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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS CINCO E OS CONTRABANDISTAS / Enid Blyton
OS CINCO E OS CONTRABANDISTAS / Enid Blyton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS CINCO E OS CONTRABANDISTAS

 

                   O REGRESSO AO CASAL KIRRIN

Num lindo dia de Páscoa, os quatro pequenos e o seu inseparável cão tomaram o comboio para Kirrin.

- Daqui a nada estamos lá, - disse Júlio, cada vez mais forte e alto, de aspecto decidido, como já sabemos.

- Uf! - fez Tim, o cão, já excitado, procurando espreitar pela janela.

- Para baixo, Tim! Deixa a Ana ver!-disse o Júlio.

Ana, a quem chamavam também Anita era a irmãzinha mais nova. Deitou a cabeça de fora da janela e confirmou:

- Estamos a chegar à Estação de Kirrin. Calculo que a Tia Clara esteja à nossa espera.

- Certamente!-respondeu a Zé, prima da Ana, que mais parecia um rapaz que uma rapariga por usar sempre cabelo curto, e encaracolado.

Como seu primo Júlio, ela tinha um ar decidido e desembaraçado.

Ana espreitou pela janela e comentou:

- É tão bom voltar para casa! Gosto da escola, mas muito mais do Casal Kirrin, com os passeios à Ilha e ao Castelo. Há tanto tempo que não vamos lá!

- Agora é a vez do David! Estamos à vista de Kirrin, David! Nem ao menos neste momento és capaz de abandonar a leitura por uns segundos ?

- disse Júlio voltando-se para o irmão mais novo, um pequeno de semblante agradável, que ia sentado a ler.

- É um livro curioso! A história mais interessante que li até hoje! -replicou David, fechando o livro.

- Ora! Aposto que não chega a ser tão interessante como as aventuras que tivemos - acrescentou Anita.

E tinha razão. Aqueles cinco pequenos aventureiros, incluindo o inevitável Tim, haviam conhecido as mais excitantes histórias que possam contar-se. De momento, porém, tinham a impressão de ir gozar umas férias tranquilas e agradáveis, com escaladas aos montes e uma ou outra passeata à Ilha de Kirrin, no barco da Zé.

- Eu, realmente, trabalhei muito nos últimos tempos. Bem preciso dumas férias-disse Júlio.

- E até emagreceste! -comentou Maria José. É bom, porém, lembrar, que ninguém a conhecia por este nome. Ela era, para todos, a Zé.

Júlio sorriu:

- Não te rales, que eu engordarei no Casal Kirrin. Para isso lá está a adorável Tia Clara. Vou gostar tanto de a ver.

- Deus queira que meu pai não ande mal disposto. É natural que tudo corra bem. A mãe diz que ele acabou agora de fazer umas experiências, com muitos bons resultados - informou a Zé.

O pai dela era um sábio e andava sempre preocupado com a realização de ideias e teorias novas. Apreciava imenso a tranquilidade, irritando-se muito sempre que o contrariavam ou faziam barulho. Valha a verdade, a filha parecia-se muito com o pai.

As previsões saíram certas. A Tia Clara esperava-os. Os quatro saltaram na plataforma e quase voaram para a abraçar.

A Zé chegou primeiro. Gostava tanto da mãe, que a defendia sempre das más disposições do pai.

O Tim, por seu lado, latia de satisfação e num pulo tentou lamber-lhe a cara.

- Para baixo, que me fazes cair! Está cada vez maior! -comentou a Tia Clara, com alegria.

Tim estava de facto um canzarrão, e os pequenos gostavam cada vez mais dele. Leal, muito manso, contemplava todos com seus grandes olhos castanhos, tão expressivos, que davam a entender que partilhava do contentamento geral.

Era, porém, a Zé que ele mais estimava, desde pequenino. Todos os anos os dois iam para um colégio onde lhes permitiam estas amizades. Aliás, se assim não fosse, a Zé recusar-se-ia a ir à escola, mesmo na companhia da Ana.

Meteram-se todos no carro e partiram a caminho de Kirrin, abafando-se o melhor possível, pois fazia muito vento e frio.

- Está mais frio que no Inverno - protestou Anita, já a tiritar.

- É da ventania - sentenciou a Tia Clara, embrulhando-se num cobertor. - Parece que nunca mais pára e até aumentou nestes últimos dias. Os pescadores já retiraram os barcos da praia, com receio duma tempestade.

Os pequenos olharam. Lá estavam os barquitos, realmente. E, então, o cenário evocou-lhes outros tempos em que ali tinham tomado banho. Agora, só de pensar nisso sentiam arrepios.

Tudo se apresentava ameaçador. O vento encrespava as águas, enquanto nuvens enormes se deslocavam apressadamente no horizonte. A rebentação das vagas causava um ruído medonho. Tim começou a ladrar.

- Está quieto e calado, Tim! Tens de aprender a estar calado em casa, se não o pai zanga-se contigo - disse a Zé e, voltando-se para a mãe:

- Mãezinha, o pai continua agora muito ocupado ?

- Muito!-respondeu a mãe.-Mas agora trabalha menos, desde que soube do vosso regresso. Quer andar um pouco com vocês.

As crianças entreolharam-se. Tio Alberto não era, efectivamente, dos melhores companheiros. Faltava-lhe a noção das coisas engraçadas, chegando ao ponto de não dar a mínima atenção às brincadeiras dos garotos.

- Parece-me que as férias não vão ser muito divertidas, se o Tio Alberto se lembrar de andar connosco - segredou David para o Júlio.

- Chiu! - fez o outro, receando que a tia ouvisse e se magoasse.

A Zé não se conteve, exclamando:

- Mãe, se o pai andar connosco, já sabe: fica ele aborrecido e nós também.

Tanta franqueza desagradou à mãe que, suspirando, lhe disse:

- Não fales assim de teu pai, querida! Estou certa de que o pai depressa se fartará de andar convosco. No entanto, sempre lhe fará bem partilhar um pouco da alegria da gente nova!

Cá estamos!-exclamou o Júlio, logo que o carro estacou em frente duma casa antiga. - Casal Kirrin! Olhe como uiva o vento, Tia Clara!

- É verdade. A noite passada nem nos deixou dormir capazmente. Júlio, podes arrumar o carro, depois de se tirarem as bagagens. Aí vem o vosso tio ajudar-te!

Tio Alberto apareceu. Era um homem alto, de olhar inteligente e sobrancelhas carregadas. Sorriu aos pequenos, beijou a Zé e disse:

- Sejam bem-vindos ao Casal Kirrin. Tenho muito gosto em recebê-los.

Daí a pouco encontravam-se todos à mesa a tomar chá. Sabendo que a viagem era fatigante, a Tia Clara preparara-lhes um óptimo lanche.

A Zé recostou-se na cadeira, aproveitando o momento para se deliciar com aqueles bolinhos que a mãe tão bem cozinhava. Fazendo os seus cálculos, Tim deitou-se ao lado dela. E, se bem que não fosse norma darem-lhe comer àquelas horas, a verdade é que lhe foram ter alguns bocadinhos à boca, mesmo por baixo da mesa...

O vento continuava a uivar. As janelas batiam, as portas rangiam, os tapetes ondulavam, como se alguém os puxasse a ocultas.

- Até parece que andam ali cobras debaixo! Como que adivinhando o pensamento da

Ana, Tim pôs-se a espreitar e rosnou. É que embora fosse um cão inteligente, não chegava a compreender como os tapetes se mexiam daquela maneira.

Tia Clara queixou-se outra vez do vento que não a deixara dormir e, de repente dirigindo-se a Júlio, observou-lhe que estava muito magro, talvez por trabalhar demasiado.

E, quando acabou prometendo que o faria engordar, os pequenos riram a bom rir. Era justamente o que esperavam ouvir da Tia Clara.

Estavam falando alegremente, quando um ruído vindo do telhado os fez calar, espantados, incluindo o próprio Tim que arremeteu com força.

- Lá vai mais uma telha. Que maçada! Temos de ver isto, logo que passe a tempestade, para evitar que chova aqui dentro - elucidou o Tio Alberto.

Bem esperaram os pequenos que ele voltasse para o seu gabinete de trabalho, depois do chá, como habitualmente sucedia. Queriam jogar, mas o tio Alberto não era companhia agradável, ainda que se tratasse duma coisa tão simples como o jogo das escondidas.

- Vocês conhecem um rapaz chamado Pedro Lenoir? Suponho que frequenta a tua escola, Júlio - perguntou o pai da Zé, tirando uma carta do bolso.

- Pedro Lenoir... quer dizer o Fuliginoso. Sim, sim, anda na classe do David... Esse é mesmo doido varrido - comentou o Júlio.

- Fuliginoso ? Mas porque lhe deram tal nome? Acho que é uma estupidez!-concluiu Tio Alberto.

- Se o visse não pensaria da mesma maneira. É negro como tudo! Cabelo preto como a fuligem; olhos que parecem pedaços de carvão e as sobrancelhas dão a impressão de que foram metidas em carvão de pedra. Creio que Le-Noir quer dizer - O Preto - em francês, não é verdade ? - terminou o David, ainda a rir.

- Sim! Está tudo muito bem! Mas isso não é nome que se ponha, seja a quem for. Imaginem! Fuliginoso!-sentenciou o Tio Alberto, com gravidade. - Bom - continuou - eu tenho-me correspondido com o pai desse rapaz, porque tratamos dos mesmos assuntos. E, realmente, cheguei a perguntar-lhe se estaria disposto a passar aqui uns dias, trazendo também o Pedro.

- Óptimo! Não é má ideia o Fuliginoso vir passar aqui uns dias. Que ele é mesmo doido. Nunca faz o que lhe recomendam; dá saltos como um macaco e outras coisas mais. Não sei se gostará muito dele.

Tio Alberto parecia desiludido ao ouvir estas palavras do David. Detestava aquele género de rapazes.

- Bem! - exclamou, pondo de parte a carta. - Agora vejo que devia ter-vos interrogado sobre o rapaz, antes de dizer ao pai se podia trazê-lo. Enfim, veremos se é possível resolver ainda o caso!

- Deixe lá! Deixe lá! -pediu a Zé, que simpatizava com esse rapaz. Sempre passará cá uns dias.

- Veremos!-respondeu-lhe o pai, que já tinha decidido não receber em sua casa um garoto tonto, que saltava como um macaco.

No entanto, o que a Zé pretendia era fazer travessuras.

Por volta das oito horas, Tio Alberto retirou-se para o gabinete, com grande satisfação dos garotos. Tia Clara olhou para o relógio e aconselhou:

- Ana, já são horas de te deitares. E tu também, Zé.

- É só mais um joguinho, mãe! Vamos jogar todos - propôs a Zé. - Ande, jogue também! Olhe, é a primeira noite que passamos em casa, juntos. Nem que vá para a cama, não poderei dormir com este temporal. Vá! É só um jogo, e depois vamos deitar-nos que o Júlio está a bocejar horrivelmente.

 

                   UMA SURPRESA NOCTURNA

Naquela noite acharam muito divertido subir os degraus, antes de chegarem à cama. Estavam todos a cair de sono.

- Ainda se ao menos parasse a ventania - disse a Ana. - Queres ver, Zé, a lua pequenina, a aparecer e a desaparecer entre as nuvens?

- Deixa lá a lua em paz! E despacha-te se não constipas-te - protestou a Zé. - Apre! Sempre tenho um destes frios!

Ana continuava a falar da janela:

- Não ouves o barulho das ondas? E o vento continua a dobrar as árvores.

- Tim, salta para a cama!-ordenou a Zé encolhendo os pés! - É bem bom estar em casa. Ao menos, já posso ter o Tim na minha cama. Vale mais que uma botija de água quente aos pés!

- Mas não penses que pode ficar em cima da tua cama, cá em casa. Não estás na escola. Ele pode muito bem dormir no cesto, lá em cima - disse Anita, enroscando-se entre os lençóis.

- Essa é boa! E eu não posso proibi-lo de vir para a minha cama, à noite. Pode ser que não lhe apeteça dormir no cesto. Não é verdade, Tim? Anda, aquece-me os pés. Onde está o teu nariz? Deixa-me fazer-lhe uma festinha. Boa-noite, Tim! Boa-noite, Ana!

- Boa-noite! Calculo que se o Fuliginoso vem para cá, há-de ser engraçado - disse a Ana, sonolenta.

- Sim. Em qualquer dos casos, o meu pai fica aqui com o pai dele e não sai com a gente. Eles lá se arranjam - respondeu a Zé.

- É um senhor muito sisudo - disse a outra. - Nem gosta que se riam.

De repente, ouviu-se um estrondo. As pequenas deram um salto na cama.

- É a porta da casa de banho. Algum dos rapazes a deixou aberta. É isto que irrita o pai! Olha, lá vai outra vez! - preveniu a Zé.

- Que a fechem, o Júlio ou o David - disse a Ana que já se sentia confortàvelmente na cama.

No entanto, o Júlio" e o David estavam precisamente a pensar o mesmo em relação a elas. De modo que ninguém se levantou para ir fechar a porta.

Em breve se ouviu a voz colérica do Tio Alberto, ainda mais forte, que a barulheira da ventania.

- Fechem essa porta! Como posso eu trabalhar com um barulho destes?

Saltaram os quatro da cama. Tim pulou também. Riram-se no meio da confusão mas, eis que soaram os passos do Tio Alberto.

Num salto voltaram todos para trás, com o próprio Tim.

O vento continuava a soprar rijamente. Tio Alberto e Tia Clara foram também deitar-se. Ao abrir a porta do quarto, esta escapou-se-lhe da mão e fechou-se com tanta violência que fez saltar um vaso de cima duma estante próxima.

Espantado, Tio Alberto deu um salto, exclamando:

- Maldita ventania! Não há memória duma ventania assim! Se continua a aumentar, lá vão os barcos dos pescadores.

- Não deve durar muito tempo, querido! É provável que ao amanhecer tudo tenha serenado - disse a Tia Clara, suavemente. Enganava-se. O vento continuou a soprar toda a noite, rugindo e ululando, como se fosse um ser vivo. Ninguém conseguia dormir. Tim conservava-se vigilante, rosnando em surdina. Não estava satisfeito.

De madrugada, a fúria do vento aumentou. Ana pensava em muitas desgraças, tremendo apavorada.

Inesperadamente, ouviu-se um ruído estranho e medonho, de qualquer coisa que vergava e partia, dilacerando o espaço como um grito enorme. As duas raparigas, aterrorizadas, sentaram-se na cama. Que teria acontecido?

Júlio levantou-se e correu à janela. Lá estava o velho freixo, como um gigante negro, vencido, à luz furtiva da lua. Vergava, vergava cada vez mais!

- É a árvore que está a cair - gritou o Júlio, deixando David desnorteado. - Garanto-te que, se cair, esmaga a casa! Vai já avisá-las!

Gritando a plenos pulmões, Júlio saiu a correr:

- Tio! Tia! Ana! Zé! Desçam imediatamente! A árvore vai cair sobre a casa!

A Zé saltou da cama, arrebatou o pijama e correu a avisar a Ana, que logo se lhe juntou. À frente correu o Tim.

O Tio Alberto apareceu à porta do quarto mais a Tia Clara, muito intrigados, apertando os roupões.

- Que vem a ser este barulho, Júlio?

Viam-se alguns curiosos pasmados diante daquele triste espectáculo. - Tia Clara! -gritou Júlio, impaciente. -Venha imediatamente que o freixo está a desabar sobre a casa! Não ouve estalar? Vai esmagar o telhado e os quartos de cima. Escute, aí vem ele!

Fugiram todos escada abaixo. Ouviu-se o telhado estalar e o ruído das telhas que se espalhavam no chão.

- Ohl Querido!-disse a pobre Tia Clara, tapando os olhos. - Bem me queria parecer que ia dar-se uma desgraça, Vês, devíamos ter segurado aquela árvore. Pois, se eu já sabia que ela não aguentava um temporal assim! Que terá acontecido ao telhado?

Ainda ouviram outros ruídos de menos estrondo. Pequenos objectos que caíam, feitos em pedaços. Os pequenos nem sequer faziam uma pálida ideia do que sucedera. Tim ficara furioso e ladrava sem cessar; mas o Tio Alberto descarregou tamanho soco sobre a mesa, que os fez estremecer.

- Façam calar esse cão! Olhem que o ponho a mexer daqui para fora!-disse.

Ninguém conseguia, no entanto, fazer calar o Tim. Por fim a Zé levou-o para a cozinha e fechou a porta.

- Até me parece que eu própria estou a ladrar e a rugir. A árvore teria esmagado o telhado ? - perguntou Anita ao Júlio.

Tio Alberto pegou numa lâmpada de algibeira e subiu cuidadosamente as escadas, a examinar os estragos. Quando voltou, vinha ainda mais pálido.

- A árvore entrou pela água-furtada, desfez o telhado e arrasou o quarto de dormir das pequenas. A ramada maior enfiou no quarto dos rapazes mas, felizmente, não chegou a fazer estragos. No entanto, o quarto delas ficou numa desgraça. Se lá estão ficavam esmagadas.

Houve um silêncio profundo. Bastava lembrarem-se que a Zé e a Ana haviam escapado por tão pouco.

- Ainda foi bom espreitar e avisá-las - disse o Júlio energicamente, ao ver como Ana se fazia pálida. - Coragem, Ana! Pensa no que já tens para contar lá na escola.

Tia Clara então sugeriu que um pouco de cacau faria bem a todos; mostrando-se assim decidida, embora no íntimo se sentisse bastante perturbada.

- Vou já prepará-lo! Alberto, vai ver se ainda há lume no teu gabinete. Precisamos dum pouco de calor.

Por sorte o lume estava aceso. Reunidos à volta do fogão, quando a Tia Clara apareceu com uma boa porção de cacau e leite bem quente, todos a abençoaram.

Anita olhou curiosamente em redor ao sentar-se para tomar o cacau. Afinal, era ali que o tio trabalhava e realizava as suas descobertas; ali escrevia aqueles livros tão complicados que ela era incapaz de perceber.

Não obstante, naquele momento o Tio Alberto dava a impressão de ser pouco inteligente. Parecia, pelo contrário muito alarmado e Ana em breve compreendeu porquê.

- Foi um milagre, nenhum de nós ficar ferido ou morto - disse a Tia Clara com ar severo, prosseguindo:

"Disse-te uma dúzia de vezes, Alberto, que era preciso amarrar aquela árvore. Eu bem sabia que era muito grande e pesada demais para aguentar este vento. Sempre receei que desabasse sobre a casa.

- Bem sei. Mas tenho tido tanto que fazer nos últimos meses - disse o Tio Alberto, mexendo a chávena de cacau com força.

- Tens sempre essa desculpa para não cuidares das coisas urgentes. Para o futuro, sou eu que passo a tratar disso. Não podemos arriscar a vida, sem mais nem menos - concluiu a esposa, suspirando.

- Realmente, uma coisa assim, só podia acontecer numa noite de luar! - gritou o Tio Alberto, de mau humor, disparatado. Depois serenou, ao notar que a esposa estava visivelmente perturbada, quase a chorar. Pousou a chávena e, passando-lhe um braço em volta da cintura, tranquilizou-a:

- Sei que sofreste um tremendo choque. Mas não te incomodes que tudo se há-de remediar.

- Oh! Alberto! Vai ser pior agora! Onde vamos nós dormir? Que havemos de fazer enquanto o telhado e o andar de cima estiverem por consertar? Para mais com os pequenos aqui. Lembra-te que vamos ter a casa cheia de operários, durante semanas!

- Deixa isso comigo! Hei-de resolver tudo. Não te aborreças. Para indisposição já basta. Mas vais ver que tudo se arranjará.

Embora não acreditasse, Tia Clara sentiu-se mais satisfeita. As crianças haviam escutado em silêncio, enquanto bebiam o seu cacau bem quente.

Concluíram que o Tio Alberto era muito inteligente e sabia imensas coisas, mas costumava desprezar casos urgentes como aquele. Por vezes dava até a impressão de não viver neste mundo.

De qualquer maneira, era praticamente impossível voltar aos aposentos. Tudo desmantelado!

Tia Clara começou a empilhar cobertas sobre sofás. Destes, havia um no gabinete de estudo, outro, enorme, na sala de visitas e um mais pequeno, na sala de jantar. Encontrou ainda uma cama portátil num armário e, com a ajuda de Júlio, armou-a também.

- Temos de arranjar isto o melhor possível. Já não falta muito para amanhecer, mas ainda podemos dormir um pouco - propôs a tia.

- Ora vejam! Agora, como já fez estragos, abrandou. Amanhã tomaremos decisões - disse ao Tio Alberto, aludindo à ventania já menos violenta.

Apesar de muito fatigados, os pequenos não conseguiram conciliar o sono. Ana, sobretudo, sentia-se deveras infeliz.

Como poderiam ficar no Casal Kirrin? Voltar para casa? Era impossível! Os pais tinham-se ausentado por um mês e as portas estavam fechadas à chave.

- Creio que não voltaremos para a escola. Seria horrível, logo no princípio das férias - pensou Ana, enquanto diligenciava instalar-se comodamente no sofá.

A Zé não era da mesma opinião. Queria-lhe parecer que os mandavam para a escola, no dia seguinte. Por consequência, isto queria dizer que não voltaria a ver o Júlio nem o David durante as férias, porque eles iriam para outra escola.

Tim era o único que não se mostrava triste. Deitado aos pés da dona, ronronava um pouco, mas satisfeito. Enquanto andasse na companhia da Zé que lhe importava o seu destino?

 

                   OS PLANOS DO TIO ALBERTO

O temporal amainara; -mas o vento ainda soprava com fúria quando a manhã rompeu. Com grande alegria, os pescadores verificaram então que os barcos haviam sofrido muito pouco. Logo, porém, a notícia do acidente correu célere e juntou no Casal Kirrin alguns curiosos que se não cansavam de comentar o desastre.

As próprias pequenas se sentiam ufanas de contar que, só por milagre tinham escapado ao peso esmagador daquela árvore gigantesca que esmigalhara o telhado como uma casca de ovo e destroçara impiedosamente os aposentos do andar superior:

Nem a mulher que veio ajudar a Tia Clara se conteve que não exclamasse:

- Isto vai durar semanas a consertar. Já falou aos operários? Se fosse comigo chamava-os para verem o que é preciso.

- Eu cuidarei de tudo, senhora Daly!-exclamou o Tio Alberto. Minha mulher sofreu um grande abalo e por isso não pode tomar este encargo. O que há a fazer, primeiro, é dar destino aos pequenos. Não podem ficar aqui enquanto isto estiver assim.

- Coitadinhos, o melhor ainda era mandá-los para a escola outra vez! -exclamou a Tia Clara.

- Não! Tenho uma ideia melhor - acrescentou o Tio Alberto, tirando uma carta da algibeira. - Melhor, mas muito melhor. Recebi esta manhã uma carta dum amigo meu, o Lenoir, que também se interessa pelas minhas experiências. Diz ele... deixa ver... Ah! Cá está. E o Tio Alberto leu em voz alta:

"É muito amável o convite que me faz para ir passar aí uns dias com o meu Pedro. Por consequência, permita-me que o convide também para vir até aqui passar uma temporada com os seus pequenos. Serão bem recebidos. A casa é grande e, tanto o Pedro como a Maribelle, apreciarão muito a vossa companhia".

Tio Alberto olhou para a esposa com ar triunfante.

- Aqui tens! É o que se chama verdadeiramente um convite generoso! E não podia vir em melhor ocasião. Pronto, está resolvido! Mandamos os garotos para casa deste meu amigo.

- Mas como é possível, Alberto, se nem sequer conhecemos essa gente ? - disse a Tia Clara.

- É que o filho dele anda na escola com o Júlio e o David e, demais sei eu que o Lenoir é uma pessoa excepcionalmente inteligente - exclamou o Tio Alberto, como se isto tivesse alguma importância para o caso. Vou já telefonar-lhe. Deixa-me ver o número!

Tia Clara achou-se desarmada perante a rápida decisão do marido, que pretendia talvez resolver e remediar tudo, sentindo-se envergonhado pelas grandes responsabilidades que lhe cabiam no desastre, devido ao seu habitual esquecimento. Ele empenhava-se agora em demonstrar que também sabia tomar decisões enérgicas. A pobre senhora tremeu, só de ouvi-lo telefonar. Era uma temeridade mandar as crianças para um local absolutamente desconhecido.

Lia-se a satisfação no rosto de Tio Alberto quando apareceu em frente da esposa, após ter pousado o auscultador.

- Está tudo arranjado - esclareceu. - O Le-noir ficou radiante. Tanto ele como a esposa e os filhos ficarão encantados com a visita dos nossos rapazes. Até podiam ir já, se arranjássemos um carro.

- Mas, repara, Alberto. Nós não sabemos quem é essa gente! E os pequenos não hão-de gostar! Nem me admiro nada se a Zé se recusar - retorquiu a esposa.

- Pois ainda bem que me lembras. É verdade Têm de deixar aqui o Tim. Ao que me consta, o Lenoir não gosta de cães - explicou o Tio Alberto.

- Então já sabes que ela não vai! Isto é uma loucura! Bem sabes como a Zé e o Tim são inseparáveis - teimou a Tia Clara.

- Desta vez terá de ser - disse o Tio Alberto, absolutamente convencido de que a Zé não lhe alteraria os planos.

- Olha! Aí estão eles! Vamos ver se nos entendemos.

Chamou-os para o gabinete e expôs-lhes a situação, no momento em que os pequenos esperavam ouvir novidades pouco agradáveis - o regresso à escola, possivelmente.

Tio Alberto principiou:

- Lembram-se de lhes ter falado num rapaz vosso amigo, a noite passada? O Pedro Lenoir?

Vocês dão-lhe, até, um nome bastante esquisito.

- Há! Já sei! O "Fuliginoso"!-exclamaram, ao mesmo tempo, Júlio e David.

- Pois é esse mesmo! Bom, o pai dele convida-vos a passar uns dias em sua casa. Fica no Monte dos Contrabandistas - esclareceu o Tio Alberto.

A surpresa não podia ser maior.

- Monte dos Contrabandistas?! Que vem a ser isso do Monte dos Contrabandistas ? - perguntou o David, já excitado por esse nome de fantasia.

- É o nome da localidade onde vivem. Trata-se dum edifício bastante antiquado, construído no alto dum monte rodeado de pântanos onde outrora havia mar. O monte era então uma ilha; agora, porém, não é mais que uma elevação de terreno sobre a região pantanosa. Um local muito interessante, segundo dizem. Prestava-se muito ao contrabando, noutros tempos - concluiu o Tio Alberto.

Esta breve narrativa veio aumentar o entusiasmo do grupo. Para mais, tanto o Júlio como o David gostavam imenso do pequeno Lenoir. Este, embora parecesse um pouco tonto, era, de facto, divertido. Enfim, uma ocasião óptima.

- Bom! Em que ficamos? Querem ir para lá ou para a escola? - inquiriu o Tio Alberto, com impaciência.

- Para a escola, não!-exclamaram todos a um tempo.

- Por mim, gostava bastante de ir para o Monte dos Contrabandistas. Há-de ser um sítio formidável. De resto, eu sempre gostei do Fuliginoso, em especial desde que ele serrou uma perna da cadeira do nosso professor. Se querem ver: quando o mestre se sentou, partiu-se logo! -exclamou o David, com entusiasmo.

- Bem, bem! Não me parece motivo para gostar dele... Afinal, estou a ver que o melhor seria voltarem para a escola - reflectiu o pai da Zé, já um tanto duvidoso a respeito das virtudes do pequeno Lenoir.

- Não, não! Vale mais irmos para o Monte dos Contrabandistas - protestaram os pequenos em coro.

Era isso que ele pretendia: ouvir os garotos apoiarem os seus planos; tanto assim que acrescentou:

- Muito bem! Realmente, eu já esperava essa decisão da vossa parte e, por isso, ainda há pouco telefonei ao pai Lenoir. Está verdadeiramente encantado com a minha decisão.

- E posso levar o Tim ? - interrogou a Zé, inesperadamente, - Não. Tenho muita pena, mas o senhor Lenoir detesta os cães - respondeu-lhe o pai.

- Pois também eu não gosto dele. Sem o Tim é que não vou - replicou a Zé, de mau humor.

- Então fica sabendo que voltas para a escola. E acaba com esses modos incorrectos. Bem sabes que não gosto de te ver assim.

A Zé não fez caso das palavras do pai, contribuindo assim para aumentar as apreensões dos outros, que receavam vê-la estragar tudo. Na realidade, aquela aventura no Monte dos Contrabandistas prometia muitas surpresas, mas melhor seria ainda levarem também o Tim. No entanto, não iam agora perder tamanha ocasião de se divertirem, só porque a Zé teimava em andar sempre com o cão atrelado a eles.

Seguiram para a sala de visitas. Ana muito convincente, passou um braço pela cintura da Zé que a repeliu de mau modo.

- Mas tu não vês que tens de ir com a gente ? Que horror, voltares para a escola sozinha - disse-lhe Ana.

- Desde que o Tim ande comigo, tenho sempre companhia, fica sabendo - respondeu-lhe a Zé.

