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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS CHEFES / Mario Vargas Llosa
OS CHEFES / Mario Vargas Llosa

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS CHEFES

 

Ainda usavam calça curta naquele ano, ainda não fumávamos, entre todos os esportes preferiam o futebol e estávamos aprendendo a furar ondas, a mergulhar do segundo trampolim do Terraças, e eram travessos, imberbes, curiosos, muito ágeis, comilões. Naquele ano, quando Cuéllar entrou no Colégio Champagnat.

Irmão Leôncio, é verdade que vem um novo? Para o Terceiro A, irmão? Sim, Irmão Leôncio afastava com uma tapona o topete que lhe cobria o rosto, agora silêncio.

Apareceu em uma manhã, à hora da formatura, pela mão do pai, e o Irmão Lúcio colocou-o à frente da fila porque era menor ainda que Rojas, e na sala de aula o Irmão Leôncio sentou-o atrás, com a gente, naquela carteira vazia, rapazinho. Como era seu nome? Cuéllar, e você? Cabrito, e você? Pardal, e você? Manhoso, e você? Lalo[1].

De Miraflores? Sim, desde o mês passado, antes morava em Santo Antônio e agora em Marechal Castela, perto do Cine Colina.

Era um caxias (mas não puxa-saco): na primeira semana ficou em quinto e na seguinte em terceiro e, depois, sempre em primeiro até o acidente, então começou a relaxar e a tirar notas ruins. Os catorze incas, Cuéllar, pergunta Irmão Leôncio, e ele citava sem respirar os Mandamentos, as três estrofes do Hino Marista, a poesia Minha Bandeira, de López Albújar: sem respirar. Você é um gênio, Cuéllar, dizia-lhe Lalo e o irmão, boa memória, rapazinho, e para nós, aprendam, malandros! Lustrava as unhas na lapela do casaco e olhava para toda a classe por cima do ombro, mascarado (de mentira, no fundo não era mascarado, só um pouco biruta e brincalhão. E, além disso, bom companheiro. Nos soprava nos exames e nos recreios pagava pirulitos, ricaço, toffees[2], sortudo, chamava-o o Cabrito, você ganha mesada maior que nós quatro juntos, e ele pelas boas notas que tirava, e nós ainda bem que você é boa gente, caxias, isso o salvava).

As aulas do Primário terminavam às quatro, às quatro e dez o Irmão Lúcio dava o fora de forma e às quatro e quinze eles estavam no campo de futebol. Atiravam as pastas na grama, os casacos, as gravatas, depressa Pardal, depressa, vai para o gol antes que outro vá, e no canil Judas ficava muito louco, uau, levantava o rabo, uau uau, mostrava os caninos, uau uau uau, dava saltos mortais, uau uau uau uau, sacudia os arames. Puxa, droga, se um dia ele foge, dizia Pardal, e Manhoso se foge a gente deve ficar quieto, os dinamarqueses só mordem quando farejam que a gente está com medo, quem disse isso a você?, meu velho, e Choto eu subiria nas traves, ali não o alcançaria, e Cuéllar puxava seu punhalzinho e chás chás fazia ele dormir, tirava o couro e enterravaaaaaauuuu, olhando o céu, uuuuuuaaauuuu. as duas mãos na boca, auauauauauuuuu: que tal imitava Tarzã? Jogavam até às cinco pois a essa hora saía o Ginásio e a nós os grandes corriam do campo, por bem ou por mal. As línguas de fora, sacudindo-nos e suando recolhiam livros, casacos e gravatas e saíamos para a rua. Desciam pela Diagonal fazendo passes de basquete com as pastas, segure este, papaizinho, atravessávamos o Parque à altura de Las Delícias, segurei, viu. mamãezinha?, e no barzinho da esquina de D'Onofrio comprávamos casquinhas, de baunilha? mistas?, ponha um pouco mais, moreno, não me roube, um pouquinho de limão, sovina, uma lambujem de morango. Depois, então, continuavam descendo a Diagonal, o Violino Cigano, sem falar, a Rua Porta, distraídos com os sorvetes, um sinal de trânsito, shhp chupando shhhp e pulando até o edifício São Nicolau e ali Cuéllar se despedia, amigão, não se vá ainda, vamos ao Terraças, pediriam a bola ao Chinês, não queria jogar pela seleção do curso?, irmão, para isso tinha que treinar um pouco, venha vamos ande, só até às seis, bater uma bolinha no Terraças, Cuéllar. Não podia, o pai não deixava, tinha que fazer os deveres. Acompanhavam-no até sua casa, como podia entrar no time se não treinava? E afinal acabávamos indo ao Terraças sozinhos. Boa gente mas muito caxias, dizia Cabrito, por causa do estudo descuida-se do esporte, e Lalo não era culpa sua, seu velho devia ser um chato, e Pardal claro, ele morria de vontade de vir com eles e Manhoso assim ia ser muito difícil entrar no time, não tinha físico, nem chute forte, nem resistência, cansava-se sem mais aquela, nem nada. Mas cabeceia bem, dizia Cabrito, e depois era nosso torcedor, tinha que entrar no time fosse como fosse dizia Lalo, e Pardal para que fique conosco e Manhoso sim, a gente bota ele na equipe, fácil!

Mas Cuéllar, que era teimoso e morria de vontade de jogar no time, treinou tanto no verão que no ano seguinte ganhou a posição de meia-esquerda na seleção do curso: mens sana in corpore sano, dizia o Irmão Agostinho, estávamos vendo?, pode-se ser bom esportista e aplicado nos estudos,   que imitássemos seu exemplo. Como é que você conseguiu?, perguntava-lhe Lalo, de onde saíram esses passes, essa fome de bola, esses chutes no ângulo? E ele: tinha sido treinado por seu primo, o Chispas, e seu pai o levava ao Estádio todos os domingos e ali, vendo os craques, aprendia seus truques, manjávamos? Havia passado os três meses sem ir às matinês nem às praias, só vendo e jogando futebol manhã e tarde, peguem essas panturrilhas, não tinham ficado duras?

Sim, melhoraram muito, dizia Cabrito ao Irmão Lúcio, é verdade, e Lalo é um atacante ágil e trabalhador, e Pardal como organizava bem o ataque e, principalmente, não perdia a moral, e Manhoso, viu como recua até o gol para buscar a bola quando o adversário está atacando, Irmão Lúcio? Precisa entrar no time. Cuéllar ria feliz, soprava as unhas e as lustrava na camiseta do Quarto A, mangas brancas, corpo azul: agora sim, dizíamos a ele, a gente já botou você no time, mas não fique mascarado. Em julho, para o Campeonato Interséries, o Irmão Agostinho autorizou o time do Quarto A a treinar duas vezes por semana, nas segundas e nas sextas-feiras, nas horas de Desenho e Música. Depois do segundo recreio, quando o pátio ficava vazio, molhadinho pela garoa, lustroso como um bumbum novinho, os onze selecionados desciam ao campo, trocávamos o uniforme e, com chuteiras e gorros pretos, saíam dos vestiários em fila indiana, em passo marcado, encabeçados por Lalo, o capitão. Em todas as janelas das salas de aula apareciam caras invejosas que espiavam seus piques, havia um ventinho frio que enrugava a água da piscina (você daria um mergulho? Depois do jogo, agora não, brrrr que frio), seus dribles, e mexia com as copas dos eucaliptos e das figueiras do Parque que se mostravam sobre o muro amarelo do Colégio, seus pênaltis e a manhã ia voando: treinamos jóia, dizia Cuéllar, genial, ganharemos. Uma hora depois o Irmão Lúcio apitava e, enquanto as salas se esvaziavam e as turmas formavam no pátio, os selecionados nos vestíamos para ir às suas casas e almoçar. Mas Cuéllar demorava-se porque (você copia tudo dos craques, dizia Pardal, a quem você pensa que eu copio?, Totó Terry?) tomava sempre uma ducha depois dos treinos. Às vezes eles também tomavam ducha, uau, mas nesse dia uau uau, quando o Judas apareceu na porta dos vestiários, uau uau uau, só Lalo e Cuéllar tomavam banho: uau uau uau uau. Cabrito, Pardal e Manhoso pularam pelas janelas, Lalo estrilou fugiu olhe irmão e conseguiu fechar a portinha da ducha bem no focinho do dinamarquês. Ali, encolhido, lajotas brancas, azulejos e esguichos de água, tremendo, ouviu os latidos do Judas, o choro de Cuéllar, seus gritos, e ouviu berros, pulos, batidas, escorregões e depois só latidos, e um monte de tempo depois, eu juro (mas quanto, perguntava Pardal, dois minutos?, mais irmão, e Cabrito, cinco?, mais muito mais), o vozeirão do Irmão Lúcio, os nomes feios de Leôncio (em espanhol, Lalo?, sim, também em francês, você o entendia?, não, mas a gente imaginava que eram nomes feios, idiota, pela raiva da voz), os merdas, meu Deus, fora, largo, largo, o desespero dos irmãos, seu terrível susto. Abriu a porta e já o levavam carregado, viuo entre as batinas pretas, desmaiado?, sim, pelado, Lalo?, sim e sangrando, irmão, palavra, coisa horrível: o banheiro todo era puro sangue. Que mais, que foi que houve depois enquanto eu me vestia, dizia Lalo, e Pardal o Irmão Agostinho e o Irmão Lúcio meteram Cuéllar na camioneta da Direção, vimos das escadas, Cabrito arrancaram a oitenta (Manhoso cem) por hora, buzinando como os bombeiros, como uma ambulância.

Enquanto isso o Irmão Leôncio perseguia Judas que ia e vinha pelo pátio dando pulos, cambalhotas, agarrava-o e o metia no canil e por entre os arames (queria matá-lo, dizia Cabrito, se você o tivesse visto, assustava) açoitava-o sem misericórdia, vermelho, o topete dançando no seu rosto.

Nessa semana, a missa de domingo, o rosário da sexta-feira e as orações do princípio e do fim das aulas foram pelo restabelecimento de Cuéllar, mas os irmãos ficavam furiosos se os alunos falavam entre eles do acidente, nos davam tapas e um cascudo, silêncio, tome, de castigo até às seis.

Apesar disso, esse foi o único tema das conversas nos recreios e nas aulas, e na segunda-feira seguinte quando, à saída do Colégio, foram visitá-lo na Clínica Americana, vimos que não tinha nada no rosto nem nas mãos. Estava em um quartinho lindo, alô Cuéllar, paredes brancas e cortinas cremes, já está bom, companheiro? Perto de um jardim de flores, grama e uma árvore. Eles a gente está vingando você, Cuéllar, em todos os recreios, tome pedrada contra o canil do Judas e ele bem feito, logo não vai sobrar um osso inteiro no desgraçado, ria, quando saísse iríamos ao Colégio de noite e entraríamos pelo teto, viva o garotinho pam pam, o Águia Mascarada chás chás, e o faríamos ver estrelas, de bom humor mas magrinho e pálido, a esse cachorro, como ele a mim. Sentadas à cabeceira de Cuéllar havia duas senhoras que nos deram chocolates e saíram para o jardim, querido, fique conversando com seus amiguinhos, fumariam um cigarro e voltariam, a do vestido branco é minha mãe, a outra, uma tia. Conte, Cuéllar, irmãozinho, o que houve, tinha doído muito? Muitíssimo, onde é que ele mordeu? Foi aqui, e fez uma careta, na piroquinha? Sim, coradinho, e riu e nós rimos e as senhoras da janela adeus, adeus querido, e para nós só um momentinho mais porque Cuéllar ainda não estava bom e ele psst, era um segredo, seu velho não queria, tampouco sua velha, que ninguém soubesse, meu amor, é melhor que você não diga nada, para que, tinha sido na perna, querido, está bem? A operação durou duas horas, disse a eles, voltaria ao colégio dentro de dez dias, olhe só quanta folga que mais quer, tinha lhe perguntado o doutor. Fomos embora e na aula todos queriam saber, costuraram a barriga dele, verdade?, com linha e agulha, verdade? E Pardal como que se emplumou quando nos contou, seria pecado falar disso? Lalo não, sua mãe dizia toda noite antes de se deitar, já escovou os dentes, já fez pipi? E Manhoso coitado do Cuéllar, que dor devia sentir, se uma bolada ali deixa qualquer um dormindo quanto não devia doer uma mordida e depois imagine os dentes afiados do Judas, peguem pedras, vamos ao campo, um, dois, três, uau uau uau uau, estava gostando?, desgraçado, tome e aprenda. Pobre Cuéllar, dizia Cabrito, não poderia mais brilhar no Campeonato que começa amanhã, e Manhoso tanto treinamento perdido e o pior é que, dizia Lalo, isto enfraqueceu o nosso time, a gente vai ter que se arrebentar se não quiser ficar com a lanterna, rapazes, jurem que vão dar tudo.

 

Só voltou ao Colégio depois do Dia da Pátria e, coisa estranha, em vez de haver se desiludido com o futebol (não tinha sido pelo futebol, de certo modo, que Judas o mordera?) veio mais esportista que nunca. Em compensação, os estudos começaram a interessar-lhe menos. E era compreensível, mesmo que fosse burro, já não precisava se matar: apresentava-se aos exames com médias muito baixas e os irmãos o passavam, maus exercícios e ótimo, péssimos deveres e aprovado. Desde o acidente adulam você, dizíamos a ele, não sabia nada de frações e, que sacanagem, deram seis a você. E depois, faziam-no ajudar missa, Cuéllar lia o catecismo, levar o estandarte da classe nas procissões, apague o quadro-negro, cantar no coro, distribua os livros, e nas primeiras sextas-feiras participava do chocolate embora não comungasse.

Quem me dera ser como você, dizia Cabrito, você é um folgado, pena que o Judas não mordesse a gente também, e ele não era por isso: os irmãos o adulavam de medo do seu velho.

Bandidos, que fizeram ao meu filho, eu fecho o Colégio, boto na cadeia, não sabem quem sou eu, ia matar aquela fera maldita e o Irmão-Diretor, calma, acalme-se senhor, sacudiu-o pelo babeiro[3]. Foi assim, palavra, dizia Cuéllar, seu velho tinha contado isso à sua velha e embora se segredassem ele, da minha cama na clínica, ouviu? Era por isso que o adulavam, só por isso. Pelo babeiro? Que invenção, dizia Lalo, e Pardal talvez fosse verdade, por algum motivo tinha desaparecido o maldito animal. Terá sido vencido, dizíamos, terá fugido, teria sido dado a alguém, e Cuéllar não, não, verdade que seu pai veio e o matou, ele sempre cumpria o que prometia. Porque certa manhã o canil amanheceu vazio e uma semana depois, em vez do Judas, quatro coelhinhos brancos! Cuéllar, leve-lhes alfaces, ah companheirinho, dê-lhes cenouras, como adulavam você, troque-lhes a água e ele feliz da vida. Mas não apenas os irmãos se puseram a mimá-lo, também seus velhos fizeram o mesmo. Agora Cuéllar vinha todas as tardes com a gente ao Terraças para jogar futebol (seu velho não fica mais bravo?, agora não, pelo contrário, perguntava sempre quem ganhou o jogo, meu time, quantos gols você fez, três? Ótimo!, e ele não fique zangada, mamãe, a camisa se rasgou no jogo, foi sem querer, e ela bobinho, não tinha importância, queridinho, a criada vai costurá-la, serve para você usar em casa, que lhe desse um beijo) e depois íamos para os poleiros do Excelcior[4], do Ricardo Palma ou do Lauro* ver seriados, dramas impróprios para senhoritas, filmes do Cantinflas e do Tin-Tan. Seguidamente, aumentavam suas mesadas e me compram o que eu quero, nos dizia, comprara seus pais, me fazem todas as vontades, tinha-os aqui, no bolso, são loucos por mim. Ele foi o primeiro dos cinco a ter patins, bicicleta, motocicleta e eles, Cuéllar, que seu velho nos dê uma taça para o campeonato, que nos leve à piscina do Estádio para ver Merino e o Coelho Villarán nadarem e que nos apanhasse no seu carro à saída da matinê, e seu velho nos dava e nos levava e nos apanhava em seu carro: sim, ele o tinha aqui, no bolso.

Por esse tempo, não muito depois do acidente, começaram a chamá-lo de Piroquinha. O apelido nasceu na aula, foi o sabido do Gumúcio que o inventou?, Claro, e quem mais podia ser, e no princípio Cuéllar, irmão, chorava, estão me chamando de um nome feio, como se fosse maricas, quem?, como lhe chamam?, Uma coisa feia, irmão, tinha vergonha de repeti-la, gaguejando e as lágrimas que jorravam, e depois nos recreios os alunos de outros anos Piroquinha que é que houve, e o ranho que escorria, como estas aqui, e ele, irmão, olhe bem, corria até Leôncio, Lúcio, Agostinho ou até o professor Canhão Paredes: foi aquele.

Queixava-se e também ficava furioso, que foi que você disse, eu disse Piroquinha, branco de cólera, maricas, tremendo-lhe as mãos e a voz, quero ver repete se você é bem homem, Piroquinha, repeti e não acontece nada e ele então fechava os olhos e, tal como lhe havia aconselhado seu papai, não se entregue rapaz, atirava-se, rebente-lhes as fuças, e os desafiava, pise no pé dele e bandangam, e saía aos murros, um sopapo, uma cabeçada, uma patada, onde fosse, na fila ou no campo, jogue-o no chão e pronto, na aula, na capela, não o amolarão mais. Mas quanto mais se enfurecia mais o chateavam e uma vez, era um escândalo, irmão, seu pai foi à Direção soltando faíscas, estavam martirizando seu filho e ele não ia permitir isso. Que tivesse coragem, que castigasse esses atrevidos ou ele o faria, poria todo mundo no seu devido lugar, que insolência, uma tapona na mesa, era o máximo, era só o que faltava. Mas tinham grudado o apelido nele como um selo e, apesar dos castigos impostos pelos irmãos, dos sejam mais humanos, tenham um pouco de piedade dele do Diretor, e apesar dos choros e das convulsões e das ameaças e murros de Cuéllar, o apelido saiu à rua e pouco a pouco foi correndo pelos bairros de Miraflores e ele nunca mais pôde livrar-se dele, coitado. Piroquinha passe a bola, não seja tão fominha, quanto você tirou em Álgebra, Piroquinha? Troco uma bala de framboesa, Piroquinha, por um bolo de mel, e não deixe de vir amanhã no passeio pra Chosica, Piroquinha, iam tomar banho no rio, os irmãos levariam luvas e você poderá lutar box com Gumúcio e se vingar, Piroquinha, você tem botas? Porque deviam subir o morro, Piroquinha, e na volta ainda alcançariam a matinê, Piroquinha, você gosta de um grude?

Também a eles, Cuéllar, que no começo nos cuidávamos, companheiros, começou a escaparlhes, velho, contra nossa vontade, irmão, gente nossa, de repente Piroquinha e ele, vermelho, o quê?, ou pálido, você também, Pardal? Abrindo muito os olhos, amigão, desculpe, não tinha sido por querer, ele também, seu amigo também, amigão, Cuéllar, que não ficasse assim, se todos falavam isso a gente até pegava, você também, Cabrito?, acontece que lhe saía da boca sem querer, ele também, Manhoso?, então era assim que o chamávamos pelas costas? Era só dar meia-volta e eles Piroquinha, é verdade? Não, como podia pensar nisso, nós o abraçávamos, palavra que nunca mais e depois por que é que você se zanga, irmãozinho, era um apelido como qualquer outro e afinal você não chama o coxinho Peres de Manco e o vesgo Rodrigues Virolo de Olhar Fatal e de Bico de Ouro ao gaguinho Rivera? E não o tratavam a ele de Cabrito e a ele Pardal e a ele de Manhoso e a ele de Lalo. Não fique zangado, irmão, continue jogando, ande, se arranque.

Pouco a pouco se foi resignando ao apelido e no sexto ano não chorava mais nem era tão brigão, fazia-se de desentendido e às vezes até brincava, Piroquinha não Pirocona ah, ah! e no primeiro ano ginasial acostumara-se tanto que, quando o chamavam de Cuéllar ficava sério e olhava com desconfiança, como que duvidando, não seria para gozá-lo? Até estendia a mão aos novos amigos dizendo muito prazer, Piroca Cuéllar às ordens.

Não às mulheres, claro, só aos homens. Porque nessa época, além dos esportes, já se interessavam pelas garotas. Tínhamos começado a fazer brincadeiras, nas aulas, escute, ontem eu vi o Gordinho Martines com a namorada, nos recreios, passeavam de mãos dadas pelos Molhes e de repente pum, um chupão, e nas saídas, na boca? Sim e tinham demorado paca se beijando. Em pouco tempo, esse foi o tema principal de suas conversas. Quique Rojas tinha uma mulherzinha mais velha que ele, loira, de olhões azuis e no domingo o Manhoso viu quando eles entravam juntos na matinê do Ricardo Palma e na saída ela estava toda despenteada, na certa tinham se grudado, e noutro dia de noite o Cabrito pescou o venezuelano do quinto, aquele que chamam de Múcura pela bocarra, velho, num carro, com uma mulher muito pintada e, claro, estavam se grudando, e você, Lalo, já teve algum grude? E você, Piroquinha, ah ah, e Manhoso gostava da irmã de Perico Sáenz, e Cabrito ia pagar um sorvete e a carteira caiu e tinha uma foto de um Chapeuzinho Vermelho numa festa infantil, ah ah, não faça caretas, Lalo, já sabemos que você está gamado pela magra Rojas, e você Piroquinha está gamado por alguém? E ele não, vermelho, ainda, ou pálido, não estava gamado por ninguém, e você e você, ah ah.

Se saíamos às cinco em ponto e corríamos pela Avenida Pardo botando a alma pela boca, alcançavam em cima da hora a saída das garotas do Colégio da Reparação. Parávamos na esquina e veja, ali estavam os ônibus, eram as do terceiro e aquela da segunda janela é a irmã do moreno Canepa, tchau tchau, e essa, olhe, digam adeus a ela, ela riu, ela riu, e a garotinha nos respondeu, adeus, adeus, mas não era para você, nojenta, e aquela e aquela. Às vezes levávamos a elas papeizinhos escritos e os lançavam pelo ar, que bonita que você é, gosto de suas tranças, o uniforme fica melhor em você que em nenhuma outra, seu amigo Lalo, cuidado, amigão, a freira já viu você, vai castigá-las, como é que você se chama? Eu Manhoso, vamos ao cinema domingo? Que lhe respondesse amanhã com um papelzinho igual ou quando o ônibus passar fazendo que sim com a cabeça. E você Cuéllar, não se agradava de nenhuma?, sim, essa que está sentada atrás, a quatro-olhos? Não, não, a do lado, por que não lhe escrevia então, e ele o que escreveria, vamos ver, vamos ver, você quer ser minha amiga?, não, que bobagem, queria ser seu amigo e lhe mandava um beijo, sim, isso era melhor, mas era pouco, alguma coisa mais forte, quero ser seu amigo e lhe mandava um beijo e adoro você, ela seria a vaca e eu serei o touro, ah ah. E agora assine seu nome e sobrenome e que lhe fizesse um desenho, por exemplo qual?, qualquer um, um tourinho, uma florzinha, uma piroquinha, e assim passavam nossas tardes, correndo atrás dos ônibus do Colégio da Reparação e, às vezes, íamos até a Avenida Arequipa para ver as garotas de uniformes brancos do Vila Maria, acabavam de fazer a primeira comunhão? gritávamos para elas, e inclusive tomavam o Expresso e descíamos em São Isidro para espiar as do Santa Úrsula e as do Sagrado Coração. Não jogávamos tanto futebol como antes.

Quando as festas de aniversário se transformaram em festas mistas, eles ficavam nos jardins, simulando que brincavam de pegar, de esconder ou de polícia e ladrão, enquanto éramos todo olhos, todo ouvidos, o que acontecia no salão?, o que faziam as garotas com esses felizardos, que inveja, que já sabiam dançar? Até que um dia se decidiram a aprender eles também e então passávamos sábados, domingos inteiros, dançando homem com homem, na casa do Lalo, não, na minha que é maior era melhor, mas Cabrito tinha mais discos, e Manhoso mas eu tenho minha irmã que pode ensinar a gente e Cuéllar não, na dele, seus velhos já sabiam e um dia tome, sua mamãe, querido, dava-lhe de presente essa vitrola, para ele só?, sim, não queria aprender a dançar? Poria no seu quarto e chamaria seus amiguinhos e ali ficaria com eles quanto tempo quisesse e também compre discos, querido, vai à Discocentro, e eles foram e escolhemos guarachas, mambos, boleros e valsas e a conta mandavam para seu velho, claro, o Senhor Cuéllar, dois oito cinco Marechal Castela. A valsa e o bolero eram fáceis, só precisava ter memória e contar, um aqui, outro lá, a música não tinha tanta importância. Difíceis eram a guaracha, temos que aprender passos, dizia Cuéllar, o mambo, e a dar voltas e a soltar o par e a fazer figurações.

Quase ao mesmo tempo aprendemos a dançar e a fumar, tropeçando uns nos outros, engasgando-se com a fumaça dos Luchy e dos Viceroy, pulando até que de repente agora irmão, você já sabe, saía, não o perca, mexa-se mais, enjoando-nos, tossindo e cuspindo, deixe ver, tinha passado?, mentira, estava com a fumaça debaixo da língua, e Piroquinha eu, que nós contássemos, tínhamos visto?, oito, nove, dez, e agora botava pra fora: sabia ou não sabia tragar? E também botar pelo nariz e agachar-se e dar uma voltinha e levantar-se sem perder o ritmo.

Antes, o que mais nos agradava no mundo eram os esportes e o cinema, e davam qualquer coisa por um jogo de futebol, e agora em troca o que mais gostávamos era das garotas e dos bailes e dávamos qualquer coisa por uma festa com discos de Pérez Prado e licença da dona da casa para fumar.

Havia festas quase todos os sábados e quando não íamos como convidados íamos de penetra e, antes de entrar, metiam-se no bar da esquina e pedíamos ao chinês, batendo no balcão com o punho: cinco cubas!

De um gole só, dizia Piroquinha, assim, glu glu, como homens, como eu.

Quando Pérez Prado chegou a Lima com sua orquestra fomos esperá-lo na Córpac, e Cuéllar, vamos ver quem ia tão longe como eu, conseguiu abrir caminho entre a multidão, chegou até ele, puxou-o pelo casaco e gritou "Rei do Mambo!" Pérez Prado sorriu para ele e também me deu a mão, eu juro, e assinou no seu álbum de autógrafos, olhem.

Acompanharam-no, misturados na caravana de fãs, no carro de Boby Lozano, até a Praça San Martin e, apesar da proibição do Arcebispo e das advertências dos irmãos do Colégio Champagnat, fomos à Praça de Acho, à Tribuna do Sol, para ver o campeonato nacional de mambo.

Toda noite, na casa de Cuéllar, ligavam a Rádio El Sol e escutávamos, frenéticos, que trombeta, irmão, que ritmo, para ouvir a audição de Pérez Prado, que piano.

Já usavam calças compridas então, nós nos penteávamos com brilhantina e haviam crescido, sobretudo Cuéllar, que era o menorzinho e o mais fraquinho dos cinco e passou a ser o mais alto e o mais forte. Você virou um Tarzã, Piroquinha, nós lhe dizíamos, que corpão você está botando.

 

O primeiro a ter namorada foi Lalo, quando estávamos no terceiro ginasial. Entrou uma noite na Sorveteria Rica, muito risonho, eles que é que há e ele, radiante, exibido como um pavão: me declarei pra Boazuda Molina, ela me disse que sim. Fomos festejá-lo no El Chasqui e, no segundo copo de cerveja, Lalo, que foi que você disse a ela em sua declaração, Cuéllar começou a ficar nervosinho, tinha agarrado a mão dela? chato, que foi que a Boazuda fez, Lalo, e perguntador, você a beijou, conte? Ele nos contava, contente, e agora era a vez deles, saúde, como um caramelo de felicidade, vamos ver se arranjávamos logo uma namorada e Cuéllar, batendo na mesa com o copo, como foi, o que foi que ela disse, o que foi que você lhe disse, o que foi que você fez. Você parece um padre, Piroquinha, dizia Lalo, estão me confessando e Cuéllar conte, conte, o que mais. Tomaram três Cristáles[5] e, à meia-noite, Piroquinha se mandou.

Encostado em um poste, em plena Avenida Larco, frente à Assistência Pública, vomitou: cabeça de frango, dizíamos a ele, e também que desperdício, botar fora assim a cerveja que custou tanto, que esbanjamento. Mas ele, você nos traiu, não estava brincando, Lalo traidor, espumando, você se apressou, vomitando na camisa, declarar-se a uma menina, nas calças, e nem sequer nos contar que a flertava, Piroquinha, agache-se um pouco, você está se sujando até a alma, mas ele nada, isso não se fazia, e você se importa que eu me suje?, mau amigo, traidor. Depois, enquanto o limpávamos, passou-lhe a raiva e ficou sentimental: agora a gente não vai mais ver você, Lalo. Passaria os domingos com a Boazuda e nunca mais vai nos procurar, maricão. E Lalo nem pense nisto, irmão, a garota e os amigos eram duas coisas diferentes mas que não se chocam, não precisava ter ciúme, Piroquinha, tranqüilize-se, e eles se dêem as mãos mas Cuéllar não queria, que a Boazuda desse a mão a ele, eu não dou. Nós o acompanhamos até sua casa e durante todo o caminho ficou murmurando cale a boca cara a puteando, chegamos, entre de mansinho, mansinho, passo a passo como um ladrão, cuidado, se você faz barulho seus papais acordarão e vão saber. Mas ele começou a gritar, quero ver, a chutar a porta da sua casa, que acordassem e o encontrassem que é que aconteceria, covardes, que não fôssemos embora, ele não tinha medo dos seus velhos, que ficássemos e víssemos. Está mordido, dizia o Manhoso, enquanto corríamos para a Diagonal, foi só você dizer que se declarou pra Boazuda e o nosso amigo mudou de cara e de humor, e Cabrito era inveja, por isso ficou de porre e Pardal os pais dele vão matá-lo.

