Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS CINCO SALVARAM O TIO / Enid Blyton
OS CINCO SALVARAM O TIO / Enid Blyton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS CINCO SALVARAM O TIO

 

Grande aborrecimento entre os Cinco, pois não poderão ir à Ilha Kirrin durante as férias da Páscoa. O pai da Zé, cientista, mandou ali construir, em segredo, uma torre semelhante a um farol, para onde irá trabalhar. Mas em quê?

Um mistério na Ilha Kirrin? Um mistério para a própria Zé, a quem a ilha pertence. Assim, ela resolve Saber do que se trata, até que o pai suspeita de que na ilha está alguém para o espiar. Então o Tim é ali deixado, para acompanhar e guardar o cientista contra a ameaça de espiões. "Mas o Tim acaba por desaparecer, sem se saber como, e a Zé, sozinha na noite, procura‑o.

Os Cinco e o tio Alberto acabam por ficar fechados, em grande perigo, numa gruta. No entanto, felizmente, tudo acabará bem.

 

 

                   UMA CARTA PARA A ZÉ

A Ana estava num canto da sala de estudo, adiantando os seus trabalhos escolares, quando entrou Zé, de rompante.

Zé não era um rapaz; era uma rapariga chamada Maria José, mas como sempre desejara ser rapaz insistia por que a tratassem por Zé. Pois ali estava a Zé. Usava o cabelo encaracolado, muito curto e os seus olhos azuis, no momento em que ela se dirigia para a Ana, brilhavam, muito zangados.

‑ Ana! Recebi agora mesmo uma carta lá de casa, e sabes o que diz? O pai quer ir viver para a minha ilha, para fazer um trabalho qualquer e resolveu construir uma espécie de torre, ou uma coisa no género, no pátio do castelo!

As outras alunas olharam divertidas para a Zé, e a Ana estendeu a mão, pegando na carta que a prima lhe mostrava. Todas sabiam que a pequena ilha na Baía Kirrin pertencia à Zé. A Ilha Kirrin era um lugar agradável e no meio dela se erguia um castelo arruinado, agora abrigo dos coelhos, dos corvos e das gaivotas.

Havia caves subterrâneas, onde a Zé e os primos por uma ou duas vezes tinham vivido extraordinárias aventuras. A ilha pertencera em tempos à mãe da Zé e ela dera‑a à filha; a Zé levava muito a sério tudo quanto dizia respeito à sua preciosa Ilha Kirrin. Era dela. Mais ninguém podia ali viver ou mesmo lá ir, sem a sua autorização.

E agora, santo Deus, ali estava o seu pai propondo‑lhe ir para a ilha e construir ali uma espécie de laboratório! A Zé estava vermelha, muito exaltada.

«É mesmo ideia de pessoas crescidas; oferecem as coisas e depois procedem como se tudo continuasse a ser delas.

‑ Ó Zé, tu bem sabes que o teu pai é um cientista famoso e precisa de trabalhar em paz, ‑ disse a Ana, desdobrando a carta. ‑ Com certeza que lhe podes emprestar a tua ilha por um tempo.

‑ Há muitos outros lugares onde ele pode trabalhar sossegado, ‑ disse a Zé. ‑ Que pouca sorte! Estava com tantas esperanças de poder lá ficar nas férias da Páscoa; levávamos o nosso barco, comida e tudo o mais, tal como fizemos da outra vez. Agora nada disso vai acontecer, se o pai realmente quiser ir para lá.

A Ana leu a carta. Era da mãe da Zé.

 

       Minha querida Zé:

Acho melhor dizer‑te desde já que o teu pai pensa ir passar algum tempo na Ilha Kirrin, para acabar umas experiências muito importantes que está a fazer. Terá de mandar construir ali uma espécie de torre, creio eu. Ele precisa dum sítio onde possa estar em completo isolamento e sossego e também, por qualquer motivo, onde haja água a toda a volta. O facto de estar rodeado de água é necessário para as suas experiências.

Agora, minha querida, não fiques aborrecida com isto. Bem sei que consideras a Ilha Kirrin só tua, mas deves consentir à tua família que a compartilhe contigo, principalmente quando se trata dum assunto tão importante como o trabalho científico do teu pai. Ele até julga que tu tens muito gosto em lhe emprestares a ilha, mas eu conheço melhor a tua maneira de pensar e por isso achei que era melhor escrever avisando‑te, antes de vires a casa e o encontrares instalado ali, mais à sua torre.

 

A carta continuava falando sobre outros assuntos, mas a Ana não esteve para ler mais. Ela olhou para a Zé.

‑ Ó Zé! Não percebo porque te importas de emprestar a Ilha Kirrin ao teu pai! Eu não me importaria que o meu pai me pedisse emprestada uma ilha, se eu tivesse a sorte de ter uma!

‑ O teu pai falava primeiro contigo, pedindo‑te o teu consentimento e perguntando se não te importarias, ‑ disse a Zé, com mau‑humor. ‑ O meu pai nunca faz nada assim. Faz sempre o que lhe apetece, sem consultar ninguém. Acho que ele me devia ter escrito. Assim fico furiosa.

‑ Mas tu és bastante fácil de enfurecer, ‑ disse a Ana rindo. ‑ Não olhes para mim com essa cara. Eu não vou viver para a tua ilha sem a tua solene autorização.

Mas a Zé não achou graça nenhuma. Pegou na carta e leu‑a outra vez, com tristeza. ‑ Pensar que todos os meus planos para as férias ficam estragados!‑disse ela.‑Tu bem sabes como a Ilha Kirrin é estupenda, na Páscoa; cheia de flores, relva e coelhos pequeninos. Tu, o Júlio e o David devem ir todos lá para casa e nós não estamos juntos desde o último Verão, quando fomos passear nas «roulottes».

‑ Bem sei. É pouca sorte! ‑ concordou a Ana. ‑ Seria uma maravilha ir passar as férias na ilha. Mas talvez o teu pai não se importe que nós vamos. Não precisamos de o incomodar.

‑ Como se viver na Ilha Kirrin com o pai fosse a mesma coisa que estarmos lá sozinhos! ‑ disse a Zé, zangada. ‑ Tu bem sabes que seria uma maçada!

Na verdade a Ana não pensava de modo algum que a Ilha Kirrin fosse muito divertida com a presença do tio Alberto. O pai da Zé era um senhor muito impaciente e irritável e quando estava no meio duma das suas experiências era insuportável. O mais pequeno barulho o incomodava.

‑ Como ele vai gritar aos corvos para os fazer calar e enxotar as gaivotas barulhentas! ‑ disse a Ana, começando a rir. ‑ Ele não vai achar a ilha tão sossegada como imagina!

A Zé esboçou um sorriso. Dobrou a carta e voltou‑se.‑Acho que é o máximo!‑disse ela. ‑ Eu não estaria tão aborrecida se o pai tivesse pedido o meu consentimento.

‑Nunca faria isso! ‑afirmou a Ana. ‑Nem se lembraria de tal coisa. Agora Zé, não passes o resto do dia a repisar na mesma ideia, peço‑te por tudo! Vai ao canil buscar o Tim. Ele depressa te animará.

O Tim era o cão da Zé, que ela estimava de todo o coração. Era um canzarrão castanho, com uma cauda grande de mais e uma boca muito larga que realmente parecia sorrir. Os quatro primos gostavam muito dele. Era tão bom companheiro, tão simpático e animado! Participara com eles em muitas aventuras. Os cinco haviam passado juntos horas muito divertidas.

A Zé foi buscar o Tim. Aquele colégio permitia que as alunas levassem os seus cães com elas. E se não fosse permitido era certo que a Zé não teria ido interna para o colégio. Ela não suportava separar‑se do Tim nem por um só dia.

O Tim começou a ladrar, satisfeito, mal viu a sua dona. A Zé perdeu a expressão triste e sorriu. Querido Tim, querido Tim: ele era melhor do que qualquer pessoa! Estava sempre do lado dela, era sempre seu amigo e para o Tim não havia ninguém no Mundo tão maravilhoso como a Zé.

Foram passear pelo campo e a Zé começou a conversar com o Tim, como sempre fazia. Contou‑lhe que o pai queria ir para a Ilha Kirrin. O Tim concordava com tudo que ela dizia. Prestava atenção como se percebesse e nem mesmo quando um coelho passou por eles, a correr, o Tim saiu de ao pé da sua dona. Ele sempre percebia quando a Zé estava preocupada.

Ao voltarem para o colégio a Zé sentia‑se com muito melhor disposição. Entrou com o Tim no edifício, fazendo‑o passar por uma porta das traseiras. Não era permitido os cães entrarem dentro de casa, mas a Zé, tal como o seu pai, muitas vezes fazia só o que lhe apetecia.

Sem perda de tempo levou o Tim até ao dormitório. Ele escondeu‑se por baixo da cama dela e ficou ali deitado. O cão sabia o que aquilo significava. A Zé queria sentir‑se confortada com a sua presença naquela noite! Quando as luzes se apagassem ele saltaria para cima da cama e ficaria deitado aos pés da sua dona. Os olhos castanhos do Tim cintilavam de alegria.

‑ Agora fica quieto, ‑ disse a Zé, saindo do dormitório para se juntar às outras pequenas. Encontrou a Ana muito ocupada a escrever uma carta aos seus irmãos Júlio e David, que também estavam num colégio interno.

‑ Contei‑lhes tudo sobre a Ilha Kirrin e a ida do teu pai para lá, ‑ disse ela. ‑ Tu gostarias de passar as férias connosco em vez de irmos nós para Kirrin? Assim não andarias todo o tempo aborrecida por o teu pai estar na tua ilha.

‑ Não, obrigada, ‑ respondeu logo a Zé.

‑ Eu vou para casa. Quero ir vigiando o pai! Não quero que ele faça a Ilha Kirrin ir pelos ares, com uma das suas experiências. Tu sabes que ele agora anda a trabalhar com explosivos, não sabes?

‑ Uuuh! Bombas atómicas e coisas assim?

‑ perguntou a Ana?

‑ Não sei, ‑ disse a Zé. ‑ De toda a maneira, além de querer vigiar o pai e a minha ilha, acho que devemos ir para Kirrin, fazer companhia à minha mãe. Ficará muito só, estando o pai na ilha, pois julgo que ele levará comida e tudo o mais.

‑ Sempre haverá uma vantagem, se o teu pai não estiver no Casal Kirrin. Escusamos de andar em bicos dos pés e a falar em segredo, ‑ disse a Ana. ‑ Poderemos ser tão barulhentos quanto nos apetecer. Anima‑te, Zé!

Mas a Zé levou bastante tempo a deitar para trás das costas a arrelia causada pela carta da mãe. Mesmo com o Tim todas as noites na sua cama (até ser descoberto por uma professora, zangadíssima) não conseguiu esquecer depressa aquela contrariedade.

O período escolar estava quase no fim. Chegou Abril com os seus dias de sol e aguaceiros. As férias aproximavam‑se cada vez mais! A Ana, cheia de alegria, pensava em Kirrin, com a sua linda praia, o mar azul, os barcos de pesca e os passeios pelos penedos.

O Júlio e o David também pensavam em tudo isso, cheios de saudades. Naquele período, tanto eles como as duas pequenas começavam as férias no mesmo dia. Podiam encontrar‑se em Londres e fazerem juntos a viagem para Kirrin! Que bom!

Chegou finalmente o último dia! As malas amontoavam‑se na entrada. Apareceram automóveis para levar algumas das alunas que moravam mais perto. As camionetas do colégio levavam as outras pequenas às estações do caminho de ferro. Por toda a parte havia um barulho ensurdecedor. As professoras não conseguiam fazer‑se ouvir. ‑ Parece que as pequenas estão todas doidas! ‑ dizia uma professora para outra. ‑ Ainda bem que começam a entrar para a camioneta. Zé! É preciso correres pelo corredor a cem à hora, com o Tim a ladrar dessa maneira?!

‑ Não posso parar, não posso! ‑ gritou a Zé ‑, ‑Ana, onde estás tu? Vem para a camioneta.

Está aqui o Tim. Ele já percebeu que estamos em férias. Vamos, Tim!

Lá foi a camioneta para a estação, com as crianças a cantarem. Depois meteram‑se no comboio. ‑ Este é o meu lugar! Quem tem o meu cão? Sai daqui, Luísa, bem sabes que não podes aproximar o teu cão do meu. Brigam todo o tempo. Viva, o chefe está a apitar! Lá vamos nós!

A máquina saiu vagarosamente da estação, levando atrás um grande número de carruagens, cheias de crianças que partiam para férias. Atravessou campos, pequenas vilas e cidades e por fim correu para os arredores nevoentos de Londres.

‑ O comboio dos rapazes deve chegar dois minutos antes do nosso, ‑ disse a Ana, debruçando‑se na janela quando o comboio estava a chegar à estação de Londres. ‑ Se chegar à tabela, eles devem estar na plataforma à nossa espera. Olha Zé, olha! Ali estão eles!

A Zé também se debruçou pela janela. ‑ Olá, Júlio! ‑ gritou ela. ‑ Estamos aqui! ‑Olá, Júlio! Olá, David!

 

                   NOVAMENTE NO CASAL KIRRIN

O Júlio, o David, a Ana, a Zé e o Tim foram logo comer bolos e beber laranjadas no restaurante da estação. Sentiam‑se satisfeitos por estarem novamente juntos. O Tim parecia louco ao tornar a ver os dois rapazes; não queria afastar‑se deles.

‑ Olha, Tim, meu velho, eu gosto muito de ti e estou muito contente por tornar a ver‑te, ‑ disse o David. ‑ Mas já é a segunda vez que me fazes entornar a laranjada. Que tal se portou ele este período, Zé?

‑ Muito bem, ‑ respondeu a Zé, pensativa.

‑ Não concordas, Ana? Ou seja, só roubou uma vez a carne da despensa e não estragou muito aquela almofada que agarrou com os dentes, e se as pequenas não deixassem as galochas fora do seu lugar não se queixariam lá porque o Tim andou a brincar com elas.

‑ Claro que foi o fim das galochas, não? ‑ perguntou o Júlio, dando uma gargalhada. ‑ Resumindo, Tim, tiveste uma nota muito baixa em comportamento. Receio que o tio Alberto não te dê os costumados cinco xelins que nós temos quando aparecemos com boas notas.

Ao falarem sobre o pai, a Zé franziu o sobrolho.

‑ Estou a ver que a Zé ainda não perdeu a sua cara de mau‑génio, ‑ notou David, com uma voz trocista.

‑ Minha querida Zé! Nós nem te reconheceríamos se não te irritasses pelo menos uma dúzia de vezes por dia.

‑ Oh, ela está muito melhor! ‑ afirmou a Ana, apressando‑se a defender a prima. Na verdade a Zé já não estava tão irritável como fora em tempos. Mas de toda a maneira a Ana sabia que ela ficava furiosa quando se falava que o pai ia ocupar a Ilha Kirrin naquelas férias.

O Júlio fitou a prima. ‑ Ouve, menina, tu não vais levar muito a peito essa história sobre a Ilha Kirrin, pois não? ‑ disse ele. ‑ Tens de compreender que o teu pai é um homem muito inteligente, um dos nossos melhores cientistas e eu acho que a pessoas assim devem dar‑se todas as facilidades que necessitem para os seus trabalhos. Quer dizer, se o tio Alberto precisa trabalhar na Ilha Kirrin por qualquer razão especial, então tu deves ter prazer em dizer‑lhe: Pode ir, pai!

A Zé ficou um pouco aborrecida com aquele longo discurso; mas ela tinha uma grande consideração pelo Júlio e geralmente seguia o que ele dizia. Era o mais velho de todos eles, e era alto, bonito rapaz com um olhar decidido e um queixo pronunciado. A Zé começou a coçar a cabeça do Tim e falou em voz baixa.

‑ Está bem. Eu não quero zangar‑me por causa disso, Júlio. Mas tive um grande desapontamento, pois pensava ir passar as férias na Ilha Kirrin, com vocês todos.

‑ E nós também temos pena, ‑ disse o Júlio. ‑ Acaba o teu bolo, menina. Temos de atravessar Londres para apanharmos o comboio para Kirrin. Se nos descuidamos não chegaremos a tempo.

Pouco depois estavam instalados no comboio para Kirrin.

O Júlio tinha muito jeito para arranjar táxis e bagageiros. Ana olhava com admiração para o seu irmão mais velho, pois ele conseguira uns óptimos lugares, na melhor carruagem. O Júlio sabia bem como conduzir as coisas.

‑ Tu achas que eu cresci, Júlio? ‑ perguntou‑lhe a pequenita. ‑ Eu estava com esperanças de ficar da altura da Zé, no fim deste período, mas ela também cresceu!

‑ Acho que deves estar meio centímetro mais alta do que no período passado, ‑ disse o Júlio.‑Tu não consegues apanhar‑nos, Ana; serás sempre a mais pequena. Mas eu gosto de ti assim pequenina.

‑ Reparem no Tim, pondo a cabeça fora da janela, como de costume! ‑disse o David. ‑Tim, ainda te entra uma faúlha para um olho. Depois a Zé fica louca de desespero pensando que tu cegaste!

‑ Béu! ‑ disse o Tim, abanando a cauda. Esta era a coisa mais simpática do Tim. Sabia sempre quando estavam a falar com ele, mesmo quando não mencionavam o seu nome e respondia imediatamente.

A tia Clara esperava‑os na estação, com a «charrette».

Os pequenos correram para a senhora, pois eram todos muito seus amigos. Ela era amável e simpática fazendo sempre os possíveis por desculpar as crianças perante o seu impaciente marido.

‑ Como está o tio Alberto? ‑ perguntou o Júlio, por delicadeza, quando partiram na «charrette».

‑ Está óptimo, ‑ respondeu a tia. ‑ E muito ocupado.

Na verdade nunca o vi tão entusiasmado como ultimamente. O seu trabalho tem decorrido com o maior êxito.

‑ A tia não sabe do que consta a sua última experiência, pois não? ‑ perguntou o David.

‑ Não. Ele nunca me diz nem uma palavra,

‑ respondeu a tia Clara. ‑ Não conta nada a ninguém enquanto está a trabalhar, a não ser aos seus colegas, claro. Mas eu sei que é muito importante, e também sei que a última parte das experiências tem de ser feita num lugar onde haja bastante água à volta. Não me perguntem por que motivo, que isso não sei.

‑ Olhem! Ali está a Ilha Kirrin! ‑ exclamou a Ana de repente. Tinham passado uma curva ficando à vista da baía. Via‑se da estrada a curiosa ilha encimada pelo castelo arruinado. O sol brilhava no mar azul e a ilha parecia maravilhosa.

A Zé fitou‑a demoradamente. Procurava o edifício ou lá o que era que o pai precisara para o seu trabalho. Todos observaram a ilha, procurando a mesma coisa.

Descobriram‑na com facilidade! Erguendo‑se no centro do castelo, naturalmente no pátio, estava uma torre alta e estreita, parecida com um farol. Na parte superior tinha um compartimento todo envidraçado, que brilhava ao sol.

‑ Ó mãe! Que coisa feia! Estraga a Ilha Kirrin!

‑ disse a Zé, arreliada.

‑ Ouve, querida, vão deitá‑la abaixo quando o teu pai acabar o trabalho, ‑ explicou a mãe.

‑ É uma coisa muito frágil e transitória. Facilmente se pode desmontar. O pai prometeu‑me que a tira logo que os trabalhos acabem. Ele disse que vocês podem lá ir vê‑la mais de perto, se quiserem. É muito interessante.

‑ Oh, eu gostava de ir ver, ‑ participou logo a Ana. ‑ Parece tão esquisita. O tio Alberto está completamente só, na Ilha Kirrin, tia Clara?

‑ Está, sim. Eu não gosto que ele fique sozinho,

‑ respondeu a tia. ‑ Por um lado tenho a certeza de que não se alimenta convenientemente e por outro lado estou sempre com medo que lhe aconteça algum mal, quando anda a fazer experiências; estando só, como poderei saber se alguma coisa lhe acontece?

‑ Parece‑me, tia Clara, que pode combinar com ele fazer‑lhe um sinal todas as manhãs e todas as noites, não acha? ‑ disse o Júlio, sensatamente.

‑ Pode servir‑se daquela torre com facilidade. É simples fazer um sinal luminoso pela manhã usando um espelho como heliógrafo, significando que se encontra bem. E à noite pode fazer um sinal com uma lâmpada ou lanterna. É muito fácil!

‑ Tens razão. Hei‑de lembrar‑lhe isso, ‑ disse a tia. ‑ Preveni‑o que íamos todos amanhã fazer‑lhe uma visita; talvez tu, Júlio, pudesses então combinar com o teu tio, sim? Ele ouve sempre os teus conselhos.

‑ É extraordinário! A mãe diz que o pai não se importa que vamos invadir o seu «covil» secreto e ver a sua estranha torre?! ‑ perguntou a Zé, surpreendida. ‑ Bem, eu acho que não quero ir. Apesar de tudo é a minha ilha e é horrível ver outra pessoa ali instalada.

‑ Ó Zé, não recomeces com toda essa cantiga, ‑ disse a Ana, com um suspiro. ‑ Tu e a tua ilha! Não podes ao menos emprestá‑la ao teu pai?

A tia Clara havia de ver a Zé quando chegou a sua carta. Ficou tão furiosa que até me assustei!

Todos se riram menos a Zé e a tia Clara. Esta parecia preocupada e triste. A Zé era sempre tão difícil de levar! Ela deitava as culpas para o pai e estava sempre contra ele, mas afinal era tão, tão parecida com ele, com os seus maus‑génios, e zangas repentinas! Se a Zé fosse tão dócil e fácil de levar como aqueles seus três primos!

A Zé notou a expressão apreensiva da mãe e sentiu‑se envergonhada. Fez‑lhe uma festa. ‑ Está bem, mãe! Não vou zangar‑me. Vou tentar guardar só para mim tudo o que sinto, palavra que vou. Bem sei que o trabalho do pai é importante. Amanhã também vou com vocês à ilha.

O Júlio deu uma palmada amigável nas costas da prima. ‑ Querida Zé! Estás não só a ceder, mas também a ceder com gentileza! Olha Zé, ficas mais parecida com um rapaz do que nunca, quando procedes assim!

A Zé ficou radiante. Gostava de ouvir o Júlio dizer que ela se parecia com um rapaz. Não queria ser amimada e maliciosa como tantas raparigas suas conhecidas. Mas a Ana ficou indignada.

‑ Não são só os rapazes que sabem ceder correctamente e outras coisas assim, ‑ afirmou ela. ‑ Imensas raparigas o fazem. Eu acho que sou dessas!

‑ Meu Deus, mais uma zanga! ‑ exclamou a tia Clara, rindo. ‑ Acabem com as discussões pois chegámos ao Casal Kirrin. Não está bonito com tantas flores no jardim, as trepadeiras tão crescidas e narcisos por toda a parte?

Realmente estava lindo. Os quatro pequenos

e o Tim correram para o portão da frente, encantados por estarem de volta. Entraram em casa e foram falar à Joana, a velha e amiga cozinheira. Ela ficou toda satisfeita por voltar a ver as crianças e fez muita festa ao Tim quando ele saltou à volta dela, latindo.

‑ Não estão todos mais crescidos? Que grande está, menino Júlio! Mais alto do que eu. E a menina Anita também está quase uma senhora!

Isto agradou muito à Ana. O Júlio foi ter com a tia para ajudá‑la a tirar as maletas da «charrette». As malas maiores chegariam mais tarde. O Júlio e o David levaram tudo para o primeiro andar.

A Ana foi ter com eles, impaciente por tornar a ver o seu quartinho. Como era bom estarem de novo no Casal Kirrin! Ela foi até à janela que dava para o mar. Era lindo, lindo! Começou a cantarolar uma canção enquanto desfazia a mala. ‑ Sabes... ‑ disse ela ao David, quando este apareceu com a mala da Zé. ‑ Sabes, David, estou muito satisfeita por o tio Alberto ter ido para a ilha, mesmo que por causa disso não possamos lá ir muitas vezes! Sinto‑me mais à vontade aqui em casa, quando ele está fora. É um homem muito inteligente e pode ser que seja muito simpático, mas tenho sempre um certo medo dele.

O David riu‑se. ‑ Eu não tenho medo dele, mas concordo que é bastante implicativo quando nós aqui estamos a passar as férias. É engraçado pensar que ele está na Ilha Kirrin, completamente só.

Ouviu‑se uma voz nas escadas. ‑ Venham lanchar, meninos, que há «scones» ainda quentinhos!

‑ Lá vamos, tia Clara, ‑ respondeu o David. ‑ Despacha‑te, Ana! Estou cheio de fome. Júlio, ouviste a tia Clara a chamar‑nos!?

A Zé foi lá acima buscar a Ana. Ela estava muito contente por se encontrar novamente em casa, e o Tim andava entretidíssimo a farejar por todos os cantos.

‑ Faz sempre isto, ‑ notou a Zé. ‑ É como se pensasse que pode haver uma cadeira ou uma mesa que não tenham o mesmo cheiro de sempre. Vamos, Tim! São horas do lanche. Mãe, como o pai não está cá, o Tim pode sentar‑se no chão, ao lado da minha cadeira? Ele agora porta‑se muito bem.

‑ Pode, ‑ disse a mãe. O chá começou. E que chá! Parecia que fora arranjado para umas vinte pessoas. A boa Joana devia ter passado o dia a fazer bolos. Mas quando os cinco acabaram, não ficou muito na mesa!

 

                   UM PASSEIO Á ILHA KIRRIN

O dia seguinte estava quente e bonito. ‑ Podemos ir esta manhã até à ilha, ‑ disse a tia Clara. ‑ É melhor levarmos o almoço, pois estou convencida que o vosso tio se esqueceu que nós lá vamos.

‑ Ele tem lá um barco? ‑ perguntou a Zé. ‑ ó mãe, ele não levou o meu barco, pois não?

‑ Não, querida, ‑ respondeu a mãe. ‑ Arranjou um outro barco. Eu estava com medo que ele não soubesse livrar‑se de todas aquelas rochas perigosas que circundam a ilha, mas pediu a um pescador para o levar. Aquele amarrou o seu barco ao do pai e ali meteram todo o material.

‑ Quem construiu a torre? ‑ perguntou o Júlio.

‑ Foi o tio quem fez os planos e vieram uns homens do Ministério de Investigações para o construírem, ‑ explicou a tia Clara. ‑ Tudo se passou em bastante segredo. As pessoas das redondezas andavam cheias de curiosidade mas não ficaram a saber mais do que eu! Nenhum homem daqui foi autorizado a ajudar na construção e só um ou dois pescadores foram contratados para levar o material para a ilha, transportar os operários, etc.

‑ Que grande mistério! ‑ disse o Júlio. ‑ O tio Alberto leva uma vida muito interessante, não leva? Não me importaria de vir a ser também cientista.

Quero ser qualquer coisa que valha realmente a pena, quando for crescido. Não gostava de trabalhar como empregado de outra pessoa. Quero ter o meu próprio trabalho.

‑ Pois eu acho melhor ser médico, ‑ declarou o David.

‑ Vou ver o meu barco, ‑ interrompeu a Zé, bastante aborrecida com aquela conversa. Ela sabia o que tencionava fazer quando fosse crescida; iria viver para a Ilha Kirrin, com o Tim. A tia Clara preparara uma grande refeição para levar para a ilha. Ela estava ansiosa por partir, pois havia vários dias que não via o marido e queria saber se ele se encontrava bem.

Desceram todos até à praia. O Júlio levava o cesto do almoço. A Zé já os esperava com o barco. O Jaime, um rapaz pescador amigo da Zé, também ali estava, pronto para dar uma ajuda. Ele cumprimentou as crianças. Conhecia todas muito bem. Em tempos tomara conta do Tim, quando o pai da Zé expulsara o cão de casa. A pequena nunca esquecera a amizade do pescador pelo Tim e por isso ia visitá‑lo todas as férias.

‑ Vão à ilha? ‑ perguntou o Jaime. ‑ É muito esquisita aquela coisa que está lá no meio, não é? Parece uma espécie de farol. Dê‑me a sua mão, menina, e deixe‑me ajudá‑la.

A Ana agarrou‑lhe na mão e saltou para dentro do barco. A Zé já lá estava com o Tim.

Depressa todos se acomodaram. O Júlio e a Zé pegaram nos remos. O Jaime deu um empurrão e lá foram deslizando sobre o mar calmo e brilhante. A Zé começou a cantar uma canção dos barqueiros e todos fizeram coro.

Era muito agradável um passeio de barco pelo mar. Ó férias, passem devagar, não corram demasiado depressa!

‑ Zé, ‑ disse a mãe, nervosa, ao aproximarem‑se da Ilha Kirrin. ‑ Por favor tem cuidado com todas essas rochas perigosas. Hoje a água está tão límpida que se podem ver, e algumas vêm quase até à superfície.

‑ Ó mãe! Bem sabe que eu já remei até à Ilha Kirrin centenas de vezes! ‑ disse a Zé, rindo. ‑ Descanse que não vou encalhar em nenhuma rocha. Conheço‑as todas. Até era capaz de ir com os olhos vendados.

Havia um só lugar na ilha onde se podia desembarcar com segurança. Era num pequeno porto natural que banhava um pedacito de areia, abrigado entre rochas altas. A Zé e o Júlio remaram para a parte leste da ilha, tornearam uma quantidade de rochas e lá chegaram à enseada, com água muito calma banhando a praia.

Enquanto os outros remavam a Ana estivera a observar a ilha. Lá estava o castelo em ruínas, sempre igual, com as suas torres meio destruídas, cheias de corvos. As paredes muito velhas estavam cobertas de hera.

‑ Que lugar tão lindo! ‑ exclamou a Ana, com um suspiro. Depois começou a admirar a curiosa torre que se erguia agora no meio do pátio do castelo. Não era construída com tijolos mas sim com um material flexível e brilhante, dividido em placas que se encaixavam umas nas outras. Era evidente que a torre fora construída daquela maneira para ser transportada para a ilha com facilidade e montada depois com rapidez.

‑ Não é estranha? ‑ disse o David. ‑ Reparem naquele compartimento envidraçado, lá no alto; parece um miradouro. Para que servirá?

‑ Pode‑se subir por dentro da torre? ‑ perguntou o David à tia Clara.

‑ Pode, sim. Há uma escadinha estreita, em espiral, ‑ explicou a tia. ‑ Praticamente ocupa toda a torre. Só o quartinho lá em cima é importante. Tem uns fios eléctricos muito especiais, que são do maior interesse nas experiências do teu tio. Tenho a impressão que ele nunca trabalha na torre. Ele só vai ali para verificar qualquer coisa que tem certo efeito sobre as experiências.

A Ana não compreendia aquilo. Era demasiado complicado. ‑ Eu gostaria de subir à torre, ‑ disse ela.

‑ Talvez o teu tio consinta, ‑ respondeu a tia Clara.

‑ Se estiver de bom‑humor, ‑ acrescentou a Zé.

‑ Não recomeces a dizer essas coisas, Zé, ‑ pediu‑lhe a mãe.

O barco atravessou o pequeno porto e chegou à praia, suavemente. Já ali estava um outro barco, o do tio Alberto.

A Zé e o Júlio saltaram para fora e puxaram o barco um pouco mais para cima, e assim os outros puderam desembarcar sem molharem os pés. O Tim começou a correr pela praia, muito divertido.

