Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
OS CINCO E A CIGANITA
«Nada poderá suceder-lhes», dissera a tia Clara, comentando o facto de os Cinco ficarem sozinhos durante quinze dias de férias. Mas a tia Clara enganava-se. Tudo pode acontecer quando os Cinco ficam sozinhos!
E, desta vez, algo sucedeu também, porque, logo na manhã seguinte, o escritório da casa apareceu em desalinho, com as gavetas arrombadas. Alguém ali entrara com a intenção de roubar uns apontamentos do tio Alberto, referentes a importantíssimos estudos!
Depois a Zé e o Tim são raptados e recebe-se uma mensagem intimando a família a entregar um livro de apontamentos do cientista em troca da liberdade da petiza e do cão.
Que fazer? E qual será em toda a história o papel da suja e arisca ciganita que os pequenos conheceram na praia?
NOVAMENTE NO CASAL KIRRIN
A Maria José encontrava-se na estação de caminho de ferro à espera dos seus três primos. O Tim, o seu cão, estava com ela e abanava a cauda, muito nervoso. Sabia bem que iam chegar o Júlio, o David e a Ana, e por isso sentia-se grandemente satisfeito. Era muito mais animado quando os Cinco se encontravam reunidos.
— Lá vem o comboio, Tim! — exclamou a Zé. Ninguém lhe chamava Maria José, pois ela não respondia a quem assim a tratasse. Parecia um rapaz, com o cabelo encaracolado, muito curto, e usava calções e camisa à rapaz. Tinha a cara cheia de sardas e estava tão queimada que parecia uma cigana.
Ouviu-se o barulho distante duma locomotiva, e apareceu ao longe uma pequena nuvem de fumo branco. O Tim ladrava, continuando a abanar a cauda. Ele não gostava de comboios mas estava desejoso que chegasse aquele.
O comboio aproximava-se cada vez mais e parou em frente da estação de Kirrin. Mas muito antes de chegar àquela pequena plataforma, já haviam aparecido três cabeças a uma das janelas e três braços acenavam com entusiasmo. A Zé também acenou, mostrando um sorriso franco. A porta abriu-se, ainda o comboio mal tinha parado. Desceu um rapaz alto, que ajudou uma rapariguita a descer também. Depois apareceu um outro rapaz, não tão alto como o primeiro, segurando duas malas, uma em cada mão.
A Zé e o Tim foram ter com eles.
— Júlio! David! Ana! O comboio atrasou-se muito; estava a ver que nunca mais chegavam!
— Olá, Zé! Aqui estamos, finalmente! Para baixo, Tim, não me lambas todo!
— Viva, Zé! ó querido Tim! Estás tão simpático como das outras vezes.
— Rrrrr! — fez o Tim cheio de alegria, continuando às voltas, como doido, esbarrando com toda a gente.
— Trouxeram alguma das malas despachada? — perguntou a Zé. — Ou são só estas três?
— Desta vez não nos demoramos muito, infelizmente, — disse o David. — Só quinze dias! Mesmo assim é melhor do que nada.
— Não deviam ter ido para França um mês e meio, — disse a Zé, um tanto invejosa. — Vocês devem vir todos afrancesados.
O David riu-se e desatou a falar em francês, que para a Zé era o mesmo do que árabe. Ela nunca fora forte na disciplina de francês.
— Cala-te, — disse ela dando uma palmada amigável nas costas do primo. — Continuas o mesmo palerma. Estou tão contente por terem vindo! Kirrin parece triste e aborrecido sem vocês.
Apareceu um bagageiro com um carro de mão. O David voltou-se para o homem e começou a falar-lhe em francês fluente. Mas o bagageiro já conhecia o pequeno muito bem. — Não venha para cá com o seu latim, — disse o bagageiro. — Os meninos desejam que eu leve a bagagem para o Casal Kirrin?
— Sim, por favor, — disse a Ana. — Pára com isso, David. Não tens graça nenhuma.
— Deixa-o continuar, — pediu a Zé, dando o braço à Ana e ao David. — Estou encantada por os ter novamente comigo. A mãe está desejosa de os tornar a ver.
— Aposto que não se passa o mesmo com o tio Alberto, — disse o Júlio, enquanto atravessavam a estação, com o Tim a saltar à volta deles.
— O pai anda bastante bem disposto,— respondeu a Zé. — Sabem que ele esteve na América com a mãe, a fazer conferências e a ouvir conferências de outros cientistas. A mãe diz que por toda a parte os receberam com grandes honras e isso agradou-lhe.
O pai da Zé era um cientista brilhante, muito conhecido em todo o Mundo. Tornava-se, contudo, uma pessoa bastante difícil de aturar quando estava em família; era impaciente, distraído e tinha mau génio. Os pequenos eram amigos dele mas tinham-lhe um grande respeito. Davam sempre um suspiro de alívio quando ele se ausentava por alguns dias, pois sem a sua presença podiam fazer o barulho que lhes apetecesse, subir e descer
as escadas a correr e organizar as brincadeiras mais disparatadas.
— O tio Alberto estará em casa durante todo o tempo que aqui passarmos? — perguntou a Ana. No fundo ela tinha um certo medo do seu colérico tio.
— Não, — respondeu a Zé. — A mãe e o pai vão dar uma volta por Espanha; assim, ficaremos à vontade.
— Maravilhoso! — exclamou o David. —-Vamos andar em fato de banho durante todo o dia, se nos apetecer.
— E o Tim pode assistir às nossas refeições sem o mandarem para fora da sala quando estiver inquieto, — disse a Zé. — Esta semana tem acontecido isso a todas as refeições, só por querer apanhar as moscas que passam perto dele. O pai fica furioso cada vez que o Tim apanha uma mosca.
— Coitado, — disse a Ana, fazendo uma festa ao Tim. — Quando nós estivermos sozinhos podes apanhar as moscas que te apetecer.
— Rrrrm — fez o Tim, agradecido.
— Estas férias não teremos tempo para nenhuma aventura, — disse o David, cheio de pena, enquanto caminhavam para o Casal Kirrin. Viam-se papoilas vermelhas ao longo da estrada e lá longe brilhava o mar, tão azul como miosótis. — Só duas semanas e depois voltamos para o colégio! Temos de aproveitar o tempo. Tenciono tomar seis banhos de mar em cada dia.
Pouco depois estavam todos sentados à mesa do lanche, no Casal Kirrin,
com a tia Clara a servir-lhes os seus «scones» e um bolo que também era sua especialidade. Estava muito contente por tornar a ver os sobrinhos.
— Agora a Zé andará mais satisfeita, — disse a tia Clara, sorrindo para as quatro crianças cheias de apetite. — Nas últimas semanas tem andado muito cabisbaixa, parecendo uma ursinha. Queres mais um «scone», David? Tira dois de uma só vez.
— Boa ideia, — disse o David, servindo-se. — Ninguém faz bolos tão bem como a tia Clara. Onde está o tio Alberto?
— No escritório, — respondeu a tia. — Sabe que são horas do lanche e ouviu chamá-lo mas naturalmente está mergulhado em qualquer leitura. Vou buscá-lo. Estou convencida de que ficaria sem comer durante todo o dia se eu não o arrastasse até à sala de jantar.
— Lá vem ele, — disse o Júlio, ouvindo uns passos já seus conhecidos, dirigindo-se para a sala de jantar. A porta abriu-se com violência. O tio Alberto apareceu com um jornal na mão, franzindo o sobrolho. Parecia que nem dera pelos sobrinhos.
— Olha para isto, Clara! — gritou ele. — Olha o que vem no jornal! Exactamente o que eu ordenei que não se publicasse! Que idiotas! Que imbecis! Que...
— Alberto! Que aconteceu? — interrompeu a tia Clara. — Olha, estão aqui os pequenos; chegaram agora mesmo.
Mas o tio Alberto nem reparava em nenhum dos quatro pequenos.
Olhava furioso para o jornal.
— Agora vamos ter a casa invadida pelos jornalistas, querendo entrevistar-me, desejosos de saber tudo sobre as minhas novas teorias! — exclamou ele, começando a gritar. — Repara no que vem aqui escrito: «O eminente cientista realiza todas as experiências e trabalhos em sua casa, na vila Kirrin. Ali estão todos os seus livros de apontamentos agora acrescentados com mais dois, em resultado da sua visita à América. Também ali, na sua vivenda, estão os seus diagramas», etc, etc. Já te digo, Clara, vamos ter aqui centenas de jornalistas.
— Não vamos nada, querido, — respondeu-lhe a tia Clara. — De qualquer modo, dentro de pouco tempo teremos partido para Espanha. Agora senta-te e toma o teu chá. E não podes dizer uma palavra de boas-vindas ao Júlio, David e Ana?
O tio Alberto sentou-se, resmungando. — Não sabia que eles vinham hoje, — disse o tio Alberto, servindo-se duma fatia de bolo. — Devias ter-me prevenido, Clara.
— Disse-te três vezes ontem e mais duas esta manhã, — observou a tia Clara.
A Ana tocou no braço do tio, que estava sentado ao lado dela. — Continua o mesmo, tio Alberto. Nunca, nunca se lembra quando nós chegamos. Quer que nos vamos embora outra vez?
O tio olhou para a pequena e sorriu. As suas más disposições nunca duravam muito tempo. Também se riu para o Júlio e para o David. — Aqui estamos todos mais uma vez! — disse ele. — Acham que conseguem desembaraçar-se dos jornalistas enquanto eu estiver ausente com a vossa tia?
— Conseguimos! — disseram os pequenos em coro.
— Farei frente a todos, — afirmou o Júlio. - Com a ajuda do Tim. Vou escrever numa tabuleta: "Cuidado, cão muito perigoso».
— Rrrrm, — fez o Tim, encantado, começando a bater com a cauda no chão. Passou uma mosca perto do nariz e o Tim apanhou-a com a língua. O tio Alberto franziu o sobrolho.
— Quer mais um bolo, pai? — perguntou a Zé, para o distrair. — Quando partem para Espanha?
— Amanhã, — disse a mãe, firmemente.
— Não te ponhas com essa cara, Alberto. Bem sabes que está tudo combinado há várias semanas e que tu precisas dumas férias; se não partimos amanhã todos os nossos planos ficam transtornados.
— Tu devias ter-me dito que era amanhã,
— protestou o marido, parecendo indignado.
— Quer dizer que tenho de arranjar todos os meus apontamentos, mandá-los...
— Alberto, eu disse-te centenas de vezes que partíamos no dia três de Setembro, — interrompeu a tia Clara, ainda com mais firmeza. — E eu também quero ter umas férias. Os quatro pequenos ficarão aqui muito bem com o Tim, e eles gostam muito de ficar sozinhos. O Júlio agora tem dezasseis anos e pode resolver qualquer coisa que apareça.
O Tim tentou por duas vezes apanhar uma certa mosca e o tio Alberto enfureceu-se. — Se esse cão faz isso outra vez... — começou a dizer, mas a tia Clara interrompeu-o logo.
— Vês?! Estás com os nervos completa-mente arrasados, querido Alberto. Vai fazer-te bem viajar. E os pequenos vão passar quinze dias deliciosos. Nada lhes poderá acontecer; por isso prepara-te para partir amanhã, com óptima disposição.
Nada podia acontecer? A tia Clara enganava-se. Tudo podia acontecer quando os Cinco ficavam sozinhos!
UM ENCONTRO NA PRAIA
Foi realmente muito difícil conseguir que o tio Alberto partisse no dia seguinte. Esteve fechado no escritório até ao último momento, às voltas com os seus preciosos livros. O táxi chegou, começando a buzinar em frente do portão. A tia Clara, que estava pronta havia muito tempo, bateu à porta do escritório.
— Alberto! Abre a porta! Tens que vir! Se não partimos já, perdemos o avião.
— Só mais um minuto, — gritou-lhe o tio Alberto.
A tia Clara olhou para os quatro pequenos, desesperada.
— É a quarta vez que grita: «Só mais um minuto», — disse a Zé. O telefone tocou naquele momento e a Zé atendeu.
— É sim, — disse ela. — Ele foi para Espanha e não deixou o endereço. Como? Um momento, vou perguntar à minha mãe.
«É do «Diário de Notícias», — disse a Zé. — Querem mandar um jornalista para entrevistar o pai. Disse-lhes que tinha partido para Espanha e eles perguntaram-me se podem publicar a notícia.
— Claro que podem, — afirmou a mãe, satisfeita. — Vindo a notícia no jornal já ninguém andará a telefonar ou a maçar-vos. Diz-lhes que sim, Zé.
A Zé disse que podiam publicar a notícia da viagem do pai, enquanto o táxi buzinava cada vez com mais força e o Tim ladrava sem parar. A porta do escritório abriu-se de repente e o tio Alberto apareceu, furioso.
— Porque não me deixam trabalhar em paz, sabendo que estou a fazer uma coisa importante? — começou ele. Mas a tia Clara puxou-o por um braço até à entrada. Meteu-lhe o chapéu numa das mãos, e não lhe deu nada para a outra pois ele já segurava uma grande caixa.
— Agora não estás a fazer nenhum trabalho importante, vais sair para uma viagem de férias, — disse ela. — Ó Alberto, estás pior do que nunca. Que caixa é essa que trazes na mão? Com certeza não levas trabalho para fazer lá fora!
O táxi buzinou uma vez mais e o Tim começou a ladrar mesmo ao pé do tio Alberto. O telefone tocava sem descanso.
— Deve ser outro jornalista à sua procura, pai — disse a Zé. — É melhor ir-se embora depressa!
Se realmente foi esta notícia que decidiu o tio Alberto a partir, ninguém soube ao certo. Mas a verdade é que em menos de dois segundos ele estava sentado no táxi, ainda agarrado à sua caixa e dizendo ao motorista tudo quanto pensava de mau sobre as pessoas que não paravam de tocar a buzina.
— Adeus, meus queridos filhos, — disse a tia Clara, satisfeita.
— Não arranjem nenhum sarilho. Até que enfim, conseguimos partir! O táxi desapareceu numa curva da estrada. — Pobre mãe! — exclamou a Zé. — É sempre assim, quando vão para férias. Uma coisa é certa: NUNCA me casarei com um cientista!
Todos deram um suspiro de alívio ao pensar que o tio Alberto tinha partido. Quando andava cansado por trabalhar de mais, tornava-se insuportável.
— Temos de desculpar uma pessoa com um cérebro como o dele, — disse o Júlio. — Quando o nosso professor de ciências lá do colégio fala do tio Alberto quase chega a fazer uma vénia. E o pior é que ele espera que eu também seja brilhante, só porque tenho um tio que é um génio.
— Mas nem ele sonha como é difícil conviver com pessoas inteligentes, — disse o David. — Bem, estamos finalmente entregues só a nós, não contando com a Joana. Espero que ela nos prepare umas refeições formidáveis !
— Vamos ver se ela tem lá agora alguma coisa para nós comermos, — disse a Zé. — Estou com fome.
— Também eu, — disse logo o David. Foram até à cozinha e chamaram pela Joana.
— Não precisam de me dizer ao que vieram,
— disse a cozinheira Joana, sorridente e bem-humorada. — Mas fiquem sabendo que a despensa está fechada à chave.
— Ó Joana, como foste capaz de fazer uma coisa dessas? — disse o David, experimentando abrir a porta da despensa. Claro que estava realmente fechada à chave.
— Fui capaz, sim senhor. É a única coisa a fazer quando estão os quatro meninos em casa, já não falando nesse canzarrão sempre esfomeado, — respondeu a Joana, amassando uma porção de massa com toda a força. — Nas férias passadas guardei para o dia seguinte um empadão de carne, vários pastéis e uma torta de cerejas, e quando voltei das compras tudo tinha desaparecido das prateleiras da despensa.
— Julgámos que tinhas deixado aquilo tudo para a nossa ceia, — disse o Júlio, fingindo-se muito sentido.
— Pois desta vez não voltarão a ter nenhuma oportunidade para julgar uma coisa dessas, — afirmou a Joana. — A porta da despensa vai continuar sempre fechada. Talvez a abra uma ou outra vez para lhes dar umas guloseimas. Mas sou eu quem a abre e não os meninos.
Os quatro pequenos saíram da cozinha, desapontados. O Tim seguia-os. — Vamos à praia tomar banho, — propôs o David. — Se quero tomar seis banhos por dia tenho de começar já, se não o tempo não chega.
— Vou levar umas ameixas, — disse a Ana. — E espero que o homem dos gelados apareça pela praia. Não ficaremos à fome.
Em breve estavam estendidos na areia, em fato de banho. Os rapazes usavam só calções e estavam queimadíssimos.
Arranjaram uma espécie de covas para se sentarem confortàvelmente. O Tim também cavou uma
para ele.
— Não percebo por que motivo o Tim se incomoda a arranjar uma cova, — disse a Zé. — Mais tarde ou mais cedo acaba sempre por vir para a minha! Não é, Tim?
O Tim abanou a cauda e começou a escavar com tanta força que ficaram todos cheios de areia. — Tim, pára com isso! — disse a Ana, cuspindo a areia que lhe entrara para a boca. — Acabo de fazer a minha cova e tu estás a enchê-la de areia outra vez!
O Tim fez uma pausa, para dar uma lambedela à Ana e depois continuou a escavar com as patas, fazendo uma cova realmente muito grande. Deitou-se lá dentro, arquejante parecendo sorrir.
«Estás outra vez a rir, — disse a Ana. - Nunca vi um cão que se ria como este. Gosto tanto de que estejas connosco, Tim!
— Rrrrm! — fez o Tim, delicadamente, querendo dizer que também gostava de estar com os pequenos. Depois abanou a cauda, lançando uma chuva de areia sobre o David.
Todos se acomodaram nas suas covas.
- Primeiro vamos comer as ameixas e depois tomamos banho, — disse o David. — Passa-me uma, Ana.
Duas pessoas caminhavam vagarosamente ao longo da praia. O David observou-as com os olhos semicerrados. Tratava-se dum homem e dum rapaz, ambos andrajosos.
O rapaz vestia uns calções rasgados e sujos e uma camisola nojenta. Estava descalço.
O homem ainda apresentava pior aspecto. Curvava-se enquanto caminhava e arrastava um pé. Usava um bigode ralo e tinha uns olhos pequenos e vivos que sondavam a praia de ponta a ponta. Ambos caminhavam pela beira do mar e com certeza andavam à procura de alguma coisa que tivesse ficado na praia quando a maré descera. O rapaz levava debaixo do braço alguns paus para lenha, uma caixa velha e um sapato molhado.
«Que conjunto! — disse o David ao irmão. — Espero que não se aproximem. Parece que mesmo daqui lhes sinto o cheiro.
Os dois andrajosos foram até ao fim da praia e voltaram para trás. Depois, para enorme aborrecimento dos pequenos, foram em ziguezague até ao sítio onde eles estavam deitados nas suas covas e sentaram-se perto. Tim pôs-se a rosnar.
Chegou logo até aos pequenos um cheiro desagradável. O Tim continuou a rosnar. O rapaz fazia de conta que não dava pelo cão mas o homem parecia pouco à vontade.
— Vamos tomar banho, — disse o Júlio, aborrecido por aqueles dois desconhecidos se terem sentado tão perto. Tinham a praia toda para escolher, não precisavam de se sentar quase em cima de outras pessoas.
Quando voltaram do banho, o homem tinha-se ido embora mas o rapaz ainda lá estava, agora sentado dentro da cova da Zé.
— Sai daí, — disse a Zé, asperamente e sem cerimónias.
— Essa cova é minha e você bem o sabe.
— Quem vai ao mar perde o lugar, — respondeu o rapaz numa voz cantada. — Agora é minha!
A Zé baixou-se e puxou pelo rapaz, obrigando-o a sair da cova. Este levantou-se dum pulo, voltando-se com os punhos cerrados para a Zé.
O David correu em direcção a eles. — Pára, Zé; se alguém vai jogar à pancada, não és tu, sou eu, — disse. Depois voltou-se para o rapaz e gritou: — Fora daqui. Não és aqui preciso!
O rapaz, apanhando o David desprevenido, atirou-lhe um soco com a mão direita, na cara. O David ficou atordoado. Atirou também um soco que fez cair ao chão o rapaz esfarrapado.
— Cobarde! — gritou o rapaz, levantando a cabeça. — A bateres numa pessoa mais pequena do que tu! Posso brigar com o primeiro rapaz mas contigo não!
— Não podes brigar porque é uma rapariga. Não bates em raparigas!
— Essa é boa! — disse o rapaz andrajoso pondo-se em pé novamente, em posição de combate. — Eu também sou rapariga e por isso posso brigar com ela, não te parece?
A Zé e a rapariga maltrapilha ficaram frente a frente, querendo começar a briga. Eram extraordinariamente parecidas, ambas com o cabelo curto e encaracolado, caras queimadas e sardentas, e com um tal ar de mau-génio que o Júlio de repente desatou a rir às gargalhadas, separando-as com decisão.
— É proibido lutar! — disse ele. E depois voltando-se para a andrajosa, ordenou: — Vai-te embora! Estás a ouvir? Vá, desaparece da minha vista!
A pequena, que parecia cigana, fitou-o com insistência. Depois desatou a chorar e foi-se embora, soluçando e gritando.
«É uma rapariga às direitas, — disse o David, rindo-se da atitude dela. — No entanto merecia uma boa sova. Felizmente nunca mais a encontraremos.
Mas o David enganava-se, pois tornariam a encontrá-la!
UMA CARA NA JANELA
Mais uma vez os Cinco se instalaram nas suas covas. O David apalpou a cara. — Aquela maltrapilha deu-me um belo
soco, — disse ele um tanto admirado.
— Não percebo por que razão o Júlio não me deixou dar-lhe uma sova, — disse a Zé, amuada. — Ela sentou-se na minha cova de propósito, para me aborrecer. Que atrevida!
— As raparigas não se pegam à pancada, — disse o David. — Não sejas palerma, Zé. Bem sei que tu resolveste ser em tudo tão boa como um rapaz; não vestes como as raparigas e sobes às árvores tão bem como eu. Mas já vai sendo altura de mudares de ideias.
Este género de discurso não agradava nada à Zé.
— No entanto eu não desato a soluçar quando me batem, — respondeu ela, virando as costas ao David.
— Pois não, — concordou o David. — Já jogaste à pancada tantas vezes como qualquer rapaz. Estou arrependido por ter dado um soco àquela miúda. Nunca tinha batido numa rapariga e espero que tenha sido esta a última vez.
— Pois eu estou bem contente por lhe teres dado um soco, — respondeu a Zé.
— É uma criatura nojenta. Se a encontrar outra vez hei-de dizer-lhe o que penso sobre ela.
— Não vais fazer uma coisa dessas, — disse o David. — Pelo menos se eu estiver presente. Ela já teve o seu castigo quando a atirei ao chão.
— Deixem-se de discussões, vocês dois, — disse a Ana, atirando-lhes com um punhado de areia. — Zé, por amor de Deus não comeces com um dos teus ataques de génio. Não quero perder nem um dia destas duas semanas.
— Lá vem o homem do sorvete, — disse o Júlio, sentando-se e procurando o bolsinho impermeável dos seus calções de banho. — Vamos comprar um para cada um de nós.
— Béu! — fez o Tim, batendo com a cauda na areia. — Está bem, também compramos um para ti, — disse o David. — Embora não seja sensato tu comeres sorvete. Com uma lambedela, lá se vai todo. Naturalmente sabe-te a moscas.
O Tim engoliu o sorvete duma só vez e depois foi" para a cova da Zé, com esperanças de também lamber o dela. Mas a Zé afastou-o.
— Não, Tim, os sorvetes são mal empregados para ti! Não lambes o meu. Vai já para a tua cova. Estás a fazer-me um calor enorme.
O Tim saiu quase à força e foi meter-se na cova da Ana. Esta deu-lhe um bocadito do sorvete, mas o Tim continuou em frente dela, esperando que a pequenita lhe desse um pouco mais.
— Estás a derreter o meu sorvete com a tua respiração tão quente, — disse a Ana. — Agora vai para a cova do Júlio.
Os pequenos passaram a manhã calmamente. Como nenhum levava relógio, foram cedíssimo para casa, pedindo o almoço assim que chegaram. Mas a Joana mandou-os embora
— Então aparecem ao meio-dia para o almoço que é à uma hora?! — ralhou ela. — Ainda nem acabei de arrumar a casa.
— Parecia que já era uma hora, — disse a Ana, desapontada por ainda ter de esperar tanto tempo. Mas quando chegou a hora do almoço a Joana não desmentiu a sua fama de boa cozinheira.
«Carne assada, fiambre, beterrabas, chicória acabada de colher, tomates, pepinos, ovos cozidos, — ia nomeando a Ana, muito gulosa.
— Este género de almoço é o melhor que há para mim, — disse o David. — E a sobremesa?
— Está ali no aparador, — disse a Ana. — Salada de frutas e geleia. Ainda bem que estou cheia de apetite.
— Agora não dêem ao Tim nem carne assada nem fiambre, — avisou a Joana, voltando-se para a Zé. — Tenho lá dentro um belo osso para ele. Vem comigo, Tim!
O Tim sabia muito bem o que queria dizer «osso». Foi logo atrás da Joana. Pouco depois as crianças ouviam a Joana a falar com o cão, cheia de paciência, enquanto lhe dava o osso.
— A Joana é muito boa, — disse o David. — É como o Tim, que ladra mas não morde.
— Mas o Tim também sabe morder, — respondeu a Zé, servindo-se de três tomates ao mesmo tempo. — E as suas mordedelas já muitas vezes nos foram úteis.
Comiam com apetite, falando sobre as várias aventuras por que haviam passado, nas quais o Tim sempre se tornara muito necessário. Pouco depois apareceu o Tim.
— Já não tens nada a fazer aqui, meu amigo, — disse o David, olhando para os pratos vazios. — Não me digas que já roeste o osso todo!
O David acertara, por isso o Tim ali ficou, por baixo da mesa, com a cabeça entre as patas. Sentia-se feliz. Almoçara bem e estava com as pessoas de quem mais gostava.
— Estás a fazer-me cócegas com o teu pêlo, — disse a Zé, encolhendo os pés descalços. — Passem-me a beterraba, por favor.
— Como consegues tu comer mais beterrabas? — interrogou a Ana. — Já te serviste cinco vezes!
— São da minha horta, — disse a Zé. — Por isso posso comer as que me apetecer.
Depois do almoço foram deitar-se na areia até serem horas de tomar um novo banho. Todos se sentiam muito bem dispostos naquele dia quente de Verão.
A Zé ainda olhou em roda a ver se descobria a rapariga maltrapilha, mas ela não apareceu. A Zé teve uma certa pena.
Gostaria de lhe dizer umas coisas desagradáveis, mesmo que arranjasse nova briga.
Nessa noite estavam todos muito cansados quando foram para a cama. O Júlio bocejava de tal maneira quando a Joana apareceu com o cacau e biscoitos, que a cozinheira se ofereceu para fechar as portas e as janelas, antes de se deitar.
— Não, muito obrigado, — respondeu logo o Júlio. — Isso é com o homem da casa. Podes confiar em mim. Verificarei todas as portas e todas as janelas.
— Está bem, menino Júlio,—disse a Joana, indo à cozinha dar corda ao relógio e apagar o lume, para se deitar em seguida. Os pequenos também subiram para os quartos de dormir, com o Tim. O Júlio ficou a fechar as portas.
Ele era um rapaz com a noção das suas responsabilidades. A Joana bem sabia que não ficaria uma só janela aberta. A certa altura percebeu que ele tentava fechar a janelita da copa e por isso chamou-o.
— Menino Júlio! Essa janela está empenada e não se consegue fechar; mas não se importe pois é demasiado pequena para alguém poder entrar por ela.
— Está bem, — disse o Júlio, agradecido. Depois subiu as escadas. Deu mais um enorme bocejo e foi para o quarto onde dormia com o irmão, que também começou a bocejar.
As pequenas, no quarto ao lado, riam-se de os ouvir.
— Vocês dois, Júlio e David, com certeza que não conseguem sentir nenhum ladrão a meio da noite, — gritou-lhes a Ana. — Vão dormir como duas pedras.
— O Tim dá pelos ladrões, — respondeu o Júlio, lavando os dentes com força. — Isso diz-lhe respeito a ele e não a mim. Não é verdade, Tim?
— Rrrrm, — fez o Tim, saltando para cima da cama da Zé. Ele dormia sempre enroscado sobre os pés da sua dona. A tia Clara já desistira de proibir que o cão ficasse durante a noite sobre a cama da pequena. Segundo a Zé dizia, mesmo que ela concordasse com isso, o Tim nunca compreenderia tal coisa.
Ninguém esteve acordado por mais de cinco segundos. Nem disseram mais do que um sonolento «boa-noite».
O Tim soltou um pequeno latido e ajeitou a cabeça sobre os pés da Zé. Ele era pesado, mas a pequena não se importava. Fez-lhe uma festa, e ele quis lamber-lhe um dos pés por cima da roupa da cama. Gostava da Zé mais do que de qualquer outra pessoa.
A noite estava muito escura. Tinham-se formado umas nuvens espessas, encobrindo as estrelas. Não se ouvia mais do que o vento passando pelas árvores e o mar ao longe, na praia. Mas ambos faziam um barulho tão parecido que era difícil distingui-los um do outro.
Nem sequer se ouvia uma coruja a piar.
Então por que motivo acordou o Tim? Ele saltou da cama, silencioso como um gato, atravessando o quarto até à porta. Desceu as escadas e foi à entrada; ninguém o ouviu, pois estavam todos a dormir profundamente. O Tim parou na entrada, à escuta. Ele sabia que ouvira qualquer coisa e por isso ficou ali parado, como uma estátua. Alguém estava a trepar pela parede da casa. Ou seria uma ratazana?
A Ana apanhou um horrível susto.
No andar superior, a Ana, sem saber por que motivo, acordou naquele momento. Sentiu sede e-resolveu beber um pouco de água. Procurou a sua lanterna de algibeira, que deixara sobre a mesa de cabeceira, e acendeu-a.
A luz incidiu primeiro na janela e a Ana viu qualquer coisa que lhe fez apanhar um horrível susto. Desatou aos gritos, e atirou com a lanterna ao chão, cheia de medo. A Zé acordou imediatamente. O Tim correu pelas escadas acima.
— Júlio! — gritou a Ana. — Vem depressa! Vi uma cara na janela! Uma cara medonha e horrível, a olhar para mim!
A Zé correu para a janela acendendo a sua lanterna. Não viu nada de anormal. O Tim foi ter com a pequena. Cheirou o parapeito da janela e começou a rosnar.
— Parece-me que oiço alguém a correr pela estrada, — disse o Júlio, que aparecera com o irmão. — Anda, Tim! Desce as escadas e vai atrás deles!
Foram todos para o rés-do-chão, incluindo a Ana. Abriram a porta da frente e o Tim desapareceu a toda a velocidade, ladrando ferozmente. Uma cara na janela? Depressa o Tim descobriria a quem pertencia.
O dia seguinte
Os quatro pequenos ficaram à espera, junto da porta aberta, ouvindo os latidos do Tim. A Ana estava a tremer e o Júlio pôs um braço à volta da irmãzita, tentando acalmá-la.
— Como era essa cara horrível? — perguntou-lhe. A Ana continuava a tremer.
— Não vi muito bem, — disse ela. — Quando acendi a lanterna a luz foi cair sobre a janela iluminando a cara por um instante. Tinha uns olhos brilhantes e parecia muito escura. Talvez fosse um homem negro. Ai, era horrorosa!
— E desapareceu logo? — perguntou o Júlio.