Foi em vão que os outros lhe pediram que mudasse de opinião. A todos repelia, acrescentando:

- Deixem-me em paz! Vou pensar. Digam-me cá: vocês fazem alguma ideia do caminho que tomamos para chegar ao Monte dos Contrabandistas?

- Vamos de automóvel, com certeza, contornando a estrada que sobe ao longo da costa - esclareceu o Júlio. Porquê?

- Não faças perguntas! -respondeu ela, desaparecendo mais o Tim. Eles, porém, não a acompanharam porque lhe conheciam já o mau humor.

Em seguida a Tia Clara começou a fazer os preparativos da viagem, embora fosse inteiramente impossível retirar muitas coisas do quarto das pequenas.

Eis que aparece a Zé, sem o Tim, mas com ar de satisfação.

- Onde está o Tim? - perguntou Ana imediatamente.

- Anda lá por fora - disfarçou a Zé.

- Sempre te decides a acompanhar-nos? - perguntou o Júlio, observando-a.

- Vou, sim. Já resolvi.

Não era, porém, sem motivos que a Zé se furtava aos olhares do primo. E bem sabia porquê, como em seguida veremos.

Tia Clara preparou-lhes uma excelente merenda. Depois esperaram a chegada do automóvel que não tardou.

Instalaram-se o melhor possível. Tio Alberto encheu-os de recomendações para o seu amigo Lenoir.

Por fim, vieram as despedidas afectuosas da Tia Clara que também não se poupou a recomendações:

- Espero que tenham muito boa viagem e se divirtam muito. Escrevam, logo que chegarem!

- Olha! Não fomos dizer adeus ao Tim! Seguramente não te vais embora, sem lhe dizer adeus!-exclamou Ana, admirada com o seu esquecimento e mais ainda com o da Zé.

- Agora já não há tempo para essas coisas - apressou-se a dizer o Tio Alberto; não fosse a Zé transformar os seus planos. E ordenou ao motorista:

- Pode seguir! Mas tenha cautela, não vá com muita velocidade!

Os garotos abandonaram o Casal Kirrin no meio dum entusiasmo sem limites, gritando, e rindo, embora tivessem ainda bem presente o cenário triste da casa esmagada pela árvore gigante.

Mas, haviam escapado à escola e era isso afinal o que mais importava.

Em breve esqueceram também o acidente, ficando-lhes apenas no espírito a recordação cada vez mais próxima do amigo Fuliginoso e o nome mágico do Monte dos Contrabandistas.!

- Monte dos Contrabandistas! Extraordinário! Deve ser uma casa muito velha, mesmo no cimo dum monte. Era uma ilha, antigamente. Depois, o mar afastou-se -ficou apenas o pântano. Curioso e muito engraçado - pensou Ana, como num sonho.

Ninguém respondeu e muito menos a Zé, que se mantinha em silêncio enquanto o carro avançava. Os outros olhavam para ela de vez em quando, e cada vez mais se convenciam de que todo aquele mutismo era por causa do Tim. Ela porém não parecia muito aborrecida.

Ao chegarem a uma elevação do terreno, o carro começou a subir. Mas, no instante em que iniciava a descida, a Zé inclinou-se para a frente e tocou no braço do chauffeur, esclarecendo:

- Não poderia parar um momento, por favor ? Está alguém à nossa espera.

Júlio, David e Ana olharam para a Zé, surpreendidos. Ainda mais espantado ficou o motorista que, por fim, abrandou, quase até parar. Nesse momento ela abriu a porta do automóvel e assobiou fortemente.

Viu-se que qualquer coisa avançava aos saltos e rompia pelo carro dentro. Era o Tim! Pulando para todos os lados, não se cansava de fazer festas e soltar alegres latidos - a melhor demonstração do seu contentamento.

- Mas - exclamou o condutor, um tanto receoso - eu não sei se a menina está autorizada a levar o cão. É que o seu papá não me disse nada a esse respeito.

- Não se incomode! Há-de arranjar-se tudo.

Algo de imprevisto surgiu. Tim acabava de entrar no automóve

Não se preocupe. Siga - acudiu logo a Zé, que não cabia em si de contente.

- Ora esta! -exclamou o Júlio. - Bem sabes que o senhor Lenoir é muito capaz de o mandar embora.

- Ah, sim? Pois, se quiser mandá-lo embora, tem de mandar-me a mim também - replicou a Zé, em atitude de desafio, continuando: - O Tim está aqui e agora tem que ir comigo, seja como for, fica sabendo!

- Assim é que é bom. Eu também não gostava de ir para o Monte dos Contrabandistas sem o Tim - ajudou Ana, primeiro abraçando a Zé e, a seguir, o inseparável amigo.

- Toca a andar para o Monte dos Contrabandistas! Vamos, que deve haver por lá muitas surpresas! - gritou o David, enquanto o carro arrancava novamente.

 

                   A CAMINHO DO MONTE

O carro galgava a estrada ao longo da costa, penetrando, uma vez por outra, algumas milhas para o interior. Para maior satisfação daqueles viajantes de palmo e meio, raro era o momento em que o oceano se afastava da paisagem.

Ao chegar a hora do almoço, o condutor informou-os duma estalagem sua conhecida e muito boa.

Ao meio-dia e meia hora o automóvel estacou diante duma velha estalagem que o pequeno bando invadiu imediatamente. Júlio encarregou-se de velar por tudo e presidiu à mesa.

Reinava grande entusiasmo, de que o próprio Tim partilhou, sobretudo quando viu à sua frente um prato a transbordar de excelente comida, que era um sonho. Tim estava de parabéns naquela casa porque o dono gostava muito de cães.

E foi a Zé que o incitou a comer, recomendando-lhe que papasse tudo.

Enquanto saboreava os bons petiscos, Tim desejava de todo o coração terminar ali a viagem, já que as atenções eram tantas e a comida tão boa.

Terminada a refeição, levantaram-se e foram ao encontro do motorista que ainda estava a almoçar com o estalajadeiro e a mulher, na cozinha.

- Muito bem! Ouvi dizer que os meninos vão para a Terra dos Abandonados. Tenham cautela!- disse o dono da estalagem, erguendo-se.

- A Terra dos Abandonados? Onde fica o Monte dos Contrabandistas, não é verdade? - interrogou o Júlio.

- É, sim senhor! -confirmou o bom homem.

- E porque lhe deram esse nome tão esquisito ? Deixaram lá algumas pessoas abandonadas, quando era uma ilha, naturalmente - arriscou Anita, sempre pronta a fantasiar.

- Não. Diz a lenda que, noutros tempos, o monte estava pegado ao continente mas que abrigava nos seus esconderijos, certas pessoas muito más. Ora, aconteceu que um dos santos se irritou com o procedimento dessa gente e pregou um piparote de tal ordem naquilo tudo que o monte foi ter ao mar e se transformou numa ilha - concluiu o estalajadeiro.

- E por isso lhe chamam ainda a Terra dos Abandonados. Mas, naturalmente, modificou-se tudo para melhor, tanto que já se pode ir a pé, do continente para lá, não é assim?-perguntou o David.

- Sim. Há realmente uma estrada boa. Em todo o caso é bom ter cuidado. Quem se afastar do caminho, desaparece no lodaçal - replicou o dono da estalagem.

- Deve ser uma terra de surpresas, o Monte dos Contrabandistas! Terra dos Abandonados! Um só caminho! Deve ser uma aventura! -reflectiu a Zé.

- É tempo de partirmos. Bem sabem que é preciso chegarmos antes da hora do chá. São as ordens do vosso tio - disse o chauffeur, examinando o relógio.

Voltaram para o automóvel. Tim, aos saltos, aos encontrões, acabou por instalar-se confortàvelmente junto da Zé. Em boa verdade, o peso e o tamanho do Tim eram demasiados para a sua pequena dona mas, como ela não teve coragem de o enxotar, lá ficou.

À medida que o carro acelerava, tanto Ana como os seus companheiros se deixavam adormecer. Principiava a chover. A terra oferecia agora aspecto bastante triste.

Pouco depois, o motorista torceu um pouco, prevenindo Júlio de que se aproximavam da Terra dos Abandonados, prestes a deixarem o continente e a tomarem a estrada ao longo do pântano.

Júlio, por sua vez acordou Ana. Despertaram todos à espera duma surpresa mas grande foi a decepção. Um manto espesso de neblina cobria o extenso pântano. Era uma barreira tão densa que os pequenos não conseguiam perceber o mínimo pormenor, mal distinguindo o leito da estrada por onde seguiam, um pouco acima do extenso lamaçal. Uma vez ou outra o nevoeiro mostrava-se menos cerrado e então notava-se, dum lado e doutro, a vastidão desoladora da região.

- Só um minuto, por favor! Queria ver isto mais de perto - disse Júlio ao motorista.

- Tenha cuidado, não se afaste da estrada. E a menina não deixe sair o cão - preveniu o condutor, parando o carro. - Olhe que se ele foge e salta para o pântano, é um ar que lhe dá.

- Que quer dizer isso ? - interrogou Ana, com os olhos muito abertos.

- Quer dizer que fica ali para sempre - apressou-se a esclarecê-la o Júlio. Fecha-o no carro, Zé!

Por isso o Tim teve de conformar-se. Em vão sacudiu a porta, procurando seguir os seus amigos. O motorista falou-lhe, sossegando-o.

Mas Tim não se conformou e, ganindo de desespero, limitou-se a seguir com os olhos ávidos de surpresa as evoluções do grupo à beira do caminho.

Via-se uma fila de pedras balizando a estrada. Júlio ali mesmo se arriscou a breves sondagens, concluindo imediatamente:

- É só lama. Querem ver este pé ir já para baixo! Por mais um pouco ficava aqui enterrado!

Como era natural, Ana não gostou mesmo nada de semelhante demonstração, aconselhando Júlio a que voltasse para trás.

Coberto como estava pelo nevoeiro, o local oferecia um aspecto fantástico, desolador. O próprio Tim deu por isso e começou a ladrar dentro do carro. - O Tim ainda acaba por estragar a porta do automóvel, se não vamos já para o pé dele - preveniu a Zé.

Por fim voltaram, mas em silêncio. E Júlio pensou em quantos aventureiros ali teriam ficado para sempre. O condutor deu-lhe razão, citando o caso de muitos em que nunca mais se havia falado. Dizem - continuou - que há um ou dois caminhos para lá mas é preciso conhecê-los bem. Já existiam antes da estrada.

- Que horror! Não se pensa mais nisso - disse Ana, continuando: - Vê-se daqui a Terra dos Abandonados ?

- Lá está adiante, no meio da névoa - disse-lhe o condutor. - Não vêem o cimo do monte a sobressair do nevoeiro ? É um local bem estranho.

As crianças olharam em silêncio. O monte destacava-se, apresentando encostas rochosas como penhascos. Parecia que se destacava do terreno, a oscilar entre a bruma. Os edifícios, mesmo a essa distância pareciam antigos e exóticos. Havia até alguns, encimados por torres.

E Júlio apontou, exclamando:

- Aquilo deve ser o Monte dos Contrabandistas. Parece um casarão antigo. Reparem naquela torre. Que vista esplêndida há-de ter!

Os pequenos contemplaram o local que iam conhecer dentro em pouco e notaram que, embora atraente, a região oferecia um aspecto enigmático.

- Até parece que tem lá dentro coisas secretas - disse Ana, exprimindo desse modo aquilo que os outros também pensavam. E acrescentou: - Deve ser um local com uma história muito complicada.

O carro principiou a descer, lentamente, devido ao nevoeiro que aumentava. A estrada, porém, apresentava ao meio uma fila de marcos que se fizeram muito brilhantes quando o motorista acendeu os faróis para se orientar. Depois, à medida que se aproximaram da Terra dos Abandonados, a estrada começou a enclinar-se mais.

Foi a ocasião de o condutor prevenir:

- Vamos passar agora debaixo dum grande arco. Era aqui que ficava outrora o portão da cidade, que ainda hoje é rodeada por uma muralha, como antigamente. Tem largura suficiente para se andar lá por cima e quem partir dum ponto qualquer e for caminhando, virá ter ao mesmo lugar.

Todas as crianças imaginaram bem o que aquilo seria e a linda vista que poderiam obter daquele local, num dia esplêndido de sol.

À medida que avançavam, a estrada tornava-se mais íngreme, de maneira que o condutor teve de meter outra mudança. O carro foi roncando, monte acima, até chegar ao arco. E, ao passarem através duns portões abertos de par em par, as crianças ficaram sabendo que se encontravam na Terra dos Abandonados.

- Dá a impressão de havermos recuado séculos! - exclamou o Júlio, examinando o casario, as lojas antigas, as ruas e os vitrais de velhas portas solidamente construídas.

Subiram pela estrada que ondulava e alcançaram a entrada dum portão grande com aplicações de ferro forjado. O motorista chamou. Alguém correu a abrir a porta.

Desceram por caminho escabroso e foram parar próximo do Monte dos Contrabandistas.

Sentiram-se espantados ao olharem para aquele bloco imenso que parecia ameaçá-los. Era um edifício de tijolo e madeira, ostentando uma fachada maciça como se fosse dum castelo.

Por cima dos vitrais, notavam-se aqui e acolá, saliências do telhado.

A torre do edifício, redonda e ponteaguda, erguia-se altiva para o lado de nascente, exibindo janelas a toda a volta.

- Cá está o Monte dos Contrabandistas! Afinal, temos de concordar que é um nome engraçado. Creio bem que houve por aqui muito contrabando noutros tempos - disse o Júlio.

David apressou-se a tocar ao portão, puxando um cabo de ferro, várias vezes.

Ouviram-se passos apressados. Por trás da pesada porta que se abria lentamente, apareceram um rapaz e uma menina, ele com a idade do David e ela pela idade da Ana, mais ou menos.

- Até que enfim! Estava a ver que nunca mais chegavam!-exclamou um rapaz de olhar vivo e coruscante.

- É o Fuliginoso! - acudiu o David a explicar. As pequenas não o conheciam mas tiveram ocasião de verificar que o nome tinha certa razão de ser. A face escura, o cabelo negro, os olhos retintamente pretos - tudo ajudava àquela alcunha. A pequena, essa oferecia em relação a ele, profundo contraste: - era pálida, quase transparente. Possuía cabelo dourado, olhos dum azul puríssimo e umas sobrancelhas tão ténues que mal se distinguiam.

- Apresento-vos Marybelle, minha irmã. Digam lá se não parecemos mesmo a Bela e o Monstro? - gracejou o Fuliginoso.

Era muito divertido. A própria Zé, que de seu natural era avessa a amizades instantâneas sentiu-se cativada pelos modos do rapaz. Mas, de facto, haveria alguém capaz de detestar aquele garoto de olhar cintilante e tão exóticas maneiras?

- Venham daí!-comandou o Fuliginoso; e, dirigindo-se ao motorista: - Meta o carro por aquela porta, acolá, que o Block tratará de arrumar a bagagem e servir-lhe chá.

De repente, deixou de sorrir e ficou atónito: reparara no Tim.

- Não me digam que é vosso.?!

- É meu, é! Não podia abandoná-lo, nem me separo dele por coisa nenhuma! – arremeteu a Zé, colocando à mão sobre a cabeça do Tim, em atitude protectora.

- De acordo! Mas, sabes que ninguém pode trazer cães para aqui ? - redarguiu o rapaz com imensa pena e receoso de que dessem pelo cão. E acrescentou:

"O meu padrasto não quer ver cães nesta casa. Uma vez até arranjei um grande sarilho: encontrei um cãozito, trouxe-o para aqui e por causa disso apanhei uma sova tremenda.

Anita limitou-se a sorrir timidamente. A Zé, pesarosa, mudou logo de humor, como de costume. Disposta a salvar a situação, ela ainda propôs que se escondesse o Tim em qualquer canto, enquanto ali estivessem. Percebendo que não era bem sucedida, limitou-se a exclamar, colericamente:

- Pois eu volto já para casa; vou no automóvel. Adeus.

Saiu à procura do carro, prestes a partir. O pequeno Lenoir fitou-a e em seguida gritou-lhe, já arreliado:

- Fica. Não sejas parva. Alguma coisa se há-de arranjar!

 

                   QUEM É O FULIGINOSO

O rapaz desceu a escada que ia ter à porta central. Os outros acompanharam-no. Mary-belle entrou também, fechando em seguida a porta com muito cuidado.

Havia uma pequena porta, precisamente no ponto onde a Zé parara. O Fuliginoso empurrou-a, enquanto abria a porta dando passagem aos outros.

- Não me empurres desta maneira! Olha que o Tim é muito capaz de te morder! -replicou a pequena, de mau modo.

- Estás enganada! Os cães gostam muito de mim. Aposto que se te esbofetear, ele não é capaz de me morder.

Entretanto encontravam-se já num corredor escuro, ao fim do qual se via outra porta.

- Esperem só um minuto que eu vou ver se há visibilidade na costa. Mas devo prevenir-vos de que o meu padrasto está em casa e, se descobre o cão, manda-vos todos embora. É isso precisamente o que eu quero evitar. Bem basta o tempo que passei à vossa espera!

Dito isto, fez uma careta muito divertida que teve o condão de os dispor bem, até a própria Zé, ainda um pouco amuada.

O senhor Lenoir era, naquele instante, o pavor da rapaziada.

Mesmo assim, o Fuliginoso avançou em bicos de pés, na direcção à porta ao fundo do corredor.

Vamos - disse o Fuliginoso em voz baixa - mas não façam barulho e abriu-a. Deitou uma olhadela à sala e voltou para junto dos outros dizendo:

- Claridade absoluta! Vamos seguir para o meu quarto pela passagem secreta. Estejam descansados! Ninguém chegará a ver-nos e, uma vez lá, é fácil resolver a situação do Tim. De acordo?

Falar numa passagem secreta era o mesmo que propor-lhes uma aventura fabulosa.

Avançaram em direcção à porta e penetraram no aposento, sempre em silêncio.

Ao examinarem a sala, repararam nas paredes almofadadas, na grande secretária e nos livros que rodeavam as paredes. Devia ser um gabinete de estudo.

O Fuliginoso aproximou-se dum daqueles painéis, tacteou e, carregando em determinado ponto, fez deslizar o painel para o lado. Meteu a mão dentro e puxou em qualquer outro ponto, fazendo deslizar um painel ainda maior, que deixou uma abertura suficiente para eles passarem.

- Venham daí! Mas não façam barulho! - preveniu o rapaz em voz baixa.

Passaram pela abertura, cada vez mais agitados. O audacioso rapaz ficou para o fim, acabando por correr novamente os dois painéis.

Posto isto, acendeu um pequeno archote que iluminou um estreito corredor de pedra tão estreito que duas pessoas passariam com muita dificuldade.

O Fuliginoso passou o archote ao Júlio, que ia à frente, e recomendou-lhe:

- Vai sempre a direito, até encontrares uns degraus de pedra. Depois sobes, voltas à direita quando chegares ao cimo e segues sempre em frente, até encontrares uma parede. Logo te direi o que há a fazer.

Júlio iniciou a marcha, mantendo o archote ao alto para iluminar o caminho aos outros.

O corredor seguia efectivamente em linha recta. Mas, além de estreito, era tão baixo que, do grupo, só a Ana e a Marybelle conseguiam passar à vontade. Ainda assim, Ana detestava aqueles corredores que lhe evocavam pesadelos. E foi com grande alegria que ouviu o Júlio dizer:

- Cá estão os degraus. Vamos subir. Ao que o Fuliginoso acrescentou:

- Não façam barulho. Estamos passando muito perto da sala de jantar. Há outro caminho de lá para aqui. Cautela!

Compreendendo a situação delicada que a sua presença representava ali, procuraram caminhar no maior silêncio, em bicos de pés, marcha sobremaneira difícil para quem tinha de avançar com os ombros pendidos e cabeça curvada.

Subiram catorze degraus, muito a pino, e quase em caracol. Quando chegou ao cimo, Júlio voltou à direita, notando que a passagem se elevava e estreitava como antes. Tão estreita era que o Júlio notou ser impossível a passagem duma pessoa gorda.

Avançou mais e mais, até que, com surpresa, foi esbarrar contra uma parede de pedra.

Instintivamente agitou o archote, iluminando a parede de alto a baixo. Nesse momento ouviu uma voz do extremo da fila:

- É aí a parede, Júlio. Agora, aponta o archote para a aresta da parede com o tecto e empurra com força o cabo de metal que aí está!

Júlio brandiu o archote e descobriu logo o cabo. Passando a luz para a mão esquerda, com a direita segurou o cabo e fez força.

Num ápice, a pedra grande, ao centro da parede, deslizou obliquamente, deixando um vasto espaço vazio.

Júlio não conseguiu dominar o espanto. Largando o cabo, introduziu o archote na cavidade, descobrindo apenas escuridão.

- Não te atrapalhes! É o caminho para o armário grande que está no meu quarto. Avança, que nós vamos já. Não deve haver gente no meu quarto - disse o pequeno explorador.

Júlio avançou e foi encontrar um vasto armário com as roupas do Fuliginoso. Afastou-as, mas esbarrou contra a porta. Abriu-a e recebeu como surpresa a luz viva do dia que inundou o armário.

Um a um, os outros saltaram, embrenharam-se também nas roupas e acabaram por receber de chapa a luz do dia que inundava o aposento.

Tim, sempre intrigado e silencioso, seguia ao lado da Zé, nunca a deixando um só momento. Como os outros, ele também não gostara daqueles caminhos escuros, gozando agora o prazer da luz do dia.

O Fuliginoso foi o último. Depois de fechar cuidadosamente a abertura da passagem - por tal processo que o Júlio não compreendera - veio reunir-se aos amigos e apressou-se a tranquilizar a Zé:

- Aqui não há perigo. Está descansada. O meu quarto e o da Marybelle ficam separados do resto do edifício por um corredor enorme.

Para concretizar, abriu a porta e mostrou-lhes o quarto da Marybelle, contíguo ao seu. A seguir, estendia-se um corredor de paredes e chão empedrados, este último coberto de esteiras. No extremo do corredor, havia uma janela grande batida pela luz e uma porta de carvalho, avantajada. A porta encontrava-se cerrada.

- Estão a ver? Estamos aqui todos à vontade. O Tim que ladre, se lhe apetecer. Garanto-vos que ninguém ouve lá fora - elucidou o irmão de Marybelle.

- E se aparece alguém? Com certeza que há quem cuide dos vossos quartos - sugeriu Ana.

- A Sara, nossa criada, cuida dessas coisas, todas as manhãs. É a única pessoa que aparece por cá. No entanto, para evitar surpresas arranjei um processo de descobrir qualquer intruso - respondeu ele.

Apontou para a porta no extremo do corredor. Os outros olharam, admirados.

- Mas como sabes isso ? - interrogou o David.

- Arranjei uma engenhoca que faz um ruído de buzina no meu quarto sempre que alguém abre aquela porta. Querem ver como é?

Num salto alcançou a porta em questão e abriu-a. Ouviu-se imediatamente um ruído de alarme, algures no quarto dele, que os fez dar um salto, incluindo o próprio Tim.

O outro fechou a porta e voltou, satisfeito:

- Ouviram ? É ou não é uma boa ideia ? Estou sempre a pensar em coisas assim.

Convencidos de que se encontravam num recanto bastante exótico, voltaram para o quarto do Fuliginoso que, na verdade, nada oferecia de especial, a não ser uma janela com vitrais.

Ao contemplar a paisagem, Anita teve um calafrio. Nunca pensara encontrar-se num precipício como o cimo do Monte dos Contrabandistas.

- Reparem! Reparem! Que impressão faz olhar para baixo!-disse ela, receosa.

Os outros rodearam-na e contemplaram o espectáculo estranho que oferecia aquela elevação abrupta, talhada quase a pique sobre o pântano.

O sol iluminava o vértice do monte, enquanto a neblina descia densa sobre o pântano e o mar alto, só deixando a descoberto escassa porção do terreno, mesmo ao fundo do monte.

- Vê-se daqui muito bem o pântano e a orla do mar, quando a atmosfera está límpida. Uma vista linda! De resto, é muito raro poder-se distinguir onde o pântano acaba e o mar começa. É preciso que as águas estejam muito azuis. Sabem, antigamente o mar rodeava o monte e isto era uma ilha. Engraçado, não é?

- Já sei. O estalajadeiro informou-nos. Mas porque recuou o mar ? - inquiriu a Zé.

- Não sei. Dizem que foi recuando pouco a pouco. O mais curioso é que existem uns planos para secar o pântano e transformá-lo em campos. O que eu não sei é se algum dia chegarão a pô-los em prática...-explicou o rapaz.

- Pois eu não gosto nada desse pântano. É um sítio desolador! -disse Ana.

Nessa ocasião o Tim fez sentir a sua presença, como que dando a entender à Zé que seria bom pensarem em ocultá-lo.

- É preciso resolver o caso do Tim. Bem vês que não podemos tratá-lo de qualquer maneira.

- Já vamos tratar dele. Farei o possível para o manter ao pé de nós. Mas, olha que se o meu padrasto o descobre, está tudo perdido - redarguiu o Fuliginoso.

- Gostava de saber porque motivo detesta os cães. É capaz de ter medo deles ? - lembrou Ana, intrigada.

- Não! Não é por isso. Não os quer cá em casa. É tudo quanto posso dizer-te. Alguma razão deve ter, mas desconheço-a. É um homem muito estranho, o meu padrasto!-reflectiu o rapaz, pensativo.

- Que queres dizer com isso ? - perguntou David.

- Bom. Parece que tem imensos segredos. De vez em quando aparecem aqui umas pessoas misteriosas, sem ninguém saber. Para mais, já tive ocasião de assinalar luzes na nossa torre, em certas noites. Só não cheguei a ver quem são e qual a razão desses sinais - disse o pequeno explorador.

- Quem sabe se o teu padrasto é contrabandista - arriscou Ana.

- Não creio. Contrabandista aqui, há só um e todos o conhecemos. Vês acolá aquela casa, à direita, mais abaixo? Vive ali. Tem uma fortuna incalculável. Chama-se Barling. É tão poderoso que nem a polícia consegue meter-se com ele. Faz o que quer - mas é o único. Tanto mais que ninguém se arriscaria a fazer-lhe concorrência. É um homem temível - concluiu o pequeno Lenoir.

- Afinal, nunca mais acabam as surpresas. Quer-me parecer que ainda vamos tomar parte em qualquer aventura - profetizou o Júlio.

- Não! Não penses em tal. Tens essa impressão por causa da antiguidade deste sítio, repleto de caminhos secretos. Apenas os contrabandistas se serviam deles noutros tempos.

Pois bem...!-ia a principiar o Júlio. - Calou-se, porém, e todos olharam, admirados, para o engenhoso guia daquelas paragens. O alarme secreto acabava de dar sinal: por certo, alguém abrira a porta no outro extremo do corredor!

 

                   O PADRASTO E A MÃE DO FULIGINOSO

- Depressa! Depressa! Vem aí gente! Que há-de ser do Tim ? - exclamou a Zé tomada de pânico.

O Fuliginoso pegou no Tim pela coleira e despachou-o para dentro dum velho armário, fechando-lhe a porta.

Já prevenido de que não podia fazer barulho, Tim lá ficou na mais completa escuridão, com o pêlo todo eriçado, sempre alerta.

Agora, para disfarçar, o Fuliginoso principiou a falar aos seus amiguinhos num tom de voz bastante animado:

- Bom, nesse caso, acho que o melhor seria ir já mostrar-vos os aposentos.

Preparava-se para continuar quando a porta se abriu, deixando ver um homem de aspecto severo, de calças pretas e casaco branco.

Ana pensou logo que se tratava de pessoa impenetrável e misteriosa.

- Olá, Block - exclamou o Fuliginoso aereamente. E, voltando-se para os outros:

- É o criado do meu padrasto, surdo que nem uma porta, mas parece-me que, mesmo assim, percebe o que nós dizemos, pelos movimentos dos lábios.

- Em qualquer dos casos, não me parece razoável dizer à frente dele coisas que não diríamos se ele ouvisse - acrescentou a Zé, que, a este respeito tinha coisas muito suas.

Em tom monótono, Block explicou então:

- O seu padrasto e a sua mãe desejam saber porque se desviou para aqui com os seus amigos, sem primeiro os apresentar.

Enquanto falava, Block parecia notar a presença dum cão e procurar localizá-lo, a ajuizar dos pensamentos receosos da Zé.

Ela esperava, porém, que por felicidade o motorista não tivesse feito qualquer referência ao Tim.

- Não calcula como fiquei contente ao vê-los! Tão contente que vim logo com eles a direito para aqui. Eu vou já, Block! -esclareceu o Fuliginoso.

O criado afastou-se sem um sorriso, sem qualquer expressão, o que levou Ana a inquirir se ele já lá estava há muito tempo.

- Veio para aqui há um ano - respondeu o rapaz. -Apareceu cá de surpresa; tanto que, nem eu nem a minha mãe sabíamos que ele vinha! Mal chegou, vestiu este casaco branco e foi logo trabalhar para o gabinete do meu padrasto, sem dar uma palavra. Creio que ele já o esperava, mas a minha mãe ficou tão surpreendida! Com certeza não lhe tinha dito nada.