‑ Para aqui, Tim! ‑ disse a Zé, com uma voz severa. O Tim lançou‑lhe um olhar desesperado. Certamente ela não ia impedi‑lo de ir à procura de coelhos! Era só para os observar. Que mal havia nisso? Oh, ali estava um coelho! E outro e mais outro! Estes pararam todos, olhando para o grupo que saía da praia. Arrebitaram as orelhas, e ficaram muito quietos.

‑ Estão mansos como de costume! ‑ disse a Ana, encantada. ‑ Tia Clara, não os acha uns amores? Olhe para aquele ainda pequenino! Está a lavar o focinho!

Pararam a observar os coelhos. Realmente eram muitíssimo mansos. Poucas pessoas apareciam na Ilha Kirrin e os coelhos multiplicavam‑se em paz, correndo por onde queriam, sem o mais pequeno receio.

‑ Oh, aquele é... ‑ começou o David, mas tudo mudou num momento. O Tim, incapaz de só observar, perdeu de repente o seu autodomínio e correu para os coelhos que ficaram surpreendidos. Num momento não se viu mais nada além de rabitos brancos como pompons a abanarem, enquanto os coelhos atrás uns dos outros, corriam para as suas tocas.

‑ Tim! ‑ chamou a Zé, zangada, e o pobre Tim baixou a cauda, olhando para a dona, cheio de pena. ‑ Nem mesmo uma corridinha atrás dos coelhos! ‑ parecia dizer.‑Que dona sem coração tenho eu!

‑ Onde está o tio Alberto? ‑ perguntou a Ana, enquanto se dirigiam para um arco de pedra, quebrado, que era a entrada do velho castelo. Dali partiam degraus também de pedra que seguiam até à porta central. Agora estavam partidos e gastos. A tia Clara caminhava cuidadosamente, com medo de se desequilibrar, mas os miúdos, como tinham solas de borracha, corriam à vontade.

Passaram por uma porta arruinada que dava para aquilo que parecia um grande pátio. Em tempos houvera ali um pavimento de pedra, mas agora estava quase coberto pela areia e pela erva.

O castelo tivera duas torres. Uma estava quase completamente destruída. A outra estava em melhor estado. Os corvos rodeavam‑na e voavam sobre as cabeças dos pequenos, gritando.

‑ Acho que o teu pai deve viver no quartinho pequeno, o que tem duas janelas que parecem fendas, ‑ disse o David à Zé. ‑ É o único lugar do castelo onde ele pode ficar abrigado. Tudo está em ruínas excepto aquele quartinho. Lembras‑te que nós uma vez passámos ali a noite?

‑ Lembro‑me, ‑ disse a Zé. ‑ Foi bem divertido. Suponho que é ali que vive o pai. Não há outro lugar, a não ser que tenha ido para os subterrâneos.

‑ Oh, ninguém viveria nos subterrâneos a não ser que fosse obrigado a isso! ‑ disse o David. ‑ São tão escuros e frios! Onde estará o teu pai, Zé? Não consigo vê‑lo em parte nenhuma.

‑ Mãe, onde estará o pai? ‑ perguntou a Zé. ‑ Onde é o laboratório? É naquele quartinho?

Ela apontou para o compartimento escuro, com paredes e tecto de pedra, que na verdade era tudo quanto restava da parte que outrora fora habitada.

‑ Realmente não sei bem ao certo, ‑ disse a mãe. ‑ Ele vai sempre esperar‑me à praia, sentamo‑nos na areia, comemos e conversamos mesmo ali. Parece que ele não quer que eu ande muito por estes sítios.

‑ Vamos chamar por ele, ‑ lembrou o David. Começaram todos a chamar com força. ‑ TIO ALBERTO! TIO ALBERTO!

Os corvos voaram, assustados, e as gaivotas também começaram a gritar «i‑u, i‑u, i‑u», repetidas vezes. Os coelhos desapareceram.

Nem sombras do tio Alberto. Gritaram outra vez. ‑ TIO ALBERTO! ONDE ESTÁ?

‑ Que barulheira! ‑ exclamou a tia Clara tapando os ouvidos.

‑ Com certeza que a Joana os deve ter ouvido, lá em casa. Mas onde estará o vosso tio? Isto é mesmo aborrecido! Eu disse‑lhe que vinha hoje aqui com vocês.

‑ Bem, ele deve estar em qualquer parte, ‑ disse o Júlio, para a animar. ‑ Se Mahomet não quer vir ter com a montanha, a montanha vai ter com Mahomet. O tio deve estar mergulhado em qualquer livro. Vamos procurá‑lo.

‑ Vamos ver no quartinho escuro, ‑ disse a Ana. Todos se dirigiram para o quartinho que era iluminado apenas por duas fendas. Numa das extremidades havia um espaço onde em tempos estivera uma lareira talhada na espessa parede de pedra.

‑ Não está aqui! ‑ disse o Júlio, surpreendido. ‑ E o que é mais, não há nada aqui! Nem comida, nem roupas, nem livros, nem nada. Isto aqui não é o seu laboratório, nem mesmo o seu armazém.

‑ Então deve estar nos subterrâneos! ‑ disse o David. ‑ Talvez seja necessário para o trabalho do tio, ficar num subterrâneo com água por todos os lados. Vamos procurar a entrada. Nós já a conhecemos; fica perto do velho poço, no meio do pátio.

‑ Também acho que o tio deve estar nos subterrâneos. Não lhe parece, tia Clara? ‑ perguntou a Ana. ‑ A tia também quer vir lá abaixo?

‑ Não, ‑ respondeu a tia. ‑ Os subterrâneos fazem‑me muita impressão. Fico aqui sentada ao sol, abrigada neste canto e vou desembrulhando as sanduíches. São quase horas do almoço.

‑ Muito bem, ‑ concordaram todos. Dirigiram‑se para a entrada dos subterrâneos. Esperavam ver já levantada a grande pedra lisa que tapava a entrada e assim seria só descerem os degraus que iam até aos subterrâneos.

Mas a pedra estava no seu lugar. O Júlio ia puxá‑la por uma argola de ferro para a levantar quando notou um pormenor importante.

‑ Reparem, ‑ disse ele. ‑ Há plantas que crescem na borda da pedra. Significa que há bastante tempo que ninguém a levanta. Por isso o tio Alberto não pode estar nos subterrâneos!

‑ Onde estará então? ‑ perguntou o David. ‑ Onde poderá estar?

E todos gritaram mais uma vez:

‑ Ó tio Alberto!

 

                   ONDE ESTÁ O TIO ALBERTO?

OS quatro pequenos ficaram a olhar para a grande pedra que tapava a entrada dos subterrâneos. O Júlio tinha toda a razão. Havia muitos meses que a pedra não devia ser levantada, pois tinha crescido grande quantidade de ervas mesmo em volta das extremidades, tapando as mais pequenas fendas. ‑ Não está ninguém lá em baixo, ‑ disse o Júlio. ‑ Nem vale a pena incomodarmo‑nos a levantar a pedra e a descermos. Se a tivessem levantado ultimamente estas ervas estariam todas estragadas.

‑ E nós sabemos que é impossível sair dos subterrâneos quando a pedra está a tapar a entrada, ‑ acrescentou o David. ‑ É muitíssimo pesada. O tio Alberto não cairia na asneira de se fechar lá dentro.

‑ Isso é verdade, ‑ disse a Ana. ‑ Mas se ele não está lá em baixo deve estar em qualquer outro sítio.

‑ Mas onde? ‑ perguntou a Zé. ‑ Esta ilha é muito pequena e nós conhecemos‑lhe todos os cantos. Estará ele na gruta onde uma vez nos escondemos? É a única gruta da ilha.

‑ Pode ser que esteja, ‑ respondeu o Júlio.

‑ Mas duvido. Não estou a ver o tio Alberto a saltar lá para dentro pelo buraco da parte superior da gruta; e essa é a única maneira de entrar, a não ser que vá pelas rochas da praia, o que demora imenso. Também não consigo vê‑lo a trepar pelas rochas.

Dirigiram‑se para o outro lado da ilha. Era ali a gruta onde em tempos haviam vivido. Podia lá entrar‑se, com dificuldade, pelas rochas escorregadias; ou, podia entrar‑se descendo por uma corda, passando por um buraco do tecto.

Encontraram a abertura meio tapada com tojo. O Júlio foi examinar. A corda ainda ali estava. ‑ Vou até lá abaixo dar uma olhadela, ‑ disse ele.

Desceu pela corda. Esta tinha nós a pequenos intervalos e por isso o pequeno podia apoiar os pés, evitando assim escorregar demasiado depressa, ferindo as mãos.

Em breve chegava à cave. Uma luz ténue vinha do lado do mar. O Júlio olhou à sua volta. Não havia ali absolutamente nada, excepto uma caixa velha que eles deviam ter deixado ficar esquecida na última vez que lá haviam estado. Subiu novamente pela corda e a sua cabeça apareceu de repente na abertura. O David estendeu‑lhe a mão, para o ajudar.

‑ Então? ‑ perguntou ele. ‑ Algum sinal do tio Alberto?

‑ Nenhum, ‑ respondeu o irmão. ‑ Não está ali, nem nunca esteve, acho eu. Que mistério! Onde estará ele e se realmente anda a fazer um trabalho importante onde está todo o material? Quero dizer, nós sabemos que trouxeram para aqui uma porção de coisas, pois a tia contou‑nos.

‑ Acham que ele foi para a torre? ‑ disse a Ana, de repente. ‑ Pode ser que esteja no compartimento envidraçado lá de cima.

‑ Se lá estivesse devia ter‑nos visto logo! ‑ disse Júlio, trocista. ‑ E também teria ouvido os nossos gritos. No entanto podemos lá ir num instante.

Voltaram ao castelo e foram até à estranha torre. A tia viu‑os e chamou‑os. ‑ O vosso almoço está pronto. Venham almoçar. O tio deve chegar em breve, espero eu.

‑ Mas, tia Clara, onde está ele? ‑ disse a Ana, muito intrigada. ‑ Nós procurámos por toda a parte!

A tia não conhecia a ilha tão bem como os pequenos. Ela imaginava que havia muitos lugares onde uma pessoa podia esconder‑se ou trabalhar.

‑ Não tem importância, ‑ disse ela, parecendo impassível. ‑ Ele chegará mais tarde. Venham para aqui almoçar.

‑ Vamos só subir à torre, ‑ disse o Júlio. ‑ Pode ser que ele lá esteja.

As quatro crianças e o Tim foram até à torre, no pátio do castelo. Passaram as mãos pelas placas lisas e brilhantes que estavam encaixadas umas nas outras, em filas curvas.

‑ Que material é este? ‑ perguntou o David.

‑ Julgo que é um material plástico moderno, ‑ disse o Júlio. ‑ Muito leve e forte.

‑ Eu teria medo que se desconjuntasse com o vento, ‑ disse a Zé.

‑ Também eu, ‑ concordou o David. ‑ Reparem; aqui está a porta.

A porta era pequena e arredondada na parte superior. Encontrava‑se uma chave na fechadura. O Júlio deu uma volta à chave e abriu a porta para o lado de fora e não para o lado de dentro.

A torre não era muito espaçosa. Via‑se uma escada em espiral, feita do mesmo material da própria torre, dando voltas e voltas até ao cimo. Havia um pequeno espaço dum lado, onde estavam salientes uns objectos da forma de ganchos, feitos duma substância que parecia aço. Passava um mesmo fio por todos eles.

‑ É melhor não lhe tocarmos, ‑ aconselhou o Júlio, observando‑os com curiosidade. ‑ Meu Deus, esta torre parece ter saído de um conto de fadas! Sigam‑me; vou pelas escadas até lá acima.

Começou a subir pela escada íngreme, em espiral. Ficou tonto por andar à roda tantas vezes.

Os outros seguiram‑no. Havia aqui e ali umas pequenas janelas, como fendas, abertas na parede da torre, iluminando um pouco a escada. O Júlio olhou através duma delas, deparando com uma linda vista sobre o mar.

O Júlio chegou ao cimo. Encontrou‑se num pequeno compartimento redondo, com paredes de vidro brilhante e espesso. Cabos eléctricos corriam pelo próprio vidro e depois perfuravam‑no ficando as extremidades soltas, cintilando e baloiçando com o vento forte que soprava em redor da torre.

Não havia mais nada no pequeno compartimento! O tio Alberto não estava ali. Era evidente que a torre servia apenas para conduzir os fios eléctricos lá a cima, fazê‑los passar pelo vidro espesso do compartimento superior e depois soltá‑los ao ar livre. Com que fim? Captariam eles alguma espécie de ondas magnéticas? Teriam ligação com o radar? O Júlio tentava adivinhar o significado da torre e dos fios eléctricos, delgados e luzidios.

Os outros juntaram‑se no pequeno compartimento. O Tim também lá estava, depois de ter subido a escada em espiral com alguma dificuldade.

‑ Céus! Que lugar tão estranho! ‑ exclamou a Zé. ‑ Mas que linda vista tem! Podemos ver milhas e milhas de mar e deste outro lado podemos ver também milhas e milhas para lá da baía, sobre a terra e os montes distantes.

‑ É maravilhoso! ‑ afirmou a Ana. ‑ Mas afinal onde está o tio Alberto? Ainda não o encontrámos. Suponho que ele esteja realmente na ilha.

‑ Pelo menos o seu barco está na enseada, ‑ disse a Zé. ‑ Nós vimo‑lo.

‑ Então deve encontrar‑se em qualquer parte, ‑ disse o David. ‑ Mas não está no castelo, nem nos subterrâneos, nem na gruta, nem aqui em cima. É um mistério de primeira ordem.

‑ «O Tio Desaparecido». Onde estará ele? ‑ disse o Júlio. ‑ Olhem, lá está a tia Clara à nossa espera para almoçarmos. É melhor descermos. Ela está a fazer‑nos sinais.

‑ Vamo‑nos embora, ‑ pediu a Ana. ‑ Este compartimento treme horrivelmente. Não sentem a torre a abanar quando lhe bate o vento? Vou descer depressa, antes que vá tudo pelos ares.

Ela começou a descer pelos degraus em espiral, segurando‑se a um delgado corrimão.

As escadas eram tão íngremes que a pequenita tinha medo de cair. E ela quase se desequilibrou quando o Tim passou por ela e desapareceu mais abaixo, a toda a velocidade.

Pouco depois todos tinham descido. O Júlio fechou de novo a porta à chave. ‑ Não há grande vantagem em fechar uma porta deixando a chave na fechadura, ‑ notou ele. ‑ Mesmo assim, é melhor.

Foram ter com a tia Clara. ‑ Estava a ver que nunca mais voltavam! ‑ disse ela. ‑ Viram lá em cima alguma coisa interessante?

‑ Só uma linda vista, ‑ respondeu a Ana. ‑ Simplesmente soberba. Mas não encontrámos o tio Alberto. É muito misterioso, tia Clara; nós procurámos o tio em toda a parte, sem resultado.

‑ Contudo o barco está na praia, ‑ disse o David. ‑ O tio não pode ter saído.

‑ Realmente parece estranho, ‑ disse a tia Clara, servindo as sanduíches. ‑ Mas vocês não conhecem o vosso tio tão bem como eu. Ele acaba sempre por aparecer. Esqueceu‑se que vos trazia hoje e por isso não veio esperar‑nos. Se assim foi pode ser que não o vejamos. Mas se se lembrar aparece de repente.

‑ Mas donde? ‑ perguntou o David, mastigando uma sanduíche de carnes frias. ‑ Ele fez uma desaparição de perfeito ilusionista, tia Clara.

‑ Quando ele chegar, vocês poderão ver donde ele vem, ‑ disse a tia. ‑ Mais uma sanduíche, Zé? Não são para ti, Tim. Tu já comeste três. Ó Zé afasta a cabeça do Tim para longe desse prato.

‑ Ele também tem fome, mãe, ‑ respondeu a Zé.

‑ Trouxe‑lhe biscoitos de cão, ‑ disse a mãe.

‑ Ó mãe! Como se o Tim comesse biscoitos de cão quando pode comer sanduíches! ‑ exclamou a Zé. ‑ Ele só come biscoitos de cão quando não há absolutamente mais nada e está tão faminto que não consegue deixar de comê‑los.

Estavam sentados ao sol, comendo com vontade. Havia laranjada, fresca e deliciosa. O Tim foi até uma poça que juntava a água da chuva e ouviram‑no beber.

‑ Ele não tem boa memória? ‑ disse a Zé, orgulhosa. ‑ Há que tempos não vem aqui. Mas lembrou‑se logo daquela poça quando sentiu sede.

‑ É extraordinário que o Tim não tenha encontrado o tio Alberto, não acham? ‑ disse o David.

‑ Quando estivemos à procura dele seria natural que o Tim começasse a ladrar, a escavar a terra ou qualquer coisa no género. Mas não fez nada disso.

‑ Acho muito estranho não conseguirmos encontrar o pai em parte alguma, ‑ notou a Zé.

‑ Palavra que acho. Não compreendo como pode estar tão calma, mãe.

‑ Sabes, querida, como já vos disse, eu conheço o teu pai melhor do que vocês, ‑ respondeu a mãe. ‑ Ele há‑de chegar quando for ocasião. Lembro‑me duma vez que ele desapareceu por mais de uma semana. Mas voltou a aparecer, sem novidade, quando acabou as suas experiências.

‑ Que esquisito! ‑ comentou a Ana, mas parou de falar subitamente. Começaram a ouvir um barulho curioso. Parecia o ribombar dum trovão e ao mesmo tempo comparava‑se ao ladrar furioso dum invisível cão gigante. Seguiu‑se um silvo, vindo da torre e todos os fios que baloiçavam na parte superior ficaram intensamente iluminados.

‑ O teu pai não deve estar longe, ‑ disse a mãe da Zé. ‑ Ouvi este mesmo barulho uma vez que aqui estive anteriormente; mas não consegui perceber donde vinha.

‑ Donde será? ‑ perguntou o David. ‑ Parecia vir debaixo da terra, mas não deve ser possível. Que grande mistério!

Não se ouviram mais ruídos. Todos se serviram dos bolos de frutas. A certa altura a Ana deu um grito tão grande que conseguiu assustá‑los.

‑ Olhem! Ali está o tio Alberto! Ali em pé, perto da torre. Está a observar os corvos. Donde é que ele veio?!

 

                   UM MISTÉRIO

Todos ficaram a olhar para o tio Alberto. Ali estava ele, observando os corvos com aparente atenção, de mãos metidas nas algibeiras. Ainda não vira as crianças nem a mulher. O Tim levantou‑se e foi aos saltos ter com o pai da Zé, ladrando muito alto. O tio Alberto sobressaltou‑se, voltando‑se. Viu o Tim e depois viu os outros, ficando muito admirado.

O tio Alberto não parecia muito satisfeito por os ver. Dirigiu‑se vagarosamente para eles, um pouco carrancudo. ‑ Que grande surpresa, ‑ disse ele. ‑ Não sabia que vinham hoje aqui.

‑ Ó Alberto! ‑ exclamou a mulher em tom de censura. ‑ Escrevi‑o na tua agenda. Bem sabes que o fiz.

‑ Sim? Nunca mais olhei para a minha agenda e por isso não admira que me tenha esquecido, ‑ respondeu o tio Alberto, um pouco irritado. Beijou a mulher, a Zé e a Ana e apertou a mão aos rapazes.

‑ Tio Alberto, donde veio? ‑ perguntou o David, que estava a morrer de curiosidade. ‑ Estivemos imenso tempo à sua procura.

‑ Venho do meu laboratório, ‑ disse o tio Alberto, vagamente.

Mas onde fica? ‑ perguntou o David. ‑ Sinceramente, tio, não conseguimos adivinhar onde se escondeu. Chegámos a subir à torre para ver se se encontrava no compartimento envidraçado, lá no alto.

‑ O quê! ‑ exclamou o tio, subitamente furioso. ‑ Atreveram‑se a subir lá acima? Correram um grande perigo. Estive mesmo agora a acabar uma experiência e todos os fios da torre tinham ligação com ela.

‑ Realmente nós vimos que se iluminaram ‑ disse o Júlio.

‑ Vocês não têm nada que vir aqui intrometerem‑se no meu trabalho, ‑ disse o tio, ainda furioso. ‑ Como puderam entrar na torre? Eu fechei‑a à chave.

‑ Realmente estava fechada, ‑ respondeu o Júlio. ‑ Mas a chave encontrava‑se na fechadura e por isso pensei que não tinha importância...

‑ Então é ali que está a chave? ‑ interrompeu o tio. ‑ Julguei que a tivesse perdido. Bem, nunca mais voltem à torre. Já lhes disse que é perigoso.

‑ Tio Alberto, ainda não nos explicou onde fica o seu laboratório, ‑ insistiu o David, que estava resolvido a saber. ‑ Não conseguimos fazer a menor ideia de onde apareceu.

‑ Eu fartei‑me de lhes dizer que tu acabarias por chegar, ‑ disse a tia Clara. ‑ Estás bastante abatido. Tens‑te alimentado bem? Não te esqueças que te deixei bastante sopa para tu aqueceres.

‑ Deixaste? ‑ disse o marido. ‑ Já não me lembro se a comi ou não. Não me preocupo com as refeições quando estou a trabalhar. Vou agora comer algumas dessas sanduíches, se mais ninguém as quiser.

Começou a comer as sanduíches, umas atrás das outras, vorazmente.

A tia Clara observava‑o, contristada.

‑ Ó Alberto, tu estavas a morrer de fome. Venho viver para aqui, para olhar por ti.

O marido ficou alarmado. ‑ Não, por favor! Ninguém deve vir para aqui. Estou a trabalhar numa descoberta extremamente importante.

‑ É uma descoberta feita só pelo tio? ‑ perguntou a Ana, com os olhos arregalados. Como o tio Alberto era inteligente!

‑ Não estou absolutamente certo disso, ‑ respondeu o tio Alberto, pegando em duas sanduíches ao mesmo tempo. ‑ Em parte foi por isso que eu vim para aqui; além de que preciso de água à minha volta e em cima de mim. Tenho uma vaga impressão que alguém sabe um pouco mais sobre o assunto do que eu gostaria. Mas tenho uma vantagem; ninguém pode chegar aqui a não ser que lhe indiquem o caminho por entre todas essas rochas que rodeiam a ilha. Só alguns pescadores o sabem e eles receberam ordens para não trazerem aqui ninguém. Julgo que tu, Zé, és a única pessoa que também sabe o caminho.

‑ Tio Alberto, diga‑nos por favor onde fica o seu laboratório, ‑ pediu o David, sentindo que não podia esperar nem mais um momento para decifrar aquele mistério.

‑ Não comeces a aborrecer o teu tio, ‑ disse a tia, maçada. ‑ Deixa‑o almoçar. Não deves comer nada há que tempos, Alberto!

‑ Sim, tia Clara, mas eu... ‑ respondeu o David, mas foi interrompido pelo tio.

‑ Obedece à tua tia, rapazinho. Não quero ser importunado por nenhum de vocês. Que importância tem o lugar onde eu trabalho?

‑ Realmente não tem importância nenhuma, tio, ‑ apressou‑se a concordar o David. ‑‑ É só uma curiosidade minha, pois nós procurámo‑lo por toda a parte.

‑ Pelos vistos não são assim tão espertos como pensavam, ‑ disse o tio, pegando num bolo de frutas. ‑ Zé, leva esse teu cão para longe de mim. Está a respirar sobre o meu pescoço, esperando que lhe dê uma migalha. Mas eu não concordo que se dêem migalhas aos cães durante as refeições.

A Zé levou o Tim. A tia Clara observava o marido a devorar o resto dos alimentos. A maior parte das sanduíches que ela havia guardado para o lanche já tinham desaparecido. Pobre Alberto!

Que esfomeado devia estar.

‑ Alberto, achas que não corres aqui nenhum perigo? ‑ perguntou ela. ‑ Quero dizer, julgas que ninguém tentará vir aqui espiar‑te, como já uma vez aconteceu?

‑ Não. Como seria possível? ‑ respondeu o marido. ‑ Nenhum avião pode aterrar nesta ilha. Nenhum barco consegue passar por entre as rochas a não ser que seja conhecido o caminho; e o mar à volta das rochas é demasiado bravo para se vir a nado.

‑ Júlio, vê se consegues que o tio te prometa fazer um sinal de manhã e outro à noite, ‑ disse a tia Clara, voltando‑se para o sobrinho. ‑ Ando sempre preocupada.

O Júlio abordou o tio, como se já fosse um homem. ‑ Tio, acha que seria um grande incómodo fazer um sinal à tia Clara duas vezes por dia?

Se não fizeres, Alberto, virei aqui ver‑te todos os dias, ‑ declarou a sua mulher.

‑ E nós também podemos vir, ‑ disse a Ana, maliciosamente. O tio parecia apavorado com a ideia.

‑ Está bem, posso fazer um sinal de manhã e outro à tarde, do alto da torre, ‑ disse ele. ‑ Tenho que lá ir de doze em doze horas para acertar os fios. Nessas alturas farei o sinal. Às dez e meia da manhã e às dez e meia da noite.

‑ Que sinal vai fazer? ‑ perguntou o Júlio. ‑ Não quer servir‑se dum espelho, pela manhã?

‑ É muito boa ideia, ‑ concordou o tio.

‑ Posso fazê‑lo facilmente. E à noite vou servir‑me duma lanterna. Farei seis sinais luminosos às dez e meia. Assim talvez fiquem a perceber que estou bem e me deixem em paz! Mas não esperem pelo sinal esta noite. Começarei amanhã de manhã.

‑ Ó querido Alberto, não estejas zangado,

‑ disse‑lhe a mulher. ‑ Bem sabes que é só por eu não gostar que estejas aqui sozinho. Estás magro e cansado. Tenho a certeza que não...

O tio Alberto encolheu os ombros, tal como a Zé fazia às vezes. Consultou o relógio de pulso.

‑ Bem, tenho que ir, ‑ disse ele. ‑ É tempo de recomeçar o trabalho. Vou acompanhá‑los ao barco.

‑ Nós tencionávamos lanchar aqui, pai, ‑ disse a Zé.

‑ Eu prefiro que se vão embora, ‑ disse o pai, levantando‑se. ‑ Vamos. Eu acompanho‑os até ao barco.

‑ Mas, pai, eu não venho à minha ilha há séculos! ‑ exclamou a Zé, indignada. ‑ Quero demorar‑me um pouco mais. Não vejo por que motivo não posso ficar.

‑ Já interromperam o meu trabalho por muito tempo, ‑ disse o pai. ‑ Quero recomeçar.

‑ Nós não o incomodaremos, tio Alberto, ‑ disse o David que continuava a arder de curiosidade por descobrir onde era o laboratório do tio. Porque não o diria ele? Seria só para os aborrecer? Ou não queria que eles soubessem?

O tio Alberto levou‑os com decisão até à pequena enseada. Era evidente que ele desejava que partissem e sem demora.

‑ Quando poderemos vir visitar‑te outra vez, Alberto? ‑ perguntou‑lhe a mulher.

‑ Só quando eu disser, ‑ respondeu o marido.

‑ Não me levará muito tempo a acabar o que tenho em mãos. Até que enfim aquele cão apanhou um coelho.

‑ Tim! ‑ gritou a Zé, zangada. O Tim largou o coelho que havia conseguido apanhar. Este desatou a correr pois não estava ferido. O Tim aproximou‑se da dona, muito embaraçado.

«És um cão muito feio! Só porque deixei meio segundo de olhar para ti! Não serve para nada começares‑me a lamber a mão. Estou zangada!

Chegaram todos ao barco. ‑ Eu empurro, ‑ disse o Júlio. ‑ Entrem todos. Adeus, tio Alberto. Espero que o seu trabalho siga bem.

Todos se acomodaram no barco. O Tim tentou deitar a cabeça no colo da Zé, mas ela afastou‑o.

‑ Tem pena dele e perdoa‑lhe, ‑ pediu a Ana.

‑ Ele até parece que vai chorar.

‑ Estão prontos? ‑ gritou o Júlio. ‑ Tens os remos, Zé? David, pega no outro par.

Empurrou o barco para a água e saltou lá para dentro. ‑ Não se esqueça de fazer o sinal, tio!

Nós ficaremos à espera todas as manhãs e todas as noites!

‑ Se te esqueceres, virei aqui logo no dia seguinte, ‑ disse a tia Clara.

O barco deslizava para fora do pequeno porto e já não se via o tio Alberto.

‑ Júlio, vê se consegues perceber onde está o tio, quando passarmos estas rochas, ‑ disse o David. ‑ Repara em que direcção ele segue.

O Júlio tentou ver o tio mas sem resultado, pois as rochas eram muito altas.

‑ Por que motivo não quis ele que nós ficássemos? Porque não quer que nós saibamos onde é o seu esconderijo! ‑ disse o David. ‑ E porquê? Porque fica em qualquer parte que nós não conhecemos!

‑ Mas eu julgava que nós conhecíamos todos os cantos da minha ilha, ‑ disse a Zé. ‑ Eu acho que o pai faz mal em não me dizer, se é um lugar que eu não conheço. Não consigo descobrir onde possa ficar!

O Tim deitou a cabeça outra vez nos joelhos da Zé. A Zé estava tão ocupada a pensar onde poderia ser o esconderijo do pai que sem querer tocou na cabeça do cão. Ele ficou encantado. Lambeu‑lhe os joelhos, com muita amizade.

- Oh! Tim, eu tencionava não te fazer festas durante muito tempo, ‑ disse a Zé. ‑ Pára de lamber os meus joelhos. Ficam todos molhados e nojentos. David, é muito misterioso, não achas? Onde poderá estar escondido o meu pai?

‑ Não consigo imaginar, ‑ disse o David. Nesse momento levantou‑se da ilha uma nuvem de corvos, voando e a grasnar.

O David observou‑os. Porque se teriam assustado? Seria por causa do tio Alberto? Talvez o seu esconderijo fosse perto da velha torre, onde os corvos faziam os ninhos. Mas por outro lado, algumas vezes os corvos levantavam voo, sem nenhuma razão aparente.

‑ Aqueles corvos estão a fazer uma grande barulheira, ‑ disse o pequeno. ‑ Talvez o esconderijo do tio não seja longe do sítio onde eles se empoleiram, naquela torre.

‑ Não pode ser, ‑ disse o Júlio. ‑ Nós hoje andámos por ali.

‑ Então é um mistério, ‑ concluiu a Zé, arreliada. ‑ E eu acho terrível haver um mistério na minha própria ilha e eu estar proibida de lá ir desvendá‑lo. É verdadeiramente insuportável!

 

                     UM PASSEIO PELOS ROCHEDOS

O dia seguinte estava chuvoso. Os quatro pequenos vestiram as gabardinas e chapéus de borracha e foram dar um passeio com o Tim. Eles nunca se importavam com o tempo. O Júlio até dizia que gostava de sentir o vento e a chuva a baterem‑lhe na cara.

‑ Esquecemo‑nos que o tio Alberto não nos pode fazer sinal quando não há sol! ‑ exclamou o David. ‑ Acham que ele arranjará outra maneira de fazer o sinal?

‑ Não, ‑ disse a Zé. ‑ Não se vai preocupar com isso. Tenho a certeza que ele nos acha muito maçadores. Às dez e meia da noite veremos se ele faz o sinal.

‑ Julgas que me deixam estar a pé até essa hora? ‑ perguntou a Ana, satisfeita.

‑ Creio que não, ‑ disse o David. ‑ Espero ficar a pé com o Júlio, mas vocês, miúdas, têm de ir para a cama.

