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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS CINCO E A TORRE DO SÁBIO / Enid Blyton
OS CINCO E A TORRE DO SÁBIO / Enid Blyton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS CINCO E A TORRE DO SÁBIO

 

                   COMEÇAM AS FÉRIAS

- ZÉ, não consegues estar quieta pelo menos um minuto? ‑ repreendeu Júlio. ‑ Já bastam os solavancos que o comboio dá, quanto mais passares sobre os meus pés de minuto a minuto para ires à janela.

‑ Estamos quase a chegar a Kirrin, estamos quase em casa! ‑ exclamou a Zé. ‑ Não consigo deixar de me sentir excitada. Neste período tive tantas saudades do Tim! Estou morta por o ver outra vez. Basta olhar pela janela para verificar que já estamos muito perto de Kirrin. Acham que o Tim estará na estação à nossa espera a ladrar de contente?

‑ Não sejas palerma! ‑ disse David. ‑ Ele é um cão muito inteligente mas não o bastante que saiba consultar os horários dos comboios.

‑ Também não precisa ‑ respondeu Zé. ‑ Ele sabe sempre quando é que eu chego.

‑ Concordo contigo ‑ disse a Ana muito séria. ‑ A tua mãe tem contado que ele está excitado no dia em que chegas do colégio, para férias. Não consegue estar quieto e vai dezenas de vezes ao portão olhar para a estrada.

‑ Meu querido Tim! ‑ exclamou a Zé voltando a pisar o Júlio, para ir mais uma vez à janela. ‑ Já estamos muito perto. Reparem! Reparem!

Os três primos da Zé olharam para ela muito divertidos. Ela era sempre assim,quando voltava para casa, no princípio das férias. Só tinha no pensamento o seu cão Tim!

O Júlio ao olhar para a prima pensou como ela realmente parecia um rapazinho com o seu cabelo curto e encaracolado e a sua expressão viva e decidida. A Zé sempre desejara ser um rapaz mas como o não era, esforçava‑se por parecê‑lo, falando e portando‑se como tal e nunca respondendo quando a tratavam por Maria José, o seu verdadeiro nome.

‑ Estamos a chegar à ilha Kirrin! ‑ gritou a Zé quase caindo da janela. ‑ Já vejo o homem das bagagens! Olá! Pedro! Cá estamos de volta? AQUI ESTAMOS!

O comboio parou na estação de Kirrin e o Pedro, o bagageiro, saudou‑os sorrindo. Conhecia a Zé desde pequenina. Ela abriu aporta do compartimento e saltou para o chão.

‑ Outra vez em Kirrin! Que bom! Espero que o Tim tenha vindo à estação!

Mas não se via o Tim em parte alguma.

‑ Naturalmente esqueceu‑se de que tu vinhas hoje ‑ disse David, rindo, mas a Zé deu‑lhe logo uma descompostura. O Pedro aproximou‑se, todo sorridente, dando‑lhe as boas‑vindas. Toda a gente da Vila Kirrin conhecia os Cinco, ou seja, os quatro pequenos e seu cão Tim.

Pedro em breve juntava a bagagem das crianças e levava‑a no seu carrinho, pela gare.

‑ Eu mando‑a entregar no Casal Kirrin ‑ disse ele. ‑ Tiveram boas notas?

‑ Bastante boas ‑ disse David. ‑ Mas este período parecia nunca mais ter fim porque este ano a Páscoa veio muito tarde. Reparem como estão lindas as maravilhas dos canteiros da estação.

Mas a Zé não podia reparar em nada, naquele momento, pois continuava à procura do Tim. Onde estaria? PORQUE não fora à estação para a receber? Veio da última vez e também da penúltima! A Zé voltou‑se para o David, muito preocupada.

‑ Achas que estará doente? ‑ perguntou. ‑ Ou ter‑se‑á esquecido de mim? Ou...

‑ Não sejas parva, Zé ‑ disse David. ‑ Naturalmente está em casa e não conseguiu sair. Toma cuidado, o carro das bagagens quase te ia atropelando!

A Zé desviou‑se, sempre a olhar para toda a parte. Onde estaria o Tim? Tinha a certeza de que adoecera ou tivera um desastre ou estava preso, no canil. Talvez a Joana, a cozinheira, se tivesse esquecido de soltá‑lo.

‑ Vou de táxi para casa, se o meu dinheiro chegar ‑ disse ela, procurando o porta‑moedas. ‑ Vocês podem seguir a pé. Preciso de saber o que aconteceu ao Tim. Nunca até hoje se esqueceu de nos vir esperar.

‑ O passeio até ao casal Kirrin é tão bonito, Zé! ‑ disse a Ana. ‑ Bem sabes como gostas de ver a tua ilha, a nossa querida ilha Kirrin, enquanto caminhamos para casa. E a

baía com as ondas batendo nos rochedos!

‑ Vou de táxi ‑ disse a Zé, teimosa, contando o seu dinheiro. ‑ Se quiserem podem vir comigo. Neste momento só me interessa ver o Tim e não penso em ilhas, nem rochedos, nem nada disso. Estou convencida de que ele está doente ou teve algum desastre.

‑ Está bem, Zé, faz como quiseres ‑ disse Júlio. ‑ Espero que encontres o Tim de perfeita saúde e que apenas se tenha esquecido da hora do comboio! Até já!

Os dois rapazes e a sua irmã Ana partiam juntos, a pé, pois apetecia‑lhes imenso darem um passeio até ao Casal Kirrin. Como era agradável voltarem a ver a Baía Kirrin e a ilha da Zé!

‑ Ela tem imensa sorte de possuir uma ilha! ‑ disse a Ana. ‑ É engraçado que tenha pertencido a sua família durante imensos anos e um dia a mãe a tenha oferecido à Zé! Até aposto que ela se fartou de a pedir à tia Clara, até que a pobre senhora não teve outro remédio senão oferecer‑lha! Espero que o Tim esteja bem. Nem poderíamos gozar as nossas férias se alguma coisa tivesse acontecido ao Tim!

‑ Se adoecesse, naturalmente a Zé iria viver com ele para o canil ‑ disse o David, rindo. ‑ Ora reparem! Já se vê o mar da Baía Kirrin e a pequenina ilha, tão bonita como sempre!

‑ E as gaivotas esvoaçando em redor, gritando como gatinhos a miar ‑ acrescentou o Júlio. ‑ E no meio da ilha o castelo em ruínas. Curioso, não caiu nem mais uma pedra!

‑ É impossível veres isso a esta distância ‑ disse Ana, apurando a vista. ‑ Vocês não acham que o primeiro dia de férias é um autêntico sonho? Parece que temos imenso tempo de descanso à nossa frente.

‑ Pois é, mas ao fim de alguns dias, as férias parecem fugir ‑ disse Júlio. ‑ Naturalmente a esta hora, a Zé já chegou a casa.

‑ O táxi passou por nós a grande velocidade ‑ disse o David. ‑ Até aposto que a zéfoi todo o tempo a gritar ao motorista para seguir mais depressa!

‑ Olhem, ali está o Casal Kirrin. Já vejo as chaminés ‑ disse David. ‑ Está a sair fumo por uma delas.

‑ Que esquisito, porque sairá fumo só por uma? ‑ notou o Júlio. A esta hora costuma estar aceso o fogão da cozinha e a lareira do escritório do tio Alberto. Bem sabem como ele se sente gelado enquanto trabalha naqueles intermináveis números das suas invenções.

‑ Talvez o tio Alberto não esteja em casa ‑ lembrou a Ana, sorrindo‑lhe a ideia. Sempre tivera um certo medo do génio intempestivo do pai da Zé. ‑ Acho que fazia bem ao tio Alberto, ter umas fèriazitas de vez em quando. Passa os dias mergulhado em colunas de números.

‑ Esperemos não o incomodar muito ‑ disse Júlio. ‑ A tia Clara tem uma vida difícil quando ele desata aos gritos constantemente.

Vamos passar a maior parte do tempo fora de casa.

Estavam agora já bastante perto do Casal Kirrin. Quando chegaram ao portão do jardim, viram a Zé correndo para eles. Os três pequenos sentiram‑se horrorizados ao perceber que ela soluçava, num pranto.

‑ Ai meu Deus, alguma coisa deve ter acontecido ao Tim ‑ disse o Júlio assustado. ‑ A Zé nunca chora! Que terá acontecido?

Começaram a correr em direcção à prima e a Ana gritou:

‑ Zé! Zé! Que se passa? Aconteceu alguma coisa ao Tim?

‑ Não podemos ficar em casa ‑ disse a Zé, soluçando. ‑ Temos que ir para qualquer outro sítio. Aconteceu uma coisa horrível.

‑ O que foi? Conta‑nos depressa! ‑ pediu o David, assustado. ‑ O Tim fugiu ou coisa assim?

‑ Não, não é nada que diga respeito ao Tim ‑ disse a Zé, limpando os olhos com a mão, pois, como de costume, esquecera‑se do lenço. ‑ É a Joana, a nossa querida cozinheira.

‑ Que lhe aconteceu? ‑ perguntou Júlio, pensando em toda a espécie de coisas horríveis.

‑ A Joana está com escarlatina ‑ disse a Zé, chorando. ‑ Por isso não podemos ficar no Casal Kirrin.

‑ Mas por que motivo? ‑ perguntou David. ‑ A Joana terá que ir para um hospital de doenças infecciosas e por isso nós podemos ficar todos no Casal Kirrin a ajudar a tua mãe. Pobre Joana! Mas anima‑te, Zé. Hoje em dia a escarlatina já não é uma doença muito perigosa. Vamos entrar para consolarmos um pouco a tua mãe. Pobre tia Clara, deve andar ocupadíssima, mais a mais com todos nós chegando para férias. Mas não tem importância, nós podemos...

‑ Cala‑te, David! ‑ interrompeu a Zé, desesperada. ‑ Nós não podemos ficar no Casal Kirrin. A mãe nem me deixou entrar em casa. Mandou‑me esperar no jardim pois o médico estava a chegar.

Alguém chamou os pequenos, duma janela do Casal Kirrin.

‑ Meninos, estão todos aí? Júlio, aproxima‑te, por favor.

Entraram todos no jardim e viram a tia Clara, a mãe da Zé, debruçada da janela de um dos quartos de dormir do primeiro andar.

‑ Oiçam, meus queridos ‑ disse ela. ‑ A Joana está com escarlatina e estamos à espera de uma ambulância para a levar para o hospital, e...

‑ Tia Clara não se preocupe. Todos nós a podemos ajudar ‑ disse o Júlio animando a tia.

‑ Querido Júlio, não estás a perceber ‑ disse a tia Clara. ‑ Nem o teu tio Alberto nem eu tivemos a escarlatina, por isso estamos de quarentena e ninguém deve ficarem contacto connosco, não vá a Joana ter‑nos pegado e por nossa vez pegarmos às outras pessoas. Até lhes podemos pegar a vocês quatro.

‑ O Tim também pode apanhar escarlatina? ‑ perguntou a Zé, continuando a chorar.

‑ Não, claro que não. Não sejas pateta, Zé ‑ respondeu a mãe. ‑ Alguma vez ouviste dizer que um cão apanhasse sarampo ou tosse convulsa ou qualquer outra das nossas doenÇas? O Tim não está de quarentena. Podem ir buscá‑lo ao canil.

A cara da Zé ficou logo mais desanuviada e ela correu para as traseiras da casa chamando pelo Tim. Ouviram‑se logo uma quantidade de latidos!

‑ Tia Clara, que vamos nós fazer agora? ‑ perguntou Júlio. ‑ Não podemos ir para casa dos meus pais, pois como sabe eles ainda estão na Alemanha. Acha que devemos ir para um hotel?

‑ Não, meu filho. É preciso pensar noutro sítio melhor ‑ disse a tia Clara. ‑ Santo Deus, o Tim está a fazer imenso barulho! Pobre Joana, tem uma horrível dor de cabeça.

‑ Lá vem a ambulância ‑ disse a Ana, na altura em que uma ambulância do hospital parava em frente do portão. A tia Clara saiu da janela para ir prevenir a Joana. O homem da

ambulância entrou pela porta da frente, seguido pelo ajudante que levava uma maca. As quatro crianças observavam a cena com atenção.

‑ Vão buscar a Joana ‑ disse Júlio. E na verdade em breve aparecia a maca com a Joana toda embrulhada em cobertores.

Ela acenou aos pequenos, enquanto os homens a transportavam para a ambulância.

‑ Hei‑de voltar depressa ‑ disse ela numa voz bastante fraca. ‑ Ajudem a senhora. Tenho muita pena que isto tenha acontecido.

‑ Pobre Joana! Coitada! ‑ disse a Ana com lágrimas nos olhos. ‑ Volta depressa, Joana! Vamos sentir muito a tua falta.

A porta da ambulância fechou‑se e o carro afastou‑se, devagar.

‑ Que vamos fazer agora? ‑ disse David,' voltando‑se para o Júlio. ‑ Não podemos ir para casa. Não podemos aqui ficar! Oh, lá vem o Tim! Olá Tim, como estás, amigo?

Ainda bem que não podes apanhar escarlatina! Não vale atirares‑me ao chão! Já para baixo! Santo Deus, dás umas lambedelas temíveis!

O Tim era o único dos Cinco que se conservava satisfeito. Os outros estavam na verdade bastante aborrecidos. Que deveriam fazer? Para onde poderiam ir? Que horrível princípio de férias! Para baixo Tim, para BAIXO! Quieto! Até parecia que nunca ouvira falar em escarlatina. Quieto, Tim!

 

                   PLANOS PARA OS CINCO

AZé continuava muito preocupada. Afinal ao seu receio que o Tim estivesse doente ou ferido seguira‑se o desgosto de ver a Joana ser levada na ambulância.

‑ Não chores mais, Zé ‑ disse Ana. ‑ Temos que arranjar uma maneira sensata de resolver o problema.

‑ Vou procurar a mãe ‑ disse a Zé. ‑ Não me interessa que ela esteja de quarentena ou não.

‑ Não consinto ‑ disse Júlio, agarrando‑a com firmeza por um braço. ‑ Sabes muito bem o que significa "quarentena". Quando tiveste tosse convulsa, não deixaram que nenhum de nós te visitasse para não nos pegares a tosse. Tinhas uma doença infecciosa e por isso não pudeste estar em contacto com ninguém, pelo menos durante algumas semanas. Parece‑me que para a escarlatina são apenas quinze dias, por isso anima‑te.

A Zé continuava a chorar tentando pôr‑se fora do alcance da mão do Júlio. Este piscou o olho ao David e depois disse uma coisa que fez logo com que a Zé se dominasse.

‑ Parece impossível, Maria José! ‑ exclamou ele. ‑ Estás a portar‑te como uma menina chorona. Pobre Maria José. Coitadinha da Maria José!

A Zé parou logo de chorar e olhou furiosa para o Júlio. A coisa que mais detestava era que alguém lhe dissesse que estava a portar‑se como uma menina. E também era horrível ser tratada pelo seu nome, Maria José! Deu ao Júlio um valente soco e este riu‑se, defendendo‑se.

‑ Assim é melhor ‑ disse ele. ‑ Anima‑te! Repara como o Tim olha para ti tão admirado. Parece‑me que é a primeira vez que te vê chorar!

‑ Eu NÃO estou a chorar! ‑ gritou a Zé. ‑ Eu estou só... bem, estou preocupada por causa da Joana. E é horrível não termos nenhum sítio para onde ir.

‑ Estou a ouvir a tia Clara telefonar ‑ disse a Ana que tinha muito bom ouvido. Depois fez uma festa na cabeça do Tim que lhe lambeu a mão. Recebera os pequenos cheio de alegria, ladrando muito contente e distribuindo lambedelas a torto e a direito. Ficara doido de alegria ao voltar a ver a Zé e tivera uma surpresa ao perceber que ela estava triste. Querido Tim, na verdade ele pertencia ao grupo dos Famosos Cinco!

‑ Vamos sentar‑nos à espera de notícias da tia Clara ‑ propôs Júlio, sentando‑se na relva. ‑ Parecemos uns palermas aqui parados, em frente do Casal Kirrin. A tia Clara não tardará em aparecer à janela. Certamente arranjou uma boa solução para o nosso caso. TIM, quieto! Não posso ficar aqui sentado se continuas a lamber‑me o pescoço dessa maneira!

Daqui a pouco, mando‑te buscar uma toalha para me limpares.

A frase espirituosa do Júlio fez com que todos se sentissem mais animados. Sentaram‑se na relva e o Tim ia brincando com cada um. Ali estava a sua "família" de volta e isso era a coisa melhor que lhe podia acontecer. Acabou por se sentar com a cabeça sobre o colo da Zé. Esta fazia‑lhe festas com a mão.

‑ A tia Clara desligou agora o telefone ‑ disse a Ana. ‑ Não tardará em aparecer à janela.

‑ Tens melhor ouvido do que um cão, pelo menos ouves o mesmo que o Tim ‑ disse David. ‑ Não ouvi nada!

‑ Ali está a mãe! ‑ exclamou a Zé, pondo‑se de pé dum salto logo que a tia Clara se debruçou da janela.

‑ Já está tudo arranjado ‑ disse ela. ‑ Estive a telefonar àquele cientista com quem o teu pai tem trabalhado, o professor Hayling. Tencionava vir aqui passar um ou dois dias e quando lhe expliquei que não era possível por estarmos de quarentena, ele disse logo que vocês podiam ir todos para sua casa e que o Buzina, o seu filho, vocês lembram‑se dele, não é verdade?, ficaria encantado com a vossa companhia.

‑ O Buzina? Sim, lembro‑me muito bem. É impossível esquecê‑lo, ao Buzina e ao seu macaco ‑ disse Júlio. ‑ É o pequeno a quem pertence aquele farol nos Rochedos do Demónio, não é verdade? Nós fomos ali passar uns dias com ele e tivemos uma bela aventura.

‑ Mas desta vez não vão para o farol ‑ disse a tia Clara. ‑ Parece que uma tempestade lhe causou grandes estragos e agora é perigoso viver lá.

Os Cinco soltaram exclamações de aborrecimento, um tanto desiludidos e o Tim fez coro com eles como de costume.

‑ Então para onde vamos? Para casa do Buzina? ‑ perguntou David.

‑ Isso mesmo. Podem apanhar a camioneta que passa por Ravina Grande, onde vive o Professor Hayling ‑ disse a tia Clara. ‑ Devem ir ainda hoje. Sinto muito tudo o que se passa, meus filhos, mas são coisas que devemos encarar com calma. Estou convencida que se divertirão com o Buzina e o seu macaco. Como se chama o macaco?

‑ Diabrete! ‑ responderam todos ao mesmo tempo, e a Ana sorriu ao lembrar‑se daquele endiabrado animalzinho.

‑ A camioneta deve passar daqui a dez minutos ‑ disse a tia. ‑ Júlio, se vocês não conseguem levar a vossa bagagem toda até à camioneta, pede ao jardineiro que vos ajude. E divirtam‑se, meus queridos. Mandem‑me um ou dois postais. Eu também lhes darei notícias nossas. Espero que nem eu nem vosso tio apanharemos escarlatina, por isso não se preocupem. Também lhes vou mandar algum dinheiro. Agora é melhor irem depressa apanhar a camioneta.

‑ Está bem, tia Clara e muito obrigado!

- disse Júlio. ‑ Tomarei conta de todos e não os deixarei fazer asneiras, especialmente a Zé! Não fique preocupada. E espero que a tia e o tio Alberto não tenham escarlatina. Adeus!

Dirigiram‑se todos para o portão, onde ficara a bagagem.

‑ Ana, vai já para a estrada e faz sinal à camioneta quando a vires ‑ ordenou o Júlio. ‑ Depois o David e eu subiremos com as malas. Vamos a ver o que se passará com o Buzina, lá em casa do Professor. Tenho um pressentimento que vai ser bem divertido.

‑ Não me parece ‑ disse a Zé, aborrecida. ‑ Eu gosto do Buzina; ele é engraçado e o macaquinho então é um amor. Tão endiabrado! Mas por outro lado, vocês não se lembram do inferno que foi quando o pai do Buzina passou uns dias em nossa casa? Foi horrível! Nunca se lembrava de aparecer à hora das refeições e andava sempre a perder o casaco, o lenço ou o porta‑moedas e também perdia a calma com grande facilidade! Fiquei farta dele!

‑ E naturalmente ele também ficou farto de nós! ‑ disse Júlio. ‑ Não devia achar nada divertido ter quatro diabos à sua volta, sobretudo quando se encontrava a trabalhar. E não falando no Tim, este cão, que gosta de distribuir lambedelas por toda a gente.

‑ O Tim nunca lhe deu nenhuma lambedela ‑ disse logo a Zé, ficando zangada. ‑ Não gosto nada do pai do Buzina.

‑ Bem, mas não te ponhas com essa cara de tempestade ‑ disse o Júlio. ‑ Estou convencido que ele também não gosta de nenhum de nós, mas foi muito amável em nos ter convidado para a sua casa na Ravina Grande e por isso nós devemos portar‑nos bem. Não mostres essa cara amuada, Zé, mesmo que ele se atreva a reprovar qualquer coisa que o Tim faça.

‑ É melhor que não se atreva ‑ disse a Zé. ‑ Na verdade estou bastante disposta a não ir. Acho que fico com o Tim, na estufa ao fundo do jardim.

‑ Era só o que faltava! ‑ exclamou Júlio, agarrando a prima com firmeza por um braço. ‑ Tens que ser simpática. Vem connosco e porta‑te bem! Oiçam, lá vem a camioneta. Vamos acenar ao motorista e esperemos que haja lugares.

A Ana mandou parar a camioneta e correu para a porta de trás, pedindo ao condutor se os podia ajudar a subir as malas. Ele conhecia‑os muito bem e desceu logo.

‑ Desta vez voltam para o colégio muito cedo ‑ disse ele. ‑ Julgava que tinham começado as férias!

‑ Pois não se enganou ‑ disse Júlio. ‑ Mas nós vamos passar uns dias à Ravina Grande. A camioneta passa por lá, não é verdade?

‑ Sim, passamos mesmo pelo meio da vila ‑ disse o condutor, pegando em três malas ao mesmo tempo, causando inveja ao júlio. ‑ Onde se vão hospedar?

‑ Em casa do Professor Hayling ‑ respondeu Júlio. ‑ Parece‑me que também se chama Ravina Grande, tal como a vila.

‑ Ah, passamos lá mesmo em frente ‑ disse o condutor. ‑ Mandarei parar a camioneta à porta, e assim poderei ajudá‑los a tirar as malas. Os meninos têm que andar na "linha" enquanto ali estiverem, pois como sabem o Professor Hayling é muito estranho. Ferve em pouca água. Uma vez um cavalo entrou no seu jardim e podem crer que ele perseguiu o cavalo por mais de dois quilómetros, gritando‑lhe durante todo o caminho. E vejam lá que ao voltar para casa, completamente estafado, encontrou o cavalo a comer outra vez a erva do seu jardim! O cavalo era muito espertalhão e cortara por um atalho! Por isso bem vêem que é preciso terem cuidado com a maneira como se vão portar na Ravina Grande. O Professor pode zangar‑se, metê‑los dentro de uma das suas esquisitas máquinas e fazê‑los em picado para pastéis... ‑ concluiu gracejando.

Os quatro riram‑se.

‑ O Professor é boa pessoa ‑ disse Júlio. ‑ Um tanto distraído como a maioria dos cientistas que só se preocupam com um trabalho intelectual. O meu cérebro trabalha muito devagar, mas o do meu tio Alberto, por exemplo trabalha a 100 à hora. E até aposto que o do Professor tem a mesma velocidade. Mas nós havemos de nos entender.

A camioneta foi seguindo pela estrada entre Kirrin e a Ravina Pequena e depois até à Ravina Grande. As quatro crianças contemplavam a paisagem, pela janela, no percurso à beira da costa. O mar brilhava tão azul como miosótis e mais uma vez viram a ilha Kirrin, no meio da grande baía.

‑ Quem me dera lá ir ‑ disse a Zé. ‑ Um destes dias temos que ali fazer um divertido piquenique. Gostava que o Buzina visitasse a minha ilha. Ele pode possuir um farol mas ser dona de uma ilha ainda é muito melhor.

‑ Também concordo ‑ disse Júlio. ‑ O farol do Buzina é realmente muito bonito, e tem uma vista maravilhosa, mas a ilha Kirrin, tem qualquer coisa de inexplicável que adoro! As ilhas são diferentes de tudo o mais.

‑ Sim, tens razão ‑ disse Ana. ‑ Também gostava de ter uma, muito pequenina, para que a pudesse ver toda só com um olhar, e com um subterrâneozinho para dormir, onde só eu coubesse.

‑ Depressa te sentirias muito só ‑ disse David, dando à irmã uma palmada amigável. ‑ Tu gostas de ter outras pessoas à tua volta com quem possas conversar.

‑ E o Tim também ‑ disse Júlio, e o Tim saiu do seu lugar, junto da Zé e foi farejar a maleta que um velhote segurava; este fez‑lhe logo uma festa e deu‑lhe um biscoito que tirou dum cartucho.

‑ O Tim não se importa de estar no meio de muita gente desde que haja uma ou duas pessoas dispostas a darem‑lhe um biscoito ou um osso, não é verdade, Tim? ‑ disse a Ana.

‑ Vem cá, Tim ‑ disse a Zé. ‑ Não deves andar a pedir de comer, como se andasses esfomeado! Estou convencida de que te alimentas melhor do que qualquer outro cão de Kirrin! Quem está sempre disposto a comer o jantar do gato? Vá, responde!

O Tim deu à Zé uma grande lambedela e sentou‑se a seu lado, com a cabeça sobre os pés da dona. Levantava‑se cheio de delicadeza, cada vez que alguém entrava ou saía da camioneta. O condutor estava encantado.

‑ Gostava que todos os cães que entram nesta camioneta se portassem tão bem como este ‑ disse ele à Zé'.

‑ Agora é melhor prepararem‑se para descer. A nossa próxima paragem costuma ser um pouco acima da Ravina Grande mas eu vou pedir ao motorista que pare um momento mesmo em frente da casa do Professor, para vocês descerem.

‑ Muitíssimo obrigado ‑ disse Júlio, agradecido; e quando a camioneta parou, passado uns momentos, com um grande solavanco, os Cinco estavam prontos a descer.

A camioneta seguiu, deixando‑os em frente duma grande cancela de madeira. Atrás via‑se uma boa casa, meio escondida por árvores grandiosas.

‑ Ravina Grande! ‑ exclamou o Júlio. ‑ Finalmente chegámos. É um lugar estranho, um tanto misterioso e sombrio.

Agora vamos procurar o Buzina. Estou convencido que vai gostar de nos ver, especialmente o Tim! Ajuda‑me a levar as malas, David.

 

                     O BUZINA E O DIABRETE

OS quatro e o cão entraram, empurrando a cancela que rangeu furiosamente. O Tim ficou muito admirado ao ouvir aquele barulho e desatou a ladrar.

‑ Chiu! ‑ ralhou a Zé. ‑ Vais ter um sarilho com o Professor se continuares a fazer tal barulheira. Julgo que teremos de falar sempre em sussurro, para não o incomodar. Por isso vê lá se também consegues ladrar em sussurro.

O Tim soltou um pequeno ganido. Era‑lhe impossível sussurrar. Foi andando ao lado da Zé enquanto todos avançavam pela ladeira íngreme que seguia até à casa. Esta era bastante original, com pouquíssimas janelas.

‑ Acho que o Professor Hayling tem medo que alguém venha espreitar o seu trabalho ‑ disse a Ana. ‑ É muitíssimo secreto, não é verdade?

‑ Sei que trabalha com milhares e milhares de números! ‑ disse David. ‑ O Buzina contou‑me um dia que o seu macaco Diabrete uma vez, quando era pequenino, engoliu uma folha cheia de números, e o Professor Hayling perseguiu‑o durante mais de uma hora, na esperança de o apanhar e reaver pelo menos um pedacinho de papel que ainda estivesse na sua boca, para assim conseguir salvar alguns dos seus números, mas o Diabrete fugiu para uma toca de coelho e não voltou a aparecer durante dois dias.

Todos se riram ao pensar no pobre Diabrete escondido numa toca de coelho.

‑ Tu não conseguias fazer o mesmo ‑ disse o Júlio para o Tim. ‑ Por isso tem cuidado com qualquer papel que resolvas engolir.

‑ O Tim nunca faria tal parvoíce ‑ disse logo a Zé. ‑ Sabe muito bem o que pode comer ou não.

‑ Ai sim? ‑ disse a Ana. ‑ Então sempre gostava de saber que espécie de comida pensou ele que era um dos meus chinelos para que o tivesse roído todo nas últimas férias!...

‑ Não inventes histórias a seu respeito ‑ disse a Zé. ‑ Só o roeu porque ficou fechado no teu quarto e não tinha mais nada que fazer.

‑ Uuuuf! ‑ fez o Tim, concordando. Deu uma lambedela na mão da Ana, como se quisesse dizer: ‑ Desculpa, Ana, mas eu estava tão aborrecido!

‑ Querido Tim, eu desculpar‑te‑ia mesmo que tivesses roído todos os meus chinelos ‑ disse Ana. ‑ Mas seria melhor se tivesses escolhido outros mais velhos.

O Tim de repente parou, olhando para os arbustos. Soltou uma rosnadela. A Zé segurou‑o logo pela coleira, pois na Primavera sempre temia que aparecesse uma cobra.

‑ Pode ser uma víbora ‑ disse ela. ‑ O cão da minha vizinha pisou uma, no ano passado, segundo me contaram, e ficou com uma perna inchadíssima e cheio de dores.

Vamo‑nos embora, Tim, é uma víbora, com dentes cheios de veneno.

Mas o Tim continuava a rosnar e de repente pôs‑se muito quieto, farejando. Soltou um latido de satisfação e conseguiu afastar‑se da Zé, saltando para os arbustos. Logo em seguida apareceu não uma víbora mas sim o Diabrete, o macaquinho do Buzina!

