Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS CINCO NO LAGO NEGRO / Enid Blyton
OS CINCO NO LAGO NEGRO / Enid Blyton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS CINCO NO LAGO NEGRO

 

Uma excursão por montes e vales é coisa para entusiasmar os Cinco e preencher agradavelmente quatro dias de férias, prometedoras de muita satisfação.

No entanto, tudo se complica quando uma intrigante mensagem recebida durante a noite pelo David os leva ao Lago Negro, lugar misterioso à beira do qual ainda existem as paredes calcinadas de uma casa.

Mas bem cedo os pequenos compreendem não serem só eles a interessarem-se pelo Lago Negro e pela casa em ruínas, pois encontram já ali instalado um estranho e inquietante par que tenta afastá-los.

Todos nós sabemos como são os Cinco... por isso temos a certeza de que só dali sairão quando finalmente tiverem conseguido desvendar o mistério.

 

 

                   UMA CARTA DE JÚLIO

Ana! - gritou a Zé, correndo atrás da prima enquanto esta se dirigia para a sua sala de aulas. — Ana! Estive lá em baixo e entregaram-me uma carta do teu irmão Júlio, para ti.

A Ana parou. — Obrigada, — disse ela. — Que quererá o Júlio? Ainda há dias recebi carta dele, e é um caso extraordinário voltar a escrever-me com tão pequeno intervalo. Deve ser qualquer coisa importante.

— Abre a carta e logo verás, — disse a Zé. — Despacha-te, porque tenho de ir para a aula de matemática.

A Ana abriu o sobrescrito. Tirou para fora uma folha de papel de bloco e leu-a rapidamente. Depois olhou para a Zé com os olhos a brilhar muito.

— Zé! O Júlio e o David também têm uns dias de férias, tal como nós, na próxima semana! Um colega deles ganhou um prémio importante e por isso resolveram dar uns dias de férias a todos os alunos. Querem que vamos com eles fazer uma excursão a pé.

— Que bela ideia! — exclamou a Zé. — O Júlio nunca se esquece de nós. Deixa-me ler a carta, Ana.

Mas antes que pudesse lê-la apareceu uma professora. — Maria José! Já devia estar na aula; e a Ana também!

A Zé encolheu os ombros. Detestava que a tratassem pelo seu verdadeiro nome. Foi-se embora, sem dizer uma palavra. A Ana meteu a carta no bolso da bata e correu para a aula, muito contente. Quatro dias de férias a meio do período, passados com os seus irmãos Júlio e David, com a Zé e o cão Tim! Haveria alguma coisa melhor?

A Ana e a Zé voltaram a falar sobre o mesmo assunto depois das aulas da manhã. — Temos férias desde sexta-feira até terça, — disse a Zé. — As do Júlio e do David são nos mesmos dias. Que sorte! Normalmente não costumam ter férias a meio do primeiro período.

— Não podem ir a casa. porque a estão a pintar, — disse a Ana. — Era por isso que eu ia contigo. Mas tenho a certeza de que a tua mãe não se importa se formos dar um passeio com os meus irmãos. O teu pai nunca gosta que vamos a casa a meio do período.

— Lá isso é verdade,—concordou a Zé.— Está sempre metido no meio das suas invenções e detesta que o perturbem. Deve convir a todos a nossa excursão.

— O Júlio diz que telefona esta noite para combinar tudo, — disse a Ana. — Espero que o tempo esteja bom. Como ainda estamos em Outubro talvez haja sol e calor.

— Os campos devem estar lindos, — disse a Zé. — O Tim vai-se divertir imenso. Vamos contar-lhe a novidade.

O colégio onde estavam como internas as duas pequenas, permitia que as alunas levassem com elas os seus cães. Havia uns canis no pátio e o Tim vivia ali durante os períodos escolares. As duas primas foram buscá-lo.

O cão ouviu-lhes os passos e começou logo a ladrar, satisfeito. Arranhava o portão do canil, tentando pela milésima vez descobrir como se abria.

Depois não parava de saltar em volta das pequenas, querendo lambê-las e tocar-lhes com as patas.

— Que cão mais maluco! — disse a Zé, fazendo-lhe festas com carinho. —-Ouve, Tim: Vamos passar uns dias de férias, com o David e o Júlio. Que tal achas? Vamos dar um grande passeio, e tu vais gostar muito. Sempre através de montes e vales.

O Tim parecia compreender todas as palavras. Arrebitou as orelhas e pôs a cabeça à banda, prestando a maior atenção ao que a Zé dizia.

— Uuuuf! — disse ele por fim, aprovando plenamente. Depois foi dar uma volta com as pequenas, sempre com a cauda a abanar dum lado para o outro. Ele gostava muito mais do tempo de férias do que dos períodos escolares, mas não se importava de viver no canil desde que estivesse perto da sua querida Zé.

O Júlio telefonou nessa noite, como prometera. Planeara tudo. A Ana ouvia-o, entusiasmada.

— Vai ser fantástico, — respondeu ela. — Sim podemo-nos encontrar onde dizes.

Vamos fazer os possíveis por ser pontuais. Se vocês ainda não tiverem chegado, nós esperamos. Está bem, levamos tudo o que disseste, ó Júlio, não vai ser divertido?

— Que disse ele? — perguntou a Zé, impaciente, quando a Ana desligou o telefone. — Tu podias ter-me deixado falar um bocadinho com o Júlio. Queria contar-lhe umas coisas a respeito do Tim.

— Com certeza que ele não estava interessado em gastar uma chamada telefónica tão cara só para ouvir falar sobre o Tim, — disse a Ana. — Perguntou como ele estava e eu respondi: «óptimo»; era tudo quanto ele queria saber sobre o Tim. Agora vou contar-te o que me disse. Planeou tudo.

As pequenas sentaram-se a um canto da sala de recreio. O Tim também ali estava, com mais três cães pertencentes a outras alunas; todos eles se portavam bem, pois sabiam que no caso contrário voltariam logo para os canis.

«O Júlio disse que ele e o David podem sair logo a seguir ao pequeno almoço, — contou a Ana. — Nós devemos fazer o mesmo. Aconselhou a levarmos muito pouca coisa connosco. Só os pijamas, as escovas de dentes, um casaco curto e um impermeável, bem enrolados. E devemos comprar alguns biscoitos e chocolates. Ainda tens dinheiro?

— Tenho, — disse a Zé. — Deve chegar para umas «tabletes» de chocolate. Além disso tens os biscoitos que a tua mãe mandou na semana passada. Podemos levá-los.

— E o bolo que me mandou uma das minhas tias, — lembrou a Ana. — Mas o Júlio disse que não devemos levar muita coisa, pois vai ser uma autêntica excursão a pé e cansamo-nos se formos muito carregados. É verdade, temos de levar mais dois pares de meias.

— Muito bem, — disse a Zé, fazendo festas ao Tim, que estava deitado mesmo ao lado dela. — Vai ser um grande passeio, Tim!

O cão apenas queria saber se haveria coelhos pelo caminho, pois só nesse caso um passeio podia tornar-se Verdadeiramente divertido. Ele achava uma pena permitirem aos coelhos viver dentro das suas tocas.

Sempre desapareciam da maneira mais irritante, exactamente na altura em que ele estava prestes a apanhá-los.

A Ana e a Zé foram procurar a directora e disseram-lhe que afinal não iam para casa da Zé, pois tencionavam dar um passeio.

— O meu irmão escreveu-lhe, — disse a Ana. — Amanhã deve receber a carta, sr.a Peters. E a mãe da Zé também vai escrever-lhe. Portanto podemos ir, não é verdade?

— Claro que podem e com certeza vão ser uns dias bem passados, — disse a sr.a Peters. — Especialmente se este bom tempo se mantiver. Onde vão?

— Pelos campos, — disse a Ana. — Pelos sítios mais solitários que o Júlio conseguiu descobrir. Temos esperanças de vermos veados e cavalinhos bravos e talvez até alguns texugos. Vamos andar imenso.

— E onde dormem, se vão por uns sítios tão isolados? — perguntou a sr.a Peters.

— O Júlio planeou tudo, — disse a Zé. — Procurou no roteiro estalagens e quintas onde poderemos passar a noite. Deve estar muito frio para dormir ao ar livre.

— Tens razão! — concordou a sr.a Peters.— Não se metam em apuros, é o que lhes aconselho. Eu bem sei o que se passa quando os Cinco se juntam. Calculo que o Tim também vai.

— Sem dúvida! — disse a Zé. — Eu não ia sem ele. Não podia deixá-lo aqui sozinho.

As pequenas prepararam tudo, pois aproximava-se sexta-feira. Tiraram os biscoitos da lata e meteram-nos num cartucho. Também embrulharam o bolo.

Ambas tinham sacos com correias para levarem às costas. Encheram-nos e esvaziaram-nos por várias vezes. Iam sempre aparecendo mais coisas. A Ana achou que devia levar um livro para ler. A Zé lembrou-se de que era melhor levarem duas lanternas de algibeira, com pilhas novas.

— E os biscoitos do Tim? — perguntou ela. —Tenho de levar qualquer coisa para ele. Há-de gostar dum osso; um bem grande que ele possa roer e tornar a roer e que volte a guardá-lo no meu saco para tornar a servir várias vezes.

— Então deixa-me levar todos os biscoitos e o chocolate, já que resolves meter um osso mal cheiroso dentro do teu saco, — pediu a Ana. — Não percebo que necessidade tens de levar qualquer coisa para o Tim. Sempre que nós tomamos uma refeição ele também poderá comer.

A Zé resolveu não levar o osso. Tirara um do canil, grande e pesado, mas também com muito mau cheiro. Voltou a pô-lo onde o encontrara; o Tim seguiu-a, intrigado. O que andaria ela a fazer com o seu osso dum lado para o outro? Não podia concordar com aquilo!

Pareceu-lhes que o tempo demorou muito a passar até sexta-feira, mas finalmente chegou o grande dia.

As pequenas acordaram muito cedo. A Zé foi aos canis antes do pequeno almoço, e escovou e penteou o Tim para que o Júlio e o David o achassem com um lindo aspecto. O cão sabia que chegara o dia da partida e estava entusiasmado como as duas pequenas.

— É melhor comermos bastante ao pequeno almoço, — aconselhou a Ana.— Naturalmente almoçamos tarde. Vamo-nos embora logo que acabarmos de comer. É tão agradável sentirmo-nos longe do colégio, das campainhas e dos horários! Mas só me sinto livre de tudo isto depois de sair destas redondezas!

Comeram imenso, apesar de terem perdido um pouco o apetite devido a estarem tão entusiasmadas. Depois puseram aos ombros os sacos que haviam preparado na noite anterior. Despediram-se da sr.a Peters e foram buscar o Tim.

Ele esperava-as com impaciência e desatou a ladrar com toda a força quando elas se aproximaram. Um momento depois estava fora do canil e saltava à volta das duas pequenas.

— Adeus, Ana e Zé, — gritou-lhes uma das colegas. — Divirtam-se! E não vale a pena voltarem na terça-feira dizendo que tiveram umas das vossas famosas aventuras, pois ninguém acreditará.

— Béu, béu! — fez o Tim. Queria dizer que pelo menos ele iria ter aventuras com centenas de coelhos!

 

                   A CAMINHO

O Júlio e o David também iam a caminho, muito satisfeitos por terem uns dias de férias tão inesperados.

— Nunca simpatizei muito com o Wilson nem com o Johnson, — disse o David, quando se afastaram do colégio. — Sempre muito sisudos, nunca arranjam tempo livre para um jogo ou para uma brincadeira. Mas hoje sou capaz de lhes fazer uma grande reverência. Por causa de serem «ursos» ganharam medalhas, prémios e não sei que mais; e deram-nos uns dias de férias como prémio.

— Mas olha, — continuou o David. — Até aposto que eles vão passar estes dias sentados a um canto, com os livros, e nem perceberão se está um dia maravilhoso como o de hoje ou se chove a cântaros, como ontem. Pobres sabichões!

— Eles detestariam dar um passeio a pé, — disse o Júlio. — Chega a meter-me pena. Lembras-te da falta de jeito que o Johnson tinha para o futebol? Nunca sabia contra quem estava a jogar e corria sempre para a sua própria baliza.

— Pois era, mas deve ser muito inteligente, — respondeu o David. — E para que estamos a falar sobre o Wilson e o Johnson?

Podemos arranjar mil coisas mais interessantes. Falemos sobre a Ana e a Zé e também sobre o Tim, por exemplo. Espero que consigam sair a horas.

O Júlio estudara com cuidado um grande mapa que mostrava os terrenos que ficavam entre o seu colégio e o das raparigas. Havia grandes extensões quase despovoadas, vendo-se apenas uma ou outra quinta, algumas casas e poucas estalagens.

— Não vamos seguir pelas estradas principais, — disse ele. — Vamos por atalhos e caminhos sem importância. Sempre quero ver o que fará o Tim se der com algum veado. Deve ficar intrigadíssimo.

— Só se interessará pelos coelhos, — afirmou o David. — Espero que não esteja tão gordo como nas últimas férias. Acho que lhe demos demasiados sorvetes e chocolates.

— Mas não os deve ter comido durante o tempo de aulas, — disse o Júlio. — As pequenas não recebem tanto dinheiro como nós. Olha, lá vai a camioneta.

Correram para a camioneta que levava pessoas para o mercado ou para as aldeias espalhadas por aquela planície. A camioneta parou a um sinal dos rapazes, e estes saltaram lá para dentro.

— Então fugiram do colégio? — perguntou o condutor. — Tenho que os denunciar, bem sabem!

— Que piada, — disse o Júlio, aborrecido com aquela graça que o condutor dizia sempre que levava um rapazito com saca aos ombros.

Saíram na vila seguinte e atravessaram um campo para irem tomar outra camioneta. Conseguiram apanhá-la-com facilidade e sentaram-se confortàvelmente nos seus lugares. Levava meia hora até ao sítio onde tinham combinado encontrar-se com as pequenas.

— Devem descer aqui, — disse o condutor, quando a camioneta se aproximava duma vilória. — Querem ir para a Aldeia de Maçãs, não é verdade? Nós não vamos mais adiante. Viramos aqui e voltamos para trás.

— Muito obrigado, — disseram os rapazes, apeando-se.

—"A Zé e a Ana já terão chegado? — perguntou o Júlio. — Elas tinham que vir a pé desde a estação do caminho de ferro, que fica a mais de um quilómetro.

As pequenas ainda não tinham chegado. O Júlio e o David foram beber laranjadas numa loja da aldeia. Mal haviam acabado viram a Ana e a Zé à porta do estabelecimento.

— Júlio! David! Adivinhámos que deviam estar a comer ou a beber um refresco! — disse a Ana correndo para os irmãos. — Viemos o mais depressa que nos foi possível. A máquina do comboio avariou-se; era um comboiozinho tão engraçado! Os passageiros saíram todos e davam conselhos ao maquinista sobre a reparação da avaria.

— Olá, — disse o Júlio, dando um abraço à Ana. Ele gostava muito da sua irmãzita.— Olá, Zé!.Estás mais gorda, não estás?

— Que ideia! — respondeu a Zé, indignada.

— E o Tim também engordou, por isso não digas o contrário.

— O Júlio está a arreliar-te, como de costume, — disse o David dando uma palmada amigável nas costas da prima. — Mas o certo é que cresceste um bocado. Daqui a pouco estás da minha altura. Olá, Tim! Valente cão! Continuas com a língua muito molhada? Nunca vi um cão assim!

O Tim estava louco de alegria por se encontrar mais uma vez com os seus quatro amigos. Saltava à volta deles, ladrando e abanando a cauda. Acabou por deitar ao chão uma pilha de latas.

— Ai, ai! — disse a dona da loja, aparecendo. — Levem daqui o cão. Parece maluco.

— Vocês, meninas, não querem tomar uma laranjada ou qualquer outra coisa? — perguntou o Júlio, segurando o Tim pela coleira.— É bom que bebam para não levarmos garrafas de refrescos, sempre tão pesadas.

— Para mim uma laranjada, por favor,

— pediu a Zé. — Juízo, Tim! Parece que estiveste separado do Júlio e do David durante dez anos!

— Naturalmente pareceram-lhe dez anos,

— disse a Ana. — Reparem, aquilo são sanduíches?

A pequenita apontou para o balcão. Havia ali um prato com uma porção de sanduíches muito apetitosas.

— São sanduíches, sim, menina, — disse a dona da loja, abrindo duas garrafas de laranjada. — Arranjei-as para o meu filho que trabalha numa quinta aqui perto. Deve estar a vir buscá-las.

— Naturalmente não pode arranjar umas para nós, pois não? — perguntou o Júlio.— Ficariam para o nosso almoço. Têm um belíssimo aspecto.

— Posso arranjar-lhes quantas quiserem,

— disse a dona da loja, colocando dois copos em frente da Ana e da Zé. — Que preferem? Queijo, ovos cozidos, presunto ou carne assada?

— Para dizer com franqueza, gostaríamos de todas as qualidades; o pão também parece óptimo.

— Sou eu que o faço. Vou preparar-lhes as sanduíches e se entrar alguém na loja, chamem-me, — disse a mulher desaparecendo.

— Tive uma ideia! — exclamou o Júlio.

— Se levarmos bastantes sanduíches, não precisamos de passar por outra aldeia durante todo o dia e faremos um belo passeio a pé, atravessando «regiões jamais exploradas», como vem nos livros.

— Quantas sanduíches come cada um? — perguntou a mulher voltando a aparecer daí a pouco. — O meu filho costuma levar seis, ou seja, doze fatias de pão.

— Bem, pode arranjar oito para cada um de nós? — perguntou o Júlio.

A mulher abriu muito os olhos. — É para nos darem para todo o dia, — explicou ele. A dona da loja fez um sinal afirmativo e tornou a desaparecer.

— Ainda vai ter um bom trabalho, — disse a Ana. — Oito sanduíches para cada um, faz sessenta e quatro fatias de pão, só para quatro pessoas.

— Esperemos que ela tenha uma máquina para cortar o pão, — disse o David. — Doutra maneira ficaremos aqui de conserva.

Um rapaz alto apareceu na entrada da loja, com uma bicicleta pela mão. — Mãe! — chamou ele.

Os pequenos perceberam logo quem ele era. Devia tratar-se do filho que trabalhava numa quinta próxima. Viera buscar as suas sanduíches.

— A sua mãe está muito ocupada a cortar sessenta e quatro fatias de pão, — disse o David. — Quer que a vá chamar?

— Não vale a pena. Estou com pressa, — disse o rapaz, encostando a bicicleta à parede. Depois foi buscar as sanduíches que estavam sobre o balcão e voltou para a porta.

«Digam à minha mãe que estive aqui, — pediu ele. — E digam-lhe que esta noite volto mais tarde. Tenho de ir à prisão levar umas coisas.

Foi-se logo embora, seguindo pela estrada, na sua bicicleta. A mulher apareceu de repente com uma faca na mão direita e um pão na outra.

— Foi o Jim que aqui esteve? — perguntou ela. — Não há dúvida, pois levou as sanduíches. Deviam ter-me chamado!

— Ele disse que estava cheio de pressa, — explicou o Júlio. — E pediu-nos para lhe dizermos que vem hoje mais tarde pois tem de levar umas coisas à prisão.

— Tenho lá um outro filho, — informou a mulher.

Os quatro pequenos abriram os olhos de espanto. Quereria ela dizer que o filho estava preso?

Ela adivinhou-lhes o pensamento e sorriu. — O meu Tom não está preso! — explicou ela. — É um guarda e muito boa pessoa. No entanto, não tem um lugar muito agradável. Tenho sempre medo desses homens da prisão. São maus e perigosos.

— Já sabia que havia aqui uma grande prisão, — disse o Júlio. — Vem marcada no nosso mapa. Claro que não tencionamos aproximar-nos dela.

— Fazem bem e não levem as meninas para aqueles lados, — aconselhou a mulher voltando a desaparecer.— Se não me despacho com as vossas sanduíches só as acabo amanhã.

Entrou apenas um freguês enquanto estiveram à espera. Era um homem com ar grave e solene, a fumar cachimbo. Olhou em redor e, não vendo a mulher, pôs umas moedas sobre o balcão e tirou um copo de geleia que meteu dentro da algibeira.

— Digam-lhe quando ela voltar, — pediu ele, com o cachimbo na boca, indo-se embora. O Tim rosnou, pois o homem cheirava bastante mal e não lhe agradara nada.

Por fim, a mulher acabou de arranjar as sanduíches e apareceu mais uma vez. Tinha feito quatro embrulhos de papel vegetal e escrevera em cada um o que continha. O Júlio leu o que diziam e piscou o olho aos outros.

— Que maravilha! — disse ele. — Queijo, carne assada, presunto e ovos cozidos; e isto o que é?

— São quatro fatias dum bolo feito por mim — disse a mulher. — Não precisam de pagá-lo. É só para o provarem.

— Mas está aqui mais de meio bolo! — disse o Júlio, sensibilizado. — Então podemos pagá-lo com os nossos maiores agradecimentos. E quanto é tudo o resto?

Ela disse-lhe e o Júlio pagou-lhe acrescentando-lhe uma boa gorjeta, por causa do bolo. — Aqui tem, e muito obrigado, — disse ele. — Um sujeito de idade deixou aquelas moedas e levou um copo de geleia.

— Deve ter sido o tio Gupps, — disse a mulher. — Espero que se divirtam. Voltem aqui se quiserem mais sanduíches. Se comerem hoje essas todas não ficarão mal!

— Uuuuf! — fez o Tim, esperando que também lhe coubessem algumas. A mulher foi buscar um osso e ele agarrou-o logo com a boca.

— Mais uma vez obrigado, — disse o Júlio.— Vamos! A caminho!

 

                   PELOS CAMPOS FORA

Partiram por fim, com o Tim à frente, a correr. Os colégios parecia-lhes terem ficado bem distantes. O sol de Outubro brilhava e as árvores estavam vestidas de amarelo, ouro e vermelho, as suas cores de Outono. Algumas folhas bailavam ao vento.

— Está um dia de sonho! — disse a Zé. — Não devia ter vestido o meu casaco. Sinto-me a torrar.

— Então tira-o e leva-o às costas, — disse o Júlio. — Eu vou fazer o mesmo. As nossas camisolas chegam para nos aquecerem, num dia quente como o de hoje.

Todos despiram os casacos de fazenda grossa. Cada qual levava a sua mochila, um impermeável bem enrolado e atado àquela e agora o casaco. Mas ninguém dava pelo peso, ao princípio do passeio.

— Ainda bem que vocês duas seguiram o meu conselho e trouxeram os sapatos mais fortes, — disse o Júlio. — Naturalmente vamos passar por sítios molhados. Trouxeram meias para mudarem?

— Não nos esquecemos de nada do que nos recomendaste, — disse a Ana. — A tua saca parece mais cheia do que as nossas, Júlio!

— Trouxe mapas e outras coisas no género, — respondeu o Júlio.

— Estes campos são bastante curiosos. E aparecem nomes engraçados. Vale Cego, Monte dos Coelhos, Lago Perdido e Mata das Lebres.

— Monte dos Coelhos! O Tim vai gostar imenso, — disse a Zé. O cão arrebitou as orelhas. Coelhos?! Então era o género de lugar que ele apreciava.

— Neste momento vamos a caminhar em direcção ao Monte dos Coelhos. Depois segue-se a Mata das Lebres e como estas são da família dos coelhos o Tim também vai gostar.

— Béu, béu! — fez o Tim, muito satisfeito, continuando na dianteira. Sentia-se feliz. Os seus quatro amigos estavam ali, com as sacas cheias de sanduíches, cheirando deliciosamente. E iam dar um passeio grande, grande, esperando encontrar imensos coelhos!

Era agradável caminhar ao sol. Depressa ficou para trás a pequena aldeia e seguiram por um caminho sinuoso. Este estava metido entre sebes e os pequenos não conseguiam ver nada para os lados.

— Que caminho tão escondido, — notou o David. — Dá-me ideia de que estou a passar por um túnel. E que estreito! Não gostava de guiar um automóvel por aqui. Se encontrasse outro carro teria que recuar vários quilómetros.

— Não devemos encontrar nenhum — disse o Júlio. — Só de Verão passam carros por aqui, com pessoas em férias, dando passeios pelo campo. Reparem, agora vamos seguir por aquele caminho. Segundo o mapa indica deve levar-nos ao Monte dos Coelhos.

Atravessaram um campo que ia dar a um monte com aspecto curioso. De repente, o Tim ficou louco de alegria. Cheirava-lhe a coelhos e até os podia ver!

— É raro verem-se tantos coelhos fora das tocas durante o dia, — disse a Zé, admirada. — Há grandes e pequenos! Que quantidade!

Chegaram ao monte e sentaram-se calmamente a observar os coelhos. Mas era impossível obrigar o Tim a fazer o mesmo. Conseguiu libertar-se das mãos da Zé e correu com toda a velocidade atrás dos coelhos.

— Tim! — gritou a Zé, mas ele não deu atenção. Corria para aqui e para ali, ficando zangado por os coelhos conseguirem fugir até às suas tocas.

— Não vale a pena chamá-lo, — disse o David. — De qualquer maneira não conseguirá apanhar nenhum; repara como eles são espertalhões. Até parece que se estão a divertir à custa do Tim.

E realmente assim parecia. Quando o Tim queria agarrar dois ou três coelhos duma toca, alguns dos outros começavam a espreitar mesmo atrás dele. Era uma autêntica comédia!

— Onde tencionas almoçar? — perguntou a Ana ao Júlio. — Se continuamos aqui mais tempo, tenho que comer qualquer coisa.

É uma pena sentir sempre tanto apetite ao ar livre.

— Então vamo-nos embora, — disse o Júlio. — Ainda temos que andar um bocado até chegarmos ao sítio onde devemos almoçar. Fiz um roteiro pormenorizado para o nosso passeio. Vamos dar uma grande volta pelo campo e acabaremos no lugar donde partimos. Planeei tudo muito bem.

— Passamos as noites nalgumas quintas? — perguntou a Zé. — Eu gostava imenso. Achas que não se importarão de nos receber? Ou ficaremos em estalagens?

— Duas noites ficamos em quintas e outras duas em estalagens, — explicou o Júlio.

Subiram pelo Monte dos Coelhos e desceram a encosta do outro lado. Continuavam a ver-se imensos coelhos. O Tim não desistia de agarrá-los e ficou tão arquejante que parecia uma locomotiva a subir um monte. Tinha a língua de fora, transpirando imenso.

— Já chega, Tim, — disse a Zé. — Agora tem juízo.

Mas o Tim não conseguia ter juízo, vendo tantos coelhos à sua volta. Por isso deixaram-no correr dum lado para o outro até chegarem ao fim da descida. Então o Tim foi ter com eles.

—Agora acho melhor deixares de correr como um maluco e vires ao nosso lado, — ralhou a Zé. Mas ela falou demasiado cedo, pois logo a seguir chegaram a um pequeno bosque. O Júlio disse tratar-se da Mata das Lebres.

— Como vês é impossível esperarmos que o Tim fique sossegado, — disse Júlio.

Iam perdendo o Tim na Mata das Lebres.

Um coelho desapareceu numa grande toca e o Tim conseguiu meter-se lá dentro. Mas ficou preso logo à entrada. Começou a agitar as patas com toda a força mas de nada lhe serviu. Estava ali bem entalado.

Os pequenos deram pela sua falta e voltaram para trás chamando-o. Por acaso aproximaram-se do sítio onde ele estava e ouviram-no a respirar com força.- De repente saiu da toca uma saraivada de terra.

— Lá está ele! Que idiota! Meteu-se num buraco, — disse a Zé, aflita. — Tim! Tim! Sai cá para fora!

Isso era o que o Tim mais desejava. Mas apesar de todos os seus esforços não sabia como sair. A raiz duma árvore tinha-se atravessado sobre o seu lombo e o Tim não conseguia livrar-se dela.

Só ao fim de vinte minutos conseguiram as quatro crianças libertar o Tim. A Ana teve de se deitar no chão e meter-se um pouco para dentro do buraco até alcançar o Tim. Só ela, por ser a mais pequena, poderia meter-se ali dentro.

Conseguiu segurar as patas traseiras do cão e puxou-as com força. A raiz acabou por se desviar e o Tim recuou, ganindo.

— Ó Ana, estás a magoá-lo, estás a magoá-lo! — gritava a Zé. — Larga-o!

— Não posso!—respondeu a Ana. — Se lhe largo as pernas cada vez irá mais para o fundo.

Vocês podem puxar por mim? É a única maneira de o Tim também sair, pois estou a agarrá-lo pelas patas.

Puxaram a pobre Ana pelas pernas e o Tim apareceu em seguida. Continuava a ganir e foi ter com a Zé.

— Está magoado em qualquer sítio, — disse a Zé, aflita. — Tenho a certeza. Não gania desta maneira se não lhe doesse qualquer coisa.

Passou-lhe a mão sobre o pêlo, carregando em vários sítios. Examinou-lhe as patas e a cabeça. O Tim continuava a ganir. Onde estaria magoado?