A Zé deu‑lhe um encontrão. ‑ Não nos chames miúdas! Eu estou quase da tua altura.

‑ Agora não vale a pena esperarmos até às dez e meia para ver os sinais do tio Alberto, pois não? ‑ perguntou a Ana. ‑ Vamos até aos rochedos. Devem estar agradáveis com este vento. O Tim vai gostar. Eu acho imensa graça vê‑lo a correr ao vento, com as orelhas muito esticadas.

‑ Rrrr! Rrrr! ‑ fez o Tim.

‑ Ele está a dizer que também gosta de se ver quando há vento, com o nariz todo vermelho, ‑ disse o Júlio, muito a sério. A Ana desatou a rir.

‑ És mesmo idiota, Júlio! Vamos embora! Subiram aos rochedos. Lá em cima estava realmente muito vento. O chapéu de borracha da Ana ia voando. A chuva batia‑lhes nas bochechas e fazia‑os respirar com força.

‑ Penso que devemos ser as únicas pessoas que se atreveram a sair esta manhã! ‑ disse a Zé.

‑ Estás enganada, ‑ respondeu o David. ‑ Vêm duas pessoas a caminhar na nossa direcção.

Era verdade. Tratava‑se dum senhor e dum rapaz, ambos bem protegidos com gabardinas e chapéus de borracha. Tal como os pequenos, ambos tinham botas de borracha.

As crianças examinaram‑nos quando eles passaram. O homem era alto e bem constituído, com sobrancelhas espessas. O rapaz tinha por volta de dezasseis anos e também era alto, com boa figura. Não era feio mas tinha uma expressão triste.

‑ Bom‑dia, ‑ disse o senhor, cumprimentando.

‑ Bom‑dia, ‑ responderam os pequenos em coro, com delicadeza. O homem olhou‑os demoradamente e depois seguiu com o rapaz.

‑ Quem serão eles? ‑ perguntou a Zé. ‑ A mãe não nos disse que havia aqui gente nova.

‑ Naturalmente vieram da vila mais próxima, só dar um passeio.

Continuaram a caminhar. ‑ Vamos até à casa do guarda da costa e depois voltamos para trás, ‑ sugeriu o Júlio. ‑ Tim, não te chegues tanto à borda dos rochedos!

O homem olhou‑os demoradamente.

O guarda da costa vivia numa pequena vivenda caiada de branco, sobre os penhascos, voltada para o mar. Havia mais duas vivendas ao lado daquela, também caiadas de branco. Os pequenos conheciam bem o guarda da costa. Era um homem entroncado, de faces vermelhas, amigo de boas «piadas».

Não o encontraram ao chegarem à vivenda. Mas logo ouviram a sua voz grossa cantando uma canção de pescadores no pequeno alpendre, nas traseiras da casa. Foram até lá.

‑ Como está, senhor guarda? ‑ disse a Ana.

Ele riu‑se para as crianças. Estava muito ocupado a fazer qualquer coisa. ‑ Ora vivam! ‑ disse ele, ‑ Estão novamente de volta? Grandes mariolas, todos vocês! Sempre a aparecerem quando não são precisos!

‑ Que está a fazer? ‑ perguntou a Ana.

‑ Um moinho de vento para o meu neto mais novo, ‑ disse o guarda, mostrando‑o à Ana. ‑ Ele tinha muito jeito para fazer brinquedos.

‑ Oh, está lindo! ‑ exclamou a Ana, pegando‑lhe com as suas mãozitas. ‑ E gira muito bem! Está fantástico, senhor guarda!

‑ Tenho feito bom dinheiro a vender os meus brinquedos, ‑ disse o velhote, com orgulho. ‑ Agora tenho uns novos vizinhos na vivenda aqui ao lado. Um senhor e um rapaz; e o senhor vai comprando todos os brinquedos que eu faço. Deve ter muitos sobrinhos e sobrinhas! E paga‑me bem.

‑ Serão o senhor e o rapaz que nós encontrámos? ‑ disse o David. ‑ Os dois altos e bem constituídos; e o senhor tem umas sobrancelhas muito espessas.

‑ São esses mesmos, ‑ afirmou o guarda da costa, retocando o moinho. ‑ O senhor Curton e o filho. Chegaram há algumas semanas. O menino Júlio devia gostar de conhecer o filho. Acho que tem a sua idade. E deve sentir‑se aqui muito só.

‑ Não frequenta nenhum colégio? ‑ perguntou o Júlio.

‑ Não. Tem estado doente, segundo disse o pai. Precisa apanhar muito ar do mar. Não é mau rapaz. De vez em quando vem ajudar‑me a fazer os brinquedos. E gosta de manejar o meu telescópio.

‑ Também eu gosto, ‑ disse a Zé. ‑ Posso ir espreitar por ele agora? Gostava de ver se consigo apanhar daqui a Ilha Kirrin.

‑ Com este tempo não vai descobrir grande coisa, ‑ disse o guarda. ‑ Espere uns minutos. Vê aquela aberta nas nuvens? Daqui a alguns instantes aparecerá o sol e então facilmente verá a sua ilha. O seu pai construiu lá uma coisa muito engraçada, menina Zé. Naturalmente faz parte do trabalho dele.

‑ Faz sim, ‑ disse a Zé. ‑ Ó Tim! Veja o que ele fez, senhor guarda! Entornou aquela lata de tinta! Ó Tim, só fazes asneiras!

‑ Aquela lata não é minha, ‑ disse o guarda.

‑ Pertence ao menino que vive aqui ao lado. Já lhes disse que ele às vezes vem ajudar‑me. Trouxe aquela tinta para pintar uma casa de bonecas que eu fiz para o pai dele.

‑ Valha‑me Deus! ‑ exclamou a Zé, aflita.

‑ Acha que ele se vai zangar quando souber que o Tim a entornou?

‑ Penso que não, ‑ respondeu o guarda. ‑ Apesar de ser um rapaz especial, sossegado e um pouco tristonho...

Não é mau rapaz, mas não é comunicativo.

A Zé tentou limpar a tinta entornada.

O Tim tinha as patas pintadas e ia deixando marcas por todo o alpendre.

‑ Se encontrar o rapaz quando voltarmos para casa hei‑de pedir‑lhe desculpa, ‑ disse ela.

‑ Tim, se te atreves a aproximar‑te das outras latas de tinta, esta noite não dormes na minha cama.

‑ O tempo está a melhorar, ‑ disse o David. ‑ Podemos ir dar uma olhadela pelo telescópio, senhor guarda?

‑ Deixem‑me ver primeiro a minha ilha, ‑ pediu logo a Zé. Ela virou o telescópio na direcção da Ilha Kirrin. Observou com atenção e começou a sorrir.

‑ Vejo‑a nitidamente. Ali está a torre que o pai mandou construir. Até consigo distinguir o compartimento envidraçado e não está lá ninguém. Não descubro o pai em parte alguma.

Cada qual por sua vez olhou pelo telescópio. Era extraordinário ver a ilha tão perto. Num dia de sol ainda seria mais fácil observá‑la com todos os pormenores. ‑ Estou vendo um coelho a correr, ‑ disse a Ana, quando chegou a sua vez.

‑ Então não deixe o seu cão olhar agora pelo telescópio, ‑ apressou‑se o guarda a dizer.

‑ Há‑de querer penetrar nele para correr atrás do coelho!

O Tim levantou as orelhas quando ouviu a palavra «coelho». Olhou à sua volta, cheirando. Mas não havia ali nenhum coelho. Então porque teriam falado neles?

‑ É melhor irmos andando, ‑ disse o Júlio.

‑ Voltaremos um destes dias para vermos os seus brinquedos.

Obrigado por nos ter deixado ver pelo telescópio.

‑ Serão sempre bem‑vindos, ‑ disse o velhote. ‑ Ele não se gasta só por olharem. Venham sempre que quiserem usá‑lo.

Despediram‑se e foram‑se embora, com o Tim a pular à volta deles. ‑ Vi tão bem a Ilha Kirrin! ‑ exclamou a Ana. ‑ Só gostava de ter descoberto onde estava o teu pai, Zé. Não era engraçado se o tivéssemos apanhado mesmo a sair do esconderijo?

Os quatro pequenos haviam discutido bastante sobre o caso, desde a visita à ilha. Intrigava‑os muito. Como seria possível que o pai da Zé conhecesse um esconderijo e eles não soubessem da sua existência? Já haviam estado em todos os lugares da ilha. E tinha de ser um esconderijo bastante grande, pois o tio Alberto levara com ele material para as suas experiências. Segundo dissera a mãe da Zé, eram muitas coisas, não falando em provisões de comida.

‑ Se o pai conhece um sítio que eu não conheço e nunca disse nada, acho que foi muito pouco correcto, ‑ dizia a Zé, repetidas vezes. ‑ Devia ter‑me dito. A ilha é minha!

‑ Naturalmente diz‑te, quando acabar as experiências, ‑ lembrou o Júlio. ‑ Depois saberemos e talvez possamos lá ir.

Tomaram o caminho para casa, seguindo pelos rochedos e então viram o rapaz que haviam encontrado anteriormente. Estava parado a olhar para o mar. O senhor não estava com ele.

Voltou‑se quando os pequenos se aproximaram e fez um leve sorriso. ‑ Olá! Foram visitar o guarda da costa?

‑ Fomos, ‑ respondeu o Júlio. ‑ É muito bom homem, não acha?

‑ Sabe, ‑ começou a Zé. ‑ Peço‑lhe desculpa, porque o meu cão entornou a lata de tinta verde e o guarda disse‑me que era sua. Deixa‑me pagá‑la, se faz favor?

‑ De maneira nenhuma! ‑ disse o rapaz. ‑ Não tem importância. Já estava quase vazia. O seu cão é muito bonito.

‑ Também acho, ‑ disse a Zé com convicção. ‑ É o melhor cão do Mundo. Já o tenho há bastantes anos, mas continua cheio de vivacidade. Gosta de cães?

‑ Muito, ‑ respondeu o rapaz, mas não se mexeu para fazer uma festa ao Tim, como acontecia com a maior parte das pessoas.

E por sua vez o Tim não saltava à volta do rapaz nem o cheirava, como fazia normalmente ao encontrar uma pessoa desconhecida. Continuava ao lado da Zé, com a cauda nem para cima nem para baixo.

- Aquela ilha é muito curiosa, ‑ disse o rapaz, apontando para Kirrin. ‑ Gostava de lá ir.

‑ É a minha ilha, ‑ afirmou a Zé, com orgulho.

‑ É só minha.

‑ Palavra? ‑ disse o rapaz com delicadeza. ‑ Então permite‑me que lá vá um dia?

‑ Por agora não, ‑ respondeu a Zé. ‑ O meu pai está ali a trabalhar; ele é um cientista.

‑ Palavra? ‑ repetiu o rapaz. ‑ Então está a fazer uma nova experiência?

‑ Está, sim, ‑ afirmou a Zé.

‑ E aquela torre tão estranha, penso que está relacionada com o trabalho do seu pai, não é verdade? ‑ disse o rapaz, parecendo interessado pela primeira vez. ‑ Quando acaba a experiência?

‑ Que tem a ver com isso? ‑ interrompeu de repente o David. Os outros fitaram‑no, surpreendidos. O David fora bastante incorrecto e ele não costumava ser assim.

‑ Oh, nada! ‑ apressou‑se o rapaz a responder. ‑ Pensei apenas que se o trabalho de seu pai se concluir depressa, talvez o seu irmão me possa levar à ilha.

A Zé não podia deixar de se sentir satisfeita. Aquele rapaz julgava que ela também era um rapaz! A Zé simpatizava sempre com as pessoas que caíam no erro de a tomarem por um rapaz.

‑ Claro que posso levar, ‑ respondeu ela.

‑ E não terá que esperar muito, pois as experiências estão quase no fim.

 

                   UMA PEQUENA DISCUSSÃO

OUVIRAM passos. Era o pai do rapaz que se aproximava. Cumprimentou as crianças. ‑ Arranjaste uns amigos? ‑ disse ele, amavelmente. ‑ Acho muito bem. O meu filho está muito só. Espero que qualquer dia nos vão visitar. Já acabaste a tua conversa, filho?

‑ Já sim, ‑ disse o rapaz. ‑ Este menino diz que a ilha é dele e vai lá levar‑me quando o pai acabar o trabalho que ali está a fazer, o que não demorará muito.

‑ E você sabe o caminho através de todas aquelas rochas perigosas? ‑ perguntou o senhor. ‑ Noutro dia estive a falar com os pescadores e parece que nem um sabe o caminho.

Era para admirar. Alguns pescadores sabiam com certeza. Mas os pequenos lembraram‑se então que os homens tinham sido proibidos de levar fosse quem fosse à ilha, enquanto o tio Alberto estivesse ali a trabalhar. Claro que eles tinham fingido não conhecer o caminho, para cumprirem as ordens recebidas.

‑ Então o senhor quer ir à ilha? ‑ perguntou o David.

‑ Eu não! Mas o meu pequeno gostaria imenso de ir, ‑ disse o senhor. ‑ Não quero ficar enjoado, balouçando para cima e para baixo nas ondas que cercam a ilha. Sou mau marinheiro. Nunca viajo por mar a não ser que seja absolutamente necessário.

‑ Temos que nos despedir, ‑ disse o Júlio. ‑ Ainda vamos fazer umas compras para a minha tia. Adeus!

‑ Venham visitar‑nos logo que possam, ‑ pediu o senhor. ‑ Tenho um bom aparelho de televisão que o Martinho gostaria de vos mostrar. Até uma destas tardes!

‑ Muito obrigado, ‑ disse a Zé. Ela nunca tinha visto televisão. ‑ Não faltaremos!

Separaram‑se e os pequenos seguiram com o cão pelos rochedos.

‑ Porque foste tão antipático, David? ‑ perguntou a Zé. ‑ Disseste duma tal maneira «Que tem a ver com isso?» que até parecia um insulto.

‑ Tive umas suspeitas e nada mais, ‑ explicou o David. ‑ O rapaz pareceu‑me de tal maneira interessado na tua ilha, no trabalho do teu pai e quando ficará pronto...

‑ E porque não havia de estar? ‑ perguntou a Zé. ‑ Toda a gente da vila está interessada! Todos observam a torre. Tudo o que o rapaz queria saber era quando poderia ir à minha ilha e por isso perguntou quando terminaria o trabalho do pai. Eu gostei do rapaz.

‑ Tu bem sabes que gostaste dele só por ser tão burro que te tomou por um rapaz, ‑ declarou o David. ‑ Um lindo rapaz ameninado é o que eu te acho!

A Zé ficou furiosa. ‑ Não sejas parvo! Eu não sou ameninada. Tenho muito mais sardas do que tu e sobrancelhas mais espessas. E sei fazer voz grossa.

‑ Tu és completamente idiota, ‑ disse o David lamentando‑a. ‑ Como se as sardas quisessem dizer alguma coisa!

As raparigas podem ter tantas sardas como os rapazes. E eu não acredito que aquele rapaz te tomasse por outro rapaz. Estava só a lisonjear‑te. Deve ter ouvido dizer que tu gostas de passar por uma coisa que não és.

A Zé avançou para o David de tal maneira furiosa que o Júlio apressou‑se a meter‑se entre os dois. ‑ Nada de discussões! ‑ disse ele. ‑ Acho que já são bastante crescidos para andarem à bofetada um ao outro, como os miúdos da escola infantil. Deixem‑me dizer‑lhes, ambos se estão a portar como autênticos bebés e não como rapazes ou raparigas!

A Ana fitava‑os com um olhar assustado. A Zé não costumava ficar fora de si daquela maneira. E era esquisito o David ter falado com o rapaz tão rudemente. O Tim soltou um latido. Tinha a cauda caída e parecia muito infeliz.

‑ Ó Zé, o Tim não suporta que tu te zangues com o David! ‑ exclamou a Ana. ‑ Olha para ele! Está tristíssimo!

‑ Ele também não gostou nada daquele rapaz, ‑ disse o David. ‑ Foi outra coisa que eu achei estranho. Quando o Tim não gosta duma pessoa eu também não gosto.

‑ O Tim nem sempre salta à volta das pessoas que conhecemos de novo, ‑ respondeu a Zé. ‑ No entanto ele não rosnou nem ladrou. Está bem, está bem Júlio; não vou recomeçar a discutir. Mas acho que o David foi bastante palerma. Fazer duma coisa sem importância um bicho de sete cabeças, só por uma pessoa se interessar pela Ilha Kirrin e pelo trabalho do pai e porque o Tim não desatou aos pulos à sua volta.

Ele é um rapaz tão sisudo que não me admira que o Tim não lhe tenha feito festa. Naturalmente percebeu que o rapaz não ia gostar. O Tim tem esperteza para isso!

‑ Acabemos com esta história, por favor! ‑ disse o David. ‑ Dou‑te razão, e não fico amuado! Pode ser que tenha sido idiota e naturalmente fui. No entanto não pude esconder os meus sentimentos.

A Ana deu um suspiro de alívio. Acabara a discussão e ela esperava que não recomeçasse: A Zé andava muito irritável desde que chegara a casa. Se o tio Alberto se apressasse a acabar o seu trabalho e eles pudessem ir à ilha as vezes que quisessem, as coisas mudariam.

‑ Gostava bastante de ver o tal aparelho de televisão ‑ disse a Zé. ‑ Podemos lá ir uma destas tardes.

‑ Está bem, ‑ concordou o Júlio. ‑ Mas por vários motivos acho melhor não falarmos sobre os trabalhos do teu pai. Não é que nós saibamos grande coisa. Mas lembra‑te que já uma vez quiseram roubar‑lhe uma das suas teorias. Os segredos dos cientistas são muito importantes nos nossos dias, Zé. Os cientistas são P. M. I.

‑ Que quer dizer P. M. I.?

‑ Pessoas Muito Importantes, ‑ disse o Júlio, rindo. ‑ Que imaginavas tu que fosse? Parvos, Malandros e Indesejáveis?

Todos se riram, até mesmo a Zé. Ela olhou para o Júlio com amizade. Era tão sensato e bem disposto! Realmente ela devia sempre seguir o que ele dissesse.

O dia passou com calma. O tempo melhorou,

aparecendo o sol. O ar cheirava a flores e ao sal do mar. Que agradável! Foram fazer umas compras para a tia Clara e de caminho pararam a falar com o Jaime, o pescador.

‑ O seu pai ocupou a ilha, ‑ disse ele à Zé, com um sorriso. ‑ Pouca sorte, menina. Agora não pode lá ir tantas vezes. E as outras pessoas também não, segundo ouvi dizer.

‑ Tens razão, ‑ respondeu a Zé. ‑ Não é permitido a ninguém ir lá durante algum tempo. Tu ajudaste a levar o material, Jaime?

‑ Ajudei sim. Eu sei o caminho, pois aprendi‑o com a menina ‑ disse o Jaime. ‑ Como achou o seu barco quando ontem saiu nele? Olhe que o arranjei todo!

‑ Bem sei, Jaime, ‑ respondeu a Zé, agradecida. ‑ Ficou lindo! A próxima vez que formos à ilha hás‑de ir connosco.

‑ Muito obrigado, ‑ disse o Jaime com o seu sorriso pronto, mostrando toda a dentadura muito branca. ‑ Quer deixar o Tim comigo, por uma semana ou duas? Veja como ele deseja ficar!

A Zé riu‑se. Sabia que o Jaime estava a brincar. Ele era muito amigo do Tim e este adorava o Jaime. O cão nunca esquecera o tempo em que fora tão bem tratado pelo pequeno pescador.

Começou a anoitecer e a baía tomou um belo tom de azul. Os quatro pequenos fitaram a Ilha Kirrin. Era sempre linda àquela hora do dia.

A parte envidraçada da torre brilhava e cintilava ao sol. Até quase parecia que alguém estava a fazer sinais. Mas não havia ninguém no pequeno compartimento. Enquanto os pequenos estavam a olhar começaram a ouvir um som especial e de repente iluminou‑se a parte superior da torre, com um curioso clarão.

‑ Reparem! Exactamente como aconteceu ontem! ‑ exclamou o Júlio, entusiasmado. ‑ O trabalho do teu pai continua a correr bem, Zé. Gostava de adivinhar o que está ele a fazer!

Em seguida ouviu‑se um som parecido com o barulho dum avião e uma vez mais o cimo da torre se acendeu e deitou faíscas, como se os fios se tornassem portadores dum estranho poder.

‑ Maravilhoso! ‑ exclamou o David. ‑ E também um pouco assustador. Onde estará o teu pai neste momento, Zé? Como eu gostaria de saber!

‑ Tenho a certeza que se esqueceu outra vez de comer, ‑ disse a Zé. ‑ Lembram‑se como devorou as nossas sanduíches? Devia estar a morrer de fome. Era melhor que ele deixasse a mãe ir para lá cuidar dele.

A tia Clara apareceu naquela altura.

‑ Ouviram o barulho? ‑ perguntou ela. ‑ Julgo que é outra vez o teu pai a trabalhar. Meu Deus, espero que não acabe um dia por ir tudo pelos ares!

‑ Tia Clara, esta noite posso ficar a pé até às dez e meia? ‑ perguntou a Ana cheia de esperanças. ‑ Para ver os sinais do tio Alberto?

‑ Claro que não! ‑ disse a tia. ‑ Ninguém precisa de ficar a pé. Eu posso perfeitamente observá‑lo sozinha.

‑ Ó tia Clara! Mas eu e o David podemos estar levantados! ‑ disse o Júlio. ‑ No fim de contas nós no colégio não nos deitamos antes das dez.

‑ Está bem, mas os sinais são às dez e meia e a essa hora ainda nem estariam na cama, ‑ disse a tia. ‑ Não há razão para vocês não se deitarem e verem depois os sinais se quiserem e se ainda não estiverem a dormir!

‑ É verdade, podemos fazer isso! ‑ concordou o Júlio. ‑ A janela do nosso quarto dá para a Ilha Kirrin. Seis sinais com uma lanterna? Hei‑de contá‑los com cuidado.

Assim os quatro foram para a cama às horas normais. A Ana adormeceu muito antes das dez e meia e a Zé àquela hora estava tão sonolenta que não conseguiu levantar‑se e ir ao quarto dos rapazes. Mas o Júlio e o David continuavam ambos bem despertos. Estavam deitados e olhavam para a janela. Não havia luar, mas o céu estava limpo e as estrelas brilhavam, dando uma luz pálida. O mar parecia muito negro.

Não havia sinal da Ilha Kirrin. Ele perdia‑se na escuridão da noite.

‑ São quase dez e meia, ‑ disse o Júlio, olhando para o seu relógio, que tinha ponteiros luminosos. ‑ Então, tio Alberto, que se passa?

Quase como se o tio estivesse a responder‑lhe, brilhou uma luz no compartimento envidraçado da torre. Era uma luz viva e pequena, tal como a luz duma lanterna.

O Júlio começou a contar. ‑ Um clarão! ‑ Houve um intervalo. ‑ Dois clarões. Outro intervalo. ‑ Três... Quatro... Cinco... Seis!

Não houve mais clarões. O Júlio preparou‑se para dormir. ‑ Ora muito bem. O tio Alberto passa sem novidade. É formidável pensar que ele sobe aqueles degraus em espiral até ao cimo da torre, no meio da escuridão da noite, não é? Só para verificar aqueles fios.

‑ Uuuum, ‑ respondeu o David, cheio de sono. ‑ Prefiro que seja ele a fazê‑lo do que eu. Tu podes vir a ser um cientista como ele, Júlio, mas cá por mim não estou disposto a subir a torres no meio da noite, numa ilha deserta. Pelo menos gostaria de ter o Tim comigo!

Alguém bateu à porta e abriu‑a. O Júlio sentou‑se na cama. Era a tia Clara.

‑ Oh! Querido Júlio, viste os clarões? Esqueci‑me de os contar. Foram seis?

‑ Foram sim, tia Clara! Eu teria corrido a preveni‑la se houvesse alguma coisa de anormal. O tio está bem. Não se preocupe!

‑ Gostava de lhe ter pedido para fazer um sinal extra indicando se comeu a sopa, ‑ disse a tia. ‑ Boa‑noite, Júlio. Dorme bem!

 

                   NA PEDREIRA

NO dia seguinte o tempo estava muito bonito. Os quatro desceram para o pequeno almoço com óptima disposição. ‑ Podemos ir tomar banho de mar? Tia Clara, olhe que está muito calor. Deixe‑nos ir!

‑ Estão malucos! Quem é que toma banhos em Abril! ‑ disse a tia Clara. ‑ E sabem que a água está muitíssimo fria. Querem passar o resto das férias na cama, com uma constipação?

‑ Então vamos dar um passeio pelos campos por detrás do Casal Kirrin, ‑ lembrou a Zé. ‑ O Tim vai gostar imenso. Não vais, Tim?

‑ Béu! Béu! ‑ fez o Tim, batendo com a cauda no chão.

‑ Levem o almoço com vocês, se quiserem, ‑ disse a tia Clara. ‑ Eu posso arranjá‑lo.

‑ Espero que fique satisfeita por se ver livre de nós durante um bocado, tia Clara, ‑ disse o David. ‑ Eu já sei o que vamos fazer! Vamos até à velha pedreira procurar pedras pré‑históricas. Nós temos no colégio um museu muito interessante e eu gostava de levar para lá umas pontas de seta ou qualquer coisa assim.

Todos eles gostavam de fazer pesquisas. Seria divertido irem para a velha pedreira e devia estar agradável e quente na cova que ali havia.

‑ Espero que não encontremos um carneirinho morto, como uma vez nos aconteceu, ‑ disse a Ana, com um arrepio.

‑ Pobrezinho! Deve ter caído lá abaixo e deve ter balido a pedir socorro durante imenso tempo.

‑ Claro que não encontramos, ‑ afirmou o Júlio. ‑ Vamos encontrar tufos de flores, primaveras e violetas, crescendo pelos bordos da pedreira. Elas aparecem ali muito cedo, por ser abrigado do vento.

‑ Gostava que me trouxessem umas primaveras, ‑ disse a tia. ‑ Das maiores! Que chegassem para enfeitar toda a casa.

‑ Enquanto os rapazes andarem à procura de pedras pré‑históricas, nós colheremos as primaveras ‑ disse a Ana, satisfeita. ‑ Eu gosto muito de apanhar flores. ‑ E o Tim está claro que vai apanhar coelhos.

‑ Espero trazer‑lhes bastantes para enfeitar a despensa de alto a baixo, ‑ disse o David, muito sério. O Tim ficou intrigado e fez «Rrrrm» como de costume.

Esperaram pelo sinal do tio Alberto, às dez e meia. Lá apareceu. Seis clarões feitos com um espelho voltado para o sol. Os clarões eram fortíssimos.

‑ Que belo heliógrafo! ‑ disse o David. ‑ Bom‑dia e adeus tio! Voltaremos a observá‑lo esta noite. Estão todos prontos?

‑ Estamos! Anda Tim! Quem traz as sanduíches? O sol está quentíssimo!

Saíram todos. Tinham vestido os casacos e levavam botas de borracha, mas iam em cabelo e ninguém pensara em vestir gabardina. Seria um dia realmente bem passado?

A pedreira não ficava longe. Os pequenos foram primeiro dar um passeio, por causa do Tim. Depois dirigiram‑se para a pedreira.

Era um lugar curioso. Em tempos fora escavado num ou noutro sítio, para tirarem pedra. Mas agora as bordas estavam cobertas com pequenos arbustos, erva e plantas de toda a espécie. Nos lugares arenosos havia tojo. Os lados eram muito escarpados e como poucas pessoas ali iam não havia caminho para seguir. Era como uma grande cova, irregular nalguns sítios, agora cheia de colorido, com as primaveras abrindo as suas pálidas pétalas, viradas para o céu. Cresciam ali centenas de violetas, tanto escuras como brancas. E havia outras flores a começarem a abrir.

‑ Que lindo! ‑ disse a Ana, parando na parte superior e olhando para baixo. ‑ Simplesmente maravilhoso! Nunca na minha vida vi tantas primaveras juntas! Nem tão grandes!.

‑ Tem cuidado onde pões os pés, Ana, ‑ avisou o Júlio. ‑ Estas descidas são muito íngremes. Se perdes o equilíbrio, vais parar lá ao fundo com um braço ou uma perna partida!

‑ Eu tenho cuidado, ‑ prometeu a Ana. ‑ Vou atirar o meu cesto lá para baixo e assim fico com as duas mãos livres para me agarrar aos arbustos, se for preciso. Depois vou encher o cesto até acima, com primaveras e violetas!

Ela atirou com o cesto e este foi saltando até ao fundo da pedreira. Cada qual desceu para onde lhe convinha; as raparigas para um grande tufo de primaveras e os rapazes para um lugar onde esperavam encontrar pedras pré‑históricas.

‑ Olá, ‑ exclamou de repente uma voz, vinda de mais baixo. Os quatro pararam surpreendidos e o Tim rosnou.

‑ Olá! ‑ exclamou de repente uma voz.

‑ É você! ‑ disse a Zé, reconhecendo o rapaz que haviam encontrado no dia anterior.

‑ Não sei se sabem o meu nome. Chamo‑me Martinho Curton, ‑ disse o rapaz.

O Júlio disse‑lhe os nomes deles. ‑ Viemos aqui fazer um piquenique, ‑ explicou. ‑ E ver se conseguimos encontrar pedras pré‑históricas. E tu que vieste fazer?

‑ Oh... Também vim procurar pedras pré‑históricas, ‑ disse o rapaz.

‑ Encontraste alguma? ‑ perguntou a Zé.

‑ Não. Ainda não.

‑ Mas aí onde estás não encontrarás nenhuma,

‑ disse o David. ‑ No tojo não é possível! Tens que vir mais para aqui, onde a terra é arenosa e sem vegetação.

O David estava a esforçar‑se por ser simpático, para compensar o dia anterior. O Martinho aproximou‑se e começou a procurar com os rapazes. Estes tinham umas trolhas mas o outro tinha apenas as mãos.

‑ Não acham que está calor aqui em baixo?

‑ perguntou a Ana. ‑ Vou tirar o casaco.

O Tim meteu a cabeça numa toca de coelho. Escavou com violência, atirando com terra para todos os lados.

‑ Não se aproximem do Tim, a não ser que queiram ficar soterrados! ‑ disse o David. ‑ Oh! Tim, achas que um coelho merece todo esse trabalho?

Parecia que sim, pois o Tim, respirando com força, continuava a cavar cheio de energia. Uma pedra veio pelos ares e apanhou o Júlio. Ele esfregou a cara.

Depois olhou a pedra que caíra ao lado dele. Soltou uma exclamação. ‑ Olhem para esta! É a extremidade duma seta. Muito obrigado, Tim! É muito simpático andares a cavar para mim. Vê se encontras mais alguma coisa.

Os outros aproximaram‑se para ver a pedra. A Ana pensou que nunca perceberia do que se tratava, mas o Júlio e o David estavam entusiasmados com o achado.

‑ Que belo exemplar! ‑ exclamou o David. ‑ Repara na forma como está talhado, Zé. E pensar que há milhares de anos serviu para matar os inimigos dum homem das cavernas!

O Martinho não fez grandes espantos. Limitou‑se a olhar para a pedra, que era realmente um bonito exemplar, intacto, e depois afastou‑se. O David achava‑o uma pessoa especial. Um pouco tristonho e aborrecido. Pensou se o deveriam convidar para o piquenique. No fundo, não lhe apetecia nada.

Mas a Zé não era da mesma opinião!

