas cerca de vinte e quatro horas de que dispunham. No momento seguinte estavam todos a explodir de riso.
Todos eles, até ao mais modesto amador demi sei, estava há semanas a sonhar com este momento. O esforço de mais de um dia no túnel, tentando penetrar na parede da caixa-forte, esticara-lhe os nervos como pele de um pandeiro. Agora, de repente, sentiram que o tinham conseguido: encontravam-se dentro da caverna de Ali Babá, protegidos do mundo por uma porta de aço soldada, a servirem-se de riquezas nunca sonhadas - pilhas de barras de ouro, sacos cheios de notas de banco, montes de jóias de preço incalculável.
Perderam a cabeça.
Riram-se às gargalhadas, bateram nas costas uns dos outros e abraçaram-se. O Poeta ficou todo com tremuras. O Chinês agarrou um punhado de Pinay -títulos do governo- e atirou-os ao ar, gritando: Confetti! Os outros seguiram-lhe o exemplo. Certificados de acções, títulos de dívida, contratos, testamentos, notas de banco, titulos negociáveis, tudo voou pelos ares. Era como uma fita cómica.
Só Spaggiari e o Pedreiro se mantinham alheios a tudo-O Pedreiro, que continuava com dores no dedo esmagado, resmungava:
- Esses bocados de papel valem dinheiro. Alguns deles são títulos ao portador... qualquer pessoa pode fazer dinheiro com eles. Não há perigo nenhum.
- Eh, esquece isso, sim? - replicou Spaggiari. - Teremos mais do que podemos transportar em dinheiro, ouro e pedras.
- Não vejo por que razão deitamos dinheiro fora.
- Decidimos tudo isso antes - disse Spaggiari com firmeza. - Só levamos ouro, dinheiro, pedras preciosas e jóias. Agora, simplesmente, esquece.
Decidiu que a histeria fora longe de mais. Andou pela caixa-forte, falando a cada um em voz baixa, acalmando-os. Quando o lugar voltou a ficar sossegado, dirigiu-se a todos.
- Muito bem, vamos fazer uma pausa para jantar.
A ideia foi acolhida com aclamação geral. Haviam passado quase trinta e seis horas sem outra coisa que não um ocasional quadrado de chocolate e uns golos de água mineral. Agora, Spaggiari, tal qual o mágico que faz sair coelhos do chapéu, apresentou empadas, salame, salsichas com alho, sopas desidratadas, queijo, uvas e laranjas.
O Pedreiro pôs uma caçarola com água mineral a ferver no fogão portátil.
- Quem quer sopa de ervilhas com toucinho?
- Para a próxima - disse alguém -, tens de trazer um forno para nos fazeres um bolo.
O Chinês encontrou uma pizza embrulhada em celofane.
- Comida reles - escarneceu. Depois descobriu empadas de fígado de ganso e agarrou-as todo contente.
Henri, o Soldador, montou um piquenique na mesa de aço. A toalha era feita de papéis das caixas de depósito em cofre. A ementa: peixe, cebolas cruas, empadas, iogurte e tosta.
Spaggiari pegou numa salva de ouro com o brasão de uma família nobre e passou-a ao Pedreiro.
- Dá-me um pouco dessa sopa, faz favor.
O Poeta abriu o vinho, um Margnat Village, e deitou algum numa taça de prata para Henri, o Soldador.
- Podíamos beber melhor que isto - comentou Henri.
- Talvez monsieur tivesse preferido o Mouton Rothschild de 47, ou talvez o Gevrey Chambertin de 59? - replicou o Poeta. - Não acha, monsieur, que já tivemos de arrastar bastante porcaria por esses malditos esgotos?
O Corso estava sentado num cilindro de gás a ver algumas fotografias que encontrara numa caixa de depósito e beberricava um copo de vinho.
- Já vi melhor - comentou, e passou-as aos outros.
Tratava-se de pornografia de amador, mostrando pessoas nuas, principalmente de meia-idade, envolvidas em várias contorções sexuais. Algumas caras eram reconhecíveis. Todos pareciam muito ridículos.
- Estes são gente da alta - observou alguém com espanto. - Devíamos expô-las. - E colou umas tantas fotografias na parede.
Spaggiari chamou o Pedreiro, que se transformara em cozinheiro, uma vez que já não podia ajudar no trabalho pesado.
- Eh, criado, que tal um café?
- É já, senhor.
Spaggiari distribuiu charutos e cigarros. De repente alguém pediu silêncio.
- Psiu! Por amor de Deus, ouçam!
A sala caiu num silêncio mortal.
Todos ouviram, muito claramente, um ruído leve mas distinto que vinha do cofre nocturno.
Spaggiari atravessou a caixa-forte em pontas de pés e entrou na pequena sala triangular de onde surgira o ruído.
O Rolls-Royce branco parou na Rua de l'Hotel des Postes e três homens saíram. Um era o homem do saco e os outros dois os seus guarda-costas. Os três eram jovens, enormes, atléticos, e estavam armados. Olharam nervosamente pela rua iluminada pelo luar, como alguém olha à volta nervosamente quando está encarregado de depositar cento e setenta e cinco mil dólares, não importando se se é jovem, enorme, atlético e se se está armado.
A receita de uma longa noite de sábado no casino encontrava-se no saco. A habitual multidão de jogadores de Nice estivera lá, mais os turistas: ingleses, alemães, americanos e árabes. Especialmente árabes.
Os três homens do Rolls não sabiam exactamente quanto se encontrava no saco, pois outra pessoa contara a receita, preenchera os impressos e selara as caixas; mas sabiam que era uma boa porção, uma soma de dinheiro por que valia a pena matar.
Atravessaram o passeio até à parede do banco. Os dois guarda-costas olharam rua acima e rua abaixo enquanto o outro homem abria a pala de aço da parede, girava a chave na pequena porta e deixava cair o saco no cofre.
Os três homens ficaram mais calmos. O dinheiro estava em segurança.
Entraram no carro e afastaram-se.
O saco caiu pelo cano abaixo e foi parar nos braços de Spaggiari.
Este deu um pequeno toque na testa em gesto subserviente.
- Muito obrigado, senhor. Durma bem. Os outros acharam a coisa hilariante.
Spaggiari rebentou o saco e passou os olhos pelo dinheiro.
- Cerca de um milhão de francos - disse como por acaso. - Deve ser a receita do casino.
Apagou o charuto e voltou ao trabalho nas caixas de depósito. Os outros imitaram-no. O tempo corria.
Mais uma vez Spaggiari impôs um sistema por turnos, forçando os seus homens a pausas regulares para descanso e restauração de energias. O Chinês queria continuar a trabalhar, mas Albert não queria ouvir falar nisso.
- Estamos a pisar os pés uns dos outros.
O ar na casa-forte tornou-se desagradável, apesar do exaustor, e Spaggiari teve de esforçar-se por manter o moral elevado.
A determinado momento apareceu Roger, vindo do túnel.
- A água está a subir lá fora. Deve ser uma tempestade.
- Estamos em segurança - disse-lhe o Pedreiro. - Há drenos de tempestade. De resto, o vigia avisa-nos se subir demasiado.
Roger decidiu comer qualquer coisa.
- Empada de fígado de ganso, nada senão empada de fígado de ganso - parodiou. - Que género de comida é esta para dar a um preso?
DOMINGO, 10 horas da noite
O joalheiro entrou pelo parque de estacionamento subterrâneo, Marcel conduziu-o pela rede dos esgotos até à caixa-forte. Enojado, sacudiu a sujidade das botas de água. Era um homem esquisito, com gestos efeminados.
Marcel mostrou-lhe as jóias. A sua expressão de desagrado transformou-se em cobiça, quase luxúria, quando começou a examinar as pedras. Pôs a lupa no olho. Diamantes, rubis, safiras, esmeraldas, ouro e prata: nunca vira tanta riqueza na sua vida. Algumas das peças pô-las de lado, como que mal merecendo o trabalho de receptador. As melhores pedras pô-las em sacos de veludo preto, e os saquinhos de veludo desapareceram num saco azul maior. De vez em quando bebia um golo de água mineral. Ia avaliando a presa à medida que prosseguia.
- Quinhentos mil francos... e cinquenta são quinhentos e cinquenta mil... e oito mil são seiscentos e trinta mil francos... e vinte...
Descobriram uma maneira mais rápida de chegar às caixas de depósito em cofre. Alguns dos armários eram duplos, com uma porta na frente e outra na parte de trás. Em vez de abrir tanto a porta da frente como a de trás, aperceberam-se que podiam tirar todas as caixas da metade da frente do cofre, depois penetrar pela fina divisória e atingir a traseira da outra série de caixas, com isso poupando o esforço de rebentar a outra parte de trás do cofre.
Spaggiari indicou quatro homens - o Poeta, o Capitão V., Roger, o Prisioneiro, e Boxer - para escolherem o resto da presa. Embrulharam com cuidado os lingotes de ouro, servindo-se do papel em que as ferramentas estavam embrulhadas. O dinheiro e as jóias foram para sacos de plástico preto que Spaggiari trouxera.
- Temos de deixar aqui todas as ferramentas? - perguntou Roger.
- Para que é que precisamos mais delas? - retorquiu o Chinês. - Para vender na feira da ladra?
SEGUNDA, 5.00 horas da manhã
- Pronto - fez Spaggiari. - São horas de ir embora.
O Pedreiro fechou o gás dos maçaricos. Henri, o Soldador, afastou os óculos para a testa. Tinha a cara cheia de fuligem, suor e pó, e os olhos orlados de vermelho.
- Já? - quis saber Henri. Olhou para o relógio. - Cristo, é de manhã.
Haviam arrombado menos de quatrocentas das quatro mil caixas de depósito. De certo modo era frustrante ter de deixar tanta riqueza intacta. Mas quando pensavam no que já possuíam, pouco parecia importar o que deixavam lá.
Spaggiari organizava a partida. A presa foi transportada Pelo túnel e posta nos barcos de borracha. O Poeta sugeriu Que retirassem a trave que mantivera o cofre inclinado todo o fim-de-semana.
- Assim vão levar mais tempo a descobrir como entrámos.
Spaggiari não estava interessado: queria apenas sair dali rapidamente, já.
O Pedreiro foi o último a sair da caixa-forte. Apagou a luz.
O comboio de barcos, colchões e câmaras-de-ar, agora carregados de ouro, dinheiro e jóias, foi rebocado através da rede de esgotos até à estrada subterrânea. Aí transferiram a presa para o Land-Rover. Pelo caminho os homens abandonaram luvas, óculos e ferramentas diversas.
Iam tirando os fatos-macaco impermeáveis e desaparecendo aos dois ou individualmente através do parque de estacionamento subterrâneo.
Henri, o Soldador, o Corso e Spaggiari entraram no Land-Rover. O Chinês pôs o motor a trabalhar e olhou para trás. O Pedreiro, que estava ainda a tirar as roupas, fez um sinal com o polegar entrapado. O jipe afastou-se.
O Chinês apagou os faróis quando viu a luz do dia ao fundo da estrada subterrânea. O motociclista, ainda de vigia, deu sinal de caminho livre. Henri e o Corso saltaram do veículo e retiraram a barreira.
O Chinês levou o jipe para a luz do dia.
O motociclista montou na moto e afastou-se. Henri e o Corso voltaram a colocar a barreira na estrada subterrânea e tornaram a subir para o Land-Rover.
O Chinês conduziu através do leito arenoso do rio e depois pela rampa de acesso à rua. O Land-Rover passou pelo salão de exposições e desapareceu em direcção a Laudi-mères.
A cidade estava agora a acordar. Em frente do banco, o homem da limpeza varria o passeio ao longo da Rua Gustave Deloye. Os cafés levantavam os estores. O Sol surgia no céu por cima da baía dos Anjos.
Ia ser um dia bastante quente.
Começa a investigação
Partez en vacances, sans souci, louez un coffre à la Société Générale.
(Vá para férias sem receios - alugue um cofre à Société Générale.) Anúncio
É este o pesadelo do banqueiro: parado, sozinho, no interior do banco deserto, atrás de portas fechadas à chave e trancadas; enquanto lá fora, no passeio, uma enorme multidão de irritados depositantes praguejava aos gritos e exigia o seu dinheiro.
O pesadelo do assalto tornava-se público na tarde anterior, quando um detective conversou com um repórter do Nice-Matin. Às 17.30, Guy Salignon, locutor de noticiário da estação de rádio Europa-1, emitira um boletim especial. Pelas 17.45 a notícia estava na Rádio Monte Carlo, e, passados minutos, metade dos jornais do mundo estava em contacto telefónico com Nice.
A multidão começou a juntar-se à porta do banco por volta das 21.00. Algumas dessas pessoas ficaram lá toda a noite. Pelas 8.30 da manhã estavam prestes a amotinar-se.