— Deixa-o, — disse o Júlio por fim. — Acho que está ferido apenas na sua vaidade. Naturalmente não gostou de que a Ana o puxasse pelas patas! Foi uma falta de dignidade!

A Zé não estava satisfeita. Embora não conseguisse encontrar nada de anormal, continuava certa de que o Tim se magoara. Não seria melhor consultarem um veterinário?

— Não sejas palerma, Zé, — disse o Júlio. — Os veterinários não vivem nas árvores, no meio dos campos. Vamos continuar o passeio. Vais ver que o Tim nos há-de seguir perfeitamente bem e depressa deixará de ganir. Já te disse que se sente ferido nos seus sentimentos de cão e nada mais.

Deixaram a Mata das Lebres e continuaram, mas a Zé quase não falava. O Tim seguia atrás dela. Também parecia pouco animado. No entanto, aparentemente não tinha nada de anormal, embora ganisse de vez em quando.

— Ora aqui está um sítio onde eu tinha pensado almoçarmos, — disse o Júlio por fim. — Monte do Declive! É um nome bem posto, pois a encosta é muito inclinada, e tem uma linda vista.

Sentaram-se lá em cima, vendo o sol a brilhar sobre quilómetros e quilómetros de planície inculta. Percebiam-se à distância alguns veados e potros bravos.

— Que maravilha! — disse a Ana, que se sentara sobre um grande tufo de verdura. — Está um calor de Verão. Espero que se conserve assim durante estes próximos dias. Vamos ficar todos queimados.

— E também seria maravilhoso comermos agora umas sanduíches, — disse o David, escolhendo outro tufo para se sentar. — Que assentos tão confortáveis! Vou levar um destes tufos para o colégio, e ponho-o no assento da minha carteira, que é duríssimo.

O Júlio colocou os quatro pacotes de sanduíches sobre o tojo. A Ana desembrulhou-os. Estavam apetitosíssimas.

— Formidáveis, — disse a Ana. — Por onde querem começar?

— Cá por mim vou servir-me de uma de cada qualidade, e pô-las umas sobre as outras para dar uma grande dentada que apanhe queijo, presunto, porco assado e ovos, — disse o David. A Ana riu-se.

— O pior é que a tua boca não é bastante grande para isso, — disse ela.

Mas fosse como fosse, o David conseguiu-o, embora com dificuldade.

— Não dá jeito, — disse ele, depois da primeira dentada. — Acho que uma de cada vez rende mais. Queres um bocadinho, Tim?

O Tim aceitou. Estava muito sossegado e a Zé continuava preocupada com ele. No entanto, o seu apetite era notável e por isso os outros nunca mais pensaram se ele se teria magoado ou não. Deitou-se aos pés da sua dona, tocando-lhe com a pata no joelho quando queria mais um bocadinho de sanduíche.

— O Tim tem muita sorte, — disse o David, com a boca cheia. — Todos lhe damos pedacitos e no fim acaba por comer mais do que qualquer de nós. E vocês não acham estas sanduíches estupendas? Já provaram as de carne assada?

Era muitíssimo agradável estarem ali sentados ao sol, com os campos a perder de vista e comendo com apetite. Todos se sentiram felizes excepto a Zé. O Tim teria realmente alguma coisa? Se assim fosse estragaria por completo aqueles dias de férias!

 

                   A ZÉ CONTINUA PREOCUPADA

Depois de acabarem o almoço ficaram ali ao sol por algum tempo. Cada um deixou três sanduíches e meia fatia de bolo. Embora com muita pena, ninguém conseguira comer a fatia inteira.

O Tim bem queria demonstrar que podia acabar com todo o bolo que sobrara mas o Júlio não consentiu. — O bolo está tão bom que é mal empregado para o Tim, — disse ele. — Já comeste bastante, Tim! Seu comilão!

— Uuuuf! — fez o Tim, abanando a cauda e olhando para o bolo gulosamente. Deu um suspiro ao ver que o embrulhavam. Só comera um bocadinho da fatia da Zé. Que belo bolo!

— Vou meter três sanduíches e um pouco de bolo em cada um dos nossos sacos, — disse o Júlio. — Assim, cada qual pode comer quando tiver vontade. Espero que nos dêem uma boa refeição na quinta que escolhi para passarmos a noite, portanto podemos comer isto antes de lá chegarmos.

— Tenho a impressão de que não posso comer mais nada até amanhã, — disse a Ana. — Mas é esquisito como se fica novamente com fome, mesmo quando se julga ter comido para muitas horas.

— O Tim pode comer o que tu não quiseres, — lembrou o Júlio. — Nada se perde quando o Tim está presente. Vamos continuar? Em breve passaremos por uma aldeia e poderemos lá tomar uns refrescos. Apetece-me uma laranjada. E depois seguiremos para a nossa quinta. Devemos fazer os possíveis por não chegarmos depois da cinco, pois escurece muito cedo.

— Como se chama a quinta? — perguntou a Ana.

— Quinta da Lagoa Azul, — disse o Júlio. — É um lindo nome, não acham? Espero que tenha realmente uma lagoa azul.

— E se não houver quartos para nós? — lembrou a Ana.

— Sempre hão-de arranjar um quarto para vocês duas, — disse o Júlio. — O David e eu podemos dormir num celeiro, se for necessário. Não somos exigentes!

— Eu também gostava de dormir num celeiro sobre palha ou feno.

— Não, — respondeu o Júlio. — Vocês, meninas, têm que ficar dentro de casa. Durante a noite arrefece muito e não trouxemos cobertores. Nós, rapazes, ficaremos bem cobertos apenas com os nossos impermeáveis. Mas não consinto que vocês as duas façam o mesmo.

— Que estúpido ser-se rapariga! — disse a Zé, pela milionésima vez na sua vida.—Sempre a precisarem de cuidados enquanto os rapazes podem fazer o que lhes apetece. Pois fica «abêndo que vou dormir num celeiro, Júlio! Não me ralo com o que dizes.

— Ai isso é que não vais, — afirmou o Júlio. — Bem sabes que não deves desobedecer às ordens do chefe, que sou eu, minha menina, não te esqueças. Se fizesses isso nunca mais saías connosco. Podes parecer-te com um rapaz e comportares-te como tal mas no fim de contas és sempre uma rapariga. E quer queiras quer não, as raparigas precisam de certas atenções.

— Julgava que os rapazes detestavam tomar conta das raparigas, — disse a Zé, arreliada. — Especialmente raparigas como eu, que não apreciam tal coisa.

— Os rapazes que se prezam gostam de tomar conta das suas primas e irmãs, — respondeu o Júlio. — E embora te pareça estranho, as raparigas sensatas não se importam com isso, até apreciam. Mas eu não te trato como uma rapariga, Zé, sensata ou não. Limito-me a tratar-te como um rapaz que precisa de alguém para o vigiar. E esse alguém sou eu, compreendes? Por isso não te ponhas com essa cara de zangada nem te mostres mais caprichosa do que realmente és.

A Zé não pôde deixar de rir e voltou a ficar bem disposta. Deu um soco ao Júlio, de brincadeira. — Muito bem. Ganhaste! Sabes dominar e chego a ter medo de ti.

— Tu não tens medo de ninguém, — disse o David. — És a rapariga mais valente que tenho conhecido. Ui! Este cumprimento fez a Dona Zé corar como uma menina! Deixa-me aquecer as mãos nas tuas bochechas, Zé!

E o David levantou as mãos em frente da cara vermelha como fogo da Zé, fingindo aquecê-las.

Ela não sabia se havia de se zangar ou desatar a rir. Afastou-lhe as mãos, parecendo mais do que nunca um rapaz, com o seu cabelo curto e despenteado e a sua carita muito sardenta.

Os outros levantaram-se, espreguiçando-se. Depois tornaram a pôr os sacos às costas e desceram pelo monte.

O Tim seguia-os, mas não corria dum lado para o outro, como de costume. Andava devagar e com cautela. A Zé olhou para ele, franzindo o sobrolho.

— Que se passa com o Tim? — perguntou ela. — Reparem. Não corre nem dá saltos.

Todos pararam a observá-lo. O cão aproximou-se e viram que lambia ao de leve a perna do lado esquerdo. A Zé agarrou-o e apalpou-lhe a perna com cuidado.

— Naturalmente deu um mau jeito quando estava naquela toca dos coelhos, — disse ela. Deu-lhe umas palmadinhas sobre a perna e o Tim fez um movimento de dor.

— Que tens tu, Tim? — perguntou a Zé, afastando-lhe o pêlo para examinar a pele, pois queria saber bem onde lhe doía.

— Tem aqui uma enorme nódoa negra, — disse ela por fim, e os outros curvaram-se para ver. — Qualquer coisa o deve ter magoado. E a Ana naturalmente deu-lhe um mau jeito à perna esquerda quando o puxou para fora. Eu bem te disse para não o segurares pelas patas, Ana!

— Mas como conseguiríamos tirá-lo dali se não fosse daquela forma? — perguntou a Ana um pouco zangada mas sentindo-se cheia de culpas. — Querias que ele ficasse toda a vida ali metido?

— Julgo que não tem nada de cuidado,

— Que tens tu, Tim? — perguntou a Zé, afagando-lhe o pêlo

— Naturalmente foi só uma entorse, Zé. — disse o Júlio apalpando-lhe a perna. Tenho a certeza de que amanhã já estará bom.

— Mas é preciso certificarmo-nos disso, declarou a Zé.

—— Disseste que estamos a chegar a uma vila, Júlio?

— Pois disse, à Vila da Fogueida, — respondeu o Júlio.

— Se quiseres podemos ali perguntar se há algum veterinário por estas paragens. Quando um vir a perna do Tim diz logo se tem alguma coisa grave. Mas creio que não.

— Então vamos até à vila, — disse a Zé.— As únicas alturas em que eu gostava de que o Tim fosse um cão pequenino é quando ele não está bom. Assim é tão, tão pesado que não posso levá-lo ao colo.

— Nem penses em tal coisa, — disse o David. — Mesmo que não consiga andar com as quatro patas pode fazê-lo só com três. E não estás assim tão mal, pois não, Tim?

— Uuuuf! — fez o Tim, sem entusiasmo. Mas não deixava de se sentir importante pelos cuidados que lhe estavam dispensando. A Zé fez-lhe uma festa na cabeça.—Vamos, — disse ela. — Daqui a pouco ficarás com a perna boa. Vamos, Tim.

Foram andando, sempre a repararem no Tim. Este seguia-os devagar e ia coxeando cada vez mais. Acabou por levantar a perna magoada e correr nas outras três.

— Pobre Tim, — disse a Zé. — Espero que amanhã já estejas bom. Caso contrário não posso continuar o passeio.

Era um grupinho bastante triste o que chegou à Vila da Fogueira. O Júlio dirigiu-se a um2 pequena estalagem que se chamava Os Três, Pastores.

Uma mulher estava à janela sacudindo um pano de pó. O Júlio chamou-a.

— Por favor, há algum veterinário por estes sítios? Queria alguém que observasse a perna do nosso cão.

— Não, não há nenhum veterinário por aqui. O mais próximo vive a mais de seis quilómetros.

A Zé ficou muito aflita. O Tim não conseguiria caminhar mais seis quilómetros.

— Há alguma camioneta para lá? — perguntou a pequena.

. — Não há, menina — respondeu a mulher. Mas se quer que tratem a perna do seu cão pode ir à Casa das Espigas, ali em cima. É onde mora o sr. Gaston, com os seus cavalos. Ele também percebe de cães; levem-lhe o vosso e ele saberá o que fazer.

— Mil obrigados, — disse a Zé, sinceramente agradecida. — Fica muito longe?

— Cerca de meio quilómetro, — informou a mulher. — Vêem aquele monte? Sobem até lá acima, depois voltam à direita e darão logo com uma grande casa. É a Casa das Espigas. Não podem enganar-se, pois tem estrebarias construídas a toda a volta. Perguntem pelo sr. Gaston, que é muito simpático. Talvez tenham de esperar um pouco, se ele tiver saído com os cavalos, e até pode ser que não volte antes de anoitecer.

Os quatro reuniram-se em conselho. — Acho que devemos consultar esse sr. Gaston, — disse o Júlio. — Mas vocês, David e Ana, podem ir já para a quinta onde tencionamos passar a noite.

Tratem de arranjar instalação para nós quatro, o que é bom não deixarmos para a última hora. Eu vou com a Zé e com o Tim, claro está.

— Muito bem, — disse o David. — Eu levo a Ana. Não falta muito para anoitecer. Tens a tua lanterna, Júlio?

— Tenho, — disse o Júlio. — E bem sabes que tenho um bom sentido de orientação. Voltamos a esta vila depois de falarmos com o sr.- Gaston e em seguida vamos direitos à quinta. Fica a cerca de um quilómetro daqui.

— Agradeço-te que venhas comigo, Júlio, — disse a Zé. — Bem, David e Ana, até logo!

O Júlio partiu com a Zé e com o Tim para a Casa das Espigas. O Tim continuava a andar só com três patas e parecia bastante abatido. O David e a Ana ficaram a olhar para ele, cheios de pena.

— Espero que amanhã já esteja bom, — disse o David. — No caso contrário sem dúvida estragava os nossos dias de férias.

Atravessaram a Vila da Fogueira.—Agora vamos para a Quinta da Lagoa Azul, — disse o David. — O Júlio não me explicou muito bem onde fica. Acho melhor perguntar a alguém o caminho exacto.

Mas não encontraram ninguém, excepto um homem guiando uma pequena «charrette». O David fez-lhe um sinal e ele parou.

— Por aqui vamos bem para a Quinta da Lagoa Azul? — gritou o David.

— Hã! — respondeu o homem, fazendo um sinal com a cabeça.

— É sempre a direito ou temos que virar para outro caminho? — perguntou o David.

— Hã! — repetiu o homem, fazendo outro sinal.

— Que quererá ele dizer com os seus «hãs»? — comentou o David para a Ana. Depois levantou a voz.

— É por aquele lado? — perguntou, apontando.

— Hã, — tornou a dizer o homem. Agarrou no chicote e apontou na direcção que os dois seguiam. Depois fez um sinal para oeste.

— Voltamos ali à direita, não é verdade? — gritou o David.

— Hã, — disse o homem, com outro sinal, e fazendo andar o cavalo tão de repente que este ia pisando um pé do David.

— Bem, se encontrarmos a quinta depois de todos estes «hãs» devemos ser muito inteligentes, — comentou o David. — Vamos, Ana!

 

                   A ANA E O DAVID

DE repente começou a escurecer. O sol desaparecera e nuvens muito carregadas a pouco e pouco cobriram o céu. — Vai chover, — disse o David. — Que maçada! Julgava que ia estar uma linda noite.

— É melhor apressarmo-nos, — disse a Ana. — Detesto abrigar-me por baixo de árvores ou arbustos quando está a chover, com gotas a cair-nos na cabeça e poças de água por todos os lados.

Foram em passo rápido por uma estrada que se afastava da vila até que lhes apareceu uma outra, à direita. Pararam e olharam em frente. Este novo caminho, ladeado de sebes altas, parecia-se com um dos outros que haviam passado de manhã. Era escuro e com a luz do crepúsculo tornava-se semelhante a um túnel.

— Espero que não vamos enganados, — disse o David. — Perguntamos à primeira pessoa que encontrarmos.

— Se encontrarmos alguém! — acrescentou a Ana, pressentindo que ninguém passava por aquele curioso caminho tão escondido.

Seguiram por ele. Dava várias voltas e depois descia, tornando-se todo enlameado. A Ana acabou por enterrar os pés na lama.

— Aqui deve passar uma corrente ou qualquer coisa no género, — disse ela. — Ui! A água está a entrar nos meus sapatos! Tenho a certeza de que não é por aqui, David. Cada vez há mais água. Já me chega aos tornozelos.

O David olhou em redor, embora já estivesse bastante escuro. Descobriu que o terreno baixava um pouco num dos lados do caminho.

— Repara, aquilo não é um carreiro? — disse ele. — Onde está a minha lanterna? No fundo do saco, é verdade! Podes tirar a tua, Ana, para não ter que despejar o saco todo? A Ana encontrou a lanterna e entregou-a ao irmão. Este acendeu-a e as sombras que o rodeavam pareceram mais negras e o caminho ainda mais semelhante a um túnel. O David iluminou aquilo que pensava ser um carreiro. — Acertei, — disse ele. — Espero que vá ter à quinta. Naturalmente é um atalho. Não tenho dúvidas de que por este caminho passam carros e carroças. Naturalmente vai dar à quinta; mas se houver um atalho podemos seguir por ele. Seja como for, o certo é que nos há-de levar a qualquer sítio!

Passaram para o carreiro e depressa se encontraram no meio dum vasto campo. Seguiram sempre em frente, pelo atalho, através de terras lavradas.

— É sem dúvida um atalho, — disse o David, satisfeito. — Dentro de um ou dois minutos devemos ver as luzes da quinta.

— Ou então cairmos na Lagoa Azul, — disse a Ana, bastante desanimada. Começara a chover e a pequenita hesitava se valeria a pena desenrolar o impermeável e vesti-lo. A quinta ficaria realmente muito próxima? O Júlio tinha dito que não era longe.

A chuva caía com mais força. A Ana resolveu vestir o impermeável; parou por baixo dum arbusto e o David ajudou-a. Pôs na cabeça um chapéu também impermeável, que trazia num dos bolsos. O David vestiu a sua gabardine e partiram novamente.

Depois daquele campo seguiu-se outro, que parecia interminável. Finalmente, o atalho foi dar a uma grande cancela; saltaram por cima e encontraram-se num terreno inculto! Não se via nenhuma casa mas na verdade mesmo que ali estivesse alguma não a conseguiriam ver senão de muito perto, pois a noite estava escuríssima e chuvosa.

— Se ao menos víssemos uma luz a brilhar numa janela, — disse o David. Iluminou com a lanterna o terreno à sua frente. — Não sei o que fazer. Por aqui parece não haver caminho e não me conformo com a ideia de voltar para trás, por esses campos molhados e por aquele caminho escuro.

— Não, não vamos para trás! — pediu a Ana, com um arrepio. — Não gostei nada daquele caminho. Deve haver um carreiro por aqui. É estúpido uma cancela dar apenas para um terreno inculto.

E então, quando ali estavam, escutando o barulho da chuva, chegou-lhes um outro som aos ouvidos.

Apareceu tão inesperado e tão estranho que as duas crianças se agarraram uma à outra, alarmadas. Era realmente um barulho que metia medo ouvir no meio dum campo deserto.

Eram sinos! Mas sinos estridentes, tocando sem interrupção, e soando através dos campos escuros, badalada atrás de badalada. A Ana agarrou-se com força ao irmão.

— Que é isto? Onde estão os sinos? Porque tocam? — murmurou ela.

O David não fazia a menor ideia. Estava tão admirado como a Ana por ouvir barulho tão extraordinário. Vinha de bastante longe, mas de vez em quando o vento soprava com mais força e os sinos pareciam tocar muito próximo.

— Parem! Parem! Parem! — dizia a Ana com o coração a bater apressado. — Assustam-me tanto! Não são sinos de igreja.

— Tens razão. Realmente não são sinos de igreja, — disse o David. — Trata-se dum aviso, estou convencido. Mas por que motivo? Fogo? Havíamos de vê-lo se fosse aqui próximo. Guerra? Desde há muito tempo que se deixaram de usar sinos e fogueiras para anunciar uma guerra.

— Mas aquele lugar chamava-se Vila da Fogueira, — lembrou a Ana. — Achas que terá aquele nome por em tempos acenderem fogueiras num monte próximo para avisarem as outras cidades de que os inimigos se aproximavam? E também tocariam sinos? Estaremos a ouvir sinos dos tempos passados, David? Nunca na minha vida ouvi uns sinos tão estranhos!

— Santo Deus! Claro que não se trata de sinos de outros tempos! — disse o David, falando com animação, embora no fundo estivesse tão intrigado e aflito como a Ana.— Estes sinos estão a ser tocados agora, neste mesmo instante!

De repente os sinos calaram-se e tudo ficou silencioso. Os dois pequenos pararam, prestando atenção por um ou dois minutos, e depois deram um suspiro de alívio.

— Acabaram-se por fim! — exclamou a Ana. — Que horrível! Porque teriam tocado nesta noite escura como breu? ó David, vamos o mais depressa possível para a Quinta da Lagoa Azul. Não gosto de andar assim perdida no escuro, com sinos a tocarem como doidos, sem nenhuma razão aparente.

— Vamos, — disse o David. — Seguimos sempre pelo carreiro e havemos de chegar a qualquer parte. Não devemos atravessar o campo ao acaso.

O pequeno deu o braço à irmã; foram ter a um outro caminho por onde continuaram. E depois de algum tempo tiveram uma maravilhosa visão: não muito longe brilhava uma luz!

— Deve ser a Quinta da Lagoa Azul, — disse o David, aliviado. — Vamos, Ana! Já falta pouco!

Seguiram junto a um muro baixo até chegarem a um portão meio desmantelado.

Este chiou quando o abriram e a Ana entrou, indo meter os pés numa enorme poça de água.

— Só faltava mais isto! — exclamou ela. — Agora é que fiquei toda ensopada. Por um momento cheguei a pensar que caíra na Lagoa Azul.

Mas era apenas uma poça. Tornearam-na e seguiram por um caminho enlameado até uma pequena porta metida numa parede caiada de branco. O David pensou que devia ser uma porta das traseiras. Ali perto ficava uma janela, onde brilhava a luz que eles tinham descoberto com tanta alegria.

Uma mulher já velha estava sentada nesse compartimento, com a cabeça curvada sobre a sua costura. Os pequenos viam-na perfeitamente, dali da porta.

O David procurou uma campainha ou uma aldraba mas não encontrou nenhuma. Bateu com os nós dos dedos. Ninguém respondeu. A porta parecia fechada. A mulher, no quarto iluminado, continuava a coser.

— Naturalmente é surda, — disse o David batendo outra vez, com muito mais força. Mas a mulher continuava calmamente a coser. Devia ser completamente surda.

«Estou a ver que nunca mais conseguimos entrar, — disse o David, com impaciência. Experimentou rodar o puxador da porta. Esta abriu-se logo!

«O melhor é entrarmos e anunciarmos a nossa chegada, — disse o David parando sobre o capacho usado que estava junto à porta. Encontravam-se num corredor estreito que terminava por uma escada de pedra, também estreita e íngreme.

À direita ficava uma porta entreaberta, dando para o compartimento onde estava sentada a velhota. Os dois pequenos viram um feixe de luz que vinha pela abertura.

O David abriu mais a porta e entrou, seguido pela Ana. A mulher mesmo assim não deu pela presença deles. Continuava a puxar a agulha para cima e para baixo, parecendo não prestar atenção a mais nada.

Só quando o David chegou muito próximo ela percebeu que ele se encontrava ali. Então deu um pulo, tão sobressaltada, que a cadeira caiu para trás com estrondo.

— Desculpe, — disse o David, perturbado por ter pregado um susto tão grande à pobre senhora. — Nós batemos, mas não ouviu.

Ela ficou a olhar para eles, com a mão sobre o peito.

— Apanhei um susto enorme, — disse ela.

— Donde vêm com uma noite tão escura?

O David levantou-lhe a cadeira e a velhota voltou a sentar-se, um pouco ofegante.

— Andamos à procura deste lugar,—explicou o pequeno. — É a Quinta da Lagoa Azul, não é verdade? Queremos saber se podemos aqui passar a noite com mais dois companheiros.

A velhota apontou para os ouvidos e abanou a cabeça. — Sou surda como uma porta, — disse ela. — Não vale a pena estarem a falar comigo. Perderam-se, não é verdade?

O David fez um sinal afirmativo.

— Bem, não podem aqui ficar, — disse a velhota. — O meu filho não quer aqui ninguém. É melhor irem-se embora antes que ele chegue. Aviso-os de que ele tem muito mau-génio.

O David abanou a cabeça. Depois fez um sinal na direcção da noite escura e chuvosa e apontou para os sapatos molhados da Ana e para as roupas encharcadas. A mulher percebeu-o.

«Perderam-se, estão molhados e cansados e não querem que eu os mande embora,—disse ela. — Mas o pior é que o meu filho não quer aqui pessoas estranhas.

O David apontou para a Ana e depois para o sofá que estava a um canto. Em seguida para si próprio e lá para fora. A mulher tornou a compreender.

«Quer que eu abrigue aqui a sua irmã e o menino passará a noite na rua? — perguntou ela. O David fez um sinal afirmativo. Pensava que facilmente encontraria um celeiro ou um alpendre para dormir. Mas a Ana devia ficar dentro de casa.

«O meu filho não deve encontrar nenhum de vocês, — disse a velhota, empurrando a Ana para o que parecia um armário. Mas quando a porta se abriu a pequenita viu uma escada de madeira muito estreitinha que dava para o sótão.

«A menina pode ir lá para cima, — disse a velha à Ana. — E não desça antes de eu a chamar amanhã de manhã. Passaria um mau bocado se o meu filho soubesse que está aqui.

— Sobe, Ana, — disse o David um tanto preocupado. — Não sei o que lá encontrarás. Se for muito mau volta para baixo. Vê se há alguma janela por onde possas falar para fora e assim eu saberei se estás bem.

A Ana disse que sim, com a voz um pouco trémula, e subiu pelas escadas sujas, de madeira. Iam direitas ao sótão. Estava ali um colchão, muito limpo, e uma cadeira, onde se via um cobertor bem dobrado. E tirando uma prateleira com um jarro de água, o quarto não tinha mais nada.

Numa das paredes ficava uma pequena janela. A Ana abriu-a e chamou o irmão.

— David! Estás aí? David!

— Estou aqui, — respondeu ele. — Que tal é isso, Ana? Ouve, vou procurar um sítio qualquer aqui próximo para me abrigar. Podes chamar-me se precisares de mim!

 

                   DURANTE A NOITE

— Não fico mal, — afirmou a Ana. — Está aqui um colchão muito limpo e um cobertor. Mas que faremos se os outros vierem? Acho que a Zé terá de dormir num celeiro contigo e com o Júlio. Tenho a certeza de que a velhota não deixará entrar mais ninguém.

— Eu fico à espera deles, para resolvermos qualquer coisa, — disse o David. — Come o resto das tuas sanduíches e o teu bolo e vê se consegues enxugar os pés para te sentires melhor. Não te preocupes comigo. Chama-me, se for preciso!

A Ana fechou a janela. Sentia-se cansada, com fome e cheia de sede. Comeu tudo que levava e bebeu um pouco da água do jarro. Depois ficou com sono e deitou-se no colchão, cobrindo-se com o cobertor. Tencionava não dormir até que a Zé e o Júlio chegassem; mas estava demasiado cansada e adormeceu profundamente!

O David começou a andar com precaução, pois não queria dar de caras com o filho da velhota surda. Não tinha gostado do que ela dissera sobre o filho. Encontrou um pequeno celeiro com fardos de palha a um canto. Acendeu a lanterna e observou-o cautelosamente.

«Isto serve-me, — pensou.— Ficarei muito bem aqui deitado sobre a palha. Coitada da Ana! Gostava de que a Zé estivesse com ela. É melhor esperar lá fora por eles, pois se me deito na palha posso adormecer e não darei pela sua chegada. São apenas seis horas mas tivemos um dia fatigante. Como estará o Tim? Quem me dera tê-lo aqui comigo!

O David pensou que naturalmente a Zé e o Júlio viriam pelo mesmo portão por onde ele entrara com a Ana. Encontrou uma espécie de telheiro próximo desse portão e sentou-se ali sobre um caixote, esperando pelos companheiros.

Foi comendo as sanduíches enquanto esperava. Eram muito reconfortantes! Comeu-as todas e depois o bolo. De vez em quando bocejava. Na verdade tinha muito sono e sentia os pés molhados e doridos.

Ninguém apareceu. Nem mesmo o filho da velhota. Do sítio onde estava, o David via que ela continuava a coser no quarto iluminado. Cerca de duas horas mais tarde, quando eram quase oito horas e o David começava a ficar preocupado por causa do Júlio e da Zé, a velhota levantou-se e afastou o cesto da costura.

O pequeno já não podia vê-là. Não voltou, mas a luz continuava acesa. Naturalmente deixava-a assim por causa do filho, pensou o David.

Foi de mansinho até à janela. Parara de chover e a noite estava muito menos escura. Brilhavam as estrelas e a Lua começava a aparecer. O David sentia-se mais animado.

Espreitou para o compartimento com luz. Então viu a velhota deitada no sofá que ficava a um canto. Estava coberta com um cobertor até ao pescoço e parecia dormir. O David voltou para o telheiro mas pensou que já não valia a pena esperar pelo Júlio e pela Zé. Deviam andar perdidos! Ou então o sr. Gas-ton, ou lá como se chamava ele, tivera que fazer qualquer coisa na perna do Tim e o Júlio resolvera passar a noite na estalagem da Vila da Fogueira.

Tornou a bocejar. — Tenho tanto sono que não posso ficar mais tempo à espera, — decidiu. — Acabo por cair deste caixote, com o sono, se não for já deitar-me naqueles fardos de palha. E talvez consiga ouvi-los se sempre vierem.