‑ Também trouxeste almoço? ‑ perguntou ela. O Martinho abanou a cabeça.

‑ Não. Não trouxe nem uma sanduíche.

‑ Nós temos muitas. Fica connosco, ‑ disse a Zé generosamente.

‑ Obrigado. És muito amável, ‑ respondeu o rapaz. ‑ E em troca vocês vão ver esta tarde o meu aparelho de televisão? Eu gostaria imenso.

‑ Está bem, ‑ concordou a Zé. ‑ Será uma variante. Oh! Ana, olha para aquelas violetas! Nunca vi violetas brancas tão grandes. Não achas que a mãe vai ficar contente?

Os rapazes foram seguindo mais para baixo, continuando a procurar em todos os lugares que lhes pareciam indicados. Chegaram a um sítio onde havia uma espécie de prateleira de pedra. Seria um bom sítio para almoçarem. A pedra devia estar aquecida pelo sol e era bastante lisa para colocar em cima as garrafas de laranjada e os copos.

Ao meio‑dia e meia hora foram almoçar. Todos tinham muita fome. O Martinho também comeu sanduíches e fez‑lhes muitos elogios.

‑ São as melhores sanduíches que tenho provado, ‑ disse ele. ‑ Especialmente estas de sardinhas. Foi a vossa mãe que as preparou? Quem me dera ter mãe? A minha morreu há muito tempo.

Houve um silêncio de simpatia. Nenhum dos quatro podia pensar numa coisa pior que pudesse acontecer a um rapaz ou a uma rapariga. Imediatamente ofereceram ao Martinho as melhores arrufadas e a maior fatia de bolo.

- Ontem à noite vi os sinais feitos pelo vosso pai, ‑ disse o Martinho comendo uma arrufada.

O David ficou logo alerta. ‑ Como soubeste que eram sinais? ‑ perguntou ele. ‑ Quem te disse?

‑ Ninguém, ‑ respondeu o rapaz. ‑ Vi os seis clarões e calculei que fosse o pai do Zé.

Ele parecia surpreendido com o tom exaltado do David. O Júlio deu um beliscão ao David, para o fazer compreender que devia disfarçar os seus sentimentos.

A Zé fez uma careta ao primo. ‑ Naturalmente também viste os sinais do meu pai, esta manhã, ‑ disse ela ao Martinho. ‑ Até aposto que imensa gente os viu. Ele fez sinais com um espelho às dez e meia da manhã, para nós sabermos que está bem.

E à mesma hora da noite, faz sinais com uma lanterna.

Naquela altura foi a vez do David fazer uma careta à Zé. Por que motivo estava ela a dar todas aquelas informações? Não era necessário! O David tinha a certeza que ela estava a fazer aquilo tudo só para se vingar da pergunta que ele fizera primeiro. Tentou mudar de assunto.

‑ Em que colégio andas? ‑ perguntou ele.

‑ Não frequento nenhum, ‑ respondeu o rapaz. ‑ Tenho estado doente.

‑ E antes de adoeceres? ‑ insistiu o David.

‑ Tinha... Tinha um preceptor, ‑ confessou o Martinho. ‑ Nunca andei no colégio.

‑ Pouca sorte, ‑ disse o Júlio. Ele achava que devia ser terrível não ir ao colégio, e não poder participar em todos os divertimentos, trabalhos e jogos da vida escolar. Olhou para o Martinho com curiosidade. Seria ele um daqueles rapazes bastante estúpidos que não conseguindo fazer nada nos colégios tinham por isso que ter um preceptor em casa? No entanto ele não parecia estúpido. Ele parecia apenas tristonho e aborrecido.

O Tim, que estava sentado na pedra, também tivera a sua dose de sanduíches mas desta vez fora um pouco racionada, para ficarem bastantes para o Martinho.

O cão portava‑se duma maneira esquisita em relação ao Martinho. Não lhe ligava absolutamente nenhuma importância. Era como se o rapaz não estivesse presente!

E o Martinho também não ligava ao Tim. Não falava com ele, nem lhe fazia festas. A Ana tinha a certeza que ele realmente não gostava de cães, embora o tivesse dito. Pois como podia uma pessoa estar ao pé do Tim e não lhe fazer nem uma festa?

O Tim nem mesmo olhava para o Martinho, sentando‑se de costas para ele, encostado à Zé. Realmente aquilo era divertido, se não fosse tão estranho. Afinal a Zé estava a falar amigavelmente com o Martinho; tinham‑no convidado para o piquenique e o Tim continuava a portar‑se como se o Martinho não estivesse ali!

A Ana estava a reparar em tudo isto, quando o Tim abriu a boca, sacudiu‑se e deu um salto. ‑ Vai outra vez à procura de coelhos, ‑ disse o Júlio. ‑ Tim, encontra‑me mais uma pedrinha, sim?

O Tim abanou a cauda. Desapareceu debaixo da prateleira de pedra e pouco depois levantou‑se uma nuvem de terra e pedras.

Os pequenos deitaram‑se na laje grande, bastante ensonados. Conversaram durante alguns minutos e depois a Ana sentiu os olhos a fecharem‑se.

Foi acordada pela voz da Zé.

‑ Onde está o Tim? Tim! Tim! Vem cá! Onde te meteste?

Mas não apareceu nenhum Tim. Nem ao menos se ouvia ladrar. ‑ Oh, céus! ‑ exclamou a Zé. ‑ Deve estar dentro dalguma toca mais profunda, suponho eu. Tenho que o ir buscar. Tim! Onde estás?

 

                   A ZÉ FAZ UMA DESCOBERTA

A Zé saltou da rocha e foi ver o que havia por baixo. Via‑se ali uma grande abertura, que o Tim tinha alargado, com as suas escavadelas.

‑ Espero que não tenhas encontrado por fim uma toca de coelho com tamanho suficiente para lá entrares! ‑ disse a Zé. ‑ Tim! Onde estás?

Da abertura não vinha nem um latido. A Zé meteu‑se por baixo daquela espécie de prateleira de pedra e entrou pelo buraco. O Tim tinha‑o alargado imenso. A Zé chamou o Júlio.

- Júlio! Deita‑me cá para baixo a tua trolha, sim.?

A trolha veio cair aos pés da pequena. Ela agarrou‑a e começou a fazer o buraco ainda maior. Podia ser que aquele fosse bastante grande para o Tim mas não era o suficiente para ela.

Cavou com energia e depressa ficou cheia de calor. Resolveu ir acima da rocha para ver se algum dos outros quereria ajudá‑la. Mas todos estavam a dormir!

- Preguiçosos! ‑ pensou a Zé, esquecendo‑se que também ela estaria a passar pelo sono, se não tivesse resolvido ir procurar o Tim.

Saltou outra vez da pedra e recomeçou a cavar com a trolha. Depressa tornou o buraco do tamanho preciso para passar. Ficou surpreendida por encontrar uma passagem bastante espaçosa, logo a seguir à entrada que ela havia alargado. Podia avançar por ali, agachada.

- Gostava de saber se isto é só uma toca de animais ou se segue para algum sítio! ‑ pensou a Zé. ‑ Tim! Onde estás?

Ouviu‑se um latido distante vindo de qualquer parte ainda mais afastada. A Zé serenou. O Tim sempre estava ali! Continuou a avançar e de repente a passagem tornou‑se alta e espaçosa e ela percebeu que se encontrava num túnel. Estava uma completa escuridão e por isso não podia ver nada mas apenas sentir.

Pouco depois ouviu o som das patas do Tim e sentiu‑o a roçar‑se nas suas pernas. ‑ Ó Tim, pregaste‑me um grande susto! ‑ disse a Zé. ‑ Onde estiveste? Isto é realmente um túnel que vai dar a qualquer sítio ou é apenas uma escavação sem importância feita pelos velhos mineiros aqui da pedreira e agora usada só pelos animais?

‑ Rrnm! ‑ dizia o Tim, puxando pelos calções da Zé, para a levar para a luz do dia.

‑ Eu vou já! ‑ disse a Zé. ‑ Não julgues que quero andar por aqui sozinha às escuras! Vim só procurar‑te.

Ela voltou para a prateleira de pedra. Entretanto o David acordara e começara a pensar onde teria ido a Zé. Esperou alguns minutos olhando para o céu azul e depois levantou‑se.

‑ Zé! ‑ Ninguém respondeu. Assim, por sua vez o David também saltou da pedra e olhou em redor. Com grande surpresa viu primeiro o Tim e depois a Zé, agachada, saindo do buraco por baixo da pedra. Ficou parado, de boca aberta, admiradíssimo; a Zé começou a rir.

‑ Não aconteceu nada, ‑ disse a Zé. ‑ Andei à procura de coelhos, com o Tim.

Ela parou diante do primo, sacudindo a terra dos calções e da camisola. ‑ Há uma passagem a seguir à entrada do buraco, por baixo da pedra, ‑ disse ela. ‑ Ao .princípio é só uma passagem apertada, como uma toca de animais; depois começa a alargar e acaba por se tornar num verdadeiro túnel, espaçoso e alto! Claro que não pude ver se continuava, pois estava às escuras. O Tim chegou até bastante ao fundo.

‑ Que extraordinário!‑exclamou o David.

‑ Estou entusiasmado.

‑ Vamos explorá‑lo, sim? ‑ lembrou a Zé. ‑ Espero que o Júlio tenha trazido uma lanterna de algibeira.

‑ Não, ‑ disse o David. ‑ Hoje não é bom dia.

Naquele momento os outros já estavam acordados e ouviram com interesse a Zé e o David. ‑ É uma passagem secreta? ‑ perguntou a Ana, excitada. ‑ Vamos explorá‑la!

‑ Não, hoje não, ‑ repetiu o David. Ele olhou para o Júlio. Este percebeu logo que o David não queria que o Martinho entrasse naquele segredo. Realmente ele não era um verdadeiro amigo, pois acabavam de o conhecer. O Júlio fez um sinal ao irmão.

‑ Também acho que é melhor não irmos hoje examinar a passagem. E naturalmente não é nada de especial; apenas um velho túnel feito pelos homens da pedreira.

O Martinho estava a ouvir com um grande interesse. Foi olhar para o buraco. ‑ Eu gostava de lá ir dentro, ‑ declarou ele. ‑ Podíamos combinar encontrarmo‑nos todos outra vez, com lanternas, para ver se realmente há uma passagem por ali.

O Júlio consultou o relógio. ‑ São quase duas horas. Olha, Martinho, se sempre vamos ver esse tal programa de televisão das duas e meia, é melhor irmos andando.

As raparigas começaram a subir pela pedreira, levando os cestos com as primaveras e violetas. O Júlio pegou no cesto da Ana, com medo que ela escorregasse e caísse. Depressa todos haviam chegado ao cimo. Ali o ar parecia muito fresco, depois do calor lá do fundo.

Caminharam na direcção dos rochedos e pouco depois passavam pela casa do guarda da costa. Ele estava no jardim e cumprimentou‑os.

Entraram pelo portão da vivenda ao lado. O Martinho empurrou a porta. O pai dele estava sentado perto da janela, a ler. Levantou‑se logo com um amável sorriso de boas‑vindas.

‑ Muito bem, muito bem! Entrem, meus meninos! E o cão também. Os cães não me incomodam nada. Até gosto deles.

Parecia muita gente para aquele pequeno compartimento. Foram apertar a mão ao sr. Curton. O Martinho explicou apressadamente que levara as crianças para verem um programa de televisão.

- Boa ideia, ‑ disse o sr. Curton, continuando a sorrir. A Ana observou as suas enormes sobrancelhas. Eram muito longas e espessas. A Ana achava que ele as devia aparar, mas talvez o sr. Curton gostasse delas assim. Davam‑lhe um ar bastante desagradável, pensou a pequenita.

Os quatro examinaram o compartimento. Havia um aparelho de televisão na extremidade oposta, colocado sobre uma mesa. Também havia uma óptima telefonia e uma outra coisa que interessou logo os rapazes.

‑ Têm um aparelho transmissor e outro receptor! ‑ disse o Júlio.

‑ Temos, sim, ‑ confirmou o sr. Curton. ‑ É o meu passatempo. Fui eu que fiz esse aparelho.

‑ Deve ser muito habilidoso! ‑ disse o David.

‑ Que é um aparelho transmissor? ‑ perguntou a Ana. ‑ Já tenho ouvido falar nisso.

‑ É um aparelho que serve para mandar mensagens pela telegrafia sem fios; como têm os carros da polícia, para enviarem mensagens para as respectivas estações, ‑ explicou o David. ‑ E este é de grande alcance.

O Martinho mexeu nos botões do aparelho de televisão. Começou o programa e Ana soltou uma exclamação de surpresa ao ver a cara dum homem aparecer de repente na tela iluminada do aparelho. ‑ Posso ouvi‑lo e vê‑lo, ‑ segredou a Ana ao Júlio. O sr. Curton percebeu o que ela estava a dizer e riu‑se.

‑ Mas o vosso cão não pode cheirá‑lo, senão quereria correr atrás dele.

Foi muito divertido verem o programa de televisão. Quando este acabou o sr. Curton pediu aos pequenos para ficarem para o lanche.

‑ Não digam que não, ‑ disse ele. ‑ Se quiserem telefono à vossa tia a pedir‑lhe autorização, para ela não estar em cuidado.

‑ Agradeço‑lhe, sr. Curton, ‑ disse o Júlio. ‑ Assim a tia escusa de ficar sem saber onde nós estamos.

O sr. Curton telefonou à tia Clara. Ela disse que eles podiam ficar mas não deviam chegar a casa muito tarde.

Seguiu‑se um lanche inesperado, muitíssimo bom. O Martinho não era muito falador, mas o sr. Curton falava pelos dois. Ele ria‑se e gracejava, sendo uma agradável companhia. A conversa recaiu sobre a Ilha Kirrin. O sr. Curton declarou que a achava linda ao anoitecer. A Zé sentiu‑se satisfeita.

‑ Também concordo, ‑ disse ela. ‑ Sempre pensei assim. Bem gostava que o pai não tivesse escolhido esta altura do ano para trabalhar na minha ilha. Tinha planeado ir lá ficar.

‑ Deve conhecer‑lhe todos os cantos! ‑ disse o sr. Curton.

‑ Claro que conheço! ‑ afirmou a Zé. ‑ Todos nós conhecemos. Há ali subterrâneos, sabe, subterrâneos verdadeiros, muito profundos, onde uma vez encontrámos lingotes de ouro.

‑ Sim, lembro‑me de ler qualquer coisa sobre isso, ‑ disse o sr. Curton. ‑ Deve ter sido uma extraordinária aventura. Que engraçado terem encontrado os subterrâneos! E há ali também um velho poço, não há?

‑ Há sim, ‑ disse a Ana, lembrando‑se. ‑ E também há uma gruta onde vivemos durante uns dias que tem uma entrada pelo tecto e outra pelo lado do mar.

‑ E o vosso pai está a fazer as suas complicadas experiências nos subterrâneos? ‑ perguntou o sr. Curton. ‑ Que lugar tão estranho para trabalhar!

‑ Nós não... ‑ começou a Zé, mas apanhou um pontapé no tornozelo, dado pelo David. Ela fez uma careta de dor. Fora um valente pontapé.

‑ Que ia dizer? ‑ perguntou o sr. Curton, parecendo surpreendido.

‑ Eu ia dizer que... que... que nós não sabemos que lugar escolheu o pai, ‑ disse a Zé, pondo as pernas fora do alcance dos pontapés do David.

O Tim de repente deu um uivo. A Zé olhou para ele, surpreendida. O cão fitava o David com uma expressão magoada.

‑ Que aconteceu, Tim? ‑ perguntou a Zé, inquieta.

‑ Deve estar a sentir muito calor aqui dentro, ‑ disse o David. ‑ É melhor levá‑lo lá para fora, Zé.

A Zé, muito preocupada, saiu com o Tim. O David foi ter com ela.

‑ Porque me deste um pontapé com tanta força? ‑ perguntou a Zé, um pouco irritada.

‑ Vou ficar com uma nódoa negra horrível.

‑ Tu sabes muito bem porque o fiz, ‑ respondeu o David. ‑ A contar tudo daquela maneira! Não vês que os sujeitos estão todos interessados no trabalho do teu pai na ilha? Pode ser que não tenha importância mas tu deves pelo menos calar a boca. És mesmo uma rapariga, não podes viver sem tagarelar. Tinha que te fazer calar de qualquer maneira e não me importa dizer‑te que pisei a cauda do Tim para ele ladrar e assim voltares a tua atenção para ele e calares‑te.

‑ Tu és um bruto! ‑ exclamou a Zé, indignada.

‑ Como pudeste tu magoar o Tim?

‑ Eu não o desejava. Foi uma pena, ‑ disse o David, fazendo festas nas orelhas do cão. ‑ Pobre Tim! Eu não queria magoar‑te, meu amigo!

‑ Vou já para casa, ‑ disse a Zé, vermelha de cólera. ‑ Detesto‑te por procederes dessa maneira. A dizeres que eu tagarelo como uma rapariga e a pisares a cauda do Tim. Podes voltar lá para dentro e dizeres que eu vou levar o Tim a casa.

‑ Está bem, ‑ respondeu o David. ‑ E é uma bela coisa. Quanto menos falares com o sr. Curton, melhor. Vou lá para dentro a ver se descubro o que ele realmente é e o que faz. Tenho bastantes desconfianças. É melhor ir antes que tu lhe contes mais alguma coisa.

A Zé, furiosa, afastou‑se com o Tim. O David voltou para pedir desculpas pela prima. O Júlio e a Ana, certos de que acontecera qualquer coisa, sentiam‑se pouco à vontade.

Levantaram‑se para partir, mas com grande surpresa viram o David tornar‑se muito conversador, parecendo de repente muito interessado no sr. Curton e suas ocupações.

Por fim, despediram‑se e foram‑se embora.

‑ Venham outra vez, não se esqueçam, ‑ disse o sr. Curton, sorrindo‑se para as três crianças. ‑ E digam ao outro rapazito, como se chama, Zé, que eu desejo que o cão já esteja completamente bem. Um cão tão bonito e bem‑educado! Adeus! Até qualquer dia!

 

                   UM SINAL IMPREVISTO

- QUE aconteceu à Zé? ‑ perguntou o Júlio, logo que se afastaram o suficiente para já não serem ouvidos. ‑ Percebi que lhe deste um pontapé durante o lanche por estar a falar de mais sobre a ilha, o que realmente estava sendo uma parvoíce da parte dela. Mas porque foi ela para casa, assim de repente?

O David contou‑lhe que havia pisado a cauda do pobre Tim, para o fazer ganir, e assim a Zé voltar a atenção para o bichano e deixar de tagarelar. O Júlio riu‑se, mas a Ana ficou indignada.

‑ Foste muito mau, David!

‑ Concordo, ‑ disse o David. ‑ Mas não consegui arranjar outra maneira de desviar a Zé da conversa sobre a ilha. Palavra que me convenci que ela estava a dizer àquele sujeito coisas que ele muito desejava saber. Mas agora acho que ele tinha outro motivo.

‑ Não te percebo, ‑ disse o Júlio intrigado.

‑ Bem, primeiro eu pensei que ele queria apanhar o segredo do tio Alberto, ‑ explicou o David. ‑ E que era essa a razão por que ele perguntava pormenores sobre tudo. Mas agora que ele disse ser jornalista (é um homem que escreve para os jornais, Ana) penso que afinal ele só quer informações com o fim de as mandar para o seu jornal e fazer uma grande reportagem quando o tio Alberto acabar o trabalho.

‑ Também julgo isso, ‑ disse o Júlio, pensativo. ‑ Tenho a certeza de que é assim. Não há mal nenhum no caso mas não vejo porque nos havemos de sentar ali para sermos atacados com perguntas durante todo o tempo. Ele podia dizer com naturalidade: ‑ Olhem, gostaria muito que vocês me dissessem tudo quanto sabem sobre a Ilha Kirrin; gostava de escrever sobre ela para o jornal. ‑ Mas ele não diz nada assim.

‑ Pois não. E por isso eu andava desconfiado,

‑ disse o David. ‑ Mas eu vejo agora que ele quer saber tudo quanto se passa na Ilha Kirrin só para mandar para o seu jornal, que eu não sei qual é. O pior vai ser para explicar à Zé que eu estava enganado; e ela anda furiosa!

‑ Vamos passar pela vila e compramos no talho uns ossos para o Tim, ‑ lembrou o Júlio. ‑ Uma espécie de desculpa que pedes ao Tim! Era uma boa ideia. Compraram no talho dois

grandes ossos com carne agarrada, e depois foram para casa. A Zé estava no quarto, com o Tim. Os quatro subiram a escada para irem ao seu encontro.

Ela estava sentada no chão, a ler um livro. Levantou os olhos, aborrecida, quando os primos entraram.

‑ Zé, desculpa eu ter sido tão bruto, ‑ disse o David. ‑ Deves compreender que o fiz na melhor das intenções. Mas agora descobri que o sr. Curton não é um espião, querendo apanhar o segredo do teu pai. Ele é apenas um jornalista, procurando uma história para o seu jornal! Olha, trouxe isto para o Tim e também a ele peço desculpa.

A Zé estava muito mal‑humorada, mas tentou corresponder à simpatia do David. Sorriu‑se para ele.

‑ Está bem. Obrigada pelos ossos; é melhor ninguém falar comigo esta noite. Sinto‑me mal disposta, mas isto passa.

Deixaram‑na sentada no chão. Era sempre melhor deixar a Zé completamente só quando estava com uma das suas crises de mau‑humor. Desde que o Tim ficasse com ela, não era preciso mais nada, e ele certamente não deixaria a sua dona enquanto ela se sentisse zangada e aborrecida.

A Zé não desceu para jantar. O David explicou:

‑ Nós tivemos uma pequena zanga, tia Clara, mas já fizemos as pazes. No entanto a Zé ainda está de mau‑humor. Posso levar‑lhe o jantar lá acima?

‑ Eu levo, ‑ disse a Ana. Depois levou ao quarto da Zé um tabuleiro cheio de comida apetitosa.

‑ Não tenho vontade, ‑ disse a Zé, e então a Ana preparou‑se para voltar com o tabuleiro.

‑ Mas podes deixar ficar, ‑ apressou‑se a pedir a Zé. ‑ Talvez apeteça ao Tim.

Assim a Ana, disfarçando um sorriso, deixou o tabuleiro. Quando voltou para o buscar os pratos estavam todos vazios!

‑ Meu Deus, o Tim estava com fome! ‑ disse a Ana à prima e esta não pôde deixar de sorrir.

‑ Agora não vais lá para baixo? Nós vamos jogar o monopólio.

‑ Não, obrigada. Deixem‑me sozinha esta noite e amanhã já estarei bem, ‑ disse a Zé.

Por isso o Júlio, o David, a Ana e a tia Clara jogaram o monopólio sem a Zé. Foram deitar‑se à hora do costume e encontraram a Zé já na cama, a dormir a sono solto com o Tim instalado sobre os seus pés.

‑ Eu fico à espera dos sinais do tio Alberto, ‑ disse o Júlio, enquanto se deitava. ‑ Hoje está uma noite escuríssima.

Meteu‑se na cama e começou a olhar pela janela para a Ilha Kirrin. Depois, exactamente às dez e meia apareceram seis clarões seguidos, no meio da escuridão. O Júlio ajeitou a cabeça na almofada. Agora podia dormir descansado.

Um pouco mais tarde acordou com um barulho que parecia dum motor. Sentou‑se e olhou pela janela, esperando ver o cimo da torre iluminar‑se, como acontecera nas outras vezes, quando o tio fazia uma certa experiência. Mas nada disso aconteceu. Não se via a mais pequena luz. O ruído acabou e o Júlio preparou‑se outra vez para dormir.

- Ontem à noite vi os sinais do tio Alberto, ‑ disse o Júlio à tia, na manhã seguinte. ‑ A tia também viu?

‑ Também, ‑ respondeu ela. ‑ Tu podes ficar a observá‑los esta manhã, Júlio? Tenho que ir ver o sr. Cura por causa dum certo assunto e da casa dele acho que não consigo ver a torre.

‑ Não se preocupe que eu me encarrego disso, tia Clara, ‑ disse o Júlio. ‑ Que horas são agora? Nove e meia. Óptimo. Vou escrever umas cartas, sentado ao pé da janela do meu quarto e às dez e meia verei os sinais.

Foi escrever as cartas, sendo várias vezes interrompido pela Zé, pela Ana e pelo David que queriam que ele fosse com eles até à praia. A Zé estava já bem disposta e esforçava‑se por ser especialmente simpática, para compensar o mau‑génio do dia anterior.

‑ Só posso ir depois das dez e meia, ‑ disse o Júlio. ‑ Logo que tenha visto os sinais vindos da torre. Devem aparecer dentro de dez minutos.

Às dez e meia ele olhou para a parte envidraçada da torre. Lá apareceu o primeiro sinal, um clarão tão vivo como o sol reflectido no espelho que o tio Alberto segurava, lá longe.

«Um clarão, ‑ contou Júlio. ‑ Dois, três, quatro, cinco, seis. O tio continua bem.

Já ia a retirar‑se quando apareceu outro clarão. ‑ Sete! ‑ seguiu‑se mais outro. Oito, nove, dez, onze, doze.

Mais seis sinais vieram da torre e depois mais nenhum. O Júlio tinha pena de não ter um telescópio para poder observar bem a torre! Sentou‑se a pensar por uns momentos, muito intrigado. Depois ouviu os outros a subirem as escadas. Entraram de rompante no quarto.

‑ Júlio! O pai fez dezoito sinais em vez de seis!

‑ Porque seria? Estará ele a correr algum perigo?

‑ Se assim fosse teria feito os sinais de S. O. S. em Morse, ‑ disse o Júlio.

‑ Ele não sabe Morse! ‑ garantiu a Zé.

‑ Julgo que foi só para nós percebermos que ele precisa de qualquer coisa, ‑ disse o Júlio. ‑ Temos de lá ir hoje para perguntarmos o que se passa. Talvez queira mais comida.

Assim, quando a tia Clara chegou a casa, sugeriram que talvez fosse bom irem todos à ilha. A tia Clara ficou satisfeita.

‑ Acho muito bem. Naturalmente o vosso tio quer encarregar‑me de mandar uma mensagem para qualquer parte. Vamos lá esta manhã.

A Zé correu a dizer ao Jaime que precisava do barco. A tia Clara, com a ajuda da Joana meteu em cestos uma grande porção de comida. Depois partiram para a Ilha Kirrin no barco da Zé.

Quando chegaram ao pequeno porto, viram o tio Alberto à espera deles. Ele acenava com a mão e ajudou a puxar o barco quando aquele chegou à areia.

‑ Vimos o teu sinal triplo, ‑ disse a tia Clara.

‑ Precisas de alguma coisa?

‑ Acho que sim, ‑ respondeu o tio Alberto.

‑ Que trazes tu nesse cesto, Clara? Mais sanduíches deliciosas? Vou comer algumas.

‑ Ó Alberto, continuas a não te alimentares devidamente? ‑ perguntou a tia Clara. ‑ Gostaste daquela sopa?

‑ Qual sopa? ‑ perguntou o tio Alberto, parecendo surpreendido. ‑ Que pena não saber da sua existência. Podia ter comido alguma a noite passada.

‑ Mas Alberto! Eu fartei‑me de te dizer! ‑ exclamou a tia Clara. ‑ Agora já deve estar estragada. Tens que a deitar fora. Não te esqueças. Onde está ela? Talvez seja melhor ir eu mesma deitá‑la fora.

‑ Não é preciso. Eu depois deito, ‑ disse o tio Alberto. ‑ Vamo‑nos sentar para almoçarmos.

Era cedíssimo para comerem, mas a tia Clara sentou‑se logo e começou a desembrulhar a comida. Os pequenos estavam prontos para uma refeição, a qualquer hora, por isso não se importavam nada que o almoço fosse tão cedo.

‑ Então, querido, como vai o teu trabalho? ‑ perguntou a tia Clara, vendo o marido devorar as sanduíches atrás umas das outras. Ela começava a desconfiar que ele não devia ter comido nada desde a altura em que ela o deixara, dois dias atrás.

‑ O meu trabalho vai muito bem, ‑ disse o marido. ‑ Não podia ir melhor. Cheguei ao ponto mais complicado e interessante. Dá‑me mais uma sanduíche.

‑ Porque fez dezoito sinais, tio Alberto? ‑ perguntou a Ana.

‑ Realmente é difícil de explicar, ‑ respondeu o tio. ‑ O caso é que suspeito estar alguém nesta ilha, para me espiar.

‑ Alberto! Que queres dizer com isso? ‑ exclamou a tia Clara, muito assustada. Ela voltou‑se para trás quase como quem espera dar de caras com alguém. Os pequenos olhavam para o tio Alberto com o maior espanto.

Ele pegou noutra sanduíche. ‑ Eu bem sei que isto parece loucura. Mais ninguém devia conseguir aqui chegar. Mas eu sei que há alguém na ilha.

‑ Não diga isso, tio! ‑ pediu a Ana, arrepiada.

‑ Que horrível! E passa a noite sozinho!

‑ Ora aí está. Não me importava nada de ficar realmente só, ‑ disse o tio. ‑ O que me preocupa é pensar que não estou completamente só.

‑ O que leva o tio a pensar que está aqui mais alguém? ‑ perguntou o Júlio.

‑ Ontem à noite quando acabei uma experiência por volta das três e meia da madrugada, estava escuro como breu, ‑ contou o tio. ‑ Vim cá fora para apanhar um pouco de ar. E eu posso jurar que ouvi tossir; tossiu duas vezes!

‑ Meu Deus! ‑ exclamou a tia Clara, alarmada. ‑ Mas Alberto, podes ter‑te enganado. Às vezes, quando estás cansado, começas a imaginar coisas, bem sabes.

‑ Tens razão, ‑ disse o marido. ‑ Mas não podia imaginar isto, não achas?

Ele meteu a mão na algibeira e tirou qualquer coisa. Mostrou‑a aos outros. Era uma ponta de cigarro, ainda recente e fresca.

- Eu não fumo cigarros. Nem nenhum de vocês. Então quem fumou este cigarro? E como apareceu aqui? Ninguém o poderia trazer, vindo de barco... e vindo de barco é a única maneira de aqui chegar.

Fez‑se um silêncio. A Ana sentia‑se assustada. A Zé olhava para o pai confusa.

Quem poderia estar ali? E por que motivo? E como teria ali chegado?

‑ Ouve, Alberto, que vais tu fazer? ‑ perguntou‑lhe a mulher. ‑ Que será melhor?

‑ Eu ficarei bem se a Zé der o seu consentimento sobre uma coisa, ‑ declarou o tio Alberto. ‑ Eu gostava que o Tim ficasse aqui, Zé! Não te importas de o deixar comigo?

 

                   A ZÉ TOMA UMA DECISÃO DIFÍCIL

HOUVE um silêncio de expectativa. A Zé olhou para o pai com o maior desânimo. Todos estavam à espera de ouvir o que ela resolveria.

‑ Mas, pai, eu e o Tim nunca nos separámos, nem uma vez, ‑ disse ela, por fim, com uma voz que fazia dó. ‑ Eu compreendo que queira que ele o guarde e pode ficar com ele, mas eu tenho de ficar também.

‑ Isso não ‑ respondeu logo o pai. ‑ Não é possível tu ficares Zé, nem tem discussão. E lá por nunca teres estado separada do Tim, com certeza que não te importarás de estar por uma só vez. Lembra‑te de que se trata da minha segurança.