Uma mulher desmaiou. Outra sentou-se no lancil do passeio chorando em silêncio. Falava-se em linchar Guenet. Um jovem bem vestido, suspenso no portão de ferro trabalhado, gritava como louco. Acalmou-se para dar uma explicação aos repórteres.
- Meu pai tem lá dentro uma caixa de depósito com as economias da sua vida. Tem 80 anos. Se eu não puder tranquilizá-lo... se não puder dizer-lhe que o seu dinheiro está em segurança... isto vai matá-lo.
Um cliente histérico gritava para a polícia que controlava a multidão:
- Vocês tratam-nos como se fôssemos os ladrões. Quando os empregados do banco chegaram, a multidão cuspiu-lhes. As tentativas da polícia para fazer andar as pessoas não eram muito persuasivas, pois elas mantinham-se simplesmente sentadas no passeio. O jovem bem vestido levou o seu carro para uma zona de estacionamento proibido e recusou-se a sair de lá.
Um cliente trouxe consigo um luissier de justice - um funcionário combinando as atribuições de um beleguim inglês com as de um notário americano. Queria ver a sua caixa, exigia, e quase chegou a vias de facto com um empregado do banco. Finalmente voltou-se para o luissier,
- Faça o favor de testemunhar que eles me impedem de ver a minha caixa e recusam toda a cooperação.
Em vão os funcionários do banco explicavam que a caixa-forte tinha de ser arrumada, e que a polícia dera estritas instruções para que não autorizassem ninguém a entrar.
- Vai dizer isso à mulher a dias - gritou alguém. Por fim, Guenet emitiu um comunicado. Apenas uma
pequena parte das caixas de depósito em cofre fora aberta, dizia. Todavia, não dava uma lista dos números. Em vez disso, indicou as áreas numéricas aproximadas em que as caixas foram roubadas. Pedia aos clientes com caixas nessas áreas para apresentarem um inventário do conteúdo da caixa, e assegurava-lhes que satisfariam todas as reclamações.
Os inventários seriam apresentados pela polícia.
Este plano enfureceu os clientes ainda mais, mas do ponto de vista do banco era a única via possível de acção. Desta maneira ninguém podia ter a certeza de que a sua caixa fora roubada, e portanto ninguém seria tentado a apresentar um inventário desonesto e a reclamar uma compensação acima do que perdera. Não obstante, os clientes consideravam que o banco estava a tratá-los como ladrões.
Muitos deles, simplesmente, ressentiram-se por lhes pedirem um inventário.
- Aluguei uma caixa para segurança e privacidade - dizia um. - Prometeram-me isso quando a aluguei. Não deixaram só de dar-me segurança... também exigem que os meus assuntos pessoais sejam expostos a todo o chui indiscreto de Nice.
Alguns clientes ficaram satisfeitos com o comunicado.
- Sei o que estava no meu cofre e posso prová-lo. Não tenho nada a esconder. O banco está no seguro, e serei reembolsado. Toda a gente o será. Não há motivo para preocupações.
- A caixa-forte é como a linha Maginot - dizia outro cliente. - Foi invadida pelo outro lado. Tiro o chapéu aos assaltantes: se ao menos as obras das estradas se fizessem com tanta facilidade...
Outro cliente conseguiu chegar à fala com Guenet.
- Não lhe direi nada. Fiz o meu dever.
O cliente repetiu para os repórteres esta desajeitada observação.
A inabilidade das relações públicas do banco piorava ainda mais com as cinco mil brochuras de reclame que o banco distribuíra pouco tempo antes do assalto. Por debaixo de uma" fotografia de um apartamento roubado lia-se: “Vá para férias sem receios - alugue um cofre à Société Générale.”
Ia haver mais demora. A polícia aceitava as reclamações na Avenida Foch, 1, a partir de 28 de Julho. Os clientes receberam instruções para se apresentarem com documentos de identificação e com os seus inventários.
Sete das trezentas e dezassete vítimas declinaram fazer reclamação. Um homem fez uma reclamação falsa e pagaram-lhe duzentos mil francos por joalharia perdida; mas devolveu o dinheiro depois de descobrir que a mulher retirara as jóias da caixa quando fugiu com outro homem.
Juntando o insulto à injúria, o banco comparava o valor de cada inventário com o estado da conta bancária do cliente, e investigou casos em que o cliente parecia demasiado pobre para ter tanta riqueza numa caixa de depósito em cofre.
Por fim o banco começou a pagar: cinco clientes por dia. Antes de receber a sua indemnização, cada um tinha de assinar um documento em que se comprometia a devolver o dinheiro no caso de serem recuperados os seus haveres e estes lhe serem devolvidos.
Os directores do banco emitiram outro comunicado, pedindo desculpa pelo roubo havido. Os clientes receberam-no com um misto de desprezo e riso histérico.
A Société Générale perdeu muitos clientes.
Os clientes cujos cofres foram arrombados foram também identificar os valores que os assaltantes haviam deixado espalhados pelo chão da caixa-forte.
No dia 23 de Julho, a central de Paris do banco meteu-se no caso para salvar a sua reputação antes de ser demasiado tarde. O director-geral, Monsieur Laure, anunciou uma recompensa de um milhão de francos por informações que conduzissem à condenação dos ladrões. Tinha a esperança que isso motivaria a investigação da polícia.
A investigação precisava realmente de um incentivo.
Havia muito poucas pistas - ou talvez fosse mais exacto dizer que havia centenas de pistas, mas nenhuma delas levava a parte alguma.
A maioria do equipamento abandonado constava de ferramentas vulgares que podiam ter sido compradas em qualquer loja de França de entre um milhar delas. As chaves de parafusos tinham a marca Kilt - o nome de fábrica da cadeia de armazéns das Nouvelles Galeries, a qual vendia milhares dessas chaves de parafusos todos os anos- Os cilindros de gás para os maçaricos de oxi-acetileno eram numerados, e assim podiam ser seguidos até ao fabricante; mas acabaram por ter sido roubados de um terreno para construções em Vitrolles, perto de Marselha. Algumas das picaretas tinham cabeças de tungsténio, o que as tornava ligeiramente invulgares. Os detectives deram uma volta pelas lojas do ramo.
- Uma marca excelente - diziam os proprietários.
- As melhores do mercado. Vendemos dúzias delas. Não podia lembrar-se de todos os clientes.
Os sacos de lona foram identificados como tendo vindo de um centro comercial de Milão que vendia centenas deles. E por aí adiante.
Os homens das impressões digitais espalharam pó por toda a caixa-forte e por todas as peças do equipamento encontrado. Evidentemente que havia centenas de impressões digitais por todos os cofres e caixas em que os clientes os tinham metido. Mas nas ferramentas, maçaricos, cilindros de gás, material de borracha inflamável e até nas garrafas de vinho não havia uma única impressão digital. Todos os assaltantes tinham usado luvas durante todo o tempo.
As garrafas de água mineral para onde os assaltantes tinham urinado foram enviadas para análise química. Mas o bando pensara nisso mesmo, e o laboratório informou que nada se podia descobrir a partir da urina porque mais que uma pessoa urinara para cada uma das garrafas.
Por breves instantes emergiram esperanças quando uma pessoa
entrou na esquadra da polícia na Avenida Foch, 1, e anunciou que vira o bando.
- Estava a tomar uma bebida a uma mesa da esplanada da Taverne Alsacienne, no sábado à noite. Um Renault 4 estacionou em frente do banco e dois homens levantaram a tampa do poço de inspecção. Não prestei atenção... pensei simplesmente que estavam a fazer algumas reparações eléctricas urgentes.
- Pode descrevê-los?
- Traziam fatos-macaco azuis. Foi tudo quanto vi.
A princípio os detectives pensaram que talvez encontrassem um lojista que se lembrasse de vender cerca de 300 m de cabo eléctrico a um cliente; então descobriram que o cabo era constituído por diversos pedaços de 45 m ligados.
A polícia ficou reduzida às informações de proxenetas, Prostitutas, traficantes de droga e demi seis nos cafés e bares da cidade velha. Mas aí surgiram novas dificuldades pelo excesso de informações: toda a gente se gabava de que ajudara no assalto do século, e todas essas gabarolices chegavam aos ouvidos dos detectives. Nenhuma das informações era de confiança, e havia demasiados nomes para verificar. Era outro tipo de beco sem saída.
O público rejubilava com o êxito do assalto, e o cérebro misterioso por detrás dele tornou-se uma espécie de herói nacional. (Algo semelhante aconteceu no caso britânico do Grande Assalto ao Comboio; embora aqui a imagem dos gangsters fosse turvada pela subsequente morte de um homem do caminho-de-ferro que fora molestado durante o assalto. Todavia, As Ratazanas dos Esgotos não feriram ninguém.)
A polícia deixou escapar uma história de que o cérebro talvez fosse italiano. Atiravam às cegas, e toda a gente sabia disso.
De facto usaram o computador, num esforço para identificar o cérebro. Dados os pormenores básicos do trabalho, o computador apresentou uma lista de criminosos de nomeada que podiam, na sua época, ter podido organizar o assalto. A polícia verificou cada um deles. Uns encontravam-se na prisão, outros fora do país, todos possuíam álibis excelentes e críveis.
Sete dias depois do assalto, a Société Générale recebia um telefonema anónimo. A pessoa daria à polícia uma lista completa dos participantes com a condição de o banco dobrar a recompensa.
O banco hesitou. Um milhão de francos pela entrega da lista, um milhão depois de recuperado o dinheiro roubado - sugeriu.
As negociações prosseguiram durante algum tempo, mas finalmente foram interrompidas. Entretanto, a pessoa do telefonema dera uma lista de iniciais, como sinal de boa-fé.
À cabeça da lista estavam as iniciais A. S.
Na manhã de 20 de Julho, Patrick Gruau comprou o seu Nice-Matin, como habitualmente, na loja em frente da Gendarmerie. O título da primeira página rezava: EXTRAORDINÁRIO ASSALTO AO BANCO DE NICE.
Entrou apressado no escritório e estendeu o jornal.
- Roubaram o Société Générale em Nice!
O chefe Pierre Dufour levantou os olhos da máquina de escrever.
- Roubaram? Como? Assalto à mão armada?
- Não, não: assalto nocturno. Veja, leia aqui.
Gruau estendeu o jornal na mesa em frente do seu chefe. Os outros gendarmes leram por cima dos ombros de Dufour. Tiveram todos a mesma ideia: era este o “grande trabalho” em que se dizia que os quatro estranhos de Cas-tagniers estavam envolvidos.
Dufour leu a história do jornal diversas vezes, digerindo cada pormenor.
- Não, não é possível - disse finalmente.
- Não é possível - ecoou Gruau.
- Pareciam muito preocupados, todavia - comentou Claude Destreil.
Dufour afastou a máquina de escrever, levantou-se, estendeu o corpo pequeno e bronzeado e pegou no boné.
- Vou à vivenda - disse. - Destreil, verifica esses nomes pelos registos criminais. Gruau, vem comigo na carrinha. Sloma e Sanchez, se não estivermos de volta pelo meio-dia, tratem do tráfego nos cruzamentos" do Vesubie. Vamos.
O carro azul seguiu pela Estrada Nacional 202, ao longo da margem do rio Var. Era Gruau quem guiava. Ambos os homens acarinhavam a perspectiva encantadora de apanhar os assaltantes do banco que tinham iludido a Police Judiciaire. Os gendarmes sempre se sentem maltratados. Recolhem informações meticulosamente, não deixando nada ao acaso; ordenam-nas, analisam-nas e arquivam-nas; depois apresentam-nas aos detectives, que recolhem os louros. São os detectives que ganham as medalhas, dão entrevistas na televisão e conhecem pessoas famosas. Os gendarmes são quem faz o trabalho mais desagradável e enfadonho, sempre à disposição da polícia da cidade, ganhando menos dinheiro - sentem eles - por mais trabalho. A sua força reside no conhecimento íntimo da sua área e no facto de que estão preparados para verificar essas coisas insignificantes, como uma vivenda desocupada cujas persianas se encontram inexplicavelmente abertas. A suspeita de Dufour crescera desde o incidente na vivenda. Conhecia o proprietário, e quanto mais nisso pensava tanto menos provável lhe parecia que esse homem deixasse alguém utilizá-la para uma festa de sexo. Outra coisa ainda: o homem sem documentos dissera que o seu nome era Alain Pons, mas a repartição de registos informara que não havia ninguém em França com esse nome.
Os gendarmes tinham mantido a vivenda debaixo de olho durante os últimos dias, mas nada viram de anormal.
A carrinha azul entrou no desvio. Havia sinais de um grande veículo em frente da garagem, mas não eram recentes. Os dois homens olharam por ali à volta, espreitando pelas janelas.
- Olá!
Voltaram-se e viram um homem de idade com uma sachola na mão a aproximar-se deles. Tinha o boné puxado para os olhos para os proteger do sol. Era Félix Maurel, e vivia na casa ao lado. Era um bom vizinho, um tanto curioso, e esperava que não se passasse nada de mal...