Tornando a servir-se da lanterna com precaução, dirigiu-se para o celeiro. Fechou a porta por dentro e trancou-a com um pau. Não sabia bem porque fazia aquilo, talvez por pensar no génio arrebatado do filho da velhota surda.

Atirou-se para cima da palha e adormeceu logo em seguida. Lá fora o céu tornava-se cada vez mais claro. Apareceu a Lua que, embora não fosse lua-cheia, sempre dava alguma luz.

O David dormia um sono profundo e sonhava com o Tim, a Zé e a Quinta da Lagoa Azul e os sinos. Principalmente com os sinos. De repente acordou, ficando por uns momentos sem saber onde se encontrava. Que era aquela coisa à sua volta? Depois lembrou-se.

Claro que era palha, pois estava num celeiro. Estava quase a adormecer outra vez quando ouviu barulho.

Era um ruído pouco perceptível, como se alguém arranhasse as paredes de madeira do celeiro. O David sentou-se. Haveria ali ratazanas? Esperava que não!

Pôs-se à escuta. O barulho vinha do lado de fora e não de dentro. De súbito parou. Mas depois dum intervalo continuou outra vez. Em seguida ouviu umas leves pancadas na janelita que ficava mesmo por cima da cabeça do David.

Este sentiu-se muito assustado. As ratazanas podiam correr dum lado para o outro mas era impossível darem pancadinhas na janela! Quem estaria a bater com tanta cautela na janelita? Susteve a respiração e escutou, apurando os ouvidos.

E então ouviu uma voz, quase um murmúrio.

— David! David!

O pequeno estava pasmado. Seria o Júlio? Se assim fosse como poderia saber que ele, David, se encontrava ali no celeiro? Continuou à escuta, cheio de surpresa.

Ouviu mais umas pequenas pancadas e depois a voz, um pouco mais alta. — David! Sei que estás aí! Vi-te entrar. Chega aqui à janela sem fazeres barulho!

O David não conhecia aquela voz. Não era a do Júlio e claro que não se tratava da Zé nem da Ana. Então como haveria outra pessoa conhecendo o seu nome e sabendo que ele se encontrava ali? O pequeno estava perplexo. Não sabia o que fazer!

«Despacha-te! — disse a voz. — Tenho de me ir embora. Trouxe uma mensagem para ti.

O David resolveu aproximar-se mais da janelita. Não queria de maneira nenhuma que a pessoa entrasse no celeiro. Ajoelhou-se com cuidado sobre a palha que ficava junto da janela.

— Estou aqui, — disse ele, tentando falar com voz de pessoa crescida.

— Demoraste-te bastante, — disse a pessoa do lado de fora, e nessa altura o David viu-lhe a cara. Tinha um olhar feroz e uma expressão carrancuda. A cabeça era redonda como uma bola. O pequeno recuou, satisfeito por o homem não o poder ver na escuridão do celeiro.

«Aqui vai o recado do Nélio, — disse a voz. — Duas Árvores. Lago Negro. Joana Vaidosa. E ele diz que a Magda sabe. E mandou-te isto. A Magda tem outro igual.

Uma folha de papel passou esvoaçando pela janela, que tinha o vidro partido.

O David apanhou-o, deslumbrado. Que vinha a ser aquilo? Estaria a sonhar?

A voz ouviu-se de novo, com insistência, embora apressada.

«Ouviste bem, David? Duas Árvores. Lago Negro. Joana Vaidosa. E a Magda sabe. Agora vou-me embora.

Ouviu-se o som de passos torneando o celeiro, com precaução. Depois fez-se silêncio.

O David sentou-se pasmado e confuso. Quem seria aquele sujeito com olhar feroz que o chamava pelo seu nome a meio da noite e lhe dava um recado extraordinário que nada significava para um rapaz sonolento? Mas o David agora estava bem acordado. Pôs-se em pé e olhou pela janela. Não se via mais nada além da casa isolada e do céu.

Tornou a sentar-se, pensando. Acendeu a lanterna com cuidado e iluminou o pedaço de papel que apanhara. Era uma folha suja, com uns traços a lápis que também nada significavam para o pequeno. Havia palavras escritas aqui e ali mas pareciam muito disparatadas. Não conseguia relacionar o homem com a mensagem e com o pedaço de papel!

— Devo estar a sonhar, — pensou o David, metendo o papel na algibeira. Deitou-se de costas sobre a palha, enterrando-se o mais possível, pois apanhara frio na janela. Durante um certo tempo ainda esteve intrigado com aqueles extraordinários acontecimentos, mas em breve sentiu os olhos a fecharem-se.

Ainda não estava a dormir quando ouviu novamente passos cautelosos! Voltara o homem? Desta vez alguém tentava abrir a porta, mas esta, como sabemos, estava trancada. No entanto a pessoa que estava lá fora abanou-a e a tranca caiu logo. Depois entrou e fechou novamente a porta.

O David deitou-lhe um olhar rápido. Não, aquele não era o mesmo homem que ali estivera primeiro. Este tinha uma farta cabeleira.

O David desejava ardentemente que ele não se dirigisse aos fardos de palha.

E na verdade tal não aconteceu. O homem sentou-se sobre um saco e ficou à espera. Pouco depois começou a falar para consigo mas o David só conseguia perceber algumas palavras.

— Que aconteceu? — dizia ele. — Quanto tempo terei ainda de esperar?

Seguiram-se mais umas frases mas o pequeno não conseguiu perceber nada.

«Esperar, esperar, é tudo o que faço,— resmungava o homem, pondo-se em pé e espreguiçando-se. Depois foi até à porta e olhou lá para fora. Voltou para trás e tornou a sentar-se sobre o saco.

Ficou ali muito quieto e o David sentiu mais uma vez os olhos a fecharem-se. Isto também faria parte dum sonho? Não teve tempo de pensar sobre o caso, pois em breve estava num verdadeiro sonho, onde caminhava por entre sinos a tocar, vendo árvores aos pares por toda a parte.

Dormiu profundamente e só quando chegou a manhã acordou sobressaltado. Estava sozinho no celeiro. Para onde teria ido o homem? Ou realmente teria sido tudo um sonho?

 

                   NA MANHÃ SEGUINTE

O David levantou-se, espreguiçando-se. Sentia-se sujo e mal arranjado. Tinha muita fome. Pensou que talvez a velhota lhe vendesse algum pão, queijo e um copo de leite.

— A Ana também deve ter fome, — pensou ele. — Deus queira que esteja bem.

Saiu do celeiro com cautela e olhou para a janelita do sótão onde a Ana passara a noite. Lá estava ela, ansiosa, esperando pelo irmão.

— Estás bem, Ana? — perguntou o David, em voz baixa. Ela abriu a janela e sorriu.

— Estou óptima. Mas não me atrevo a descer porque está lá em baixo o tal filho da velhota. De vez em quando oiço-o a gritar. Parece mal-humorado.

— Então espero que ele saia para o seu trabalho, antes de ir ter com a velhota, — disse o David. — Tenho de lhe pagar qualquer coisa por te ter deixado dormir nesse sótão. E talvez consiga convencê-la a arranjar-nos alguma comida.

— Espero que sim, — disse a Ana. — Comi todos os chocolates que tinha dentro do meu saco.

Devo esperar até que me chames?

O David fez-lhe um sinal afirmativo e correu para o celeiro. Ouvira passos!

Apareceu um homem baixo e forte, com uma grande cabeleira despenteada. Era a pessoa que o David vira no celeiro durante a noite.

Estava a resmungar e parecia muito mal disposto. O David resolveu manter-se a distância e por isso escondeu-se no celeiro.

Mas o homem não foi para ali. Seguiu em frente, sempre a resmungar. O David sentiu os passos dele a afastarem-se. Ouviu-o abrir uma cancela que em seguida se fechou com estrondo.

—O melhor é aproveitar esta ocasião, — pensou o David. Apressou-se a sair do celeiro, dirigindo-se para a casa. Esta, à luz do dia, parecia muito velha e mal arranjada, tendo um aspecto um tanto sinistro.

O David sabia que não valia a pena bater à porta, pois a velhota não ouviria. Por isso entrou e foi ter com a criatura, que estava a lavar uns pratos num lava-loiças em mau estado. Ela olhou para o pequeno, desconsertada.

— Esquecera-me completamente de vocês! Da pequena também! Ainda está lá em cima? Vá buscá-la depressa antes que o meu filho volte. E depois vão-se os dois embora.

— Não poderia vender-nos um pouco de pão e queijo? — gritou o David. Mas a velhota realmente era surda como uma porta e limitou-se a empurrá-lo para a saída. O pequeno desviou-se e apontou para um pão que estava em cima da mesa.

— Não, não, já lhe disse, — repetia a velhota visivelmente aterrada com a ideia de que o filho os pudesse encontrar. — Vá buscar a menina, depressa.

Mas antes de o David ter tempo para mais nada ouviram-se passos e apareceu o homem de cabelo revolto. Tinha voltado e segurava alguns ovos que encontrara.

Entrou na cozinha e fitou o David.

— Rua! — disse ele, zangado. — Que quer daqui?

O David achou melhor não dizer que dormira no celeiro. Passavam-se ali coisas bastante estranhas e o homem ficaria irritadíssimo se soubesse onde o David dormira.

— Nós queríamos saber se a sua mãe nos poderia vender um pouco de pão, — disse ele, e ficou logo arrependido do que lhe escapara. Dissera nós! Então o homem perceberia que estava ali mais alguém com ele.

— Nós? Nós, quem? — perguntou o homem olhando em volta. — Vai buscar o outro para eu lhes dizer, aos dois, o que costumo fazer aos rapazes que vêm roubar os ovos.

— Vou já buscá-lo, — disse o David aproveitando a oportunidade para se ir embora. Correu para a porta e o homem fez um gesto para o agarrar. Felizmente o David conseguiu evitá-lo e escondeu-se no alpendre, com o coração a bater muito. Mas era preciso voltar atrás, de qualquer maneira, para levar a Ana consigo.

Felizmente não o perseguiu. Tornou a entrar em casa e pouco depois saiu novamente, com um balde cheio de comida a fumegar. O David calculou que ele ia dá-la às galinhas, embora não visse as capoeiras.

Tinha que aproveitar a ocasião.

Esperou até ouvir a tal cancela bater e depois correu para a casa. A carita da Ana via-se à janela, com uma expressão assustada. Ela ouvira tudo quanto o homem dissera ao David e depois à mãe dele por ter deixado entrar pessoas estranhas em casa.

«Ana! Vem para baixo depressa. O homem saiu, — gritou o David. — Despacha-te!

A pequenita correu para a porta, desceu as escadas e atravessou a cozinha, sempre a correr. A velhota gritou-lhe qualquer coisa mas ela não fez caso. O David foi num instante à cozinha, deixou algum dinheiro sobre a mesa, deu a mão à irmã, e os dois fugiram dali a toda a pressa. Seguiram pelo caminho por onde haviam passado na noite anterior.

A Ana estava assustadíssima. — Que homem horrível! — disse ela. — Ó David, que lugar detestável! Palavra que o Júlio devia estar maluco quando escolheu este sítio para passarmos a noite! Que casa aquela! E não parecia uma quinta. Não vi porcos, nem vacas e nem mesmo um cão de guarda!

— Sabes, Ana, acho que aquilo não era a Quinta da Lagoa Azul, — disse o David, procurando o portão por onde haviam saltado na noite anterior. — Enganámo-nos. Aquilo era uma casa de campo qualquer. Se não nos tivéssemos perdido no caminho, teríamos Chegado à verdadeira Quinta da Lagoa Azul.

— O que estarão a pensar o Júlio e a Zé?

— disse a Ana. — Devem ter ficado preocupadíssimos, sem saberem o que nos aconteceu. Pensas que eles estarão na verdadeira Quinta da Lagoa Azul?

— Temos que sabê-lo, — respondeu o David. — Estou muito desarranjado e sujo, Ana.

— Estás bastante. Não tens um pente? — perguntou a Ana. — O teu cabelo está todo desgrenhado. E tens a cara suja. Olha, passa ali um regato. Vamos lavar-nos na água corrente.

Lavaram-se na água fria e o David penteou-se.

«Agora estás com muito melhor aspecto,

— afirmou a Ana. — Quem me dera tomar o pequeno almoço. Estou a morrer de fome! Não dormi lá muito bem; e tu, David? O meu colchão era duríssimo e eu estava um tanto assustada, metida naquele sótão completa-mente só.

Antes que o David tivesse tempo de responder, apareceu um rapazito a assobiar.

— Bom-dia, — disse ele. — Andam a fazer uma excursão?

— Andamos — respondeu o David.—Pode informar-me se aquele sítio lá em cima é a Quinta da Lagoa Azul?

O David apontou para a casa da velhota surda e o rapaz riu-se.

— Aquilo não é nenhuma quinta. É a casa da sr.a Taggart, e tem um aspecto feio e sujo. Não vale a pena ir até lá, pois o filho manda-os pelo mesmo caminho. Nós chamamos-lhe o David Malandrão. É muito mau! A Quinta da Lagoa Azul fica acolá, estão a perceber? Passem pela Estalagem dos Três Pastores e depois virem à esquerda.

— Obrigado, — disse o David, sentindo-se furioso com o homem que só dissera «hã», fazendo-os seguir por um caminho completa-mente errado.

«Está claro que ontem viemos enganados durante todo o tempo, — disse o David enquanto atravessavam os campos. — Coitada de ti, Ana! Fiz-te andar por estes caminhos na noite passada, debaixo de chuva e no meio da escuridão para teres de dormir num sítio horrível que nem por sombras era a Quinta da Lagoa Azul! O Júlio vai ralhar comigo.

— Eu também tive a culpa, — declarou a Ana. — Olha, não achas que podemos ir à Estalagem dos Três Pastores e daí telefonar para a Quinta da Lagoa Azul? Se houver telefone, claro está. Não me sinto com coragem de caminhar mais uma porção de quilómetros arriscando-nos mais uma vez a não encontrar a quinta.

— Boa ideia! — exclamou o David. — A Estalagem dos Três Pastores era aquela onde estava uma mulher à janela, a sacudir um pano de pó, não é verdade? Foi quem ensinou ao Júlio o caminho para casa do tal sr. Gas-ton. Como estará o Tim? Espero que tenha melhorado. Este passeio não está a correr tão bem como esperávamos, não te parece?

— Ainda temos tempo para nos divertirmos, — afirmou a Ana, com uma animação que estava longe de sentir. Apetecia-lhe tanto o pequeno almoço que só isso a tornava bastante mal disposta.

— Vamos telefonar ao Júlio, da Estalagem dos Três Pastores, para lhe dizermos o que nos aconteceu, — disse o David, enquanto se dirigiam à vila. — E o que é mais, vamos tomar o pequeno almoço na estalagem. Até aposto que havemos de comer mais do que os três pastores juntos, fossem eles quem fossem.

A Ana sentiu-se logo mais animada. Pensara que teria de percorrer todo o caminho até à Quinta da Lagoa Azul antes do pequeno almoço.

— Repara! Aqui há um regato que atravessa a estrada, — disse ela. — Não admira que ontem tivesse molhado os pés! Vamos! Só pensar no pequeno almoço dá-me vontade de desatar a correr.

Chegaram finalmente à Vila da Fogueira e dirigiram-se para a estalagem. Esta tinha uma tabuleta onde estavam pintados três pastores, com um aspecto um tanto carrancudo.

— Eles têm o mesmo aspecto que eu devo ter neste momento, — notou a Ana. — Mas em breve estarei bem diferente. Ó David, pensa em ovos com presunto, ou em flocos de aveia ou em pão com compota! Ora pensa!

— Vamos telefonar primeiro, — disse o David, firmemente. Mas parou, mesmo na altura em que ia a subir os dois ou três degraus da entrada para a estalagem. Alguém estava a chamá-lo.

— David! David! Ana! Olha, ali estão eles! Ó David, David!

Era a voz forte do Júlio. O David deu meia volta, encantado. Viu o Júlio, a Zé e o Tim a correrem pela rua da aldeia, gritando e acenando. O Tim foi o primeiro a alcançá-los. Não coxeava absolutamente nada. Saltava para eles, ladrando sem parar e tentava dar-lhes grandes lambedelas.

— Ó Júlio! Estou tão contente por te ver! — disse a Ana com a voz tremendo ligeiramente. — Ontem à noite perdemo-nos. Zé, o Tim está bom?

— Completamente. O melhor possível, — disse a Zé. — Sabes...

— Já tomaram o pequeno almoço? — interrompeu o Júlio. — Nós ainda não. Estávamos tão preocupados com vocês que íamos neste momento à polícia. Mas agora podemos ir tomar o pequeno almoço todos juntos e ir contando o que nos aconteceu!

 

                   NOVAMENTE TODOS JUNTOS

Sentaram-se radiantes por estarem reunidos mais uma vez. O Júlio fez uma festa no braço à irmã. — Sentes-te bem, Ana? — perguntou ele, um pouco preocupado com a sua palidez.

A Ana sentira-se logo melhor por estar junto do Júlio, da Zé e do Tim, e também do David.

— Só tenho uma fome terrível, — confessou ela.

— Vou já pedir o pequeno almoço, — disse o Júlio. — Depois vêm as novidades!

A mulher que aparecera à janela na tarde anterior, sacudindo um pano de pó, foi ter com eles. — Naturalmente viemos tarde, — disse o Júlio. — Mas ainda não tomámos o pequeno almoço. Que poderá arranjar-nos?

— Talvez flocos de aveia e ovos com presunto, — disse a mulher. — Também temos mel dos nossos cortiços e pão amassado por mim. Serve-lhes? E querem café com leite?

— Tenho vontade de a abraçar, — disse o Júlio gracejando. Os outros sentiam o mesmo. Foram para uma pequena sala de jantar, bastante arejada e sentaram-se, à espera. Bem depressa chegou ali o cheiro do presunto a fritar e do café acabado de fazer. Que alegria!

— Primeiro falem vocês, — disse o David, fazendo festas ao Tim. — Encontraram a Casa das Espigas? O sr. Gaston estava lá?

— Não, tinha saído, — respondeu o Júlio.

— Mas a esposa, muito simpática, fez-nos entrar, dizendo que ele teria muito gosto em tratar do Tim, quando chegasse. E por isso ficámos à espera, o que nos demorou imenso.

— Esperámos até às sete e meia! — disse a Zé. — E sentíamo-nos um tanto atrapalhados, pois pensávamos que estava a aproximar-se a hora de eles jantarem. Nessa altura chegou o sr. Gaston.

— Foi muito amável, — continuou o Júlio.

— Examinou a perna do Tim e depois deu-lhe um jeito, não sei bem como foi, mas acho que a fez voltar ao seu lugar. O Tim soltou um latido e a Zé agarrou-se logo a ele; o sr. Gaston fez imensa troça.

— Ora, ele foi bastante bruto com a perna do Tim, — interrompeu a Zé. — Mas claro que sabia o que estava a fazer. Agora o Tim está perfeitamente bem, tirando a nódoa negra no lombo. Mas mesmo essa está muito melhor. Já pode correr como dantes.

— Óptimo! — exclamou a Ana. — Passei a noite a pensar no Tim.

Fez-lhe uma festa e o cão retribuiu-lhe com uma grande lambedela.

— E depois que fizeram? — perguntou o David.

— O sr. Gaston insistiu que jantássemos com eles, — disse o Júlio. — Não era bonito recusar e confesso-lhes que por essa altura já estávamos com um apetite enorme. E assim ficámos e serviram-nos uma belíssima refeição. E ao Tim também! Nem calculam como ficou inchado; até parecia uma bola! Ainda bem que nos viemos embora, se não tornava-se um autêntico chouriço!

— Idiota, — disse a Zé, continuando. — Só nos despedimos por volta das nove. Não estávamos preocupados com vocês, pois convencemo-nos de que deviam encontrar-se àquela hora na Quinta da Lagoa Azul e com certeza perceberiam que a nossa demora era por causa do Tim. Mas quando lá chegámos e soubemos que ainda não tinham aparecido, nem calculam como ficámos!

— Depois pensámos que deviam ter encontrado outro sítio para passarem a noite, — disse o Júlio. — Mas decidimos que se vocês não aparecessem até de manhã iríamos logo dar parte à polícia.

— E por isso viemos mesmo sem tomar o pequeno almoço, — explicou a Zé. — Isso mostra como estávamos preocupados! A Quinta da Lagoa Azul é simpática. Deram-nos dois quartinhos pequenos e limpos e o Tim dormiu aos meus pés, como de costume.

Chegou um cheiro agradabilíssimo à sala de jantar, aparecendo a estalajadeira com um grande tabuleiro* Este continha uma travessa com flocos de aveia, um pote com mel dourado, uma bilha com leite e outra travessa com ovos e presunto, enfeitada com pequenos cogumelos.

— Parece um sonho! — disse a Ana, com os olhos muito abertos. — São exactamente as coisas que mais me apeteciam.

— Depois trago-lhes as torradas e o café com leite, — disse a mulher, colocando as travessas sobre a mesa. — E se quiserem mais ovos com presunto é só tocarem a campainha.

— Isto é bom de mais para ser verdade! — afirmou o David olhando para a mesa. — Por amor de Deus sirvam-se depressa, meninas, ou esqueço-me das boas maneiras e sirvo-me primeiro.

Foi um pequeno almoço formidável. Ultra-formidável, pois estavam todos esfomeados. Não disseram palavra enquanto devoraram os flocos de aveia, cobertos com mel. O Tim também comeu um prato cheio; gostava de flocos, embora não apreciasse o mel por este se lhe pegar aos bigodes.

— Agora sinto-me melhor, — disse a Ana olhando para a travessa dos flocos. — A questão é a seguinte: devo repetir os flocos, arriscando-me a não apreciar tanto o presunto com ovos ou devo continuar já com estes?

— É um problema difícil, — disse o David. — E eu também preciso de o resolver. Acho que vou servir-me de ovos com presunto e repetir depois os flocos, se ainda me apetecer. Aqueles cogumelos fazem-me crescer água na boca. Nós somos uns esfomeados!

— Ainda não disseram nem uma palavra do que se passou com vocês dois a noite passada, — disse o Júlio, servindo-se abundantemente dos ovos com presunto. — Agora que já não têm o estômago vazio talvez sejam capazes de me dizer por que razão resolveram ignorar as minhas instruções e não foram ter onde deviam, na noite passada.

— Falas como o director do nosso colégio! — comentou o David. — A coisa é muito simples; perdemo-nos. E quando por fim chegámos a uma casa, pensámos que se tratava da Quinta da Lagoa Azul e passámos lá a noite.

— Estou a perceber, — disse o Júlio. — Mas as pessoas dessa casa não te disseram que não era ali a Quinta da Lagoa Azul?

E porque não nos preveniram? Deviam calcular que estávamos preocupados.

— A velhota que lá estava era surda como uma porta, — explicou a Ana, atacando os seus ovos com presunto. — Não percebia nem uma palavra do que nós dizíamos. Mas como julgámos que era ali a Quinta da Lagoa Azul, ficámos, embora fosse um lugar horrível. E nós também estávamos preocupados por vocês não chegarem.

— Uma quantidade de acidentes, — concluiu o Júlio. — Mas afinal tudo está bem quando acaba bem.

— Não sejas tão pomposo! — disse o David. — Passámos um mau bocado, Júlio. A Ana teve que dormir num sótão e eu fiquei sobre a palha dum celeiro; não me importei nada com isso mas durante a noite aconteceram coisas muito estranhas. Pelo menos julgo que aconteceram. Na verdade não estou bem certo de que não tenha sido tudo um sonho.

— Que coisas estranhas? — perguntou logo o Júlio.

— Acho melhor contar-lhes quando recomeçarmos o passeio, — disse o David. — Pensando à luz do dia no que aconteceu julgo que não passou tudo dum estúpido sonho. Ou então foi uma coisa extraordinária.

— Não me contaste nada! — disse a Ana, surpreendida.

— Para te falar com franqueza esqueci-me do que se passara devido aos acontecimentos seguintes, — explicou o David. — A necessidade de me livrar daquele homem, por exemplo, não saber o que acontecera ao Júlio e à Zé e sentir-me com tanta fome.

— Pelo que contas dá-me ideia que passaram uma noite má, — disse a Zé. — E também deve ter sido horrível procurar o caminho através da escuridão. Choveu imenso, não foi?

— Pois foi, — concordou a Ana. — Mas o que mais me assustou foram os sinos! Ouviste-os, Júlio? De repente desataram a tocar e eu fiquei cheia de medo. Porque tocavam? Faziam tanto barulho!

— Não sabes porque tocaram? — exclamou o Júlio. — Eram os sinos da tal prisão de que nos falou aquela velhota simpática. Tocaram para avisar toda a gente destas redondezas de que fugira um preso! Os sinos queriam dizer: — Atenção! Fugiu um preso! fechem bem as vossas portas! Tomem cuidado com as vossas famílias!

A Ana ficou a olhar para o Júlio, sem dizer palavra. Então era por isso que os sinos haviam feito todo aquele barulho! A pequenita estava arrepiada.

— Ainda bem que não sabia isso, — disse ela. — Teria preferido dormir na palha, com o David, se soubesse que havia um preso à solta. Conseguiram apanhá-lo?

— Não sei, — respondeu o Júlio. — Podemos perguntar à estalajadeira quando ela aparecer.

Perguntaram-lhe daí a pouco, mas ela abanou a cabeça. — Não. Ainda não foi apanhado.

Mas em breve o será. As estradas estão a ser vigiadas e todos estão de sobreaviso. Era um ladrão que entrava dentro das casas e atacava quem tentasse resistir-lhe. É um homem perigoso.

— Ó Júlio, achas bem andarmos a passear por aqui havendo um preso à solta? — perguntou a Ana. — Não me sinto nada à vontade.

— Temos o Tim, — disse o Júlio. — Tem força bastante para nos proteger contra três ladrões, se for necessário. Não precisamos de nos preocupar.

— Rrrrm! — concordou logo o Tim, batendo com a cauda no chão.

Por fim acabaram o pequeno almoço. Mesmo a Ana já não conseguia engolir nem mais um bocadinho de torrada. Ela deu um suspiro, satisfeita. — Agora sinto-me outra, — declarou. — Para dizer a verdade não estou muito disposta a caminhar, mas sei que me fará bem, depois desta enorme refeição.

— Com vontade ou sem ela, vamos já continuar o nosso passeio, — disse o Júlio, levantando-se. — Comecemos por comprar umas sanduíches.

A estalajadeira ficou radiante com os elogios sinceros que os pequenos fizeram a tudo. Vendeu-lhes uma porção de sanduíches e disse-lhes adeus. — Voltem quando quiserem, — disse ela. — Hei-de arranjar-lhes sempre uma saborosa refeição.

As quatro crianças-seguiram por aquela rua e continuaram pela estrada.

Esta dirigia-se para o campo e depressa chegaram a um vale por onde passava um riacho.

— Que lindo! — exclamou a Ana. — Não podemos caminhar pela borda do regato? Eu gostava imenso.

O Júlio consultou o mapa. — Podemos, sim, — respondeu ele. — Marquei o caminho que temos de seguir e o riacho acompanha-o durante uma grande parte. Portanto, se gostarem mais, podemos seguir pela margem, embora deva ser muito mau caminho.

Dirigiram-se ao riacho. — Agora, David, — disse o Júlio. — Não te parece que já nos podes contar as coisas estranhas que se passaram durante a noite? Ninguém te ouvirá, pois não se vê vivalma. Conta-nos tudo e nós depois te diremos se foi um sonho ou não.

— Muito bem, — disse o David. — Aqui vai a história. Vai-lhes parecer muito extraordinária. Oiçam...

 

                   O DAVID SURPREENDE OS OUTROS

O David começou a sua história, mas era bastante difícil ouvi-lo, pois não podiam caminhar os quatro lado a lado por não haver um carreiro para seguirem.

No fim, o Júlio parou, apontando para um relvado. — Vamos sentar-nos para ouvirmos melhor a história do David. Não percebi alguns bocados. Ninguém nos poderá escutar se ficarmos ali.

Sentaram-se e o David recomeçou, falando sobre a velhota que tinha medo de que passassem ali a noite, por causa do filho. Contou-lhes também que dormira sobre a palha.

— E agora vem a parte que julgo ter sido um sonho, — continuou ele. — Acordei, ouvindo um barulho esquisito nas paredes de madeira do celeiro...

— Ratazanas ou ratos, — disse a Zé. Claro que o Tim deu logo um salto. Convencera-se de que ela dissera aquelas palavras para ele!

— Também assim pensei, — respondeu o David. — Mas depois ouvi umas pancadas suaves na janela.

— Que medo! — exclamou a Ana. — Eu não gostaria nada da brincadeira.

— E eu também não gostei, — afirmou o David. — Mas logo a seguir ouvi chamarem-me pelo nome!

«David, David!» Ouvi assim mesmo.

— Então deve ter sido um sonho, — disse a Ana. — Ali não havia ninguém que soubesse o teu nome.

O David continuou. — Bem, depois a voz disse. «David! Eu sei que estás aí. Vi-te entrar». E pediu-me que me aproximasse da janela.