A Zé estava muito aflita. Era a decisão mais difícil que ia tomar em toda a sua vida. Deixar o Tim na ilha onde estava escondido um inimigo desconhecido, que lhe faria todo o mal que pudesse!

E por outro lado havia o pai; ele podia ficar em perigo, se ninguém estivesse a guardá‑lo.

‑ Eu tenho mesmo que ficar aqui, pai, ‑ repetiu ela. ‑ Não posso aqui deixar o Tim, a não ser que eu também fique.

O pai começou a perder a paciência. Ele era como a Zé; queria fazer sempre a sua vontade e, se não o conseguia logo, ficava imediatamente exaltado.

‑ Se eu pedisse a mesma coisa, ao Júlio, ao David ou à Ana, e se eles tivessem um cão, eles diriam logo que sim, ‑ disse ele, furioso. ‑ Mas tu, Zé, gostas sempre de tornar as coisas complicadas. Parece que esse cão vale umas mil libras!

‑ Para mim vale muito mais do que isso, ‑ disse a Zé, com a voz a tremer. O Tim aproximou‑se dela e meteu o nariz na mão da pequena. Ela agarrou‑lhe na coleira, como se não o quisesse abandonar nem por um momento.

‑ Está bem. Esse cão vale mais para ti, do que o teu pai ou a tua mãe, ‑ disse o pai, tristemente.

‑ Não, Alberto, eu não posso ouvir‑te dizer uma coisa dessas, ‑ interveio a mulher, com firmeza. ‑ Isso é insensato. Uma mãe ou um pai são completamente diferentes dum cão. Gosta‑se deles de maneiras distintas. Mas tu tens toda a razão em dizeres que o Tim deve aqui ficar contigo. E está claro que eu não consentirei que a Zé fique com ele. Não quero que ambos vocês estejam expostos ao perigo. Já me preocupo bastante só por tua causa.

A Zé olhou para a mãe, desanimada.

‑ Mãe! Diga ao pai que eu devo aqui ficar com o Tim.

‑ Não posso, ‑ respondeu a mãe. ‑ Agora, Zé, não sejas egoísta. Se deixássemos o Tim resolver, sabes muito bem que ele ficaria aqui, mesmo sem ti. Ele diria para consigo: Sou aqui preciso; precisam dos meus olhos para espiar os inimigos, dos meus ouvidos para ouvirem os passos mais leves e talvez dos meus dentes para proteger o meu dono. Ficarei separado da Zé por alguns dias, mas ela, tal como eu, tem idade suficiente para compreender tudo isto! ‑ Era assim que o Tim diria, Zé, se lhe fosse possível.

Todos haviam escutado com grande atenção aquele discurso inesperado. E era a única maneira de pôr as coisas de modo a convencer a Zé a ceder voluntariamente.

Ela olhou para o Tim. Ele não tirava os olhos dela, abanando a cauda. E depois fez uma coisa extraordinária; levantou‑se, foi ter com o pai da Zé e deitou‑se ao lado dele, fitando a Zé, como quem diz: ‑ Aqui tens! Agora já sabes o que penso; e eu tenho razão!

‑ Estás a ver? ‑ disse‑lhe a mãe. ‑ Ele concorda comigo. Tu sempre disseste que o Tim é muito bom e isto o prova. Ele sabe qual é o seu dever. É para teres um grande orgulho nele.

‑ E tenho! ‑ disse a Zé num tom expressivo. Ela levantou‑se e começou a andar. – Está bem, ‑ disse ela, por cima do ombro. ‑ Eu deixo‑o na ilha com o pai. Volto daqui a um minuto.

A Ana levantou‑se para ir fazer companhia à pobre Zé, mas o Júlio impediu‑a.

‑ Deixa‑a sozinha! Meu bom Tim! Tu sabes o que é bem e o que é mal, não sabes? És um cão admirável!

O Tim abanava a cauda. Ele não fez menção de seguir a Zé. Resolvera ficar ao pé do pai da sua dona, embora gostasse mais de estar com ela. O Tim tinha pena que a Zé estivesse tão triste, mas às vezes era melhor fazer uma coisa custosa e ficar triste por isso, do que estar contente, não a praticando.

‑ Ó Alberto, não gosto nada de te saber aqui, andando alguém a espiar‑te, ‑ disse a tia Clara.

‑ Fico muito preocupada. Quanto tempo falta para acabares o teu trabalho?

‑ Só alguns dias mais, ‑ respondeu o marido. Ele olhou para o Tim com admiração. ‑ Este cão deve ter percebido o que nós estivemos a dizer há bocado, Clara. Foi notável a maneira como ele caminhou para mim.

‑ É um cão muito inteligente, ‑ disse a Ana com calor. ‑ Não és, Tim? O tio Alberto estará em segurança, ficando com ele. Quando quer, é feroz.

‑ Hei‑de ter cuidado para que não salte ao meu pescoço, ‑ respondeu o tio. ‑ Ele é muito grande e forte. Ainda há mais bolo?

‑ Alberto, faz‑te muito mal andares sem comer, ‑ disse a mulher. ‑ Não vale a pena dizeres‑me que não é verdade, pois bem vejo como estás esfomeado.

O marido não deu atenção ao que a esposa ia dizendo. Ele estava a olhar para a torre. ‑ Vocês já viram os fios lá do alto a cintilar? ‑ perguntou.

‑ É muito bonito, não é?

‑ Ó tio, não está a inventar uma nova bomba atómica, pois não? ‑ perguntou a Ana.

O tio fitou‑a com severidade. ‑ Eu não iria perder o meu tempo a inventar coisas para matar e mutilar gente! Não, eu estou a inventar uma coisa que trará os maiores benefícios à humanidade. Depois verão!

A Zé voltou. ‑ Pai, ‑ disse ela. ‑ Eu vou deixar o Tim consigo, mas quero pedir‑lhe um favor.

‑ De que se trata? ‑ perguntou o pai. ‑ Nada de condições idiotas. Eu darei de comer ao Tim com regularidade e olharei por ele, se é isso que tu queres. Posso esquecer‑me das minhas refeições, mas tu deves conhecer‑me o suficiente para saberes que não deixarei de tratar dum animal dependente de mim.

‑ Bem sei, pai, ‑ respondeu a Zé, parecendo no entanto um pouco duvidosa. ‑ O que eu quero pedir‑lhe é o seguinte: Não se importa de levar o Tim consigo ao cimo da torre, todas as manhãs, quando fizer os sinais? Eu estarei em casa do guarda da costa olhando pelo telescópio para o compartimento envidraçado da torre. E então poderei ver o Tim. Se eu puder vê‑lo só um momento, cada dia, e saber que ele está bom, não ficarei tão preocupada.

‑ Está bem, ‑ disse o pai. ‑ Mas não creio que o Tim seja capaz de subir a escada em espiral.

‑ É sim, pai! Já uma vez lá foi acima, ‑ afirmou a Zé.

‑ Meu Deus! ‑ exclamou o pai. ‑ Então o Tim também já lá esteve! Está bem, Zé, prometo‑te que o levo comigo todas as manhãs, quando for fazer o sinal e ele há‑de dizer‑te adeus. , Assim ficas satisfeita?

‑ Muito obrigada, pai, ‑ disse a Zé. ‑ E de vez em quando pode dizer‑lhe umas palavrinhas amigas ou fazer‑lhe uma festa, e...

‑ E pôr‑lhe o guardanapo às horas das refeições, acho eu, e lavar‑lhe os dentes todas as noites! ‑ interrompeu o pai, outra vez zangado. ‑ Tratarei o Tim como um cão inteligente, um meu amigo, Zé; e acredita que é essa a maneira que ele quer que eu o trate. Não é verdade, Tim? Tu gostas que todos esses mimos sejam feitos pela tua dona e não por mim, não é?

‑ Béu! ‑ disse o Tim, e abanou a cauda. Os pequenos olharam para ele, com admiração. Realmente era um cão muito sensato e inteligente. Ele parecia mesmo mais sensato do que a Zé.

‑ Tio, se alguma coisa não correr bem, se precisar de auxílio ou de qualquer outra coisa faça novamente dezoito sinais, ‑ pediu o Júlio.

‑ Com certeza ficará bem guardado pelo Tim. Ele é melhor do que uma dúzia de polícias; mas nunca se sabe.

‑ Combinado. Dezoito sinais se eu quiser que vocês cá venham por qualquer motivo ‑ disse o tio. ‑ Não me esquecerei. Agora é melhor irem‑se embora. É tempo de eu recomeçar com os meus trabalhos.

‑ Deitas a sopa fora, sim Alberto? ‑ pediu a mulher, com ansiedade. ‑ Não queiras adoecer por comer sopa estragada. Deve estar azedíssima! Acontece‑te tantas vezes esqueceres‑te das coisas enquanto estão frescas e boas e, só te lembrares quando estão estragadas!

‑ Que disparate! ‑ disse o marido, levantando‑se. ‑ Devem pensar que eu tenho cinco anos de idade e não tenho um cérebro na cabeça, pela maneira como tu falas comigo.

‑ Tu tens um grande cérebro, querido, todos nós sabemos isso, ‑ respondeu a mulher. ‑ Mas às vezes não pareces muito crescido. Agora cuida de ti e conserva o Tim ao teu lado, a todo o momento.

‑ Pai, não precisa de se preocupar com isso,

‑ disse a Zé. ‑ O Tim sabe o que deve fazer. Tu estás de guarda, não é verdade, Tim? E tu bem sabes o que isso significa.

‑ Rrrnn! ‑ respondeu o Tim. Ele acompanhou‑os até ao barco, mas não tentou saltar lá para dentro. Ficou parado ao pé do tio Alberto vendo o barco afastar‑se na água. ‑ Adeus, Tim! ‑ gritou a Zé, numa voz comovida. ‑ Olha por ti!

O tio Alberto acenava e o Tim abanava a cauda. A Zé pegou num par de remos e começou a remar furiosamente, muito vermelha com o esforço.

O Júlio fitou‑a, divertido. Também era custoso para ele acompanhar aquela maneira de remar, mas não disse nada. Ele bem sabia que toda aquela fúria era o modo da Zé esconder o desgosto de se separar do Tim. Curiosa rapariga! Tomava as coisas tão a peito! Tremendamente feliz ou tremendamente infeliz; com o mais alto grau de alegria ou no mais completo desespero e desânimo.

Todos conversavam animadamente para a Zé não pensar que notavam o seu desgosto. A conversa, como era natural, referia‑se quase sempre ao homem desconhecido que estava na ilha. Parecia na verdade bem misterioso que ele tivesse aparecido de repente.

‑ Como chegou ele ali? Tenho a certeza que nenhum dos pescadores o levou, ‑ disse o David. ‑ Ele deve ter ido durante a noite e duvido que haja mais alguém, além da Zé, que saiba o caminho através da escuridão ou que se atreva a tentar encontrá‑lo. Estas rochas estão tão juntas e tão perto da superfície, uns centímetros de desvio e qualquer barco ficará com um rombo no fundo!

‑ E ninguém consegue chegar à ilha, nadando desde a praia ‑ disse a Ana. ‑ É muito longe e o mar é sempre bravo ao pé destas rochas. Duvido que haja alguém na ilha, apesar de tudo. Talvez aquela ponta de cigarro já fosse antiga.

‑ Não me pareceu, ‑ disse o Júlio. ‑ O que me intriga é como chegou até ali.

Ele começou a pensar em todas as maneiras possíveis e impossíveis. Depois deu um pequeno grito. Os outros olharam‑no.

‑ Lembrei‑me agora se seria possível um avião lançar uma pessoa em pára‑quedas sobre a ilha. Uma destas noites ouvi o barulho dum motor, parece‑me que foi na noite passada. Deve ter sido o motor dum avião! Teriam lançado alguém na ilha?

‑ Com grande facilidade, ‑ disse o David. ‑ Acho que acertaste em cheio, Júlio! Os meus parabéns. Mas digo‑te que a pessoa que se atreveu a descer em pára‑quedas sobre uma ilha tão pequena, a meio da noite, deve ter um motivo muito forte para se arriscar a tanto.

Um motivo muito forte! As coisas estavam a complicar‑se. A Ana sentiu‑se arrepiada. ‑ Estou muito satisfeita por o Tim lá ter ficado, ‑ disse ela. E todos sentiram o mesmo. Todos, sim; até a Zé!

 

                    OUTRA VEZ O VELHO MAPA

ERA só uma e meia da tarde e já estavam de volta, pois tinham almoçado cedíssimo e não se haviam demorado muito na ilha. A Joana ficou surpreendida ao vê‑los.

‑ Todos aqui outra vez! ‑ exclamou ela. ‑ Espero que não queiram almoçar novamente, pois não há nada cá em casa enquanto eu não for ao talho.

‑ Não, Joana, comemos o nosso almoço,

‑ disse a tia Clara. ‑ E ainda bem que levámos tanta coisa pois o senhor comeu quase metade. Vê lá que nem chegou a provar aquela bela sopa que lhe preparámos. Agora está azeda, claro!

‑ Ai os homens! São iguais às crianças! ‑ disse a Joana.

‑ Achas? ‑ perguntou a Zé. ‑ Pensas realmente que algum de nós era capaz de deixar estragar a sopa? Bem sabes que a comeríamos mesmo antes da ocasião própria.

‑ Lá isso é verdade. Não posso acusar nenhum dos quatro meninos, ou mesmo o Tim, por falta de apetite, ‑ afirmou a Joana. ‑ A propósito, onde está o Tim?

‑ Deixei‑o na ilha para guardar o pai, ‑ disse a Zé. A criada fitou‑a, surpreendida. Ela sabia como a Zé era amiga do Tim.

‑ A menina é muito boazinha... às vezes! ‑ disse ela.

‑ Agora se ainda tem fome, pois o paizinho comeu o almoço quase todo, vá procurar a lata dos biscoitos. Fiz‑lhe os seus biscoitos preferidos. Vá buscá‑los.

A Joana era sempre assim! Se via alguém triste, oferecia‑lhe logo as suas melhores iguarias. A Zé foi buscar os biscoitos.

‑ A Joana é uma alma bondosa, ‑ disse a mãe da Zé. ‑ Estou satisfeita por o Tim ter ficado na ilha. Agora sinto‑me mais descansada.

‑ Que vamos fazer esta tarde? ‑ perguntou o David quando acabava de comer os deliciosos biscoitos. ‑ Que belos biscoitos! Eu acho que as boas cozinheiras merecem uma condecoração tal como os bons soldados, os cientistas ou os escritores. Eu daria à Joana a O. M. C. I. B.

‑ Que quer dizer isso? ‑ perguntou o Júlio.

‑ Ordem da Melhor Cozinheira do Império Britânico, ‑ explicou o David, rindo.

‑ És um autêntico palerma, ‑ disse o Júlio.

‑ E agora, que vamos nós fazer esta tarde?

‑ Vamos explorar a passagem na pedreira, ‑ lembrou a Zé.

O Júlio olhou pela janela. ‑ Vai cair uma carga de água, ‑ disse ele. ‑ Acho que andar pela pedreira estando tudo molhado, é bastante difícil. Deixemos isso para um dia bonito.

‑ Eu vou dizer‑lhes o que vamos fazer, ‑ disse a Ana de repente. ‑ Vocês lembram‑se daquele velho mapa do castelo Kirrin que uma vez encontrámos numa caixa? Tinha as plantas do castelo. Uma planta dos subterrâneos, outra do rés‑do‑chão e outra da parte superior. Não querem ir estudá‑lo? Agora que sabemos haver outro esconderijo em qualquer parte, somos capazes de o localizar no mapa. Deve estar num ponto que nós não notámos até agora.

Os outros olharam‑na, entusiasmados. ‑ Tiveste uma ideia luminosa, Ana, ‑ declarou o Júlio, e a irmã ficou encantada com o cumprimento.

‑ Que bela ideia! É mesmo a coisa apropriada para uma tarde chuvosa. Onde está o mapa? Com certeza o guardaste num lugar seguro, Zé.

‑ Claro que sim, ‑ disse a Zé. ‑ Ainda está naquela velha caixa de madeira. Vou buscá‑lo.

Ela correu lá acima e voltou com o mapa.

Recomeçaram todos a examiná‑lo. Constava de três partes.

Era de pergaminho espesso, amarelecido pelo tempo. Desdobrou‑o sobre a mesa. Os outros debruçaram‑se sobre ele, impacientes por o observarem mais uma vez.

‑ Lembram‑se que entusiasmados ficámos quando encontrámos a caixa pela primeira vez? ‑ recordou o David.

‑ E não conseguimos abri‑la, e por isso atirámo‑la da janela mais alta para o jardim, esperando que rebentasse! ‑ acrescentou a Zé.

‑ E o barulho acordou o tio Alberto, ‑ disse a Ana com uma gargalhada. ‑ Ele apareceu, pegou na caixa e não queria entregá‑la.

‑ É verdade! E o pobre Júlio teve de esperar até que o tio Alberto adormecesse; depois entrou no escritório pé ante pé, e tirou a caixa para nós vermos o que havia lá dentro, ‑ continuou o David. ‑ Encontrámos este mapa e como nós o estudámos!

Mais uma vez começaram todos a examiná‑lo. Constava de três partes, como a Ana havia dito: uma planta dos subterrâneos, uma do rés‑do‑chão e outra do andar superior.

‑ Não vale a pena preocuparmo‑nos com a parte superior do castelo, ‑ disse o David. ‑ Está quase toda deitada a baixo e em ruínas. Praticamente já nem existe, não contando com uma das torres.

‑ Reparem! ‑ exclamou o Júlio de repente pondo um dedo sobre um ponto do mapa. ‑ Vocês lembram‑se que havia duas entradas para os subterrâneos? Uma que parecia começar em qualquer lugar no quartinho de pedra e a outra principiava onde por fim encontrámos a entrada. Pois bem, nós nunca chegámos a encontrar a outra entrada, não é verdade?

‑ Pois não! Tens razão, ‑ disse a Zé, muito entusiasmada. ‑ Ela afastou os dedos do Júlio do mapa. ‑ Olhem, estão aqui marcados degraus; partem do quartinho de pedra. Aqui estão os outros degraus, os que nós conhecemos, começando perto do poço.

‑ Lembro‑me que nos fartámos de procurar a entrada no quartinho de pedra, ‑ disse o David.

‑ Raspámos as ervas de todas as pedras e por fim desistimos. Depois encontrámos a outra entrada e nunca mais pensámos naquela.

‑ Eu acho que o pai encontrou a entrada que nós não fomos capazes! ‑ declarou a Zé, triunfante.

‑ Sem dúvida que ela segue para baixo do chão. Mas se vai dar ou não aos subterrâneos que nós conhecemos, isso é que não posso descobrir por este mapa. Neste ponto está um pouco apagado. Mas é absolutamente certo que existe aqui uma entrada com degraus de pedra que seguem para qualquer lugar subterrâneo! Reparem que há uma espécie de passagem ou túnel marcado a partir dos degraus. Só Deus sabe onde ele irá dar. Que pena o mapa aqui estar tão manchado!

‑ Acho que deve ir até aos subterrâneos, ‑ disse o Júlio. ‑ Nunca chegámos a explorá‑los todos, por serem muito vastos e lúgubres. Se tivéssemos explorado tudo, naturalmente teríamos chegado aos degraus de pedra que nos levariam a qualquer sítio perto daquele quartinho. E pode ser que eles agora já estejam completamente destruídos.

‑ Não devem estar, ‑ disse a Zé. ‑ Estou absolutamente convencida que é essa a entrada que o pai encontrou. E vou dizer‑lhes uma coisa que parece prová‑lo.

‑ O que é? ‑ perguntaram todos.

‑ Vocês lembram‑se daquele dia em que fomos visitar o pai pela primeira vez? ‑ perguntou a Zé. ‑ Ele não nos deixou demorar e veio despedir‑se de nós, à praia. Ora nós tentámos ver para onde se dirigia depois e não conseguimos. Mas o David viu os corvos levantarem voo em bando, como se tivessem ficado assustados de repente; e lembrou‑se de que talvez o pai tivesse ido para qualquer sítio naquela direcção.

O Júlio deu um assobio. ‑ É verdade! Os corvos pousam na torre que fica perto do quartinho de pedra. E uma pessoa que se dirija para o quartinho pode assustá‑los. Julgo que tens razão, Zé.

‑ Tem‑me intrigado imenso onde é que o tio Alberto faz os seus trabalhos, ‑ disse o David. ‑ Até aqui 'não conseguia desvendar o mistério; mas agora acho que o encontrámos!

‑ Como é que o pai teria descoberto o seu esconderijo? ‑ perguntou a Zé, pensativa. ‑ Continuo a achar muito mal que não me tenha dito nada.

‑ Deve ter havido uma razão, ‑ disse o David, sensatamente. ‑ Não recomeces com o mau‑humor.

‑ Não tenciono, ‑ respondeu a Zé. ‑ Só estou intrigada. Quem me dera que nós pudéssemos meter‑nos no barco imediatamente e ir para a ilha, explorar!

‑ Até aposto que encontrávamos agora a entrada com facilidade, ‑ disse o David. ‑ O teu pai com certeza que deixou algum sinal que a denuncia; uma pedra um pouco mais limpa do que as restantes, ou umas ervas arrancadas, ou qualquer outra coisa.

‑ Pensam que o inimigo desconhecido que está na ilha sabe qual é o esconderijo do tio Alberto? ‑ perguntou a Ana de repente. ‑ Oh, tenho esperanças que não! Podia fechar o tio lá dentro com tanta facilidade!

‑ Ele não foi para ali para fechar o tio; ele está ali para roubar o segredo ou descobri‑lo, ‑ disse o Júlio. ‑ Ainda bem que o tio está com o Tim. O cão dá conta de uma dúzia de inimigos.

‑ A não ser que tenham pistolas, ‑ disse a Zé, com uma voz abafada. Houve um silêncio. Era uma ideia muito triste pensar no Tim com uma pistola apontada para ele. Isto já acontecera uma ou duas vezes, nas suas aventuras e não queriam imaginar que aconteceria outra vez.

‑ Olhem, não serve para nada estarmos a pensar em coisas dessas, ‑ disse o David, pondo‑se de pé. ‑ Passámos uma meia hora bem divertida. Acho que resolvemos aquele mistério. Mas julgo que não podemos saber nada ao certo até que o teu pai acabe as esperiências, Zé, e saia da ilha. Só então poderemos lá ir examinar tudo.

‑ Continua a chover, ‑ disse a Ana, olhando pela janela. ‑ Mas já está mais claro. Dá‑me a impressão que em breve aparecerá o sol. Vamos dar um passeio.

‑ Vou a casa do guarda da costa, - disse a Zé imediatamente. ‑ Quero olhar pelo telescópio pois pode acontecer que consiga ver o Tim.

‑ Experimenta o binóculo, ‑ sugeriu o Júlio. ‑ Leva‑o para as águas‑furtadas.

‑ Tens razão, ‑ respondeu a Zé. ‑ Obrigada

pela ideia.

Foi buscar o binóculo onde ele estava pendurado e tirou‑o do estojo de couro. Levou‑o a correr pelas escadas acima.

Mas depressa voltou para baixo, desapontada.

‑ A casa não tem altura precisa para observar a ilha convenientemente. Consigo ver com facilidade a parte superior da torre, mas com o telescópio hei‑de distingui‑la muito melhor. É de muito maior alcance. Acho que vou até à casa do guarda dar uma olhadela. Se não quiserem não venham comigo.

Ela guardou o binóculo dentro do estojo.

‑ Nós vamos todos contigo para ver se descobrimos o velho Tim, ‑ disse o David, levantando‑se. ‑ E até lhes vou contar o que veremos.

‑ Conta ‑ pediu a Zé surpreendida.

‑ Vamos ver o Tim muito distraído a caçar todos os coelhos da ilha, ‑ disse o David com uma gargalhada. ‑ Garanto‑te que não precisas de te preocupar com as refeições dele! Comerá coelho ao pequeno almoço, coelho ao almoço, coelho ao jantar e beberá água na sua poça favorita. Não é uma má vida para o velho Tim!

‑ Tu sabes perfeitamente que não fará nada disso, ‑ respondeu a Zé. ‑ Ele há‑de conservar‑se sempre perto do pai e nem uma só vez pensará nos coelhos!

‑ Se julgas isso não conheces o Tim, ‑ disse o David para fazer arreliar a Zé. Esta começava a ficar vermelha de desespero. ‑ Até aposto que foi o motivo por que ele quis ficar. Só por causa dos coelhos!

A Zé atirou com um livro à cabeça do primo. Não lhe acertou. A Ana ria‑se às gargalhadas. ‑ Parem com isso, vocês dois. Assim nunca mais saímos. Vamos, Júlio, não estou para esperar pelos dois brigões.

 

                   UMA TARDE COM O MARTINHO

NA altura em que chegaram a casa do guarda da costa, o sol começou a descobrir‑se. Estava um típico dia de Abril, com aguaceiros inesperados e depois o sol aparecendo de repente, muito alegre. Tudo brilhava, principalmente o mar. O solo ainda estava húmido, mas os pequenos haviam calçado botas de borracha.

Foram procurar o guarda da costa. Como de costume ele estava no seu alpendre, cantando e martelando.

‑ Ora muito bons‑dias, ‑ disse o guarda, sorridente. ‑ Que tal acham esta estação de caminho de ferro?

‑ Nas lojas nunca vi nenhuma tão bonita, ‑ afirmou a Ana cheia de admiração. E realmente o guarda da costa fizera um bonito brinquedo, descendo aos mais pequenos detalhes.

Ele apontou para umas figuras de madeira representando bagageiros, empregados da estação e passageiros. ‑ Aqueles estão à espera de serem pintados, ‑ disse ele. ‑ O menino Martinho prometeu que viria ajudar‑me; tem muito jeito para pintar, e é um verdadeiro artista; mas sofreu um acidente.

‑ Palavra? Que lhe aconteceu? ‑ perguntou o Júlio.

‑ Não sei bem. Esta manhã veio para casa amparado pelo pai, ‑ explicou o guarda. ‑ Deve ter escorregado e partido qualquer coisa. Eu fui lá saber mas o sr. Curton estava muito ocupado a deitar o rapaz num sofá. Porque não vão lá perguntar por ele? É um rapaz especial, mas não é má pessoa.

‑ Está bem, nós iremos lá, ‑ disse o Júlio. ‑ Oiça, senhor guarda, não se importa que mais

uma vez vamos ver pelo seu telescópio?

‑ Vão ver tudo o que quiserem, ‑ respondeu o velhote. ‑ Já lhes disse que ele não se gasta por o usarem. Esta manhã vi o sinal do seu pai, vindo da torre, menina Zé; por acaso estava a olhar para lá; fez uns sinais durante muito tempo, não foi?

‑ Foi sim, ‑ limitou‑se a dizer a Zé.

Ela dirigiu‑se ao telescópio e voltou‑o para a sua ilha. Mas por mais que olhasse não conseguia ver o Tim, ou o pai. Deviam estar em baixo, no subterrâneo onde ficava a sala de trabalho. Olhou para o compartimento envidraçado, no alto da torre. Como era natural, também estava vazio. Ela suspirou. Seria tão agradável ver o Tim!

Os outros também olharam pelo telescópio. Mas ninguém descobriu o Tim. Era certo que ele se conservava perto do dono; um verdadeiro guarda!

‑ Vamos saber o que aconteceu ao Martinho? ‑ lembrou o Júlio quando acabaram de observar pelo telescópio. ‑ Vai começar outra vez a chover; outro aguaceiro de Abril! Podemos esperar aqui ao lado até que pare a chuva.

‑ Está bem. Vamos, ‑ disse o David. Ele olhou para a prima. ‑ Não tenhas medo que eu seja antipático, Zé. Agora que sei tratar‑se dum jornalista já não me preocupo com o sr. Curton.

‑ De toda a maneira não vou ser tagarela, ‑ disse a Zé sorrindo. ‑ Agora percebo o teu ponto de vista; mesmo que não tenha importância, não quero tagarelar mais.

‑ Melhor para ti, ‑ disse o David satisfeito.

‑ Estás a falar que nem um rapaz.

‑ Burro! ‑ protestou a Zé, mas mesmo assim ficou contente.

Entraram pelo pátio da vivenda ao lado e quando já estavam no jardim ouviram uma voz muito zangada.

‑ Não consinto! Sempre a mexer nas tintas e no pincel! Julgava que já tivesses tirado essa ideia da tua cabeça! Fica aí quieto para ver se melhoras.

Torceres o tornozelo agora que eu preciso da tua ajuda!

A Ana parou, assustada. Era a voz do sr. Curton que eles podiam ouvir através da janela aberta. Ele estava a dar uma grande descompostura ao Martinho, sobre qualquer coisa; não havia dúvida. Os outros também pararam, hesitando se deviam entrar ou não.

Nessa altura ouviram uma porta bater e viram o sr. Curton sair da vivenda pela porta das traseiras. Dirigiu‑se com passadas rápidas para um caminho que ia dar à vila.

‑ Bom. Foi‑se embora. E não nos viu, ‑ disse o David. ‑ Quem haveria de pensar que um sujeito tão amável e sorridente pudesse ter uma voz tão áspera e grosseira, quando se zanga! Em frente! Vamos ver o pobre Martinho enquanto é tempo.

Bateram à porta. ‑ Somos nós! ‑ disse o Júlio alegremente. ‑ Podemos entrar?

‑ Entrem, entrem! ‑ gritou o Martinho lá de dentro, parecendo muito satisfeito com a visita.

O Júlio abriu a porta e entraram os quatro.

‑ Ouvimos dizer que tiveste um acidente, ‑ disse o Júlio. ‑ Que aconteceu? Magoaste‑te muito?

‑ Nem por isso. Só torci o tornozelo e custava‑me tanto a andar que tiveram de me transportar até aqui, ‑ explicou o Martinho. ‑ Uma coisa mesmo estúpida!

‑ Se foi só torcido, depressa estarás bom, ‑ disse o David. ‑ Já me aconteceu isso várias vezes. A coisa está em recomeçares a andar logo que possas. Onde estavas quando caíste?

O Martinho ficou de repente muito corado, para surpresa de todos. ‑ Estava a passear pela pedreira com o meu pai. Escorreguei e fui parar quase lá abaixo, ‑ contou ele.

Houve um silêncio. A Zé foi a primeira a falar.

‑ Ouve lá, ‑ disse ela. ‑ Espero que não tenhas contado o nosso pequeno segredo ao teu pai! Quero eu dizer, nunca é tão divertido quando as pessoas crescidas compartilham um segredo connosco. Elas querem descobrir tudo só por elas e é muito mais engraçado quando conseguimos saber as coisas só por nós. Tu não lhe disseste nada sobre a abertura da pedra, pois não?

O Martinho hesitava. ‑ Julgo que disse, ‑ confessou ele por fim. ‑ Pensei que não tinha importância. Desculpem.

‑ Que ideia! ‑ exclamou o David. ‑ Era a nossa pequena descoberta. Nós queríamos ir explorar o buraco esta tarde mas pensámos que com esta humidade podíamos cair no terreno escorregadio.

O Júlio olhou para o Martinho com insistência.

‑ Foi o que te aconteceu a ti, não é verdade? ‑ perguntou ele. ‑ Tentaste descer lá abaixo e caíste!

‑ Tens razão, ‑ respondeu o Martinho. ‑ Tenho uma pena sincera se vocês consideravam aquilo o vosso segredo. Eu contei ao meu pai, sem nenhum interesse especial só para fazer conversa. E ele quis lá ir ver.