- Mas então ela é a tua mãe ou madrasta? - perguntou Ana.

- Não se pode ter ao mesmo tempo um padrasto e uma madrasta. Ou uma coisa ou outra - replicou o Fuliginoso, um pouco mal-humorado. - Ela é minha mãe e da Marybelle. Eu e a Marybelle somos apenas meios irmãos, porque o meu padrasto é o verdadeiro pai dela.

- Que trapalhada! -comentou Ana, no desejo de terminar.

- É verdade, já me esquecia, vamos lá embora!

- disse o Fuliginoso. - Na verdade, o meu padrasto parece sempre bem disposto mas de repente, fica furioso por qualquer insignificância.

- Espero que não seremos obrigados a vê-lo muitas vezes - arriscou a dizer a Ana, pouco satisfeita, perguntando como era a mãe do Fuliginoso.

- Parece um rato assustado!-elucidou ele.

- Vais gostar dela. É um encanto. Não gosta de viver aqui, detesta a casa e vive aterrorizada com o meu padrasto. Não que ela o diga; mas eu sei que é assim.

Até a Marybelle, que até aí não tomara parte na conversa, acenou com a cabeça acrescentando:

- Eu também não gosto de viver aqui. Ficarei satisfeita quando for para o colégio, como o Fuliginoso. Tenho pena de deixar a minha mãezinha.

- Bom, vamos lá! - disse o Fuliginoso, abrindo caminho. E continuou: - É verdade, o melhor é deixar o Tim fechado no armário até voltarmos; não vá o Block fazer das suas. Vou fechar a porta do armário e guardo a chave.

Entristecidos pela pouca sorte do Tim, os pequenos acompanharam Marybelle e o Fuliginoso ao longo do túnel de pedra. No fim, encontraram-se ao cimo duma escadaria, larga e inclinada, que ia ter a um vasto recinto.

À direita ficava uma porta que o Fuliginoso abriu. Depois entrou e dirigiu-se a alguém exclamando:

- Cá estão eles! Desculpe-me de os ter levado logo para os meus aposentos. Na verdade, senti-me tão satisfeito!

- Continuas incorrigível, pelo que vejo - respondeu o senhor Lenoir, em tom de gravidade.

As crianças examinaram-no. Sentado num cadeirão, viram um homem de aspecto aprumado e inteligente, cabelo repuxado, de olhos azuis como Marybellle. Estava sempre a sorrir, mas com a boca, não com os olhos.

- Que olhar tão frio!-pensou Ana quando se aproximou para o cumprimentar. Até aquela mão era fria. O enigmático senhor sorriu-lhe, deu-lhe umas palmadinhas no ombro e continuou:

- Que menina encantadora! Vai ser uma esplêndida companhia para Marybelle. Três rapazes para o pequeno e uma menina para fazer companhia à Marybelle. Que divertido!

Naturalmente ele pensava que a Zé era um rapaz. Tinha realmente motivos para isso, pois ela vestia, como sempre, calção e camisola e usava como sabemos cabelo curto e encaracolado.

Ninguém diria que a Zé era uma menina. Ela própria se ocultava de o dizer. E foi assim que ela, o David e o Júlio se dirigiram ao senhor Lenoir para cumprimentá-lo.

Afinal, ainda não tinham reparado na mãe do Fuliginoso. Ela, porém, lá estava, quase escondida numa poltrona, como se fosse uma boneca de olhos cinzentos e cabelo arruivado. Assim despertou a atenção de Ana que não se conteve de comentar:

- Ah! Tão pequenina!

O senhor Lenoir riu-se. Também não era para admirar porque ele tinha de se rir por tudo e por nada.

A senhora Lenoir levantou-se então e sorriu.

 

Que menina encantadora - exclamou ele

Era da altura de Ana e os pés e as mãos tão pequenos que ela nunca tinha visto coisa semelhante num adulto.

Ana simpatizara com ela. Cumprimentou-a e disse:

- É muito amável ter-nos recebido aqui. Naturalmente sabe que a nossa casa foi esmagada por uma árvore.

O senhor Lenoir voltou a rir-se. Fez um trejeito e todos sorriram cortezmente.

- Bom - continuou ele - espero que passem aqui uma boa temporada. O Pedro e a Marybelle vão mostrar-vos a cidade antiga e, se prometerem ter cautela, poderão ir ao cinema, pela estrada que segue para o continente.

- Obrigado - exclamaram todos. Mas, o senhor Lenoir tornou a rir, daquele modo curioso como só ele sabia rir.

- O seu pai é um homem muito inteligente - prosseguiu, dirigindo-se ao Júlio, a quem tinha tomado pela Zé. - Espero que ele venha cá buscá-los e, nessa altura, terei muito prazer em falar-lhe. Realizámos as mesmas experiências mas ele conseguiu ir mais longe do que eu.

- Ah!-fez o Júlio, delicadamente.

Nessa ocasião a senhorinha Lenoir principiou a falar num tom de voz suave:

- O Block servir-vos-á as refeições na sala de estudo da Marybelle, de modo que escusam de incomodar o meu marido. Ele não gosta de conversas à hora das refeições.

O senhor Lenoir voltou a rir, olhando decididamente, com aquele olhar glacial, para todos as crianças, e dirigindo-se ao Pedro:

- Ficas sabendo que te proíbo mais uma vez, de andares por aí em aventuras loucas, aos saltos pela muralha do castelo, sobretudo por estarem cá os teus companheiros. Não quero que lhes suceda ainda algum desastre. Prometes ou não?

- Eu não faço aventuras nem ando aos saltos, - protestou o Fuliginoso.

- Não diga tolices - exclamou o senhor Lenoir, mostrando a ponta do nariz completamente branca. Era mais um sinal da cólera do senhor Lenoir, que Ana ignorava.

- Eu fui o melhor aluno da aula - protestou o Fuliginoso, num tom ofendido, deixando contudo perceber que pretendia fugir ao assunto.

A senhora Lenoir tomou nessa altura a defesa do pequeno comentando:

- Realmente andou muito bem desta vez. Não te esqueças disso...

- Basta!-trovejou o senhor Lenoir, fazendo desaparecer por completo a expressão alegre da face das crianças. -Saiam, saiam todos!

Júlio, David, Ana e a Zé escaparam-se da sala, seguidos pela Marybelle e Fuliginoso que, ao fechar a porta, voltou a fazer caretas, explicando:

- O que ele queria era estragar as nossas férias. Mas aqui ninguém consegue divertir-se se não se aventurar em explorações. Vão ver como eu conheço isto bem.

- O que é isso de catacumbas ? - perguntou Ana, meio impressionada com a palavra.

- São túneis secretos cavados no interior do monte. Ninguém mais os conhece. Já lá têm ficado perdidas muitas pessoas.

- Porque será que aqui existem tantas passagens secretas ? - adiantou a Zé.

- É fácil de explicar - disse o Júlio. - Neste local viviam muitos contrabandistas noutros tempos e com certeza tinham de esconder-se com o contrabando muitas vezes. De resto, segundo diz o Fuliginoso, ainda há aqui um contrabandista. Chama-se Barling, não é verdade?

- Sim - confirmou o outro, acrescentando: - Vamos, que eu vou mostrar-vos os vossos quartos. Ficam com uma linda vista para a cidade.

Conduziu-os junto de dois quartos contíguos em frente aos outros dois que ele e Marybelle ocupavam do outro lado da escadaria. Eram pequenos mas estavam bem mobilados. Ofereciam realmente - bem dissera o Fuliginoso - uma vista maravilhosa por cima dos telhados e das torres do Monte dos Abandonados, incluindo a casa de Barling.

A Zé e a Ana foram ocupar um dos quartos, cabendo o outro ao Júlio e ao David. Evidentemente, a senhora Lenoir havia notado que se tratava de duas raparigas e dois rapazes e não uma rapariga e três rapazes, como pensava o enigmático senhor Lenoir.

- São uns quartinhos bastante agradáveis com estes caixilhos escuros. Haverá por aqui também passagens secretas ? - comentou Ana.

- Não tenhas pressa! - respondeu o Fuliginoso, fazendo outra careta. - Olha, aqui estão as vossas coisas. Alguém desfez as malas. Naturalmente foi a Sara. É muito simpática, muito gorda, tão divertida! Hão-de gostar muito dela. Não se parece nada com o Block!

A Zé em certa altura começou a desconfiar de que o Fuliginoso se esquecera do Tim e por isso perguntou:

- Que vai ser do Tim? Quero que ele esteja ao pé de mim; que não lhe falte nada. Podes crer que preferia ir-me embora a tornar o Tim infeliz.

- Descansa que ele está bem - respondeu o Fuliginoso. - Poderá passear por aquele caminho secreto que dá para o meu quarto e, quanto ao alimento, deixa isso também comigo. Vamos treiná-lo todas as manhãs naquele caminho secreto que fica a meio da cidade. Vai ser um sucesso.

A Zé porém, não se mostrou muito tranquila.

- Gostava que ele dormisse ao pé de mim; se não deita a casa abaixo a uivar.

- Vamos tratar de tudo isso - prosseguiu o rapaz, um tanto duvidoso. - Mas olha que tens de ter muito cuidado para evitar sarilhos. Já sabes como é o meu padrasto!

Não era preciso dizer mais. Júlio olhou para o Fuliginoso com curiosidade, perguntando:

- O nome do teu pai também era Lenoir ?

- Sim - respondeu o Fuliginoso - era primo do meu padrasto e escuro como todos os Lenoir. O meu padrasto - que é louro - é uma excepção. Até dizem para aí que os Lenoir louros não são nada bons - mas, cautela, não digas nada disto ao meu padrasto!

- Nem pensar nisso! - exclamou a Zé. - Julgo-o até capaz de nos mandar cortar a cabeça! Vamos, vamos procurar o Tim!

 

                   O MISTÉRIO DO POÇO ESCONDIDO

Foi grande a alegria dos pequenos ao saberem que podiam tomar as refeições, a sós, na velha sala de estudo. Todos queriam evitar a presença do senhor Lenoir, lamentando que a Marybelle tivesse um pai tão irascível.

Não tardou a hora de recolher, no Monte dos Contrabandistas. Mas a Zé só ficou tranquila quando viu o Tim são e salvo, embora um tanto intrigado. O pior contudo, ainda era conseguir levá-lo, à noite, para o quarto dela. Era esta, talvez, a mais difícil manobra. Block tinha uma arte especial de aparecer instantaneamente, sem ruído, com um faro capaz de assinalar até a presença dum cão - segundo a Zé.

Foi muito estranha a vida do Tim durante os dias que se seguiram! Enquanto os pequenos permaneciam na habitação, ele tinha de ficar naquela passagem secreta, errando, intrigado e só, sempre alerta para o menor ruído daquele sinal inventado pelo Fuliginoso, que o obrigava a recolher ao armário imediatamente.

Quanto à alimentação, não havia que ter apreensões. Para isso lá estava o Fuliginoso que, com grande espanto da Sara, desviava misteriosamente da cozinha ossos e outro comer ao seu alcance.

Todos os dias de manhã, o Tim era treinado. Da primeira vez foi realmente excitante!

Efectivamente a Zé lembrara ao Fuliginoso a sua promessa de passear o Tim diariamente, acrescentando:

- Que vai ser deste desgraçado? Por certo que não vamos levá-lo à presença do vosso pai!

- Já te disse, minha parva, que conheço um caminho que fica a meio do monte - retorquiu-lhe o Fuliginoso. Lá estaremos todos em segurança e, mesmo que o Block ou qualquer outra pessoa nos encontre, julgará que se trata dum cão vadio.

- Bom, nesse caso, mostra-nos o caminho - disse a Zé, com impaciência.

Estavam todos reunidos no quarto do Fuliginoso, com o Tim deitado sobre o colchão, ao lado da Zé. Era um local onde se consideravam seguros, devido ao "besouro" que o Fuliginoso inventara para dar alarme, quando alguém abrisse a porta ao topo do corredor.

- Temos de seguir para o quarto da Marybelle. Mas já vos previno de que apanhais um grande choque - disse ele.

Espreitou pela porta. A que ficava ao fim do corredor estava fechada.

- Marybelle - preveniu ele - vai em bicos de pés ver se vem aí alguém a subir as escadas. Se não vier ninguém raspamo-nos imediatamente para o teu quarto.

Marybelle deslizou até junto da porta ao fim do corredor. Abriu-a e imediatamente se ouviu o tal "besouro" no quarto do Fuliginoso, fazendo o Tim ladrar furiosamente. Marybelle espreitou, observando a escadaria e fez sinal negativo.

Precipitaram-se de chofre para o quarto de Marybelle que, em seguida, veio reunir-se-lhes. Graciosa, reservada e tímida, mais parecia um ratito amedrontado, quando se juntou aos outros. Era a Ana quem mais gostava dela, chegando a ralhar-lhe por ser tão reservada.

Marybelle, porém, era muito sensível. Logo que lhe ralhavam, principiava a chorar e fugia. O irmão afirmava que ela havia de modificar-se quando fosse para o colégio, sugerindo até que eram aquele casarão e o isolamento em que vivia, as verdadeiras causas dessa timidez.

Encerraram-se no quartinho dela e fecharam a porta.

- E para evitar a espionagem do Block - disse ele numa careta, fechando a porta à chave.

Posto isto, principiou a desarredar os móveis que estavam junto das paredes. Os restantes começaram a auxiliá-lo, meio surpreendidos.

- Que vem a ser essa ideia de afastar os móveis ? - inquiriu o David, ainda às voltas com uma cómoda enorme.

- É para retirar este tapete grande. Colocaram-no aqui para ocultar o alçapão. Pelo menos é a minha opinião - elucidou o azougado rapaz.

Agora, com os móveis afastados, já era fácil arrancar o tapete. Por baixo deste, apareceu outra cobertura, que se tornou forçoso retirar também.

Foi nessa altura que eles deram com a tampa do alçapão, rente ao sobrado, apresentando uma pega em forma de argola.

A excitação aumentou. Ali estava, afinal, outra passagem secreta e, quem sabe, quantas mais!

O Fuliginoso puxou pela argola e levantou a pesada tampa com muita facilidade. Todos olharam de surpresa, ficando desiludidos.

Escuridão impenetrável!

O cesto foi descendo pouco a pouco

- Tem degraus ? - perguntou o Júlio afastando Ana, não fosse ela cair.

- Não - disse o Fuliginoso, lançando mão duma lanterna que trouxera consigo. - Olha!

Acendeu a lanterna e, num relance, os pequenos compreenderam tudo. O alçapão deixava ver um poço extraordinariamente fundo!

- Que grande profundidade! Para que teria servido isto ? - perguntou o Júlio admirado.

- Naturalmente, era para ocultar as pessoas ou mantê-las sob prisão - disse o Fuliginoso.

- É um esconderijo engraçado, não é ? - Imagina o barulho que fazias, se caísses lá em baixo.

- Mas, como poderemos nós descer a tão grande profundidade com o Tim ? - disse a Zé.

- Não tenho desejo nenhum de me aventurar.

O Fuliginoso começou a rir.

- Nem é preciso. Olha para aqui!-disse. Em seguida abriu um armário, alcançou uma prateleira larga e puxou por uma escada de corda, delgada mas resistente.

- Aqui tens! Podem descer por aqui.

- Mas não pode o Tim - exclamou a Zé, imediatamente. - Como queres que ele suba e desça por esta corda?

- O quê? Não pode? Mas, então, se ele é tão esperto... Sempre acreditei que o Tim fosse capaz duma coisa destas.

- Mas isso é um loucura - retorquiu a Zé com decisão.

- Esperem! Esperem! - disse a Marybelle de repente, já muito corada por interromper a conversa. - Podemos tirar o cesto da roupa e meter

o Tim lá dentro. Atamos-lhe uma corda e assim já pode descer e subir.

Os outros olharam para ela.

- É uma ideia genial - exclamou o Júlio, entusiasmado.

- Óptimo, Marybelle! Com o cesto tudo se arranjava, mas tinha de ser grande.

- Temos um, enorme, na cozinha que serve só quando cá temos muita gente. Podíamos ir buscá-lo.

- Sim, sim - acrescentou o Fuliginoso. - Vou já tratar disso.

- Mas então que desculpa darás ? - objectou o Júlio.

Entretanto já o Fuliginoso tinha desaparecido precipitadamente, como de costume.

Júlio tornou a fechar a porta à chave para evitar que algum estranho viesse dar com aquilo tudo em desalinho.

Em menos de dois minutos o Fuliginoso apareceu com um cesto grande da roupa. Júlio abriu a porta, exclamando:

- Formidável! Como arranjaste?

- Não te incomodes! Eles não sabem disto. De resto, se houver azar, o cesto volta imediatamente ao seu lugar.

Foram desenrolando a escada de corda ao longo do alçapão, até atingir o fundo do poço. Depois foram buscar o Tim.

Este apareceu, mostrando satisfação por se encontrar outra vez entre os seus amigos.

- Meu querido Tim - disse a Zé - deixa lá, que daqui a pouco, já vamos reunir-nos todos.

- Primeiro desço eu - disse o Fuliginoso.

- Em seguida, vão descendo o Tim. Temos aqui esta corda. É fina mas resistente. Amarra-se o cesto e prende-se a outra ponta a um pé da cama, de modo que, quando voltarmos para cima, já podemos içá-lo sem dificuldade.

Colocaram o Tim dentro do cesto. Foi grande a surpresa do animal. A Zé apressou-se a tranquilizá-lo:

- Silêncio, Tim! Não te preocupes! Deixa lá que já vais dar um lindo passeio.

Ao ouvir a palavra passeio, Tim ficou satisfeito. O que. ele queria, realmente era passear ao sol e ao ar livre.

No entanto, embora desconcertado com aqueles procedimentos a seu respeito, acabou por conformar-se com os conselhos da sua dona.

- Na verdade é um cão extraordinário. Atenção, o Pedro vai descer e temos de estar prontos para largar o Tim - disse a Marybelle.

O Fuliginoso sumiu-se pelo buraco, levando a lanterna nos dentes. Foi uma descida longa. Quando alcançou o fundo, fez sinal com a lanterna.

Lá do fundo chegou a voz dele, como se viesse de muito longe.

- Podem descer o Tim!

Arrastaram o cesto até à beira do alçapão. Depois, ele foi descendo, oscilando, batendo aqui e acolá. Como era de esperar, o Tim ladrou por não gostar da brincadeira.

Júlio e David tomaram conta da corda, descendo o Tim o mais suavemente possível. Ouviu-se um ligeiro baque, quando chegou ao fim. Fuliginoso desatou a corda e Tim saiu, ladrando, aos saltos, mal se ouvindo, porém.

- Agora desçam, um por um, - ordenou o rapaz, agitando a lanterna. - Fechaste a porta à chave, Júlio?

- Fechei, sim. Cuidado com a Ana. Vai descer já - respondeu o Júlio.

Ana começou a descer, um pouco amedrontada ao princípio mas, à medida que se habituava a enfiar os pés na escada de corda, começou a serenar.

Os outros seguiram-na e em breve se encontraram reunidos nas profundezas daquele poço enorme.

Olharam em redor, cheios de curiosidade. Notaram um cheiro a bafio, sem dúvida proveniente daquelas paredes musgosas. O Fuliginoso agitou outra vez a lanterna, deixando ver várias entradas.

- Onde irão dar ? - perguntou Júlio, intrigado.

- Já uma vez te disse que este monte estava cheio de túneis - respondeu o audacioso explorador. - Este poço foi cavado no interior do monte, com ligação para muitos túneis que vão dar às catacumbas, que são aos milhares. Contudo, ninguém as explora com receio de se perder; que não seria o primeiro nem o segundo caso. Para mais, desapareceu o único mapa antigo destas regiões.

- É horrível! Eu é que não gostava de ficar aqui - disse Ana, pouco satisfeita.

- Um belo local, para esconder contrabando. Ninguém o descobriria - argumentou o David.

- Creio que os antigos contrabandistas conheciam isto palmo a palmo - disse por sua vez o Fuliginoso.

"Toca a andar! - prosseguiu ele. - Vamos seguir pelo túnel que dá para fora do monte. Temos de trepar um pouco, quando chegarmos lá fora. Creio que não se importam.

- Nada. Somos todos bons alpinistas. Mas, diz-me cá: tens a certeza de que não ficaremos aqui perdidos para sempre ? - arriscou o Júlio.

- Mas com certeza que sei o caminho! Vamos embora!-tranquilizou-os o Fuliginoso. E, brandindo, agitando a lanterna, sempre à frente, iniciou a marcha através daquele escuro e apertado caminho.

 

                     UM PASSEIO FASCINANTE

O túnel apresentava-se ligeiramente inclinado em rampa, exalando um cheiro nauseabundo. Em certos pontos, havia indício de poços, como aquele por onde tinham descido. O Fuliginoso agitava a lanterna e elucidava:

- Olhem! Este vai dar à casa de Barling. Não se admirem! A maioria das casas aqui construídas, têm ligação com os poços, como a nossa. E alguns estão realmente bem escondidos!

- Ali em frente há luz! - disse Ana, de repente. - Não, não gosto deste lugar!

De facto, tratava-se da luz do dia, que penetrava através duma caverna talhada na encosta do monte. Nesse momento, o grupo reuniu-se naquele ponto para observar o que se passava.

Encontravam-se fora do monte e da cidade, na vertente que descia sobre o pântano. O Fuliginoso trepou por uma rocha, colocando a lanterna no chão.

- Temos de chegar além! -disse, apontando. -Assim alcançaremos um local onde a muralha da cidade é nitidamente baixa, de maneira que podemos subir até lá. Cuidado com o Tim, não vá ele meter-se no pântano!

O pântano, em baixo, oferecia um aspecto medonho. A Zé estava muito preocupada com o Tim, mas sem grandes razões porque o caminho, ainda que rochoso, e muito íngreme, era facilmente acessível.

O aspecto do pântano era desolador.

Foram subindo, saltando de vez em quando, de rocha em rocha. O caminho ia dar à muralha da cidade, ali bastante baixa, como o Fuliginoso dissera. O azougade rapaz trepou ao cimo da muralha, com tanta desenvoltura que parecia um gato!

- Não era para admirar que lhe tivessem posto aquele nome lá na escola - disse o David para o Júlio. - Lembras-te dquela vez em que trepou ao telhado da escola, no outro ano? Estava tudo à espera de que ele caísse mas afinal sempre chegou a atar a bandeira.

- Vamos embora!-comandou o Fuliginoso. - Há visibilidade na costa. Podemos iniciar já a escalada, que não anda ninguém por estes sítios.

Não tardou que se encontrassem todos no cimo da muralha, incluindo o Tim. Iniciaram então o passeio contornando o monte na descida. Nesse momento começou a dissipar-se a névoa, ao mesmo tempo que o sol rompia alegremente.

Encontravam-se diante duma cidade muito antiga. Algumas habitações pareciam estar em ruína mas das chaminés saía fumo, sinal de estarem habitadas. As lojas, de tipo invulgar, apresentavam janelas altas e estreitas, encimadas por goteiras.

Estavam admirando tão singulares arquitecturas, quando o Fuliginoso avisou, sobressaltado, em voz baixa:

- Aí vem o Block! Não façam caso do Tim! Se ele começar a brincar com a gente, fazemos de conta que é um cão vadio.

Fingiram não ver o Block mostrando-se muito interessados pela montra duma loja. Então o Tim, sentindo-se desprezado, correu para a Zé, saltitando como que a pedir que se lembrassem dele.

- Sai daqui, cão!-exclamou o Fuliginoso, enxotando o Tim, com muita surpresa para este. - Vai-te embora, não ouves? - Andas perdido?

Tim, pensando que se tratava de outra brincadeira, começou a ladrar com animação, saltando de contentamento ao redor da Zé e do Fuliginoso.

- Vai-te embora, cão!-repetiu este, enxotando-o novamente.

Nesse momento, Block chegou ao pé deles, inexpressivo como sempre. Apenas disse, naquele tom de voz monótona:

- Esse cão incomoda-vos ? Eu já o enxoto com uma pedra...

- Nem pense nisso - disse a Zé imediatamente.

- Porque não se decide a ir para casa? Pela minha parte o cão pode estar aqui. Gosto bastante dele.

- O Block é surdo, minha tonta - apressou-se o Fuliginoso a dizer. - É inútil falar-lhe.

E, com grande horror da Zé, Block pegou numa grande pedra, fazendo menção de a atirar ao Tim.

Não teve tempo. Com um violento empurrão, segurando-lhe o braço, a rapariga obrigou-o a largar a pedra.

- Quem lhe deu ordem para atirar pedras a este cão ? - vociferou ela desesperada. - Atreva-se, que eu chamo a polícia!

- Que vem a ser isto, Pedro ? Então, que vem a ser isto?

Os pequenos voltaram-se e viram na sua frente um homem alto, de cabelo comprido. Era, na opinião de Ana, um homem de configuração excepcional, com os pés e as pernas, muito delgados e compridos.

- É o sr. Barling! Desculpe, não esperava!

- disse o Fuliginoso, cortezmente. - Não se incomode. Este cão seguiu-nos e o Block quer atirar-lhe uma pedra. Ora a Zé gosta muito de cães e por isso zangou-se com ele.

- Está bem. Mas, quem são esses garotos?

- perguntou Barling, examinando-os com aqueles olhos oblíquos.

- Vieram para aqui passar uns dias porque a casa deles sofreu um acidente. Quero dizer a casa do pai da Zé, em Kirrin.

- Em Kirrin ? - disse Barling, parecendo lembrar-se dalguém.

- Creio que é onde vive aquele cientista muito amigo do senhor Lenoir?

- Sim, é meu pai. Conhece-o ? - inquiriu a Zé.

- Já ouvi falar dele e das suas experiências famosas. Suponho que o senhor Lenoir o conhece muito bem...

- Muito bem, não me parece - disse a pequena.

- Creio que se correspondem e, então, o meu pai telefonou-lhe, a pedir que nos deixasse ficar aqui enquanto arranjam a casa.

- E com certeza o senhor Lenoir ficou encantado. O teu pai é na verdade uma pessoa admirável - acentuou o senhor Barling, dirigindo-se ao Fuliginoso.

Os pequenos repararam na voz enfastiada com que ele se exprimia, percebendo que o senhor Barling detestava o Lenoir. Neste aspecto estavam de acordo com a agravante de eles não simpatizarem também com este senhor Barling.

Tim viu outro cão e seguiu-o. Block levando um cesto, desapareceu ao longo duma rua íngreme. Os pequenos despediram-se de Barling, desejando não voltar a falar-lhe.

Foram logo em busca do Tim, dando expansão aos seus sentimentos, assim que Barling se afastou.

- Felizmente conseguimos desembarçar-nos de Block! Realmente ele é um animal mas tu, Zé, por pouco estragavas tudo.

- Não quero saber disso para nada, de resto, eu tinha de defender o Tim. Olha que já é ter pouca sorte, encontrar o Block logo ao primeiro passeio - replicou a Zé, muito senhora de si.

- É provável que não tornemos a encontrá-lo quando sairmos com o Tim. Mas, no caso de o encontrarmos, defender-nos-emos dizendo que o bicho não nos pertence, que vem ter connosco sempre que nos vê. Não é verdade ? - disse o Fuliginoso, com ar de quem estava muito seguro das suas convicções.

Ainda tiveram ocasião de apreciar o esplêndido passeio. Entraram num café muito antigo e regalaram-se a tomar taças bem quentes de café com leite e compota. Tim saboreou também uns bons bocados. Nessa ocasião a Zé lembrou-se de lhe ir comprar carne, tendo o cuidado de escolher um talho onde não conhecessem a senhora Lenoir. Compreende-se porquê.

Regressaram pelo mesmo caminho. Treparam pelos penhascos depois encaminharam-se para a entrada do túnel, fazendo o percurso subterrâneo até alcançarem o poço. Lá estava a escada de corda, pronta para nova aventura. O Júlio e o David subiram primeiro, enquanto a Zé, para grande surpresa do Tim, o metia novamente no cesto. Amarrado solidamente, lá foi aos tombos contra as paredes, ganindo, até que os dois rapazes, já fatigados, pegaram no cesto e foram para o quarto de Marybelle delatá-lo.

Faltavam dez minutos para a hora do jantar.

- Não há tempo a perder. Vamos fechar o alçapão, compor o tapete e lavar as mãos - disse o Fuliginoso. E prosseguiu: - Vou meter o Tim na passagem secreta, por trás do armário do meu quarto. De caminho levo também a carne que tu compraste. Poderá comer quando quiser. Onde está isso, afinal? - perguntou à Zé.

Como resposta, ela quis saber, pela terceira ou quarta vez, se ele não se esquecera de pôr lá um cobertor de lã para o Tim dormir, bem como uma tigela com água.

- Já te disse que sim, escusas de tornar a perguntar - respondeu-lhe o Fuliginoso, continuando:

"Arrumam-se só as cadeiras, o resto dos móveis ficam assim. Se alguém nos perguntar dizemos que é por causa dum jogo que fazemos em cima do tapete. Pois não! Era o que faltava! Andar sempre a desarrumar tudo, de cada vez que levamos o Tim a passear.