O macaco deu um salto para cima do cão, agarrando‑se com os dedos à coleira do bom amigo, guinchando muito contente. O Tim ia quase torcendo o pescoço para virar a cabeça e lamber o macaco.

‑ Diabrete! ‑ exclamaram todos, encantados. ‑ Vieste receber‑nos!

O macaquinho dizia qualquer coisa na sua linguagem de macaco, e saltou primeiro para o ombro da Zé, depois para o do Júlio. Puxou o cabelo do Júlio e torceu‑lhe uma orelha, depois saltou para o David e dali para o ombro da Ana. Agarrou‑se ao pescoço da pequena e com os seus olhos castanhos muito brilhantes, parecia feliz.

‑ Olhem como ele ficou satisfeito por nos tornar a ver! ‑ exclamou a Ana encantada. ‑ Diabrete, onde está o Buzina?

O Diabrete saltou do ombro da Ana e começou a seguir em frente como se tivesse percebido o que a Ana dissera. As crianças correram atrás dele e nessa altura ouviu‑se uma voz de trovão, vinda do lado esquerdo.

‑ Que fazem aqui? Já embora! Esta propriedade é particular.

Vou chamar a polícia! Já embora!

Os Cinco pararam, assustados e então o Júlio viu o Professor Hayling! O pequeno dirigiu‑se‑lhe logo, cumprimentando‑o.

‑ Boa‑tarde, sr. Professor ‑ disse ele ‑ espero que não o tenhamos incomodado, mas como sabe convidou‑nos por intermédio da minha tia Clara para aqui passarmos uns dias.

‑ Vossa tia? Quem è a vossa tia? Não conheço nenhuma tia! ‑ gritou o Professor. ‑ Vocês são turistas, tenho a certeza. Vão meter o nariz no meu trabalho só porque leram alguma estúpida notícia a esse respeito em qualquer jornal. Hoje já é o terceiro grupo a incomodar‑me. Já embora e levem o cão!

‑ Mas, Sr. Professor, realmente já não se lembra de nós? ‑ perguntou o Júlio pasmado. ‑ Ainda há pouco esteve hospedado em casa dos meus tios e...

‑ Que grande intrujice! Já não vou para fora há imensos anos ‑ gritou o Professor.

O Diabrete, o macaco, estava tão assustado que foi esconder‑se nos arbustos, parecendo chorar.

‑ Espero que o Diabrete vá buscar o Buzina ‑ disse o Júlio em voz baixa ao David. ‑ O Professor esqueceu‑se de quem somos e porque estamos aqui. É melhor afastarmo‑nos.

Mas na altura em que iam voltar para trás, seguidos pelo Professor, zangado, alguém os chamou em voz alta e apareceu o Buzina a correr com o Diabrete ao ombro, agarrado ao seu cabelo. O macaquinho fora realmente chamá‑lo. ‑ Que esperto! ‑ pensou o Júlio, aliviado.

‑ Pai! Não esteja a gritar com os nossos amigos ‑ pediu o Buzina, aos pulos em frente do seu pai. ‑ Foi o pai que os convidou!

‑ Que ideia, não convidei ninguém! ‑ declarou o Professor. ‑ Quem são estes miúdos?

‑Aquela menina ali, a Zé, é filha do seu amigo, o Sr. Dr. Alberto, e os outros são sobrinhos. E aquele é o cão deles, o Tim. O pai disse que viessem todos cá para casa porque o Sr. Doutor e a Sra. Clara estão em quarentena por causa da escarlatina ‑ gritou o Buzina sempre aos pulos diante do pai.

‑ Fica um momento quieto ‑ disse o professor, zangado. ‑ Não me lembro de os ter convidado. Se assim fosse teria prevenido a nossa criada Catarina.

‑ Mas o pai disse‑lhe! ‑ garantiu o Buzina pondo‑se outra vez aos pulos no que foi logo imitado pelo macaco. ‑ Ela já está a fazer as camas. Êu estive a ajudá‑la. E ela manda‑lhe perguntar se não gostou do seu pequeno almoço porque nem o provou e já são quase horas do almoço. A Catarina levou‑o para a cozinha.

‑ Ah! Agora já percebo porque tenho tanta fome! ‑ disse o Professor Hayling e começou a rir‑se. As suas gargalhadas eram tão francas e comunicativas que as crianças também se puseram a rir. Que senhor tão original!

Tão inteligente, um cientista tão famoso, com montanhas de sabedoria dentro da cabeça e no entanto sem a mais pequena memória para coisas vulgares, tais como um pequeno almoço, umas visitas ou uma chamada telefónica.

‑ Foi apenas um mal‑entendido, Sr. Professor ‑ disse o Júlio delicadamente. ‑ O Sr. Professor foi muitíssimo amável por nos ter convidado a passar aqui uns dias enquanto não podemos estar em casa por causa do contágio da escarlatina. Faremos os possíveis para não o incomodar e se o pudermos ajudar em qualquer coisa, é favor dizer‑nos. Verá que faremos o menos barulho possível.

‑ Estás a ouvir, Buzina? ‑ perguntou o Professor Hayling, virando‑se de repente para o filho. ‑ Porque não segues este exemplo, fazendo pouco barulho e não me aborrecendo? Bem sabes que ando ocupadíssimo com um invento da maior importância.

Depois o Professor virou‑se para o Júlio e continuou:

‑ Terei muito prazer em recebê‑los se conseguirem que o Buzina não me incomode. E NINGUÉM, absolutamente NINGUém, deve entrar na torre. Compreendido?

Todos olharam para onde o Professor estava a apontar e viram uma torre muito alta e esguia elevando‑se acima das árvores. No cimo tinha umas hastes viradas para todos os lados, que mais pareciam uns tentáculos, baloiçando ligeiramente ao vento.

‑ E não façam perguntas sobre a torre ‑ prosseguiu o Professor, olhando com ar severo para a Zé. ‑ O teu pai é a única pessoa, sem ser eu, que sabe em que estou a trabalhar e esse é de inteira confiança.

‑ Pode estar descansado, Sr. Professor, que nenhum de nós teria sequer a ideia de ir espreitar ‑ garantiu o Júlio. ‑ Creia que considero uma grande amabilidade ter‑nos convidado para a sua casa e se consentir até poderemos ajudá‑lo no que for preciso.

‑ Pareces um bom rapazinho ‑ disse o Professor que agora estava mais calmo. ‑ Por agora despeço‑me para ir tomar o pequeno almoço. Espero que haja ovos com presunto. Estou com muito apetite.

‑ Pai, a Catarina já levou o pequeno almoço para a cozinha. Disse‑lhe isso agora mesmo‑ repetiu o Buzina, desesperado. ‑ Agora são mas é horas do almoço!

‑ Ah, está bem, está bem ‑ disse o Professor. ‑ Vou imediatamente. Acho que a Catarina escusava de levantar a mesa antes de eu comer o pequeno almoço.

E o Professor dizendo isto foi para dentro de casa, seguido pelas cinco crianças, o Tim e o Diabrete, todos com um ar um tanto aborrecido. Na verdade era impossível! Qual seria a próxima distracção do Professor?

A Catarina preparara um belíssimo almoço para todos. Havia um guisado saboroso de carne com batatas, cenouras, cebolinhas e ervilhas, tudo com muito molho. Todos se

serviram com apetite e o Diabrete, que adorava ervilhas, de vez em quando conseguia chegar ao prato do Buzina com a sua mão pequenina, e tirava do molho uma ervilha.

As pequenas ajudaram a Catarina a servir a sobremesa, um grande pudim de pão cheio de passas. O Diabrete desatou aos pulos, muito contente pois também adorava passas. Saltou para cima da mesa, recebendo uma palmada do Professor Hayling que por pouca sorte acertou ao mesmo tempo no prato do pudim fazendo com que este desse um salto no ar.

‑ Oh, pai, íamos ficando sem pudim! ‑ exclamou o Buzina. ‑ E logo o pudim meu favorito. Por favor não nos dê umas fatias tão pequeninas. Diabrete, sai de cima da mesa. Não metas a mão no molho.

O Diabrete resolveu desaparecer por baixo da mesa, onde recebeu uma quantidade de passas oferecidas por várias mãos, às escondidas do Professor. O Tim sentia‑se um tanto deslocado. Também estava por baixo da mesa, pois tinha um certo medo da voz zangada do Professor mas como não apreciava passas não tinha tanta sorte como o Diabrete.

‑ Bela refeição ‑ disse o Professor, acabando o seu pudim. ‑ Não há nada como um bom pequeno almoço.

‑ Estamos a almoçar, pai! ‑ disse o Buzina. ‑ Nunca se come pudim ao pequeno almoço.

‑ Sim, tens razão, meu filho, afinal era pudim ‑ disse o pai, rindo. ‑ Podem fazer o que lhes apetecer, desde que não entrem no meu escritório, nem na minha sala de trabalho, nem na torre. E NÃO SE INTROMETAM NO MEU TRABALHO! Diabrete, tira a mão do jarro da água. Não sabes ensinar esse teu macaco a portar‑se como deve ser, Buzina?

E dizendo isto saiu da sala, desaparecendo num corredor misterioso que ia ter ao seu escritório ou sala de experiências. As crianças soltaram um suspiro de alívio.

‑ Vamos levantar a mesa e depois quero mostrar‑lhes os nossos quartos ‑ disse o Buzina. ‑ Espero que não se aborreçam muito aqui.

Aborrecerem‑se! Nem penses nisso, Buzina! Uma grande aventura vos espera, Buzina! Um pouco de paciência e verás!

 

                     A CATARINA TEM UMA BELA IDEIA

O Buzina correu à cozinha para ir buscar um ou dois tabuleiros. Enquanto avançava fazia um barulho muito esquisito e por um momento o Tim ficou surpreendido.

‑ Santo Deus! Não me digam que o Buzina continua com a mania de fingir que é um automóvel ‑ comentou Júlio. ‑ Como é que o pai suporta tal coisa? Neste momento que tentará imitar? Talvez uma motocicleta.

De repente ouviu‑se um estrondo e um grito. Os Cinco correram para a cozinha, para saberem o que se passava.

‑ Um desastre! ‑ exclamou o Buzina, levantando‑se do chão. ‑ Dei a curva com demasiada velocidade, a roda da frente derrapou e fui de encontro à parede. Amolguei o guarda‑lamas.

‑ Buzina, não me digas que continuas com a palermice de fingires que és um carro, uma mota ou um camião! ‑ disse Júlio. ‑ Quando estiveste em casa dos meus tios, ias dando connosco em malucos, a correr pela casa toda a fazer o barulho dum motor. Não consegues curar‑te dessa mania?

‑ Não ‑ respondeu o Buzina, esfregando um cotovelo. ‑ É superior àsminhas forças. Vocês haviam de me ouvir quando eu resolvi ser um grande camião carregado de automóveis novos!

O meu pai convenceu‑se de que era um camião a valer e correu lá para fora, tencionando mandá‑lo embora. Mas era eu. Também sei buzinar. Ora oiçam!

E lá começou o pequeno a fingir que era uma buzina, fazendo tanto barulho que o Júlio o empurrou para dentro da cozinha e fechou a porta.

‑ Não sei como o teu pai ainda não enlouqueceu! ‑ exclamou Júlio. ‑ Agora cala‑te! Não consegues deixar de ser um garoto malcriado?

‑ Não ‑ respondeu o Buzina, muito a sério. ‑ Não quero ser uma pessoa crescida. Não quero tornar‑me como o meu pai para me esquecer das refeições e sair com uma meia calçada e outra por calçar. Detesto esquecer‑me das refeições; seria horrível. Passaria todo o tempo cheio de fome!

O Júlio acabou por se rir. ‑ Pega num tabuleiro e ajuda a levantar a mesa ‑ disse‑lhe. ‑ E se realmente não consegues deixar de ser um carro, vai lá para fora. Aqui dentro de casa não quero esse barulho incomodativo. Tens jeito para imitares motores, mas isso é na rua!

‑ Achas? ‑ disse o Buzina, satisfeito. ‑ Então talvez gostasses de me ouvir a imitar um avião dos modernos; desses que costumam passar por aqui de vez em quando.

‑ NÃO! POR FAVOR! ‑ disse o Júlio com firmeza. ‑ Vai mas é buscar o tabuleiro, Buzina. E diz ao Diabrete que saia de cima do

meu pé direito. Este tipo julga que o pé é uma cadeira.

Mas o macaco agarrou‑se ao tornozelo do Júlio, recusando‑se a sair dali.

‑ Está bem, está bem ‑ disse o pequeno. ‑ O melhor é conformar‑me em andar contigo todo o dia sentado no sapato.

‑ Se começares a bater com os pés no chão ele sai logo ‑ disse o Buzina.

‑ Já me podias ter avisado ‑ disse o Júlio dando uns passos a bater os pés com toda a força. O Diabrete saltou logo para o chão e foi sentar‑se em cima da mesa, guinchando muito zangado.

‑ Ele senta‑se em cima do pé do meu pai durante imenso tempo, mesmo quando ele anda de um lado para o outro ‑ contou o Buzina. ‑ Mas o pai nem repara. Uma vez sentou‑se em cima da cabeça do pai e ele convenceu‑se de que estava com o chapéu dentro de casa e resolveu tirá‑lo.

Esta história fez com que todos se rissem.

‑ Agora vamos ao trabalho ‑ disse o Júlio, severo. ‑ Temos que levantar a mesa. Nós três, os rapazes, levamos a loiça suja para a cozinha e vocês duas, meninas, podem lavá‑la. E NãO deixem o Diabrete pegar no bule ou no jarro da água.

A Catarina ficou encantada com a ajuda das crianças. Ela era baixa e gorda, mas muito desembaraçada.

‑ Logo que acabarmos de arrumar a cozinha vou mostrar aos meninos os quartos

onde ficam ‑ disse ela. ‑ Mas o pior é' que os colchões que mandámos consertar ainda não chegaram, Já disse mais de uma dúzia de vezes ao seu pai que telefonasse ao colchoeiro mas certamente esqueceu‑se.

‑ Ó CATARINA! ‑ exclamou o Buzina, aflito, ‑ Quer dizer que não se pode dormir nas duas camas do quarto de hóspedes! Que vamos fazer agora?

‑ Espero que o seu pai ainda hoje telefone ao colchoeiro ‑ disse a Catarina. ‑ Talvez ainda hoje os entregue.

O Buzina logo se tornou numa furgoneta para entrega de encomendas e desatou a correr pelo corredor até à sala de jantar. O macaco Diabrete seguiu‑o, radiante. As crianças não puderam deixar de rir.

O Professor apareceu de repente, vindo do escritório, com as mãos nos ouvidos. ‑ BUZINA! VEM Cá'!

‑ Não, muito obrigado ‑ respondeu o Buzina, fazendo‑se distraído. ‑ Desculpe, pai. Eu sou a furgoneta que traz os colchões que o pai se esqueceu de mandar vir hoje para as camas dos hóspedes.

Mas o Professor parecia nem ouvir. Avançou para o Buzina e este correu pelas escadas acima, seguido pelo Diabrete. O Professor Hayling voltou‑se para a Catarina.

‑ Se não consegue manter as crianças sossegadas, para que lhe pago o ordenado?

‑ Para limpar a casa, cozinhar e lavar a roupa, Sr. Professor ‑ respondeu a Catarina, aborrecida.

‑ Mas não para tomar conta do menino. E devo acrescentar que o seu filho podia ter uma dúzia de criadas só para ele, que continuaria a incomodá‑lo enquanto está em casa. Porque não consente que ele arme a sua barraca de campanha lá fora e vá acampar com os amigos? O tempo está quente e os colchões novos ainda não chegaram. Eu posso cozinhar para todos e levar as refeições aos meninos; ou eles podem vir buscá‑las.

O Professor ficou com uma cara tão satisfeita que até parecia que ia dar um abraço à Catarina. As crianças esperavam com impaciência a sua resposta. Acampar lá fora, seria bem divertido naquele tempo, porque na verdade, viver na mesma casa com o Professor, não era nada agradável. O Tim soltou um ganido, como se quisesse dizer: "Boa ideia! Vamo‑nos já embora!"

‑ Bela ideia, Catarina, belíssima ideia! ‑ exclamou o Professor Hayling. ‑ Mas o macaco também irá acampar com as crianças. Assim talvez não volte a saltar pela janela da sala de experiências, começando a mexer nos modelos!

Dizendo isto o Professor fez meia volta e dirigiu‑se ao seu escritório, batendo com a porta com tanta força que toda a casa estremeceu. O Tim ficou assustado e desatou a ladrar. O Diabrete correu pelas escadas, guinchando, amedrontado. O Buzina desatou a dançar, cheio de alegria. Entretanto a Catarina agarrou‑o com firmeza e levou‑o para

a cozinha. Muito entusiasmado, o Buzina disse:

‑ Espera Catarina, lembrei‑me de uma coisa ‑ gritou o Buzina. ‑ Apenas tenho uma barraca e é muito pequena. Preciso de pedir ao pai que me deixe comprar mais duas.

E antes que alguém o pudesse deter, o Buzina batia à porta do escritório, abria‑a, gritando lá para dentro:

‑ PRECISO DE MAIS DUAS BARRACAS, PAI! POSSO IR COMPRá‑LAS?

‑ Pelo amor de Deus, Buzina, vai‑te embora e deixa‑me em paz ‑ gritou por sua vez o Professor. ‑ Compra meia dúzia de barracas se quiseres mas VAI‑TE EMBORA!

‑ Obrigado, pai ‑ disse o Buzina e já ia fechar a porta quando o pai voltou a gritar‑lhe. ‑ Mas para que queres tu as barracas?

O Buzina fechou a porta e voltou‑se para os outros, rindo. ‑ O melhor é comprar uma "memória" fresca para o meu pai. Acaba de consentir que vamos acampar e bem sabe que só temos a minha barraca pequenina.

‑ Ainda bem que não ficamos aqui em casa ‑ disse a Ana. ‑ Sei perfeitamente como o tio Alberto se aborrece quando estamos todos lá em casa, fazendo barulho. É melhor não incomodarmos o Professor.

‑ Voltaremos a acampar! ‑ exclamou a Zé, muito satisfeita. ‑ Vamos apanhar a camioneta que vai até Kirrin, para irmos buscar as nossas barracas. Estão todas guardadas na arrecadação do jardim. Podemos pedir ao recoveiro para as trazer.

‑ Ainda hoje aqui virá o Jim, o recoveiro. Se os meninos quiserem posso dar‑lhe o vosso recado ‑ disse a Catarina. ‑ Quanto mais depressa tiverem as barracas, melhor. O meu patrão foi muito amável em tê‑los convidado cá para casa, mas eu bem sabia que não daria resultado. Ficarão muito melhor acampados no terreno que dá para as traseiras desta casa. O Professor não ouvirá nada, nem que gritem todos ao mesmo tempo. Por isso vão buscar as vossas barracas e armem‑nas enquanto eu vejo quantos cobertores e mantas posso arranjar.

‑ Não se preocupe, Catarina ‑ disse Júlio. '‑ Nós temos todas essas coisas. Já acampámos muitas vezes.

‑ Espero que não apareçam vacas naquele campo ‑ disse a Ana. ‑ Da última vez que acampámos, uma vaca meteu a cabeça na abertura da minha barraca e mugiu. Acordei em sobressalto e fiquei paralisada de medo.

‑ Acho que ali não aparecem vacas ‑ disse a Catarina, rindo. ‑ Agora continuemos a lavar a loiça e agradecia‑lhes que acabassem de levantar a mesa. Não deixem o macaco pegar em nada que se parta. Na semana passada tentou equilibrar o bule do chá na cabeça e foi uma vez um bule!...

Em breve todos trabalhavam cheios de boa vontade.

‑ Apetece‑me imenso ir acampar ‑ disse a Ana. ‑ Tinha um certo receio de continuar aqui em casa. O Professor Hayling parece‑se com o tio Alberto; muito esquecido, gostando de gritar e fervendo em pouca água.

‑ Oh! não vale a pena ter medo dele ‑ disse a Catarina, entregando um prato à Ana para esta limpar. ‑ Tem muito bom coração embora se irrite com facilidade. Quando a minha mãe esteve doente, deu dinheiro para que ela fosse para uma boa casa de saúde e talvez não acreditem que até me dava dinheiro para lhe comprar guloseimas e flores!

‑ Eh! isso fez‑me lembrar uma coisa. Acho que devemos mandar umas flores à nossa cozinheira Joana ‑ disse a zé. ‑ Como sabe,ela está com escarlatina. É por isso que viemos para aqui.

‑ Então os meninos podem ir telefonar ao florista ‑ disse a Catarina. ‑ Eu acabo de arrumar a cozinha.

Mas a Zé receava que o Professor Hayling saísse de repente do escritório para ver quem estaria a telefonar.

‑ Também podemos comprar flores em Kirrin e mandá‑las directamente da loja ‑ disse ela. ‑ De qualquer modo teremos que lá ir para separar as coisas que o recoveiro há‑de trazer e nessa altura encomendarei as flores. E acho melhor voltarmos nas nossas bicicletas pois aqui podem fazer‑nos falta.

‑ Então devem partir já ‑ disse a Catarina. ‑ Para não chegarem atrasados para o lanche, pois o Professor ficaria aborrecido.

‑ Eu posso trazer a bicicleta da Ana ‑ disse o Júlio. ‑ Posso muito bem trazê‑la ao lado da minha, guiando só com uma mão.

E lá partiram a Zé, o Júlio e o David, deixando a Ana e o Buzina a ajudar a Catarina. Mas em breve a Catarina mandou o Buzina embora, pois tinha medo que ele quebrasse alguma coisa.

‑ Vá para o jardim e seja um lindo Rolls Royce daqueles que quase não fazem barulho ‑ disse ela. ‑ E quando já tiver andado por volta de trinta quilómetros, volte aqui para meter gasolina.

‑ Gasolina não, limonada! ‑ exclamou o Buzina, rindo. ‑ Está combinado. Já não sou Rolls Royce há tanto tempo. Se eu andar no fundo do jardim, o pai nem me ouvirá.

E lá foi o Buzina, enquanto a Catarina e a Ana acabavam de arrumar a cozinha. O Diabrete atrapalhava tudo e de vez em quando roubava umas colheres de chá. Saltava para cima do armário da loiça e deixava‑as cair no chão.

De repente o Buzina apareceu à janela.

‑ Anda comigo até ao terreno onde vamos armar as barracas ‑ disse ele à Ana. ‑ Escolheremos um sítio abrigado. Despacha‑te. Com certeza já acabaste de limpar a loiça. Eu já estou farto de ser um Rolls Royce.

E lá foram as duas crianças pelo jardim, saindo para o terreno por uma cancela que havia no fundo.

‑ Santo Deus! ‑ exclamou o Buzina. ‑ Olha para todos aqueles carros que estão a entrar pelo portão do outro lado deste terreno! Vou já mandá‑los embora. Este campo pertence ao meu pai.

E sem dizer mais nada o Buzina dirigiu‑se ao portão do outro extremo.

‑ Vem cá, Buzina! ‑ gritou a Ana. ‑ Não vás meter‑te onde não és chamado. Ainda arranjas alguma complicação!

Mas o Buzina não fez caso, continuando a caminhar de cabeça bem erguida! Queria dizer àquela gente que o terreno lhe pertencia!

 

                   O CIRCO AMBULANTE

A Ana ficou observando o Buzina com uma certa apreensão. Este seguia pelo campo, sem parar. Viam‑se agora quatro carros entrando pelo portão tendo atrelados uma espécie de enormes roulottes com letras muito grandes pintadas, dizendo:

CIRCO AMBULANTE TAPPER.

‑ Oh! vou dizer umas verdades ao Sr. Tapper, por ele ter vindo para o meu terreno ‑ disse o Buzina para consigo.

Levava o Diabrete no ombro, baloiçando‑se para baixo e para cima, enquanto o Buzina caminhava, resmungando.

Quatro ou cinco crianças das roulottes observaram‑no com curiosidade, quando o pequeno passou. Um rapazito foi ter com ele, gritando, encantado, ao ver o macaco.

‑ Olha um macaco! Olha um macaco! E muito mais pequeno do que o nosso chimpanzé'. Como se chama?

‑ Não tens nada com isso! ‑ respondeu o Buzina. ‑ Onde está o Sr. Tapper?

‑ O Sr. Tapper? O nosso avô? ‑ perguntou o rapazinho. ‑ Está ali, ao lado daquele carro maior. É melhor não ir falar agora com ele pois está muito ocupado.

O Buzina foi andando até ao carro e dirigiu‑se à pessoa que o miúdo lhe indicara. Tinha um aspecto um tanto aterrador, com uma espessa barba, enormes sobrancelhas que quase lhe tapavam os olhos, um nariz adunco e só uma orelha. Olhou para o Buzina com ar interrogador e estendeu uma mão para o Diabrete.

‑ Olhe que o meu macaco pode mordê‑lo ‑ avisou logo o Buzina. ‑ Ele não gosta de pessoas desconhecidas.

‑ Eu não sou um desconhecido para nenhum macaco ‑ disse o homem, com voz grossa. ‑ Não existe nenhum macaco no mundo nem nenhum chimpanzé que não venha ter comigo se eu o chamar. Nem um gorila, percebe?

‑ Pois fique sabendo que o meu macaco não vai ter consigo ‑ disse o Buzina, zangado. ‑ Eu só lhe venho dizer que...

Antes de ter acabado a frase, o homem fez um barulho esquisito com a garganta, parecido com o que o Diabrete fazia quando estava contente. O Diabrete olhou para o homem com ar surpreendido e depois deu um salto do ombro do Buzina para o do homem, agarrando‑se ao seu pescoço e soltando pequenos guinchos de satisfação. O Buzina ficou tão admirado que nem disse palavra.

‑ Está a ver? ‑ disse o homem. ‑ Já se tornou meu amigo. Não fique tão espantado, rapazinho, toda a minha vida amestrei macacos. Empreste‑me este animalzinho e eu lhe ensinarei a andar de triciclo em dois dias.

‑ Vem cá Diabrete! ‑ chamou o Buzina, admirado e zangado ao mesmo tempo com o procedimento do seu macaquinho. Mas o Diabrete ainda se agarrou mais ao pescoço do homem. Então o homem pegou‑lhe com as mãos e entregou‑o ao Buzina.

‑ Aqui o tem ‑ disse ele. ‑ É muito engraçado. E o menino que queria dizer‑me?

‑ Venho participar‑lhe que este terreno pertence ao meu pai, o Professor Hayling ‑ disse o Buzina. ‑ Não tem o direito de trazer os seus carros para aqui. Por isso faça o favor de se ir embora. Eu mesmo venho para aqui acampar com os meus amigos.

‑ Acho muito bem, não vou contra isso ‑ disse o homem, com bom humor. ‑ Façam o favor de escolher o sítio que preferirem. Se não se meterem connosco, nós também não os incomodaremos.

Um rapaz mais ou menos com a idade do Buzina apareceu naquela altura e olhou para o pequeno e para o Diabrete com interesse. ‑ Ele quer vender‑lhe o macaquinho, avô? ‑ perguntou o rapaz.

‑ Não, NÃO É NADA DISSO! ‑ gritou o Buzina. ‑ Vim apenas dizer‑lhe e a seu avô e a todo o grupo que se vão embora. Este terreno pertence à minha família.

‑ Ah! Mas nós temos uma velha licença que nos permite vir aqui de dez em dez anos, darmos uns espectáculos do nosso circo ‑ disse o homem da barba. ‑ E quer acredite ou não, tem aqui vindo um circo TAPPER, desde 1648.

Por isso vá para casa a correr, rapazinho, e não seja pateta.

‑ O senhor é um aldrabão! ‑ exclamou o Buzina, furioso. ‑ Vou contar à polícia! Vou contar ao meu pai, vou...

‑ Não fales com o meu avô dessa maneira ‑ gritou o rapaz que se encontrava ao lado do velhote. ‑ Dou‑te um soco, se te atreves!

‑ Eu digo o que me apetece!' ‑ gritou o Buzina, agora de cabeça completamente perdida. ‑ Por isso, cala‑te!

Logo a seguir o Buzina ficou estatelado no meio do chão. O rapaz dera‑lhe um soco com força, atingindo o Buzina no peito. Este desatou a espernear muito vermelho, furioso. O velhote mandou‑o embora. ‑ Não seja palerma, rapazinho ‑ disse ele. ‑ Este jovem pertence à família dos Tapper, como eu. E connosco ninguém leva a melhor. Vá para casa e tenha juízo. Não temos paciência para crianças geniosas como o menino. O nosso circo veio para este terreno, tal como sempre fez, através de muitos e muitos anos.

E dizendo isto o Sr. Tapper deu meiavolta e dirigiu‑se para o carro mais próximo. Os cavalos que o puxavam puseram‑se a caminho e o carro seguiu. Os outros carros também começaram a andar. O rapaz do circo deitou a língua de fora ao Buzina. ‑ Passa bem! ‑ exclamou ele. ‑ Ninguém consegue levar a melhor com o meu avô. Nem comigo! No entanto tiveste uma certa coragem em vir falar com o meu avô. Achei bem divertido.

‑ Cala‑te! ‑ gritou o Buzina, aflito ao perceber que estava quase a chorar. ‑ Espera até que o meu pai faça queixa à polícia! Vocês ir‑se‑ão embora muito mais depressa do que vieram. E um destes dias hei‑de dar‑te um soco!

Depois deu meia volta e correu para o portão. Começou a pensar no que devia fazer.

Tantas vezes ouvira o pai dizer que o terreno atrás da casa lhes pertencia e consentira que este ou aquele lavrador mandasse para ali as suas manadas! Como se atrevia o Circo Ambulante a ir para oterreno do seu pai?