‑ Julgo que os jornalistas são todos assim,

‑ disse o David. ‑ Querem sempre meter o nariz onde pensam haver alguma coisa para esquadrinhar. É o ofício deles. Bem, Martinho, o melhor é esquecermos o que se passou.

Mas vê se consegues desviar o teu pai da pedreira. Nós gostaríamos de lá ir primeiro, antes de ele descobrir tudo. E pode ser que não haja nada de especial.

Houve uma pausa. Ninguém sabia o que dizer. Era bastante difícil conversar com o Martinho. Não falava como os outros rapazes; nunca dizia uma graça ou um disparate.

‑ Não estás aborrecido, aqui deitado? ‑ perguntou a Ana, sentindo pena dele.

‑ Aborrecidíssimo. Eu queria que o meu pai fosse pedir ao guarda para me trazer aqui alguns dos bonecos que eu prometi pintar‑lhe, ‑ disse o Martinho. ‑ Mas ele não consentiu. Sabem, eu adoro pintar, seja o que for. Até mesmo coisas sem importância, como seja os fatos dos bonecos de madeira, os bagageiros, os passageiros, etc. Desde que tenha um pincel na mão e tintas para escolher, sinto‑me feliz!

Esta fora a vez que o Martinho dissera mais palavras seguidas em frente dos quatro pequenos! Enquanto falava, a sua cara tinha perdido aquela expressão triste e aborrecida, tornando‑se viva e alegre.

‑ Oh, tu queres ser artista, não? ‑ disse a Ana. ‑ Eu também gostaria!

‑ Ana! Tu nem consegues desenhar um gato

‑ disse o David, trocista. ‑ Uma vez desenhaste uma vaca e eu julguei tratar‑se dum elefante!

O Martinho sorriu com a cara indignada da Ana. ‑ Vou mostrar‑lhes alguns dos meus desenhos,

‑ disse ele. ‑ Tenho de os conservar escondidos, pois o meu pai não suporta a ideia de eu vir a ser artista.

‑ Não te levantes, se não quiseres, ‑ disse o Júlio. ‑ Eu posso ir buscá‑los.

‑ Não te incomodes. Só me faz bem caminhar um pouco, ‑ disse o Martinho, levantando‑se do sofá. Pôs cautelosamente o pé direito no chão e depois ficou de pé.

- Afinal não custa muito! ‑ disse ele. Atravessou o quarto, a coxear, até à estante. Meteu a mão pela segunda fila de livros e, tirando uma pasta de cartão bastante grande, levou‑a para a mesa. Abriu‑a e tirou para fora vários desenhos.

‑ Meu Deus! ‑ exclamou a Ana. ‑ São lindos! Tu sozinho conseguiste fazer tudo isto?

Os desenhos estavam realmente muito bem feitos, tratando‑se dum rapaz daquela idade. Representavam flores, árvores, pássaros e borboletas. Tudo colorido e desenhado com a maior perfeição.

O Júlio examinou‑os, surpreendido. Aquele rapaz era um verdadeiro artista. Os desenhos eram tão bons como os que ele vira nas exposições. Pegou nuns poucos e levou‑os para ao pé da janela.

‑ Tu dizes que o teu pai não acha estes desenhos bem feitos? E pensa que não vale a pena aprenderes desenho e pintura? ‑ perguntou o Júlio muito surpreendido.

‑ Ele detesta os meus desenhos, ‑ disse o Martinho, com amargura. ‑ Eu fugi do colégio e fui para uma escola de arte, para aprender; mas ele descobriu e proibiu‑me de desenhar. Diz que é uma ocupação muito pouco própria para um homem. Por isso agora só desenho às escondidas.

As crianças olharam para o Martinho com simpatia. Parecia‑lhes uma coisa horrível um rapaz sem mãe, tendo um pai que detestava aquilo de que o filho mais gostava. Não admirava que ele parecesse sempre tão triste e aborrecido.

O Júlio examinou‑os, surpreendido. Aquele rapaz era um verdadeiro artista.

‑ Tens pouca sorte, ‑ disse o Júlio por fim.

‑ Desejava fazer qualquer coisa para te ajudar.

‑ Olha, vai buscar os bonecos de madeira e as tintas, a casa do guarda da costa, ‑ pediu o Martinho com vivacidade. ‑ O pai não voltará antes das seis. Terei tempo de os pintar. E peço‑lhes que fiquem para lancharem comigo. Isto aqui é tão aborrecido!

‑ Vou buscar‑te o que queres, ‑ disse o Júlio.

‑ Não consigo perceber porque não hás‑de distrair‑te com qualquer coisa, se assim o desejas. E vamos telefonar à nossa tia a dizer‑lhe qe ficamos a lanchar aqui; espero que não comeremos tudo quanto tens em casa.

‑ Não te preocupes! ‑ disse o Martinho, que parecia sinceramente satisfeito. ‑ Há imensa comida. O meu pai tem um apetite enorme. Agradeço‑lhes muito que fiquem.

O Júlio foi telefonar à tia. As raparigas e o David foram buscar os bonecos e as tintas. Puseram uma mesa em frente do Martinho com os bonecos em cima. Os olhos do rapazito iluminaram‑se. Parecia completamente mudado.

‑ Que bom! ‑ disse ele. ‑ Agora posso começar. Isto é uma coisa sem importância, mas ajudo o velhote aqui do lado e eu sinto‑me sempre contente quando tenho um pincel na mão.

O Martinho tinha um jeito enorme para pintar aquelas figuras. Era rápido e hábil; a Ana sentou‑se a observá‑lo, fascinada. A Zé foi à despensa ver o que havia para o lanche. Realmente não faltavam alimentos.! Arranjou umas fatias de pão com manteiga, descobriu um pote com mel, um grande bolo de chocolate e uma lata com biscoitos. Pôs a chaleira ao lume cheia de água, para fazer o chá.

‑ Que bom, ‑ repetia o Martinho. ‑ Quem me dera que o meu pai não voltasse antes das oito. A propósito, onde está o cão? Eu julgava que ele vos acompanhava para toda a parte. Onde está o Tim?

 

                   UM CHOQUE PARA A ZÉ

O David olhou para a prima. Ele achava que não fazia mal dizer ao Martinho onde estava o Tim, desde que a Zé não mencionasse a razão por que o tinham deixado na ilha.

Mas a Zé agora tinha cuidado com a língua. Ela olhou para o Martinho e respondeu com a maior tranquilidade. ‑ O Tim? Hoje não o trouxemos. Está óptimo.

‑ Naturalmente foi fazer compras com a vossa mãe, esperando que ela passe pelo talho! ‑ disse o Martinho. Era a primeira vez que ele gracejava em frente das crianças, e embora não tivesse tido muito espírito, eles riram às gargalhadas. O Martinho ficou satisfeito. Começou a pensar noutro dito engraçado, enquanto as suas mãos habilidosas iam colorindo de azuis, encarnados e verdes as pequeninas figuras de madeira.

Todos lancharam muito bem. Depois, quando o relógio chegou a um quarto para as seis, os pequenos levaram com cuidado os bonecos pintados ao guarda da costa, que ficou encantado. O David levou as latas de tinta e o pincel, metido num pote com terebintina.

‑ Aquele rapaz tem muito jeito, não acham? ‑ dizia o guarda, examinando as figuras. ‑ Ele tem um ar infeliz e tristonho, mas não é mau menino.

‑ Vou dar mais uma olhadela pelo seu telescópio, ‑ disse a Zé. ‑ Antes que seja noite.

Ela virou‑o na direcção da ilha, mas uma vez mais não havia sinal do Tim ou do seu pai. Olhou durante algum tempo e depois foi juntar‑se aos outros. Abanou a cabeça quando eles começaram a fazer perguntas.

As raparigas tinham lavado a loiça do chá e haviam levantado a mesa. Ninguém sentia vontade de esperar pelo sr. Curton. Agora que sabiam como ele era severo para o Martinho, começaram a antipatizar bastante com ele.

‑ Muito obrigado por esta tarde tão bem passada, ‑ disse o Martinho, acompanhando‑os à porta, a coxear. ‑ Gostei muito de ter estado a pintar, e ainda mais da vossa companhia.

‑ Tu deves persistir nas tuas pinturas, ‑ aconselhou o Júlio. ‑ Se tens a certeza que é esse o trabalho para que tens vocação, deves lutar contra todos os obstáculos, compreendes?

‑ Compreendo, ‑ respondeu o Martinho, outra vez com um ar triste. ‑ Mas há coisas que o tornam muito difícil; coisas que eu não te posso explicar bem. Enfim, não interessa! Tenho esperanças que um dia tudo mude e então serei um artista célebre, com quadros na academia!

‑ Anda depressa, ‑ disse o David, em voz baixa, ao Júlio. ‑ Vem ali o pai dele!

Apressaram‑se a descer pelo caminho dos penhascos, observando de soslaio o sr. Curton, que subia pelo outro caminho.

‑ Que homem detestável, ‑ disse a Ana. ‑ Proibir o Martinho de fazer aquilo que ele realmente gosta! E parecia tão simpático, tão alegre e tão venha‑a‑mim.

‑ Era mesmo muito venha‑a‑mim, ‑ disse o David, rindo da nova palavra inventada pela Ana.

‑ Mas há muita gente assim; uma coisa em casa e outra na rua.

‑ Espero que o sr. Curton não tenha ido ver a abertura, na pedreira, ‑ disse a Zé, voltando‑se para trás e vendo o sujeito a dirigir‑se para a porta das traseiras.

‑ Era um aborrecimento se ele fosse lá bisbilhotar, estragando toda a nossa brincadeira. Pode ser que não haja nada de especial para se descobrir mas é divertido até só para concluirmos que não há nada.

‑ Estás com raciocínios complicados, ‑ disse o David, rindo. ‑ Mas eu bem compreendo o que tu queres dizer. Oiçam lá, foi um belo chá, não acham?

‑ Lá isso foi, ‑ disse a Zé, olhando à volta com um ar muito distraído.

‑ Que aconteceu? ‑ perguntou o David. ‑ Que procuras?

‑ Oh, que parva sou! Estava à procura do Tim, ‑ disse a Zé. ‑ Estou tão habituada a tê‑lo sempre à minha volta ou próximo, que às vezes não me lembro que ele não está aqui.

‑ Eu também sinto o mesmo, ‑ disse o Júlio.

‑ Parece que falta sempre qualquer coisa! O nosso fiel Tim! Todos nós sentimos muito a sua falta, e tu, Zé, mais do que ninguém.

‑ Tens razão. Principalmente à noite, ‑ confessou a Zé. ‑ Custa‑me imenso a adormecer.

‑ Embrulha uma almofada num tapete e põe‑na sobre os teus pés quando te vais deitar, ‑ lembrou o David. ‑ Depois fazes de conta que é o Tim.

‑ É impossível! Não sejas idiota, ‑ disse a Zé, um pouco zangada. ‑ E de qualquer maneira não pode cheirar como o Tim! Ele tem um cheiro muito agradável.

‑ Eu também gosto do «cheiro a Tim», ‑ declarou a Ana.

O resto da tarde passou‑se muito depressa, jogando o infindável monopólio. O Júlio deitou‑se mais tarde, ficando à espera dos sinais do tio. Escusado será dizer que a Zé também foi para a janela! Esperaram pelas dez e meia.

‑ Agora! ‑ disse o Júlio. E nesse momento apareceu o primeiro clarão na lanterna da torre.

‑ Um, ‑ contou a Zé. ‑ Dois, três, quatro, cinco, seis. Ela ficou à espera, cheia de ansiedade, para ver se apareciam mais sinais, mas nada.

‑ Agora podes ir para a cama, satisfeita, ‑ disse o Júlio à prima. ‑ O teu pai encontra‑se bem e isso significa que o Tim também está bom. Naturalmente lembrou‑se de dar ao Tim um belo jantar e ele próprio também jantou com apetite.

‑ O Tim logo o lembraria, se ele se esquecesse de lhe dar de comer, isso te garanto eu, ‑ disse a Zé, saindo do quarto. ‑ Boa‑noite, David; boa‑noite, Júlio! Até amanhã.

Voltou para a cama e preparou‑se para dormir. Que estranho não ter o Tim sobre os pés! Durante um bocado virou‑se dum lado para o outro, sentindo a falta do seu cão e depois adormeceu profundamente. Sonhou com a sua ilha. Ela estava lá com o Tim e tinham descoberto lingotes de ouro, nos subterrâneos. Que lindo sonho!

Na manhã seguinte estava um bonito dia de sol, com um céu muito azul. A Zé espreitou pela janela da sala de jantar, à hora do pequeno almoço, pensando se o Tim estaria a correr pela ilha.

‑ Estás a pensar no Tim? ‑ perguntou o Júlio, rindo. ‑ Não te preocupes. Depressa o verás, Zé. Espera mais ou menos uma hora e deliciarás os teus olhos ao vê‑lo através do telescópio do guarda da costa.

‑ Realmente achas que consegues ver o Tim se ele estiver na torre, com o pai, às dez e meia? ‑ perguntou‑lhe a mãe. ‑ Eu julgava que não conseguirias.

‑ Consigo sim, mãe, ‑ disse a Zé. ‑ É um telescópio de grande alcance. Vou só lá acima fazer a minha cama e depois sigo para casa do guarda. Alguém mais quer vir comigo?

‑ Eu gostava que a Ana ficasse, para me ajudar, ‑ disse a tia Clara. ‑ Vou escolher umas roupitas velhas para dar aos pobres da freguesia. Não te importas de ficar a ajudar‑me, Ana?

‑ Até gosto muito, ‑ disse logo a Ana. ‑ E que vão fazer os rapazes?

‑ Acho que vou fazer alguns dos meus trabalhos escolares, ‑ disse o Júlio com um suspiro.

‑ Não me apetece nada, mas quanto mais depressa os acabar, melhor. Tu também devias ir trabalhar um pouco, David. Se não te acautelas, deixas tudo para o último dia!

‑ Tens razão. Também vou fazer os meus trabalhos, ‑ resolveu o David. ‑ Não te importas de ir sozinha a casa do guarda da costa, Zé?

‑ Nem por sombras, ‑ respondeu a Zé. ‑ Volto em seguida às dez e meia, logo que tenha visto o pai e o Tim.

Ela foi fazer a cama. O Júlio e o David foram buscar uns livros. A Ana também foi fazer a cama e depois desceu, para ajudar a tia. Alguns minutos mais tarde a Zé dizia‑lhes adeus e corria para os penhascos.

‑ Que furacão! ‑ observou a tia Clara. ‑ Parece‑me que a Zé nunca anda a passo se é possível correr. Agora Ana, põe as roupas em três montinhos; as muito velhas, as que não estão muito velhas e as que ainda estão boas.

Próximo das dez e meia o Júlio foi à janela do seu quarto para ver os sinais do tio. Esperou pacientemente e alguns segundos depois das dez e meia apareceram os clarões; um, dois, três, quatro, cinco, seis; muito bem! Agora a Zé já podia começar o seu dia. Talvez naquela tarde pudessem ir à pedreira. O Júlio voltou para os seus livros e em breve estava mergulhado neles. O David também continuava a estudar.

Quando eram quase onze horas ouviu‑se o som de passos apressados e uma respiração ofegante. A Zé apareceu à porta da sala de estar onde os dois rapazes faziam os seus trabalhos. Eles olharam para ela.

A Zé estava muito vermelha, com o cabelo todo no ar. Queria falar e quase não conseguia. ‑ Júlio! David! Aconteceu alguma coisa! O Tim não estava lá!

‑ Explica‑te melhor! ‑ pediu o Júlio surpreendido. A Zé deixou‑se cair sobre uma cadeira, ainda cansadíssima. Os rapazes perceberam que ela estava a tremer.

- É muito sério, Júlio! Já te disse que o Tim não estava na torre quando apareceram os sinais!

‑ Olha, isso só significa que o teu distraído pai se esqueceu de o levar com ele lá acima, ‑ disse o Júlio, com a maior calma. ‑ Que viste tu?

‑ Eu estava a olhar pelo telescópio, ‑ contou a Zé. ‑ De repente vi uma pessoa no compartimento de vidro. Procurei logo o Tim, está claro, e já te disse que ele não estava lá! Vieram os seis clarões, o homem desapareceu e foi tudo. Nada de Tim! Sinto‑me tão aflita, Júlio!

‑ Não estejas assim, ‑ disse o Júlio com ternura. ‑ Tenho quase a certeza do que aconteceu. O teu pai esqueceu‑se do Tim. Mas se tu o viste a ele, é porque as coisas correm bem.

‑ Eu não estou a pensar no pai ‑ gritou a Zé. ‑ Deve estar bem, pois fez os seis sinais combinados. Estou a pensar no Tim. Mesmo que o pai se esquecesse de o levar, o Tim iria com ele. Bem sabes isso!

‑ O teu pai pode ter fechado a porta da entrada, impossibilitando o Tim de subir, ‑ disse o David.

‑ Talvez, ‑ respondeu a Zé, franzindo o sobrolho. Ela não pensara em tal coisa. ‑ Agora vou andar preocupada durante todo o dia. Porque não fiquei eu com o Tim? Que vou fazer agora?

‑ Esperar até amanhã de manhã, ‑ aconselhou o David. ‑ Então com certeza verás que o Tim está bem.

‑ Amanhã de manhã! Mas isso é daqui a séculos! ‑ exclamou a pobre Zé. Ela meteu a cabeça entre as mãos e começou a lastimar‑se. ‑ Ninguém compreende quanto eu gosto do Tim. Talvez tu percebesses se tivesses um cão, Júlio. É um sentimento terrível. Ó Tim, não te aconteceu nada?

‑ Claro que ele está bem, ‑ disse o Júlio, impaciente. ‑ Acalma‑te, Zé.

‑ Eu sinto que aconteceu qualquer coisa, ‑ disse a Zé, obstinada. ‑ Júlio, acho que o melhor é eu ir até à ilha.

‑ Não, ‑ respondeu logo o Júlio. ‑ Não sejas palerma, Zé. Nada corre mal; apenas o teu pai é que teve um esquecimento. Ele fez os sinais e isso chega! Não vás arranjar uma cena desagradável com ele. Seria desastroso!

‑ Bem, vou tentar conformar‑me, ‑ disse a Zé, com uma inesperada doçura. Ela levantou‑se, parecendo continuar preocupada. O Júlio falou‑lhe com uma voz muito animadora.

‑ Alegra‑te, rapariga! Tu gostas de levar tudo para a tragédia, não é?

 

                   DURANTE A NOITE

AZé não tornou a falar nos seus aborrecimentos e preocupações. Continuava com uma expressão de ansiedade nos seus olhos azuis, mas teve a sensatez de não contar à mãe como estava arreliada por não ter visto o Tim no compartimento de vidro, quando o pai fizera os sinais.

Claro que falou nisso, mas a mãe foi da mesma opinião do Júlio. ‑ Logo vi que ele não se ia lembrar de levar o Tim lá acima! É tão esquecido quando está com os seus trabalhos!

Os pequenos decidiram ir à pedreira naquela tarde, e explorarem a passagem por baixo da pedra grande. Partiram depois do almoço. Mas quando chegaram à pedreira não se atreveram a descer pelo terreno inclinado. As chuvas fortes do dia anterior tinham enlameado tudo, tornando‑se a descida muito perigosa.

‑ Reparem! ‑ disse o Júlio apontando para um lugar onde havia uns arbustos e pequenas plantas meio arrancadas e pisadas. ‑ Aposto que foi ali que o Martinho caiu ontem! Podia ter partido a espinha!

‑ Também acho. Proponho que não tentemos descer enquanto não estiver tão seco como da outra vez, ‑ disse o David.

Era uma grande decepção. Tinham levado lanternas e uma corda, e preparavam‑se para uma tarde bem passada. ‑ Bem, que vamos fazer agora? ‑ perguntou o Júlio.

‑ Eu volto para casa, ‑ dise a Zé, inesperadamente. ‑ Estou cansada. Vocês vão dar um passeio. A Ana olhou para a Zé. Ela estava bastante pálida. ‑ Eu vou contigo, Zé. ‑ disse a Ana dando o braço à prima.

Mas a Zé afastou‑a. ‑ Não, obrigada, Ana. Eu quero estar só.

‑ Bem, então vamos aos penedos, ‑ resolveu o Júlio. ‑ Deve lá estar agradável. Até logo, Zé!

Eles partiram. A Zé correu para o Casal Kirrin. A mãe tinha saído e a Joana estava lá em cima, no seu quarto, a dormir. A Zé foi à despensa e escolheu várias coisas. Meteu‑as numa mala e saiu de casa, a correr.

Foi ter com o Jaime, o pescador. ‑ Jaime! Não digas a ninguém! Esta noite vou à Ilha Kirrin, pois estou muito preocupada por causa do Tim. Nós deixámo‑lo ali. Tem o meu barco preparado às dez horas.

O Jaime estava sempre pronto a cumprir todas as vontades da Zé. ‑ Muito bem, menina. Estará tudo a postos. Deseja lá meter alguma coisa?

‑ Só esta mala, ‑ disse a Zé. ‑ Agora não digas nada. Voltarei amanhã, se encontrar o Tim sem novidade.

Ela correu novamente para casa. Tinha esperanças que a Joana não desse pela falta das coisas que ela havia tirado da prateleira da despensa.

«Mesmo que seja asneira, tenho de ir, ‑ repetia a Zé para consigo. ‑ Sei que qualquer coisa se passa com o Tim. E também não estou muito descansada com respeito ao pai. Ele não se esqueceria da sua promessa de levar o Tim à torre.

Tenho de ir à ilha. Mesmo que seja asneira tenho de ir!

Os outros não compreendiam o que se passava com a Zé, quando voltaram do passeio. Ela estava muito inquieta e nervosa. Lancharam e depois foram arranjar o jardim, a pedido da tia Clara. A Zé também foi, mas o seu pensamento estava tão longe que por duas vezes a mãe teve que a impedir de arrancar sementes em vez de ervas.

Chegou a hora de irem para a cama. As raparigas deitaram‑se quando faltava um quarto para as dez. A Ana estava cansada e adormeceu logo. Assim que a Zé ouviu a respiração regular da prima, levantou‑se sem fazer barulho e vestiu‑se novamente. Pôs a gabardina, calçou as botas de borracha, pegou num cobertor bem espesso e desceu as escadas em bicos dos pés.

Saiu pela porta das traseiras. Havia um pouco de luar, por isso a noite não estava tão escura como habitualmente. Isso alegrava a Zé. Poderia ver um pouco melhor o caminho por entre as rochas, ainda que estivesse convencida que seria capaz de conduzir o barco na maior escuridão.

O Jaime esperava‑a. ‑ Tudo a postos, ‑ disse o pequeno pescador. ‑ Eu empurro o barco. Tenha cuidado, menina. Se raspar numa rocha, reme com toda a força antes que o barco se encha de água e vá ao fundo.

A Zé partiu, ouvindo o barulho da água de encontro ao barco. Deu um suspiro de alívio e começou a remar com energia, afastando‑se da praia. Franzia o sobrolho enquanto remava. Teria trazido tudo quanto precisava? Duas lanternas. Bastante comida. Um abre‑latas. Alguma coisa para beber. Um cobertor para se embrulhar durante a noite.

No Casal Kirrin o Júlio estava deitado, esperando os sinais do tio. Dez e meia. Era a hora dos sinais. E ali estavam eles! Um, dois, três, quatro, cinco, seis! Muito bem. Seis e não mais!

Júlio admirou‑se de que a Zé não tivesse ido ao seu quarto para ver os sinais, como fizera na noite anterior. Ele levantou‑se, bateu à porta do quarto das raparigas e entreabriu‑a. ‑ Zé! ‑ disse ele baixinho. ‑ Está tudo bem. O teu pai acaba de fazer os sinais.

Não houve resposta. O Júlio ouviu uma respiração regular e voltou para a cama. As pequenas já deviam estar a dormir! O Júlio foi meter‑se na cama e depressa adormeceu. Ele não fazia a menor ideia de que a cama da Zé estava vazia, nem de que naquele momento a Zé transpunha as ondas à volta da Ilha Kirrin!

Era mais difícil do que ela esperava, pois a lua não iluminava quase nada e constantemente se escondia atrás das nuvens, exactamente quando ela precisava dum pouco mais de luz. Mas, com coragem e perícia, ela ia seguindo por entre as rochas invisíveis. Graças a Deus a maré estava cheia e a maior parte das rochas ficavam bastante abaixo da superfície.

Por fim ela dirigiu o barco para a pequena enseada. Ali a água estava muito calma. Um pouco ofegante, a Zé puxou o barco pela areia, o mais para cima que conseguiu. Depois parou no meio da escuridão e pôs‑se a pensar.

Que ia fazer? Ela não sabia onde ficava o esconderijo do pai mas estava certa que a entrada devia ser em qualquer lugar dentro ou perto do quartinho de pedra. Deveria ir para ali?

Parecia o melhor. De qualquer maneira era o único lugar abrigado para passar a noite. Ela deveria acender a lanterna quando lá chegasse e procurar ali à volta uma entrada para o esconderijo. Se a encontrasse, poderia entrar; e que surpreendido não ia ficar o pai! Se o Tim lá estivesse ficaria doido de alegria!

Pegou na mala, que estava bastante pesada, meteu o cobertor debaixo do braço e começou a caminhar. Não se atreveu a acender logo a lanterna pois o inimigo desconhecido podia estar escondido ali perto. Ela não se esquecia que o pai o ouvira tossir durante a noite.

A Zé não estava com medo. Nem pensava numa coisa dessas. Todos os seus pensamentos estavam postos em encontrar o Tim e assegurar‑se de que ele estava bem.

Chegou ao quartinho de pedra. Ali era escuro como breu; nem mesmo a pálida luz da lua entrava naquela escuridão. A Zé acendeu a lanterna.

Colocou a mala, ao fundo, perto do lugar da velha lareira. Estendeu o cobertor e sentou‑se para descansar um pouco, apagando a luz.

Pouco depois tornou a acender a lanterna. Começou à procura do esconderijo. Onde seria a entrada? Ela iluminou cada uma das lajes do chão. Mas nenhuma parecia ter sido levantada ou deslocada. Não havia nada com aspecto de ser uma entrada para o subterrâneo.

Examinou as paredes à luz da lanterna. Também ali não havia sinal que se encontrasse um caminho escondido atrás de qualquer daquelas pedras. Era um verdadeiro desespero!

Se ela soubesse!

Embrulhou‑se no cobertor e sentou‑se a pensar. Fazia muito frio. Tremia, enquanto estava ali sentada no escuro, tentando descobrir onde podia ficar a entrada escondida.

E nessa altura ouviu um barulho! Sobressaltou‑se e ficou imóvel, susteve a respiração a custo. Que seria?

Qualquer coisa rangeu. Seguiu‑se uma ligeira pancada, vinda do lugar onde muitos anos atrás haviam construído uma grande lareira. A Zé continuava muito quieta, apurando a vista e o ouvido.

Ela viu aparecer uma luz na parte posterior da lareira. Então ouviu um homem a tossir!

Seria o seu pai? Ele às vezes tinha tosse. A luz tornou‑se mais viva. Depois ela ouviu outro barulho. Era como se alguém tivesse dado um salto. E depois... uma voz!

‑ Vamos!

Não era a voz do seu pai! Então a Zé sentiu‑se gelar de medo. Não era a voz do pai! Nesse caso que teria acontecido ao seu pai e ao Tim?

Mais alguém deu um salto, resmungando. ‑ Eu não estou acostumado a andar por sítios como este!

Também não era a voz do seu pai. Por isso havia dois inimigos desconhecidos! Não um só! E eles conheciam a sala de trabalho secreta de seu pai. A Zé sentiu‑se quase desmaiar, apavorada. Que teria acontecido ao pai e ao Tim? Os homens saíram do quartinho de pedra sem verem a Zé. Ela pensou que eles deviam ir à torre. Quanto tempo se demorariam? O tempo suficiente para procurar o esconderijo donde eles haviam surgido?

Ela apurou os ouvidos novamente. Ouviu os passos deles, no pátio. Foi em bicos dos pés até à porta e olhou para fora. Lá estava uma luz de lanterna perto da torre! Se eles iam subir ela teria tempo de procurar o esconderijo.

As suas mãos tremiam tanto que teve dificuldade em acender a lanterna. Dirigiu‑se à lareira e iluminou‑a.

Soltou um grito abafado. A uma certa altura do chão a parede de trás tinha uma abertura. Examinou‑a com a luz. Era evidente que havia ali uma pedra móvel, que escorregava para trás, revelando uma entrada. Haveria degraus, tal como mostrava o velho mapa?

Quase sem poder respirar, a Zé pôs‑se em pontas dos pés e meteu a lanterna pela abertura. Sim, lá estavam os degraus! Eles seguiam para baixo, dentro da parede. Ela lembrou‑se que a parte de trás do quartinho de pedra era uma parte duma das velhas paredes, muitíssimo espessas, que ainda estavam de pé.

A Zé ficou ali, sem saber o que fazer. Seria melhor descer os degraus, para ver se encontrava o Tim e o pai? Mas se o fizesse, podiam prendê‑la também. Por outro lado, se ficasse ali fora e os homens voltassem a fechar a entrada, ela podia não ser capaz de tornar a abri‑la depois. E isso seria o pior de tudo!

‑ Vou descer! ‑ decidiu ela de repente. ‑ Mas é melhor levar a minha mala e o cobertor, para os homens não os verem quando voltarem. Enquanto for possível, não quero que eles saibam que eu estou na ilha. Vou escondê‑los em qualquer sítio, lá em baixo. Só queria saber se esta entrada vai dar aos subterrâneos.

Pegou na mala e no cobertor e deitou‑os pelo buraco. Ouviu‑se a mala a rolar pelos degraus, com as latas lá dentro a chocalharem.

Depois desceu ela. Céus! Que quantidade de degraus tão negros! Onde iriam dar?

 

                   NAS GRUTAS SUBTERRÂNEAS

AZé foi descendo com cautela os degraus de pedra. Eram altos e estreitos. ‑ Acho que os degraus estão metidos dentro da parede, ‑ pensou a Zé. ‑ Céus! Aqui a passagem é apertadíssima.

Era tão estreita que ela tinha de descer de lado. ‑ Um homem gordo não conseguia passar por aqui! ‑ pensou ela para consigo. ‑ Bem, os degraus acabaram!

Pusera o cobertor pelos ombros e apanhara a mala, enquanto descia. Na outra mão segurava a lanterna. Ali em baixo estava tudo muito escuro e silencioso. A Zé não se sentia assustada pois esperava a todo o momento ver o Tim. Ninguém podia sentir medo, sabendo que o Tim estava nas proximidades, pronto a entrar em acção.

Parou ao fundo da escada, e viu à luz da lanterna um túnel estreito. Este fazia uma curva pronunciada para a esquerda. ‑ Irá dar aos subterrâneos? ‑ pensava ela, tentando orientar‑se o melhor possível. ‑ Não devem estar longe, mas por enquanto não vejo nem sinal deles. ‑ Seguiu pelo túnel. A certa altura o tecto tornou‑se tão baixo que tinha de caminhar curvada. Examinou‑o com a lanterna. Viu que era de rocha escura, o que naturalmente havia impossibilitado os construtores do túnel de escavarem mais para cima.

O túnel continuava, continuava sempre. A Zé estava intrigada. Já tivera tempo para percorrer todos os subterrâneos! Mas parecia‑lhe que se dirigia para a praia da ilha! Que esquisito! Um pouco mais além estaria a caminhar por baixo do próprio mar!