— Não sei, — disse a Ana. — Apanhei um tal susto que atirei com a lanterna ao chão e a luz apagou-se. Nessa altura a Zé acordou e correu para a janela.
— Onde estaria o Tim nesse momento? — disse o David, surpreendido por o Tim não os ter acordado, a ladrar. Com certeza o cão ouvira a pessoa que ia a subir pela janela.
— Não sei; ele entrou a correr pelo quarto, quando eu gritei, — disse a Ana. — Naturalmente tinha ouvido barulho e viera cá abaixo para ver o que seria.
— Deves ter razão, — concordou o Júlio.
— Não tem importância, Ana. Julgo que se trata dum ladrão que, encontrando as portas e janelas do rés-do-chão fechadas, resolveu trepar pela hera para ver se por acaso conseguiria entrar por um dos quartos de cama. O Tim vai encontrá-lo, isso é mais do que certo.
Mas o Tim não encontrou ninguém. Voltou daí a um bocado, com a cauda caída e uma expressão intrigada no olhar. — Não conseguiste descobri-lo, Tim? — perguntou-lhe a Zé, ansiosa.
— Rrrrm, — fez o Tim cheio de tristeza. A Zé apalpou-o. Estava todo molhado.
— Céus! Onde estiveste para ficares tão molhado?! — exclamou ela, surpreendida.— Apalpa-o, David.
O David apalpou-o e os outros também.
— Esteve no mar, — disse o Júlio — É por isso que está molhado. Aposto que o ladrão, ou lá quem era, fugiu para a praia quando percebeu que o Tim ia atrás dele e saltou para um barco. Era a única maneira de conseguir fugir.
— E o Tim deve ter ido a nadar até não poder mais, — concluiu a Zé. — Pobre Tim! Foi o que aconteceu, não foi?
O Tim abanou um pouco a cauda. Estava realmente muito abatido. Pensara que ouvira um barulho e julgara tratar-se duma ratazana! E afinal quem quer que fosse, acabara por lhe fugir. O Tim sentia-se envergonhado.
O Júlio fechou a porta da rua, trancou-a e pôs-lhe o cadeado.
— Acho que a «cara» não deve voltar, — disse ele. — Agora, sabendo que há aqui um canzarrão, vai manter-se a distância. Acho que não precisamos de nos preocupar mais com o caso.
Voltaram todos para a cama. O Júlio não conseguiu adormecer logo. Embora tivesse dito aos outros para não se preocuparem, ficara um tanto perturbado. Tinha pena de que a Ana se tivesse assustado. E o atrevimento do ladrão, trepando até ao primeiro andar, também o preocupava. Devia ir com o fito de entrar para dentro de casa, de qualquer maneira.
A Joana continuara a dormir enquanto se desenrolavam todos estes acontecimentos. O Júlio não quis acordá-la. — Não lhe contem nada sobre o que se passou, — disse ele. — Pode querer mandar um telegrama ao tio Alberto, ou fazer qualquer outra coisa no género.
Assim, na manhã seguinte, a cozinheira nada sabia sobre o sucedido durante a noite, e as crianças ouviam-na cantarolar alegremente, na cozinha, enquanto preparava os ovos com presunto e tomates, para o pequeno almoço.
A Ana ficou um tanto envergonhada quando ao acordar de manhã se lembrou de todo o alarido que tinha feito. A «cara» aparecia agora bastante esbatida na sua memória. Chegou a desconfiar de que não passasse tudo dum sonho. Perguntou ao Júlio se achava possível ter sido um pesadelo.
— É muito possível, — disse o Júlio, alegremente, satisfeito por a Ana assim pensar.
— É quase certo. Se eu fosse tu, nunca mais me preocupava com tal coisa.
Não contou à Ana que havia examinado a espessa hera que ficava por fora da janela e que encontrara vestígios nítidos deixados pela pessoa que trepara por ali na noite anterior. Por baixo da janela viam-se caídas algumas folhas de hera e alguns dos ramos estavam um pouco afastados da parede. O Júlio mostrou-os ao David.
— Esteve aqui alguém, — disse ele. — Que destreza, trepar pela hera como um gato!
Não descobriram pegadas em nenhum sítio do jardim. O Júlio não se admirou, pois o terreno estava duro e seco.
O tempo continuava quente e agradável.
— Proponho fazermos o mesmo do que ontem: irmos para a praia e tomarmos banho, — disse o David. — Podemos levar o almoço, se a Joana nos deixar.
— Eu vou ajudá-la a preparar tudo, — disse a Ana, dirigindo-se com a Zé para a "cozinha para pedirem sanduíches e outras coisas. Pouco depois estavam muito atarefados a arrumar num cesto um delicioso almoço.
— Chegava para dez, acho eu, — disse a Joana, rindo. — Aqui vai uma garrafa com limonada. Podem levar as ameixas que quiserem. Esta noite não lhes faço jantar. Com certeza não conseguem comer mais nada depois deste almoço tão abundante.
A Zé e a Ana olharam para a cozinheira, alarmadas. Não havia jantar! Depois perceberam que a Joana estava gracejando, e riram-se. — Vamos fazer as camas e arrumar o nosso quarto antes de saírmos, — disse a Ana. — Queres alguma coisa da vila?
— Hoje não, obrigada. Despachem-se, para irem cedo para a praia, — disse a Joana. — Estou radiante por poder passar um dia descansada. Vou arrumar a despensa e os armários da entrada, gozando o meu sossego.
A Ana já se tinha esquecido completa-mente do susto que apanhara naquela noite, quando seguiram para a praia, conversando e rindo uns com os outros. E mesmo que ela ainda estivesse a pensar no sucedido, em breve um acontecimento a faria esquecer-se de tudo o mais.
A pequena maltrapilha estava novamente na praia!
Daquela vez andava sozinha. O seu medonho pai, ou lá o que era, não se encontrava ali.
A Zé foi a primeira a ver a rapariga e franziu o sobrolho. O Júlio viu primeiro a expressão da Zé e depois a maltrapilha; resolveu imediatamente conduzir os outros para um sítio onde as rochas se prolongavam um pouco pelo mar dentro, formando várias poças de água límpida.
— Hoje ficamos aqui, — disse o Júlio. Estavam num lugar donde não se via a rapariga andrajosa. — Faz tanto calor que estaremos melhor à sombra dos rochedos, não lhes parece?
— Está bem, — disse a Zé, meio amuada e meio divertida com a resolução do Júlio. — Não te preocupes. Não tenho mais nada a tratar com aquela miúda mal cheirosa.
— Folgo muito com isso, — respondeu o Júlio.
O Júlio escolheu um recanto encantador, junto a uns rochedos que os protegiam do vento e do sol.
— Vamos ler um bocado antes do banho,
— propôs o David. — Trouxe um livro policial. Tenho de descobrir quem é o ladrão!
Sentou-se confortàvelmente. A Ana foi procurar anémonas nas poças de água. Agradavam-lhe aqueles bichinhos que pareciam flores com grandes pétalas. Gostava de lhes atirar bocadinhos de biscoito, para eles estenderem as «pétalas» e levarem o biscoito lá para dentro.
A Zé deitou-se, brincando com o Tim. O Júlio começou a fazer um esboço dos rochedos que o cercavam, com as pequenas poças de água. Reinava a maior calma.
De repente caiu qualquer coisa sobre o estômago da Zé, assustando-a. Sentou-se e o Tim também se pôs de pé.
— Que foi isto?—perguntou ela, intrigada.
— Atiraste-me com alguma coisa, David?
— Não, — respondeu o David, com os olhos pregados ao livro.
Qualquer outra coisa foi bater no pescoço da Zé e ela levantou a cabeça, irritada. — Que se passa? Quem está a atirar com coisas?
Procurou o que tinham atirado. Um pequenino objecto redondo estava sobre a areia.
A Zé apanhou-o. — É um caroço de abrunho, — disse ela. E nesse momento, «ping»! Mais Um caroço apanhou-a no ombro. Ela deu um salto, furiosa.
Não conseguiu ver ninguém. Esperou que lhe atirassem mais um caroço mas tal não aconteceu.
— Que pena não ser capaz de desenhar a tua cara, Zé, — disse o Júlio, dando uma gargalhada. — Nunca vi ninguém com uma cara tão zangada! - Ai!
O «ai» não tinha nada a ver com a cara da Zé. Era por causa de outro caroço de abrunho que acertou no Júlio, mesmo atrás duma orelha. Ele deu também um salto. Uma gargalhada irreprimível veio de trás duma rocha, um pouco acima deles. Era a miúda maltrapilha. Tinha as algibeiras cheias de abrunhos, e alguns deles caíam pelas rochas abaixo, enquanto ela corria, rindo.
Sentou-se quando viu a Zé e deu mais uma gargalhada.
— Que ideia é essa de nos atirares com caroços? — perguntou a Zé.
— Não estava a atirá-los,.— respondeu a rapariga.
— Não sejas mentirosa, — disse a Zé, zangada. — Bem sabes que atiraste.
— Não atirei. Estava só a cuspi-los,— disse a terrível rapariga. — Ora vê!
Meteu um caroço dentro da boca, tomou fôlego e cuspiu-o. O caroço voou na direcção da Zé, indo bater-lhe em cheio no nariz.
A Zé ficou de tal maneira surpreendida, que o Júlio e o David desataram às gargalhadas. «Aposto que sou capaz de cuspir caroços para mais longe do que qualquer de vocês, — disse a maltrapilha. — Tomem alguns dos meus caroços e experimentem.
— Está bem, — disse o David prontamente. — Se tu ganhares, compro-te um sorvete, e se ganhar eu, vais-te daqui e não nos incomodas mais. Combinado?
— Muito bem, — disse a rapariga, com os olhos muito vivos, a brilharem. — E eu vou ganhar!
JOÃO
A Zé estava admiradíssima com o David. Que coisa tão chocante andarem a ver quem cuspia caroços mais longe! . — Deixa-o lá, — disse o Júlio à prima, em voz baixa. — Bem sabes como o David sabe cuspir caroços a uma distância enorme. Vai ganhar e depois manda a rapariga embora.
— Que ordinário, David! — disse a Zé em voz alta. — Ordinaríssimo!
— Quem costumava cuspir caroços de cereja, tentando ganhar-me, no ano passado? — perguntou logo o David. — Não sejas tão altiva, Zé.
A Ana voltava .vagarosamente da poça de água onde estivera, não percebendo por que motivo os outros estavam em pé sobre os rochedos. Começaram a cair caroços de abrunhos à sua volta. Ela parou, muito admirada. Era impossível que fossem os outros pequenos a atirá-los. Um caroço acertou-lhe, num braço e ela deu um pequeno grito.
A rapariga maltrapilha ganhou com toda a facilidade. Conseguiu deitar os caroços pelo menos um metro mais longe do que o David. Depois sentou-se, rindo, mostrando uns dentes muito brancos e brilhantes.
— Tu deves-me um sorvete, — disse ela, com a sua voz cantada. O Júlio pensou que ela devia ser do País de Gales. O David fitou-a, maravilhado por ela conseguir atirar os caroços para tão longe.
— Vou comprar-te o sorvete, não te preocupes, — disse ele. — Nunca ninguém me ganhou desta maneira, nem mesmo o Stevens, um rapaz do meu colégio que tem uma boca enorme.
— Palavra que estou a achar a tua atitude incompreensível, — disse a Ana ao irmão. — Vai comprar-lhe o sorvete e manda-a para casa.
— Vou comer o gelado aqui, — disse a rapariga e naquela altura parecia exactamente tão teimosa e embirrante como a Zé quando desejava alguma coisa que ela sabia ser insensata.
— Estás mesmo parecida com a Zé, — disse o David, arrependendo-se logo do que dissera. A Zé deitou-lhe um olhar furioso.
— O quê! Aquela miúda nojenta, desgrenhada e malcriada parecida comigo! — vociferou a Zé. — Eu nem sou capaz de me aproximar dela!
— Cala-te, — disse o David, secamente. A rapariga ficou surpreendida.
— Que quer ela dizer? — perguntou ao David. — Eu sou nojenta? Mas tu és tão malcriada como eu.
— Ali está o homem do sorvete, — interrompeu o Júlio, receando que a Zé se atirasse à rapariga e lhe batesse.
Ele chamou o homem, que lhe vendeu seis sorvetes.
«Aqui tens o teu, — disse o Júlio, entregando um gelado à rapariga. — Come-o depressa e vai-te embora.
Sentaram-se todos a saborear os sorvetes, continuando a Zé de mau-humor. O Tim engoliu o seu duma só vez, como era costume.
— Olhem, ele já o comeu todo, — disse a rapariga, encantada. — Que grande desperdício! Vem cá, toma um bocadito do meu.
Com grande aborrecimento da Zé, o Tim lambeu o pedacito do sorvete que a rapariga lhe atirou. Como podia o Tim aceitar uma coisa dada por aquela criatura?!
O David não podia deixar de se divertir com a presença daquela rapariga tão estranha e destemida, com cabelo desgrenhado e olhos chamejantes. De repente notou uma coisa que o fez sentir-se pouco à vontade.
A pequena tinha uma nódoa negra no queixo.
— Ouve lá, — disse o David. — Fui eu que te fiz ontem essa nódoa negra?
— Qual? Esta no queixo? — disse a rapariga tocando-lhe. — Foi aqui que me acertaste quando me atiraste ao chão. Não me importo. Tenho outras piores, das sovas do meu pai.
— Desculpa de ter-te magoado, — disse o David, desajeitadamente. — Palavra que pensei tratar-se dum rapaz. Como te chamas?
— João, — disse a rapariga.
— Mas é um nome de rapaz! — exclamou o David.
— Também o da Zé. E vocês dizem que ela é rapariga, — disse a João, lambendo os dedos para aproveitar bem o sorvete.
— Tens razão, mas Zé é o diminutivo de Maria José, — explicou a Ana. — E tu és só João?
— Não sei, — respondeu a João. — Nunca me disseram. Tudo quanto sei é que me chamam João e sou uma rapariga.
— Naturalmente chamas-te Maria João, — disse o Júlio.
— Realmente é engraçado, — disse a Ana por fim. — Mas a João é muito parecida contigo, Zé. Têm o mesmo cabelo curto e encaracolado ; a única diferença é que o da João está terrivelmente desgrenhado e sujo. Têm as mesmas sardas, às centenas, o mesmo nariz arrebitado...
— A mesma maneira de levantar o queixo, a mesma expressão, o mesmo olhar! — continuou o David. A Zé deitou-lhe um olhar zangadíssimo, por causa daquelas observações que lhe desagradavam em absoluto.
— Espero que não me achem com a mesma sujidade e com aquele chei..., — começou ela, zangada. Mas o David interrompeu-a.
— Naturalmente não tem sabão nem pente, nem nada disso. Se estivesse limpa ficaria outra. Não sejas desagradável, Zé.
A Zé voltou-lhe as costas. Como podia o David pôr-se ao lado daquela horrível miúda? — Ela nunca mais se vai embora? — perguntou a Zé.
— Ou tencionará pespegar-se em cima de nós durante todo o dia?
— Vou-me embora quando eu quiser, — respondeu a João, fazendo uma cara de zangada tão parecida com a da Zé que o Júlio e o David começaram novamente a rir, surpreendidos. A João também se riu, mas a Zé cerrou os punhos, furiosa. A Ana não estava a gostar daquilo. Desejava ardentemente que a João se fosse embora, para tudo voltar à normalidade.
— Gosto desse cão, — disse a rapariga de repente, inclinando-se para o Tim, que estava ao lado da Zé. Fez-lhe festas com a mão, que mais parecia uma pequenina pata castanha. A Zé virou-se.
— Não toques no meu cão! — exclamou ela. — O Tim não gosta de ti!
— Ai, isso é que gosta, — afirmou a João. — Todos os cães gostam de mim. E os gatos também. Eu consigo facilmente que o teu cão venha ter comigo.
— Experimenta! — gritou-lhe a Zé, zangada. — Ele não vai ter contigo. Pois não, Tim?
A João não se mexeu. Começou a fazer um barulho especial com a garganta, parecendo um cachorrinho a ganir. O Tim arrebitou logo as orelhas. Olhou admirado para a João. Esta calou-se e estendeu a mão.
O Tim continuou no mesmo sítio, mas quando a João voltou a fazer o tal som com a garganta, o Tim levantou-se, pondo-se à escuta. Não tirava os olhos da João.
Quem seria ela para falar tão bem a linguagem dos cães?
A João tapou a cara com as mãos e continuou a fazer aquele barulho, que parecia um cachorrinho aflito, a ganir. O Tim foi até perto dela e sentou-se com a cabeça à banda, muito intrigado. Depois aproximou-se mais e lambeu a cara meio escondida da pequena. Esta levantou logo a cabeça e pôs os braços à volta do pescoço do Tim.
— Vem cá, Tim! — gritou a Zé, despeitada.
O Tim desembaraçou-se dos braços morenos que o seguravam e foi logo ter com a dona. A João riu-se.
— Estás a ver? Fiz com que ele viesse ter comigo e me desse uma grande lambedela. Posso fazer o mesmo com qualquer outro cão.
— Como o consegues? — perguntou o David, admirado. Ele nunca vira até ali o Tim tornar-se amigo duma pessoa de quem a Zé não gostasse.
— Não sei bem explicar, — disse a João afastando o cabelo da testa. -— Acho que é uma coisa de família. A minha mãe fazia parte dum circo e ensinava os cães. Tínhamos dúzias deles, muito bonitos. Eu gostava de todos.
— Onde está a tua mãe? — perguntou o Júlio. — Continua no circo?
— Não. Morreu, — disse a João. — E eu vim-me embora com o meu pai. Arranjámos um carro puxado por um cavalo. O pai era acrobata, antes de partir o pé. Somos ciganos.
Os quatro pequenos lembraram-se de que ele arrastava um pé enquanto caminhava. Olharam em silêncio para a desgrenhada João. Que vida tão estranha devia levar!
— Ela está suja, naturalmente é muito mentirosa e ladra também, mas faz-me pena,
— pensou o Júlio. — De toda a maneira tomara já que se ponha a andar.
— Gostava de não lhe ter feito aquela grande nódoa negra, — pensou o David. — Como ficaria ela, lavada e penteada? Dá-me ideia de que um pouco de carinho lhe faria bem.
— Tenho pena dela, mas não consegue inspirar-me simpatia, — pensou a Ana.
— Não acredito em nada do que ela diz!
— pensou a Zé, zangada. — Deve ser uma mentirosa! Sinto-me envergonhada por o Tim ter ido ter com ela. Estou zangada com o Tim.
— Onde está o teu pai? — perguntou finalmente o Júlio.
— Foi a qualquer sítio encontrar-se com alguém, — disse a João, vagamente. — Fiquei contente, pois ele esta manhã estava com muito mau-humor. Eu até me escondi por debaixo do carro.
Houve mais um silêncio. — Posso ficar hoje com vocês, até o meu pai voltar? — perguntou de repente a João, na sua voz cantada.
— Se quiserem vou-me lavar. Estou tão só!
— Não! Não queremos a tua companhia,
— respondeu a Zé, sentindo que não conseguia suportar a ciganita por mais tempo — Não é verdade, Ana?
A Ana não gostava de ferir ninguém. Ficou hesitante.
— Talvez seja melhor a João ir-se embora, — disse ela for fim.
— Também acho, — concordou o Júlio. — É tempo de te pores a andar, João. Já aqui estás há um grande bocado.
A João olhou para o David com os olhos cheios de tristeza e tocou na nódoa negra do queixo, como se lhe doesse. O David sentiu-se novamente pouco à vontade. Olhou para os
outros.
— Não acham que a João podia almoçar connosco? — disse ele. — Afinal ela não tem culpa de estar suja e... e...
— Está bem, — interrompeu a João, pondo-se em pé. — Vou-me embora! Está ali o meu pai!
Viram um homem a distância, arrastando um pé enquanto caminhava. Ele descobriu a João e assobiou-lhe com força. A João fez uma careta insolente, voltando-se para os pequenos.
«Não gosto de vocês!—disse ela. — Depois apontou para o David. — Só gosto daquele, que é o único simpático. Os outros, vão passear!
E lá foi ela, como uma lebre, correndo com os pés descalços, mal tocando na areia.
— Que rapariga tão estranha! — disse o Júlio. — Tenho a impressão de que ainda não foi desta que nos livrámos dela.
QUE ACONTECEU DURANTE A NOITE?
Naquela noite a Ana começou a ficar um tanto assustada quando principiou a escurecer. Voltou a lembrar-se da «cara» da janela.
— Não há-de voltar, pois não, Júlio? — perguntou ao irmão mais velho, umas cinco ou seis vezes.
— Está descansada, Ana. Se tu quiseres fico a dormir na cama da Zé, para estar a teu lado até amanhã.
A Ana considerou a proposta e depois abanou a cabeça.
— Não. É suficiente ter a Zé com o Tim. Acho que a Zé e eu, e mesmo tu, podemos ter medo das «caras» mas o Tim não se assustará. Há-de atirar-se a elas.
— Tens toda a razão, — respondeu o Júlio. — Não vou para o teu quarto. E vais ver que nada sucederá. De qualquer modo, se quiseres, esta noite podemos fechar as janelas dos quartos de dormir, mesmo que esteja muito calor. Assim ficaremos seguros de que ninguém pode entrar.
Por isso, naquela noite, o Júlio não só fechou todas as janelas e portas do rés-do-chão, tal como fizera na noite anterior (excepto a pequenina janela da copa que estava empenada), mas também as do andar superior.
— E a janela do quarto da Joana? — perguntou a Ana.
— Ela dorme com a janela fechada, seja Verão ou Inverno, — respondeu o Júlio, rindo. — As pessoas do campo fazem sempre assim. Julgam que o ar da noite faz mal. Agora já não tens razão para te apoquentares, patê-tinha.
A Ana foi para a cama, completamente descansada. A Zé correu as cortinas, pois, assim, mesmo que a «cara» voltasse, elas não poderiam vê-la.
— Levas-me o Tim lá fora, sim? — pediu a Zé ao Júlio. — A Ana não quer que eu a deixe sozinha, nem mesmo para levar o Tim. Basta abrires a porta e deixá-lo sair. Ele voltará pouco depois.
— Está bem, — disse o Júlio, abrindo a porta da frente. O Tim saiu, abanando a cauda. Ele gostava sempre muito deste último passeio.
— O Tim ainda não voltou? — gritou daí a um bocado a Zé, do alto das escadas. — Chama-o, Júlio. Quero meter-me na cama. A Ana está quase a dormir.
— Ele volta já, — disse o Júlio, que queria acabar de ler um livro. — Não faças barulho.
Mas o Tim continuava a não aparecer mesmo depois de o Júlio terminar a leitura do livro. O pequeno foi até à porta e assobiou. Esperou que o Tim aparecesse. Não ouvindo nenhum barulho, assobiou novamente.
Desta vez apareceu o Tim, dirigindo-se para a porta.
«Ora até que enfim! — disse o Júlio.— Que estiveste a fazer? À procura dalgum coelho?
O Tim abanou a cauda, devagar. Não saltou para o Júlio, como costumava fazer. — Estás com ar de quem praticou alguma maldade, — disse o Júlio. — Já para a cama! E não te esqueças de ladrar se ouvires o mais pequeno ruído durante a noite.
— Rrrrm, — fez o Tim, com voz apagada, indo depois para o andar de cima. Subiu para a cama da Zé e respirou com força.
— Que suspiro! — disse a Zé. — Que estiveste a comer, Tim? Com certeza que desenterraste algum osso! Hoje nem devia deixar-te dormir aqui na minha cama. Naturalmente lembraste-te dalgum osso que enterraste há muitos meses. Ui, que cheiro!
Mas o Tim continuou na cama, sobre os pés da Zé, como de costume. Começou a ressonar, acordando a Zé, passada uma meia hora.
«Cala-te, Tim, — disse ela, empurrando-o com os pés. A Ana acordou, assustada.
— Que se passa, Zé? — perguntou ela, com o coração a bater apressado.
— Nada. O Tim não pára de ressonar, — disse a Zé, irritada. — Acorda, Tim, e não ressones mais.
O Tim mexeu-se um pouco mas continuou a dormir. Deixou de ressonar e por isso a Ana e a Zé adormeceram profundamente.
O Júlio acordou uma vez, parecendo-lhe que ouvira cair qualquer coisa, mas ouvindo o ressonar do Tim, através das portas fechadas dos dois quartos, continuou na cama, completamente descansado.
Se o barulho realmente correspondesse a qualquer coisa de anormal sem dúvida que o Tim o teria ouvido. A Zé dizia sempre que o Tim dormia com uma orelha à escuta.
O Júlio não ouviu mais nada até a Joana descer as escadas, às sete da manhã; percebeu que ela foi para a cozinha. O pequeno voltou-se para o outro lado e adormeceu novamente. Vinte minutos mais tarde acordou em sobressalto, com gritos, vindos do andar de baixo. Deu um pulo para fora da cama e desceu as escadas a correr. O David seguiu-o.
— Olhem para isto! O escritório do senhor doutor todo desarrumado e as gavetas arrombadas! E o cofre também está aberto. Ai de mim, quem entraria aqui durante a noite, com todas as portas trancadas!
A Joana gritava e levantava as mãos, olhando apavorada para a desordem do compartimento.
— Meu Deus, — disse o David, aterrado. — Alguém esteve aqui à procura de qualquer coisa, por toda a parte. Até abriu o cofre, e arrombou as gavetas.
— Como teria entrado? — disse o Júlio, sentindo-se confuso. Deu a volta à casa, olhando para as portas e janelas. Tirando a porta da cozinha (a Joana abrira-a logo que se levantara) parecia que ninguém tinha tocado em qualquer porta ou janela.
Todas estavam bem fechadas.
A Ana apareceu, muito aflita. — Que se passa? — perguntou ela. Mas o Júlio afastou-a. Como teria entrado o ladrão? Era o que desejava saber. Naturalmente passara por uma das janelas do primeiro andar. Talvez tivesse aberto alguma, depois de ele as ter fechado. Seria a janela do quarto das pequenas?
Mas não, nenhuma janela estava aberta. Todas continuavam bem fechadas, incluindo a do quarto da Joana. Então o Júlio lembrou-se duma coisa, ao entrar no quarto da Zé. Porque seria que o Tim não tinha ladrado? Com certeza devia ter havido um pouco de barulho por mais silencioso que fosse o ladrão. Ele próprio acordara, por ter ouvido qualquer coisa. E o Tim porque não teria acordado também?
A Zé tentava que o Tim saltasse da cama. — Júlio! Júlio! O Tim tem qualquer coisa! Não consegue acordar, — exclamou ela. — E tem uma respiração muito esquisita, repara! Que aconteceu lá em baixo?
O Júlio contou-lhe em poucas palavras, enquanto examinava o Tim.
— Alguém entrou cá dentro a noite passada. O escritório do teu pai está na maior confusão. Todo revolvido duma ponta à outra, o cofre e tudo. Só Deus sabe como é que o ladrão conseguiu entrar.
— Que horror! — disse a Zé, muito pálida. — E qualquer coisa se passa com o Tim.
Nem acordou durante a noite, quando o ladrão entrou. Ele está doente, Júlio!
— Não está. Foi narcotizado, — disse o Júlio, afastando as pálpebras do cão. — Por isso é que ele se demorou tanto tempo lá fora, na noite passada. Alguém lhe deu um bocado de carne, ou qualquer outra coisa, com um narcótico. Ele comeu-a e dormiu tão profundamente que não ouviu nada e mesmo agora ainda não está acordado.
— Ó Júlio, mas ele ficará bom? — perguntou a Zé, com a maior ansiedade. — Mas como é que ele aceitou comida dum estranho?
— Talvez a tenha encontrado no chão. Alguém deve tê-la atirado, esperando que o Tim a comesse, — lembrou o Júlio. — Agora percebo porque estava ele tão cabisbaixo quando entrou em casa, na noite passada. Nem mesmo saltou para mim.
— Ó querido Tim, acorda, acorda! — pediu a pobre Zé, abanando o cão com cuidado. Ele rosnou um pouco e continuou imóvel.
— Deixa-o, — disse o Júlio. — Ele ficará bom. Não foi envenenado. Foi apenas narcotizado. Anda lá abaixo ver como está o escritório.
A Zé ficou horrorizada com o espectáculo.
— Tenho quase a certeza de que andaram à procura dos dois livros de apontamentos que o meu pai escreveu na América, — disse ela. — Ele disse-me que qualquer país do Mundo gostaria de os possuir. Que vamos nós fazer agora?
— É melhor chamar a polícia, — disse o Júlio, muito sério. — Não podemos resolver sozinhos uma coisa tão grave. Sabes o endereço do teu pai, em Espanha?
— Não, — respondeu a Zé. — Tanto ele como a mãe disseram que desta vez queriam ter umas verdadeiras férias, sem enviarem correspondência e sem darem nenhuma direcção, até pararem em qualquer sítio durante alguns dias. Nessa altura mandarão um telegrama.
— Nesse caso temos de nos pôr em contacto com a polícia, — disse firmemente o Júlio, um tanto pálido. A Zé olhou para o primo. Naquele momento ele parecia na verdade uma pessoa crescida.
O Júlio foi até à entrada e telefonou para o posto da polícia. A Joana sentiu um grande alívio.
— Muito bem; chamar a polícia é o que devem fazer, — disse ela. — Está lá aquele simpático senhor Smith, e aquele outro, de cara vermelha, que se chama Donald. Vou fazer um pouco de café para lhes oferecer quando chegarem.
A Joana animou-se bastante, ao pensar que ia servir umas chávenas do seu saboroso café aos dois polícias, que certamente lhe fariam grande quantidade de perguntas, e ela responderia com muito prazer.
A criada foi para a cozinha e as quatro crianças ficaram a olhar em silêncio para o escritório. Que confusão! Conseguiriam pôr tudo aquilo novamente nos seus lugares? Ninguém poderia saber o que desaparecera, até que o tio Alberto voltasse. E como ele iria ficar furioso!
— Espero que não tenham levado nada de grande importância, — disse o David. — Dá ideia de que alguém sabia encontrar-se aqui uma coisa importante, querendo levá-la.
— E é provável que tenham conseguido o seu objectivo, — disse o Júlio. Tocaram à porta. — Deve ser a polícia. Estou mesmo a ver que só daqui a muito tempo conseguiremos tomar o pequeno almoço.
OS POLÍCIAS NO CASAL KIRRIN
Os polícias eram muito, muito aborrecidos. As crianças já estavam fartas deles, muito antes da hora do almoço. Tal não acontecia com a cozinheira; fez-lhes café, ofereceu-lhes bolos e pediu à Ana que apanhasse umas ameixas para lhes dar. Sentia-se orgulhosa por ter sido ela quem encontrara primeiro o escritório todo desarrumado.
Eram dois. Um deles era sargento, muito solene e delicado. Interrogou cada um dos pequenos, fazendo-lhes exactamente as mesmas perguntas. O outro andou pelo escritório, examinando coisa por coisa, com um método enervante.
— Se calhar anda à procura das impressões digitais, — disse a Ana. — Quando poderemos ir para a praia tomar banho?
O que mais os intrigava, a todos, era a maneira como o ladrão tinha entrado. Os polícias andaram à volta da casa, experimentando todas as portas e janelas. Demoraram-se a olhar para a janelita da copa.
— Naturalmente entraram por ali,—disse um deles.
— Então devia ser mais pequeno do que um gato, — respondeu o outro. Depois voltou-se para a Ana, que era a mais pequena de todos.
— A menina acha que consegue passar por ali?
— Parece-me que não, — disse ela. — Mas se quiserem posso experimentar.
Meteu a cabeça pela janelita, mas desistiu pouco depois e o Júlio teve que a puxar com força, para ela voltar para baixo.