— Continua, — pediu o Júlio, muito intrigado. Ninguém podia ter sabido que o David estava no celeiro, excepto a Ana; e com certeza esta não saíra do sótão durante a noite!

— Depois fui até à janela, — prosseguiu o David. — E vi, embora com pouca nitidez, a cara dum homem com olhar feroz. Ele não me podia distinguir por causa da escuridão do celeiro. Limitei-me a dizer entre dentes «estou aqui»» esperando que ele pensasse que eu era quem ele procurava.

— Que disse ele depois? — perguntou a Zé.

— Disse umas palavras que me pareceram disparatadas e sem qualquer significado, — respondeu o David. — Repetiu-as duas vezes. Eram: «Duas Árvores. Lago Negro. Joana Vaidosa». E depois disse: «E a Magda sabe». Foi precisamente isto.

Houve um silêncio. Por fim a Zé desatou a rir.

— Duas Árvores. Lago Negro. Joana Vaidosa e a Magda sabe! Bem, David, deves concordar que foi um sonho! Que pensas tu, Júlio?

— Acho um tanto disparatado ter aparecido alguém, durante a noite, chamando o David pelo nome e dando-lhe um recado tão estranho e que nada significa para ele, — respondeu o Júlio. — Parece mais um sonho do que realidade. Pelo menos dá-me ideia de que foi um sonho.

O David começou a achar que eles tinham razão e então lembrou-se duma coisa e deu um pulo.

— Esperem! — exclamou ele. — Falta-me dizer uma coisa! O homem deitou um bocado de papel pelo vidro quebrado da janela e eu guardei-o.

— Então o caso muda de figura, — disse o Júlio. — Agora, se não conseguires encontrar o papel, não passou tudo dum sonho, mas" se realmente o encontrares, é tudo verdade. Muito extraordinário, mas verdadeiro.

O David apressou-se a procurar nas algibeiras. Apalpou um papel numa delas e tirou-o para fora. Era uma folha suja e amarrotada com algumas palavras escritas e alguns traços. Mostrou-a aos outros sem dizer palavra, com os olhos a brilhar.

— É esse o papel? — perguntou o Júlio. — Então é extraordinário! Não sonhaste!

Pegou no papel. Quatro cabeças inclinaram-se sobre ele, para o examinar. Não, cinco. O Tim também quis ver porque estariam todos tão interessados e meteu a cabeça peluda entre a do Júlio e a do David.

— Não percebo nada deste papel, — disse o Júlio. — Julgo que é um mapa de qualquer espécie, mas a que sítio se refere é impossível sabermos.

— O homem disse que a Magda também tem um papel igual a este, — acrescentou o David, recordando-se.

— Mas quem será a Magda? — perguntou a Zé. — E que saberá ela?

— Tens mais alguma coisa para contar?

— perguntou o Júlio, interessadíssimo.

— O filho da velhota surda chegou um pouco mais tarde ao celeiro, — disse o David.

— Sentou-se lá dentro e fartou-se de esperar, resmungando sempre. — Depois, quando acordei, já ele ali não estava, e por isso pensei que isto também fazia parte do sonho. Claro, ele não chegou a ver-me.

O Júlio apertou os lábios e franziu o sobrolho. Então a Ana começou a falar, muito entusiasmada.

— David! Júlio! Eu sei por que motivo o filho da velhota foi para o celeiro! Era a ele que o homem de olhar feroz queria dar o recado e entregar o papel, e não ao David. Não procurava o nosso David, mas vira-o entrar no celeiro e julgou tratar-se do homem que realmente queria, e que fora para o celeiro esperar por ele.

— Isso está tudo muito bem, mas como sabia o homem o meu nome? — perguntou o David.

— Não sabia! Não fazia a menor ideia que eras tu! — continuou a Ana, cada vez mais entusiasmada. — O filho da velhota também se chama David! Estás a perceber? Devem ter combinado encontrar-se ali, o homem de olhar feroz e o filho da velha surda. O primeiro homem, vendo-te entrar, esperou um pouco e depois foi bater à janela. E quando chamou «David! David!» claro que o David pensou ser para ele e recebeu o recado e tudo o mais. E só depois chegou o outro David, demasiado tarde para encontrar o homem, pois este dera o recado ao nosso David e partira.

A Ana estava quase sem fôlego depois do seu longo discurso. Ficou a olhar para os outros com vivacidade. Não achavam que tinha razão?

Claro que achavam. O Júlio deu-lhe uma palmada nas costas. — Muito bem deduzido, Ana! Sem dúvida foi o que aconteceu.

O David lembrou-se de repente do rapaz que haviam encontrado ao voltarem de casa da velhota para a Vila da Fogueira. Que dissera ele sobre a velhota e o filho?

— Ana, o que disse aquele rapaz que ia a assobiar? Espera, disse que era a casa da sr.a Taggart e que era melhor não nos aproximarmos, pois o filho correria connosco. E lembras-te que acrescentou «chamamos-lhe o David Malandrão»? Quer dizer que também se chama David. Porque não pensei nisto há mais tempo?

— Isso prova que a Ana tem razão, — disse o Júlio, satisfeito. A Ana também estava muito contente. Nem sempre chegava a conclusões tão inteligentes antes dos outros.

Todos se puseram a pensar.

— Isto terá alguma coisa a ver com o preso que fugiu? — lembrou por fim a Zé.

— É possível, — respondeu o Júlio. — É capaz de ter sido o próprio prisioneiro o homem que levou- o recado. Ele disse quem o mandara?

— Disse, — afirmou o David tentando recordar-se. — Disse que era da parte do Nélio. Parece-me que foi este o nome, mas foi tudo dito em voz baixa.

— Talvez o Nélio esteja na prisão e seja amigo do homem que fugiu, — sugeriu o Júlio. — E naturalmente, ao saber que este ia tentar a fuga, deu-lhe um recado para alguém, ou seja, para o filho da tal velha surda. Deviam ter um plano premeditado.

— Que queres dizer com isso? — perguntou o David.

— Olha, o filho da velhota, o David Malandrão, deve ter percebido ao ouvir tocar os sinos que o homem o iria procurar para lhe levar uma mensagem. Estava combinado esperar no celeiro durante a noite, se os sinos tocassem, para o caso de ser o amigo do Nélio quem fugisse.

— Estou a perceber, — disse o David. — Acho que tens razão. Palavra que estou satisfeito por não saber naquela altura que o homem era um condenado, fugido da prisão!

— E foste tu quem recebeu a mensagem do Nélio! — exclamou -a Ana. — Que coisa mais extraordinária! Só por nos perdermos e termos chegado a outro sítio tu recebeste um recado dum preso, pela boca dum evadido.

É uma pena não sabermos o que significa a mensagem ou o papel.

— Acham que devemos ir contar à polícia? — perguntou a Zé. — Quero dizer, pode ser importante. Talvez os ajude a apanhar o homem.

— Tens razão, — disse o Júlio. — Acho que devemos preveni-los. Deixa-me ver pelo nosso mapa onde fica a próxima vila.

Examinaram o mapa por uns momentos.

— Julgo que nem precisamos de nos desviar do nosso caminho, — disse o Júlio. — Pensava chegar a esta vila aqui marcada, Ribas, à hora do almoço, caso não tivéssemos arranjado sanduíches. De toda a maneira podemos lá tomar uns refrescos. Por isso proponho continuarmos com o nosso passeio, passando pelo posto da polícia de Ribas se lá houver algum e contar o pouco que sabemos.

Levantaram-se. O Tim ficou satisfeito; não concordava com aquela paragem demorada, logo a seguir ao pequeno almoço.

— Tem a perna completamente boa, — disse a Ana, contente, ao ver o Tim correr à frente deles. — Espero que lhe tenha servido de lição para não se tornar a meter nas tocas dos coelhos.

Mas claro que não se emendara. O Tim meteu a cabeça dentro de mais de uma dúzia de buracos, na meia hora seguinte, mas felizmente conseguiu tirá-la sempre com facilidade.

Naquele dia viram potros à solta. Iam todos juntos, com grandes caudas e crinas compridas.

Os pequenos pararam, encantados. Os potros deram por eles e fugiram, galopando.

O Tim queria ir atrás deles mas a Zé segurou-o com firmeza pela coleira. Não se deviam perseguir cavalinhos tão lindos!

— Que encanto! Espero encontrar mais! — disse a Ana.

A manhã estava tão quente e com tanto sol como no dia anterior. Voltaram a despir os casacos e o Tim tinha a língua de fora com o calor. A relva tornava o caminho macio como um tapete. Seguiam o riacho de perto, apreciando o seu murmúrio e a sua cor acastanhada.

Às onze e meia molharam os pés na água corrente e comeram umas-sanduíches. — Sinto-me radiante, — declarou a Zé, deitada de costas sobre um tufo de verdura, com os pés metidos no riacho. — A água bate-me nos pés e o sol aquece-me a cara. Que agradável! Ó Tim, sai daqui! A respirares para cima da minha cara e a lamberes-me o pescoço!

O riacho, por fim, foi dar à estrada que seguia para a vila de Ribas. Continuaram por ali, começando a pensar no almoço. Seria divertido comê-lo numa pequena estalagem ou talvez numa quintarola, deixando as sanduíches que levavam para a hora do lanche.

— Mas primeiro temos que procurar o posto da polícia, — disse o Júlio. — Contamos a nossa história e depois ficaremos prontos para o almoço!

 

                   UM POLÍCIA POUCO SIMPÁTICO

Sempre havia um posto de polícia em Ribas; era muito pequeno e a casa do único funcionário ficava ao lado, e como este era responsável por quatro vilas, sentia-se uma pessoa importante.

Quando os pequenos chegaram à porta, ele estava em casa, a almoçar. Não encontrando ninguém tornaram a sair. O polícia, que os viu pela janela de casa, apareceu limpando a boca. Não estava nada satisfeito por ter sido obrigado a interromper a sua carne guisada.

— Que desejam? — perguntou, desconfiado. Não gostava de crianças. Achava-as insuportáveis, sempre mentirosas e mal-educadas. E nem sabia quais achava piores, se as mais crescidas se as mais pequenas.

O Júlio falou-lhe com delicadeza. — Viemos contar-lhe uma coisa bastante estranha. Achámos que a polícia devia saber. Talvez os ajude a apanhar o preso que fugiu a noite passada.

— Ah! — fez o polícia, mal-humorado. — Também o viram, não? Nem calculam as pessoas que o encontraram! Se lhes déssemos crédito ele devia ter andado por toda a parte ao mesmo tempo. Deve ser um homem muito inteligente para se saber dirigir dessa maneira!

— Bem, um de nós viu-o na noite passada, — disse o Júlio, mantendo a sua delicadeza. — Pelo menos julgamos que deve ter sido ele. Deu um recado ao meu irmão.

— Ai sim?! — disse o polícia, olhando para o David com ar de descrença. — Então andou por aí a dar recados a rapazotes da escola, não foi? E posso saber o que lhe disse?

A mensagem pareceu disparatadíssima quando o David a repetiu ao polícia. — Duas Árvores. Lago Negro. Joana Vaidosa. E a Magda sabe.

«Sim?! — disse o polícia com uma voz trocista. — E a Magda também sabe? Então é melhor irem dizer à Magda para vir aqui contar-me. Gostaria de a conhecer, principalmente se é vossa amiga.

— Não é, — respondeu o David, aborrecido. — Era o que dizia a mensagem. Não sei quem seja essa Magda. Pensámos que talvez a polícia pudesse apreender o sentido daquelas frases. Nós não conseguimos. O homem também me deu este papel.

O pequeno entregou a folha de papel sujo ao polícia, que a observou com um riso escarninho. — Também lhe deu isto? — perguntou ele. — Não acham que foi simpático? E qual é o sentido destas garatujas?

- — Não sabemos, — respondeu o David. — Só pensámos que as nossas declarações podiam ajudar a polícia e nada mais.

— O preso já foi agarrado, — disse o polícia, com um sorriso afectado. — Sabem tanto e afinal não sabiam isto. Foi agarrado há quatro horas e já voltou para a prisão. E deixem-me dizer-lhes, meus meninos, que não aprecio brincadeiras de crianças.

— Não estamos a brincar, — afirmou o Júlio, parecendo uma pessoa crescida. — O senhor devia saber distinguir uma brincadeira duma verdade.

Isto não agradou nada ao polícia. Voltou-se logo para o Júlio muito vermelho.

— Fora daqui! — gritou ele. — Ou querem que tome nota dos vossos nomes e moradas para dar parte de vocês?

— Como queira, — respondeu o Júlio, maçado. — Tem um papel para as apontar? Vou dizer-lhes os nossos nomes e eu próprio também darei parte de si na polícia do nosso distrito.

O polícia fitou o Júlio. Não deixara de ficar um tanto impressionado com a atitude decidida do pequeno e por isso acalmou-se.

— Vão-se todos embora, — disse ele, num tom menos importante. — Por esta vez não dou parte dos meninos. Mas não andem a espalhar histórias disparatadas como essas, pois podem meter-se em apuros.

— Não me parece, — disse o Júlio. — No entanto, como vejo que não ligou a menor importância ao que lhe contámos, pode devolver-nos esse bocado de papel, se faz favor.

O polícia franziu o sobrolho. Fez um gesto como quem ia rasgar o papel e o David quis impedi-lo. Era tarde; o antipático polícia rasgara-o em quatro bocados, deitando-os para o chão.

— Aqui nesta terra não é proibido espalhar papéis no meio da rua? — perguntou o David, muito sério e apanhando com cuidado os quatro pedaços de papel. O polícia deitou um olhar furioso ao pequeno, enquanto este guardava os papéis na algibeira. Depois tossiu, deu meia volta e foi atacar novamente o seu guisado de carne.

— Oxalá o almoço tenha arrefecido! — disse a Zé. — Que sujeito embirrento! Pensaria ele que estávamos a dizer uma porção de mentiras?

— A nossa história é bastante extraordinária, — disse o Júlio. — Também nos custou a acreditar quando o David a contou pela primeira vez. Não censuro o polícia por não ter aqreditado, mas sim pelos seus modos nada atenciosos. Felizmente a maioria dos polícias é bem diferente.

— No entanto ele deu-nos uma notícia agradável, — disse a Ana. — O homem voltou para a prisão. Sinto-me bem aliviada por sabê-lo.

— Também eu, — concordou o David. — Não gostei nada do aspecto dele. Bem, Júlio, que fazemos agora? Esquecemos toda esta história? Ou pensas que se pode concluir qualquer coisa da mensagem? E nesse caso, que fazemos?

— Não sei, — disse o Júlio. — Temos de pensar. Vamos ver se conseguimos que nos sirvam uma refeição em qualquer quinta próxima. Parece-me que há várias por aqui.

Perguntaram a uma pequenita se havia perto alguma casa onde lhes preparassem um almoço. Ela apontou para longe.

— Vêem aquela quinta no alto do monte? É da minha avó. Acho que ela lhes pode arranjar um almoço. Costuma preparar refeições para os excursionistas durante o Verão e com certeza lhes arranjará qualquer coisa, embora a época vá adiantada.

— Obrigado, — disse o Júlio. Subiram por um caminho talhado na encosta do monte. Quando se aproximaram da quinta os cães começaram a ladrar. O Tim, com o pêlo todo eriçado, desatou logo a rosnar.

— São amigos, Tim, são amigos! — dizia a Zé. — Vamos almoçar aqui e naturalmente vão dar-te um belo osso! Um osso, Tim!

O cão percebeu e parou de rosnar. Abanou a cauda para os dois cães que estavam junto ao portão da quinta.

Um homem gritou-lhes lá de dentro. — Que querem os meninos? Cuidado com os cães!

— Gostávamos de saber se nos podem servir um almoço, — gritou também o Júlio. — Uma pequenita da vila indicou-nos esta casa.

— Vou perguntar à minha mãe, — disse o homem. E voltando-se para a casa gritou com uma voz muito forte. — Mãe! Mãe! Estão aqui quatro miúdos e perguntam se lhes pode servir um almoço!

Apareceu logo uma mulher gordíssima, com os olhos pequeninos e faces vermelhas como maçãs. Deitou uma olhadela aos pequenos que continuavam perto do portão.

— Está bem. Parecem meninos educados.

Diz-lhes que entrem. É melhor segurarem o cão pela coleira.

Os quatro pequenos dirigiram-se à casa. A Zé não largava o Tim. Os outros dois cães aproximaram-se, mas o Tim, como esperava que lhe dessem um osso, resolveu mostrar-se amigo e não deu nem uma rosnadela; mesmo quando os dois cães rosnaram, desconfiados, começou a abanar a cauda e os outros depressa o imitaram. Isto queria dizer que já não fazia mal largar o Tim.

— Façam favor de entrar, — disse a mulher gorducha. — Espero que se contentem com o que nós temos. Hoje andei muito ocupada e não tive tempo para cozinhar. Podem comer empadão de carne feito em casa, umas fatias de presunto e de lombo de porco, ovos cozidos e salada. Vou pôr tudo em cima da mesa, para se servirem à vontade. Concordam? Bem, felizmente parecem satisfeitos! Podem acompanhar tudo com «pickles», também preparados por mim.

— Mas isso é um grande almoço, — disse o Júlio. — Nem precisamos de sobremesa.

— Hoje não há pudim, — disse a senhora. — Mas posso abrir um ou dois frascos de compota para comerem com o queijo fresco, que fiz ontem.

— Não diga mais! — pediu o David. — Está a fazer-me crescer água na boca. Porque será que nas quintas há sempre comida deliciosa? As pessoas da cidade não poderiam fazer compota para todo o ano, queijo fresco e conservas em vinagre?

— Umas não sabem e outras não estão para isso, — disse a Zé. — A minha mãe faz todas estas coisas, mesmo quando está na cidade. E eu também hei-de fazê-las quando for crescida. Deve ser tão agradável oferecermos coisas feitas por nós quando temos visitas!

Embora pareça extraordinário cada pequeno comeu por quatro. O Tim também teve um belo almoço e no fim deitou-se, respirando fundo. Quem lhe dera viver naquela quinta! Que sorte tinham aqueles dois cães!

Uma pequenita apareceu enquanto eles estavam a almoçar. — Sou a Meg, — disse ela. — Vivo aqui com a minha avó. E vocês como se chamam?

Eles disseram-lhe os seus nomes e nessa altura o Júlio teve uma ideia. — Estamos a dar um grande passeio por estes sítios, — disse ele. — Já passámos por uma quantidade de lugares bonitos. Mas há um que ainda não conhecemos. Saberás tu onde fica? Chama-se Duas Árvores.

A pequenita abanou a cabeça. — A avozinha deve saber, — disse ela. — Avó! Onde fica um lugar que se chama« Duas Árvores?

A senhora apareceu à porta. — Porque queres saber? Duas Árvores? Foi em tempos um sítio encantador mas agora está em ruínas. Fica na margem dum lago muito escuro no meio duma planície. Deixa ver se me recordo do nome do lago...

— Lago Negro? — perguntou o David.

— Isso mesmo! Lago Negro, — repetiu a senhora.

— Pensam lá ir? Tenham cuidado porque há terras pantanosas em redor, que aparecem quando menos se espera. E agora querem mais alguma coisa?

— Não, muito obrigado, — disse o Júlio, pagando a conta que era muito pequena. — Foi um esplêndido almoço. Agora temos de partir.

— Partir para as Duas Árvores e para o Lago Negro, espero eu! — segredou a Zé ao David. — Vai ser divertidíssimo!

 

                   A IDEIA DO JÚLIO

Uma vez fora da quinta, o Júlio olhou para os outros. — Vamos saber a que distância ficam as Duas Árvores, para vermos se temos tempo de ir até lá, — disse ele. — Se for perto vamos ainda hoje. Caso contrário podemos ir amanhã.

— E quem nos dará essa informação? — perguntou o David, com entusiasmo. — Vem marcado no teu mapa?

— Talvez, se o lago for bastante grande, — disse o Júlio. Desceram o monte e seguiram por um caminho através dos campos. Quando já ninguém podia ouvi-los ou vê-los, o Júlio parou, tirando do bolso o seu grande mapa. Desdobrou-o sobre a relva.

— A avó da pequena disse que ficava no meio do campo, — observou o Júlio. — E também sabemos que está junto dum lago ou pelo menos duma lagoa grande.

Seguiu com o dedo em várias direcções do mapa. A certa altura a Zé soltou uma exclamação, apontando também.

— Olhem! Não fica bem no meio, mas está aqui escrito Lago Negro! Deve ser este o que queremos. As Duas Árvores também virão marcadas?

— Não, — disse o Júlio. — Talvez o mapa as indicasse

se não estivessem em ruínas. Mas estas só quando são importantes por qualquer motivo é que os mapas as trazem marcadas. E as Duas Árvores agora não devem ter importância nenhuma. Bem, mas uma coisa é certa, o Lago Negro vem aqui. Que acham vocês? Vamos lá dar uma espreitadela, ainda esta tarde? Gostava de saber exactamente a que distância fica.

— Podemos perguntar no correio, — lembrou a Zé. — Naturalmente em tempos idos o carteiro levava lá a correspondência. E até podem explicar-nos o caminho exacto que devemos seguir.

Voltaram à vila e conseguiram descobrir o correio. Um homenzinho de idade que lá se encontrava olhou para as crianças por cima dos óculos.

— Lago Negro? Porque lhes interessa esse lugar? É um sítio desabitado e triste, embora há anos atrás fosse muito bonito.

— Então que aconteceu? — perguntou o David.

— Ardeu tudo, — explicou o velho. — O dono tinha ido para fora e só ali se encontrava um casal de criados. E ardeu tudo durante a noite, sem se saber como, nem porquê. Não conseguiu lá chegar nenhuma bomba.

— E nunca mais tornaram a reconstruir a casa? — perguntou o Júlio. O homem abanou a cabeça.

— Não, porque já não valia a pena. O dono deixou-a ao abandono. Agora os corvos e os mochos fazem lá os seus ninhos e os animais bravios abrigam-se nas ruínas. É um lugar curioso. Uma vez fui até lá, pois ouvia contar histórias sobre certas luzes que se viam acender de vez em quando. Mas não vi nada, além das paredes da casa e da grande extensão de água azul-escura. Lago Negro é um nome muito bem posto!

— Poderia ensinar-nos o caminho e dizer-nos quanto tempo devemos levar até lá? — pediu o Júlio.

— Por que motivo querem ir ver umas ruínas sem interesse? — insistiu o homem. — Ou tencionam tomar banho no lago? Não façam tal, porque a água é gelada!

— Queremos apenas ver o Lago Negro, — disse o Júlio. — Tem um nome tão estranho. Que caminho nos indicou?

— Ainda não indiquei nenhum, — disse o velhote. — Mas posso fazê-lo, já que tanto insistem. Onde está o vosso mapa? É esse que o menino tem na mão?

O Júlio desdobrou-o. O velhote tirou um lápis do bolso do colete e começou a fazer um traço pelo meio do campo. Punha umas cruzes aqui e ali.

— Vêem estas cruzes? Marcam os terrenos pantanosos. Não passem por eles, pois ficariam enterrados no lodo. Se seguirem por onde eu marquei a lápis não haverá perigo. Reparem nos veados. Há bastantes por aqueles sítios e são bem bonitos.

— Muitíssimo obrigado, — disse o Júlio, voltando a dobrar o mapa. — Quanto tempo levaremos a lá chegar?

— Cerca de duas horas, ou mais, — informou o velhote. — Não pensem em ir esta tarde. Apanhariam a noite na volta «, com aqueles terrenos pantanosos correriam um grande risco.

— Muito bem, — disse o Júlio. — Mais uma vez obrigado. Nós pensamos fazer um pouco de campismo, já que o tempo está tão bonito. — Não será possível alugar-nos uma ou duas esteiras e alguns cobertores?

Os outros olharam para o Júlio, muito admirados. Acamparem? Onde? Porquê? Que estaria ele a arquitectar?

O Júlio piscou-lhes o olho enquanto o velho procurava num armário. Acabou por tirar para fora duas esteiras grandes e quatro cobertores bastante velhos.

— Bem sabia que os tinha metido em qualquer sítio! — disse ele. — Eu é que não iria acampar com os meninos agora em Outubro! Abriguem-se bem, para não morrerem de frio!

— Obrigado, é exactamente o que queríamos, — disse o Júlio, satisfeito. — Enrolem-nos, meninas. Eu vou fazer contas com o senhor.

O David, a Ana, e a Zé dobraram as esteiras e os cobertores, sem perceberem nada. Não estaria o Júlio pensando em acampar perto do Lago Negro? Com certeza achava que a mensagem recebida pelo David tinha grande importância.

— Júlio! — exclamou o David,- logo que saíram do correio. — Que se passa? Para que é tudo isto?

O Júlio parecia um tanto misterioso. — Tive de repente uma ideia, quando estava no correio, — disse ele. — Achei que era preciso ir ao Lago Negro e dar um volver de olhos por aquelas paragens. E como temos tão pouco tempo lembrei-me de que levando o necessário para acamparmos nas ruínas hão-de render-nos mais os poucos dias que faltam.

— Que ideia! — disse a Zé. — E não continuamos com o nosso passeio?

— Bem, — respondeu o Júlio. — Se não encontrarmos nada, claro que podemos continuar o passeio. Mas se houver alguma coisa de interesse, está nas nossas mãos descobri-la. Tenho quase a certeza de que se passa qualquer coisa anormal nas Duas Árvores.

— Talvez encontremos lá a Magda, — lembrou a Ana, dando uma gargalhada.

— Quem sabe! — disse o Júlio. — Temos o direito de investigar por nossa conta, já que fomos falar com um polícia e ele nos repeliu com ar desdenhoso. Alguém deve seguir a mensagem, além da Magda!

— Querida Magda, — troçou o David. — Gostava de saber quem és!

— Deve valer a pena observá-la, visto ser amiga de condenados, — disse o Júlio, com ar grave. — Agora oiçam o que pensei fazermos: compramos mais comida e vamos esta tarde até ao Lago Negro, de forma a chegarmos lá antes de anoitecer. Procuraremos um bom sítio para nos abrigarmos; deve haver algum lugar simpático no meio das ruínas e arranjaremos umas folhas secas para fazer as camas. Amanhã levantamo-nos cedo e com boa disposição para investigarmos o que se passa ali.

— Parece-me formidável, — aprovou o David, satisfeito. — É o género de coisas de que nós gostamos. Que pensas tu, Tim?

— Rrrrm! — fez o Tim com solenidade.

— E se acharmos que não há nada de interesse, vimos aqui entregar as coisas que alugámos, e continuamos o nosso passeio, — disse o Júlio. — Mas de qualquer maneira teremos de lá passar a noite, pois escurece cedo.

Compraram vários pães, manteiga, carnes frias e um grande bolo de frutas. Também compraram mais chocolates e biscoitos. O Júlio adquiriu uma garrafa com sumo de laranja concentrado, para preparar refrescos.

— Deve lá haver um poço, — disse ele. — Ou um regato. Poderemos assim arranjar laranjadas sempre que tivermos sede. Agora acho que não falta nada. A caminho!

Não podiam andar tão depressa como de costume por irem muito carregados. O Tim era o único que corria ligeiro, pois não transportava nada, além de si próprio!

Era realmente um lindo passeio através dos campos. Subiram bastante alto e a paisagem de Outono tornou-se maravilhosa. Tornaram a ver potros bravos, desta vez bastante distantes, e viram também alguns veados pequenos, que desataram logo a fugir.

O Júlio tinha muito cuidado em não se desviar do percurso traçado pelo homem do correio. — Espero que ele conheça bem o caminho pois em tempos foi carteiro e tinha que levar as cartas às Duas Árvores, — disse o David, consultando o mapa. — Estamos a avançar depressa, Júlio; já fizemos meio caminho.

O sol começou a descer. Os pequenos apressaram-se o mais que podiam, pois uma vez o sol posto não tardava a escurecer. Felizmente o céu estava muito limpo e o crepúsculo duraria mais do que na noite anterior.

— Parece-me que em breve deve aparecer um bosque, segundo indica o mapa, — disse o Júlio.

Pouco depois o Júlio apontou para a direita. — Reparem! — exclamou ele. — Árvores! São muitas, formando um pequeno bosque.

— E aquilo mais adiante não é água? — perguntou a Ana.

Pararam, prestando a maior atenção. Seria o Lago Negro? Talvez. Parecia tão escuro! Apressaram-se, ansiosos por chegarem. Agora faltava pouco. O Tim corria à frente com a cauda a dar a dar.

Seguiram por um caminho sinuoso e foram ter a uma estrada estreita; mas esta estava tão cheia de terra que nem parecia uma estrada.

— Deve levar-nos às Duas Árvores, — disse o Júlio. — Era bom que o sol não descesse tão depressa. Não teremos quase tempo nenhum para dar uma volta por ali.

Entraram no bosque. A estrada passava pelo meio e as árvores deviam ser cortadas de vez em quando para desimpedirem o caminho. E depois, de repente, chegaram ao que em tempos fora a linda casa das Duas Árvores.

Viam-se umas ruínas escuras, queimadas pelo fogo. As janelas não tinham vidros e o telhado desaparecera, deixando apenas algumas vigas, aqui e ali. Dois pássaros voaram, palrando, quando viram os pequenos; eram duas pegas.