Mas não lhe fizeram nada. Quem foi que abriu a porta pra você?, minha mãe, e que foi que aconteceu? Nós perguntávamos, deu em você? Não, começou a chorar, querido, como era possível, como podia tomar álcool na sua idade, e também meu velho me censurou, só isso, não se repetiria mais?, não papai, tinha vergonha do que havia feito? Sim. Deram-lhe um banho, deitaram-no e na manhã seguinte ele lhes pediu perdão. E também prô Lalo, irmão, sinto muito, a cerveja me subiu à cabeça, não é? Eu o insultei, fiquei enchendo o seu saco, não é? Não, que besteira, coisa dos tragos, choque aqui esses cinco e amigos, Piroquinha, como antes, não houve nada.

Mas houve alguma coisa: Cuéllar começou a fazer loucuras para chamar a atenção. Era festejado e nós o provocávamos, duvidam que eu roube o carro do velho e vamos dar umas voltas na Costanera, rapazes?, você não rouba, irmão, e ele tirava o Chevrolet do seu papai e se iam para a Costanera; duvidam que eu bata o recorde de Boby Lozano?, você não bate, irmão, e ele vsssst pelos Molhes vsssst de Benavides até a Quebrada vsssst em dois minutos e cinqüenta, bati?, sim e Manhoso fez o sinal da cruz, bateu, e você como ficou com medo, seu bolha; que nos convidava ao Oh, que bom e que saíamos sem pagar, duvidamos, irmão, e eles iam ao Oh, que bom, nos estofávamos de hambúrgueres e de milk-shakes, saíam um por um e da Igreja de Santa Maria víamos Cuéllar fazer uma careta prô garçom e fugir, que foi que você lhe disse? Duvidam que eu quebre todos os vidros dessa casa com a escopeta de caçar perdizes do meu pai?, você não quebra, Piroquinha, e ele os quebrava.

Fazia-se de louco para impressionar, mas também para, você viu, viu? ficar gozando o Lalo, você não teve coragem e eu sim.

Não lhe perdoa por causa da Boazuda, dizíamos, que ódio ele tem dele.

No quarto ginasial, Cabrito declarou-se à Magra Salas, que topou, e Manhoso à Pusy Lanas que também disse sim. Cuéllar não saiu de casa durante um mês e no Colégio mal os cumprimentava, escute, o que há com você, nada, por que não nos procurava, por que não saía com eles?, não tinha vontade de sair. Se faz de misterioso, diziam, de difícil, de desconfiado, de ressentido. Mas pouco a pouco conformou-se e voltou à turma. Nos domingos, Pardal e ele iam sozinhos à matinê (solteirinhos, nós os chamávamos, viuvinhos), e depois matavam o tempo de qualquer maneira, batendo chão, sem se falar ou só com um vamos por aqui, por ali, as mãos nos bolsos, ouvindo discos na casa de Cuéllar, lendo quadrinhos ou jogando cartas, e às nove largavam-se pelo Parque Salazar procurando os outros, que a essa hora já estávamos nos despedindo das namoradas. Tiveram um namorinho firme?, perguntava Cuéllar, enquanto tirávamos os casacos, afrouxavam as gravatas e arregaçávamos as mangas no Bilhar da Alameda Ricardo Palma, um namorinho firme, rapazes?, a voz doente de ressentimento, inveja e mau humor, e eles cale a boca, vamos jogar, irmão, língua?, piscando como se a fumaça e a luz dos focos lhe ferissem os olhos, e nós, estava com raiva, Piroquinha? Por que em vez de se chatear não conseguia uma mulherzinha e parava de sacanear? E ele, se chuparam? Tossindo e cuspindo como um bêbado, até se engasgar? Batendo pé, levantaram a saia delas, meteram o dedinho? E eles a inveja o corroia, Piroquinha, gostosinho, bonitinho? Enlouquecia-o, melhor que se calasse e começasse.

Mas ele continuava, incansável, então, agora de verdade, o que tínhamos feito?, as garotas deixavam vocês beijar quanto tempo?, de novo, irmão?, cale a boca, já estava ficando chato, e uma vez Lalo ficou bravo: merda, ia quebrar-lhe a fuça, falava como se as namoradas fossem vagabundas.

Nós os separamos e eles os fizeram se reconciliar, mas Cuéllar não podia, era mais forte que ele, todo domingo com a mesma chateação: então, como foi? Que contássemos, namorinho jóia?

No quinto ginasial, Pardal ficou gamado pela Bebê Romero que lhe disse não, pela Tula Ramírez, que não, pela Chinesa Saldívar, que sim: ganhei no cansaço, dizia, quem persegue consegue, feliz. Comemoramos no barzinho dos lutadores de catch na Rua San Martin. Mudo, encolhido, triste em sua cadeira no canto, Cuéllar arrebentava-se cuba após cuba: não fique com essa cara, irmão, agora era sua vez. Que escolhesse uma mulherzinha e se declarasse, lhe dizíamos, a gente vai junto, nós o ajudaríamos e nossas namoradas também. Sim, sim, escolheria logo, cuba após cuba, e de repente tchau, levantou-se: estava cansado, vou dormir. Se ficasse ia chorar, dizia Manhoso, e Cabrito estava que mal podia esconder a raiva, e Pardal se não chorasse tinha um troço como da outra vez. E Lalo: a gente devia ajudá-lo, falava sério, conseguiríamos uma mulherzinha mesmo que fosse feinha, e perderia o complexo. Sim, sim, nós o ajudaríamos, era boa gente, um pouco chato às vezes mas no seu caso qualquer um, a gente o compreendia, desculpava, sentia sua falta, gostava dele, vamos beber à sua saúde, Piroquinha, batam os copos, por você.

Desde então Cuéllar ia sozinho à matinê dos domingos e feriados - nós o víamos na escuridão da platéia, sentadinho nas filas de trás, acendendo guimba após guimba, espiando disfarçadamente os casais que andavam de agarramento -, e só se juntava a eles de noite, no bilhar, no Bransa, na Sorveteria Rica, o rosto amargo, que tal o domingo? E a voz azeda, ele muito bem e vocês eu imagino que muitíssimo bem, não é?

Mas no verão a raiva já lhe tinha passado; íamos juntos à praia - à Ferradura, não mais a Miraflores -, no carro que seus velhos lhe haviam presenteado no Natal, um Ford conversível que tinha descarga aberta, não respeitava os sinais e ensurdecia, assustava os transeuntes. com dificuldade, fizera-se amigo das garotas e se saía bem com elas, embora sempre, Cuéllar, andassem chateando-o com a mesma coisa: por que não se declara a alguma garota de uma vez? Assim seriam cinco casais e sairíamos em patota sempre e estariam para todo lado juntos, por que não se decide logo?

Cuéllar defendia-se brincando, não porque então não caberiam todos no poderoso Ford e uma de vocês seria sacrificada despistando, por acaso com nove já não íamos espremidos? Falando sério, dizia Pusy, todos tinham namoradas e ele não, não se cansa de tocar violino? Por que não namora a magra Gamio, ela está doidinha por você, tinha confessado isto outro dia, na casa da Chinesa, jogando cartas, não gosta dela? Fale com ela, a gente dá cobertura, ela o aceitaria, decida-se. Mas ele não queria ter namorada e fazia cara de condenado, prefiro minha liberdade, e de conquistador, solteirinho estava melhor.

Liberdade para que, perguntava a Chinesa, para fazer loucuras?, e Boazuda, para andar correndo atrás delas? E Pusy, com vagabundas? e ele cara de misterioso, quem sabe, de cafetão, quem sabe e de tarado: pode ser. Por que você já não vem mais às nossas festas? Perguntava a Magra, antes vinha a todas e era tão alegre e dançava tão bem? Que aconteceu com você Cuéllar? E Boazuda, que não fosse tão enjoado, venha, assim um dia encontrará uma garota que o agrade e então você a conquista. Mas ele nem de brincadeira, de perdido, nossas festas o aborreciam, de grande safado, não ia porque tinha outras melhores onde me divirto mais. O que acontece é que você não gosta das decentes, diziam elas, e ele como amigas claro que sim, e elas só das bandidas, das vadias, das pistoleiras e, de repente, Piroquinha, sisisim gogogostavava dededelas, começava, dddass gagagarotatas decentetetes, a gaguejar, sssó qqqque da mamagra Gamio nnnão, elas você tem é medo e ele e dededepois nnnão titinha tempo popopor causa dddos eeexammmes e eles deixem ele em paz, saíamos em sua defesa, não vão convencê-lo, ele tinha seus namorinhos, seus segredinhos, depressa irmão, olhe que sol. A Ferradura deve estar o máximo, pé no fundo, faça voar esse poderoso Ford.

Tomávamos banho na frente do As Gaivotas e, enquanto os quatro casais curtiam sol na areia, Cuéllar exibia-se furando ondas.

Vamos ver aquela que está se formando, dizia a Boazuda, aquela grandona, será que você pode? Piroquinha levantava-se de um pulo, caíra-lhe justo no gosto, nisso pelo menos podia nos ganhar: ia tentar, Boazuda, olhe. Precipitava-se - corria pondo o peito para fora, atirando a cabeça para trás - mergulhava, avançava com lindas braçadas, batendo pés certinho, como nada bem dizia Pusy, alcançava a onda quando ia rebentar, olhe só, ele vai furá-la, não teve medo, dizia a Chinesa, ficava boiando e tirava ligeiramente a cabeça, um braço estendido e o outro batendo, furando a água como um campeão, nós o víamos subir até a crista da onda, cair com ela, desaparecer em um estrondo de espuma, olhem só, olhem só, numa dessas vai se estrepar dizia a Magra, e o viam reaparecer e vir arrastado pela onda, o corpo arqueado, a cabeça de fora, os pés trançados no ar, e nós o víamos chegar até a margem suavemente, empurrado pelas ondas.

Como você fura bem as ondas, diziam elas enquanto Cuéllar mexia-se contra a ressaca, acenava para nós e de novo jogava-se ao mar, era tão simpático, e também pintoso, por que não tinha namorada? Eles se olhavam desconfiados, Lalo ria, Magra, o que há com vocês? por que essas gargalhadas? Contém, Cabrito ficava vermelho, era só por rir, por nada e depois de que é que você está falando, que gargalhadas, ela não se faça de bobo e ele não, não estava se fazendo de bobo, palavra de honra. Não tinha porque era tímido, dizia o Pardal, e Pusy tímido não era, por que seria, talvez fresco, e Boazuda, então por quê? Está procurando mas não encontra, dizia Lalo, logo namora alguma e Chinesa negativo, não estava procurando, nunca ia às festas, e Boazuda, então por quê? Ela sabe, dizia Lalo, cortava a cabeça como sabe, sabiam e se faziam de desentendidas, para quê? jogar verde para colher maduro, se não soubessem por que tantos por que, tanto olhar estranho, tanta malícia na voz. E Cabrito: não, você está enganado, não sabiam, eram perguntas inocentes, as garotas tinham pena de que não tivesse namorada na sua idade, têm pena de que ande sozinho, querem ajudá-lo. Talvez não saibam mas qualquer dia destes vão saber, dizia Pardal, e será por sua culpa, que lhe custava namorar alguma embora fosse só para despistar? e Boazuda, então por quê?, e Manhoso, isto não lhe interessa, não o chateie tanto, quando menos se esperar ele se apaixonará, ia ver, e agora calem a boca que está chegando. À medida que os dias passavam, Cuéllar ficava mais arredio às garotas, mais lacônico e esquivo. Também mais doido: estragou a festa de aniversário da Pusy explodindo uma enfiada de foguetes pela janela, ela se pôs a chorar e o Manhoso se enfureceu, foi procurá-lo, brigaram, Piroquinha deu nele. Demoramos uma semana para que fizessem as pazes, desculpe Manhoso, porra, não sei o que houve comigo, irmão, não foi nada, eu é que lhe peço desculpas, Piroquinha, porque fiquei furioso, venha venha, a Pusy também desculpou você e quer vê-lo; chegou bêbado à Missa do Galo e Lalo e Cabrito tiveram que levá-lo à força para o Parque, me soltem, delirando, não se importava com nada, vomitando, queria ter um revólver, para que, irmãozinho? Com diabos azuis, para nos matar?, sim e também esse cara aí que está passando pam pam e a você e a mim também pam pam; um domingo invadiu a pelouse do Hipódromo e com seu Ford ffffuum investia contra as pessoas ffffuum que gritavam e pulavam as barreiras aterrorizadas, ffffuum. Nos carnavais, as garotas fugiam dele: bombardeava-as com projéteis fedorentos, ovos podres, frutas podres, balões de mijo e as sujava com barro, tinta, farinha, sabão (de lavar panelas) e piche: selvagem, chamavam-no de porco, bruto, animal, e aparecia na festa do Terraças, no baile infantil do Parque do Barranco, no baile do Lawn Tennis, sem fantasia, um tubo de lança-perfume em cada mão, píquiti píquiti, oba, acertei, acertei nos olhos, ah ah, píquiti píquiti, oba, está cega, ah ah, ou armado com um bastão para atravessá-lo nos pés dos que dançavam e jogá-los no chão: bandangam. Brigava, davam nele, às vezes nós o defendíamos mas não se corrige com nada, dizíamos, numa destas vão matá-lo.

Suas loucuras lhe deram má fama e Pardal, irmão, você tem que mudar, Cabrito, Piroquinha, você está ficando antipático, Manhoso, as garotas não querem mais sair com ele, acham que você é um bandido, um exibido e um chato. Ele, às vezes tristonho, era a última vez, mudaria, palavra de honra, e às vezes briguento, bandido, ah sim?, isso é o que as linguarudas dizem de mim?, não se abalava, o que vinha de baixo não o atingia, nem de leve, saía no mijo.

Na festa de formatura - a rigor, duas orquestras, no Country Club -, o único da turma ausente foi Cuéllar. Não seja bobo dizíamos a ele, tem que vir, nós procuramos uma garota para você, Pusy já falou com a Margot, Magra com a Use, a Chinesa com a Elena, a Boazuda com a Flora, todas queriam morriam para ser seu par, escolhe e vem à festa. Mas ele não, que ridículo por smoking, não iria, melhor que a gente se encontrasse depois. Está bem Piroquinha, como você quiser, que não fosse, não gosta de ostentações, então nos esperava no El Chasqui às duas, deixaríamos as garotas em suas casas, nós o apanharíamos e iríamos tomar uns tragos, dar umas voltas por aí, e ele tristezinho está bem.

 

No ano seguinte, quando Pardal e Manhoso já estavam no primeiro de Engenharia, Lalo no Pré-médico e Cabrito começava a trabalhar na Casa Wiese e a Boazuda já não namorava Lalo, mas o Pardal e a Chinesa já não era do Pardal, mas do Lalo, chegou a Miraflores a Teresinha Arrarte: Cuéllar viu-a e, por algum tempo, pelo menos, mudou.

Da noite para o dia deixou de fazer loucuras e de andar em mangas de camisa, a calça rasgada e os cabelos despenteados.

Começou a usar gravata e casaco, a pentear-se com topete à Elvis Presley e a lustrar os sapatos: o que há, Piroquinha, você está que a gente nem reconhece, calma chinês.

E ele nada, de bom humor, não tenho nada, tinha que cuidar um pouco da pinta, não é, soprando, lustrando as unhas, parecia o de antes. Que alegria, irmão, dizíamos, que revolução ver você assim, não será quê? e ele, como um pão de mel, ou seja, Teresinha?, de repente então, gostava dela?, pode ser que sim, como um chiclete, pode ser que sim.

De novo voltou a ser sociável, quase tanto como era de pequeno. Aos domingos aparecia na missa das doze (às vezes, nós o víamos comungar) e à saída aproximava-se das garotas do bairro, como estão?, como vai Teresinha?, íamos ao Parque? sentávamos nesse banco que tinha uma sombrinha.

Nas tardes, ao escurecer, descia para a Pista de Patinação e caía e levantava, brincalhão e conversador, venha venha Teresinha, ele ia ensiná-la, e se caísse? Não cairia, ele lhe daria a mão, venha venha, uma voltinha só, e ela está bem, coradinha e coquete, uma só mas devagarzinho, loirinha, pezudinha e com seus dentes de rato, vamos, então. Deu também para freqüentar o Regatas, papai, que entrasse de sócio, todos os seus amigos iam e seu velho ok, coprarei um título, você vai ser voga, rapaz? Sim, e o Boliche da Diagonal. Até dava umas voltas nos domingos à tarde pelo Parque Salazar, e a gente via-o sempre risonho, Teresinha, sabia no que um elefante se parecia com Jesus, serviçal, pega meus óculos, Teresinha, faz muito sol, falador, alguma novidade, Teresinha, todos bem na sua casa? e pagão, um hot-dog, Teresinha, um sanduichinho, um milk-sháke?

Pronto, dizia a Magra, chegou sua hora, apaixonou-se. E Boazuda como estava sóbrio, olhava Teresinha e babava, e eles nas noites, em volta da mesa de bilhar, enquanto o esperávamos, se declararia? Cabrito, se atreverá?, e Pardal, a Té saberá? Mas ninguém lhe perguntava de frente e ele se fazia de desentendido com as indiretas, viu a Teresinha? Sim, foram ao cinema?, ver Ava Gardner, na matinê, gostaram? Beleza, sensacional, que fôssemos, não a percam. Tirava o casaco, arregaçava as mangas, escolhia o taco, pedia cerveja para os cinco, jogava e uma noite, logo depois de uma carambola real, a meia voz, sem nos olhar: agora sim, iam curá-lo. Marcou seus pontos, iam operá-lo, e eles, que estava dizendo, Piroquinha? É verdade que vão operar você? E ele como quem não quer nada, que bom, não é? Podia, sim, não aqui, mas em Nova Iorque, seu velho ia levá-lo, e nós que coisa boa, irmão, que formidável, que grande notícia, quando ia viajar?, e ele logo, dentro de um mês, para Nova Iorque, e eles que risse, cante, grite, fique feliz irmãozinho, que grande alegria. Só que não era ainda certo, tinha que esperar uma resposta do médico, meu velho já escreveu a ele, não um médico mas um sábio, um crânio desses que existem lá e ele, papai, já chegou?, não, e no dia seguinte, veio carteiro, mamãe?, não querido, acalme-se, chegará logo, não fique impaciente e afinal chegou e seu velho agarrou-o pelo ombro: não não era possível, rapaz, tinha que ter coragem. Amigão, que pena, lhe diziam eles, e ele mas pode ser que possam em outros lugares, na Alemanha, por exemplo, em Paris, em Londres, seu velho ia averiguar, escrever mil cartas, gastaria o que não tinha, rapaz, e viajaria, seria operado e se curaria, e nós claro, irmãozinho, claro que sim, e quando saía, coitadinho, dava vontade de chorar. Cabrito: em que maldita hora a Teresinha apareceu aqui no bairro, e Pardal já estava conformado e agora está desesperado e Manhoso mas talvez mais tarde, a ciência avançava tanto, não é verdade?, descobririam alguma coisa e Lalo não, seu tio médico lhe havia dito não, não há maneira, não tem remédio e Cuéllar, já papai? Talvez, de Paris, mamãe? E se de repente de Roma? Da Alemanha, já?

E entretanto começou de novo a ir a festas e, como que para apagar a má fama que conquistara com suas loucuras de rocanroleiro e conquistar as famílias, comportava-se nos aniversários e mingaus-dançantes como um rapaz modelo: chegava na hora e sem ter bebido, um presentinho na mão, Boazudinha, para você, feliz aniversário, e estas flores para sua mamãe, me conta, Teresinha veio? Dançava muito duro, muito direitinho, você parece um velho, não apertava o par, às garotas que esquentavam cadeira, venha gordinha vamos dançar, e conversava com as mamães, os papais, e ajudava a servir, sirva-se senhora às tias, aceita um suquinho? Aos tios, um traguinho? Galante, que bonito seu colar, como brilhava seu anel, loquaz, foi às corridas, senhor, quando é que tira o grande prêmio? E galanteador, a senhora é uma mulher decidida, que lhe ensinasse a agir assim, seu Joaquim, o que não daria para dançar tão bem.

Quando estávamos conversando, sentados no banco do Parque, e chegava Teresinha Arrarte, na mesa da Sorveteria Rica, Cuéllar mudava, ou no bairro, de conversa: quer deslumbrá-la, diziam, fazer-se passar por um crânio, quer conquistá-la pela admiração.

Falava de coisas estranhas e difíceis: a religião (Deus que era Todo-poderoso podia, por acaso, matar-se, sendo imortal?), vejamos, quem de nós resolvia a charada, a política (Hitler não foi tão louco como diziam, em poucos anos fez da Alemanha um país que enfrentou todo o mundo, não foi?, o que pensavam eles), o espiritismo (não era coisa de superstição, mas ciência, na França havia médiuns na Universidade e não só invocam as almas, também as fotografam, ele havia visto um livro, Teresinha, se quisesse ele o conseguiria e empresto a você). Anunciou que ia estudar: no próximo ano entraria na Católica e ela dengosa muito bem, que carreira ia seguir? E insistia com suas mãozinhas brancas, seguiria advocacia, seus dedinhos gordos e suas unhas compridas, advocacia? Ui, que feio!, com esmalte natural, entristecendo-se e ele mas não para ser um advogado qualquer, mas para entrar na Torre Tagle*[6] e ser diplomata, alegrando-se, mãozinhas, olhos, pestanas, e ele sim, o Ministro era amigo de seu velho, já lhe tinha falado, dinlomata? boquinha, ui, que lindo! e ele, derretendo-se, morrendo, lógico, viajavam tanto, e ela por isso também e depois porque passavam a vida em festas: piscadinhas.

O amor faz milagres, dizia Pusy, como ficou formal, que cavalheirinho. E Chinesa: mas era um amor dos mais estranhos, se estava tão apaixonado pela Tê por que não se declarava de uma vez? E Boazuda isso mesmo, o que esperava? Já fazia mais de dois meses que a perseguia e até agora muita conversa e pouca ação, que namoro esquisito. Eles, entre eles, saberão ou fingirão? Mas diante delas nós o defendíamos dissimulando: devagar se vai ao longe, garotas. É coisa de orgulho, dizia Pardal, não quer arriscar-se até estar seguro que o vai aceitar.

Mas claro que o ia aceitar, dizia a Magra, não tirava os olhos dele, veja o Lalo e a Chinesa que grudadinhos, e lhe dava indiretas, como você patina bem, que bonita .sua blusa, que quentinha e até se declarava jogando, meu parceiro será você? Justamente por isso desconfia, dizia Manhoso, com as coquetes como Tê nunca se sabia, parecia e depois não. Mas Magra e Pusy, mentira, elas lhe tinham perguntado, você o aceitará? e ela deu a entender que sim, e Boazuda, por acaso não vivia saindo com ele, nas festas não dançava só com ele, no cinema com quem se sentava senão com ele? Mais claro nem o galo cantava: morre de amor por ele. E Chinesa, olhe que de tanto esperar por ele ia se cansar, aconselhem-no a agir logo e se queria uma oportunidade nós a daríamos, uma festinha por exemplo, no sábado, dançariam um pouco, na minha casa ou na da Boazuda ou na da Magra, sairíamos para o jardim e deixaríamos os dois sozinhos, que mais podia pedir. E no bilhar: não sabiam, que inocentes, ou que hipócritas, sabiam sim e fingiam.

As coisas não podem continuar assim, disse Lalo um dia, tratava-o como um cachorro, Piroquinha ia ficar louco, poderia até morrer de amor, façamos alguma coisa, eles sim mas o que, e Manhoso verificar se de verdade a Té gosta dele ou era coisa de coqueteria.

Foram à sua casa, perguntamos a ela, mas ela sabia todas, nos come os quatro juntos por uma perna, diziam. Cuéllar?, sentadinha na sacada de sua casa, mas vocês não o chamam de Cuéllar, usam uma palavra feia, balançando-se para que a luz do poste batesse nas suas pernas, morre de amor por mim?, não eram feias, como sabíamos?

E cabrito não se faça de boba, bem que sabia e eles também e as meninas e por toda Miraflores falavam e ela, olhos, boca, narizinho, de verdade?, como se estivesse vendo um marciano: primeira vez que ouvia. E Manhoso, vamos Teresinha, seja franca, de peito aberto, não via como ele a olhava? E ela ai, ai, ai, aplaudindo, mãozinhas, dentes, sapatinhos, que olhássemos, uma borboleta!, que corrêssemos, que a agarrássemos e a trouxéssemos. Olharia para ele, sim, mas como um amigo e, além disso, que bonita, pegando suas asinhas, dedinhos, unhas, vozinha, vocês a mataram, pobrezinha, nunca lhe disse nada. E eles que conversa, que mentira, alguma coisa lhe dizia, no mínimo a elogiaria e ela não, palavra, fazia um buraquinho no seu jardim e a enterraria, uma pedrinha, o pescoço, as orelhinhas, nunca, nos jurava. E Pardal, não percebia, por acaso, como ele a seguia?, e Teresinha devia segui-lo, mas como amigo, ai, ai, ai, sapateando, soquinhos no ar, olhares zangados, não estava morta a bandida, voou!, cintura, tetinhas, pois, então não, nem sequer havia segurado sua mão, não? ou melhor dizendo, tentado, não?, ali está, ali, que corrêssemos, ou teria se declarado, não é?, e de novo a agarrássemos: é que ele é tímido, dizia Lalo, pegue-a mas, cuidadinho, vai se sujar, e não sabe se você o aceitará, Teresinha, vai aceitá-lo? E ela ah, ah, ruguinhas, testinha, mataram-na e a esmagaram, uma covinha nas bochechas, pestaninhas, sobrancelhas, a quem? E nós como a quem e ela melhor jogar fora, assim como estava, toda esmagada, para que ia enterrá-la: ombrinhos. Cuéllar? E Manhoso sim, você não lhe dava bola?, não sabia ainda e Cabrito então gostava, Teresinha, lhe dava bola, e ela não tinha dito isso, só que não sabia, logo saberia se houvesse ocasião, mas era certo que não haveria e eles, haveria. E Lalo, achava-o pintoso? e ela, Cuéllar?, cotovelos, joelhos, sim, era um pouco pintoso, não é? E nós, vê, vê como gostava dele? E ela não tinha dito isso, não, que não lhe fizéssemos trapaças, olhem, a borboletinha brilhava entre os gerânios do jardim, ou era outro bichinho?, a ponta do dedinho, o pé, um saltinho branco. Mas por que é que tinha esse apelido tão feio, éramos muito desbocados, por que não puseram nele alguma coisa bonita como no Galo, no Boby, no Super-homem ou no Coelho Villarán, e nós como se importava, como se importava, estava vendo?, tinha pena por causa do apelido dele, quer dizer que o queria, Teresinha, e ela, queria?, um pouquinho, olhos, gargalhadinha, só como amigo, claro.

Se faz de indiferente, dizíamos, mas não há dúvida que sim: que Piroquinha se declare e se acabou, falemos a ele. Mas era difícil e não se atreviam.

E Cuéllar, por sua parte, também não se decidia: continuava noite e dia atrás de Teresinha Arrarte, contemplando-a, adulando-a, fazendo vontades e em Miraflores os que não sabiam gozavam dele, punheteiro, diziam, pura pinta, totó de madame e as meninas cantavam Até quando, até quando, para envergonhá-lo e animá-lo. Então, uma noite o levamos ao Cinema Barranco e, ao sair, irmão, vamos à Ferradura no seu poderoso Ford e ele ok, tomariam umas cervejas e jogariam futebol, jóia. Fomos no seu poderoso Ford, roncando, derrapando nas curvas e nos Molhes de Chorrillos um tira parou-os, íamos a mais de cem, senhor, moreno, não seja assim, não precisava ser tão mau, e nos pediu a carteira e tiveram que dar a ele uma nota, senhor?, tome uns piscos em nossa saúde, moreno, não seja tão mau, e na Ferradura desceram e se sentaram em uma mesa do Nacional: que mistura, irmão, mas essa gente não estava tão mal e como dançam, era mais divertido que o circo. Tomamos duas cervejas e não se atreviam, quatro e nada, seis e Lalo começou. Sou seu amigo, Piroquinha, e ele riu, bêbado já! e Manhoso gostamos muito de você, irmão, e ele, já? Rindo, paixões de bebedeira você também? e Pardal: queriam falar-lhe, irmão, e também aconselhá-lo. Cuéllar mudou, empalideceu, brindou, que gracioso esse par, não? Ele um sapo e ela uma macaca, não é? E Lalo para que desconversar, companheiro, você morre pela Tê, não é? e ele tossiu, espirrou, e Manhoso, Piroquinha, diga-nos a verdade, sim ou não? E ele riu, triste, trêmulo, quase não se ouviu: mmmorria, sssim. Duas cervejas mais e Cuéllar não sabia qqque ia fazer, Cabrito, o que podia fazer? e ele declarar-se e ele não pode ser, Pardalzinho, como é que vou me declarar a ela e ele declarando-se, companheiro, declarando-lhe seu amor, então, ela vai dizer sim a você. E ele não era por isso, Manhoso, podia lhe dizer sim, mas e depois? Tomava sua cerveja e perdia a voz e Lalo depois seria depois, agora declare-se e pronto, de qualquer modo dentro de pouco tempo você se cura e ele, Cabritinho, e se Tê sabia, se alguém lhe dissesse? E eles não sabia, nós já a interrogamos, está louca por você e a ele voltava a voz, está louca por mim? E nós sim, e ele claro que talvez dentro de algum tempo posso me curar, vocês acham que sim? e eles sim, sim, Piroquinha, e em todo caso você não pode continuar assim, se amargurando, enfraquecendo, se acabando: que se declarasse de uma vez. E Lalo, como podia duvidar? Ia se declarar, teria namorada e ele, o que faria? Cabrito sairia com ela e Manhoso agarraria sua mão e Pardal a beijaria e Lalo a bolinaria um pouquinho e ele, e depois? e perdia a voz e eles, depois?, e ele depois, quando crescessem e você se casasse, e ele e você e Lalo: que absurdo, como ia pensar nisso desde agora, e depois, isto é o que menos importa. Um dia a largaria, procuraria uma briga sob qualquer pretexto e brigaria e assim tudo se arranjaria e ele, querendo e não querendo falar: justamente era isso o que não queria, porque, porque a queria. Mas um pouquinho depois - dez cervejas tomadas irmãos, tínhamos razão, era o melhor: me declaro, fico um tempo com ela e a largarei.