O túnel começou numa descida pronunciada. Apareceram mais degraus talhados na rocha, ou talvez fosse uma passagem natural onde nenhum homem havia intervindo. A Zé não sabia. Ia iluminando com a lanterna, o tecto e as paredes, ambos de pedra negra e caminhava com dificuldade sobre um caminho rochoso, irregular. Como ela gostaria que o Tim estivesse ao seu lado!

«Devo ter descido muito! ‑ pensou ela, começando uma vez mais a examinar tudo à sua volta. ‑ Devo ter descido muito e devo estar muito longe do castelo. Meu Deus, que será este barulho tão estranho?

Ela pôs‑se a escutar. Ouviu uma espécie de bramido ou lamento abafado. Seria o seu pai fazendo uma das suas experiências? O barulho continuava sempre, parecendo interminável.

«Descobri! Estou convencida que é o mar! ‑ disse a Zé, admirada. Novamente prestou atenção. ‑ Sim, é o mar, por cima da minha cabeça! Eu estou por baixo do fundo rochoso da baía Kirrin!

Nessa altura a pobre Zé sentiu‑se um pouco assustada! Começou a pensar nas ondas enormes que estavam por cima dela, lembrou‑se da água que corria sem parar sobre o fundo rochoso, acima da sua cabeça, e começou a sentir receio que o mar encontrasse uma passagem para penetrar naquele túnel estreito!

«Não sejas palerma! ‑ disse ela para consigo, severamente. ‑ Este túnel passa por baixo do mar há centenas de anos. Porque se havia de tornar perigoso exactamente quando tu aqui estás, Zé?

E falando para consigo desta maneira, para conservar a calma, continuou a caminhar.

Realmente era muito extraordinário pensar que estava andando por baixo do mar. E era ali que trabalhava o pai! Por baixo do próprio mar.

E então a Zé lembrou‑se de uma coisa que o pai dissera a todos, na primeira vez que tinham ido visitá‑lo à ilha.

«Sim, estou certa que ele disse que precisava de água à volta e por cima dele ‑ pensou a Zé. ‑ Agora compreendo o que aquilo significava! A sala de trabalho fica em qualquer lugar aqui em baixo e assim a água do mar está sobre ele, e está à volta da torre, pois foi construída numa ilha.

Água por cima, e água à volta; eis o motivo por que o seu pai havia escolhido a Ilha Kirrin para as suas experiências. Mas como teria ele encontrado a passagem secreta por baixo do mar? ‑ Nem mesmo eu, sabia da sua existência, ‑ pensou a Zé. ‑ Atenção, onde estou agora?

Parou. A passagem alargara‑se de repente, formando uma enorme gruta escura, com o tecto inesperadamente alto, perdido entre sombras negras. A Zé olhou em volta. Viu umas coisas que não percebia para o que serviriam; fios eléctricos, caixas de vidro, pequenas máquinas que pareciam estar a trabalhar mas sem fazerem ruído, onde se viam luzinhas cintilantes. De vez em quando soltavam umas faíscas, que espalhavam na gruta um cheiro especial.

‑ Isto está tudo electrificado!

‑ pensou a Zé. ‑ Como o pai consegue lidar com todas estas máquinas! Onde estará ele? Espero que aqueles homens não o tenham aprisionado!

Saía outro túnel daquela fantástica gruta de Aladino. A Zé seguiu por ali. Havia um barulho esquisito, como o de milhares de abelhas numa colmeia. A Zé quase esperava vê‑las surgir à sua volta.

«Deve ser o barulho que vem dos fios eléctricos,

‑ pensou ela. Não estava ninguém naquela gruta mas seguia‑se uma outra e a Zé esperava encontrar depressa o Tim e o pai.

Chegou à gruta seguinte, que estava completamente vazia e muito fria. Ela começou a tremer. Seguiu por outra passagem até uma gruta mais pequena. A primeira coisa que viu ao fundo desta pequena gruta foi uma luz!

Uma luz! Então chegara à gruta onde devia estar o pai! Olhou em redor e viu latas de conservas, garrafas de cerveja, latas de doces, e um monte de roupas. Com certeza era ali que o pai fazia o armazém. Dirigiu‑se para a gruta seguinte admirada por o Tim a não ter pressentido e não ter vindo ao seu encontro.

Olhou com precaução para dentro da gruta donde vinha a luz. Sentado a uma mesa, com a cabeça entre as mãos, completamente imóvel, estava o seu pai! Não havia sinal do Tim.

- Pai! ‑ chamou a Zé. A pessoa que estava sentada à mesa, sobressaltou‑se e virou‑se bruscamente. Fitou a Zé como se não acreditasse no que via. Depois voltou‑se de novo e tapou a cara com as mãos.

- Pai! ‑ chamou a Zé outra vez, assustada por ele não lhe ter respondido.

Ele olhou à sua volta e depois pôs‑se em pé. Novamente fitou a Zé e deixou‑se cair pesadamente sobre a cadeira. A Zé correu para ele. ‑ Que aconteceu? Ó pai, que aconteceu? Onde está o Tim?

‑ Zé! És realmente tu, Zé?! Julguei que estava a sonhar quando levantei a cabeça e te vi! ‑ disse o pai. ‑ Como chegaste a esta gruta? É impossível que aqui estejas!

‑ O pai está bem? Que aconteceu? E onde está o Tim? ‑ perguntou a Zé, muito aflita. Ela olhava para toda a parte, mas não via nem sinal do Tim. O seu coração parecia parar de bater. Nem queria pensar que tivesse acontecido alguma coisa má ao Tim!

‑ Viste dois homens? ‑ perguntou o pai. ‑ Onde estavam eles?

‑ Ó pai, estamos a fazer perguntas um ao outro e não respondemos! ‑ exclamou a Zé. ‑ Diga‑me primeiro onde está o Tim?

‑ Não sei, ‑ respondeu o pai. ‑ Aqueles dois homens foram à torre?

‑ Foram, sim, ‑ confirmou a Zé. ‑ Pai, que aconteceu?

‑ Bem, se eles foram à torre estamos cerca de uma hora em paz, ‑ disse o pai. ‑ Agora ouve‑me, Zé, com toda a atenção.

‑ Estou a ouvir, ‑ disse a Zé. ‑ Mas por favor diga‑me primeiro onde está o Tim.

‑ Aqueles dois homens lançaram‑se em pára‑quedas sobre a ilha para tentarem descobrir o meu segredo, ‑ explicou o pai.

‑ Vou dizer‑te qual é a finalidade das minhas experiências, Zé. Elas destinam‑se a encontrar uma maneira de substituir todo o carvão, óleo e gasolina; uma invenção que dê ao Mundo todo o calor e energia de que necessita, acabando com as minas e os mineiros.

‑ Santo Deus! ‑ exclamou a Zé. ‑ Seria uma das coisas mais maravilhosas ,que o Mundo podia conhecer!

‑ Tens razão, ‑ concordou o pai. ‑ E eu dá‑la‑ia a todo o Mundo. Não ficaria no poder de nenhum país ou conjunto de homens. Seria uma dádiva para a humanidade inteira. Mas, Zé, há uns homens que querem o meu segredo só para eles, pois podem depois fazer fortunas Colossais.

‑ Que maus! ‑ exclamou a Zé. ‑ Continue, pai. Como é que eles ouviram falar na sua invenção?

‑ Bem, eu estava a trabalhar sobre esta ideia com alguns colegas, companheiros de trabalho, ‑ explicou o pai. ‑ Um deles traiu‑nos, indo ter com uns industriais poderosos para lhes contar a minha ideia. Quando eu soube disto resolvi retirar‑me e acabar sozinho e em segredo as minhas experiências. Assim ninguém me podia trair.

‑ E veio para aqui! ‑ concluiu a Zé. ‑ Para a minha ilha?

‑ Sim, porque precisava de ter água à minha volta e sobre mim, ‑ respondeu o pai. ‑ Absolutamente por acaso olhei para uma cópia daquele velho mapa e pensei que se a' passagem ali representada, e que saía do quartinho de pedra, realmente seguia para baixo do mar, como parecia indicar o mapa, seria o lugar ideal para acabar as minhas experiências.

‑ Ó pai, e eu fiquei tão aborrecida! ‑ disse a Zé, lembrando‑se, envergonhada, como tinha ficado furiosa.

‑ Ficaste? ‑ perguntou o pai, como se nunca tivesse percebido tal coisa. ‑ Bem, depois peguei em todo o material e vim para aqui. E agora aqueles homens descobriram‑me e apanharam‑me.

‑ Pobre pai! Não posso ajudá‑lo? ‑ perguntou a Zé. ‑ Posso ir a Kirrin buscar socorros, não acha?

‑ Podes, ‑ disse o pai. ‑ Mas não deixes que esses homens te vejam, Zé.

‑ Farei tudo quanto quiser, pai! Tudo! ‑ afirmou a Zé. ‑ Mas primeiro diga‑me o que aconteceu ao Tim.

‑ Conservou‑se ao meu lado durante todo o tempo, ‑ respondeu o pai. ‑ É um cão verdadeiramente extraordinário, Zé. Esta manhã, quando eu ia a sair pela passagem do quartinho de pedra, para ir à torre com o Tim, fazer os sinais, os dois homens caíram sobre mim e forçaram‑me a voltar para aqui.

‑ Mas que aconteceu ao Tim? ‑ repetiu a Zé, impaciente. O pai teria resolvido não chegar a contar‑lhe o que ela tanto queria saber?

‑ Ele atirou‑se aos homens, ‑ disse o pai. ‑ Mas por fim um dos homens laçou‑o com uma corda, apanhando‑o. Apertaram tanto a corda à volta do pescoço dele, que quase o sufocaram.

‑ Coitadinho, coitadinho do Tim! ‑ disse a Zé, com as lágrimas nos olhos. ‑ E agora, pensa que ele está bem, pai?

‑ Acho que sim. Por aquilo que depois ouvi os homens dizerem, acho que o levaram para uma das grutas e fecharam-no lá. ‑ disse o pai. ‑ Vi esta tarde um deles a tirar duma lata uns biscoitos de cão, o que confirma que ele está vivo e... com fome.

A Zé deu um suspiro de alívio. O Tim sempre estava vivo e isso era o principal. Ela deu uns passos, dirigindo‑se para onde calculava haver uma outra caverna. ‑ Vou ver se encontro o Tim, pai, ‑ disse ela. ‑ Tenho de encontrá‑lo.

 

                   FINALMENTE O TIM!

- Não, Zé! ‑ chamou o pai, gritando. ‑ Vem cá! Tenho uma coisa muito importante para te dizer!

A Zé voltou para o pé do pai, cheia de impaciência por encontrar o Tim, estivesse ele onde estivesse. Ela tinha de o encontrar!

- Agora ouve, ‑ disse o pai. ‑ Tenho um livro onde escrevi todos os meus apontamentos sobre esta grande experiência. Os homens não conseguiram encontrá‑lo! Eu quero que tu o leves com os maiores cuidados para fora da ilha. Não o percas de vista. Se os homens o apanham, terão todas as indicações de que necessitam.

‑ Mas eles não ficam a saber tudo, examinando as suas máquinas, fios eléctricos, etc.? ‑ perguntou a Zé.

‑ Ficam a saber muito, ‑ continuou o pai. ‑ Mas não o suficiente. Não me resolvo a destruir o meu livro de apontamentos, pois se alguma coisa me acontecer, a minha ideia ficará completamente perdida. Por isso vou confiar‑te o livro e tu vais entregá‑lo pessoalmente a uma pessoa de quem te vou dar a direcção.

‑ É uma responsabilidade tremenda, ‑ disse a Zé, um pouco assustada por ter de guardar um livro que significava tanto, não só para o seu pai mas possivelmente para o Mundo inteiro.

‑ Vou fazer tudo quanto puder, pai. Vou esconder‑me numa das grutas até que os homens voltem e depois escapo‑me até à saída, corro para o meu barco e remo para terra. Depois vou entregar o livro de apontamentos, sem falta, e volto aqui com socorros.

‑ És uma boa menina, ‑ disse o pai, dando um abraço à Zé. ‑ És tão destemida como qualquer rapaz. Tenho orgulho em ti!

A Zé pensou que fora a coisa mais simpática que o pai lhe dissera até àquela data. Sorriu‑lhe, agradecida.

‑ Bem, pai, agora vou ver se consigo encontrar o Tim. Tenho que saber se ele está bem, antes de me esconder numa das grutas.

‑ Concordo, ‑ disse o pai. ‑ O homem que levava os biscoitos foi naquela direcção, ainda mais para dentro do mar. E a propósito, como te encontras tu aqui, a meio da noite?

Só agora ocorria ao pai da Zé que ela também tinha uma história para contar. Mas a pequena achou que não tinha tempo a perder. Era preciso encontrar o Tim.

O pai levantou‑se e foi até ao fundo da gruta. Pegou numa caixa e pôs‑se em pé sobre ela. Passou a mão por uma fenda da pedra e foi apalpando até encontrar o que desejava.

Trouxe consigo um livro delgado, com as páginas dum papel muito fino. Ele abriu‑o e a Zé viu uns esquemas muito bem desenhados e páginas de apontamentos escritos na letra miudinha, mas bem legível de seu pai.

‑ Aqui o tens, ‑ disse o pai entregando‑lhe o livro. ‑ Trata‑o com o maior cuidado. Se alguma coisa me acontecer, só com este livro será possível aos meus colegas darem a minha ideia ao Mundo.

Se eu conseguir sair com vida de tudo isto, ficarei satisfeito por possuir o livro, pois isso significa que não terei de recomeçar com todas as minhas experiências.

A Zé segurou o livro precioso. Meteu‑o na algibeira da gabardina, que era bastante grande.

‑ Hei‑de saber guardá‑lo, pai. Agora tenho de ir procurar o Tim, não vão os dois homens chegar antes de eu ter tempo para me esconder numa das grutas.

Deixou a gruta onde estava o pai e dirigiu‑se à que se seguia. Não havia nada ali. Depois continuou, descendo por uma passagem que fazia uma grande curva. Então ouviu um som que ela muito desejava ouvir. Um latido! Sim, um verdadeiro latido!

«Tim! ‑ gritou a Zé, vivamente. ‑ Tim! Aqui vou eu!

Os latidos do Tim pararam de repente. Depois o cão recomeçou a ladrar, parecendo muito alegre. ‑ Béu, béu, béu!

A Zé ia quase caindo, por tentar correr através daquela passagem estreita. Viu à luz da lanterna uma grande pedra tapando a entrada duma pequena gruta que dava para o túnel. Atrás da pedra, o Tim ladrava e raspava com as patas, sem cessar.

A Zé puxou a pedra com toda a força.

‑ Tim!‑chamava ela, ofegante. ‑ Tim! Eu vou tirar‑te daí! Ó Tim!

A pedra cedeu um pouco. A Zé puxou novamente. Era pesada de mais para ela, mas o desespero deu‑lhe uma força que ela nunca tivera. De repente a pedra resvalou para um lado e a Zé mal teve tempo de afastar um pé que poderia ter ficado esmagado.

O Tim conseguiu passar pelo espaço aberto. Atirou‑se à Zé, que caiu no chão, com os braços apertados à volta dele. Lambia‑lhe a cara, ganindo; ela abraçava‑o e fazia‑lhe festas, cheia de alegria. ‑ Tim! Que te fizeram eles? Tim, eu vim o mais depressa que pude!

O Tim continuava a ganir, muito contente e tentava fazer festas com as patas, à sua dona, achando que tudo era pouco para manifestar a sua alegria. Era difícil dizer qual dos dois estava mais contente.

Por fim a Zé afastou um pouco o Tim, com decisão.

‑ Tim, temos muito que fazer! Temos que sair da ilha e ir a terra buscar socorros.

‑ Rrrrm! ‑ fez o Tim. A Zé levantou‑se e iluminou a gruta onde o Tim havia estado. Ela viu uma vazilha com água e alguns biscoitos. Os homens não o tinham maltratado, embora o tivessem laçado com uma corda que quase o sufocara, quando o haviam apanhado. Ela apalpou‑lhe o pescoço com ternura, mas tirando um ligeiro inchaço, não havia nada de pior.

«Agora apressemo‑nos. Voltemos para a gruta onde está o pai e depois vamos procurar outra gruta para além daquela, onde nos esconderemos até que os homens voltem da torre. Depois saímos pelo quartinho de pedra e remamos até terra, ‑ explicou a Zé. ‑ Sabes Tim, tenho aqui na algibeira um livro muito, muito importante!

O Tim começou a rosnar, ficando com o pêlo eriçado. A Zé endireitou‑se e prestou atenção.

Uma voz dura, veio da passagem.- ‑ Não sei quem está aí nem donde vem, mas se se atreve a soltar o cão, ele apanhará um tiro. E para lhe mostrar que faço o que digo, vou dar‑lhe a certeza de que tenho um revólver.

Então ouviu‑se um barulho ensurdecedor, pois o homem puxou o gatilho e uma bala foi bater contra o tecto do túnel. A Zé e o Tim ficaram sem pinga de sangue. O Tim queria correr para a passagem, mas a Zé segurou‑o pela coleira. Ela estava muito assustada e tentava resolver qual a melhor maneira de agir.

O tiro continuava a fazer eco. Era impressionante. O Tim parou de rosnar e a Zé continuava imóvel.

Então? ‑ disse a voz. ‑ Ouviu o que eu disse?

Se o cão está solto, dar‑lhe‑ei um tiro. Não me vai agora estragar os meus planos. E a pessoa que aí está, seja quem for, tenha a bondade de vir até ao túnel, e deixar‑se conhecer. Mas aviso‑o já: se o cão estiver consigo, será o seu fim.

‑ Tim! Tim! Corre a esconder‑te em qualquer parte! ‑ murmurou a Zé. E então lembrou‑se duma coisa que a encheu de desespero. Tinha dentro da algibeira o precioso livro de apontamentos do pai! E se o homem o encontrasse? O pai morreria de desgosto se o seu maravilhoso segredo acabasse por ser roubado.

A Zé apressou‑se a tirar da algibeira o pequeno livro. Mostrou‑o ao Tim. ‑ Agarra‑o com a boca. Leva‑o contigo, Tim! Esconde‑te até não haver perigo de voltares. Depressa! Vai, Tim, vai! Eu ficarei bem.

Com grande alívio da pequena, o Tim, agarrando o livro com a boca, voltou‑se e desapareceu pela passagem que seguia por baixo do mar. Como ela desejava que ele encontrasse um esconderijo seguro! O túnel não devia ir muito mais longe, mas talvez o Tim se conseguisse meter num canto escuro e esperar que ela voltasse a chamá‑lo.

- Quer vir até à passagem ou não? ‑ gritou a voz, zangada. ‑ Será aborrecido se tiver que ir buscá‑lo, pois irei aos tiros, todo o caminho.

‑ Eu vou! ‑ disse a Zé, numa voz pouco firme, enquanto seguia pela passagem. Depressa viu uma claridade e imediatamente ficou sob a luz duma lanterna potente. Seguiu‑se uma exclamação de surpresa.

Já viram isto?! Um rapazote! Que faz aqui e donde vem?

O cabelo curto e encaracolado da Zé fazia com que o homem pensasse erradamente que ela era um rapaz e a Zé não lhe disse que estava enganado. O homem empunhava um revólver, mas deixou de o apontar quando viu a Zé.

‑ Eu vim só para salvar o meu cão e procurar o meu pai, ‑ explicou a Zé numa voz pouco firme.

‑ Mas tu não podes deslocar aquela pedra! ‑ disse o homem. ‑ Um miúdo como tu não tem força bastante. E também não podes salvar o teu pai. Com certeza percebeste que ele é nosso prisioneiro.

‑ Percebi, ‑ afirmou a Zé, satisfeita por o homem pensar que ela não tivera força suficiente para deslocar o pedregulho. Ela não queria dizer nem uma palavra sobre o Tim. Se o homem pensava que o cão ainda estava preso na gruta pequena, tanto melhor!

Então a Zé ouviu a voz do pai, chamando com ansiedade. ‑ Zé! És tu? Estás bem?

‑ Estou sim, pai, ‑ gritou ela, esperando que o pai não perguntasse nada sobre o Tim.

O homem fez‑lhe sinal para ela se aproximar. Depois puxou‑a para a frente dele e caminharam até à gruta onde estava o pai.

‑ Trago‑lhe aqui o seu rapaz, ‑ disse o homem. ‑ Que grande palerma! Pensava que podia libertar o cão! Nós encerrámo‑lo numa gruta, e pusemos uma grande pedra na entrada.

Aproximou‑se outro homem, vindo do extremo oposto da gruta. Ficou admirado ao ver a Zé. O outro homem explicou‑lhe.

- Quando cheguei aqui abaixo ouvi barulho para além desta gruta. O cão ladrava e alguém falava com ele.

Depois encontrei lá este miúdo tentando libertar o cão. Claro que teria disparado sobre o animal se o pequeno o tivesse posto em liberdade.

‑ Mas como é que o miúdo aqui chegou? ‑ perguntou o outro homem, ainda admirado.

‑ Talvez ele nos possa contar, ‑ disse o companheiro.

E então, pela primeira vez, o pai da Zé ouviu contar como é que a Zé chegara até ali e por que motivo.

Ela explicou como esperava ver o Tim no compartimento de vidro da torre, e não o vira; como isso a tinha preocupado; como resolvera ir até à ilha, durante a noite, no seu barco; depois vira por onde tinham aparecido os dois homens. Ela descera pelo túnel e seguira até àquela gruta, onde encontrara o pai.

Os três homens ouviram em silêncio. ‑ Bem, tu para nós não passas dum empecilho maçador, ‑ disse um dos homens à Zé. ‑ Mas palavra que és um filho digno do orgulho dum pai. Não há muitos rapazes com coragem suficiente para correrem tanto risco por alguém.

‑ E eu sinto‑me realmente muito orgulhoso de ti, Zé, ‑ disse o pai. Ele olhou para ela, com ansiedade. A pequena compreendeu o que ele estava a pensar. Queria saber o que acontecera ao seu livro precioso. Teria ela tido a sensatez de o esconder? Mas a Zé não se atrevia a contar nada enquanto os homens ali estivessem.

‑ Agora isto complica as coisas, ‑ disse o outro homem, olhando para a Zé. ‑ Se não voltas para casa, depressa darão pela tua falta, haverá toda a espécie de buscas, e talvez mandem alguém à ilha para prevenir o teu pai que tu desapareceste! Nós por enquanto não queremos outras pessoas na ilha; não virá ninguém até nós sabermos o que desejamos!

Ele voltou‑se para o pai da Zé. ‑ Se nos disser o que nós queremos saber e nos der todos os seus apontamentos, podemos pô‑lo em liberdade, damos‑lhe o dinheiro que nos pedir e depois desaparecemos.

‑ E se eu continuar insistindo que não digo?

‑ perguntou o pai da Zé.

‑ Nesse caso teremos de fazer explodir todas as suas máquinas e a torre. Naturalmente nunca chegarão a encontrá‑lo, pois ficará sepultado aqui em baixo, ‑ disse o homem, numa voz que se tornou muito dura.

Houve um silêncio. A Zé olhou para o pai.

‑ Não podem fazer uma coisa dessas! ‑ disse o pai por fim. ‑ Não ganham nada com isso!

‑ Connosco, é tudo ou nada, ‑ respondeu o homem. ‑ Tudo ou nada. Resolva‑se. Damos‑lhe um prazo até amanhã às dez e meia da manhã; cerca de sete horas. Ou nos explica tudo ou fazemos ir a ilha pelos ares!

Depois saíram da gruta, deixando a Zé sozinha com o pai. Só sete horas! E depois, talvez, o fim da Ilha Kirrin!

 

                 QUATRO E MEIA DA MADRUGADA

LOGO que os homens já não o podiam ouvir, o pai da Zé começou a falar em voz baixa. ‑ Não vale a pena. Tenho que entregar aos homens o meu livro de apontamentos. Não posso arriscar‑me a ver‑te ficar aqui sepultada, Zé. Por mim, não me importo de nada; os cientistas como eu têm de estar prontos a correr os maiores riscos durante toda a vida. Mas agora que tu estás aqui, é diferente.

‑ Pai, eu não tenho o livro de apontamentos, ‑ murmurou a Zé, aliviada. ‑ Dei‑o ao Tim. Eu consegui desviar a pedra da entrada da pequena gruta, embora os homens pensem que o não pude fazer. Dei o livro ao Tim e disse‑lhe para se esconder até eu o ir buscar.

‑ Muito bem pensado, Zé! ‑ exclamou o pai.

‑ Talvez tu possas ir agora buscar o Tim e ele consiga atacar aqueles dois homens, antes que eles suspeitem que o cão está solto. Ele é bem capaz de atirar os dois ao chão.

‑ É a nossa única esperança! ‑ disse a Zé.

‑ Vou buscá‑lo. Vou pela passagem e depois assobio. Porque não tentou o pai ir buscar o Tim?

‑ Não queria deixar o meu livro, ‑ explicou o pai. ‑ Temia que os homens o encontrassem, levando‑o comigo. Têm procurado em todas as grutas. Mas também não me atrevia a deixá‑lo aqui e ir procurar o cão. Tinha a certeza que ele estava bem, por ter visto o homem levar‑lhe biscoitos. Agora tens de ir, Zé, e assobiar ao Tim. Os homens podem voltar a todo o momento.

A Zé pegou na lanterna e foi até à passagem que dava para a pequena gruta onde estivera o Tim. Assobiou e pôs‑se à espera. Mas o Tim não apareceu. Assobiou outra vez, continuando a andar pelo túnel. Nada de Tim.

Chamou‑o com força. ‑ TIM! TIM! VEM CÁ! Mas o Tim continuava a não aparecer. Não se ouvia nem um latido, nada.

«Que aborrecimento! ‑ pensou a Zé. ‑ Espero que ele não tenha ido tão longe que não consiga ouvir‑me. Vou andar um pouco mais.

Continuou pelo túnel, passou pela gruta onde o Tim havia estado e continuou a descer pelo túnel. Mas o Tim não aparecia.

Depois duma curva a Zé viu que o túnel se dividia em três. Três passagens diferentes, todas escuras, silenciosas e frias! Que desespero! Ela não sabia por qual seguir. Resolveu‑se pela da esquerda.

Mas um pouco mais adiante, também aquela se dividia em mais três! A Zé parou. ‑ Se continuo, vou ficar para sempre perdida neste labirinto de túneis por baixo do mar, ‑ pensou ela. ‑ Não me atrevo. É assustador. TIM! TIM!

A sua voz fazia eco através dos túneis; ela voltou para trás e foi direita à gruta onde estava o pai, sentindo‑se completamente desanimada.

- Pai, não consigo encontrar o Tim. Ele deve ter seguido por um dos túneis e naturalmente perdeu‑se. Que coisa horrível! Há centenas de passagens para além desta gruta. Parece que todo o fundo rochoso do mar está atravessado por túneis!

A Zé sentou‑se, parecendo muito abatida.

‑ Tens razão ‑ respondeu o pai. ‑ Bem, era um bom plano que não resultou. Temos de arranjar outro.

‑ Gostava de saber o que o Júlio e os outros vão pensar quando acordarem e não me encontrarem ‑ disse a Zé de repente. ‑ Pode ser que venham aqui procurar‑me.

‑ Não serviria para nada, ‑ disse o pai.

‑ Os homens viriam aqui para baixo e ficariam à espera.

Ninguém chegaria a saber onde nós estamos. Os outros não conhecem a entrada no quartinho de pedra, pois não?

‑ Não, ‑ disse a Zé. ‑ E se vierem à ilha não conseguirão encontrá‑la. Já em tempos a procurámos. E podem ir pelos ares com a ilha. Ó pai, é simplesmente horrível!

‑ Se ao menos soubéssemos onde está o Tim!

‑ disse o pai. ‑ Ou se pudéssemos mandar uma mensagem ao Júlio, para ele não vir. Que horas são? Meu Deus, são três e meia da manhã! O Júlio e os outros devem estar a dormir profundamente.

 

O Júlio estava a dormir profundamente. A Ana também. O David dormia a sono solto, como os outros e por conseguinte ninguém suspeitava que a cama da Zé estava vazia.

Mas por volta das quatro e meia da manhã a Ana acordou, cheia de calor. ‑ Vou abrir a janela, ‑ pensou. ‑ Estou a ferver!

Levantou‑se e foi até à janela. Abriu‑a e ficou a olhar. A baía brilhava à luz das estrelas.

‑ Zé! ‑ sussurrou a Ana. ‑ Estás acordada? Esperou em vão uma resposta. Nem mesmo ouvia a respiração da Zé! Ela estaria deitada?

Apalpou a cama da prima. Estava vazia. Acendeu a luz. O pijama da Zé continuava sobre a cama mas as roupas tinham desaparecido.

«A Zé foi à ilha! ‑ pensou a Ana, assustada.

‑ Sozinha, no meio da escuridão! Foi ao quarto dos rapazes. Chegou até à cama do Júlio e começou a abaná‑lo. Ele acordou, sobressaltado. ‑ Que há? Que aconteceu?

‑ Júlio! A Zé desapareceu. A cama ainda está feita, ‑ disse a Ana. A conversa acordou o David e os dois rapazes sentaram‑se nas camas, já bem despertos.

‑ Eu devia ter previsto que ela ia fazer uma loucura dessas, ‑ disse o Júlio. ‑ Durante a noite, com todas aquelas rochas perigosas. Agora que vamos nós fazer? Eu disse‑lhe para não ir à ilha. Que o Tim estava bem. Acho que o tio Alberto se esqueceu de o levar à torre, e foi tudo. Ela devia ter esperado pelas dez e meia desta manhã e com certeza que o veria.

‑ Acho que não podemos fazer nada por agora, não acham? ‑ disse a Ana, aflita.

‑ Nada, ‑ disse o Júlio. ‑ Não tenho dúvidas que neste momento ela está na Ilha Kirrin agarrada ao Tim e tendo uma boa discussão com o tio Alberto. Realmente a Zé é o cúmulo!

Conversaram uma meia hora e então o Júlio olhou para o relógio. ‑ Cinco horas. O melhor é ver se dormimos mais um bocado. A tia Clara vai ficar arreliada quando souber da fuga da Zé.

A Ana voltou para o quarto. Meteu‑se na cama e adormeceu. O Júlio não conseguiu dormir; continuava a pensar na Zé e onde estaria ela exactamente. Havia de ter uma conversa a sério com a prima, quando ela voltasse.

De repente ouviu no andar de baixo um som estranho. Que poderia ser? Era como se alguém entrasse por uma janela. Estaria alguma aberta? A janela da casa de banho ficava sempre aberta. Podia ser um ladrão; mas nenhum ladrão seria tão estúpido que fizesse todo aquele barulho!

Ouviu‑se mais barulho nas escadas e depois a porta do quarto de dormir do Júlio foi aberta com violência. O pequeno, muito assustado, levantou a mão para acender a luz, mas antes de o conseguir, uma coisa pesada saltou sobre ele.

Júlio deu um grito e o David acordou aflito. Acendeu a luz, e então o Júlio viu o que estava na sua cama: o Tim!

‑ Tim! Como chegaste aqui? Onde está a Zé? Tim, é possível seres tu?

‑ A Zé trouxe‑o com ela? ‑ disse o David, sem compreender. ‑ Ela também veio?

A Ana entrou, pois acordara com o barulho.