‑ Vou contar ao meu pai ‑ disse ele à Ana que o esperava junto da cerca. ‑ Ele vai com certeza expulsá‑los. O terreno é nosso e agrada‑me muito, especialmente agora que está tão lindo, bem verde e as cercas começam a cobrir‑se de flores. Hei‑de fazer queixa ao meu pai que aquele rapaz me deu um soco. Um destes dias hei‑de pagar‑lhe na mesma moeda.

Foi para casa, seguido pela Ana. Ao passar pela sala viram que a Zé já ali se encontrava.

‑ Buzina! Por que motivo te deu o rapaz um soco? ‑ perguntou a Ana, intrigada.

‑ Só por eu ter ordenado ao avô dele que levasse dali os carros do circo ‑ contou o Buzina, sentindo‑se muito importante.

‑ Não me magoou nada. Foi um soco no peito. No entanto eu disse tudo o que devia.

‑ Mas achas que ele vai levar os carros para outro sítio? ‑ perguntou a Ana ansiosa.

‑ Eu participei‑lhe que fazia queixa à polícia ‑ disse o Buzina. ‑ Por isso estou convencido de que se irão embora. Não têm nenhum direito de ali ficar. Aquele campo pertence‑nos.

‑ Vais fazer queixa à polícia? ‑ perguntou a Zé, incrédula. ‑ Não percebo porque fazes tanto barulho por causa duma coisa de tão pouca importância, Buzina. Depois podem tornar‑se antipáticos connosco quando lá formos acampar.

‑ Mas eu já lhes disse que aquele terreno é meu, o pai sempre o tem afirmado ‑ disse o Buzina. ‑ Ele disse que não lhe servia para nada e por isso eu podia considerá‑lo meu. E assim faço. Portanto vamos acampar naquele terreno aconteça o que acontecer. O circo ambulante certamente se prepara para dar algum espectáculo.

‑ Ó Buzina, acho maravilhoso ter um circo ao fundo do jardim! ‑ disse a Zé muito entusiasmada e a Ana concordou. O Buzina ficou furioso.

‑ Só uma menina diria uma coisa dessas ‑ comentou ele. ‑ Gostarias de saber que toda aquela gente se instalara num terreno que te pertencesse, com cavalos, tigres e leões a rugir, ursos a uivar e chimpanzés a roubar coisas e miúdos do circo a dizerem palavrões prontos a jogarem à pancada?

‑ Ó Buzina, tudo o que estás a dizer me parece estupendo! ‑ declarou a Zé. ‑ Haverá realmente leões e tigres? Supõe que és um deles. Seria uma animação!

‑ Bem, isso não me agradaria lá muito ‑ confessou a Ana. ‑ Não tenho grande interesse em ver um leão a espreitar pela porta da

minha barraca ou um urso a rondar o meu quarto!

‑ Nem eu ‑ disse o Buzina, num tom decidido. ‑ É por isso mesmo que vou falar com o meu pai. Ele possui os documentos onde estão escritos os nossos direitos sobre aquele terreno. Uma vez até mos mostrou. Vou perguntar se os posso ver novamente e depois levo‑os à polícia para que mandem embora aquele velhote antipático e o seu circo ambulante.

‑ Como sabes que é antipático? ‑ perguntou a Zé. ‑ Pode até ser muito boa pessoa. Estou certa que nos deixarão acampar no recanto mais próximo do jardim e assim poderemos apreciar sem dificuldade tudo quanto se passar com a gente do circo. Vai ali o teu pai, passeando no jardim e fumando cachimbo. Será uma boa altura de lhe pedir o documento. Talvez até nos queira mostrá‑lo.

‑ Está bem ‑ disse o Buzina, bastante mal disposto. ‑ Mas vocês vão ver que tenho razão. Vamos!

Mas afinal o Buzina estava completamente enganado! O pai foi logo buscar o pergaminho amarelecido pelo tempo.

‑ Ora aqui está! ‑ exclamou ele. ‑ É muito valioso por ser tão antigo. Já tem alguns séculos de existência.

Desatou a fita um tanto suja que atava o rolo. Nem as pequenas nem o Buzina conseguiam ler aquelas frases muito antigas.

‑ Que está aí escrito? ‑ perguntou a Ana, muito interessada.

‑ Diz aqui que o terreno conhecido como o Recanto de Cromwell deverá pertencer à família Hayling para sempre. Foi oferecido por Cromwell porque a minha família lhe consentiu que aqui acampasse quando muito precisava de descansar, após uma grande batalha. Por isso desde então pertence à minha família.

‑ Então MAIS NINGUÉM pode ali acampar, servir‑se do terreno para pastagem ou qualquer outra coisa sem o nosso consentimento! ‑ disse o Buzina, triunfante.

‑ Isso mesmo ‑ concordou o pai. ‑ Mas espera um momento. Parece‑me que existe uma velha cláusula que fala num circo ambulante, um circo que tem o direito de acampar naquele terreno desde 1066! Nem mesmo Cromwell pôde alterar esse direito pois ele existia ainda antes de Cromwell ter combatido nesta região. Ora vejamos, parece‑me que isso está escrito quase no fim do pergaminho.

As duas pequenas e o Buzina esperavam com impaciência, enquanto o Professor lia o lindo manuscrito. Então ele apontou com o dedo para três linhas já perto do fim.

‑ Aqui está. Vou ler‑lhes. "E fazemos saber que o circo ambulante chamado "Circo Ambulante Tapper" que sempre teve direito a acampar neste terreno continuará com o mesmo direito, de dez em dez anos, quando o espectáculo por aqui passar, etc., etc". Bem, estou convencido de que o circo Tapper já não existe depois de tantos e tantos anos passados, visto este documento ter sido assinado em 1648. Ora vejam a data. Vocês podem ler os números.

As crianças ficaram a olhar para a data e depois voltaram os olhos para o Buzina.

‑ O pai já me podia ter dito isso ‑ comentou o pequeno.

‑ Por que motivo? ‑ perguntou o pai, admirado. ‑ Que interesse pode ter isto para uma criança?

‑ É preciso saber que está um circo Tapper neste momento, acampado no seu terreno, Sr. Professor ‑ disse a Ana. ‑ E o velhote que o dirige chama‑se Tapper e sabe perfeitamente que tem o direito de ali ficar. Além disso...

‑ Foi mal educado comigo ‑ interrompeu o Buzina. ‑ Por isso quero que mande o circo embora ainda hoje! Somos nós que vamos para ali acampar!

‑ Estou convencido de que o Sr. Tapper não se importará que vocês também ali fiquem ‑ disse o pai. ‑ Não achas que estás a ser bastante palerma, Buzina? Espero que não tenhas sido mal educado com nenhum dos componentes do circo.

O Buzina corou, deu meia volta e saiu do compartimento, com o Diabrete agarrado ao pescoço. Esfregou o peito no sítio em que o rapaz do circo o atingira. ‑ Não perdes pela demora! ‑ murmurou ele. ‑ Ainda um dia me hei‑de desforrar!

‑ Ana, se tu e os outros querem acampar naquele terreno, eu vou falar com o Sr. Tapper ‑ disse o Professor, intrigado com a atitude do Buzina.

‑ Não vale a pena ‑ apressou‑se a Ana a responder. ‑ Ele já disse que não se importa que nós para ali vamos. Oh! lá vêm os rapazes. Vou ver se conseguiram trazer as nossas bicicletas sem novidade. Muito obrigado por nos ter mostrado esse precioso documento, Sr. Professor.

 

                   PREPARATIVOS PARA ACAMPAR

O David e o Júlio mostraram‑se muito interessados ao ouvir a história do circo ambulante e do documento antiquíssimo.

‑ Foste bastante idiota, rapazinho ‑ disse Júlio ao Buzina. ‑ No entanto parece‑me que tudo se pode remediar. Proponho irmos ver já onde devemos armar as nossas barracas. Pessoalmente agrada‑me muito ter ocasião de estar em contacto com a vida das pessoas de um circo. Gostava de saber como eles preparam um espectáculo. Suponho que trazem tudo e armam um circo inteiro sem ajuda de ninguém.

‑ Trouxeram muitos carros ‑ disse a Ana. ‑ Fui lá espreitar, há talvez meia hora e vi o terreno todo ocupado, excepto um canto do lado do jardim que eles devem ter deixado para as nossas barracas!

‑ Eu vi os cartazes do circo quando vínhamos a caminho para cá, de bicicleta ‑ disse David. ‑ O Chimpanzé que joga o críquete, o Homem sem Ossos, Madelon e os seus Maravilhosos Cavalos, os Palhaços Monty e Careta, o Burro que Dança, o Sr. Wooh, o Grande Mágico, etc. Parece ser um grande circo. Estou satisfeito por podermos acampar no mesmo terreno. Assim observaremos tudo.

‑ Não te esqueças que também existe o chimpanzé Carlinhos e a Banda Bonzo ‑ acrescentou o Júlio. ‑ Que divertido seria se o chimpanzé se soltasse e viesse espreitar à janela da cozinha!

‑ Pois eu não achava graça nenhuma ‑ declarou a Ana. ‑ A Catarina desataria logo a fugir. E o Diabrete também!

‑ E se fôssemos armar as barracas logo depois do lanche? ‑ lembrou o David. ‑ O recoveiro disse que as traria por volta dessa hora. Hoje está imenso calor. Por agora não me apetece fazer nada. Estou cheio de preguiça.

‑ Uuuuf! ‑ fez o Tim, que estava deitado, com a cabeça entre as patas também cheio de calor.

‑ Tu sentes‑te como o David, não é verdade? ‑ disse Júlio, tocando‑lhe com um pé. ‑ Está cansado por causa do passeio até Kirrin.

‑ Havia imensa poeira na estrada ‑ contou David. ‑ O Tim punha‑se a espirrar cada vez que passava um carro, pois o pó entrava‑lhe pelo nariz! Pobre Tim! Na verdade deves sentir‑te estafado com o longo passeio.

‑ Béu! ‑ fez o Tim de repente, sentando‑se com o focinho bem erguido e chamando a atenção da Zé, batendo‑lhe com uma pata. Todos se riram.

‑ Ele quer dizer que não está nada cansado e gostaria de ir passear! ‑ disse o David, rindo.

‑ Pois se ele não está, estou eu ‑ declarou o Júlio. ‑ Na verdade deu um trabalhão tirar para fora todas aquelas coisas, guardadas em Kirrin e voltar de bicicleta. Desculpa Tim, mas agora não posso levar‑te a passear.

O Tim ganiu e o Diabrete saltou logo do ombro do Buzina, indo consolar o enorme cão, dando uns guinchos curiosos. Até chegou a agarrar‑se ao pescoço do Tim com as suas patitas.

‑ Ó Diabrete, estás a tornar‑te um tanto piegas ‑ comentou o Buzina, mas o macaquinho não fez caso. O seu grande amigo estava triste com certeza, pois gania. O Tim deitou a língua de fora e lambeu o macaquinho mesmo no nariz. Depois arrebitou as orelhas e levantou‑se. Ouvira um barulho qualquer e as crianças também.

‑ É uma música ‑ disse a Ana. ‑ já sei de que se trata.

‑ O que é? ‑ perguntavam os outros.

‑ Deve ser a banda de música do Circo Tapper a ensaiar para a noite da estreia ‑ disse a Ana.

‑ A estreia é amanhã ‑ disse a Zé bocejando. ‑ Realmente também me parece uma banda de música. Talvez tenhamos ocasião de ver os músicos, depois do lanche, enquanto estivermos a armar as barracas. Gostava de ver o Homem sem Ossos. E vocês?

‑ Eu não! ‑ declarou a Ana. ‑ Deve ser todo mole, horrível, como uma minhoca ou uma lagarta.

Não quero vê‑lo. Mas gostava muito de ver os cavalos e o burro que dança. Vocês acham que ele dançará acompanhado pela banda de música?

‑ Logo veremos quando assistirmos ao espectáculo ‑ disse o David. ‑ Se o Sr. Tapper não tiver ficado aborrecido com o Buzina por ele o ter querido pôr fora, talvez nos deixe andar por ali.

‑ Eu não quero lá ir ‑ disse o Buzina. ‑ O Sr. Tapper foi mal educado e o rapaz deu‑me um soco.

‑ Parece‑me que faria o mesmo se achasse que estavas a ser indelicado para com o meu avô ‑ disse o Júlio, cheio de preguiça. ‑ Bem, fica combinado que levamos as nossas coisas para armarmos as barracas depois do lanche. Espero que arranjemos um sítio abrigado.

‑ óptimo ‑ disseram todos. O David começou a fazer cócegas no focinho do Diabrete com uma palhinha. O macaco desatou a espirrar. Esfregou a mão no nariz e olhou com ar de reprovação para o David. Depois voltou a espirrar.

‑ Vai pedir um lenço emprestado ‑ aconselhou o Júlio. E para grande divertimento de todos, o Diabrete saltou para o David e tirou‑lhe o lenço da algibeira! Depois pôs‑se a fingir que estava a assoar‑se.

Todos riram a bom rir e o Diabrete ficou encantado.

‑ Qualquer dia ainda te roubam para trabalhares num circo, ‑ disse David agarrando o lenço. ‑ O Macaco Ladrão!

‑ Seria um grande número de circo! ‑ disse o Júlio.

‑ Mas eu nunca consentiria que ele fizesse parte de um circo! ‑ declarou logo o Buzina. ‑ Teria uma vida horrível.

‑ Não, que ideia ‑ disse o Júlio. ‑ A gente dos circos gosta muito dos seus animais e tem orgulho neles. Afinal se os tratassem mal, os animais não se sentiriam felizes e não obedeceriam durante as representações. A maioria das pessoas do circo tratam os seus animais como se pertencessem à família.

‑ Palavra? Até mesmo os chimpanzés? ‑ perguntou a Ana, horrorizada.

‑ Esses são muito simpáticos e inteligentes ‑ disse o Júlio. ‑ Diabrete, não me tires o lenço, por favor. Foi engraçado a primeira vez, mas chegou. Olhem para ele agora, tentando desapertar a coleira do Tim.

‑ Vem sentar‑te quieto aqui ao meu lado ‑ ordenou o Buzina e o animalzinho foi ter com o dono, muito obediente, sentando‑se ao seu colo.

‑ És um pateta ‑ disse o Buzina, fazendo‑lhe festas. ‑ Se não te portares bem, ofereço‑te ao circo em troca dum elefante!

‑ Idiota! ‑ disse o David e todos se riram ao pensar no Buzina como dono de um elefante. Que lhe faria?

Ouviram alguém chamar, de casa. Era a Catarina.

‑ Menino Buzina, chegou o recoveiro com as barracas e outras coisas. Deixou‑as no vestíbulo, num sítio onde o Sr. Professor pode tropeçar. É melhor virem já tirá‑las dali.

‑ Já vamos, Catarina ‑ disse o Buzina. ‑ Estamos ocupados.

‑ És um grande mentiroso, Buzina ‑ disse o David. ‑ Bem sabes que não estamos a fazer nada. Podes ir ver onde estão as coisas e verificar se não falta nada.

‑ Vamos daqui a pouco ‑ disse a Ana bocejando. ‑ O pai do Buzina deve estar a dormir a sesta, com este calor! Não deve sair do escritório tão cedo.

Mas a Ana estava enganada. O Professor Hayling encontrava‑se bem desperto e quando acabou uma parte do seu trabalho resolveu ir beber um copo de água bem gelada. Abriu a porta do escritório tencionando dirigir‑se à cozinha. Mas a meio caminho tropeçou e caiu em cima de toda aquela bagagem de campismo, fazendo um barulho infernal!

A Catarina correu para o vestíbulo, gritando assustada. E o Professor parecia rugir de raiva, enquanto tirava uma tira de lona da cabeça e uma estaca das costas.

‑ QUE COISAS SÃO ESTAS? QUE FAZEM AQUI NA ENTRADA? CATARINA! CATARINA! Leva tudo já para o fogão e pega‑lhes fogo!

‑ São as nossas barracas de campismo! ‑ gritou a Zé, ouvindo horrorizada o que o Professor dissera. ‑ Depressa! Vamos salvar as nossas coisas! Espero que o pai do Buzina não se tenha magoado.

Enquanto o Júlio e o David agarravam em todas as coisas e se apressavam a levá‑las para o jardim, a Ana e a Zé tentavam ajudar o Professor a desenvencilhar‑se de tudo e diziam‑lhe tantas amabilidades que ele já começava a sentir‑se menos zangado.

O senhor sentou‑se numa cadeira, limpando a testa. ‑ Espero que tenham levado toda aquela tralha para o fundo do jardim ‑ resmungou ele.

‑ Com certeza ‑ disse o Buzina, agora com verdade. ‑ Estão todas em pilha para serem queimadas, mas... mas ainda não acendemos a fogueira.

‑ Hei‑de ser eu mesmo quem lhes deitará o fogo amanhã ‑ disse o Professor. O Buzina deu um suspiro de alívio. Claro que o pai se esqueceria até ao dia seguinte, e entretanto as coisas seguiriam para o terreno atrás da casa, depois do lanche.

‑ Tome uma boa xícara de chá, Sr. Professor ‑ aconselhou a Catarina. ‑ Foi acabadinho de fazer. É bom tomar uma chávena de chá quando damos um trambolhão!

Depois a Catarina voltou‑se muito zangada para o Buzina e disse‑lhe em voz baixa:

‑ Eu não tinha avisado o menino que o seu pai havia de tropeçar naquelas coisas? Agora vão todos lanchar, enquanto eu trato do Sr. Professor.

‑ Eu vou buscar o nosso chá ‑ disse a Ana. ‑ Depois iremos armar as barracas, o que será muito divertido. E por favor, Buzina, não te ponhas a discutir com a gente do circo.

‑ Descansa que hei‑de vigiá‑lo ‑ declarou a Zé com firmeza. ‑ Vamos andando lá para fora enquanto a Ana trata do chá. Estão‑me a apetecer uns bolinhos.

O Júlio e o David haviam conseguido, ajudando‑se um ao outro, levar tudo para o jardim: as duas barracas, sacos‑camas, cobertores, estacas, etc. O Tim corria perto deles, excitado, não percebendo a que propósito vinha toda aquela azáfama. Claro está que o Diabrete saltava para cima de tudo o que os pequenos transportavam e ia dando os seus guinchos desafinados.

Foi um sarilho quando fugiu com uma estaca da barraca mas o Tim conseguiu agarrá‑lo, obrigando‑o a largar o que roubara. Depois o Tim levou a estaca ao Júlio.

‑ Vê se vigias esse endiabrado macaquinho,' Tim, se fazes favor. ‑ pediu o Júlio. ‑ Aqui há imensas coisas que ele nos pode tirar.

Assim o Tim pôs‑se a tomar conta do Diabrete seguindo‑o por todos os sítios para que o macaco não tirasse qualquer coisa. Finalmente o Diabrete cansou‑se da vigilância do Tim e saltou para o seu ombro agarrando‑se à coleira do cão, como se estivesse montado num cavalo.

‑ Fariam um lindo par num circo ‑ disse David.

‑ Até aposto que o Diabrete saberia segurar nas rédeas se o Tim as tivesse!

‑ Mas garanto‑te que isso nunca acontecerá ‑ disse logo a Zé. ‑ Depois só faltaria o chicote. Oh! Vocês trouxeram imensas coisas! Não falta nada.

Nessa altura ouviram tocar uma campainha e todos deram um suspiro de alívio.

‑ Vamos lanchar! ‑ exclamou o David. ‑ Estou cheio de sede. Ainda bem que já acabámos de juntar as coisas. Não me apetece fazer mais nada. Não concordas, Tim?

‑ Béu! ‑ fez o Tim, dirigindo‑se a casa cheio de pressa, com o Diabrete correndo atrás.

‑ Afinal nós também temos um circo! ‑ comentou o David. ‑ Já aqui vamos, Ana!

 

                   NO TERRENO DO CIRCO

NinGUém quis demorar‑se muito tempo a lanchar. Estavam todos desejosos por ir preparar o pequeno acampamento.

‑ Teremos uma bela ocasião para ver o que se passa no acampamento do circo ‑ disse David. ‑ Viveremos pertíssimo daquela gente. Espero que o Diabrete não entre em grandes intimidades com eles. Receio que o levem quando se forem embora.

‑ Francamente, não devias dizer uma coisa dessas! ‑ protestou o Buzina, zangado. ‑ Tens cada uma! Como se o Diabrete quisesse ir com eles! Estou convencido que nem vai ligar importância à gente do circo.

‑ Verás! ‑ disse David, rindo. ‑ Agora acabem de lanchar depressa. Estou cheio de vontade de ver o nosso acampamento já armado.

Em breve todos estavam prontos. Depressa chegaram à cerca e olharam para o terreno, com admiração. Viam‑se grandes carros por toda a parte, tendo a palavra TAPPERS pintada a cores vivas. Também ali estavam algumas roulottes e carros puxados a cavalos, no género de roulottes, com cortinas nas janelas. Claro que a gente do circo vivia nas roulottes e no fundo a Zé pensou que também gostaria mais de viver numa roulotte, do que numa casa, sempre no mesmo sítio.

‑ Olhem para os cavalos! ‑ disse o David ao verem os animais com as cabeças erguidas e longas caudas. O rapaz que dera um soco ao Buzina encontrava‑se agora junto dos cavalos, assobiando. Os animais saíam de um dos grandes carros e deviam sentir‑se satisfeitos por poderem correr pelo campo, cheio de relva bem verde.

‑ Essa cancela está bem fechada? ‑ ouviram alguém gritar em voz muito grossa.

‑ Está sim, avô ‑ respondeu o rapaz. ‑ Os cavalos não têm por onde fugir. Olhe como eles gostam desta erva.

Depois reparou no Júlio e nos outros pequenos, que estavam a observar os cavalos, encostados à cerca. O rapaz acenou‑lhes.

‑ Estão a ver os nossos cavalos? São bonitos?

Só para se exibir saltou para o dorso do que estava mais próximo e foi andando até à cerca. A Zé observava o rapaz com uma certa inveja. Quem lhe teria dado um cavalo assim?

‑ Vamos levar as nossas coisas para o terreno ‑ propôs o Buzina. ‑ Quanto mais próximo do circo ficarmos, melhor. Vai ser divertido!

Ele saltou a cerca e o David imitou‑o.

‑ Eu passo‑lhes as coisas ‑ disse o Júlio. ‑ A Zé pode ajudar‑me, pois tem tanta força como qualquer rapaz.

A Zé sorriu. Gostava muito que lhe fizessem elogios daquele género. Era bastante difícil passar algumas das coisas para o outro lado da cerca porque as barracas, embora estivessem bem enroladas, eram muito pesadas e difíceis de transportar. Por fim tudo passou para o outro lado, para cima da relva. Então o Júlio, a Ana e a Zé também saltaram a cerca e todos começaram à procura do melhor sítio para acampar.

‑ E se ficássemos junto daqueles arbustos? ‑ sugeriu o Júlio. ‑ Ainda para mais há ali aquela grande árvore que também nos protegerá do vento e não ficaremos demasiado perto da gente do circo. Eles poderiam não gostar. Contudo ainda ficaremos a pouca distância para vermos o que ali se passa.

‑ Oh! Vai ser divertidíssimo ‑ disse Ana com os olhos muito brilhantes.

‑ Parece‑me que vou procurar o avô, o Sr. Tapper ‑ disse o Júlio. ‑ Só para o prevenir que chegámos, não vá pensar que somos uns intrusos e não temos direito de vir para aqui.

‑ Não é preciso a sua licença para acamparmos no meu campo ‑ disse logo o Buzina.

‑ Não comeces a ferver em pouca água, Buzina ‑ aconselhou o Júlio. ‑ É só uma questão de boa educação. Uma coisa que tu pareces desconhecer! Não percebes que eles também têm o direito de ficar aborrecidos por nós virmos acampar para tão perto? É melhor mostrarmo‑nos amáveis desde o princípio.

‑ Está bem, está bem ‑ disse o Buzina, enfastiado. ‑ Mas não se esqueçam de que este terreno é meu. Daqui a pouco vocês obrigam‑me a tornar‑me amigo daquele miúdo antipático que me atacou.

‑ Olha que não era má ideia ‑ disse a Zé.

‑ Mas de qualquer modo é preciso ser sensato, Buzina. É muito raro uma pessoa ter um circo mesmo ao fundo do jardim, saltar acerca e poder misturar‑se com os artistas.

O Júlio dirigiu‑se à roulotte mais próxima. Estava vazia e por isso ninguém respondeu quando o Júlio bateu à porta.

‑ Que deseja? ‑ perguntou uma pequenita que por ali apareceu, com o cabelo muito desgrenhado.

‑ Onde está o Sr. Tapper? ‑ perguntou Júlio sorrindo para a pequenita mal arranjada e de olhar vivo.

‑ Está a tratar um cavalo ‑ informou a pequenita. ‑ Quem são vocês?

‑ Somos vossos vizinhos ‑ disse o Júlio.

‑ És capaz de me levar ao Sr. Tapper?

‑ É por aqui ‑ disse a pequenita dando uma mãozita muito suja, ao Júlio. ‑ Eu mostro‑lhes. Vocês são muito simpáticos.

Foi levando os pequenos até ao meio do terreno. De repente ouviram um cão uivar e a Zé parou logo. ‑ É o Tim! Deve ter descoberto que saímos do jardim. Vou buscá‑lo.

‑ É melhor não ires ‑ aconselhou o Júlio.

‑ Pode ser que haja sarilho se ele se encontrar com o chimpanzé. Não sei se sabes que um chimpanzé muito grande pode fazer o Tim em picado para pastéis.

‑ Que ideia! ‑ exclamou a Zé, mas prudentemente resolveu não ir buscar o Tim. O Júlio esperava que o cão não se decidisse a saltar a cerca e ir ter com eles!

‑ Ali está o avô Tapper, ali nos degraus ‑ disse a pequenita, sorrindo para o Júlio, continuando a agarrar‑lhe na mão.

‑ A sua mão cheira bem.

‑ É porque a lavo com água e sabonete umas quatro ou cinco vezes por dia ‑ disse o Júlio. ‑ As tuas também podiam cheirar bem se fizesses o mesmo.

A pequena voltou a cheirar a mão do Júlio. Depois chamou em voz bem alta o velhote que se encontrava sentado nos degraus de uma das roulottes mais próximas.

‑ Avô! Estes meninos querem falar contigo.

O avô estava a observar um lindo cavalo cor de avelã e conservava uma das patas do animal entre as mãos. As crianças ficaram paradas, a olhar para o velhote. Este tinha uma barba ainda negra e olhos muito enrugados.‑ Coitado! ‑ pensou a Ana ‑ o homem só tem uma orelha. O que teria acontecido à outra?

‑ AVÔ! ‑ voltou a chamar mais alto a pequenita. ‑ TEM AQUI VISITAS!

O Sr. Tapper olhou em volta com uns olhos muito brilhantes sob as espessas sobrancelhas. Largou a pata do cavalo e fez uma festa ao lindo animal.

‑ Pronto, já arranquei a pedrinha que estava metida na tua ferradura. Agora já podes dançar outra vez!

O cavalo levantou a sua soberba cabeça e depois relinchou, como se estivesse a agradecer. O Buzina ficou pasmado e o Diabrete, aterrado, saltou‑lhe do ombro escondendo‑se por baixo do braço do pequeno.

‑ Então, macaquinho, não conheces a voz dos cavalos? ‑ perguntou o Sr. Tapper e o Diabrete levantou a cabeça para o ouvir.

‑ O cavalo sabe realmente dançar? ‑ perguntou a Ana, com vontade de lhe fazer uma festa no focinho.

‑ Dançar? É um dos melhores cavalos dançarinos do mundo! ‑ afirmou o Sr. Tapper, começando a assobiar uma canção alegre. O cavalo arrebitou as orelhas, olhou para o Sr. Tapper e em seguida pôs‑se a dançar. As crianças observaram‑no, maravilhadas.

E lá continuava ele, às voltas, meneando a cabeça ao som da música e dando passos perfeitamente a compasso.

‑ Que bonito! ‑ exclamou a Zé. ‑ Todos os seus cavalos, Sr. Tapper, sabem dançar tão bem como este?

‑ Alguns até dançam melhor ‑ disse o Sr. Tapper. ‑ Este tem muito bom ouvido para a música, mas não tão apurado como outros. Hão‑de vê‑los todos enfeitados com plumas nas cabeças! Não há nada no mundo tão bonito como um bonito cavalo.

‑ Sr. Tapper, nós pertencemos àquela casa para lá da cerca ‑ disse o Júlio, achando que já era altura de explicar a sua visita. ‑ Como deve saber, o pai do Buzina, é o dono deste terreno e...

‑ Pois sim, mas nós temos uma licença muito antiga de virmos para aqui ‑ interrompeu o velhote levantando a voz. ‑ Agora não comecem a discutir com...

‑ Não queremos discutir ‑ disse logo o Júlio, delicadamente. ‑ Vim apenas comunicar‑lhe que nós, os meus amigos e eu, tencionamos vir também para aqui acampar, mas não queremos maçá‑los de maneira nenhuma e...

‑ Ora muito bem, se é só isso que pretendem, sejam bem‑vindos ‑ disse o velhote. ‑ Muito bem‑vindos mesmo! Julguei que o menino também queria mandar‑nos embora, tal como aquele miúdo já pretendeu fazer.

O Sr. Tapper apontou para o Buzina. Este pôs‑se muito vermelho e não disse nada.

O velhote riu‑se. ‑ O meu neto não gostou nada da ideia pois não, meu menino? Deu‑lhe um soco e lá foi ele parar ao chão. Realmente o pequeno Jeremias tem um certo mau génio. Mas talvez para a próxima seja ele quem apanhe, não é?

‑ Verá! ‑ disse logo o Buzina.

‑ Muito bem. Depois ficarão quites e poderão tornar‑se amigos ‑ disse o Sr. Tapper com um olhar trocista. ‑ E agora acho que já podem ir buscar as vossas coisas para armarem as barracas. Vão buscar o chimpanzé Carlinhos, para vos ajudar.

Tem mais força do que dez homens juntos.