- Nada de especial - disse Dufour, parco em palavras como os polícias de toda a parte. - Mas diga-me, sabe alguma coisa sobre as pessoas que estiveram aqui há oito dias?
- Realmente não - devolveu o homem com um encolher de ombros. - Suponho que eram amigos do dono. Eram uns cinco ou seis, creio, mas não tenho a certeza. Durante um tempo iam e vinham a todas as horas do dia e da noite, mas há já algum tempo que não vejo qualquer deles.
Monsieur Maurel voltou para os seus tomateiros e os gendarmes foram-se.
Dirigiram-se ao café onde se devia encontrar o seu amigo das apostas ilegais. Estava debruçado sobre o balcão, a verificar os palpites das corridas no jornal. Quando os gendarmes entraram afastou-se para a entrada.
Dufour e Gruau cumprimentaram com um gesto de cabeça alguns dos clientes da casa. Um rapaz que andava a entregar cervejas aproximou-se com uma grade.
- Eh, chefe, está a seguir alguma pista?
- Segredo profissional - replicou Dufour com um sorriso.
Conversaram um bocado com o proprietário, ouvindo-o resmungar a respeito do baixo lucro, e inventaram uma história de carro roubado para justificar a sua presença no café.
Ao sair passaram pelo informador que estava na esplanada. Sentado debaixo de um chapéu-de-sol, fazia de conta que todo o seu interesse era a corrida do dia. Os dois gendarmes pararam um pouco junto da sua mesa para porem os bonés.
- Aquele golpe que mencionei - disse sem olhar para eles. - É o de Nice.
Os gendarmes regressaram ao carro.
Ao meio-dia de terça-feira, os detectives de Nice aguardavam a chegada de Paris do contrôleur general Gevaudan, que supervisionava o inquérito.
Na Escócia, o comissário de divisão Albert Mouray, de 45 anos, chefe da polícia de Nice, encurtara as suas férias de pesca e fazia as malas para apanhar o primeiro avião para Nice.
Em Londres, um repórter do Daily Express estava a falar ao telefone com o Nice-Matin, a tentar estabelecer se o assalto era maior do que o Grande Assalto ao Comboio.
Era.
Em Marselha, o general Mathieu, chefe do esquadrão de crimes graves, estava a fazer as malas para Nice.
Na mesma cidade, o chefe da quadrilha de Marselha perguntava a si mesmo se não julgara mal Albert Spaggiari.
O próprio Spaggiari e o seu grupo bebiam champanhe e contavam as barras de ouro, confiantes do seu triunfo.
E Dufour e Gruau, os polícias da província que finalmente causariam a queda de Spaggiari, encontravam-se sentados numa carrinha azul, encharcados de suor, num engarrafamento de trânsito.
Aparecem as pistas
Era uma criança tão boazinha
A mãe de Spaggiari
Ia ser uma investigação bem longa.
Albert Mouray não se importava com isso. O chefe da polícia de Nice não se sentia infeliz com a perspectiva de semanas de inquéritos, quantidades enormes de informações, a
dolorosa perseguição das pequenas pistas. Era mais um competente administrador do que detective brilhante. Tinha a tendência de seguir o manual e os que desejavam ser cruéis diziam que era típico dele estar de férias quando o assalto do século aconteceu na cidade.
O seu substituto, Claude Besson, era um detective brilhante. O perito financeiro também ficava contente com uma longa investigação. Ganhara a reputação que tinha com inquéritos desses, e não lhe eram estranhos os processos de compilação, exame minucioso e comparação de informações.
Tinham muitas ajudas.
A tratar do trabalho de sapa, a parte difícil e prática da detecção, encontravam-se dois homens mais jovens, ambos polícias altamente especializados, mas de carácter diferente.
O comissário Eduard Taligault era vivo, inteligente, mas frívolo. Passava muito tempo na elegante praia de Ruhl Plage, a alimentar o bronzeado. Era um classe média muito acima da craveira, com maneiras um tanto superiores. Era tanto desportista como intelectual.
O comissário Jacques Tholance era o contraste completo. Quando apareceu na TV francesa a série policial americana Colombo, os colegas riam-se e diziam: “Voilà, Jacques!” Pequeno, magro e mal-arranjado, usava uma gabardina muito coçada. Passava o serão nos bares louche (suspeitos) da cidade velha, colhendo informações em fragmentos. Tinha raro encanto, especialmente junto das mulheres, e era bastante popular na imprensa, com quem mantinha excelentes relações de cooperação. Também era muito respeitado pelo submundo.
O primeiro alvo deles foi Monsieur V., o proprietário da companhia de camiões de transporte cuja esposa era ciumenta. Os gendarmes haviam passado as suas informações - tal como eram- para os detectives, e elas constituíam a melhor pista que possuíam. Monsieur V. parecia ser a peça central do mistério da vivenda de Castagniers.
A vivenda era um quartel-general muito plausível para um bando. Ficava no campo, porém muito perto da cidade de Nice, do aeroporto e da estrada principal para Lião. Era fácil de alcançar por várias estradas diferentes, importantes e não importantes, de tal modo que as frequentes idas e vindas não seriam relativamente notadas.
As informações provindas dos contactos do submundo de Jacques Tholance também apontavam para Monsieur V. Ele não proporcionou simplesmente a utilização de uma casa, diziam - estava profundamente envolvido no assalto. Não precisava do dinheiro, mas fazia-o por entusiasmo. Era um aventureiro. Estivera no túnel, a cavar... magoara a mão...
Contudo, havia dezenas de informações semelhantes a respeito de outras pessoas. O assalto fora realizado por militantes de esquerda, pelo terrorista Carlos, pelas Brigadas Vermelhas, por militantes de direita...
Por outro lado, vinham pessoas às revoadas dar informações de comportamento suspeito de outras pessoas. Geralmente os informadores eram pessoas de idade e os suspeitos de comportamento irregular eram jovens e de cabelo comprido. Os reformados que viviam em Nice culpavam de muitas coisas os hippies, os jovens de calça de ganga que dormiam ao ar livre; mas o único crime sério dos hippies era vender marijuana aos pretensiosos da classe média da cidade.
Assim, às 10 horas da manhã do dia 27 de Julho, oito dias depois do assalto, o juiz Richard Bouazis passava um mandato de busca sobre a vivenda de Castagniers.
Eduard Taligault encontrava-se lá no gabinete, no Promenade Corniglion Molinier, para receber o mandato. Seguiu directamente para a vivenda no seu Peugeot 204 preto. Aguardavam-no os gendarmes da esquadra de Plan du Var, o grupo forense e os homens das impressões digitais de Nice, e Monsieur V., que ainda era detentor da chave.
A casa estava imunda. Os estofos todos manchados e o pavimento de pedra italiana coberto de marcas negras de sapatos. Os cinzeiros cheios de cinza e de pontas de cigarros e charutos. A atmosfera fétida.
Taligault notou que nenhuma das pontas de cigarro tinha marcas de bâton, e então disse ao grupo forense que mandasse analisar o tabaco.
Na cozinha encontrou uma garrafa meio vazia de vinho Margnat Village. Uma caixa inteira do mesmo vinho apareceu na garagem.
Também se encontrava na garagem um pesado aquecedor industrial do género utilizado para secar salas húmidas ou inundadas. A base de borracha do aquecedor estava coberta de lama seca.
Monsieur V. ia passando em revista os fechos das janelas e portas.
Um detective brincou:
- Está com receio de ter sido roubado? Ninguém sorriu.
No regresso, alguém comentou:
- Bem, se lá havia mulheres, sabemos de certeza que ou não fumavam ou não usavam bâton. Já é uma pista.
Estava a ser demasiado pessimista.
O vinho era da mesma marca que aquele que fora encontrado na caixa-forte roubada.
As pontas de charuto eram de tabaco Havana, provavelmente da marca Don Miguel; de novo a mesma marca encontrada na caixa-forte.
E - argumento decisivo - a lama da base do aquecedor industrial proviera dos esgotos de Nice.
Taligault encontrara o quartel-general do bando.
O interrogatório de Monsieur V. foi breve e inútil.
- Quem lhe pediu a chave emprestada?
- Dominique Poggi.
- Para que é que a queria?
- Ia dar uma festa.
- Acreditou nisso?
- Por que não havia de acreditar?
- Por que não disse ao proprietário o que se passava?
- Não havia razões especiais. Tomo-lhe conta da vivenda, e em troca ele deixa-me utilizá-la. Não tenho de pedir-lhe licença todas as vezes.
- Mas o senhor não estava a utilizá-la... deu a chave a outra pessoa qualquer.
Encolheu os ombros.
- Que lhe aconteceu à mão?
- Um acidente de equitação.
- Quem tratou disso?
- Fui a uma clínica de Marselha.
- Porquê tão longe? E tanto segredo?
- Fui andar a cavalo no Camargue. Trataram-me da mão no regresso.
- Não teve suspeitas de um grupo de homens que fazia uma festa sem mulheres?
Encolheu os ombros.
- Empresta normalmente casas a pessoas que não conhece?
- Pareciam honestos.
- Considera-se ingénuo?
- Suponho que sim.
A maneira de lidar com este caso, decidiu o chefe da polícia Albert Mouray, era espalhar uma rede bem larga.
Ia identificar um grande número de suspeitos, incluindo aqueles contra quem praticamente não houvesse provas; depois apanhá-los todos ao mesmo tempo e fazer a escolha mais tarde.
O seu ponto de partida foi a informação dos gendarmes. Havia doze nomes: Dominique Poggi, Daniel Michelucci, Christian Duche, “Alain Pons” (nome falso), Mon-sieur e Madame V. e o filho, Raymond, o proprietário do café, o vendedor de instrumentos musicais que possuía o Peugeot cinzento-metalizado e os donos do Mercedes, do Renault 17 e do Renault 5, que fizera inversão de marcha no relvado do vizinho.
Todos eles foram localizados, e seguidos dia e noite. Faziam-se relatórios das pessoas que encontravam, e algumas dessas -em especial as estreitamente ligadas ou as pessoas com registo criminal- eram também seguidas. A lista de nomes crescia...
Lea calçava botas de tacão alto, vestia calças extremamente apertadas e uma camisola que mal lhe cobria os amplos seios. Muito maquilhada, o hálito era todo uísque. Andava para cima e para baixo num pequeno trecho do Passeio Público dos Ingleses, a malinha de mão a sacolejar.
Lea era prostituta.
Eram 11 horas de uma noite quente de Verão e o passeio público estava cheio, mas Lea não tinha esta noite o pensamento no trabalho. Com boas notícias, quase rebentava por partilhá-las.
Decidiu fazer uma pausa, e entrou num bar da Rua Maccarani para tomar outro uísque. A clientela do bar era variada: estudantes, músicos, advogados, prostitutas e pequenos criminosos. Encontrava-se lá Odile - a ouvinte perfeita. Lea pagou-lhe uma bebida.
- Não vais acreditar nisto: o meu homem vai ter um apartamento na marina dos Anjos! É de classe, caro e incrivelmente feio!
Odile não tinha a certeza se havia de acreditar nela. Era uma zona muito cara. Aí viviam árabes e outros estrangeiros ricos. Era difícil imaginar Lea e o seu homem a moverem-se por entre Cadillacs, casacos de marta e litografias de Picasso.
- É verdade! - insistia Lea. - Tem ar condicionado e mobília de luxo e belos tapetes... - Disse a Odile o nome da agência com que o seu homem andava a tratar, o endereço do apartamento, o preço, tudo. E acrescentou: - Posso confiar que não vais contar a ninguém, não posso? O meu-homem tem as mãos em coisa grande. Diz que eu posso deixar de andar na vida. Mas que nem vivalma saiba.
Antes de acabar a noite já metade das prostitutas do passeio público sabia da sorte de Lea.
Dois dias mais tarde o homem de Lea, Francis Pellegrin, estava sob vigilância.
Mireille, a secretária, meteu o impresso do contrato na sua Olivetti e dactilografou o nome do cliente: Pellegrin, Francis. Alugara um belo apartamento em Juan les Pins: pavimento de mármore, muita louça de vidro e mobília, uma vista da praia. Renda: oitocentos dólares por mês, mais os extras.
Não parecia homem rico, mal olhara para o apartamento, e assinou o contrato sem querer saber dos extras. Pagou três meses de renda adiantados, tudo em notas de cinquenta e cem francos, e saiu.
Mireille não ficou completamente surpreendida quando, logo após, entrou a polícia e pediu para ver o contrato.
Pellegrin saíra apressado porque tinha uma consulta dentária em Cannes. Mandou pôr coroas nos dentes, ao estilo de Hollywood. Logo a seguir a polícia perguntou ao dentista quanto custara. Quase dois mil e duzentos dólares, disse-lhes ele.
Um pouco depois da meia-noite, no primeiro andar de um pequeno hotel na Rua Pournet, em Toulon, Michele Seaglie estava a fazer a cama. Afofou a almofada e ajeitou a colcha de retalhos. De botas de camurça e calcinhas, sentou-se em frente do espelho para maquilhar o rosto.