Chegada a hora do jantar, lá estava o Block e a Sara. Os pequenos estavam com um apetite devorador, embora tivessem provado umas boas guloseimas durante o agitado passeio de que falámos. Por isso receberam com agrado aquela sopa reconfortante que a Sara e o Block lhes serviram.

- Creio que conseguiram livrar-se daquele cão maçador - disse Block, em tom monótono, deitando um olhar indignado à Zé, por se lembrar da partida.

O Fuliginoso disse que sim com a cabeça. De nada serviria falar porque o Block nada ouvia. Entretanto, Sara preparava-se para distribuir o resto da comida que era boa e abundante, para maior alegria dos insaciáveis visitantes.

Marybelle era a única que não participava desse entusiasmo, por não ter grande apetite, apesar do passeio. A Zé, por seu lado, ocupava-se também, a desviar e esconder pedaços de carne com que queria mimosear o Tim.

Durante dois ou três dias tudo se passou normalmente.

De manhã o Tim dava o seu passeio. E não tardou que o grupo se sentisse perfeitamente apto para descer e subir a escada de corda.

À tarde, instalavam-se no quarto do Fuliginoso ou no da Marybelle, lendo ou brincando. O Tim fazia-lhes companhia, sem receio de qualquer intruso. Lá estava o alarme para os prevenir.

À noite a cena tornava-se divertida. Era a ocasião de passarem o Tim para o quarto da Zé, às ocultas. Uma operação arriscada, feita durante o jantar do senhor Lenoir e sua esposa enquanto a Sara e o Block os serviam.

Felizmente, os pequenos jantavam primeiro, uma hora antes dos senhores. Não podia ser melhor.

O Tim gostava daquelas manobras. À frente da Zé e do Fuliginoso, em perfeito silêncio, tinha o cuidado de parar, momento a momento, sumindo-se no quarto da sua dona, logo que ali chegava. Metia-se debaixo da cama e só saía de lá quando a Zé se ia deitar. Então saltava para cima da cama e instalava-se comodamente aos pés dela, com a porta do quarto fechada à chave. E, dia após dia o receio foi desaparecendo porque, nem à Sara nem à senhora Lenoir passava pela ideia a presença dum cão naqueles aposentos.

De manhã, a retirada do Tim constituía tarefa menos fácil, que tinha de ser levada a cabo, antes de haver gente a pé. A Zé acordava sempre à hora que desejava e, por isso, todas as manhãs, por volta das seis e meia, se esgueirava com o Tim. Dirigia-se ao quarto do Fuliginoso mas este estava já acordado pelo barulho que a porta fazia ao fundo do corredor.

- Creio que se têm divertido muito!-dizia o senhor Lenoir quando encontrava os pequenos no salão ou nas escadas. Respondiam-lhe sempre cortezmente mostrando-se muito reconhecidos.

- Afinal, tudo se passa com a maior calma possível - observou, meio desapontado, o Júlio.

E foi então que as surpresas começaram a surgir, tantas que pareciam não mais acabar.

 

                     O SEGREDO DA TORRE

Uma noite, Júlio foi repentinamente despertado por alguém que abrira a porta do seu quarto.

- Quem está aí ? - perguntou.

- Sou eu - respondeu-lhe o Fuliginoso baixinho. - Anda ver uma coisa!

Júlio acordou o David. Vestiram-se à pressa. Seguindo o Fuliginoso, os dois irmãos entraram num pequeno e exótico compartimento, situado na ala esquerda do edifício.

Havia ali de tudo: caixas, malas, brinquedos antigos, armários com roupas velhas, vasilhas quebradas e outros objectos sem valor.

- Atenção! Reparem!-segredou o Fuliginoso, conduzindo-os à janela, donde se via a torre do edifício, em virtude da posição em que ficava situada.

Olharam. Na verdade, começaram a surgir as swpresas. Com grande espanto do Júlio, alguém se encontrava na torre a fazer sinais, com uma luz que, ora acendia ora apagava, num certo ritmo.

- Quem será? - articulou o Fuliginoso.

- O teu padrasto?-arriscou o Júlio.

- Nem penses nisso!-respondeu o outro. ,- Creio que ainda há pouco estava a ressonar no quarto. Podíamos ir ver se ele está realmente

- na cama.

- Bem, bem, vê lá em que te metes!-preveniu o Júlio, agora pouco desejoso de mais aventuras em casa estranha.

No entanto, encaminharam-se para o quarto do senhor Lenoir. Ficaram convencidos. Efectivamente, ouvia-se o ressonar bem conhecido do Lenoir.

- Talvez seja o Block. Ou muito me engano ou ele tem segredos. Aposto que é o Block - garantiu o David.

- Não seria melhor ir ver se ainda está deitado ? - bichanou o Fuliginoso. E prosseguiu: - Vamos. Se for o Block, posso garantir-vos que se meteu nisto sem o meu padrasto o saber.

- Ora, o teu padrasto podia tê-lo prevenido - disse o Júlio, que também desconfiava do senhor Lenoir.

Encaminharam-se para os compartimentos onde dormiam os criados.

Sara dormia num dos quartos com a ajudante de cozinheira. Block dormia noutro quarto.

O Fuliginoso notou que a porta do quarto estava aberta. Empurrou-a lentamente, até conseguir espaço suficiente para espreitar. O luar inundava o aposento, perto da janela do qual, se encontrava a cama do criado. Através daquela iluminação furtiva o pequeno vislumbrou a sombra volumosa do Block, destacando-se a mancha negra da cama.

Em vão apurou o ouvido, esperando ouvir-lhe a respiração, Nem o menor ruído.

Afastou-se e puxou os outros para a escada, suavemente. Foi Júlio quem, primeiro, quebrou o silêncio, segredando:

- Tens a certeza de que ele está deitado?

- Tenho. Não era Block - garanto-te - quem fazia os sinais na torre. Mas quem será? Confesso-te que a história começa a intrigar-me. Por certo que não é a mãe; nem a Sara; nem a criadita. Andará por aqui algum desconhecido?

- Não pode ser, - redarguiu-lhe o Júlio um tanto impressionado. Para mais - continuou - parece-me que o melhor ainda era subir à torre a ver se descobrimos alguma coisa. Naturalmente teremos de avisar o teu padrasto.

- Não. Ainda não. Quero, primeiro, certificar-me bem - disse o Fuliginoso obstinadamente. - Vamos à torre, mas é precisa muita cautela. Sobe-se uma escada de caracol, bastante estreita. No entanto, não há que ter receio. Se aparecer alguém, há muitos esconderijos para nos ocultarmos.

O que é que existe na torre ? - perguntou baixinho o David, enquanto caminhavam em silêncio e na escuridão, apenas recebendo, uma vez por outra, a luz furtiva do luar que se escapava aqui e acolá por entre as cortinas corridas.

- Nada de importância. Uma cadeira ou duas, uma mesa e uma estante. Vamos para lá nos dias muito quentes do Verão tomar o fresco e gozar o lindo panorama - disse o Fuliginoso.

Atingiram um pequeno patamar. Dali partia a escada de caracol, que ia dar à torre. Puseram-se a observar em redor. O luar caía sobre a escadaria, filtrado por uma pequenina janela da parede, que mais parecia uma fenda.

- É melhor não subirmos todos - disse o Fuliginoso. Seria muito difícil fugirmos, no caso de a pessoa que está lá em cima se lembrar de descer repentinamente. Portanto, fiquem vocês aqui à espera, enquanto eu vou lá acima. Vamos a ver se consigo descobrir qualquer coisa pelas frestas da porta ou pelo buraco da fechadura.

Galgou surrateiramente, escada acima, desaparecendo logo na volta da primeira espiral. Júlio e David ficaram em baixo, esperando, protegidos pelas sombras. Por sorte, uma das janelas tinha um cortinado imponente. Ocultaram-se, envolvendo-se também no tecido para não arrefecerem.

O Fuliginoso havia alcançado o cimo da escada. O quarto da torre tinha uma porta sólida, apainelada e bem travejada. Para grande arrelia do rapaz, achava-se fechada, sendo inútil também tentar espreitar.

Não havia fresta e o orifício da fechadura fora tapado. Só lhe restava aplicar o ouvido.

Ouviu uma série de pequenos ruídos: clique, clique, clique, clique, clique. Nada mais.

- É seguramente o ruído da lanterna com que estão fazendo os sinais - pensou o rapaz. - Porque será que continuam a fazer estes sinais, utilizando a nossa torre como se fosse um posto de sinalização? Hei-de descobri-los!

De repente deixou de ouvir: clique... clique... Alguém caminhava agora, ecoando os seus passos no empedrado da torre. A porta abriu-se!

Num relance, o pequeno e audacioso espião compreendeu que não dispunha já de tempo para se precipitar, escadas abaixo. O mais que podia fazer era ocultar-se num daqueles nichos a esperar que esse estranho não o descobrisse à sua passagem.

Por felicidade nesse momento, a lua ocultara-se por trás das nuvens, envolvendo assim o atrevido rapaz na mais profunda escuridão. O desconhecido

Ocultaram-se por trás das cortinas, supondo que era o misterioso sinalizador aproximou-se e, ao descer a escada, roçou ainda no braço do Fuliginoso.

Este, quase ficou sem pinga de sangue, esperando que uma força misteriosa o arrancasse do esconderijo.

A misteriosa personagem não chegou, porém, a notar-lhe a presença seguindo, escadas abaixo, quase sem ruído.

O Fuliginoso ainda pensou em persegui-lo. Não o fez, porém, receando que o luar revelasse ao desconhecido a sua presença. Assim, permaneceu no esconderijo, crente de que o Júlio e o David estivessem bem resguardados; não fossem eles pensar que aqueles passos eram dele.

Efectivamente, o Júlio e o David ouviram aqueles passos e julgaram, ao princípio, que era o Fuliginoso. Não ouvindo, no entanto, o menor sussuro, recolheram-se atrás das cortinas, pensando na misteriosa personagem.

- O melhor era segui-lo - segredou o Júlio ao David.-Sigamo-lo em silêncio!

O Júlio, embaraçado entre os espessos cortinados, não conseguiu firmar-se bem no caminho. E o David, esse deslizou rápida mas suavemente no encalce daquele intruso. A lua rompera de novo, o que permitira ao David surpreender ainda algumas imagens fugidias do desconhecido. Para onde iria ele ?

Perseguiu-o até ao corredor. Depois, atravessou outro terraço e chegou à escada de serviço, que conduzia aos aposentos da criadagem. Iria para ali ?

Com enorme espanto, notou que o homem penetrava silenciosamente no quarto de Block. Chegou-se à porta que tinha ficado um pouco aberta.

Seguiu pelo patamar, até ao corredor. Não havia luz, a não ser do luar. Nem uma palavra. Apenas um leve estalido que bem poderia vir da cama.

David adiantou-se, cheio de curiosidade, na esperança de ver algum homem acordar Block. Quem sabe se iria, até, saltar pela janela!

Ficou surpreendido no limiar do aposento, ao verificar que ninguém, excepto Block, se encontrava ali. Auxiliado pela claridade da lua, que realçara outra vez, pôde ver nitidamente o aposento vazio. Block suspirou e voltou-se na cama. - É espantoso!-pensou David, intrigado. Como é possível que um homem entre num quarto e desapareça completamente, sem o mínimo ruído ? Para onde terá ido?

Voltou para trás à procura dos companheiros. Nessa altura já o Fuliginoso havia descido a escada de caracol e encontrado o Júlio, que o pusera ao corrente da aventura em que o David se metera.

Foram procurá-lo. A escuridão fez com que esbarrassem uns nos outros, deixando o Júlio apavorado.

- Bolas!-exclamou.-Sempre me pregaste um susto! Então, chegaste a ver quem era?

David pô-los ao corrente das suas tentativas falhadas, acentuando:

- Mal entrou no quarto do Block, desapareceu imediatamente. Haverá alguma passagem secreta no quarto do criado?

- Nenhuma! - disse o Fuliginoso. -Esta parte do edifício é muito mais recente que o resto da habitação. Não tem segredos. Realmente, não posso calcular o que terá sucedido ao homem. Muito estranho tudo isto. Que motivos o trarão aqui e para onde irá este indivíduo misterioso?

- Temos de esclarecer este mistério! Mas, diz-me cá, como descobriste estes sinais ? - perguntou o Júlio ao Fuliginoso.

- Isto aconteceu há tempos e foi por simples acaso - respondeu-lhe o outro. - Uma noite em que não conseguia dormir, dirigi-me àquele local, em busca dum livro antigo, que me lembrava de ter visto por ali. E, de repente, olhei para a torre e notei os sinais luminosos.

- Curioso!-disse o David.

- Pois bem!-prosseguiu o endiabrado rapaz - lá voltei mais algumas vezes à espera de ver novos sinais e consegui, por fim. Da primeira vez fazia um luar esplêndido; da segunda vez, também.

Portanto, na próxima vez em que haja luar, volto lá a ver se descubro os mesmo sinais. E não faltou!

- Para onde deita aquela janela onde nós vimos os sinais ? Para o mar ou para terra ? - perguntou o Júlio, bastante pensativo.

- Deita para o mar. Há alguém no mar que recebe aqueles sinais. Só Deus saberá quem é - elucidou o Lenoir Júnior.

- Naturalmente são contrabandistas. Mas, com certeza, não é assunto com o teu padrasto. Seria melhor irmos à torre ver se fazemos alguma descoberta.

 

                   TIM DÁ O ALARME

No dia seguinte foi grande o espanto das raparigas quando souberam da aventura da última noite.

- É curioso - disse Ana, bastante admirada - quem será que vem para aqui fazer sinais? O mais estranho é ter entrado no quarto do Block, estando ele deitado.

- Porque não nos chamaram? - perguntou a Zé.

- Porque não tivemos tempo. Para mais, o Tim era muito capaz de atirar-se ao desconhecido - retorquiu o David.

- Com certeza o homem esteve a fazer sinais aos contrabandistas - disse o Júlio pensativamente, acrescentando: - Naturalmente, vieram de França num barco, aproximaram-se o mais possível do pântano, esperaram pelo aviso para saberem se havia visibilidade e depois tomaram o caminho já conhecido através do pântano. Cada homem trazia, portanto, um archote para não se afastar dos outros nem cair no lodaçal. Havia, seguramente, alguém à espera deles, nas margens do pântano, pronto a receber as mercadorias.

- Mas, quem será ? - disse o David. - O senhor Barling não é, com certeza, embora tenha fama de contrabandista, porque os sinais eram daqui e não da casa dele.

- Pois bem - concluiu a Zé - veremos se conseguimos descobrir esta marosca. Não há dúvida que se trata dum mistério, quer o saiba teu padrasto, ou não!

Voltaram a discutir o caso à hora do pequeno almoço. Block entrou na sala sem que Ana desse por isso.

- Que espécie de contrabando faz o senhor Barling ? - perguntou ela, inadvertidamente.

Como resposta recebeu um forte pontapé no tornozelo que a deixou desesperada.

- Que vem a ser isto...? - articulou ainda, recebendo em seguida pontapé mais violento. Só então deu pelo Block.

- Mas, se ele é completamente surdo! - justificou ela.

Block começou a arrumar as coisas, como sempre indiferente.

O Fuliginoso notou que ela estava bastante perturbada, continuando a friccionar o tornozelo magoado. Quando Blòck saiu, ela não se conteve que não lhe dissesse:

- Que ideia foi essa de me aplicares um pontapé assim? Porque não havemos de falar, à vontade, se ele é surdo? - É isso que dizem, realmente - retorquiu o outro. - Por mim não o nego. No entanto, sempre te digo que lhe notei uma expressão irónica quando me perguntaste pelo contrabando do senhor Barling. Quem sabe se ele ouviu o que tu disseste?

- Isso julgas tu! - disse Ana, ainda a esfregar o tornozelo. - Mas seja como for, previno-te de que não voltas a magoar-me desta maneira. Bastava tocares-me com o pé. Se não quiserem que se fale à frente do Block, muito bem; mas garanto-te que ele é surdo que nem uma porta!

- A Ana tem razão. Ontem à mesa deixei cair um prato, que se fez em pedaços e ele nem sequer se voltou - disse o David.

- Seja como for, não confio no Block. Não sei se sabem que há surdos capazes de perceberem os movimentos dos lábios - redarguiu o Fuliginoso.

Saíram com o Tim para o passeio do costume. Tudo seguia agora com a maior facilidade.

Nessa manhã, tornaram a encontrar o Block. Este voltou a examinar o cão, muito intrigado ao ver que era o mesmo.

- Aí está outra vez o Block!-disse Júlio em voz baixa. - Não enxotem o Tim. Faz-se de conta que é um cão perdido que vem juntar-se-nos todas as manhãs.

Deixaram o Tim andar com eles e quando o Block apareceu, fizeram-lhe sinal para seguir. Ele, porém, não se conteve e observou:

- Parece que esse cão gosta muito dos meninos.

- É verdade. Agora faz-nos companhia todas as manhãs. Julga que gostamos dele. É engraçado, não é ? - disse o Júlio.

Block contemplou o Tim, que começou a ladrar.

- Tenham cautela, não o levem para casa se não o senhor manda-o matar - preveniu o criado. Júlio, vendo a Zé fazer-se muito corada, a rebentar de cólera, apressou-se a dizer:

- Mas que parvoíce! Quem é que pensa levar o cão para casa?

Block, evidentemente, não ouviu. Deitou um olhar venenoso ao Tim e seguiu o seu caminho, voltando-se uma vez ou outra para observar o fiel companheiro dos garotos.

- É horrível ouvir estas barbaridades - disse a Zé desgostosa.

Quando regressaram ao quarto da Marybelle, nessa manhã, apesar do novo encontro, procederam como era hábito. E preparavam-se para deixar o Tim na passagem secreta, às voltas com umas boas guloseimas, quando este deu sinal.

A Zé notou-lhe o pêlo eriçado, o olhar fixo na porta e segredou:

- Há gente lá fora. O Tim deu sinal. É melhor começarmos a falar em voz alta, fingindo que estamos a jogar. Eu meto-o no armário onde se põe a escada de corda.

Principiaram imediatamente a conversar, enquanto a Zé fazia desaparecer o Tim dentro do armário, recomendando-lhe silêncio.

- Agora sou eu - disse o Júlio, tirando um baralho de cartas de cima da estante. - Desta vez ganhaste, mas agora ganho eu, David.

Começaram a falar em voz alta, dizendo o que lhes vinha à cabeça, enquanto jogavam às cartas. Gritavam a todo o instante, ganhei!, procurando mostrar-se vivamente entusiasmados, e de tal modo que ninguém diria o contrário.

A Zé foi a primeira a notar que alguém mexia na porta suavemente.

Quem quer que fosse procurava abrir a porta e entrar, sem ser notado. Mas, infelizmente para esse intruso, a porta encontrava-se fechada à chave.

Lentamente, a maçaneta da porta foi girando em sentido contrário.

Seguiu-se silêncio, ficando os do grupo sem saber quem era o estranho visitante.

Então a Zé fez uma experiência. Recomendando aos outros que continuassem a rir e a gritar, correu a tirar o Tim do armário, esperando que ele farejasse a estranha personagem.

Tim correu à porta do quarto, farejou com cuidado, voltando depois junto da Zé, muito preocupado, agitando a cauda.

- Pronto - disse a Zé - quem quer que era foi-se embora. O melhor seria levá-lo já para o quarto enquanto há visibilidade - disse ela para o Fuliginoso, continuando: - Quem seria ?

- Devia ser o Block - respondeu-lhe o rapaz, abrindo a porta e espreitando.

Não viu ninguém. Avançou em. bicos de pés até à porta do fundo e espreitou. Dum salto alcançou a Zé e informou-a de que estava tudo em ordem.

Não tardou muito que o Tim se encontrasse na passagem secreta a trincar os seus biscoitos favoritos.

A breve trecho, o Tim habituara-se e arriscara-se mesmo a fazer a exploração doutros corredores. Tinha também um pouco de espírito contrabandista!

- É tempo de irmos almoçar - disse o Davíd. - Mas tem cautela, Ana, não fales nisto quando o Block estiver junto de nós, que ele é capaz de ler nos nossos lábios.

- Está bem - disse Ana, com indignação. - Nunca pensei que ele fosse capaz de perceber os movimentos dos lábios. É preciso ser muito inteligente.

Sentaram-se à mesa para almoçar, servidos apenas por Block. Sara tinha saído. O criado serviu-lhes a sopa e saiu também.

De repente ficaram surpreendidos e apavorados, ouvindo o Tim ladrar com força.

- Não ouviram ladrar? É o Tim. Deve andar perto daqui. São capazes de o descobrir - disse o Júlio.

- Nem uma única palavra à frente do Block! Façamos de contas que não ouvimos nada, se ele tornar a ladrar. Que raio será ? - disse o Fuliginoso.

- É assim que costuma ladrar quando está satisfeito. É capaz de andar à caça dalgum rato. Oxalá que se cale - disse a Zé.

Block entrou no momento em que o Tim acabava de ladrar, Pouco depois voltou a ladrar.

Júlio observava Block com atenção.

O criado serviu-lhes a carne sempre em silêncio. Não deixou, porém, de olhar para os rapazes intencionalmente, como se pretendesse captar a expressão fisionómica ou as palavras deles.

- Que rica sopa! Tenho de confessar que a Sara é uma cozinheira esplêndida - disse o Júlio olhando os outros.

- E aqueles bolinhos no forno - acrescentou Ana.

- Uf-uf! - fez o Tim novamente, lá de longe.

- Olha, Zé, a tua mãe consegue fazer os mais deliciosos pudins que eu tenho comido - disse o David, tentando levar o Tim a calar-se. - Não sei como se terão arranjado no Casal Kirrin com o tecto naquele estado.

- Uf! - tornou a fazer o Tim, talvez apanhando o rato outra vez.

Block serviu-os e desapareceu. Júlio dirigiu-se para a porta, no intuito de verificar se ele teria ficado à espreita.

- Bolas! Estou convencido que o Block não é surdo como uma porta. Ia jurar que ele ficou surpreendido quando o Tim ladrou - disse o Júlio.

- Pois bem, se ele tivesse ouvido, o que não creio, - disse a Zé - deveria ter ficado muito surpreendido ao ver-nos falar sem fazer caso do Tim.

De repente ouviram passos e principiaram a empilhar os pratos esperando que o Block viesse buscá-los.

Abriu-se a porta da sala. Não era, porém, Block. Com grande surpresa, viram aparecer o senhor Lenoir, sonindo como de costume e examinando tudo.

- Com que então satisfeitos e bem comportados, não é verdade? O Block tem-vos tratado bem? - perguntou o senhor Lenoir, com aquelas maneiras irritantes de quem se dirige a garotinhos.

- Muito bem, obrigado. A Sara é uma cozinheira exemplar - respondeu o Júlio, delicadamente, em pé.

- Óptimo! Óptimo!-disse o senhor Lenoir.

Os pequenos desejavam ardentemente que ele se retirasse sem demora, receando que o Tim voltasse a ladrar. O senhor Lenoir, contudo, não se mostrava apressado.

E foi então que o Tim, para pouca sorte, voltou a ladrar: Uf! Uf!

 

                   OS EMBARAÇOS DA ZÉ

Ao ouvir aquele ruído, o senhor Lenoir aplicou o ouvido, um tanto desconfiado, em vão procurando nos pequenos quaisquer indícios de admiração.

Tornou a escutar, sem resultado. Em seguida pegou num livro de desenho do Júlio e pôs-se a examiná-lo.

Eles compreenderam a manobra. Júlio pensou que o senhor já deveria ter suspeitado da presença do Tim e procurava certificar-se pelos seus próprios meios. Na verdade, era a primeira vez que o enigmático senhor se dirigia à sala de estudo.

Tim ladrou novamente, desta vez mais de longe, razão para que no nariz do senhor Lenoir aparecesse aquele sinal branco, expressão da cólera que Mary-belle e o Fuliginoso tão bem conheciam.

- Ouviram aquele barulho ? - perguntou, acentuando bem as palavras.

- Que barulho, senhor?-respondeu o Júlio delicadamente.

Tim voltou a ladrar.

- Não se façam parvos! Também não ouviram agora ? - acentuou o senhor Lenoir.

Nesse momento passou uma gaivota que deixou no espaço um lamento, acompanhado pela brisa marítima.

- Talvez sejam as gaivotas. Chegam a miar como os gatos - replicou David, com vivacidade.

Se apanho esse cão, mando-o matar - O quê ? - disse o senhor Lenoir furioso. - Nesse caso também ladram como os cães?

- É possível. Afinal, se conseguem imitar os gatos, é natural que imitam os cães - prosseguiu David, com ares de quem estava verdadeiramente pasmado.

Tim ladrou outra vez, manifestando viva satisfação. A cólera do senhor Lenoir chegou ao auge, explodindo:

- Também não ouviram agora? Serão capazes de me dizer o que é isto?

Extremamente perturbados, os pequenos fingiram apurar o ouvido, à espera de novo barulho.

- Não consigo ouvir nada, absolutamente nada! - exclamou o David.

- Ouvi agora o vento - disse a Ana.

- Quanto a mim, apenas oiço as gaivotas - acrescentou o Júlio, colocando a mão em concha atrás do ouvido.

- Pela minha parte, só oiço o bater da porta. Talvez seja isso - arriscou o Fuliginoso com uma expressão deveras inocente.

Enquanto o pai lhe deitava um olhar iracundo, a Marybelle sugeriu, muito timorata, que talvez fosse do ranger da janela.

- Bem sabem vocês que é um cão! Porque ocultam a verdade? Digam-me onde está e quem é o dono!-vociferou o colérico senhor, com a ponta do nariz cada vez mais embranquecida.

- Um cão? Que eu saiba, não há por aqui nenhum - acudiu o Júlio, esforçando-se por mostrar grande estranheza.

Estas observações ingénuas aumentaram a cólera do senhor Lenoir, que màl se conteve, cerrando os punhos e retraindo-se para não o esbofetear.

- Ah! Sim? Pois então escutem e digam-me se aquilo é ou não é o ladrar dum cão ? - prosseguiu o dono da casa, batendo bem as sílabas, ostensivamente.

Viram-se na necessidade de escutar temendo qualquer gesto violento.

Desta vez, porém, Tim não voltou a dar sinal, talvez porque o rato, ou o que quer que fosse, lhe houvesse escapado ou estivesse às voltas com ele.

- Lamento muito, senhor Lenoir, mas realmente não consigo ouvir nenhum cão a ladrar - disse o Júlio, mostrando-se um tanto ofendido.

- Nem eu!-disse também o David, fazendo coro com os outros.

O senhor Lenoir convenceu-se finalmente de que os pequenos diziam a verdade, pois também não conseguia agora ouvir nada. Isso não o impediu, contudo, de prevenir severamente:

- Não quero cães em minha casa. Se apanho algum, fiquem sabendo que o mando envenenar.

Felizmente o senhor Lenoir saiu rapidamente e a tempo de evitar que a Zé explodisse de cólera, estragando tudo. Ana procurava acalmá-la.

Mordendo os lábios e fazendo-se de várias cores, a Zé explodiu furiosamente gritando e batendo com o pé no chão:

- Não tolero uma coisa destas! Não posso!

- Cala-te! Não sejas parva! Olha que o Block está a chegar dentro dum minuto. Temos de nos fingir muito admirados com isto, não vá o criado perceber as nossas conversas - disse o Júlio.

Nesse instante precisamente, Block entrou trazendo o pudim.

Como sempre, a mesma face inexpressiva, o que levava a Ana a dizer, um tanto fantasista, que aquilo talvez fosse uma máscara de cera!

- É curioso, como o senhor Lenoir pensou que era um cão - começou o Júlio, logo combatido pelos outros que desejavam intrigar o Block.

Em seguida foram para o quarto do Fuliginoso e reuniram-se em conselho de guerra.

- Que vai ser do Tim se o teu padrasto o descobre ? - perguntou a Zé.

- Ele é capaz de conhecer as passagens secretas. Se o Tim se atira a ele, estamos arranjados.

- Não sei se conhece as passagens secretas; isto é, suponho que sabe da sua existência, mas talvez ignore onde ficam as entradas. Eu próprio, se as descobri, foi inteiramente por acaso.

- Assim vou-me embora. Não quero que envenenem o Tim - disse a Zé.

- Não pode ser. Ou vamos todos ou não vai nenhum. Mas, em todo o caso se nos vamos embora, fica este mistério por resolver - disse o Júlio.

- Por favor, não pensem sequer em ir-se embora nesta ocasião. Olhem que ele fica furioso - respondeu o pequeno Lenoir.

A Zé hesitou. Não queria, de facto, estragar a vida ao pequeno aventureiro mas, por outro lado, receava muito a sorte do Tim.

- Bom, então telefono ao meu pai e digo-lhe que estou cheia de saudades; que quero voltar para casa. Vocês podem ficar e descobrir tudo. Não me parece sensato estar aqui arriscando a vida do Tim.

- argumentou outra vez a Zé.

Ficaram tristes e pensativos, quase vencidos por estes argumentos. Júlio suspirou. Ao fim e ao cabo, ela que fizesse o que lhe apetecesse.