«Faz alguma ideia do que roubaram? — perguntou o sargento ao Júlio, que naquela manhã parecia uma verdadeira pessoa crescida.
— Não faço a menor ideia, — disse o Júlio. — Nem mesmo a Zé, que conhece os trabalhos do pai melhor do que nós. Sabemos apenas que o meu tio foi há pouco tempo à América, fazer umas conferências, e que escreveu lá dois livros de apontamentos e esquemas valiosos. Ele afirmou que outros países gostariam de se apoderar desses dois livros. Naturalmente deixou-os naquele cofre.
Então com certeza que os levaram, — disse o sargento fechando o seu volumoso caderno de apontamentos. — É uma pena que haja pessoas capazes de deixarem livros tão importantes dentro dum cofre vulgar, e depois partirem em férias sem ao menos deixarem um endereço. Será possível pôrmo-nos em contacto com o seu tio? É da maior importância!
— Bem sei, — concordou o Júlio, preocupado. — Dentro de dois ou três dias teremos uma morada, mas antes disso não vejo maneira de comunicarmos com o meu tio.
— Está bem, — disse o sargento. — Agora vamo-nos embora mas voltaremos depois do almoço, para fotografarmos o escritório. Só depois a vossa criada poderá arrumá-lo.
— Voltam outra vez! — exclamou a Ana, quando os dois homens saíram, com um ar muito solene, montando numas bicicletas com bom aspecto.
— Santo Deus! Vamos recomeçar a responder às perguntas deles?
— Olhem, vamos para a praia, metemo-nos num barco e remamos para longe, — disse o Júlio, dando uma gargalhada. — Assim ficaremos fora do alcance deles. Acho que não podemos prestar-lhes mais nenhum esclarecimento. Devo dizer que todo este caso me parece muito estranho. Quem me dera perceber como o ladrão entrou cá dentro.
A Zé estivera muito preocupada toda a manhã. Temia que o Tim tivesse sido envenenado e não apenas narcotizado, como dissera o Júlio. Mas o Tim estava perfeitamente bem, embora continuasse um pouco ensonado, sem disposição para fazer as suas ridículas cabriolas habituais. E parecia muito envergonhado.
— Eu não percebo por que motivo o Tim está assim, — disse a Zé, intrigada. — Só costuma pôr-se com aquele ar quando faz uma maldade ou qualquer coisa que o envergonha. Julgas que ele pode perceber que comeu a noite passada uma coisa que não devia?
— Não, — respondeu o David. — Ele tem a esperteza suficiente para não comer carne envenenada mas não pode adivinhar se uma coisa contém um inofensivo pó para dormir, que podia não ter sabor nem cheiro. Naturalmente está apenas um pouco aborrecido por andar tão ensonado.
— Se ele tivesse acordado! — lamentou a Zé. — Teria ouvido logo barulho no escritório, ladrava até acordar todos, e com certeza se atiraria ao ladrão, fosse quem fosse. Porque não fui eu com ele na noite passada, como sempre faço?
— Foi uma série de coisas que aconteceram, — disse o Júlio. — Tu não o levaste lá fora, por isso ele foi sozinho. E logo se deu a coincidência de estar alguém à espera dele, tendo carne com um narcótico, que o Tim encontrou ou o ladrão lhe deu.
— Isso não, — disse a Zé. — O Tim nunca teria aceite qualquer coisa duma pessoa desconhecida. Sempre lhe ensinei isso.
— Então encontrou a carne, que o fez dormir exactamente na noite em que era preciso estar acordado, — disse o Júlio. — O meu maior receio, Zé, é que os ladrões tenham levado os livros de apontamentos que o teu pai trouxe da América. Dá ideia de que procuraram por toda a parte, deixando em grande barafunda pilhas e pilhas de apontamentos de todas as espécies, escritas com a caligrafia do teu pai.
A Joana apareceu, dizendo que o almoço estava pronto. Contou às crianças que os polícias haviam comido todos os bolos que ela fizera.
A cozinheira continuava entusiasmada, muito importante, e estava desejosa de ir à vila contar as novidades a toda a gente.
— É melhor não saíres e preparares um chá para os polícias, — disse o Júlio. — Devem voltar com um fotógrafo.
— Nesse caso vou fazer outro bolo, — disse a Joana, satisfeita.
— Faz um dos teus bolos de chocolate, — lembrou a Ana.
— A menina acha que eles hão-de gostar? — perguntou a Joana.
— Não é para eles mas sim para nós! — explicou a Zé. — Não desperdices um dos teus maravilhosos bolos de chocolate com os polícias. Podias arranjar-nos um lanche para levarmos connosco. Estamos fartos de estar em casa e resolvemos ir dar um passeio de barco.
A Joana embrulhou uma porção de coisas saborosas para o lanche, depois de terem almoçado, e os pequenos saíram antes de os polícias chegarem. O Tim estava muito menos (sonolento e começou a saltitar à volta dos seus amigos, enquanto se dirigiam para a praia. A Zé logo se alegrou.
— Está a melhorar, — disse ela. — Tim, agora nunca mais te perco de vista! Se alguém quiser narcotizar-te outra vez, terá de fazê-lo mesmo em frente do meu nariz.
Deram um belo passeio no barco da Zé. Foram até meio caminho da Ilha Kirrin e depois atiraram-se para a água, nadando e mergulhando até ficarem cansados. O Tim acompanhava-os mas não conseguia nadar com tanta rapidez como os pequenos.
— O Tim não sabe nadar, — disse a Ana. — Limita-se a correr sobre a água. Bem gostava de que me deixasse montar sobre ele, mas sempre se escapa quando eu quero tentar.
Voltaram às seis horas, para verificarem que os polícias haviam comido todo o bolo de chocolate que a Joana fizera, além de uma grande quantidade de arrufadas e «scones».
O escritório já estava arrumado e tinha ido um homem consertar o cofre.
Ali ficava tudo em segurança, mas os polícias disseram à Joana que se houvesse alguma coisa de muito valor seria melhor entregar-lha até que o pai da Zé voltasse.
— Mas nós não sabemos quais destes papéis têm valor, — disse o Júlio. — Temos de esperar até recebermos um telegrama do tio Alberto e isso pode demorar vários dias. Em todo o caso acho que o ladrão não virá incomodar-nos mais. Deve ter levado o que queria.
Os acontecimentos extraordinários daquele dia fizeram com que os pequenos, exceptuando o Júlio, se sentissem fatigados. — Vou para a cama, — declarou o David, às nove horas. — Porque não vais também, Ana? Acho-te com aspecto cansado.
— Tens razão, — disse a Ana. — Não queres vir, Zé?
— Primeiro vou levar o Tim lá fora, — respondeu a Zé. — Nunca mais o deixarei sair sozinho, à noite. Vamos, Tim. Se tu queres ir para a cama eu depois fecho a porta da rua, Júlio.
— Está bem, — disse o Júlio. — Assim vou para cima daqui a pouco. Não estou com disposição para ficar sozinho esta noite. Fecharei tudo, excepto a porta da frente. Não te esqueças de lhe pôr o cadeado, Zé. Embora tenha a certeza de que esta noite não haverá mais roubos!
— Ou caras a espreitar nas janelas, — acrescentou logo a Ana.
— Não haverá nada disso, — afirmou o Júlio. — Boa-noite, Ana, dorme bem.
A Ana e o David foram para cima. O Júlio acabou de ler o jornal e depois deu volta à casa, fechando com cuidado todas as portas e janelas. A Joana já tinha ido para o quarto, e pouco depois sonhava com os polícias a comerem o seu bolo de chocolate.
A Zé saiu com o Tim.
Este correu muito contente para o portão e depois continuou, pois sabia que ia dar o seu passeio habitual, com a Zé. Perto dum portão, que dava para a estrada, o cão parou de repente e começou a rosnar, como se visse qualquer coisa de anormal.
— Que palerma, Tim! — exclamou a Zé aproximando-se. — É apenas um carro de ciganos. Nunca viste nenhum? Pára de rosnar!
Continuaram, e o Tim, muito divertido, cheirava todos os buracos de ratazanas ou coelhos por onde passavam. A Zé também estava a gostar do passeio. Não tinha pressa pois o Júlio podia ir para a cama, sem esperar por ela.
O Júlio realmente resolveu ir-se deitar. Deixou a porta da frente aberta e subiu as escadas, bocejando, sentindo-se cheio de sono. Meteu-se na cama sem fazer barulho, reparando que o David já estava a dormir. Ficou acordado à espera de sentir a Zé. Quando estava meio adormecido ouviu bater a porta da rua.
— Lá veio ela, — pensou, voltando-se para o outro lado.
Mas não era a Zé. A sua cama ficou vazia durante toda a noite e ninguém deu por isso, nem mesmo a Ana. A Zé e o Tim não haviam voltado!
ONDE ESTARÁ A ZÉ?
A Ana acordou a meio da noite, sentindo sede. Murmurou para o lado: — Zé, estás acordada?
Não houve resposta; por isso a Ana, com todo o cuidado e sem fazer barulho, bebeu um copo de água, que encheu com o jarro que estava sobre a mesinha de cabeceira. A Zé às vezes ficava mal disposta quando acordava a meio da noite. A Ana nem por sombras suspeitava de que a Zé não se encontrava ali.
Voltou a adormecer e só acordou com a voz do David. — Meninas, levantem-se! São quase oito horas. Vamos tomar banho.
A Ana sentou-se na cama, espreguiçando-se. Dirigiu um olhar à cama da Zé. Estava arranjada como se tivesse sido acabada de fazer.
— Olhem para isto! — exclamou a Ana, admirada. — A Zé já se levantou e fez a cama. Podia ter-me acordado, para eu ir com ela. Está um dia tão bonito! Naturalmente levou o Tim a passear, como faz às vezes, de manhã cedo.
A Ana vestiu o fato de banho e foi a correr juntar-se aos irmãos. Desceram as escadas, com os pés descalços sobre a passadeira.
«A Zé saiu, — disse a Ana.
— Naturalmente acordou cedo e foi dar um passeio com o Tim. Nem a senti!
O Júlio foi até à porta da frente. — Deve ter sido isso, — disse. — A porta não tem o cadeado. A Zé deve tê-la aberto e depois fechado devagarinho. Que delicada! Da última vez que saiu mais cedo atirou com a porta com tanta força que acordou toda a gente da casa.
— Talvez tenha ido passear no barco, — lembrou o David. — Ela disse ontem que gostaria de o fazer numa manhã em que a maré se prestasse. Naturalmente volta com montes de peixe para a Joana cozinhar.
Olharam para o mar quando chegaram à praia. Via-se um barco parado ao longe, com duas figuras que parecia estarem a pescar.
«Aposto que é a Zé com o Tim, — disse o David. Ele gritou e acenou, mas o barco estava muito longe e ninguém lhe respondeu. Os três irmãos meteram-se dentro da água. Estava muito fria. Brrrrrr-rr!
— Está óptima, — disse a Ana, quando saíram, com os corpos molhados a brilhar ao sol da manhã. — Vamos fazer uma corrida.
Começaram a correr atrás uns dos outros, para um lado e para o outro da praia, e depois, animados e cheios de apetite, foram para casa tomar o pequeno almoço.
— Onde está a Zé? — perguntou a Joana. — Eu vi a cama feita e tudo arrumado. Que lhe aconteceu?
— Julgo que foi pescar, com o Tim, - respondeu o David. — Levantou-se muito antes de nós.
— Não a ouvi sair, — disse a Joana. — Não deve ter feito barulho nenhum. Agora aqui está o vosso pequeno almoço; salsichas, tomates e ovos fritos!
— Formidável! — disse a Ana. — E tu fizeste as salsichas exactamente como eu gosto, com a pele a estalar. Achas que podemos comer as da Zé? Ainda anda longe, no barco. Só deve voltar daqui a muito tempo.
— Então comam a parte dela, — disse a Joana. — Não me restam dúvidas de que deve ter levado qualquer coisa da despensa. Foi pena não a ter fechado à chave a noite passada, como costumo fazer!
Os pequenos dividiram a parte da Zé entre eles e, em seguida, comeram torradas com doce de laranja. Depois, a Ana ajudou a Joana a fazer as camas e a limpar o pó. O Júlio e o David foram à vila fazer algumas compras na mercearia.
Ninguém se preocupou com a Zé. O Júlio e o David ao voltarem das compras viram que o barco continuava no mar.
— A Zé quando voltar deve estar a cair com fome, — observou o Júlio. — Naturalmente anda com alguma das suas más disposições e quer estar só. Ficou arreliadíssima por o Tim ter sido narcotizado.
Encontraram a maltrapilha João. Andava pela praia a juntar paus e parecia aborrecida e mais suja do que nunca.
— Olá, João! — exclamou o David.
Ela levantou a cabeça e dirigiu-se aos pequenos, sem um sorriso. Devia ter estado a chorar. As lágrimas tinham deixado um risco em cada uma das faces escuras e sujas.
— Olá! — disse ela, olhando para o David. Parecia tão triste que o David teve pena dela.
— Que te aconteceu, miúda? — perguntou ele, com simpatia.
As lágrimas recomeçaram a correr pela cara da João quando ouviu as palavras do David. Esfregou a cara, tornando-a ainda mais suja.
— Nada, — respondeu ela. — Onde está a Ana?
— A Ana está em casa e a Zé está naquele barco lá ao longe a pescar, com o Tim, — disse o David, apontando para o mar.
— Ah! — fez a João, continuando a apanhar paus para lenha. O David foi atrás dela.
— Espera aí! — exclamou ele. — Não te vás embora assim. Diz-me primeiro porque estás tão triste esta manhã.
Segurou a João por um braço e fê-la voltar-se para ele. Olhou-a bem de perto e viu que ela tinha duas nódoas negras na cara; uma já meio amarela, que ele lhe fizera quando a deitara ao chão, dois ou três dias antes. E uma outra, vermelha escura.
«Onde arranjaste esta nódoa negra? — perguntou, tocando-lhe ao de leve.
— Foi o meu pai, — respondeu a João. — Foi-se embora e deixou-me aqui ficar. Levou o carro e tudo. Eu também queria ir; mas ele nem me deixou entrar dentro do carro.
Quando desatei a bater à porta, ele apareceu e empurrou-me pelas escadas abaixo. Foi quando fiz esta nódoa negra. E também tenho outra numa perna.
O David e o Júlio escutavam horrorizados. Que espécie de vida era a da João? Os pequenos sentaram-se na areia com a João no meio.
— Mas o teu pai com certeza que há-de voltar, — disse o Júlio. — Vives sempre no carro?
— Vivo, — respondeu a João. — Nunca tive outra casa. A mãe também lá morava, antes de morrer. Mas é esta a primeira vez que o pai se vai embora sem me levar.
— Mas onde vais dormir agora? — perguntou o David.
— O pai disse-me que o Jake vai dar-me dinheiro para eu comprar comida, — continuou a João. — Mas só se eu fizer o que ele me mandar. Eu não gosto do Jake. Ele é mau.
— Quem é o Jake? — perguntou o Júlio muito admirado com tudo aquilo.
— O Jake é um cigano, conhecido do meu pai, — disse a João. — Demora-se sempre um dia ou dois e depois vai-se embora outra vez. Se eu esperar aqui ele deve aparecer e julgo que me dará algum dinheiro.
— E que te manda ele fazer? — disse o David, intrigado. — Toda essa história me parece muito absurda. Tu não passas duma criança.
— Pode ser que me mande ir com ele roubarmos qualquer coisa, ou... há coisas que as pessoas como vocês não fazem, — disse a João, lembrando-se de repente que o Júlio e o David não deviam concordar com muitas das coisas que ela fazia. — Espero que ele me dê hoje algum dinheiro. Não tenho nenhum e estou com fome.
O David e o Júlio entreolharam-se. Pobre João! Pensar que aquela desgraçadita vivia amedrontada e muitas vezes ao abandono e com fome!
O David meteu a mão no cesto das compras e tirou um pacote com manteiga e alguns biscoitos.
— Aqui tens, — disse ele. — Come isto e se quiseres vai depois à porta da cozinha da nossa casa e pede à Joana, a nossa cozinheira, que te dê mais qualquer coisa. Eu falarei com ela a esse respeito.
— As pessoas não gostam de me ver às portas das cozinhas, — disse a João, enchendo a boca de biscoitos. — Têm medo que eu roube qualquer coisa.
Depois olhou para o David e continuou: — E é o que eu faço algumas vezes.
— Não deves roubar, — disse o David.
— Tu não farias o mesmo se tivesses tanta fome que nem pudesses olhar para um cesto de pão? — perguntou a ciganita.
— Acho que não. Pelo menos estou convencido disso, — disse o David, pensando no que realmente sentiria se estivesse a morrer de fome. — Onde está esse tal Jake?
— Não sei. Em qualquer lugar, aqui próximo, — disse a João. — Há-de vir buscar-me quando precisar de mim.
O pai disse-me para não sair da praia. Por isso, de qualquer maneira não posso ir à vossa casa. Não me atrevo a sair daqui.
Os rapazes levantaram-se para partir, preocupados com aquela maltrapilha. Mas que podiam eles fazer? Nada, além de a alimentarem e lhe darem dinheiro. O David tinha-lhe metido uma moeda na mão e ela guardara-a no bolso sem uma palavra, com os olhos a brilhar.
A Zé ainda não chegara a casa, à hora do almoço; e nessa altura o Júlio, pela primeira vez, começou a estar em cuidado. Correu até à praia para ver se o barco continuava no mar. Regressava naquele momento e o Júlio viu, com o coração sobressaltado, que não era a Zé nem o Tim que lá estavam dentro, mas sim dois rapazes.
Foi procurar o barco da Zé e lá o encontrou na areia, entre vários outros. A Zé não saíra nele!
O Júlio voltou para o Casal Kirrin e contou aos outros. Ficaram todos tão preocupados como ele. Que teria acontecido à Zé?
— Esperemos até à hora do lanche, - disse o Júlio. — Se nessa altura ainda não tiver aparecido temos de fazer qualquer coisa; dizer à polícia, acho eu. Mas como ela já tem passado um dia inteiro fora, é melhor esperarmos um pouco mais.
Chegou a hora do lanche e nem a Zé, nem o Tim. Então ouviram alguém a atravessar o jardim, correndo; seria o Tim? Chegaram à janela, para verem.
— É a ciganita — disse o David, desapontado. — Traz um bilhete na mão. Que quererá ela?
UMA ESTRANHA MENSAGEM
O Júlio foi abrir a porta. A João entregou-lhe, sem dizer uma palavra, um sobrescrito em branco.
O pequeno abriu-o, não fazendo a menor ideia do que se tratava. A João preparava-se para se ir embora mas o Júlio agarrou-a com firmeza, enquanto lia a mensagem, com a maior das surpresas.
— David! — chamou ele. — Agarra aqui a João. Não a deixes ir embora. Leva-a lá para dentro. Isto é muito sério.
A João não queria entrar. Gritava e torcia-se toda como uma enguia. Depois começou aos pontapés ao David, com os pés descalços.
— Larga-me! Não estou a fazer mal nenhum! Só lhes trouxe aquela carta!
— Pára de gritar e de seres palerma, — disse o David. — Bem sabes que não quero magoar-te, mas tens de vir cá para dentro.
Contudo a João não parava de esbracejar e de dar pontapés. Estava assustadíssima. O Júlio e o David com grande dificuldade conseguiram levar a miúda para a sala de jantar e fecharam a porta. A Ana seguiu-os, amedrontada. Que acontecera?
— Oiçam isto, — disse o Júlio, depois de fecharem a porta. — É inacreditável! segurava uma folha de papel escrita à máquina, enquanto lia em voz alta:
Queremos o segundo livro de apontamentos, o que tem números, e havemos de obtê-lo. Procurem-no e coloquem-no debaixo da última pedra do caminho que atravessa o jardim. Ponham-no lá esta noite.
Temos connosco a menina e o cão. Só os deixaremos em liberdade quando nos derem o que pretendemos. Se disserem à polícia, não voltam a ver nem a menina nem o cão. A casa está vigiada para que ninguém possa sair a avisar a polícia. Os fios do telefone foram cortados. Quando anoitecer, acendam as luzes do compartimento da frente e vocês três sentem-se aí, com a criada Joana, para nós os podermos observar a todos. O rapaz mais velho saia de casa às onze horas, com uma lanterna e ponha o livro de apontamentos onde acima indicamos; em seguida deve voltar para o quarto iluminado. Ouvirão depois um grito, como o piar dum mocho, quando já tivermos ido buscar o livro. Só nessa altura daremos liberdade à menina e ao cão.
Esta mensagem extraordinária e aterradora fez com que a Ana desatasse a chorar, agarrada ao braço do irmão mais velho.
— Júlio! Júlio! A Zé ontem à noite não deve ter voltado do seu passeio com o Tim!
Devem-na ter apanhado nessa altura, e ao Tim também. Porque não começámos logo a procurá-la?
O Júlio, muito pálido, dava voltas à imaginação, pensando: — Sim, alguém estava à espera, não tenho dúvidas, e a Zé e o Tim foram raptados. Depois o raptor, ou um companheiro, voltou aqui a casa e fechou a porta, para fingir que a Zé voltara. E naturalmente alguém tem passado o dia a vigiar-nos para ver se nós estávamos preocupados com a ausência da Zé ou se nos limitávamos a pensar que ela resolvera sair por todo o dia.
— Quem te entregou a carta? — perguntou o David, asperamente, à João, que estava cheia de medo.
Ela respondeu a tremer:—Foi um homem.
— Quem era ele? — perguntou o Júlio.
— Não sei, — disse a ciganita.
— Sabes, sim, — afirmou o David. — Tens de nos dizer, João.
A rapariga parecia obstinada. O David abanou-a e ela tentou fugir. Mas ele segurou-a com força.
«Vamos, conta-nos como era o homem,— disse ele.
— Era alto, tinha uma barba comprida, nariz grande e olhos castanhos, — disse de repente a ciganita. — Estava vestido à pescador e falava com sotaque estrangeiro.
Os dois rapazes olharam para ela com severidade. — Estás a inventar tudo isso, — disse o Júlio.
— Não estou, — garantiu a João aborrecida. — Nunca o tinha visto. Aí têm tudo.
— João, — disse a Ana, pegando-lhe na mãozita muito morena. — Conta-nos tudo o que souberes. Estamos tão, tão preocupados por causa da Zé! — Enquanto falava, os olhos da Ana encheram-se de lágrimas e não pôde conter um soluço.
— Fizeram muito bem em levar essa Zé, — disse a João zangada. — Ela foi má para mim. É antipática e refilona. Teve o que merecia. Não lhes contaria nada, mesmo que soubesse alguma coisa.
— Tu sabes qualquer coisa, — disse o David. — És muito má, João. Nunca mais quero nada contigo. Eu tinha pena de ti mas agora isso acabou-se.
A João ficou muito triste. — Deixem-me ir embora, — disse ela. — O tal homem deu-me uma moeda para eu lhes trazer o bilhete e é tudo quanto sei. E estou satisfeita por a Zé estar em maus lençóis. As pessoas como ela é o que merecem!
— Deixem-na, — disse o Júlio, já farto. — Parece um gato selvagem. Julgava que ela tivesse um fundo bom, mas enganei-me.
— Também eu, — disse o David, largando o braço da João. — Até gostava dela. Vai-te embora, João. Já não precisamos de ti.
A ciganita correu para a porta, abriu-a e fugiu para fora de casa. Houve um silêncio depois de ela se ir embora.
— Júlio, — murmurou a Ana. — Que vamos fazer?
O pequeno não respondeu. Foi até à entrada e levantou o auscultador do telefone na esperança de ouvir o sinal de ligação com o exterior. Depois dum momento voltou a pousá-lo.
— Está desligado, — disse ele. — Cortaram os fios, como dizem na mensagem. E com certeza está alguém a vigiar a casa para que ninguém possa sair. Isto parece tudo mentira.
— Mas não é, — respondeu o David. — É uma terrível verdade. Júlio, tu sabes a que livro se referem? Eu não faço a menor ideia.
— Nem eu, — disse o Júlio. — E é impossível procurá-lo porque o cofre está fechado e a polícia ficou com a chave.
— Então que vamos fazer? — perguntou o David. — Achas que conseguirei sair para avisar a polícia?
O Júlio pensou um bocado. — Não, — disse ele por fim. — Acho que aquela gente é perigosa. Seria terrível se acontecesse alguma coisa à Zé. E por outro lado podiam apanhar-te e levar-te também. Não te esqueças de que estamos a ser vigiados.
— Mas não podemos ficar aqui sentados, sem fazer nada, —> disse o David.
— Bem sei, mas temos que arquitectar um plano com todo o cuidado, — respondeu o Júlio. — Se ao menos soubéssemos para onde levaram a Zé, podíamos ir salvá-la. Mas não vejo como conseguirmos descobrir.
— Se um de nós se fosse esconder ao fundo do jardim e esperasse até ver quem vem buscar o livro de apontamentos, podia seguir o homem que talvez se dirija para onde está a Zé — sugeriu o David.
— Esqueces-te de que temos de nos sentar todos no quarto da frente e eles depois perceberiam com facilidade que faltava um de nós, — disse o Júlio. — Até a Joana tem de se sentar ali. Isto é impossível!
— Vem alguém aqui a casa esta noite? Algum dos fornecedores, por exemplo? — perguntou a Ana, continuando a falar em voz muito baixa.
— Não, por isso não podemos entregar um bilhete a ninguém, — disse o Júlio. Depois deu um soco na mesa, que sobressaltou os outros. — Esperem! Vem cá o rapaz dos jornais! A nossa casa é uma das últimas onde ele vem. Talvez seja perigoso dar-lhe um bilhete escrito. Mas não conseguiremos arranjar nada melhor.
— Escutem, — disse o David, com os olhos a brilhar. — Parece-me que encontrei uma solução. Conheço o rapaz dos jornais; é muito simpático. Vamos abrir a porta da frente e fazêmo-lo entrar logo que apareça. E eu sairei em seguida com o boné dele e a sacola dos jornais, a assobiar. Monto na bicicleta dele e afasto-me. Nenhum dos homens perceberá que eu não sou o rapaz dos jornais. Voltarei quando tiver escurecido, meto-me no fundo do jardim, e escondo-me até ver quem vem buscar o livro de apontamentos e sigo essa pessoa.
— Bela ideia! — aprovou o Júlio, pensando nela detalhadamente. — Deve dar resultado. É melhor vermos quem vem do que dizermos à polícia, pois se esses raptores querem alguma coisa de nós, a Zé passaria um mau bocado quando eles soubessem que conseguimos pôr-nos em contacto com a polícia.
— Mas o rapaz dos jornais não achará esquisito? — perguntou a Ana.
— Nem por isso. Ele é um simples, — disse o David. — Acredita em tudo que lhe dizem. Arranjaremos qualquer desculpa para lhe dar e havemos de o distrair de tal maneira que esta noite ficará memorável para ele.
— E sobre o livro de apontamentos, — continuou o Júlio, — o melhor é tirarmos um qualquer duma gaveta do escritório e embrulhá-lo, com um bilhete dizendo que esperamos ser esse o que eles querem. A pessoa que vier buscá-lo só se preocupará em encontrar um embrulho para entregar aos raptores. Não vai desfazer o embrulho nem mesmo perceberá se é aquele o livro que eles pretendem.
— Vai buscar um livro, Ana, — pediu o David. — Eu fico à espera do rapaz dos jornais. Não deve vir antes das sete e meia mas não quero arriscar-me a perdê-lo se por acaso vier mais cedo.
A Ana correu para o escritório, satisfeita por ter alguma coisa com que estar entretida. Tinha as mãos a tremer, enquanto abria gaveta sobre gaveta, procurando um livro de apontamentos volumoso, para o embrulhar.
O Júlio foi com o David para a porta principal, pois queriam fazer entrar sem demora o desprevenido rapaz dos jornais.
Ali ficaram, pacientemente, ouvindo o relógio bater as seis horas, depois as seis e meia, depois as sete. — Lá vem ele! — disse de repente o David. — Prepara-te para o levares lá para dentro! Olá, Sid!
O SID PASSA UMAS HORAS MARAVILHOSAS
SID, o rapaz dos jornais, ficou admirado por o Júlio o fazer entrar rapidamente para dentro de casa. E ainda ficou mais espantado quando lhe tiraram da cabeça o boné e lhe arrancaram do ombro a sacola dos jornais.
— Que estão a fazer?! — exclamou ele, amedrontado.
— Não te preocupes, Sid, — disse o Júlio, segurando-o com firmeza. — Trata-se duma brincadeira. Vamos fazer-te uma surpresa.
O Sid não gostava de brincadeiras daquele género. Ainda tentou resistir, mas depressa desistiu. O Júlio era alto e forte e muito resoluto. O Sid voltou-se, vendo o David afastar-se com o seu boné aos quadradinhos enfiado na cabeça e com a sacola dos jornais ao ombro. Ficou boquiaberto quando viu o David saltar para a bicicleta que ele deixara ao pé do portão, e seguir pedalando pela estrada acima.
— Onde vai ele? — perguntou ao Júlio, admiradíssimo. — Que brincadeira tão esquisita!
— Tens razão, mas espero que não te importes, — respondeu o Júlio, conduzindo-o com firmeza para a sala de estar.
— Que estão a fazer?! — exclamou Sid, amedrontado.
— Alguém apostou com ele que não era capaz de andar a distribuir jornais? — lembrou o Sid. — E ele resolveu ganhar a aposta, não é?
— És muito esperto, Sid, — respondeu o Júlio. Um grande sorriso alegrou logo a expressão simples do rapazito.
— Espero que os distribua como deve ser, — disse ele. — Só faltam dois para uma quinta lá em cima. A vossa casa é sempre a penúltima a que vou. Quando é que ele volta?
— Daqui a pouco, — disse o Júlio. — Queres jantar connosco, Sid?
Os olhos do Sid quase saíram das órbitas.
— Jantar com os meninos?! — exclamou ele.
— Mas isso é uma honra grande de mais para mim.
— Bem, então senta-te aqui a ver estes livros, — disse o Júlio, entregando-lhe dois ou três livros que pertenciam à Ana. — Vou só dizer à nossa cozinheira para fazer um jantar especial por tu aqui estares.
O Sid estava absolutamente desnorteado com este acolhimento, mas muito resolvido a aceitar o convite do Júlio. Sentou-se no divã, muito sorridente, folheando um dos livros de histórias. Que iria dizer a sua mãe, quando soubesse que ele jantara no Casal Kirrin!? Que surpresa!—pensava o Sid.
O Júlio teve de ir buscar a Joana, para que ela se juntasse a eles. Entrou na cozinha e fechou a porta. Parecia tão grave e sério que a Joana ficou aflita.
— Que aconteceu? — perguntou éla.
O Júlio contou-lhe tudo. Falou-lhe sobre o rapto da Zé e sobre a estranha mensagem, entregando-lha para ela ler. A cozinheira teve de se sentar, pois sentia as pernas a tremer.
«Parece daquelas coisas que se lêem nos jornais, menino Júlio, — disse ela, com uma voz muito transtornada. — Mas nunca se espera que se passe connosco. Não gosto nada disto, é claro que não gosto.
— Nós também não, — disse o Júlio, continuando a contar à Joana tudo o que tinham planeado. Ela fez um sorriso amarelo quando ele lhe explicou como o David saíra em vez do rapaz dos jornais, para ver quem iria buscar o livro de apontamentos, nessa noite; e descreveu também a surpresa do Sid.
— O Sid! — exclamou ela. — Nunca mais se ouvirá falar noutra coisa, em toda a vila. O Sid convidado para jantar aqui!