Mas as semanas passavam e nós quando, Piroquinha, e ele amanhã, palavra, sofrendo como nunca o viram antes nem depois, e as garotas estás perdiendo ei tiempo pensando, pensando, cantando-lhe o bolero Quizás., quizás, quizás. Então começaram suas crises: de repente atirava o taco ao chão no Bilhar, declare-se, irmão!, e se punha a reclamar das garrafas ou dos cigarros, e procurava briga por qualquer coisa ou lhe saltavam as lágrimas, amanhã, desta vez era verdade, por sua mãe que sim: me declaro ou me mato. Y asi pasan los dias, y tu desesperando... e ele saía da matinê e se punha a caminhar, a trotar pela Avenida Larco, deixem-me, como um cavalo louco, e eles atrás, vão embora, queria estar só, e nós declare-se, Piroquinha, não fique sofrendo, declare-se, declare-se, quizás, quizás, quizás. Ou se metia no

El Chasqui e bebia, que ódio sentia, Lalo, até embebedar-se, que coisa horrível, Cabritinho, e eles o acompanhavam, tenho vontade de me matar, irmão!, e o levávamos meio carregado até a porta de sua casa, Piroquinha, decida-se de uma vez, declare-se e elas manhã e tarde por Io que tu más quieras, hasta cuándo, hasta cuándo.

Elas fazem sua vida impossível, dizíamos, acabará bêbado, bandido, veado.

Assim terminou o inverno, começou outro verão e com o sol e o calor chegou a Miraflores um rapaz de San Isidro que estudava arquitetura, tinha um Pontiac e nadava: Cachito Arnilla. Aproximou-se do grupo e no princípio a gente lhe mostrava cara feia e asgarotas o que você faz aqui, quem o convidou, mas Teresinha deixem-no, blusinha branca, não o amolem, Cachito sente-se do meu lado, gorrinho de marinheiro, blue jeans, eu o convidei. E eles, irmão, não via? E ele sim, ele a está flertando, bobo, vai tirá-la de você, se apresse ou vai perder, e ele e que me importa se a tirasse e nós, já não se importava? e ele pppor qqque ia se importar e eles, já não gostava dela?, pppor qqque devia gostar.

Cachito declarou-se à Teresinha em fins de janeiro e ela topou: pobre Piroquinha, dizíamos, que infelicidade e de Tê que bandida, que desgraçada, que cachorrada lhe fez. Mas as garotas agora a defendiam: bem-feito, de quem era a culpa senão dele, e Boazuda, até quando a pobre Tê devia esperar para que se decidisse? E Chinesa por que cachorrada, pelo contrário, a cachorrada foi dele, fazê-la perder seu tempo tanto tempo e Pusy além disso Cachito era muito bom, Magra e simpático e pintoso e Boazuda e Cuéllar um tímido e Chinesa um maricão.

 

Então Piroca Cuéllar voltou aos tempos de loucura. Que bárbaro, dizia Lalo, furou ondas na Semana Santa? E Pardal: ondas não, ondonas de cinco metros, irmão, grandes assim, de dez metros. E Cabrito: faziam um ruído brutal, chegavam até às barracas, e Boazuda mais, até os Molhes, salpicavam os carros na pista e, claro, ninguém tomava banho. Fez isso para que Teresinha Arrarte o visse? Sim, para deixar mal o namorado dela?, sim. Claro, como que dizendo Tê veja bem o que me atrevo a fazer e Cachito nada, assim que era um grande nadador? Fica de molho na margem como as mulheres e as criancinhas, veja vem quem você perdeu, que doido.

Por que o mar ficava tão bravo na Semana Santa?, perguntava Magra, e Chinesa de raiva porque os judeus mataram Cristo, e Cabrito, os judeus o mataram?, ele pensava que foram os romanos, que bobo. Estávamos sentados no Molhes, Magra, em roupa de banho, Cabrito, as pernas para cima, Manhoso, os vagalhões rebentavam, Chinesa, e vinham e nos molhavam os pés, Boazuda, como estava fria, Pusy, e que suja, Pardal, a água preta e a espuma café, Teresinha, cheia de ervas e águas-vivas e Cachito Arnilla, e nisso psiu psiu, olhem, aí vinha Cuéllar. Chegará perto, Teresinha?, faria que não via você? Estacionou o Ford em frente ao Club de Jazz da Ferradura, desceu, entrou no As Gaivotas e saiu em roupa de banho - uma nova, dizia Cabrito, uma amarela, uma Jantsen e Pardal até nisso pensou, calculou tudo para chamar a atenção, viu só Lalo? - uma toalha no pescoço como uma estola e óculos de sol. Olhou com zombaria os banhistas assustados, encurralados entre os Molhes e a praia e olhou as ondas adoidadas e furiosas que sacudiam a areia e levantou a mão, nos cumprimentou e se aproximou. Olá Cuéllar, que chato não é? Olá, olá, cara de quem não entendia nada, era melhor que tivessem ido à piscina do Regatas, não é? Que há, cara de por que, não entendo. E finalmente cara de pelas ondas? Não, que idéia, que é que tinham, o que havia conosco (Pusy: a saliva pela boca e o sangue pelas veias, ah, ah), sim o mar estava maravilhoso assim, Teresinha olhinhos, falava sério?, sim, formidável até para furar ondas, estava brincando, não?, mãozinhas e Cachito ele se atreveria a enfrentá-las?, claro, de peito aberto e com bóia, não acreditávamos? Não, vocês riam disso?, tinham medo? de verdade? E Tê, ele não tinha?, não ia entrar?, sim, ia furar ondas?, claro: gritinhos. E o viram tirar a toalha, olhar para Teresinha Arrarte (ficaria vermelha, não? Perguntava Lalo, e Cabrito não, então ia ficar, e Cachito?, sim, ele teve medo) e descer correndo os degraus dos Molhes e atirar-se à água dando um mortal. E o vimos vencer rapidinho a ressaca da margem e chegar em um segundo à rebentação. Vinha uma onda e ele afundava e depois saía e mergulhava e saía, com o que se parecia?, um peixinho, um suspiro, um gritinho, onde estava?, outro, olhem, um bracinho, ali, ali. E o viam distanciar-se, desaparecer, aparecer e ficar pequeno até chegar onde começavam as ondas, Lalo, que ondas: grandes, trêmulas, levantavam-se e nunca caíam, pulinhos, era aquela coisinha branca? Nervos, sim. Ia, vinha, voltava, perdia-se entre a espuma e as ondas e retrocedia e continuava, com o que se parecia, uma patinha, um barquinho de papel, e para vê-lo melhor Teresinha levantou-se, Boazuda, Cabrito, todos, Cachito também, mas, quando ia furá-las? Demorou-se mas afinal se animou. Virou-se para a praia e nos procurou e ele nos deu e eles lhe deram adeus, adeus, toalhinha. Deixou passar uma, duas e à terceira onda viram-no o adivinhamos enfiar a cabeça, dar impulso com o braço para pegar a correnteza, endurecer o corpo e bater os pés. Furou-a, abriu os braços, subiu (uma onda de oito metros? Perguntava Lalo, mais, da altura do teto? Mais, igual à catarata do Niágara, então?, mais, muito mais) e caiu com o finalzinho da onda e a montanha de água tragou-o e apareceu o ondão, saiu, saiu? E aproximou-se roncando como um avião, vomitando espuma, então, já o viram, está ali?, e finalmente começou a descer, a perder força e ele apareceu, quietinho, e a onda trazia-o suavezinho, forrado de algas, quanto agüentou sem respirar, que pulmões, e encalhava-o na areia, que bárbaro: nos manteve de boca aberta, Lalo, não era para menos, claro. Foi assim que recomeçou.

No meio do ano, pouco depois do Dia da Pátria, Cuéllar começou a trabalhar na fábrica do seu velho: agora se corrigirá, diziam, voltará a ser um rapaz sério. Mas não foi assim, pelo contrário. Saía do escritório às seis e às sete estava em Miraflores e às sete e meia no El Chasqui, cotovelos sobre o balcão, bebendo (meia cerveja, um trago) e esperando que chegasse algum conhecido para jogar. Anoitecia ali, entre dados, cinzeiros cheios e guimbas, jogadores e garrafas de cerveja gelada, e terminava as noites vendo um show, em cabarés de quinta classe (o Nacional, o Pingüim, o Olímpico, o Turbilhão) ou, se estava duro, acabando de embebedar-se em antros da pior, onde podia deixar como garantia sua caneta Parker, seu relógio Omega, sua pulseira de ouro (cantinas do Surquillo ou do Porvenir), e em algumas manhãs a gente o viu esfarrapado, um olho preto, uma mão enfaixada: está perdido, dizíamos, e as garotas coitada de sua mãe e eles, sabe que agora se junta com veados, cafetães e viciados? Mas nos sábados saía sempre conosco. Passava para pegá-los depois do almoço e, se não íamos ao Hipódromo ou ao Estádio, metia-se na casa do Pardal ou do Manhoso para jogar pôquer até que escurecia.

Então voltávamos a nossas casas e tomavam banho e nos enfeitávamos e Cuéllar nos apanhava com o poderoso Nash que seu velho lhe deu quando completou a maioridade, rapaz, já tinha vinte e um anos, já pode votar e sua velha, querido, não corra muito que um dia ia se matar.

Enquanto nos calibrávamos no chinês da esquina com um trago, iriam a um restaurante? Discutíamos, o da Rua Capón? E contavam anedotas, ou comer anticuchos[7]? Piroquinha era um campeão à Pizzaria?, conhecem aquela do... e o que lhe disse o malandro e a do general e se Toninho Mella se cortava quando se barbeava, o que acontecia? Se capava, ah, ah, o coitado era tão boboca.

Depois de comer, já assanhados com as piadas, íamos percorrer os puteiros, as cervejas, da Vitória, a conversa, de Prolongação Huánuco, o sillau[8] e o pimentão, ou o da Avenida Argentina, ou davam uma paradinha no Embassy ou no Ambassador para ver o primeiro show do bar e terminávamos geralmente na Avenida Grau, na casa de Nanette. Já chegaram os miraflorinos, porque ali os conheciam, olá Piroquinha, por seus nomes e seus apelidos, como vai? E as mariposas morriam e eles de rir: estava bem. Cuéllar se irritava e às vezes brigava com elas e saía batendo a porta, não volto mais, mas outras vezes ria-se e lhes dava corda e esperava, dançando, ou sentado junto ao toca-discos com uma cerveja na mão, ou conversando com Nanette, que eles escolhessem sua mariposa, que subíssemos e descessem: que rapidinho, Pardal, dizia-lhes, como foi? Ou como você demorou, Manhoso, estive espiando você pelo buraco da fechadura, Cabrito, você tem cabelo no traseiro, Lalo. E num desses sábados, quando eles voltaram ao salão, Cuéllar não estava, e Nanette de repente levantou-se, ele pagou sua cerveja e saiu, nem se despediu. Saímos para a Avenida Grau e ali o encontraram, aninhado contra o volante do Nash, tremendo, irmão, o que lhe aconteceu, e Lalo: estava chorando. Está se sentindo mal, meu velho? Perguntavam-lhe, alguém zombou de você?, e Cabrito, quem o insultou? Quem, entrariam e daríamos nele e Pardal, as mariposas o estavam chateando? E Manhoso, não ia chorar por uma besteira dessas, não é? Que não lhes desse bola, Piroquinha, ande, não chore, e ele abraçava o volante, suspirava e com a cabeça e a voz engasgada não, soluçava, não, não o estavam chateando, e secava os olhos com seu lenço, ninguém tinha zombado dele, quem ia se atrever. E eles acalme-se, homem, irmão, então por quê? Muito trago? Não, estava doente? Não, nada, sentia-se bem, batíamos nas suas costas, homem, velho, irmão, encorajavam-no, Piroquinha.

Que se acalmasse, que risse, que arrancasse com o potente Nash, vamos por aí. Tomariam a saideira no Turbilhão, ainda pegaremos o segundo show, Piroquinha, que se apressasse e que não chorasse.

Cuéllar afinal se acalmou, partiu e na Avenida 28 de julho já estava rindo, velho, e de repente um soluço, se abra conosco, o que tinha acontecido, e ele nada, porra, se entristecera um pouco, nada mais, e eles por que se a vida era um doce, companheiro, e ele de um montão de coisas, e Manhoso de que por exemplo, e ele de que os homens ofendessem tanto a Deus por exemplo, e Lalo, o que você está dizendo? E Cabrito, queria dizer que pecassem tanto? E ele sim, por exemplo, bolas, não? Sim, e também de que a vida era tão sem graça. E Pardal então era sem graça, homem, era muito boa, e ele por que então a gente passava o tempo todo trabalhando, ou entornando, ou trapaceando, todos os dias a mesma coisa e de repente envelhecia e morria, que porra, não é? Sim. Nisso estivera pensando na casa de Nanette? Nisso diante das mariposas?, sim, por isso tinha chorado? Sim, e também de pena pelos pobres, pelos cegos, pelos mancos, por esses mendigos que ficavam pedindo esmola na calçada da União, e pelos jornaleiros que vendiam La Crônica, que bobagem, não? E por esses indiozinhos que lustram os sapatos da gente na Praça San Martin, que bobagem, não?, e nós claro, que bobagem, mas já tinha passado, não?, claro, tinha esquecido? Claro, um risinho para acreditarmos, ah, ah. Corre Piroquinha, corre, pé na tábua, que horas são, a que hora começava o show, quem sabia, estaria lá aquela mulata cubana?, como se chamava? Ana, como a chamavam? A Caimana, vamos ver, Piroquinha, explique pra gente o que aconteceu com você, outra risadinha: ah, ah.

 

Quando Lalo se casou com a Boazuda, no mesmo ano que Manhoso e Pardal se formavam engenheiros, Cuéllar já tinha tido vários acidentes e seu Volvo andava sempre amassado, sem pintura, os faróis quebrados. Você se matará, querido, não faça loucuras e seu velho era o cúmulo, rapaz quando é que mudaria outra loucura dessas e não lhe daria nem um centavo mais, que pensasse bem e se emendasse, se não por você, por sua mãe, dizia isso para seu bem. E nós: você já está grande para juntar-se com criançolas, Piroquinha. Porque entregara-se a isso. As noites passava jogando com os notívagos do El Chasqui ou do D'Onofrio, ou conversando e mamando com os bola de ouro, os mafiosos do Haiti (a que horas trabalha, dizíamos, ou é mentira que trabalha?), mas durante o dia vagabundeava de um bairro de Miraflores a outro e era visto nas esquinas, vestido como James Dean (blue jeans justos, camisa colorida aberta do pescoço ao umbigo, no peito uma correntinha de ouro bailando e enrolando-se com os pêlos, mocassins brancos), jogando pião com os cocacolas, batendo bola numa garage, fazendo ronda. Seu carro andava sempre cheio de rocanroleiros de treze, catorze, quinze anos e, nos domingos, aparecia no Waikiki (me ponha de sócio, papai, a prancha havaiana era o melhor esporte para não engordar e ele também poderia ir, quando fizesse sol, almoçar com a velha, junto ao mar) com bandos de bebês, olhem só, olhem só, está ali, que riquinho, e que bem acompanhado estava, que frescura: um por um subia-os na sua prancha havaiana e se metia com eles mais além da rebentação. Ensinava-os a dirigir o Volvo, exibia-se ante eles fazendo curvas em duas rodas nos Molhes e levava-os ao Estádio, ao cach-as-cach-can, aos touros, às corridas de cavalo, ao boliche, ao box. Agora sim, dizíamos, era fatal: maricão. E também: o que lhe restava, se compreendia, se desculpava mas, irmão fica cada dia mais difícil estar com ele, na rua o olhavam, assobiavam e o apontavam, e Cabrito, você se importa muito com o que dirão, e Manhoso nem um pouco, e Lalo se nos vêem muito com ele e Pardal vão confundir.

Dedicou-se um tempo ao esporte e só faz isso para aparecer: Piroquinha Cuéllar, corredor de automóvel como antes de ondas.

Participou do Circuito de Atocongo e chegou em terceiro. Apareceu fotografado no La Crônica e no El Comércio felicitando o ganhador, Arnaldo Alvarado era o melhor, disse Cuéllar, o brioso perdedor. Mas se fez ainda mais famoso um pouco depois, apostando uma corrida de madrugada, da Praça San Martin ao Parque Salazar, com Quique Ganoza, este pela pista boa, Piroquinha na contra-mão. Os patrulheiros perseguiram-no desde a Xavier Prado, só o alcançaram na Dois de Maio, como não correra. Esteve um dia na polícia e, pronto?, dizíamos, este escândalo vai se ressabiar e se corrigirá?

Mas poucas semanas depois teve seu primeiro acidente grave, fazendo a prova da morte - as mãos amarradas ao volante, os olhos vendados na Avenida Angamor.

E o segundo, três meses depois, na noite em que dávamos a despedida de solteiro de Lalo. Chega, deixe-se de criancices, dizia Pardal, pare de uma vez que eles já estavam bem crescidos para estas brincadeirinhas e queríamos descer. Mas ele, nem de brincadeira, que é que tínhamos, desconfiança no bamba?, tremendos marmanjos e com tanto medo?, não vão fazer pipi, onde tinha uma esquina com água para fazer uma curvinha derrapando? Estava com toda corda e não podiam convencê-lo, Cuéllar, velho, já está bem, deixa-nos em nossas casas, e Lalo amanhã ia se casar, não queria rebentar a alma na véspera, não atravesse com a luz vermelha a esta velocidade, que não teimasse. Bateu contra um táxi em Alcanfores e Lalo não sofreu nada, mas Manhoso e Cabrito ficaram com a cara inchada e ele quebrou três costelas. Brigamos e um pouco depois nos chamou por telefone e fizemos as pazes e foram comer juntos, mas desta vez algo havia acontecido entre eles e ele e nunca mais foi como antes.

Desde então nos víamos pouco e quando Manhoso se casou enviou-lhe a participação de casamento sem convite, e ele não foi à despedida de solteiro e quando Pardal regressou dos Estados Unidos casado com uma gringa bonita e com dois filhos que mal arranhavam espanhol, Cuéllar já havia ido à montanha, a Tingo Maria, para plantar café, diziam, e quando vinha a Lima, e o encontravam na rua, apenas nos cumprimentávamos, como está moreno, como vai Piroquinha, que me conta velho, vamos indo, tchau, e já tinha voltado a Miraflores, mais louco que nunca, já se matara, indo para o Norte, como? Em um desastre, onde? Nas curvas traiçoeiras de Pasamayo, coitado, dizíamos no enterro, como sofreu, que vida teve, mas foi ele que procurou esse final.

Eram então homens feitos e direitos e todos tínhamos mulher, carro, filhos que estudavam no Champagnat, no Imaculada ou no Santa Maria, e estavam construindo uma casinha para o verão em Ancón, Santa Rosa ou nas praias do Sul, e começávamos a engordar e a ter cabelos brancos, barriguinhas, corpos flácidos, a usar óculos para ler, a sentir mal-estares depois de comer e beber e apareciam já em suas peles algumas manchinhas, certas ruguinhas.

 

Xavier adiantou-se por um segundo:

- Apito! - gritou, já de pé.

A tensão partiu-se, violentamente, como uma explosão. Estávamos todos em pé: o doutor Abásalo tinha a boca aberta. Ficava vermelho, apertando os punhos. Quando, recuperando-se, levantava uma mão e parecia a ponto de proferir um sermão, o apito soou de verdade. Saímos correndo com estrépito, enlouquecidos, instigados pelo grasnar de corvo de Amaya, que avançava evitando as carteiras.

O pátio estava sacudido pelos gritos. Os do quarto e terceiro tinham saído antes, formavam uma grande roda que se mexia sob a poeira. Quase junto com a gente, entraram os do primeiro e segundo; traziam novas frases ofensivas, mais ódio. A roda cresceu. A indignação era unânime no ginásio.

(O primário tinha um pátio pequeno, de pedras azuis, na ala oposta do colégio.)

- O serrano quer sacanear a gente.

- É. Um desgraçado.

Ninguém falava dos exames finais. O brilho das pupilas, as imprecações, o escândalo indicavam que tinha chegado o momento de enfrentar o diretor. De repente, deixei de fazer esforços para conter-me e comecei a. percorrer febrilmente os grupos: "sacaneia a gente e a gente se cala?" "Precisamos fazer alguma coisa." "Precisamos fazer alguma coisa a ele."

Uma mão férrea extraiu-me do centro da roda.

- Você não - disse Xavier. - Não se meta. Eles expulsam você. Você sabe bem.

- Agora não me importo. Vai me pagar por todas. É a minha chance, entende? Vamos fazer com que entrem em forma.

Em voz baixa fomos repetindo pelo pátio, de ouvido em ouvido: "formem filas", "vamos entrar em forma, depressa".

- Vamos formar filas! - O vozeirão de Raygada vibrou no sufocante ar da manhã.

Muitos, por sua vez, fizeram coro:

- Em forma! Em forma!

Os inspetores Galhardo e Romero viram, então, surpreendidos, que logo diminuía o bulício e as filas se organizavam antes de terminar o recreio. Estavam encostados à parede, perto da sala de professores, diante de nós, e nos olhavam nervosamente. Depois, olharam-se. À porta, tinham aparecido alguns professores; também estavam intrigados.

O inspetor Galhardo aproximou-se:

- Ouçam! - gritou, desconcertado. - Ainda não...

- Cale a boca - retrucou alguém, do fundo.

- Cale a boca, Galhardo, veado!

- Vamos marchar - disse. - Voltas no pátio. Primeiro os do quinto.

Começamos a marchar. Batíamos os pés com força, até que doessem. À segunda volta - formávamos um retângulo perfeito, ajustado às dimensões do pátio -, Xavier, Raygada, Leão e eu principiamos :

- Ho-rá-rio; ho-rá-rio; ho-rá-rio... O coro se fez geral.

- Mais forte! - irrompeu a voz de alguém que eu odiava: Lu. - Gritem!

De imediato, o vozerio aumentou até ser ensurdecedor.

- Ho-rá-rio; ho-rá-rio; ho-rá-rio...

Os professores, cautelosamente, tinham desaparecido, fechando atrás de si a porta da sala. Quando os do quinto passaram junto ao lugar onde Teobaldo vendia frutas sobre um tabuleiro, disse algo que não ouvimos. Mexia as mãos, como que nos encorajando. "Porco", pensei.

Os gritos aumentavam. Mas nem o compasso da marcha, nem o estímulo dos berros bastavam para dissimular que estávamos assustados.

Aquela espera era angustiosa. Por que custava a sair? Ainda aparentando coragem, repetíamos a frase, mas tinham começado a olhar-se uns aos outros, e escutava-se, de quando em quando, sutis risinhos

forçados: "Não devo pensar em nada", eu me dizia. "Agora não." Já quase não podia gritar: estava rouco e me ardia a garganta.

Então, quase sem perceber, olhava o céu: perseguia um urubu que planava suavemente sobre o colégio, sob uma abóbada azul, límpida e profunda, iluminada por um disco amarelo, posto de lado, como uma mancha. Baixei a cabeça, rapidamente.

Pequeno, amorenado, Ferrufino aparecera no fim do corredor que desembocava no pátio de recreio. Os passinhos curtos e cambaios, como os de um pato, que o aproximavam interrompiam ostensivamente o silêncio que tinha reinado inesperadamente, surpreendendo-me. (A porta da sala de professores se abre: assoma um rosto diminuto, cômico. Estrada quer nos espiar: vê o diretor a poucos passos: velozmente, esconde-se; sua mão infantil fecha a porta.) Ferrufino estava diante de nós: percorria com olhos esbugalhados os grupos de estudantes emudecidos. As filas estavam desfeitas: alguns correram aos banheiros, outros rodeavam desesperadamente a cantina de Teobaldo.

Xavier, Raygada, Leão e eu ficamos imóveis.

- Não tenham medo - disse, mas ninguém me ouviu porque, ao mesmo tempo, o diretor tinha dito:

- Apite, Galhardo.

Novamente as fileiras se organizaram, desta vez com lentidão. O calor não era ainda muito forte, mas já sofríamos um certo sopor, uma espécie de aborrecimento.

"Se cansaram - murmurou Xavier. - Muito ruim." E advertiu, furioso:

- Cuidado com o que falam! Outros espalharam a advertência.

- Não - disse. - Espere. Vão ficar como feras tão logo Ferrufino fale.

Passaram alguns segundos de silêncio, de suspeita gravidade, antes que fôssemos levantando o olhar, um por um, até aquele homenzinho vestido de cinza. Tinha as mãos enlaçadas sobre a barriga, os pés unidos, quieto.

- Não quero saber quem iniciou este tumulto - recitava. Um ator: o tom de sua voz, pausado, suave, as palavras quase cordiais, a postura de estátua, eram cuidadosamente afetados. Teria estado ensaiando só, em seu gabinete? - Atos como este são uma vergonha para os senhores, para o colégio e para mim. Tive muita paciência, demasiada, escutem bem isto, com o inspirador destas desordens, mas agora chegou o limite...

Eu ou Lu? Uma interminável língua de fogo lambia minhas costas, meu pescoço, minhas faces, à medida que os olhos de todo o ginasial iam caminhando até encontrar-me.

Lu me olhava? Tinha inveja? Me olhavam os lobinhos*. Atrás de mim alguém bateu em meu braço duas vezes, encorajando-me.

O diretor falou longamente sobre Deus, a disciplina e os valores supremos do espírito. Disse que as portas da diretoria estavam sempre abertas, que os valentes de verdade deviam mostrar suas caras.

- Mostrar as caras - repetiu: agora era autoritário -, quer dizer, falar de frente, falar comigo.

- Não seja burro! - disse, rápido. - Não seja burro!

 

Mas Raygada já havia levantado a mão enquanto dava um passo à esquerda, abandonando a formação. Um sorriso complacente atravessou a boca de Ferrufino e desapareceu de imediato.

- Estou escutando, Raygada... - disse.

À medida que Raygada falava, suas palavras injetavam-lhe coragem. Chegou, inclusive, a certa altura, a agitar os braços, dramaticamente. Afirmou que não éramos maus e que amávamos o colégio e a nossos professores: lembrou que a juventude era impulsiva. Em nome de todos, pediu desculpas.

Em seguida, gaguejou, mas seguiu em frente:

- Nós lhe pedimos, senhor diretor, que marque o horário dos exames como nos anos anteriores ... - Calou-se, assustado.

- Anote, Galhardo - disse Ferrufino. - O aluno Raygada virá estudar, na próxima semana, todos os dias até as nove da noite.

- Fez uma pausa. - O motivo vai figurar na caderneta: por se rebelar contra uma disposição pedagógica.

- Senhor diretor... - Raygada estava lívido.

- Acho que foi merecido - sussurrou Xavier. - Para não ser tão burro.

 

Um raio de sol atravessava a suja clarabóia e vinha acariciar minha testa e meus olhos, invadia-me de paz. Entretanto, meu coração estava um pouco agitado e, de quando em quando, sentia ânsias. Faltava meia hora para a saída; a impaciência dos rapazes tinha diminuído um pouco. Corresponderiam, depois de tudo?

- Sente-se, Montes - disse o professor Zambrano. - O senhor é um burro.

- Ninguém duvida disso - afirmou Xavier, do meu lado. - É um burro.

A instrução teria chegado a todos os anos? Não queria martirizar de novo meu cérebro com suposições pessimistas, mas a cada momento eu via Lu, a poucos metros da minha carteira, e sentia desassossego e dúvida, porque sabia que no fundo ia decidir-se não o horário dos exames, nem mesmo uma questão de honra, mas uma vingança pessoal. Por que perder uma ocasião feliz para atacar o inimigo que baixara a guarda.

- Tome - disse do meu lado alguém. - É do Lu.

"Aceito assumir o comando, com você e Raygada". Lu tinha assinado duas vezes. Entre suas assinaturas, como um pequeno borrão, aparecia com a tinta ainda fresca, um sinal que todos nós respeitávamos: a letra C, maiúscula, encerrada em um círculo negro. Olhei-o: sua testa e sua boca eram finas; tinha os olhos rasgados, a pele encovada nas faces e a mandíbula pronunciada e dura. Olhava-me seriamente: talvez pensasse que a situação exigia dele ser cordial.