Era bela, elegante e discreta. O seu número de telefone passava de homem para homem entre o queijo e a fruta dos almoços de negócios. Sabia comportar-se na alta sociedade, sabia quando podia falar e quando devia manter-se calada, e um homem podia aparecer com ela em público sem constrangimento. Possuía um apartamento em Marselha e uma vivenda em Bandol. Tinha muita classe.
Michele era prostituta.
Vestiu uma blusa branca de renda larga e uma saia cigana colorida, e atou o cabelo atrás. Depois saiu do quarto, fechando a porta à chave, e desceu as escadas para a rua, onde começara a sua carreira.
Sorriu para Isis e Marlene, duas principiantes da profissão.
- Vens connosco esta noite? - perguntou Isis, a asiática.
- Eu não - sorriu Michele, e continuou a andar. Não notou um velho Renault 12 a arrancar de junto
do passeio e começar a segui-la. Dentro seguiam os inspectores-chefes Thomasset e Spyron. Spyron, conhecido por o Grego, acendeu um Gauloise.
- Aquele Daniel Michelucci tem um danado bom gosto nas mulheres que escolhe.
Já o dissera antes. Há sete dias e sete noites que seguia Michele.
Viram-na entrar para um Renault 5 e pôs o cinto de segurança. Seguiram o carro ao longo do Boulevard de Strasbourg. Numa altura chegaram a estar tão próximos que ouviram a música do leitor de cassetes dela: era Fats Domino a cantar Blueberry HM. Mas quando entrou na estrada sem limite de velocidade, meteu o pé a fundo, e o antigo Renault dos detectives não conseguiu apanhá-la.
Frustrado, Thomasset voltou para o centro de Toulon.
- Hoje devíamos ter trazido o novo Simca 1501. Veríamos então se ela nos deixava ficar para trás com tanta facilidade.
Albert Spaggiari preparara-se, muito tempo antes do assalto, para pôr no mercado os lingotes de ouro da casa-forte. Iam ser vendidos a 30% menos que o preço do mercado - um negócio muito razoável para ouro roubado. Todavia, Alain Bournat achava que não era negócio razoável. Isto porque Alain Bournat era extremamente estúpido.
Ele insistia em guardar a sua parte de ouro. O ouro era a coisa mais segura para investir, ouvira ele. Tolo, Spaggiari deixou-o fazer o que entendesse.
A princípio Bournat tentou vender o ouro a um homem chamado Tschoa. Tschoa possuía um bar no porto de Nice. Durante o dia servia sanduíches e café aos empregados de escritório da área, mas à noite baixavam-se as cortinas, e servia-se champanhe e Chivas Regai, e uns tantos clientes bem conhecidos jogavam póquer e barbutté a paradas invulgarmente altas.
Tschoa não tomava parte nesses jogos. Preferia jogar boules. Na noite de 9 de Agosto de 1976 esteve a ver os jogos na Praça Arson até às 11 da noite, altura em que resolveu voltar a pé para o seu bar.
Nos seus 50 e tantos anos, tinha cabelo preto ondulado e belo aspecto bronzeado. Usava camisa branca de algodão, calças azul-marinho e mocassinas brancas, e tinha um Mercedes 350. Embora com registo criminal, mantivera-se afastado de problemas durante muitos anos: a polícia não tinha a certeza se ele deixara a vida criminosa ou se simplesmente se refinara.
Entrou no bar, saudou alguns clientes e dirigiu-se para a porta das traseiras, onde se lia “Privado” a letras vermelhas.
Bournat esperava no escritório.
O encontro fora combinado através de um amigo do jogo de boules de Tschoa, mas o dono do bar continuava com as suas suspeitas. Sentou-se e pôs um cigarro Dunhill boquilha de ouro.
- Que desejas?
- Quero vender ouro.
- Moedas ou jóias?
- Nem uma coisa nem outra - respondeu Bournat. Olha para isto. - Apresentou um lingote de ouro para
[outro lhe pegar. Tschoa não lhe tocou.
- Quantos?
- Talvez bastantes.
- Que preço estás a pedir?
- Dezassete mil francos por lingote.
- Doido varrido - observou Tschoa com desdém. - O preço do mercado está apenas um pouco acima dos dezoito mil. Por quem me tomas?
- Não te zangues... sou apenas o intermediário... Vou informar a outra parte da tua reacção...
- Diz ao teu patrão para o deitar às urtigas – disse Tschoa irritado. Levantou-se e empurrou a cadeira para trás. - Sei perfeitamente bem de onde é que isso veio, assim como toda a gente de Nice. Não lhe toco seja a que preço for. Seus fala-barato, deviam era pôr um anúncio no Nice-Afatin. Agora desaparece e não voltes.
Bournat tinha um velho amigo chamado Alfred Aimar, mais conhecido por Fred, o Joalheiro. Com os seus sessenta e poucos anos, Fred afastara-se do crime há uns quinze anos, mas ainda tinha umas tantas ligações antigas.
Apresentou Bournat a um homem que precisava muito de dinheiro.
Adrien Zeppi não era criminoso. Possuía uma pequena loja de artigos de couro, mas os tempos iam maus. Voltara a casar com uma mulher mais nova, e tinham agora um bebé. Zeppi, de 54 anos, era um cidadão muito respeitado na zona de Plateau Flori, mas parecia não fazer objecções a dar-se com indivíduos da laia de Fred, o Joalheiro. Fred não o tinha em grande conta.
Fred e Bournat encontraram-no num bar em Mougins e fizeram-lhe a proposta.
- Temos algum ouro... as nossas economias... e queremos fazê-lo em dinheiro. Mas não temos conta bancária, e de qualquer maneira se nos virem a vender ouro com os nossos registos vai haver toda a espécie de perguntas... compreendes como é. Portanto, podias fazer-nos um grande favor vendendo-o por nós. És um homem respeitável, não vão fazer-te perguntas. E pagamos-te mil francos por barra.
Zeppi não hesitou. O dinheiro seria uma dádiva do céu. No dia seguinte foi ao seu banco, o Crédit Agricole, na estrada N85, entre Nice e Grasse. Depositou uns poucos de cheques; depois, como por acaso, perguntou ao funcionário:
- Preciso de vender um pouco de ouro... acho que posso investi-lo em coisa melhor. Vocês tratam disso?
- Claro, Monsieur Zeppi. Quer que depositemos o dinheiro na sua conta?
Zeppi hesitou.
- Bem, realmente preferia ter o dinheiro... compreende?
- Com certeza. Quantas barras quer vender?
- Nove.
- Não há problema. Traga-as quando quiser.
Dois dias depois Zeppi entrou com nove lingotes de ouro, e saiu com mais de trinta e dois mil dólares em dinheiro.
Encontrou-se com Bournat e Fred, deu-lhes o dinheiro, e recolheu a sua comissão de mil e setecentos dólares.
Bournat estava encantado. Conseguira o preço de mercado total para o seu ouro, e todos os outros tinham-no vendido com 30% de desconto. E levara Adrien Zeppi a arriscar-se por ele. Achava que era muito esperto.
Todavia, as barras de ouro são numeradas, e todas as transacções feitas com elas são registadas. Desde o assalto que todos os bancos de França eram possuidores de uma lista dos números dos lingotes roubados do banco da Société Générale. O caixa do Crédit Agricole verificou os números pela sua lista e telefonou de imediato à polícia de Nice. Zeppi foi seguido, e conduziu os detectives a Fred, o Joalheiro, e a Alain Bournat.
Marie François Astolfi era bem mais respeitável que a maioria das mulheres desta história; mas não era mais discreta que Lea ou Odile.
Marie era inspectora do serviço de refeições escolares de Marselha. No sábado, 9 de Outubro de 1976, encontrava-se no seu apartamento da Rua Charasse a fazer uma mala de fim-de-semana; pijamas, uma escova de dentes e um conjunto de blusa e calça. De 26 anos, era uma mulher bem-educada que estivera num colégio interno. O seu primeiro emprego fora como professora. Mais recentemente, chamavam-na outras campainhas, mas os bons hábitos custam a morrer.
Desde o Verão que estava apaixonada por um homem alto e louro chamado Henri Michelucci. Há dois dias ele pedira-lhe para fazer um favor ao seu irmão Daniel. Daniel precisava de fazer uma rápida viagem a Bruxelas de carro, e tinha necessidade de outro condutor. A viagem de ida e volta eram mais de mil e seiscentos quilómetros, e ela queria fazê-la num fim-de-semana.
Marie sabia que Henri e o irmão não eram homens muito escrupulosos quanto à lei.
- Esta viagem do Daniel... é... pesada?
- Sim, é pesada - respondeu-lhe Henri.
Mas ela gostava de Daniel, que era quase tão bem-parecido como o irmão; e ela adorava carros rápidos. Concordou em ir.
Encontrou-se com Daniel na zona do Prado à uma da tarde daquele sábado. Seguindo as instruções, alugara à Eurocar um Renault 20. Daniel lia Le Soir enquanto ela ao volante os levava para fora da cidade. Depois de algum tempo ele disse-lhe para parar, e então desligou o odómetro para poupar dinheiro - o carro fora alugado ao quilómetro. Quando prosseguiram viagem, ele observou-lhe:
- Toma cuidado com a velocidade. Não quero que a polícia nos mande parar.
Pouco antes das 17.00 pararam perto de Villefranche sur Saône, para descansar.
- Preciso de ver umas pessoas em Valenciennes. Talvez seja melhor deixares-me lá amanhã e continuares a viagem para Bruxelas sozinha. Os quartos estão reservados no Presidem. Podia ir ter contigo ao hotel mais tarde.
- A viagem é tua - observou ela encolhendo os ombros.
Passaram a noite num hotel em Paris - dormindo em quartos separados. No dia seguinte dirigiram-se para a fronteira.
- Ainda queres que te deixe em Valenciennes? Daniel só se resolveu a responder-lhe uns tantos quilómetros mais adiante.
- Não. Trato disso no regresso.
Depois pediu-lhe para parar enquanto tirava da mala um mapa das estradas.
Mandou-a sair da auto-estrada e seguir por estradas secundárias. Perderam-se por duas vezes. Finalmente cruzaram a fronteira num pequeno posto em Ermitage, e chegaram a Bruxelas quarenta e cinco minutos mais tarde.
Marie não quis saber por que razão Daniel receava passar por um posto principal de fronteira.
A primeira coisa na manhã seguinte que ela fez foi conduzi-lo ao Banco Lambert, mesmo junto à estação central do caminho-de-ferro. Ele entrou levando a mala. Quando saiu uns minutos depois, continuava com a mala, mas era óbvio que estava mais leve.
Ao almoço esteve muito alegre. Beberam champanhe à sobremesa. Daniel inclinou-se por cima da mesa e falou em voz baixa.
- Sabes o que estava na mala? Ouro... do Société Générale de Nice. Não todo, claro... não podia pô-lo todo na caixa de depósito em cofre.
Marie não conseguiu dormir nessa noite. Não suspeitara que os irmãos Michelucci eram gangsters de alto coturno. Sozinha no quarto do hotel, confiou os seus receios ao seu diário.
Saiu do hotel de manhã cedo deixando uma nota para Daniel que dizia simplesmente Ciao. Na estrada conduziu a grande velocidade. Parou em Lião para descansar e depois outra vez, mesmo à entrada de Marselha, para tornar a ligar o cabo do odómetro.
A Eurocar recebeu o quantitativo respeitante a duzentos e setenta quilómetros em vez de mais de mil.
E Marie Françoise Astolfi deixou o seu diário no carro.
Marie foi mais um nome, embora tardio, para a lista que se encontrava no gabinete de Albert Mouray. Estivera pronto para saltar muito tempo antes de Outubro. De facto, na sexta-feira 13 de Agosto decidira que a rede estava suficientemente espalhada, e estabelecera a data para a segunda-feira seguinte, 16 de Agosto. Mas nesse fim-de-semana aconteceu algo que o fez perguntar-se se a sua investigação não estaria numa via completamente errada.
Spaggiari e a CIA
“AS RATAZANAS DOS ESGOTOS” ATACAM EM PARIS
Título no Nice-Matin, de 18 de Agosto de 1976
Durante o fim-de-semana de 14 e 15 de Agosto, uma filial da Société General na Ile St. Louis, em Paris, foi roubada. O assalto foi uma cópia a papel químico do roubo de Nice.
O bando penetrou no banco através dos esgotos. Abriram um túnel de 3 m de comprimento a partir do cano de esgoto até à parede da caixa-forte, depois fizeram um buraco na parede de concreto reforçado. Para manter fresco o ar do túnel usaram o exaustor semelhante ao usado em Nice. Utilizaram um laser para abrir as caixas de depósito em cofre na casa-forte. Abriram cento e trinta das cento e noventa e uma caixas.