«Ele é um simples e não faz mal a ninguém. «Descanse que vou arranjar um bom jantar. E depois vou sentar-me com os meninos no quarto iluminado e podemos jogar as cartas. Um jogo que o Sid conheça. Não deve saber mais do que o burro em pé ou a bisca.
— Boa ideia, — aprovou o Júlio, que já estivera tentando descobrir como conseguiriam entreter o Sid depois de jantar. — Vamos jogar à bisca e deixamo-lo ganhar.
O Sid estava encantado com aquela noite deliciosa. Primeiro houve aquilo a que ele chamou «um jantar de arromba», com ovos, fiambre e batatas fritas, seguindo-se uma torta com recheio de compota e um doce de chocolate do qual o Sid comeu cerca de três quartas partes.
— Sou doido por creme de chocolate, — explicou ele à Ana. — A Joana sabe isso; ela sabe, que eu sou doido por tudo que tenha chocolate. É amiga da minha mãe, por isso já sabia. Quando sou doido por uma coisa, como até não poder mais, percebe?
A Ana riu-se e concordou. Ela estava divertida com o Sid, embora continuasse preocupada e aflita. Mas o Sid era tão cómico! Não fazia de propósito; apenas se sentia satisfeitíssimo e declarava-o a cada instante.
Realmente tornava-se um convidado muito agradável. Fazia uma manifestação sincera a tudo quanto aparecia e no fim repetia os maiores elogios, meia dúzia de vezes seguidas. No fim do jantar foi até à cozinha oferecer-se à Joana para lavar a loiça. — Ajudo sempre a minha mãe, — disse ele. — Garanto-lhe que não quebro nada.
Assim ele lavou a loiça e a Ana limpou-a. O Júlio achou que era uma boa maneira de entreter a irmãzita, para que ela não estivesse tão assustada.
O Sid ficou um pouco indeciso quando mais tarde lhe pediram para jogar as cartas. — Eu não sei, — disse ele. — Não tenho jeito para jogar as cartas. Já quiseram ensinar-me o diabrete, mas eu não percebia nada daquilo.
— Pensei em jogarmos à bisca, — disse o Júlio. O Sid animou-se logo.
— À bisca? Isso é o que jogam na minha rua! — disse ele. E era verdade. Os outros deixaram-no ganhar uma porção de jogos seguidos. Ele estava encantado.
«Isto é uma noite de arromba, — não parava de dizer. — Nem sabem como estou a divertir-me. Por onde andará o vosso irmão? Espero que não me estrague a bicicleta.
— Podes estar descansado, — disse o Júlio, dando as cartas para o sexto jogo da bisca. Estavam todos na sala de estar, iluminada, sentados à volta duma mesa perto da janela, o Júlio, a Ana, o Sid e a Joana. Quem estivesse a observá-los do lado de fora da casa, não poderia vê-los com grande nitidez e não adivinharia que o Sid era o rapaz dos jornais e não o David.
Às onze horas o Júlio foi pôr debaixo da pedra, no fundo do jardim, o embrulho que a Ana fizera cuidadosamente. A pequenita encontrara um volumoso livro de apontamentos que achou apropriado, pois parecia não conter nada de importante; embrulhara-o num papel atando-o em seguida. O Júlio metera dentro um bilhete que dizia assim:
Aqui está o livro de apontamentos. Por favor soltem imediatamente a nossa prima. Poderão meter-se num grande sarilho se não o fizerem.
O Júlio foi até ao jardim e iluminou o empedrado com a sua lanterna. Quando chegou à última pedra percebeu que já a tinham tirado antes.
Por isso levantou-a com facilidade e colocou o embrulho numa pequena cova que parecia ter sido preparada para o efeito. Olhou em redor, com cautela, desejando saber se o David estaria escondido em qualquer sítio ali próximo, mas não viu ninguém.
Dois minutos depois voltava à sala de estar, continuando o jogo da bisca com os outros. Jogava o pior possível, não só para fazer com que o Sid ganhasse mas também porque não deixava de pensar no David. Que lhe teria acontecido?
De repente todos se sobressaltaram, ouvindo o piar dum mocho. O Júlio trocou olhares significativos com a Ana e com a cozinheira. Perceberam que era o sinal indicando que o embrulho fora encontrado.
Agora podiam desembaraçar-se do Sid e esperar pelo David.
A Joana saiu, voltando pouco depois com chávenas de chocolate e arrufadas. Os olhos do Sid brilhavam. Que noite maravilhosa!
Passou-se mais uma hora enquanto comiam e bebiam, ouvindo o Sid contar pormenores sobre todos os jogos da bisca em que participara. Depois passou a falar no burro em pé e parecia inclinado a demorar-se um pouco mais, para jogar uma partida deste outro jogo.
— A tua mãe já deve estar em cuidado por tua causa, — disse o Júlio, olhando para o relógio da parede. — É muito tarde.
— Onde está a minha bicicleta? — perguntou o Sid, percebendo, cheio de pena, que a sua «noite de arromba» estava prestes a acabar. — O vosso irmão ainda não voltou? Digam-lhe para a deixar na minha casa antes da minha distribuição dos jornais da manhã. E o meu boné, também. É o meu boné favorito. Sou doido por aquele boné.
— É lindo, — concordou o Júlio, que estava a sentir-se muito cansado. — Agora presta atenção, Sid. É muito tarde e pode haver por aí gente má. Se alguém te falar, corre o mais que puderes e pára só em casa.
— Caramba!—exclamou o Sid, com os olhos muito abertos. — Hei-de fazer o que me diz.
Apertou a mão com grande solenidade a cada um dos pequenos e depois foi-se embora. Assobiava alto para afastar o medo. Um polícia apareceu de repente, ao virar duma esquina, pregando um grande susto ao rapazito.
— Então, Sid, que andas por aqui a fazer a estas horas da noite? — perguntou o polícia.
O Sid nem respondeu. Desatou a fugir e só parou em casa, onde encontrou a sua bicicleta em frente do portão, com o boné e a sacola dos jornais.
— Ora ainda bem! — pensou o Sid. Deitou um olhar desapontado às janelas
sem luz da sua casa. A mãe já estava deitada e naturalmente a dormir. Assim teria que esperar até ao dia seguinte para lhe contar tudo sobre a noite mais notável da sua vida.
Mas, entretanto, que acontecera ao David? Saíra a correr e afastara-se na bicicleta do Sid, com o boné aos quadradinhos enfiado na cabeça. Julgou ter visto um ligeiro movimento numa sebe próxima, calculando que estava alguém escondido ali atrás, a vigiar a casa. Abrandou a marcha de propósito, desmontou, e fingiu arranjar qualquer coisa numa das rodas. Queria que a pessoa escondida visse bem a sua sacola e se convencesse absolutamente que ele era o rapaz dos jornais.
Foi até à quinta onde devia entregar dois jornais e depois voltou à vila, deixando as coisas do Sid em frente da casa dele. Então foi para o cinema, à espera que escurecesse e pudesse voltar ao Casal Kirrin sem ser visto.
Lá partiu finalmente. Depois duma grande volta foi dar à parte de trás do jardim. Onde poderia esconder-se? Já estaria alguém ali escondido? Se assim fosse, tudo acabaria, pois seria apanhado!
O QUE SE PASSOU COM O DAVID
O David parou a escutar, contendo a respiração. Não ouvia nada além do barulho do vento, nas árvores que o cercavam, ou dos guinchos dalgum rato do campo. A noite estava escura, com o céu todo encoberto. Estaria alguém oculto ali próximo ou poderia procurar calmamente um esconderijo e ficar à espera?
Pensou durante alguns minutos e chegou à conclusão de que não devia estar ninguém a vigiar as traseiras da casa desde que anoitecera. O Júlio e os outros estariam bem à vista, sentados na sala iluminada, e portanto não havia necessidade de vigiarem as traseiras.
Hesitava quanto ao sítio onde se devia esconder mas depressa resolveu. — Vou subir a uma árvore, — pensou. — E se subisse àquela que fica mesmo ao pé do caminho empedrado? Se as nuvens desaparecerem talvez consiga perceber como é a cara do homem que vem buscar o embrulho. Depois salto da árvore sem fazer barulho e vou atrás dele.
Subiu para um carvalho que estendia os ramos sobre o caminho. Acomodou-se num dos ramos decidido a esperar pacientemente.
Que horas indicavam na mensagem? Onze horas.
Sim, o Júlio tinha de sair às onze horas para colocar o embrulho debaixo da pedra. Esperou que o relógio da igreja desse horas. Se o vento viesse daquela direcção, poderia ouvi-lo distintamente.
O relógio bateu logo a seguir..Dez e meia. Teria de esperar meia hora, o que era a parte pior. O David meteu a mão no bolso e tirou um pau de chocolate meio derretido. Começou a chupá-lo muito devagar para fazê-lo render o mais possível.
O relógio da igreja deu um quarto para as onze. O David acabou o chocolate, desejando que o Júlio não se demorasse. No momento em que o relógio começou a dar a primeira badalada das onze, abriu-se a porta da cozinha e o David viu aparecer o irmão com um embrulho debaixo do braço.
Viu-o seguir pelo caminho empedrado e olhar em volta. Mas não se atreveu a dar a mais pequena indicação de que se encontrava mesmo por cima da cabeça dele!
Viu o Júlio voltar a pôr a pedra no seu sítio. Depois seguiu a luz da lanterna do Júlio, até desaparecer novamente na porta da cozinha, que se fechou com estrondo.
Em seguida o David mal podia respirar! Quem viria buscar o embrulho? Pôs-se à escuta, muito excitado. O vento soprou e uma folha solta roçou-lhe pelo pescoço, assustando-o. Parecia que lhe tinham tocado com um dedo.
Passaram cinco minutos e ninguém apareceu. Depois ouviu-se um ligeiríssimo ruído.
Seria alguém a sair detrás da sebe? O David apurou a vista mas apenas conseguiu ver um vulto que parecia aproximar-se. Depois ouviu distintamente a respiração duma pessoa, enquanto levantava a pedra. Alguém fora buscar o embrulho!
A pedra voltou para o seu lugar. Uma sombra desapareceu atrás da sebe. Quem tinha ido buscar o embrulho, afastava-se agora.
O David desceu, silenciosamente. Tinha sapatos de borracha e por isso não fazia barulho. Foi até uma abertura da sebe ali próxima e apurou a vista, tentando ver o homem que queria seguir. Ah, lá ia um vulto dirigindo-se para o campo. O David seguiu sempre junto à sebe.
Continuou no encalço do vulto até este saltar o muro do jardim. Quando já estava no caminho em frente, o vulto parou e então o David ouviu repetidas vezes o piar do mocho.
Sem dúvida era o sinal indicando que já tinham ido buscar o embrulho. O David ficou admirado com a excelente imitação do piar do mocho.
O vulto deixou de piar e continuou o seu caminho. Era evidente que não suspeitava de que era seguido e embora caminhasse silenciosamente, não fazia por se esconder. Continuou pelo caminho e depois atravessou um campo.
O David tencionava continuar a perseguição, quando ouviu vozes. Estas eram tão sumidas que o David não conseguia perceber nem uma palavra.
Escondeu-se na sombra dum portão que estava aberto, ali próximo.
De repente, um som forte fê-lo dar um salto. Nessa altura uma luz viva bateu-lhe em cheio nos olhos e o pequeno sentiu-se satisfeito por se poder agachar atrás do portão. Estava um carro ali dentro. Um carro que acabava de acender os faróis e pôr o motor em movimento. Ia passar pelo portão.
O David esforçou-se por descobrir quem ia dentro do automóvel, mas apenas conseguiu ver o homem que ia ao volante. Parecia não levar mais ninguém. Onde estava a outra pessoa, a que fora buscar o embrulho e o entregara ao homem do carro? Continuaria ali? Se assim fosse, o David precisava de ter cautela!
O carro depressa estava na estrada. Ganhou velocidade e o David ouviu-o afastar-se. Não podia perseguir um carro, isso era evidente! Susteve a respiração, tentando perceber algum movimento do outro homem que certamente ainda se encontrava perto. Daí a momentos um vulto atravessou rapidamente o portão, e dirigindo-se para o lado do Casal Kirrin perdeu-se na escuridão do caminho.
Imediatamente o David foi outra vez no seu encalço. Pelo menos podia seguir aquele! Devia caminhar para qualquer sítio determinado!
E com grande surpresa do pequeno o vulto foi até à sebe que crescia perto do Casal Kirrin.
Porque voltaria ali? O David estava intrigado.
Percebeu que o vulto passava através da sebe e continuou a segui-lo. O vulto avançou pelo caminho empedrado, sem fazer o menor ruído e foi espreitar a uma janela que não tinha luz.
— Vai com certeza entrar lá em casa, para voltar a roubar-nos, — pensou o David, enfurecido. Observou o vulto que estava ao pé da janela. Parecia uma pessoa de pequena estatura; o David era capaz de o atacar, atirando-o ao chão. Depois podia desatar aos gritos chamando o Júlio e talvez conseguisse segurar o homenzinho até o irmão chegar.
«E depois seremos nós a fazer um rapto e talvez se consiga negociar com os ladrões, — pensou o David. — Se conservarem a Zé como refém, também nós ficaremos com um deles. Olho por olho, dente por dente.
Esperou que o vulto deixasse a janela e então atirou-se a ele. A vítima caiu logo no chão, soltando um grito.
O David ficou surpreendido com a sua pequena estatura. Mas como lutava! Mordia, arranhava, dava murros e pontapés e os dois começaram a rebolar, quebrando as flores dos canteiros e arranhando as caras, os braços e as pernas nas roseiras. O David não parava de gritar pelo Júlio.
—JÚLIO! JÚLIO! Socorro! JÚLIO!
O Júlio ouviu os gritos e foi logo lá para fora. — David! David, onde estás? Que aconteceu?
Dirigiu a luz da lanterna para o sítio de onde vinham os gritos e viu o David no meio do chão, lutando com alguém. Correu imediatamente a ajudá-lo, deitando a lanterna para cima da relva, pois precisava das suas mãos livres.
Pouco depois conseguiam segurar aquela pessoa, arrastando-a para a porta da cozinha.
Dirigiu a luz da lanterna para o sítio de onde vinham os gritos.
Não parava de gritar. O David reconheceu aqueles gritos. Santo Deus, não podia ser, não podia ser a João!
Não podia ser a João... Mas era! Quando a atiraram para dentro de casa ela deixou de resistir, soluçando e gritando, esfregando as pernas arranhadas e cheias de nódoas negras e chamando aos dois rapazes todos os nomes feios que conhecia. A Ana e a cozinheira acorreram, no maior dos espantos. Que mais acontecera?
— Leva-a lá para cima, — disse o Júlio. — Metam-na na cama. Está num estado lastimoso. E eu também! Não a teria atacado daquela maneira se soubesse que se tratava apenas da João.
— Quem poderia adivinhar! — exclamou o David limpando com o lenço a cara toda suja. — Céus, que gata selvagem! Repara como ela me mordeu.
— Não sabia que eras tu, David. Eu não sabia, — choramingou a João.
— Tu és uma mentirosa, uma impostora, — disse o David, olhando para os arranhões e dentadas que ela lhe dera. — Fingiste que não sabias nada sobre o homem que te entregou aquela mensagem e durante todo este tempo estiveste em contacto com esse bando de ladrões e raptores.
— Eu não estive com eles, — disse a João a chorar.
— Não digas mentiras, — gritou o David, furioso. — Eu estava em cima duma árvore quando tu foste buscar o embrulho que o Júlio pôs debaixo da pedra; fui atrás de ti até àquele automóvel e depois continuei a seguir-te. Voltaste cá a casa para roubar outra vez, não foi?
A João soluçava. — Não foi, não senhor!
— Amanhã vou entregar-te à polícia, — declarou David continuando furioso.
— Eu não voltei para roubar! Voltei para outra coisa, — insistiu a João, com os olhos brilhando na sua cara suja. Parecia um animal assustado.
— Ai sim? Então para que voltaste? Para dares mais narcótico ao cão? — troçou o David.
— Não, — disse a ciganita, com um ar muito infeliz. — Voltei para lhes contar onde está a Zé, se vocês não disserem a mais ninguém. O meu pai matava-me se soubesse que eu o denunciei. Bem sei que fui buscar o embrulho; fui obrigada. Limitei-me a levá-lo para onde me indicaram. Foi o Jake que me mandou. E depois resolvi voltar, para lhes dizer tudo quanto sei. E vocês atacaram-me daquela maneira.
Quatro pares de olhos fixaram a João e ela escondeu a cara. O David agarrou-lhe nas mãos e fez com que a rapariguita olhasse para ele.
— Ouve lá, — disse. — Tem uma grande importância para nós saber se estás a falar a verdade ou não. Sabes onde está a Zé?
A João fez um sinal afirmativo com a cabeça.
— E levas-nos lá? — perguntou o Júlio, com uma voz áspera e fria.
A João disse novamente que sim. — Vocês têm sido antipáticos para mim, mas eu vou mostrar-lhes que não sou tão má como julgam. Vou levá-los onde está a Zé.
A JOÃO COMEÇA A FALAR
DE repente o relógio da entrada deu as horas. Dong!
— Uma hora! — exclamou a Joana.
— Uma hora da madrugada! Menino Júlio, não podemos fazer mais nada por esta noite. A ciganita não está em condições de os levar a parte alguma. Reparem que mal se aguenta de pé.
— Tens razão, Joana, — respondeu logo o Júlio, desistindo da ideia de ir procurar a Zé naquela noite. — Vamos esperar até amanhã. É uma pena que os fios do telefone estejam cortados. Acho que devíamos comunicar já com a polícia.
A João levantou imediatamente a cabeça.
— Então não lhes digo onde está a Zé, — declarou ela. — Sabem o que a polícia me faria se conseguisse agarrar-me? Metia-me numa casa de correcção. E eu nunca mais havia de sair porque realmente sou má. e faço coisas más. Nunca me deram uma oportunidade.
— Todos têm uma oportunidade, mais tarde ou mais cedo, — disse o Júlio, com simpatia. — Também terás a tua e vê se consegues aproveitá-la. Concordo em não meter a polícia neste assunto se prometeres que nos levas onde está a Zé.
É uma troca que nós fazemos.
A João sabia bem o que era uma troca. Respondeu com um sinal afirmativo. A Joana fê-la levantar e levou-a para o andar superior.
— Há um divã no meu quarto, — disse a cozinheira ao Júlio. — Ela pode passar lá a noite mas, embora seja muito tarde, primeiro tem de tomar um banho, pois cheira horrivelmente!
Meia hora depois a João estava instalada no divã do quarto da Joana, bem limpa, ainda que toda marcada da cabeça aos pés com arranhões e nódoas negras. Lavara a cabeça e penteara-se, ficando com o cabelo todo aos caracóis, como a Zé. A Joana dera-lhe uma tijela com sopas de leite.
A cozinheira foi até ao patamar das escadas e chamou para o quarto do Júlio. — Menino Júlio! A João já se deitou e quer dizer qualquer coisa ao menino e ao menino David.
O Júlio e o David vestiram os «robes de chambre» e foram até ao quarto da Joana. A ciganita estava quase irreconhecível. Vestia uma velha camisa de dormir da Ana, tinha um aspecto muito asseado e infantil, mas um tanto trágico.
Ela olhou para os pequenos e esboçou um sorriso. — Tens alguma coisa para nos dizer? — perguntou o Júlio.
— Tenho, sim, — respondeu a ciganita não parando de mexer as sopas de leite. — Neste momento sinto-me bem, muito limpa e tudo o mais. Mas pode ser que amanhã me sinta como normalmente e depois talvez não lhes conte tudo.
Por isso é melhor falar-lhes já.
— Podes começar, — disse o Júlio.
— Fui eu que deixei os homens entrar cá em casa, na noite em que aqui estiveram, — declarou a João. O Júlio e o David fitaram-na, pasmados. A João continuava a mexer as sopas de leite.
«Pois é verdade, — prosseguiu ela. — Passei por aquela janelita muito pequena, que deixaram aberta, e depois fui até à porta das traseiras e abri-a para os homens entrarem. Desarrumaram o escritório todo, não foi? Eu estava lá. Levaram uma data de papéis.
— Tu não conseguias passar por aquela janelinha, — interrompeu o David.
— Mas passei, — afirmou a João. — Eu... eu já tenho passado por uma porção de janelas pequeníssimas. Sei como devo encolher-me. Dantes até passava por mais pequenas, mas agora estou muito crescida. Pela vossa foi fácil.
— Uf! — fez o Júlio, respirando fundo. Nem sabia o que dizer. — Bem, vamos, continua. Naturalmente, quando os homens acabaram, trancaste a porta da cozinha depois de eles fugirem e tornaste a passar pela janela da copa, não foi?
— Foi sim, — disse a João, comendo as sopas de leite.
— E que fizeste ao Tim? Foste tu que lhe deste o narcótico que o fez dormir toda a noite? — perguntou o David.
— Fui, — disse a João. — Não me custou nada.
Os dois rapazes estavam atónitos. Pensar que fora a João quem fizera tudo aquilo! Ao que levava a miséria!
«Não se lembram de que o Tim ficou meu amigo, lá na praia? — disse a João. — A Zé até se aborreceu com isso. Eu gosto de cães, sempre tivemos dúzias deles até a minha mãe morrer, e consigo que eles façam tudo quanto eu mando. O pai disse-me que eu devia tornar-me amiga do Tim para naquela noite lhe dar um bocado de carne com qualquer coisa.
— Estou a compreender. E foi facílimo, pois nós mandámos o Tim sair sozinho e ele foi logo ter contigo, — disse o David com amargura.
— Sim, foi logo ter comigo e ficou contente por me ver. Fomos dar um grande passeio e de vez em quando deixava-o cheirar a carne que eu levava. Quando lha dei comeu-a logo.
— Por isso dormiu durante toda a noite e assim os teus queridos amigos puderam entrar aqui em casa, — acrescentou o Júlio. — Tudo quanto posso dizer é que tu és uma velhacazita de categoria. Não te sentes envergonhada?
— Não sei bem, — disse a João, que não tinha uma ideia precisa sobre o sentimento da vergonha. — Querem que não lhes conte mais nada?
— Não, por amor de Deus! — apressou-se a exclamar o David. - Qual foi o teu papel no rapto da Zé?
— Tive apenas que piar como um mocho quando a Zé e o Tim saíram, — disse a João.
— Eles estavam a postos, com um saco para lhe enfiarem pela cabeça e tencionavam dar uma pancada com um pau na cabeça do Tim e metê-lo também num saco. Foi o que ouvi dizerem. Mas não assisti a isto, pois tive de voltar aqui para fechar a porta e assim, se ninguém desse por falta da Zé até de manhã, ficariam convencidos de que ela saíra cedo para qualquer parte.
— E foi o que nós pensámos, — murmurou o David. — Fomos mesmo imbecis! A única coisa inteligente que resolvemos foi seguir a pessoa que veio buscar o embrulho.
— Era eu, disse a João. — E resolvera voltar para lhes dizer que os levava até onde está a Zé. Não porque goste dela. Acho-a antipática e embirrenta. Gostava de que a raptassem por muitos anos!
— Que menina tão bondosa, — disse o Júlio ao David, desiludido. — Que podemos fazer duma miúda como esta?
O Júlio voltou-se novamente para a João.
— Mas se gostavas de que a Zé fosse raptada por muitos anos, porque te decidiste a vir dizer-nos como podemos encontrá-la? — perguntou ele, intrigado.
— Bem, eu não gosto da Zé, mas gosto dele! — disse a João, apontando com a colher para o David. — Ele foi simpático para mim e eu quero ser também simpática para ele.
É muito raro eu ter uma ideia assim, — acrescentou ela, imediatamente, como se a bondade fosse uma espécie de fraqueza nada digna de admiração. — Eu quero que ele continue a gostar de mim, — continuou.
O David fitou-a. — Eu gostarei de ti se nos levares onde está a Zé, — disse ele. — Mas é a única maneira. Se nos enganares ficarei a pensar que és como um desses amargos caroços de abrunho; só bons para cuspir o mais longe possível.
— Hei-de levá-los amanhã, — respondeu a João.
— Mas onde está a Zé? — perguntou o Júlio, sem mais rodeios. Ele pensou que seria bom sabê-lo naquele momento, pois a João podia mudar de parecer no dia seguinte, voltando a ser tão mentirosa como normalmente.
A João hesitou. Olhava para o David. — Serias muito bondosa se nos contasses,—disse o David com uma voz agradável. A João gostava de um pouco de simpatia e o David sabia levá-la.
— Bem, — murmurou ela. — Lembram-se de que eu lhes contei como o meu pai se foi embora, deixando-me entregue ao Jake? O meu pai não me disse o motivo, mas o Jake contou-me tudo. Ele fechou a Zé e o Tim no nosso carro, atrelou o Preto, o cavalo, e fugiu com eles durante a noite. E eu sei muito bem para onde foram, pois sempre vai para o mesmo sítio, quando quer esconder-se.
— Onde é? — perguntou o Júlio sentindo-se tão assombrado com estas revelações extraordinárias que chegava a pensar se não estaria sonhando.
— No Bosque dos Corvos, — disse a João.
— Vocês não sabem onde fica, mas eu sei. Amanhã levo-os lá. Agora já não tenho mais nada para lhes contar.
A ciganita recomeçou a mexer as sopas de leite, com grande rapidez, olhando para os rapazes através das suas pestanas compridas.
O David observava-a. Estava certo de que ela falara verdade, embora estivesse igualmente convencido de que teria mentido se isso lhe desse proveito.
Ele achava-a uma criaturinha cheia de defeitos, mas não conseguia deixar de sentir admiração pela sua coragem.
Olhou para as nódoas negras e arranhões da ciganita e mordeu os lábios ao lembrar-se da maneira como a atacara e lhe batera, dando-lhe socos e pancadas, nem sequer suspeitando de que se tratava da João.
— Desculpa de ter-te magoado, — disse ele.
— Bem sabes que não foi de propósito.
A João olhou para o pequeno como uma escrava olha para um rei.
— Não tem importância, — disse ela. — Por ti sou capaz de fazer tudo o que quiseres. Tu és muito bondoso.
A Joana bateu à porta, com impaciência.
— Ainda não se despacharam, meninos? — perguntou ela. — Quero ir meter-me na cama. Digam à João para não falar mais e os meninos vão também deitar-se.
Os pequenos abriram a porta.
A cozinheira reparou que tinham uma expressão muito séria e percebeu que a João lhes contara qualquer coisa de grande importância. Tirou a tigela vazia das mãos da ciganita e fê-la deitar-se para dormir.
«Agora trata de adormecer bem depressa. Se te ouço andares a girar dum lado para o outro durante a noite, levanto-me e dou-te uma sova tal que não conseguirás sentar-te durante um mês, — disse a Joana, num tom severo mas delicado.
A João riu-se. Ela compreendia aquela maneira de falar. Aconchegou-se nos cobertores, encantada com o seu calor e macieza. Já estava meio adormecida. A Joana meteu-se na cama e apagou a luz.
«Duas horas da manhã! — resmungou ela, ao ouvir o relógio da entrada a badalar. — Que palestras! Não conseguirei acordar a tempo de dizer ao leiteiro que quero mais leite.
Pouco depois só o Júlio continuava acordado. Não sabia se estava a proceder bem ou mal. A pobre Zé estaria em lugar seguro? Aquela descarada da João levá-los-ia até ao carro, no dia seguinte? Ou pensaria em conduzi-los direitinhos para a boca do lobo? O Júlio não sabia.
A PROCURA DA ZÉ
A Joana foi a única pessoa da casa que acordou razoavelmente cedo na manhã seguinte, conquanto não chegasse a tempo de apanhar o leiteiro. Apressou-se a descer a escada, ainda a atar o avental, às sete e meia, uma hora mais tarde do que habitualmente. — Sete e meia, que lindas horas para uma pessoa se levantar! — resmungava ela, acendendo o fogão. Começou a pensar em todos os acontecimentos da véspera; o princípio da noite passado com o Sid, o David apanhando a João e a história extraordinária da ciganita. Ela tinha olhado para a João antes de descer, pois chegara a supor que a atrevida maltrapilha tivesse desaparecido durante a noite.
Mas a João estava enrolada como um gatinho, com a cara muito morena encostada à mão da mesma cor castanha, com o cabelo limpo e brilhante caindo sobre os seus olhos bem fechados. Nem se mexeu enquanto a Joana andou pelo quarto, lavando-se e vestindo-se.
Os três irmãos também dormiam profundamente. O Júlio foi o primeiro a acordar, mas só às oito horas. Recordou-se imediatamente de tudo quanto acontecera e saltou logo para fora da cama.
Foi direito ao quarto da cozinheira. Ouviu-a no andar de baixo, falando sozinha, como de costume. Espreitou pela porta entreaberta do quarto. Felizmente a João continuava ali.
Avançou e abanou-a levemente. Ela deu uma volta e afundou a cabeça na almofada. O Júlio abanou-a com mais força. Tencionava fazê-la levantar para os conduzir onde estava a Zé, o mais depressa possível.
E embora pareça inacreditável, estavam todos prontos às oito e vinte, comendo flocos de aveia, com um ar preocupado. A João também comeu flocos de aveia, na cozinha, e os pequenos ouviam a Joana descompô-la por não ter termos à mesa.
— Tens que encher a boca dessa maneira, como se o cão viesse lamber o prato antes de teres tempo para acabar? E quem te ensinou a meter os dedos na compota e depois lambê-los? Olha que eu vejo, mesmo de costas, por isso tem cuidadinho com o que fazes!
A João gostava da cozinheira. Sabia como proceder com ela. Se fizesse o que a Joana lhe mandasse, esta dava-lhe boa comida e não a maçava muito; mas no caso contrário, podia esperar mais alguma coisa, que já conhecia muito bem: uns bofetões e grandes descomposturas. A criada era bondosa mas impaciente e nenhuma criança a temia. A João seguia-a como um cãozito, quando terminara o pequeno almoço.
O Júlio apareceu na cozinha às nove horas.
— Onde está a João? — perguntou ele. — Oh, aí estás tu! E se nos levasses já ao lugar onde se encontra o carro do teu pai?
Tens a certeza de que conheces o caminho?
A João soltou uma gargalhada trocista. — Claro que conheço! Não há sítio nenhum nestas redondezas que eu não conheça.
— Está bem, — disse o Júlio, mostrando-lhe um mapa que estendeu sobre a mesa da cozinha. Pôs um dedo sobre um ponto. — Aqui fica Kirrin, — continuou. — E aqui está um lugar chamado Bosque dos Corvos. É este o lugar a que te referes?
Como achas melhor irmos até lá? Por esta estrada ou por aquela?
A João olhou para o mapa. Este não significava nada para ela. Reparou vagamente no lugar para onde o Júlio apontara.
«Então? — perguntou o Júlio, impaciente.
— É este o Bosque dos Corvos que tu conheces?
— Não sei, — afirmou a João, desanimada.
— Aquele que eu digo é um bosque verdadeiro; não percebo nada deste mapa.
A Joana deu um suspiro. — Menino Júlio, está a perder tempo mostrando-lhe mapas. Naturalmente nunca viu nenhum. Ela nem sequer sabe ler!
— Palavra? — exclamou o Júlio, incrédulo. — Então também não sabe escrever.
Voltou-se para a ciganita com um olhar interrogativo.
Ela abanou a cabeça. — A mãe ainda tentou ensinar-me a ler, — disse a João. — Mas ela também não sabia grande coisa. De qualquer maneira, para que serve saber ler? Ajuda alguém a apanhar ratos ou a arranjar um peixe para o almoço?