- Está bem - disse o Júlio - telefona ao teu pai, se isso te agrada. Há um telefone lá em baixo e creio que não está lá ninguém.

A Zé esgueirou-se, alcançando o telefone e pediu o número indicado.

Ficou à espera, durante muito tempo. Depois, ouviu o sinal de que o telefone da sua casa, em Kirrin, estava a tocar.

Imaginou o que iria dizer ao pai. Uma única ideia a dominava: voltar para casa, fosse como fosse.

Mas da outra casa ninguém respondia. Porquê ? - pensou a Zé.

Finalmente a telefonista informou-a de que ninguém respondia.

Pousou o auscultador, desiludida. Estariam os pais fora de casa? Restava-lhe tentar outra vez.

Três vezes tentou, três vezes ficou desnorteada. Ninguém lhe respondia. Preparava-se para regressar, quando uma voz feminina a interpelou suavemente. Era a senhora Lenoir, a perguntar-lhe:

- Tentou telefonar para casa? Não teve resposta ?

- Procurei telefonar três vezes para o Casal Kirrin, mas nunca tive resposta. Como ainda não me escreveram...-disse ela, desanimada.

- Bom, sabe, esta manhã disseram-nos que se torna impossível viver ali enquanto andarem em obras - disse a gentil senhora, amavelmente. - O seu papá sentia-se perturbado com tanto barulho, de modo que resolveram abandonar a habitação durante uma semana, mais ou menos. É isto o que informa a sua mamã. No entanto, o meu marido soube do caso e decidiu escrever-lhes a convidá-los para virem passar aqui uma temporada. Esperamos que nos telefonem amanhã, a dar uma resposta. Hoje era impossível responderem-nos porque já tinham saído.

- Ah! -fez a Zé muito admirada por a mãe não lhe ter escrito a pô-la ao corrente de tudo.

- A sua mãe disse que lhe escreveu mas as cartas aqui - elucidou a senhora - demoram mais. Temos muito gosto em receber os seus pais. O meu marido então está encantado com a notícia! Diz que o seu papá é um verdadeiro génio.

A Zé calou-se, voltando para ao pé dos outros muito séria. Abriu a porta do quarto do Lenoir Júnior, deixando transparecer na sua fisionomia algumas notícias.

- Não posso voltar para casa com o Tim. Meus pais não conseguem suportar o barulho das obras e por isso, resolveram ausentar-se por uns dias! -disse ela.

- Pouca sorte, Zé. Mesmo assim estou satisfeito por saber que ficas cá. Acredita que me custava muito se tu ou o Tim se fossem embora - manifestou o Fuliginoso.

- A tua mãe escreveu aos meus pais pedindo-lhes para passar aqui uns tempos - disse a Zé. - Não sei o que há-de ser do Tim. Com certeza que me vão perguntar por ele. Não lhes posso dizer que o entreguei ao pescador ou coisa parecida. Não sei que lhes dizer.

- Havemos de pensar nisso. Talvez eu arranje por aí alguém que trate dele - lembrou o Fuliginoso.

- Óptimo! Já podíamos ter pensado nisso há mais tempo! -comentou ela com impaciência.

Era, contudo, impossível tratar do caso nesse dia porque a senhora Lenoir lhes havia pedido para ficarem na sala de desenho a jogar com ela. De modo que nenhum chegou a sair para resolver o problema do Tim.

- Não tem importância. Esta noite fica na minha cama. Amanhã veremos - reconsiderou a Zé.

Era a primeira vez que a senhora Lenoir se propunha fazer-lhes companhia.

- Compreendem - disse ela - o senhor Lenoir foi para o continente tratar de assuntos importantes. Quando está em casa, não gosta que o incomodem. É por esse motivo que eu tenho andado mais afastada de vocês. Hoje, porém, cá estou a fazer-vos companhia.

Júlio meditou nas palavras da senhora. Não iria o marido tratar de contrabando? Alguém cuidaria das mercadorias. É muito provável que o senhor Lenoir estivesse implicado naquela questão dos sinais misteriosos.

O telefone retiniu estridentemente. A senhora Lenoir levantou-se.

- Espero que seja o telefonema do vosso pai ou da vossa mãe - disse ela para a Zé. - Talvez lhe traga algumas novidades. Quem sabe se eles chegam já amanhã.

Dirigiu-se para o hall. Os pequenos ficaram à espera ansiosamente. Viriam ou não viriam os pais da Zé?

 

                   BLOCK FICA SURPREENDIDO

A senhora Lenoir voltou sorridente e explicou à Zé:

- Era o seu papá a telefonar. Diz que vem amanhã, sozinho. A mamã não pode vir; fica a ajudar a sua tia que está um pouco adoentada. Em qualquer caso recebemos- com muito prazer o seu papá. O meu marido, especialmente, terá muito gosto em conversar com ele a respeito daquelas experiências que ambos têm realizado.

Os pequenos preferiam a visita da tia Clara. No entanto, como esperavam que o Tio Alberto se embrenhasse na discussão científica, concluíram que tudo iria correr pelo melhor.

Acabaram de jogar com a senhora Lenoir e prepararam-se para recolher aos aposentos. Era a ocasião da Zé ir buscar o Tim. O Fuliginoso, por sua vez, tratou de ir ver se havia boa visibilidade na costa, estranhando a ausência do Block.

Do padrasto sabia ele que ainda estava ausente. A Sara cantava na cozinha, enquanto a ajudante fazia malha junto dela.

O Block saiu, com certeza - pensou ele - enquanto ia avisar a Zé. Mas, ao atravessar o patamar que dava para o corredor, notou duas manchas escuras e salientes por baixo das pesadas cortinas que encobriam a janela. Ficou especado mas compreendeu e, sem se perturbar, gizou imediatamente um plano.

- Então o tipo suspeita de que temos um cão que costuma dormir no quarto da Zé ou do Júlio? Vem aqui expiar? Espera, que já vais ver! - cogitou ele.

Ao saber aquela notícia a Zé ficou alarmada, mas o Fuliginoso tranquilizou-a.

- Arranjo uma corda. Em seguida descemos ao patamar. De repente começo a gritar: - "Está aqui um ladrão!" Atiro-me a ele, vocês correm em meu auxílio, o Júlio e o David ajudam-me a envolvê-lo nas cortinas e amarramo-lo dizendo que é um ladrão.

Os outros começaram a rir. Estavam convencidos de que o antipático Block havia de apanhar uma boa lição.

- Eu vou já buscar o Tim, não vá ele também fazer das suas - comentou a Zé receosa.

- Segura-o bem e leva-o depressa para o teu quarto - comandou o Júlio.

Encaminharam-se para o esconderijo onde Block se encontrava. Houve um leve movimento dos cortinados, prova de que o espião lá estava.

A Zé e o Tim ficaram encobertos na porta do corredor.

Ouviu-se um grito de guerra que fez vibrar Tim e a sua dona. Saltando sobre o Block inesperadamente, Fuliginoso gritava a plenos pulmões:

- Um ladrão! Socorro! Está aqui um ladrão!

Descarregando toda a sua cólera sobre a antipática personagem, o rapaz vibrou-lhe uns valentes socos que o deixaram desnorteado. Preparava-se para reagir, quando Júlio e o David surgiram em auxílio do audacioso camarada.

A uma violenta sacudidela, as pesadas cortinas cederam, descendo sobre a cabeça de Block que, a breve trecho, se achou envolvido e imobilizado.

Como se isso não bastasse, a trave que suspendia os cortinados despregou-se também, desabando sobre as costas do homem.

A própria Ana se aventurou a dar alguns piparotes. Marybelle porém, tímida como sempre, ficou de parte, apenas gozando o espectáculo.

No meio de tanta confusão, a Zé ainda quis desviar-se. Era tarde. Entusiasmado, o Tim precipitou-se na luta, atirando-se às pernas do Block.

Como era de esperar, o criado soltou um grito de pavor e desespero. E foi só quando a Zé se decidiu a bater-lhe que ele, obedientemente, se retirou, compreendendo a ousadia. Arrastando a cauda, foi enfiar-se no quarto da dona e meteu-se debaixo da cama espreitando a medo.

- Como se atreveu? Não vê que podia ter estragado tudo? E, agora, que mordeu no Block? Vai ser um sarilho - disse ela mostrando-se zangada. - Não saia daqui, que eu vou ver o que se passa.

O Tim agitou suavemente a cauda como quem entendia e prometia obedecer.

A Zé encaminhou-se para o patamar e foi encontrá-los, ainda a lutarem com o Block, que não conseguia livrar-se da rapaziada.

De repente, apareceu o senhor Lenoir acompanhado pela esposa, verdadeiramente apavorada.

- Que vem a ser isto? Está tudo doido? Que pouca vergonha a uma hora destas!-vociferou o colérico senhor.

- É um gatuno! Está aqui amarrado! - explicou o Fuliginoso.

O senhor Lenoir galgou as poucas escadas que o separavam da cena, viu aquela figura envolvida nas pesadas cortinas e exclamou:

- Um salteador ? Um ladrão ? Como o descobriram?

- Estava escondido por trás das cortinas. Conseguimos apanhá-lo e amarrá-lo. Talvez fosse melhor chamar a polícia - concluiu Júlio.

Então, ouviu-se uma voz que vinha do interior das cortinas:-Deixem-me sair daqui! Tirem-me daqui para fora! Estou mordido!

- Oh! Céus!-exclamou o senhor Lenoir fora de si.-Mas vocês amarraram o Block! Libertem-no já.

- É impossível! Não pode ser o Block! -protestou o Fuliginoso.

- Faça o que lhe dizem - ordenou o padrasto, furioso. Ana reparou na ponta do nariz do senhor, já a fazer-se branca e receou uma tempestade.

Os rapazes desataram a corda com relutância. Block afastou a cortina e apareceu com a habitual expressão fechada, desta vez mais vincada pelo medo e pelo ódio.

- Não compreendo! Olhe para a minha perna, senhor! Estou mordido! Foi um cão, com toda a certeza! Veja a minha perna - gemeu o Block.

Na verdade, lá estavam as marcas de cor violáceas dos dentes do atrevido Tim. Por pouco mais teria ficado sem um pedaço de carne.

- Que eu saiba, não está aqui nenhum cão - disse a senhora Lenoir timidamente, subindo as escadas. Creio que não foi um cão.

- Então quem foi ? - interrogou Lenoir com arrogância, voltando-se para a pobre senhora.

- Podia ter sido eu, nesta confusão - exclamou Fuliginoso repentinamente com grande surpresa e satisfação dos outros companheiros. O rapaz continuou mostrando-se triste: - Quando perco a cabeça, nem sei o que faço. Sou capaz de lhe ter mordido...

- Basta!-Não diga mais asneiras! Dou-lhe uma sova se chego a saber que anda por aí a dar dentadas. Vamos, Block, levante-se. O seu estado não é tão mau como pretende - disse o senhor Lenoir.

- Não sei que tenho! Parece que sinto o gosto da carne do Block na minha boca. Vou já lavar os dentes - disse o azougado rapaz, abrindo e fechando a boca.

Mal teve tempo de escapar-se a uma boa bofetada, esgueirando-se para longe, a pretexto de ir lavar os dentes.

Os companheiros contiveram o riso muito a custo. Que ideia tão cómica aquela de morder o Block. A verdade, porém, é que nem o senhor nem a senhora Lenoir seriam capazes de imaginar quem teria mordido o criado.

- Já todos para a cama!-ordenou o senhor Lenoir, continuando: - Amanhã veremos, quando chegar o vosso tio, ou pai, ou lá o que é. - Não têm vergonha de fazer uma desordem destas em casa estranha? Amarrarem o meu criado! Fiquem sabendo que se ele abandonar a casa, a culpa é vossa!

Foi o que eles quiseram ouvir. Quem dera que o Block se fosse embora, uma vez que pretendia descobrir a presença do Tim.

Contudo, Block ficou. Na manhã seguinte entrou, como de costume, na sala de estudo com o pequeno almoço. Deitou um olhar de rancor ao Fuliginoso e disse:

- Prepare-se, hein!, que alguma coisa lhe vai acontecer por estes dias; a você e a esse cão que me mordeu. Ou julgam que eu não sei que foi um cão?

Os pequenos entreolharam-se em silêncio. O Fuliginoso fez uma careta, traçando uns rabiscos na mesa, com a colher e dizendo:

- Acautele-se você, também. Volte a espiar e verá como fica outra vez amarrado. E olhe que os meus dentes estão sempre prontos!...

Acabou mostrando-lhe os dentes. Block, porém, ficou impávido e saiu. fechando suavemente a porta.

- Que lindo trabalho!-disse o Fuliginoso. A Zé, no entanto, ficou alarmada, com receio de alguma partida do Block. Os seus olhos exprimiam ódio e vingança ao falar. Por isso a Zé desejava de todo o coração retirar, quanto antes, o Tim daquela casa.

Nessa manhã sofreu um choque terrível ao saber que o quarto do Lenoir Júnior estava destinado ao pai dela. - Tenho de ir dormir para o quarto do Júlio e do David. O Block e a Sara estão a retirar as coisas do meu quarto para o deles. Mas tenho esperança de safar o Tim antes de vir o teu pai.

- Deixa ver se eu consigo retirá-lo já - disse a Zé.

Saiu, como quem ia ao quarto da Marybelle procurar qualquer coisa. O Block, no entanto, ainda se encontrava no quarto do Fuliginoso e lá se conservou toda a manhã a pretexto de limpezas.

A Zé não conseguiu descansar. Toda a manhã rondou inutilmente.

Block deitou a Zé uns olhares curiosos, enquanto exibia ostensivamente uma ligadura para destacar mais a dentada. Por último abandonou o quarto e a Zé entrou em seguida. Ele voltou quase imediatamente enquanto a Zé se esgueirava para o quarto da Marybelle.

Block. voltou e saiu outra vez, obrigando a pequena a ocultar-se de novo.

Numa das vezes o criado apanhou-a quase a abrir a porta do armário.

- Que faz aí? Não andei a limpar o quarto para a menina o sujar! Fora daqui!-gritou, enfurecido.

A Zé saiu e de novo esperou que Block se retirasse porque ele tinha de ir cuidar do almoço.

Enfim, saiu. Ela voou para o quarto do Fuliginoso, desejosa de libertar o pobre Tim.

Com grande espanto verificou que não conseguia abrir a porta. Estava fechada e a chave encontrava-se em poder do Block.

 

                     A ZÉ VÊ-SE EM APUROS

Absolutamente desnorteada, a Zé decidiu ir procurar o Fuliginoso e pô-lo ao corrente do que se passava. Foi encontrá-lo no quarto do Júlio a lavar as mãos, preparando-se para o almoço.

- Escuta - disse - temos de recorrer à passagem secreta, onde nos conduziste pela primeira vez; é para libertar o Tim.

- Impossível! - disse Fuliginoso. - O meu padrasto utiliza agora esse caminho. Nem calculas do que ele era capaz, se descobrisse ali algum de nós. Tem lá os relatórios das últimas experiências para mostrar ao teu pai.

- Não quero saber disso! De qualquer maneira o Tim há-de sair de lá, se não morre de fome - disse a rapariga.

- Qual história! O Tim não se perde. Sempre há-de apanhar alguns ratos!-objectou o Fuliginoso.

- Então morre de sede. Bem sabes que não tem água naqueles caminhos secretos - recalcitrou a Zé.

Por causa do Tim, chegou a perder o apetite.

Não descanso enquanto não descobrir maneira de arrancar o Tim do esconderijo, suceda o que suceder - pensou ela. - Se vou dizer aos outros, eles são capazes de se opor ou estragar tudo. O Tim é meu e portanto é a mim que compete libertá-lo.

Depois do almoço reuniram-se no quarto do Júlio para estudar o problema. A Zé acompanhou-os mas, a breve trecho, saiu, prometendo voltar em menos dum minuto.

Não fizeram caso e continuaram a discutir as escassas possibilidades de retirar o Tim. Concordaram em que o único processo viável seria entrar no gabinete de estudo e penetrar na passagem secreta, sem serem vistos.

- Mas, se eu vos digo que ele agora trabalha nesse gabinete e fecha a porta à chave, com certeza - ponderou o audacioso explorador.

Haviam passado, entretanto, dez minutos. A Zé não voltara ainda.

- Que andará ela a fazer ? Já há dez minutos!

- comentou Ana, intrigada.

- Naturalmente foi ver se a porta do meu antigo quarto ainda está aberta. Deixa-me ir ver - disse o Fuliginoso erguendo-se."

Não a encontrou; nem no seu antigo quarto nem no outro da Marybella. Decidiu ir ver ao quarto dela. Em vão, desceu as escadas e procurou-a. Nada!

Voltou para junto dos companheiros, bastante intrigado.

- Não a encontrei! Onde estará ela? - interrogou, já alarmado.

Ana ficou também assustada. - Que teria sucedido à Zé?

- Iria ela para o tal gabinete? Era o mesmo que ir para a caverna do leão - arriscou Júlio.

- É verdade! E eu que nem sequer me lembrei disso! Vou ver!-disse o Fuliginoso.

Desceu as escadas e encaminhou-se cautelosamente para o gabinete do senhor Lenoir. Pôs-se a escutar cá de fora. Não vinha nenhum rumor de dentro. Estaria lá o padrasto?

Hesitou; e por fim bateu à porta, pensando que, se o padrasto respondesse, ele subiria as escadas num relâmpago, antes de a porta se abrir.

- Quem é? Entre! Quando será que me deixam em paz ? - disse o senhor Lenoir, manifestamente irritado.

Como uma flecha, o rapaz galgou as escadas, desaparecendo antes de ser visto. Chegado ao pé dos companheiros, informou-os de que a Zé não se encontrava no gabinete, uma vez que o padrasto se achava ali a trabalhar.

- Então onde estará ? Oxalá que ela não tenha partido sem nos avisar. Olhem que deve andar por aí. Não a julgo capaz de abandonar o Tim - sugeriu o Júlio.

Foram encontrar o Block na cozinha, depois de terem vasculhado a casa inteira.

O criado estava a ler um jornal. Ao vê-los, exclamou:

- Que desejam? Daqui não levam nada!

- Nem é preciso. Como vai a sua perna ? - disse o Fuliginoso.

Como resposta, o criado deitou-lhe um olhar tão furioso que eles desapareceram logo da cozinha.

Nada tendo descoberto, o Júlio e o David ficaram de atalaia, enquanto o outro foi ver, se, por acaso, a Zé se teria introduzido nos aposentos da criadagem. Era uma ideia estúpida mas, uma vez que ela não aparecia, tornava-se imperioso procurá-la por todos os cantos.

Em vão. Desanimados, foram para o quarto do Júlio, rogando pragas àquela casa maldita que só lhes dava trabalhos.

O Fuliginoso concordou. Era, realmente, uma habitação impossível. Nem ele, nem a mãe nem a Marybelle se sentiam bem. Só o padrasto se mostrava satisfeito.

- Onde estará a Zé? Por mais que pense, não consigo descobrir. Mas tenho a certeza de que não está no gabinete do teu padrasto - disse ela para o Fuliginoso.

Enganava-se, porém.

A Zé tinha pensado entrar ali, na esperança de abrir a porta corrediça. Ao chegar à porta do gabinete verificou que estava fechada.

- Apre! Anda tudo contra mim! Mas não desisto!-resmungou, desesperada.

Tentou entrar pela janela do gabinete que dava para um pequeno pátio. Estava fechada. Voltou para trás, esperando apanhar a chave com que abriria a porta. Impossível.

De repente, ouviu a voz da senhora Lenoir, na sala em frente do hall. Apavorada, só teve tempo de levantar a tampa duma arca enorme. Meteu-se lá dentro e esperou, ajoelhada.

Não tardou a ouvir o senhor Lenoir:

- Quero ter tudo em ordem para mostrar ao meu amigo. Espero, portanto, que não me perturbem.

A chave girou na fechadura da porta do gabinete, que voltou a fechar-se com um leve estalido, mas sem ficar fechada à chave.

Oculta dentro da velha arca, a Zé começou a ponderar, em cata duma solução. Pensou entrar no gabinete, alcançar a passagem secreta onde o Tim se encontrava. Ela sabia que essa passagem comunicava com o antigo quarto do Fuliginoso, sendo certo que, algures iria encontrar o Tim. Uma vez junto do seu fiel companheiro, cuidaria de resolver. Talvez o pequeno Lenoir conhecesse alguém da terra, capaz de se encarregar do animal.

O senhor Lenoir tossiu e remexeu uns papéis. Abriu e fechou um armário. Estava decididamente muito ocupado.

Pôs-se a monologar, dizendo em tom irritado: - Afinal, onde pus eu isto?

A porta abriu-se inesperadamente e o senhor Lenoir saiu. A Zé mal teve tempo de descer a tampa da arca, que levantara para tomar um pouco de ar. A tremer, ajoelhou outra vez e aguardou a passagem do dono da casa.

Vislumbrou uma oportunidade. Talvez ele se demorasse só uns minutos. Nesse caso, podia ter tempo de entrar na passagem secreta. Levantou a tampa da arca. Num salto alcançou o gabinete, procurando descobrir o ponto onde o Fuliginoso carregara pela primeira vez.

Ainda não havia tacteado sequer a superfície lisa da madeira quando o rumor de passos que se aproximavam a pôs de novo em sobressalto. Não decorrera um minuto e já o senhor Lenoir estava de volta.

Buscou aflitivamente qualquer sítio, onde ocultar-se. Atentou num grande sofá junto à parede e a custo se escondeu debaixo dele, por pouco se livrando de ser apanhada.

O senhor Lenoir entrou, acendeu uma lâmpada por cima da secretária e sentou-se, a examinar uns documentos.

A pequena mal conseguia respirar. Sentia o coração bater contra as costelas; achava-se desorientada ao pensar que teria de permanecer ali, quem sabe se algumas horas. Que pensariam os outros? Por certo já tinham dado pela sua ausência.

Realmente, assim acontecera. Nesse momento encontrava-se o Fuliginoso junto à porta do gabinete, hesitando em bater.

Ela ouviu bater levemente - tac-tac - e ficou ainda mais assustada. Foi então que, da secretária, o senhor Lenoir resmungou, impaciente:

- Quem é? Entre! Quando será que me deixam em paz?

Respondeu-lhe o silêncio. Ninguém entrou. O senhor Lenoir repetiu:

- Entre, faz favor! Silêncio apenas.

Levantou-se e abriu a porta com violência. Ninguém! O rapaz acabara de fugir - como sabemos.

- São eles, com certeza, mas se apanho algum, deixo-o a pão e água!

Era tal o seu desespero que a Zé desejaria estar em toda a parte menos ali. Pois, que diria aquele senhor colérico e misterioso se acaso soubesse que ela estava a dois passos da secretária?

O senhor Lenoir conservou-se cerca de uma hora no gabinete de trabalho. O tempo passava e a pequena cada vez se sentia mais embaraçada.

Por fim notou que bocejava. Sentiu-se mais aliviada. Ia retirar-se, certamente. Seria o momento adequado para salvar o Tim.

O senhor tornou a bocejar. Depois, arrumou os papéis e dirigiu-se para o sofá. Instalou-se, como quem se prepara para dormir, colocando um cobertor sobre os joelhos.

Quando o sofá gemeu sob o peso do corpo, a Zé tentou conter a respiração, não fosse dar por ela.

Não tardou a ouvi-lo ressonar. O senhor Lenoir dormia, enfim. A Zé esperou mais uns minutos. Quando julgou a ocasião propícia começou a mexer-se devagarinho, esgueirando-se do fundo do sofá.

Levantou-se, caminhou em bicos de pés, na direcção da porta corrediça. Tacteou outra vez, procurando descobrir o ponto onde deveria carregar para que o painel deslizasse.

Por mais que procurasse não conseguiu encontrar qualquer referência. A aflição fê-la corar intensamente, enquanto deitava uma furtiva olhadela ao senhor Lenoir adormecido.

O desespero tornou-a mais nervosa. Procurava aflitivamente o ponto misterioso quando uma voz profunda e grave a arrancou à agitação, deixando-a na mais cruel expectativa:

- Que faz aí? Que arrojo vem a ser este?

Voltou-se e deu com o senhor Lenoir, já acordado. Ele dirigira-se-lhe em termos que mais uma vez, permitiam supor tratar-se dum rapaz.

Ficou indecisa, aterrorizada; sobretudo quando lhe notou a ponta do nariz embranquecida pela cólera.

Correu para a porta; inutilmente, porém.

Num salto alcançou-a e, segurando-a asperamente, perguntou-lhe:

- Que fazia no meu gabinete? Porque veio aqui bater à porta? Gosta destas brincadeiras, hein? Eu lhe direi!

Abriu a porta e chamou em voz alta:

- Block! Vem cá! Sara, diz ao Block que preciso de lhe falar!

Block apareceu, vindo da cozinha, como sempre inexpressivo. O senhor Lenoir pegou num pedaço de papel, rabiscou umas palavras, e deu a ler ao criado. Este acenou com a cabeça.

- Ordenei-lhe que o leve para o seu quarto e que o ponha a pão e água o resto do dia. Vai aprender a portar-se bem. E, se houver reincidência, eu próprio me encarrego de o castigar - disse o senhor Lenoir com arrogância.

- O pior é o meu pai - disse a Zé em voz trémula.

- O seu pai há-de concordar, quando souber da partida que acaba de fazer-me. Agora, vá para o seu quarto e olhe que só pode sair de lá amanhã. Eu me encarrego de apresentar as desculpas ao seu pai, logo que chegue - replicou, irónico, o arrogante senhor.

O criado empurrou a Zé pelas escadas acima, aproveitando a ocasião para se vingar das partidas que lhe haviam feito.

No momento em que chegava à porta do seu quarto, a Zé lembrando-se de que os seus amigos se encontravam no quarto contíguo ao seu, ainda lhes gritou:

- Júlio! David! Socorro! Socorro! Depressa!

 

                   MAIS UM ENIGMA

Júlio, David e outros correram em auxílio da Zé. Mas, ao chegarem, já o Block tinha fechado a porta violentamente.

- Que faz você aqui ? - gritou o Júlio, revoltado.

Como resposta, Block voltou-lhe as costas. Júlio agarrou-o por um braço e gritou-lhe bem alto aos ouvidos:

- Abra a porta imediatamente! Está a ouvir?

Block continuou impávido, afastando o braço de Júlio. Este insistiu com violência mas o criado desculpou-se dizendo:

- O senhor Lenoir ordenou-me que a castigasse.

- Abra a porta!-teimou o Júlio, tentando arrancar-lhe a chave. Então, a antipática personagem, erguendo repentinamente a mão, aplicou-lhe um tremendo soco quase o deitando por terra.

Quando o Júlio se recompôs e tentou persegui-lo, já ele tinha desaparecido.

- Grande besta!-exclamou ainda. Depois, dirigindo-se à Zé:

- Que te aconteceu ?

Através do buraco da fechadura, a Zé pô-los ao corrente de tudo. Lamentaram a sua pouca sorte, enquanto o Fuliginoso se apressava a pedir-lhe desculpa em nome do padrasto, acrescentando:

O miserável levantou a mão e agrediu o Júlio - Ele nunca teria feito isto se soubesse que se tratava duma rapariga. Está convencido de que tu és um rapaz.

- Não tem importância. O que mais me preocupa é o Tim. Mas garanto-vos que não hei-de comer. Não quero ver esse monstro - respondeu-lhes a Zé.

- Onde durmo eu então esta noite? Tenho as minhas coisas no teu quarto - lamentou Ana.

- Deixa lá! Dormes comigo-arriscou-se a dizer a tímida Marybelle. Empresto-te um cobertor. Que irá pensar o teu pai, de tudo isto?

- Isso é o menos. Julga que foi por alguma das minhas birras do costume. Olha que não se importa. Ainda se ao menos a mãe viesse com ele - disse a Zé.

Reinava grande inquietação. As coisas não estavam a correr bem.

Chegada a hora do chá, reuniram-se na sala de estudo e decidiram guardar para a Zé um pedaço de bolo de chocolate que lhes fora dado saborear.

Tomaram o chá. Ela ficou só e desesperada, pensando sobretudo no Tim.

Sentiu-se insatisfeita e pensou em fugir. Aproximou-se da janela e olhou.

Perante aquela paisagem viu-se forçada a mudar de ideias. Saltar pela janela equivalia, com toda a certeza, a uma queda gravíssima.

Ao desânimo, porém, sucedeu a alegria. Teve uma ideia luminosa: utilizar a escada de corda que tão bem tinha provado nas frequentes descidas ao poço.

Primeiro, a corda ficava na prateleira do armário, no quarto da Marybelle. Depois passara para o quarto dela, não fosse alguém descobri-la. A escada de corda lá estava escondida no guarda-fato, fechado à chave.

Segurando aquele maravilhoso instrumento, a Zé saboreou antecipadamente o prazer da aventura.