‑ O chimpanzé? Mas é assim tão manso que nos possa ajudar a armarmos as barracas? ‑ perguntou Ana, incrédula.

‑ O Carlinhos é mais esperto e mais inofensivo do que qualquer de vocês ‑ disse o Sr. Tapper. ‑ E consegue ganhar‑lhes a jogar ao críquete. Um dia podem experimentar. Vou chamá‑lo para que os ajude. CARLINHOS! CARLINHOS! Onde estás? Naturalmente estás a dormir uma soneca! CARLINHOS!

Mas o Carlinhos não aparecia. ‑ Vão buscá‑lo ‑ disse o Sr. Tapper apontando para um canto onde se via uma grande jaula de aspecto bem forte, com uma coberta de lona para a proteger da chuva.

‑ Ele fará tudo o que vocês quiserem desde que de vez em quando lhe digam umas palavras de elogio ‑ acrescentou o velhote.

‑ Vamos buscá‑lo, Júlio ‑ disse o David com vivacidade. ‑ Acho engraçadíssimo sermos ajudados por um chimpanzé.

E lá se dirigiram todos para a grande jaula. ‑ CARLINHOS! CARLINHOS! Acorda que estão a chamar‑te! CARLINHOS!

 

                   O CHIMPANZÉ CARLINHOS DÁ UMA BOA AJUDA

O Buzina foi o primeiro a chegar perto da jaula. Espreitou lá para dentro. Na verdade o chimpanzé Carlinhos estava ali, sentado ao fundo, olhando para as crianças com os seus olhos castanhos, cheio de curiosidade. Levantou‑se e foi até ao sítio onde o Buzina estava a espreitar, encostando o focinho às fortes grades de ferro,quase contra a cara do Buzina. Depois soprou com força e o pequeno recuou, surpreendido e zangado.

‑ Ele soprou para a minha cara! ‑ disse o Buzina aos outros, que se riram por ver o ar ofendido do amigo. O chimpanzé fez logo um barulho esquisito que o Diabrete se esforçou por imitar. O chimpanzé olhou para o macaquinho e depois ficou muito entusiasmado. Batia com as patas nas grades da jaula, dava grandes pulos e soltava uns guinchos bastante extraordinários.

Apareceu logo um rapaz, a correr. Era o mesmo que dera um soco no Buzina. ‑ Que estão vocês a fazer ao chimpanzé? ‑ perguntou ele. ‑ Tu não és aquele miúdo que resolveu ir discutir com o meu avô e a quem eu tive de dar um soco?

‑ Sou, mas se te atreves a repetir a façanha hás‑de arrepender‑te ‑ ameaçou o Buzina.

‑ Cala‑te Buzina! ‑ ordenou o Júlio. Depois virou‑se para o rapaz. ‑ Chamas‑te Jeremias, não é verdade? Estivemos agora mesmo a falar com o teu avô e ele ofereceu‑nos a ajuda do chimpanzé, pois vamos armar as nossas barracas de campanha. Não faz mal o Carlinhos sair da jaula, pois não?

‑ Não, não faz. Eu deixo‑o cá vir fora duas ou três vezes por dia ‑ disse o Jeremias. ‑ Aborrece‑se ali na jaula. Vai gostar imenso de ajudá‑los com as barracas. Também ajuda muito toda a gente do circo, em trabalhos nesse género. É tão forte como um leão.

‑ E... e... não faz mal? ‑ perguntou o David olhando para o enorme chimpanzé com umas certas dúvidas.

‑ Mal? Que quer dizer com isso? ‑ perguntou o Jeremias, surpreendido. ‑ Faz tanto mal como qualquer de nós. Carlinhos, vem cá para fora! Vá, tu sabes abrir a porta muitíssimo bem, não te faças parvo.

O chimpanzé soltou um guincho divertido e depois passou a pata para fora das grades, alcançou a corrediça da fechadura, puxou‑a e retirou a pata. Depois empurrou a porta da jaula.

‑ É muito fácil, hein? ‑ disse o Jeremias, rindo. ‑ Carlinhos, vem connosco, precisamos da tua ajuda.

O Carlinhos saiu da jaula e acompanhou as crianças até ao sítio onde haviam deixado as barracas e tudo o mais. O chimpanzé caminhava com as quatro patas, duma maneira

muito deselegante, soltando todo o tempo uns pequenos guinchos muito divertidos. O Diabrete sentia um certo receio e conservava‑se a uma prudente distância mas de repente o chimpanzé deu meia volta, conseguiu agarrar o Diabrete e sentou‑o às costas. O Diabrete lá se equilibrou sem saber bem se estava assustado ou satisfeito.

‑ Que pena não ter aqui a minha máquina fotográfica! ‑ disse a Ana à Zé. ‑ Olha para eles! O Diabrete parece encantado.

Chegaram ao monte das barracas.

‑ Pega nisto, Carlinhos, e segue‑nos ‑ ordenou o Jeremias.

O chimpanzé agarrou em várias coisas e quando játinha os seus enormes braços cheios seguiu as crianças até ao sítio onde elas tinham resolvido acampar, próximo da cerca que os abrigaria do vento.

‑ Larga tudo, Carlinhos ‑ ordenou o Jeremias. ‑ E vai buscar o resto. Despacha‑te. Não fiques aí parado a olhar. Ainda temos muito que fazer.

Mas o Carlinhos continuava acocorado, olhando fixamente para o Diabrete.

‑ Oh! Ele quer que o macaquinho o acompanhe! ‑ exclamou a Zé. ‑ Vá, Diabrete, monta‑te outra vez no chimpanzé.

O Diabrete saltou para os ombros do Carlinhos. Este estendeu uma pata para colocar o macaco em boa posição e depois lá foram os dois buscar as restantes coisas. Um dos cobertores desenrolou‑se‑lhe em cima da cabeça, como uma barraca e o pobre bicho não podia ver o caminho. Furioso, deitou‑o ao chão e começou aos pulos sobre o cobertor, soltando guinchos terríveis. As crianças ficaram bastante assustadas.

‑ Carlinhos, não sejas palerma! ‑ exclamou o Buzina, tirando‑lhe o cobertor e tornando a enrolá‑lo. O chimpanzé então pegou‑lhe com facilidade, voltando‑lhe logo a boa disposição.

Em breve toda a bagagem estava no sítio onde iam armar as tendas, e o Júlio e o David começaram o trabalho. O Carlinhos observava‑os com o maior interesse e a judava‑os sempre que podia, mostrando grande inteligência.

‑ É um belo companheiro, não acham? ‑ observou o Jeremias, todo orgulhoso com as habilidades do chimpanzé. ‑ Repararam como colocou aquele taco mesmo no sítio que devia ser? Haviam de vê‑lo quando vai buscar água nos baldes para os cavalos! Leva um balde cheio em cada pata!

‑ Devia receber ordenado ‑ disse o Buzina.

‑ E recebe! ‑ disse o Jeremias. ‑ Recebe oito bananas por dia e tantas laranjas quantas lhe apetecer. E ADORA rebuçados!

‑ Oh! Parece‑me que ainda aqui tenho alguns ‑ disse o Buzina, remexendo nas algibeiras. Foi tirando uma quantidade de coisas diferentes, entre as quais apareceu um cartucho muito amarrotado. Dentro estava uma

porção de rebuçados um tanto amolecidos.

‑ Não lhe dês esses! ‑ disse a Ana. ‑ São velhos, pegajosos e com mau aspecto.

Mas o Carlinhos não era da mesma opinião da Ana. Tirou o cartucho sem cerimónia da mão do Buzina, cheirou‑o e depois meteu‑o todo dentro da boca.

‑ Vai engasgar‑se! ‑ exclamou o Júlio.

‑ Não vai nada ‑ disse o Jeremias. ‑ Deixem‑no. Irá direito à sua jaula, entra, fecha a porta e depois, radiante, senta‑se chupando rebuçado sobre rebuçado até ao último.

‑ Bem, na verdade merece uma recompensa ‑ disse a Zé. ‑ Fez todo o trabalho mais pesado! Agora vamos acabar o que falta. Não acham que vai ser divertido dormirmos esta noite nas barracas? Mas primeiro teremos que ir jantar.

‑ Podem jantar connosco, se quiserem ‑ disse o Jeremias. ‑ Não teremos comida fina, como a vossa, mas de toda a maneira é uma comida boa e saudável. A minha avó é a cozinheira. Ela tem duzentos anos!

As crianças riram‑se, não acreditando.

‑ Duzentos anos! Ninguém vive tanto! ‑ disse a Zé.

‑ Pelo menos é o que ela diz ‑ afirmou o Jeremias. ‑ E realmente parece muitíssimo velha. Mas ainda tem uma óptima vista. Posso preveni‑la que vocês jantam connosco?

‑ Não achas que fará diferença tantas pessoas a mais? ‑ perguntou o Júlio. ‑ Nós tencionávamos trazer para aqui a nossa refeição.

Talvez seja melhor irmos buscá‑la para a juntar à vossa. A nossa cozinheira disse que prepararia um empadão de carne, salsichas, maçãs e bananas.

‑ Chiu! Não falem em bananas diante do Carlinhos ‑ preveniu o Jeremias. ‑ Não fará outra coisa se não pedir‑lhes bananas. Então fica combinado. Vocês trazem o vosso jantar e comem connosco à volta da fogueira do acampamento. Vou dizer à avó. Esta noite temos cantoria e o violinista Fred toca violino. Nem calculam como toca bem. As suas canções até nos fazem sentir arrepios dos pés à cabeça.

Tudo aquilo parecia muito animado. O Júlio achou que era preferível voltarem a casa antes que a Catarina começasse a preocupar‑se com aquela prolongada ausência e nessa altura meteriam num saco a comida para o jantar.

‑ Voltaremos logo que estivermos despachados ‑ disse a Ana. ‑ E muito obrigado por toda a vossa ajuda. Anda, Diabrete. Diz adeus ao Carlinhos, por agora, e não te ponhas com esse ar tão triste. Em breve voltaremos.

Foram para casa, saltando por cima da cerca, sentindo‑se um tanto cansados, mas cheios de planos para o jantar.

‑ Até parece que pertencemos ao circo, jantando em redor da fogueira e saboreando a comida feita na velha panela enegrecida ‑ observou o Buzina. ‑ Aposto que o jantar cheira deliciosamente. Bem, espero que o meu

pai não se importe que nos misturemos com a gente do circo!

‑ Naturalmente nem repara que não jantamos em casa ‑ disse a Zé. ‑ O meu pai nunca presta atenção a coisas desse género. Às vezes nem vê que as pessoas estão ali, em frente do seu nariz!

‑ Isso deve ser muito útil, quando se trata de pessoas com quem antipatiza ‑ disse o Buzina. ‑ Agora vamos ver o que poderá a Catarina arranjar‑nos que se preste para levarmos para o acampamento.

A Catarina ouviu muito espantada tudo o que lhe contaram. ‑ Só faltava mais esta! ‑ exclamou. ‑ Acamparem com a gente do circo! Sempre gostava de saber o que diriam os seus pais se soubessem, menino Júlio!

‑ Havemos de lhes contar logo que os virmos ‑ disse Júlio, rindo. ‑ Catarina, o que nos arranjou para o jantar? Levaremos tudo para o acampamento.

‑ já calculava que tencionavam fazer isso ‑ disse a Catarina. ‑ Por isso só fiz coisas que se podem comer frias. Empadão de carne, salsichas, uma salada de pepino, alface e tomate, pãezinhos de leite, maçãs e bananas. Acham que chega?

‑ Com certeza! ‑ disse o Buzina, animado. ‑ E para beber?

‑ Podem levar limonada ou laranjada, conforme lhes agradar mais ‑ disse a Catarina.

‑ Mas agora prestem atenção. Não entre no escritório do seu pai, menino Buzina. Trabalhou muito durante o dia e está cansado.

‑ E de mau‑humor, calculo eu ‑ acrescentou o Buzina. ‑ As pessoas ficam sempre com má disposição quando se cansam, tirando tu, minha querida Catarina.

‑ Ah! Com certeza que deseja tirar mais alguma coisa da despensa, para me chamar querida Catarina ‑ disse a criada.

‑ Dás‑me uns quadradinhos de açúcar? ‑ pediu o Buzina. ‑ Nem calculas como são bonitos os cavalos do circo. Gostaria de dar um quadrado de açúcar a cada um.

‑ E mais alguns para o menino, claro ‑ disse a Catarina.

‑ Está bem. Vou embrulhar‑lhes tudo e não me esquecerei de juntar uns pratos de alumínio, canecas e facas. O Tim também quer jantar?

‑ Béu! ‑ fez logo o Tim, satisfeito por ser lembrado. A Catarina fez‑lhe uma festa na cabeça. ‑ Já está tudo pronto para ti, na copa ‑ disse a Catarina. ‑ Menina Zé, pode ir buscar o que preparei. O Tim deve ter fome.

A Zé foi buscar um grande prato de carne e biscoitos; o Tim aproximou‑se logo, soltando alegres latidos. Na verdade estava com muito apetite.

Finalmente o jantar ficou pronto a ser transportado até ao terreno do circo. Parecia imensa coisa. Chegaria muito bem para oferecer às outras pessoas. Despediram‑se da Catarina e voltaram a atravessar o jardim. Acharam melhor não perturbar o Professor Hayling.

‑ Ele poderia zangar‑se e proibir‑nos de jantar com a gente do circo ‑ disse o Buzina. ‑ Diabrete, sai de cima desse cesto, pois sei muito bem que andas à procura duma banana. E por favor, porta‑te com juízo durante o jantar, para não nos envergonhares com o chimpanzé Carlinhos!

Era divertido voltarem ao acampamento. O sol descia depressa e em breve seria noite. Como ia ser agradável sentarem‑se em redor do lume, jantando com aquela simpática gente do circo; talvez até cantassem com os outros velhas canções. E ouvir o Fred Violinista tocar árias muito, muito antigas.

Como ia ser divertido deitarem‑se nas barracas, ouvindo o piar dos mochos e contemplar as estrelas pela abertura da lona!

Saltaram todos por cima da cerca, passando uns aos outros os cestos do jantar.

‑ Tira a pata do cesto, Diabrete! Tens razão, Tim, morde‑lhe a orelha se ele fizer tantas diabruras como o seu nome indica. Esta noite vão divertir‑se muitíssimo!

 

                     UMAS HORAS MUITO AGRADÁVEIS

LOGO que o Jeremias viu os seus convidados saltarem a cerca, correu a ajudá‑los. Estava muito entusiasmado com a ideia do jantar. Levou os pequenos sem demora ao avô para que ele lhes desse as boas‑vindas.

‑ Calculo que os teus amigos queiram ver qualquer coisa do circo ‑ disse o Sr. Tapper. ‑ O chimpanzé Carlinhos pode ir com vocês. Esta noite temos ensaio por isso o tablado está armado. Podem assistir a uma parte do espectáculo.

Isto era uma óptima novidade. As crianças repararam que várias peças curvas de madeira tinham sido unidas para fazer um grande circo e enquanto se dirigiam para ali os cavalos dançarinos começaram a entrar no recinto, sendo o da frente montado por Madelon, uma linda rapariga vestida com um fato dourado.

‑ São lindos! ‑ pensou a Ana, ao observá‑los. ‑ Como ficam bem as plumas no alto das cabeças!

A Banda do Bonzo começou a tocar e os cavalos imediatamente se puseram a andar ao compasso com a música. A banda parecia um tanto estranha pois os músicos não estavam de uniforme. Naturalmente guardavam‑nos para a noite da estreia.

Os cavalos dançarinos começaram a entrar no recinto, continuando a linda Madelon no cavalo da frente. Depois entrou o Fred Violinista, que tocou violino durante alguns minutos. Ao princípio a música era vagarosa e triste mas depois Fred começou a tocar muito depressa e as crianças, sem querer, começaram a bater com os pés ao compasso da música.

‑ Não consigo parar ‑ disse a Ana. ‑ Parece que a música me entrou nos pés.

Nessa altura apareceu o chimpanzé Carlinhos, andando só nas pernas traseiras, parecendo por isso altíssimo pois geralmente caminhava nas quatro patas. Também começou a dançar, parecendo muito satisfeito. Depois correu para o meio do circo e abraçou‑se às pernas do Fred Violinista.

‑ Ele adora o Fred ‑ disse o Jeremias. ‑ Agora vai o Carlinhos ensaiar o seu número. Tenho que ir ajudá‑lo.

E lá foi o Jeremias para o circo. O chimpanzé correu para o pequeno e deu‑lhe um abraço. Atiraram‑lhe um pau que o Carlinhos apanhou e depois atirou‑o ao ar por sua vez, dando um guincho deliciado.

Em seguida o Jeremias e o chimpanzé iniciaram uma partida de críquete. A certa altura o Carlinhos deu uma enorme tacada na bola e esta passou por cima da cabeça do Jeremias tão alta que o rapazito não conseguiu alcançá‑la. O chimpanzé desequilibrou‑se e caiu.

‑ FORA! ‑ gritou o Jeremias, mas o chimpanzé fez de conta que não ouviu.

Era a mais divertida partida de críquete que as crianças haviam presenciado. O chimpanzé tinha imenso jeito e o pobre Jeremias corria de um lado para o outro sem descanso. Por fim o Carlinhos começou a perseguir o rapaz por todo o recinto, soltando uns guinchos esquisitos. As crianças não chegavam a perceber se o chimpanzé estava divertido ou zangado.

‑ Ele é tão divertido como qualquer palhaço! ‑ disse o David. ‑ Jeremias, o Carlinhos faz esta parte do jogo do críquete em todos os espectáculos do circo?

‑ Faz e às vezes atira a bola para os espectadores ‑ respondeu o Jeremias. ‑ Nessa altura há sempre gritaria! Às vezes, deixamos uma das crianças que está a assistir descer à pista e atirar a bola ao Carlinhos. Uma vez um miúdo atirou‑lhe a bola à cara e ele ficou tão furioso que perseguiu o rapazinho, fazendo‑o dar três voltas à pista, a correr, tal como há pouco fez comigo. Mas o miúdo não achou grande graça à brincadeira.

O Carlinhos aproximou‑se do Jeremias e abraçou‑o com os seus enormes braços peludos, tentando atirá‑lo ao chão.

‑ Pára com isso, Carlinhos ‑ disse o rapaz querendo esquivar-se. ‑ Cuidado, lá vem o Burro que Dança. É melhor sairmos da pista.

Apareceu então o Burro que Dança. Era cinzento escuro e abanava a cabeça quando entrou a galopar. Depois parou, olhando para todos. Em seguida sentou‑se, levantou uma pata e coçou o focinho. As crianças observaram‑no, muito admiradas. Nunca tinham visto um burro fazer tal coisa! Depois quando a banda de música começou a tocar, o burro pôs‑se em pé, à escuta, abanando as orelhas para um lado e para o outro e mexendo com a cabeça para cima e para baixo, a compasso da música.

A banda pôs‑se então a tocar uma marcha. O burro voltou a prestar atenção e depois desatou a marchar a compasso, no redondo da pista.

Em seguida pareceu sentir‑se cansado e sentou‑se pesadamente sobre as patas traseiras. As crianças fartaram‑se de rir.

O burro quis levantar‑se outra vez e não se sabe como, as patas da frente ficaram presas nas de trás e ele caiu, numa atitude muito ridícula.

‑ Não se magoou? ‑ perguntou a Ana, aflita. ‑ Ainda parte uma pata, se assim continuar. Repara, Jeremias, não consegue destorcê‑las.

O burro soltou um zurro aborrecido, tentou levantar‑se mas voltou a cair. A banda passou a tocar outra coisa e o burro deu logo um salto e pôs‑se a fazer uma espécie de sapateado. Era uma maravilha!

‑ Nunca pensei que fosse possível ensinar um burro a sapatear ‑ observou a Zé.

Em breve o burro parecia sentir‑se outra vez cansado. Parou de dançar mas a música continuou. O burro então correu para a banda e bateu com o pé.

De repente ouviu‑se uma voz áspera. ‑ É demasiado depressa. DEMASIADO DEPRESSA!

Mas os músicos não prestaram atenção, continuando a tocar. O burro abaixou‑se, começou a torcer a cabeça e acabou por cair no chão da pista. A Ana soltou um grito, assustada.

‑ Não sejas palerma, Ana ‑ disse o David. ‑ Não pensavas que o burro fosse verdadeiro, pois não?

‑ Não é verdadeiro? ‑ disse a Ana, aliviada. ‑ Mas é igualzinho àquele burro que costuma levar as crianças, na praia de Kirrin.

O burro agora estava dividido em dois e um homem magro e pequeno saiu de cada metade, tirando as pernas com todo o cuidado de dentro das pernas do burro. A pele do burro caiu ao chão e ali ficou, amarfanhada.

‑ Quem me dera ter uma pele de burro como aquela ‑ disse o Buzina. ‑ Tenho um amigo no colégio que podia meter‑se nas pernas de trás e eu nas da frente. Faríamos coisas engraçadíssimas!

‑ Também concordo que darias um burro de primeira classe, a avaliar pela maneira como às vezes te portas ‑ comentou a Zé". ‑ Reparem naquele que vem a entrar, deve ser o David dos Tiros.

Mas antes que o David dos Tiros pudesse mostrar qualquer das suas habilidades, os dois homens que faziam de burro correram para a banda e começaram uma violenta discussão com os músicos.

‑ Porque tocaram tão depressa? Bem sabem que não podemos fazer os nossos números a grande velocidade. Estão a ver se conseguem estragar o nosso trabalho?

O chefe da banda gritou qualquer coisa. Devia ter sido mal educado porque um dos homens do burro levantou a mão e correu para o chefe da banda como se quisesse dar‑lhe um soco.

Uma voz muito alta parou logo com a discussão, fazendo com que todos se sobressaltassem. Era o Sr. Tapper, dando as suas ordens. ‑ Já chega! Tu, Pat, e tu Jim, saiam

imediatamente da pista. Sou eu quem dá ordens e não vocês. ACABEM COM ISSO!

Os dois homens do burro olharam furiosos para o Sr. Tapper mas não se atreveram a protestar. Saíram da pista com grandes passadas, levando com eles a pele de burro.

O David dos Tiros parecia muito vulgar assim vestido com um fato cinzento pouco apurado. ‑ Não vai fazer o seu número todo ‑ explicou o Jeremias. ‑ Hão‑de vê‑lo noutra noite, quando der espectáculo para o público. Dispara contra toda a espécie de coisas, até para uma moeda de tostão presa por um cordel pendurado no tecto. E nunca falha! E ele tem um fato lindo para os espectáculos. Todo coberto de lantejoulas brilhantes e o seu cavalinho é uma maravilha. Anda ás voltas á pista e nem mexe um pêlo quando o dono dispara a pistola. Reparem, ali está ele, à espreita, para ver se o David dos Tiros não se demora.

Um pequeno cavalo branco olhava ansioso para a pista com os olhos fixos no David dos Tiros. Batia com uma pata no chão como se quisesse dizer: ‑ Despacha‑te! Estou à tua espera! Queres que vá buscar‑te ou não?

‑ Está bem, David, podes acabar ‑ disse o Sr. Tapper. ‑ Ouvi dizer que o teu cavalo partiu uma pata. Deixa‑o descansar esta noite. Amanhã precisamos dele.

‑ Está bem, Sr. Tapper ‑ disse o David, fazendo um cumprimento. Logo em seguida correu para o seu cavalo.

‑ Que se segue, Jeremias? ‑ perguntou a Zé, que estava muito divertida.

‑ Não sei. Veremos. Faltam os acrobatas mas os trapézios ainda não estão armados por isso não ensaiam esta noite. E falta o Homem sem Ossos, reparem, ali está ele! É o Boney. Simpatizo muito com ele. É muito generoso.

O Homem sem Ossos tinha um aspecto estranho. Era muitíssimo magro e alto. Entrou na pista, duma maneira normal. ‑ Será possível que não tenha ossos? ‑ perguntou o David. ‑ Não conseguiria andar, se assim fosse.

Mas o Homem sem Ossos em breve começou realmente a parecer que não tinha ossos. As pernas dobravam‑se pelos joelhos e pelos tornozelos também, de tal forma que ele caiu no chão, incapaz de caminhar. Podia dobrar os braços das formas mais estranhas e quase dava meia volta á cabeça, pelo pescoço. Fez várias coisas esquisitas com o seu corpo aparentemente sem ossos e por fim desatou a rastejar sobre o chão, exactamente como uma cobra.

‑ Veste‑se com uma espécie de pele de cobra, para o verdadeiro espectáculo ‑ informou o Jeremias. ‑ É esquisito, não é?

‑ Como é que ele consegue fazer estas coisas? ‑ perguntou o Júlio, preocupado. Dobra os braços e as pernas de todas as maneiras e feitios. Os meus ficariam logo partidos se tentasse fazer aquilo.

‑ Mas para ele é muito fácil ‑ disse o Jeremias. ‑ Tem as articulações desconjuntadas, consegue dobrar os braços e as pernas nos dois sentidos e faz com que pareçam tão frouxos, que dá o aspecto de não ter ossos. É muito boa pessoa. Hão‑de gostar dele.

A Ana sentia umas certas dúvidas. Que gente tão extraordinária constituía o circo! Era um mundo à parte. Ela sobressaltou‑se ao ouvir uma corneta tocar com força.

‑ Anunciam o jantar ‑ informou o Jeremias, radiante. ‑ Vamos ter com a avó e a sua panela. Despachem‑se!

 

                   À VOLTA DA FOGUEIRA

O Jeremias ia à frente, afastando‑se da pista do circo. Esta estava bem iluminada, e fora dali a noite parecia muito escura. Dirigiram‑se para uma parte do terreno, onde ardia uma enorme fogueira, rodeada por pedras dispostas ordenadamente. Uma enorme caçarola estava suspensa acima do lume e os pequenos sentiram um cheiro delicioso quando se aproximaram.

Encontrava‑se ali a velha avó do Jeremias que começou a mexer a panela quando viu as crianças. ‑ Demoraram‑se muito tempo na pista ‑ disse ela para o avô. ‑ Alguma coisa correu mal?

‑ Não ‑ disse o Sr. Tapper. ‑ Estou com fome. O jantar cheira bem. Jeremias, ajuda a tua avó.

‑ Sim, avô ‑ disse o Jeremias e apresentou uma pilha de pratos à velhota que começou logo a enchê‑los com carne, batatas e legumes, tirados da panela. O Sr. Tapper voltou‑se para o Júlio.

‑ Então, gostou do nosso ensaio? ‑ perguntou ele.

‑ Muitíssimo! ‑ disse o Júlio. ‑ Só tive pena que não ensaiasse todos os números. Gostava muito de ver os acrobatas e os palhaços. Eles estão aqui? Quem são?

‑ Olhe, está ali um dos palhaços, com a Madelon, a rapariga dos cavalos ‑ disse o Sr. Tapper.

As crianças olharam e ficaram muito decepcionadas.

‑ Aquele é palhaço? ‑ perguntou o David, incrédulo. ‑ Não parece ter graça nenhuma. Antes parece um homem triste.

‑ Mas é mesmo o Monty ‑ afirmou o Sr. Tapper. ‑ Tem sempre aquele aspecto fora da pista. Mas faz com que todos chorem a rir durante o espectáculo, pois é um palhaço estupendo! A maioria dos palhaços são como o Monty quando não estão a representar; calados e tristes. O Pisca‑Pisca, esse sim, é mais brincalhão. Ali está ele‑, a puxar o cabelo da Madelon. Não tarda muito que leve uma bofetada, pois é muito implicativo. Ora vejam, eu bem dizia. Levou um puxão de orelhas.

O Pisca‑Pisca aproximou‑se das crianças a chorar alto. ‑ Ela bateu‑me, puxou‑me uma orelha ‑ disse ele. ‑ Mas tem um cabelo tão boniiiiiiiito!

Os pequenos desataram a rir. O Diabrete correu para o palhaço, saltou‑lhe para o ombro e pôs‑se a consolá‑lo com as suas palavras de macaco. O chimpanzé Carlinhos saiu da jaula e foi pôr a sua enorme mão na mão do Pisca‑Pisca. Ambos pensavam que o Pisca‑Pisca chorava de verdade.

‑ Já chega, Pisca‑Pisca ‑ disse o Avô. ‑ Daqui a pouco também os cavalos te vêm consolar!

Amanhã podes fazer o mesmo no espectáculo de estreia, que a casa há‑de vir abaixo com gargalhadas. Agora senta‑te e vem jantar.

‑ Sr. Tapper ‑ disse o Júlio. ‑ Só não vimos no ensaio o tal Sr. Wooh, o Mágico Maravilhoso. Porque não estava lá?

‑ Oh! Ele nunca ensaia ‑ disse o Sr. Tapper. ‑ É uma pessoa que faz vida à parte. Às vezes vem jantar connosco e outras nem aparece. Como amanhã é a estreia, talvez daqui a pouco venha até aqui. Confesso que ele tem um aspecto misterioso que assusta.

‑ Ele é um verdadeiro mágico? ‑ perguntou o Buzina.

- Na verdade, quando se fala com ele, dá ideia que é realmente mágico ‑ disse o Sr. Tapper. ‑ Não há nada que ele não saiba fazer com os números. Peça‑lhe que multiplique quaisquer números com dúzias de algarismos, e ele dirá o resultado num segundo! Não devia estar num circo. Devia antes ser inventor, daqueles que precisam escrever páginas e páginas de algarismos. Então havia de se sentir feliz.

‑ Deve ser um tanto parecido com o meu pai ‑ disse o Buzina. ‑ Esse é mesmo um inventor e às vezes quando eu entro no seu escritório vejo folhas de papel cobertas com milhões de números pequeninos e também desenhos cheios de algarismos.

‑ Muito interessante ‑ disse o avô do Jeremias. ‑ O seu pai e o Sr. Wooh deviam conhecer‑se. Naturalmente falariam sobre números durante todo o dia! Ó minha menina, o que é isso que está a oferecer?