— Isso não. Mas serve para muitas outras coisas, — respondeu o Júlio, divertido.—Bem, os mapas não te servem para nada, já estou a ver.
Enrolou o mapa, pensativo. Era difícil saber a melhor maneira de lidar com uma pessoa como a João, que sabendo tão pouco sobre algumas coisas, sabia tanto sobre outras.
— Ela sabe bem qual é o caminho,— afirmou a Joana, lavando uma panela. — Essa gente é como os cães. Conhecem pelo cheiro as estradas que procuram.
— Tu vais a farejar o caminho, como um cão? — perguntou a Ana, com curiosidade. A Ana entrara para ver o que se passava e estava muito inclinada a acreditar que a João farejava o caminho, aqui e ali, como o Tim costumava fazer.
— Não, — respondeu a ciganita.—Limito-me a saber por qual caminho devo seguir. E nunca vou pelas estradas. Leva-se muito mais tempo a chegar a qualquer sítio. Vou pelo caminho mais curto, percebem?
— Mas como sabes que é o caminho mais curto? — perguntou a Ana.
A João encolheu os ombros. Aquelas perguntas aborreciam-na muito.
— Onde está o outro rapaz? — perguntou ela. — Não vem? Eu quero vê-lo.
— Tem uma loucura pelo menino David, — disse a Joana, lavando outra panela. — Lá vem ele. Agora pode ir lamber-lhe as botas, Joãozinho!
— Olá, João! — exclamou o David com um dos seus simpáticos sorrisos. — Estás pronta a acompanhar-nos?
— É melhor irmos de noite, — respondeu a João, fitando o David.
— Não, não! — disse logo o pequeno. — Vamos agora. Não nos fazes desistir assim. Agora, João, agora!
— Se o meu pai nos vir aproximar fica maluco, — disse a João, obstinada.
— Muito bem, — disse o David olhando para o irmão. — Vamos sozinhos. Encontrámos o Bosque dos Corvos no mapa portanto podemos facilmente chegar até lá.
— Pfff! — fez a João, com ironia. — Pode ser que lá cheguem, mas o Bosque dos Corvos é muito grande e só o pai e eu é que sabemos onde costumamos esconder o carro. E se o pai quer ter a Zé em segurança há-de levá-la para o nosso esconderijo, no meio do bosque, percebem? Não podem ir sem mim.
— Está bem. Então vamos pedir à polícia que nos leve, — disse o Júlio, alegremente. — Hão-de ajudar-nos a fazer uma busca de ponta a ponta e depressa encontraremos a Zé.
— Não! — gritou a ciganita, muito assustada. — Vocês prometeram que não contavam nada à polícia!
— Tu também fizeste uma promessa, — disse o Júlio. — Foi um contrato. Mas já vejo que ninguém pode confiar em ti. Vou já na minha bicicleta até ao posto da polícia.
Mas antes de ter tempo de sair da cozinha, a João puxou-o, agarrando-o por um braço, como uma gata. — Não, não! Eu levo-os! Eu faço aquilo que disse! Mas garanto-lhes que seria melhor irmos durante a noite.
— Não estou para mais discussões, — disse o Júlio, fazendo com que a João lhe largasse o braço. — Se queres fazer o que prometeste vem já connosco. Resolve-te.
— Está bem, eu vou.
— Não acham melhor darmos-lhe outro par de calções? — lembrou a Ana, vendo de repente um grande buraco nos calções coçados da João. — Ela não pode sair assim. E reparem na camisola: está cheia de buracos.
— Ficava a cheirar um pouco melhor com roupas lavadas, — disse a Joana. — Tenho ali um par de calções velhos da menina Zé que eu lavei e cosi na semana passada. A João pode vesti-los. E também pode pôr uma das camisolas mais usadas da menina Zé.
Cinco minutos depois a João vestia um par de calções muito limpos, embora bastante remendados, e uma camisa parecida com a de Ana. Esta olhou para a ciganita e desatou a rir.
— Agora estás mais parecida do que nunca com a Zé! Podiam ser irmãs!
— Irmãos, queres tu dizer, — gracejou o David. — Zé e João, que par!
A ciganita ficou zangada. Não gostava da Zé e não queria parecer-se com ela.
— Agora até tem um ar zangado igual ao da Zé! — exclamou a Ana.
A João virou-lhe as costas. — Vamos! — disse o Júlio, impaciente. — João! Estás a ouvir? Vamos já embora. Leva-nos ao Bosque dos Corvos.
— O Jake pode ver-nos — disse a João, obstinada. Ela resolvera demorar o mais possível a partida.
— Pois pode, — disse o Júlio, que não pensara nisso. — Bem, tu vais a uma certa distância e nós seguimos-te. Assim o Jake não perceberá que nos estás a indicar o caminho.
Partiram por fim. A Joana embrulhara-lhes o almoço para o caso de se demorarem. O Júlio meteu o embrulho dentro dum saco e pô-lo ao ombro.
A João foi pelas traseiras e dirigiu-se para a estrada através duma pequena mata. Os outros saíram pelo portão principal e foram caminhando devagar, esperando que a João aparecesse.
«Ali vai ela, — disse o Júlio. — A caminho! Não podemos perder de vista aquela endiabrada. Não ficaria nada surpreendido se ela desaparecesse de repente.
A João lá seguia, a uma distância considerável. Fazia de conta que não dava pelos outros, mas eles não tiravam os olhos dela.
Mas de repente uma coisa aconteceu. Saindo duma sebe apareceu uma pessoa no caminho, parando em frente da João e dizendo-lhe qualquer coisa. Ela desatou aos gritos e tentou afastar-se. Mas o homem agarrou-a com força e levou-a para trás da sebe.
— Era o Jake! — disse o David. — Tenho a certeza de que era o Jake! Devia andar à procura dela. Agora que vamos nós fazer?
O CARRO DO SIMMY
Correram para o lugar onde Jake agarrara a João. Mas não se via nada de especial além de alguns ramos arrancados. Nem o Jake nem a João!
E também não se ouvia nenhum barulho. Nem um grito da João, nem um berro do Jake. Era como se os dois se tivessem metido no meio da sebe e desaparecessem em seguida. O David atravessou pela sebe até ao campo que ficava atrás. Também ali não se encontrava ninguém, e só se viam umas vacas que olharam surpreendidas para o pequeno.
— Lá ao fundo deste campo fica uma pequena mata, — explicou o David aos irmãos. — Aposto que estão ali. Vou ver.
Correu pelo campo fora até à mata. Mas ali também não se via ninguém. No meio da mata estavam espalhadas algumas casas. O David olhou para elas, desesperado.
«Naturalmente o Jake levou-a para uma daquelas casas, — pensou ele, furioso. — É capaz de viver ali. Agora com certeza que não a larga, pois vai descobrir que ela está do nosso lado. Pobre João!
Foi ter com os outros e começaram a discutir o caso em voz baixa.
— Vamos prevenir a polícia, — pediu a Ana.
— Isso não. Vamos sozinhos até ao Bosque dos Corvos, — disse o David. — Nós sabemos onde fica. Não seremos capazes de seguir o caminho que a João nos indicaria mas pelo menos saberemos orientar-nos pelo mapa.
— Também concordo, — disse o Júlio. — Vamos embora! E depressa!
Continuaram por um atalho, atravessaram um campo e chegaram por acaso a uma estrada. Passou um autocarro na direcção contrária à que resolveram tomar.
— Quando chegarmos a uma paragem dos autocarros, poderemos ver se há algum que passe próximo do Bosque dos Corvos, — lembrou o Júlio. — Ganhamos muito tempo se tomarmos um autocarro. Chegamos lá muito antes do Jake, no caso de ele resolver ir avisar o pai da João que nós vamos a caminho. Até aposto que a João lhe contará tudo! É mais fácil acreditar numa víbora do que naquela endiabrada.
— Detesto a João! — disse a Ana, quase a chorar. — Não acredito nela, nem um bocadinho. E tu, David?
— Não sei bem, — respondeu o irmão. — Não cheguei a perceber. Ainda não mostrou se podemos acreditar nela ou não. Seja como for, ela voltou atrás para nos contar o que sabia, na noite passada.
— Não acredito que ela tenha voltado com essa intenção, — disse a Ana teimosamente.
— Acho que ela voltou para nos espiar e roubar.
— Talvez tenhas razão, — disse o David.
— Olhem, aqui está uma paragem de autocarro com um horário!
Um dos autocarros parecia dirigir-se para próximo do Bosque dos Corvos e devia passar ali dentro de cinco minutos. Sentaram-se num banco ao pé da paragem, ficando à espera. O autocarro foi pontual, aparecendo ao fundo da estrada, cheio de mulheres que iam para o mercado. Eram quase todas muito gordas, com cestos enormes, sendo difícil passar lá para dentro.
Saíram todos perto do mercado. O Júlio pediu que lhe indicassem o caminho para o Bosque dos Corvos. — É por ali, — disse o condutor, apontando para um sítio mais abaixo, onde se viam muitas árvores, cobrindo um vale. — É um grande bosque. Não se percam. E tenham cuidado com os ciganos. Costumam lá estar bandos deles!
— Obrigado, — disse o Júlio, seguindo com os irmãos para o vale. Daí a pouco chegaram ao bosque.
— É um verdadeiro bosque! — notou a Ana. — Só tem árvores e mais árvores. No meio deve ser cerrado como uma floresta.
Aproximaram-se dum pequeno acampamento de ciganos. Viam-se três carros bastante sujos e uma porção de crianças ciganas muito escuras, saltando à corda. O Júlio observou rapidamente os carros. Tinham os três as portas abertas.
— A Zé não deve estar aqui, — disse ele aos irmãos, em voz baixa. — Quem me dera saber exactamente para onde devemos ir. Talvez o melhor seja seguir aquele caminho mais largo. O carro da João precisa dum caminho com suficiente largura para passar.
— Não poderíamos perguntar se viram o carro da João por estes lados? — lembrou a Ana.
— Não sabemos o nome do pai dela, — respondeu o Júlio.
— Mas podemos explicar que se trata dum carro puxado por um cavalo chamado Preto, onde vive uma rapariga chamada João, com o pai, — disse a Ana.
— Tens razão. Já me tinha esquecido do cavalo, — respondeu o Júlio. Depois foi ter com uma mulher de idade que estava a mexer qualquer coisa num tacho escuro, sobre uma pequena fogueira. O Júlio achou que ela era tal qual uma bruxa. A mulher fixou o pequeno através do seu cabelo grisalho e desalinhado.
— Podia fazer o favor de me dizer se está aqui no bosque um carro puxado por um cavalo chamado Preto? — perguntou o pequeno delicadamente. — Vive lá uma rapariga chamada João, com o pai. Queríamos falar com ela.
A velhota piscou os olhos. Tirou do tacho uma colher de ferro e apontou-a para a direita. — O Simmy foi ali para baixo, — disse ela. — Desta vez ainda não vi a João; mas como a porta do carro estava fechada talvez ela esteja lá dentro.
Que querem vocês da João?
— É só para a vermos, — respondeu o Júlio, incapaz de encontrar uma razão de peso para ir fazer uma visita a uma ciganita naquele momento.—O pai dela chama-se Simmy?
A velha disse que sim, continuando a mexer o tacho. O Júlio foi ter com os outros.
«Para este lado, — disse enquanto desciam por um caminho, que tinha a largura suficiente para um carro. A Ana olhou para cima; só se viam ramos de árvores baloiçando ligeiramente.
— Acho que os ramos devem ter roçado pelo tecto do carro durante todo o percurso, — disse ela. — Que vida tão estranha! Passar os dias num pequeno carro, escondendo-se nos bosques e nos campos!
Continuaram a descer pelo caminho que serpenteava por entre as árvores. Algumas vezes as árvores aproximavam-se tanto umas das outras que parecia impossível que tivessem passado carros por ali. Mas o trilho das rodas no chão mostrava que realmente conseguiam passar.
Um pouco mais longe, o bosque tornou-se muito cerrado e a luz do sol mal podia passar através dos ramos. O caminho continuava, mas a partir de certa altura só se viam as marcas dum único par de rodas.
Naturalmente tratava-se das rodas do carro do Simmy.
Aqui e ali havia árvores a que faltavam ramos e via-se um arbusto arrancado e atirado para longe.
— O Simmy resolveu ir bem para o meio do bosque da última vez que por aqui passou, — disse o Júlio, apontando para um arbusto arrancado que murchava à beira do caminho.
— Teve que desimpedir o caminho, em vários sítios. Agora já não estamos numa verdadeira passagem; limitamo-nos a seguir o trilho das rodas.
Era verdade. O carreiro acabara. Estavam numa parte do bosque ainda mais cerrada, tendo apenas para se guiarem os sinais deixados pelas rodas do carro. Tudo era silêncio e calma. Não havia passarinhos a cantar e os ramos das árvores eram tão frondosos que espalhavam à sua volta uma espécie de meia luz esverdeada.
— Quem me dera que o Tim estivesse connosco, — murmurou a Ana a certa altura.
O Júlio concordou, pois havia muito tempo que o desejava. E também estava arrependido de ter levado a Ana; no momento da partida tinham a João para os guiar e preveni-los de qualquer perigo mas agora tudo mudara.
— Acho melhor seguirmos com a maior precaução, — disse ele em voz baixa. — Podemos dar com o carro sem esperarmos. E devemos evitar que o Simmy nos oiça e fique de sobreaviso.
— Vou um pouco mais à frente para vos avisar se vir ou ouvir alguma coisa, — disse o David. Depois afastou-se um pouco, espreitando por trás das árvores, quando chegava a alguma curva do caminho que seguira o carro. O Júlio estava convencido de que encontrariam a Zé e o Tim bem fechados à chave.
Se conseguirmos abrir a porta para fazê-los sair, o Tim se encarregará do resto, — pensou ele. — Ele é tão bom como três polícias juntos! Bem, este será o melhor plano.
O David parou de súbito e levantou o braço, para os avisar. Espreitou por detrás do tronco duma grande árvore e depois voltou-se, fazendo um sinal muito entusiasmado.
— Encontrou o carro, — disse a Ana, com o coração a bater mais apressado.
— Fica aqui, — pediu-lhe o Júlio, e avançou ao encontro do David. A Ana meteu-se por baixo dum arbusto. Não gostava daquele bosque escuro e silencioso, com aquela luz esverdeada. Pôs-se a espreitar para ver os irmãos.
O David tinha visto de repente o carro. Era pequeno, com a pintura a estalar, parecendo completamente abandonado. Não havia nenhum lume a arder perto. Não se via o Simmy em parte alguma e até mesmo o Preto, o cavalo, não estava por ali.
Os rapazes observaram tudo com a maior atenção durante alguns minutos, muito quietos e sem se atreverem a falar. Não saía nenhum som da pequena clareira onde estava o carro.
As janelas e a porta estavam fechadas. Todo aquele lugar tinha um aspecto de abandono.
— David, — murmurou o Júlio por fim. — Parece que o Simmy não anda por aqui. Chegou a nossa oportunidade. Vamos até ao carro e espreitamos pela janela. Atrairemos a atenção da Zé e tiramo-la dali, com o Tim, com a maior rapidez possível.
— É esquisito que o Tim não ladre, — disse o David, também em voz baixa.
— Acho que ainda não nos ouviu. Vamos já até ao carro?
Correram sem fazer barulho até ao pequeno carro e o Júlio espreitou por uma janela muito suja. Estava tão escuro lá dentro que não conseguiu ver nada.
«Zé! — chamou baixinho. — Zé! Estás aí?
A ANA NÃO GOSTA DE AVENTURAS
NÃO veio resposta nenhuma do interior do carro. Talvez a Zé estivesse a dormir, ou narcotizada! E o Tim também. O Júlio sentiu-se muito aflito. Seria horrível se tivessem maltratado a Zé!
Tentou novamente espreitar pela janela, mas com a pouca luz do bosque e a sujidade do vidro era impossível ver lá para dentro.
— Vamos bater à porta? — perguntou o David.
— Não. O Simmy apareceria logo, se andasse aqui perto, e se a Zé estivesse lá dentro, acordada, teria ouvido as nossas vozes, — disse o Júlio.
Foram cautelosamente até à porta do carro, na parte detrás. Não havia chave na fechadura. O Júlio franziu o sobrolho.
O Simmy devia ter levado a chave com ele. Isso significava que tinham de arrombar a porta, fazendo barulho. O pequeno subiu a pequena escada e empurrou a porta. Parecia bem forte. Como conseguiria arrombá-la? Não tinha nenhuma espécie de ferramenta e dava ideia de que a porta não iria dentro só com pontapés e empurrões.
Bateu ao de leve na porta. Não se ouviu o mais pequeno movimento. Que coisa tão estranha!
Experimentou girar a maçaneta e esta moveu-se com facilidade.
E não só se moveu com facilidade, como a porta se abriu!
— David! Não estava fechada à chave! — exclamou o Júlio, esquecendo-se de falar em voz baixa, tal fora a surpresa. Entrou no carro escuro, agora com poucas esperanças de encontrar a Zé e o Tim.
O David seguiu o irmão. Cheirava horrivelmente e estava tudo desarrumado. Não havia ninguém. Estava completamente vazio tal como o Júlio receara.
Este lamentou-se. — Fazer toda esta caminhada, para isto! Levaram a Zé para qualquer outro lugar. Agora estamos perdidos, David. Não temos nenhuma pista para seguirmos.
O David tirou a lanterna da algibeira. Fez incidir a luz sobre cada um dos objectos que estavam no carro, procurando um sinal indicando que a Zé ali estivera. Mas não havia absolutamente nada que lhe mostrasse que a Zé e o Tim haviam estado naquele carro.
— Parece que a João inventou toda aquela história sobre o pai raptando a Zé, — disse ele furioso. — Dá ideia de que nunca aqui esteve.
A luz caiu sobre a parede de madeira e o David viu qualquer coisa que lhe chamou a atenção. Alguém escrevera umas palavras na parede!
Olhou mais de perto. — Júlio! Não é a letra da Zé? Repara! Que está aqui escrito?
Os dois rapazes inclinaram-se sobre a parede suja; «Torre Vermelha, Torre Vermelha, Torre Vermelha», estava ali escrito várias vezes numa letra miudinha.
«Torre Vermelha! — exclamou o David. — Que significará? É a letra da Zé?
— Acho que sim, — disse o Júlio. — Mas porque escreveria a mesma coisa tantas vezes?
Será o nome do lugar para onde a levaram? Pode ter ouvido os homens dizerem qualquer coisa a esse respeito e escrevinhou aqui rapidamente, para nós vermos, se encontrássemos o carro e o examinássemos. Torre Vermelha! Que nome esquisito!
— Pode tratar-se duma casa com uma torre vermelha, — lembrou o David. — Acho que o melhor é voltarmos para trás e irmos contar tudo à polícia. Eles hão-de descobrir uma Torre Vermelha em qualquer parte.
Tristemente desapontados, os rapazes foram ter com a Ana. Esta saiu debaixo do arbusto, quando os irmãos se aproximaram.
— A Zé não está ali, — disse o David. — Foi-se embora mas já lá esteve, pois vimos algumas palavras escritas por ela na parede interior do carro.
— Como sabem que foi ela? — perguntou a Ana.
— Escreveu «Torre Vermelha» várias vezes e o T e o V são iguais aos dela, — explicou o David. — Nós pensamos que ela deve ter ouvido alguém dizer que iam levá-la para a Torre Vermelha, mas não calculamos onde fique. Agora vamos direitos à polícia. Não devíamos ter acreditado na João. Assim perdemos imenso tempo.
— Vamos comer qualquer coisa, — propôs o Júlio. — Não precisamos de nos sentar. Comeremos enquanto caminhamos.
Mas ninguém tinha apetite. A Ana disse que se sentia enjoada. O Júlio estava demasiado preocupado, e o David estava com um tal desejo de se ir embora daquele sítio que não queria perder tempo a desembrulhar as sanduíches! Assim voltaram para trás, seguindo os trilhos das rodas, como anteriormente.
De repente fez-se muito escuro e começou a cair chuva sobre as folhas das árvores, fazendo um barulho característico. Depois ouviu-se um trovão. A Ana agarrou-se ao braço do Júlio, assustada.
— Júlio! Durante uma trovoada é perigoso estar-se num bosque, não é? Ó Júlio, pode cair-nos um raio em cima!
— Não digas isso, — respondeu o Júlio. — Um bosque não é mais perigoso do que qualquer outro sítio. Abrigar-nos debaixo duma árvore isolada é que pode ser um perigo. Olha, há ali uma pequena clareira, se quiseres vamos para lá.
Mas quando chegaram à clareira a chuva caía com tanta força que o Júlio achou que ali ficavam todos ensopados. Correu com a Ana para uns arbustos e agacharam-se debaixo deles, esperando que passasse a trovoada.
Em breve parou a chuva e a trovoada desviou-se para leste. Nem chegaram a ver nenhum relâmpago. O bosque tornou-se um pouco menos escuro, como se algures, acima da espessa ramagem verde, brilhasse o sol!
— Odeio este bosque, — disse o David, saindo debaixo dos arbustos. — Vamos embora depressa. Tornemos a seguir o trilho das rodas.
O David foi andando por entre as árvores. O Júlio chamou-o. — Espera, David, tens a certeza de que é por aí?
O pequeno parou sobressaltado. — Bem, — começou ele, indeciso. — Acho que é, mas não tenho a certeza. Que te parece?
— Julguei que era através daquelas árvores, para ali, — disse o Júlio. — Onde fica aquela pequena clareira.
Foram até à clareira. — Mas esta não é a mesma clareira, — disse logo a Ana. — A outra tinha uma árvore caída. E aqui não está nenhuma.
— Meu Deus! — exclamou o Júlio. — Então vamos tentar aquele outro lado.
Foram para a esquerda e depressa se encontraram numa parte do bosque mais espessa do que qualquer outra.
O Júlio sentiu-se muito aflito. Que grande idiota fora ele! Devia ter percebido que era uma loucura saírem do único caminho que conheciam sem o marcarem de qualquer maneira.
Agora ele não fazia a menor ideia do modo de ir ter ao caminho que tinha o trilho das rodas. Podia ser em qualquer direcção! Nem mesmo se podia guiar pelo sol!
Olhou tristemente para os irmãos. — Má sorte! — disse o David. — Temos que nos decidir a tomar um caminho. Não podemos ficar aqui.
— E se vamos cada vez mais para o centro? — disse a Ana, com um arrepio de medo.
O Júlio passou um braço sobre os ombros da irmãzita.
— Se isso acontecer, acabamos por sair pelo lado contrário, — disse ele. — Não é um bosque sem fim, bem sabes.
— Nesse caso vamos atravessar o bosque, — propôs a Ana. — Alguma vez chegaremos a sair.
Os irmãos não lhe disseram que era impossível seguir uma linha recta através dum bosque. Era necessário contornar arbustos e mais vegetação, voltar para trás, algumas vezes, quando chegavam a uma parte impenetrável e virar para a esquerda ou para a direita quando o caminho em frente estivesse impedido. Era completamente impossível ir a direito até ao fim.
— Por aquilo que eu sei, naturalmente vamos andar às voltas, como fazem as pessoas que se perdem no deserto, — pensou ele. Que pena ter deixado o caminho trilhado pelo carro!
Caminharam sempre, durante umas duas ou três horas, mas a certa altura a Ana tropeçou e caiu.
— Não consigo andar mais, — disse ela, chorando. — Tenho que descansar um pouco.
O David olhou para o relógio e deu um assobio. Como se passara tanto tempo? Eram quase três horas.
Sentou-se ao lado da Ana e fez-lhe uma festa. — Precisamos duma boa refeição, — disse ele. — Não comemos nada desde o pequeno almoço.
A Ana afirmou que ainda não tinha fome, mas quando sentiu o cheiro das sanduíches de carne que a Joana havia preparado, mudou de opinião. Em breve estava a comer com os outros, sentindo-se muito melhor.
«Que pena não termos nada para beber, — disse o David. — Mas a Joana também embrulhou umas ameixas, por isso podemos comê-las em vez de tomarmos uma bebida. São saborosas e sumarentas.
Comeram tudo, embora no fundo o Júlio pensasse que não era prudente ficarem sem mais mantimentos. Só Deus sabia quanto tempo ainda andariam perdidos pelo Bosque dos Corvos. Mais tarde ou mais cedo a Joana ficaria preocupada com a demora deles e com certeza diria à polícia para onde tinham ido e então deviam organizar uma busca. Mas podia levar imenso tempo até os encontrarem.
A Ana adormeceu depois da refeição. Os rapazes conversaram em voz baixa. — Não estou a gostar nada disto, — declarou o David.
— Partimos para encontrar a Zé e acabámos por nos perder. Parece que não estamos a conduzir esta aventura tão bem como as outras.
— Se não conseguirmos sair daqui antes de anoitecer teremos que improvisar uma cama por baixo dum arbusto, — disse o Júlio.
— Vamos andar um pouco mais quando a Ana acordar, e podemos gritar de vez em quando. Mas se continuarmos perdidos, teremos de dormir aqui até amanhã.
Mas quando começou a ficar escuro, e naquele bosque sombrio escurecia muito cedo, os três pequenos continuavam perdidos. Estavam roucos de gritar.
Em silêncio, juntaram folhas e musgo por baixo dum arbusto. — Felizmente está uma noite quente, — disse o David, tentando mostrar uma certa animação. — Amanhã de manhã havemos de nos sentir muito melhor. Chega-te a mim, Ana, para ficares mais quente. O Júlio fica do outro lado. Isto é uma verdadeira aventura!
— Eu não gosto de aventuras! — declarou a Ana, num fio de voz, adormecendo logo em seguida.
UMA VISITA DURANTE A NOITE
O Júlio e o David demoraram bastante tempo a adormecer. Estavam ambos muito preocupados com a Zé e também com eles. Sentiam muita fome, o que lhes tirava o sono, tanto como as suas preocupações.
O David acabou por adormecer. O Júlio continuava acordado, desejoso de que a Ana se sentisse bem e não tivesse frio entre os dois irmãos.
Ouvia o murmúrio das folhas das árvores e a certa altura pareceu-lhe distinguir um ruído muito estranho. Que animal seria? Um rato?
Qualquer coisa correu direito ao seu cabelo e o Júlio sentiu um arrepio. Talvez fosse uma aranha. Era melhor não se mexer, para não acordar a Ana. Se a aranha quisesse fazer uma teia sobre a sua cabeça ele consentiria. Pouco tempo depois estava a sonhar.
Acordou de repente, em sobressalto. Ouviu o piar duma coruja. Com certeza fora ela que o acordara. Que aborrecimento! Agora demoraria um tempo infinito para tornar a adormecer.
Fechou os olhos. A coruja piou novamente o que muito aborreceu o Júlio, pois a Ana poderia acordar também. Ele mexeu-se e disse qualquer coisa, mas continuou a dormir. O Júlio tocou-lhe levemente. Estava bem quentinha.
O pequeno voltou a fechar os olhos, mas depressa os abriu novamente. Ouvira de novo qualquer coisa estranha. Não era nenhuma coruja nem o barulho das patas dum animal pequenito; era outro som muito mais forte. Escutou com a maior atenção. Parecia um animal a rastejar ali próximo.
O Júlio, de repente, sentou-se tomado dum grande pânico, mas conseguiu dominar-se e raciocinar friamente. Naquelas redondezas não havia animais perigosos, nem mesmo lobos.
Naturalmente tratava-se dalgum texugo. Esperou ouvir-lhe o barulho da respiração, mas apenas percebia o rastejar do animal através dos arbustos.
Aproximava-se. E dirigia:se exactamente para o pequeno! Este sentiu uma respiração quente sobre a sua cara e fez um movimento instintivo de repulsa. Sentou-se e tocou em qualquer coisa quente e peluda. Tirou logo a mão e começou à procura da lanterna, muito assustado. Àquilo era demasiado até mesmo para o Júlio.
Qualquer coisa lhe agarrou no braço, e ele deu um grito, tentando libertar-se. Então teve a maior emoção da sua vida. O animal falou!
— Júlio! — disse uma voz. — Sou eu!
O Júlio, com as mãos a tremer, acendeu a lanterna. E a luz forte foi incidir sobre uma cara escura, com cabelos despenteados caindo sobre os olhos.
— João! — exclamou o Júlio. — JOÃO! Que andas tu a fazer aqui? Pregaste-me um grande susto. Julguei que tu eras algum horrível animal cheio de pêlo! Devo ter tocado na tua cabeça.
— João! — exclamou o Júlio.
— Pois foi, — disse a João, saindo debaixo dum arbusto. A Ana e o David, que tinham acordado com o grito do Júlio, olhavam para a ciganita, tomados da maior surpresa. A João ali no meio do bosque! Como conseguira chegar até àquele sítio?
— Estão surpreendidos por me verem, não
é verdade? — disse a João. — O Jake apanhou-me. Mas não percebeu que vocês vinham a seguir-me. Arrastou-me para a casa onde mora e fechou-me à chave. Sabia que eu passara a noite no Casal Kirrin e disse-me que ia fazer com que o meu pai me desse uma sova como nunca apanhei. E ele também queria assistir.
— Devia ser um lindo espectáculo! — disse o David.
— Depois quebrei os vidros da janela e fugi, — continuou a João. — Aquele Jake! Nunca mais faço o que ele me mandar. Fechar-me daquela maneira! É a coisa pior que me podem fazer. Bem, logo a seguir vim à vossa procura.
— Como nos encontraste? — perguntou o Júlio, admirado.
— Primeiro fui até ao carro, — explicou a João. — A tia Smith, aquela que está sempre sentada a mexer um tacho, disse-me que vocês lhe tinham perguntado pelo carro do meu pai. Por isso lá fui atrás de vocês, mas o carro estava vazio, sem ninguém lá dentro; nem mesmo a Zé.
— Mas tu sabes onde está a Zé? — perguntou a Ana.
— Não sei, — disse a João. — O meu pai levou-a para qualquer outro lugar, naturalmente montou-a no Preto, porque o cavalo também desapareceu.
— E o Tim? — perguntou o David.
A João fez um olhar triste. — São capazes de lhe terem feito algum mal.
Ninguém disse nada. A ideia de que pudessem fazer mal ao Tim era demasiado terrível para fazerem comentários.
— Como conseguiste encontrar-nos aqui?
— perguntou por fim o Júlio.
— Foi muito fácil, — disse a João. — Eu sei seguir as pegadas de qualquer pessoa. Eu bem queria vir mais depressa, mas estava já escuro. Andaram por aí às voltas, não foi?
— Acho que sim, — disse o David. — Tu conseguiste seguir todos os nossos passos, desde que nos perdemos e andámos por aí dum lado para o outro?
— Consegui, mas deram uma grande quantidade de voltas. Porque se afastaram do caminho marcado pelas rodas do carro?
O Júlio contou-lhe. — Vocês são palermas,
— disse a João. — Quando se sai dum caminho para ir a qualquer parte, deve-se ir marcando as árvores, uma aqui, outra ali; assim é sempre possível voltar-se para trás.
— Não chegámos a perceber que estávamos perdidos senão muito tempo depois, — disse a Ana, pegando na mão da João e fazendo-lhe uma festa. Estava tão, tão contente por tornar a vê-la! Agora já seriam capazes de sair daquele horrível bosque.
A João ficou admirada e comovida, mas afastou logo a mão da Ana. Não gostava de ser amimada, embora não lhe tivesse importado se o David lhe pegasse na mão. O David era o seu herói, uma espécie de super-homem, acima de toda a gente. Ele fora bondoso para ela e por isso estava contente de o ver.
— Encontrámos uma coisa escrita na parede do teu carro, — disse o Júlio. — Parece-me que sabemos para onde foi levada a Zé. Foi para um lugar chamado Torre Vermelha. Sabes onde fica?