A casa ficava à beira do Lago Negro. Realmente aquele nome fora muito bem escolhido. Ali estava ele, brilhante e dum curioso azul muito escuro. Não tinha a mais pequena ondulação. Estava quieto como se estivesse gelado.

— Não gosto do lago, — confessou a Ana. — Nem gosto deste lugar. Preferia que não tivéssemos vindo!

 

                   UMA NOITE NAS DUAS ÁRVORES

Ninguém gostou muito daquele sítio. Olhavam em volta, calados e o Júlio apontou para qualquer coisa. De cada lado da casa estava o tronco queimado duma grande árvore.

— Aquelas devem ser as duas árvores que deram o nome a este lugar, — disse o Júlio por fim. — Como parecem horríveis, agora, tão negras e direitas. Duas Árvores e Lago Negro, tudo tão só e abandonado!

O sol desapareceu e o vento tornou-se bastante fresco. O Júlio de repente mostrou-se muito activo. — Vamos, temos que procurar nestas ruínas um sítio para passarmos a noite.

Dirigiram-se para a casa silenciosa. Os andares superiores tinham desaparecido com o incêndio. O rés-do-chão também ficara em muitíssimo mau estado, mas o Júlio achou que talvez encontrassem um canto para se abrigarem.

— Isto pode servir, — disse ele, entrando com os companheiros num compartimento enegrecido. — Até tem uma carpete bolorenta sobre o chão! E está ali uma grande mesa; podemos dormir debaixo dela se chover, o que é pouco provável.

— Que quarto horrível! — exclamou a Ana, olhando em volta. — E não gosto deste cheiro! Não quero dormir aqui.

— Então procura outro sítio, mas despacha-te, — disse o Júlio. — Em breve estará escuro. Vou já apanhar as folhas e o tojo, antes que anoiteça. Querem vir comigo, Zé e David?

Os três afastaram-se, voltando pouco depois com grandes braçadas de folhagem. A Ana foi ao seu encontro, parecendo entusiasmada.

— Encontrei um sítio muitíssimo melhor do que aquele quarto horrível. Venham ver.

Levou-os para onde outrora fora a cozinha. Via-se ao fundo uma porta caída no chão e uma escada de pedra que seguia para baixo.

«Por ali vai-se para as adegas. São espaçosas e não cheiram mal, — disse a Ana. — Ao chegar aqui reparei naquela porta. Estava fechada à chave e não consegui abri-la. Dei-lhe vários puxões e a porta inteira soltou-se dos gonzos ferrugentos e ia caindo em cima de mim. Então vi que havia umas adegas lá em baixo.

A pequenita fitou o Júlio com um modo suplicante. — Devem estar em bom estado. Não ficaram queimadas como o resto. Não achas que podemos lá dormir? Não gosto do aspecto destes detestáveis quartos queimados.

— É uma boa ideia, — aprovou o Júlio. Acendeu a sua lanterna e virou-a para a primeira adega. Parecia espaçosa e não tinha mau cheiro.

Desceu as escadas com o Tim à frente. Soltou uma exclamação de surpresa.

«Há aqui um quarto, rodeado pelas adegas. Talvez fosse uma espécie de sala de estar do pessoal. Tem fios de electricidade, o que indica que deviam ter uma máquina geradora. Claro que vimos para aqui.

Era um quartinho muito curioso. Havia tapetes no chão, todos traçados, e a mobília também estava em mau estado, coberta de pó. As aranhas tinham construído ali as suas teias e a Zé desatou a bater-lhes, furiosa, pois uma delas assustara-a, roçando-lhe na cara inesperadamente.

— Ainda há velas nos castiçais naquela prateleira! — notou o David, surpreendido. — Podemos acendê-las quando escurecer. Aqui não se está" nada mal. Devo confessar que concordo com a Ana. Há qualquer coisa intolerável naqueles compartimentos queimados.

Puseram as folhas no chão do quarto da cave. A mobília era tão velha e carunchosa que as cadeiras foram-se abaixo com o peso deles. No entanto a mesa estava boa. Puseram-lhe a comida em cima, depois de a Zé a limpar do pó. Mas esta limpou-a com tanto ardor que todos tiveram ataques de tosse e foram para a cozinha até o pó assentar.

Lá fora estava completamente escuro. A Lua ainda não aparecera. O vento assobiava nas poucas folhas secas das árvores próximas, mas não se ouvia o barulho da água. O lago continuava tão quieto como um espelho.

Havia um armário no quarto da cave. O Júlio abriu-o para ver o que continha.

— Mais velas, muito bem! — disse ele tirando-as para fora. — E pratos, travessas e mais louça. Não viram nenhum poço lá fora? Se viram, podemos ir buscar água e misturada com um pouco de sumo de laranja para acompanharmos o jantar com um refresco.

Ninguém dera por qualquer poço mas a Ana de repente lembrou-se duma coisa esquisita que vira num canto da cozinha, junto ao lava loiças.

— Acho que lá em cima está uma bomba, — disse ela. — Vai ver, Júlio, talvez ainda trabalhe.

O pequeno subiu as escadas com uma vela na mão. Sim, a Ana não se enganara. Havia uma velha bomba ali ao canto. Naturalmente levava a água para um reservatório fazendo-a sair pelas torneiras da cozinha.

Abriu uma grande torneira que estava sobre o lava-loiças. Depois pegou na alavanca da bomba e puxou-a com força para cima e para baixo. A água começou a correr pela torneira, enchendo o lava-loiças. Que bom!

O Júlio continuou a dar à bomba, achando melhor deixar correr alguma água antes de a aproveitar pela primeira vez depois de tantos anos. O reservatório devia estar sujo e por isso era preciso lavá-lo fazendo correr uma boa quantidade de água.

A água era límpida e quase gelada. O Júlio levara um copo do armário da cave e encheu-o. Provou a água e achou-a deliciosa.

— Boa ideia, Ana! — gritou ele, descendo as escadas com o copo novamente cheio. — David, procura mais copos ou um jarro, naquele armário, para os lavarmos e enchermos com água para a nossa laranjada.

A cave parecia muito mais alegre quando o Júlio desceu as escadas. A Zé e a Ana haviam acendido mais seis velas, distribuindo-as pelo compartimento. Davam uma luz agradável e aqueciam um pouco o quarto.

— Suponho que, como de costume, todos querem jantar, não é verdade? — perguntou o Júlio. — Ainda bem que comprámos o pão, as carnes frias e as outras coisas. Não posso dizer que tenha tanto apetite como ao pequeno almoço, mas para lá caminho.

Os quatro sentaram-se sobre as camas de folhas. Tinham estendido as esteiras por baixo, para o caso de o chão estar húmido, embora não parecesse.

Às voltas com o pão, a manteiga e as carnes frias, foram discutindo os seus planos. Passariam ali a noite e teriam todo o dia seguinte para examinarem as Duas Árvores e o Lago.

— Mas que procurámos nós exactamente? — perguntou a Ana. — Pensas que há aqui algum segredo, Júlio?

— Penso, — disse ele. — E acho que sei qual é!

— Como?! — exclamaram a Zé e a Ana, surpreendidas. O David calculava do que se tratava.

— Bem, — começou o Júlio.

— Sabemos que um preso chamado Nélio mandou uma mensagem importante a duas pessoas, pelo seu amigo que conseguiu fugir. Uma das pessoas era o David Malandrão, que não chegou a recebê-la e a outra era a Magda, que não sabemos quem é. Que segredo quereria ele confiar-lhes?

— Julgo que sei, — disse o David. — Mas continua.

— Suponham que o Nélio fez uns roubos importantes, — disse o Júlio. — Não sei o quê. Talvez pedras preciosas, pois são os roubos mais vulgares entre os grandes criminosos. Bem, fez um grande roubo e escondeu tudo até que os jornais deixassem de falar no caso; mas entretanto foi apanhado e metido na prisão por alguns anos. Contudo, não chegou a dizer onde escondera o que roubara! E não se arriscou a mandar uma carta aos seus amigos fora da prisão, pois todas as cartas são lidas antes de serem expedidas. Portanto que fez ele?

— Esperou até que um companheiro tentasse fugir e lhe levasse um recado, — respondeu o David. — E foi o que aconteceu, não achas, Júlio? Aquele homem com a cabeça redonda, que eu vi, era o preso evadido e devia ir dizer ao David Malandrão e à Magda onde estão escondidos os objectos roubados, para que eles os fossem buscar antes que mais alguém os descobrisse!

— Foi isso mesmo! — disse o Júlio. — Naturalmente, esse seu amigo não percebeu nada da mensagem, mas o David Malandrão e a Magda compreenderiam, pois estavam ao facto do roubo. E com certeza a Magda,há-de procurar os objectos roubados.

— Mas nós havemos de os encontrar primeiro! — afirmou a Zé, com os olhos a brilharem muito. — Fomos os primeiros a chegar aqui. E amanhã, o mais cedo possível, havemos de começar as nossas pesquisas. Que dizia depois a mensagem, David? Depois de «Duas Árvores e Lago Negro»?

— Joana Vaidosa — respondeu o David.

— Parece uma coisa disparatada, — disse a Ana. — Acham que tanto a Magda como a Joana estarão dentro do segredo?

— Joana Vaidosa talvez seja o nome dum barco, — lembrou o David.

— Sem dúvida! — exclamou a Zé. — Um barco! E porque não? Há aqui um lago e calculo que não iam construir uma casa à beira dum lago se não gostassem de andar de barco, tomar banho e pescar. Aposto que amanhã encontraremos um barco chamado Joana Vaidosa. E os objectos roubados devem estar lá dentro.

— Fazes as coisas muito fáceis, — disse o David. — Isso não era nada bem pensado. Qualquer pessoa daria com o roubo. Portanto o Joana Vaidosa é uma pista a seguir, mas não devemos lá encontrar as coisas roubadas. E lembrem-se de que também temos a folha de papel. Deve relacionar-se com o esconderijo.

— Onde está o papel? — perguntou o Júlio. — Aquele polícia antipático rasgou-o. Ainda tens os bocados, David?

— Claro que tenho, — disse o David. Procurou na algibeira e acabou por os encontrar.

— Quatro bocados. Alguém trouxe papel gomado?

Ninguém tinha tal coisa mas a Zé levara um rolo de adesivo. Cortaram umas tiras, colocando-as pela parte de trás do papel. Agora voltava a estar inteiro. Todos o examinaram com cuidado.

— Reparem, estão traçadas quatro linhas que se encontram no centro, — disse o Júlio.

— E no final mais afastado de cada uma, está escrita uma palavra, mas tão ao de leve que é quase impossível de ler. Que quer dizer esta? Talvez seja Monte Agudo, e esta a seguir é Campanário. E as outras duas?

A Ana conseguiu perceber uma delas. — Chaminé, — disse a pequena. — É a terceira palavra.

— E Pedra Alta é a quarta — disse a Zé. — Que significarão? Nunca conseguiremos descobrir. ,

— Vou pensar nelas durante a noite, — disse o Júlio. — É fantástico como as ideias se apresentam mais claras durante a noite. Será um problema muito interessante para decifrar amanhã!

 

                   UMA NOITE NA CAVE

Dobraram a folha de papel com todo o cuidado mas desta vez foi o Júlio quem a guardou em lugar seguro. — Não consigo perceber o que significa mas é com certeza importante, — disse ele. — Podemos dum momento para o outro lembrarmo-nos de qualquer coisa que nos indique o significado das palavras e das linhas traçadas no mapa.

— Não devemos esquecer que a tal Magda tem outra cópia do papel, — disse o David. — E naturalmente sabe melhor do que nós qual o seu significado.

— Se assim for, também há-de vir até às Duas Árvores, — lembrou a Ana. Quando a virmos devemo-nos esconder?

O Júlio pensou um pouco e depois respondeu. — Não. Acho que não nos devemos esconder. É absolutamente impossível a Magda calcular que nós recebemos a mensagem do Nélio e que também temos um mapa. É melhor dizermos-lhe que andamos em excursão e que resolvemos acampar neste sítio por o acharmos muito bonito. Tudo perfeitamente natural.

— E se ela aparecer poderemos vigiá-la para vermos o que faz, — lembrou o David, dando uma gargalhada. — Como vai ficar aborrecida!

— Não deve vir só, — disse o Júlio, pensativo. — É natural que venha com o David Malandrão! Ele não recebeu o recado mas ela deve-o ter recebido e certamente lhe disseram que o David Malandrão também estava a par de tudo. Por isso calculo que se tenha posto em contacto com ele.

— Pois sim, mas deve ter ficado admirada por ele não ter recebido nem o recado nem o papel, — disse a Zé. — Talvez pensem que o homem não tenha conseguido levá-lo ao David Malandrão.

— Tudo isso é muito complicado, — disse a Ana, bocejando. — Não posso seguir mais argumentos nem explicações. Estou quase a dormir. Não tencionam deitar-se?

O David também bocejou. — Eu vou já, — disse ele. — A minha cama de tojo e folhas tem um aspecto convidativo. Aqui não está frio nenhum, pois não?

— A única coisa que não me agrada é pensar que esta cave fica por baixo daquelas ruínas, — confessou a Ana. — Dá-me ideia de que a Magda e os companheiros estão ali escondidos, esperando atirarem-se a nós quando adormecermos.

— És muito palerma, — troçou a Zé. — Verdadeiramente palerma! Achas que o Tim estaria aqui deitado tão quieto, se houvesse mais alguém por estes sítios? Bem sabes que havia de ladrar até não poder.

— Bem sei, — disse a Ana, acomodando-se na sua cama de folhas. — É só a minha imaginação a trabalhar; tu não tens nenhuma e por isso não te incomodas com receios imaginários. Não estou assustada a valer, tendo o Tim aqui, mas acho engraçado como nos metemos numa história complicada sempre que nos reunimos.

— Há muitas pessoas com quem se passam aventuras, — disse o David. — Devias ler a vida dos exploradores e logo verias como estão sempre a meter-se em aventuras de todos os géneros.

— Pois sim, mas eu não sou nenhum explorador, respondeu a Ana. — Sou uma criatura vulgar e ficaria satisfeita se certas coisas não se passassem comigo.

Os outros riram. — Julgo que desta vez não se vai passar nada de especial, — disse o Júlio, animando-a. — Voltamos para o colégio na terça-feira, que já não vem longe. Não temos tempo suficiente para que aconteça qualquer coisa.

Claro que estava enganado. As coisas mais extraordinárias podem acontecer umas atrás das outras, em poucos minutos! No entanto, a Ana preparou-se para dormir, sentindo-se feliz. Era muito melhor do que na noite anterior, quando ficara sozinha naquele horrível sótão. Agora estava com os outros e com o Tim.

A Ana e a Zé tinham uma grande cama para as duas. Cobriram-se com os cobertores e puseram os casacos por cima. Nenhum se despira, pois o Júlio achara que podiam ter frio só com os pijamas.

O Tim, como de costume, deitou-se sobre os pés da Zé. Ela afastou-o, pois era muito pesado, mas ele continuou sobre a cama, encontrando um lugar muito confortável entre os joelhos das duas pequenas. Depois deu um suspiro profundo.

— Quer dizer que se prepara para dormir! — notou a Zé. — Estás bem instalada, Ana?

— Lindamente, — respondeu a Ana, cheia de sono. — Gosto do Tim aqui. Sinto-me mais segura.

O Júlio apagou as velas, deixando só uma acesa. Depois meteu-se na cama de folhas e tojo, ao lado de David. Também se sentia cansado.

Os quatro dormiram como pedras. Ninguém se mexeu excepto o Tim, que se levantou duas vezes durante a noite, cheirando à sua volta, intrigado. Ouvira um barulho nas adegas. Foi até à porta que dava para uma delas e que se encontrava fechada. Pôs-se à escuta, com a cabeça à banda. Farejou por uma das fendas e depois voltou para a cama, satisfeito. Tratava-se apenas dum sapo! O Tim conhecia o cheiro dos sapos. Se eles gostavam de andar por ali durante a noite, não os impediria!

A segunda vez que acordou pareceu-lhe ouvir barulho lá em cima, na cozinha. Subiu os degraus e parou na cozinha silenciosa, com os olhos a brilharem como dois faróis à luz do luar.

Um animal com a cauda farta e comprida começou a fugir, saindo de casa. Era uma raposa. Farejara uns cheiros estranhos à volta das ruínas (o cheiro das pessoas e do cão) e aproximara-se para descobrir o que se passava.

Entrara na cozinha e dera logo pelo cheiro forte do Tim, que estava no quarto em baixo. Tão silenciosa como um gato voltou a sair, mas o Tim acordara!

Depois o cão ficou algum tempo a espera, prestando atenção, mas a raposa desaparecera. O Tim não sabia se era preferível ladrar se ir atrás dela.

O cheiro que o animal deixara tornou-se muito ligeiro e o Tim resolveu não se preocupar mais. Voltou a descer as escadas para a cave e enroscou-se outra vez sobre os pés da Zé. Era muito pesado mas a Zé estava tão cansada que nem acordou, para o afastar. O Tim deitou-se com uma orelha arrebitada durante algum tempo e depois tornou a dormir, conservando porém uma orelha alerta. Era uma boa sentinela!

Ficou muito escuro naquele compartimento quando a vela se apagou. Ali não entrava a luz do dia para acordar os pequenos, que por isso dormiram até tarde.

O Júlio foi o primeiro a acordar. Começou a sentir a cama muito dura e virou-se para se acomodar melhor. As folhas e o tojo tinham abatido com o peso do seu corpo e na verdade o chão era bem duro! Com o movimento, acordou e ficou a pestanejar. Onde estava?

Recordou-se logo e sentou-se. O David também acordou, bocejando. — David! São oito e meia! — exclamou o Júlio, olhando para os ponteiros luminosos do seu relógio de pulso. — Dormimos horas e horas!

Levantou-se e o Tim foi ter com ele, abanando a cauda, satisfeito. Estava acordado havia muito tempo e agradava-lhe ver o Júlio e o David levantados, pois tinha sede.

As pequenas também acordaram e bem depressa estavam todos muito atarefados. A Ana e a Zé lavaram-se no lava-loiças de pedra, embora muito arrepiadas com a temperatura da água. O Tim bebeu uma grande taça de água. Os rapazes hesitavam se deviam ou não dar um mergulho no lago, pois sentiam-se muito sujos.

O David arrepiava-se ao pensar em tal. — No entanto acho que devemos ir, — disse ele. — Vamos, Júlio!

Os dois rapazes foram até à margem do lago e mergulharam. Estava gelado! Deram várias braçadas vigorosas e voltaram para terra.

Quando chegaram a casa as raparigas já haviam preparado o pequeno almoço. Ali estava mais escuro do que na cozinha, mas todos achavam desagradável o aspecto dos compartimentos queimados. O pão com manteiga, as carnes frias, o bolo e os chocolates, tudo soube muito bem.

A meio da refeição ouviu-se um ruído. Eram sinos! A Ana parou de comer e o seu coraçãozinho bateu mais apressado.

Mas não se tratava dos sinos da prisão que ouvira da outra vez. — São sinos da igreja, — disse logo o Júlio, vendo a expressão de medo da Ana. — Acho sempre um lindo som!

— Também eu! — exclamou a Ana, alegre. — Tens razão. Hoje é domingo e as pessoas vão à igreja. Eu também gostava de ir, neste lindo dia de Outubro.

-Podemos ir pelos campos até à aldeia mais próxima, se quiseres, — disse o David, consultando o seu relógio. — Mas vamos chegar muito atrasados.

Depressa se convenceram que era tarde de mais. Afastaram os pratos e planearam o que iriam fazer durante o dia.

— A primeira coisa é sem dúvida investigarmos se há algum sítio onde estejam guardados barcos e vermos se algum se chama Joana Vaidosa, — disse o Júlio. — Depois temos de descobrir o que significa o mapa. Podemos dar uma volta a ver se encontramos a Pedra Alta e eu vou procurar se o nosso mapa traz marcado o Monte Agudo.

— Vocês, meninos, vão buscar mais folhas e tojo, enquanto nós duas lavamos a loiça, — disse a Ana. — Isto, se tencionam ficar aqui mais uma noite.

— Acho que sim, — respondeu o Júlio. — Julgo que devemos encontrar por estes sítios coisas muito interessantes, neste fim de semana!

O Júlio afastou-se com o David e voltaram daí a pouco com muitas folhas para fazerem as camas. Todos se queixaram que haviam sentido a dureza do chão, apesar do tojo e das folhas e a pobre Zé estava muito moída.

As pequenas lavaram toda a loiça suja no lava-loiças. Não havia panos para a limparem mas não se importaram. Deixaram-na a escorrer a água; secariam por si.

Enxugaram as mãos com os lenços e depois declararam estar prontas para começarem as pesquisas.

Os rapazes também estavam a postos.

Foram até ao lago, com o Tim farejando aqui e ali. Outrora houvera um caminho até lá com um muro baixo de cada lado. Mas agora estes estavam meio desmoronados, cheios de musgo, e no caminho cresciam relva e algumas plantas.

O lago continuava calmo e escuro.

— E agora onde será o telheiro dos barcos? — disse o David, por fim. — Haverá algum ou não?

 

                   ONDE ESTÁ O JOANA VAIDOSA?

Faziam os possíveis por caminhar sempre ao longo da margem. Era difícil, pois cresciam ali arbustos e árvores. Parecia não haver nenhum telheiro onde estivessem abrigados barcos.

A certa altura, a Zé viu um pequeno canal que ia dar ao lago. — Olhem! — gritou ela. — Ali há uma espécie de rio que corre para o lago!

— Não é um rio; é apenas um pequeno canal, — disse o David. — Talvez encontremos ali um telheiro com barcos.

Seguiram junto ao canal e a certa altura o Júlio soltou uma exclamação. — Ali está ele! Mas está tão coberto pela hera e pelas silvas que mal se percebe.

Todos olharam para onde o Júlio apontava. Viram uma construção baixa e comprida atravessando o canal no sítio onde este era mais estreito e chegava ao fim.

— Agora, procuremos o Joana Vaidosa! — exclamou o David, alegremente.

Conseguiram passar através dos arbustos e das silvas para chegarem à entrada do telheiro. Queriam entrar pela frente, que dava para a água e era completamente aberta. Um estrado largo corria ao longo da parede, pelo lado de dentro e os degraus que subiam da margem até lá estavam todos estragados e apodrecidos.

— Temos que ver onde pomos os pés, — disse o Júlio. — Deixem-me ir à frente.

Ainda experimentou os degraus de madeira, mas estes deram logo de si. — É escusado! — disse o Júlio. — Vamos ver se haverá qualquer outra entrada para o telheiro.

Não havia, mas numa das paredes a madeira estava tão apodrecida que foi fácil, com uma pancada, abrir-lhe uma passagem.

Depois o Júlio saltou para dentro do telheiro húmido e sombrio. Ficou sobre o estrado que rodeava a parede interior do telheiro. À sua frente ficava a água escura e parada, sem a mais pequena ondulação.

— Venham cá! — chamou ele. — Há aqui um estrado de madeira que não apodreceu e por isso aguenta connosco. Deve ser uma madeira de melhor qualidade do que a dos degraus e das paredes.

Passaram todos pela abertura, e ficaram sobre o estrado espreitando para o meio. Primeiro tiveram que habituar os olhos ao escuro, pois a única luz vinha da entrada, no extremo oposto, e esta estava coberta com grandes trepadeiras de hera e outras plantas que desciam do tecto até à água.

—        Estão aqui barcos! — exclamou o David, entusiasmado. — Reparem, está um mesmo aqui perto de nós. Esperemos que algum seja o Joana Vaidosa.

Encontravam-se ali três barcos. Dois deles tinham água até meio.

— Devem ter buracos no fundo, — disse o Júlio, espreitando. Acendeu a sua lanterna e foi iluminando tudo quanto estava em redor.

Viam-se remos pendurados ao longo das paredes. Também se viam umas coisas estragadas numa prateleira; naturalmente eram almofadas todas desfeitas. A um canto estavam uns anzóis. Noutra prateleira viam-se rolos de corda. Era um lugar bastante estranho e a Ana não gostou nada do eco que faziam as suas vozes naquele solitário telheiro com cheiro a bafio.

— Vamos ver se algum dos barcos se chama Joana Vaidosa, — propôs o David. Fez incidir a luz da sua lanterna sobre o barco mais próximo. O nome estava quase completamente sumido.

«Como se chama? — disse o David, tentando decifrar as letras apagadas. — Qualquer coisa Alegre.

— Maria, — decifrou a Ana — Maria Alegre. Deve ser um barco irmão do Joana Vaidosa. Que nome tem o barco que se segue?

O David iluminou-o e foi fácil de ler. Disseram todos em coro: — Carlinhos Medroso.

— Irmão do Maria Alegre! — disse o David.

— Estou convencida de que o último é o Joana Vaidosa, — disse a Ana, entusiasmada. — Vão ver!

Seguiram pelo estrado e tentaram ler o nome do outro barco meio afundado.

— Começa por um R, — afirmou a Zé, desapontada. — Tenho a certeza de que é um R.

O Júlio pegou num lenço e meteu-o dentro da água. Depois esfregou-o sobre o nome do barco, para o limpar, tornando-o mais claro.

Agora era fácil lê-lo, mas não dizia Joana Vaidosa!

— Rui Trocista, — leram os quatro, muito desapontados. — Que pena!

— Maria Alegre, Carlinhos Medroso, Rui Trocista, — repetiu o Júlio. — É evidente que o Joana Vaidosa faz parte da família dos barcos daqui, mas onde estará?

— Talvez tenha ido completamente para o fundo, — lembrou o David.

— Não me parece, — disse o Júlio. — A água aqui é muito pouco funda, pois fica mesmo no fim do canal. E além disso conseguimos ver se há algum barco aqui afundado, pois com a luz das lanternas vê-se perfeitamente a areia do fundo.

Para se certificarem, foram andando devagar sobre o estrado de madeira, virando a luz das lanternas para água. Não estava nenhum barco afundado.

— Bem, o facto é que o Joana Vaidosa não está aqui! — disse o David. — Para onde foi? Por que motivo? Quando?

Tornaram a iluminar as paredes. A Zé reparou numa coisa de madeira, grande e lisa, colocada ao alto sobre o estrado e encostada à parede.

— Que é aquilo? — disse ela. — Oh! uma jangada, não lhes parece? E os remos que eu vi numa prateleira devem ser para ela.

Foram examinar a jangada. — Está em muito bom estado, — notou o Júlio. — Seria divertido se experimentássemos pô-la a flutuar para irmos até ao lago.

— Vamos! — exclamou a Ana, encantada. — Seria formidável! Sempre gostei de jangadas. E esta inspira-me muito mais confiança do que aqueles barcos.

— Só há um barco que talvez ainda possa servir, — disse o Júlio. — Os outros estão incapazes. Devem ter grandes furos para estarem meio afundados.

— Não seria melhor examiná-los com atenção, para verificarmos que não está nada lá escondido? — lembrou o David.

— Como queiras, — respondeu o Júlio. — Mas julgo que é o Joana Vaidosa que tem os objectos roubados; caso contrário, porque o teriam indicado na mensagem?

O David concordou com o Júlio. Mas mesmo assim foi examinar os três barcos com o maior cuidado. Contudo, não tinham mais nada do que umas almofadas usadas e quase desfeitas e uns molhos de cordas.

— Bem, onde estará o Joana Vaidosa? — perguntou o David, intrigado. — Encontra-se aqui toda a família menos ele. Estará escondido nalgum sítio, nas margens do lago?

— É uma ideia! — aprovou o Júlio, que tentava desprender a jangada. — É uma boa ideia! Acho que devemos procurar a toda a volta do lago a ver se encontramos o Joana Vaidosa escondido em qualquer parte.

— Então deixemos a jangada onde está, — disse a Zé, sentindo-se entusiasmada só com a ideia de encontrar o Joana Vaidosa, com as coisas roubadas lá dentro. — Vamo-nos embora!

Seguiram pelo estrado até à abertura que haviam feito na parede de madeira e saltaram para fora. O Tim também saltou, satisfeito. Não gostava daquele lugar tão escuro. Preferia correr ao sol, abanando a cauda.

— Agora, para que lado do lago devemos ir primeiro? — perguntou a Ana. — Para o lado esquerdo ou para o direito?

Foram até à beira da água silenciosa e olharam para a esquerda e para a direita. Ambos os lados pareciam igualmente cobertos por arbustos!

— Vai ser difícil mantermo-nos sempre à borda do lago, — disse o Júlio. — No entanto podemos tentar. O lado esquerdo parece ligeiramente mais acessível. Vamos!

Ao princípio foi bastante fácil conservarem-se junto da água, examinando todas as pequenas reentrâncias ou espreitando por baixo dos arbustos. Mas ao fim duns duzentos metros a vegetação tornou-se tão cerrada, crescendo tão perto da água, que era impossível abrir caminho, sem ficarem com as roupas esfarrapadas.

— Desisto! — disse finalmente o Júlio. — Daqui a pouco estou sem camisola.

Que silvas mais desesperadoras! Tenho as mãos completamente arranhadas.