‑ É uma parte do jantar que nós trouxemos ‑ respondeu a Ana. ‑ É servido duma salsicha, Sr. Tapper? Com um pãozinho de leite e um pouco de salada?

‑ Muito obrigado ‑ disse o Sr. Tapper satisfeito. ‑ São muito amáveis. Estou muito satisfeito em tê‑los conhecido. Talvez consigam ensinar boas maneiras ao Jeremias.

‑ Avô, ali vem o Sr. Wooh ‑ exclamou o Jeremias de repente, pondo‑se em pé. Todos olharam. E ali estava o Sr. Wooh, o Mágico Maravilhoso.

Muito alto, ficou parado com um ligeiro sorriso, ar dominador e bastante elegante. Tinha um cabelo forte e muito negro e os seus olhos brilhavam à luz das chamas sob espessas sobrancelhas e usava uma pêra pontiaguda. Tinha uma voz grossa e baixa, com sotaque estrangeiro.

‑ Então esta noite temos visitas? ‑ disse num breve sorriso, mostrando uma fileira de dentes muito brancos. ‑ Também posso juntar‑me a vocês?

‑ Com certeza, Sr. Wooh ‑ disse a Ana encantada por ter oportunidade de conversar com um mágico. ‑ Trouxemos muita comida. Quer uma salsicha com salada?

‑ Com muito prazer ‑ disse o mágico, sentando‑se, com as pernas cruzadas.

‑ Tivemos pena de não o ver durante o ensaio ‑ disse o David. ‑ Gostaria de assistir ao seu número quando faz toda a espécie de contas complicadas com a rapidez de um relâmpago.

‑ O meu pai também sabe fazer o mesmo ‑ disse o Buzina, vaidoso. ‑ Também é maravilhoso com números. É um inventor.

‑ Ah! Inventor? E que espécie de coisas inventa? ‑ perguntou o Sr. Wooh, saboreando a sua salsicha.

Isto foi o suficiente para que o Buzina se pusesse a descrever como o pai era maravilhoso. ‑ Inventa tudo aquilo que lhe pedem ‑ disse o rapaz com orgulho. ‑ Inventou um dispositivo fantástico que conserva os aviões sempre na direcção exacta.

E também inventou uma roda especial e um "trosyman" eléctrico, não sei se ouviu falar nisso, talvez não perceba de que se trata. São coisas demasiado...

‑ Espere aí, meu menino! ‑ exclamou o Sr. Wooh, parecendo muito interessado. ‑ Claro que ouvi falar em todas essas coisas. Não as conheço mas sei mais ou menos de que se

trata. O seu pai deve ser um homem inteligentíssimo, com um cérebro fora de comum. O Buzina estava todo inchado.

‑ Ainda há pouco os jornais falaram sobre os seus inventos ‑ disse ele. ‑ Foram muitos repórteres entrevistar o meu pai e o seu nome apareceu em todos os jornais. O pai ficou furioso. Sabe, ele encontrava‑se a trabalhar na sua ideia de maior alcance e fazia‑lhe confusão interromper o seu trabalho para dar entrevistas. Alguns dos repórteres ainda o espreitaram pela janela e foram ver a sua formidável torre com...

‑ Torre? Ele tem uma torre? ‑ perguntou o Sr. Wooh cheio de surpresa. Antes que o Buzina tivesse tempo de responder, o Júlio apertou‑lhe o braço com força. O pequeno voltou‑se, zangado e viu a expressão severa do Júlio. A Zé também tinha um ar reprovador. O Buzina pôs‑se vermelho. Na verdade muitas vezes lhe tinham dito que nunca devia falar sobre o trabalho do pai, pois era um trabalho muitíssimo secreto.

Fez de conta que se engasgava com um pedacinho de carne, esperando que o Júlio aproveitasse a oportunidade para mudar de assunto. E assim aconteceu, felizmente.

‑ Sr. Wooh, pode fazer algumas habilidades com números? ‑ perguntou ele. ‑ Ouvi dizer que dá a resposta certa num instante a qualquer conta, por mais difícil que seja.

‑ É" verdade ‑ disse o Sr. Wooh. ‑ Pergunte‑me o que quiser. ‑ Não há nada que eu não seja capaz de fazer com números.

‑ Bem, Sr. Wooh, então responda a esta pergunta ‑ gritou o Buzina. ‑ Multiplique sessenta e três mil trezentos e quarenta e dois por oitenta mil novecentos e cinquenta e três. Não é possível responder a isto num instante.

‑ A resposta é: 5 127 724 926 ‑ disse o Sr. Wooh imediatamente, fazendo uma ligeira vénia. ‑ Essa pergunta é muito simples, meu rapaz.

‑ Formidável! ‑ exclamou o Buzina, pasmado. Depois voltou‑se para o Júlio. ‑ Está certo?

O Júlio fazia a conta com papel e lápis. ‑ Sim, está absolutamente certo. É fantástico como conseguiu dar a resposta assim depressa!

‑ Agora deixe‑me ser eu a fazer uma pergunta ‑ disse a Zé. ‑ Quanto dá a multiplicação de 602 491 por 352, Sr. Mágico?

‑ 212 076 832 ‑ respondeu o Sr. Wooh imediatamente. E mais uma vez o Júlio fez a conta no papel. Depois levantou a cabeça sorrindo.

‑ Como consegue dar o resultado de contas complicadíssimas tão depressa, Sr. Wooh?

‑ Magia, simples magia‑ respondeu o Sr. Wooh. ‑ Tentem vocês também. Estou convencido de que o pai deste menino consegue fazer contas tão depressa como eu.

Depois acrescentou com o seu sotaque estrangeiro, virando‑se para o Buzina.

‑ Gostaria muito de conhecer o seu inteligentíssimo pai. Teríamos muito que conversar, já ouvi falar na sua maravilhosa torre. Uma ideia genial. Como vê até os estrangeiros conhecem o trabalho do seu pai. Mas certamente ele receia que lhe roubem os seus segredos...

‑ Ah! Acho que não ‑ disse o Buzina. ‑ A torre é um belíssimo esconderijo e...

O Buzina interrompeu‑se e ficou vermelho outra vez, ao receber um enorme pontapé do Júlio. Como poderia ser tão idiota ao ponto de contar que os segredos do pai estavam escondidos na torre?

O Júlio achou que era tempo de afastar o Buzina do Sr. Wooh e repreendê‑lo severamente por não conseguir estar calado. Olhou para o relógio de pulso e fingiu‑se muito admirado.

‑ Santo Deus, sabem que horas são? Daqui a pouco a Catarina começa a telefonar à polícia à nossa procura, se não voltarmos já para casa. Vamos Buzina, e vocês também. É preciso partirmos. Muitíssimo obrigado, Sr. Tapper, pelo jantar.

‑ Mas ainda nem acabaram! ‑ disse a avó do Jeremias. ‑ Ficaram muito mal jantados.

‑ Já não temos mais apetite ‑ disse David, percebendo a ideia do irmão. ‑ Até amanhã. Muito obrigado por tudo.

‑ Ainda falta a sobremesa, as maçãs e as bananas ‑ disse o Buzina, teimosamente.

‑ Trouxemos a fruta para o Carlinhos ‑ disse o Júlio, faltando em parte à verdade. Apetecia‑lhe esbofetear o Buzina! Que grande palerma! Não compreenderia que o Júlio queria afastá‑lo do manhoso Sr. Wooh? Depois ajustariam contas!

O Buzina viu‑se atacado por todos os lados e sentiu‑se um tanto aflito. O Júlio parecia furioso.

O Sr. Tapper ficou muito surpreendido com a súbita partida dos seus convidados mas o Carlinhos chimpanzé não se importou. As crianças haviam‑lhe deixado um belo presente de fruta.

Saltaram por cima da cerca e o Júlio mantinha o Buzina à sua frente. Logo que ficaram a uma distância que seria impossível o Sr. Wooh ouvi‑los, o Júlio e a Zé começaram a descompor o amigo.

‑ Tu és louco, Buzina? ‑ perguntou o Júlio. ‑ Não percebias que o estrangeiro estava a ver se conseguia saber o mais possível sobre o trabalho do teu pai?

‑ Não estava nada ‑ disse o Buzina quase a chorar. ‑ Vocês são uns exagerados!

‑ Espero nunca fazer o mesmo com os segredos do meu pai! ‑ disse a Zé com um tal ar de reprovação que o Buzina se sentiu aflitíssimo.

‑ Eu não fiz nada disso! ‑ disse ele. ‑ O Sr. Wooh é boa pessoa. Porque hão‑de desconfiar dele?

‑ Não me pareceu nada recomendável ‑ disse o Júlio, parecendo uma pessoa crescida. ‑ E tu a dar à língua, contando‑lhe tudo o que ele desejava saber. Devias ter vergonha. Levarias uma linda descompostura, se o teu pai te tivesse ouvido. Espero que não tenhas dito já coisas irremediáveis. Bem sabes como o teu pai ficou furioso quando apareceu nos jornais uma notícia sobre o seu último invento, e várias pessoas andaram a rondar a casa...

O Buzina não aguentava mais. De repente soltou um soluço que até assustou o Diabrete e desatou a correr para casa, seguido pelo macaquinho, que queria consolar o dono. Que se passava? O Diabrete não percebia e fazia os possíveis por alcançar o pequeno que continuava a chorar. Conseguiu por fim o seu intento, saltou para o ombro do rapazinho, agarrando‑o com os seus braços peludos à volta do pescoço e fazendo uns guinchos engraçados.

‑ Ó Diabrete! ‑ exclamou o Buzina. ‑ Ao menos tu continuas a ser meu amigo. Os outros já não gostam de mim. Não fui um grande idiota, Diabrete? Mas era só para mostrar que tenho uma grande vaidade no meu pai.

O Diabrete cada vez se agarrava mais ao Buzina, triste e confuso. O Buzina parou junto da torre. Havia luz lá no cimo. O pai ainda devia estar a trabalhar. Chegou‑lhe aos ouvidos um abafado barulho de motor. Pensou se seria produzido por aquela espécie de tentáculos mesmo no cimo da torre. De repente a luz lá do alto apagou‑se.

‑ O pai deve ter acabado o trabalho por hoje ‑ pensou o Buzina. ‑ Vai voltar para casa. É melhor eu ir andando. Ele pode desconfiar por que motivo estou aborrecido. Nunca tinha visto o Júlio assim zangado. Mostrou que tinha o maior desprezo por mim!

Foi andando pelo caminho que seguia até casa e entrou pela porta do jardim. Era melhor não ir falar com a Catarina. Acabaria por lhe confessar o que se passara e ela ficaria tão aborrecida com ele como o Júlio. Também não acharia bem que ele não quisesse acampar com os outros, lá fora. Mas estava decidido a subir as escadas e dormir no seu quarto.

‑ Vamos, Diabrete ‑ disse ele com voz triste. ‑ Vamos para a cama e tu podes dormir aos meus pés. Tu nunca te zangaste comigo, pois não? Sempre foste meu amigo.

O Diabrete continuou a confortar o Buzina com a sua curiosa voz, enquanto o pequeno se despia. Depois o Buzina deitou‑se, com o macaquinho aos pés.

‑ Esta noite não consigo adormecer ‑ pensou o Buzina, ainda muito abatido. ‑ Tenho a certeza!

Mas adormeceu logo em seguida, o que realmente foi uma pena. Talvez tivesse assistido a qualquer coisa de extraordinário, se não estivesse a dormir tão profundamente. Pobre Buzina!

 

                     DURANTE A NOITE ESCURA

O Júlio e os outros nem fizeram menção de seguir o Buzina. ‑ Deixem aquele palerma ‑ disse Júlio. ‑ Vamos para dentro de uma das barracas conversar um pouco mais antes de nos despedirmos para dormir.

‑ Tenho pena que o Buzina não durma connosco logo na primeira noite que passamos nas barracas ‑ disse a Ana. ‑ Estou convencida de que não foi de propósito que ele contou todas aquelas coisas.

‑ Isso não é desculpa, Ana ‑ disse a Zé. ‑ Ele de vez em quando é um grande pateta e já é tempo de aprender a deixar de sê‑lo. Vamos para a nossa barraca. Estou cansada. Anda Tim!

Ela bocejou e o David também. Depois foi a vez do Júlio. ‑ Esta coisa dos bocejos, é contagiosa ‑ disse ele. ‑ Olhem que está uma bela noite, quente e sem vento, durmam bem. E não gritem se forem acordadas por uma aranha, pois já as aviso que não vou sair da minha cama por causa duma inofensiva aranha.

‑ Espera até que uma se ponha a correr por cima da tua cara ‑ disse a Ana ‑ e comece a tecer uma teia desde o teu nariz ao teu queixo, para apanhar moscas.

‑ Cala‑te, Ana ‑ pediu a Zé. ‑ Não tenho medo nenhum das aranhas, mas essa tua ideia é horrível. Por favor, Tim, põe‑te alerta e avisa‑me se vires alguma aranha.

Todos se riram. ‑ Então, boa‑noite, meninas ‑ disse o David. ‑ Foi uma pena aquela história do Buzina. Mas no entanto acho que precisa de aprender a calar‑se quando é preciso.

Estavam todos muito cansados e pouco depois as lanternas tinham‑se apagado, ficando o pequeno acampamento no mais completo silêncio. Lá mais adiante a gente do circo também não fazia barulho, embora se visse uma ou outra luz numa barraca. Alguém tocava concertina, mas devagarinho, e era um som agradável de ouvir.

Algumas nuvens escondiam a lua. As últimas luzes do circo também se apagaram. O vento soprava de mansinho, através das árvores e um mocho piava.

Só a Ana continuava acordada. Ouviu o vento e o piar do mocho mas depois adormeceu.

E ninguém ouviu um ligeiro barulho de passos no acampamento do circo. Ninguém viu uma figura sair duma barraca, aproveitando um momento em que a lua estava encoberta pelas nuvens. Era tarde, muito tarde já e os dois acampamentos estavam mergulhados em sonhos.

O Tim também dormia profundamente, mas mesmo a dormir ouviu um ligeiro ruído e logo acordou. Não se mexeu mas arrebitou as orelhas. Rosnou ligeiramente, não chegando a acordar a Zé. Desde que a pessoa que saíra do acampamento do circo não se dirigisse para a barraca da sua dona ou para a dos rapazes, o Tim não tencionava ladrar. Ouviu um barulho esquisito e logo o reconheceu. Era o chimpanzé Carlinhos. Então estava tudo certo. O Tim tornou a adormecer.

O Buzina também dormia profundamente na sua cama, em casa, com o Diabrete aos pés. Julgara que não conseguiria adormecer por se sentir muito desgostoso, mas em breve fechava os olhos. Por isso não ouviu um ligeiro ruído lá fora, um barulhinho mesmo muito ligeiro. Parecia que arranhavam qualquer coisa, como se fosse uma pessoa a raspar as solas numa pedra. Depois houve mais barulho, como vozes em sussurro.

Ninguém deu por nada até que a Catarina acordou com sede e estendeu o braço para agarrar o copo com água que deixara na mesa da cabeceira. Não acendeu a luz e já ia preparar‑se para adormecer outra vez quando o seu ouvido apurado pressentiu qualquer barulho anormal. Sentou‑se na cama. "Não podem ser os pequenos", pensou. "Estão acampados lá fora. Ai meu Deus, espero que não seja algum ladrão, ou alguém que queira roubar os segredos do Sr. Professor. Tem papeis espalhados por toda a parte. Felizmente a maioria estão guardados na torre."

Continuou à escuta por uns momentos e depois voltou a deitar‑se.

Mas em breve ouviu outra vez o ruído e sentou‑se na cama, assustada. "Parece vir da torre", pensou ela, levantando‑se. "Não, a torre estava às escuras", não se via luz em parte alguma". A lua encontrava‑se encoberta por uma nuvem. Ela esperou que a nuvem passasse e a lua iluminasse o pátio, lá em baixo, e a torre. Ouviu mais um ligeiro barulho. Seria o vento? Não, não era. Então que seria? Parecia que alguém falava em voz baixa, no pátio. A Catarina sentia‑se muito assustada e começou a tremer. Era preciso acordar o Professor Hayling! E se fosse alguém à procura dos seus preciosos papéis? Ou da sua maravilhosa invenção?

A lua saiu de trás das nuvens e a Catarina espreitou com cuidado pela janela. Soltou um grito e recuou, continuando a gritar. ‑ Está ali um homem! Socorro! Socorro! Ele está a subir pela parede da torre! Sr. Professor! Sr. PROFESSOR! Venha depressa! É um ladrão! Chame a polícia!

Não se ouviu mais barulho antes que a Catarina tivesse coragem de olhar outra vez pela janela. A lua voltara a desaparecer atrás de outra nuvem, ficando tudo completamente às escuras. Depois seguiu‑se um enorme silêncio. A Catarina saiu do quarto, a correr, gritando: ‑ LADRÕES! LADRÕES! Sr. Professor, VENHA DEPRESSA!

O Professor acordou sobressaltado, saiu da cama e correu para o corredor, quase esbarrando na Catarina. Agarrou‑a convencido de tratar‑se do ladrão e ela ainda gritou mais, julgando que um dos intrusos a agarrara. Começaram a debater‑se e de repente o Professor Hayling percebeu que em vez do ladrão estava agarrado à pobre Catarina!

‑ Catarina! Que anda por aqui a fazer, acordando toda a gente? ‑ perguntou o Professor, acendendo a luz do corredor. ‑ Teve algum pesadelo?

‑ Não, Sr. Professor, não tive ‑ disse a Catarina, arquejante. ‑ Andam ladrões por aqui. Vi um deles a trepar pela parede da torre e devia haver mais lá em baixo. Ouvi falar em voz baixa. Apanhei um enorme susto! Que vamos fazer? O Sr. Professor não acha que é melhor telefonar à polícia?

‑ Bem ‑ disse o Professor, duvidoso. ‑ Tem a certeza, Catarina, que não foi tudo um sonho? Se realmente se trata de ladrões vou telefonar à polícia, mas como sabe ainda devem demorar bastante tempo a chegar aqui, pois a esquadra é longe e...

‑ Então por favor pegue numa lanterna, Sr. Professor, e dê uma volta pela casa ‑ pediu a Catarina. ‑ Bem sabe que os seus papéis preciosos estão na torre. E a sua última invenção também ali está, não é verdade? Claro que eu devo fazer de conta que não sei de nada disso mas quando estou a limpar o pó vejo muita coisa embora não fale a ninguém sobre esse assunto e...

‑ Está bem, Catarina, já sei ‑ interrompeu o Professor, tentando impedir que a Catarina continuasse com o seu discurso.

‑ Mas palavra que agora tudo parece sossegado. Já olhei para o pátio. Não se encontra ali ninguém. E a Catarina sabe tão bem como eu que é impossível entrar na minha torre. Tem três chaves diferentes. Uma para abrir a porta do fundo, outra para a porta do meio e outra para a porta de cima. Catarina, seja sensata. Ninguém se poderia ter servido das minhas três chaves. Olhe, ali estão elas, na minha mesa de cabeceira.

A Catarina começou a acalmar‑se mas ainda não estava satisfeita.

‑ Eu ouvi falar em voz baixa e também vi alguém a subir à torre ‑ teimou para o convencer. ‑ Por favor, Sr. Professor, venha até lá comigo. Não tenho coragem de ir sozinha, mas não conseguirei voltar a adormecer se não verificar que ninguém arrombou a porta da torre ou levou uma escada para subir lá acima.

‑ Está bem, Catarina ‑ disse o Professor, dando um suspiro. ‑ Vou vestir o meu roupão e depois iremos verificar as portas e procurar a tal escada, embora fosse preciso uma escada gigante para alcançar o alto da torre. Ninguém conseguiria trazer uma assim com essas dimensões para o nosso pátio! Está bem, está bem, vamos lá.

E assim, alguns minutos mais tarde, a Catarina e o Professor desciam até ao pátio. Não havia sinais de escada nem de alguém que tivesse subido pela parede. A porta do fundo da torre estava bem fechada à chave.

‑ Abra a porta, Sr. Professor e vá até lá acima para ver se as outras também se encontram bem fechadas ‑ pediu a Catarina.

‑ Parece‑me que isso já é demais ‑ disse o Professor, impaciente. ‑ Tome lá as chaves. Se a porta do meio estiver tão bem fechada como esta, ficará com a certeza de que ninguém entrou no compartimento lá do alto. Despache‑se, Catarina.

E assim a criada, ainda a tremer, introduziu uma chave na porta de baixo, abriu‑a e começou a subir os degraus da escada em espiral que seguia até lá acima. A meio caminho havia outra porta que também se encontrava fechada à chave. Abriu‑a e continuou a subir, começando a sentir‑se um tanto idiota. Ninguém podia passar através de portas fechadas à chave. E finalmente a porta de cima também estava bem fechada! A Catarina soltou um suspiro de alívio e correu pela escada abaixo, fechando a porta do meio e depois a outra, que dava para o pátio. Entregou as chaves ao Professor que começava a sentir um certo frio!

‑ Está tudo bem fechado, Sr. Professor ‑ disse a Catarina. ‑ Mas continuo com a certeza de que alguém andou por aqui. Podia jurar que vi uma pessoa a subir pela torre e ouvi outra a falar em voz baixa, no pátio.

‑ Naturalmente estava tão assustada que se pôs a imaginar coisas ‑ disse o Professor, bocejando. ‑ Deve concordar que a parede é demasiado lisa para alguém poder subir por ela e estou convencido de que teria acordado se um ladrão resolvesse arrastar uma escada até ali.

‑ Garanto‑lhe que sinto muito tê‑lo incomodado, Sr. Professor. Ainda bem que não acordámos o menino Buzina, embora me surpreenda que o Diabrete não tenha dado por nada e não aparecesse cá em baixo!

‑ Mas o Diabrete não foi com o Buzina acampar no terreno aqui atrás? ‑ perguntou o Professor, surpreendido.

‑ Não, Sr. Professor. O menino e o macaco voltaram para casa. Encontrei‑os na cama, mas os outros ficaram no acampamento ‑ disse a Catarina. ‑ Talvez o menino Buzina se tenha zangado com eles. É esquisito que o Diabrete não tenha aparecido cá em baixo para ver o que se passava. Deve ter‑nos ouvido!

‑ O Diabrete é muito esperto, mas não o suficiente para conseguir abrir a porta do quarto do Buzina ‑ disse o Professor voltando a bocejar. ‑ Boa‑noite, Catarina. Não se preocupe. Amanhã já se há‑de sentir mais calma.

O Professor foi para o seu quarto, cheio de sono. Olhou pela janela para a torre do pátio e sorriu. Pobre Catarina! Imaginara uma porção de coisas, como se alguém conseguisse entrar no quarto da torre sem uma escada. E COMO seria possível uma escada compridíssima ser arrastada para o pátio, sem que a vissem ou ouvissem? O Professor deu mais um bocejo e deitou‑se.

Mas alguém estivera realmente no quarto da torre! Alguém muito esperto e silencioso. Que grande comoção teve o Professor na manhã seguinte, quando atravessou o pátio, abriu a porta do meio, continuou a subir a escada e finalmente abriu a porta lá do alto.

Ficou ali parado, horrorizado. Todo o compartimento parecia de pernas para o ar! Os seus papéis estavam espalhados por toda a parte. Abaixou‑se logo para ver se faltavam alguns. Sim, faltava uma porção! Mas parecia que tinham sido levados ao acaso, umas páginas daqui, outras de acolá, correspondendo a diferentes assuntos. Também faltavam algumas cartas que escrevera e deixara na secretária para serem deitadas no correio. Havia tinta espalhada por toda a parte e o relógio que sempre se encontrava em cima do fogão de pedra, também desaparecera. Afinal a Catarina tinha razão. Alguém entrara ali na noite anterior. Um ladrão que parecia poder passar através de três portas fechadas à chave ou então subira uma escada compridíssima que fora encostada à janela sem ninguém dar por isso e desaparecera tal como viera!

‑ Vou telefonar à polícia ‑ pensou o Professor Hayling. ‑ Mas é realmente um grande mistério. Gostava de saber se o Buzina não deu por nada, durante a noite. Se assim não fosse, teria ido logo chamar‑me. É um mistério. Um verdadeiro e extraordinário MISTÉRIO!

 

                     UM GRANDE CHOQUE PARA O BUZINA

O Buzina ficou horrorizado quando na manhã seguinte a Catarina lhe contou o que se passara.

‑ O seu pai está num estado deplorável ‑ contou ela. ‑ Desceu logo de manhã pois queria ir acabar um trabalho, lá no alto da torre. Logo que abriu a porta viu todo o compartimento na maior confusão; alguns dos seus papéis preciosos desapareceram e...

‑ CATARINA! Que horror! ‑ exclamou o Buzina. ‑ O pai guardava ali os seus papéis mais importantes, com os cálculos para aquele novo aparelho eléctrico. É uma coisa formidável para...

‑ Não deve falar sobre os trabalhos do seu pai, nem mesmo comigo ‑ ralhou a Catarina. ‑ Naturalmente falou demais e foi por isso que alguém aqui esteve a noite passada!

O Buzina de repente sentiu‑se aflitíssimo. Teria sido por causa de alguma coisa que ele estupidamente dissera em público? Talvez no autocarro! Ou no acampamento do circo. O que iriam dizer os outros, sobretudo o Júlio, quando soubesse que alguém ali estivera durante a noite a roubar papéis preciosos, contendo números e esquemas respeitantes a um dos inventos do seu pai?

O Júlio diria com certeza que era culpa do Buzina

por não saber estar calado. Naturalmente o caso viria nos jornais e montanhas de pessoas voltariam a aparecer por ali, olhando, comentando e soltando exclamações de admiração perante a curiosa torre.

Vestiu‑se depressa e correu lá para baixo. A Catarina contara‑lhe que ouvira uns barulhos durante a noite, no pátio, e vira alguém subir pela parede da torre. ‑ O seu pai diz que não é possível terem trazido uma escada enorme para o pátio ‑ disse ela. ‑ Pelo menos sem nós darmos por isso quando estivessem a arrastá‑la. Mas talvez fosse daquelas escadas que aumentam de tamanho, como a dos bombeiros.

‑ Sim. Como aquela que usa o limpa‑janelas ‑ disse o Buzina. ‑ Achas que foi ele?

‑ Não. É um homem muito honesto ‑ disse a Catarina. ‑ Já o conheço há mais de vinte anos. Por isso ponha essa ideia de parte. Mas na verdade a escada podia ser do mesmo tipo. Logo que acabe de lavar a loiça, vamos ao pátio pois talvez possamos descobrir as marcas da escada ao ter sido arrastada por ali. No entanto devo dizer‑lhe que o barulho que eu ouvi não era nada nesse género. Ouvi vozes muito baixas e uma espécie de "raspadela".

‑ Isso podia ter sido a escada a ser arrastada ‑ lembrou o Buzina. ‑ Olha para o Diabrete. Está a ouvir a conversa como se percebesse tudo. Diabrete, porque não me chamaste quando tudo isto se passou? Geralmente costumas acordar‑me quando ouves qualquer barulho estranho ou acontece qualquer coisa fora do habitual..

O Diabrete saltou para os braços do Buzina. Não gostava de ver o seu dono preocupado. Percebia pela voz do rapaz que qualquer coisa o afligia. Por isso soltou uns guinchos muito engraçados, esfregando o seu focinhito no queixo do dono.

‑ É melhor ir falar com o seu pai ‑ aconselhou a Catarina. ‑ Talvez consiga animá‑lo. Está na verdade preocupadissimo. Continua no quarto da torre, tentando ordenar os papeis. Deixaram‑nos espalhados por toda a parte.

O Buzina pôs‑se em pé para ir ter com o pai e ficou admirado por sentir as pernas a tremer. E se o pai lhe perguntasse se ele falara sobre o trabalho que andava a fazer? Santo Deus, gabara‑se de coisas a esse respeito ainda na noite anterior! As pernas do Buzina tremiam cada vez mais!

Mas felizmente o pai estava demasiado aflito com o estado em que ficara o compartimento da torre e com os papéis que faltavam, para se preocupar com qualquer coisa que o Buzina tivesse dito ou feito. Continuava lá em cima, tentando descobrir quais tinham sido os papéis roubados.

‑ Buzina ‑ disse ele, quando o pequeno apareceu lá em cima. ‑ Dá‑me aqui uma ajuda. O ladrão que cá esteve deve ter deitado todos os papéis para o chão e parece que felizmente não reparou que muitos deles ficaram por baixo da mesa. Por isso duvido que só os papeis que levou sirvam para alguma coisa. É preciso ser um verdadeiro cientista para os compreender, faltando aqueles que aqui ficaram.

‑ Então acha que voltará à procura dos outros? ‑ perguntou o Buzina.

‑ Talvez ‑ disse o pai. ‑ Mas vou escondê‑los muito bem. Lembras‑te de algum bom esconderijo?

‑ É melhor não ser o pai a escondê‑los ‑ aconselhou o Buzina. ‑ A não ser que me diga onde vai pô‑los. Bem sabe como se esquece dessas coisas. Se depois não se lembrar onde meteu essas folhas, não poderá prosseguir com o seu invento. Tem alguma cópia das folhas roubadas, ou dos cálculos,ou dos esquemas?

‑ Não. Mas estão todos na minha cabeça como se estivessem escritos num papel ‑ disse o pai. ‑ Ainda me levará algum tempo voltar a escrevê‑los, mas isso é possível, embora me faça um grande transtorno. Especialmente porque tenho uma data fixa para entregar este trabalho. Agora vai‑te embora, Buzina, por favor. Tenho muito que trabalhar.