Havia um sistema de alarme nesta caixa-forte, e de facto, disparou. Chegaram dois guardas de segurança em resposta ao alarme. Vendo que nada havia de anormal, concluíram que o alarme disparara indevidamente e nada mais fizeram.
A ironia do incidente foi que as companhias de seguro haviam negociado um novo contrato com a Société Générale desde o assalto de Nice - mas o contrato só entrava em vigor a partir de 28 de Agosto.
Dois detectives de Nice foram enviados a Paris para ajudar a força metropolitana. Paris estava convencida que fora o mesmo bando que fizeram ambos os trabalhos, e insistiram que Albert Mouray afastasse a rede enquanto eles investigavam.
Todavia, à medida que o inquérito prosseguia, a teoria de que fora um bando que fizera ambos os assaltos parecia cada vez menos sustentável.
O bando de Paris fora desleixado. Foram vistos vários dos seus membros e as testemunhas reconheceram-nos nos arquivos de fotografias dos criminosos conhecidos. Os assaltantes de Nice não tinham deixado um só sinal de prova útil, mas não foi assim em Paris. As ferramentas usadas em Nice haviam sido artigos predominantemente vulgares, como martelos e escopros, mas em Paris utilizaram um la-ser, (Neste passo das investigações não sabiam que Spaggiari comprara um laser, mas não pudera utilizá-lo.)
Depois havia a psicologia do caso. O bando de Nice escapara com um roubo no valor de, pela estimativa mais baixa(*), 6,2 milhões de dólares: era provável que arriscassem o pescoço noutro trabalho antes de terem tido tempo de gastar o dinheiro?
A discussão continuava. Não podia ser um crime de macaco imitador, dizia Paris, pois acontecera exactamente quatro semanas depois do trabalho de Nice, e isso não era tempo suficiente para planear este género de roubo. E era acreditar em demasia que a mesma ideia brilhante tivesse, ocorrido a dois cérebros criminosos completamente separados aproximadamente ao mesmo tempo.
Mas Albert Mouray começava a ficar extremamente nervoso. Cada dia que passava tornava mais provável que uma das pessoas que ele andava a mandar seguir - havia agora mais de quarenta - desse pela vigilância e espalhasse o alarme. E então os pássaros levantariam voo.
Por fim, Paris fez uma prisão. Raimond Brisacier, proprietário de uma garagem, foi apanhado a tentar vender um dos lingotes de ouro roubados do banco de Ile St. Louis. Os suspeitos de Nice foram observados mais
(*) Esta é a estimativa do banco. Por razões que se discutem mais tarde, deve-se considerar este número como um mínimo.
atentamente à espera de reacção. Pareciam indiferentes. Portanto, havia dois bandos separados.
Paris deu luz verde, e Mouray estabeleceu nova data: 26 de Outubro.
Durante esta demora de dois meses, Spaggiari viajava.
Foi à Guatemala. Depois foi aos Estados Unidos. Andava à procura de um hotel ou restaurante para comprar. Enquanto aí se encontrava contactou com a CIA.
(Isto parece estranho aos europeus, pois aqui uma pessoa não pode simplesmente contactar com a organização de espionagem do seu país. Poucas pessoas sabem sequer onde fica o quartel-general do Deuxième Bureau ou do MI5. Todavia, nos Estados Unidos é tão fácil contactar com a CIA como com a companhia de electricidade; e se uma pessoa telefonar para o Serviço Secreto, eles pegam no auscultador e dizem: “Serviço Secreto.”)
Spaggiari ofereceu-se para trabalhar para a CIA.
- Com a minha organização, posso chegar a tudo - gabou-se ele. - Não importa onde, não importa o quê. Posso abrir qualquer cofre, entrar em qualquer embaixada...
Os espiões da América andavam na altura bastante nervosos. Haviam passado um mau bocado durante o escândalo Watergate. Perguntaram a Albert como haviam de saber se ele afinal não era doido.
- E se eu vos disser que dirigi o maior assalto do século ... o roubo do banco da Société Générale de Nice? Isso chegava?
Como os espiões em toda a parte, a CIA não se incomodava muito com quem usar para colher informações. Mas eles, tal como a quadrilha de Marselha, o Comando Delta da OAS ou como Pierre Lagaillarde, não confiavam em Albert Spaggiari. Era a história da sua vida.
Todavia, fizeram o jogo de cooperação franco-americano, e enviaram à Interpol um résumé do encontro. Por volta de Setembro, a Interpol, por rotina, passou a informação à polícia de Nice.
Que nada fez.
E este é o segundo mistério que rodeia o tratamento deste caso pela polícia de Nice.
Mais tarde, disse um porta-voz da polícia:
- Não havia provas. De qualquer modo, nessa altura, éramos inundados com informações, quase todas falsas.
Esta desculpa é ridícula. Spaggiari cumprira duas longas condenações na prisão, e fora considerado suspeito de envolvimento em diversos outros crimes. Apresentaram à polícia de Nice uma confissão testemunhada. Porém, não apanharam Spaggiari; não o interrogaram para saber se ele tinha álibi; não o puseram na lista dos suspeitos a serem seguidos; e não o prenderam na colheita de 26 de Outubro. No que respeitava a Albert Spaggiari, parecia que eram cegos, surdos e mudos.
Também durante este período Spaggiari e a mulher foram numa viagem ao Japão com o presidente da câmara de Nice.
O presidente da câmara de Nice, Jacques Médecin, também era ministro do Turismo do governo de Giscard d'Estaing. Sob os seus auspícios, as cidades de Nice e Cannes e o estado de Mónaco organizaram uma exposição itinerante para percorrer o Japão e promover a Cote d'Azur. Levaram consigo tesouros de arte dos museus locais: quadros de Chagall, Matisse, Lèger e Fragonard; esculturas de Giacometti; cristais de Biot. Também levaram amostras abundantes da produção local, como vinho e azeite da Provença; mais um grupo de manequins para apresentar a haute couture francesa. Fretaram um Boeing 707, mas era maior do que precisavam. Os lugares extra da viagem foram vendidos a sete mil francos cada um, uma bagatela. Spaggiari comprou dois.
Médecin viu-se aflito para explicar, algumas semanas depois, que os Spaggiari tinham viajado como indivíduos particulares e nada tinham a ver com a exposição itinerante. Disse aos autores que nem sequer vira Spaggiari no avião, e que o casal não estivera nos mesmos hotéis que o grupo oficial. Nesta ocasião, Spaggiari não actuava como fotógrafo particular da câmara. Acrescentou:
- É da própria natureza do criminoso inteligente esconder o seu verdadeiro carácter por detrás de uma fachada de honestidade.
O avião partiu no dia 6 de Outubro, e seguiu via Paris e Anchorage para Tóquio. O grupo oficial ficou instalado no Hotel Imperial, e os Spaggiari no Hilton.
- Eram entusiásticos turistas - comentou um dos jornalistas em viagem -, e comportaram-se como se estivessem em lua-de-mel. Albert cuidava de Audi, procurando que nunca fosse sozinha a qualquer lado, dando-lhe sempre pequenos presentes. Parecia estarem muito apaixonados.
No dia 16 de Outubro seguiram para Hong-Kong, ficando instalados no Mandarin. Albert comprou três fatos para si e um colar de pérolas negras para Audi. Três dias depois seguiram para Banguecoque, indo pelo delta do Me-kong. Spaggiari teve saudades do seu tempo como pára-quedista no Vietname.
- Tornei a viver os quatro anos da Indochina - disse ele às pessoas. - Tinha um nó na garganta e lágrimas nos olhos.
Tomaram banhos de sol junto à piscina do Siam Intercontinental Hotel, e viram centenas de pagodes com milhares de budas. Fizeram a ronda das lojas de antiguidades, joalharias e mercadorias de sedas.
No dia 24 de Outubro regressaram a Nice via Nova Deli, Teerão e Telavive.
Teve Spaggiari um outro motivo para tomar parte na viagem? O jornal japonês Mainichi sugeriu que ele vendera ouro e jóias em Tóquio e comprara obras de arte a dinheiro.
Com certeza que se queria levar jóias roubadas para fora de França, talvez a melhor oportunidade de evitar a alfândega fosse viajar com o presidente da câmara de Nice.
Dois dias depois de regresso de Spaggiari a Nice, Albert Mouray e os seus homens caíram sobre a presa.
Spaggiari é preso
O Bert não é homem para deixar transparecer os seus sentimentos
Audi Spaggiari
O chefe da polícia Albert Mouray era bom neste género de coisas.
A investida envolveu mais de quinhentos polícias e gendarmes em oito cidades. Quarenta suspeitos iam ser apanhados precisamente no mesmo momento: 6.30 da manhã de terça-feira, dia 26 de Outubro de 1976.
Ordens claras e precisas seguiram para Marselha, Antibes, Mougins, Toulon, Nimes, Paris e Ajaccio, na Córsega, e também se aplicaram a Nice. Os agentes oficiais possuíam nomes, endereços e descrições, e em muitos casos haviam seguido os suspeitos durante algum tempo. Cada prisão era garantida por um mandato de captura. Foi como um lançamento espacial em Cabo Kennedy, disse alguém.
Já à hora do almoço todos os relatórios se encontravam na secretária de Albert Mouray, e ele perguntava a si mesmo onde é que errara.
Para começar, cinco dos quarenta tinham escapado à rede: simplesmente não se encontravam onde se esperava que estivessem às 6.30 da manhã. Incluído nesses cinco estava o maior peixe de todos, Dominique Poggi.
Poggi nascera a 16 de Fevereiro de 1926, na Córsega. Durante muitos anos foi o braço direito de Barthelemy Guerini, o patrão francês da Mafia, e durante esse período apenas sofrera uma pequena condenação por proxenetismo, em Estrasburgo, em 1950. Quando o império de Guerini se abateu, Poggi mudou-se para Antibes, e com o irmão abriu o Club 62. Mas continuava com má companhia: em 1972, o pistoleiro Gavin Coppolani foi preso aí. Cop-polani era um carácter extraordinariamente indesejável.
Três anos depois escapou e tentou vingar-se dos informadores que o tinham denunciado: ele próprio ficou ferido no tiroteio que se seguiu, e o homem que o feriu foi assassinado em Nice em 1976 e deixado abandonado nas escadas do seu night-club. Poggi, de rosto carnudo e de fato distinto, tinha não só os contactos como a experiência do crime organizado para conduzir uma empresa como o assalto do século. Era o favorito para o título de Le Cerveau - O Cérebro. Mas não se encontrava em casa quando a polícia lá foi.
Mas havia piores notícias. Vinte e sete dos trinta e cinco que se encontravam em casa tinham sido ilibados no fim do dia e tiveram de ser libertados.
Era uma consequência inevitável da maneira como os nomes haviam sido colhidos que alguns dos suspeitos acabariam por se revelar pessoas inocentes que nada mais tinham feito do que encontrar-se com um suspeito principal em diversas ocasiões durante a vigilância. Mas vinte e sete em trinta e cinco era uma proporção muito desanimadora.
Foi típico o caso do vendedor de instrumentos musicais de Béziers. A primeira vez que os gendarmes da brigada de Plan du Var foram à vivenda de Castagniers tinham anotado a matrícula de um Peugeot 504 cinzento-metalizado estacionado na garagem. Foi ao fim do dia quando lá voltaram uma segunda vez, e encontraram quatro homens à espera nas escadas. Os gendarmes verificaram o número de matrícula do carro, e isso levou-os ao vendedor de instrumentos musicais. O homem foi preso às 6.30 da manhã do dia 26 de Outubro, em Capestang, Hérault. Possuía na verdade um Peugeot 504, mas era branco, não cinzento, e podia provar que o dia 9 de Julho estivera a muitos quilómetros de Castagniers. O Peugeot da vivenda tinha chapas falsas, e o aterrorizado vendedor de instrumentos musicais era a vítima inocente mas infeliz de uma coincidência.
Finalmente, as oito pessoas detidas não eram caça grossa.
Emile Buisson tinha um álibi para o fim-de-semana do assalto, mas na excitação confessou o roubo de dez mil francos ao patrão.
Homer Filippi era o filho de Philippe Filippi, promotor de boxe e agente do campeão mundial Marcel Cerdan. Homer era um insignificante traficante de drogas que tinha contactos com os quatro homens da vivenda de Casta-gniers, mas não pôde ser relacionado com a segurança com o assalto, e apenas foi acusado de posse de arma de fogo sem licença.
Huguette Cruchendeau era uma prostituta de Marselha que nada mais fizera que estar ligada aos associados dos quatro de Castagniers; mas a ligação era suficientemente estreita para ela ficar detida.
Henri Michelucci pedira emprestado o Renault 17 visto na vivenda Castagniers; mas afirmou que o seu irmão Daniel é que o conduziu nessa altura, e Daniel encontrava-se entre os cinco que tinham escapado a rede.