No mesmo papel respondi: "com Xavier". Leu sem se alterar e mexeu a cabeça afirmativamente.

- Xavier - disse.

- Já sei - respondeu. - Está bem. Vamos fazer com que ele passe um mau momento.

Ao diretor ou a Lu? Ia perguntar-lhe, mas o apito que anunciava a saída me distraiu. Simultaneamente elevou-se a gritaria sobre nossas cabeças, misturada com o ruído das carteiras empurradas. Alguém - Córdova, será? - assobiava com força, como se quisesse destacar.

- Já sabem? - disse Raygada, na fila. Para os Molhes.

- Que esperto! - exclamou um. - Até Ferrufino sabe.

Saíamos, pela porta traseira, um quarto de hora depois que o Primário. Outros já tinham saído, e a maioria dos alunos estava parada na calçada, formando pequenos grupos.

Discutiam, brincavam, empurravam-se.

- Que ninguém fique por aqui - disse.

- Comigo os lobinhos! - gritou Lu orgulhoso.

Vinte rapazes o cercaram.

- Para os Molhes - ordenou -, todos para os Molhes.

Seguros pelos braços, em uma linha que unia as duas calçadas, cerramos marcha, nós do quinto, obrigando a se apressarem a cotovelaços os menos entusiastas.

Uma brisa morna, que não conseguia agitar as secas alfarrobeiras nem nossos cabelos, levava de um lado para outro a areia que cobria, de quando em quando, o chão calcinado dos Molhes. Tinham correspondido. Diante de nós - Lu, Xavier, Raygada e eu -, que dávamos as costas ao muro e aos intermináveis areais que começavam na outra margem, uma multidão compacta, estendida ao largo de todo o quarteirão, mantinha-se serena, embora às vezes, isoladamente, se escutassem gritos estridentes.

- Quem fala? - perguntou Xavier.

- Eu - propôs Lu, pronto para subir no muro.

- Não - disse. - Fale você, Xavier.

Lu parou e me olhou, mas não estava zangado.

- Está bem - disse; e acrescentou, encolhendo os ombros: - Tanto faz.

Xavier subiu. com uma das mãos apoiava-se numa árvore encurvada e ressequida, com a outra amparava-se ao meu pescoço. Por entre suas pernas, agitadas por um leve tremor que desaparecia à medida que o tom de sua voz se fazia convincente e enérgico, eu via o seco e ardente leito do rio e pensava em Lu e nos lobinhos.

Tinha sido suficiente apenas um segundo para que passasse ao primeiro lugar; agora tinha o mando e o admiravam, a ele, ratazana amarelada que não fazia seis meses implorava a minha permissão para entrar na turma. Um descuido infinitamente pequeno, e logo o sangue, correndo em abundância por meu rosto e meu pescoço, com braços e pernas imobilizados sob a claridade lunar, incapazes de responder então a seus punhos.

- Venci você - disse, resfolegando. - Agora sou o chefe. - Combinamos assim.

Nenhuma das sombras estendidas em círculo na fina areia tinha se mexido. Só os sapos e os grilos respondiam a Lu, que me insultava. Estendido ainda sobre o cálido chão, comecei a gritar:

- Saio da turma. Formarei outra, muito melhor.

Mas eu e Lu e os lobinhos, que continuavam agachados na sombra, sabíamos que não era verdade.

- Eu também saio - disse Xavier.

Ajudava-me a me levantar. Voltamos à cidade, e enquanto caminhávamos pelas ruas vazias, eu ia limpando com o lenço de Xavier o sangue e as lágrimas.

- Fale você agora - disse Xavier. Tinha descido e alguns aplaudiam.

- Está bem - repliquei e subi no muro. Nem as paredes do fundo, nem os corpos dos meus companheiros faziam sombra. Tinha as mãos úmidas e pensei que eram os nervos, mas era o calor. O sol estava no centro do céu; sufocava-nos. Os olhos dos meus companheiros não chegavam aos meus: olhavam para o chão e para os meus joelhos. Guardavam silêncio. O sol me protegia.

- Pediremos ao diretor que fixe o horário dos exames, como nos outros anos. Raygada, Xavier, Lu e eu formaremos a Comissão.

O Ginásio está de acordo, não é verdade?

A maioria concordou, mexendo a cabeça. Uns gritaram: "Sim".

- Nós faremos isso agora mesmo - disse. Vocês esperam a gente na Praça Merino.

Começamos a andar. A porta principal do colégio estava fechada. Batemos com força; ouvíamos às nossas costas um murmúrio crescente. O inspetor Galhardo abriu.

- Estão loucos? - disse. - Não façam isso.

- Não se meta - interrompeu-o Lu. - Pensa que o serrano nos mete medo?

- Entrem - disse Galhardo. - Já vão ver.

 

Seus olhinhos nos observavam minuciosamente. Queria aparentar preguiça e despreocupação, mas não ignorávamos que seu sorriso era forçado e que no fundo daquele corpo rechonchudo havia temor e ódio. Franzia e desfranzia a testa, o suor brotava como esguicho de suas pequenas mãos morenas.

Estava trêmulo:

- Os senhores sabem como se chama isto? Chama-se rebelião, insurreição. Acham os senhores que eu vou me submeter aos caprichos de uns poucos ociosos? As insolências, eu as esmago...

Baixava e elevava a voz. Eu o via esforçar-se para não gritar. "Por que não explodia de uma vez?", pensei. "Covarde!"

Tinha se levantado. Uma mancha cinzenta flutuava em torno de suas mãos, apoiadas sobre o vidro da escrivaninha. De súbito, sua voz se elevou, tornou-se áspera:

- Fora! Aquele que voltar a falar de exames será castigado.

Antes que Xavier e eu pudéssemos fazer-lhe um sinal, apareceu então o verdadeiro Lu, o dos assaltos noturnos aos ranchos da Tablada, o das lutas contra os zorros[9] nas dunas.

- Senhor Diretor...

Não me virei para olhá-lo. Seus olhos oblíquos deveriam estar expelindo fogo e violência, como quando lutamos no seco leito do rio. Agora, também, deveria estar com a boca muito aberta, cheia de baba, deveria estar com os dentes amarelos arreganhados.

- Também nós não podemos aceitar que nos sacaneiem só porque o senhor quer que não haja horários. Por que quer que todos tiremos notas baixas? Por quê?...

Ferrufino tinha se aproximado. Quase o tocava com seu corpo. Lu, pálido, aterrorizado, continuava falando:

- ... já estamos cansados...

- Cale-se!

O diretor tinha levantado os braços e seus punhos espremiam algo.

- Cale-se! - repetiu com ira. - Cale-se, animal! Como se atreve!

Lu já estava calado, mas olhava direto nos olhos de Ferrufino como se fosse subitamente saltar sobre seu pescoço. "São iguais", pensei. "Dois cachorros".

- Então aprendeu com este aqui.

Seu dedo apontava para a minha testa. Mordi o lábio: logo senti que escorria pela língua um fiozinho quente e isso me acalmou.

- Fora! - gritou de novo. - Fora daqui! Vão se arrepender por isto.

Saímos. Até a beira dos degraus que ligavam o Colégio São Miguel com a Praça Merino estendia-se uma multidão imóvel e expectante.

Estranhamente, entre a mancha clara e estática apareciam vazios, diminutos retângulos que ninguém pisava. As cabeças pareciam iguais, uniformes, como que formadas para o desfile. Atravessamos a praça. Ninguém nos interrogou: punham-se de lado, abrindo-nos passagem e apertavam os lábios. Até que pisamos na avenida, mantiveram-se em seu lugar. Então, atendendo a uma ordem que ninguém havia comunicado, caminharam atrás de nós, a passos descompassados, como se fossem às aulas.

O calçamento fervia: parecia um espelho que o sol ia dissolvendo. "Será verdade?", pensei. Uma noite quente e deserta tinham me contado, nesta mesma avenida, e eu não acreditei. Mas os jornais diziam que o sol, em alguns lugares distantes, enlouquecia os homens e às vezes os matava.

- Xavier - perguntei. - Você viu que o ovo fica frito sozinho, na pista?

Surpreso, negou com a cabeça.

- Não. Me contaram.

- Será verdade?

Talvez. Agora poderíamos tirar a prova. O chão queima, parece um braseiro.

Na porta do La Reina, apareceu Alberto. Seu cabelo loiro brilhava maravilhosamente: parecia de ouro. Sacudiu sua mão direita, cordial. Estava com seus enormes olhos verdes muito abertos e sorria. Deveria ter curiosidade de saber para onde marchava aquela multidão uniformizada e silenciosa, sob o rude calor.

- Você vem depois? - gritou para mim.

- Não posso. A gente se vê de noite.

- É um imbecil - disse Xavier. - É um bom sujeito.

 

- Me deixe falar, Lu - pedi-lhe, procurando ser suave.

Mas ninguém podia contê-lo. Estava de pé diante do muro, sob os ramos da seca alfarrobeira: mantinha admiravelmente o equilíbrio e sua pele e seu rosto lembravam os de um lagarto.

- Não! - disse agressivamente. - vou falar eu.

Fiz um sinal para Xavier. Aproximamo-nos de Lu e seguramos suas pernas, mas ele conseguiu prender-se à árvore a tempo e livrar a perna direita dos meus braços: rechaçado por um violento pontapé no ombro três passos atrás, vi Xavier enlaçar velozmente Lu pelos joelhos, e levantar seu rosto e desafiá-lo com seus olhos que o sol selvagem feria.

- Não bata nele! - gritei. Conteve-se, tremendo, enquanto Lu começava a berrar:

- Vocês sabem o que o diretor nos disse? Nos insultou, tratou a gente como animais. Não tem vontade de fixar horários porque quer nos sacanear.

Vai ralar todo o colégio e nem se importa. É um...

Ocupávamos o mesmo lugar que antes e as desalinhadas filas de rapazes começavam a agitar-se. Quase todo o Ginásio permanecia.

Com o calor e a cada palavra de Lu crescia a indignação dos alunos. Excitavam-se.

- Sabemos que ele odeia a gente. Nós não nos entendemos com ele. Desde que chegou, o colégio não é um colégio. Insulta, surra. E ainda por cima, quer nos ralar nos exames.

Uma voz aguda e anônima interrompeu-o:

- Quem foi que ele surrou?

Lu hesitou um instante. Explodiu de novo:

- Quem? - desafiou. - Arévalo, que todos vejam suas costas!

Entre murmúrios, Arévalo surgiu do centro da massa. Estava pálido. Era um lobinho. Chegou até Lu e descobriu o peito e as costas. À altura das costelas, aparecia um grosso lanho roxo.

- Ferrufino é assim! - A mão de Lu mostrava a marca enquanto seus olhos examinavam os rostos atônitos dos mais próximos.

Tumultuadamente, o mar humano apertou-se à nossa volta: todos forçavam para se aproximar de Arévalo e ninguém ouvia Lu, nem Xavier e Raygada, que pediam calma, nem a mim, que gritava: "é mentira! não o escutem! é mentira!" A maré afastoume do muro e de Lu. Estava sufocado. Consegui abrir caminho até sair do tumulto. Afrouxei minha gravata e respirei ar com a boca aberta e os braços para cima, lentamente, até sentir que meu coração recuperava seu ritmo.

Raygada estava perto de mim. Indignado, me perguntou:

- Aquilo do Arévalo, quando foi?

- Nunca.

- O quê?

Até ele, sempre sereno, tinha sido conquistado. Suas narinas palpitavam intensamente e seus punhos estavam apertados.

- Nada - disse -, não sei quando foi.

Lu esperou que a excitação diminuísse um pouco. Em seguida, levantando a voz sobre os protestos esparsos:

- Ferrufino vai nos vencer? - perguntou aos gritos: um punho colérico ameaçava os alunos. - Vai nos vencer? Me respondam!

- Não!   - prorromperam   quinhentos   ou mais. - Não! Não!

Estremecido pelo esforço que seus berros lhe impunham, Lu sacudia-se vitorioso sobre o muro.

- Que ninguém volte ao colégio até que apareçam os horários dos exames. É justo. Temos direito. E também não deixaremos

entrar o Primário.

Sua voz agressiva perdeu-se entre os gritos. Diante de mim, na eriçada massa de braços que agitavam jubilosamente no alto centenas de boinas, não distingui um só que permanecesse indiferente ou contrário.

- Que fazemos?

Xavier pretendia demonstrar tranqüilidade, mas suas pupilas brilhavam.

- Está bem - disse. - Lu tem razão. Vamos ajudá-lo.

Corri para o muro e subi.

- Avisem o pessoal do Primário que não há aula esta tarde - disse. - Podem ir embora agora. Fiquem só os do quinto e os do quarto, para cercar o colégio.

- E também os lobinhos - concluiu Lu, feliz.

 

- Estou com fome - disse Xavier.

O calor tinha se atenuado. No último banco útil da Praça Merino recebíamos os raios de sol, filtrados facilmente através de uma porção de nuvens que tinham aparecido no céu, mas quase ninguém suava.

Leão esfregava as mãos e sorria: estava nervoso.

- Não trema - disse Amaya. - Você já está bem crescido para ter medo de Ferrufino.

- Cuidado! - A cara de macaco de Leão tinha ficado vermelha e seu queixo estava mais saliente ainda. - Cuidado, Amaya! - Estava de pé.

- Não briguem - disse Raygada tranqüilamente. - Ninguém tem medo. Seria uma burrice.

- Vamos dar uma volta por trás - propus a Xavier.

Contornamos o colégio, caminhando pelo meio da rua. As altas janelas estavam entreabertas e não se via ninguém atrás delas nem se escutava qualquer ruído.

- Estão almoçando - disse Xavier.

- Sim, claro.

Na calçada oposta, levantava-se a porta principal do Salesiano. Os do semi-internato estavam de pé, no teto, observando-nos.

Sem dúvida, tinham sido informados.

- Que rapazes valentes! - zombou alguém. Xavier insultou-os. Uma chuva de ameaças respondeu-lhe. Alguns cuspiram, sem acertar. Houve risos. "Estão morrendo de inveja", murmurou Xavier.

Na esquina vimos Lu. Estava sentado na calçada, sozinho, e olhava distraidamente para o meio da rua. Viu-nos e caminhou em nossa direção. Estava contente.

- Vieram dois moleques do primeiro - disse. - Mandei que fossem brincar no rio.

- Foi? - perguntou Xavier. - Espere meia hora pra ver. Vai se armar um escândalo daqueles.

Lu e os lobinhos guardavam a porta traseira do colégio. Estavam repartidos entre as esquinas das Ruas Lima e Arequipa. Quando chegamos ao começo da rua, conversavam em grupo e riam. Todos carregavam paus e pedras.

- Desse jeito, não - disse. - Se batem neles, os moleques vão querer entrar de qualquer maneira.

Lu riu.

- Vamos ver. Por esta porta ninguém entra. Ele também tinha um porrete que ocultava até então em seu corpo. Mostrou-nos, agitando-o.

- E por lá? - perguntou.

- Ainda nada.

Às nossas costas, alguém gritava nossos nomes. Era Raygada: vinha correndo e nos chamava, agitando freneticamente a mão.

"Estão chegando, estão chegando - disse com ansiedade. Venham". Parou, de repente, dez metros antes de nos alcançar, fez meia-volta e retornou a toda velocidade.

Estava excitadíssimo. Xavier e eu corremos também. Lu gritou-nos alguma coisa do rio. "O rio?" pensei. 'Não há rio. Por que todo mundo fala do rio se só corre água um mês por ano?" Xavier corria a meu lado, resfolegante.

- Será que a gente pode evitar que entrem?

- Quê? - Custava-lhe muito abrir a boca, estava exausto.

- A gente pode conter os do Primário?

- Acho que sim. Tudo depende.

- Olhe.

No meio da praça, perto do chafariz, Leão, Amaya e Raygada falavam com um grupo de meninos, cinco ou seis. A situação parecia tranqüila.

- Repito - dizia Raygada, a língua para fora. - Vão para o rio. Não há aulas, não há aulas. Entenderam? Ou passo um filme?

- Isso mesmo - disse um, de nariz molhado. - Que seja em cores.

- Olhem - disse a eles. - Hoje ninguém entra no colégio. Vamos para o rio. Vamos jogar futebol: Primário contra Ginásio.

Está bem?

- Há, há - riu o do nariz, com arrogância.

- A gente ganha. Somos mais.

- Logo a gente vê. Vão logo para lá.

- Não vou - replicou uma voz atrevida. Eu vou para o colégio.

Era um garoto do quarto, magro e pálido. Seu longo pescoço emergia como um cabo de vassoura da camisa de comando, muito larga para ele. Era chefe de turma. Nervoso com sua própria atitude, deu uns passos para trás. Leão correu e o pegou pelo braço.

- Você não entendeu? - Tinha aproximado seu rosto do menino e gritava. De que se assustava Leão? - Você não entendeu, moleque? Não entra ninguém. Vá, vamos, ande.

- Não o empurre - disse. - Vai sozinho.

- Não vou! - gritou. Mantinha o rosto levantado para Leão, olhava-o com raiva. - Não vou! Não quero greve.

- Cale a boca, imbecil! Quem falou em greve? - Leão parecia muito nervoso. - Apertava com todas as suas forças o braço do chefe de turma. Seus companheiros observavam a cena, divertidos.

- Podem expulsar a gente! - o chefe de turma dirigia-se aos outros, percebia-se que estava aterrorizado e colérico. - Eles querem greve porque não terão horário para os exames, eles vão fazer os exames de repente, sem saber quando. Pensam que não sei? Podem expulsar a gente! Vamos ao colégio, gente.

Houve um movimento de surpresa entre os meninos. Olhavam-se já sem sorrir, enquanto o outro continuava gritando que iam expulsar a gente. Chorava.

- Não bata nele! - gritei, muito tarde. Leão tinha batido em seu rosto, não com muita força, mas o menino se pôs a espernear e a gritar.

- Você até parece um cabrito - notou alguém.

Olhei para Xavier. Já tinha corrido. Levantou-o e o jogou sobre os ombros como um fardo. Afastou-se com ele. Muitos os seguiram, rindo às gargalhadas.

- Para o rio! - gritou Raygada. Xavier ouviu porque nós o vimos dobrar, com sua carga, a Avenida Sánchez Cerro, a caminho dos Molhes.

O grupo que nos rodeava ia crescendo. Sentados nos canteiros e nos bancos quebrados, e os outros caminhando chateados pelos estreitos caminhos do parque, ninguém, felizmente, pretendia ir ao colégio. Divididos em duplas, os dez encarregados de guardar a porta principal, tratávamos de entusiasmá-los: "têm de marcar os horários, porque senão, nos ralam. E a vocês, também, quando chegar a vez".

- Continuam chegando - disse-me Raygada. - Somos poucos. Eles podem esmagar a gente, se quiserem.

- Se a gente os distrai por uns dez minutos, pronto - disse Leão. - Chegarão os do Ginásio e, então, a gente corre todos eles para o rio, a pontapés.

De repente, um garoto gritou convulsionado:

- Têm razão! Eles têm razão! - E, falando conosco, com ar dramático: - Estou com vocês.

- Boa! Muito bem! - nós o aplaudimos. Você é um homem.

Batemos em suas costas, e o abraçamos.

O exemplo propagou-se. Alguém gritou: "Eu também". "Vocês têm razão". Começaram a discutir entre eles. Nós encorajávamos aos mais excitados, elogiando-os: "Muito bem, moleque. Você não é nenhum veado".

Raygada encarapitou-se no chafariz. Tinha a boina na mão direita e a agitava suavemente.

- Vamos fazer um acordo - exclamou. Todos unidos?

Cercaram-no. Continuavam chegando grupos de alunos, alguns do quinto ginasial; com eles formamos uma muralha entre o chafariz e a porta do colégio, enquanto Raygada falava.

- Isto é que se chama solidariedade - dizia. - Solidariedade. - Calou-se como se tivesse terminado, mas, um segundo depois, abriu os braços e exigiu: - Não vamos permitir que se cometa um abuso!

Foi aplaudido.

- Vamos para o rio - disse. - Todos.

- Está bem. Vocês também.

- Nós vamos depois.

- Todos juntos ou nenhum - replicou a mesma voz. Ninguém se mexeu.

Xavier voltava. Vinha só.

- Aqueles já estão tranqüilos - disse. - Tiraram o burro de uma mulher. Estão brincando.

- Que horas são? - pediu Leão. - Alguém pode me dizer que horas são?

Eram duas horas.

- Às duas e meia a gente vai - disse - Basta que fique um para avisar os atrasados.

Os que chegavam submergiam na massa de meninos. Deixavam-se convencer rapidamente.

- É perigoso - disse Xavier. Falava de um modo estranho: teria medo? - É perigoso. A gente sabe o que pode haver se o diretor resolve sair. Antes que diga uma só palavra, e todos estaremos nas aulas.

- Sim - disse. - Então, que comecem a caminhar. É preciso animar essa gente.

Mas ninguém queria andar. Havia tensão, esperava-se que, de um momento para outro, acontecesse algo. Leão estava a meu lado.

- O pessoal do ginásio não falou – disse. - Olhe bem. Só vieram os encarregados das portas.

Um instante depois, vimos o pessoal do ginásio chegar, em grandes vagas que se misturavam com as ondas de meninos. Faziam troça. Xavier ficou furioso.

- E vocês? - perguntou. - Que fazem aqui? Para que vieram?

Dirigia-se aos que estavam mais perto de nós: à frente deles ia Antenor, chefe de turma, do segundo ginasial.

- Ora! - Antenor parecia muito surpreso.

- Por acaso vamos entrar? A gente só veio para ajudar.

Xavier pulou sobre ele e o agarrou pelo colarinho.

- Ajudar! E os uniformes? E os livros?

- Não diga mais nada - disse. - Solte-o. Nada de brigas. Dez minutos mais e vamos para o rio. Quase todo o colégio já chegou.

A praça estava totalmente tomada. Os estudantes mantinham-se tranqüilos, sem discutir. Alguns fumavam. Pela Avenida Sánchez Cerro passavam muitos carros, que diminuíam a velocidade ao cruzar a Praça Merino. De um caminhão, um homem nos saudou, gritando:

- Boa, rapazes. Não se entreguem.

- Está vendo? - disse Xavier. - Toda cidade já sabe. Imagine só a cara do Ferrufino.

- Sua duas e meia! - gritou Leão. - Vamos. Depressa, depressa.

Olhei meu relógio: faltavam cinco minutos.

- Vamos todos - gritei. - Vamos para o rio.

Alguns fizeram que andaram. Xavier, Leão, Raygada e outros gritaram também, e começaram a empurrar a massa. Uma palavra se repetia sem cessar: "rio, rio, rio".

Lentamente, a multidão de rapazes e meninos começou a agitar-se. Paramos de instigá-los e, quando nos calamos, surpreendi-me, pela segunda vez, com um silêncio total. Me deixava nervoso. Eu o rompi:

- Os do ginásio, atrás - indiquei. - Lá atrás, formando fila...

Do meu lado, alguém jogou ao chão uma casquinha de sorvete, que salpicou meus sapatos. Enlaçando os braços, formamos um cinturão humano. Avançávamos com dificuldade.

Ninguém se negava, mas a marcha era lentíssima. Uma cabeça ia quase afundada no meu peito. Virou-se: como se chamava? Seus pequenos olhos eram cordiais.

- Seu pai vai matá-lo - disse.

"Ah", pensei. "Meu vizinho."

- Não - eu lhe disse. - Mas, logo a gente fica sabendo. Ande.

Tínhamos abandonado a praça. A grossa coluna ocupava inteiramente a largura da avenida. Por cima das cabeças sem boinas, dois quarteirões mais adiante, via-se o muro verde-amarelecido e as grandes alfarrobeiras dos Molhes. Entre eles, como pontinhos brancos, os areais.

O primeiro a escutar foi Xavier, que marchava a meu lado. Em seus estreitos olhos escuros havia sobressalto.

- Que há? - disse. - Me diz. Negou com a cabeça.

- Que há? - gritei-lhe. - Está ouvindo alguma coisa?

Pude ver naquele mesmo instante um rapaz uniformizado que atravessava velozmente a Praça Merino na nossa direção. Os gritos do recém-chegado confundiram-se nos meus ouvidos com o violento vozerio que se desprendeu das apertadas colunas de meninos, acompanhando um movimento de confusão.

Nós, que marchávamos na última fila, não ouvíamos bem. Tivemos um segundo de indecisão: afrouxamos os braços, alguns se soltaram. Sentimo-nos atirados para trás, separados. Sobre nós passavam centenas de corpos, correndo e gritando histericamente. "Que é?"- gritei para Leão. Apontou algo com o dedo, sem deixar de correr. "É o Lu", disseram a meu ouvido. Aconteceu alguma coisa lá. Dizem que é uma briga". Saí correndo.

Na boca da rua que se abria a poucos metros da porta traseira do colégio, parei de golpe. Neste momento era impossível ver: ondas de uniformes afluíam de todos os lados e cobriam a rua de gritos e cabeças descobertas. De súbito, a uns quinze passos, encarapitado sobre uma coisa qualquer, vi Lu. Seu corpo magro destacava-se nitidamente na sombra da parede que o sustentava. Estava encurralado e descarregava o porrete por todos os lados. Então, entre o ruído, mais poderosa que a dos que o insultavam e recuavam para livrar-se dos seus golpes, escutei sua voz:

- Quem chega perto? - gritava. - Quem chega perto?

Quatro metros mais adiante, dois lobinhos, cercados, também, defendiam-se a pauladas e faziam desesperados esforços para romper o cerco e juntar-se a Lu. Entre osque o acossavam, vi rostos de gente do ginásio. Alguns tinham conseguido pedras e as atiravam, embora sem chegar perto.

Distante, vi assim mesmo a outros dois da turma, que corriam espavoridos: eram perseguidos por um grupo de rapazes com cacetes.

- Calma! Calma! Vamos ao rio.

Uma voz nascia, do meu lado, angustiadamente.

Era Raygada. Parecia a ponto de chorar.

- Não seja idiota - disse Xavier. Ria às gargalhadas. - Cale essa boca, não está vendo?

A porta estava aberta e por ela entravam os estudantes às dezenas, avidamente. Continuavam chegando à boca da rua novos companheiros: alguns somavam-se ao grupo que cercava Lu e os seus.

Tinham conseguido juntar-se. Lu estava com a camisa aberta: via-se o seu magro peito sem pelos, suado e brilhante; um fiozinho de sangue escorria do seu nariz e dos seus lábios. Cuspia de quando em quando, e olhava com ódio para todos os que estavam mais perto. Unicamente ele tinha o pau levantado, disposto a descarregá-lo.

Os outros já o tinham baixado, exaustos.

- Quem chega perto? Quero ver a cara desse valente.

À medida que entravam no colégio, iam pondo de qualquer jeito as boinas e as insígnias do ano. Pouco a pouco, começou a dissolver-se, entre palavrões, o grupo que cercava o Lu. Raygada me deu um cotovelaço:

- Disse que com a sua turma podia derrotar todo o colégio. - Falava com tristeza. - Por que é que a gente deixa esse animal sozinho?

Raygada afastou-se. Da porta ele nos fez um sinal, como que duvidando. Em seguida entrou. Xavier e eu nos aproximamos de Lu. Tremia de cólera.

- Por que não vieram? - disse, frenético, levantando a voz. - Por que não vieram ajudar a gente? Só tínhamos oito, porque os outros...

Tinha um olho formidável e era flexível como um gato. Atirou-se rapidamente para trás enquanto meu punho mal roçava sua orelha e logo, com o apoio de todo o seu corpo, fez o garrote girar no ar. Recebi o impacto no peito e cambaleei. Xavier se colocou entre nós.

- Aqui, não - disse. - Vamos aos Molhes.

- Vamos - disse o Lu. - vou ensinar você outra vez.

- Logo veremos - disse. - Vamos. Caminhamos meia quadra, devagar, porque minhas pernas vacilavam. Leão nos parou na esquina.

- Não briguem - disse. - Não vale a pena. Vamos ao colégio. A gente deve ficar unido.

Lu me olhava com os seus olhos quase fechados. Parecia desgostoso.

- Por que foi que você bateu nos moleques?

- perguntei-lhe. - Sabe o que vai acontecer agora a você e a mim?

Não respondeu nem fez qualquer gesto. Acalmara-se de todo e tinha a cabeça baixa.

- Responda, Lu - insisti. - Você sabe?

- Está bem - disse Leão. - A gente vai tentar ajudá-los. Vamos, dêem-se as mãos.

Lu levantou o rosto e me olhou, penalizado. Ao sentir sua mão entre as minhas, notei que era suave e delicada, e me lembrei que era a primeira vez que nos cumprimentávamos desse modo. Demos meia-volta, caminhamos em fila até o colégio. Senti um braço no ombro. Era Xavier.

 

                         O Desafio

 

Estávamos bebendo cerveja, como todos os sábados, quando Leônidas apareceu na porta do Rio Bar. Imediatamente, notamos em seu rosto que algo acontecia.

- O que há? - perguntou Leão. Leônidas arrastou uma cadeira e sentou-se junto de nós.

- Estou morrendo de sede.

Servi-lhe um copo cheio até a borda e a espuma escorreu sobre a mesa. Leônidas soprou-a lentamente e ficou olhando, pensativo, como se desfaziam suas bolhas. Em seguida, bebeu de um gole, até a última gota.

- Justo vai brigar hoje à noite - disse, com voz estranha.

Ficamos calados por um momento. Leão bebeu, Bricenho acendeu um cigarro.