— Também me desesperam a mim! — disse a Ana. — Olha para as minhas pernas!

O Tim era o único que realmente se divertia. Não conseguia imaginar por que razão andariam os seus quatro amigos por ali, mas como aquilo era do que ele gostava, sentia-se contente. Foi um aborrecimento para ele, quando os pequenos resolveram desistir e voltar para trás.

— Acham que devemos tentar seguir pelo lado direito? — perguntou o Júlio, enquanto regressavam, um tanto desanimados.

— Não vale a pena, — disse a Ana. — Parece ainda pior do que este lado. Só serviria para perdermos tempo. Prefiro ir andar de jangada.

— E não lhes parece que seria uma maneira melhor de examinarmos as margens do lago em vez de andarmos a abrir caminho através de arbustos cheios de espinhos? — lembrou a Zé. — Bastar-nos-ia remar vagarosamente junto à margem.

— Pois claro! — exclamou o David. — Fomos uns palermas em não termos pensado nisso há mais tempo. E além de tudo será uma forma muito agradável de passar a tarde.

Saíram do meio das árvores e viram à distância a casa em ruínas. O Tim parou de repente, começando a rosnar. Os pequenos também pararam.

— Que se passa, Tim? — perguntou a Zé em voz baixa. — Que aconteceu?

O Tim voltou a rosnar. Os pequenos esconderam-se atrás duns arbustos, cautelosamente, e olharam com atenção para a casa. Não viram nada de anormal. Parecia que não estava lá ninguém. Nesse caso, porque rosnara o Tim?

Mas, de repente, apareceu uma mulher.

Vinha também um homem com ela. Conversavam animadamente.

— É a Magda! Aposto que é a Magda! — disse o Júlio.

— E o homem é o David Malandrão. — concluiu logo o David. — Estou a reconhecê-lo. Garanto que é o David Malandrão!

 

                   A MAGDA E O DAVID MALANDRÃO

Observaram o par, à distância. O Júlio já os esperava; por isso não ficou surpreendido. O David olhava para o David Malandrão, reconhecendo nele o tal homem baixo e forte com o cabelo em desalinho. Não simpatizou mais com ele do que quando o vira na casa de campo.

A Ana e a Zé também não gostaram do aspecto da mulher. Era alta, com o cabelo metido num turbante. Vestia calças compridas, uma camisola e um casaco curto. Caminhava rapidamente e eles podiam ouvir-lhe a voz; era áspera e autoritária.

— É com certeza a Magda! — pensou o Júlio. — Não me agrada o ar dela!

O pequeno voltou-se com cuidado para os três companheiros. A Zé segurava o Tim pela coleira, com medo que ele resolvesse mostrar-se.

— Oiçam, — começou o Júlio. — Têm que se conservar imperturbáveis. Vamos aparecer, conversando uns com os outros animadamente, para eles nos verem. Se nos perguntarem o que estamos aqui a fazer, bem sabem o que devem responder. Digam todos os disparates que lhes apetecer para eles se convencerem de que formamos um grupo de miúdos inofensivos. Se nos fizerem algumas perguntas embaraçosas, deixem-me responder. Entendido?

Fizeram um sinal afirmativo. Depois o Júlio avançou, falando com o David. — Cá estamos de novo, perto da casa velha! Meu Deus, esta manhã ainda parece mais feia!

Depois apareceram a Zé e o Tim seguidos pela Ana, um pouco nervosa. Neste género de coisas ela não conseguia manter-se tão calma como os outros.

O homem e a mulher pararam de repente, enquanto viram as crianças e trocaram algumas palavras. O homem encolheu os ombros.

Os pequenos caminhavam em direcção a eles, tagarelando sem parar, como o Júlio mandara. A mulher chamou-os com uma voz aguda.

— Quem são vocês? Que fazem aqui?

— Andamos a passear, — disse o Júlio, parando. — Temos uns dias de férias.

— E para que escolheram este sítio? — perguntou a mulher. — Isto é uma propriedade particular.

— Está enganada, — disse o Júlio. — Isto é apenas o que resta duma casa, que em tempos ardeu. Qualquer pessoa pode aqui vir. E nós não estamos a fazer mal nenhum. Queremos dar uma volta por aquele lago, pois parece curioso.

O homem e a mulher entreolharam-se. Era evidente que a ideia dos pequenos de andarem pelo lago os contrariava muito. A mulher tornou a falar.

— Não podem passear pelo lago. É muito perigoso. É proibido andar-se ali de barco ou tomar banho.

— Ninguém nos disse isso, — respondeu o Júlio, fingindo-se admirado. — Indicaram-nos o caminho para aqui e ninguém nos falou nos perigos do lago. Devem estar mal informados.

— Queremos ver as libelinhas, — acrescentou a Ana, vendo uma a saltar sobre a água. — Gostamos muito de bichinhos.

— E disseram-nos que há veados por estes sítios, — disse a Zé.

— E potros bravos, — continuou o David. — Vimos ontem alguns. São lindos! Também já os viu?

Este palavreado todo parecia ainda aborrecer mais o homem e a mulher do que as respostas do Júlio. O homem falou com rudeza.

— Parem com essas parvoíces. Não é permitido entrar aqui. Vão-se embora antes que os obriguemos.

— Então porque estão os senhores aqui, se não é permitido o acesso a ninguém? — perguntou o Júlio com um tom decidido. — Não falem connosco dessa maneira! *

— Saiam daqui, já lhes disse! — exclamou o homem, gritando, furioso. Deu dois ou três passos em direcção aos pequenos, com aspecto ameaçador. A Zé largou a coleira do Tim.

E o cão também deu dois passos em frente, com o pêlo eriçado e rosnando. O homem recuou.

— Segurem o cão, — ordenou ele. — Parece feroz.

— Olhe que o aspecto corresponde à verdade, — declarou a Zé. — E não o seguro enquanto o senhor aqui estiver. Pode convencer-se disso!

O Tim avançou mais uns dois ou três passos, continuando a rosnar e mantendo-se firme e ameaçador. A mulher mudou logo de táctica.

— Está bem, meus meninos, — disse ela.

— O meu amigo irritou-se por um momento. Chamem o vosso cão.

— Enquanto aqui estiverem não o chamo, — respondeu a Zé. — Quanto tempo tencionam demorar-se?

— Tem alguma coisa com isso? — perguntou o homem. Mas não acrescentou mais nada porque o Tim recomeçou logo a rosnar.

— Vamos comer qualquer coisa, — disse o Júlio em voz alta, para os companheiros.

— Afinal temos tanto direito de estar aqui como estes senhores. Não lhes demos confiança nem nos metemos com eles.

Os quatro pequenos afastaram-se. O Tim continuava à solta. Ainda ladrou por uma ou duas vezes, aproximando-se daquele par antipático. O Tim era um cão enorme e percebia-se que tinha muita força! O homem e a mulher deitaram um olhar zangado aos pequenos quando estes se afastaram, ficando a vê-los dirigirem-se para a casa em ruínas.

— Ficas de guarda, Tim, — disse a Zé, quando lá chegaram, apontando para a estrada.

O Tim percebeu e ali ficou, com ar ameaçador, de dentes arreganhados.

Os pequenos desceram à cave. Olharam em redor para verem se alguém teria lá entrado na sua ausência; mas tudo se encontrava nos mesmos lugares.

— Naturalmente ainda nem repararam nas adegas, — dise o Júlio. — Espero que tenha sobrado bastante pão. Estou com fome. Quem me dera comer hoje um almoço como o de ontem! E, mudando de assunto, sempre lhes digo que a Magda e o David Malandrão formam um par muito antipático.

— Também acho, — concordou o David.

— Não suporto a Magda. Tem uma voz ordinária e desagradável e uma expressão dura. Ui!

— Eu acho o David Malandrão ainda pior, — comentou a Ana. — Parece um gorila, com os seus ombros largos num corpo tão pequeno. E porque será que não corta o cabelo?

— Acha que lhe fica bem assim, julgo eu,

— sugeriu a Zé, pondo manteiga nas fatias de pão. — O seu apelido devia ser Chimpanzé. Ainda bem que temos o Tim connosco.

— Também acho. — concordou a Ana. — E ele detesta-os, não lhes parece? Estou convencida de que não se atrevem a aproximar-se da porta, com o Tim ali.

— Por onde andarão eles? — perguntou o David, servindo-se duma grande fatia de pão com manteiga e de carnes frias. — Vou ver se os descubro.

O pequeno subiu as escadas e voltou passado um instante. — Tenho a impressão de que foram para o telheiro dos barcos, — disse ele. — Só vi um deles por um momento, mas pareceu-me que ia naquela direcção. Naturalmente vão à procura do Joana Vaidosa.

— Vamo-nos sentar, comendo e conversando sobre o que devemos fazer agora, — disse o Júlio. — E também para pensarmos no que eles farão, pois isso é muito importante. Eles devem ser capazes de decifrar o que está escrito no papel melhor do que nós. Se repararmos no que fazem talvez consigamos concluir o que devemos nós fazer.

— Lá isso é verdade, — disse o David. — O mapa que o Nélio mandou deve ter um significado para o David Malandrão e para a Magda, tal como a mensagem.

O David ia mastigando o pão, pensando e tornando a pensar; mais uma vez tentava decifrar o misterioso papel.

— Acho que em princípio devemos seguir o nosso plano para esta tarde, — disse o Júlio, depois dum pequeno silêncio. — Vamos pôr a jangada a flutuar e seguimos nela para o lago. É uma coisa aparentemente inofensiva. Podemos ir observando as margens e se a Magda e o David Malandrão estiverem a andar de barco, também podemos não os perder de vista.

— Boa ideia, — aprovou a Zé. — De qualquer maneira vai ser uma tarde divertida. Agrada-me muito o passeio de jangada e espero que ela seja forte e segura.

— É com certeza, — disse o David. — Passa-me o bolo, Zé e não guardes nenhum bocado para o Tim. É mal empregado para ele!

— Não concordo, — disse a Zé. — Bem sabes que ele gosta muito!

— Pois sim, mas continuo a dizer que é mal empregado, — afirmou o David. — Foi boa ideia trazermos um bolo tão grande. Ainda há alguns biscoitos?

— Bastantes, — disse a Ana. — E chocolates também.

— Óptimo! — exclamou o David. — Espero que as nossas provisões não acabem por enquanto. Só lamento que a Zé esteja com um colossal apetite.

— E o teu? — disse a Zé, indignada, pois não suportava os gracejos do primo.

— Calem-se, vocês os dois, — pediu o Júlio. — Vou encher o jarro com água para preparar mais laranjada. Dêem-me qualquer coisa para levar ao Tim.

Demoraram cerca de meia hora a almoçar. Depois resolveram ir tirar a jangada do telheiro dos barcos e levá-la até ao largo, se conseguissem, pois bem sabiam que devia ser pesada.

Deixaram a casa em ruínas e foram para o telheiro. O Júlio, de repente, viu qualquer coisa no lago.

— Reparem! — exclamou ele. — Tiraram um dos barcos do telheiro, o único que não estava meio afundado, calculo eu. O David Malandrão vai a remar com energia.

APOSTO que andam à procura do Joana Vaidosa!

Todos pararam, a olhar. O coração do David sobressaltou-se. A Magda e o David Malandrão encontrariam primeiro aquilo que ela e os outros três também procuravam? Saberiam onde estava o Joana Vaidosa?

— Vamos! — disse o Júlio. — É melhor despacharmo-nos, se não queremos perdê-los de vista. Talvez estejam a remar para onde está escondido o Joana Vaidosa!

Foram buscar a jangada. O Júlio percebeu logo que um dos barcos já ali não estava. Era o Maria Alegre, o único em estado de ser utilizado.

Os quatro conseguiram levar a jangada até à beira do estrado de madeira.

— E agora larguem-na com cuidado, — disse o Júlio. — Lá vai ela!

E a jangada caiu na água dando um grande chapão. Ali ficou a flutuar, parecendo bem forte e impaciente por ir até ao lago.

— Vão buscar os remos, — disse o Júlio. — Depois podemos partir.

 

                   NA JANGADA

HAVIA quatro remos próprios para jangada. O David foi buscá-los e cada um dos pequenos ficou com um. O Tim olhava desconfiado para a jangada. Que seria aquilo? Com certeza não esperavam que ele fosse passear naquela coisa flutuante.

O Júlio saltou para a jangada, não a deixando afastar-se. Ajudou a Ana e a Zé também saltou.

O David foi o último, ou melhor, foi o penúltimo, porque o Tim ainda estava de fora.

— Vamos, Tim! — exclamou a Zé. — É segura! Não pertence à espécie de barcos a que estás habituado mas serve para o mesmo. Vamos, Tim!

O Tim saltou e a jangada balançou imenso. A Ana foi forçada a sentar-se e deu uma gargalhada.

— Meu Deus! O Tim é tão brusco! Está quieto, Tim! A jangada não tem tamanho suficiente para andares a passear.

O Júlio empurrou a jangada para fora do telheiro. Ela ficou batendo contra o estrado e acabou por sair do canal.

— Lá vamos nós! — disse o Júlio, remando com destreza. — Agora não reme ninguém enquanto eu não disser. Remo sozinho até chegarmos ao lago propriamente dito.

Estavam-todos sentados sobre a jangada, menos o Tim, que se mantinha de pé, muito interessado em ver a água passar tão rapidamente. Então aquilo sempre seria um barco? Conhecia vários, mas em nenhum deles a água ficava tão próxima. O Tim meteu uma pata dentro do lago e depois deitou-se com o focinho quase dentro da água.

— Tu és um cão muito engraçado, Tim! — disse a Ana. — Mas não te levantes muito de repente, podes-me deitar à água.

O Júlio continuou a remar sozinho, até que a jangada saiu do canal. Os pequenos olharam em volta, para verem se descobriam o David Malandrão e a Magda.

— Ali vão eles! — exclamou o Júlio. — Mesmo no meio do lago, remando com força. Vamos segui-los? Assim, se eles souberem onde está o Joana Vaidosa, também nós ficaremos a saber.

— Tens razão, — disse o David. — Não é melhor remarmos agora todos? Se não nos apressamos vamos perdê-los de vista.

Começaram todos a remar mas a jangada baloiçou duma maneira assustadora.

— Eh! Parem! — gritou o Júlio. — Estão em sentidos contrários. Temos que manejar os remos a compasso. O David e a Ana remam dum lado e eu e a Zé do outro. Prestem atenção e parem um momento, quando a jangada der muito balanço.

Depressa apanharam o jeito e por isso a jangada seguiu sempre em frente deslizando suavemente. Como era divertido! Ficaram cheios de calor e tiveram vontade de tirar as camisolas.

O sol estava muito quente e não havia vento; era uma encantadora tarde de Outubro.

— Eles pararam, — disse a Zé, de súbito. — Estão a ver qualquer coisa. Acham que eles têm uma folha de papel igual à nossa, com os mesmos traços e estarão a examiná-la? Quem me dera saber!

Deixaram de remar, olhando na direcção do barco onde estava a Magda e o companheiro. Era certo que eles examinavam qualquer coisa com muita atenção. Mas estavam demasiado longe para os pequenos poderem perceber se seguravam uma folha de papel.

— Vamo-nos aproximar deles o mais que pudermos! — disse o Júlio, começando a remar. — Calculo que vão ficar furiosos quando nos virem tão perto. Mas é impossível evitarmos que nos vejam.

Remaram com energia e chegaram por fim muito perto do barco. O Tim ladrou; a Magda e o David Malandrão olharam logo em volta e viram a jangada com os quatro pequenos. Fitaram-nos, irritadíssimos.

— - Olá! — gritou o David, acenando com um remo. — Tirámos a jangada para fora. Anda muito bem. O vosso barco também é bom?

A Magda ficou vermelha de cólera.

— Hão-de meter-se num bom sarilho por se servirem da jangada sem autorização, — gritou ela.

— E a quem é que a senhora pediu autorização para se servir do barco? — gritou-lhe o Júlio. — Diga-nos, que nós também vamos pedir autorização a essa pessoa para nos emprestar a jangada.

A Zé riu-se. A Magda fez um gesto de impaciência e o David Malandrão parecia ter vontade de atirar com os remos para cima dos pequenos.

— Afastem-se de nós, — gritou ela. — Não quero que os meninos estraguem a nossa tarde!

— Mas nós queremos tornar-nos vossos amigos! — disse o David, fazendo a Zé rir outra vez.

A Magda e o David Malandrão trocaram algumas palavras rapidamente. Deitaram um olhar à jangada e depois a Magda deu uma ordem ao David Malandrão. Este voltou a pegar nos remos e recomeçou a remar, parecendo bastante zangado.

— Vamos segui-los, — ordenou o Júlio. Os quatro começaram a remar mais uma vez, seguindo atrás do barco. — Talvez agora consigamos perceber alguma coisa.

Mas não conseguiram. O David Malandrão levou o barco para o porto da margem ocidental, e a jangada seguiu-o. Depois voltou para o meio do lago e a jangada tornou a imitá-lo, embora as crianças estivessem muito cansadas com o esforço para se manterem a pouca distância.

O David Malandrão remou direito à margem leste e ali ficou até as crianças se aproximarem. Depois tornou a afastar-se.

— Andam a exercitar-se, não? — gritou a mulher na sua voz desagradável. — Vai fazer-lhes muito bem!

O barco voltou a dirigir-se para o meio do lago. — Que maçada! — resmungou o David. — Tenho os braços tão cansados que mal aguento os remos. Que andam eles a fazer?

— Acho que resolveram não procurar o Joana Vaidosa enquanto aqui estivermos, — disse o Júlio, aborrecido. — Estão apenas a cansar-nos.

— Se é isso que eles querem, não entro na brincadeira, — declarou o David, largando o remo e deitando-se de costas com os joelhos levantados, cansadíssimo.

Os outros imitaram-no. Estavam todos muito fatigados. O Tim distribuiu lambedelas por todos eles, para os animar, e depois sentou-se em cima da Zé. Ela afastou-o com violência e o Tim ia caindo à água.

— Tim! Mesmo em cima do meu estômago! — exclamou a Zé, indignada. — Que grosseiro!

O cão ficou muito atrapalhado com a descompostura da sua dona e voltou a lambê-la. Estava tão cansada que nem o afastou.

— Que aconteceu ao barco? — perguntou a Ana. — Estou cansada de mais para me sentar a olhar para ele!

O Júlio sentou-se. — Ai, as minhas costas! Onde estará o maldito barco? Lá vai, na direcção de casa ou talvez do telheiro. Por agora desistiram de procurar o Joana Vaidosa.

— Ainda bem, — disse a Ana. — E nós talvez pudéssemos fazer o mesmo, pelo menos até amanhã. Que resolves, Júlio?

— Acho melhor voltarmos, — disse o Júlio. — Agora já é tarde para recomeçarmos a examinar as margens do lago e além disso parece-me que não vale muito a pena. O par do barco não parecia dirigir-se para as margens, a não ser quando resolveram brincar connosco para nos cansar.

— Então vamo-nos embora, — pediu a Zé. — Mas primeiro preciso descansar um pouco. Tim, deito-te à água se continuas em cima das minhas pernas.

De repente ouviu-se um mergulho. A Zé sentou-se logo, aflita. O Tim não estava na jangada!

Nadava no lago, parecendo muito satisfeito.

— Olhem! Preferiu saltar por si antes que o empurrássemos! — disse o David, rindo-se para a Zé.

— Foste tu que o empurraste! — - exclamou a Zé, zangada.

— Não fui, — afirmou o David. — Ele quis dar um mergulho. Está a divertir-se imenso. E se atirássemos uma corda ao Tim para ele puxar a jangada para terra? Depois era mais fácil remar.

A Zé ia dizer o que achava daquela ideia quando reparou no sorriso trocista do David. Deu-lhe um pontapé.

— Não me arrelies, David. Olha que te dou um empurrão!

— Ora experimenta! — respondeu logo o David. — Sempre quero ver quem vai parar à água primeiro.

A Zé perdia a calma quando a provocavam. Levantou-se dum pulo e atirou-se ao David que esteve muito arriscado a dar um mergulho.

— Estejam quietos, — ordenou o Júlio, severo. — Bem sabem que não têm roupa para mudar. E não quero levá-los para casa com bronquites ou pneumonias. Pára com isso, Zé.

A Zé percebeu que ele estava a falar a sério e largou o David. Passou as mãos sobre o cabelo curto e deu uma gargalhada.

— Muito bem, sr. doutor! — disse ela, sentando-se calmamente. Depois pegou no remo.

O Júlio também agarrou no seu. — Vamo-nos embora, — disse ele. — O sol já anda baixo. Em Outubro parece descer com uma velocidade enorme.

O Tim voltou para a jangada, todo molhado, e os pequenos começaram a remar. A Ana achava que a tarde estava maravilhosa. Olhava em redor com ar sonhador, enquanto remava. O lago tinha um lindo tom azul-escuro e as ondulações que eles faziam com os remos tornavam-se prateadas ao afastarem-se da jangada.

A pequenita olhava para o cimo das árvores que cresciam na margem. O céu tornava-se rosado. Sobre uma alta encosta, a cerca de um quilómetro, viu qualquer coisa que lhe chamou a atenção. Parecia uma pedra alta. Apontou para lá.

— Repara, Júlio, — disse a Ana. — Que será aquela pedra? É um marco geodésico? Deve ser muito grande.

O Júlio apontou para onde ela estava a apontar. — Aquilo? — disse ele. — Não sei o que seja.

— Parece uma pedra muito alta, — disse o David, reparando também.

— Uma pedra alta, — repetiu a Ana, pensando onde ouvira dizer o mesmo, anteriormente. — Uma pedra... Oh! já sei! Estava escrito no papel, no mapa que deram ao David. Pedra Alta! Vocês não se lembram?

— É verdade, — disse o David, olhando para a pedra distante, com interesse. Mas a jangada afastou-se um pouco e umas árvores encobriram a pedra.

— Pedra Alta, — disse o Júlio. — Pode ser apenas uma coincidência. No entanto devemos pensar no caso. Que engraçado termos de repente reparado nela.

— Terão enterrado ali as coisas que roubaram? — perguntou a Zé, duvidosa.

O Júlio abanou a cabeça. — Isso não! — disse ele. Devem estar escondidas em qualquer sítio designado naquele mapa misterioso. Remem todos com força! Temos que chegar depressa.

 

                   NÃO FAÇAS AOS OUTROS...

Quando chegaram ao telheiro não viram nem a Magda nem o David Malandrão. Mas o barco, de que estes se tinham servido, lá estava, amarrado em frente dos outros dois, no mesmo sítio em que os pequenos o tinham visto pela primeira vez.

— Eles já voltaram, — disse o Júlio. — Onde estarão agora? É melhor não levarmos para o telheiro esta jangada, pois pesa imenso e eu sinto-me sem força nenhuma nos braços. Levamo-la para perto dum arbusto e amarramo-la ali.

Todos acharam a ideia esplêndida, e puseram-na em prática.

Depois dirigiram-se para a casa em ruínas, olhando em volta na esperança de verem a Magda e o David Malandrão. Mas destes não se via o menor sinal.

O Tim seguia à frente, sem ladrar e isso significava que tudo corria bem; mas ao chegarem às escadas da cave, rosnou!

— Que se passa? — perguntou o Júlio. — Está alguém lá em baixo, Tim?

O Tim correu pelas escadas em direcção à cave. Começou a ladrar. Mas não ladrava como era costume quando queria avisar que havia perto pessoas desconhecidas. Desta vez era um ladrar zangado e aborrecido, como se qualquer coisa não estivesse bem.

— Naturalmente a Magda e o David Malandrão andaram por aqui e descobriram onde é o nosso quartel-general, — disse o Júlio, enquanto descia a escada atrás do Tim. Quando chegou à cave, acendeu a lanterna.

As camas de folhas, as capas impermeáveis, os cobertores e os sacos, tudo continuava na mesma. Era como se ninguém lhes tivesse tocado. O Júlio acendeu as velas que estavam sobre a chaminé.

— Que tens, Tim? — perguntou a Zé, entrando na cave. — Ainda estás a ladrar. Porquê?

— Talvez ele percebesse pelo cheiro que a Magda e o David Malandrão estiveram aqui, — lembrou o David. — Olha como ele cheira tudo. Com certeza que esteve cá alguém.

— Algum de vocês tem fome? — perguntou a Ana. — Apetece-me comer uma fatia de bolo e uns biscoitos.

— Está bem, — disse o Júlio, abrindo o armário onde tinham guardado a comida.

Mas não estava lá nada. Além de louça que pertencia à casa não havia mais nada no armário! O pão, as bolachas, o chocolate, tudo desaparecera.

— Que aborrecimento! — exclamou o Júlio, zangado. — Olhem para isto! Que malandros! Levaram a nossa comida. Nem sequer nos deixaram um só biscoito.

Que parvos fomos nós em não ter pensado que eles nos podiam fazer uma coisa destas!

— E eles foram bem espertos, — disse o David. — Sabem que nós não podemos ficar aqui sem comida. É uma boa maneira de nos pôr a andar. Já é muito tarde para arranjarmos qualquer coisa de comer e, se nos formos embora, amanhã já eles poderão fazer o que quiserem, completamente à vontade.

Os pequenos sentiram-se desolados. Estavam com fome e muito cansados. Um bom jantar dar-lhes-ia outra disposição. A Ana deitou-se na sua cama de folhas e suspirou.

— Quem me dera ter deixado uma «tablete» de chocolate na minha saca, — disse ela. — Mas não sobrou nenhuma. E o pobre Tim também deve ter fome. Olha para ele a cheirar o armário e a olhar para a Zé! Ó Tim! Não encontras aí nada. O armário está vazio.

— Para onde terão ido aqueles dois patifes? — perguntou o Júlio, irritado. — Vou dizer-lhes o que penso das pessoas que vêm roubar comida aos armários dos outros.

— Béu, — fez o Tim, concordando plenamente.

O Júlio subiu as escadas, furioso. Só queria saber onde estariam a Magda e o David Malandrão. Ao chegar lá fora olhou em volta e viu logo onde era.

Duas pequenas barracas de campanha tinham sido armadas debaixo dumas árvores frondosas. Era portanto ali que os dois iam dormir. O Júlio ainda esteve indeciso se devia ou não ir falar com eles. Por fim decidiu-se.

Mas quando chegou com o Tim ao pé das barracas, percebeu que não estava lá ninguém. Viam-se uns cobertores estendidos no chão e um fogareiro tosco com uma cafeteira em cima. Ao fundo das barracas havia uns objectos cobertos com um lençol.

O Júlio deu uma olhadela para dentro das barracas e depois começou a ver se descobria para onde teriam ido a Magda e o David Malandrão, e viu-os a passear por entre o arvoredo.

Naquela altura afastavam-se e acabaram por se sentar perto do lago. Então o Júlio desistiu de ir ter com eles e voltou para junto dos companheiros. O Tim deixou-se ficar lá fora, correndo satisfeito dum lado para o outro.

«Trouxeram duas barracas, — disse o Júlio entrando na cave. — Não há dúvida de que só se vão embora depois de conseguirem o que procuram. Agora não estão nas barracas. Sentaram-se ao pé do lago.

— Onde está o Tim? — perguntou a Zé. — Não o devias ter deixado lá fora, Júlio. Podem fazer-lhe mal.

— Aí vem ele, — disse o Júlio ouvindo o cão aproximar-se. Este desceu as escadas e correu para a Zé.

— Traz qualquer coisa na boca! — notou a Zé, surpreendida. O Tim largou no colo dela o que trazia. A Zé deu um grito.

— É uma lata com bolachas! Onde terá ido arranjá-la?

O Júlio desatou a rir. — Com certeza trouxe-a duma das barracas, — disse ele. — Eu vi qualquer coisa coberta com um pano; devia ser a comida deles. Bem, bem, não faças aos outros o que não queres que te façam a ti; roubaram a nossa comida e agora o Tim roubou-lhes a deles!

— Trocar não é roubar, — disse o David, rindo. — É bem feito. Olha, o Tim desapareceu outra vez.

Mas o Tim voltou daí a um bocado com uma coisa embrulhada num papel.

Era um grande bolo. Os quatro desataram à gargalhada. — Tim, tu és formidável!

O Tim gostou do elogio. Voltou a desaparecer regressando em breve com uma caixa que continha um esplêndido empadão de carne. Os pequenos nem queriam acreditar no que viam.

— Isto é um milagre, — exclamou a Ana.

— Precisamente quando eu me conformara em passar fome durante horas! Vamos já comê-lo.

— Acho que não tem mal nenhum, — disse o Júlio, decidido. — Roubaram a nossa comida, portanto nós merecemos a deles. Meu Deus! Não me digam que o Tim desapareceu outra vez!

Era verdade. O Tim estava-se divertindo imenso. Daquela vez voltou com um bocado de presunto.

Os pequenos não percebiam como o Tim conseguiu não o comer pelo caminho.

— Tem graça ele trazer a comida na boca e não a provar, — disse o David. — O Tim é muito melhor do que eu, que sempre havia de dar uma lambedela se estivesse no lugar dele.

— O melhor é não o deixar sair outra vez,

— disse o Júlio quando o Tim tornou a subir as escadas, com o rabo a dar a dar. — Já temos comida de mais em troca da nossa.