Alfred “Fred, o Joalheiro”, Aimar e Adnen Zeppi, o trapaceiro que vendera ouro roubado ao seu próprio banco, podiam ser positivamente acusados, mas apenas por acção fraudulenta.
Isto explicava seis dos oito detidos. Mouray acabou apenas com dois, que eram na verdade “ratazanas dos esgotos”: Francis Pellegrin e Alam Bournat.
Bem vistas as coisas, o dia não fora nada bom.
O interrogatório da polícia nessa noite concentrou-se em Pellegrin e Bournat. Ambos eram tolos, como já se mencionou; e este facto foi uma sorte para a polícia. Os detectives de manga curta da Avenida Foch entraram numa velha e familiar rotina:
- Já sabemos tudo, por que é que não tornam as coisas mais fáceis para vocês e confessam?
Depois acrescentaram:
- Todos os vossos amigos fizeram declarações completas, implicando-os a vocês... para quê negar?
Incrivelmente, eles caíram na esparrela.
Dissemos antes que os malandris insignificantes que, Spaggiari recrutou para ajudá-lo a executar o seu plano seriam a sua desgraça; e foi isto o que aconteceu.
Tanto Pellegrin como Bournat fizeram confissões completas e nomearam, como cérebro que organiza o golpe, Albert Spaggiari.
O nome era familiar ao comissário principal Ciaude Besson, substituto de Mouray. Em 31 de Julho de 1974, às 10.50 da manhã um homem bem vestido entrara no Banque de Paris et des Pays-Bas, em Nice, e pediu para abrir a sua caixa de depósito em cofre. Um funcionário acompanhou-o à caixa-forte, onde outro cliente aguardava com uma arma. Amarraram o funcionário, que era o único empregado do banco naquele momento, e arrombaram um dos cofres. Sabiam exactamente qual queriam: tinha o nº 199, e continha todas as reservas do banco de lingotes de ouro. Os dois homens meteram o ouro - que pesava cerca de 75 kg e valia mais de trezentos e cinquenta mil dólares - numa mala e desapareceram. Durante a investigação que se seguiu o principal suspeito de Ciaude Besson fora Albert Spaggiari, mas nada se provara. Todavia, como candidato para o título de O Cérebro era absolutamente plausível. Besson pegou no telefone. !
Às 11.00 da manhã de quarta-feira 27 de Outubro de' 1976, uma mulher loura de cerca de 40 anos entrou no estabelecimento de fotografia La Vallière, na Estrada dè Marselha, 56, em Nice, e perguntou por Monsieur Spaggiari. Atendeu-a André Devesa, o gerente.
- Não está. Em que posso servi-la?
- Este estabelecimento é dele, não é?
- É ele o dono, mas eu aluguei-lho há seis meses.
- Ele ainda mora no apartamento por cima?
- Não, já se mudou.
- Sabe onde é que posso encontrá-lo?
- Agora mesmo? Não. Mas ele vem aqui regularmente. Estou à espera dele ainda hoje. Quer que lhe dê algum recado?
- Não, preciso de vê-lo pessoalmente. A mulher ainda é enfermeira?
- É, sim. Também cá não está. Está a substituir uma pessoa amiga.
- Muito bem. Obrigada.
- Não tem de quê.
Devesa não pensou nada de especial do incidente. Não viu a mulher entrar num Renault azul, com três polícias, em frente do estabelecimento.
Albert e Audi chegaram mais tarde, ainda de manhã. Devesa falou-lhes na visitante.
- Realmente não faço ideia de quem pudesse ter sido - comentou Albert.
Serviu-se do telefone para encomendar alimento de criação para a sua quinta, depois com a mulher atravessou a rua para ir almoçar na casa de spaghetti Roi du Yan. Juntou-se-lhes ao café Jean Yves Goutron, antigo camarada, que fora pára-quedista no Vietname com Albert e que, como recordação desses tempos, ainda coxeava ligeiramente. Os Spaggiari começaram a falar-lhe da sua viagem ao Extremo Oriente.
Spaggiari falava a respeito do mercado de Hong-Kong quando um empregado de mesa o interrompeu.
- Monsieur Spaggiari, está ali fora uma senhora a perguntar por si.
Albert franziu o sobrolho, encolheu os ombros e pousou o charuto no cinzeiro.
- Talvez seja a misteriosa mulher desta manhã - comentou. - Desculpem-me.
Saiu e aproximou-se da mulher. Foi imediatamente rodeado de detectives e encafuado no carro. Tudo muito rápido.
Um amigo, que viu o caso, gritou:
- Audi, alguém raptou o Bert!
Uma Audi aterrorizada telefonou à polícia a dar parte do rapto. Disseram-lhe então que o marido fora preso e não raptado; e, a propósito, a polícia ficava-lhe agradecida se passasse por lá ela própria para responder a umas perguntas.
O interrogatório de Albert Spaggiari começou às 14.30 do dia 27 de Outubro.
Esta é a parte mais espantosa da história do assalto do século, e forma o terceiro e o mais desconcertante dos mistérios que rodearam o caso.
Uma operação policial envolvendo quinhentos agentes e trinta e cinco prisões em oito cidades não se pode manter secreta por muito tempo. Na terça-feira à noite era o principal tópico das conversas nos bares e restaurantes da cidade velha de Nice. Na quarta-feira de manhã, o Nice-Matin trazia a história.
O público não ia saber que a operação tivera êxito muito limitado. No que respeitava a Nice, a polícia apanhara As Ratazanas dos Esgotos.
Spaggiari deve ter sabido da operação. Amigos, esposas e namoradas dos que foram presos teriam passado palavra, mesmo que a imprensa não tivesse falado no caso. É provável que ele o soubesse pelas 7 da manhã de terça-feira.
Porém, ele nada fez.
Podia ter tentado sair do país - teria fugido. Se isso fosse demasiado drástico, podia ter-se mudado para um hotel ou para casa de um amigo e ficar quieto por um tempo.
Mas seguiu de carro para Nice, foi ao estabelecimento de fotografias, depois levou a mulher a um restaurante onde o tinham como cliente regular. Não podia ter tornado as coisas mais fáceis para a polícia o apanhar, a não ser ir em pessoa à Avenida Foch, 1.
É possível que não soubesse exactamente quem fora preso; e nesse caso precisava claramente de precaver-se contra uma traição. Como alternativa, pode ter sabido que os demi seis Pellegrin e Bournat, verdadeiros cabeças de serradura, tinham sido apanhados; e nesse caso ainda tinha mais razão para se preocupar. Mas nem sequer preparou um álibi.
Talvez quisesse ser preso.
Ou talvez pensasse, por alguma razão especial, que era invulnerável?
Foi interrogado sem parar durante trinta e sete horas.
E tudo quanto disse foi: “Não.”
Os seus inquiridores revezavam-se para descansar, tomar café e dormir, mas Albert não teve nada disso. Pacientemente, fleumaticamente, respondia as suas perguntas, ignorava as promessas de uma sentença leve em troca de cooperação, e sorria às suas ameaças.
- É frio como o gelo - observou Claude Besson, o homem que nada impressionava, mas que estava impressionado com Spaggiari.
Mostraram-lhe o dossier da CIA com a sua confissão.
- Menti - disse com calma.
Vinte polícias acompanhados de Audi revistaram a casa da quinta de Bézaudun. Nada encontraram de suspeito a não ser uma caixa de charutos Don Miguel e um caixote com garrafas de vinho Margnat Village. Lá fora, debaixo de uma capoeira, encontraram um pequeno esconderijo de armas: espingardas, milhares de munições e uma certa quantidade de dinamite. Passaram com um detector de metal cada centímetro quadrado de terreno e só encontraram velhas ferramentas, barras de ferro com ferrugem e latas de conservas. Nada de ouro.
Não era o que queriam, mas foi o suficiente para acusar Albert de posse ilegal de armas de fogo. Então, às 4.00 da madrugada de sexta-feira, alguém teve a brilhante ideia de acusar Audi como cúmplice, e Albert fraquejou. Diante da perspectiva de ver a sua querida Audi metida na prisão por sua causa, fez um contrato com a polícia: deixem-na em paz e eu confesso.
O contrato não incluía nomear os seus cúmplices ou devolver o saque. Não obstante, Albert Mouray e Claude Besson ficaram satisfeitos. A catástrofe de terça-feira transformou-se na vitória de sexta-feira. Haviam capturado O Cérebro.
Levaram Spaggiari perante o magistrado instrutor, o juiz Richard Boazis, no sábado 30 de Outubro. Reuniu-se grande multidão diante do Palácio de Justiça em Nice: repórteres, fotógrafos, repórteres do cinema, da televisão, e curiosos.
Spaggiari adorou. Deliciou-se com a publicidade. Elegantemente vestido, de aspecto confiante e nada arrependido, sorriu, saudou e fez declarações aos repórteres.
- Não, nada a lamentar - disse para um microfone. Um amigo agarrou-lhe na manga e sussurrou uma rápida mensagem:
- Não te preocupes com Audi... tomaremos conta dela. I
Na sala do tribunal, Spaggiari falou sem parar. Fez alarde de todo o seu brilhantismo, falou das dificuldades de trabalhar nos esgotos, exagerou o valor do roubo. Mas não disse nada que tivesse utilidade para a polícia.
- Não agi para proveito próprio. Realizei uma operação militar. Tenho orgulho de ser membro da Catena.
Catena era um ramo da OAS que se especializara em ajudar os fugitivos a escapar à polícia, mas acreditava-se em geral ter-se desmembrado depois do período de 1958-1960.
- Não fiquei com um centavo da minha parte do saque.
O dinheiro seguiu para ajudar as pessoas oprimidas da Jugoslávia, de Portugal e da Itália.
“Nem sequer podem imaginar o que encontrámos na caixa-forte. O valor das jóias ultrapassou de longe o ouro e o dinheiro.
“Estivemos em constante contacto com o exterior. Tínhamos dois grupos de vigias; um atento à polícia... sabíamos exactamente quando passavam as patrulhas de segurança... e um outro para vigiar o nível de água dos canos de esgoto.
A polícia admirava-se por que razão o bando abrira tão poucas caixas de depósito em cofre, e calculou que a tempestade da tarde de domingo 18 de Julho aumentara o nível de água nos canos a ponto de o bando se sentir em perigo e ter de escapar mais cedo por causa da cheia. Não fora assim, disse Spaggiari.
- Sabíamos exactamente a altura a que se encontrava a água e sabíamos que não estávamos em perigo. A razão por que não abrimos mais caixas foi que levámos mais tempo do que pensávamos a penetrar na parede da caixa-forte.
Quando se despediu do grupo depois do golpe, todos disseram:
- Obrigado, monsieur le directeur.
- O túnel pareceu levar uma eternidade a abrir. Trabalhávamos nele todas as noites até aparecerem os homens da limpeza das ruas.
Tornou-se rapidamente claro que Spaggiari podia manter este género de coisas indefinidamente. E assim aconteceu. Durante todo o Inverno de 1976-1977 ia à presença do juiz Bouazis uma vez por semana, à quinta-feira à tarde, para interrogatório. O juiz costumava recordar-lhe, frequentemente, que o objectivo do interrogatório era apresentar informações de utilidade para a polícia. Dizia a Spaggiari que não acreditava nesta história de terem dado o dinheiro. Avisava que a recusa de Spaggiari em indicar nomes significava inevitavelmente uma condenação mais longa. Spaggiari retorquia com um misto variável de gabarolice, imprecisão, evasivas e mentiras.
O tribunal esgotou o dinheiro. (A maneira como o sistema judicial francês é financiado é, para não dizer mais, simplesmente invulgar.) Obteve-se um empréstimo de dois mil e quinhentos dólares - adequadamente da Société Générale.
Houve mais umas prisões. Marie Françoise Astolfi foi presa com base no que escrevera no seu diário. Daniel Michelucci e Míchele Seaglie foram também detidos. Afirmaram ter estado no casino de Aix-en-Provence durante o fim-de-semana do assalto, e Daniel disse que comprara os lingotes de ouro a um estranho, em Itália. Encontraram-se mais uns poucos de lingotes, juntamente com uma máquina de cunhagem, numa busca da polícia a uma casa de Marselha.
Dominique Poggi, que estava a ser procurado por toda a força da polícia francesa, entregou-se em Atenas no dia 1 de Novembro, tendo feito, audaciosamente, uma entrevista pelo telefone dois dias antes. Uma mulher loura, de casaco de pele de leopardo, levou-o à esquadra da polícia no Boulevard Albert I num Simca-Matra branco. Homem moreno, de cabelo ondulado, nos seus 50 anos, estava vestido para a ocasião com um fato de veludo bege. A rapariga, figura da sociedade suíça, bem nascida, voltou sozinha para o seu apartamento em Juan les Pins. Poggi negou tudo.
- No fim de semana do assalto encontrava-me em casa, em Farinole, Córsega. Um punhado de testemunhas pode confirmar isso. Fui à vivenda de Castagniers a uma festa. Se a casa era o quartel-general dos Ratazanas dos Esgotos, é a primeira vez que ouço falar em tal. Spaggiari? Nunca ouvi falar dele.