- Me encarregou de avisar vocês - acrescentou Leônidas. - Quer que vejam.

Finalmente, Bricenho perguntou:

- Como foi?

- Eles se encontraram hoje à tarde em Catacaos. - Leônidas limpou a testa com a mão e fustigou o ar: gotas de suor escorregaram de seus dedos para o chão. – Já imaginam o resto...

- Está bem - disse Leão. - Se tinham que brigar, melhor que seja assim, de acordo com a lei. E também, não há por que ter medo. Justo sabe o que faz.

- Sim - repetiu Leônidas com um ar distraído. - Talvez seja melhor assim.

As garrafas ficaram vazias. Soprava um vento e, momentos antes, tínhamos deixado de escutar a banda do Quartel Grau, que tocava na Praça. A ponte estava tomada pela gente que regressava da retreta, e os casais que haviam procurado a penumbra dos Molhes começavam também a abandonar uns esconderijos. Pela porta do Rio Bar passava muita gente. Alguns entravam. Rapidamente o terraço ficou cheio de homens e mulheres que falavam em voz alta e riam.

- São quase nove - disse Leão. - É melhor ir embora.

Saímos.

- Bem rapazes - disse Leônidas. - Obrigado pela cerveja.

- Vai ser na Balsa, não é? Perguntou Bricendo.

- Sim. Às onze. Justo vai esperar vocês às dez e meia, aqui mesmo.

O velho fez um gesto de despedida e se afastou pela Avenida Castilha. Morava nos arredores, no início do areal, em um rancho solitário que parecia guardar a cidade.

Caminhamos até a Praça.

Estava quase deserta. Junto ao Hotel dos Turistas, alguns jovens discutiam aos gritos. Ao passar do seu lado, descobrimos no meio deles uma moça que escutava sorrindo.

Era bonita e parecia divertir-se.

- O Coxo vai matá-lo - disse de repente Bricenho.

- Cale-se - disse León. Separamo-nos na esquina da Igreja. Caminhei rapidamente até minha casa. Não havia ninguém. Pus um macacão e duas camisetas e ocultei a navalha no bolso de trás da calça, enrolada num lenço. Quando saía, encontrei minha mulher que chegava.

- Outra vez na rua - disse ela.

- Sim. Tenho que resolver um assunto.

O menino dormia em seus braços, e dava a impressão de que havia morrido.

- Você tem que levantar cedo - insistiu ela.

- Esqueceu que trabalha nos domingos?

- Não se preocupe - disse. - Volto dentro de uns minutos.

Caminhei de volta até o Rio Bar e me sentei junto ao balcão. Pedi uma cerveja e um sanduíche, que não terminei de comer. Tinha perdido o apetite. Alguém me tocou no ombro. Era Moisés, o dono do bar.

- É verdade isso da briga?

- Sim. Vai ser na Balsa. Mas é melhor que você não fale.

- Não preciso que me diga o que devo fazer

- disse. - Soube há pouco. Me preocupo pelo Justo, mas, isso, na verdade, é o que ele tem procurado há tempo. E o Coxo não tem muita paciência, a gente sabe.

- O Coxo é um cara nojento.

- Era seu amigo antes... - começou a dizer Moisés, mas se conteve.

Alguém o chamou do terraço e se afastou, mas poucos minutos depois estava a meu lado.

- Você quer que eu vá? - perguntou-me.

- Não. A gente chega, obrigado.

- Está bem, me diga se posso ajudar em alguma coisa. Justo também é meu amigo. - Tomou um gole da minha cerveja, sem me pedir licença. - Ontem à noite o Coxo esteve aqui com seu grupo. Não fez outra coisa senão falar do Justo e jurava que ia fazê-lo em pedaços. Rezei para que vocês não resolvessem dar uma volta por aqui.

- Gostaria de ter visto o Coxo - disse. Quando está furioso sua cara fica muito engraçada.

Moisés riu.

- Ontem parecia o diabo. E como é feio este cara! A gente não pode olhá-lo muito sem sentir náuseas.

Acabei a cerveja e fui caminhar pelos Molhes, mas voltei em seguida. Da porta do Rio Bar vi Justo, sozinho, sentado no terraço. Usava alpercatas e um suéter descorado que lhe subia pelo pescoço até as orelhas. Visto de perfil, contra a escuridão que vinha de fora, parecia uma criança, uma mulher: daquele lado, suas faces eram delicadas, doces. Ao ouvir meus passos virou-se, revelando a meus olhos a mancha vermelha que feria a outra metade do seu rosto, desde a comissura dos lábios até a testa. (Alguns diziam que tinha sido um golpe recebido em pequeno, numa briga, mas Leônidas afirmava que aparecera no dia da inundação, e que aquela mancha se devia ao susto da mãe ao ver as águas invadirem a porta de sua casa.)

- Cheguei agora - disse. - Que é feito dos outros?

- Já vêm. Devem estar a caminho.

Justo me olhou de frente. Achei que iria sorrir, mas ficou mais sério e sacudiu a cabeça.

- O que aconteceu esta tarde? Encolheu os ombros e fez um gesto vago.

- Nos encontramos no Carro Afundado. Eu entrava para tomar um trago e topei, cara a cara, com o Coxo e gente dele. Imagine só. Se não passasse o padre, ali mesmo me degolavam. Eles se atiraram sobre mim como cachorros. Como cachorros loucos. O padre nos separou.

- Você é homem mesmo? - gritou o Coxo.

- Mais que você - gritou Justo.

- Quietos, animais - dizia o padre.

- Na Balsa, hoje à noite, está bem? - gritou o Coxo.

- Está bem - disse Justo. - Foi só isso.

O pessoal que estava no Rio Bar tinha diminuído. Restavam algumas pessoas junto ao balcão, mas no terraço só estávamos nós.

- Trouxe isto - disse, passando-lhe o lenço. Justo abriu a navalha e a mediu. A lâmina a exatamente o comprimento de sua mão, do pulso às unhas. Em seguida, tirou outra navalha bolso e comparou.

- São iguais - disse. - Fico com a minha, então.

Pediu uma cerveja e a bebemos sem falar, fumando.

- Não tenho horas - disse Justo. - Mas devem ser mais de dez. Vamos a eles.

Perto da ponte, encontramos Bricenho e Leão. Cumprimentaram Justo, apertaram sua mão.

- Irmãozinho - disse Leão. - Você vai fazê-lo em pedaços.

- Isso nem se discute - disse Bricenho. O Coxo não tem nem como enfrentar você.

Os dois estavam ainda com a mesma roupa e pareciam ter combinado mostrar segurança e, inclusive, certa alegria diante de Justo.

- Vamos descer por aqui - disse Leão. É mais perto.

- Não - disse Justo. - Vamos fazer a volta, Não tenho vontade de quebrar uma perna agora.

Era estranho esse temor, porque sempre havíamos descido ao leito do rio, precipitando-nos pela malha de ferro que sustenta a ponte. Avançamos um quarteirão pela avenida, em seguida dobramos à direita e caminhamos durante um bom tempo em silêncio. Ao descer pelo minúsculo caminho em direção ao leito do rio, Bricenho tropeçou e soltou uma praga. A areia estava morna e nossos pés afundavam nela como se estivéssemos sobre um mar de algodão. Leão olhou demoradamente o céu.

- Há muitas nuvens - disse; - a lua não vai ajudar muito hoje.

- Faremos fogueiras - disse Justo.

- Está louco? - disse. - Você quer chamar a polícia?

- A gente pode dar um jeito - disse Bricenho, sem convicção. A gente poderia adiar o assunto até amanhã. Não vão brigar no escuro.

Ninguém lhe respondeu e Bricenho não insistiu.

- Lá está A Balsa - disse León.

Certa vez, ninguém sabia quando, caíra sobre o leito do rio um tronco de alfarrobeira tão grande que cobria três quartas partes da largura do leito. Era muito pesado e, quando baixava, a água não conseguia levantá-lo; arrastava-o apenas alguns metros, de modo que, a cada ano, A Balsa se afastava mais da cidade. Também ninguém sabia quem pusera naquele tronco o nome de A Balsa, mas assim era chamado por todos.

- Eles já estão ali - disse Leão. Paramos a uns cinco metros d'A Balsa. No tênue resplendor noturno não distinguíamos os rostos daqueles que nos esperavam, só suas silhuetas. Eram cinco. Eu contei, tentando inutilmente escobrir o Coxo.

- Vá você - disse Justo.

Avancei devagar até o tronco, procurando conservar no meu rosto uma expressão serena.

- Quietos! - gritou alguém. - Quem é?

- Julião - gritei. - Julião Huertas. Estão cegos?

A meu encontro veio um pequeno vulto. Era Chalupas.

- Nós já íamos embora - disse. - Pensamos que o Justinho tinha ido à delegacia pedir proteção.

- Quero falar com um homem - gritei, sem lhe responder. - Não com este boneco.

- Você é mesmo muito valente? - perguntou Chalupas, com uma voz alterada.

- Silêncio! - disse o Coxo. Todos eles tinham se aproximado e o Coxo se aproximou de mim. Era alto, muito mais que todos os presentes. Na penumbra, eu não podia ver, apenas imaginar seu rosto coberto de espinhas, a cor esverdeada de sua pele imberbe, as diminutas cavidades de seus olhos, profundos e pequenos como dois pontos dentro daquela massa de carne, interrompida pelos volumes oblongos das maçãs do seu rosto, e seus lábios grossos como dedos, pendurados no seu triangular queixo de iguana. Coxo puxava do pé esquerdo; diziam que nessa perna tinha uma cicatriz em forma de cruz, lembrança de um porco que o mordeu quando dormia, mas ninguém a tinha visto.

- Por que trouxeram Leônidas? - disse o Coxo com voz rouca.

- Leônidas? - Quem trouxe Leônidas?

O Coxo apontou com um dedo para o lado. O velho tinha ficado uns metros mais adiante, na areia, mas ao ouvir que falavam dele se aproximou.

- Que há comigo? - disse. Olhava fixamente para o Coxo. - Não preciso que me tragam. Vim só, com meus pés, porque me deu vontade. Se você está procurando pretexto para não lutar, diga logo.

Coxo vacilou antes de responder. Pensei que ia insultá-lo e, rápido, levei a mão ao bolso traseiro.

- Não se meta, velho - disse amavelmente o Coxo. - Não vou lutar com o senhor.

- Não pense que estou tão velho - disse Leônidas. - Já derrubei muitos que eram melhores que você.

- Está bem, velho - disse o Coxo. - Acredito. - Dirigiu-se a mim: - Estão prontos?

- Sim. Diga a seus amigos que não se metam. Se se meterem, pior para eles.

Coxo riu.

Você sabe bem, Julião, que não preciso de ajuda. Ainda mais hoje. Não se preocupe.

Um dos que estavam atrás do Coxo riu também. Ele me estendeu algo. Avancei a mão: a lâmina de sua navalha estava à vista e eu a pegara pelo fio; senti um pequeno arranhão na palma e um estremecimento, o metal parecia um pedaço de gelo.

- Você tem fósforos, velho?

Leônidas riscou um fósforo e o manteve entre os dedos até que o fogo lambeu suas unhas. À fraca luz da chama examinei minuciosamente a navalha, media-a de comprimento e largura, experimentei seu fio e seu peso.

- Está bem - disse.

- Chunga - disse Coxo. - Depressa com ele.

Chunga caminhou entre Leônidas e eu. Quando chegamos até onde estavam os outros, Bricenho estava fumando e a cada tragada resplandeciam as faces de Justo, impassível, com os lábios apertados; de Leão, que mastigava alguma coisa, talvez uma haste de grama; e do próprio Bricenho, que suava.

- Quem disse ao senhor que viesse? - perguntou Justo, asperamente.

- Ninguém me disse - afirmou Leônidas, em voz alta. - Vim porque quis. Você vai me tomar satisfações?

Justo não respondeu. Eu fiz um sinal e lhe mostrei Chunga, que ficara um pouco para trás. Justo puxou a navalha e a arremessou. A arma bateu em algum ponto do corpo de Chunga, que se encolheu.

- Desculpe - disse, apalpando a areia em busca da navalha. - Me escapou. Aqui está.

- Você logo vai deixar de ser engraçado disse Chunga.

Imediatamente, como eu tinha feito, sob a luz de um fósforo, passou os dedos sobre a lâmina e a devolveu sem dizer nada, voltando, a passos largos, para A Balsa.

Ficamos uns minutos em silêncio, aspirando o perfume dos algodoais próximos, que uma brisa cálida arrastava em direção ao poente. Atrás de nós, depois do leito do rio, a gente via as luzes vacilantes da cidade. O silêncio era quase absoluto; às vezes, latidos ou zurros o quebravam bruscamente.

- Pronto! - exclamou uma voz, do outro lado.

- Pronto! - gritei eu.

No bloco de homens que estava perto da Balsa houve movimentos e murmúrios; em seguida, uma sombra negra mancando deslizou até o centro do terreno limitado pelos dois grupos. Ali, vi o Coxo examinar o chão com os dois pés; verificava se havia pedras, buracos. Procurei Justo com o olhar: Leão e Bricenho tinham passado seus braços sobre os ombros dele. Justo desprendeu-se deles rapidamente. Quando chegou a meu lado, sorriu. Estendi-lhe a mão. Começou a afastar-se, mas Leônidas deu um pulo e o pegou pelos ombros. O velho tirou a manta que levava às costas. Estava a meu lado.

- Não se aproxime dele nem por um momento. - O velho falava lentamente, com voz levemente trêmula. - Sempre de longe. Faça com que corra até cansar. Cuide, principalmente, o estômago e a cara. Mantenha sempre o braço esticado. Agache-se, pise firme. Se escorregar, chute o ar até que se afaste... Está bem, vá, porte-se como um homem...

Justo ouviu Leônidas com a cabeça baixa. Pensei que ia abraçá-lo, mas se limitou a um gesto brusco. Arrancou a manta das mãos do velho com um puxão e a enrolou no braço. Depois, afastou-se; caminhava sobre a areia com passos firmes, a cabeça erguida. Na mão direita, enquanto se afastava de nós, o curto pedaço de metal lançava reflexos. Justo parou a dois metros do Coxo.

Ficaram imóveis por uns instantes, em silêncio, certamente dizendo com os olhos o quanto se odiavam, observando-se, os músculos tensos sob a roupa, a mão direita aplastada com ira nas navalhas. De longe, semi-ocultos pela morna escuridão da noite, não pareciam dois homens que se preparavam para lutar, mas imprecisas estátuas, moldadas em um material negro, ou as sombras de duas jovens e maciças alfarrobeiras das margens, projetadas no ar, não na areia. Quase simultaneamente, como que respondendo a uma imperiosa voz de comando, começaram a se movimentar. Talvez o primeiro tenha sido Justo: um segundo antes, iniciou sobre o local um lentíssimo balanço, sem sair do lugar, que subiu dos joelhos até os ombros, e o Coxo o imitou, movimentando-se também, sem mexer os pés. Suas posições eram idênticas: o braço direito à frente, ligeiramente dobrado com o cotovelo para fora, a mão apontando diretamente para o centro do corpo do adversário, e o braço esquerdo, envolto pelas mantas, desproporcionado, gigante, cruzado como um escudo à altura do rosto. No começo só seus corpos se moviam, as cabeças, os pés e as mãos permaneciam fixas. Imperceptivelmente, os dois se haviam inclinado, estendendo as costas, as pernas em flexão, como que para mergulhar na água. Coxo foi o primeiro a atacar: de repente, saltou à frente, seu braço descreveu um círculo veloz. A trilha no vazio da arma, que passou rente a Justo, sem feri-lo, estava ainda inconcluída quando este, que era rápido, começava a girar. Sem abrir a guarda, tecia um cerco em volta do outro, deslizando suavemente sobre a areia, a um ritmo cada vez mais intenso. Coxo girava sobre o mesmo lugar. Encolhera-se mais, e enquanto dava voltas sobre si mesmo, acompanhando a direção do adversário, perseguia-o com o olhar todo o tempo, como que hipnotizado. De súbito, Justo parou: nós o vimos cair sobre o outro com todo seu corpo e voltar a seu lugar em um segundo, como um boneco de mola.

- Pronto - murmurou Bricenho. - Já o cortou.

- No ombro - disse Leônidas. - Mas de leve.

Sem gritar, firme em sua posição, o Coxo continuava a dançar, enquanto Justo já não se limitava a avançar em círculos: ao mesmo tempo, aproximava-se e se afastava do Coxo, agitando a manta, abria e fechava a guarda, oferecia o corpo e o recusava, esquivo, ágil, tentando e rechaçando o contendor como uma mulher no cio. Queria tonteá-lo, mas o Coxo tinha experiência e recursos. Rompeu o cerco retrocedendo, sempre inclinado, obrigando Justo e parar e a segui-lo. Este, agora, perseguia-o com passos muito curtos, a cabeça avançada, o rosto resguardado pela manta caída de seu braço; o Coxo fugia, arrastando os pés, agachado até quase tocar a areia com os joelhos. Justo esticou duas vezes o braço, e nas duas vezes só achou o vazio. "Não se aproxime tanto", disse Leônidas, junto de mim, em voz tão baixa que só eu podia ouvi-lo, no momento em que o vulto, a sombra disforme e larga que se tinha, apequenado, encolhendo-se sobre si mesma como uma lagarta, recuperava brutalmente sua estatura normal e, ao crescer e atirar-se escondia Justo de nossos olhos: um, dois, talvez três segundos, ficamos sem respirar, vendo a desmesurada figura dos combatentes abraçados e escutamos um breve ruído, o primeiro que ouvíamos durante o combate, parecido a um arroto.

Um instante depois, a um lado da gigantesca sombra surgiu outra, mais delgada e esbelta, que, com dois saltos, voltou a levantar uma muralha invisível entre os lutadores. Desta vez, foi o Coxo que começou a girar: mexia o pé direito e arrastava o esquerdo. Eu me esforçava em vão para que meus olhos atravessassem a penumbra e lessem, sobre a pele de Justo, o que havia ocorrido naqueles três segundos, quando os adversários, tão juntos como dois amantes, formavam um só corpo.

"Saia daí", disse Leônidas, muito lentamente. "Por que diabos você luta tão perto?" Misteriosamente, como se a leve brisa que corria houvesse levado até ele essa mensagem secreta, Justo começou a pular como o Coxo. Encurvados, atentos, ferozes, passavam da defesa ao ataque e, logo, à defesa com a velocidade dos relâmpagos, mas as ameaças não surpreendiam a nenhum: a cada rápido movimento do braço inimigo, estirado como que para atirar uma pedra, que procurava não ferir, mas surpreender o adversário, confundi-lo por um instante, dobrar-lhe a guarda, respondia o outro, automaticamente, levantando o braço esquerdo, sem se mexer. Eu não podia ver as caras, mas fechava os olhos e as via, melhor que se estivesse no meio deles: o Coxo, transpirando, a boca fechada, seus olhinhos de porco incendiados, chamejantes atrás das pálpebras, a pele palpitante, as asas do nariz achatado e a larga boca agitadas por um inacreditável tremor; e Justo, com sua habitual máscara de desprezo, acentuada pela cólera, e seus lábios úmidos de exasperação e fadiga. Abri os olhos a tempo de ver Justo atirar-se louca, cegamente sobre o outro, dando-lhe todas as vantagens, oferecendo o rosto, descobrindo absurdamente o corpo. A ira e a impaciência elevaram seu corpo, mantiveram-no estranhamente no ar, recortado contra o céu, estatelaram-no sobre sua presa com violência. A selvagem explosão deve ter surpreendido o Coxo que, por um brevíssimo tempo, ficou indeciso e, quando se inclinou, estendendo o braço como uma flexa, escondendo de nossa vista a brilhante lâmina que alucinados perseguíamos, soubemos que o gesto de loucura de Justo não tinha sido de todo inútil.

Com o choque, a noite que nos envolvia povoouse de rugidos dilacerantes e profundos, que brotavam como faíscas dos combatentes. Não soubemos, então, nem saberemos agora por quanto tempo estiveram abraçados nesse poliedro convulsivo, mas, embora sem distinguir quem era quem, sem saber de que braço partiam aqueles golpes, que garganta proferia aqueles rugidos que se sucediam como ecos, várias vezes vimos, no ar, tremendo em direção ao céu, ou em meio à sombra, embaixo, nos lados, as lâminas nuas das navalhas, velozes, iluminadas, ocultarem-se e aparecer, afundarem-se ou vibrar dentro da noite, como em um espetáculo de magia.

Devíamos estar ofegantes e ávidos, sem respirar, os olhos dilatados, talvez murmurando palavras incompreensíveis, até que a pirâmide humana se dividiu, cortada, de repente, no centro por uma invisível facada: os dois se desprenderam, como que imantados pelas costas, no mesmo momento, com a mesma violência. Ficaram a um metro de distância, arquejantes. "Precisamos apartá-los, disse a voz de Leão, já chega". Mas antes que pensássemos em nos mexer, o Coxo tinha abandonado seu lugar como um bólido. Justo não se esquivou da investida e ambos rolaram pelo chão. Retorciam-se sobre a areia, agitando-se um sobre o outro, ferindo o ar a talhos e roncos abafados. Desta vez a luta foi muito curta. Logo ficaram quietos, estendidos no leito do rio, como que dormindo. Preparava-me para correr até eles quando, talvez adivinhando minha intenção, alguém se levantou de súbito e se manteve de pé junto ao caído, balançando-se mais que um bêbado. Era o Coxo.

Na luta, tinham perdido as mantas, que repousavam um pouco mais adiante, parecendo uma pedra de muitos vértices. "Vamos", disse Leão. Mas, ainda desta vez aconteceu algo que nos deixou imóveis. Justo se levantava, com dificuldade, apoiando todo seu corpo sobre o braço direito e cobrindo a cabeça com a mão livre, como se quisesse afastar de seus olhos uma visão horrível. Quando ficou de pé, o Coxo retrocedeu alguns passos. Justo cambaleava. Não tinha afastado o braço da cara. Escutamos, então, uma voz que nós conhecíamos, mas que não teríamos agora reconhecido se nos tivesse tomado de surpresa na penumbra:

- Julião! - gritou o Coxo. - Diga a ele que se renda!

Voltei-me para olhar Leônidas, mas encontrei no meio o rosto de Leão: observava a cena com expressão atroz. Voltei a olhá-los: estavam novamente unidos. Instigado pelas palavras do Coxo, sem dúvida, Justo afastou o braço do rosto no exato momento em que eu me descuidava da luta, e deve ter se atirado sobre o inimigo, extraindo as últimas forças de sua dor, de sua amargura de vencido. Coxo livrou-se facilmente dessa acometida sentimental e inútil, saltando para trás.

- Seu Leônidas! - gritou de novo, com um tom imperioso e implorante. - Diga a ele que se renda!

- Cale-se e lute! - bramiu Leônidas, sem vacilar.

Justo tinha tentado novamente um assalto, mas nós, especialmente Leônidas, que era velho e tinha visto muitas lutas em sua vida, sabíamos que não havia nada mais a fazer, que seu braço não tinha vigor nem sequer para arranhar a pele azeitonada do Coxo. com uma angústia que nascia do mais profundo, subia até a boca, ressecando-a, e até os olhos, nublando-os, nós o vimos forcejar em câmara lenta ainda um momento, até que a sombra se fragmentou uma vez mais: alguém desabava no chão com um ruído seco.

Quando chegamos até onde jazia Justo, o Coxo tinha se retirado para junto dos seus e, todos juntos, começaram a se afastar sem falar. Juntei minha cara a seu peito, notando apenas que uma substância quente umedecia meu pescoço e meu ombro, enquanto minha mão explorava seu ventre e suas costas entre os rasgões da fazenda e se afundava sempre em um corpo flácido, molhado e frio, encharcado de lama. Bricenho e Leão tiraram seus casacos, envolveram-no com cuidado e o levantaram pelos pés e os braços. Eu procurei a manta de Leônidas, que estava uns passos mais adiante, e com ela cobri-lhe o rosto, tateando, sem olhar. Em seguida, entre os três, nós o carregamos no ombro, em duas filas, como a um ataúde, e caminhamos, igualando os passos, em direção ao caminho que escalava a margem do rio e que nos levaria à cidade.

- Não chore, velho - disse Leão. - Não conheci ninguém tão valente como seu filho. Estou falando sério.

Leônidas não respondeu. Ia atrás de mim, de modo que eu não podia vê-lo.

À altura dos primeiros ranchos de Castilha, perguntei:

- Levamos ele pra sua casa, seu Leônidas?

- Sim - disse o velho, precipitadamente, como se não tivesse escutado o que eu lhe perguntara.

 

                              Domingo

 

Conteve um instante a respiração, cravou as unhas nas palmas das mãos e disse, muito rapidamente : "Estou apaixonado por você". Notou que ela enrubescia bruscamente, como se alguém tivesse batido em sua faces, que eram de uma palidez resplandecente e muito suaves. Espantado, sentiu que a confusão o dominava e petrificava sua língua. Quis sair correndo, acabar com tudo: na taciturna manhã de inverno tinha aparecido aquele desalento íntimo, que o abatia sempre, nos momentos decisivos.

Uns minutos antes, entre a multidão animada e sorridente que circulava pelo Parque Central de Miraflores, Miguel ainda se repetia: "Agora. Ao chegar à Avenida Pardo.

Terei coragem. Ah, Rubem, se soubesse como eu odeio você!" E antes, entretanto, na igreja, enquanto procurava Flora com os olhos, encontrava-a ao pé de uma coluna e, abrindo passagem com os cotovelos, sem pedir licença às senhoras que empurrava, conseguia aproximar-se e cumprimentá-la em voz baixa, voltava a se dizer, obstinadamente, como naquela madrugada, estendido em seu leito, observando a aparição da luz: "Não tem mais remédio. Tenho de fazê-lo hoje mesmo. De manhã. Logo você me paga, Rubem".

E na noite anterior tinha chorado, pela primeira vez em muitos anos, ao compreender que preparava essa ignóbil emboscada. As pessoas continuavam no Parque e a Avenida Pardo estava deserta; caminhavam pela alameda, sob os ficus de altas e espessas galharias. "Tenho de me apressar, pensava Miguel, senão me estrepo". Olhou disfarçadamente à sua volta: não tinha ninguém, podia tentar. Lentamente foi esticando a mão esquerda até tocar a dela; o contato revelou-lhe que ela suava. Implorou que ocorresse um milagre, que cessasse aquela humilhação. "Que digo a ela, pensava, que digo a ela". Ela acabava de retirar a mão e ele se sentia desamparado e ridículo. Todas as frases radiantes, febrilmente preparadas na véspera, tinham se dissolvido como bolhas de sabão.

- Flora - balbuciou -, esperei muito tempo por este momento. Desde que a conheço, só penso em você. Estou apaixonado pela primeira vez, acredite em mim, não conheço uma moça como você.

Outra vez uma compacta mancha branca em seu cérebro, o vazio. Não podia mais aumentar a pressão: a pele cedia como borracha e as unhas alcançavam o osso. Apesar disso, continuou falando, com dificuldade, a grandes intervalos, vencendo a vergonhosa gagueira, tratando de descrever uma paixão irrefletida e total, até descobrir, com alívio, que chegavam à primeira curva da Avenida Pardo, e então se calou. Entre o segundo e o terceiro ficus, passada a curva, morava Flora. Pararam, olharam-se: Flora estava ainda corada e a confusão tinha enchido seus olhos de um brilho úmido. Desolado, Miguel disse a si mesmo que jamais a vira tão bela: uma fita azul recolhia seus cabelos e ele podia ver o nascimento de seu pescoço, e suas orelhas, dois pontos de interrogação, pequeninos e perfeitos.

- Olhe, Miguel - disse Flora; sua voz era suave, cheia de música, segura. - Não posso responder a você agora. Mas minha mãe não quer que ande com rapazes até que termine o colégio.

- Todas as mães dizem a mesma coisa, Flora

- insistiu Miguel. - E, depois, como é que saberia? A gente se vê só quando você quiser, mesmo que seja só nos domingos.

- Eu lhe respondo mais tarde, primeiro tenho que pensar - disse Flora, baixando os olhos. Alguns segundos depois, acrescentou: - Desculpe, mas agora tenho de ir, já é tarde.

Miguel sentiu uma profunda fadiga, algo que se expandia por todo seu corpo e o amolecia.

- Não está zangada comigo, Flora, não? disse humildemente.

- Não seja bobo - replicou ela, com vivacidade. - Não estou zangada.

- Esperarei quanto tempo você quiser - disse Miguel. - Mas a gente continuará se vendo, não é? Iremos ao cinema esta tarde, não é?

- Esta tarde não posso - disse ela, docemente. - Marta me convidou para ir à sua casa.

Uma onda de calor, violenta, tomou conta dele, que se sentiu ferido, estonteado, diante daquela resposta que esperava mas que, agora, lhe parecia uma crueldade.

Era verdade aquilo que Melanés lhe dissera, tetricamente, ao ouvido, sábado à tarde. Marta os deixaria sozinhos, a tática habitual. Depois, Rubem contaria aos gaviões[10] como ele e sua irmã tinham planejado os detalhes, o lugar e a hora. Marta teria reclamado, como paga por seus serviços, o direito de espiar atrás da cortina. A cólera molhou suas mãos de repente.

- Não seja assim, Flora. Vamos à matinê como combinamos. Não lhe falarei mais disso. Prometo.

- Não posso, de verdade - disse Flora. Tenho que ir à casa de Marta. Me convidou ontem. Depois irei com ela ao Parque Salazar.