— Não há nenhum sítio com esse nome, — respondeu logo a João. — É...
— Não sejas idiota, João. Não podes saber se há ou não um lugar chamado Torre Vermelha, — disse o David impaciente. — Até pode haver centenas de lugares com esse nome. Fica sabendo que é esse o sítio que vamos procurar. A polícia há-de ajudar-nos.
A João fez um gesto de medo. — Tu prometeste que não contavas nada à polícia.
— Pois sim, mas só se tu nos levasses onde está a Zé, — respondeu o David. — E não nos levaste. Além disso, mesmo que nos tivesses levado, a Zé não estava no carro. Por isso nós temos toda a razão para irmos à polícia e perguntarmos onde fica a Torre Vermelha.
— Tens a certeza de que foi Torre Vermelha o que a Zé escreveu? — perguntou a João. — Então posso levá-los onde ela está.
— Como pode ser isso, se nos disseste que não existe nenhum sítio com esse nome? — disse o Júlio desesperado. — Não acredito nem uma palavra do que tu dizes. És uma mentirosa e chego a crer que continuas a trabalhar para os nossos inimigos!
— Isso não é verdade! — exclamou a João. — Eu NÃO sou mentirosa! Vocês são maus.
Pois fica sabendo que Torre Vermelha não é um lugar. É o nome dum homem.
Seguiu-se um silêncio a esta surpreendente revelação. Um homem! Ninguém pensava em tal.
A João tornou a falar, satisfeita com a admiração que causara. — Ele chama-se Torre e como tem o cabelo ruivo, vermelho fogo, chamam-lhe o Torre Vermelha. Estão a perceber?
— Acaso estarás tu a inventar tudo isso? — perguntou o David, depois duma pausa. — Bem sabes que já arranjaste muitas outras histórias.
— Está bem, podem pensar que eu inventei tudo, — disse a João irritada. — Vou-me embora. Arranjem-se como puderem. Vocês são maus!
Ela deu uma volta para se afastar mas o Júlio agarrou-a por um braço. — Não te vais embora, que eu não deixo! Agora ficas connosco, nem que eu tenha de te amarrar a mim durante toda a noite. Nós temos uma certa dificuldade em acreditar em ti, mas a culpa é tua e não nossa. Mas vamos passar a acreditar por esta vez. Conta-nos o que sabes sobre o Torre Vermelha e diz-nos onde vive. Se fizeres o que te peço ficaremos a acreditar em ti para sempre.
— E tu, David, também passas a acreditar em mim? — perguntou a João, tentando libertar-se das mãos do Júlio.
— Passo, — disse o David, secamente. Sentia vontade de espancar aquela miúda maltrapilha, mentirosa, arreliadora e no entanto simpática.
— Mas parece-me que não estou a gostar muito de ti neste momento. Se queres que nós gostemos de ti e acreditemos no que dizes, tens que nos ajudar muito mais do que até agora.
— Está bem, — disse a João, deitando-se no chão. — Estou cansada. Amanhã de manhã mostro-lhes o caminho para sairmos daqui e levo-os a casa do Torre Vermelha. Mas vocês não vão gostar dele. É um bruto!
Ela não estava disposta a dizer mais nada e por isso mais uma vez todos tentaram dormir. Sentiam-se mais animados, pois a João estava ali com eles, e poderia conduzi-los para fora do bosque.
De manhã foi ela a primeira a acordar. Espreguiçou-se como um animal, não se lembrando onde estava. Acordou os outros e todos se sentaram, moídos, sujos e com fome.
— Tenho tanta sede como fome, — queixou-se a Ana. — Onde poderemos arranjar qualquer coisa para comer e beber?
— É melhor irmos direitos a casa para nos lavarmos e comermos, pois a Joana deve estar preocupada por não termos regressado, — disse o Júlio. — Vamos, João, mostra-nos o caminho.
A João começou logo a andar. Os outros não compreendiam como ela não se enganava. E ainda ficaram mais admirados quando passados dois minutos se encontraram no caminho marcado pelas rodas do carro.
— Meu Deus! Então estávamos assim tão perto?! — exclamou o David.
— E contudo caminhámos quilómetros e quilómetros através deste horrível bosque.
- Pois foi, — disse a João. — Deram uma volta enorme, vindo parar quase ao ponto de partida. Agora vou levá-los para casa pelo meu caminho. É muito melhor do que qualquer autocarro!
NO BARCO DA ZÉ
A Joana ficou radiante quando os pequenos apareceram em casa. Passara a noite tão preocupada que se os fios do telefone não tivessem sido cortados, certamente teria telefonado para a polícia. E como a noite estava muito escura ela tivera medo de percorrer o caminho até à vila.
— Não dormi durante toda a noite, — declarou ela. — Isto não pode acontecer outra vez, menino Júlio. Nem calcula como me arreliei. E para mais não encontraram a menina Zé, nem o Tim. Olhe que se eles não aparecem depressa, vou eu tratar do caso. E os seus tios ainda não deram notícias. Espero que não andem perdidos.
A Joana foi-se embora depois deste palavreado todo e daí a pouco estava a preparar salsichas e tomates para os pequenos. Eles não puderam esperar que tudo estivesse pronto e começaram a comer grandes bocados de pão com manteiga.
— Nem posso ir lavar-me antes de comer qualquer coisa, — disse a Ana. — Ainda bem que conhecias todos aqueles atalhos para chegarmos aqui, João; o caminho não me pareceu tão comprido como quando fomos de autocarro.
Na verdade era espantoso ver a maneira decidida e hábil como a João os levara até casa, através de caminhos e atalhos estreitos, passando por sebes e pequenas hortas. E nem por uma vez se embaraçara.
Chegaram pouco depois de a Joana se ter levantado e esta soltara exclamações de alegria e alívio quando os viu entrar no jardim. — Parecem um bando de maltrapilhos,— disse ela, enquanto punha o pequeno almoço numa grande travessa. — Vou acender a caldeira para tomarem banho. Parecem todos irmãos da João.
A ciganita não se importava nada com gracejos deste género. Mastigou um bocado de pão e riu-se. Engolia o pequeno almoço sem maneiras, mas os outros não se portavam muito melhor, tal era a fome que tinham.
«Muito comem os meninos! — disse a Joana, repreendendo-os. — Não, menino Júlio, não posso fritar mais nada. Não sobrou nem uma salsicha nem um bocadinho de presunto. Agora acabem de se encher com torradas e compota de laranja.
Depois do pequeno almoço os quatro pequenos foram tomar banho. A João não queria, mas a cozinheira correu atrás dela, com o batedor de tapetes, jurando que lhe sacudia o pó e a suj idade, se ela não quisesse tomar banho. Por isso a João obedeceu e até gostou.
Depois tiveram uma conversa importante.
— Explica-me quem é esse Torre Vermelha, — pediu o Júlio a João. — Que sabes tu sobre ele?
— Não sei grande coisa, — disse a João. — É rico e fala duma maneira esquisita; penso que ele é louco. Contrata as pessoas como o Jake e o meu pai para lhe fazerem os seus trabalhos sujos.
— Que trabalhos sujos? — perguntou o David.
— Ora! roubar ou coisas assim, — respondeu a João, vagamente. — Eu não sei bem. O pai não me conta. Limito-me a fazer o que me mandam e não faço perguntas. Não quero mais bofetões do que já apanho!
— Onde vive ele? — perguntou a Ana. — Muito longe?
— Tem uma casa num penhasco, — disse a João. — Não sei o caminho por terra. Só sei de barco. É um lugar muito esquisito; parece um pequeno castelo e tem umas paredes de pedra muito espessas. O meu pai diz que é o lugar ideal para o Torre Vermelha.
— Já lá estiveste? — perguntou o David, muito interessado.
— Duas vezes, — disse a ciganita. — Uma vez o meu pai levou uma grande caixa de ferro e noutra ocasião qualquer coisa dentro dum saco. Eu fui com ele.
— Porque te levou? — perguntou o Júlio.— Julguei que ele não quisesse que o acompanhasses a esses sítios.
— Fui a remar o barco, — explicou a João. — Já lhes disse que a casa do Torre Vermelha fica no alto dum penhasco. Fomos lá de barco; não sei o caminho por terra. Há uma espécie de gruta atrás da pequena enseada onde desembarcámos. O Torre Vermelha foi ao nosso encontro. Vinha da sua casa no penhasco, disse ele, mas não percebi como.
O David olhou para a João bem de frente.
— Agora vais dizer que há um caminho secreto que liga a casa com a gruta! — disse ele. — Vamos, continua!
— É natural, — disse a João. Mas de repente deitou um olhar furioso ao David. — Não acreditas no que estou a dizer? Muito bem, encontrem o lugar sozinhos!
— É que parece uma história dum livro,
— disse o Júlio. — Tens a certeza de que é tudo verdade?
Não queremos mais contratempos.
— Na minha história não há nada contra o tempo,—afirmou a João, intrigada. Ela não fazia a menor ideia do que era um contratempo. — Estou a contar-lhes o que sei sobre o Torre Vermelha. Posso acompanhá-los quando quiserem, mas precisamos dum barco.
— Podemos ir no da Zé, —lembrou o David, levantando-se. — Ouve, João, acho que desta vez é melhor deixarmos aqui a Ana. Não gosto de a levar para uma coisa que se pode tornar perigosa.
— Mas eu quero ir, — disse logo a Ana.
— Não, a menina fica comigo, — disse a cozinheira. — Hoje preciso duma companhia. Ando assustada por me deixarem sozinha durante todos estes acontecimentos. A menina fica comigo.
Por isso a Ana ficou, no fundo bastante satisfeita, vendo os outros partir. A João meteu-se por entre as sebes, para evitar que o Jake a visse, no caso de andar por ali. O Júlio e o David foram até à praia e olharam à sua volta para se certificarem de que o cigano não estava à vista.
Foram buscar a João, e ela, saindo silenciosamente do seu esconderijo, saltou para o barco da Zé. Deitou-se no fundo, para ninguém a ver. Os rapazes arrastaram o barco até ao mar. O David saltou para dentro e o Júlio deu um empurrão quando veio a onda. Depois saltou também.
— A que distância fica? — perguntou à João, que continuava no fundo do barco.
— Não sei, — respondeu ela com a sua costumada maneira vaga e distante. — Duas horas, três horas, talvez.
O tempo não significava o mesmo para a João do que para os dois rapazes. Por um lado ela não tinha relógio de pulso, como eles, que o consultavam quando queriam. Mas se tivesse não lhe encontraria nenhuma utilidade, pois não sabia ver as horas. O tempo para ela dividia-se em dia e noite e nada mais.
O David içou a pequena vela. Tinham o vento a favor e ele achou que podiam aproveitá-lo para chegar o mais depressa possível.
— Trouxeste o almoço que a Joana embrulhou para nós? — perguntou o Júlio ao irmão. — Não o vejo em parte nenhuma.
— João, és capaz de estar sentada em cima dele! — disse o David.
— Descansa que não fica magoado! — respondeu a ciganita, levantando-se logo que já não podiam ser vistos e oferecendo-se para ir ao leme.
Ela manejava-o com uma grande habilidade e os rapazes depressa se convenceram que podiam deixá-la conduzir o barco. O Júlio desdobrou o mapa que trouxera com ele.
— Gostava de saber em que ponto fica esse lugar onde mora o Torre Vermelha, — disse ele. — Até chegarmos à próxima vila quase não há casas. Se realmente é uma espécie de castelo, deve ser um lugar muito isolado. O mapa nem mesmo indica uma pequena vila de pescadores.
O barco seguia sempre, sacudido de vez em quando por uma rajada de vento mais forte. O Júlio tirou o leme das mãos da pequena. — Já fizemos um grande percurso, — disse ele. — Onde fica a casa? Tens a certeza de que sabes ir até lá, João?
— Claro que sei, — disse a João, zangada. — Deve ficar para lá daquele penhasco que se vê ao longe.
Tinha razão. Quando tornearam o alto penhasco que se projectava sobre as grandes rochas oblíquas, a pequena apontou, triunfante.
«Ali está ele! Vêem lá em cima? É a casa do Torre Vermelha.
Os rapazes olharam. Via-se um edifício de pedra cinzenta que, tal como a João dissera, se assemelhava a um castelo. Dava para o mar e tinha uma torre quadrada.
«Há um pequeno porto antes de chegarmos à casa — disse a João. — Reparem bem. Está muito escondido.
Realmente estava. O barco chegou a passar por ele sem o verem. — Ali está! — exclamou a João, de repente.
Tiraram a vela e remaram para trás. O porto ficava entre duas filas de rochedos altos. Remaram naquela direcção. A água ali estava muito tranquila e o barco deslizava suavemente.
— Alguém nos pode ver de lá de cima, da casa? — perguntou o David enquanto remavam para o fundo do porto.
— Não sei, — respondeu a João. — Penso que não. Olhem, ponham o barco por detrás daquela grande rocha. Não sabemos quem mais pode vir aqui.
Puxaram o barco para cima. O David tapou-o com grandes braçadas de algas e em breve ficou com um aspecto que o confundia com as rochas.
— Agora o que fazemos? — disse o Júlio. — Onde fica a gruta de que nos falaste?
— Ali em cima, — disse a João começando a subir pelos penhascos, como um macaco. Os rapazes eram ambos bons alpinistas mas depressa perceberam que era impossível avançarem mais.
A João foi ter com eles. — Que aconteceu? — perguntou. — Se o meu pai consegue subir, com certeza que vocês também conseguem!
— O teu pai foi acrobata, — disse o Júlio, escorregando alguns centímetros, repentinamente. — Ui! Não estou a gostar disto! Quem me dera ter uma corda.
— Ficou uma no barco. Vou buscá-la, — disse a João.
Foi escorregando pelo penhasco até ao porto, com uma velocidade assustadora. Tornou a subir, levando a corda. Foi andando até um pouco mais alto e atou a corda a uma saliência. Esta ficou suspensa, indo parar ao sítio onde o Júlio e o David estavam agarrados com unhas e dentes.
Era muito mais fácil subir com o auxílio da corda. Em breve os dois rapazes chegaram a uma rocha que dava para uma gruta de aspecto curioso. Tinha a forma oval e era muito escura.
«Por aqui, — disse a João seguindo à frente. O David e o Júlio caminhavam aos tropeções. Onde iriam parar?
GRANDES ACONTECIMENTOS
A João levou-os por um túnel estreito, talhado na rocha, até chegarem a uma outra gruta, maior, com as paredes a escorrer humidade. O Júlio sentia-se satisfeito por ter levado a sua lanterna. Aquele lugar era húmido, frio e assustador. O pequeno teve um arrepio. Qualquer coisa roçara na sua cara fazendo-o dar um pulo para trás.
— Que é isto? — exclamou.
— São morcegos, — disse a João. — Há aqui centenas deles. É por isso que este lugar cheira tão mal. Vamos! Daqui a pouco chegaremos a uma gruta mais agradável.
Deram a volta a uma grande rocha, e entraram numa outra gruta, menos húmida e que não cheirava tanto a morcegos. — Nunca passei daqui, — disse a João. — Era aqui que eu e o meu pai esperávamos pelo Torre Vermelha. Ele aparecia de repente e nunca percebi donde vinha.
— Mas com certeza vinha de qualquer sítio, — disse o David, acendendo também a sua lanterna. — Naturalmente há uma entrada. Depressa a descobriremos.
Os dois irmãos começaram a examinar tudo à volta da gruta, esperando encontrar uma abertura ou um pequeno túnel, ou mesmo um buraco que desse para o penhasco onde ficava a casa do Torre Vermelha. A João sentou-se a um canto, à espera, pois não tinha lanterna.
De repente, os rapazes apanharam um tremendo susto. Uma voz ressoou pela gruta; era uma voz zangada e forte, que lhes pôs os corações a bater desordenadamente.
— Como se atreveram a entrar aqui? A João escondeu-se logo atrás duma rocha, como um animal que procura abrigo. Os rapazes ficaram onde estavam, com os pés colados ao chão. Donde tinha vindo a voz?
«Quem são vocês? — perguntou a voz.
— E quem é o senhor? — gritou o Júlio. — Apareça. Viemos falar com um homem que se chama Torre Vermelha. Leve-nos à sua presença.
Houve um momento de silêncio, como se o dono da voz ficasse um pouco hesitante. Depois gritou outra vez.
— Para que querem ver o Torre Vermelha? Quem os mandou aqui?
— Ninguém. Viemos porque queremos levar connosco a nossa prima e o seu cão, — gritou o Júlio, fazendo de alto-falante com as mãos e tentando superar a outra voz.
Fez-se outro silêncio. Depois apareceram duas pernas num buraco do tecto, que era baixo, e alguém deu um salto para o chão, aparecendo mesmo na frente dos pequenos. Estes recuaram, surpreendidos. Não lhes havia passado pela cabeça que a voz viesse do tecto da gruta!
O Júlio dirigiu a luz da lanterna para o homem. Era duma estatura gigantesca e tinha cabelo vermelho-fogo. As sobrancelhas também eram vermelhas e tinha uma barba igualmente vermelha que escondia em parte uma boca cruel. O Júlio olhou para os olhos do homem, mas desviou logo os seus.
— Deve ser doido, — pensou o pequeno. — Ora aqui está o Torre Vermelha. Que fará ele? Será um cientista como o tio Alberto, invejando os seus trabalhos? Ou um ladrão, metendo-se em empresas de grande monta, conseguindo apoderar-se de papéis importantes para os vender? De qualquer maneira, parece louco.
O Torre Vermelha olhava fixamente para os dois rapazes. — Então convenceram-se de que eu tenho aqui a vossa prima? — disse ele. — Quem lhes disse uma estupidez dessas?
O Júlio não respondeu. O Torre Vermelha deu um passo para o pequeno. — Quem te disse?
— Só lhe respondo a isso quando chegar a polícia, — disse o Júlio, com ousadia.
O Torre Vermelha recuou. —A polícia! Que sabe ela? Por que motivo vem aqui? Responde-me, rapaz!
— Há muitas coisas para saber a seu respeito, sr. Torre Vermelha, — disse o Júlio. — Quem mandou roubar os apontamentos do meu tio? Quem mandou um bilhete pedindo o outro livro? Quem raptou a nossa prima, dizendo que só a entregaria em troca desse livro? Quem a trouxe para aqui, tirando-a do carro do Simmy? Quem...
— Aaaaaah! — fez o Torre Vermelha, não conseguindo disfarçar um certo medo. — Como sabem tudo isso? É falso! Mas a polícia... também sabe essa história fantástica?
— Que acha o senhor? — disse o Júlio, desejando de todo o coração que a polícia realmente soubesse tudo aquilo e não fosse apenas inventado por ele. O Torre Vermelha puxou pela barba.
Os seus olhos verdes brilhavam muito, enquanto ele pensava rapidamente.
De súbito chamou em voz alta, voltando a cabeça para o buraco do tecto. — Markhoff! Vem cá abaixo!
Apareceram duas pernas a baloiçar no buraco e um homem baixo e forte deu um salto mesmo para a frente dos dois pequenos.
«Vai lá abaixo aos penhascos. Deves encontrar um barco em qualquer parte do porto; o barco que nós vimos chegar com estes rapazes, — disse o Torre Vermelha, asperamente. — Destrói-o por completo; quebra-o até ficar em bocados. Depois volta aqui e leva os rapazes para o pátio e amarra-os. Temos de partir depressa e levamos a miúda connosco.
O homem prestava atenção com um ar carrancudo. — Como podemos partir? — disse ele. — Bem sabe que o helicóptero ainda não está pronto.
— Então repara-o, — gritou o Torre Vermelha. — Partimos esta noite. A polícia há-de vir aqui, estás a ouvir? Os rapazes sabem tudo; estiveram a contar-me. E a polícia também deve saber tanto como eles. Já te disse que é preciso partirmos.
— E o cão? — perguntou o homem.
— Dá-lhe um tiro, — ordenou o Torre Vermelha. — Dá-lhe um tiro antes de nos irmos embora; é um cão feroz. Agora vai desmantelar o barco.
O homem desapareceu junto à rocha que estava à entrada da gruta dos morcegos. O Júlio cerrou os punhos.
Não podia pensar que o barco da Zé ia ser feito aos bocados. O Torre Vermelha ficou ali parado à espera, com os olhos a cintilar à luz das lanternas.
«Se houvesse espaço também os levava a vocês, — disse ele de repente, voltando-se com um ar trocista para o Júlio. — E depois deitava-os ao mar. Vão dizer ao vosso tio que há-de ter notícias minhas, sobre a sua querida filha. Faremos uma troca! Se quiser que eu a entregue há-de mandar-me os apontamentos de que eu preciso. E estou-lhes muito agradecido por terem vindo avisar-me; partirei antes que a polícia chegue.
Começou a andar dum lado para o outro resmungando. O David e o Júlio observavam-no em silêncio. Receavam a sorte da Zé. O Torre Vermelha levá-la-ia realmente no helicóptero? Parecia suficientemente louco para fazer fosse o que quer que fosse.
O homem de ar carrancudo voltou por fim.
— O barco ficou em bocados — disse ele.
— Muito bem, — disse o Torre Vermelha.
— Eu vou à frente, depois sobem os rapazes e por último tu. Dá-lhes uns pontapés, se tentarem resistir.
O Torre Vermelha subiu pela abertura do tecto e os- pequenos seguiram-no, não vendo nenhuma vantagem em desobedecer. O homem que vinha atrás, com aquela cara de poucos amigos, não devia ser para graças. Seguiu-os logo.
A João não dera o mais pequeno sinal da sua presença. Conservara-se bem escondida, muito assustada. O Júlio não sabia o que fazer em relação à ciganita. Não devia falar ao Torre Vermelha sobre ela, mas custava-lhe deixá-la ali sozinha. Felizmente ela era muito esperta e saberia desenvencilhar-se sem ajuda de ninguém.
O Torre Vermelha seguiu através de uma gruta e depois continuou por uma passagem tão baixa que tinha de caminhar todo curvado. O homem que ia atrás acendera uma lanterna poderosa, tornando-se mais fácil ver o caminho. A passagem subia e era evidente que ia dar ao edifício, no alto do penhasco. A certa altura tornava-se tão inclinada que havia uma espécie de corrimão para as pessoas subirem com mais facilidade.
Depois havia uma porção de degraus, talhados na rocha, muito irregulares e tão altos que era preciso grande esforço para os subir. No cimo dos degraus estava uma porta maciça, colocada sobre um grande rochedo. O Torre Vermelha abriu-a e então apareceu a luz do dia. O Júlio piscou os olhos. Estava em frente dum grande pátio com o chão formado por várias pedras, vendo-se erva a crescer por todas as fendas. No meio encontrava-se um helicóptero, que naquele velho pátio parecia muito estranho e deslocado. O edifício, com a sua única torre quadrada, era construído de maneira a ocupar três dos lados do pátio. Tinha as paredes cobertas de trepadeiras.
Ao longo do outro lado via-se um muro alto, com um enorme portão ao meio. Este estava fechado e do sítio onde se encontrava, o Júlio podia ver que tinha grandes trancas de ferro.
— Parece uma pequena fortaleza, — pensou o Júlio, admiradíssimo. Depois sentiu-se agarrado e conduzido para uma arrecadação ali próxima. Amarraram-lhe as mãos atrás das costas, com a extremidade duma corda grossa e prenderam a outra ponta a uma argola de ferro, presa na parede.
O Júlio viu depois o homem carrancudo fazer a mesma coisa ao David. Tentou virar-se para ver como estava atada a corda, mas não conseguiu, de tal modo o tinham amarrado.
Olhou para a torre. Uma pessoa estava a olhar por uma das janelas. O Júlio ficou nervoso. Devia tratar-se da pobre Zé. Começou a pensar se ela os teria visto. Esperava que não, pois sabendo que ele e o David tinham sido agarrados, ficaria preocupadíssima.
Onde estaria o Tim? Parecia não haver sinal do cão. Mas reparando melhor, que era aquilo que estava dentro duma pequena estufa, do outro lado do pátio? Seria o Tim? Se fosse ele, certamente teria ladrado, dando as boas-vindas, quando os pequenos haviam aparecido no pátio.
«Aquele cão é o da minha prima? — perguntou o Júlio ao homem da cara de poucos amigos.
— É, — respondeu o homem. — Ladrava tanto que tivemos que o narcotizar. É uma fera! Bem merece um tiro.
O Torre Vermelha atravessara o pátio e desaparecera por uma arcada de pedra. O homem carrancudo seguira depois pelo mesmo caminho. O Júlio e o David ficaram sós.
— Estamos metidos num grande sarilho, — disse o Júlio, furioso. — Os homens vão fugir e levarão a Zé com eles. E fomos nós que os avisámos!
O David não respondeu. Sentia-se infeliz e as cordas que lhe amarravam os pulsos magoavam-no bastante. Os dois rapazes para ali estavam, imaginando o que iria acontecer-lhes.
— Psssssst!
Que era aquilo? O Júlio voltou a cabeça e olhou na direcção da porta que ligava os subterrâneos ao pátio. A João encontrava-se ali, meio escondida pela arcada de pedra que rodeava a porta.
— Psssssst! Vou já desamarrá-los. Não está ninguém à vista?
A JOÃO É EXTRAORDINÁRIA
- João! — exclamaram ao mesmo tempo, ficando logo mais animados. — Vem cá! Não havia ninguém no pátio. A João esgueirou-se ligeira até à arrecadação.
— Tenho um canivete no bolso de trás, — disse o Júlio.— Tira-o. Será mais rápido cortar as cordas do que desamarrá-las. Palavra, João, que nunca na minha vida tive tanto prazer em ver uma pessoa!
A João sorria enquanto procurava o canivete do Júlio. Quando o encontrou, abriu-o e tocou levemente com o dedo sobre a lâmina. Estava bem afiado. Com facilidade lhe cortou as cordas.
— Eu esperei, escondida, — contou ela, rapidamente. — Depois segui-os, quando já não havia perigo. Estava muito escuro e. não me agradou nada. Acabei por encontrar aquela porta e espreitei para fora. Fiquei satisfeita quando os vi.
— Ainda bem que os homens não adivinharam que tu estavas ali, — disse o David. — És uma bela rapariga. Retiro qualquer coisa desagradável que tenha dito a teu respeito.
A João ficou encantada. Logo que ela cortou a última volta da corda que amarrava o Júlio, este afastou-se da argola de ferro, começando a esfregar os pulsos magoados. A João foi cortando as cordas ao David e depressa acabou a tarefa.
— Onde está a Zé? — perguntou a ciganita, depois de ajudar o David a esfregar os pulsos e os braços.
— Lá em cima, na torre, — respondeu o Júlio. — Se quiseres arriscar-te a sair para o pátio, podes olhar lá para cima e vê-la. E o pobre Tim está naquela estufa, meio narcotizado.
— Não deixarei que lhe dêem um tiro, — afirmou a pequena. — É um cão muito simpático. Vou buscá-lo e levo-o para as grutas subterrâneas.
— Agora não! — pediu o Júlio, aterrado. — Se te vêem agora, estragas tudo. Então seremos os três amarrados!
Mas a João correra para a estufa e fazia festas ao pobre Tim.
Uma porta bateu; os dois rapazes sobressaltaram-se e a João correu logo para trás da estufa. O Torre Vermelha vinha a atravessar o pátio!
— Depressa! Ele vem para aqui! — disse o David muito aflito. — Vamos para junto das argolas de ferro e pomos as mãos atrás das costas para ele pensar que ainda estamos amarrados.
E assim quando o Torre Vermelha chegou à porta da arrecadação parecia exactamente que os rapazes continuavam com as mãos amarradas atrás das costas.
Ele soltou uma gargalhada.
— Podem aqui ficar até que chegue a polícia! — disse ele. Depois fechou à chave a porta da arrecadação. Foi até ao helicóptero e começou a examiná-lo com cuidado.
Em seguida dirigiu-se para a porta por onde tinha aparecido, abriu-a e fechou-a com estrondo, desaparecendo.
Quando tudo estava sossegado a João correu da estufa para a arrecadação. Abriu a porta com a chave que ficara na fechadura.
— Venham! — disse ela. — Vamos fechá-la novamente à chave e ninguém perceberá que vocês não estão aí dentro. Despachem-se!
Não havia mais nada a fazer do que fugir esperando que ninguém os visse. A João fechou a porta à chave e levou-os depressa para a porta que dava para os subterrâneos. Meteram-se por ali e iam quase caindo pelos degraus.
— Obrigado, João, — disse o David. Sentaram-se. O Júlio coçava a cabeça e
por mais que pensasse não conseguia arranjar uma ideia sensata para pôr em prática. A polícia não iria ali, pois nada sabia sobre o Torre Vermelha, ou sobre o paradeiro da Zé. E daí a pouco levariam a Zé no helicóptero e o Tim apanharia um tiro!
O Júlio pensou na alta torre quadrada, desesperado. — Não há nenhum processo de tirar a Zé daquela torre, — disse ele em voz alta. — Deve estar fechada à chave e trancada, pois de contrário a Zé teria logo fugido.
Não vale a pena tentar metermo-nos dentro de casa. Davam connosco e apanhavam-nos logo. A João olhou para o David. — Tu tens uma grande vontade de que a Zé seja salva? — perguntou ela.
— Nem se pergunta, — respondeu o David. — É aquilo que neste momento mais desejo.
— Então vou buscá-la, — disse a João, levantando-se como se na verdade fosse fazer o que dizia.
— Agora não comeces com graças, — pediu o Júlio. — Olha que este caso é muito sério, João.
— Também eu estou falando a sério, — respondeu a ciganita. — Vou buscá-la, já lhes disse. Depois ficam a acreditar em mim, não é verdade? Vocês acham que eu sou má e ladra e que não valho meio tostão e eu concordo convosco. Mas eu posso fazer algumas coisas que vocês não são capazes e se vocês quiserem irei buscar a Zé.
— Como? — perguntou o Júlio, espantado e incrédulo.
A João sentou-se novamente.
— Tu falaste na torre, não foi? — começou ela. — É bastante grande e por isso eu penso que deve ter mais do que um compartimento. E se eu conseguir chegar ao quarto que fica a seguir ao da Zé, posso abrir-lhe a porta e pô-la em liberdade.
— E como pensas tu chegar até ao quarto ao lado do da Zé? — perguntou o David, um pouco trocista.
— Subindo pela parede, está claro, — disse a João. — Está toda coberta com hera. Já muitas vezes subi por paredes como aquela.
Os rapazes fitaram-na. — Serias tu a «cara» da janela?! — exclamou o Júlio, lembrando-se do susto da Ana. — Aposto que foste tu! És como um macaco que salta e sobe por toda a parte. Mas não consegues subir por aquela parede tão alta, nem penses nisso. Poderias cair e morrerias. Não podemos consentir.
— Pfff! — fez a João, com desdém. — Cair duma parede como aquela! Já subi por uma parede sem nenhuma hera! Há sempre buracos e saliências onde uma pessoa se pode agarrar. Aquela vai ser muito fácil.
O Júlio estava meio aturdido só por pensar que a João falava a sério. O David lembrou-se de que o pai da João fora um acrobata. Talvez aquele género de habilidades fosse de família.
«Vocês haviam de me ver a fazer equilíbrio no arame, — disse a João com vivacidade. — Até posso dançar e nunca usei rede de segurança; isso é para as crianças. Bem, cá vou eu.
E sem mais palavras subiu ligeira os degraus altos e parou na arcada que rodeava a porta. Tudo estava em sossego. Ela atravessou o pátio, correndo e saltando como um esquilo e acabou por chegar ao pé da torre coberta pela hera. O Júlio e o David foram até à porta que dava para o pátio, e não tiravam os olhos da ciganita.