O Buzina desceu a escada em espiral. Era preciso que o pai guardasse os tais papéis com muito cuidado, num esconderijo realmente seguro. ‑ Espero que não faça o mesmo que aconteceu com o último monte de papeis que quis esconder ‑ pensou o pequeno. ‑ Meteu‑os dentro da chaminé e iam ardendo todos, porque a Catarina resolveu acender o lume no dia seguinte, pois arrefecera o tempo. Felizmente os papéis caíram quando estava a arranjar a lenha e ela salvou‑os antes que se queimassem! Porque será que as pessoas muito inteligentes, como o meu pai, são tão distraídas quando se trata de coisas vulgares? Até aposto que desta vez ou esconde os papeis e esquece‑se de onde os meteu ou então guarda‑os num esconderijo tão fácil que qualquer pessoa os poderá encontrar.

O pequeno foi falar com a Catarina.

‑ O pai diz que o ladrão só levou uma parte dos papéis, ‑ contou. ‑ E não podem servir de muito os que roubou se não tiver os outros. Quando o ladrão perceber isso, é capaz de aqui voltar para ver se rouba os restantes.

‑ Então que experimente! ‑ disse a Catarina. ‑ Posso escondê‑los num sítio onde ninguém os encontrará, se o seu pai consentir. Não direi a ninguém onde é.

‑ Receio que ele os ponha outra vez na chaminé ou qualquer outro sítio igualmente disparatado ‑ disse o Buzina, parecendo tão aflito que a Catarina também ficou preocupada.

‑ É preciso escondê‑los em qualquer sítio onde ninguém pense procurar. E se o pai encontrar um sítio assim, há‑de esquecer‑se logo em seguida e não será possível encontrá‑los outra vez! Mas um ladrão pode encontrá‑los, pois há‑de saber TODOS os sítios possíveis.

‑ Vamos lá acima ao quarto da torre limpar a tinta entornada e ver se o pai do menino já foi esconder os papeis ‑ disse a Catarina. ‑ Naturalmente fez o disparate de os esconder no próprio quarto onde o ladrão entrou a noite passada! Estou convencida de que subiu por uma escada, entrou pela janela, agarrou em todos os papéis que conseguiu e voltou a sair por onde entrou.

‑ Vamos lá acima ‑ disse o Buzina. ‑ Só espero que o pai já ali não esteja!

‑ Olhe, vai a atravessar o pátio. Repare ‑ disse a Catarina debruçando‑se na janela. ‑ Leva qualquer coisa por baixo do braço.

‑ É o jornal da manhã ‑ disse o Buzina.

- Tenho a impressão que vai lê‑lo. Espero que toda esta história não venha nos jornais. Apareceria aqui imensa gente. Lembras‑te como foi horrível da outra vez, Catarina? Certas pessoas até pisaram as flores dos canteiros.

‑ Há pessoas que gostam de meter o nariz em tudo ‑ disse a Catarina. ‑ Devo confessar‑lhe que deitei um jarro de água pela janela que acertou nalgumas dessas pessoas, por acaso, claro. Como podia adivinhar que elas estavam mesmo ali por baixo a olhar para todos os lados?

O Buzina riu‑se. ‑ Gostava de ter assistido a essa cena ‑ disse ele. ‑ Ó Catarina, se voltarem a aparecer pessoas para bisbilhotar o que aqui se passa, vamos atirar‑lhes água à cabeça. E agora não percamos mais tempo. Temos que aproveitar ir ao quarto da torre enquanto o pai lê o jornal. Despacha‑te!

Em breve se encontravam no pátio e quando o atravessaram a Catarina observou o chão.

‑ Que procuras? ‑ perguntou o Buzina.

‑ Queria ver se descubro algumas marcas duma escada que deve ter sido arrastada ‑ disse a Catarina. ‑ Eu realmente ouvi um barulho mas não me pareceu uma escada a raspar no chão.

Ambos observaram o chão do pátio atentamente mas não descobriram nada que indicasse ter ali estado uma escada.

‑ É esquisito ‑ disse a Catarina. ‑ Não percebo o que seria aquele barulho.

A Catarina olhou para a parede alta da torre.

Era feita de pedras de todas as formas e feitios.

‑ Talvez um gato consiga subir por ali acima ‑ disse a Catarina, duvidosa ‑, Mas um homem é impossível. Acabaria por cair. E seria perigosíssimo; mesmo um gato acho que era difícil chegar muito longe.

‑ Contudo tu afirmas ter visto alguém a subir pela parede da torre ‑ disse o Buzina. ‑ Naturalmente era apenas a sombra de uma nuvem. Olha para a parede. Achas possível que alguém tentasse subir por aqui acima, durante a noite?

A Catarina olhou para a torre.

‑ Não, realmente não é possível. Tem razão. Só um louco tentaria uma coisa assim. Devo ter visto mal quando olhei cá para fora mas palavra que julguei ver uma sombra a subir por aqui. No entanto é fácil uma pessoa enganar‑se durante a noite. Mas também não acredito que aqui tivessem posto uma escada. Teria deixado marcas no pátio. Vamos depressa até lá acima, não vá o pai do menino voltar.

Subiram a escada em espiral, conseguiram abrir todas as portas e portanto, se não estavam fechadas à chave, era evidente que o Professor não se demoraria.

‑ De qualquer maneira o Sr. Professor não devia deixar as portas sem serem fechadas à chave nem por um minuto! ‑ disse a Catarina. ‑ Ora aqui estamos. Há salpicos de tinta por toda a parte.

E aquele relogiozinho tão bonito que andava sempre certo, desapareceu. Não percebo porque havia o ladrão de o levar. ‑ Como era pequeno, meteu‑o na algibeira ‑ disse o Buzina ‑, Se era suficientemente desonesto para roubar os papéis do meu pai, com certeza também não fez cerimónias com um relógio amoroso como era aquele! Naturalmente também levou mais objectos.

Aproximaram ‑ se da secretária e a Catarina soltou uma exclamação. ‑ OH! Aqueles papéis não fazem parte do último trabalho do seu pai? Estão todos cobertos de números. O Buzina examinou‑os com atenção. ‑ Sim, parece‑me que são dos últimos. Mostrou‑mos no outro dia. Lembro‑me deste esquema. Catarina, vê lá que imprevidência deixá‑los aqui em cima da secretária com a porta sem ser fechada à chave, quando ainda a noite passada aqui esteve um ladrão! Há pouco disse‑me que os ia guardar com todo o cuidado, pois se o ladrão os encontrasse iria juntá‑los aos outros que só por si não tinham grande interesse. E agora esqueceu‑se de os esconder!

‑ Oiça, menino, vamos nós guardá‑los ‑ propôs a Catarina. ‑ E não lhe dizemos onde os pomos. Os ladrões virão outra vez procurá‑los, isso é certo. Vamos pensar num sítio onde fiquem em absoluta segurança.

‑ Já sei! ‑ exclamou o Buzina. ‑ Podemos escondê‑los na ilha Kirrin. Em qualquer sítio do castelo em ruínas. Ninguém poderá adivinhar que ali estão.

‑ É uma boa ideia ‑ aprovou a Catarina. ‑ Ficarei satisfeita ao pensar que já não se encontram aqui em casa.

‑ Aqui os tem ‑ acrescentou ela, juntando os papéis e entregando‑os ao Buzina. ‑ É melhor prevenir o menino Júlio e os outros e irem á ilha Kirrin o mais depressa possível. Que alívio saber os papéis longe daqui! Só depois poderei dormir descansada.

O Buzina meteu os papéis preciosos dentro do casaco e desceu a escada em espiral a toda a velocidade, acompanhado pela Catarina. Viram o Professor a pouca distância e ele fez‑lhes um sinal. ‑ Buzina! Catarina! já sei o que me vão perguntar. Querem saber onde escondi os papéis. Venham cá que eu digo‑lhes um segredo.

Muito atrapalhados, o pequeno e a criada aproximaram‑se do Professor Hayling.

‑ Embrulhei‑os muito bem ‑ disse ele em voz baixa ‑ e fui escondê‑los no depósito de carvão, mesmo lá no fundo, por baixo dos sacos.

‑ E as suas calças ficaram em bonito estado, senhor Professor ‑ disse a Catarina desolada. ‑ E também se deve ter sentado em cima do carvão pois está todo sujo. Deixe‑me dar‑lhe uma escovadela, mas tem que ser cá fora senão a casa fica toda preta de pó de carvão.

‑ Não achas que é um belo esconderijo,Catarina? ‑ perguntou o Professor. ‑ Naturalmente julgavas que eu me tinha esquecido de escondê‑los!

O Professor afastou‑se muito satisfeito consigo próprio.

A Catarina desatou a rir. ‑ Pobre Professor! Deve lá ter escondido todos os seus jornais e nem um dos tais papéis importantes. E agora o que lhe diremos quando pedir o diário da manhã? Menino Buzina, vá até à tabacaria buscar mais jornais. Ninguém calcula o que é viver em casa de um homem assim inteligente. Só faltava mais esta!

 

                     UMA PORÇÃO DE PROJECTOS

DEPOIS do Buzina ter ido buscar novo fornecimento de jornais, resolveu ir contar aos outros tudo o que se passara naquela manhã. Ainda estava sentido com o Júlio por ele o ter repreendido mas estava ansioso por contar aos outros, o roubo e a sua formidável ideia de esconder os restantes papéis do pai na Ilha Kirrin.

Por isso lá foi ele, com o Diabrete ao ombro, agarrado ao seu cabelo. Os Cinco estavam no acampamento. Tinham acabado de voltar das compras e o Buzina olhou com apetite para as várias latas de conservas e compotas, pão fresco, tomates, maçãs e bananas que haviam trazido das lojas da vila.

O Júlio ficou satisfeito ao verificar que o Buzina estava bem disposto. Receou que o pequeno se mostrasse de mau‑humor, o que seria uma maçada para todos.

‑ Trago grandes novidades ‑ disse o Buzina. E começou logo a contar os acontecimentos da noite anterior terminando com a história do pai ter ido esconder os jornais da manhã por baixo do carvão, no fundo do depósito, convencido de que se tratava das suas preciosas folhas cheias de cálculos.

‑ Mas porque não o preveniste que escondera os jornais em vez dos papéis? ‑ perguntou a Zé.

Por isso lá foi ele com o Diabrete ao ombro, agarrado ao seu cabelo

Porque se ele o percebesse iria logo esconder os valiosos papéis em qualquer parte e nunca mais se lembraria onde os pusera. Até se poderiam perder para sempre! ‑ exclamou o Buzina.

‑ Então que lhes vais fazer? ‑ perguntou o David.

‑ Acho que tive uma ideia genial ‑ disse o Buzina, com uma certa falta de modéstia. ‑ Pensei que deveríamos ser nós a escondê‑los.

‑ E onde fica esse maravilhoso esconderijo? ‑ perguntou David.

‑ Na ilha Kirrin! ‑ respondeu o Buzina, triunfante. ‑ Quem se lembrará de os procurar ali? Mas como todos nós ficaremos a conhecer o esconderijo, não é possível esquecê‑lo. Os papéis estarão em absoluta segurança. O pai poderá continuar o seu trabalho sem mais preocupações.

‑ Contaste‑lhe tudo isso? ‑ perguntou o Júlio.

‑ Não ‑ disse o Buzina. ‑ A Catarina acha melhor que o segredo fique só entre nós. Ela está convencida de que os ladrões tentarão entrar outra vez lá em casa para se apoderarem dos papéis que faltam.

‑ Ah! Então proponho escrevermos nós próprios umas folhas ‑ disse David. ‑ Cheias de lindos esquemas e todo o género de contas complicadas, com imensos números. Acho que sou capaz de fazer um bom trabalho. Depois vamos pô‑los no quarto da torre para que os ladrões os roubem convencidos de tratar‑se dos cálculos que faltam! ‑ E todos se riram.

‑ Palerma ‑ exclamou o Júlio. ‑ No entanto não é má ideia deixar qualquer coisa que não tenha valor absolutamente nenhum para os ladrões roubarem, enquanto escondermos os verdadeiros papéis num sítio em que nunca lhes passará pela cabeça procurá‑los na ilha Kirrin.

‑ Quando vamos lá? ‑ perguntou a Zé. ‑ Há imenso tempo que não visito a minha ilha. E vejam lá vocês que a ultima vez que ali fui no meu barco a remos, tinham estado na ilha excursionistas deixando coisas espalhadas por toda a parte. Cartuchos, vidros partidos, folhas de alface, cascas de laranja, etc.!

‑ Porque haverá pessoas assim? ‑ disse a Ana.

‑ Detestam sentar‑se num sítio em que outras pessoas tenham deixado tudo sujo e com mau aspecto, mas não se ralam nada de fazer o mesmo.

‑ Naturalmente também procedem da mesma maneira nas suas casas ‑ disse o David.

‑ Tudo desarrumado e pouco limpo; e no entanto demora tão pouco tempo deixar decente o sítio onde se fez um piquenique, para que as próximas pessoas encontrem tudo com bom aspecto!

‑ Que fizeste a todas essas coisas que os excursionistas deixaram na ilhaKirrin? ‑ perguntou o Júlio.

‑ Enterrei‑as na areia, bem fundo, numa das praias ‑ contou a Zé. ‑ Onde a maré não torne a levá‑las para cima. E cada mão‑cheia de areia que atirava ia dizendo: ‑ Diabos os levem, turistas mal‑educados. Da próxima vez que forem a qualquer parte hão‑de encontrar os restos deixados por outras pessoas, para ver se gostam! Diabos os levem!

A Zé parecia tão furiosa que todos se desataram a rir. O Tim estava sentado com a língua de fora, como se também risse, e o Diabrete fez um barulho que parecia uma gargalhada.

‑ Ao menos a Zé diz sempre o que pensa

‑ comentou o Júlio.

Sentaram‑se a conversar sobre os seus planos.

‑ O David e o Júlio podiam começar já a fazer os papéis falsos, cheios de números - disse a Zé. ‑ Acho que eles dois têm mais jeito para esse género de coisas do que qualquer de nós. Depois o Buzina pode ir deixá‑los em qualquer sítio no quarto da torre para o ladrão os levar se ali for, e até aposto que o fará. Pelo menos a noite passada fê‑lo com a maior facilidade.

‑ E a Zé pode levar as verdadeiras folhas com os cálculos do pai do Buzina, para a ilha Kirrin ‑ disse a Ana.

‑ Mas só depois de escurecer ‑ disse o David. ‑ Se alguém estiver de atalaia e vir a Zé meter‑se no barco para a ilha, pode calcular que ela leva qualquer coisa importante para esconder. Também é natural que vigiem o pai da Zé. A propósito, onde estão os tais papéis? Não me digas que os deixaste em casa, Buzina!

‑ Não, pois até me parecia que por toda a parte havia alguém a espreitar‑me, na esperança de que eu saísse e lá deixasse as folhas. Por isso trouxe‑as por baixo da minha camisola. Estão aqui! ‑ disse o Buzina, batendo no peito.

‑ Ah! Por isso é que pareces tão gordo, como se tivesses comido demais ao pequeno almoço‑ observou a Zé. ‑ Agora quais deverão ser os nossos planos?

‑ Acho que devemos começar imediatamente a fazer os papéis falsos, enchendo‑os de números e gráficos ‑ disse o Júlio. ‑ Podem os ladrões aparecer mais cedo do que nós pensamos. Acho melhor irmos para tua casa tratar disso.

Se vamos para casa da Zé, o tio Alberto pode descobrir‑nos e perguntar o que estamos a fazer. E de qualquer maneira devem mandar‑nos embora por causa da escarlatina.

‑ E o meu pai? ‑ lembrou o Buzina. ‑ Também pode descobrir‑nos. No entanto não lhe deve agradar especialmente ter que nos aturar esta semana, pois anda ocupadíssimo com a sua nova invenção. É uma coisa muito importante e...

‑ Buzina! Não recomeces a dar com a lingua nos dentes ‑ disse o Júlio. ‑ Parece‑me melhor ir para a tua casa.

‑ E se eu fosse lá buscar a prancha de desenho do meu pai e uma porção de folhas de papel, as canetas e tinta especial para mapas, e fizéssemos tudo aqui na barraca? ‑ propôs o Buzina. ‑ Eu nunca sei quando o meu pai resolve entrar no meu quarto. E se ele nos apanha a todos ali reunidos há‑de perguntar o que estamos a fazer. Nós podemos olhar com atenção para os papéis que eu tenho aqui escondidos por baixo da camisola e fazer uma porção deles no mesmo género, escrevendo números muito diferentes, claro está. E também podemos acrescentar um esquema imaginado por nós.

‑ Está bem ‑ concordou o Júlio, percebendo que o Buzina estava realmente muito preocupado com a ideia de que o pai os pudesse descobrir a fazer os papeis falsos. ‑ Vai então buscar a prancha de desenho, e todas as outras coisas que nos serão necessárias. Vai com ele, Zé.

‑ Está bem ‑ disse a Zé e lá foram os dois até casa. O Buzina olhava em redor para ver se o pai não se encontrava por ali. Descobriu uma grande prancha de desenho, umas folhas de papel iguais àquelas que o pai costumava usar nos seus trabalhos e um livro de esquemas esquisitos mas fáceis de copiar. Também levou tinta da China, as respectivas canetas, mata‑borrão e nem se esqueceu dos punéses para fixar as folhas de papel na prancheta. A Zé pegou em metade das coisas,conservando‑se sempre alerta, não fosse aparecer o Professor Hayling.

‑ Olha, parece‑me que ele está a dormir. Não ouves? ‑ disse o Buzina. E na verdade a Zé ouviu ressonar num quarto não muito distante.

Atravessaram o jardim e saltaram por cima da cerca.

‑ Óptimo! ‑ disse Júlio ao recebê‑los. ‑ Agora podemos fazer uns lindos esquemas que não tenham nenhum significado e números que também não tenham sentido algum.

‑ É melhor irmos para dentro da barraca ‑ disse a Zé. ‑ Se alguma pessoa do circo aqui vier pode ficar intrigada com o que estamos a fazer.

Por isso os pequenos foram todos para a barraca dos rapazes, que era a maior, acompanhados pelo Tim e o Diabrete. O Júlio em breve começou a trabalhar embora tivesse uma certa falta de espaço.

Estavam todos a observá‑lo com admiração enquanto ele escrevia grandes filas de números sem nenhum significado, quando o Tim se pôs a rosnar, ficando com o pêlo do pescoço eriçado.

O Júlio voltou logo a prancheta para baixo, sentando‑se sobre ela. A lona da porta da barraca foi afastada para o lado e apareceu o focinho simpático do chimpanzé Carlinhos.

‑ Ah! És tu, Carlinhos! ‑ exclamou o Júlio. ‑ Então como estás?

O chimpanzé parecia sorrir e estendeu a mão. O Júlio apertou‑a, muito sério e o chimpanzé foi andando pela barraca apertando a mão a cada um dos pequenos.

‑ Senta‑te Carlinhos ‑ disse David. ‑ Calculo que tenhas saído da tua jaula pelo processo habitual e tenhas aqui vindo para saber o que é o nosso almoço. Deves ficar satisfeito se te disser que chega para ti.

O Carlinhos conseguiu sentar‑se entre o Tim e o Diabrete e pôs‑se a ver com muito interesse os desenhos que o Júlio fazia, a tinta da China.

‑ Até aposto que este chimpanzé seria capaz de desenhar, se lhe déssemos uma folha de papel e uma caneta ‑ disse a Ana.

Assim, para o manterem sossegado, deram‑lhe um lápis e um livrinho de apontamentos. Ele começou logo a escrevinhar muito satisfeito.

‑ Reparem, está a fazer uma quantidade de números esquisitos ‑ disse a Ana.

O chimpanzé Carlitos correu para o cão, apoiando‑se nas quatro pata.s

‑ Se não se acautela, entrego‑lhe todo este trabalho ‑ disse o Júlio, rindo. ‑ Zé, agora falemos sobre os nossos planos para esta noite. Se vais à Ilha Kirrin esconder aqueles papéis, deves levar o Tim contigo.

‑ Com certeza ‑ disse a Zé. ‑ Não deve estar viva alma na ilha mas levo o Tim para me fazer companhia. Tenciono levar os papéis directamente para a ilha e escondê‑los bem.

‑ Onde? ‑ perguntou o Júlio.

‑ Isso decido quando lá chegar ‑ disse a Zé. ‑ Será num bom sítio. Conheço a minha ilha de uma ponta à outra. E ali ficarão em segurança todos os papéis, até que passe o perigo. Deixaremos o Professor Hayling julgar que os escondeu em qualquer parte e se esqueceu de onde foi. Vai ser divertido remar durante a noite até à ilha, acompanhada pelo Tim.

‑ Os ladrões podem contentar‑se com as minhas folhas e os meus números se voltarem ao compartimento da torre ‑ disse o Júlio. ‑ Não parecem mesmo a sério?

E na verdade pareciam! Todos olharam com admiração para aquelas extensas filas de algarismos e uma quantidade de esquemas.

De repente o Tim deu uma rosnadela. O Carlinhos fez‑lhe uma festa, como se quisesse dizer: ‑ "Que se passa, amigo?" ‑ Mas o Tim não lhe ligou importância e continuou a rosnar. De repente saiu como uma flecha da barraca e ouviram um grito vindo lá de fora.

A Zé virou‑se logo para a abertura da barraca. Estava ali perto o Sr. Wooh, muito assustado, pois o Tim rosnava ameaçadoramente junto às suas pernas. O chimpanzé Carlinhos correu para o cão, apoiando‑se nas quatro patas, zangado por o Tim rosnar ao seu amigo e mostrando por isso os dentes ao belo cão.

A Zé ficou aterrada.

‑ Não os deixe brigar! ‑ gritou ela, receando que o Tim não levasse a melhor com o chimpanzé. O Carlinhos dava grandes pulos, duma maneira pouco tranquilizadora.

‑ Carlinhos! ‑ chamou o Sr. Wooh, na sua voz grossa. ‑ Carlinhos!

E o Carlinhos parou logo de pular e de guinchar e saltando para trás do Sr. Wooh agarrou‑se‑lhe ao pescoço.

O mágico cumprimentou as crianças.

‑ Espero não os ter vindo incomodar, meus amigos ‑ disse ele, com o seu sotaque estrangeiro. ‑ Agora vou dar um pequeno passeio com o meu amigo Carlinhos. Espero que apareçam no nosso espectáculo.

‑ É natural ‑ disse o David reparando que o mágico lançara um rápido e interessado olhar aos esquemas e desenhos do Júlio. Este tapara‑os imediatamente pois não queria que o Sr. Wooh os visse. Qualquer coisa lhe parecera estranha no olhar do mágico. O Sr. Wooh estaria relacionado com o desaparecimento das folhas na noite anterior? Afinal ele também era perito em números e devia perceber o sentido dos algarismos e esquemas do Professor Hayling.

Não ligara grande importância àquilo que o Júlio estava a fazer, pois tratava‑se de números completamente ao acaso, só para enganar quem estivesse interessado nos verdadeiros!

‑ Interrompi‑os? Peço‑lhes desculpa! ‑ disse o Sr. Wooh, fazendo uma vénia e afastando‑se do grupo. O chimpanzé Carlinhos seguiu‑o esperando que o Diabrete também os acompanhasse, para brincarem um com o outro. Mas o Diabrete não quis ir, pois não simpatizava com o Sr. Wooh.

‑ Não me lembrei que alguém do circo se podia aproximar silenciosamente e ouvir o que dizíamos dentro da barraca ‑ disse o Júlio, preocupado. ‑ Não gostei da expressão do olhar do mágico. David, achas que ele ouviu alguma coisa do que estávamos a dizer?

‑ Isso teria importância? ‑ perguntou o David.

‑ Talvez ‑ respondeu o Júlio. ‑ Achas que ele terá ouvido a Zé explicar que tencionava ir à ilha Kirrin esconder os papéis, aquelas valiosas folhas que os ladrões não descobriram na noite passada no quarto da torre? Não consentiria que a Zé fosse à ilha, se me convencesse de que o Sr. Wooh a ouvira. Na verdade acho que de qualquer maneira é melhor ela não ir. Pode ser perigoso.

‑ Não sejas palerma, Júlio ‑ disse a Zé. ‑ Eu vou e o Tim há‑de acompanhar‑me.

‑ Ouviste o que eu disse, Zé? Não vais!

‑ ordenou o Júlio ‑ Serei eu quem leva os papéis e os vai esconder na ilha.. Só irei a meio da noite, muito tarde. Vou até Kirrin de bicicleta e depois meto‑me no teu barco, Zé, para remar até à ilha.

‑ Está bem, Júlio ‑ disse a Zé, surpreendendo todos com a sua docilidade. ‑ Não acham que agora podemos ir comer qualquer coisa? Basta abrirmos umas latas e tirar do cesto as alfaces e os tomates. As bebidas estão ali naquele canto, por ser mais fresco.

‑ Está bem ‑ disse o Júlio, satisfeito por a Zé ter cedido com tanta facilidade. Ele iria no barco da Zé até à ilha onde procuraria um bom esconderijo. Se o caso se tornasse perigoso, ele enfrentaria as circunstâncias melhor do que a Zé. Porque apesar de tudo ela era apenas uma menina.

Sim, na realidade, Júlio, tens razão. Mas como já muitas vezes repetiste ela é uma menina tão valente como qualquer rapaz. Por isso não estejas muito convencido dos teus projectos para esta noite!

 

                     A PROCURA DE UMA ESCADA

OS quatro ficaram a olhar para o Sr. Wooh e o chimpanzé, enquanto estes se afastavam. Viram o Carlinhos pegar em dois baldes vazios, cada qual em sua mão e correr para a direita.

‑ Onde irá? ‑ perguntou a Ana, admirada por o ver correndo daquela maneira.

‑ Deve ir buscar água ao regato para entregar à pessoa encarregada de lavar os cavalos ‑ disse a Zé. Tinha razão. O Carlinhos voltou em breve, desta vez mais devagar, trazendo dois baldes cheios de água.

‑ Na verdade o chimpanzé é muito útil! ‑ disse o David. ‑ Olha, ali vem a Madelon, a que ensina aqueles lindos cavalos que ontem vimos na pista! Está hoje vestida com umas calças velhas por isso parece muito diferente. Reparem, o Carlinhos foi pôr os baldes com água junto da Madelon. Naturalmente cada vez que ela precisa de mais água manda o chimpanzé buscá‑la ao regato.

‑ Gosto do Carlinhos ‑ disse a Ana. ‑ Ao princípio assustou‑me mas agora acho‑o muito simpático. Preferia que não pertencesse ao Sr. Wooh.

O Júlio pôs‑se a observar o papel onde escrevera com todo o cuidado várias filas de pequenos algarismos e desenhara muitos esquemas inventados.

‑ Tenho a impressão de que isto agora já não serve para nada ‑ disse ele. ‑ Acho que o Sr. Wooh mal olhou para estes papeis percebeu que era tudo fingido. No entanto desmascarou‑se ligeiramente. Vi‑o olhar para as folhas com uma certa admiração, como se há pouco tempo tivesse visto qualquer coisa parecida.

‑ E assim deve ter acontecido se aquele malandro mandou alguém roubar os papéis do meu pai ao quarto da torre! ‑ disse o Buzina. ‑ E se fôssemos dar uma volta pelo acampamento do circo, a ver se descobrimos uma escada que seja suficientemente comprida para chegar ao alto da torre?

‑ Bela ideia! ‑ aprovou o David. ‑ Podemos ir todos, agora mesmo. Esconde a prancheta de desenho e os papéis com os esquemas por baixo da cerca. Parece‑me que já nem vale a pena acabá‑los.

Os Cinco, com o Buzina e o Diabrete dirigiram‑se para a parte do terreno onde a gente do circo estava acampada. O David viu uma escada estendida na relva e fez um sinal ao irmão.

‑ Júlio! Olha para ali! Achas que chegaria ao alto da torre?

O Júlio aproximou‑se. Na verdade era muito comprida, mas seria o suficiente?

Não, não era. No entanto talvez fosse bom investigar a quem pertencia. Nessa altura apareceu o Homem sem Ossos caminhando normalmente; cumprimentou as crianças com um grande sorriso e depois dobrou as pernas pelos joelhos da forma mais esquisita, torceu a cabeça de maneira a ficar voltada para as costas e depois dobrou os braços ao contrário, ficando com um aspecto estranhíssimo.

‑ Não faça isso ‑ disse a Ana. ‑ É horrível! Porque lhe chamam o Homem sem Ossos? O senhor tem tantos ossos como nós; apenas as suas articulações parecem desconjuntadas!

De repente o Homem sem Ossos pareceu ter perdido todos os seus ossos e caiu no chão como se fosse um montículo. As crianças desataram a rir. Na verdade parecia exactamente que era feito de trapos e não tinha nem um osso...

‑ Consegue subir por uma escada de mão? ‑ perguntou o Júlio.

‑ Claro que consigo! ‑ respondeu o Homem sem Ossos. ‑ E posso subir pela frente, por trás, pelo lado, como quiserem.

‑ Aquela escada é sua? ‑ perguntou o David olhando para a escada que se encontrava sobre a relva.

‑ Às vezes sirvo‑me dela mas acontece o mesmo com todos os outros ‑ disse o Homem sem Ossos, voltando a cabeça completamente para trás de maneira a parecer que tinha o peito nas costas. Era difícil falar com uma pessoa com a cabeça naquela posição. Dum momento para outro em vez de se dirigirem à sua cara parecia falarem com a nuca.

‑ Gostava imenso que estivesse quieto ‑ disse a Ana. ‑ Assim sinto‑me tonta.

‑ Servem‑se daquela escada para porem a bandeira no alto da barraca do circo? ‑ perguntou o David. ‑ Não parece suficientemente comprida.

‑ Tem razão ‑ disse o Homem sem Ossos voltando a cabeça para a frente, com grande alívio de Ana. ‑ Temos outra que está ali, que é muito mais comprida. São precisos três homens para a transportarem porque é pesadíssima, mas como sabem o mastro do centro do circo é muito alto. Não é possível a escada ser transportada só por um homem.

As crianças entreolharam‑se.

Assim tambem a escada mais comprida ficaria de parte. Se eram precisos três homens para a transportarem, a Catarina teria ouvido muito mais barulho na noite anterior.