A hora não era, porém, conveniente. Havia algumas janelas que podiam denunciar uma escalada em pleno dia. Por isso resolveu esperar pela noite. Quando os outros voltaram, apressou-se a participar-lhes baixinho através da porta:

- Desço sobre a muralha, faço um pouco do percurso, depois entranho-me no edifício. Quando todos estiverem a dormir, entro no gabinete e trato de descobrir a passagem secreta. Conto com o teu auxílio - disse ela para o pequeno Lenoir. - Mas não te esqueças de me arranjar alguma comida.

- Entendido!-disse o outro, recomendando: - espera que a noite desça! O Block foi deitar-se com uma grande dor de cabeça mas a Sara e a Henriqueta estão na cozinha.

Mal anoiteceu, a Zé preparou-se e desceu pela escada de corda. Bastou-lhe para tanto estender apenas um quarto da escada. A altura não era muita.

Com a escada bem presa às pernas da cama, desceu sem ser notada.

Passou diante da janela da cozinha que, por sorte, tinha as persianas corridas. Em poucos momentos achou-se com os pés sobre a muralha. À cautela havia trazido uma lanterna que lhe prestou valiosos serviços.

Meditou, primeiro, sobre o caminho a seguir. Procurava evitar a todo o custo, um encontro com o Block ou o senhor Lenoir. O melhor ainda era procurar qualquer local da cidade já conhecido e começar depois as pesquisas.

Caminhou ao longo da faixa mais ampla da muralha, que oferecia aspecto irregular, toda esburacada e pedregosa. A lâmpada porém, ajudava-a a caminhar, projectando uma claridade suave mas regular à sua volta.

Ora contornava alguns estábulos e lojas antiquadas, ora um pátio e uma ou outra casa.

Envolta na escuridão, podia agora examinar o que se passava no interior de algumas habitações iluminadas, mas sem cortinados nas janelas.

Viu, por exemplo, uma pequena família, reunida à mesa, irradiando alegria. Noutra casa viu um senhor, solitário, a ler e a fumar. Noutra via-se uma senhora a fazer malha e escutando a rádio.

Aproximou-se doutra casa, muito grande. A muralha seguia quase junta ao edifício, num local talhado a pique sobre o pântano.

Reparou numa janela iluminada e ficou surpreendida. Era o Block, com certeza! Não podia sér outro. A mesma cabeça, as mesmas orelhas, os mesmos ombros!

Para quem estaria ele a falar?

Firmou-se mais e descobriu. Era aquele senhor Barling - o bem conhecido contrabandista da região!

Mas, o outro seria, efectivamente, o Block? O criado era surdo e este homem escutava atentamente e respondia ao outro, embora ela não conseguisse distinguir o que diziam.

- Não é muito decente o que eu estou a fazer. No entanto, um caso assim! Será realmente o Block? Se ao menos ele se voltasse para eu o reconhecer... - pensou.

Mas não. Quem quer que fosse, continuava sentado, de costas para a Zé. Barling falava animadamente, com o comprido rosto iluminado pela lâmpada, enquanto Block - se acaso era Block - escutava atentamente e acenava com a cabeça a todo o instante.

A Zé ficou intrigada. Como poderia ser o Block se ele era surdo como uma porta?

Saltou da muralha para uma pequena passagem e dirigiu-se ao seu destino. Junto à porta principal do misterioso edifício foi abordada inesperadamente pelo Fuliginoso que a esperava oculto na sombra.

- Vamos por aqui! Deixei a porta lateral aberta. Preparámos tudo para ti - disse.

Deslizaram pela porta lateral, seguiram em bicos de pés atravessando o hall e o gabinete, até alcançarem o quarto do Júlio. Não se tinham esquecido dela. - Roubei a despensa - segredou o Fuliginoso. A Henriqueta tinha saído. Sara fora ao correio.

O Block deitara-se com uma valente dor de cabeça - explicou.

- Então, como poderia ser o Block? Mas era ele, com toda a certeza! -monologava a Zé, intrigada.

- Que estás a dizer ? - perguntaram os outros, surpreendidos.

A Zé sentou-se no sobrado e principiou a comer os bolos e pastéis. Tinha uma fome devoradora! Mas, mesmo com a boca cheia, foi descrevendo a sua aventura, durante a qual topara com aquele diálogo misterioso em casa de Barling.

- Garanto-vos que vi o Block a conversar com o Barling. Escutava e respondia. Tenho a certeza - afirmou a Zé.

- Como sabes isso? Viste-lhe a cara?-perguntou, duvidoso, o Júlio.

- Não! Mas tenho a certeza que era o Block. Se não, vai ao quarto dele, ver se está deitado. Olha que ainda não teve tempo de regressar. Tinha um copo cheio duma bebida qualquer. Aquilo ainda demora. Anda, vai lá ver!-propôs a Zé.

O rapaz desapareceu, mas voltou num ápice.

- Está deitado está. Vê-se a sombra e o volume da cabeça. Certamente não há dois Blocks. Que vem a ser isto, afinal? - interrogou, um tanto confuso.

 

AS SURPRESAS CONTINUAM

De facto, a situação apresentava-se bastante crítica, sobretudo para a Zé, que não tinha ilusões acerca daquilo que vira. No entanto, os outros mostravam-se pouco dispostos a acreditar, uma vez que ela não conseguira ver de frente aquele que julgava ser o Block.

- Já chegou o meu pai?-perguntou ela, de repente, lembrando-se de que estava prevista a chegada dele nessa noite.

- Já. Por pouco me atropelava. Se não dou um salto para o lado... Foi mesmo antes de chegares, no momento em que ia esperar-te - respondeu o rapaz.

- Afinal, que vai ser do Tim? Temos de libertá-lo esta noite. Parece-me, no entanto, que o melhor seria voltar para o meu quarto pelo mesmo caminho, não vá o Block dar pela minha fuga - considerou a Zé. - Espero que se deitem todos, saio outra vez pela janela e venho ao teu encontro. Não te esqueças!

- Talvez não seja tão fácil como te parece. Bom, mesmo assim, podes contar comigo. Acho, que o melhor seria voltares já para o teu quarto - disse o Fuliginoso.

- Está bem, deixa-me levar mais alguma coisa para comer - disse, metendo uns bolitos na algibeira e recomendando: - Ouve, não te esqueças de ir bater à porta do quarto quando

Pegou no copo e despejou-lhe a água pelas costas abaixo estiverem todos deitados, para evitar surpresas desagradáveis. Depois nos encontraremos.

Mal se tinha refeito da aventura quando o Block apareceu, trazendo apenas um prato com pão e um copo com água, que deixou sobre a mesa.

- Aqui tem - disse.

A Zé olhou para aquela cara de pau e tão indisposta ficou que sentiu ímpetos de lhe pregar qualquer partida.

Pegando no copo de água despejou-o raivosamente no pescoço do Block que, apanhado de surpresa, ainda se voltou, disposto a qualquer violência. Sabendo, porém, que o Júlio e o David estavam perto, receou as consequências e desistiu.

- Hei-de vingar-me! Eu tratarei de fazer desaparecer o vosso cão!-vociferou.

Saiu, fechando a porta à chave. Assim que ele se afastou, o Júlio não se conteve que não ralhasse com a Zé.

- Para que fizeste isso, parva? Assim, cada vez nos detesta mais.

- Bem sei, mas não consegui dominar-me. Os companheiros retiraram-se, indo ao encontro do senhor Lenoir. A Zé ficou triste, Jamentando a sua solidão, embora pudesse abandonar o quarto, se lhe apetecesse.

Os camaradas não tardaram, com a pressa de relatarem o encontro com o pai da Zé.

- O Tio Alberto vem horrivelmente fatigado e ficou muito aborrecido ao saber das tuas dia-bruras. Disse até que ficarás fechada à chave todo o dia de amanhã, se não pedires desculpa - acrescentou o Júlio.

A Zé não respondeu. Não estava na sua índole pedir desculpa naquelas circunstâncias, sobretudo ao recordar o semblante hipócrita do senhor Lenoir.

- Agora vamos jantar. Eu me encarrego de tirar um pouco de sopa para comeres. Fica alerta, que eu mais logo virei aqui bater à porta a avisar-te de que estão todos já deitados - explicou o Fuliginoso.

A Zé estendeu-se na cama, a meditar. Havia tantas coisas que a intrigavam! Sentia-se incapaz de esclarecer o mistério dos sinais do alto da torre, o caso do Block, a sua conversa com o Barling - se acaso era o Block... Pois, como poderia ser o criado se a dar crédito ao Fuliginoso, ele estava deitado na cama?

Por fim adormeceu.

Ana e Marybelle foram deitar-se; mas antes, chegaram-se à porta do quarto a segredar-lhe boa-noite. A Zé mal acordou para lhes responder. Os outros foram para o quarto do David, de que agora tinham de partilhar.

À meia-noite a Zé acordou sobressaltada. Alguém batia à porta do quarto, suavemente mas com impaciência. Era o Fuliginoso.

- Vou já - respondeu-lhe a Zé. Pegando na lanterna, dirigiu-se à janela, desceu pela escada de corda, saltou da muralha e em breve se encontrou com o rapaz junto à porta lateral do edifício.

- Já estão todos deitados. Estava a ver que nunca mais se deitavam - disse referindo-se ao pai da Zé e ao padrasto.

- Vamos - disse ela, impaciente. Alcançaram a porta do gabinete. Lenoir Júnior fez girar a maçaneta.

- Está outra vez fechada e bem fechada - sussurrou o rapaz, desiludido.

- E nós que não nos lembrámos disso! Ora bolas! Que havemos de fazer agora? - comentou a Zé, desanimada.

O Fuliginoso concentrou-se por alguns instantes. Depois segredou:

- Só há uma solução. Meto-me no quarto do teu pai - ou seja o meu antigo quarto de dormir - quando ele tiver adormecido. Em seguida entro no armário, abro a porta da passagem secreta, vou à procura do Tim e trago-o pelo mesmo caminho. Oxalá que o teu pai não acorde!

- Obrigado. Não calculas como te fico agradecida. Agora compreendo a tua dedicação. Mas eu também podia fazer isso - sugeriu a Zé.

- Não! Além de conhecer o caminho melhor que tu, deves concordar que não é nada consolador andar só nestas paragens por volta da meia-noite - replicou ele, muito senhor de si.

A Zé subiu as escadas em companhia do camarada. Atravessou o vasto patamar, alcançando a porta do extremo da passagem que dava para o interior do quarto do Fuliginoso, onde o pai dela, dormia agora.

- É verdade! E se o alarme acorda o meu pai?

- perguntou, com inquietação, a Zé.

- Tem juízo! Julgavas então que eu me tinha esquecido? Desliguei-o, logo que transformaram o meu quarto - disse.

Abriu a porta que dava para a passagem e escutou junto ao antigo quarto. A porta estava fechada.

Aplicaram-se a escutar, com atenção.

- Parece-me que o teu pai está um pouco agitado - disse o Fuliginoso, continuando: - Espero o momento de entrar; em seguida meto-me no armário e vou à passagem secreta à procura do Tim. Logo que o apanhe, trago-to.

Talvez fosse melhor esperares no quarto da Marybelle. A Ana está lá também - aconselhou ele.

A Zé entrou no quarto onde Marybelle e Ana estavam a dormir. Deixou a porta aberta, de maneira a pressentir a chegada daquele aventureiro de palmo e meio. Por momentos sentiu como seria bom ter a seu lado, a fazer-lhe companhia, o fiel Tim.

O Fuliginoso entrou no quarto onde o pai da Zé tentava, a essa hora, conciliar o sono.

Caminhando à cautela, escolhendo o piso mais sólido para evitar quaisquer ruídos, foi-se aproximando duma cadeira, cujas dimensões exageradas bastavam para ocultá-lo e, esperou.

Mas a viagem longa e a discussão científica com o senhor Lenoir, haviam roubado o sono ao Tio Alberto.

O rapaz tanto esperou que sentiu ganas de adormecer, chegando a bocejar em silêncio.

Enfim, o pai da Zé adormeceu. Pouco tempo decorrido, crente de que o Tio Alberto dormia profundamente, resolveu sair do esconderijo. Preparava-se já para entrar em acção quando um ligeiro ruído, -semelhante ao estalar duma porta, lhe desviou o olhar.

Reinava a mais perfeita escuridão, mas, da janela do aposento, com as cortinas arredadas, recortava-se uma mancha quadrada de tom cinzento. O rapaz atentou naquilo. Estaria alguém a abrir a janela?

A janela continuava imóvel. No entanto alguma coisa se passava, de bastante estranha.

Havia junto à janela um assento largo e cómodo, onde o Fuliginoso costumava sentar-se para contemplar o horizonte.

Neste momento dava-lhe a impressão que a parte superior do assento se deslocava para cima, pouco a pouco, coisa que ele nunca julgara possível. Estaria ali alguém a manobrar na escuridão?

Continuou a examinar. Chegou um momento em que a tampa do assento, já bastante erguida, ficou encostada ao caixilho da janela. E, então, viu sair de dentro, cautelosamente, um indivíduo de grande estatura, sem fazer ruído.

Arrepiado de medo, o rapaz nem conseguia articular um som. O pavor aumentou, porém, quando essa figura humana, que tacteava por cima da cama fez um gesto brusco e violento, ouvindo-se um som abafado, onde se achava o pai da Zé. O Fuliginoso calculou que o Tio Alberto tivesse sido amordaçado para não gritar.

O intruso levantou o corpo inerte e dirigiu-se para o assento junto à janela, aí colocando o pai da Zé. De tal maneira as coisas se tinham passado que ele nem sequer mexia um braço.

Num repente o rapaz libertou a voz e gritou:

- Que vai fazer ? Quem é o senhor ? Recordando-se de que tinha trazido a lâmpada acendeu-a e, apontando-a, descobriu uma cara conhecida.

- Senhor Barling! - gritou.

Então, sentiu uma forte pancada na cabeça e de nada mais se lembrou.

O misterioso assaltante levara-o também pelo mesmo caminho do Tio Alberto.

Entretanto, a Zé acordara aos gritos do camarada, tendo ainda ouvido distintamente a exclamação do Fuliginoso: - Senhor Barling!

- Que seria?-pensou. Ana e Marybelle dormiam. Procurou alcançar a lâmpada e, no meio de tanta barafunda, foi esbarrar contra uma cadeira.

Apanhou por fim a lanterna, acendeu-a e foi ver. A outra porta estava precisamente como havia ficado quando o Fuliginoso entrara: entreaberta. Escutou. Nenhum ruído. Lembrava-se de ter ouvido como que o barulho duma queda após o último grito do Fuliginoso. Que seria?

Chamando a si toda a coragem, apontou a lâmpada pela porta entreaberta do quarto onde dormia o pai. A cama estava vazia e o quarto sem viva alma. Adiantou-se. Abriu a porta do armário, espreitou por baixo da cama, corajosamente.

Enfim, abeirou-se do assento da janela, confusa e horrorizada.

Onde estaria o pai? Onde estaria o seu pequeno amigo? Que teria acontecido naquela noite?

 

                   HORAS DE PAVOR

Ao abeirar-se do assento junto à janela, a Zé havia notado um leve ruído vindo do corredor.

Rápida como uma flecha, esgueirou-se para dibaixo da cama. Alguém se aproximava!

Levantou a sanefa da cama, procurando ver o que se passava.

Quem quer que era chegou à porta e parou, dando indícios de escutar. Depois aproximou-se da plataforma da janela.

A Zé procurou ver e escutar o melhor possível, adaptando os olhos à escuridão. Conseguiu ver uma figura que se recortava no rectângulo cinzento da janela, meio curvada sobre o assento.

A misteriosa personagem principiou a trabalhar às escuras, dando a impressão de mexer numa tampa e em pequenos objectos metálicos.

A tarefa durou cinco minutos, depois do que o indivíduo se esgueirou, evitando fazer barulho.

Uma vez mais a Zé se convenceu de que estava em presença do Block, embora a escuridão o impedisse de reconhecê-lo capazmente.

Notara, porém, aquela maneira de tossir, de vez em quando, que era hábito do criado. Mas, se era ele, que iria fazer ao quarto do pai, junto ao assento da janela?

Parecia-lhe estar num pesadelo, envolvida em mistérios impenetráveis. Onde estaria o pai?

Onde estaria o Fuliginoso? Porque teria ele gritado daquele modo ? Estava certa de que ele era incapaz de gritar assim, estando o pai ali a dormir.

Transida de medo, conservou-se debaixo da cama por mais algum tempo. Depois escapou-se ao de leve e saiu do quarto. Caminhou pelo longo corredor, abriu a porta ao fundo e escutou.

Ouviam-se apenas ligeiros ruídos: uma janela que abanava, um móvel que estalava; nada mais.

Muito pesarosa, a Zé tinha agora uma única preocupação: informar o David e o Júlio, pô-los ao corrente de tão misteriosos acontecimentos.

Alcançou o patamar e entrou no quarto dos rapazes.

Estavam acordados, aguardando a chegada do Fuliginoso, do Tim e da Zé. Com grande espanto notaram que a Zé vinha só e desolada.

Quando os informou do que havia observado os dois rapazes sofreram nova desilusão. Foi o Júlio quem decidiu imediatamente fazer uma batida à habitação, em companhia dos dois. Enquanto enfiava o pijama não se conteve que não comentasse:

- Parece-me que as coisas estão a tornar-se muito sérias.

Partiram, indo primeiro acordar a Ana e a Mary-belle, que ficaram horrorizadas. Não tardou que os cinco se encontrassem no quarto donde haviam desaparecido o seu companheiro e o pai da Zé.

Júlio fechou a porta, puxou as cortinas e acendeu a luz. Sentiram-se mais confortados. Na verdade era bastante desagradável andar errando pela casa à luz duma lanterna.

Contemplaram o quarto, envolto em silêncio.

Nada havia que deixasse prever o que se passara. A cama estava remexida e vazia. Via-se no chão a lanterna do Fuliginoso, no sítio onde caíra, certamente.

A Zé tornou a repetir aquilo que ouvira mas ninguém conseguiu perceber.

- Não compreendo! Chamar o senhor Barling? Mas, porquê, se era o teu pai quem se encontrava ali?-perguntou-lhe o Júlio.

- Está bem. Mas tenho a certeza que foi o nome Barling que ele pronunciou. Quem sabe se esse senhor entrou no armário, através da passagem secreta, para fazer qualquer patifaria e voltou pelo mesmo caminho, levando consigo os outros que o tinham descoberto? - sugeriu a Zé.

Esta explicação era aceitável, em último caso, mas não plausível. Abriram o armário, afastaram as roupas, em busca da passagem secreta. Com grande surpresa, deram pela falta da pequena pega de ferro que servia para empurrar a pedra que encobria a passagem. Alguém a teria arrancado, criando aos rapazes uma situação embaraçosa pois agora não conseguiriam abrir o caminho.

- Repara! Também desapareceu isto. Portanto, Zé, essa estranha personagem não regressou por este caminho - argumentou o Júlio.

A Zé fez-se pálida. E ela que tanto esperava libertar o Tim, trazendo-o pelo corredor secreto até ao armário. Só ele poderia ajudar a resolver o enigma.

- Estou convencido de que o senhor Lenoir sabe de tudo isto e o Block também. Aposto que era o Block quem tu viste aqui esta noite, a trabalhar na escuridão. Naturalmente estão os dois combinados - assegurou o David - Bom, se assim é, não podemos contar ao senhor Lenoir o que se passou. Também não merece a pena dizer à tua mãe, porque ela seria capaz de ir contar ao teu pai. Que fazer? - interrogou o Júlio.

Ana principiou a chorar. Marybelle, horrorizada e confusa, começou também a choramingar. A Zé sentiu as lágrimas nos olhos mas dominou-se. Era demasiado orgulhosa para chorar.

- Quero vê-lo! Onde estará ele ? - choramingou a Marybelle, que adorava o irmão.

- Não te incomodes! Amanhã iremos procurá-lo - disse o Júlio amavelmente. - Esta noite é impossível. Não está ninguém que nos possa ajudar aqui. O melhor é irmo-nos deitar e resolver o caso amanhã. Talvez já tenham voltado nessa altura. Se assim não for, teremos de-arranjar alguém que informe o senhor Lenoir. Veremos como reage. Se ficar surpreendido e perturbado, logo saberemos se está metido no assunto. Será necessário tomar qualquer decisão: chamar a polícia ou revolver a casa de alto a baixo para os encontrar. Logo veremos.

Todos se sentiram um pouco mais confortados com estas palavras de encorajamento. Júlio aparentava firmeza e calma. Todavia, achava-se quase tão perturbado como os seus amigos. Ele, sentia a gravidade dos acontecimentos a ponto de desejar que as pequenas não se encontrassem ali.

- O melhor - disse - será vocês, Ana, Zé e Marybelle, irem deitar-se no outro quarto. Fechem a porta à chave e conservem a luz acesa. Eu e o David dormimos aqui, no quarto dele, também com a luz acesa, para vocês estarem mais tranquilas.

As três raparigas foram para o quarto da Marybelle, extremamente fatigadas. Anita e Mary-belle meteram-se na cama e a Zé estendeu-se num divã tapando-se com um bom cobertor.

Apesar dos acontecimentos, dentro em pouco já dormiam, confiadas na protecção que lhes dispensava a presença próxima dos rapazes.

Estes conversaram ainda um pouco, depois de se terem estendido a descansar na cama onde o Tio Alberto se deitara pouco tempo antes.

Adormeceram, convencidos de que não haveria mais surpresas, nessa noite. Júlio, porém, tinha o sono leve; estava pronto a acordar ao mais pequeno ruído.

Na manhã seguinte as surpresas continuaram. Coube a vez a Sara que, ao entrar no quarto onde se deitara o recém-chegado, não queria acreditar no que via, ao dar com os dois rapazes deitados na cama destinada ao senhor.

Apartou as cortinas da janela. E, mal segurando o bule cheio de chá, deu largas à sua admiração, exclamando:

- Que vem a ser isto ? Onde está o vosso tio ? Porque vieram os meninos para aqui?

- Depois saberá. Pode levar o chá, - concluiu o Júlio, que não confiava muito nos segredos da Sara.

- Pois sim! Mas onde está o vosso tio? Foi para o vosso quarto? Digam-me o que aconteceu! - continuou ela.

- Olhe, se quer vá ver se ele lá está - respondeu-lhe o David, que desejava ver-se livre dela, crente de que naquela casa estava tudo doido. Deixou o bule com o chá. Os rapazes levaram-no para o quarto das raparigas, imediatamente, tomando-o aos poucos por terem uma chávena apenas.

Nesse momento acabara de chegar a Sara, acompanhada por Henriqueta e Block cuja expressão era, como sempre, apagada.

- Não está ninguém no seu quarto, menino Júlio - adiantou-se a dizer Sara.

Entretanto, Block soltava uma exclamação de desespero, contemplando a Zé com furor. Ele, que a julgava encerrada no quarto, acabava de encontrá-la no da Marybelle a tomar chá.

- Como é possível? Fique sabendo que vou contar tudo ao senhor Lenoir - exclamou ele, furioso.

- Nem mais uma palavra! Proíbo-o de falar assim com a minha prima. Desconfio que você também está metido nisto. Faça o favor de se explicar! - ordenou o Júlio.

Block não deu sinais de haver percebido. Júlio ergueu-se, revoltado:

- Fora daqui! Está a ouvir? Parece-me que a polícia vai obrigá-lo a falar! Fora daqui!

Sara e Henriqueta sentiram-se mal. Tantos acontecimentos em tão pouco tempo, era demais. Olharam para Block bastante espantadas e retiraram-se. O criado, por sua vez, saiu também deitando um olhar odioso àquele rapaz tão decidido.

- Eu já vou ter com o senhor Lenoir - disse ele, desaparecendo.

Não tardou que o senhor e a senhora Lenoir chegassem ao quarto da Marybelle.

A senhora parecia viver num outro mundo. Lenoir, o esposo, mostrava-se intrigado e bastante surpreendido.

- Afinal, que vem a ser isto? Block diz-me que o seu pai desapareceu - principiou ele.

- E o meu irmão, também - gemeu a Marybelle, rompendo outra vez num choro convulsivo.

A senhora Lenoir soltou um grito:

- O quê? Que dizes tu, Marybelle?

- Deixa, Marybelle, que eu explico tudo - adiantou o Júlio, receando que a pequena fornecesse alguns esclarecimentos a mais. Ao fim e ao cabo, o senhor Lenoir estaria na posse de todos os segredos, de modo que seria parvoíce revelar-lhe quaisquer suspeitas.

- Diz-me o que aconteceu, Júlio. Depressa!

- suplicou a senhora Lenoir, deveras transtornada.

- O Tio Alberto desapareceu esta noite da cama. O irmão da Marybelle desapareceu também. É possível que voltem, naturalmente - concluiu o Júlio.

- Júlio! Vejo que me está ocultando alguma coisa. Conte-me tudo. Como se atreve a ocultar o que sucedeu? - insistiu o senhor Lenoir, observando-o com atenção.

- Conta Júlio, conta - suplicou a Marybelle. Júlio parecia obstinado e pouco satisfeito. Nesse momento, a ponta do nariz do senhor

Lenoir principiou a fazer-se branca.

- Vejo-me forçado a chamar a polícia. Talvez isso lhe agrade mais - prosseguiu ele.

Júlio ficou surpreendido.

- Nunca supus que desejasse falar com a polícia. Deve ter de ocultar muitos segredos - concluiu Júlio, de si para si.

 

                   AUMENTA A CONFUSÃO

O senhor Lenoir ficou bastante espantado com as observações do Júlio. Durante uns momentos, reinou no aposento o mais profundo silêncio. Júlio havia sido um tanto violento. Finalmente, o dono da casa preparava-se para falar quando se ouviram passos. Era o Block.

- Vem cá, Block! Preciso duns esclarecimentos - disse o senhor Lenoir.

O criado continuou imóvel à entrada da porta, parecendo não ter ouvido. Lenoir acenou-lhe com impaciência.

- Não! Não devemos contar, seja o que for, à frente do Block. Ele não nos merece confiança - disse o Júlio com firmeza.

- Que quer dizer com isso? Não lhe admito quaisquer reparos a respeito dos meus criados. Para mais, este merece-me inteira confiança - respondeu Lenoir.

Júlio permanecia no mesmo estado de espírito. No olhar de Block notou uma expressão de ódio e replicou-lhe da mesma maneira.

- Sim, senhores! Ora aqui está uma coisa inacreditável - disse o senhor Lenoir, procurando evitar, a todo o custo, um acesso de cólera. -Não sei o que se passou, vejo-me rodeado de mistérios e vocês recusam-se a informar-me, esquecendo que eu sou dono desta casa. Exijo que me contem tudo o que sabem!

Quer-me parecer que a polícia resolve este caso. Desapareça!

- Seria preferível contar à polícia - disse o Júlio, fixando o criado. Este, porém, não se mostrou atingido.

- Saia daqui - disse o senhor Lenoir para o criado, ao ver que era impossível arrancar uma palavra ao Júlio na presença do servo. E continuou:

- O melhor é virem para o meu gabinete. Não quero fazer figura de parvo ou ignorante, se tiver de chamar a polícia para deslindar este enigma.

Júlio estava cada vez mais confuso. Perante a decisão do senhor Lenoir, prevendo a vinda da polícia, admitia já que ele não estava implicado no caso.

Era um quadro desolador. Ao lado deles, a senhora Lenoir chorava, enquanto Marybelle soluçava. O senhor Lenoir, procurando tornar-se mais amável, beijou a pequenita e passou um braço pela cintura da esposa, tentando tranquilizá-las:

- Não se aborreçam. Tudo se há-de esclarecer, nem que eu tenha de chamar a polícia em peso. Tenho umas desconfianças e olhem que não devo enganar-me...

Júlio estava cada vez mais admirado com o que ouvia.

Seguiram para o seu gabinete de trabalho, que ainda estava fechado. O senhor Lenoir abriu-o e foi arrumar uma porção enorme de papéis que se encontravam sobre a secretária.

- Bom, vamos lá ver então - disse ele para o Júlio, tranquilamente. - Desta vez a ponta do nariz não se fizera branca, sinal de que o senhor Lenoir se vira forçado a vencer os acessos de cólera, perante a obstinação do Júlio. - - Parece-me que nesta casa só acontecem coisas desagradáveis - disse o rapaz não sabendo bem como principiar - Receio bem ter de contar tudo à polícia. -

- Não me fale por enigmas! Até parece que sou algum criminoso! Diga-me o que se passa nesta casa!-concluiu ele, com impaciência.

- Por exemplo, os sinais da torre - arriscou o Júlio, observando a reacção.

Só conseguiu distinguir uma expressão de viva surpresa no rosto do senhor Lenoir. A esposa, como que despertando, gritou de repente:

- Sinais? Mas, que sinais?

Júlio contou as primeiras observações do pequeno desaparecido, as dele e do David, explicando que, depois dos sinais luminosos feitos da torre, haviam visto uma fila de luzes tremelicantes através do pântano, contornando a orla marítima.

O senhor Lenoir ouviu atentamente, fez algumas perguntas a respeito de dias e horas, anotando o facto de o sinalizador haver seguido para o quarto de Block e desaparecido.