— Vai matar-se, — disse o Júlio.
— Que coragem! — exclamou o David. — Nunca vi uma miúda assim! Lá vai ela, tal como um macaco.
E realmente lá ia a João pela hera acima, subindo com ligeireza. As suas mãos agarravam e experimentavam cada ramo de hera, antes de se elevar com todo o seu peso, e os seus pés também experimentavam cada ramo, antes de se apoiarem nele.
A certa altura escorregou um pouco, pois um ramo de hera desprendeu-se da parede. O Júlio e o David olhavam-na com o credo na boca. Mas a João limitou-se a agarrar um outro ramo e endireitou-se logo. Depois continuou a subir.
Lá ia ela, cada vez mais em cima. Passou o primeiro andar, depois o segundo e continuou para o terceiro. Só mais um e chegaria ao último de todos. Parecia muito pequena, ao aproximar-se do cimo.
— Não tenho coragem para olhar e não consigo deixar de fazê-lo, — disse o David, tremendo, cheio de nervoso. — Se ela cair agora, que faremos?
— Cala-te, — pediu o Júlio, entre dentes. — Não há-de cair. Ela é como um gato. Agora está a chegar ao quarto pegado com o da Zé. A janela é de guilhotina e está só um pouco aberta em baixo.
A João sentou-se triunfante sobre o largo parapeito da janela do compartimento seguinte ao da Zé. Acenou com descaramento para os rapazes, que continuavam lá em baixo.
Depois, empurrou a janela com toda a sua força, para a abrir um pouco mais. Mas ela nem se mexeu.
Então deitou-se ao comprido no parapeito e à força de se torcer conseguiu passar pelo pequeníssimo espaço aberto, desaparecendo. Os dois rapazes deram um suspiro de alívio. O David descobriu que tinha as pernas a tremer. Ele o Júlio foram para a passagem subterrânea que se seguia aos degraus e sentaram-se aí em silêncio.
— É pior do que no circo, — disse o David por fim. — Nunca mais conseguirei ver acrobatas. Que fará ela agora?
A João estava muito ocupada. Caíra do parapeito para o meio do chão. Mas estava habituada a este género de quedas.
Levantou-se e correu a esconder-se atrás duma cadeira, para o caso de alguém a ter ouvido. Mas parecia que ninguém dera por nada.
O quarto era sombrio, mobilado com móveis velhos e pesados. Via-se muito pó cobrindo tudo e várias teias de aranha estavam suspensas no tecto de pedra.
A João foi pé ante pé à porta. Estava descalça e por isso não fazia o menor barulho. Olhou lá para fora. Havia próximo uma escada de pedra em espiral e em cada canto ficava uma porta; deviam então existir quatro compartimentos na torre, um em cada canto, com duas janelas. Olhou para a porta ao lado daquela onde estava. Devia ser a do quarto da Zé.
Estava uma chave na fechadura e tinha uma grande tranca. A João correu para a porta e rodou com a chave. Fez um grande barulho e por isso voltou a fugir para o quarto ao lado. Mas ninguém apareceu. Tornou até à porta e desta vez conseguiu dar uma volta completa com a chave. Estava bem untada e rodava com facilidade.
A João empurrou a porta e olhou lá para dentro com cautela. Lá estava a Zé, uma Zé pálida e triste, sentada perto da janela. Ela fitou a João como se não acreditasse no que via.
— Psssst! — fez a João, verdadeiramente divertida. — Estou aqui para te levar lá para fora!
A FUGA DA ZÉ
AZé parecia que tinha visto um fantasma.— João!—murmurou ela. — Não é possível que sejas tu! — Mas sou. Ora toma!... — disse a João, atravessando o quarto e dando à Zé uma grande palmada. Depois puxou-lhe pelo braço.
«Vamos, — disse ela. — Precisamos de sair daqui antes que apareça o Torre Vermelha. Despacha-te! Não quero ser apanhada.
A Zé levantou-se como se estivesse a sonhar. Foi com a João até à porta, e saíram as duas, parando no alto da escada em espiral.
«Parece-me que temos de descer por aqui, — disse a João; inclinou a cabeça, pondo-se à escuta. Depois desceu alguns degraus e contornou a primeira espiral. Mas mal tinha descido uma dúzia de degraus, parou assustada. Alguém ia a subir!
Correu pela escada acima, e empurrou a Zé com força para o quarto para onde havia entrado primeiro.
«Vem aí alguém, — explicou ela, arquejante. — Agora estamos arranjadas! — Naturalmente é o homem do cabelo ruivo, — disse a Zé. — Vem cá acima três ou quatro vezes por dia, para me interrogar sobre os trabalhos do meu pai; mas eu não sei nada. Que vamos nós fazer?
Os passos aproximavam-se cada vez mais; ressoando na escada de pedra. Começou a ouvir-se uma respiração ofegante.
A João teve uma ideia. Pôs a boca junto ao ouvido da Zé e segredou-lhe: — Ouve! Nós somos muito parecidas e por isso eu vou deixar que me apanhem e me fechem naquele quarto; tu conseguirás ir ter com o David e o Júlio. O Torre Vermelha não chegará a perceber que eu não sou tu; agora até estamos vestidas da mesma maneira, pois a Joana deu-me roupas velhas que eram tuas.
— Não, — disse a Zé, aflita. — Serás apanhada. Não quero que faças uma coisa dessas.
— Tem de ser, — segredou-lhe a João, decidida. — Não sejas parva. Eu posso abrir a janela e descer pela hera, com a maior facilidade, quando o Torre Vermelha se retirar. É a única maneira de não te levarem esta noite no helicóptero.
Os passos ouviam-se agora no cimo da escada. A João empurrou a Zé para trás dum reposteiro e segredou-lhe, com ar zangado:— Fica sabendo que não faço isto por ti. É só pelo David. Conserva-te aí quieta que o resto é comigo.
Ouviu-se uma exclamação quando o homem que subira a escada descobriu que a porta do quarto da Zé estava aberta.
Apressou-se a entrar e não encontrou lá ninguém. Tornou a sair e gritou junto às escadas.
— Markhoff! A porta está aberta e a rapariga fugiu! Quem abriu a porta?
O Markhoff subiu os degraus dois a dois, parecendo desorientado. — Ninguém! Quem poderia abri-la? De qualquer maneira a miúda não deve estar longe! Tenho estado no quarto lá em baixo, desde que fechei a porta à chave pela última vez. Se ela tivesse fugido tê-la-ia visto.
— Quem abriu a porta? — gritou o Torre Vermelha, fora de si. — É absolutamente necessário apanharmos a miúda para podermos negociar com o pai dela.
— Deve estar num dos outros quartos, — disse o Markhoff, aborrecido, sem se alterar com a fúria do patrão. Dirigiu-se para um dos quartos do canto oposto àquele onde a João e a Zé estavam escondidas. Depois entrou nesse quarto e logo descobriu o alto da cabeça da João, aparecendo por trás duma cadeira.
Atirou-se a ela e puxou-a para fora. — Aqui está a miúda!—gritou ele, não percebendo que não se tratava da Zé mas sim da João. Com os seus cabelos curtos, caras sardentas e roupas parecidas, elas eram realmente difíceis de distinguir. A João gritava e esperneava como se realmente se quisesse libertar. Ninguém acreditaria que ela planeara ser apanhada e fechada à chave!
A Zé tremia atrás da cortina, desejando ardentemente ir em socorro da João, mas sabendo que isso não serviria para nada. Além de tudo, agora talvez conseguisse encontrar o Tim. A Zé sentia-se desolada por a terem separado dele durante tanto tempo.
— Aqui está a miúda! — gritou o Markhoff.
Levaram a João aos encontrões, continuando ela a gritar e a dar pontapés; fecharam-na no quarto. O Torre Vermelha e o Markhoff começaram a discutir sobre qual deles deixara a porta aberta.
— Tu foste o último que aqui estiveste, — dizia o Torre Vermelha.
— Se fosse, garanto-te que não deixaria a porta aberta, — gritou o Markhoff. — Não seria tão palerma como isso. É o género de coisas que tu fazes.
— Pois sim! — vociferou o Torre Vermelha.— Deste um tiro no cão? Porque esperas? Vai já fazê-lo, antes que ele também fuja.
A Zé sentiu-se gelar. Matar o Tim! Não era possível! O querido Tim! Não podia consentir que lhe dessem um tiro!
Não sabia o que fazer. Ouviu o Torre Vermelha e o Markhoff descerem os degraus de pedra, fazendo ao princípio um grande barulho que a pouco e pouco se foi deixando de ouvir.
A Zé desceu atrás deles, com o maior cuidado. Os homens dirigiram-se para um compartimento ali próximo, continuando a discutir. A Zé, arriscando-se a ser vista, passou como uma seta em frente da porta aberta. Chegou a outro patamar; seguiam-se mais escadas desta vez sem serem em espiral. Ela desceu-as tão depressa que ia caindo. Não encontrou ninguém. Que estranho lugar era aquele!
Foi dar a um compartimento enorme e escuro que cheirava a mofo. Correu para uma grande porta e tentou abri-la. Era muito pesada mas por fim começou a deslizar vagarosamente, deixando entrar a luz do sol.
A Zé parou então, espreitando com cuidado.
Ela sabia onde estava o Tim. Conseguira vê-lo algumas vezes vagueando ao pé da estufa. Percebera pelo seu ladrar contínuo que ele fora narcotizado. E o Torre Vermelha dissera-lho quando lhe perguntara, pois divertia-se em fazê-la sofrer. Pobre Zé!
A Zé correu pelo pátio até à estufa. O Tim lá estava deitado, parecendo adormecido. A Zé agarrou-se a ele, com os braços à volta do pescoço.
— Tim! Ó Tim! — exclamou ela, com os olhos turvos pelas lágrimas. O Tim, ainda que narcotizado, ouviu a voz da sua querida dona. Mexeu-se, abriu os olhos e viu a Zé!
Estava com um sono tão pesado que conseguiu apenas lamber-lhe as mãos. Depois voltou a fechar os olhos. A Zé estava desesperada. Receava que dum momento para o outro aparecesse o Markhoff e desse um tiro ao seu Tim.
«Tim! — chamou-lhe ao ouvido. — Tim! Acorda! Tim!
O cão voltou a abrir os olhos; a sua dona ainda ali estava! Então não era um sonho! Talvez agora tudo voltasse à normalidade. O Tim não percebia nada do que se estivera passando nos últimos dias. Conseguiu levantar-se nas quatro patas, embora a cambalear. A Zé agarrou-o pela coleira. — Muito bem, Tim! — disse ela. — Agora vem comigo. Depressa?
Mas o Tim não podia andar, embora se aguentasse em pé. Desesperada, a Zé olhou para o pátio, temendo que o Markhoff aparecesse.
Então viu outra pessoa. Era o Júlio. A pequena estava tão aflita por causa do Tim que nem chegou a sentir grande surpresa.
«Júlio! — chamou ela. — Vem-me ajudar. Querem matar o Tim!
Num segundo o Júlio e o David atravessaram o pátio, chegando ao pé da Zé. — Que aconteceu, João? — perguntou o Júlio. — Encontraste a Zé?
— Sou eu, Júlio! Sou a Zé! — disse a Zé. O Júlio viu logo que realmente era a sua prima. Estava de tal maneira convencido de que se tratava da João que nem reparara que não era.
— Ajudem-me! — pediu a Zé, puxando pelo cão.—Onde poderemos escondê-lo?
— Nos subterrâneos, — respondeu o David. — É o único lugar. Vamos!
Como o conseguiram, nunca chegaram a perceber, mas a verdade é que levaram o Tim, meio narcotizado, através do pátio. Abriram a porta para os subterrâneos e meteram-no lá dentro. O pobre Tim caiu e foi rolando pelos degraus muito altos, estatelando-se no chão com um barulho assustador. A Zé soltou um grito.
— Magoou-se com certeza!
Mas incompreensivelmente o Tim não parecia estar nada magoado. Na verdade a queda até lhe fizera bem. Levantou-se e olhou à volta, surpreendido. Depois ganiu e voltou-se para a Zé, que estava no alto das escadas.
Tentou subir os degraus para ir ter com ela, mas ainda não teve forças para tanto.
A Zé correu pelas escadas e começou a fazer-lhe festas e a dar-lhe palmadinhas. Os dois rapazes juntaram-se à prima. O Tim achava que as coisas voltariam a estar certas se conseguisse livrar-se do peso que sentia na cabeça; não podia compreender por que razão quisera deitar-se e dormir durante tanto tempo.
—Vamos levá-lo para o fundo das grutas, — disse o David. — Os homens com certeza hão-de procurá-lo e a nós também, quando perceberem que o Tim desapareceu e que eu e o Júlio já não estamos na arrecadação.
Assim, seguiram todos pela passagem estreita e inclinada acabando por chegar à pequena gruta com o buraco no chão. O Tim parecia não estar bem certo da maneira de mover as pernas.
Quando ali chegaram, sentaram-se num monte de areia e a Zé ficou junto do Tim. Sentiu-se satisfeita quando os rapazes apagaram as lanternas. Tinha uma grande vontade de chorar, mas como sempre dizia que nunca chorava, ficaria muito embaraçada se alguém a visse a fazer tal coisa.
Contou aos rapazes, em voz baixa, tudo o que se passara com a João e com ela. — Obrigou-me a ficar escondida para ela ser apanhada, — disse a Zé. — É extraordinária. É a rapariga mais corajosa que eu vi até hoje. E fez tudo aquilo, embora não goste de mim.
- É muito especial, — disse o David. — Mas tem bom coração. Mesmo muito bom.
Falavam rapidamente e em voz baixa, contando o que lhes acontecera. A Zé explicou como fora agarrada e transportada para o carro do cigano, com o Tim, que perdera os sentidos com uma pancada forte.
— Nós vimos o nome do Torre Vermelha escrito por ti, — disse o David. — Foi o que nos deu a pista para virmos ter contigo.
— Escutem! — disse o Júlio de repente. — Acho que temos de arranjar um plano, sem demora. Parece-me que já oiço qualquer coisa. Em breve andarão à nossa procura. Que vamos fazer?
ALGUMAS SURPRESAS
Quando o Júlio disse que estava a ouvir barulho os outros começaram a ouvir também qualquer coisa. Prestaram a maior atenção e o coração da Zé batia com tanta força que ela estava certa de que os dois rapazes também podiam ouvi-lo.
— Talvez seja o barulho do mar, fazendo eco através das grutas e dos túneis, — lembrou Júlio, por fim. — Normalmente não precisamos de nos preocupar com os barulhos; o Tim costuma avisar-nos logo. Mas agora está tão sonolento que não deve ouvir coisa nenhuma.
— Achas que voltará a ficar bom? — perguntou a Zé, ansiosa, afagando as orelhas macias do Tim.
— Claro que sim, — afirmou o Júlio, com uma convicção que estava longe de sentir. O pobre Tim na verdade parecia bem doente. Nem mesmo soltava um latido.
— Passaste um mau bocado nestes últimos dias, não foi, Zé? — perguntou o David.
— Terrível—respondeu a Zé.—Nem sinto vontade de falar sobre isso. Se o Tim estivesse comigo, não teria sido tão mau, mas primeiro, quando me trouxeram para aqui, a única coisa que eu sabia sobre o Tim era que ladrava e gania continuamente lá em baixo, no pátio. Depois o Torre Vermelha disse-me que o narcotizara.
— Como chegaste até à casa do Torre Vermelha? — perguntou o Júlio.
— Bem, vocês sabem que me fecharam naquele carro mal cheiroso, — contou a Zé. — Depois um homem chamado Simmy, o pai da João, se não me engano, apareceu e empurrou-nos dali para fora. O Tim estava meio aparvalhado com a pancada que apanhara; meteram-no num saco e puseram-nos, aos dois, sobre o cavalo que puxara o carro. Levaram-nos pelo bosque até um caminho isolado, ao longo da costa, e acabámos por chegar aqui. Tudo isto se passou durante a noite.
— Coitada! — exclamou o Júlio. — Quem me dera que o Tim volte a ficar bem. Como gostaria de o soltar contra o Torre Vermelha e o outro homem!
— Que estará a acontecer à João? — disse o David, lembrando-se de que a João estava naquele momento fechada no quarto onde a Zé passara tanto tempo.
— Julgas que o Torre Vermelha e o Markhoff já descobriram que nós saímos da arrecadação e que o Tim também desapareceu? — disse o Júlio. — Hão-de ficar furiosos!
— Não podemos fugir? — perguntou a Zé, sentindo-se de repente bastante assustada. — Vieram de barco, não foi? Não podemos fugir no barco e ir buscar alguém para socorrer a João?
Fez-se um silêncio.
Nenhum dos rapazes queria contar à Zé que o seu querido barco fora completamente destruído pelo Markhoff. Mas claro que ela tinha de o saber, e o Júlio disse-lhe tudo em poucas palavras.
A Zé não respondeu. Ficaram todos calados durante alguns minutos, ouvindo apenas a respiração pesada do Tim.
— Será possível, quando anoitecer, subirmos ao pátio e seguirmos juntos à parede até ao grande portão? — lembrou o David quebrando o silêncio. — Lá por baixo não podemos fugir, pelo menos sem termos um barco.
— Devemos esperar até que o Torre Vermelha e o Markhoff se vão embora no helicóptero? — perguntou o Júlio. — Depois correremos muito menos perigo.
— Isso é verdade, mas a João? — disse o David. — Eles pensam que ela é a Zé. E com certeza vão levá-la, tal como tencionavam fazer com a Zé. Acho que não devemos pensar em fugir sem primeiro tentarmos salvar a João. Ela foi formidável com a Zé.
Fartaram-se de falar sobre a ideia de socorrer a João mas nenhum deles conseguia arranjar um plano sensato. O tempo passava e os pequenos sentiam-se com fome e bastante frio. — Se ao menos pudéssemos fazer qualquer coisa, já não nos sentiríamos tão mal, — lamentou-se o David. — Gostava de saber o que se estará a passar lá em cima, na casa.
E realmente lá em cima, na grande casa de pedra cinzenta, com a sua torre quadrada, muitas coisas se estavam passando. Para começar, o Markhoff resolveu ir dar um tiro ao Tim, como o Torre Vermelha lhe ordenara. Mas quando chegou à estufa não encontrou lá nenhum cão!
O Markhoff teve a maior das surpresas! O Tim fora amarrado e além disso narcotizado, mas a corda estava desatada, não segurando nenhum cão!
O Markhoff olhou em redor da estufa, espantadíssimo. Quem teria libertado o Tim?
Correu para a arrecadação onde amarrara o Júlio e o David às argolas de ferro. A porta continuava fechada à chave, como era de esperar. O Markhoff abriu-a e entrou.
— Oiçam lá... —começou ele, gritando. Mas parou, petrificado. Não estava ali ninguém! Também havia uma corda no chão, desta vez cortada aos bocados, mas os prisioneiros tinham desaparecido. Nem cão nem rapazes!
O Markhoff não acreditava no que via. Olhou em redor da arrecadação. — Mas estava fechada pelo lado de fora! — murmurou ele. — Que vem a ser isto? Quem libertou os rapazes e o cão? E agora que vai dizer o Torre Vermelha?
O Markhoff olhou para o helicóptero que estava no meio do pátio, pronto para o voo dessa noite, e quase se resolveu a abandonar o Torre Vermelha e fugir sozinho. Depois, lembrando-se dos ataques de fúria do Torre Vermelha e das suas vinganças cruéis sobre aqueles que o deixavam mal colocado, mudou de ideias.
«O melhor é fugirmos já, antes de anoitecer, — pensou ele. - Está a passar-se qualquer coisa estranha. Deve andar por aqui uma pessoa nossa desconhecida. O melhor é ir ter com o Torre Vermelha e contar-lhe tudo.
Passou pela porta da frente e na entrada deu de caras com dois homens que o esperavam. Primeiro, não percebeu quem eram e recuou. Depois viu que se tratava de Simmy e do Jake.
«Que fazem aqui? — gritou Markhoff.— Não lhes mandaram vigiar o Casal Kirrin para que ninguém pudesse ir contar nada à polícia?
— Pois sim, — respondeu o Jake rudemente. — E nós viemos dizer-lhes que a cozinheira, uma mulher chamada Joana, foi ao posto da polícia esta manhã. Levava uma das miúdas com ela. Julgo que os rapazes não estavam lá.
— Pois não. Estão aqui; pelo menos estavam, — disse Markhoff. — Desapareceram. Quanto à polícia, eles contaram-nos que vem a caminho e nós já fizemos os nossos planos. Chegaram atrasados com as vossas notícias! Não servem para nada, vocês os dois, nem sabem vigiar uma casa! Desapareçam! Vamos levar a miúda no helicóptero, antes que a polícia chegue. Como souberam os pequenos onde a prima estava? Vocês deram à língua?
— Pfff! — fez o Simmy com desdém.
- Julgas que nos queremos ver metidos com a polícia? Tem juízo! Queremos dinheiro. Fizemos todo o nosso trabalho e ainda só nos pagaram metade do que prometeram. Dêem-nos o resto.
— Vão pedi-lo ao Torre Vermelha, — respondeu o Markhoff rudemente. — De que lhes serve pedirem-no a mim?
— Está bem, já vamos, — disse o Jake com cara de poucos amigos. — Fizemos tudo o que nos mandaram; roubámos os papéis; raptámos a rapariga e esse cão feroz. Estás a ver onde ele me mordeu na mão? E ainda só temos metade do dinheiro! Parece-me que chegámos mesmo a tempo. Planeavam fugir naquela máquina e não nos pagavam!
— Onde está o Torre Vermelha? — perguntou o Simmy.
— Lá em cima, — disse o Markhoff. — Tenho algumas notícias más para lhe dar e por isso ele não vai sentir grande prazer em ver os vossos lindos olhos. É melhor eu prepará-lo e dizer-lhe o que pretendem. Depois podem entrar com os vossos elegantes discursos.
— Tens muita graça, não achas? — disse o Jake com voz ameaçadora. Nem ele nem o Simmy gostavam do Markhoff. Seguiram-no pela escada acima até chegarem ao compartimento que ficava ao fundo da escada em espiral.
O Torre Vermelha estava ali, observando os papéis que tinham sido roubados no escritório do pai da Zé. Estava de mau-humor.
Atirou com os papéis quando o Markhoff entrou.
— Não são estes os apontamentos que eu quero! — começou ele, aos gritos. — Hei-de ficar com a miúda até... Que aconteceu, Markhoff? Há alguma novidade?
— Muitas, — disse o Markhoff. — O cão desapareceu; já não estava lá quando ia dar-lhe o tiro. E os rapazes também desapareceram. Fugiram da arrecadação fechada à chave. Não compreendo nada! E estão aqui duas visitas para ti, que querem dinheiro. Vieram dizer-te o que tu sabes; a polícia anda à tua procura.
O Torre Vermelha ficou muito corado e os seus olhos estranhos brilharam de raiva. Primeiro fitou o Markhoff, depois o Jake e o Simmy. O Markhoff ficou pouco à vontade, mas os outros dois olharam-no com insolência.
— Atreveram-se a vir aqui quando eu lhes disse para se conservarem longe! — gritou o Torre Vermelha. — Já lhes paguei o que tinha a pagar. Comigo não fazem chantagem! E eu...
O que ele queria dizer mais, não o chegaram a saber, pois começaram-se a ouvir gritos, vindos do alto da escada em espiral, e um grande barulho, como se alguém tentasse arrombar uma porta.
— É a miúda, — resmungou o Markhoff. — Que lhe aconteceu? Até aqui tem estado sossegada.
— O melhor é irmos-nos já embora,
- disse o Torre Vermelha. — Jake, vai buscar a miúda. Podes trazê-la para aqui e procura acalmá-la se ela continuar com aquela gritaria.
— Vá buscá-la você, — respondeu o Jake, insolente.
O Torre Vermelha fez um sinal ao Markhoff que imediatamente puxou por um revólver.
— As minhas ordens são sempre cumpridas, — disse o Torre Vermelha, com voz seca. — Sempre, estão a perceber?
Não só o Jake se apressou a subir as escadas, mas também o Simmy. Foram até ao quarto trancado, rodaram com a chave, tirando a tranca e abriram a porta. O Simmy andou uns passos, disposto a agarrar a pequena.
Mas parou, embasbacado. Esfregou os olhos e tornou a ficar de boca aberta. O Jake ficou também admiradíssimo.
— Olá, pai! — disse a João. — Parece surpreendido por me ver!
A JOÃO É MUITO ESPERTA
- João! — exclamou o Simmy. — Mas... mas... João! O Jake recompôs-se mais depressa. — Mas que vem a ser isto? — perguntou zangado ao Simmy. — Que faz aqui a João? Como conseguiu cá chegar? Onde está a outra miúda, a que nós raptámos?
— Como posso eu saber? — exclamou o Simmy sem tirar os olhos da filha. — Ouve, João, que fazes aqui? Vá, conta-nos tudo. E onde está a outra miúda?
— Procurem pelo quarto, a ver se conseguem encontrá-la! — disse a João, com vivacidade, mas sempre alerta, não fosse o pai ou o Jake atirarem-se a ela. Os dois homens apressaram-se a procurar pelo quarto. O Jake dirigiu-se a um armário.
«Naturalmente está aí, — disse a João, muito divertida. — Você tem boas ideias.
Os dois homens não sabiam o que pensar. Tinham ido buscar a Zé e encontravam apenas a João.
Mas como? Por que motivo? Que acontecera? Não sabiam que fazer. Nenhum deles queria dizer ao Torre Vermelha o que se passava. Por isso, começaram a fazer uma busca pelo quarto, procurando em todos os sítios possíveis e impossíveis, com a João a troçá-los durante todo o tempo.
«É melhor tirarem as gavetas dessa cómoda e verem se ela está aí. E não se esqueçam de procurar por baixo do tapete. Isso mesmo, Jake, mete a cabeça na chaminé. Vê lá se a pequena te atira fuligem para os olhos.
— Vou já dar-te um estalo! — disse o Jake, furioso, abrindo a porta dum armário pequeno.
Uma voz fez-se ouvir ao fundo da escada.
— Jake! Que estás a fazer aí em cima? Traz depressa a miúda!
— Não está cá! — gritou-lhe o Jake, ficando de repente fora de si. — Que fez à miúda? Ela fugiu!
O Torre subiu os degraus a quatro e quatro, com os olhos semicerrados pela fúria. A primeira pessoa que viu dentro do quarto foi a João e claro que pensou tratar-se da Zé.
— Como te atreves a dizer que ela não está aqui? — gritou ele. — Estás louco?
— Não estou, não, — disse o Jake, com os olhos também semicerrados. — Pelo menos não estou tão louco como você. Esta miúda não é a filha do tal cientista a quem roubámos os papéis. É filha de Simmy. É a João.
O Torre Vermelha olhou para o Jake como se aquele tivesse enlouquecido. Depois olhou para a João. Não conseguia encontrar nenhuma diferença entre a João e a pequena ausente; cabelo muito curto, sardas, nariz arrebitado; não acreditava que aquela era a filha do Simmy.
Julgou que o Jake e o Simmy estavam a enganá-lo, por qualquer motivo que não compreendia.
Mas a João também quis falar. — Sim, eu sou a João, — disse ela. — Não sou a Maria José. Ela fugiu. Eu sou apenas a João e o meu pai é o Simmy. Veio buscar-me, pai, não é verdade?
Claro que nem por sombras o Simmy fora ali com esse fim. Olhou para a filha, desanimado e confuso.
O Torre Vermelha nessa altura perdeu a cabeça. Ao ouvir a voz da João percebeu que ela não era a Zé. De qualquer maneira fora intrujado e sendo aquela a filha do Simmy devia ter sido ele o causador da confusão.
Com os olhos a fuzilar, voltou-se para o Simmy e deu-lhe um grande soco. — Atraiçoaste-me? — gritou ele.
O Simmy caiu desamparado no meio do chão. O Jake foi logo socorrê-lo atirando-se ao Torre Vermelha.
A João olhou para os três homens que lutavam e gritavam, e encolheu os ombros.
Tinham-se esquecido completamente da pequena e isso agradava-lhe muito. Ela correu para a porta e já se preparava para descer as escadas quando uma ideia surgiu na sua esperta cabecita. Voltou para trás com um sorriso malicioso. Puxou a porta sem ruído e depois fechou-a à chave e trancou-a.
Os três homens que estavam lá dentro ouviram o barulho da chave rodando na fechadura e num segundo o Jake estava junto à porta puxando pela maçaneta.
— Ela fechou-nos cá dentro! — disse, desesperado.— E voltou a pôr a tranca!
— Grita pelo Markhoff! — ordenou o Torre Vermelha, tremendo de raiva.
O Markhoff, que ficara no quarto ao fundo das escadas, ouviu de repente gritos e tremendas pancadas na porta. Foi logo lá acima sem perceber o que se passara.
A João escondera-se no quarto ao lado. Quando o Markhoff começou a destrancar a porta, aproveitou para fugir pelas escadas em espiral, sem ser vista. Ela ria para consigo, apertando qualquer coisa contra o peito.
Era a chave enorme que pertencia à porta lá de cima. Ninguém poderia abrir a porta, pois faltava a chave. Era a João quem a tinha!
— Abre a porta! — gritou o Torre Vermelha. — A miúda fugiu!
— Não está aqui a chave! — respondeu o Markhoff. — Ela deve tê-la levado. Vou ver se a apanho.
Mas uma coisa era procurar a João e outra bem diferente conseguir encontrá-la. Parecia que se evaporara.
O Markhoff procurou por todos os compartimentos mas não a encontrou em parte alguma. Foi até ao pátio e olhou em volta.
Entretanto a João fora ter à cozinha e encontrara a despensa, que era ao lado. Estava com muita fome e queria comer qualquer coisa.
Não havia ninguém na cozinha embora o fogão estivesse aceso.
Meteu-se na despensa, tirou a chave que estava fora da porta e fechou-se lá dentro. Viu que tinha uma pequena janela e abriu-lhe o fecho com cuidado, para fugir, se alguém descobrisse que estava fechada ali dentro. Depois começou a comer. Três pãezinhos com salsichas, uma grande fatia de queijo, uma empada de carne e dois bolos de frutas, tudo isso seguiu o mesmo caminho. A João começava a sentir-se muito melhor. Lembrou-se dos outros e pensou que eles também deviam estar cheios de fome.
Agarrou num cesto de vime que estava pendurado num prego e meteu-lhe dentro alguma comida. Mais salsichas, umas arrufadas, queijo e pão. Agora se conseguisse encontrar os outros, que alegria eles teriam ao vê-la!
A João colocou a chave no fundo do cesto de vime. Sentia-se muito, muito satisfeita com a sua pessoa. O Torre Vermelha, o Simmy e o Jake estavam todos fechados deixando-lhe o caminho livre. Ela não temia o Markhoff tanto como o Torre Vermelha. Tinha a certeza de que conseguiria escapar-lhe.
Nem chegava a ter pena do pai. Não lhe dedicava amor nem respeito, pois ele era exactamente o contrário do que um pai deve ser.
Quando ouviu o Markhoff chegar furioso à cozinha, saltou logo para uma prateleira, pronta a fugir pela janela se ele tentasse abrir a porta. Mas tal não aconteceu. Ele continuou a praguejar e acabou por sair da cozinha.
A João abriu a porta, com cuidado. Nessa altura estava uma mulher de idade na cozinha, perto duma mesa, dobrando umas roupas. Olhou com a maior das surpresas para a João, que espreitava à porta da despensa. — Que...? — começou ela, indignada; mas a João desapareceu da cozinha antes de a mulher proferir a segunda palavra. A velhota foi logo à despensa e começou a gritar, vendo as travessas vazias.