Nem mesmo nestas últimas palavras viu uma esperança. Um momento depois contemplava o lugar de onde tinha desaparecido a frágil silhueta celeste, sob o arco majestoso dos ficus da avenida. Podia competir com um simples adversário, não com Rubem. Lembrou-se dos nomes das garotas convidadas por Marta, nas tardes de domingo. Não podia fazer mais nada, estava derrotado. Uma vez mais surgiu então aquela imagem que o salvava sempre que sofria uma frustração: de um distante fundo de nuvens infladas de fumaça negra, ele se aproxima, à frente de uma companhia de cadetes da Escola Naval, de um coreto levantado no Parque; autoridades vestidas a rigor, a cartola na mão, e senhoras relampejantes o aplaudiam. Aglomerada nas calçadas, uma multidão, da qual se sobressaíam os rostos de seus amigos e inimigos, observava-o maravilhada, murmurando seu nome. De azul, uma ampla capa flutuando nas costas, Miguel desfilava à frente, olhando horizonte. Espada erguida, a cabeça descrevia meia volta no ar: ali, no coração da tribuna, estava Flora, sorrindo. Em uma esquina, maltrapilho, envergonhado, encontrava Rubem; limitava-se a lançar-lhe um curtíssimo olhar de desprezo. Continuava marchando, desaparecia entre as faixas de propaganda.

Como o vapor de um espelho embaciado que se esfrega, a imagem desapareceu. Estava à porta de sua casa, odiava todo mundo, odiava-se. Entrou e subiu diretamente a seu quarto. Atirou-se de bruços sobre a cama: na morna escuridão, entre suas pupilas e suas pálpebras, apareceu o rosto da garota - "Amo você, Flora", disse em voz alta - e em seguida, Rubem, com sua mandíbula insolente e seu sorriso hostil: estavam um ao lado do outro, aproximavam-se, os olhos de Rubem enviezavam-se para olhá-lo zombeteiramente enquanto a boca avançava até Flora.

Pulou da cama. O espelho do armário mostrou-lhe um rosto com olheiras, lívido, "Ele não a verá, decidiu. Não me fará isto, não permitirei que me faça uma cachorrada dessas-"

A Avenida Pardo continuava solitária. Acelerando o passo sem cessar, caminhou até o cruzamento com a Avenida Grau; ali vacilou. Sentiu frio: tinha esquecido o casaco no quarto e a camisa não chegava para protegê-lo do vento que vinha do mar e enredava-se na densa ramagem dos ficus com um suave murmúrio. A temida imagem de Flora e Rubem juntos lhe deu coragem, Q ele continuou andando. Da porta do bar vizinho ao cinema Montecarlo, viu-os na mesa de costume, donos do ângulo formado pelas paredes do fundo e da esquerda. Francisco, Melanés, Tobias, Escolar, eles o viam e, após um instante de surpresa, voltavam-se para Rubem, os rostos maliciosos, excitados. Recuperou de imediato a serenidade: frente aos homens sabia comportar-se.

- Alô - disse-lhes, aproximando-se. - Que há de novo?

- Sente-se - Escolar passou-lhe uma cadeira. - Que milagre o trouxe aqui?

- Faz séculos que você não aparece - disse Francisco.

- Me deu vontade de vê-los - disse Miguel, cordialmente. - Sabia que estavam aqui. De que se espantam? Ou não sou mais um gavião?

Sentou-se entre Melanés e Tobias. Rubem estava na frente.

- Cuncho! - gritou Escolar. - Traz outro copo. E que não esteja muito ensebado.

Cuncho trouxe o copo e Escolar encheu-o de cerveja. Miguel brindou "pelos gaviões" e bebeu.

- Por pouco você não bebe o copo também - disse Francisco. - Que vontade!

- Aposto que você foi à missa da uma - disse Melanés, como sempre, com um olho fechado de satisfação, sempre que iniciava alguma intriga.

- Ou não?

- Fui - disse Miguel, imperturbável. - Mas só para ver uma mulherzinha.

Olhou Rubem com olhos provocantes, mas ele não se deu por achado; brincava com os dedos debaixo da mesa e, baixinho, a ponta da língua entre os dentes, assobiava

La nina Popof, de Pérez Prado.

- Boa! - aplaudiu Melanés. - Boa, Dom Juan. Conte pra gente: que mulherzinha?

- Isso é segredo.

- Entre os gaviões não há segredos - lembrou Tobias. - Você já se esqueceu? Ande - quem era?

- Isso lhe interessa? - disse Miguel.

- Muitíssimo - disse Tobias. - Tenho que saber com quem você anda para saber quem é.

- Bem feito - disse Melanés a Miguel. Um a zero.

- Aposto que adivinho quem é - disse Francisco. - Vocês não sabem?

- Eu já sei - disse Tobias.

- E eu também - disse Melanés. Virou-se para Rubem com olhos e voz muito inocentes. - E você, cunhado, adivinha quem é?

- Não - disse Rubem, com frieza. - E também não me interessa saber.

- Meu estômago está queimando - disse Escolar. - Ninguém vai pedir uma cerveja?

Melanés passou um patético dedo pela garganta :

- I have not money, darling - disse.

- Pago uma garrafa - anunciou Tobias com um gesto solene. Vamos ver quem me imita, é preciso apagar o fogo desse pretensioso.

- Cuncho, baixe meia dúzia de Cristales disse Miguel.

Houve gritos de alegria, exclamações.

- Você é um verdadeiro gavião - disse Francisco.

- Sujo, pulguento - acrescentou Melanés -, sim senhor, um gavião da pesada.

Cuncho trouxe as cervejas. Beberam. Escutaram Melanés contar anedotas pornográficas, rudes, extravagantes e perturbadoras e se estabeleceu uma forte discussão sobre futebol. Escolar contou um caso: vinha de Lima para Miraflores em um ônibus; os outros passageiros desceram na Avenida Arequipa. À altura da Xavier Prado subiu o cachalote[11] Tomasso, aquele albino de dois metros que ainda está no primário, vive na Quebrada, manjam ele?; fazendo-se de interessado pelo veículo, começou a fazer perguntas ao motorista, inclinado sobre o banco dianteiro, enquanto rasgava, com uma navalha, suavemente, o estofamento do espaldar.

- Fazia só porque eu estava ali - afirmou Escolar. - Queria se mostrar.

- É um débil mental - disse Francisco. Essas coisas só se fazem aos dez anos. Na idade dele, não têm graça.

- Mas tem graça o que aconteceu depois - Escolar riu. - Olhe, motorista, não está vendo que este cachalote está destruindo seu ônibus?

- O quê? - disse o motorista, freando em seco. As orelhas vermelhas, os olhos espantados, o cachalote Tomasso forçava a porta.

- Com sua navalha - disse Escolar. - Olhe só como ele deixou o banco.

O cachalote conseguiu fugir. Saiu correndo pela Avenida Arequipa; o motorista atrás dele, gritando, "agarrem esse desgraçado".

- E o agarraram? - perguntou Melanés.

- Não sei. Eu desapareci. E roubei a chave do motor do ônibus, para recordação. Aqui está.

Tirou do bolsinho uma pequena chave prateada e a atirou sobre a mesa. As garrafas estavam vazias. Rubem olhou para seu relógio e se pôs de pé.

- Já vou - disse. - Logo a gente se vê.

- Não vá embora - disse Miguel. - Hoje estou rico. Convido todos para almoçar.

Um alvoroço de palmas caiu sobre ele, os gaviões agradeceram-lhe com estardalhaço, felicitaram-no.

- Não posso - disse Rubem. - Tenho compromisso.

- Ande, vá logo, garotão - disse Tobias. E cumprimentos à Martinha.

- Pensaremos muito em você, cunhado disse Melanés.

- Não - exclamou Miguel. - Convido a todos ou a nenhum. Se o Rubem for embora, nada feito.

- Você já ouviu, gavião Rubem - disse Francisco -, tem que ficar.

- Tem que ficar - disse Melanés -, não tem talvez.

- Vou embora - disse Rubem.

- O que acontece é que você está bêbado disse Miguel. - Então já vai porque tem medo de cair no ridículo na nossa frente, isso é que é.

- Quantas vezes já levei você para casa vomitando? - perguntou Rubem. – Quantas já ajudei a pular o muro para que seu pai não o visse? Agüento dez vezes mais que você.

- Agüentava - disse Miguel. - Agora é mais difícil. Quer ver?

- com muito prazer - disse Rubem. - A gente se encontra de noite, aqui mesmo?

- Não. Agora mesmo. - Miguel virou-se para os outros, abrindo os braços: - Gaviões, estou fazendo um desafio.

Feliz, comprovou que a antiga fórmula conservava intacto o seu poder. Em meio da ruidosa alegria que havia provocado, viu Rubem sentar-se, pálido.

- Cuncho! - gritou Tobias. - O cardápio. E duas piscinas de cerveja. Um gavião acaba de fazer um desafio.

Pediram bifes e uma dúzia de cervejas. Tobias pôs três garrafas à frente de cada desafiante e as outras para o resto do grupo. Comeram falando pouco. Miguel bebia depois de cada garfada e procurava mostrar animação, mas o medo de não resistir crescia à medida que a cerveja depositava em sua garganta um sabor ácido. Quando acabaram as seis garrafas, fazia pouco que Cuncho tinha levantado os pratos.

- Peça você - disse Miguel a Rubem.

- Outras três por cabeça.

Depois do primeiro copo da nova leva, Miguel sentiu zumbir os ouvidos; a cabeça era uma lentíssima roleta, tudo se mexia.

- Estou quase me mijando - disse. - vou ao banheiro.

Os gaviões riram.

- Você se entrega? - perguntou Rubem.

- Vou mijar - gritou Miguel. - Se você quiser, tragam mais.

No banheiro, vomitou. Depois, lavou o rosto, cuidadosamente, procurando apagar todo o sinal revelador. Seu relógio marcava quatro e meia. Apesar do denso mal-estar, sentiu-se feliz. Rubem não podia fazer mais nada agora. Voltou para o grupo.

- Saúde - disse Rubem, levantando o copo. "Está furioso, pensou Miguel. Mas já o sacaneei".

- Que cheiro de cadáver - disse Melanés.

- Alguém está morrendo por aqui.

- Estou inteirinho - assegurou Miguel, tratando de dominar as náuseas e o enjôo.

Saúde - repetia Rubem.

Quando terminaram a última cerveja seu estômago parecia de chumbo, as vozes dos outros chegavam a seus ouvidos como uma confusa mistura de ruídos. Uma mão apareceu, de repente, sob seus olhos, era branca e de dedos compridos, segurava-o pelo queixo, obrigava-o a levantar a cabeça; a cara de Rubem tinha aumentado. Estava feliz, despenteado e colérico.

- Você se entrega, metido?

Miguel levantou-se de súbito e empurrou Rubem, mas antes que essa investida agravasse a situação, Escolar interveio.

- Os gaviões não brigam nunca - disse, obrigando-os a sentar-se. - Os dois estão bêbados. Vamos votar.

Melanés, Francisco e Tobias concordaram com o empate, de má vontade.

- Eu já tinha vencido - disse Rubem. - Este cara aí não pode nem falar. Olhem para ele.

De fato, os olhos de Miguel estavam vidrados, tinha a boca aberta e de sua língua jorrava um fio de saliva.

- Cale-se - disse Escolar. - Você não é propriamente um campeão tomando cerveja.

- Não é um campeão tomando cerveja - enfatizou Melanés. - Você só é campeão nadando, o cancã das piscinas.

- É melhor você não dizer nada - disse Rubem -; não vê que o ciúme está corroendo você?

-Viva a Esther Williams de Miraflores disse Melanés.

- Tamanho marmanjo e nem sequer sabe nadar - disse Rubem. Não quer que lhe dê umas aulas?

- Já sabemos, belezinha - disse Escolar. Você ganhou um campeonato de natação e todas as garotas ficaram gamadas. Você é um campeãozinho.

- Este cara aí não é campeão de coisa nenhuma - disse Miguel com dificuldade. - É pura pose.

- Você está morrendo - disse Rubem. - Levo você para casa, menininha?

- Não estou bêbado - garantiu Miguel. E você é só pose.

- Você está se mordendo porque vou namorar Flora - disse Rubem. - Está morrendo de ciúme. Acha que eu não vejo as coisas?

- Pura pose - disse Miguel. - Você só ganhou porque seu pai é presidente da Federação, todo mundo sabe que fez trapaça, desclassificou o Coelho Villarán, só por isso você ganhou.

- Pelo menos nado melhor que você - disse Rubem -, que nem sequer sabe pegar ondas.

- Você não nada melhor do que ninguém disse Miguel. - Qualquer um te deixa pra trás.

- Qualquer um - disse Melanés. - Até mesmo Miguel, que é uma verdadeira mãe.

- Ora, deixem-me rir - disse Rubem.

- Deixamos - disse Tobias. - Não faltava mais.

- Só se atrevem porque estamos no inverno

- disse Rubem. - Senão, eu desafiava a todos para ir à praia, queria ver se na água são tão atrevidos.

- Você ganhou o campeonato por causa do seu pai - disse Miguel. - É pura pose. Quando quiser nadar comigo, basta avisar, não tenha medo. Na praia, no Terraças, onde quiser.

- Na praia - disse Rubem. - Agora mesmo.

- É pura pose - disse Miguel.

O rosto de Rubem iluminou-se subitamente e seus olhos, além de rancorosos, tornaram-se arrogantes.

- Aposto para ver quem chega primeiro na arrebentação - disse.

- Pura pose - disse Miguel.

- Se você ganhar - disse Rubem -, prometo que não falarei mais com Flora. Mas se eu ganhar, enfia a viola no saco e vai cantar noutro lugar.

- Que é que você está pensando? - balbuciou Miguel. - Ela que se arranje, que é que você está pensando?

- Gaviões - disse Rubem, abrindo os braços -, estou fazendo um desafio.

- Miguel não está em forma agora - disse Escolar. - Por que não disputam Flora no cara ou coroa?

- E você, por que se mete - perguntou Miguel. - Aceito. Vamos.

- Quando um gavião faz um desafio, todos enfiam a viola no saco - disse Melanés. - Vamos à praia. E se não têm coragem de entrar na água, nós os jogamos.

- Os dois estão bêbados - insistiu Escolar.

- O desafio não vale.

- Cale a boca, Escolar - rugiu Miguel. Estou bem crescido, não preciso que você tome conta de mim.

- Está bem - disse Escolar, encolhendo os ombros. - Foda-se, então.

Saíram. Fora os esperava uma atmosfera quieta, cinzenta. Miguel respirou fundo; sentiu-se melhor.

Caminhavam à frente Francisco, Melanés e Rubem. Atrás, Miguel e Escolar. Na Avenida Grau havia alguns transeuntes; a maioria, criadas em trajes de cores berrantes, no seu dia de folga. Homens cinzentos, de grossos cabelos lassos, zanzavam à sua volta e as olhavam com cobiça; elas riam, mostrando seus dentes de ouro. Os gaviões

não lhes prestavam atenção. Avançavam a grandes passos e a excitação os dominava, pouco a pouco.

- Já melhorou? - perguntou Escolar.

- Sim - respondeu Miguel. - O ar me fez bem.

Na esquina da Avenida Pardo, dobraram. Marchavam desenvoltamente como um pelotão, em uma única linha, sob os ficus da calçada, sobre as lajotas estofadas, de quando em quando, pelas enormes raízes das árvores que irrompiam na superfície como garfos. Ao descer pela Diagonal, passaram por duas garotas. Rubem inclinou-se, cerimonioso.

- Alô, Rubem - cantaram elas, em dueto. Tobias imitou-as, aflautando a voz.

- Alô, Rubem, príncipe.

A Avenida Diagonal desemboca em um pequeno beco que se bifurca: de um lado, serpenteia os Molhes, asfaltados e brilhantes; de outro, há uma ladeira que contorna o cerro e chega até o mar. Chama-se "a descida para os banhos"; seu calçamento de pedras é igual e brilha pelo ir e vir das rodas dos automóveis e dos pés dos banhistas de muitíssimos verões.

- Vamos nos esquentar, campeões - gritou Melanés, pondo-se a correr. Os outros o imitaram.

Corriam contra o vento e a leve bruma que subiam da praia, envolvidos por um emocionante torvelinho: por seus ouvidos, suas bocas e seus narizes penetrava o ar até seus pulmões e uma sensação de alívio e desintoxicação expandia-se por seus corpos à medida que o declive se acentuava e, em um momento, seus pés já não obedeciam senão a uma força misteriosa que provinha do mais profundo da terra. Os braços como hélices, em suas línguas um hálito salgado, os gaviões desceram a ladeira a toda velocidade, até a plataforma circular, suspensa sobre o edifício das cabinas. O mar se desvanecia, a uns cinqüenta metros da margem, em uma espessa nuvem que parecia próxima a arremeter contra os escarpados, altos molhes escuros plantados ao largo de toda a baía.

- Voltemos - disse Francisco. - Tenho frio. Próximo à plataforma há uma cerca que o musgo mancha de quando em quando. Uma aber tura aponta o começo da escadinha, quase vertical, que desce até a praia. Os gaviões contemplavam dali, a seus pés, uma estreita faixa de água livre, e a superfície inusitada, borbulhante, coberta pela espuma das ondas.

- Só vou embora se este cara se entregar disse Rubem.

- Quem está falando em se entregar? - retrucou Miguel. - Que é que você está pensando?

Rubem desceu a escadinha aos pulos, enquanto desabotoava a camisa.

- Rubem! - gritou Escolar. - Você está louco? Volte!

Mas Miguel e os outros também desciam e Escolar os seguiu.

No verão, da pérgula do alto e estreito edifício recostado contra o cerro, onde se encontram as cabines dos banhistas, até o limite arredondado do mar, havia um declive de pedras plúmbleas onde todos tomam banho de sol. A pequena praia fervia de animação da manhã até o crepúsculo. Agora a água ocupava o declive e não havia guarda-sóis de cores berrantes, nem flexíveis garotas de corpos tostados, não ressoavam os gritos melodramáticos das crianças e das mulheres quando uma onda conseguia salpicá-los antes de voltar arrastando rumorosas pedras e pedregulhos, não se via nem um fio de praia porque a corrente inundava até o espaço limitado pelas sombrias colunas que mantêm o edifício suspenso e, no momento da ressaca, mal se percebia os degraus de madeira e os suportes de cimento, decorados por estalactites e algas.

- Não se vê a arrebentação - disse Rubem.

- Como faremos?

Estavam na galeria da esquerda, no setor reservado às mulheres; tinham os rostos sérios.

- Esperem até amanhã - disse Escolar. Ao meio-dia estará mais claro. Assim a gente pode controlar vocês.

- Já que estamos aqui, que seja agora - disse Melanés. - Eles mesmos podem se controlar.

- Acho que está bem - disse Rubem. - E você?

- Eu também - disse Miguel.

Quando ficaram nus, Tobias zombou das veias azuis que escalavam o ventre liso de Miguel. Desceram. A madeira dos degraus, lambida incessantemente pela água há meses, estava escorregadia e muito macia. Seguro ao corredor de ferro para não cair, Miguel sentiu um estremecimento que subia da planta de seus pés ao cérebro. Pensou que, de certa forma, a neblina e o frio o favoreciam, o êxito já não dependia da destreza, mas, sobretudo, da resistência, e a pele de Rubem estava também azul-violácea, encolhida em milhões de finíssimas camadas. Um degrau mais abaixo, o bem-proporcionado corpo de Rubem inclinou-se: tenso, aguardava o final da ressaca e a chegada da próxima onda, que vinha sem bulha, airosamente, carregando por diante uma revoada de pedacinhos de espuma. Quando a crista da onda chegou a dois metros da escada, Rubem jogou-se: os braços como lanças, os cabelos agitados pela força do impulso, seu corpo cortou o ar rigidamente e caiu sem se dobrar, sem baixar a cabeça nem arquear as pernas, ricocheteou na espuma, afundou ligeiramente e, de imediato, aproveitando a maré, deslizou para o fundo; seus braços apareciam e desapareciam entre um frenético alvoroço e seus pés iam traçando uma delicada e curtíssima esteira. Por sua vez, Miguel desceu outro degrau e esperou a próxima onda. Sabia que ali havia pouco fundo, que devia atirar-se como uma tábua, duro e rígido, sem mexer um músculo, ou bateria contra as pedras. Fechou os olhos e saltou, e não encontrou o fundo, mas seu corpo foi açoitado da testa aos joelhos, e sentiu uma vivíssima ardência enquanto bracejava com todas as suas forças para devolver a seus membros o calor que a água lhes havia tirado de golpe.

Estava nessa estranha parte do mar de Miraflores vizinha à margem, onde se encontram a ressaca e as ondas, e há redemoinhos e correntes, e o último verão estava tão distante que Miguel tinha esquecido como flanqueá-la sem esforço. Não se lembrava que é preciso afrouxar o corpo e abandonar-se, deixar-se levar submissamente à deriva, só bracejar quando se ultrapassa uma onda e se está sobre a crista, nessa prancha líquida que escolta a espuma e flutua acima das correntes. Não se lembrava que convém suportar com paciência e certa malícia esse primeiro contacto com o exasperado mar da margem que repuxa os membros e lança esguichos à boca e aos olhos, não oferecer resistência, ser uma rolha, limitar-se a respirar cada vez que uma onda se avizinha, submergir um pouco se arrebentou longe e vem sem ímpeto, ou até o fundo se estalou perto -, agarrar-se a alguma pedra e esperar atento o surdo estrondo de sua passagem, para emergir de um só impulso e continuar avançando, despreocupadamente, com as mãos, até encontrar um novo obstáculo e então relaxar, não lutar contra os redemoinhos, girar voluntariamente em lentíssima espiral e escapar rapidamente no momento oportuno, com uma só braçada. Em seguida, surge, de súbito, uma superfície calma, abalada por inofensivas ondulações; a água é clara, plana, e em alguns pontos se pode ver as opacas pedras submarinas.

Depois de atravessar a zona encrespada, Miguel parou, exausto, e respirou. Viu Rubem a pouca distância, olhando-o. O cabelo caía-lhe sobre a testa em franja; tinha os dentes cerrados.

- Vamos?

- Vamos.

Minutos depois de estar nadando, Miguel sentiu que o frio, momentaneamente desaparecido, invadia-o de novo; então, apressou a batida de pés, porque era nas pernas, na barriga das pernas principalmente, onde a água agia com maior eficácia, insensibilizando-as primeiro, em seguida endurecendo-as. Nadava com o rosto submerso e, cada vez que o braço direito estava de fora, virava a cabeça para expelir o ar retido e tomar nova provisão com a qual afundava, uma vez mais, a testa e o queixo, pouco, para não frear o próprio avanço e, pelo contrário, fender a água como uma proa e facilitar o deslize. A cada braçada via, com um olho, Rubem, nadando sobre a superfície, suavemente, sem esforço, agora sem levantar espuma, com a delicadeza e a facilidade de uma gaivota que plana. Miguel tentava esquecer-se de Rubem e do mar e da arrebentação (que devia estar ainda distante, pois a água continuava limpa, sossegada, e só atravessada por ondulações há pouco formadas), queria lembrar-se unicamente do rosto de Flora, os pêlos de seus braços que, nos dias de sol, cintilavam como um diminuto bosque de fios de ouro, mas não podia evitar que à imagem da garota se sucedesse outra, brumosa, excludente, atordoante, que se jogava sobre Flora e a ocultava, a imagem de uma montanha de água embravecida, não exatamente a arrebentação (à qual tinha chegado, uma vez, fazia dois verões, e cujo ondear era intenso, de espuma verdosa e escura, porque nesse lugar, mais ou menos, acabavam-se as pedras e começava o lodo que as águas traziam à superfície e misturavam com os ninhos de algas e águas-vivas, tingindo o mar), mas, em vez disso, um verdadeiro oceano agitado por cataclismos interiores, onde se elevavam ondas descomunais, que poderiam abraçar um navio inteiro e o teriam virado com assombrosa rapidez, lançando pelos ares passageiros, botes, mastros, velas, bóias, marinheiros, escotilhas e bandeiras.

Parou de nadar, seu corpo afundou até ficar na vertical, levantou a cabeça e viu Rubem que se distanciava. Pensou em chamá-lo por qualquer pretexto, dizer-lhe "por que não descansamos um momento", mas não o fez. Todo o frio de seu corpo parecia concentrar-se na barriga das pernas, sentia os músculos rígidos, a pele repuxada, o coração acelerado. Mexeu os pés febrilmente. Estava no centro de um círculo de água escura, enclausurado pela neblina. Tentou distinguir a praia, ou, pelo menos, a sombra dos escarpados, mas essa gaze equívoca que se ia dissolvendo à sua passagem não era transparente. Via só uma curta superfície, verde-escura, e um manto de nuvens, ao rés da água. Então sentiu medo. Tomou conta dele a lembrança da cerveja que tinha bebido, e pensou "na certa que aquilo me deixou fraco". Nesse instante, parecia que seus braços e pernas desapareciam. Decidiu voltar, mas, após umas braçadas em direção à praia, deu meia-volta e nadou o mais depressa que pôde. "Não chego à margem sozinho", dizia a si mesmo, "é melhor ficar perto de Rubem, se não agüento, eu lhe direi, você ganhou, vamos voltar". Agora nadava sem estilo, a cabeça erguida, batendo na água com os braços estendidos, o olhar cravado no imperturbável corpo que o precedia.

A agitação e o esforço desintumesceram suas pernas, seu corpo recuperou algo de força, a distância que o separava de Rubem tinha diminuído e isso o serenou. Pouco depois, já o alcançava; esticou um braço, pegou um de seus pés. Instantaneamente, o outro parou. Rubem estava com as pupilas muito arroxeadas e a boca aberta.

- Acho que nos desviamos - disse Miguel.

- Parece que estamos beirando a margem.

Os dentes batiam, mas a voz era segura. Rubem olhou para todos os lados. Miguel observava-o, tenso.

- Não se vê mais a praia - disse Rubem.

- Faz muito tempo que não se vê - disse Miguel. - Tem muita neblina.

- Não nos desviamos - disse Rubem. Olhe. Já se vê a espuma.

De fato, até eles chegavam ondulações condecoradas por uma orla de espuma que se dissolvia e, repentinamente, se refazia. Olharam-se em silêncio.

- Então já estamos perto da arrebentação

- disse Miguel.

- Sim. Nadamos depressa.

- Você está muito cansado? - perguntou Rubem.

- Eu? Você está louco. Vamos.

Imediatamente lamentou essa frase, mas já era tarde, Rubem tinha dito "está bem, vamos".

Chegou a contar vinte braçadas antes de dizer para si mesmo que não podia mais: quase não progredia, tinha a perna direita semi-imobilizada pelo frio, sentia os braços entorpecidos e pesados. Acenando, gritou "Rubem!" Este continuava nadando. "Rubem, Rubem!" Fez a volta e começou a nadar para a praia, ou melhor, a debater-se, com desespero, e logo implorava a Deus que o salvasse, seria bom no futuro, obedeceria a seus pais, não faltaria à missa do domingo e, então, lembrou-se de haver confessado aos gaviões "vou à igreja só pra ver uma mulherzinha" e teve a certeza, como uma punhalada: Deus ia castigálo, afogando-o nessas águas turvas que ele golpeava frenético, águas sob as quais o aguardava uma morte atroz e, depois, talvez, o inferno. Em sua angústia ouviu, então, como um eco, a frase pronunciada pelo padre Alberto, na aula de religião, sobre a bondade divina que não conhece limites, e enquanto açoitava o mar com os braços - as pernas penduravam-se como chumbadas transversais -, mexendo os lábios, pediu a Deus que fosse bondoso com ele, que era tão jovem, e jurou que entraria no seminário se se salvasse, mas um segundo depois retificou-se assustado, e prometeu que em vez de se tornar padre faria penitências e outras coisas, daria esmolas, e aí descobriu que a vacilação e o regateio, nesse instante crítico, podiam ser fatais, e então ouviu os gritos enlouquecidos de Rubem, muito próximos, e voltou a cabeça e o viu, a uns dez metros, meia cara afundada na água, agitando um braço, implorando: "Miguel, irmãozinho, venha, estou me afogando, não vá embora."

Ficou perplexo, imóvel, e, subitamente, foi como se o desespero de Rubem fulminasse o seu; sentiu que recuperava a coragem, a rigidez de suas pernas atenuava-se.

- Estou com cãimbras na barriga - gritava Rubem. - Não posso mais, Miguel. Me salve, pelo que você mais quer, não me abandone, irmãozinho.

Flutuava em direção a Rubem, e já ia aproximar-se dele quando se lembrou, os afogados só atinam em segurar-se, como tenazes, a seus salvadores e os afundam com eles, e se afastou, mas os gritos o aterravam, então pressentiu que se Rubem se afogasse, também ele não chegaria à praia, e voltou. A dois metros de Rubem, algo branco e encolhido que se afundava e emergia, gritou: "Não se mexa, Rubem, vou puxar você, mas não tente me agarrar, se me agarra, afundamos, Rubem, você vai ficar quieto, irmãozinho, vou puxar você pela cabeça, não toque em mim. - Parou a uma distância prudente, estendeu a mão até alcançar os cabelos de Rubem. Começou a nadar com o braço livre, esforçando-se ao máximo para ajudar-se com as pernas. Deslizava lentamente, penosamente, juntava todas as suas energias, mal escutava Rubem queixar-se monotonamente, berrar, em seguida, "vou me afogar, me salve, Miguel", ou estremecer com golfadas. Estava exausto quando parou. Sustentava Rubem com uma mão, com a outra traçava círculos na superfície. Respirou fundo pela boca. Rubem tinha o rosto contraído pela dor, os lábios retorcidos em um insólito trejeito.