— Vamos só ver o que ele traz agora, — pediu a Ana. — Depois não o deixamos sair mais.

O Tim voltou com uma grande lata. A Zé abriu-a.

— «Scones» e queijadas, — disse ela. — Tim, tu és muito, muito esperto e por isso vamos ter um belo jantar. Mas não voltas a ir buscar mais coisas porque nós já temos bastantes. Percebes? Deita-te aqui para jantares, e porta-te bem.

O Tim estava ansioso por que lhe dessem de comer. Devorou um bocado de presunto, «scones» e bolo. Depois foi até à cozinha, saltou para cima do lava-loiças e bebeu a água que lá havia. Mas a certa altura começou a ladrar.

Os pequenos foram logo ter com ele, subindo a correr as escadas de pedra. Lá fora, prudentemente a certa distância, estava o David Malandrão.

— Os meninos foram-nos tirar alguma coisa? — gritou ele.

— Não lhes tirámos nada mais do que o senhor nos tirou a nós, — respondeu-lhe o Júlio em voz alta. — Foi uma troca, bem sabe.

— Como se atreveram a entrar nas nossas barracas? — perguntou raivosamente o David Malandrão. A luz do crepúsculo batendo-lhe nos cabelos desgrenhados dava-lhe um aspecto muito estranho.

— Nós não entrámos nas vossas barracas. O nosso cão é que lá foi e trouxe-nos a comida, — respondeu o Júlio. — Não se aproxime, pois ele está ansioso por se atirar a si. E previno-o de que ele fica de guarda esta noite; por isso não venha para aqui com brincadeiras. O cão é forte e feroz como um leão.

— Rrrrm, — fez o Tim tão ferozmente que o homem se afastou sem dizer uma palavra, cheio de medo.

Os pequenos voltaram à cave para terminar o delicioso jantar. O Tim ficou de plantão no cimo das escadas.

— É bom que ele durma ali esta noite, — disse o Júlio. — Aquele par não me inspira confiança nenhuma. Podemos dar um dos nossos casacos ao Tim para ele se deitar em cima. Não acham que o nosso passeio se transformou numa aventura? Custa tanto pensar que temos de ir para o colégio na terça-feira!

— É necessário encontrar primeiro as coisas roubadas, — disse a Ana. — Tem que ser! Vamos examinar o papel outra vez, Júlio? Devemo-nos certificar de que vem lá marcada a Pedra Alta.

Desdobraram o papel e estudaram-no uma vez mais.

— Sim, a Pedra Alta está marcada no extremo duma das linhas, — disse o Júlio. — O Monte Agudo está no outro extremo. Deixa ver se ele vem no nosso mapa.

Abriram o mapa. Imediatamente a Ana apontou com o dedo. — Cá está ele. No lado oposto àquele em que vimos, do lago, a Pedra Alta. Monte Agudo dum lado, Pedra Alta do outro. Não há dúvida de que isto tem um significado.

— Com certeza, — disse o Júlio. — São referências para indicar onde estão escondidas as coisas roubadas. Há quatro pontos de referência : Pedra Alta, Monte Agudo, Chaminé e Campanário.

— Ouçam! — exclamou de repente o David. — Ouçam! Já sei como se interpreta o mapa. É bem fácil!

Os outros olharam para ele, surpreendidos e incrédulos.

— Então explica lá isso, — pediu o Júlio. — Não creio que sejas capaz.

 

                     UMA DESCOBERTA EXTRAORDINÁRIA

— VAMOS reunir todos os dados conhecidos, — disse o David, muito entusiasmado. — Duas Árvores é aqui; o Lago Negro é o sítio onde devem estar escondidas as coisas roubadas; Joana Vaidosa é um barco que contém o roubo e está escondido em qualquer parte do Lago Negro.

— Continua, — pediu o Júlio, quando o David fez uma pausa para coordenar as ideias.

— A Magda é naturalmente uma velha amiga do Nélio, — disse o David. — E também conhece todos os dados.

Depois o pequeno pôs um dedo sobre a folha de papel. — E agora estes dados. Oiçam! Nós vimos a Pedra Alta quando estávamos no lago, não é verdade? Pois muito bem. Deve haver ALGUM sítio do lago donde se possa ver não apenas a Pedra Alta mas também o Monte Agudo, a Chaminé e o Campanário, embora eu não saiba o que estes sejam. Deve haver um só lugar donde se vejam estas quatro coisas ao mesmo tempo, e é nesse lugar que devemos procurar o tesouro.

Fez-se um silêncio de admiração. O Júlio soltou um grande suspiro e deu uma palmada nas costas do David.

— Sem dúvida! Que idiotas somos por não termos pensado nisso há mais tempo. O Joana Vaidosa deve estar no lago, à superfície ou no fundo, no sítio donde se podem ver os quatro pontos marcados no mapa. Resta-nos apenas procurá-lo!

— Sim, mas não te esqueças de que a Magda e o David Malandrão também sabem o significado do mapa. E podem lá chegar primeiro, — disse o David. — E o que me parece pior é que se apanham as coisas roubadas nós não podemos fazer nada contra eles. Não somos da polícia! Eles podem ir-se embora com tudo e desaparecerem por completo.

Todos se sentiam muitíssimo entusiasmados.

— Acho que amanhã nos devemos levantar cedo, — disse o Júlio. — Logo que amanhecer. De outro modo a Magda e o David Malandrão podem lá chegar primeiro. É uma pena não termos um relógio despertador.

— Vamos na jangada e remamos até tornarmos a ver a Pedra Alta; depois, não a perdemos de vista até aparecer o tal Monte Agudo, — disse o David. — E depois fazemos por não deixar de ver o Monte Agudo e a Pedra Alta e remamos até descobrirmos uma chaminé e um campanário. Naturalmente a chaminé talvez seja a que resta da casa das Duas Árvores. Repararam que só uma ainda se mantém de pé?

— Tens razão, — disse a Ana. — Que esconderijo tão inteligente, David. Ninguém conseguiria encontrá-lo sem saber qualquer coisa sobre o segredo. Isto é terrivelmente emocionante.

Falaram sobre aquele assunto durante algum tempo e depois o Júlio disse que deviam tentar dormir, se não nunca se levantariam cedo na manhã seguinte.

Acomodaram-se nas suas camas de folhas secas. O Tim ficou sobre o casaco do Júlio, no degrau mais alto das escadas que davam para a cozinha. Ele achava uma bela ideia dormir ali naquela noite tão bonita.

Estavam todos cansados e adormeceram num instante. Nada os perturbou durante a noite. A raposa voltou novamente à casa em ruínas mas o Tim nem se mexeu. Limitou-se a dar uma rosnadela e a raposa fugiu logo, arrastando a sua longa cauda atrás de si.

Chegou a manhã e a luz do dia entrou pelas aberturas das portas e janelas agora desaparecidas. O Tim espreguiçou-se e foi até à entrada. Olhou para as duas barracas. Não se via ninguém por ali. Desceu à casa e o barulho das suas patas acordou logo o David e o Júlio.

— Que horas são? — perguntou o Júlio, lembrando-se imediatamente de que era preciso levantarem-se cedo. — Sete e meia! Acordem, meninas! Já há luz do dia. Temos muito que fazer.

Levantaram-se apressadamente, pentearam-se, lavaram os dentes e deram uma escovadela nos fatos. A Ana arranjou qualquer coisa para comerem: presunto, «scones» e uma fatia de bolo para cada um.

Todos beberam um pouco de água e ficaram prontos para partir.

Não se via ninguém próximo das duas barracas.

— Óptimo! — disse o Júlio. — Seremos os primeiros a chegar!

Empurraram a jangada para o lago e lá foram eles, o Tim também, cada pequeno com o seu remo, todos muito entusiasmados.

— Vamos até ao sítio em que a Ana viu ontem a Pedra Alta, — disse o Júlio.

Remaram com energia, embora tivessem os braços cansados do passeio da véspera.

Foram até ao meio do lago e procuraram a Pedra Alta. Mas não aparecia em parte alguma! Bem apuravam a vista, mas durante bastante tempo continuaram a não a ver. A certa altura o David soltou um grito. — Apareceu agora mesmo! Reparem, quando passámos por aquelas árvores altas da margem mais próxima começou a ver-se a Pedra Alta. Antes disso estava escondida.

— Bem, então agora eu paro de remar para manter a Pedra Alta à vista. Se desaparecer eu aviso-os e vocês remam para trás. David, tu continuas a remar e ao mesmo tempo vais procurando um monte que possa ser o Monte Agudo, do lado oposto à Pedra Alta. Não me atrevo a desviar a vista da Pedra Alta, pois pode desaparecer.

— Está bem, — disse o David, remando, enquanto procurava o Monte Agudo com a maior atenção.

— Lá está ele! - exclamou de repente.

— Deve ser aquilo! Reparem, é um monte pontiagudo. Júlio, continuas a ver a Pedra Alta?

— Continuo, — disse o Júlio. — Não desvies os olhos do Monte Agudo. Agora é a vossa vez, meninas. Zé, vai remando e vê se consegues descobrir o Campanário.

— Já estou a ver um! — exclamou a Zé e por um só momento os rapazes desviaram os olhos do Monte Agudo e da Pedra Alta para olharem para onde a Zé apontava. Viram o campanário duma igreja distante, brilhando ao sol da manhã.

— Óptimo, óptimo, óptimo, — dizia o Júlio. — Agora, Ana, procura a Chaminé; vira-te para o fundo do lago, na direcção da casa. Consegues ver a sua única chaminé?

— Ainda não, — disse a Ana. — Remem um pouco mais para a esquerda. Eu disse «esquerda», Zé! Sim agora já vejo a Chaminé! Parem todos de remar. Estamos no ponto desejado!

Pararam de remar mas a jangada continuou a deslizar sobre a água e a Ana voltou a perder a Chaminé.

Tiveram de remar um pouco para trás até que a Chaminé voltasse a aparecer. Nessa altura a Zé perdera o seu Campanário!

Por fim as quatro coisas estavam novamente à vista e a jangada parecia completamente parada sobre as águas calmas do lago. — Vou deitar qualquer coisa até ao fundo, para marcar este ponto, — disse o Júlio, sempre com os olhos postos na Pedra Alta. — Zé, tu conseguirás olhar para o Campanário e para a Pedra Alta ao mesmo tempo? Tenho que ver o que faço só por uns momentos.

— Vou tentar, — disse a Zé, olhando ora para a Pedra Alta, ora para o Campanário, desejando ardentemente que nenhum deles desaparecesse, se a jangada deslizasse sobre a água.

O Júlio não perdia tempo. Tirara do bolso a lanterna e o canivete e atara-os um ao outro com um cordel. — Não tenho cordel bastante, David, — disse ele. — Trazes contigo algum?

O David meteu a mão no bolso, sempre com os olhos fixos no Monte Agudo e passou um bocado de cordel ao irmão.

O Júlio atou-o à ponta do que prendia o canivete e a lanterna. Depois atirou tudo para dentro da água, deixando deslizar o cordel à medida que o canivete e a lanterna desciam. Estes acabaram por assentar no fundo do lago e o cordel parou.

O Júlio mais uma vez rebuscou nas algibeiras. Pensava que trazia numa delas uma rolha de cortiça, onde ele talhara uma cabeça de cavalo. Encontrou-a e atou-lhe a extremidade livre do cordel. Depois atirou a rolha para a água. Esta ficou a boiar, segura pelo cordel que ia ter ao canivete e à lanterna, assentes no fundo do lago.

— Acabou-se! — disse ele, com um suspiro de alívio. — Podem olhar para onde quiserem. Já marquei este sítio e por isso não precisamos de ter os olhos pregados aos quatro pontos que interessam!

Explicou aos outros que atara o canivete à lanterna e os atirara, presos ao cordel, para o fundo do lago e que depois atara uma rolha de cortiça à outra ponta. Assim esta ficaria a flutuar indicando-lhes o sítio.

— És muito esperto, Júlio, — disse o David. — Mas quando nos afastarmos deste lugar, o que é fácil de acontecer, será muito difícil descobrir a rolha, que é tão pequena. Não será melhor atarmos-lhe qualquer coisa mais?

— Não tenho aqui mais nada que possa flutuar, — disse o Júlio. — Vocês têm?

— Tenho eu, — disse a Zé, entregando-lhe uma pequena caixa de madeira. — É aqui que guardo algumas moedas da minha colecção, — explicou ela, metendo as moedas na algibeira. — Podes ficar com a caixa. Será muito mais fácil de distinguir do que a rolha.

Todos se debruçaram sobre a borda da jangada, olhando para baixo, vendo então uma coisa surpreendente. Lá em baixo, assente no fundo do lago, estava um barco! Ficava na sombra das águas com os contornos esbatidos pela ligeira ondulação provocada pela jangada, mas era evidente tratar-se dum barco!

— O Joana Vaidosa! — exclamou o Júlio, admirado e confuso por pensar que haviam seguido tão bem as poucas indicações do mapa, que naquele momento se encontravam sobre o verdadeiro Joana Vaidosa!

— O tal Nélio deve ter vindo com as coisas roubadas, meteu-se no Joana Vaidosa e trouxe-o até aqui. Reparara bem na posição do barco e em seguida fez-lhe uns furos para o afundar com o tesouro lá dentro. Depois, deve ter nadado para terra.

— Bem arquitectado, — disse o David. — Realmente ele deve ser muito esperto. Mas pergunto-te, Júlio, conseguiremos nós trazer o barco para a superfície?

- Não faço ideia, — respondeu o Júlio.

— Não faço mesmo a menor ideia. Nem tinha pensado nisso.

O Tim, de repente, começou a ladrar.

Os quatro pequenos olharam em volta para saber o motivo.

Viram um barco que se dirigia ao sítio onde eles estavam; era o Maria Alegre, com a Magda e o David Malandrão. E os pequenos tiveram a certeza de que ambos estavam a ler os sinais na sua folha de papel, exactamente da mesma maneira que eles o haviam feito.

Estavam tão absorvidos a procurar a Pedra Alta, o Monte Agudo, a Chaminé e o Campanário que nem repararam nas crianças.

«Tenho a certeza de que nem lhes passa pela cabeça que nós temos uma folha de papel igual à deles, — disse o Júlio. — Vão ficar furiosos quando perceberem que estamos mesmo sobre o lugar que procuram! Preparem-se, que vai haver discussão!

 

                   A MAGDA E O DAVID FICAM ABORRECIDOS

O barco onde seguiam a Magda e o David Malandrão desviava-se para um lado e para o outro enquanto os dois procuravam os mesmos pontos que as crianças já haviam localizado. Os pequenos olhavam para eles e a Zé pôs a mão sobre a coleira do Tim, avisando-o assim de que não devia ladrar.

A Magda tentava não perder de vista dois pontos ao mesmo tempo e virava continuamente a cabeça dum lado para o outro. Os pequenos riam. se para eles quatro fora difícil conservar à vista todos os pontos de referência, quanto não custaria à Magda sozinha! E ainda por cima, o David Malandrão parecia não ajudar grande coisa.

O barco aproximava-se cada vez mais e eles ouviram a Magda dar ordens ao David Malandrão, que remava para onde ela dizia. A certa altura, o David Malandrão reparou nos pequenos e disse qualquer coisa à Magda, que estava de costas voltadas. Esta virou-se imediatamente, perdendo de vista os pontos para onde estava a olhar.

Ficou irritadíssima ao ver a jangada tão próxima, exactamente no sítio para onde ela queria levar o seu barco! Com medo de perder por completo os pontos para onde estava a olhar, tornou a voltar-se de costas, apressando-se a descobrir mais uma vez o Monte Agudo, a Pedra Alta e o Campanário, que continuavam à vista. Disse qualquer coisa ao David Malandrão com uma voz enraivecida e este respondeu com um sinal afirmativo, acompanhado duma expressão maldosa.

O barco aproximou-se ainda mais e os pequenos ouviram a Magda dizer: — Acho que por agora já estou a vê-la. Rema um pouco para a direita.

— Anda à procura da Chaminé — murmurou a Ana. — Agora já devem ter os quatro pontos e acabam por esbarrar connosco!

E foi o que aconteceu! O David Malandrão remou propositadamente contra a jangada e esta balouçou duma maneira assustadora. A Ana teria caído à água se o Júlio não a agarrasse.

O pequeno gritou para o David Malandrão.

— Repare no que faz, seu estúpido! Ia-nos virando a jangada! Quer alguma coisa de nós?

— Saiam do caminho, — vociferou o David Malandrão. O Tim começou a ladrar com toda a força, e então o barco afastou-se logo da jangada.

— Há muito espaço neste lago, — gritou o Júlio. — Porque vêm meter-se connosco? Não estamos a fazer-lhes mal nenhum.

— Vamos denunciá-los à polícia, — exclamou a mulher, com a cara vermelha de raiva.

— Servem-se duma jangada que não lhes pertence, dormem numa casa onde não têm direito a estar e ainda por cima roubam-nos a comida.

— Não diga disparates, — respondeu o Júlio. — E não se atreva a vir novamente esbarrar connosco. Se o fizer, soltamos o cão contra vocês. Ele não tem outro desejo.

— Rrrrm! — fez logo o Tim, mostrando a sua magnífica dentadura branca e brilhante. O David Malandrão disse umas palavras à companheira. Esta tornou a voltar-se e falou aos pequenos.

— Escutem uma coisa, meus meninos. Sejam sensatos. O meu amigo e eu viemos aqui passar um calmo fim de semana e não é agradável encontrá-los por toda a parte. Vão-se embora e conservem-se longe de nós que não apresentaremos nenhuma queixa de vocês. Fica assim combinado. Nem diremos que nos roubaram a comida.

— Vamo-nos embora quando nos apetecer, — respondeu o Júlio. — E não nos interessam nem as vossas ameaças nem as vossas combinações.

Houve um silêncio. Depois a Magda voltou a falar rapidamente com o David Malandrão.

— Estão nas vossas férias de meio do período? — perguntou ela. — Quando voltam para os colégios?

— Amanhã, — disse o Júlio. — Nessa altura ficam livres de nós. Mas queremo-nos divertir nesta jangada enquanto pudermos.

Houve mais uma breve troca de palavras entre os dois. Depois o David Malandrão remou um pouco ali à volta enquanto a Magda olhava para o fundo do lago. De repente, levantou a cabeça, fez um sinal ao David Malandrão e este remou mais uma vez para a margem do lago! Não disseram mais nada aos pequenos.

— Estou a ver o que eles decidiram, — disse o Júlio, com uma voz satisfeita. — Como sabem que nos vamos embora amanhã, esperam até se verem livres de nós e nessa altura voltam aqui e levam tranquilamente as coisas roubadas. Repararam que a Magda olhou para o fundo do lago a ver se descobria o barco? Tive tanto medo de que ela também visse a nossa marca, a rolha e a caixa de madeira! Mas felizmente tal não aconteceu.

— Não percebo porque estás tão satisfeito, — disse a Zé. — Bem sabes que não conseguiremos trazer o barco para a superfície, e pela minha parte não me agrada ter que partir amanhã, deixando aquele horrível casal ficar com o tesouro. Julgo que eles devem ter qualquer processo inteligente, de pessoas crescidas, para tirarem o barco do fundo do lago e hão-de pô-lo em prática logo que nós partirmos.

— Tu hoje não estás muito esperta, Zé, — : gracejou Júlio, vendo o barco cada vez mais distante. — Disse-lhes que nos vamos embora amanhã, esperando que se afastem e nos dêem tempo para ficarmos nós com as coisas roubadas. E acho que o conseguiremos!

— Como? — perguntaram três vozes.

O Tim também olhou para o Júlio com uma expressão de curiosidade.

— Não precisaremos de trazer para a superfície o barco todo, — disse o Júlio. — Só nos interessam os objectos roubados. Alguma coisa nos impede de irmos buscá-los? Estou convencido de que posso mergulhar até lá ao fundo e procurar qualquer saco, mala ou caixa. Se encontrar alguma volto à superfície para tomar fôlego e arranjar uma corda. Torno a mergulhar, ato uma ponta da corda ao saco e vocês podem puxá-lo cá para cima.

— Ó Júlio, parece-me tão fácil! Mas achas realizável? — perguntou a Ana.

A Zé e o David pensaram no caso cuidadosamente. Estavam ambos muito impressionados com a ideia do Júlio.

— Pode ser que seja muito mais difícil de pôr em prática do que parece, mas de qualquer modo vou tentar, — disse o Júlio, começando a despir a camisola.

A Ana experimentou a temperatura da água. Estava muito, muito fria. — Ui! Eu detestava mergulhar neste lago tão escuro e tão frio, — declarou ela. — Acho-te muito corajoso, Júlio!

— Não digas asneiras! — respondeu o Júlio. Estava pronto para entrar na água. Deu um belo mergulho de cabeça.

Os outros três observaram-no da borda da jangada. Conseguiram vê-lo até muito ao fundo, parecendo uma figura de fantasma. Manteve-se debaixo de água durante tanto tempo que a Ana começou a sentir-se preocupada.

— É impossível reter-se a respiração durante todo este tempo! — disse ela. — É impossível!

Mas o Júlio era um dos melhores nadadores e mergulhadores do seu colégio e aquilo não lhe custava. Voltou por fim à superfície, respirando com dificuldade por ter estado debaixo de água durante tanto tempo. Os outros esperaram impacientemente e o Júlio acabou por poder falar.

— Ah... estou melhor! Brrr... lá está! — disse ele, triunfante.

Ficaram todos entusiasmadíssimos.

«Mergulhei mesmo na direcção do barco e quase lá cheguei com a força do mergulho. Tive apenas de nadar umas três ou quatro braçadas. E lá estava o barco, completamente podre. Numa das extremidades vi um saco, bastante grande e apalpei-o. É de tecido impermeável ; por isso deve conter o tesouro.

— Parecia pesado? — perguntou o David.

— Dei-lhe um puxão e não consegui movê-lo, — respondeu o Júlio. — Ou está preso ou então pesa imenso. Tenho que mergulhar outra vez, atar-lhe uma corda, e voltar para a jangada. Depois damos-lhe uns puxões fortes e há-de acabar por subir até aqui.

O Júlio tremia de frio. A Ana pegou no casaco que trouxera e deu-lho, para se enxugar com ele. O David apressou-se a juntar uns pedaços de corda que havia espalhados sobre a jangada. Estavam quase todos apodrecidos e o único ainda forte não era suficientemente comprido.

— A corda não chega, Júlio, — disse o David. O Júlio estava a secar-se e olhava para a margem do lago onde ficava a casa das Duas Árvores. O pequeno franziu o sobrolho. Os outros olharam na mesma direcção.

O barco da Magda e do David Malandrão chegara àquela margem e um deles, os pequenos não percebiam qual, estava ali parado segurando uma coisa que brilhava ao sol.

— Vêem aquele brilho? — perguntou o Júlio. — Trata-se dum binóculo, por onde um deles nos está a observar. Acho que é para se certificarem de que nós não vamos descobrir o barco afundado. Nem sonham que nós já sabemos onde ele está. Até aposto que ficaram bem preocupados quando me viram mergulhar mesmo sobre o Joana Vaidosa.

— Então é isso que está a brilhar, — disse a Zé. — São as lentes dum binóculo. Mas se eles nos estão a observar não podemos trazer cá para cima o saco impermeável, Júlio! Viam-nos e ficariam à nossa espera.

— Tens razão. Nem vale a pena tentarmos, — disse o Júlio. — E de qualquer maneira, segundo verificou o David, não temos uma porção de corda suficiente. É preciso irmos buscar mais ao telheiro dos barcos.

— Mas então quando pensas ir buscar o saco ao barco afundado? — perguntou o David. — Hão-de seguir-nos com o binóculo, se voltarmos ao lago esta tarde.

— Há uma altura em que não poderão seguir-nos com o binóculo, — disse o Júlio, começando a vestir-se rapidamente. — É durante a noite. Voltaremos esta noite. E que aventura vai ser!

— Acho melhor não, — disse a Ana numa voz apagada.

— Haverá luar, — disse a Zé, entusiasmada.

— Que ideia estupenda, — declarou o David, dando uma palmada nas costas do Júlio.

- Vamo-nos embora, para eles não desconfiarem de nós e preparemos tudo para esta noite. E talvez seja prudente não os perdermos de vista, não se vá dar o caso de eles remarem até aqui ainda esta tarde.

— Isso não há-de acontecer, — afirmou o Júlio. — Com certeza não se atrevem a correr o risco de nós vermos o que eles fazem. Hão-de esperar até nos irmos embora.

— Até que o saco desapareça, — acrescentou a Zé, com uma gargalhada. — Outra coisa, espero que aqueles dois patifes não tenham ido novamente buscar a nossa comida.

— Escondi-a na adega que se segue ao nosso quarto e fechei-a à chave. Aqui está ela, — disse o Júlio, mostrando uma grande chave.

— Mas não nos disseste nada, — observou a Zé. — Ó Júlio, tu és um génio. Como consegues lembrar-te sempre de tudo?

— Pondo a inteligência a funcionar, — respondeu o pequeno, fingindo-se importante ; depois desatou a rir. — Vamo-nos embora. Se não aqueço depressa acabo por apanhar uma grande constipação.

 

                   AO LUAR

Remaram com rapidez. O David deu uma última olhadela para se certificar de que a caixa e a rolha continuavam a flutuar, marcando o sítio onde estava o barco afundado.

— Seria um transtorno enorme se esta noite houvesse muitas nuvens e a Lua não aparecesse, — disse a Zé, enquanto remava. Não conseguiríamos descobrir o Monte Agudo, a Pedra Alta, etc, e poderíamos ver-nos obrigados a remar durante horas e horas através da escuridão sem descobrirmos a caixa e a rolha.

— Não sejas pessimista, — disse o David.

— Não sou, — respondeu a Zé. — Espero que isso não aconteça.

— O tempo está outra vez muito bom, — disse o Júlio olhando para o céu.

A Magda e o David Malandrão, logo que viram as crianças de volta, foram para as barracas. O Júlio sorriu. — Devem ter dado um suspiro de alívio e vão comer qualquer coisa, — disse ele, — E eu sou capaz de ir fazer o mesmo.

Todos concordaram. Remar era um exercício violento e o ar do lago era muito forte, abrindo o apetite.

Tornaram a levar a jangada para o seu esconderijo nos arbustos. Dirigiram-se para a velha casa e desceram à cave. O Tim mais uma vez ladrou, cheirando tudo o que ali se encontrava.

— Garanto que a Magda e o David Malandrão estiveram aqui outra vez a coscuvilhar, — disse a Zé. — Naturalmente procuravam o empadão de carne e o presunto! Ainda bem que os fechaste à chave, Júlio!

O Júlio abriu a porta da adega e tirou a comida lá de dentro.

— Uma grande toupeira estava a olhar para a comida com muito interesse, — disse o pequeno, quando voltou. — O Tim também olhou para ela com interesse, mas ele agora é cauteloso com as toupeiras, pois sabe que cheiram demasiadamente mal.

Comeram a refeição ao ar livre. Já não havia laranjada e por isso beberam água fresca, tirada com a bomba.

— Sabem que falta um quarto para as três? — disse o Júlio, admirado. — Como se passou tanto tempo? Daqui a duas ou três horas ficará escuro. Deixem-me ver; a Lua estará bem alta às onze horas. Acho que devemos partir nessa altura.

— Por favor, Júlio, desiste dessa ideia, — pediu a Ana. O irmão pôs um braço à volta da pequenita.

— Bem sabes que lá no fundo não é assim que pensas, Ana, — disse ele. — Hás-de divertir-te tanto como nós. E não queres que te deixemos aqui, pois não?

— Claro que não. Acho que nem seria capaz, — disse a Ana. — Mas eu não gosto da Magda, nem do David Malandrão.

— Nós também não, — disse o Júlio alegremente. — É por isso que queremos cortar-lhes as voltas. Estamos do lado da razão e por isso vale a pena arriscarmo-nos um pouco. Agora, vejamos: Talvez seja melhor não perdermos de vista aquele simpático casal até ao escurecer, não se lembrem eles de nos fazer alguma partida. Depois podemos passar pelo sono para estarmos bem despertos à noite.

— Lá estão eles, — disse a Ana.

A Magda e o seu companheiro saíram das barracas, trocaram algumas palavras e depois afastaram-se para os campos.

— Devem ir dar uma volta, — disse o David. — Vamos jogar uma partida de críquete. Está ali um pau que pode servir de taco e eu trouxe uma bola no meu saco.

— Boa ideia, — disse o Júlio. — Ainda tenho um certo frio. A água estava geladíssima. Não sinto grande entusiasmo quando penso que tenho de mergulhar novamente esta noite.

— Não é preciso, — disse logo o David. — Desta vez vou eu.

— É melhor não. Eu sei exactamente em que ponto se encontra o saco, — respondeu o Júlio. — Mas tu podes descer comigo, se quiseres, e ajudas-me a atar a corda.

— Muito bem, — concordou o David. — Agora, atenção. Vou bater a bola.

Divertiram-se muito com o jogo. O sol baixava cada vez mais e acabou por desaparecer. Uma nuvem formou-se no céu e depressa escureceu. A Zé ficou apreensiva.