A ciganita dirigiu-se com precaução para a entrada. Ouvia o Markhoff no andar superior continuando a procurá-la dum lado para o outro. A João riu-se, radiante, e correu para a porta, abrindo-a.
Depois, sempre encostada à parede, foi até à porta que dava para os subterrâneos. Abriu-a, passou lá para dentro, fechando-a com cuidado atrás de si.
Ia procurar os outros. Tinha a certeza de que eles estavam nas grutas. Que contentes iriam ficar com o cesto da comida!
Com a pressa quase caiu pelas escadas abaixo, seguindo a correr pela passagem inclinada. Não levava lanterna e tinha de se orientar no escuro. Mas não sentia o mais pequeno medo. Só fez um ligeiro ruído quando bateu com o pé descalço numa pedra.
Os outros três, o Júlio, o David e a Zé, continuavam sentados no mesmo sítio, com o Tim.
O Júlio fora uma vez até à porta que dava para o pátio e espreitara com cuidado para ver se havia alguma novidade. Mas continuava tudo na mesma, excepto ver-se uma velhota que estendia roupa numa corda.
Tinham decidido esperar pela noite para fazerem qualquer coisa. Talvez nessa altura o Tim estivesse um pouco melhor e lhes servisse para se protegerem contra o Torre Vermelha e o Markhoff.
Estavam cheios de sono, sentados muito juntos uns dos outros para se aquecerem. Sabia-lhes bem o calor do corpo do Tim.
O Tim rosnou! Sim, rosnara, uma coisa que não acontecia havia muito tempo.
A Zé agarrou-o pela coleira. Puseram-se todos à escuta.
— Júlio! David! Onde estão? — disse uma voz. — Parece que me perdi.
— É a João! — exclamou o David, acendendo a lanterna. — Estamos aqui, João! Como conseguiste fugir? Que aconteceu?
— Muitas coisas! — disse a João, indo ter com eles, satisfeita. — Nem calculam como estes subterrâneos são escuros, sem a luz duma lanterna. Segui um caminho errado. Foi por isso que chamei por vocês. Mas não me tinha desviado muito. São servidos duma salsicha?
— O quê?! — gritaram três vozes ao mesmo tempo. Até o Tim levantou a cabeça, começando a cheirar o cesto que a João levava.
A ciganita riu-se e abriu o cesto.
Começou a distribuir a comida aos três pequenos que pareciam três lobos famintos. — João, tu és a oitava maravilha do mundo — declarou o David. — Ainda há mais alguma coisa no cesto?
A João tirou do cesto uma chave enorme.
- Há sim! — disse a João, tirando uma
chave enorme. — Olhem para isto! Fechei o Torre Vermelha, o Jake e o meu pai no quarto da torre e aqui está a chave. Que tal acham a minha ideia?
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AZé pegou na chave e olhou-a, assombrada.
— João, esta é realmente a chave? E tu fechaste-os lá dentro? Palavra que te acho fantástica!
— E tens razão, afirmou o David, dando um rápido abraço à ciganita que ficou toda contente. — Nunca encontrei uma rapariga como tu! Nunca! Vales por vinte!
— Não foi nada difícil, — disse a João, com os olhos a brilharem muito à luz da lanterna. — Tu agora já acreditas no que eu digo, David? E vocês nunca mais serão maus para mim, não é verdade?
— Claro que não, — disse o Júlio. — Ficas nossa amiga para sempre.
— Da Zé não, — respondeu logo a ciganita.
— Ai isso ficas, — disse a Zé. — Retiro tudo quanto disse de desagradável a teu respeito. Vales tanto como um rapaz.
Este era o mais elevado cumprimento que a Zé podia fazer a uma rapariga. A João ficou radiante e deu à Zé uma palmada amigável.
— Realmente eu fiz tudo pelo David, - disse ela. — Mas na próxima vez hei-de fazê-lo por todos vocês.
— Meu Deus, espero que não haja «próxima vez», — disse a Zé, com um arrepio. — Posso afirmar que não me diverti em nenhum dos minutos passados nos últimos dias.
O Tim foi deitar a cabeça sobre os joelhos da João. Ela fez-lhe uma festa. — Olhem para isto! — disse ela. — Está a lembrar-se de mim. Agora está melhor, não é verdade, Zé?
A Zé passou com cuidado a cabeça do Tim dos joelhos da João para os seus. Sentia-se francamente amiga da ciganita, mas não ao ponto de ver o Tim com a cabeça sobre os joelhos dela.
— Está melhor, — disse ela, fazendo festas ao cão. — Comeu metade da salsicha que lhe dei, embora a cheirasse primeiro por todos os lados. Julgo que deve ter percebido que lhe puseram qualquer coisa na comida e agora está de pé atrás; meu querido Tim!
Todos se sentiam muito mais animados por já não terem os estômagos vazios. O Júlio olhou para o relógio. — Deve estar quase a anoitecer, — disse ele. — Que se passará lá em cima?
Três dos homens continuavam fechados no quarto! O Markhoff tentava arrombar a porta por todos os processos, mas sem resultado. Era muitíssimo forte e a fechadura resistia, sem se desviar nem um centímetro. Tinham chamado dois homens, que estavam na garagem, para ajudarem. Mas embora a porta estivesse cada vez mais estragada, não conseguiam abri-la de maneira alguma. O Simmy, e o Jake olhavam para o Torre Vermelha, que andava de um lado para o outro, como um leão enjaulado. Sentiam-se satisfeitos por serem dois contra um, pois o Torre Vermelha parecia louco, vociferando, enquanto dava grandes passadas. O Markhoff, pelo lado de fora, com os outros dois homens que levara] lá acima para o ajudar, estava bem preocupado.
Não chegara nenhum polícia até àquele momento (e nem chegaria, pois a Joana quando fora ao posto não soube dizer nada além de que o Júlio e o David tinham ido falar com um homem chamado Torre Vermelha; ela nem fazia a menor ideia do lugar onde ele vivia!).
Mas o Torre Vermelha e o Markhoff não sabiam isso e estavam convencidos de que a polícia devia já ir a caminho. Se ao menos conseguissem fugir no helicóptero antes que acontecesse mais alguma coisa!
— Markhoff! Vai com o Carl e o Tom às grutas subterrâneas, — ordenou o Torre Vermelha por fim. — Os miúdos estão lá, com certeza; é o único lugar onde se podiam esconder. Não devem ter saído pelo pátio porque o portão está fechado e trancado e as paredes são muito altas. Agarra os miúdos e tira-lhes a chave.
Assim o Markhoff e os dois homens, que eram bem corpulentos, desceram as escadas, passaram pelo pátio e seguiram pela porta os degraus altos e depressa chegaram à passagem inclinada, fazendo grande barulho com as botas cardadas. Seguraram-se ao corrimão, na parte mais difícil da descida e chegaram por fim à gruta que tinha a abertura no chão.
Não estava lá ninguém. Os pequenos ouviram o barulho feito pelos homens ao aproximarem-se e tinham saltado logo pelo buraco para a gruta que ficava em baixo.
Correram para a gruta seguinte, a que cheirava mal por causa dos morcegos. Depois tornearam a rocha que estava à entrada da primeira gruta, a que tinha forma oval, e só pararam nos rochedos sobre os penhascos. — Não há nenhum lugar para nos escondermos, — disse o Júlio, aflito. Voltou para a gruta. Ali era relativamente melhor do que nos rochedos lá de fora, pois não havia luz do dia. Puxou os outros para a gruta. Foi iluminando as paredes cuidadosamente, com a lanterna, para ver se encontrava algum lugar onde pudessem esconder-se.
A meia altura da parede havia uma espécie de prateleira cavada na rocha. O Júlio ajudou a Zé a subir e também conseguiu levantar o Tim até à prateleira. Infelizmente o cão naquele momento não podia auxiliá-los, pois continuava muito sonolento. Rosnara ao ouvir o barulho feito pelos homens que se aproximavam mas deixou cair a cabeça logo a seguir.
O David saltou para a prateleira, ficando ao lado da Zé.
O Júlio encontrou uma rocha um pouco saliente e tentou esconder-se atrás dela, enquanto a João se deitava num buraco perto da parede e se cobria toda com areia. O Júlio cada vez achava a ciganita mais inteligente. Sabia sempre qual era a melhor coisa a fazer.
Mas aconteceu que a João foi a única a ser descoberta. Absolutamente por acaso o Markhoff pisou-a. Tanto ele como os outros dois homens tinham passado pela abertura para a gruta seguinte; continuaram pela gruta dos morcegos e vendo que não estava ali ninguém, foram até à gruta oval.
— Os miúdos também não estão aqui, — disse um dos homens, — Esconderam-se em qualquer outro sítio. Que horríveis subterrâneos. Voltemos para trás!
O Markhoff manejava a lanterna para cima e para baixo, a ver se os pequenos estavam escondidos atrás dalguma rocha, quando pisou com força a mão da ciganita. Ela deixou escapar um grito de dor e o Markhoff ia deixando cair a lanterna!
Num abrir e fechar de olhos ele puxou a pequena do seu esconderijo na areia e abanou-a como se fosse um boneco. — É esta que nós queremos,— disse ele aos companheiros. — Esta é que levou a chave. Onde a puseste, minha fuinha? Dá-me a chave imediatamente ou atiro-te pelos penhascos abaixo!
O Júlio estava aterrado. Tinha a certeza de que o Markhoff era capaz de atirar a João pelos penhascos e ia socorrê-la, quando ouviu a ciganita falar.
— Está bem. Largue-me seu bruto! Aqui está a chave. Vão soltar o meu pai antes que chegue a polícia. Não quero que o apanhem.
O Markhoff teve uma exclamação de triunfo e arrancou uma chave luzidia das mãos da ciganita. Deu-lhe um soco num ouvido.
— Seu diabinho! Podes aqui ficar com os outros e não há-de ser por pouco tempo. Sabes o que vamos fazer? Vamos tapar o buraco da outra gruta com uma pedra e ficarão aqui presos! Não poderão fugir lá por cima e também não conseguirão fazê-lo por baixo, pois serão atirados contra as rochas, pelas ondas, se tentarem nadar para longe. Isto os ensinará a não meterem o nariz onde não são chamados!
Os outros dois homens riam às gargalhadas. — Boa ideia, Markhoff! — disse um deles. — Ficarão aqui bem presos e ninguém conseguirá encontrá-los. Vamos; não temos tempo a perder. Se o Torre Vermelha continua fechado acabará por enlouquecer.
Os homens voltaram para trás e os pequenos ouviram os seus passos ressoarem cada vez mais ao longe.
Por fim deixaram de se perceber, pois os homens subiram, um por um, pelo buraco da última gruta e seguiram pelo túnel estreito e baixo a caminho do pátio.
O Júlio saiu do seu esconderijo, um tanto assustado. — Acabou-se! — disse ele.
— Se os homens vão realmente tapar o buraco, e naturalmente já o fizeram, ficaremos aqui de conserva. Como disse o Markhoff, não podemos fugir nem pelo pátio, nem pelos penhascos. O mar é muito bravo para tentarmos nadar e é impossível subir mais para cima, pelos penhascos.
— Vou ver se eles realmente taparam a abertura, — disse o David. — Podiam estar só a amedrontar-nos.
Mas infelizmente era verdade. Quando o Júlio e o David iluminaram a abertura do tecto, com as lanternas, viram que estava tapada com uma grande pedra. E esta era impossível de desviar pelo lado de baixo.
Voltaram apreensivos para a gruta oval e sentaram-se na entrada à luz do sol-poente.
«Que pena terem encontrado a João, — disse a Zé. — E ainda é maior pena que ela tivesse de entregar a chave. Agora o Torre Vermelha e os outros ficarão em liberdade.
— Isso é que não ficam, — disse a João, inesperadamente. — Não lhes dei a chave do quarto da torre. Tinha outra chave comigo, a da despensa! E foi essa que eu entreguei.
— Deus seja louvado! — disse o Júlio, confuso. — As coisas que tu fazes, João! Mas como tinhas tu a chave da despensa!?
A João explicou-lhes como a tinha tirado da parte de fora da porta da despensa e se tinha fechado enquanto comia.
— Claro que tive de abrir a porta para sair, — disse ela. — E resolvi ficar com a chave, pois podia ter que fechar-me lá dentro novamente.
— Tu consegues tirar partido de tudo, João, — disse o David com a maior das convicções. — És esperta que nem um alho. E assim ainda tens contigo a chave do quarto da torre?
— Pois claro, — disse a João. — E o Torre Vermelha, o meu pai e o Jake continuam fechados lá em cima.
Mas de repente o David teve um pensamento bem desagradável. — Esperem! — disse ele. — Que irá acontecer quando perceberem que entregámos outra chave? Com certeza voltam aqui e não sei o que farão a todos nós!
UMA GRANDE SURPRESA
A ideia de que os homens podiam voltar daí a pouco, desta vez ainda mais zangados, era muitíssimo desagradável.
— Logo que o Markhoff experimente a chave na fechadura do quarto da torre e não consiga abri-la há-de perceber que a João o enganou! — disse a Zé.
— E então ficará tão furioso que voltará logo aqui e só Deus sabe o que nos acontecerá! — acrescentou o Júlio. — Que vamos fazer? Esconder-nos outra vez?
— Não, disse o David. — Vamos descer pelos penhascos até junto ao mar. Havemos de nos sentir mais seguros aí do que nas grutas. Talvez consigamos encontrar um esconderijo melhor, nas rochas daquele pequeno porto.
— Que pena terem destruído o meu barco, — disse a Zé, com um suspiro. — E como poderemos levar o Tim lá para baixo?
Conversaram sobre o assunto. O Tim não conseguiria descer, isso era bem certo. A João lembrou-se da corda que ficara presa nos penhascos, a que ela atara para ajudar o Júlio e o David na subida. — Já sei, — disse com a sua cabecita a trabalhar rapidamente. — Tu desces à frente, Júlio, e depois, tu, David. Depois pode ir a Zé. Vocês vão-se segurando à corda quando descerem, para não caírem. Depois eu puxo a corda para cima, prendo com ela o Tim, por baixo das patas da frente, e vou-o descendo até ao sítio onde vocês estiverem. Como continua meio adormecido não deve espernear. Nem mesmo perceberá o que se passa.
— E tu? — perguntou o David. — Não te importas de ser a última? Ficarás sozinha cá em cima, e os homens poderão chegar dum momento para o outro!
— Não me importo, — disse a João. — Mas não percamos tempo.
O Júlio desceu primeiro, satisfeito por se poder segurar à corda enquanto procurava com os pés e as mãos um ponto de apoio. Seguiu-se o David que quase escorregou por ali abaixo, tal era a sua pressa.
Depois desceu a Zé, devagar e aflita, não lhe agradando nada os penhascos inclinados. Olhou por uma vez para o mar lá em baixo e sentiu uma vertigem. Fechou os olhos por um momento e agarrou-se à corda com toda a força.
Era muitíssimo difícil descer o Tim. A Zé ficou em baixo esperando com ansiedade. A João teve grande dificuldade em amarrar o Tim com segurança. Era grande e pesado, e não queria deixar-se amarrar, embora não percebesse bem o que se estava passando. Por fim a João conseguiu prendê-lo, dando uma laçada com uns nós seguros; chamou os outros.
— Aqui vai ele! Vejam se a corda não se parte. Espero que o Tim não desate a espernear.
O Tim baloiçava na extremidade da corda, enquanto o desciam. Ele ficou admirado quando se achou suspenso no ar.
Lá em cima, a João estava cansadíssima. — Ai, ele é tão pesado! Espero conseguir aguentá-lo até ao fim. Atenção! — gritava ela.
Mas faltaram-lhe as forças e a corda escorregou-lhe das mãos. Felizmente o Tim estava a cerca de meio metro do chão e o Júlio e a Zé conseguiram apanhá-lo quando ele caiu de repente.
«Agora vou eu, — gritou a João, e sem mesmo se agarrar à corda ou olhar para ela, desceu como um macaco, parecendo encontrar pontos de apoio como por encanto. Os outros observavam-na, maravilhados. Em breve ela estava ao pé deles. A Zé desamarrou o Tim.
— Muitíssimo obrigada, João, — disse a Zé, olhando reconhecida para a ciganita. — És formidável. O Tim deve ser pesadíssimo!
— Bastante! — disse a João, fazendo-lhe uma festa. — Quase o deixei cair. Agora que vamos fazer?
— Vamos procurar, por este pequeno porto, um lugar para nos escondermos,— disse o Júlio. — Tu vais por aquele lado, Zé, e nós vamos por este.
Separaram-se e começaram à procura dum esconderijo.
O Júlio e o David chegaram à conclusão de que não havia nenhum, pelo menos daquele lado. O mar entrava pelo pequeno porto, muito agitado. Era impossível nadar lá para fora.
De súbito ouviram a Zé gritar entusiasmada:— Júlio! Vem cá! Olha o que eu encontrei?
Correram todos para o lugar onde estava a Zé, atrás duma grande rocha. Ela apontou para uma coisa envolta em algas.
«Um barco! Está todo coberto com algas mas é Um barco a valer!
— É o teu barco! — exclamou o David, começando a puxar pelas algas, como doido. — O Markhoff não chegou a destruí-lo. Está intacto. Não conseguiu encontrá-lo, pois estava bem tapado com estas algas. Por isso limitou-se a voltar para trás e a dizer uma mentira ao Torre Vermelha.
— Não o escangalhou! — gritou a João, começando também a afastar as algas. — Está tal qual como o deixámos!
Os quatro pequenos estavam tão contentes e surpreendidos que começaram a bater nas costas uns dos outros, pulando de alegria. Afinal ali estava o barco, o belo barco da Zé. Podiam fugir! Viva!!!
Um grito vindo do alto dos penhascos fez com que todos se calassem.
Olharam para cima, assustados. O Markhoff e os outros dois homens estavam à entrada da gruta, gritando e ameaçando-os com os punhos.
— Esperem que já os apanho! — gritou
o Markhoff.
— Depressa! Depressa! — disse o Júlio, aflito, puxando pelo barco. — Só temos esta oportunidade. Puxem o barco para a água! Puxem-no com toda a força!
O Markhoff ia descendo pelos penhascos e a João ficou arrependida de não ter desatado a corda antes de ter descido, pois o Markhoff havia de a achar muito útil. Ela também empurrava o barco, com os outros, todos cheios de pena de que não fosse mais leve.
O barco estava quase na água quando se deu um acontecimento. O Tim, que continuava intrigado com tudo aquilo, escorregou de repente da rocha onde estava e caiu ao mar. A Zé deu um grito.
— Ó Tim! Ele caiu à água! Depressa, depressa! Está tão narcotizado que não poderá nadar. Vai-se afogar!
O Júlio e o David não se arriscaram a deixar o barco pois bem sabiam que o Markhoff depressa estaria ali. A Zé correu para o Tim, que caíra no meio das ondas, continuando surpreendido e confuso.
Mas a água teve sobre ele um efeito maravilhoso. Como estava fria fê-lo num instante sair da sua sonolência. Ficou muito mais esperto e nadou com energia para a rocha donde havia escorregado. Conseguiu subir com a ajuda da Zé, ladrando com força.
O barco começou a flutuar e o Júlio gritou à Zé.
— Anda depressa! Salta cá para dentro!
A João já estava no barco e o David também. A Zé puxava pelo Tim, que lhe resistia não querendo ir para o barco.
O Júlio olhou desesperado para o Markhoff que estava quase no fim da corda, pronto para saltar para baixo. Não conseguiriam fugir a tempo!
O Tim de repente escapou-se das mãos da Zé e correu como doido para os penhascos, ladrando assustadoramente. O choque que recebera com o banho frio fizera-o voltar à normalidade. Era outra vez o corajoso e fiel Tim!
O Markhoff estava a uns metros do barco quando ouviu o Tim a ladrar. Olhou para baixo, aterrado, e viu o cão, enorme, tentando atacá-lo. Começou a subir depressa para ficar fora do alcance do Tim.
— Béu, béu, béu! — ladrava o Tim. — Grrrrrrrr!
— Cuidado, olha que ficas sem um pé! — gritou um dos homens que estava mais acima.— É um cão feroz. Cuidado, Markhoff!
O Markhoff tinha cuidado!... Estava apavorado. Subiu um pouco mais e então percebeu que o Tim tomava balanço para saltar até onde ele estava. Subiu ainda mais e agarrou-se à corda com uma das mãos, com receio de cair e ser agarrado pelo furioso Tim.
— Vamos, Tim! — gritava a Zé, — Vamos!
Estavam os quatro dentro do barco e só faltava o Tim para partirem, remando para fora do porto antes que o Markhoff pudesse alcançá-los.
«Tim! Tim!
O cão ouviu; deitou um último olhar às pernas do Markhoff e correu para o barco. Deu um salto lá para dentro e continuou a ladrar como doido.
O Markhoff saltou novamente para as rochas. Mas era tarde! O barco desaparecia na entrada do pequeno porto!
O Júlio e o David remavam com força. A Zé pôs os braços à volta do Tim e encostou a cara ao seu pêlo. A João fez o mesmo.
— Agora já está completamente bom! — exclamou a Zé, radiante.
— Foi a água fria que o curou! — disse a João.
O Tim começara a farejar o fundo do barco, muito satisfeito. A João quis saber o que ele encontrara. Depressa descobriu.
— É o embrulho das sanduíches que nós trouxemos e que nunca chegámos a comer! — exclamou ela. — O Tim está a devorá-las!
— Deixa-o comer todas! — disse o Júlio, remando com energia. — Bem as merece! Como é agradável voltar a ouvi-lo ladrar, com a cauda a mexer dum lado para o outro.
E realmente a cauda do Tim não parava. O mundo voltara à normalidade para o valente Tim. Podia ver e ouvir como anteriormente; podia ladrar e saltar. E estava outra vez junto da sua querida dona!
«Agora, para casa! — disse o Júlio.— Como a Ana vai ficar satisfeita quando nos vir! Que aventura tivemos, santo Deus!
TUDO CORRE BEM
ESTAVA a escurecer quando o barco da Zé chegou à Baía Kirrin. Parecera um percurso enorme e todos estavam cansadíssimos. As pequenas tinham ajudado a remar, quando os rapazes estavam exaustos e o Tim animara-os a todos com a sua vivacidade.
— Palavra que a cauda do Tim ainda não parou desde que ele veio para o barco, — disse a Zé. — Está tão satisfeito por se sentir bem!
Via-se na praia uma pequena silhueta meio perdida na escuridão. Era a Ana. Ela gritava por eles, com a voz a tremer.
— Estive à vossa espera durante todo o dia! Estão bons?
— Óptimos! E trazemos a Zé e o Tim! — gritava o David enquanto o barco se aproximava.
Saltaram para a praia e empurraram o barco pela areia. A Ana ajudou-os, quase chorando de alegria por voltar a vê-los.
— É bastante mau estar-se metido numa aventura, — disse ela. — Mas é muito, muito pior quando se fica de fora! Nunca mais deixarei de os acompanhar!
— Brrr! — fez o Tim, concordando.
Ele também não queria deixar de tomar parte nas aventuras dos seus amiguinhos.
Foram todos para casa, bastante devagar, pois estavam cansados. A Joana esperara-os todo o dia e deu gritos de alegria ao ver a Zé.
— Os meninos são muito maus! Passaram o dia fora sem dizerem onde se encontravam e eu aqui tão apoquentada! Menina Zé, sente-se bem?
— Lindamente — respondeu a Zé, que estava a cair com sono. — Arranja-me qualquer coisa para comer antes que eu adormeça aqui mesmo.
— Mas onde estiveram todo o dia? Que fizeram? — insistiu a Joana, dirigindo-se para a cozinha, com o fim de lhes preparar uma refeição. — Fiquei tão preocupada que fui à polícia e fiz uma figura de parva, pois não sabia dizer onde tinham ido nem coisa nenhuma. Só contei que tinham saído no barco da menina Zé para procurarem um homem chamado Torre Vermelha.
— E a polícia tem andado ao longo da costa, num barco a motor, — contou a Ana. — Tentaram localizá-los mas não conseguiram.
— É natural, pois o nosso barco estava bem escondido, — disse o David. — E nós também! Tão escondidos que cheguei a pensar que passaríamos ali o resto dos nossos
dias!
O telefone tocou. O Júlio deu um pulo. — óptimo, o telefone já está consertado.
Logo que respondas a esta chamada vou telefonar à polícia, Joana.
Mas era exactamente da polícia que falavam. Ficaram satisfeitos quando a Joana disse que os pequenos já tinham chegado e se encontravam bem. — Daqui a dez minutos estaremos aí, — disseram eles.
Dez minutos mais tarde os pequenos e o Tim devoravam uma bela refeição. — Não interrompam, — disse o sargento da polícia, entrando na sala de jantar, com o colega que anteriormente ali estivera. — Vão falando enquanto comem. — E assim contaram tudo em pormenor. Primeiro falou a Zé, depois a João, seguindo-se o David e o Júlio. Ao princípio, o sargento não percebia nada, mas juntando as várias histórias que ouvira acabou por chegar a uma conclusão.
— O meu pai vai ser preso? — perguntou a João.
— Julgo que sim, — respondeu o sargento.
— Pouca sorte, João. — disse o David.
— Não me importo,— respondeu a João.
— Fico muito melhor quando ele está longe. Não tenho de fazer o que me manda.
— Vamos a ver se te arranjamos uma boa casa, — disse o sargento, com simpatia. — Tu arriscaste a vida.
— Eu não quero ir para o reformatório! — protestou a ciganita assustada.
— Nem eu consentiria, — disse logo o David. — Tu és uma das raparigas mais formidáveis que tenho conhecido.
Nenhum de nós te deixa ir para um reformatório. Havemos de encontrar alguém que te trate bem, uma pessoa como... como...
— Como eu, — interrompeu a Joana, que estava a ouvir a conversa. Pôs um braço à volta da ciganita e continuou: — Tenho uma prima que deseja arranjar uma miúda pobre com bom coração como tu. Não te preocupes. Nós olharemos por ti.
— Não me importa de viver com alguém como a senhora, — disse a João, sem hesitar. — Nunca mais farei coisas más. E por outro lado, ficando aqui perto, de vez em quando poderei falar com o David e com os outros.
— Mas só se te portares bem, — disse o David, dando uma gargalhada. — Lembra-te duma coisa: se eu souber que voltaste a entrar pela janela da copa de alguma casa ou que fizeste qualquer coisa nesse género, nunca mais quererei ver-te.
A ciganita riu-se. Sentia-se muito feliz. De repente, lembrou-se duma coisa e meteu a mão dentro do cesto de vime, que continuava a segurar. Tirou para fora uma chave enorme.
— Aqui a tem, — disse ela ao sargento. — Esta é a chave do quarto da torre. Aposto que o Torre Vermelha e os outros continuam lá fechados, prontos a serem apanhados pelo senhor!... Que grande susto vão ter quando o senhor abrir a porta!
— Muita gente vai apanhar grandes sustos, — disse o sargento, guardando o seu volumoso livro de apontamentos. — Foi uma
sorte a menina Maria José ter conseguido fugir com o seu cão, sem chegarem a fazer-lhes mal. A propósito, pusemo-nos em contacto com um amigo de seu pai, quando andámos à procura dos livros de apontamentos que foram roubados. Ele disse-nos que o seu pai antes de partir para férias lhe entregou todos os papéis importantes trazidos da América. Por conseguinte, esse tal Torre Vermelha não apanhou nada de valor. Meteu-se num sarilho sem necessidade.
— Sabe alguma coisa a respeito desse Torre Vermelha? — perguntou o Júlio. — Pareceu-me um tanto louco.
— Se é a pessoa que nós pensamos não é lá muito ajuizado, — disse o sargento. — Ficaremos satisfeitos por podermos vê-lo debaixo da nossa vigilância. E ao Markhoff também; não é tão inteligente como o outro, mas é perigoso.
— Espero que não tenham fugido no helicóptero, — disse o David. — Tencionavam ir-se embora esta noite.
— Chegaremos lá daqui a uma hora, — disse o sargento. — Dêem-me licença que me sirva do vosso telefone, para pôr as coisas em andamento.
E na verdade nessa noite os carros da polícia pararam em frente da casa do Torre Vermelha. Tiveram que arrombar o portão, pois ninguém o foi abrir. O helicóptero continuava no pátio, mas completamente destroçado. Contaram depois aos pequenos que o Markhoff e os outros dois homens tentaram fugir no helicóptero mas este tinha qualquer avaria. Subira a uma certa altura e depois caíra sobre o pátio.
Quando os polícias entraram, a cozinheira estava tratando dos três homens, que haviam sido projectados dos assentos, ficando feridos. O Markhoff partira a cabeça e não pôs nenhuma resistência.
— Onde está o Torre Vermelha? — perguntou-lhe o sargento. — Continua fechado?
— Continua, — disse o Markhoff, ferozmente.
— E terão de abrir a porta com um ariete, para o tirarem cá para fora.
— Nem pense nisso! — disse o sargento, mostrando-lhe a chave. O Markhoff fitou-o.
— Aquela miúda! Deu-me a chave da despensa, mas se a apanho nem sei o que lhe faço.
— Não será nestes tempos mais próximos, Markhoff — respondeu o sargento,— pois tencionamos levar-te com os outros.
O Torre Vermelha, o Simmy e o Jake continuavam fechados, cada vez mais furiosos. Mas perceberam que tinham perdido a partida e pouco depois eram levados nos carros da polícia.
— Que linda caça! — disse o sargento para um dos seus homens. — E muito simples! Três deles estavam fechados num quarto, mesmo à nossa espera!
— Que fazemos dessa miúda cigana? — perguntou outro polícia. — Não parece boa peça e é esperta como tudo.
— Vamos dar-lhe uma oportunidade, — disse o sargento. — Toda a gente deve ter uma oportunidade e esta é a dela. Acho que ela é metade boa e metade má. Mas agora há-de portar-se bem.
A João dormia mais uma vez no quarto da cozinheira. Os outros foram para os seus quartos, para se deitarem. De repente deixaram de ter sono. Principalmente o Tim estava muito esperto, correndo dum quarto para o outro, espalhando as roupas pelo chão.
— Tim! Se saltas outra vez para a minha cama, ponho-te lá fora e fecho a porta, — disse a Ana. Mas claro que o Tim continuou a saltar e ela não fez nada disso.
O telefone desatou a tocar sobressaltando todos.
— Quem será agora? — disse o Júlio, descendo as escadas para ir atender a chamada.
— É de Kirrin-0-11? Aqui é dos telegramas. Há um telegrama para aí com resposta paga. Vou lê-lo.
— Faz favor, — disse o Júlio.
— Vem de Sevilha, em Espanha, — disse a mesma voz. — Diz o seguinte:
Aqui vai a nossa morada. Favor telegrafar dizendo se tudo corre bem. Tio Alberto.
O Júlio repetiu o telegrama aos outros, que também tinham descido. — Que resposta dou? — perguntou ele.
— Não vale a pena os tios preocuparem-se, agora que tudo acabou.
— Pois claro que não, — concordou o David. — Diz o que quiseres!
— Está bem, — disse o Júlio, voltando a pegar no auscultador. — Está? Aqui vai a resposta. Posso ditar?
Passámos um tempo divertido com muitos jogos e brincadeiras. Tudo corre bem. Júlio.
- Tudo corre bem, — repetiu a Ana,
quando subiram a escada para irem novamente para a cama.
— É o que eu mais gosto de ouvir no final duma aventura. Tudo corre bem!
Enid Blyton
O melhor da literatura para todos os gostos e idades