- Saiu pela janela, certamente - disse Lenoir, acrescentando:

- Garanto-vos que o Block nada tem a ver com isto. É bastante fiel e, de resto, só me tem ajudado. Desconfio, sim, do senhor Barling, porque ele não pode fazer sinais na casa onde vive. Serve-se da minha que fica em boa posição. Não há dificuldades que o impeçam disso. Conhece os caminhos secretos desta casa, melhor que eu!

Ficaram convencidos de que o senhor Barling era o autor daqueles sinais luminosos e, convencidos também de que o senhor Lenoir nada teria a ver com os passeios nocturnos.

- Não me admiro se o Block ignorar o que se passa. Creio-prosseguiu o Lenoir-que o Barling é a pessoa mais indicada para nos fornecer esclarecimentos. Vamos a ver se o Block chegou a suspeitar dalguma coisa.

Júlio mal conteve um trejeito. Se o senhor Lenoir ia pôr o Block ao corrente do que se passava, então era melhor não fornecer mais pormenores, uma vez que o criado também devia estar metido no assunto.

- Vou sondar o Block e se não conseguir esclarecer o caso, trato de chamar a polícia - disse Lenoir à saída do quarto.

Agora era o Júlio que procurava fugir às perguntas da senhora Lenoir. Por isso se apressou a mudar de assunto, inquirindo:

- Que temos para o pequeno almoço? Estou cheio de fome!

Foram comer, à excepção de Marybelle, que não conseguiu tomar qualquer alimento, só de pensar na pouca sorte do irmão.

- Parece-me - disse o Júlio quando se encontraram sós - que o melhor era fazermos algumas pesquisas por conta própria. Não seria má ideia ir examinar já o quarto onde dormia o teu pai, Zé. Suponho que existe ali uma passagem secreta, além da que já conhecemos.

- Qual é a tua opinião a respeito daquilo que aconteceu esta noite?-interrogou David.

- Enfim, creio que o rapaz entrou no quarto e escondeu-se, esperando que o Tio Alberto adormecesse para agir à vontade - sugeriu o Júlio, prosseguindo:

- Enquanto ele esperava, escondido, alguém surgiu de qualquer lado com a intenção de raptar o Tio Alberto. Ignoro o motivo mas foi assim. O nosso companheiro apanhado de surpresa soltou um grito. Imediatamente agredido, não tornou a gritar e em seguida foi transportado juntamente com o Tio Alberto, por algum caminho que desconhecemos.

- Foi assim, com certeza! Foi o Barling que os raptou! Por isso eu ouvi aquele grito:-Senhor Barling! Naturalmente descobriu-o, ao acender a lâmpada - acrescentou a Zé.

- É provável que estejam em casa dele - sugeriu Anita, de repente.

- É verdade! E eu que não me tinha ainda lembrado disso! Palavra que estou na disposição de ir até lá abaixo ver o que há... - propôs o Júlio.

- Eu também gostava de acompanhar-vos - disse a Zé.

- Não. Esse senhor Barling é um tipo bastante perigoso. É melhor ficares aqui com a Marybelle. O David acompanha-me.

- Já te disse que quero ir. Não me julgas capaz de me portar como um rapaz ? - principiou a Zé, irritada.

- Não duvido. E por isso mesmo acho que deves ficar junto da Ana e da Marybelle, a fazer o nosso lugar, não vão, também, raptá-las... - retorquiu energicamente o Júlio.

- Não vás, Zé. Fica ao pé de nós - pediu a Ana.

- Pois bem! Em qualquer dos casos, não me parece uma aventura sensata. Esse Barling não vos deixa entrar. E, mesmo que lá entrassem, não conseguiam descobrir todos os caminhos secretos que há em casa dele. Devem ser tantos!

A Zé tinha razão mas o Júlio teimou. Saiu acompanhado pelo David, depois do pequeno almoço. Encaminharam-se para a casa do Barling mas ficaram desapontados. Tudo fechado. Bateram à porta, tocaram a campainha. Ninguém lhes respondeu.

As janelas fechadas, com as cortinas corridas. Da chaminé, nem o menor indício de fumo.

- O senhor Barling foi passar o dia fora. Saiu esta manhã com o automóvel. Os criados saíram também - elucidou o jardineiro que andava a tratar das flores.

Ah! -fez o Júlio, realmente admirado. -Não viu, talvez, um homem e um rapaz dentro do carro?

O jardineiro ficou surpreendido com esta pergunta original e abanou a cabeça, respondendo:

- Não. Ia só. Era ele quem guiava.

- Obrigado - disse o Júlio, voltando para casa, com o David e cada vez mais intrigado.

Que teria acontecido aos dois prisioneiros? E porque diabo teriam raptado o Tio Alberto?

Júlio lembrava-se de que o senhor Lenoir não tinha procurado qualquer justificação para o rapto do Tio. Afinal saberia ele de alguma coisa que ocultava por conveniência?

Ao mesmo tempo que isto se passava, a Zé tomara a liberdade de fazer algumas pesquisas por sua conta e risco. Entrara no quarto do Tio Alberto e procurara descobrir se existia, realmente, qualquer passagem secreta que o Fuliginoso ignorasse.

Sondou as paredes. Voltou o tapete e tacteou o soalho, palmo a palmo. Voltou a examinar o armário, desejando forçar a passagem secreta para ir buscar o Tim. A porta do gabinete, ao fundo da escada, continuava fechada à chave. Só o senhor Lenoir poderia decidir da situação. Ela, porém, receou as consequências e não se resolveu.

Preparava-se para abandonar o aposento quando topou junto à janela qualquer coisa que lhe reteve a atenção. O que quer que fosse, tinha caído. Curvou-se e apanhou um pequeno parafuso. Olhou em redor. Donde seria?

Teve dificuldade em encontrar outros parafusos, do mesmo tamanho. Num instante, contudo, os olhos desviaram-se-lhe para o assento da janela. Lá estavam os parafusos fixando a grossa prancha de carvalho à parte inferior da armação.

Seria dali, aquele que acabava de encontrar? Mas porquê? Se os outros estavam tão bem aparafusados? Pôs-se a examinar um. De repente, soltou um grito que mal conseguiu abafar.

- Falta aqui um, ao meio, deste lado. Deixa-me ver...-principiou tentando coordenar as ideias.

Recordou-se da noite anterior. Depois de ter fugido para baixo da cama onde, pouco antes dormia o pai, deu pela entrada de misteriosa personagem que se aproximou da janela e tacteou junto ao assento. Recordava-se daqueles ruidozinhos, dando a ideia de que o desconhecido mexia em pequenos objectos metálicos. Agora compreendia: esse desconhecido tivera a atarrachar os parafusos.

- Houve alguém que desaparafusou o tampo do assento da janela, a noite passada e que na escuridão, deixou cair um dos parafusos - pensou a Zé, sentindo-se cada vez mais agitada.

- Mas porquê ? Para ocultar alguma coisa sob o assento da janela? Parece oco e, que eu saiba, nunca lá se escondeu coisa alguma.

Apesar destas conclusões tiradas à primeira vista, a Zé estava convencida de que havia ali algum segredo. Lembrou-se de ir buscar uma chave de parafusos.

Voltou com a peça de ferramenta, fechou a porta à chave para evitar as más surpresas do Block e deitou mãos ao trabalho.

Iria desvendar o mistério?

 

                     SUCEDEM-SE AS DESCOBERTAS

Ainda não havia arrancado o último parafuso quando ouviu umas pancadas na porta, que a deixaram em sobressalto. Não respondeu, receando que fosse o Block ou o senhor Lenoir.

- Zé! Estás aí?

Reconheceu a voz do Júlio e correu a abrir a porta. Meio surpreendidos, os rapazes entraram, seguidos pela Ana e a Marybelle. A Zé tornou a fechar a porta à chave.

- O senhor Barling partiu, deixando tudo fechado. E é tudo quanto sabemos. Mas, que estás a fazer?-:interrogou o Júlio, surpreendido pelo espectáculo.

- Estou a desaparafusar o assento da janela - respondeu a Zé, contando-lhes o seu achado. Juntaram-se todos para ver.

- Bravo! Deixa, que eu acabo,- propôs o David.

- Não, obrigada. Eu trato disto - disse a Zé. Extraiu o último parafuso e levantou a tampa do assento.

Olharam para dentro mas ficaram decepcionados. Uma espécie de armário vazio - eis o que lhes apareceu, ao cabo de tanta expectativa. Aquela armação dava a ideia duma caixa com uma tampa aparafusada a servir de assento.

- Ora bolas!-exclamou o David, fechando a caixa. - Creio bem que não esteve aqui ninguém a aparafusar isto. Deve ter sido ilusão tua-concluiu.

- Não pode ser! - replicou a Zé com brevidade. E, levantando outra vez a tampa, saltou para dentro daquela espécie de armário, batendo com os pés no fundo, energicamente.

Ouviu-se um ligeiro ruído seco. O fundo do armário deu de si, cedeu imediatamente como um alçapão, mal dando à Zé tempo suficiente para se agarrar num dos lados.

À custa de muita ginástica conseguiu saltar para fora, deixando todos mal refeitos do susto.

Quando se decidiram a olhar, -descobriram um buraco com cerca de oito pés de profundidade que, mais abaixo se alargava, talvez comunicando com alguma das passagens secretas que davam para os túneis subterrâneos. Quem sabe se aquele ia ter à casa do Barling?

- Ora vejam! Quem supunha uma coisa assim? Nem o Fuliginoso! Aposto que ele não sabe disto!

- Vamos descer para ver onde vai dar? Talvez encontrássemos o Tim - sugeriu a Zé.

Ouviram mexer na maçaneta da porta, que, felizmente estava fechada à chave. Em seguida um bater impaciente e uma voz de pessoa irritada:

- Porque fecharam a porta à chave? Abram imediatamente! Que estão a fazer aí?

- É o pai!-segredou a Marybelle muito espantada. - O melhor será abrir.

A Zé desceu a tampa imediatamente, sem ruído. Queria evitar que o senhor Lenoir, desse pela sua última descoberta; de tal modo se arranjaram que, quando o senhor entrou no quarto, já se havia acomodado tudo, como se nada fosse com eles.

- Estive a falar demoradamente com o Block e, pelo que averiguei, ele não sabe de nada. Ficou até muito admirado com essa história dos sinais da torre. Na opinião dele, o que quer que seja não parte do Barling. É uma conspiração contra mim.

- Ah! - fizeram os pequenos, incapazes todavia, de acreditar no Block, como o senhor Lenoir acreditava.

- Ficou tão perturbado que até o aconselhei a ir repousar um pouco, enquanto não tomamos qualquer decisão - concluiu.

Eles não acreditaram; calculando até que o criado iria aproveitar o tempo para fazer alguma das suas.

- Vou trabalhar mais um pouco. Já telefonei à polícia mas, infelizmente, o Inspector não estava. Ficaram de me avisar, logo que ele chegue. Espero que não façam diabruras enquanto eu estiver a trabalhar - concluiu o senhor Lenoir.

Os pequenos não lhe responderam. O senhor esboçou um daqueles habituais sorrisos e saiu.

- Deixa-me ir ver se o Block está de facto deitado - disse o Júlio, assim que o dono da casa se afastou.

Dirigiu-se para a ala do edifício onde ficavam os quartos de dormir dos criados e parou junto ao quarto do Block sem fazer o mínimo ruído.

A porta estava entreaberta. Júlio espreitou e viu a forma do corpo do Block na cama, juntamente com a mancha escura da cabeça, apesar de as cortinas estarem corridas.

Correu a informar os companheiros:

- Salvou-se por pouco. Não seria melhor irmos explorar o poço junto da janela?

- De acordo!-responderam todos. Contudo, não era empresa fácil saltar da altura de oito pés sem acidente!

Júlio foi o primeiro a tentar. Ficou desiludido e preveniu o David:

- Temos de arranjar um pedaço de corda e amarrá-la aí em qualquer sítio para evitar uma queda.

Mas, no momento em que o David se dispunha a ir procurar uma corda, o Júlio voltou a chamá-lo:

- Já não é preciso. - Está tudo resolvido. Há aqui uns nichos à volta do poço. Podemos descer apoiando neles os pés.

Assim, desceram todos. A Zé, porém, falhou um ou dois nichos e caiu desamparada, felizmente sem se magoar.

Tal como tinham pensado, o poço conduzia a outra passagem secreta do edifício, formada por degraus de tal modo inclinados que em breve se encontraram abaixo do nível da habitação, não tardando a atingir a encruzilhada dos túneis que sulcavam o monte. Pararam.

- Reparem. O melhor é não avançarmos mais, se não acabamos por nos perder. O Fuliginoso não está connosco e a Marybelle não conhece estas passagens - disse o Júlio.

- Escutem! Vem aí gente! -exclamou o David em voz baixa.

Ouviram passos vindos do túnel à esquerda. Ocultaram-se o melhor possível. Júlio apagou a lâmpada.

- Dois! Um, muito alto e esguio. O outro, era o Block, com certeza! Se não era o Block, era o diabo por ele - disse a Ana, à medida que os dois indivíduos saíam do túnel mais próximo.

Os homens iam falando em voz baixa. Mas, como poderia ser o Block, se ele era surdo e estava, além disso, a dormir ? Na verdade, mal tinham ainda passado dez minutos, desde que o Júlio o vira deitado no quarto. Existiam, portanto, dois Blocks, como a Zé havia já admitido ?

Os homens desapareceram noutro túnel e, com eles, a luz viva das lanternas que traziam. Ouvia-se ao longe o eco das suas vozes.

- Vamos segui-los ? - disse o David.

- Acho preferível não os seguirmos. Podemos desviar-nos ou perdermo-nos também. Admitamos, até, que eles voltam para trás, de repente Grande sarilho, hein? - reflectiu o Júlio.

- Tenho a certeza que o primeiro era o senhor Barling. Não lhe vi a cara por causa da luz da lâmpada mas era tal e qual ele, muito alto e esguio - disse Ana, num relance.

- E o senhor Barling não tinha saído de casa ?

- recordou a Marybelle.

- Isso julgamos nós. De resto, pode ter regressado já, se era ele. Quem sabe para onde foram?... Talvez falar com o meu pai e com o Fuliginoso - sugeriu a Zé.

- É muito natural - disse o Júlio. No entanto, o melhor é voltarmos para trás, se não ainda acabamos por nos perder nestas encruzilhadas.

Voltaram pelo mesmo caminho, alcançaram o fundo do poço que já conhecemos e treparam sem dificuldade, fincando os pés nos nichos.

Entraram no quarto, contentes por tornarem a ver a luz do sol que inundava a janela. Contemplaram o horizonte. O nevoeiro voltava a descer sobre os pântanos embora a luz do sol ainda brilhasse no cimo do monte.

- Vou aparafusar o tampo do assento - disse Júlio, pegando na chave de parafusos e descendo o tampo. Não convém - disse - que saibam da nossa descoberta. Aliás, estou convencido que foi ele quem desaparafusou a tábua para o Barling poder entrar aqui. Depois, tornou a aparafusar, procurando deixar tudo em ordem, de modo que ninguém desse pela manobra.

Colocou à pressa os parafusos, olhando em seguida para o relógio e comentando:

- São quase horas do almoço e estou cheio de fome. Quem dera que eles estivessem aqui a fazer-nos companhia. Que, por certo, não lhes aconteceu mal nenhum; nem ao Tim. É verdade, deixa-me ir ver se o Block ainda está deitado.

Não se demorou mas o seu rosto revelava maior surpresa.

- É curioso - disse. - Lá está na cama.

À hora da refeição, porém, Block não apareceu. Sara" justificou a falta, explicando que o criado tinha pedido que não o incomodassem, no caso de faltar.

- Está, naturalmente, com aquelas valentes dores de cabeça. É possível que à tarde se ache melhor - disse a cozinheira.

Em vão ela procurou saber mais pormenores do que se havia passado. Os pequenos gostavam muito dela mas tinham chegado a uma situação em que era lógico desconfiar de toda a gente no Monte dos Contrabandistas. Não conseguindo obter a mínima informação a cozinheira saiu, dando largas ao seu desespero.

Depois do almoço, Júlio procurou o senhor Lenoir para resolver a situação embaraçosa em que se encontravam. Ao proceder assim, não lhe repugnava admitir que o senhor Lenoir se tivesse desculpado com a ausência do Inspector para ganhar tempo.

Quando o Júlio bateu à porta do gabinete e entrou, foi encontrar o senhor Lenoir bastante irritado:

- Tenho estado à espera do Block. Estou farto de tocar a campainha e não me aparece. Porquê? Preciso que me acompanhe à polícia.

- Eu vou avisá-lo. Sei onde é - disse o Júlio, radiante com aquela oportunidade de apanhar o Block numa falta.

Subiu as escadas, alcançou o pequeno patamar, galgou a escada de serviço que dava para os quartos da criadagem e empurrou a porta entreaberta do quarto do Block.

Dava, realmente, toda a impressão de estar a dormir. Júlio chamou-o em voz alta mas depois lembrou-se que o criado era surdo.

Adiantou-se e alçando uma das mãos com força, procurou agarrar e sacudir o ombro do criado, debaixo da roupa.

Sentiu nas mãos qualquer coisa inerte e mole. Puxou a roupa e, qual não foi o seu espanto, quando notou que do Block nem sequer havia sinais.

Apenas se encontrava na cama uma bola enorme, pintada de preto, para dar a ideia da cabeça sob os lençóis e, ao longo do leito, o travesseiro a fazer o lugar do corpo.

- Agora percebo a partida que nos prega quando precisa de sair. Verifica-se, portanto, que foi ele quem passou esta manhã no túnel e quem a Zé viu a falar ontem com o Barling, através da janela. Está provado que não é surdo.

Habilidoso e miserável é o que ele é! - concluiu o Júlio.

 

                     AS JUSTIFICAÇÕES DO SENHOR BARLING

Algo de estranho se passava, entretanto, com os dois captivos.

Narcotizado e amordaçado, Tio Alberto foi conduzido ao poço, por baixo da janela e dali transportado por Barling e o seu criado a um dos túneis subterrâneos.

Quanto ao Block, ficara um pouco distante, mas de atalaia e pronto a completar a manobra dos outros, aparafusando o tampo do assento, para dissimular o rapto.

Depois do Tio Alberto, foi transportado também aos baldões, o Fuliginoso. Atrás deste saiu Barling, explicando ao seu fiel servidor:

- Leva também esse rapaz. É o filho do Lenoir. Desta maneira ficará sabendo quanto custa ser espião. Além disso, servirá ainda para aumentar contra mim, o ódio do Lenoir.

Ao entrar no túnel, Barling estacou e, tirando da algibeira um novelo de corda, disse para o criado:

- Pega! Amarra essa ponta àquele prego acolá em cima e vai desenrolando, à medida que avançarmos. Não é por mim, que conheço bem o caminho; é por causa do Block. Preciso que ele amanhã vá levar alguma comida aos nossos prisioneiros. Palavra que não me convém mesmo nada que ele se perca por aí. Voltaremos a enrolar a corda, pouco antes de eles chegarem ao local, para evitar que descubram o caminho.

O criado amarrou a corda ao prego que o Barling lhe indicara e foi desenrolando à medida que avançava. Era o processo ideial de evitar quaisquer enganos no caminho que, nalguns túneis, atingia milhas de comprimento.

Ao cabo de oito minutos, já os prisioneiros se encontravam numa espécie de caverna, ao lado dum túnel bastante longo, mas estreito. Como apetrechos, apenas um banco e alguns cobertores, uma caixa a servir de mesa e um jarro com água.

Foi Fuliginoso o primeiro a recuperar os sentidos. Deitado no chão, ergueu-se de repento, levando a mão à cabeça ainda dorida. Incapaz de compreender onde estava, contemplou o Tio Alberto, que jazia inerte e inconsciente, respirando profundamente.

- É inútil falar-lhe hoje. Amanhã veremos. O Block virá, também, comigo - disse Barling.

Ao ouvir estas palavras, o rapaz olhou e viu a estranha figura do contrabandista. Recordando imediatamente o que sucedera, mas estranhando o local, adiantou-se a perguntar:

Que vem a ser isto, senhor Barling? Porque me agrediu? Porque me trouxeram para aqui?

- É o castigo dum rapazelho que se atreve a meter o nariz onde não é chamado! -exclamou o outro continuando: - Vais fazer companhia ao nosso amigo, acolá naquele banco. Está descansado que ele dorme até amanhã. Quando acordar, podes dizer-lhe tudo o que se passou e preveni-lo de que voltarei aqui, em breve, para conversar amigavelmente com ele. Resta-me prevenir-te de que, se não queres desaparecer para sempre, é melhor ficares aí quietinho, até ver.

O pequeno empalideceu. Sabia que o Bar-ling falava a sério.

Sentindo-se confuso, preparava-se para dirigir mais algumas perguntas ao contrabandista, quando notou que ele lhe voltava as costas, partindo sem mais explicações, com o criado.

Ainda vociferou, ao dar pela falta da lanterna: - Não me deixem sem luz!

Como resposta, apenas onviu na escuridão ressoarem os passos, cada vez mais distantes dos dois homens que se afastavam.

Sem luz, rodeado pelo silêncio, levou a mão ao bolso, procurando a lâmpada. Num relance recordou que a deixara cair no quarto, ao ser agredido. Então, tacteou até encontrar o banco, procurando despertar o pai da Zé.

Não podia mais com o isolamento e a solidão.

Aproximou-se, tentando despertá-lo. Puxou pelos cobertores. Tio Alberto dormia.

Ouviu, vindo de mais longe, o ruído da água que caía gota a gota: diip! drip! drip!

Não tardou que o ruído da água, gotejando, se lhe tornasse insuportável, parecendo não mais acabar:-drip! drip! drip!

Não podia mais com a solidão. Decididamente teria de falar com alguém.

Sacudiu aquele corpo inerte, pensando como haveria de chamá-lo, uma vez que não lhe conhecia o sobrenome.

Chamar-lhe "pai da Zé" - pensou, Seria uma maneira ridícula. E foi nesse momento que lhe veio à ideia como os outros o chamavam:

- Tio Alberto! Tio Alberto! Acorde! Acorde! Por favor, acorde!

Acorde! Tio Alberto, acorde!

Finalmente, o Tio Alberto deu sinal de si. Abriu os olhos e escutou em plena escuridão, aquela voz imperiosa:

- Acorde, Tio Alberto! Acorde! Diga qualquer coisa! Tenho medo! Não me deixe só!

Pensando que era o Júlio ou o David, Tio Alberto lançou-lhe um braço à roda do pescoço, puxou-o para si e exclamou:

- Está bem! O quê? Que é, Júlio? É o Júlio ou o David? Vão dormir. Vão dormir.

E caiu de novo num sono profundo ainda sob a influência dos narcóticos. O rapaz, porém, sentiu-se mais reconfortado e fechou os olhos, seguro de que não voltaria a adormecer.

Adormeceu, porém, imediatamente, ao contrário do que esperava. Toda a noite dormiu a sono solto, que só o despertar do Tio Alberto conseguiu interromper.

Este começara por estranhar a dureza do leito, mais estranhando ainda encontrar outra pessoa na cama. Incapaz de coordenar ideias, estendeu a mão no gesto de quem ia acender a lâmpada da cabeceira mas foi bater na cara do Fuliginoso.

Que era aquilo, afinal?

Principiava a sentir-se angustiado quando a voz do Fuliginoso o transportou à realidade:

- Já está acordado? Ainda bem, Tio Alberto! Desculpe chamar-lhe assim. Como sei apenas que é pai da Zé e tio do Júlio...

- Bom. Mas quem me está a falar ? - perguntou o Tio Alberto, intrigado.

Então o rapaz explicou-lhe o que se passara. O Tio Alberto escutou com muita admiração, comentando a seguir:

- Mas, porque fizeram isso? Nunca ouvi falar dum caso assim na minha vida!

- Não sei - respondeu o rapaz - que motivos levaram esse senhor Barling a raptá-lo. Quanto a mim, sei que foi por eu ter descoberto o que ele estava a fazer. Seja como for, ele promete voltar ainda esta manhã com o Block e, segundo me disse, deseja conversar consigo amigavelmente. O pior é termos de esperar aqui. É impossível descobrir o caminho por esta rede de túneis no meio da escuridão.

Esperaram. Barling chegou daí a pouco, acompanhado pelo Block que trazia comida para os dois prisioneiros.

- És um miserável, Block!-disse o Fuliginoso, ao ver o criado à luz da lâmpada. – Como te atreveste a uma coisa destas? Verás o que te acontece, quando o meu padrasto souber. Ou então também ele está metido nisto...

. - Cuidado com a língua - respondeu-lhe o criado.

O rapaz comentou, estupefacto:

- Ah! Mas tu não és surdo, afinal! Grande velhaco! E foi assim que chegaste a saber tudo, miserável!

- Aplica-lhe o correctivo que merece; eu não tenho tempo para tratar de fedelhos - disse o Barling sentando-se sobre a caixa.

- Pois decerto; não quero perder a ocasião - disse o Block, sarcàsticamente, desenrolando um baraço de corda.

O pequeno ficou alarmado. Saltou do banco e deu um grito.

- Deixa-me primeiro falar com este senhor - continuou o Barling. - Depois tratarás desse. Faz-lhe bem esperar um pouco.

Tio Alberto havia escutado tudo, sem dar sinal de si. E, antes que Barling iniciasse o discurso, foi ele quem se adiantou, falando em tom severo:

- Exijo-lhe uma explicação! Quero ser imediatamente reconduzido ao Monte dos Contrabandistas. E fique sabendo que terá de prestar contas à polícia!

- Vamos, não se perturbe! Vale mais falarmos doutro assunto. Quero fazer-lhe uma proposta deveras generosa. Como é de esperar, eu conheço o motivo da sua vinda aqui e as razões porque o senhor e o seu amigo Lenoir se interessam tanto por essas experiências...-disse o contrabandista, serenamente.

- Mas, como é possível ? - reflectiu o Tio Alberto.-Talvez espionagem.

- Sim, sim! Aposto que foi o espião do Block! - gritou o Fuliginoso, indignado.

O outro não fez caso do comentário e prosseguiu, dirigindo-se ao cientista:

- Meu caro senhor, dir-lhe-ei em breves palavras, aquilo que pretendo e me parece fácil. Suponho haverem-lhe dito já que eu sou contrabandista. É verdade. E é verdade também que o contrabando me dá importantes lucros. De resto, o contrabando aqui é coisa fácil. Compreende-se porquê: ninguém se atreve a vigiar os pântanos ou a impedir a passagem dos meus homens. Só eu e uns tantos mais conhecemos esse caminho secreto. Quando as noites se mostram favoráveis, eu, ou de preferência o Block, tratamos de fazer os respectivos sinais do cimo da torre do Monte dos Contrabandistas...

- Ah! Então sempre era o Block!-gritou o rapaz.

Barling prosseguiu:

- As mercadorias chegam e nós aguardamos o momento favorável para as recolher. Depois tapamos a carga muito bem, de modo que ninguém possa desconfiar.

- Creia que ainda não cheguei a perceber a razão desse discurso. Nada disso me interessa. Só me preocupa o plano da secagem do pântano. Quero lá saber do contrabando!

Ao que o outro replicou, delicadamente:

- Exactamente, meu querido amigo! Bem o sei. Vi os vossos planos e tomei, até, conhecimento das vossas experiências. Mas, repare: a secagem do pântano significa, nem mais nem menos, o fim dos meus negócios. Desaparecido o pântano, construídas as casas, abertas as estradas, desaparecida a neblina, desaparece também o contrabando! Construam ali um porto, na orla do pântano!-e os meus barcos nunca mais poderão passar despercebidos, carregados de valiosas mercadorias! E não será apenas o dinheiro, o que eu perco. Acabará, por igual, esta excitação que, para mim, vale mais que a própria vida!

- Isso é uma loucura! - argumentou o Tio Alberto, contrafeito.

Aquele aventureiro tinha realmente o seu quê de loucura. Sentia imenso prazer no contrabando, numa época em que tal género de vida estava prestes a desaparecer. Amava, por assim dizer, a aventura das pequenas embarcações através da neblina; confortava-o saber que os seus homens iam caminhando com o contrabando, através do pântano em direcção ao local combinado.

- Mais valia que você tivesse nascido há um século. Isso já não é trabalho para a nossa época - disse o Fuliginoso, também convencido de que o contrabandista não tinha o juízo todo.

Barling voltou-se, colérico, e, à luz escassa da lanterna, sentenciou:

- Mais uma palavra e garanto-te que vais cair no pântano!

O pequeno compreendeu que assim sucederia. Tio Alberto pensou o mesmo. Olhando para o Barling com desespero, perguntou-lhe:

- Afinal, que tenho eu a ver com isto ? Porque me arrastou para aqui?

- Bem - continuou Barling - eu sei que o senhor Lenoir está prestes a adquirir os seus planos com o fim de secar o pântano. Sei, além disso, que esse senhor pretende fazer um belo negócio, vendendo o terreno depois de seco. Tudo quanto aqui está lhe pertence; mas só eu consigo utilizar, realmente, o pântano. E não quero que o sequem. Serei eu - e não o senhor Lenoir - quem lhe compra os planos!

- Quer dizer: pretende também secar o pântano - disse o Tio Alberto, admirado.