‑ Existem mais escadas aqui no acampamento?

‑ Não, só essas duas. Mas porque fazem essa pergunta? Tencionam comprar alguma? ‑ perguntou o Homem sem Ossos. ‑ Agora tenho que me ir embora. O patrão deve andar à minha procura.

E lá foi, caminhando duma maneira muito esquisita, parecendo desconjuntar‑se todo.

‑ E os acrobatas! ‑ lembrou o Júlio. ‑ Devem estar muito habituados a subir e a trepar por toda a parte. Talvez um deles conseguisse trepar pela parede da torre.

‑ Não me parece ‑ disse o Buzina. ‑ Estive a examiná‑la com atenção, esta manhã, e embora existam uma espécie de saliências até meio da parede mais para cima é de pedra lisa. ‑ Nenhum acrobata conseguiria arranjar apoio para os pés.

‑ Os palhaços não poderiam arranjar uma maneira? ‑ disse a Zé. ‑ Mas julgo que não, pois não devem saber trepar tão bem como os acrobatas. Acho que afinal o ladrão não deve pertencer à gente do circo. Reparem, o que é aquilo ali no meio do chão, em frente daquela barraca?

Todos foram ver. Parecia um pequeno monte de pele cinzenta. A Zé tocou‑lhe com o sapato. ‑ Oh! Já sei, é a pele do burro!

‑ É isso mesmo! ‑ exclamou o Buzina, encantado e tentou agarrá‑la. Mas era demasiado pesada para a levantar toda do chão.

Num segundo a Zé e o David tinham vestido a pele! O David ficou na cabeça e verificou que conseguia ver perfeitamente o caminho pois o pescoço do burro tinha uns buracos para os olhos da pessoa que estivesse lá dentro e a cabeça era forrada com papéis. A Zé enfiou as pernas do burro e fingia dar coices o que fazia com que o burro parecesse realmente verdadeiro. Os outros riam às gargalhadas. De repente alguém gritou.

‑ Eih! Larguem a pele do burro!

Era o Jeremias. Aproximou‑se a correr, parecendo furioso. Trazia um pau na mão e bateu no lombo do burro, acertando na pobre Zé que soltou um grito.

‑ Pára lá com isso! Olha que me magoaste.

O Buzina olhou furioso para o Jeremias.

‑ Como te atreves a bater‑lhe? ‑ gritou ele. ‑ Bem sabes que o David e a Zé estão dentro da pele do burro. Larga esse pau!

Mas o Jeremias deu outra pancada no burro e a Zé voltou a gritar. O Buzina também gritou e atirou‑se ao Jeremias tentando tirar‑lhe o pau da mão. O rapaz defendeu‑se agarrando o pau com mais força, mas o Buzina atirou‑lhe um grande soco ao peito, que o fez cair desamparado no chão!

‑ Ah! Já te tinha prevenido que um dia te daria um soco! ‑ gritou o Buzina. ‑ Agora levanta‑te e defende‑te.

Vou ensinar‑te o que acontece quando se bate numa menina!

‑ Pára, Buzina! ‑ ordenou o Júlio. ‑ Como podia ele adivinhar que a Zé estava dentro da pele? Desembaracem‑se da pele do burro, vocês dois, grandes palermas, antes que apareça o avô do Jeremias! Tenho a impressão que vem aí!

, O Jeremias levantara‑se e dançava agora à volta do Buzina, com os punhos cerrados. Mas antes que um dos rapazes atingisse o outro, ouviram a voz forte do avô, ‑ ACABEM COM ISSO IMEDIATAMENTE!

O Jeremias pretendeu atingir o Buzina, mas este esquivou‑se e por sua vez não conseguiu atingir o Jeremias. Este então pôs‑se a correr, esbarrando com o avô que logo o segurou.

Entretanto a Zé e o David libertaram‑se da pele de burro, sentindo‑se um tanto envergonhados. O Sr. Tapper sorriu‑lhes, continuando a agarrar o furioso Jeremias.

‑ Se querem continuar com a briga, lutem contra mim e não um contra o outro.

Mas nenhum dos rapazes queria lutar com o Sr. Tapper. Podia ser velho mas certamente ainda lhes daria algumas bofetadas, que aliás, o Jeremias muito bem conhecia.

Os dois rapazes encararam‑se, parecendo um tanto embaraçados.

‑ Vá, dêem um aperto de mão ‑ disse o Sr. Tapper. ‑ Depressa ou então tambem eu entro na luta!

O Buzina estendeu a mão e simultaneamente o Jeremias fazia o mesmo gesto. Apertaram‑nas, sorrindo.

‑ Agora sim ‑ disse o Sr. Tapper. ‑ Não aconteceu mal nenhum. Ninguém quebrou os ossos. Agora estão quites e não é preciso voltarem a lutar.

‑ Com certeza, avô ‑ disse o Jeremias. O velhote voltou‑se para o David e para a Zé. ‑ E se quiserem usar a pele do burro, está à vossa disposição. Mas é bonito pedirem primeiro autorização ao dono.

‑ Desculpe, Sr. Tapper, tem razão ‑ disse o David, sorrindo. Depois pensou o que diriam o Professor Hayling e a Catarina se ele e a Zé, vestidos com a pele do burro, entrassem dentro de casa, a galope. Mas pôs a ideia de parte, pois a Catarina ficaria assustadíssima se fosse perseguida por um burro completamente louco e o mesmo se passaria com o Professor.

O Sr. Tapper afastou‑se e o Júlio dirigiu‑se ao Jeremias que estava indeciso se deveria ficar ou ir‑se embora. ‑ Vimos o Carlinhos transportando baldes de água para lavar os cavalos ‑ disse ele. ‑ Na verdade ele tem muita força.

O Jeremias riu‑se, satisfeito por continuarem amigos e poder acompanhar os Cinco e o Buzina. Foram andando pelo acampamento, todos juntos; viram os lindos cavalos e o David Atirador que estava a praticar e depois viram um pequeno acrobata exercitando‑se em maravilhosos saltos mortais.

O Diabrete acompanhava‑os. Agora sentia‑se muito á vontade com a gente do circo e com todos os animais. Saltara para o dorso dos cavalos e eles nem se importaram. Depois fingiu ajudar o chimpanzé Carlinhos a levar os baldes de água e acabou por fugir com o boné do David Atirador. Entrou na gaiola do chimpanzé e instalou‑se na palha, a seu lado, como se estivesse na sua casa. Até chegou a entrar na barraca do Sr. Tapper, saindo com uma garrafa de laranjada. Não conseguia tirar a cápsula e por isso atirou a garrafa ao Carlinhos que estava ali perto. O chimpanzé agarrou‑a e, para decepção do Diabrete, pôs a garrafa à boca e bebeu a laranjada toda.

O Diabrete ficou muito zangado. Correu para a jaula do Carlinhos que tinha a porta aberta e desatou a atirar com a palha para todos os lados. O chimpanzé sentou‑se junto da gaiola, divertindo‑se imenso com a cena.

‑ Sai daí, Diabrete! ‑ ordenou o Buzina. ‑ Estás a fazer uma péssima figura.

‑ Deixa‑o lá ‑ disse um dos acrobatas que estava perto. ‑ O Carlinhos acha graça ver alguém com mau génio. Reparem como ele está contente.

Observaram a cena durante mais uns instantes para se certificarem que o Diabrete não estava realmente a aborrecer o grande chimpanzé. Depois foram ver os palhaços Monty e o Pisca‑Pisca a discutir.

Às tantas o Monty atirou água para cima do Pisca‑Pisca e este despejou um caixote de lixo em cima do outro. Que par aquele!

Quando deram meia volta para ver se o Diabrete continuava com a sua fúria, verificaram que o macaquinho saíra da jaula e corria pelo terreno em direcção à cerca. Saltou para o outro lado, desaparecendo.

‑ Naturalmente pensa que são horas do almoço ‑ disse o Buzina, olhando para o relógio. ‑ E realmente tem razão. Despachem‑se. A Catarina ficaria furiosa se chegássemos atrasados e o almoço esfriasse.

Lá foram todos, cheios de pressa. Saltaram a cerca e atravessaram o jardim a correr. Não queriam comer tudo frio!

 

                   UM DIA BEM PASSADO E O JÚLIO TEM UMA SURPRESA

O Buzina e os Cinco chegaram dois minutos atrasados para o almoço. A Catarina estava a arranjar as travessas, um tanto aborrecida por não os ter encontrado em parte nenhuma.

‑ Aqui estão, finalmente! ‑ exclamou ela.

‑ Procurei‑os pelo jardim. Onde estiveram? Ainda bem que chegaram, pois se demorassem mais cinco minutos, já não almoçavam.

‑ Querida Catarina, bem sabemos que serias incapaz de nos castigar dessa maneira ‑ disse o Buzina, dando‑lhe um abraço tão apertado que ela até gritou.

‑ Ai! ai! ai! ‑ ralhou a Catarina, afastando o Buzina. ‑ Já lhe tenho dito que não me importa que me dê um abraço, mas quando me aperta assim falta‑me o ar. Vá, menino Buzina, tenha juízo. Se me aperta outra vez, fico como um limão espremido.

Todos se riram. A Catarina era muito espirituosa. A Ana sentiu‑se arrependida por não se ter oferecido de manhã para ficar a ajudá‑la a fazer o almoço. Mas o tempo passava tão depressa quando os Cinco saíam juntos.

A conversa durante a refeição foi muito animada. O Diabrete não parava, tirando comida dos pratos e às vezes até a oferecia ao Tim que estava deitado por debaixo da mesa, coisa que ele muito apreciava.

‑ Garanto‑lhes que não vi nenhuma escada no acampamento do circo suficientemente comprida para chegar ao quarto da torre ‑ disse a Zé.

‑ Tens razão. E se existe alguma deve estar muito bem escondida ‑ objectou o David.

‑ Passem‑me a mostarda, por favor.

‑ Está mesmo à tua frente, palerma! ‑ chalaceou o Júlio. E reatando a conversa. ‑ Dá‑me ideia que o Sr. Wooh tem qualquer coisa a ver com o roubo dos papéis do teu pai, Buzina. Mas no entanto não acredito que seja capaz de trepar por uma escada de mão. Ele é tão... tão...

‑ Distinto e asseado ‑ disse a Ana. ‑ Pela minha parte acho que ninguém do circo podia estar interessado nos papéis ou tivesse mesmo coragem para os roubar. Parecem todos tão boas pessoas!

‑ Acho que o Sr. Wooh é o mais suspeito ‑ disse o Júlio. ‑ Quanto a mim, interessa‑se por cálculos complicados e invenções. Apesar de tudo começo a sentir que talvez eu esteja enganado. Não podia ter chegado ao compartimento da torre sem uma escada suficientemente comprida e duvido que ele se atrevesse a levar uma escada para o pátio e se arriscasse a encostá‑la à torre. Poderia facilmente ser apanhado.

‑ Tens razão. Acho melhor não desconfiarmos mais do Sr. Wooh ‑ disse o Buzina.

‑ Mas se ninguém entrou pela escada em espiral, visto todas as portas estarem fechadas à chave e ninguém se serviu duma escada de mão, como é possível terem os papeis desaparecido?

‑ Talvez o vento os levasse pela janela ‑ sugeriu a Ana. ‑ Não será possível?

‑ Não. Por duas razões ‑ disse o Júlio. ‑ Por um lado a janela não é bastante grande para o vento entrar com força suficiente para arrastar papeis lá para fora. Por outro, certamente alguns teriam aparecido no pátio, se tivessem voado e não encontrámos nem um.

‑ Bem, então se ninguém passou pelas três portas fechadas a chave e ninguém entrou pela janela, como foram roubados os papéis? - perguntou a Zé. ‑ Só por milagre os papéis desapareceriam sozinhos e eu não acredito nesse género de milagres.

Seguiu‑se um prolongado silêncio. Era um grande mistério que a todos preocupava.

‑ Acham que o pai do Buzina teria lá ido durante a noite, a sonhar, e os levaria consigo? ‑ lembrou a Ana.

‑ Não sei bem se um sonâmbulo consegue abrir portas, sabendo escolher as chaves e roubar os seus próprios papéis, deixando alguns caídos no chão. Depois descer pela escada em espiral, ter o cuidado de fechar as portas e entrar no seu quarto, deitando‑se outra vez. E acordar pela manhã sem ter a mais pálida ideia do que se passou! ‑ disse Júlio.

‑ Não, não é possível ‑ respondeu o David.

‑ Alguma vez deste porque o teu pai fosse sonâmbulo, Buzina?

O Buzina pôs‑se a pensar. ‑ Não, nunca ‑ disse por fim. ‑ Geralmente tem o sono muito leve. Não creio que o pai pudesse ter feito tudo isso a dormir. Foi qualquer outra pessoa.

‑ Então deve tratar‑se de um homem prodigioso ‑ disse a Zé. ‑ Uma pessoa vulgar seria incapaz de fazer o mesmo. E quem planeou o roubo devia desejar os papeis ardentemente, pois de contrário não se arriscaria atirá‑los, com tantos obstáculos.

‑ Mas se tanto os desejava, certamente se esforçará por procurar os outros que deixou espalhados por baixo da mesa ‑ disse o Júlio.

‑ Ainda bem que ficámos com esses. E é natural que tente voltar à torre pelo mesmo processo, embora eu não perceba qual foi.

‑ Bem, felizmente esta noite os papeis ficarão fora de perigo ‑ disse a Zé. ‑ Na minha ilha!

‑ Tens razão ‑ disse Júlio. ‑ Hei‑de arranjar um esconderijo formidável, talvez no castelo em ruínas. A propósito, espero que não continues com os papeis escondidos por baixo da camisola, Buzina, tu já não pareces tão gordo! Que lhes fizeste?!

‑ A Zé disse que era melhor entregar‑lhos, não fossem escorregar da minha camisola explicou o Buzina. ‑ Não foi, Zé?

‑ Foi ‑ disse a Zé.

- É melhor não falarmos mais sobre esse assunto. Pode tornar‑se perigoso.

‑ Porquê? O ladrão certamente não se encontra aqui próximo e por isso não nos pode ouvir ‑ disse o Buzina. ‑ Acho que estás zangada por o Júlio não consentir que sejas tu a levar os papéis.

‑ Cala‑te, Buzina! ‑ disse a Zé. ‑ Fico zangada contigo se deixares o Diabrete entornar outra vez o teu copo de limonada em cima do meu pão. Tira‑o de cima da mesa. Está a portar‑se cada vez pior.

‑ E tu cada vez estás mais complicada! ‑ disse o Buzina e logo recebeu um pontapé por debaixo da mesa, dado pelo Júlio. Esteve para responder com outro mas achou melhor conter‑se. Os pontapés do Júlio eram muito mais fortes do que os seus! Por fim resolveu tirar o Diabrete de cima da mesa, não fosse a Zé bater‑lhe. Pôs o macaquinho por baixo da mesa, ao lado do Tim. O Diabrete foi logo abraçar o cão pelo pescoço, com os seus bracinhos peludos. O Tim farejou‑o e depois deu‑lhe duas ou três lambedelas. Era muito amigo do macaquinho!

‑ Que faremos esta tarde? ‑ perguntou o David, depois de terem ajudado a Catarina a levantar a mesa e lavar a loiça. E se fôssemos á praia tomar um banho? Não acham que o tempo está bastante quente?

‑ Não está muito, mas não tem importância. Sentimo‑nos sempre com calor quando, depois de sairmos do banho, fazemos umas corridas e nos esfregamos com as toalhas ‑ disse a Ana. ‑ Catarina, apetecia‑lhe ir tomar banho connosco?

‑ Era só o que faltava! ‑ disse a Catarina, arrepiada só com a ideia. ‑ Sempre fui muito friorenta. Só pensar na água do mar faz‑me tremer de frio. Se quiserem toalhas estão no roupeiro. E não cheguem atrasados à hora do lanche, pois na parte da tarde tenho imensa roupa para passar a ferro.

‑ Está bem, Catarina ‑ disse o Buzina, fazendo menção de lhe dar um dos tais abraços muito apertados, mas conteve‑se ao ver o seu olhar reprovador. ‑ Júlio, posso ir contigo esta noite à ilha Kirrin? Apetecia‑me imenso, pois deve ser divertidíssimo.

‑ Nem pensar nisso. E de qualquer modo não será muito divertido ‑ respondeu o Júlio.

‑ Ah! Isso é que vai ser, se o Sr. Wooh ouviu a Zé explicar que tencionava esconder ali os papéis do meu pai ‑ disse o Buzina ‑ há‑de estar à tua espera na ilha e nessa altura eu poderia ser‑te útil.

‑ Só servirias para empecilho ‑ disse o Júlio. ‑ Seria muito mais fácil proteger‑me sozinho do que estar todo o tempo a pensar como te deveria proteger. Vou sozinho, está resolvido e por favor não olhes para mim com essa cara zangada, Zé!

O Júlio foi até à janela, ‑ O vento amainou bastante ‑ disse. ‑ Acho que daqui a uma hora posso tomar banho. Mais alguém quer vir comigo?

Foram todos até à praia e tomaram banho, excepto o Diabrete que molhou uma patita, soltou um guincho e pôs‑se a correr pela praia a toda a velocidade receando que o Buzina o agarrasse, obrigando‑o a entrar dentro de água. Claro que o Tim também tomou banho. Sabia nadar lindamente e até deixou o Buzina montá‑lo, mergulhando ao achar que o pequeno estava a tornar‑se pesado. Assim o Buzina encontrou‑se de repente dentro de água, fora de pé. ‑ És um malandro, Tim! ‑ gritou o pequeno. ‑ Até me entrou água pelo nariz. Espera que te apanhe! Será a minha vez de te dar um mergulho!

Mas era impossível agarrar o Tim que se divertira imenso com aquela brincadeira. O cão soltou um alegre latido e nadou na direcção da Zé. Como gostava de acompanhar os amigos!

O resto da tarde depressa se passou. A Catarina preparou‑lhes um belo lanche, com fatias de presunto e salada de trutas e depois ainda arranjou tempo para jogar com eles uma partida de dominó. O Diabrete sentou‑se à mesa, a observá‑los.

‑ Não me importa que estejas a ver ‑ disse a Ana. ‑ Mas não é preciso jogares também, Diabrete. Da última vez atiraste com todas as minhas pedras e por isso perdi o jogo.

O Tim olhava, muito sério, sentado numa cadeira ao lado da Zé. Não conseguia perceber porque estariam as crianças a jogar uma coisa daquelas quando podiam ir dar um agradável passeio.

Tiveram pena dele quando a partida acabou e foram passear ao longo da costa. Como o Tim ficou contente!

‑ Irei de bicicleta até Kirrin logo que anoiteça ‑ disse o Júlio. ‑ Zé, o teu barco ficou amarrado no sítio do costume? Sinto muito não poder levar‑te comigo, mas como sabes pode ser perigoso. Contudo não tenciono correr nenhum risco, se o puder evitar. Não me sentirei descansado enquanto aqueles papéis secretos não estiverem bem escondidos. Podes entregarmos só na altura de eu partir.

A Ana de repente bocejou. ‑ Não vás muito tarde ou ainda adormeço primeiro ‑ disse ela ‑ Já começa a escurecer. O banho cansou‑me. O David bocejou por sua vez. ‑ Também estou cheio de sono ‑ disse ele. ‑ Vou deitar‑me na nossa barraca logo que tu abalares para Kirrin, Júlio. Mas primeiro quero ver‑te partir com os papeis. Vocês, meninas, faziam bem em ir já para as vossas barracas. Parecem cansadas.

‑ Concordo‑ disse a Ana. ‑ Vens, Zé?

‑ Vamos todos ‑ disse a Zé. ‑ Ana, Buzina. Aposto que sou a primeira a saltar acerca e a chegar às barracas. Boa‑noite, Catarina. Vamo‑nos embora.

A Zé, a Ana e o Buzina, acompanhados pelo Tim foram andando pelo jardim, às escuras. O David e o Júlio ficaram a ajudar a Catarina a fazer os preparativos para a noite, correndo todas as cortinas e reposteiros, etc.

‑ Boa‑noite Catarina ‑ disse o David por fim. ‑ Só falta fechar a porta à chave, depois de nós sairmos, e ir para a cama. Nós iremos para as nossas barracas. Durma bem!

‑ Durmo sempre bem, graças a Deus! ‑ disse a Catarina. ‑ Portem‑se com juízo e não se metam em sarilhos. Escondam os papéis em bom sítio, onde ninguém os possa encontrar.

O Júlio e o David atravessaram o jardim, ouvindo a Catarina fechar a porta à chave logo que saíram.

O Buzina e as duas pequenas já haviam saltado a cerca, indo o Diabrete ao ombro do dono.

A Ana disse à Zé, apreensiva: ‑ Espero que não seja perigoso o Júlio ir à ilha Kirrin. Acho que o David devia acompanhá‑lo.

‑ Se alguém fosse, seria eu! ‑ gritou a Zé. ‑ A ilha é minha!

‑ Não sejas pateta, Zé! Os papéis devem ser guardados pelo Júlio, é mais seguro‑disse a Ana. ‑ Seria muito difícil para ti, ires sozinha de bicicleta até Kirrin e depois arrastar o barco para a água e remar no meio do escuro até à ilha!

‑ Não me custava nada! ‑ afirmou aZé. ‑ Se o Júlio o pode fazer, eu também posso. Vai andando para a nossa barraca, Ana e prepara tudo para nos deitarmos. Eu já vou ter contigo pois primeiro tenho de levar o Tim a dar uma corrida.

A Zé esperou que a Ana desaparecesse pela abertura da barraca. Depois foi andando sozinha e, sem fazer barulho, pelo escuro com o Tim ao lado muito surpreendido.

Em breve ouviu vozes, pois o Júlio e o David tinham chegado à cerca e saltavam por cima. Dirigiram‑se à sua barraca, onde encontraram o Buzina, bocejando, e pronto para se deitar.

Em breve os três rapazes estavam enrolados nos seus cobertores, o Diabrete abraçado ao Buzina. Daí a algum tempo o Júlio sentou‑se no seu saco‑cama, olhou para o relógio de pulso e depois foi espreitar pela abertura da barraca.

‑ Está escuríssimo ‑ disse. ‑ Mas parece‑me que a lua vai aparecer. Vou pedir os papéis à Zé e partir para Kirrin na bicicleta! Vou tirá‑la já da arrecadação.

‑ Sabes onde a Zé guardou o barco? ‑ perguntou o David. ‑ Não terás dificuldade em encontrá‑lo. Tens a tua lanterna?

‑ Tenho e até com uma pilha nova ‑ disse o Júlio. ‑ Olha! ‑ e acendeu a lanterna. Esta deu uma luz forte e brilhante. ‑ Não será fácil deixar de ver a ilha, acendendo a lanterna ‑ disse ele. ‑ Agora vou buscar os papeis.

Seguiu até à barraca das raparigas. Encontrou a Ana, meio adormecida. Esta piscou os olhos à luz da lanterna do irmão.

‑ Zé! ‑ chamou ele. ‑ Dá‑me os papeis, por favor. Olá, Ana, onde foi a Zè?

A Ana olhou em redor. Os cobertores da prima estavam num monte. Mas não se via nem a Zé nem o Tim!

‑ Ó Júlio! Sabes o que a Zé deve ter feito"? Naturalmente foi‑se embora com os valiosos papeis e levou o Tim com ela. Com certeza foi buscar a bicicleta para ir a Kirrin e mete‑se no barco para ir até à ilha! Oh! Júlio, nem quero pensar no que pode acontecer se ali estiver alguém e lhe tira os papeis!

A pobre Ana estava quase a chorar.

‑ Sou capaz de a esbofetear! ‑ exclamou o Júlio, zangadíssimo. ‑ Ir por aí fora sozinha às escuras, remar até à ilha e voltar! É louca! Suponham que o Wooh e os seus amigos estão à sua espera! Que grande palerma!

‑ Ó Júlio, depressa! Vai com o David buscar as bicicletas e tentem alcançá‑la. Que grande pateta foi a Zé!

Felizmente levou o Tim.

‑ Sim, felizmente! ‑ disse o Júlio, ainda zangado. ‑ O Tim há‑de tomar conta dela o melhor que puder. Se apanhasse agora a Zé, era capaz de a abanar até lhe caírem os dentes. Bem me pareceu que ela estava muito calada, ao jantar. Projectava o seu plano, claro!

Foi até casa com o David e o Buzina para contar à Catarina o que se passava com a Zé, e depois ele e o irmão foram buscar as bicicletas. Era um caso sério! A Zé nunca deveria ter saído à noite, sozinha,e ir de barco à ilha Kirrin. Podia muito bem alguém estar ali escondido à sua espera.

A Catarina ficou muito preocupada. Despediu‑se dos dois rapazes, que se afastaram pedalando. O Buzina pediu para também ir, mas a Catarina não consentiu.

‑ O menino e o Diabrete só serviriam para atrapalhar ‑ disse ela. ‑ Vou dar uma grande descompostura à menina Zé, quando ela voltar. Que menina aquela! Felizmente levou o Tim! Aquele cão é tão bom como meia dúzia de polícias!

 

                   DURANTE A NOITE NA ILHA KIRRIN

ESTAVA realmente muito escuro quando a lua em quarto minguante apareceu por entre as nuvens. A Zé sentia‑se satisfeita por a luz da sua bicicleta ser bastante potente. As sombras eram muito negras e misteriosas "como se escondessem pessoas prontas a saltar sobre nós" ‑ disse ela ao Tim. ‑ Mas se isso acontecesse tu logo me defenderias, não é verdade, Tim?

O Tim estava tão ofegante que nem pôde soltar um latido, em resposta. A Zé ia muito depressa e o Tim não a queria perder de vista. Ele bem sabia que ela não devia sair sozinha durante a noite e de mais assim escura. Não conseguia perceber por que motivo ela resolvera de repente ir passear de bicicleta durante a noite. Continuava a correr, muito cansado.

Passaram por vários carros com faróis que encandeavam a vista e a Zé teve que se chegar bem para o lado, pois receava que algum dos carros batesse no cão. ‑ Nunca me perdoaria se alguma coisa acontecesse ao Tim ‑ pensou. ‑ Começo a estar arrependida de ter vindo. Mas não devia consentir que o Júlio fosse esconder uma coisa na minha ilha. É uma tarefa que só a mim pertence. Querido Tim, POR FAVOR conserva‑te ao meu lado.

Só assim estarás em segurança. Por isso o Tim caminhava ao lado esquerdo da Zé, continuando admirado com aquele súbito passeio nocturno. Chegaram finalmente a Kirrin, onde se viam algumas luzes acesas, aqui e ali. Atravessou a vila até à baía.

Lá estava a ilha! A lua apareceu detrás duma nuvem e a Zé viu o mar escuro, cintilando nos sítios onde o luar batia nas cristas das ondas.

"Ali está a minha ilha, Tim" ‑ disse a Zé, como se falasse com o cão e sentindo uma vaga de orgulho ao olhar para a mancha negra que ficava no meio da baía. É a ilha Kirrin.

‑ Uuuuf ‑ fez o Tim, com dificuldade, pois estava cansadíssimo. E agora que iria a Zé fazer? Porque teria ido dar aquele grande passeio sem os outros? O Tim continuava intrigado, a olhar para a dona.

Chegaram ao sítio da praia onde se guardavam os barcos. A Zé desceu por uma rampa até à praia, saltou da bicicleta e encostou‑a a uma barraca, do lado mais escuro. Era impossível vê‑la, assim na sombra. Depois olhou para o mar e para a sua ilha. Mas daí a um momento agarrou a coleira do Tim, soltando uma exclamação.

‑ Tim! Vejo uma luz na minha ilha! Repara, é do lado direito. Estás a ver? Tim, alguém teria resolvido ir para lá acampar? QUE ATREVIMENTO! A ilha é minha e eu não consinto que ninguém ali vá sem minha autorização!

O Tim também viu a luz. Seria uma fogueira ou uma lanterna? Não sabia dizer mas o cão percebia que a Zé não devia lá ir naquela altura. Se fossem ciganos que estivessem ali acampados, como conseguiria a Zé pô‑los fora? Ou um grupo de rapazes mal educados que não se preocupassem em saber se era permitido ali estar ou não? Poderiam causar grandes aborrecimentos à Zé. O Tim chamou a Zé com a pata, tentando fazê‑la compreender que era melhor voltarem para casa.

"Não, Tim. Não volto para trás enquanto não tiver descoberto quem ali está!" ‑ declarou ela. "Seria uma cobardia voltar agora para trás.

E se é alguém à minha espera para me tirar os papéis, não vai ter grande sorte. Olha, vou escondê‑los aqui, por baixo do oleado que cobre este barco. Seria uma parvoíce tentar escondê‑los na ilha, sabendo que se encontra ali uma pessoa que talvez me queira roubá‑los. Deve ser um dos ladrões que subiu à torre e se esqueceu de parte das folhas. E se estiver à minha espera não me tirará papel nenhum!"

A Zé enfiou o pacote com as folhas de papel por baixo do oleado que cobria o barco. "Este é o barco "Cigano" do pescador Collins" murmurou ela, lendo o nome à luz da sua lanterna: "Certamente o bom homem não se importará que eu esconda uma coisa cá dentro."

Voltou a cobrir os papeis com o oleado e mais uma vez olhou para a ilha. Lá continuava a luz. A Zé sentiu‑se outra vez furiosa e foi procurar o seu barco, que devia estar ali perto.

"Aqui está ele"‑disse a Zé ao Tim que logo saltou para dentro. Mas a pequena mandou‑o sair pois tinha que empurrar o barco até à água. Felizmente era um barquito pequeno e leve e como a maré estava cheia não teve que o arrastar muito tempo. O Tim pegou na corda com a boca e também ajudou. Por fim o barco entrou na água, balouçando ligeiramente, à luz fresca do luar.O Tim saltou para dentro e em breve a Zé fazia o mesmo embora tivesse molhado os pés.