- Irmãozinho - sussurrou Miguel -, falta pouco, faça um esforço. Responde, Rubem. Grite. Não fique assim.

Esbofeteou-o com força e Rubem abriu os olhos; mexeu a cabeça levemente.

- Grite, irmãozinho - repetiu Miguel. Tente esticar-se. vou massagear seu estômago. Já falta pouco, não se deixe vencer.

Sua mão procurou debaixo da água, encontrou uma bola dura que nascia no umbigo de Rubem e ocupava grande parte do seu ventre. Esfregou-a, muitas vezes, primeiro devagar, depois, com força, e Rubem gritou:

- Não quero morrer, Miguel, me salve!

Começou a nadar de novo, desta vez arrastando Rubem pelo queixo. Cada vez que uma onda os surpreendia, Rubem se engasgava, Miguel dizia-lhe aos gritos que cuspisse.

E continuou nadando sem parar um momento, fechando os olhos às vezes, animado porque em seu coração havia brotado uma espécie de confiança, algo vivo e soberbo, estimulante, que o protegia contra o frio e a fadiga. Uma pedra raspou em um de seus pés e ele gritou e se apressou. Um momento depois encontrava pé, levantava-se e passava os braços em torno de Rubem. Mantendo-o apertado contra seu corpo, sentindo a cabeça dele apoiada em um de seus ombros, descansou bastante tempo. Em seguida, ajudou Rubem a estender-se de costas, e, sustentando-o no antebraço, obrigou-o a esticar os joelhos; fez massagens no seu ventre até que a dureza da bola cedesse. Rubem já não gritava, fazia grandes esforços por estender-se todo e, com suas mãos, também se massageava.

- Está melhor?

- Sim, irmãozinho, já estou bem. Vamos sair. Uma alegria indizível dominava-os enquanto avançavam sobre as pedras, inclinados para frente a fim de enfrentar a ressaca, insensíveis aos ouriços-do-mar. Em pouco tempo avistaram as arestas dos escarpados, as cabines e, finalmente, já perto da margem, os gaviões, de pé, na ala das mulheres, olhando-os.

- Escute - disse Rubem.

- Sim.

- Não diga nada a eles. Por favor, não conte que eu gritei. Sempre fomos bons amigos, Miguel. Não me faça isso.

- Você pensa que eu sou mau-caráter? perguntou Miguel. Não vou dizer nada, não se preocupe.

Saíram tiritando. Sentaram-se na escadinha, em meio ao alvoroço dos gaviões.

- A gente já ia dar os pêsames às famílias

- dizia Tobias.

- Faz mais de uma hora que estão lá dentro

- disse Escolar. - Contem, como é que foi a coisa?

Falando calmamente, enquanto secava o corpo com a camisa, Rubem explicou:

- Nada. Chegamos à arrebentação e voltamos. Então, não somos gaviões? Miguel ganhou.

Por uma batida de mão. Claro que se tivesse sido numa piscina, ficaria até ridículo.

Sobre as costas de Miguel, que se vestira sem se secar, choveram palmadas de felicitações.

- Você está ficando homem - dizia-lhe Melanés.

Miguel não respondeu. Sorrindo, pensava que naquela mesma noite iria ao Parque Salazar; toda Miraflores logo saberia, pela boca de Melanés, que vencera aquela heróica prova e Flora o estaria esperando com os olhos brilhantes. Abria-se, diante dele, um futuro dourado.

 

                     O Irmão Menor

 

Ao lado do caminho havia uma enorme pedra e, sobre ela, um sapo; Davi apontava para ele cuidadosamente.

- Não atire - disse João.

Davi baixou a arma e olhou, surpreendido, para o irmão.

- Pode ouvir os tiros - disse João.

- Você está louco? Faltam cinqüenta quilômetros até a cascata.

- Talvez não esteja na cascata - insistiu João -, mas nas grutas.

- Não - disse Davi. - E depois, mesmo que estivesse, não pensará nunca que somos nós.

O sapo continuava ali, respirando mansamente com a imensa bocarra aberta e, de trás de suas remelas, observava Davi com um certo ar maldoso. Davi voltou a levantar o revólver, apontou lentamente e disparou.

- Não acertou - disse João.

- Acertei.

Aproximaram-se da pedra. Uma manchinha verde denunciava o lugar onde tinha estado o sapo.

- Não acertei?

- Sim - disse João -, sim, acertou.

Caminharam para os cavalos. Soprava o mesmo vento frio e agudo que os havia escoltado durante o trajeto, mas a paisagem começava a mudar: o sol afundava atrás dos cerros, ao pé de uma montanha uma imprecisa sombra dissimulava os campos semeados, as nuvens enroscadas nos cimos mais próximos tinham adquirido a cor cinza escuro das rochas. Davi atirou sobre os ombros o cobertor que estendera no chão para descansar e, em seguida, maquinalmente, trocou no revólver o cartucho detonado. Furtivamente, João observou as mãos de Davi carregando a arma e a jogando ao coldre; seus dedos não pareciam obedecer a uma vontade, mas agir sós.

- Continuamos? - disse Davi. João concordou.

O caminho era uma estreita encosta e os animais subiam com dificuldade, resvalando constantemente nas pedras, úmidas ainda pelas chuvas dos últimos dias. Os irmãos iam silenciosos. Uma fina e invisível neblina veio a seu encontro, logo que partiram, mas parou em seguida. Escurecia quando avistaram as grutas, o cerro achatado e estendido como uma minhoca, que todos conhecem pelo nome de Cerro dos Olhos.

- Você quer que a gente veja se ele está ali?

- perguntou João.

- Não vale a pena. Tenho certeza que não saiu da cascata. Ele sabe que por aqui poderiam vê-lo, sempre passa alguém por este caminho.

- Você manda - disse João.

Mas, um momento depois perguntou:

- E se aquele cara mentiu?

- Quem?

- Aquele que nos disse que o viu.

- Leandro? Não, não se atreveria a mentir para mim. Disse que está escondido na cascata e é certo que está lá. Você vai ver.

Continuaram avançando até noite fechada. Um lençol negro envolveu-os e, na escuridão, o desamparo da região solitária, sem árvores nem homens, era visível só no silêncio que se foi acentuando até converter-se em uma presença semicorpórea. João, inclinado sobre o pescoço de sua cavalgadura, procurava distinguir o incerto leito do caminho. Viu que haviam chegado ao alto quando, inesperadamente, se encontraram em terreno plano. Davi sugeriu que deviam continuar a pé. Desmontaram, amarraram os animais a umas pedras. O irmão mais velho puxou as crinas do seu cavalo, deu-lhe várias palmadas no lombo e murmurou a seu ouvido:

- Tomara que amanhã eu não encontre você gelado.

- Vamos descer agora? - perguntou João.

- Sim - respondeu Davi. - Não sente frio? É preferível esperar o dia no desfiladeiro. Lá descansaremos. Tem medo de descer no escuro?

- Não. Podemos descer se você quiser.

Iniciaram a descida imediatamente. Davi ia adiante, levava uma pequena lanterna e a coluna de luz oscilava entre seus pés e os de João; o círculo dourado detinha-se um instante no lugar em que o irmão menor devia pisar. Em poucos minutos, João transpirava abundantemente e as ásperas pedras da ladeira tinham enchido suas mãos de arranhões. Só via o disco iluminado à sua frente, mas sentia a respiração do irmão e adivinhava seus movimentos: devia estar andando sobre o escorregadio declive muito seguro de si mesmo e evitando os obstáculos sem dificuldade. Ele, em troca, antes de cada passo sondava a solidez do terreno e buscava apoio para agarrar-se; ainda assim, em várias ocasiões esteve a ponto de cair. Quando chegaram à furna, João pensou que a descida talvez tivesse demorado várias horas. Estava exausto e, agora, ouvia muito próximo o ruído da cascata, uma grande e majestosa cortina de água, que se precipitava do alto retumbando como os trovões, sobre uma lagoa que alimentava um riacho. À volta da lagoa havia musgo e mato todo o ano, e essa era a única vegetação em vinte quilômetros ao redor.

- Podemos descansar aqui - disse Davi.

Sentaram-se um junto do outro. A noite estava fria, o ar úmido, o céu encoberto. João acendeu um cigarro. Estava cansado, mas sem sono. Percebeu que o irmão espreguiçava-se e bocejava; pouco depois, não se mexia, a respiração ficou mais suave e pausada, de quando em quando emitia uma espécie de murmúrio. Por sua vez, João tratou de dormir. Acomodou o corpo o melhor que pôde sobre as pedras e tentou limpar o cérebro, sem consegui-lo. Acendeu outro cigarro. Quando chegara à fazenda, três meses atrás, fazia dois anos que não via seus irmãos. Davi era o mesmo homem que odiava e admirava desde pequeno, mas Leonor havia mudado, já não era aquela criança que aparecia nas janelas de La Mugre[12] para atirar pedras nos índios de castigo, mas uma mulher alta, de gestos primitivos, e sua beleza tinha, como a natureza que a rodeava, algo de brutal. Em seus olhos aparecera um intenso fulgor. João sentia um enjôo que embaciava seus olhos, um vazio no estômago, cada vez que associava a imagem daquele que procuravam à lembrança da irmã, como náuseas de raiva. Na madrugada desse dia, entretanto, quando viu Camilo atravessar o descampado que separava a sede da fazenda das cavalariças para arrear os cavalos, havia vacilado.

- Vamos sair sem fazer ruído - tinha dito Davi. - Não é bom que a pequena acorde.

Sentiu uma estranha sensação de afogo, como se estivesse no ponto mais alto da Cordilheira, enquanto descia, na ponta dos pés, os degraus da sede e o abandonado caminho que flanqueava os campos semeados; quase não sentia a maranha zumbidora de mosquitos que se lançavam furiosamente sobre ele, e feriam, em todos os lugares descobertos, sua pele de homem da cidade. Ao iniciar a subida da montanha, o afogo desapareceu. Não era um bom cavaleiro e o precipício, estendido como uma terrível tentação à beira do caminho que parecia uma estreita serpentina, preocupou-o. Esteve vigilante todo tempo, atento a cada passo do cavalo, concentrando sua vontade contra a vertigem que acreditava iminente.

- Olhe!

João estremeceu.

- Você me assustou - disse. - Pensei que dormia.

- Cale-se! Olhe

- O quê?

- Lá. Olhe.

Quase ao nível do chão, lá onde parecia nascer o estrondo da cascata, havia uma luzinha titilante.

- Fogo - disse Davi. - Juro que é ele. Vamos.

- Esperemos que   amanheça   - sussurrou João: de súbito, sua garganta secou e ardia. Se ele corre, nós nunca o alcançaremos nesta escuridão.

- Não pode nos ouvir com esse ruído doido da água - respondeu Davi, com voz firme, pegan do o irmão pelo braço. - Vamos.

Muito lentamente, o corpo inclinado como que para saltar, Davi começou a deslizar, grudado no cerro. João ia a seu lado, tropeçando, os olhos cravados na luz que diminuía e aumentava como se alguém estivesse abanando a chama. À medida que os irmãos se aproximavam, a claridade do fogo descobria-lhes o terreno próximo, pedregulhos, macegas, a margem da lagoa, mas não uma forma humana. João tinha certeza agora: aquele que perseguiam estava ali, afundado naquelas   sombras, em um lugar bem próximo do fogo.

- É ele - disse Davi. - Está vendo?

Por um instante, as frágeis línguas de fogo haviam iluminado um perfil escuro e indefinido, que buscava calor.

- Que fazemos? - murmurou João, parando. Davi, porém, já não estava a seu lado, corria para o lugar onde havia surgido aquele rosto fugaz.

João fechou os olhos, imaginou o índio de cócoras, as mãos estendidas para o fogo, as pupilas irritadas pelas faíscas do fogo: de repente, algo lhe caía em cima e ele só conseguia pensar em um animal ao sentir duas mãos violentas fechando-se em seu pescoço, e então compreendia. Deve ter sentido um infinito terror ante aquela agressão inesperada, que provinha da sombra, talvez nem tenha tentado defender-se; quando muito, se encolheria como um caracol, para fazer menos vulnerável seu corpo, e abriria muito os olhos, esforçando-se por ver na escuridão o assaltante. Então, reconheceria sua voz: "que é que você fez, canalha?", "que é que você fez, cachorro?"

João ouvia Davi e sabia que ele o estava chutando, às vezes seus pontapés pareciam chocar-se não contra o índio, mas contra as pedras do riacho; isso devia enraivecê-lo mais. No começo, chegava até João um lento grunhido, como se o índio estivesse gargarejando, depois, porém, só ouviu a voz enfurecida de Davi, suas ameaças, seus insultos. De repente, João descobriu o revólver em sua mão direita, seu dedo pressionava levemente o gatilho.

Assustado, pensou que se disparasse podia matar também a seu irmão, mas não guardou a arma e, pelo contrário, enquanto avançava em direção ao fogo, sentiu uma grande serenidade.

- Chega, Davi! - gritou. - Dê um tiro nele. Não bata mais.

Não houve resposta. João, agora, não os via mais: o índio e seu irmão, abraçados, tinham rolado para fora do anel iluminado pelo fogo. Não os via, mas escutava o ruído seco dos golpes e, de quando em quando, uma injúria ou um profundo suspiro.

- Davi - gritou João -, saia daí. vou atirar. Presa de intensa agitação, segundos depois repetiu:

- Solte-o, Davi. Juro que vou atirar. Também não teve resposta.

Depois de disparar o primeiro tiro, João ficou um instante estupefato, mas, rapidamente, continuou disparando, sem fazer pontaria, até sentir a vibração metálica do percussor golpeando a câmara de cartuchos vazia. Permaneceu imóvel, não sentiu que o revólver se desprendia de suas mãos e caía a seus pés. O ruído da cascata desaparecera, um tremor percorria todo seu corpo, sua pele estava banhada de suor, mal respirava. De repente, gritou:

- Davi!

- Estou aqui, burro - respondeu a seu lado uma voz assustada e colérica. - Você sabe que podia ter me baleado também? Ficou louco?

João girou sobre os calcanhares, as mãos estendidas, abraçou o irmão. Grudado a ele, balbuciava coisas incompreensíveis, gemia e não parecia entender as palavras de Davi, que tentava acalmá-lo. João ficou um longo tempo repetindo incoerências, soluçando.

Quando se acalmou, lembrou-se do índio:

- E ele, Davi?

- Ele? - Davi tinha recuperado a calma; falava com firmeza. - Como pensa que está?

O fogo continuava aceso, mas iluminava fracamente. João pegou a acha maior e procurou o índio. Quando o encontrou, ficou olhando por um momento, com olhos fascinados, e logo a acha caiu no chão e se apagou.

- Você viu, Davi?

- Sim, vi. Vamos embora daqui.

João estava duro e surdo, como num sonho, sentiu que Davi o arrastava para o carro. A subida tomou-lhes muito tempo. Davi sustentava com uma mão a lanterna e com a outra João, que parecia feito de pano: escorregava mesmo nas pedras mais firmes e desabava até o chão, sem reagir. No alto, desfaleceram, esgotados. João afundou a cabeça nos braços e permaneceu estendido, respirando fortemente. Quando se levantou, viu o irmão, que o examinava à luz da lanterna.

- Você está ferido - disse Davi. - vou lhe pôr uma venda.

Rasgou seu lenço e com cada um dos pedaços amarrou os joelhos de João, banhados em sangue, que apareciam através de rasgões na calça.

- Isto é provisório - disse Davi. - Voltemos logo. Pode infeccionar. Você não está acostumado a subir cerros. Leonor cuida disto.

Os cavalos tiritavam e seus focinhos estavam cobertos de uma espuma azulada. Davi limpou-os com a mão, acariciou-os no lombo e nas ancas, estalou ternamente a língua junto a suas orelhas. "Vamos chegar logo ao calor", sussurrou-lhes.

Quando montaram, amanhecia. Uma débil claridade abarcava o perfil dos cerros e um branco verniz estendia-se pelo entrecortado horizonte, mas os abismos continuavam sumidos na escuridão. Antes de partir, Davi tomou um longo gole do seu cantil e o passou a João, que não quis beber. Cavalgaram toda a manhã por uma paisagem hostil, deixando à vontade dos animais imprimir o ritmo da marcha. Ao meio-dia, pararam e prepararam café. Davi comeu um pouco do queijo e das favas que Camilo colocara nos alforjes. Ao anoitecer avistaram dois paus em forma de xis. Pendurada a eles uma tábua em que se lia: Aurora. Os cavalos relincharam: reconheciam o sinal que marcava o limite da fazenda.

- Puxa - disse Davi. - Já era hora. Estou nas últimas. Como vão os joelhos?

João não respondeu.

- Estão doendo? - insistiu Davi.

- Amanhã vou para Lima - disse João.

- O quê?

- Não voltarei à fazenda. Estou cheio da serra. Viverei sempre na cidade. Não quero saber do campo.

João olhava para frente, fugia dos olhos de Davi, que o procuravam.

- Você está nervoso agora - disse Davi. É natural. Falaremos depois.

- Não - disse João. - Falaremos agora.

- Está bem - disse Davi, suavemente. Que há com você?

João voltou-se para o irmão, tinha o rosto desfigurado, a voz áspera:

- Que é que há comigo? Você sabe bem o que está dizendo? Esqueceu do cara da cascata? Se fico na fazenda vou terminar acreditando que é normal fazer coisas assim.

Ia acrescentar "como você", mas não se atreveu.

- Era um cachorro nojento - disse Davi. Seus escrúpulos são absurdos. Por acaso você se esqueceu do que ele fez à sua irmã?

O cavalo de João estacou nesse momento e começou a corcovear e a levantar-se sobre as patas traseiras.

- Vai disparar, Davi - disse João.

- Solte as rédeas. Você o está sufocando. João afrouxou as rédeas e o animal se acalmou.

- Você não me respondeu - disse Davi. Esqueceu por que fomos atrás dele?

- Não - respondeu João. - Não esqueci. Duas horas depois chegavam à cabana de Camilo, construída sobre um promontório, entre a sede da fazenda e as cavalariças. Antes que os irmãos parassem, a porta da cabana se abriu e no umbral apareceu Camilo. O chapéu de palha na mão, a cabeça respeitosamente inclinada, caminhou até eles e parou entre os cavalos, cujas rédeas segurou.

- Tudo bem? - disse Davi.

Camilo mexeu a cabeça negativamente.

- A menina Leonor...

- Que aconteceu a Leonor? - interrompeu-o João, levantando-se nos estribos.

Em sua linguagem pausada e confusa, Camilo explicou que a menina Leonor, da janela do seu quarto, vira os irmãos partir de madrugada e que, quando eles estavam a apenas uns mil metros da casa, aparecera no descampado, de botas e calças de montar, ordenando aos gritos que lhe preparassem seu cavalo. Camilo, seguindo instruções de Davi, negou-se a obedecê-la. Ela, então, decididamente, entrou nas cavalariças e, como um homem, instalou os arreios, os pelegos e as rédeas no Colorado, o menor e mais arisco dos cavalos de A Aurora, o seu preferido.

Quando se preparava para montar, as criadas da casa e o próprio Camilo a tinham segurado: durante um bom tempo suportaram os insultos e os golpes da menina, que, exasperada, debatia-se e suplicava e exigia que a deixassem seguir atrás de seus irmãos.

- Ah, ela me pagará! - disse Davi. - Foi Jacinta, eu sei. Ela nos ouviu falar com Leandro naquela noite, quando servia a mesa. Foi ela.

A menina tinha ficado muito abalada, continuou Camilo. Depois de insultar e arranhar as criadas e a ele mesmo, começou a chorar aos berros, e voltou à casa. Lá permanecia, desde então, fechada em seu quarto.

Os irmãos apearam, entregaram os cavalos a Camilo e se dirigiram à casa.

- Leonor não deve saber de nada - disse João. ;

- Claro que não - disse Davi. - Nada.

Leonor soube que tinham chegado pelo latido dos cães. Estava cochilando quando um rouco grunhido cortou a noite e, sob sua janela, passou, como uma exalação, um animal ofegante. Era Spoky, adivinhou sua frenética correria e seus inconfundíveis latidos. Em seguida, escutou o trote preguiçoso e abafado de Domitila, a cadélinha prenhe. A agressividade dos cães terminou bruscamente, depois dos latidos veio o respirar afanoso com que sempre recebiam Davi. Por uma fenda viu seus irmãos aproximarem-se da casa e ouviu o ruído da porta principal que se abria e fechava. Esperou que subissem a escada e chegassem a seu quarto. Quando abriu, João esticava a mão para bater.

- Alô, pequena - disse Davi.

Deixou que a abraçassem e aproximou deles a sua testa, mas não os beijou. João acendeu a lâmpada.

- Por que não me avisaram? Deviam me dizer. Eu queria alcançá-los, mas Camilo não deixou. Você tem de castigá-lo, Davi, se visse como me agarrava, é um insolente, um bruto. Eu lhe pedia para que me soltasse e ele não fazia caso.

Começara a falar com energia, mas sua voz se interrompeu. Tinha os cabelos desalinhados e estava descalça. Davi e João tentavam acalmá-la, acariciavam-lhe os cabelos, sorriam, chamavam-na de pequenina.

- Não queríamos deixar você preocupada explicava Davi. - E depois, decidimos partir à última hora. Você já estava dormindo.

- Que é que aconteceu? - disse Leonor. João pegou um cobertor da cama e com ele cobriu a irmã. Leonor não chorava mais. Estava pálida, tinha a boca entreaberta e seu olhar era ansioso.

- Nada - disse Davi. - Não aconteceu nada. Não o encontramos.

A tensão desapareceu do rosto de Leonor, em seus lábios desenhou-se uma expressão de alívio.

- Mas o encontraremos - disse Davi. com um gesto vago indicou a Leonor que devia deitar-se. Em seguida deu meia-volta.

- Um momento, não vão embora - disse Leonor.

João não se mexera.

- O quê? - disse Davi. - O que há, menina?

- Não o procurem mais.

- Não se preocupe - disse Davi -, esqueça disso. - É assunto de homens. Deixe para nós.

Então Leonor começou a chorar novamente, desta vez com grandes convulsões. Levava as mãos à cabeça, todo seu corpo parecia eletrizado, e seus gritos assustaram os cães, que começaram a latir ao pé da janela. Davi pediu, com um gesto, que João interviesse, mas o irmão menor permaneceu silencioso e imóvel.

- Está bem, menina - disse Davi. - Não chore. Não o procuraremos.

- Mentira. Você vai matá-lo.   Eu conheço você.

- Não o matarei - disse Davi. - Se você acha que aquele miserável não merece castigo...

- Não me fez nada - disse Leonor, rapidamente, mordendo os lábios.

- Não pense mais nisso - insistiu Davi. Nós esqueceremos dele. Fique calma, pequena.

Leonor continuava chorando, suas faces e seus lábios estavam molhados e a manta caíra ao chão.

- Não me fez nada - repetiu. - Era mentira.

- Sabe o que está dizendo? - perguntou Davi.

- Eu não podia suportar mais que me seguisse por toda parte - balbuciou Leonor. - Vivia atrás de mim todo o dia, como uma sombra.

- A culpa é minha - disse Davi, amargurado. - É perigoso que uma mulher ande solta pelo campo. Dei-lhe ordens para que seguisse você. Não devia confiar em um índio.

São todos iguais.

- Não me fez nada, Davi! - exclamou Leonor. - Acredite em mim, estou dizendo a verdade. Pergunte a Camilo, ele sabe que não houve nada. Por isso, ele o ajudou a fugir. Não sabia disso? Sim, foi ele. Eu mesma lhe contei. Só queria me livrar dele, por isso, inventei essa história. Camilo sabe de tudo, pergunte a ele.

Leonor secou o rosto com o dorso da mão. Levantou a manta e a jogou sobre os ombros. Parecia haver-se livrado de um pesadelo.

- Amanhã falaremos disso - disse Davi. Agora estamos cansados. Precisamos dormir.

- Não - disse João.

Leonor notou o irmão muito perto dela: tinha esquecido que João também estava ali. Estava com a testa cheia de rugas, as narinas palpitavam como o focinho de Spoky.

- Vai repetir agora mesmo o que disse - dizia-lhe João, de um modo estranho. - Vai repetir o que nos mentiu.

- João - disse Davi. - Espero que você não acredite nela. - Está tentando nos enganar agora.

- Disse a verdade - rugiu Leonor; olhava alternadamente para os irmãos. - Naquele dia, eu lhe dei ordens para que me deixasse só e não obedeceu. Fui até o rio e ele atrás de mim. Nem mesmo podia tomar banho tranqüila. Ficava parado, olhando-me de lado, como os bichos. Então voltei e contei aquilo a vocês.

- Espere, João - disse Davi. - Para onde vai? Espere.

João dera meia-volta e se dirigia até a porta; quando Davi procurou pará-lo, estourou. Como um endemoninhado, começou a gritar palavrões: chamou de puta a irmã e o irmão de canalha e déspota, deu um violento empurrão em Davi, que queria impedir-lhe a passagem, e abandonou a casa correndo, deixando um rastro de injúrias. Da janela, Leonor e Davi viram-no atravessar o descampado em desenfreada corrida, vociferando como um louco, e entrar nas cavalariças, de lá saindo, pouco depois, montado a pelo no Colorado. O arisco cavalo de Leonor seguiu documente a direção que as inexperientes mãos que empunhavam as rédeas indicavam: caracoleando com elegância, mudando de passo e agitando as crinas vermelhas do rabo como um leque, até a beira do caminho que levava, entre montanhas, desfiladeiros e extensos areais, à cidade. Lá se rebelou. Levantou-se de súbito nas patas traseiras, relinchando, girou como uma bailarina e voltou ao descampado, velozmente.

- Vai jogá-lo ao chão - disse Leonor.

- Não - disse Davi, a seu lado. - Olhe. Ele está firme.

Muitos índios haviam aparecido às portas das cavalariças e olhavam, assustados, o irmão menor, que se mantinha, inacreditavelmente firme, sobre o cavalo e, ao mesmo tempo, fustigava ferozmente suas ilhargas, golpeando-o na cabeça com um de seus punhos. Exasperado pelos golpes, o Colorado ia de um lado para outro, encabritado, pulava, empreendia vertiginosas e curtíssimas carreiras e parava de repente, mas o cavaleiro parecia soldado a seu lombo. Leonor e Davi viamno aparecer e desaparecer, firme como o mais habituado dos domadores, e estavam mudos, espantados. De repente, o Colorado se rendeu: a esbelta cabeça caída, como que envergonhado, ficou quieto, respirando cansado. Então pensaram que voltava: João dirigiu o animal até a casa e parou diante da porta, mas não desmontou, como se lembrasse de algo, deu meia-volta e, a trote curto, marchou direto para a construção que chamavam de Mugre. Ali apeou de um pulo. A porta estava fechada e João fez o cadeado voar a pontapés. Em seguida, aos gritos, disse aos índios que tinha terminado o castigo para todos. Depois voltou à casa, caminhando lentamente. Na porta, Davi o esperava. João parecia sereno: estava empapado de suor e seus olhos mostravam orgulho. Davi aproximou-se dele e o levou para o interior da casa, agarrando-o pelo ombro.

- Vamos - dizia-lhe. - Tomaremos um gole enquanto Leonor cuida de seus joelhos.

 

                     Um Visitante

 

Os areais lambem a fachada do tambo[13] e ali acabam: do buraco que serve de porta ou por entre os carriços, o olhar desliza sobre uma superfície branca e lânguida até encontrar o céu. Atrás do tambo, a terra é dura e áspera, e a menos de um quilômetro começam os cerros brunidos, cada um mais alto que o outro e estreitamente ligados; seus cumes incrustam-se nas nuvens como se fossem agulhas ou achas de lenha. À esquerda, estreito, sinuoso, estendendo-se à beira da areia e crescendo sem parar até desaparecer entre dois montes, já muito longe do tambo, está o bosque; matagal, plantas selvagens e um mato seco e arrampado que o esconde todo, o chão desigual, as cobras, as minúsculas poças. Mas o bosque é só o aviso da selva, um simulacro: termina no fim de uma ribanceira, ao pé de uma maciça montanha, atrás da qual se estende a selva verdadeira.

E Dona Mercedinhas conhece-a: uma vez, faz anos, subiu ao topo dessa montanha e contemplou dali, com olhos espantados, através das manchas de nuvens que flutuavam a seus pés, a plataforma verde, espalhada para a frente e para os lados, sem um claro.

Agora, Dona Mercedinhas cochila atirada sobre dois fardos. A cabra, um pouco mais adiante, escarva a terra com o focinho, mastiga afanosamente uma lasca de madeira, e bale ao morno vento da tarde. De repente, levanta as orelhas e fica tensa. A mulher entreabre os olhos:

- Que é, Cuera?

O animal puxa a corda que o liga à estaca. A mulher se põe de pé, com dificuldade. A uns cinqüenta metros, o homem aparece nítido contra o horizonte; sua sombra o precede na areia. A mulher leva a mão à testa como viseira. Olha rapidamente em volta; em seguida, fica imóvel. O homem está muito perto; é alto, esquálido, muito escuro; tem cabelos crespos e olhos debochados. A camisa desbotada drapeja sobre a calça de baeta, arregaçada até os joelhos. As pernas parecem dois tarugos negros.

- Boa tarde, Dona Mercedinhas. - Sua voz é melodiosa e sarcástica. A mulher empalideceu.

- Que quer? - murmura.