Barling riu sarcàsticamente:

- Não! Os seus planos, os resultados das suas experiências - será- tudo queimado! Quero o pântano, tal como é, secreto, envolvido em neblina, apenas acessível a mim e aos meus homens. Portanto, meu caro senhor, queira dizer-me quanto pretende e assinar este documento, pelo qual os seus planos ficarão sendo exclusivamente meus.

Posto isto, apresentou um documento ao Tio Alberto. O pequeno susteve a respiração.

O cientista agarrou no documento, rasgou-o em pedacinhos. E, atirando-os à cara do senhor Barling, disse-lhe com irritação:

- Não faço negócios com doidos nem com velhacos!

Block soltou um grito de dor e recuou

 

                     TIM ENTRA EM ACÇÃO

Ao ouvir estas palavras, Barling empalideceu, enquanto o Fuliginoso gritava entusiasmado:- Bravo, Tio Alberto!

Enfurecido, Block avançou para o rapaz e, segurando-o pelo ombro, levantou a corda, pronto a castigá-lo.

- Assim mesmo! Trata primeiro desse e depois do outro. Vais ver como lhes faz bem este regime! - disse Barling com ironia.

O rapaz soltou um grito. Tio Alberto correu em auxílio mas a corda voltou a descer sobre o pequeno indefeso.

Inesperadamente, porém, ouviu-se o ruído de passos muito apressados.

Atacado sem esperar, Block soltou um grito de dor e recuou, deixando cair a lanterna.

Em plena escuridão, ouviu-se um rugido feroz que os deixou apavorados.

Block procurava fugir. Mas incapaz de libertar-se, mal chegou a gritar.

Barling avançou, sendo atacado também.

Os dois prisioneiros não conseguiam ocultar o seu pavor. Esperavam um ataque a todo o momento. Pensavam já num rato gigante ou qualquer animal feroz que habitasse aquelas paragens.

O animal feroz, porém, revelou-se repentinamente:- ladrou! O pequeno compreendeu imediatamente:

- Tim! És tu, Tim! Bravo! Atira-te a eles!

Os outros dois homens tolhidos pelo medo, nada conseguiram fazer.

Correndo a bom correr, escaparam-se pelo túnel, mal seguindo a corda que lhes indicava o caminho.

Tim perseguiu-os até muito longe. Depois, satisfeito com a inesperada proeza, voltou para junto dos seus amigos, sendo recebido com grande alegria.

-Mas, como descobriste o caminho? Deves estar cheio de fome! Aqui tens! Come! -disse-lhe o Fuliginoso.

Tim devorou tudo. Havia passado fome e sede, durante alguns dias, mal conseguindo caçar uns ratos e sugar umas gotas de água.

- Tio Alberto! O Tim é que podia levar-nos para casa. Ouve, Tim, és capaz de nos ensinar o caminho? - prosseguiu o pequeno explorador, em apuros.

Tim arrebitou as orelhas, deu uma corrida mas não tardou. Farejara o inimigo naquelas imediações. Ele bem sabia que nem o Barling nem o Block eram para brincadeiras.

Não se atrapalhou, contudo. Conhecia já, pela experiência dos últimos dias, outros caminhos que comunicavam com o exterior. Um deles era o que dava para o pântano.

E, assim partiram, rodeados pela escuridão, indo o Tim à frente a indicar o caminho ao Tio Alberto que o segurava pela coleira.

A viagem era difícil e arriscada, ainda pior devido ao estado de espírito do Tio Alberto. Este, deveras constrangido, descalço e apenas envolto no pijama e num cobertor, chegava a duvidar do próprio Tim, à medida que desciam e tropeçavam, esbarrando, ora aqui, ora acolá.

O Fuliginoso acompanhava-o, muito aconchegado a ele.

Chegaram, enfim, à orla do pântano, na base do monte. O espectáculo era desolador. O nevoeiro cerrado impedia os dois foragidos de procurarem qualquer caminho.

- Não tem importância. Tim sabe o caminho e leva-nos à cidade - disse o Fuliginoso.

Num instante, porém, o cão estacou, pôs-se a escutar, mostrando-se agitado, incapaz de prosseguir. Que se passava?

Como resposta à inquietação dos dois, Tim partiu a galope, voltando pelo túnel donde haviam saído.

- Tim! Tim! Não nos deixes! Vem cá! -gritou o rapaz.

- Tim desapareceu. Porquê ?

- Bom! Creio que o melhor será tentarmos seguir por este terreno pantanoso - disse o Tio Alberto, tacteando com o pé a dureza do terreno.

Restava-lhes apenas a abertura do túnel ou a encosta íngreme e penhascosa do monte, de acesso impossível.

- Sentemo-nos e esperemos um pouco, a ver se o Tim volta - disse o Fuliginoso.

Sentaram-se numa rocha à entrada do túnel e esperaram.

Enquanto esperavam, o Fuliginoso foi meditando nos outros camaradas, imaginando a surpresa deles ao darem pela sua falta.

- Sempre gostava de saber o que andam a fazer - disse em voz alta.

Os outros, como já sabemos, não se tinham poupado aos maiores esforços para descobrir o paradeiro dos desaparecidos.

De tal modo se tinham desenrolado os factos que o senhor Lenoir se convencera que o Block era um espião e não um criado fiel, como julgara a princípio.

Ao notar essa modificação, Júlio decidiu-se a falar com mais franqueza, contando ao senhor Lenoir como haviam descoberto a passagem secreta por baixo da janela e a presença de Barling e do Block nos túneis subterrâneos.

- Santo Deus!-exclamou, nitidamente alarmado.- Barling endoideceu! E o Block? Não querem lá ver? Decididamente isto é uma conspiração! Agora percebo o motivo de tudo o que se tem passado. Descobriram os meus planos e os do seu tio e querem impedi-los de qualquer forma, se não lá vai o negócio do contrabando. Bonito! Quem sabe, até, o que terá acontecido! Um caso sério!-concluiu o senhor Lenoir.

- Se ao menos aqui estivesse o Tim - exclamou inesperadamente a Zé.

O senhor redarguiu admirado:

- Quem é o Tim?

- Bom, já agora mais vale contar tudo - adiantou-se a dizer o Júlio, explicando as mil e uma habilidades de que se haviam servido para ocultar o cão.

- Que parvoíce! -comentou o senhor Lenoir, com enfado. - Podiam-me ter dito, que eu arranjaria alguém para cuidar dele, aí na cidade. É que não posso suportar a presença de cães nesta casa; nem os quero ver ao pé de mim.

Os pequenos sentiram-se envergonhados da sua atitude. Afinal, o senhor Lenoir não era tão mau como parecia.

- Gostava de ir procurar o Tim, enquanto o senhor atende a polícia. Não há perigo: conhecemos o caminho para a passagem secreta; é pelo seu gabinete - concluiu a Zé.

- Ah! Já sei! Foi por isso que se escondeu ali, ontem à tarde. Julguei que fosse alguma partida... Pois bem, vá ver então se o encontra. Mas uma coisa lhe peço: não o traga para aqui. Realmente, não consigo tolerar a presença de cães.

Dito isto, tratou de telefonar outra vez para a polícia. Marybelle e a esposa ficaram ao pé dele, muito chorosas, enquanto a Zé, o David, o Júlio e a Ana, mais decididos, se esgueiraram para o gabinete.

- Vamos todos procurar o Tim. Tanto havemos de gritar e assobiar que ele acabará por descobrir-nos - disse a Zé.

Procederam como de costume e em breve se encontraram no estreito corredor que estabelecia ligação entre o gabinete do Lenoir e o quarto de dormir do Fuliginoso.

Onde estaria o Tim? Que lhe teria acontecido? Foi então que a Zé se adiantou a explicar:

- Lembram-se de o Fuliginoso nos ter dito que havia outra ligação entre este corredor e a sala de jantar ? Pois eu suponho que vi uma porta ou qualquer coisa de semelhante quando lá passámos. Naturalmente, o Tim empurrou-a e meteu por outro caminho.

Voltaram para trás em fila indiana. Alcançaram a sala de jantar ou, melhor será dizer, a parede que ladeava a sala de jantar, com a respectiva porta, pequena e bem dissimulada, que a Zé notara ao passar. A um empurrão da audaciosa rapariga, a porta abriu sem dificuldade e tornou a fechar, com um ligeiro estalido. Só abria de um dos lados.

- Ora aqui está! - concluiu ela - foi por aqui que o Tim entrou.

Empurrou a porta outra vez, mais e mais, até deixá-la segura, de modo a não tornar a fechar-se espontaneamente.

- Vamos procurá-lo!-propôs ela.

À entrada, a própria Ana viu-se forçada a curvar a cabeça. Em seguida deram com um corredor semelhante ao que acabavam de deixar, embora um pouco mais largo.

Júlio notou que o corredor ia descendo:

- Creio - disse - que vai ter àquela passagem onde costumamos levar o Tim quando descemos pelo poço. Reparem! Aqui fica o poço!

Continuaram a chamar o Tim, a assobiar-lhe. Tim não aparecia. A Zé começou a sentir-se triste.

- Atenção! - exclamou o David - deve ser este o sítio onde estivemos da outra vez, quando descemos aqueles degraus, depois da passagem junto à janela. Olhem, aqui está o túnel onde descobrimos o Barling e o Block.

- E se eles fizeram mal ao Tim? - pensou a Zé, aterrorizada.

O receio da Zé tornou-se contagioso. Efectivamente, era para estranhar que aqueles dois indivíduos, fora da lei, deixassem o Tim em paz, uma vez que ele se encontrasse próximo. Longe andavam de pensar que, naquele mesmo instante, o seu fiel companheiro se encontrava ao lado dos dois prisioneiros.

Foi o Júlio que os desviou de ideias tristes, mostrando-lhes o que acabava de descobrir.

- Reparem - disse, apontando a lâmpada, - reparem nesta corda estendida ao longo do túnel. Porque será?

- Naturalmente é deste túnel que o Block e o Barling se servem. É lá em baixo que devem estar os prisioneiros. Hei-de encontrá-los! Quem quer vir comigo?

Eu!-exclamaram todos, a um tempo, sentindo-se incapazes de abandonar a Zé um só instante.

 

                   UMA VIAGEM PELAS ENTRANHAS DO MONTE

Desceram pelo túnel. Júlio tacteava a corda, enquanto os outros seguiam de mãos dadas para não se perderem.

Uns dez minutos decorridos, alcançaram a caverna onde na noite anterior tinham estado os dois prisioneiros.

- Atenção! Devem ter estado aqui e algo de estranho se passou - disse o Júlio, apontando a lanterna que iluminou um banco, umas cobertas e uns pedaços de papel rasgado.

A Zé fez imediatamente o seu raciocínio:

- Barling trouxe-os para aqui e abandonou-os. Quando voltou, fez uma proposta ao meu pai, que a recusou. Lutaram; a lanterna caiu e quebrou-se! Oxalá não lhe tenha acontecido alguma desgraça.

Júlio entristeceu. - Deus queira que não se perdessem por esses túneis malditos. Nem o Fuliginoso os conhece, a bem dizer.

- Vem aí gente! Apaga a luz, Júlio - preveniu o David, de repente. o

Júlio apagou a luz. Deixaram-se ficar na escuridão, à escuta, a um canto da caverna.

Ouviram-se passos cautelosos que pareciam de duas ou três pessoas, e cada vez se aproximavam mais. Quem quer que fosse vinha pelo túnel onde a corda se encontrava. , - Talvez sejam o Barling com o Block que vêm procurar o pai, para lhe falar outra vez. Afinal, já se foi embora! -segredou a Zé.

Uma luz intensa, que inundou a caverna, deixou-os sem pinga de sangue. Ouviu-se a voz de Barling:

- Céus! Mas que vem a ser isto? Júlio ergueu-se e esplicou:

- Viemos procurar o nosso tio e o nosso camarada. Onde estão?

- O quê? Já não estão cá? E esse cão feroz já desapareceu também?

- Esteve aqui o Tim ? Para onde foi ? - perguntou a Zé, exaltada.

Barling vinha acompanhado por dois homens: o criado e o Block. Pousouv a lanterna e exclamou:

- Querem dizer, com isso, que ignoram onde eles estejam? Pois garanto-vos que, se abandonarem este lugar, nunca mais voltarão.

Ana soltou um grito de horror:

- Fique sabendo que foi por sua culpa!

- Deixa, não digas nada!-ordenou-lhe o Júlio, voltando-se para o Barling:

- Parece-me que o melhor é acompanhar-nos e esclarecer a situação. Olhe que o senhor Lenoir já está tratando do caso com a polícia.

- Sim! Então podemos ficar aqui mais um pouco. Considero-vos meus prisioneiros. Desta vez não conseguireis fugir. Arranja corda, Block.

Block avançou, acompanhado pelo outro criado. Os dois seguraram a Zé com violência.

Ela gritou: - Tim! Tim! Onde estás ? Acode-me! Tim!

Tim não apareceu.

Depois de terem amarrado a Zé, com as mãos atrás das costas, voltaram-se para o Júlio.

- Doido! É preciso ser doido para fazer uma coisa destas!-disse o Júlio para o Barling, que se entretinha a segurar a lanterna junto dele.

- Tim! Tim! Tim!-gritava a Zé, tentando desenvencilhar-se.

Tim não ouviu; mas, de algum modo sentiu que a sua dona estava em perigo. E foi nesse momento que abandonou os fugitivos errantes, para enfiar pelo túnel com uma violência indescritível.

Preparavam-se para amarrar o Júlio, quando a caverna foi abalada por uma espécie de furacão.

- Aí está outra vez esse cão terrível! -gritou Block, apavorado. - Onde está a sua espingarda, senhor Barling?

Tim não quis saber de espingardas. Num salto deitou ao chão o Block, depois atirou-se ao Barling, rasgando-lhe o ombro.

- Chamem esse cão! Chamem esse cão, que ele mata-nos! - gritou o Barling, levando a mão ao ombro.

Ninguém se manifestou. O Tim faria o que lhe apetecesse.

O criado do Barling fugira nos primeiros momentos de confusão. Os outros dois intrusos juntaram-se-lhe em seguida, errando pelo túnel, às escuras, em busca da corda.

Após a perseguição, Tim voltou, muito satisfeito. A Zé foi a primeira a receber as suas carícias. E tão grande foi a sua surpresa que as lágrimas lhe correram pela cara abaixo. Desatem-me! - pediu ela.

David libertou-a e ao Júlio. Depois abraçaram o Tim com um entusiasmo indescritível e disseram-lhe:

- Agora já podes levar-nos junto dos outros. Deves saber onde estão.

Tim partiu, agitando a cauda. A Zé segurava-o pela coleira, enquanto os companheiros seguiam em fila, de mãos dadas.

Prevenidos com dois archotes e uma lanterna, fizeram-se ao caminho sem dificuldade de maior. Agora não tinham receio de se enganar. Tim explorara bem o túnel, aproveitando o seu magnífico faro para guiar a porto seguro os seus amiguinhos.

- Que animal maravilhoso! Creio que é o cão mais esperto de todo o mundo!-disse a Ana.

- Certamente!-opiniou a Zé, que sempre tivera a melhor opinião a respeito do Tim. Viram - continuou ela - como o Tim nos socorreu quando o Block se preparava para amarrar o Júlio? Ele bem sabia que precisávamos de auxílio!

- Creio que desta vez nos leva para o pé do teu pai e do Fuliginoso. Não vês como desce, tão seguro de si ? Aposto que daqui a pouco estamos no pântano - disse o David para a Zé.

Chegaram, por fim, à base do monte. À saída do túnel, a Zé soltou um grito:

- Olha! Lá estão eles!

- Tio Alberto!-gritaram o Júlio, o David e a Ana. - Fuliginoso! Até que enfim!

Os outros dois voltaram-se, muito surpreendidos. Num salto ergueram-se e foram ao encontro do cão e dos pequenos, que nunca mais acabavam de dar largas à sua alegria.

- Como chegaram aqui? Foi o Tim que vos conduziu? Realmente abandonou-nos e desapareceu pelo túnel - disse o Tio Alberto para a Zé, dando-lhe um grande abraço.

- Que aconteceu? - perguntou o Fuliginoso inquieto por saber novidades.

-Tantas coisas!-disse a Zé, contente. - Que felicidade encontrarmo-nos todos aqui! - E imediatamente principiaram a contar as mil e uma peripécias por que haviam passado.

- Bom! Seria melhor regressarmos, senão a polícia começa a fazer pesquisas para nos encontrar. Vão ver a surpresa do senhor Lenoir - concluiu o Júlio.

- Não me agrada muito ir em pijama por essas ruas fora - objectou o Tio Alberto, aconchegando o cobertor.

- Não se incomode. Há nevoeiro - disse a Zé arrepiada com a humidade. E voltando-se para o companheiro fiel:

- Tim, ensina-nos o caminho. Tenho a certeza de que não te enganas.

Tim nunca havia andado pelas imediações daquele túnel mas não se atrapalhou. Partiu, contornando o sopé do monte, enquanto os seus amigos o seguiam, comentando, admirados, a maneira como o Tim se esmerava na escolha dum caminho seguro. Só um cão extraordináriamente inteligente seria capaz de descobrir o caminho próprio, tanto mais que o mínimo descuido seria a queda no pântano.

- Hurrah! Olhem a estrada! -gritou o Júlio, de repente, ao descobrir o caminho que dava para o monte.

Aos saltos, alcançaram caminho mais seguro. Tim procurou também saltar.

Alguma coisa acontecera, porém. Ao formar o salto, caíra no pântano, e em vão tentara desembaraçar-se.

- Tim! Esperem! O Tim caiu no pântano e está a afogar-se! Espera, Tim, espera que eu vou já! -gritou a Zé, desesperada.

Preparava-se para descer ao pântano e salvar o Tim. O pai conseguiu ainda agarrá-la.

- Queres morrer afogada ? Deixa que ele consegue sair - disse o Tio Alberto.

Enganava-se, porém. Cada vez se afundava mais.

- Salvem-no! Salvem-no!- gritou a Zé, tentando fazer alguma coisa. - Acudam-lhe! - suplicou ela.

 

                   AFINAL TUDO SE ARRANJA

Mas que poderiam eles fazer?Apenas lastimar a pouca sorte do Tim que, em vão, lutava com todas as suas forças no meio do lodo.

- Lá vai ele para baixo!-gritou a Ana, a chorar, num desespero.

De repente, ouviu-se o ruído dum camião. A Zé fez sinal:

- Pare! Pare! Venha ajudar-nos que o nosso cão vai morrer afogado - gritou a Zé desvairada.

O camião parou. Num relance, Tio Alberto examinou a carga que trazia e, ajudado pelo Júlio, arrancou imediatamente algumas pranchas. Caminharam em direcção ao pântano e, lançando umas poucas de tábuas, correram a salvar o Tim.

A seguir veio o motorista com mais tábuas para substituir as que se haviam sumido já no lodo.

- O Tio Alberto já salvou o Tim. Está a arrancá-lo do pântano. Aí vem ele-disse a Ana.

A Zé, comovida e extremamente pálida, sentara-se, de repente, na orla da estrada, ao ver que o Tim fora salvo.

Não fora, porém, empresa fácil. A lama espessa dava a impressão de querer sugá-lo.

Enfim, já liberto, avançou através das pranchas semi-submersas, sendo recebido de braços abertos pela dona que exclamou:

- Oh! Tim! Que susto nos pregaste! Ai! O cheiro que tu deitas! Que eu não me importo! Não queria que tu morresses!

O motorista do camião olhou com tristeza para as tábuas que se afundavam. Então, o Tio Alberto, ainda que pouco à vontade naquelas roupas de ocasião, apressou-se a tranquilizá-lo:

- Aqui não tenho dinheiro - disse - mas se o senhor se dignar passar pelo Monte dos Contrabandistas, eu me encarregarei de recompensá-lo pelas suas tábuas e pelo auxílio valioso que nos prestou.

- Pois sim! Olhe, eu vou levar carvão à outra casa a seguir ao Monte dos Contrabandistas. Talvez queiram aproveitar. Ali há espaço bastante, no camião - disse o motorista, deitando uma olhadela ao trajo exótico daquele senhor.

A noite descia. O nevoeiro aumentava. Sentiam-se fatigados. Por isso a oferta não podia ser melhor.

Saltaram para o camião. O carro subiu, roncando encosta acima, não tardando a chegarem ao Monte dos Contrabandistas.

- Voltarei amanhã. Agora não posso demorar-me. Boa-noite a todos - disse o condutor.

Um tanto abalados pela fadiga e pelas emoções, os inesperados visitantes tocaram à campainha. Sara correu a abrir a porta, ficando quase muda de espanto ao dar com aquele grupo.

- Louvado seja Deus! Já aqui estão! Que alegria! Olhem que a polícia anda por aí à vossa procura. Já desceram às passagens secretas, foram a casa do senhor Barling,..

Tim irrompeu pelo hall, empapado em lama quase seca, que lhe dava um aspecto curioso. Sara soltou um grito:

- Que é isto ? Pode lá ser um cão ?

- Vem cá, Tim! - disse a Zé, lembrando-se de que o senhor Lenoir não gostava de cães. - A Sara não se importa que ele fique aí na cozinha? Realmente não posso mandá-lo para a rua. Não calcula as proezas que praticou.

- Anda daí! Anda daí! O senhor Lenoir pode tolerar o Tim, ao menos uns minutos, com certeza - disse-lhe o pai, farto de tanta conversa.

- Pode ficar comigo, pode. Eu me encarrego de lhe dar um banho. Disso é que ele precisa. E o senhor precisa de vestir-se, certamente. Os senhores estão na sala de espera.

Encaminharam-se para a sala, enquanto o Tim seguia docilmente para a cozinha na companhia de Sara.

Ao ouvir semelhante vozearia o senhor Lenoir correu a abrir a porta da sala.

A senhora Lenoir abraçou-se ao pequeno, chorando copiosamente. Marybelle abraçava-o e acarinhava-o.

O senhor Lenoir esfregou as mãos e deu-lhes umas pancadinhas nas costas exclamando:

- Óptimo! Óptimo! Ainda bem que chegaram sãos e salvos! Hão-de ter muito que contar!

- Um caso muito estranho, na verdade - disse Tio Alberto. - Mas, antes de mais, tenho de cuidar dos meus pés. Andei umas poucas de milhas descalço.

Por entre pedaços de narrativas, a cozinheira andava numa roda-viva, ora preparando roupa e água quente para o Tio Alberto aliviar os pés, ora levando comida e bebidas quentes aos demais recém-chegados.

Não podia ser maior a excitação. E, agora que o perigo havia passado, os pequenos sentiam-se orgulhosos de terem participado em tão estranhas aventuras.

Com a chegada da polícia, principiaram os interrogatórios. Todos queriam fornecer informações e pormenores. O Inspector, contudo, achou melhor interrogar somente o Tio Alberto, o Fuliginoso e a Zé, uma vez que estes conheciam quase tudo.

No meio daquele cenário, o senhor Lenoir era, por certo, quem se mostrava mais surpreendido. E, quando ouviu falar das propostas que Barling fizera para a compra dos planos da secagem do pântano, e até, da maneira franca como admitira a condição de contrabandista, não conseguiu dissimular a sua admiração.

- Que loucura! Nem parece deste tempo! - exclamou o Inspector.

- O mesmo lhe disse eu - comentou o pequeno aventureiro.

- Ainda tentámos apanhá-lo em flagrante. Impossível! Esquivava-se sempre. Vejam como se lembrou de colocar aqui o Block para espiar e fazer sinais da torre. Parte-se do princípio que ninguém desconfiaria dele, uma vez que passava por surdo sendo, assim, incapaz de perceber qualquer conversa-concluiu o Inspector.

- Não acham que seria melhor ir procurar o Block, o Barling e o outro homem? Devem andar perdidos pelos túneis; tanto mais que, dois deles, foram mordidos pelo Tim - informou o Júlio.

- É verdade! Afinal foi esse cão que vos salvou. Já é preciso ter sorte. Lamento que o senhor Lenoir não goste de cães. No entanto, há-de concordar que, sem ele, tudo estaria perdido - disse o Inspector.

- Sem dúvida. Mas devo dizer que o Block também os detestava. Talvez por temer que o denunciassem. Pois bem: onde está então esse animal prodigioso? Não me importo de o ver por uns instantes, embora continue a detestar cães - disse o senhor Lenoir.

- Vou já buscá-lo. Oxalá que a Sara lhe tivesse dado banho. Estava tão sujo -justificou a pequena, saindo.

Tim apareceu. Mas era um novo Tim! Sara tivera o cuidado de o tratar com esmero. Depois do banho, ofereceu-lhe uma esplêndida refeição que o deixara com óptimo aspecto.

- É um grande amigo, este Tim! -exclamou a Zé com solenidade.

Tim contemplou o senhor Lenoir e em seguida aproximou-se, levantou delicadamente a pata direita para o cumprimentar, seguindo as regras que a Zé lhe ensinara.

O senhor Lenoir ficou literalmente espantado. Nunca pensara que um cão pudesse ter maneiras tão elegantes.

Cumprimentou-o conforme pôde, mas Tim conteve-se e retirou delicadamente a pata, soltando um ligeiro uf!, como quem dizia passou bem?, e voltou para o pé da Zé, tranquilamente.

Avançou para o senhor Lenoir e levantou delicadamente a pata dianteira, a cumprimentar - Nem parece um cão!-exclamou o senhor Lenoir, vivamente surpreendido.

- Mas pode ter a certeza de que é um cão, extraordinário e muito mais inteligente que a maioria dos cães. Sempre dá licença que ele fique comigo, enquanto estivermos aqui? Pode-se arranjar na cidade uma pessoa que cuide dele - sugeriu a Zé.

- Está bem. Atendendo às suas qualidades excepcionais...-disse o senhor Lenoir, fazendo um grande esforço para ser generoso. Só lhe peço que o conserve longe de mim. Creio que um rapaz tão inteligente deve compreender, não é verdade?

Os outros fizeram uma pequena careta quando o senhor Lenoir lhe chamou rapaz. Nunca havia reparado que se tratava duma rapariga. Já agora ficaria sem o saber.

- Garanto-lhe que não tornará a vê-lo. Muito obrigado por tudo - respondeu-lhe a Zé satisfeita.

O próprio Inspector simpatizara com o Tim. Examinou-o com atenção e propôs à Zé:

- Quando quiser desfazer-se dele, já sabe! Conte comigo! Não imagina os serviços que este animal pode prestar-nos.

Como era de esperar, a Zé nem sequer respondeu a esta sugestão. Seria incapaz de o abandonar, por qualquer preço.

Não obstante, o Inspector viu-se forçado, no dia seguinte, a pedir a colaboração do Tim.

Barling e os companheiros haviam desaparecido e não davam quaisquer indícios de existência. Foi por isso que o Inspector pediu à Zé se deixava o Tim ir explorar os túneis, em busca dos desaparecidos que acabariam por morrer de fome.

Tim partiu e, ao cabo de algumas pesquisas pelos túneis subterrâneos, descobriu os seus inimigos, em estado lastimoso.

Não lhes fez mal. Limitou-se a conduzi-los ao local combinado, onde a polícia os esperava já. E aqui terminou a canseira destes homens singulares.

Então, o senhor Lenoir sentiu desejos de se justificar aos polícias:

- Devem estar satisfeitos - disse. - Durante muito tempo bem procuraram acabar com o contrabando, chegando a desconfiar de mim. Mas Barling era bastante esperto e, ao conhecer os nossos planos de secagem do pântano, compreendeu imediatamente que tal empreendimento era um golpe mortal no seu contrabando. Assim acabariam todas as peripécias e a riqueza que lhe davam esses negócios secretos. É bom lembrar que a polícia encontrou nada menos que uma caverna cheia de mercadorias.

Agora que tudo passara, os pequenos sentiam-se importantes por terem participado em tão misteriosas aventuras.

De um erro apenas se sentiam culpados: haverem julgado o senhor Lenoir muito pior do que era, de facto.

- Sabem que vamos deixar o Monte dos Contrabandistas ? - disse o Fuliginoso. - A mãe ficou de tal maneira abalada com o meu desaparecimento que ele lhe prometeu sair daqui, se eu voltasse. Ficámos todos contentes; eu também não gosto disto.

- Bom, se vocês ficam satisfeitos, eu nada tenho a dizer - comentou o Júlio. - Creiam, no entanto, que este local me agrada bastante: o nevoeiro, os caminhos secretos, o cimo do monte... Lamento não poder voltar aqui, se vocês partem para sempre.

- Também eu - acrescentaram o David, a Ana e a Zé.

- É a terra das aventuras! Não é verdade, Tim? Que tal? - exclamou a Zé dando-lhe umas palmadas carinhosas.

- Uf! - fez o Tim agitando a cauda, a manifestar intensa satisfação de que a Zé também partilhava.

- Agora, felizmente, terminaram as aventuras. Estou farta!-disse a Marybelle.

- Mas não estamos nós!-exclamaram os outros.

E, para eles, continuariam ainda muito mais aventuras - que estão reservadas somente a quem gosta de aventuras.

 

                                                                                Enid Blyton  

 

                      

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