Pegou nos remos e começou a remar.

"A maré deve estar quase a mudar,por isso não será difícil conduzir o barco" ‑ continuou a Zé a falar ao Tim. "Iremos ao encontro dos intrusos para lhes dizermos umas verdades. Deves ladrar o mais alto que fores capaz e assustá‑los. Até os podes perseguir, obrigando‑os a fugirem no seu barco."

O Tim respondeu com um ligeiro latido. Bem sabia que por enquanto a Zé não gostaria que fizesse muito barulho. Achava muito esquisito que a sua dona fosse à ilha durante a noite, assim sozinha. E devia perguntar porque não levaria os outros? O Júlio certamente iria ficar zangado!"

"Agora não deves ganir nem ladrar, Tim"‑ordenou ela em voz baixa. "Estamos quase a chegar ao ancoradouro, mas vou por baixo daquelas árvores e não fico aqui. Quero esconder o barco."

Conduziu o barco em direcção a umas árvores cujos ramos escondiam uma pequeníssima reentrância. Saltou para terra e amarrou a corda do barco a uma árvore próxima.

"Ficas aqui, barquinho" ‑ disse ela. "Estarás em segurança. Ninguém te verá. Vamos, Tim, chegou a altura de enfrentarmos os intrusos."

A Zé deu alguns passos e depois parou.

"Onde estará o barco deles" ‑ pensou ela. "Vamos dar uma espreitadela, certamente não estará longe."

Em breve encontrava o barco na areia com a corda presa num rochedo.

A maré quase lhe chegava. A Zé sorriu. ‑ Tim! ‑ murmurou.

‑ Vou desprender o barco e deixá‑lo ir com a maré. Em breve estará bem longe. O que dirão os donos?

E,para grande surpresa do Tim, ela soltou a corda, enrolou‑a e atirou‑a para dentro do barco. Depois deu um empurrão ao barco mas este continuou na areia.

‑ Não faz mal ‑ disse ela. ‑ daqui a dez minutos a maré há‑de levá‑lo.

Foi andando pela praia acima e o Tim junto dela. ‑ Agora vamos ver quem são os intrusos ‑ disse. ‑ Porque teria desaparecido a luz? Não consigo vê‑la!

Mas daí a instantes a luz voltava a aparecer. ‑ Não é luz de chama. Deve ser uma lanterna ‑ disse a Zé ao Tim, em voz baixa.

‑ Agora temos que ter cuidado. Talvez consigamos aparecer por trás deles.

A Zé e o cão foram andando sem fazer barulho até ao meio da pequena ilha. Existia ali um antigo castelo em ruínas e no pátio principal, sentados sobre a erva, encontravam‑se dois homens. A Zé segurava com uma mão o Tim pela coleira, e fez‑lhe um ligeiro sinal. Ele bem sabia o seu significado: "Não ladrar, não rosnar". Por isso parou, muito quieto, com o pêlo do pescoço todo eriçado.

Os dois homens estavam a jogar às cartas, à luz duma potente lanterna que haviam colocado sobre uma pedra.

O Tim não conseguiu conter uma rosnadela de surpresa ao ver um dos homens, mas a Zé mandou‑o calar.

O Sr. Wooh, o mágico do circo,estava ali, jogando as cartas! A Zé nunca vira o outro homem. Estava bem vestido e parecia contrariado. Atirou com as cartas, na altura em que a Zé e o Tim o observavam, escondidos, num canto escuro e dirigiu‑se ao companheiro num tom de voz bastante irritado.

‑ Afinal a pessoa que devia trazer aqui o resto das folhas, segundo você afirmou, não aparece! Os papéis que me deu são preciosos ,mas sem os outros não têm o menor valor. O cientista a quem os roubou é um génio!

Se conseguirmos arranjar todo o conjunto valerão imenso dinheiro e bem sabe qual é a sua parte. Mas sem os outros, não lhe pagarei absolutamente nada, pois os que me arranjou não terão nenhuma utilidade!

‑ Já lhe disse que alguém há‑de vir aqui trazê‑los. Foi o que eu ouvi ‑ disse Wooh com o seu sotaque estrangeiro.

‑ Não foi você que os roubou? ‑ perguntou o homem, baralhando as cartas com rapidez.

‑ Não, não fui eu ‑ disse Wooh. ‑ Eu não roubo, pois não gosto de ficar mal visto.

O outro homem riu‑se. ‑ Prefere que alguém faça por si a parte suja do trabalho! Wooh, o mágico mais maravilhoso do mundo, não mancha as suas mãos! Limita‑se a usar as mãos dos outros e recebe somas enormes por aquilo que os outros roubam! O senhor é mas é um grande patife. Não gostava de o ter como inimigo. Como conseguiu arranjar os papéis?

‑ Usando os meus olhos, os meus ouvidos e a minha esperteza ‑ respondeu Wooh. ‑ São melhores do que os da maioria das pessoas. Porque há imensa gente estúpida, meu caro amigo.

‑ Eu não sou seu amigo ‑ disse o outro. ‑ Tenho apenas que negociar consigo, Sr. Wooh, mas não o quero considerar meu amigo. Preferia ser amigo do seu chimpanzé. Nem mesmo gosto de jogar as cartas consigo. Porque será que a tal pessoa não aparece?

A Zé falou ao ouvido do Tim. ‑ Tim, vou dizer‑lhes que saiam da minha ilha ‑ murmurou ela, furiosa. ‑ É extraordinário como pessoas daquele género se atrevem a vir aqui! Patifes e ladrões! Não venhas comigo. Espera que eu te chame e se perceberes que preciso de auxílio aparece imediatamente.

E deixando o Tim escondido atrás duma parede do castelo meio caída, apareceu de repente perante os dois homens que tiveram a maior das surpresas. Puseram‑se logo em

pé.

‑ Afinal veio a pequena! Pensei que os rapazes não consentissem que fosse ela a vir ‑ disse o Sr. Wooh, admirado. ‑ Eu estou...

‑ QUE FAZEM AQUI NA MINHA ILHA? ‑ perguntou a Zé, muito zangada. ‑ Esta ilha é só minha. Vi uma luz e vim investigar com o meu cão. Tenham cuidado com ele. É muito grande e feroz. Vão‑se já embora ou farei queixa à polícia.

‑ Não se exalte! ‑ disse o Sr. Wooh, pondo‑se muito direito, o que o fazia parecer altíssimo. ‑ Afinal os rapazes mandaram‑na esconder os papéis receando vir eles próprios? Que grandes cobardes! Onde estão os papéis? Entregue‑mos imediatamente.

‑ Escondi‑os ‑ disse a Zé. ‑ E não estão muito longe. Não pense que eu sou tão idiota que viesse com os papéis na mão, percebendo pela luz que se vê de longe que se encontrava aqui alguém, não lhe parece? Escondi‑os na praia num sítio onde não conseguirá encontrá‑los. E agora vão‑se já os dois embora.

‑ Mas que menina tão corajosa! ‑ exclamou o Sr. Wooh, fazendo uma ligeira vénia à Zé.

‑ Nem parece uma menina! ‑ disse o outro homem, espantado. ‑ Mas na verdade é uma miúda ás direitas. Oiça lá, menina, se me entregar aqueles papéis eu ofereço‑lhe uma enorme quantia em dinheiro que poderá entregar ao Professor Hayling com os meus cumprimentos.

‑ Vá buscá‑los ‑ disse a Zé, dando meia volta como se tivesse resolvido ir‑se embora.

Os dois homens entreolharam‑se com expressão interrogativa. O Sr. Wooh fez um sinal com a cabeça e depois piscou um olho. Se a Zé tivesse visto aquela expressão perceberia o que significava.

O que o Sr. Wooh queria dizer era: "Vamos enganar esta criança palerma. Podemos segui‑la, ver o esconderijo, agarrar nos papéis e fugir com eles no nosso barco sem lhe pagarmos. Mas CUIDADO COM O CÃO!

A Zé foi andando, seguida pelo Tim e mais atrás pelos dois homens. O Tim não parava de rosnar, como se avisasse: ‑ Se tocarem na Zé com um dedo, eu mor do‑os!

A Zé conduziu‑os até à praia, ao sítio onde haviam deixado o barco. O Sr. Wooh deu um grito.

‑ Oh! Onde está o nosso barco? Ficou amarrado àquele rochedo!

‑ Não será aquele? ‑ perguntou a Zé, subindo para um rochedo que se debruçava a pique sobre o mar.

Os homens foram ver e então a Zé pregou‑lhes um enorme susto! Correu para o Sr. Wooh e deu‑lhe um tal encontrão que ele caiu do rochedo para o mar, onde mergulhou com grande barulho, pois como estava a maré alta, o mar era bastante fundo. A Zé gritou uma ordem ao Tim, agora muito excitado, e este fez o mesmo ao outro homem, saltando‑lhe aos ombros e obrigando‑o a recuar até cair dentro de água. O Tim ficou no rochedo ladrando como louco, tão entusiasmado como a Zé.

‑ Se quiserem fugir terão que ir a nado até terra! ‑ gritou a Zé. ‑ A maré levou o vosso barco pois eu desamarrei‑o! Por enquanto é melhor não voltarem à minha ilha pois serão recebidos pelo Tim. Não se atrevam a pôr aqui um pé. O Tim logo saltará sobre vocês!

Os homens sabiam nadar, embora não muito bem e ambos se sentiam furiosos e bastante assustados. Sabiam perfeitamente que seriam incapazes de nadar até terra,mas também não se atreviam a voltar a abrigar‑se na ilha. Ali estava aquele enorme cão feroz, ladrando como se desejasse desfazê‑los à dentada. O barco desaparecera, por isso não havia processo de fugirem. Começaram a nadar em círculos, sem saberem o que fazer.

‑ Vou para terra! ‑ gritou a Zé, saltando para o seu barco. ‑ Amanhã de manhã mandarei a polícia buscá‑los.

Agora podem ir para a ilha, mas calculo que passarão a noite cheios de frio! Adeus!

E lá foi a Zé no seu barco, com o Tim em pé, certificando‑se de que os homens não os perseguiam. Deu à Zé uma lambedela de admiração. A sua dona não tinha medo de NADA! Gostava mais de lhe pertencer do que a qualquer outra pessoa do mundo! Béu, BÉU! BÉU! B‑É‑É‑é‑U!

 

                   FINALMENTE DESCOBRE‑SE O MISTÉRIO

AZé não se conteve e desatou a cantarem voz alta enquanto remava para terra. O Tim fazia coro, soltando um latido de vez em quando. Sentia‑se contente por ver a Zé tão satisfeita. Continuava na proa do barco, com pena de estar tão escuro, pois gostaria de ver o caminho. A lua encobria‑se com as nuvens e o mar parecia não ter fim. Viam‑se muito poucas luzes na costa a essa hora da noite, só uma ou duas em casas onde ainda havia alguém acordado.

Mas que seria aquela luz que de repente começou a brilhar perto da praia? Seria alguém à procura do seu barco? O Tim pôs‑se a ladrar e a Zé que, claro está, remava de costas viradas para a praia, levantou os remos por um momento e olhou para terra.

‑ É alguém no cais! ‑ disse ela. ‑ Deve tratar‑se de um pescador que voltou mais tarde. Ainda bem! Poderá ajudar‑me a puxar o barco para a areia até um sítio onde a maré não chegue.

Mas não se tratava dum pescador. Era o Júlio e o David chegados pouco tempo antes. Procuraram o barco da Zé sem o encontrar.

‑ Que pena! Chegámos demasiado tarde para a impedir de ir até à ilha! ‑ disse o Júlio, começando a examinar todos os outros barcos que ali se encontravam, esperando descobrir algum que pertencesse a um amigo e portanto pudessem servir‑se dele. Era preciso, de qualquer maneira, irem até à ilha Kirrin socorrer a Zé. Tinham a certeza que ela estaria metida em grande sarilho.

Então os dois rapazes ouviram o barulho de remos na água. Bem, se fosse algum pescador de volta, pedir‑lhe‑iam que lhes emprestasse o barco para irem à ilha Kirrin. Poderiam explicar‑lhe quanto receavam que a prima corresse algum perigo e precisasse de ajuda.

O Tim, no barco da Zé, de repente reconheceu os dois rapazes quando a lua saiu de trás duma nuvem e soltou uma quantidade de latidos de alegria. A Zé, pressentindo que talvez fossem o Júlio e o David, pôs‑se a remar mais depressa. Chegou à praia, saltou do barco e começou a puxá‑lo para a areia seca. Em breve os rapazes estavam a seu lado e o barco foi levado para o lugar habitual, onde ficava em segurança mesmo que a maré subisse muito.

‑ Zé! ‑ exclamou o Júlio, tão satisfeito por ver que não acontecera nada de mal à prima que até lhe deu um abraço. ‑ Que rapariga tão endiabrada! Foste à ilha quando afinal eu te tinha proibido! Podias ter encontrado ali os ladrões, o que seria perigosíssimo.

‑ E encontrei‑os! Mas para eles é que foi perigoso e não para mim! ‑ declarou a Zé. ‑ Vi uma luz na ilha, meti‑me no barco e fui até lá! Lá estava o Sr. Wooh, o mágico,com outro homem.

Na MINHA ILHA! Que descaramento! Pediram‑me logo os papéis!

‑ Oh Zé, e tu entregaste‑lhos? ‑ perguntou o David.

‑ Claro que não! Já os havia escondido num sítio onde os homens seriam incapazes de os encontrar. Só se fosse parva os teria levado para a ilha, sabendo que estava lá alguém,naturalmente à minha espera e dos papéis!

‑ Mas Zé, se tu sabias que alguém ali estava, para que te arriscaste a ir à ilha? ‑ perguntou o Júlio, intrigado. ‑ Correste um grande perigo!

‑ Queria expulsar fosse quem fosse que ali estivesse! ‑ declarou a Zé. ‑ Como se eu admitisse que qualquer pessoa esteja na minha ilha sem meu consentimento!

‑ Nunca se sabe o que a Zé ainda é capaz de fazer! ‑ comentou o Júlio fazendo uma festa na cabeça do Tim. ‑ Como te atreveste a ir ralhar com os homens? Bem sei que o Tim estava contigo,mas mesmo assim... E porque não vieram os homens para terra?

‑ Porque não lhes era possível ‑ disse a Zé. ‑ Descobri o barco deles, desamarrei‑o e deixei‑o ir com a maré! Sabe‑se lá onde terá ido parar!

Os rapazes ficaram tão surpreendidos que ao princípio nem sabiam o que dizer. Depois imaginaram os dois homens presos na ilha Kirrin, sem um barco para fugirem, e desataram a rir ás gargalhadas até lhes virem lágrimas aos olhos.

‑ Oh Zé, tu és fantástica! ‑ exclamou o Júlio. ‑ Faço ideia como os homens deviam estar furiosos.

‑ Isso não sei ‑ disse a Zé. ‑ Ao princípio não lhes contei o que fizera ao barco. Fingi que os ia levar ao sítio onde escondera os papéis e depois, quando os apanhei no alto dum rochedo sobre o mar, dei um grande empurrão ao Sr. Wooh e o Tim saltou sobre o outro homem e ambos mergulharam um atrás do outro!

O Júlio desatou a rir tanto que quase se sufocava. A Zé de repente também percebeu o lado divertido do caso e pôs‑se a rir tanto como o Júlio. O David também ria às gargalhadas e o Tim acompanhava‑os ladrando sem parar.

‑ Santo Deus! ‑ exclamou finalmente o Júlio. ‑ Calculo que depois disseste adeus aos homens com toda a delicadeza e deixaste‑os entregues ao seu destino.

‑ Gritei‑lhes que mandaria a polícia buscá‑los amanhã pela manhã ‑ disse a Zé. ‑ Calculo que passarão uma noite bastante desagradável, assim encharcados!

‑ Zé, afinal começo a pensar que foi melhor teres ido tu à ilha em vez de mim ‑ disse o Júlio. ‑ Nunca me lembraria de fazer o que tu fizeste. Como é que tu e o Tim se atreveram a deitar os homens ao mar? E desamarrar o barco! Qual será a reacção da polícia quando souber toda esta história?

‑ Parece‑me que não é preciso contar tudo, ‑ disse a Zé. ‑ Podem achar que eu fui demasiado longe. Mas de qualquer modo é bem feito os dois homens maus e ainda por cima ladrões verem‑se obrigados a passar a noite na ilha. Resolveremos o que devemos dizer á polícia, amanhã. É engraçado, de repente comecei a sentir‑me cansadíssima.

‑ Não me admira ‑ disse o David. ‑ Vamos já buscar as nossas bicicletas. E os valiosíssimos papéis. Onde os escondeste?

‑ Por baixo da cobertura de oleado do barco do pescador Collins ‑ disse a Zé e de repente deu um enorme bocejo. ‑ Escondi‑os ali.

‑ Vou buscá‑los ‑ disse o Júlio. ‑ Depois voltaremos logo para o acampamento. Os outros já devem estar preocupadíssimos, à nossa espera.

O Júlio tirou os papéis do barco e depois os três seguiram de bicicleta pela estrada que ia de Kirrin até à Ravina Grande. O Tim corria atrás deles. O Júlio continuava a rir‑se. A Zé deveria ter nascido rapaz e não rapariga. Fazia cada coisa! Como fora capaz de enfrentar os dois homens, empurrá‑los para o mar e pôr o seu barco à deriva! O Júlio estava convencido de que ele próprio nunca se atreveria a fazer tais coisas!

Finalmente chegaram ao acampamento e os outros quiseram logo saber o que se passara. A Ana estava muito pálida. A Catarina também ali se encontrava, animando a pequena. Já resolvera telefonar à polícia e sentiu um grande alívio ao ver a Zé de volta!

‑ Contaremos todos os pormenores amanhã. ‑ disse o Júlio. ‑ Mas posso‑lhes garantir desde já que os papeis estão em segurança, aqui no meu bolso. Os ladrões foram,com certeza, o Sr. Wooh e outro homem. Esta noite estavam na ilha à espera da Zé. O Sr. Wooh ouvira o que ela dissera dentro da barraca. No entanto a Zé e o Tim atiraram com os dois para dentro de água, soltaram o seu barco e por isso tudo acabou bem! Terão que passar a noite na ilha cheios de frio e encharcados!

‑ A menina Zé fez tudo isso? ‑ perguntou a Catarina, pasmada. ‑ Não sabia que ela era tão perigosa! Santo Deus! Até sinto medo da menina! Agora vão todos dormir. Parecem estafados!

A Zé sentiu um enorme contentamento ao deitar‑se no seu saco‑cama. Agora que o entusiasmo passara, estava a morrer de sono e cansaço. Adormeceu imediatamente,mas outro tanto não aconteceu com o Júlio ou com o David. Durante algum tempo ainda comentaram, rindo, as façanhas da Zé. Que rapariga tão valente!

Na manhã seguinte, quando foram a casa tomar o pequeno almoço, o Jeremias atravessou o jardim e foi meter a cabeça pela janela da casa de jantar.

‑ Sabem, o Sr. Wooh desapareceu da sua barraca. O pobre chimpanzé Carlinhos está muito triste.

‑ Olha, nós podemos dizer‑te com toda a precisão onde se encontra o Sr. Wooh! ‑ declarou o Júlio.

‑ Mas... espera um momento, Buzina, onde vais? Ainda não acabaste o... Mas o Buzina desapareceu com o Jeremias a toda a velocidade. Era muito amigo do chimpanzé. Seria possível que ele sentisse tanto a falta do dono que nem quisesse comer? O Buzina chamou o Diabrete e correram os dois para o terreno do acampamento, saltando sobre a cerca. O Buzina foi direito à jaula do Carlinhos. O chimpanzé estava ali sentado, tapando a cara com as mãos, balançando o corpo para a frente e para trás, chorando alto.

‑ Vamos entrar na jaula para o consolar

‑ disse o Buzina. ‑ Deve sentir imenso a falta do Sr. Wooh!

Meteram‑se na jaula e sentaram‑se na palha cada qual pondo um braço à volta do chimpanzé. O avô do Jeremias ficou muito surpreendido ao ver ali os dois rapazes. ‑ Não sabemos o que aconteceu ao Sr. Wooh ‑ disse ele. ‑ A noite passada não voltou ao acampamento. Vá Jeremias, sai daí. Não podes passar a manhã a consolar o Carlinhos. Tens muito que fazer. O menino Buzina pode ficar se lhe apetecer.

O Jeremias saiu da jaula e afastou‑se, zangado. O Buzina continuou com um braço à volta do pescoço do chimpanzé, lamentando que ele se sentisse tão infeliz. Enquanto ali estava sentado ouviu um barulho especial que se repetia indefenidamente. Tic‑tac‑tic‑tac‑tic‑tac‑tic‑tac‑tic‑tac...

Ficou a olhar para ele com a maior das surpresas.

‑ Parece um relógio ‑ pensou o Buzina e começou a revolver a palha. Talvez o grande relógio de pulso de ouro do Sr. Wooh tivesse caído dentro da jaula do Carlinhos.

A sua mão tocou em qualquer caixa pequena e redonda, escondida no fundo da jaula.Ele afastou a palha e tirou o objecto em que tocara. Ficou a olhar para ele com a maior das surpresas. O Carlinhos de repente agarrou no objecto e escondeu‑o outra vez na palha. Soltou uma espécie de guinchos, como se quisesse mostrar que estava zangado.

‑ Carlinhos, onde arranjaste aquele relógio? ‑ perguntou o Buzina. ‑ Oh CARLINHOS! Como esta manhã estás tão triste deixo o relógio só para ti, pois talvez te anime um pouco. Mas palavra que estou muitíssimo surpreendido.

Ele saiu da jaula e atravessou o terreno, saltando pela cerca, para o seu jardim. Depois desatou a correr atéà sala de jantar, onde os outros acabavam o pequeno almoço.

‑ Que se passa? ‑ perguntou o David.

‑ Oiçam! Já sei quem foi o ladrão que trepou até à janela da torre. Já SEI QUEM FOI! ‑ exclamou o Buzina, quase a gritar, tão entusiasmado estava.

‑ Quem foi? ‑ perguntaram todos, muito admirados.

‑ Foi o CHIMPANZÉ CARLINHOS! ‑ disse o Buzina. ‑ Porque não teríamos suspeitado há mais tempo? Pode trepar por toda a parte. Seria facílimo para ele trepar pela parede de

pedra da torre, apoiando‑se a certas rugosidades, aqui e ali. Também nada lhe custou entrar pela janela para o compartimento da torre, agarrar em todos os papéis que viu e depois descer, naturalmente deixando‑se escorregar...

‑ Deve ter sido o barulho que eu ouvi... ‑ disse a Catarina. ‑ Eu já lhes contara que ouvi um barulho especial.

‑ E os murmúrios que ouviu deve ter sido o Sr. Wooh explicando ao Carlinhos que era preciso subir pela parede da torre e entrar pela janela! ‑ acrescentou o Júlio. ‑ Naturalmente o pobre Carlinhos foi ensinado a entrar por todo o género de janelas e roubar tudo quanto vir. O Sr. Wooh devia saber que o pai do Buzina trabalha nas suas maravilhosas ideias ali na torre.

‑ O Sr. Wooh pôde ensinar com toda a facilidade o chimpanzé a roubar papéis ‑ disse o David. ‑ Mas ali havia tantos que o Carlinhos não conseguiu agarrar em todos. Não era possível segurá‑los com as patas dianteiras pois precisava das quatro patas para descer por aquela parede. Naturalmente agarrou com a boca todos os que conseguiu e os outros atirou‑os para baixo da mesa. Quem havia de imaginar que afinal o ladrão era o chimpanzé Carlinhos!

‑ Mas ouve lá uma coisa, Buzina, como descobriste que o ladrão era o Carlinhos? ‑ perguntou a Zé. ‑ Ninguém o viu, pois o roubo deu‑se durante a noite.

‑ Pois eu tenho a certeza absoluta que foi o chimpanzé ‑ afirmou o Buzina. ‑ Vocês lembram‑se de eu lhes falar num relógio pequenino que estava em cima do fogão do quarto da torre? Desapareceu na noite em que os papéis foram roubados. Pois encontrei‑o há pouco escondido na palha da jaula do Carlinhos. Ele tirou‑mo das mãos, quase a chorar, por isso deixei‑o ali. Descobri‑o pelo tic‑tac.

‑ Quem lhe dará corda para que continue a andar? ‑ lembrou o Júlio, muito surpreendido.

‑ O Carlinhos, calculo eu ‑ disse o Buzina. ‑ Bem sabes que consegue fazer imensas coisas com as mãos. O relógio ali estava em segurança, escondido entre a palha. Ninguém teria a ideia de entrar dentro da jaula. Mas foi por isso que descobri o relógio. Ouvi o tic‑tac. Calculo que o Carlinhos seja suficientemente esperto para o esconder na boca quando lhe vão mudar a palha e limpar‑lhe a jaula.

‑ Santo Deus! ‑ exclamou a Catarina. ‑ Como seria possível que o tal Sr. Wooh não reparasse no relógio na noite do roubo dos papeis?

‑ Naturalmente, tal como sugeriu o Buzina, o Carlinhos meteu o relógio na boca, ao mesmo tempo que segurava os papéis ‑ disse o David. ‑ Precisou das quatro patas tanto para subir como para descer, mas como sabem tem uma boca enorme. Consegue lá meter imensa comida ao mesmo tempo.

‑ E o Sr. Wooh agarrou nos papéis logo que o Carlinhos desceu, mas o chimpanzé deve ter sido suficientemente manhoso para esconder o seu novo e precioso brinquedo! Pobre Carlinhos! Não estão a vê‑lo a ouvir o relógio e a fazer‑lhe festas, como uma criança com um novo brinquedo? ‑ disse a Zé.

‑ Esta manhã parecia mesmo que estava a chorar ‑ contou o Buzina. ‑ Fez‑me tanta pena!

Ele não conseguia perceber por que motivo o seu querido dono não aparecia. Estava tão infeliz!

‑ Parece‑me que agora temos que ir já chamar a polícia ‑ disse o Júlio. ‑ Não só para apanhar o Sr. Wooh e o seu amigo deixados tão a propósito pela Zé na ilha, mas também porque o Sr. Wooh deve ser acusado de roubo dos insubstituíveis cálculos e esquemas do teu pai, Buzina. Só Deus sabe que mais terá ensinado o Carlinhos a roubar. Até aposto que já mandou o chimpanzé entrar em muitas casas, subir por paredes e entrar por um grande número de janelas.

‑ Naturalmente tem havido muitos roubos por todos os sítios em que passa o circo ‑ disse a Catarina. ‑ E se calhar a suspeitarem de pessoas que estão inocentes...

‑ Que vergonha! ‑ exclamou a Ana. ‑ Mas então se o Sr. Wooh vai para a prisão, que vai ser do pobre chimpanzé Carlinhos?

‑ Talvez o Jeremias tome conta dele ‑ lembrou o Buzina. ‑ Gostam muito um do outro.

‑ Bem, menino Buzina, parece‑me que é altura de ir contar ao seu pai toda esta história‑ disse a Catarina. ‑ Sei que está ocupado, como sempre, mas isto é um assunto que só ele deve tratar. O menino Buzina pode chamá‑lo e a menina Zé conta‑lhe toda a história e depois certamente o Sr. Professor telefonará à polícia. O Sr. Wooh ficará em maus lençóis.

O Buzina, com o Diabrete ao ombro, foi à procura do pai. Atravessou o corredor, subiu as escadas... brrrrrrrrrrrr!... Parece mesmo uma motocicleta a subir uma encosta íngreme. PAAAÍPAAA! Não buzines assim que o teu pai fica tão zangado que não ouve nem uma palavra do que tens para lhe dizer!...

Mas felizmente o Professor Hayling ouviu tudo muito bem! Em breve a Catarina telefonava para a polícia.

Daí a algum tempo o Sr. Wooh encontrava‑se numa situação que a sua magia não podia ajudar a resolver. Foi obrigado a devolver os papéis que o Carlinhos roubara e muitas outras coisas!

‑ Terminou mais uma aventura! ‑ disse a Zé com um suspiro. ‑ E foi muito animada! Ainda bem que descobriste o mistério, Buzina. Foi uma sorte teres encontrado o relógio do quarto da torre. Estou convencida de que o Sr. Wooh não consentiria que o Carlinhos ficasse com ele se soubesse que o tirara do quarto da torre! Coitado do Carlinhos!

‑ Gostava imenso que o pai me deixasse ter aqui em casa o Carlinhos, enquanto o Sr. Wooh estiver na prisão ‑ começou o Buzina, mas calou‑se, pois a Catarina soltou um grito horrorizada. ‑ Menino Buzina! Se se atrever a falar nisso ao seu pai vou‑me logo embora desta casa e NUNCA MAIS VOLTO! ‑ declarou a Catarina. ‑ O chimpanzé passaria o dia na minha cozinha e as coisas a desaparecer da despensa, dos armários e das gavetas e se eu me atrevesse a zangar‑me ainda havia de se pôr aos pulos e aos gritos que seria uma loucura!

‑ Está bem, querida Catarina, garanto‑te que não falo nisso ao meu pai. Está prometido ‑ disse o Buzina. ‑ Gosto muito mais de ti do que de um chimpanzé, mas pensa só que grande companheiro seria para o Diabrete!

‑ Nem quero pensar nisso! ‑ declarou a Catarina. ‑ E se o menino prestasse um pouco mais de atenção a esse seu macaco? Olhe para ele, serviu‑se de meio frasco de compota! Olhe como tem o focinho lambuzado! Apre que esta semana foi tremenda, com chimpanzés, macacos, crianças e roubos, mas isto resolveu a menina Zé sozinha!

‑ Querida Catarina! ‑ exclamou a Zé, rindo‑se, enquanto a criada voltava para a cozinha. ‑ Foi uma semana bem animada, diverti‑me imenso!

Também nós, Zé. Vê se arranjas depressa outra aventura!

 

                                                                                Enid Blyton  

 

                      

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