— Não te preocupes, — disse o Júlio. — O céu há-de limpar.

Antes de voltarem para a cave, o Júlio e o David foram até ao telheiro buscar o molho de cordas, que seria necessário naquela noite. Depressa encontraram uma que os satisfez. Era uma corda forte e em bom estado.

O Júlio acertara nas suas previsões sobre o tempo. O céu tornou a limpar na hora seguinte e as estrelas brilharam, cintilantes. Óptimo!

O Júlio pôs o Tim de guarda, à entrada da cozinha. Depois desceu com os companheiros para a cave escura e acendeu duas velas. Todos se acomodaram nas suas camas de folhas secas.

— Não serei capaz de dormir, — lamentou a Ana. — Sinto-me nervosa.

— Então não durmas, — disse o David. — Descansa um bocado e acorda-nos a horas.

E a Ana foi a única que não passou pelo sono. Esteve acordada, pensando naquela nova aventura. Algumas crianças metiam-se sempre em aventuras e outras nunca. A Ana achou que devia ser muito melhor ler histórias de aventuras do que vivê-las. Mas naturalmente aqueles que se limitavam a lê-las desejavam ardentemente passar por elas! Era tudo muito complicado!

A Ana acordou os outros, às dez para as onze. Primeiro abanou a Zé e depois os irmãos. Estavam a dormir tão bem que foi difícil despertá-los.

Mas em breve estavam levantados, falando muito baixinho uns com os outros.

— Onde está a corda? Bem, está aqui. É melhor vestirmos os casacos e as gabardinas. No lago deve fazer muito frio. Estão todos prontos? Agora, o maior silêncio!

O Tim fora para a cave logo que percebera que eles estavam acordados. Sabia que devia manter-se silencioso, por isso não deu nem uma rosnadela. Só ficou um pouco admirado por eles irem sair a meio da noite.

A Lua ia bem alta e embora não estivesse completamente cheia, brilhava muito. Viam-se nuvens deslizando pelo céu e de vez em quando a Lua escondia-se atrás duma delas e tudo ficava muito escuro. Mas isso só durava um ou dois minutos. Depois voltava a aparecer, tão brilhante como sempre.

— Há algum sinal dos outros? — murmurou o David.

O Júlio parou à porta e olhou para as barracas. Não, estava tudo em sossego. No entanto seria mais seguro que ele e os companheiros seguissem junto à casa e se ocultassem nas sombras.

— Agora não podemos correr o risco de que nos vejam, — sussurrou o Júlio, dando as suas ordens. — Evitem a todo o custo que lhes dê o luar em cima. E toma conta no Tim, para não se afastar de nós, Zé.

Procurando sempre seguir na sombra, os Cinco chegaram à margem do lago. A água brilhava à luz da Lua, mas o lago ainda parecia bastante escuro e aterrador. A Ana preferia que ele fizesse qualquer barulho, nem que fosse um ligeiro marulhar de ondas, mas tudo era silêncio.

Arrastaram a jangada e depois partiram, sentindo prazer em ouvir o ligeiro bater dos remos na água.

O Tim continuava intrigado. Começou a distribuir lambedelas pelos seus artigos. Gostava muito de sair depois de escurecer.

— Está uma noite de sonho, — disse a Ana, olhando em redor, para as árvores silenciosas que contornavam as margens. — Todos estes sítios são tão calmos e sossegados!

Um mocho piou muito alto, numa árvore próxima e a Ana sobressaltou-se.

— Agora não faças com que todos os mochos desatem a piar, só por falares no sossego destas margens — gracejou o Júlio. — Concordo que está uma noite de sonho. O lago parece um espelho. Dá-me ideia de que nunca teve a mais ligeira ondulação. Acham que se mantém assim durante as tempestades?

— É um lago bastante estranho, — notou o David. — Oiçam, não lhes parece melhor tomarmos atenção aos quatro pontos do mapa?

— Nós sabemos mais ou menos para onde dirigir a jangada, — disse o Júlio. - — Seguimos nesta direcção e depois veremos se aparece o Monte Agudo, etc. Estou convencido de que por enquanto vamos bem.

E tinha razão. A Zé depressa viu a Pedra Alta e depois apareceu o Monte Agudo. Não faltou muito tempo para se ver o Campanário, brilhando ao luar.

— Aposto que o Nélio veio aqui esconder o seu tesouro numa noite de lua-cheia, — disse o Júlio. — Todos os pontos indicados se podem ver com grande nitidez, até mesmo a Pedra Alta. Ainda havemos de ir ver o que é essa pedra, colocada ali em memória de qualquer coisa ou de alguém.

— Está a aparecer a Chaminé! — informou a Ana. — Temos os quatro pontos à vista. Devemos estar próximos da nossa marca.

— E estamos! — exclamou o David, apontando para uma pequena coisa que flutuava ali perto. — A rolha e a caixa! Como somos inteligentes! Tenho uma verdadeira admiração pelos Cinco!

— Idiota! — disse o Júlio. — Vamos, David? Temos de nos despir já, para pormos o nosso plano em execução. Brrrrr! Que frio!

Os dois rapazes despiram-se depressa, pondo as roupas em monte, a meio da jangada.

— Toma conta delas, "Ana, — disse o Júlio. — Tens a corda, David? Vamos mergulhar. Agora não conseguiremos ver o barco, pois a água está escuríssima, mas sabemos que fica mesmo por baixo da caixa e da rolha.

Os rapazes mergulharam um a seguir ao outro. Eram ambos óptimos mergulhadores. A jangada balançou quando eles se atiraram à água e o Tim também ia caindo.

O Júlio foi o primeiro. Abriu os olhos dentro da água e percebeu que o barco estava mesmo em baixo. Com duas braçadas vigorosas conseguiu alcançá-lo e tocou no saco impermeável. O David chegou logo atrás dele, com a corda nas mãos. Os dois rapazes ataram-na com força à parte superior do saco.

Mas antes de acabarem aquela tarefa tiveram que voltar à superfície para respirar. O David não tinha tanto fôlego debaixo de água como o Júlio e apareceu à superfície primeiro, respirando com esforço. Depois veio o Júlio, e só se ouviam respirações ofegantes, enquanto os dois irmãos tomavam o ar de que tanto necessitavam.

As pequenas bem sabiam que não era conveniente fazerem perguntas naquela altura. Esperaram com paciência até que os rapazes respirassem com mais facilidade. O Júlio voltou-se para elas, sorrindo.

— Vai tudo bem! — disse ele. — Agora... tornamos a mergulhar!

 

                   O SACO

LÁ foram novamente os dois irmãos para baixo de água e à jangada tornou a balouçar. As pequenas espreitavam pela borda, esperando ansiosas que eles voltassem.

O Júlio e o David encontraram-se outra vez no barco afundado em dois ou três segundos. Acabaram de atar a corda ao saco impermeável. O Júlio deu-lhe um bom puxão, esperando soltá-lo se acaso estivesse preso nalgum ponto do barco. Pegou no resto da corda, para a levar para a superfície.

Depois os dois rapazes tornaram a aparecer ofegantes à superfície e subiram para a jangada.

Ainda levaram um bocado a normalizar a respiração e depois pegaram ambos na corda. As pequenas olhavam, com os corações a bater apressados. Chegara a prova final! O saco impermeável viria à superfície ou não?

Os rapazes puxavam com força mas sem resultado. A jangada balouçava e a Ana desequilibrou-se e caiu sobre as roupas que estavam no meio. O David tornou a cair à água.

Subiu outra vez para a jangada, a bater os dentes.

— Temos que puxar com mais cuidado, — disse ele. — Já senti o saco mover-se ligeiramente.

O Júlio concordou. Estava a tremer com frio, mas os seus olhos brilhavam de entusiasmo. A Ana pôs uma gabardina nos ombros do Júlio e outra nos do David. Mas eles nem repararam!

— Agora vamos puxar outra vez, — disse o Júlio. — Firme, não largues! Está a vir! Puxa, David, puxa!

Enquanto o saco subia, preso na outra parte da corda, a jangada balouçava imenso e os rapazes recuaram o mais possível, pois receavam que fossem todos parar à água. O Tim começou a ladrar, muito excitado.

— Cala-te, Tim! — disse logo a Zé. Ela bem sabia como os sons se transmitem com facilidade sobre a água e tinha medo de que a Magda e o companheiro ouvissem o cão, lá nas barracas.

— Reparem, está mesmo a chegar à superfície, — disse a Ana. — Só mais um puxão, meninos!

Mas era impossível puxarem um saco tão pesado sem molharem a jangada toda. E as pequenas ficariam encharcadas.

— Vamos remar até à margem e deixamos o saco seguir atrás da jangada, — disse o Júlio por fim. — Veste-te, David, e voltemos para a cave onde poderemos abrir o saco mais confortàvelmente. Estou com tanto frio que nem sinto os dedos.

Os rapazes vestiram-se com a maior rapidez possível.

Estavam a tremer e agradou-lhes remar com energia. Bem depressa começaram a sentir um calor agradável e dez minutos depois já não tremiam. Sentiam-se todos muito contentes.

Olhavam para o objecto que seguia a jangada, deslizando quase à tona de água.

Que conteria o saco? Todos ardiam de curiosidade. Os remos cortavam a água com toda a pressa, pois os pequenos desejavam chegar a terra sem demora.

O Tim também estava entusiasmado e abanava a cauda sem cessar, enquanto se mantinha no meio da jangada, observando o objecto que a seguia.

Chegaram finalmente à margem. Fazendo o menor barulho possível, esconderam a jangada por baixo do arbusto do costume. Não queriam deixá-la à vista, pois o David Malandrão e a Magda podiam perceber que tornara a ser utilizada e começariam logo a fazer conjecturas.

O David e o Júlio tiraram o saco impermeável da água. Transportaram-no entre os dois, enquanto se dirigiam com precaução para a casa. Esta tinha um aspecto confrangedor, àquela hora, com o telhado, portas e janelas comidos pelo fogo, mas os pequenos nem repararam na sua triste aparência à luz da Lua, pois estavam entusiasmadíssimos.

Caminharam devagar através do caminho ladeado pelos dois muros em mau estado, não fazendo o menor barulho sobre o musgo macio.

Chegados à casa levaram o saco para a cozinha.

— Vai acender as velas da cave, — pediu o Júlio à Zé. — Quero ter a certeza de que aquele par de patifes não nos está a espreitar.

A Zé e a Ana, iluminando os degraus com as suas lanternas, foram acender as velas. O Júlio e o David ficaram à entrada, à luz da Lua, escutando com atenção. Não se ouvia o mais pequeno barulho nem se via nenhuma sombra a mover-se.

Deixaram o Tim de guarda e arrastaram o saco molhado pelo chão de pedra da cozinha. Depois levaram-no para a cave onde finalmente já o podiam abrir com toda a segurança.

O Júlio tentou desfazer os nós da corda, mas a Zé não queria esperar mais tempo. Pegou num canivete e entregou-o ao Júlio.

— Por amor de Deus, corta a corda! — pediu ela, impaciente. — Não posso esperar nem mais um momento.

O Júlio riu-se. Cortou a corda e depois começou a ver se descobria como tirar o invólucro impermeável.

— Já estou a perceber, — disse ele. — Está enrolado várias vezes à volta dos objectos e depois cosido, para fazer uma espécie de saco. Deve ter conservado as coisas sem se molharem nada.

— Despacha-te! — implorou a Zé. — Eu rasgava-o num instante.

O Júlio cortou os pontos de "linha forte que fechavam a cobertura e começou a desenrolá-la. Parecia ter metros e metros de comprido!

Mas terminou por fim e no meio daquela quantidade de tecido impermeável, estava uma porção de pequenas caixas, que todos perceberam imediatamente que se tratava de estojos de jóias!

— São jóias! — disse a Ana, abrindo uma caixa. Todos soltaram exclamações, deslumbrados.

Um maravilhoso colar brilhava sobre o veludo preto. As suas pedras luziam com tanto fulgor à luz das velas que pareciam em fogo. Até mesmo os dois rapazes estavam encantados. Era digno duma rainha!

— Deve ser o lindo colar que roubaram à Rainha da Falónia, — disse a Zé por fim. — Vi-o no jornal, numa fotografia. Que lindos brilhantes!

— Oh, são brilhantes! — repetiu a Ana, assombrada. — Ó Júlio, quanto poderão valer? Uns cem contos?

— Uns dez mil contos, talvez, Ana, — respondeu o Júlio, gravemente. — Não admira que o Nélio escondesse este tesouro com tanto cuidado, num lugar tão engenhoso. E também não admira que a Magda e o David Ma-landrão estivessem impacientes por o encontrar. Vamos ver o resto.

Cada caixa continha pedras preciosas de espécie diferente. Havia pulseiras de safiras, anéis com rubis, um estranho e maravilhoso colar de opalas e brincos com brilhantes tão grandes que a Ana estava convencida de não haver ninguém capaz de suportar aquele peso!

— Eu nem por sombras me atreveria a possuir jóias como estas, — disse a Ana. — Andaria sempre com medo de que mas roubassem. Tudo isto pertencia à Rainha da Falónia?

— Não. Algumas pertenciam a uma princesa que estava hospedada em sua casa, — informou o Júlio. — Estas jóias valem um reino.

Nem gosto de pensar que estão em meu poder, mesmo por pouco tempo.

— Mas é melhor estarem connosco do que com Magda e o David Malandrão, — disse a Zé, segurando um colar de brilhantes e passando-o por entre os dedos. Como brilhavam! Ninguém adivinharia que tivessem permanecido no fundo dum lago durante um ou dois anos!

— Agora vamos conversar, — disse o Júlio, sentando-se na ponta da mesa. — Devemos apresentar-nos no colégio na tarde de terça-feira. Hoje já é terça-feira? Com certeza passa da meia-noite. Céus, são duas e meia! Quem acreditaria em tal!

— Sinto-me capaz de acreditar em tudo!

— disse a Ana, pestanejando perante o tesouro faiscante que estava sobre a mesa.

— É melhor partirmos logo bem cedo, — continuou o Júlio. — Temos que entregar tudo isto à polícia...

— Mas não àquele polícia antipático com quem falámos no outro dia! — disse a Zé, apavorada.

— Claro que não. Acho que o melhor é telefonarmos ao simpático sr. Gaston e dizer-lhe que temos uma notícia importante para comunicar à polícia e logo vemos que posto ele nos recomenda, — disse o Júlio. — Talvez até nos arranje um automóvel para não termos que levar estas preciosidades na camioneta. Não tenho vontade nenhuma de andar com elas.

— E é preciso levarmos todas estas caixas? — perguntou a Zé, apreensiva.

— Não, pois até poderiam causar suspeitas se alguém as visse, — disse o Júlio. — Parece que é melhor embrulharmos as jóias nos nossos lenços e metê-las no fundo dos sacos. Deixamos as caixas aqui. Depois a polícia pode vir buscá-las, se quiser.

Ficou tudo resolvido. Os quatro dividiram entre si as jóias e embrulharam-nas com cuidado em quatro lenços, um para cada, metendo-os depois nos sacos.

— É melhor servirmo-nos deles como almofada, — lembrou o David. — Assim ficarão em segurança!

— Que ideia! Estes horríveis sacos? — disse a Ana. — Por que motivo? O Tim está de guarda, não é verdade? Então vou pôr a minha saca ao meu lado, debaixo do cobertor, mas com a cabeça é que não lhe toco.

O David riu-se. — Está bem, Ana. Estou convencido de que o Tim não deixará entrar nenhum ladrão. E partiremos logo de manhã, não é verdade, Júlio?

— Pois claro. Logo que acordarmos, — respondeu o Júlio. — Já não temos quase nada para comer. Sobrou só um pouco de chocolate e alguns biscoitos.

— Não me importo, — disse a Ana. — Estou tão nervosa neste momento que tenho a impressão de que nunca mais precisarei de comer!

— Depressa mudarás de opinião, — afirmou o Júlio

com uma gargalhada. — Agora, todos para a cama!

Deitaram-se sobre as folhas secas, excitados e contentes. Que belo fim de semana! E tudo por a Ana e o David se terem perdido e o pequeno ter dormido num celeiro qualquer.

- Boas-noites! disse o Júlio, bocejando. – Sinto-me muito mais rico! Tão rico como nunca mais voltarei a ser durante toda a minha vida. Ao menos deixem-me gozar esta sensação enquanto é possível!

 

                   FINAL DA AVENTURA

Acordaram, ouvindo o Tim ladrar. Já havia luz do dia. O Júlio subiu as escadas a correr para saber o que se passava. Viu a Magda a pouca distância.

— Porque têm um cão tão feroz? — perguntou ela. — Vim só saber se querem comida, pois posso oferecer-lhes alguma.

— Tornou-se de repente muito amável, — pensou o Júlio.

Como a Magda estava ansiosa por se livrar deles! Até chegava ao ponto de lhes oferecer comida, só para os despachar depressa. Mas o Júlio não queria aceitar coisa alguma da Magda ou do David Malandrão.

O Júlio intimidava-a um pouco. Era um jovem e contudo as suas maneiras não eram nada acriançadas.

— Não é preciso, — disse o Júlio. — Vamos já partir. Temos que entrar hoje no colégio, como sabe.

— Então o melhor é apressarem-se, — disse a mulher. — Vai chover.

O Júlio deu meia volta, rindo. Era evidente que não ia chover, mas a Magda tinha que arranjar um pretexto para os apressar. Mal sabia que também era esse o maior desejo do Júlio: sair dali sem demora.

Dez minutos depois, os quatro pequenos estavam prontos a partir. Cada um levava aos ombros o seu saco e o seu impermeável. E cada saco levava no fundo jóias valendo milhares de contos. Que coisa extraordinária!

— Vai ser um lindo passeio pelo campo, — disse a Ana, pouco depois de partirem. — Até tenho vontade de cantar, agora que tudo acabou bem. Só é pena que no meu colégio ninguém vá acreditar no que nos aconteceu, quando eu e a Zé contarmos.

— Naturalmente temos de fazer uma redacção sobre o que fizemos durante estes dias de férias, — disse a Zé. — E a sr.a Peters há-de dizer assim quando ler: «Muito bem escrito, mas com imaginação a mais, não lhes parece?»

Todos se riram. O Tim saltava à volta deles, com a língua de fora e com uma expressão que a Zé chamava «cara sorridente». Mas de súbito o seu «sorriso» desapareceu e ele pôs-se a ladrar, voltando-se para o caminho já percorrido.

Os pequenos olharam para trás, apreensivos. — Céus! É a Magda e o David Malandrão a correrem como doidos! — > disse o David. — Que aconteceu?! Talvez estejam com saudades nossas e naturalmente vêm pedir-nos que voltemos.

— Reparem, estão a cortar caminho para chegar aqui mais depressa. Saíram da estrada e meteram-se por um atalho para nos alcançarem. Mas o terreno aqui à volta é todo pantanoso e não se pode sair da estrada.

Que idiotas! Se não conhecerem bem estes sítios vão-se atolar.

A Magda e o David Malandrão gritavam e praguejavam, furiosos. O David Malandrão ameaçava-os com os punhos.

— - Parece-me que endoideceram, — disse a Ana com um certo medo. — Que lhes terá acontecido?

— Já sei! — exclamou a Zé. — Foram à cave e encontraram a cobertura impermeável e os estojos das jóias vazios. Perceberam logo que nós temos o tesouro!

— Tens razão! — disse o Júlio. — Devíamos ter deitado as caixas para uma das adegas. Não admira que estejam furiosos. Perderam uma fortuna por nossa causa.

— Mas o que pensam eles fazer agora? — disse o David. — Temos o Tim connosco, que saltará sobre eles se se aproximarem demasiado. Contudo o David Malandrão está tão fora de si que é capaz de se atrever a enfrentar o Tim. Palavra que parece ter endoidecido.

— Também acho, — concordou o Júlio, alarmado com a atitude e os gritos do homem. Olhou para a Ana, que estava muito pálida. O Júlio tinha a certeza de que o Tim conseguiria deitar por terra o David Malandrão, mas não queria que a Ana visse o homem e o cão lutarem ferozmente. E era evidente que aquele patife estava de cabeça perdida.

O Tim ladrava sem parar. Rosnava e mostrava-se furioso. Percebia que aquele homem era inimigo, mas isso não lhe metia medo.

«Apressemo-nos, — disse o Júlio. — Mas não se esqueçam de que não podemos tomar nenhum atalho; seguiremos sempre por este caminho. A Magda já anda aflita.

E era verdade. Ela metera-se pelos terrenos pantanosos e já estava enterrada até aos tornozelos. Chamava pelo David Malandrão para que a ajudasse, mas este só pensava em alcançar os pequenos.

E depois foi ele que se meteu em apuros. Ficou enterrado até aos joelhos. Tentou sair dali, alcançando um arbusto, mas perdeu o equilíbrio e enterrou-se ainda mais.

— O meu tornozelo! Ai que o parti! Magda, vem cá!

Mas a Magda também estava aflita e não lhe prestou atenção. As crianças pararam a olhar para o David Malandrão. Ele conseguira sentar-se sobre umas plantas, esfregando o pé, e mesmo àquela distância os pequenos podiam perceber que tinha a cara duma palidez mortal. Com certeza estava muito magoado.

— Acham que devíamos ir socorrê-lo? — perguntou a Ana, a tremer.

— Claro que não! — exclamou o Júlio. — Ele pode estar a fingir, embora eu não o creia. De qualquer maneira já não podem perseguir-nos. E se o David Malandrão realmente partiu um pé não conseguirá sair dali. A Magda também parece não estar em muito melhores circunstâncias. Lá se enterrou nos pântanos outra vez, reparem. A polícia é capaz de os encontrar com grande facilidade, quando aqui vier procurar este par de patifes.

— E bem metidos no lodo, — disse o David. — Pessoalmente não sinto grande pena deles. São más peças.

Continuaram o seu caminho com o Tim muito aborrecido por não ter chegado a lutar com o David Malandrão. Foram até à Vila da Fogueira, o que levou cerca de duas horas.

—        Vamos ao correio e telefonamos dali, — disse o Júlio.

O velhote do correio ficou satisfeito por tornar a vê-los. — Divertiram-se? — perguntou. — Encontraram as Duas Árvores?

O Júlio deixou-o a conversar com os outros e foi procurar o número do telefone do sr. Gaston. Encontrou-o e ligou para casa dele desejando ardentemente que o senhor não se importasse de os ajudar.

Foi o próprio sr. Gaston quem atendeu ao telefone. — Está lá? Quem? Claro que me lembro de si. Quer que o ajude? Em que lhe posso ser útil?

O Júlio disse-lhe o que se passara. O sr. Gaston ouviu admiradíssimo.

— COMO? Encontraram as jóias da Rainha da Falónia? É inacreditável. Estão agora nos vossos sacos? Deus seja louvado! Não está a brincar comigo, pois não?

O Júlio assegurou-lhe que falava verdade. O sr. Gaston mal podia acreditar. — Muito bem. Claro que os posso pôr em contacto com a polícia. É melhor irem até à Aldeia Branca. Conheço lá o Inspector, que é uma óptima pessoa. Onde estão?... Bem sei. Esperem aí que eu vou buscá-los no meu carro dentro de

meia hora.

Ele desligou e o Júlio foi ter com os outros, radiante por ter resolvido comunicar com o sr. Gaston. Algumas pessoas crescidas eram tão simpáticas! E sabiam sempre o que deviam fazer.

— Eu confesso que embora seja agradável acontecerem-nos certas coisas, sinto outra segurança e outra calma quando entregámos o caso a pessoas crescidas, — disse a Zé. — Agora só desejo uma coisa: o pequeno almoço!

— O melhor é arranjar um misto de pequeno almoço e almoço, — disse o Júlio. — É muitíssimo tarde.

— Óptimo! Adoro os pequenos-grandes-almoços! — exclamou a Ana, encantada.

Por isso comeram um «pequeno-grande-almoço»; constava de sanduíches, arrufadas, biscoitos, pastéis de carne e laranjadas. Tudo comprado numa pequena loja que ficava naquela rua. E quando estavam mesmo a acabar, apareceu o sr. Gaston num grande automóvel.

Os quatro pequenos sorriram-lhe, com prazer. O Júlio apresentou-lhe a Ana e o David. O Tim ficou admirado por tornar a vê-lo e estendeu-lhe delicadamente a pata; o sr. Gaston apertou-lha, achando graça.

— O vosso cão é muito bem-educado, — disse ele, carregando no acelerador. E lá foram eles, a bastante velocidade, com o Tim a deitar a cabeça de fora da janela, como sempre fazia quando andava de carro.

Contaram pelo caminho a extraordinária aventura. O sr. Gaston estava cheio de admiração por eles. — São formidáveis! — disse ele várias vezes. — Gostava de que fossem meus filhos!

Chegaram ao posto da polícia. O sr. Gaston prevenira o Inspector e este já os esperava.

— Entrem para o meu escritório particular, — disse ele. — E agora, antes de mais nada, onde estão as jóias? Trazem-nas realmente convosco? É melhor mostrarem-nas antes de contarem a vossa história.

As crianças abriram os sacos e, tirando os lenços para fora, colocaram sobre a mesa as jóias faiscantes e luzidias.

O Inspector deu um assobio e trocou um olhar com o sr. Gaston. Pegou no colar de brilhantes.

— É o próprio! — exclamou ele. — E pensar que a polícia o procurou por toda a parte durante meses e meses! Onde o encontraram?

— É uma história bastante comprida, — respondeu o Júlio. Começou a contá-la e fê-lo muito bem, ajudado pelos outros quando se esquecia de qualquer pormenor. O sr. Gaston e o Inspector escutavam com o maior dos espantos. Quando o Júlio chegou ao ponto de contar que o David Malandrão e a Magda haviam ficado enterrados nos pântanos, o Inspector interrompeu.

— Um momento! Ainda lá estarão? Muito bem! Só meio minuto.

Carregou num botão e apareceu um polícia.

«Diz ao Johns que vá no carro com três homens até ao Pântano Verde, perto do Lago Negro, — ordenou o Inspector. — Prendam duas pessoas que lá estão atoladas; trata-se dos nossos velhos amigos David Malandrão e Magda Martin.

O polícia desapareceu. A Ana sentiu-se aliviada. Agora aquele horrível par iria para a prisão durante algum tempo, a Ana não gostava nada deles.

O Júlio terminou a sua história. O Inspector olhou sorrindo para aquele grupinho de crianças despenteadas e sujas: — Quero apertar-lhes a mão, — disse ele. — Jovens como vocês é que precisamos neste país. Decididos, sensatos, sabendo discorrer e perseverantes. Sinto-me orgulhoso por os ter conhecido.

Todos lhe apertaram a mão, solenemente. O Tim levantou a pata e o Inspector também a apertou, rindo.

— E agora qual é o vosso programa? — perguntou o sr. Gaston, levantando-se.

— Bem, devíamos estar no colégio até às três horas da tarde, — disse o Júlio. — Mas parece-me que vamos chegar atrasados. Há por aqui um hotel onde possamos tomar banho e arranjarmo-nos melhor?

— Podem fazê-lo aqui, — disse o Inspector. — Se quiserem levo-os ao colégio no carro da polícia. Não é fazer muito às pessoas que nos trouxeram as jóias da Rainha da Falónia. Ainda me custa a acreditar:

O sr. Gaston despediu-se e foi-se embora, afirmando o seu prazer em tê-los conhecido.

— E nunca mais te metas nas tocas dos coelhos! — acrescentou ele para o Tim.

Lavaram-se com cuidado e no fim encontraram as suas roupas escovadas e passadas a ferro. Pentearam-se e foram para o escritório do Inspector, tão lavados e arranjados que pareciam outros. Estava ali um homem a examinar as jóias e a etiquetá-las à medida que as metia em pequenas caixas.

— Devem gostar de saber que apanhámos aquele par de patifes, — disse-lhes o Inspector — O homem tem um pé partido e não pode dar um passo. E a mulher estava enterrada até à cintura quando a encontraram. Acolheram bem a polícia, de tal maneira estavam aflitos!

— óptimo! — exclamaram os quatro. A Ana deu outro suspiro de alívio...

— E estas são realmente as jóias da Rainha da Falónia — continuou o Inspector. - Nunca tive dúvidas sobre isso. Estão a ser etiquetadas e com certeza a Rainha e a sua amiga fidalga vão ficar extremamente satisfeitas quando souberem da vossa aventura.

Um relógio bateu duas e meia. O Júlio olhou para ele. Só lhes restava meia hora para chegarem ao colégio pontualmente.

«Não se apoquente, — disse o Inspector com o seu sorriso franco. — O carro está à porta. Acompanho-os até lá. Chegarão a tempo aos vossos colégios e se alguém acreditar na vossa história ficarei surpreendido. Vamos!

O Inspector esperou que eles entrassem para o carro. — Adeus! — disse ele, saudando-os com delicadeza. — Sinto-me orgulhoso por os ter conhecido. Felicidades para todos vós, famosos Cinco!

Sim, felicidades para vocês, famosos Cinco! E que tenham muitas, muitas aventuras!

 

                                                                                Enid Blyton  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"