Mas Francis Pellegrin dissera que apresentara Poggi a Spaggiari, e Poggi foi acusado de roubo e enviado para a prisão de Nice, onde se encontrava detido o bando. Todavia, Pellegrin mais tarde modificou o seu testemunho.
- A polícia continuava em cima de mim. Poggi, Poggi, sempre Poggi. Confessa, diziam eles: confessa que o Poggi é o tal. Finalmente disse-lhes o que eles queriam ouvir, só para me ver livre deles. Mas de facto foi outra pessoa muito diferente que apresentei a Spaggiari... um tipo que conheci num bar.
Não quis dizer o nome do homem que conheceu no bar.
O caso arrastou-se. Spaggiari concordou em escrever as suas memórias para o editor de Papillon. Os seus amigos diziam aos entrevistadores que ele era incapaz de roubar para proveito próprio.
- Ele não se interessa por dinheiro. Tem inteligência, coragem e nervos de aço; mas tem de estar sempre no comando... tem de ser o que dá as ordens.
A mãe dizia que não podia acreditar, o Bertzinho fora sempre um rapaz tão bom. Audi dizia sempre que nem sequer lhe passara pela cabeça o que estava a acontecer; mas também, acrescentava, o Albert nunca me teria dito nada para não me comprometer.
O chefe do departamento dos esgotos de Nice, Mon-sieur Testan, fez o seu depoimento. Uma vez fizera um túnel exactamente como o de Spaggiari, disse ele: foi o trabalho mais duro que jamais fizera.
- Éramos cinco, e só conseguimos avançar cerca de 1 m por dia. Um homem apenas era capaz de cavar durante dez minutos de cada vez; num espaço tão pequeno uma pessoa mal pode servir-se dos antebraços, e temos de trabalhar com ferramentas pequenas. É extraordinariamente difícil.
Não havia engano quanto ao tom de admiração que se lhe sentia na voz.
Os turistas que tinham acompanhado Albert e Audi ao Japão ficaram espantados.
- Quem havia de dizer que homem tão simpático, polido, prestativo e bem-educado podia ser o cérebro que se encontrava por detrás do roubo ao banco.
Na sua cela, Spaggiari exercitava-se duas vezes por dia para se manter em forma.
- Sente saudades da mulher - dizia o seu advogado, maître Jacques Peyrat -, mas não está abatido. Anseia pela liberdade, e pensa nela todo o tempo. Às vezes é como uma criança.
A segurança abrandava naquelas sessões de quinta-feira à tarde. Spaggiari era guardado apenas por dois agentes. Passava normalmente cinco minutos a conversar com Audi no corredor à porta da sala do tribunal. Foi aí que os autores falaram com ele: disse-nos que começara a escrever as suas memórias.
A polícia tinha a certeza que Spaggiari acabaria por ceder. Apenas estava a prolongar a sua própria agonia. No fim diria tudo, depois eles prenderiam o resto dos cúmplices e fechariam o caso. Não tinham pressa. Albert Mourat era um homem paciente.
Na quinta-feira 10 de Março de 1977 voltou-se tudo do avesso.
Spaggiari “destrói intencionalmente um veículo”
QUE CACHE L’ÉTERNEL SOURIRE D’ALBERT SPAGGIARI?
(Que se esconde por trás do eterno sorriso de Spaggiari?) Título do Nice-Martin, de 3 de Novembro de 1976
O prisioneiro, de aspecto pálido, não tocara no almoço. Há vários dias que tinha pouco apetite.
- Não me sinto muito bem - disse ao carcereiro. - Tenho fumado de mais.
O carcereiro, que se chamava Verrauld, tratava Spaggiari com grande respeito.
- Posso arranjar-lhe outra coisa, monsieur? - perguntou-lhe com caridade.
- Não, nada, obrigado.
Verrauld saiu e Spaggiari levantou-se para se ver ao espelho. Hoje, mais que nunca, tinha de agir normalmente: sorrir, parodiar, mostrar-se confiante e sem preocupações. Era mais outra tarde de quinta-feira, e a sua vigésima sessão perante o juiz instrutor seria exactamente como as outras dezanove, até certo ponto.
Vestiu o seu fato preto favorito e camisa branca de seda, e espetou o habitual charuto Don Miguel no canto da boca. Quando vieram buscá-lo, precisamente às 14.30, sorriu, saudou os polícias e estendeu as mãos para as algemas.
Levaram-no numa carrinha verde-acinzentada da prisão para o Palácio da Justiça. As duas habituais motocicletas da polícia seguiram o veículo,, mais - facto desconhecido de Spaggiari - uma escolta extra de quatro detectives num automóvel sem distintivo. O juiz Richard Bouazis ordenara a segurança adicional apenas duas semanas antes.
Spaggiari saiu da carrinha e subiu os degraus de mármore do tribunal, algemado a um polícia, e seguro, suave mas firmemente, pelo braço por um segundo polícia. Ambos os guardas estavam armados. Subiu os degraus dois a dois, obrigando os guardas a acompanhá-lo, a mostrar a sua excelente condição física. Conversava familiarmente com eles.
A sala do tribunal era muito pequena, com um pavimento de linóleo já gasto e paredes de um amarelo-acinzentado desbotado. Não havia cortinas nas janelas. O lugar há muito que estava para ser novamente decorado, e então seriam postas barras nas janelas; mas as obras tinham sido adiadas devido à falta de fundos.
À direita da porta existia uma secretária de tamanho médio para o magistrado. A seguir estava a mesa do escriturário do tribunal, empilhada de documentos. Completavam o mobiliário quatro cadeiras e um cinzeiro.
Spaggiari entrou e apertou a mão ao seu advogado, máitre Jacques Peyrat, antigo membro da Legião Estrangeira, de ombros largos, que era candidato às eleições para a câmara municipal. Peyrat era amigo de Jacques Médecin, presidente da câmara. Foi Peyrat quem tratou do contrato para a publicação das memórias de Spaggiari.
O juiz Bouazis entrou. Os dois guardas retiraram as algemas a Spaggiari e saíram, fechando à chave a porta do tribunal pelo lado de fora.
Ficaram apenas quatro pessoas lá dentro: Spaggiari, Peyrat, Bouazis e Mademoiselle Hoarau, uma senhora dos seus 40 anos, com um penteado muito severo, que já dactilografara centenas de páginas das transcrições das audiências.
Começaram as perguntas. Spaggiari fumava continuamente e era evasivo como sempre. Às 16.50, Bouazis lembrou-lhe que na semana anterior ele prometera um plano pormenorizado do assalto.
Lentamente, Spaggiari meteu a mão no bolso interior do seu casaco de veludo preto e tirou um pedaço de papel. Passou-o ao magistrado.
- Voilà. Aqui tem tudo o que queria saber.
Bouazis desdobrou o papel. Estava coberto de linhas, marcas e inscrições. Estudou-o com espanto crescente. De repente, levantou os olhos.
- Não lhe vejo nem a cabeça nem o rabo. Onde é o salão das exposições?
Peyrat olhou nesse momento para o seu cliente, e ficou chocado com o aspecto de Spaggiari. O advogado disse mais tarde:
- Ele estava absolutamente branco... Nunca o vi tão tenso. Parecia um cadáver. De súbito, tive medo que lhe acontecesse alguma coisa.
Spaggiari levantou-se.
- Não se preocupe - disse para o magistrado. Lentamente, atravessou a pequena sala, passou pela mesa de Mademoiselle Hoarau e rodeou a secretária do juiz Bouazis. Inclinou-se por cima do ombro do magistrado e apontou para qualquer coisa na planta: - Olhe...
Então, de um pulo, atingiu a janela, abriu-a rapidamente e
saltou.
- Não - gritou mattre Peyrat -, não faça isso, não faça isso! (Explicou mais tarde: “Pensei que ia suicidar-se.”)
O magistrado e o advogado levantaram-se como que movidos por uma mola e correram para a janela.
Por debaixo desta janela em particular - que pertence ao segundo andar - há um rebordo de uns 60 cm ou 90 cm, que fica por cima da porta alta de uma entrada lateral para o tribunal. Esta entrada chamava-se o Service Étrangers, e em frente dela, todos os dias, estão em bicha os estrangeiros para requerer os prolongamentos de vistos e tratar de outros assuntos respeitantes a passaportes e licenças de residência. Spaggiari saltou para cima deste rebordo.
Daí saltou para o tejadilho de um Renault 6 estacionado, amolgando-o.
Rolou pelo tejadilho e ficou de pé na rua.
Ao lado do Renault encontrava-se uma motocicleta verde-metalizada Kawasaki 900 com o motor a trabalhar. O motociclista, entroncado, tinha um capacete de viseira colorida. Spaggiari saltou para o selim de trás.
Da janela, Richard Bouazis gritou:
- Arrêtez-le! Arrêtez-le! (Agarra! Agarra!)
Spaggiari devolveu:
- Au revoir!
E fez o V da vitória.
Os transeuntes ainda o ouviram rir-se quando a motocicleta desapareceu no Boulevard Jean Jaurès.
Os fugitivos passaram um mau bocado no Boulevard Jean Jaurès quando um carro, saindo em marcha atrás de um parque
de estacionamento, se lhes atravessou no caminho. Mas o motociclista era hábil, e conseguiu torcer a moto em grande velocidade e passou à volta do automóvel sem lhe tocar.
À porta do tribunal um polícia saltou para a sua motocicleta e começou a persegui-los; mas Spaggiari tinha já demasiado avanço, e o polícia perdeu-os de vista quase imediatamente.
A força da polícia reagiu muito rapidamente. Dentro de dez minutos erguiam-se barreiras nas estradas a toda a volta de Nice, fechava-se a fronteira francesa e cancelavam-se todos os comboios e aviões que iam sair da cidade. Um jacto particular que acabara de levantar voo foi mandado aterrar de novo. Começava uma caçada humana em toda a escala.
Tudo para nada.
Spaggiari desaparecera.
E desde então mais ninguém lhe pôs a vista em cima.
Todavia, tem-se ouvido falar dele.
O Renault 6 bege, sobre cujo tejadilho ele caiu, ficou muito danificado, e teve de ser reparado. O proprietário, um tal Monsieur Gonzalez, ficou de coração despedaçado. O carro era quase novo. Monsieur Gonzalez morava na Rua Pontin, perto do tribunal. O carro, já em novo, fora muito danificado, e ele passara a estacioná-lo a seguir ao tribunal porque pensava que aí estaria em maior segurança.
A reparação custou para cima de seiscentos dólares, e a companhia de seguros de Monsieur Gonzalez recusou-se a pagar a despesa com base num acidente tão bizarro. Tudo quanto conseguiu fazer foi apresentar queixa à polícia pela destruição intencional de um veículo contra um tal Albert Spaggiari, de endereço desconhecido.
Foi uma história engraçada, e o Nice-Matin apresentou-a.
Uns dias mais tarde Gonzalez recebeu pelo correio a importância de seiscentos e vinte e cinco dólares em dinheiro e uma nota de Spaggiari a pedir desculpa.
Beberam-se sete garrafas de champanhe no Roi du Yan - o restaurante favorito de Spaggiari- na noite de 10 de Março. Os velhos camaradas reuniram-se para celebrar.
Mattre Peyrat ficou consideravelmente embaraçado.
- Ele deve ter planeado tudo aquilo antecipadamente - comentou. - Levou-nos, a mim e ao juiz de instrução, no conto do vigário.
Os funcionários do tribunal estavam também embaraçados. Um ano antes, outro prisioneiro escapara exactamente pela mesma janela. (Fora, todavia, apanhado pouco depois, na cidade velha.)
A polícia estava embaraçada, e o governo não ficou nada satisfeito. O ministro do Interior, Michael Poniatowski, falou ao telefone de Paris. Um milhar de agentes da polícia conduziram uma busca de casa em casa na cidade velha. Também fizeram busca na casa da quinta de Bézaudun - e verificaram que também Audi havia desaparecido.
As portas não estavam fechadas a chave e as persianas encontravam-se abertas, mas não havia ninguém em casa. A polícia entrevistou o vizinho Ange Goujon.
- Tenho dado de comer aos cães, Packa e Vesta, e à criação - informou. - Mas espero que Madame Spaggiari regresse a todo o momento.
A colega de enfermagem de Audi, Mademoiselle Fabienne Nehr, disse que ela partira a 3 de Março.
- Teve um mau dia, e eu sugeri que desse um passeio até às montanhas. Foi a última vez que a vi.
Nesse dia Audi fora ao estabelecimento de fotografia na Estrada de Marselha, levando consigo uma pequena mala de roupa. André Devesa já nessa altura havia comprado o pequeno estabelecimento.
- Disse-me que ia estar ausente até 25 de Março. Parecia muito fatigada.
O advogado de Spaggiari, maítre Jacques Peyrat, também tivera conhecimento que Audi se ia ausentar.