- Me reconhece, não é verdade? Puxa, fico feliz. Por favor, gostaria de comer alguma coisa. E beber. Tenho muita sede.

- Lá dentro tem cerveja e fruta.

- Obrigado, Dona Mercedinhas. A senhora é muito bondosa. Como sempre. Será que pode me acompanhar?

- Para quê? - A mulher olha-o com receio; é gorda e entrada em anos, mas de pele tersa; está descalça. - Você já conhece o tambo.

- Oh! - diz o homem, em tom cordial. Não gosto de comer sozinho. Dá tristeza.

A mulher vacila um momento. Logo caminha para o tambo, arrastando os pés na areia. Entra. Abre uma garrafa de cerveja.

- Obrigado, muito obrigado, Dona Mercedinhas. Mas prefiro leite. Já que abriu essa garrafa, por que não a toma?

- Não tenho vontade.

- Vamos, Dona Mercedinhas, não seja assim. Tome por minha saúde.

- Não quero.

A fisionomia do homem se azeda.

- Está surda? Eu lhe disse que tomasse essa cerveja. Saúde!

A mulher levanta a garrafa com as mãos e bebe, lentamente, em pequenos goles. No balcão sujo e esburacado, brilha uma jarra de leite. O homem espanta com um tapa as moscas que esvoaçam a seu redor, levanta a jarra e bebe um longo gole. Seus lábios ficam cobertos por um buço de nata que a língua, segundos depois, apaga ruidosamente.

- Ah! - diz, lambendo-se. - Que leite bom, Dona Mercedinhas. Na certa que é de cabra, não é? Gostei muito. Já terminou essa garrafa? Por que não abre outra? Saúde!

A mulher obedece sem protestar; o homem devora duas bananas e uma laranja.

- Escute, Dona Mercedinhas, não seja tão esperta. Está derramando a cerveja pelo pescoço. Vai molhar seu vestido. Não desperdice assim as coisas. Abra outra garrafa e tome em honra de Numa. Saúde!

O homem continua repetindo "saúde" até que sobre o balcão ficam quatro garrafas vazias. A mulher tem os olhos vidrados; arrota, cospe, senta-se sobre um fardo de frutas.

- Meu Deus! - diz o homem. - Que mulher! A senhora é uma gambazinha, Dona Mercedinhas. Desculpe que lhe diga isso.

- Isto que você faz com uma pobre velha vai lhe custar caro, Jamaiquino. Você vai ver. - Está com a língua um pouco emperrada.

- De verdade? - diz o homem, aborrecidamente. - A propósito, a que horas chega Numa?

- Numa?

- Oh, a senhora é terrível, Dona Mercedinhas, quando não quer entender as coisas! A que horas virá?

- Você é um negro sujo, Jamaiquino. Numa vai matá-lo.

- Não diga essas palavras,   Dona Mercedinhas! - Boceja. - Está bem, acho que ainda temos um pouco de tempo. Certamente até a noite. Vamos tirar uma sonequinha, não acha bom?

Levanta-se e sai. Vai até a cabra. O animal olha-o com desconfiança. Desata-o. Volta ao tambo fazendo girar a corda como uma hélice, e assobiando: a mulher já não está lá.

Instantaneamente, desaparece a preguiçosa, a lasciva calma dos seus gestos. Percorre o local com grandes pulos, praguejando. Em seguida, caminha para o bosquezinho, seguido pela cabra. Esta descobre a mulher atrás de um arbusto, começa a lambê-la. Jamaiquino ri vendo os rancorosos olhares que a mulher lança à cabra. Faz um gesto qualquer e Dona Mercedinhas caminha para o tambo.

- É verdade que a senhora é uma mulher terrível, sim senhor. Que coisas não inventa!

Amarra-a, de pés e mãos. Carrega-a facilmente e a deposita no balcão. Fica olhando-a com malícia e, de repente, começa a fazer cosquinhas nos seus pés, que são enrugados e largos. A mulher se retorce de gargalhadas; o rosto revela desespero. O balcão é estreito e, estremecendo, Dona Mercedinhas aproxima-se da beira: afinal, rola pesadamente para o chão.

- Que mulher terrível, sim senhor! - repete. - Se faz de desmaiada e está me espiando com um olho. A senhora não tem cura, Dona Mercedinhas!

A cabra, a cabeça enfiada no tambo, observa a mulher, fixamente.

O relincho dos cavalos acontece no fim da tarde; já escurece. Dona Mercedinhas levanta o rosto e escuta, os olhos bem abertos.

- São eles - diz Jamaiquino. Levanta-se de um pulo. Os cavalos continuam relinchando e batendo com os cascos no chão. Da porta do tambo, o homem grita, colérico:

- Está ficando louco, tenente? Está ficando louco?

Em uma curva do cerro, detrás de umas pedras, surge o tenente; é pequeno e rechonchudo: usa botas de montaria, o rosto sua. Olha cautelosamente.

- O senhor está louco? - repete Jamaiquino. - Que é que há?

- Não grite comigo, negro - diz o tenente.

- Chegamos agora. Que está acontecendo?

- Como que está acontecendo? Mande sua gente levar para longe os cavalos. O senhor não conhece o seu ofício?

O tenente enrubesce.

- Ainda não está livre, negro - diz. - Mais respeito.

- Esconda os cavalos e corte suas línguas, se quiser. Mas que a gente não os ouça. E espere ali. Eu lhe darei o sinal.

Jamaiquino abre a boca e o sorriso que se desenha no seu rosto é insolente.

- Não sabe que agora tem que me obedecer? O tenente vacila por uns segundos.

- Coitado de você se ele não vem - diz. E, virando a cabeça, ordena: - Sargento Lituma, esconda os cavalos.

- Sim senhor, tenente - diz alguém, atrás do cerro. Ouve ruídos de cascos. Em seguida, o silêncio.

- Assim é que eu gosto - diz Jamaiquino.

- É preciso ser obediente. Muito bem, general.

Bravo, comandante. Felicito-o, capitão. Não saia dali. Eu darei o aviso.

O tenente mostra-lhe o punho e desaparece entre as pedras. Jamaiquino entra no tambo. Os olhos da mulher estão cheios de ódio.

- Traidor - murmura. - Veio com a polícia. Maldito!

- Que educação, meu Deus, que educação a sua, Dona Mercedinhas! Não vim com a polícia. Vim só. Me encontrei aqui com o tenente. A senhora sabe.

- Numa não virá - diz a mulher. - E os polícias levarão você de novo   para a cadeia. E quando sair, Numa vai matar você.

- A senhora tem maus sentimentos, Dona Mercedinhas, não tem dúvida. Que coisas está me desejando!

- Traidor - repete a mulher;   conseguiu sentar-se e se mantém muito tesa. - Você pensa que Numa é burro?

- Burro? Nem um pouco. É um papagaio de tão esperto. Mas não se desespere, Dona Mercedinhas. Tenho certeza que virá.

- Não virá. Ele não é como você. Tem amigos. Eles lhe avisarão que a polícia está aqui.

- A senhora acredita? Eu não acredito. Não terão tempo. A polícia veio pelo outro lado, por trás dos cerros. Eu atravessei o areal sozinho. Em todos os povoados, perguntava: "Dona Mercedinhas continua no tambo? Saí agora da prisão e vou lá torcer o seu pescoço". Mais de vinte pessoas devem ter corrido a avisar o Numa.

Então, continua pensando que ele não virá? Meu Deus, que cara está fazendo, Dona Mercedinhas!

- Se acontecer alguma coisa ao Numa balbucia a mulher, rancorosamente -, você vai lamentar isso por toda vida, Jamaiquino.

O homem encolhe os ombros. Acende um cigarro e começa a assobiar. Depois, vai até o balcão, pega um lampião e o acende. Pendura-o em um dos carriços que fazem de porta.

- Está ficando noite - diz. - Venha aqui, Dona Mercedinhas. Quero que Numa veja a senhora sentada na porta, esperando. Ah, é verdade! A senhora não pode se mexer.

Me perdoe, sou muito esquecido.

Abaixa-se e a levanta nos braços. Deixa-a na areia à frente do tambo. A luz do lampião cai sobre a mulher e suaviza a pele de seu rosto: parece mais jovem.

- Por que você faz isto, Jamaiquino? - A voz de Dona Mercedinhas é, agora, fraca.

- Por quê? - diz Jamaiquino. - A senhora nunca esteve na prisão, não é mesmo, Dona Mercedinhas? Os dias vão passando e a gente não tem nada pra fazer. A gente se aborrece muito ali, eu lhe garanto. E se passa muita fome. Escute, estava me esquecendo de um detalhe. Não pode ficar de boca aberta, não vá se por a dar gritos quando Numa chegar. E, depois, até podia engolir uma mosca.

Ri. Procura e encontra um pedaço de pano. com ele, venda meio rosto de Dona Mercedinhas. Examina-a por um bom tempo, divertido.

- Me dê licença de dizer que assim ficou com um jeito muito gozado, Dona Mercedinhas. Não sei com que se parece.

Na escuridão do fundo do tambo, o Jamaiquino levanta-se como uma serpente: elasticamente e sem ruído. Permanece inclinado sobre si mesmo, as mãos apoiadas no balcão.

Dois metros adiante, no cone de luz, a mulher está rígida, o rosto para a frente, como que cheirando o ar: ela também ouviu. Foi um ruído leve mas muito claro, vindo da esquerda, que se sobrepôs ao canto dos grilos. Brota outra vez, mais longo: os ramos do bosquezinho estalam e se quebram, algo se aproxima do tambo. "Não está só", sussurra o Jamaiquino. "São vários". Enfia a mão no bolso, tira o apito e o coloca entre os lábios. Espera, sem se mexer. A mulher se agita e o Jamaiquino pragueja entre os dentes. Vê que ela se retorce no lugar e mexe a cabeça como um pêndulo, procurando livrar-se da venda. O ruído parou: "Já estará na areia, que abafa os passos? A mulher tem o rosto virado para a esquerda, e seus olhos, como os de um iguana esmagado, saem das órbitas. "Já os viu", murmura o Jamaiquino. Coloca a ponta da língua no apito: o metal é cortante. Dona Mercedinhas continua mexendo a cabeça e grunhe com angústia. A cabra solta um balido e o Jamaiquino se agacha. Uns segundos depois vê uma sombra que desce sobre a mulher e um braço nu que se estende até a venda. Sopra com todas as suas forças ao mesmo tempo em que se atira, num salto, contra o recém-chegado. O apito povoa a noite como um incêndio e se perde entre as injúrias que explodem à direita e à esquerda, acompanhadas de passos acelerados. Os dois homens caíram sobre a mulher. O tenente é rápido: quando o Jamaiquino se levanta, uma de suas mãos agarra Numa pelos cabelos e a outra sustenta o revólver junto à sua fonte. Quatro policiais, com fuzis, cercam os dois.

- Corram! - grita o Jamaiquino para os policiais. - Os outros estão no bosque. Rápido! Vão escapar. Rápido!

- Parados! - grita o tenente. Não tira os olhos de cima de Numa, que, com o rabo do olho, tenta localizar o revólver. Parece sereno; as mãos caídas ao lado do corpo.

- Sargento Lituma, amarre-o.

Lituma larga o fuzil no chão e desenrola a corda que leva na cintura. Amarra Numa pelos pés e, em seguida, algema-o. A cabra aproximouse. Depois de cheirar as pernas de Numa, começa a lambê-las, suavemente.

- Os cavalos, sargento Lituma.

O tenente mete o revólver no coldre e abaixa-se até a mulher. Tira-lhe a venda e as amarras. Dona Mercedinhas levanta-se, afasta a cabra com um tapa no lombo e aproxima-se de Numa. Passa-lhe a mão pela testa, não diz nada.

- Que fez em você? - pergunta Numa.

- Nada - responde a mulher. - Você quer fumar?

- Tenente- insiste o Jamaiquino. -O senhor já percebeu que, ali, a poucos metros, no bosque, estão os outros? Não ouviu? Devem ser três ou quatro, pelo menos. Que está esperando para mandar buscá-los?

- Silêncio, negro - diz o tenente, sem olhar para ele. Risca um fósforo e acende o cigarro que a mulher pôs na boca de Numa, que começa a chupá-lo, com longas tragadas, jogando a fumaça pelo nariz. - Vim só para buscar este aqui. Ninguém mais.

- Está bem - diz o Jamaiquino. - Pior para o senhor se não conhece o seu ofício. Eu já fiz o meu. Estou livre.

- Sim - diz o tenente. - Está livre.

- Os cavalos meu tenente - diz Lituma. Ele segura pelas rédeas cinco animais.

- Ponha-o no seu cavalo, Lituma - ordena o tenente. - Vai com você.

O sargento e outro policial carregam Numa e, depois de desamarrarem seus pés, fazem-no sentar no cavalo. Lituma monta atrás dele. O tenente aproxima-se dos cavalos e pega as rédeas do seu.

- Escute, tenente, eu vou com quem?

- Você? - diz o tenente, já com um pé no estribo. - Você?

- Sim - diz o Jamaiquino. - Quem senão eu?

- Você está livre - diz o tenente. - Não precisa vir conosco. Pode ir para onde quiser.

Lituma e os outros policiais, de cima dos seus cavalos, riem.

- Que brincadeira é essa?- diz o Jamaiquino. - Treme-lhe a voz. - Não vai me deixar aqui, não é verdade, meu tenente? O senhor está ouvindo esses ruídos ali no bosque. Eu me comportei bem. Fiz o que devia. Não pode fazer isso comigo.

- Se sairmos logo, sargento Lituma - diz o tenente -, chegaremos a Piúra ao amanhecer. Pelo areal é preferível viajar à noite. Os animais cansam menos.

- Meu tenente - grita o Jamaiquino; segurou as rédeas do cavalo do oficial e as sacode, frenético. - O senhor não vai me deixar aqui! Não pode fazer uma coisa dessas!

O tenente tira um pé do estribo e empurra o Jamaiquino para longe.

- Teremos que galopar algumas vezes - diz o tenente. - Acha que vai chover, sargento Lituma?

- Não acredito, meu tenente. O céu está limpo.

- Não pode ir sem mim! - Clama o Jamaiquino, berrando.

Dona Mercedinhas começa a rir, às gargalhadas, segurando a barriga.

- Vamos - diz o tenente.

- Tenente! - grita o Jamaiquino. - Tenente, eu lhe imploro!

Os cavalos afastam-se, devagar. Jamaiquino olha-os, atônito. A luz do lampião ilumina seu rosto descomposto. Dona Mercedinhas continua rindo estrondosamente. De repente, pára. Levanta as mãos à boca, como se fossem uma buzina,

- Numa! - grita. - Levarei frutas para você nos domingos.

Depois, volta a rir, muito alto. No bosquezinho brota um rumor de ramos e folhas secas que se quebram.

 

                        O Avô

 

Cada vez que estalava um raminho, ou coaxava uma rã, ou vibravam os vidros da cozinha no fundo da horta, o velhinho saltava com agilidade de seu assento improvisado, uma pedra chata, e espiava ansiosamente entre a folhagem. Mas o menino não aparecia. Através das janelas da sala, abertas para a pérgula, via em troca as luzes do candelabro, aceso havia pouco, e sob elas sombras movediças que deslizavam de um lado para o outro, com as cortinas, lentamente. Via pouco desde moço, de modo que eram inúteis seus esforços para comprovar se jantavam ou se aquelas sombras inquietas vinham das árvores mais altas.

Voltou a sentar-se e esperou. Na noite passada havia chovido e da terra e das flores desprendia-se um agradável cheiro a umidade. Mas os insetos se multiplicavam e os gestos desesperados de seu Eulógio em torno do rosto não conseguiam evitá-los: ao seu queixo trêmulo, à sua testa e até às bordas de suas pálpebras, chegavam a cada instante picadas invisíveis, mordendo-lhe a carne.

O entusiasmo e a excitação que mantiveram seu corpo disposto e febril durante o dia haviam declinado e ele agora sentia cansaço e uma ponta de tristeza. Sentia frio, incomodava-o a escuridão do vasto jardim e o atormentava a idéia persistente, humilhante, de alguém, talvez a cozinheira ou o mordomo, que de súbito o surpreendesse em seu esconderijo. "Que está fazendo na horta a esta hora, seu Eulógio?" E viriam seu filho e sua nora, convencidos de que estava louco. Sacudido por um tremor nervoso, voltou a cabeça e adivinhou entre os canteiros de crisântemos, de nardos e de roseiras o estreito caminho que chegava à porta falsa contornando o pombal.

Tranqüilizou-se um pouco, lembrando ter comprovado três vezes que a porta estava fechada, passado o ferrolho, e que em alguns segundos podia escapar para a rua sem ser visto.

"E se já tivesse vindo?", pensou, preocupado. Porque houve um instante, poucos minutos depois de haver entrado cautelosamente em sua casa, pela passagem quase esquecida da horta, em que perdeu a noção do tempo e permaneceu talvez adormecido. Só reagiu quando o objeto que agora acariciava sem saber se desprendeu de suas mãos e bateu-lhe na coxa. Mas era impossível. O menino não podia ter atravessado a horta ainda, porque seus passos assustados o teriam despertado, ou o pequeno, ao ver o avô, encolhido, adormecido justamente à beira do caminho que deveria conduzi-lo à cozinha, teria gritado.

Essa reflexão animou-o. O vento soprava menos forte, seu corpo se acomodava ao ambiente, havia deixado de tremer. Apalpando os bolsos do casaco, encontrou o corpo duro e cilíndrico da vela que comprou naquela tarde no armazém da esquina. Deliciado, o velhinho sorriu na penumbra: lembrava-se do gesto de surpresa da vendedora. Permaneceu muito sério, pisando com elegância, batendo levemente e em círculo seu longo bastão encastoado em metal, enquanto a mulher fazia desfilar, sob seus olhos, círios e velas de diversos tamanhos. "Esta", disse ele, com um gesto rápido que pretendia demonstrar desagrado pela tarefa que cumpria. A vendedora insistiu em embrulhála, mas seu Eulógio não aceitou e saiu da venda apressadamente. O resto da tarde esteve no Clube Nacional, fechado no pequeno salão de voltarete onde nunca havia ninguém. Apesar disso, tomando extremos cuidados para evitar a solicitude dos garçons, fechou a porta a chave. Logo, comodamente afundado numa poltrona de estranha cor vermelha, abriu a maleta que trazia e tirou dela o precioso pacote. Ela vinha envolta em seu belo cachecol de seda branca,, precisamente aquele que usava na tarde do achado.

Na hora mais cinzenta do crepúsculo havia tomado um táxi, ordenando ao motorista que circulasse pelos arrabaldes da cidade: corria uma deliciosa brisa morna, e a visão meio gris, meio avermelhada do céu seria mais enigmática em campo aberto. Enquanto o carro corria suave pelo asfalto, os olhinhos vivos do velho, único sinal de agilidade em seu rosto flácido, desdobrado em bolsas, deslizavam distraidamente sobre a borda do canal que acompanhava a estrada, quando de repente viu a coisa.

- Pare! - disse, mas o motorista não o escutou. - Pare! Pare!

Quando o carro parou e recuou até o monte de pedras, seu Eulógio comprovou que se tratava, de fato, de uma caveira. Tomando-a nas mãos, esqueceu a brisa e a paisagem e estudou minuciosamente, com ansiedade crescente, essa dura, tersa e hostil forma impenetrável, despojada de carne e de pele, sem nariz, sem olhos, sem língua.

Era pequena e o velho se sentiu inclinado a crer que era de um menino. Estava suja, empoeirada, e feria seu crânio liso uma abertura do tamanho de uma moeda, com os bordos lascados. O orifício do nariz era um triângulo perfeito, separado da boca por uma ponte delgada e menos amarela que o queixo. Distraiu-se passando um dedo pelas órbitas vazias, cobrindo o crânio com a mão em forma de barrete, ou introduzindo seu punho na cavidade do fundo, até apoiá-lo em seu interior: então, empurrando um nó no dedo pelo triângulo e outro pela boca, à maneira de uma larga e incisiva lingüeta, imprimia à mão movimentos sucessivos, e se divertia muito imaginando que aquilo estava vivo.

Por dois dias ele a guardou numa gaveta da cômoda, na maleta de couro, envolta cuidadosamente, sem revelar a ninguém o achado. Na tarde seguinte, permaneceu no quarto, passeando nervosamente entre os móveis opulentos de seus antepassados. Quase não levantava a cabeça: era como se examinasse com profunda devoção e um pouco de pavor os desenhos sangrentos e mágicos do círculo central do tapete, mas nem sequer os via. No começo ficou indeciso, preocupado: podiam surgir complicações de família, talvez se rissem dele. Essa idéia o indignou e, angustiado, sentiu vontade de chorar. A partir desse instante o projeto se afastou uma só vez de sua mente: foi quando, de pé, diante da janela, viu o pombal escuro, cheio de buracos, e lembrou que em certa época aquela casinha de madeira com muitas portas não ficava vazia, mas povoada de bichinhos cinzentos e brancos que bicavam incessantemente, riscando toda a madeira, e que às vezes voavam sobre as árvores e as flores da horta. Pensou com saudade no quanto eram frágeis e carinhosos: confiantes, vinham pousar em sua mão, onde sempre lhes dava alguns grãos, e quando fazia pressão em seus pequenos corpos eles viravam os olhos e eram sacudidos por um rápido tremor. Depois não pensou mais nisso. Quando o mordomo veio anunciar que estava servido o jantar, já havia tomado a decisão. Naquela noite dormiu bem. Na manhã seguinte esqueceu-se de que havia sonhado que uma perversa fila de grandes formigas vermelhas invadia subitamente o pombal e causava intranqüilidade entre os pombos, enquanto ele, de sua janela, observava a cena com um binóculo. Imaginara que limpar a caveira seria trabalho rápido, mas se enganou. O pó, o que havia acreditado ser pó e era talvez excremento por seu odor picante, mantinha-se soldado às paredes internas e brilhava como uma lâmina de metal na parte posterior do crânio. À medida que a seda branca do cachecol cobria-se de manchas cinzentas, sem que desaparecesse a capa de sujeira, crescia a excitação de seu Eulógio. Em certo momento, indignado, atirou longe a caveira, mas antes que ela parasse de rolar arrependera-se e estava fora do seu assento, engatinhando pelo chão até alcançá-la e levantá-la com cuidado. Pensou então que a limpeza seria possível com alguma substância gordurosa. Por telefone pediu à cozinha uma lata de azeite e esperou na porta o garçom, de quem arrancou a lata das mãos com violência, sem prestar atenção ao olhar desconfiado que percorreu o quarto por cima dos seus ombros. Cheio de inquietação empapou o cachecol no azeite e, a princípio com suavidade, depois acelerando o ritmo, raspou até o desespero. Depressa percebeu entusiasmado que o remédio era eficaz; uma tênue chuva de pó caiu aos seus pés, e ele nem sequer notava que o azeite ia umedecendo também os punhos da camisa e a manga do seu casaco. De repente, pondo-se de pé em um pulo, admirou a caveira, que mantinha sobre a própria cabeça, limpa, resplandecente, imóvel, com uns pontinhos como de suor sobre a ondulante superfície dos pômulos.

Envolveu-a de novo, amorosamente; fechou a maleta e saiu do Clube Nacional. O carro que tomou na Praça San Martin deixou-o perto de sua casa, em Orrantia. Havia anoitecido. Parou um pouco, na fria penumbra da rua, temeroso de que a porta estivesse fechada. Nervoso, esticou o braço e suspirou de felicidade ao notar que a maçaneta girava e a porta cedia com um curto rangido.

Nesse instante ouviu vozes na pérgula. Estava tão concentrado que até havia esquecido o motivo desse movimento febril. As vozes, a agitação, foram tão imprevistos que seu coração parecia um balão de oxigênio ligado a um moribundo. Seu primeiro impulso foi agachar-se, mas o fez de mau jeito, resvalou numa pedra e caiu de bruços.

Sentiu uma dor aguda na testa e na boca o sabor desagradável de terra molhada, mas não fez qualquer esforço para levantar-se e continuou ali, meio sepultado pelas ervas, respirando cansadamente, tremendo. Na queda tivera tempo de levantar a mão que segurava a caveira, de modo que ela se manteve no ar, a poucos centímetros do chão, ainda limpa.

A pérgula estava a uns cinqüenta metros do seu esconderijo, e seu Eulógio ouvia as vozes como um delicado murmúrio, sem distinguir o que diziam. Levantou-se com dificuldade. Olhando, viu então sob os galhos das grandes macieiras, cujas raízes tocavam a base da parede da sala, uma silhueta clara e esbelta e compreendeu que era seu filho. Junto a ele havia outra, mais nítida e menor, reclinada com certo abandono. Era a mulher. Piscando, esfregando os olhos, tentou, angustiadamente, mas em vão, enxergar o menino. Então, ouviu-o rir: um riso cristalino de criança, espontâneo, integral, que atravessava o jardim como um animalzinho. Não esperou mais: tirou a vela do bolso, apalpando juntou gravetos, torrões e pedrinhas, e trabalhou até sustentar a vela sobre a pedra, que colocou, como um obstáculo no meio do caminho. Em seguida, com muita delicadeza, para evitar que perdesse o equilíbrio, colocou em cima a caveira. Tomado de grande excitação, unindo suas pestanas ao maciço crânio azeitado, alegrou-se: o tamanho era perfeito, pelo orifício assomava o pontinho branco da vela, como um nardo. Não pôde continuar observando. O pai havia elevado a voz e, embora suas palavras fossem ainda incompreensíveis, entendeu que se dirigia ao menino. Houve como uma troca de palavras entre as três pessoas: a voz grossa do pai, cada vez mais enérgica, o rumor melodioso da mulher, os curtos gritinhos descontrolados do neto. O ruído parou de repente. O silêncio foi brevíssimo: o neto rompeu-o, gritando: É isso mesmo: hoje acaba o castigo. Você disse sete dias e hoje acaba. Amanhã não vou mais. com as últimas palavras, escutou passos precipitados.

Vinha correndo? Era o momento decisivo. Seu Eulógio venceu a aflição que o estrangulava e concluiu seu plano. O primeiro fósforo só produziu um fugaz fio azulado.

O segundo pegou bem. Queimando as unhas, mas sem sentir dor, manteve-o junto à caveira segundos depois da vela já acesa. Vacilou, porque o que via não era exatamente o que havia imaginado, quando uma labareda súbita cresceu entre suas mãos, crepitando como folhas secas pisadas, e então a caveira ficou toda iluminada, lançando fogo pelas órbitas, pelo crânio, pelo nariz e pela boca. "Acendeu toda", exclamou maravilhado. Ficou imóvel e repetia como um disco "foi o azeite, foi o azeite", estupefato, enfeitiçado ante a fascinante caveira envolta pelas chamas.

Justamente nesse instante escutou o grito. Um grito selvagem, um alarido de animal atravessado por muitíssimas lanças. O menino estava diante dele, as mãos no ar, os dedos crispados. Pálido, trêmulo, tinha os olhos e a boca muito abertos e estava agora mudo e rígido, mas sua garganta, independentemente, fazia uns estranhos ruídos roucos. "Me viu, me viu", dizia seu Eulógio, em pânico. Mas olhando-o entendeu logo que não o havia visto, que seu neto não podia ver outra coisa senão aquela cabeça chamejante. Seus olhos estavam imobilizados, com um terror profundo e eterno retratado neles. Tudo havia sido simultâneo: a labareda, o grito, a visão dessa figura de calças curtas subitamente tomada de horror. Pensava entusiasmado que os acontecimentos tinham se desenrolado de modo mais perfeito que em seu plano, quando sentiu vozes e passos que vinham e então, já sem se preocupar em não fazer ruído, deu meia-volta e, aos pulos, afastando-se do caminho, destruindo com os pés os canteiros de crisântemos e roseiras, que só entrevia à medida que os alcançavam os reflexos das chamas, percorreu o espaço que o separava da porta. Atravessou-a junto com o grito da mulher, também estrondoso, mas menos sincero que o do neto. Não parou, não voltou a cabeça. Na rua, um vento frio despenteou seus poucos cabelos, mas ele não o notou e seguiu caminhando, devagar, roçando com o ombro o muro da horta, sorrindo satisfeito, respirando melhor, mais tranqüilo.

 

[1] Cabrito, Pardal, Manhoso e Lalo - apelidos, no original, Choto, Chingolo, Manuco e Lalo, respectivamente, abrasileirados para que o leitor alcançe o seu significado: apelidos de meninos, alunos dos primeiros anos escolares.

[2] Toffee, uma bala feita à base de chocolate e café, também conhecida no Brasil.

[3] Babeiro, o colarinho duro dos maristas.

[4] Excelcior, Ricardo Palma e Lauro, cinemas de Lima.

[5] Cristales, garrafas de cerveja da marca   Cristal.

[6] Torre Tagle - segundo palácio governamental, que se começou a construir em 1635: seu nome é uma homenagem a José Bernardo Tagle y Portocarrero, Marquês de Torre Tagle.

[7] Anticuchos ,- espeto de carne mista.

[8] Sillau - molho oriental, snoyo

[9] Zorros, outro grupo de garotos.

[10] No original pajarracos, que em espanhol significa pássaro grande e desconhecido ou homem astuto. Llosa, como n'A Casa Verde, reúne grupos de rapazes sob apelidos comuns; naquele caso, a turma era formada pelos inconquistáveis.

[11] Cachalote, outro grupo de rapazes.

[12] La Mugre, a sujeira.

[13] Tambo - do quíchua, pelo peruano: pouso albergue. Aurélio registra o vocábulo em seu Novo Dicionário.

 

 

                                                                                Mario Vargas Llosa  

 

                      

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