- Ficou totalmente exausta depois de tudo aquilo. Não queria ser mais incomodada, e desejava sair de Nice. Também houvera ameaças anónimas contra ela. Partiu com destino desconhecido, e disse que estaria ausente algumas semanas.
Audi foi, de facto, a única pessoa - além de Peyrat - que pudera falar com Spaggiari durante a sua detenção: lembram-se daquelas sessões, não oficiais, de cinco minutos, no corredor do tribunal? Ela deve ter preparado os pormenores da fuga. Agora desaparecia tão completamente como o marido.
A polícia começou a entrevistar as testemunhas da fuga. O motociclista estivera à espera na Rua da Prefeitura desde as 13 horas. Estivera a limpar os raios das rodas. A maior parte do tempo mantivera o capacete na cabeça com a viseira colorida; mas num dado momento tirou-a, e várias pessoas viram-lhe bem a cara.
O comissário Jacques “Colombo” Tholance deu três vivas e desenterrou o dossier das fotografias dos associados de Spaggiari.
Várias testemunhas reconheceram o motociclista de entre as fotografias.
Era Gérard Rang, de 28 anos, proprietário do notório night-club Chi-Chi, no Haut de Cagnes. Tinha cabelo louro liso e constituição forte. Era um extremista de direita, mas Tholance possuía dele um dossier tão volumoso como a lista telefónica de Manhattan. Ele e Spaggiari tinham sido ambos suspeitos de dois crimes: uma fraude em larga escala de livros de cheques que inundara Nice com cheques sem cobertura no Verão de 1974; e o hábil assalto à mão armada por dois homens ao Banque de Paris e des Pays-Bas, em Nice, no mesmo ano. O próprio Rang fora acusado de gerir um consórcio de apostas fraudulento que “investia” em coisas seguras o dinheiro dos indivíduos interessados, mas nunca pagava.
Rang também foi cliente de maítre Jacques Peyrat.
E Jacques Tholance recordava-se de que durante o golpe do século um motociclista estivera de vigia à entrada no leito do rio para a estrada subterrânea.
No domingo 13 de Março, às 10 horas da manhã, o comissário Tholance e vinte e quatro agentes cercaram num luxuoso bloco de apartamentos, chamado L'Arkadia, em Mont Fabron, um monte sobranceiro a Nice. Tholance subiu ao apartamento 2F, que dava para a piscina, e tocou a campainha.
Ainda esteve a tocar algum tempo antes de ouvir ruído no interior.
- Abre, Rang - gritou. - Vamos, cá para fora. Não podes fugir.
Finalmente ouviu-se uma resposta.
- Okay, saio dentro de cinco minutos.
Tholance reconheceu a voz de Rang. Esperou. Cinco minutos depois, Rang abria a porta. Vestia um casaco preto Yves St. Laurent, calças cinzentas de flanela e calçava botas pretas de tacão alto. Pôs os óculos de sol e saiu.
Parecia muito seguro de si.
- Seja pelo que for que me estão a prender, estão enganados - disse.
Tholance não deu resposta. Havia muito tempo para isso tudo.
A defesa que Rang fez de si próprio foi surpreendentemente fraca. Primeiro disse que guiava uma moto de 525 cc e não podia ser uma Kawasaki 900. Ninguém se impressionou com esta mentira.
Depois apresentou um álibi.
- Estava a jogar ténis nessa altura... no clube ao lado de L'Arkadia.
- Com quem?
- Sozinho.
- Como é que uma pessoa joga ténis sozinho?
- Contra uma parede.
Apresentaram provas. Uma das colegas de Peyrat chegou com quatro raparigas de L'Arkadia que atestaram que havia visto Rang a jogar ténis contra uma parede.
[Tratava-se de: a) Martine Wolf, que era assistente de Peyrat nas audiências de Spaggiari; b) a namorada de Rang; c) a inquilina de um apartamento da Rua da Prefeitura, 5, em frente da janela de onde Spaggiari saltara.]
Rang era na verdade sócio efectivo do clube de ténis, mas ninguém se lembrava de o ter visto a utilizar as instalações durante os últimos doze meses. O comissário Tholance ordenou uma acareação em linha. As quatro raparigas não conseguiram distinguir Rang dos indivíduos alinhados. Na verdade, tinham visto alguém a jogar ténis sozinho, mas a sua janela ficava muito distante do campo e não podiam jurar que o jogador era Rang.
Tholance organizou então outra acareação, desta vez com duas pessoas que tinham observado a fuga. Rang foi alinhado com quatro polícias louros entroncados. Ambas as testemunhas distinguiram Rang sem hesitar entre os alinhados.
Rang foi acusado por ajuda e cumplicidade na fuga de Spaggiari.
A 19 de Março, os camaradas de Spaggiari da OAS disseram aos autores:
- Conseguimos. Ele está fora do país.
A 20 de Março, Jacques Peyrat foi eleito vereador da câmara.
Bien le bonjour d'Albert!
Postal de Spaggiari para os autores, Abril de 1977
Recuperou-se menos de um milhão de francos do saque: o ouro que Bournat tentou vender, o ouro encontrado na caixa de depósito em cofre de Daniel Michelucci, em Bruxelas, e o ouro encontrado na casa de Marselha.
A Société Générale exigiu trinta milhões de francos aos seus seguradores, a Lloyds. Todavia, isso talvez seja simplesmente o máximo que eles tinham no seguro. Jacques Guenet, o gerente, nega; mas nenhum banqueiro em seu perfeito juízo o admitiria, mesmo que fosse verdade.
Em segundo lugar, os que perderam talvez não tenham reclamado tudo. Uma razão por que as pessoas arrendam caixas de depósito em cofre é para esconder a sua riqueza do fisco ou da polícia. Sete pessoas recusaram-se a entregar o inventário do conteúdo das suas caixas, por isso a sua perda fica excluída dos trinta milhões de francos. Outras podem ter reclamado apenas parte do que perderam, tendo receio de admitir a posse de valores que talvez tenham sido roubados, ou fosse dinheiro que não fora declarado às autoridades dos impostos.
(Houve um homem em Nice que disse a quem quis ouvir que o assalto do século lhe custara meio milhão de francos exactamente por essa razão. Chamava-se Gérard Rang.)
O próprio Spaggiari afirmava que o golpe rendeu cem milhões de francos, mas ele exagerava tudo.
Nos fins do Outono de 1981, no Rio de Janeiro, ele e Ronald Biggs, o famoso inglês que assaltou o comboio, discutiram diante de uisque e charutos Havana o assunto: quem é o maior ladrão de todos os tempos?
Mesmo que se acredite na estimativa mais baixa da Société Générale, há apenas um vencedor: Albert Spaggiari executou o golpe do século.
Ainda não há respostas satisfatórias para os três mistérios:
Por que razão a polícia de Nice não soube antecipadamente do assalto?
Por que é que não actuaram quando a CIA lhes falou da confissão de Spaggiari?
E por que motivo Spaggiari não se escondeu depois das prisões de 26 de Outubro?
Em si mesma, a terceira questão talvez tenha como resposta o facto de Spaggiari ser um megalómano, e como a maioria dos megalómanos achava que levava uma vida encantada, protegida pelos deuses.
O problema, afinal, é que de facto ele levava uma vida encantada, como indicam as outras duas questões. É-se inevitavelmente obrigado a especular que talvez estivesse protegido. Mas por quem? E por que razão os seus protectores o abandonaram no fim apenas para voltarem a salvá-lo?
Neste ponto entra em discussão a política. Nice é um lugar conservador, com uma assembleia municipal de direita. Todas as dramatis personae desta história são direi-tistas de um tipo ou de outro, desde o presidente da câmara a Gérard Rang. As pessoas formam círculos fascinantes: o presidente da câmara conhecia Spaggiari, o qual era associado de Rang, cuja namorada era Martine Wolf, a qual era colega de Jacques Peyrat, o qual era amigo chegado do presidente da câmara. (As ligações do presidente da câmara Jacques Médecin com Spaggiari, por muito ténues e trivais que fossem, teriam levado à renúncia de muitos políticos; mas os Médecin são a família mais poderosa de Nice, dela tendo saído a maioria dos presidentes da câmara - a Avenida Jean Médecin tem o nome de um -, e a posição de Jacques é demasiado forte para ser posta em perigo por uma lufada de escândalo.) Mas é a OAS que levanta a sua feia cabeça mais frequentemente nesta história. Spaggiari era um membro; e também algumas das Ratazanas dos Esgotos. Spaggiari sempre afirmou que dera a sua fatia do bolo a OAS. E a OAS reivindicava o crédito por tê-lo feito sair de França depois da fuga. É possível que os simpatizantes da OAS em lugares elevados o protegessem dos inquéritos da polícia? Não podemos fazer mais nada senão a pergunta.
Se estava protegido, mantém-se o enigma de saber por que é que se deixou prender e depois se escapou.
Toda a sua vida Spaggiari teve grandes ideias, mas nunca ninguém lhe deu a oportunidade de as pôr em prática. Ora, é possível que finalmente ele provocasse a sua própria oportunidade e provasse que era capaz. Todas as provas apontam nesse sentido, e é nesse sentido que contámos a história. Mas há outra possibilidade, e essa é a de que Spaggiari fosse simplesmente o lugar-tenente de algum outro cérebro criminoso desconhecido, quer um refinado patife quer um fanático político. O deixar-se prender podia ter sido a maneira de Spaggiari proteger o real cérebro que estava por detrás do assalto. Se assim foi, resultou com certeza, pois a polícia de Nice já não anda à procura do homem misterioso que está por detrás do golpe - andam à procura do fugitivo Spaggiari.
Esta hipótese, se for correcta, explicaria um outro enigma: o golpe feito a papel químico na Ile St. Louis, em Paris. Discutindo o caso, notamos que: a) era improvável que o mesmo bando se arriscasse a um segundo trabalho antes de ter a oportunidade de gastar os 6,2 milhões de dólares que arrecadaram do banco de Nice; b) era igualmente improvável que dois bandos completamente separados utilizassem ao mesmo tempo um método tão semelhante de roubar a caixa-forte de um banco. Todavia, é absolutamente possível que um organizador criminoso de alto coturno tivesse a ideia e a pusesse em prática com dois bandos em duas cidades bastante separadas, mais ou menos ao mesmo tempo.
Sigamos esta hipótese até à sua conclusão lógica, recordando que durante todo o tempo estamos a avançar a partir de meros factos e a entrar nos reinos da pura especulação. O verdadeiro cérebro planeou o golpe, usou Spaggiari como os próprios braços e pernas, e preparou alta protecção. Depois, a fim de afastar a atenção de si próprio e dar ao público ansioso e à curiosidade da polícia um bode expiatório plausível, deixa Spaggiari ser preso- Mas não podia ter a certeza que Spaggiari aguentasse eternamente os interrogatórios, de modo que organizou a fuga. Que mais pode agora fazer para se proteger?
Bem, podia matar Spaggiari.
No Outono de 1977 circularam em Nice rumores de que Spaggiari tinha, na verdade, sido assassinado. Todavia, até quanto a isso havia provas consideráveis de que ele estava vivo, e bem.
Mandou um postal aos autores: um retrato de si próprio, trajando um casaco pesado e uma boina (talvez para esconder um novo penteado que lhe alternava a aparência). A mensagem era: Bien le bonjour d'Albert! (Com os cumprimentos de Albert!) Um perito em caligrafia comparou a mensagem com a caligrafia que se conhece de Spaggiari e declarou-as idênticas.
Ele também enviou ao Nice-Matin uma carta alegando que Gérard Rang não fora o motorista que o ajudou na fuga.
O postal, a carta e o dinheiro enviado ao proprietário do Renault 6 danificado foram todos postos no correio em Nice, o que provavelmente nada significa.
Os antigos camaradas da casa de spaghetti Roi du Yan dizem que sabem onde ele se encontra.
- Conseguimos fazê-lo sair do país com a ajuda dos nossos amigos italianos.
O julgamento muito curto do assalto do século levou apenas três dias. Houve apenas quatro condenações - nenhuma mais de dois anos (todos em liberdade condicional passados seis meses). Não houve provas contra Dominique Poggi, e Audi, que regressou dois meses depois do seu desaparecimento sem qualquer comentário, também não foi condenada. E Spaggiari não estava lá.
Audi Spaggiari leva uma vida muito modesta como enfermeira na Estrada de Marselha. Durante o fim-de-semana está sempre na sua quinta de Bézaudun, e sonha com os velhos tempos, quando vivia feliz com Albert. Desde que ele partiu nunca mais mencionou o seu nome nem fez qualquer comentário a respeito do novo estilo de vida dele.
O próprio Albert Spaggiari leva a vida de um super-homem, de um playboy, de um multimilionário. Na sua fazenda da América do Sul -como diz aos repórteres - vive com belas raparigas e bebe champanhe dia e noite.
Ken Follett
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