‑ O Tim! Ó Júlio, a Zé também voltou?

‑ Não, parece que não, ‑ disse o Júlio, muito intrigado. ‑ Tim, o que tens tu na boca? Larga isso, Tim, larga!

O Tim deixou cair um livro sobre a cama.

- É um livro de apontamentos, ‑ disse o Júlio folheando‑o. ‑ Tudo escrito pelo tio Alberto. Que significa isto? Como é que o Tim o agarrou? E por que é que o terá trazido para aqui? É muito extraordinário.

Ninguém podia supor como é que o Tim aparecera ali com o livro de apontamentos; nem mesmo a Zé.

- É muito estranho, ‑ disse o Júlio. ‑ Há aqui qualquer coisa que eu não entendo. Vamos acordar a tia Clara.

Foram acordá‑la e contaram‑lhe tudo o que sabiam. Ela ficou muito arreliada por a Zé ter desaparecido. Pegou no livro e percebeu logo que era muito importante.

‑ Tenho de o guardar em lugar seguro, ‑ disse ela. ‑ Sei que tem valor. Como é que o Tim o apanhou?

O Tim entretanto comportava‑se duma maneira especial. Não parava de tocar com as patas no Júlio, ganindo. Mostrava estar muito satisfeito por os ver, mas parecia ter qualquer coisa para lhes transmitir.

‑ Que tens tu? ‑ perguntou o David. ‑ Como chegaste aqui? Não vieste a nado, pois estás completamente seco. Se vieste de barco, deve ter sido com a Zé; porque a deixaste para trás?

‑ Tenho a impressão que aconteceu qualquer coisa à Zé, ‑ disse a Ana de repente, ‑ Acho que o Tim não pára de tocar com as patas querendo dizer‑te que vás com ele procurá‑la. Talvez ela o tenha trazido no barco e depois tenha adormecido na praia por estar muitíssimo cansada. Nós temos que ir ver.

‑ Também acho que sim, ‑ concordou o Júlio. ‑ A tia Clara não poderia acordar a Joana, para ela preparar qualquer coisa quente, pois a Zé pode estar cansada e cheia de frio? Vamos à praia procurá‑la. Depressa haverá luz do dia. O sol não tarda a nascer.

‑ Então vão vestir‑se, ‑ disse a tia Clara, continuando preocupada. ‑ Que família terrível eu arranjei! Sempre metida em sarilhos!

Os três pequenos começaram a vestir‑se. O Tim observava‑os, esperando pacientemente que eles estivessem prontos. Depois desceram e saíram. O Júlio ia seguir em direcção à praia mas o Tim ficou parado. Começou a puxar o David e depois correu um pouco na direcção oposta.

‑ Ele não quer que nós vamos à praia! Ele quer que vamos a qualquer outro sítio! ‑ exclamou o Júlio surpreendido. ‑ Está bem, Tim. Tu ensinas o caminho e nós seguimos‑te!

 

                   UM ENCONTRO COM O MARTINHO

O Tim deu a volta à casa e dirigiu‑se ao terreno que ficava por trás. Onde iria ele?

‑ Mas que coisa tão esquisita, ‑ disse o Júlio. ‑ Tenho a certeza que a Zé não pode estar em parte nenhuma nesta direcção.

O Tim continuava, voltando a cabeça de vez em quando, para ver se o seguiam. Tomou o caminho que ia dar à pedreira!

‑ Para a pedreira! Então a Zé veio para aqui?

‑ perguntou o David. ‑ Mas por que motivo? O cão começou a descer pela pedreira, saltando e escorregando pelo terreno em declive. Os outros seguiam‑no como podiam. Felizmente não estava tão escorregadio como anteriormente e chegaram ao fundo sem novidade.

O Tim foi direito à laje onde uma vez haviam feito um piquenique com o Martinho, e desapareceu ali por baixo. Soltou um latido, como quem diz: ‑ Venham! É por aqui o caminho! Apressem‑se!

‑ Ele vai para o túnel que fica ali em baixo

‑ disse o David. ‑ Por onde nós pensámos seguir e nunca chegámos a fazê‑lo. Naturalmente há ali uma passagem ou qualquer outra coisa. Mas a Zé estará lá?

‑ Eu vou à frente, ‑ disse o Júlio, metendo‑se pela abertura. Depressa chegou a uma parte um pouco mais larga e em breve quase tinha altura para se pôr de pé. Caminhou um pouco às escuras, ouvindo o Tim a ladrar de vez em quando, impaciente.

Mas por mais de uma ocasião teve de parar.

- Não consigo seguir‑te através da escuridão, Tim! ‑ gritou ele. ‑ Temos de voltar atrás e arranjar lanternas. Não vejo um palmo adiante do meu nariz.

O David também estava a meter‑se pela abertura, mas o irmão aconselhou‑o a voltar para trás.

- Está muito escuro, ‑ disse ele. ‑ Temos de ir buscar as lanternas. Se por qualquer motivo a Zé se encontra aqui, está mais ao fundo desta passagem; pode ter‑lhe acontecido alguma coisa. É melhor trazermos uma corda e um pouco de aguardente.

A Ana começou a chorar. Nem queria pensar que a Zé estivesse ferida naquele túnel tão escuro. Logo que o Júlio saiu do buraco, abraçou a irmã para a consolar. Ajudou‑a a subir pela pedreira, e o David seguiu‑os.

- Não te preocupes. Nós vamos buscá‑la. Mas não compreendo como é que ela, vindo da ilha com o Tim, pode estar próximo da pedreira e não da praia!

‑ Olhem, está ali o Martinho! ‑ exclamou de súbito o David, muito surpreendido. E era verdade. Ali estava ele, mesmo à borda da pedreira, parecendo tão surpreendido por os encontrar, como eles estavam por o ver a ele.

- Levantaste‑te cedo! ‑ disse o David. ‑ Mas que é isso? Vais arranjar o jardim? Para que são as pás?

O Martinho estava atrapalhado, sem saber o que dizer.' O Júlio dirigiu‑se a ele e agarrou‑o pelo ombro. ‑ Ouve, Martinho.

Está a passar‑se aqui qualquer coisa de anormal. Que vais tu fazer com essas pás? Viste a Zé? Sabes onde ela está ou sabes alguma coisa sobre ela? Vamos, diz‑me! O Martinho desembaraçou‑se da mão forte do Júlio, mostrando‑se muito surpreendido.

‑ O Zé? Não! Que lhe aconteceu a ele?

‑ A Zé não é ele é ela, ‑ disse a Ana, ainda a chorar. ‑ Desapareceu. Pensámos que tivesse ido à ilha procurar o cão. Depois o Tim apareceu inesperadamente no Casal Kirrin e trouxe‑nos aqui.

‑ O que julgamos significar que a Zé está em qualquer sítio aqui próximo, ‑ continuou o Júlio.

‑ E eu quero saber se tu a viste ou fazes alguma ideia do lugar onde ela está.

‑ Não sei, Júlio. Juro‑te que não sei! ‑ afirmou o Martinho.

‑ Bem, então diz‑me o que estás aqui a fazer a estas horas da manhã, com essas pás, ‑ disse o Júlio, asperamente. ‑ Por quem esperas? Pelo teu pai?

‑ Sim, ‑ disse o Martinho.

‑ E que vão vocês fazer? ‑ perguntou o David. ‑ Vão explorar a passagem por baixo da laje?

‑ Sim, ‑ repetiu o Martinho, aflito e preocupado. ‑ Não há mal nisso, pois não?

‑ É tudo muito estranho ‑ disse o Júlio, observando‑o atentamente e falando‑lhe numa voz pausada e forte. ‑ Vou dizer‑te uma coisa. Nós vamos ao túnel, e não tu. Se há qualquer coisa digna de nota naquele buraco, nós a encontraremos. Não permitimos que tu e o teu pai passem pela entrada. Por isso vai procurá‑lo para lhe dizeres isto mesmo.

O Martinho não se mexeu. Ficou bastante pálido e fitou o Júlio, parecendo muito impressionado. A Ana foi ter com ele, ainda com lágrimas nos olhos, e pôs‑lhe uma mão sobre o braço.

‑ Que se passa, Martinho? Porque estás assim? Que mistério é esse?

E então, com grande surpresa de todos, o Martinho voltou‑se, soluçando! Ficou de costas para eles, e os ombros não paravam de tremer.

‑ Santo Deus! Que aconteceu? ‑ perguntou o Júlio, desesperado. ‑ Acalma‑te, Martinho! Conta‑nos o que te preocupa.

‑ Tudo, tudo! ‑ disse o Martinho numa voz sumida. Depois virou‑se para os encarar. ‑ Vocês não sabem o que é não ter mãe, nem pai, não ter uma pessoa que se preocupe connosco, e depois...

‑ Mas tu tens pai!? ‑ interrompeu o David.

‑ Não tenho. Aquele homem não é meu pai.

É só meu tutor, mas obriga‑me a chamar‑lhe pai, quando temos um trabalho em conjunto.

‑ Um trabalho? Que espécie de trabalho? ‑ perguntou o Júlio.

‑ De qualquer espécie. Tudo coisas horríveis, ‑ disse o Martinho. ‑ Andar a bisbilhotar para tirar informações sobre algumas pessoas e depois arranjar dinheiro, prometendo‑lhes não contar certas coisas a ninguém. E receber objectos roubados para os vender. E ajudar pessoas como os homens que andam a ver se descobrem o segredo do vosso tio.

‑ Oh! ‑ exclamou o David. ‑ Agora estou a perceber tudo! Sempre achei que tu e o sr. Curton estavam ambos interessados dum modo suspeito sobre a Ilha Kirrin. Então qual é esse trabalho de agora?

‑ O meu tutor vai matar‑me por eu lhes contar tudo isto, ‑ disse o Martinho. ‑ Mas sabem, estão a planear fazer explodir a ilha; é a história mais terrível em que me vejo metido. E sei que o vosso tio lá está. E naturalmente a Zé também, segundo vocês dizem. Não posso continuar envolvido neste caso!

Correram‑lhe pela cara mais algumas lágrimas. Fazia impressão ver um rapaz a chorar daquela maneira, e os três pequenos sentiram pena do Martinho. Mas tinham ficado horrorizados quando o ouviram dizer que a ilha devia ir pelos ares.

‑ Como sabes tudo isso? ‑ perguntou o Júlio.

‑ O sr. Curton tem um aparelho transmissor e outro receptor, como vocês viram, ‑ explicou o Martinho. ‑ Os tais homens que estão na ilha também têm, e assim podem facilmente estar em contacto uns com os outros. Eles querem saber o segredo do vosso tio e se não o conseguirem deitam tudo pelos ares, para que ninguém possa conhecer o tal segredo. Mas eles não podem voltar de barco, porque não sabem o caminho por entre as rochas...

‑ Então como poderão sair dali? ‑ perguntou o Júlio.

‑ Nós estamos convencidos que aquele buraco que o Tim encontrou no outro dia, continua por baixo do mar até à Ilha Kirrin, ‑ explicou o Martinho. ‑ Bem sei que parece uma loucura, mas o sr. Curton tem um velho mapa que mostra claramente ter havido em tempos uma passagem por baixo do fundo do mar. Se continua a existir, os homens que estão na ilha podem fugir por ele, depois de terem preparado tudo o que precisam para fazerem explodir a ilha. Compreendem?

‑ Muito bem, ‑ disse o Júlio, respirando fundo. ‑ Agora está tudo muito claro. E até vejo outra coisa. O Tim veio da ilha por essa passagem sobre a qual tu acabas de nos falar. E foi por isso que nos trouxe até aqui. Para nos levar à ilha e salvarmos o tio Alberto e a Zé.

Houve um silêncio profundo. O Martinho olhava para o chão. O David e o Júlio pensavam na melhor maneira de agir. A Ana soluçava; parecia‑lhe tudo inacreditável. Então o Júlio segurou o braço do Martinho. ‑ Martinho! Fizeste bem em contar‑nos tudo. Nós podemos evitar uma grande catástrofe. Mas tu tens que nos ajudar. Nós podemos precisar destas tuas pás; e com certeza também trouxeste lanternas. Nós não temos aqui nenhuma e não queremos perder tempo indo buscá‑las.

Por isso tu emprestas‑nos as tuas lanternas e as tuas pás? Queres vir connosco e ajudar‑nos?

‑ Vocês confiam em mim? ‑ perguntou o Martinho em voz baixa. ‑ Sim, eu quero ajudá‑los. E se formos já, o meu tutor não poderá seguir‑nos, pois não tem lanterna. Vamos até à ilha e trazemos o vosso tio e a Zé.

‑ Tens razão, ‑ aprovou o David. ‑ Vamos! Já falámos durante tempo de mais. Vou descer outra vez, Júlio. Dá‑lhe uma pá e uma lanterna, Martinho.

‑ Ana, é melhor tu não vires, ‑ disse o Júlio à sua irmãzita. ‑ Volta para casa e conta à tia Clara o que se passa.

‑ Está bem. Eu não quero ir, ‑ disse a Ana. ‑ Tem o maior cuidado, Júlio!

Ela desceu com os rapazes e depois ficou a vê‑los desaparecerem pelo buraco. O Tim, que estivera ladrando e esperando pacientemente durante a conversa, estava satisfeito por perceber que enfim os pequenos se decidiam a segui‑lo. Ele corria à frente, pelo túnel, e os seus olhos pareciam duas contas verdes, cada vez que se voltava, para se certificar que os rapazes o seguiam.

Ana começou novamente a subir pela pedreira. A certa altura, ouvindo alguém tossir, escondeu‑se atrás dum arbusto. Espreitou através das folhas e viu o sr. Curton. Depois ouviu‑o chamar: ‑ Martinho! Onde diabo estás tu?

Era certo que ele viera ter com o Martinho para seguirem os dois pelo túnel! A Ana mal se atrevia a respirar. O sr. Curton chamou repetidas vezes, soltou uma praga e começou a descer pela pedreira.

De repente escorregou! Agarrou‑se a um arbusto mas este cedeu.

Foi rolando até perto do lugar onde estava a Ana e nessa altura viu‑a. Ficou muito surpreendido mas não conseguindo parar, foi rebolando cada vez com mais velocidade, até ao fundo da pedreira. A Ana ouviu‑o soltar um gemido quando finalmente ficou imóvel.

A pequena espreitou, amedrontada. O sr. Curton estava sentado, segurando uma das pernas e gemendo. Ele olhou para cima, para ver se via a Ana.

‑ Ana! ‑ exclamou ele. ‑ Acho que parti uma perna. Não podes ir buscar alguém para me socorrer? Que estás fazendo aqui, tão cedo? Viste o Martinho?

A Ana não respondeu. Se ele partira uma perna, então não podia ir atrás dos outros.

E ela, Ana, podia depressa fugir‑lhe.

Subiu com cuidado, cheia de medo de rolar até lá abaixo e ficar estendida ao pé do detestável sr. Curton.

‑ Ana! Viste o Martinho? Vai procurá‑lo e traz‑me auxílio, sim? ‑ gritou o sr. Curton e depois pôs‑se novamente a gemer.

A Ana trepou até à borda da pedreira e olhou para baixo. Pôs as mãos à volta da boca e gritou com toda a força:

‑ O sr. Curton é um homem muito mau! Não vou buscar ninguém para o socorrer. Eu detesto‑o!

E tendo desabafado desta maneira, a pequenita desatou a correr a toda a velocidade, em direcção a casa.

«Vou contar à tia Clara. Ela saberá como proceder.

Espero que os outros não corram perigo. Que faremos se a ilha for pelos ares? Estou contente, contente por ter dito ao sr. Curton que ele é muito mau.

E ela continuava a correr ofegante. A tia Clara saberia como proceder!

 

                   GRANDES SURPRESAS

ENTRETANTO os três rapazes e o Tim davam um estranho passeio subterrâneo. O Tim seguia à frente, indicando o caminho sem hesitações, parando de vez em quando, para que os outros não ficassem distantes.

Ao princípio o túnel tinha um tecto muito baixo e os rapazes caminhavam todos curvados, o que os cansava muito. Mas um pouco adiante o tecto tornou‑se mais alto e o Júlio, examinando com a lanterna, viu que as paredes e o tecto, em vez de serem feitos de terra batida, eram de rocha. Tentou orientar‑se.

‑ Temos vindo praticamente em direcção aos penedos, ‑ disse ele ao David. ‑ Nos últimos metros o túnel tem descido tanto, que eu suponho estarmos muito abaixo do nível do mar.

Mas só quando os rapazes começaram a ouvir o mesmo barulho que a Zé ouvira nas grutas, só então perceberam que estavam sob o fundo rochoso da Baía Kirrin.

Que estranho, era quase inacreditável!

- É como se sonhássemos acordados! ‑ disse o Júlio. ‑ Não sei se estou a gostar muito disto! Está bem, Tim, aqui vamos nós. Mas que se passa?

Pararam. O Júlio iluminou um pequeno monte de pedras que haviam abatido e impediam a passagem. O Tim conseguira passar por um buraco entre as pedras, atravessando para o outro lado, mas os rapazes não podiam.

‑ Para isto é que vieram as pás, Martinho!

‑ disse o David, animado. ‑ Dá uma ajuda! Depois de algum trabalho, os rapazes conseguiram finalmente afastar o monte de pedras o suficiente para poderem passar. ‑ Ainda bem que trouxemos as pás! ‑ disse o Júlio.

Continuaram e em breve estavam novamente muito satisfeitos por terem levado as pás, pois tiveram que remover outro montículo de pedras. O Tim ladrava com impaciência quando o faziam esperar. Ele estava ansioso por ir ter com a Zé.

Depressa chegaram a um lugar onde o túnel se dividia em dois. Mas o Tim seguiu pela passagem da direita sem hesitação, e quando esta se dividiu em três, novamente escolheu uma delas, sem parar um momento.

‑ É maravilhoso, não acham? ‑ disse o Júlio.

‑ Só se guia pelo faro! Já aqui esteve uma vez e por isso sabe o caminho. Nós já estaríamos perdidos se tivéssemos vindo sozinhos.

O Martinho não parecia gostar da aventura. Quase não falava, mas continuava a seguir os outros. O David pensou que ele estava preocupado com o que iria acontecer quando a aventura acabasse. Pobre Martinho! Tudo quanto ele desejava era poder desenhar e, em vez disso, estava envolvido em vários negócios escuros e o seu detestável tutor servia‑se dele como entendia.

‑ Julgam que já estamos próximo da ilha?

‑ perguntou o David, por fim. ‑ Estou a ficar farto disto!

‑ Devemos estar perto, ‑ disse o Júlio.

‑ Agora é melhor fazermos o menos barulho possível, não vamos de repente dar de caras com o inimigo!

E assim, sem voltarem a falar, avançaram com as maiores precauções. Subitamente viram uma luz pálida, ao longe. O Júlio levantou a mão, para que os outros parassem.

Estavam perto da gruta onde o pai da Zé tinha os seus livros e papéis, onde a Zé o havia encontrado na noite anterior. O Tim também parou à frente deles, escutando. Ele não ia meter‑se na boca do lobo!

Ouviram vozes e prestaram a maior atenção para perceberem a quem pertenciam. ‑ É a Zé, e o tio Alberto, ‑ concluiu o Júlio, por fim. E como se o Tim também tivesse concordado que realmente eram eles, começou a correr e entrou na gruta iluminada, ladrando alegremente.

‑ Tim! ‑ exclamou a Zé.

‑ Béu! Béu! ‑ ladrava o Tim, tentando explicar‑se. ‑ Béu!

Nessa altura o Júlio e o David chegaram à gruta, seguidos pelo Martinho! O tio Alberto e a Zé olharam para eles com o maior dos espantos.

‑ Júlio! David! E o Martinho! Como vieram até aqui? ‑ exclamou a Zé, enquanto o Tim saltava à sua volta.

‑ Eu explico, ‑ disse o Júlio. ‑ O Tim foi buscar‑nos!

O Júlio contou como o Tim aparecera de madrugada no Casal Kirrin, como saltara sobre a sua cama e tudo o mais que acontecera desde então.

E por sua vez o tio Alberto e a Zé contaram tudo o que se havia passado com eles.

‑ Onde estão os dois homens? ‑ perguntou o Júlio.

‑ Em qualquer lugar da ilha, ‑ respondeu a Zé. ‑ Há pouco segui‑os para ver onde iam. Naturalmente conservam‑se ali até às dez e meia e então devem ir à torre fazer os sinais, para toda a gente julgar que tudo corre normalmente.

‑ Que vamos fazer agora? ‑ perguntou o Júlio. ‑ Voltam connosco pela passagem por baixo do mar?

‑ É melhor não, ‑ disse logo o Martinho. ‑ O meu tutor está em contacto com os outros homens. Se desconfia onde eu estou e pensa que aconteceu alguma coisa, pode chamar mais dois ou três homens e nós arriscamo‑nos a encontrá‑los, a meio da passagem.

Claro está que eles não sabiam que o sr. Curton continuava no fundo da pedreira, com uma perna partida. O tio Alberto considerou o caso.

‑ Deram‑me sete horas para eu resolver se entregava ou não o meu segredo, ‑ disse ele. ‑ O prazo acabará às dez e meia. Nessa altura os homens devem voltar, para me falarem. Tenho a impressão que nós sozinhos conseguimos capturá‑los, sobretudo por termos o Tim connosco.

‑ Isso é uma boa ideia, ‑ aprovou o Júlio. ‑ Podemos esconder‑nos em qualquer parte até eles chegarem e depois largamos o Tim sobre eles, apanhando‑os desprevenidos.

Mal o Júlio acabou de falar, apagou‑se a luz na gruta. Ouviu‑se uma voz, no meio da escuridão.

‑ Todos quietos! Um movimento e eu disparo! A Zé sentiu um arrepio. Que acontecera?

Os homens haviam voltado inesperadamente? Por que razão o Tim não os tinha avisado? Ela estivera a fazer‑lhe festas nas orelhas e naturalmente ele não pudera ouvir nada!

A pequena segurava na coleira do Tim, temendo que ele se atirasse ao homem e este lhe desse um tiro. A voz fez‑se ouvir outra vez.

- Quer ou não quer entregar‑nos o seu segredo?

‑ Não quero, ‑ disse o tio Alberto, em voz baixa.

‑ Prefere que esta ilha e todo o seu trabalho vão pelos ares? E o senhor também, assim como os outros?

‑ Façam o que quiserem! ‑ gritou a Zé inesperadamente. ‑ Vocês também irão pelos ares. Nunca serão capazes de se afastarem num barco, por causa das rochas!

O homem, na escuridão, riu‑se. ‑ Nós não corremos nenhum perigo, ‑ disse ele. ‑ Agora conservem‑se no fundo da gruta. Tenho o meu revólver apontado para vocês.

Todos se juntaram ao fundo da gruta. O Tim rosnou mas a Zé fê‑lo calar‑se. Ela não sabia que os homens o julgavam à solta. Ouviram‑se uns passos a atravessar a gruta. A Zé apurou o ouvido e percebeu tratar‑se de duas pessoas. Ela sabia onde eles iam! Tencionavam fugir pela passagem por baixo do mar, deixando que a ilha explodisse depois! Logo que os passos já não se ouviam, a Zé acendeu a lanterna. ‑ Pai! Os homens vão fugir pelo túnel do mar. Nós também podemos fugir, mas não por esse lado. O meu barco está na praia. Vamos até lá depressa para nos afastarmos antes que haja uma explosão.

‑ Vamos! ‑ disse o pai. ‑ Mas se eu conseguisse ir à minha torre podia impedir os malévolos propósitos deles. Sei que tencionam usar a energia eléctrica da torre, mas se eu subir ao compartimento de vidro, poderei desfazer todos os seus planos.

‑ Apressemo‑nos então, pai! ‑ gritou a Zé, agora muito nervosa. ‑ Se é possível, salve a minha ilha!

Dirigiram‑se todos para a passagem que seguia até aos degraus, para saírem pelo quartinho de pedra. Mas ali tiveram um grande abalo.

A pedra não se podia abrir pelo lado de dentro! Os homens haviam modificado o mecanismo e agora só trabalhava pela parte exterior!

Em vão o tio Alberto fazia girar a alavanca, para cima e para baixo. Nada resultava. A pedra não se movia.

‑ Só se pode abrir pela parte de fora! ‑ repetia ele, desesperado. ‑ Estamos apanhados!

Sentaram‑se em fila nos degraus de pedra, uns abaixo dos outros. Tinham frio, tinham fome e sentiam‑se completamente desanimados. Que poderiam fazer? Voltarem para a gruta e depois seguirem pelo túnel por baixo do mar?

‑ Não quero fazer isso, ‑ disse o tio Alberto.

‑ Receio muito que se houver uma explosão estale o fundo rochoso do mar, que é o tecto do túnel e entre água. Não seria nada agradável se lá estivéssemos nesse momento.

‑ Não nos deixe ser apanhados assim! ‑ disse a Zé, a tremer. ‑ Não suporto essa ideia!

‑ Talvez eu possa fazer explodir esta pedra,

‑ disse o tio Alberto, um pouco depois. ‑ Tenho material para isso, mas preciso de tempo para o juntar.

‑ Escutem! ‑ disse o Júlio, subitamente. ‑ Oiço barulho do lado de fora desta parede.

Todos escutaram atentamente. O Tim gania e arranhava a tal pedra que não se movia.

‑ São vozes! ‑ exclamou o David. ‑ São muitas vozes! Quem poderá ser?

‑ Está calado! ‑ disse o Júlio, zangado. ‑ Temos que descobrir.

‑ Já sei, já sei! ‑ exclamou a Zé. ‑ São os pescadores, que vieram nos barcos deles. Foi por isso que os homens não esperaram até às dez e meia! Foi por isso que os homens se foram a toda a velocidade. Viram aproximarem‑se os barcos de pesca!

‑ Então foi a Ana que os trouxe! ‑ exclamou o David. ‑ Deve ter corrido a casa a contar tudo à tia Clara e depois deu a notícia aos pescadores; eles vieram salvar‑nos! Ana,ANA! NÓS ESTAMOS AQUI!

O Tim começou a ladrar, fazendo um barulho ensurdecedor. Os outros animavam‑no, pois estavam certos que o ladrar do Tim se ouvia melhor do que os gritos deles.

‑ BÉU! BÉU! BÉU!

A Ana ouviu os latidos e os gritos logo que chegou ao quartinho de pedra. ‑ Onde estão vocês? Onde estão? ‑ gritou ela.

‑ AQUI! AQUI! FAZ DESLOCAR A PEDRA! ‑ gritou o Júlio, berrando tanto que chegou a assustar quem estava à sua volta.

‑ Desvie‑se um pouco, menina, para que eu possa ver que pedra é, ‑ disse uma voz grossa. Era um dos pescadores. Começou a apalpar a pedra com cuidado; certamente era aquela pois estava mais branca do que as outras.

De repente tocou no lugar próprio, encontrando um pequeno prego de ferro. Puxou‑o, a alavanca mexeu‑se, fazendo deslizar a pedra.

Todos queriam sair ao mesmo tempo! Os seis pescadores que estavam no quartinho de pedra ficaram pasmados. A tia Clara e a Ana também lá estavam. A tia Clara correu para o marido logo que este apareceu, mas com grande surpresa sua o marido desviou‑a bruscamente.

Ele correu para fora do quartinho de pedra dirigindo‑se à torre. Chegaria a tempo de salvar a ilha e os que ali estavam? - Oh, dePressa! Depressa!

 

                   O FINAL DA AVENTURA

- ONDE vai ele? ‑ perguntou a tia Clara, muito sentida. Ninguém respondeu. O Júlio, a Zé e o Martinho não desviavam os olhos da torre, cheios de ansiedade. Se ao menos o tio Alberto aparecesse lá em cima! Ah, lá estava ele!

O tio Alberto levara consigo uma grande pedra. Enquanto todos o observavam, ele partiu o vidro com a pedra, a toda a volta da torre.

Os fios que passavam pelos vidros iam ficando partidos e estragados, enquanto o vidro caía aos pedaços. Agora já nenhuma força podia passar através deles. O tio Alberto inclinou‑se para fora do compartimento dos vidros partidos e gritou cheio de alegria.

‑ Já não há perigo! Cheguei a tempo! Acabo de destruir o poder que ia fazer explodir a ilha.

A Zé sentiu que tinha os joelhos a tremer. Teve que se sentar no chão! O Tim veio lamber‑lhe as mãos. Depois sentou‑se ao lado dela.

‑ Para que está o sr. doutor a destruir a torre? ‑ perguntou um pescador, ‑ Não percebo nada disto.

O tio Alberto saiu da torre e foi‑se juntar aos outros. ‑ Mais dez minutos e já seria tarde, ‑ disse ele. ‑ Graças a Deus, Ana, vocês chegaram a tempo.

‑ Fui a correr até a casa, contei tudo à tia Clara e fomos pedir aos pescadores para virem o mais depressa possível, ‑ explicou a Ana. ‑ Não nos lembrámos de nenhuma outra maneira de os vir socorrer. Onde estão os homens maus?

‑ Tentando fugir pelo túnel que passa por baixo de água, ‑ respondeu o Júlio. ‑ Tu ainda não sabes nada disso, Ana!

Então o Júlio contou tudo à irmãzita, enquanto os pescadores escutavam, boquiabertos.

‑ Oiçam, ‑ disse o tio Alberto, quando o Júlio acabou. ‑ Como os barcos estão aqui, os pescadores podem aproveitar para levarem todo o meu material. Acabei o meu trabalho. Já não preciso mais da ilha.

‑ Oh, então podemos vir nós para cá! ‑ disse a Zé, encantada. ‑ Ainda temos bastantes dias de férias. Vamos ajudá‑lo a levar o seu material, pai.

‑ Céus! Vão encontrar o sr. Curton com uma perna partida! ‑ disse a Ana, lembrando‑se de repente.

Os outros olharam para ela, muito surpreendidos. Era a primeira vez que ouviam dizer que o sr. Curton estava na pedreira. A Ana explicou.

‑ E eu disse‑lhe que ele era um homem muito mau, ‑ acabou ela, triunfante.

‑ Tens toda a razão, ‑ aprovou o tio Alberto, com uma gargalhada. ‑ Bem, talvez seja melhor levar o meu material noutra ocasião.

‑ Dois de nós podem fazer isso agora, sr. doutor, ‑ disse um pescador, ainda jovem. ‑ A menina Zé deixou o barco na praia e também lá está o seu. Os outros podem ir com o senhor, se o desejar, e o Tom e eu vamos buscar o material e depois levamos tudo para terra. Escusamos assim de cá voltar.

‑ Muito bem, ‑ disse o tio Alberto, satisfeito. ‑ Então façam isso. Está tudo lá em baixo, nas grutas que se seguem à passagem por trás daquela pedra.

Foram todos para a praia. Estava um dia lindo e o mar parecia um lago, excepto à volta da ilha, onde sempre havia ondas. Depressa os barquitos se dirigiam para terra.

‑ Acabou a aventura! ‑ disse a Ana. ‑ Que engraçado. Não pensei que fosse uma verdadeira aventura enquanto estava a desenrolar‑se, mas agora vejo que foi!

‑ Mais uma para acrescentar à nossa longa lista de aventuras, ‑ disse o Júlio. ‑ Alegra‑te, Martinho! Não estejas tão preocupado! Aconteça o que acontecer nós arranjaremos as coisas de maneira a tu não ficares mal colocado. Tu ajudaste‑nos e arriscaste‑te por nossa causa. Agora seremos nós a auxiliar‑te, não é verdade, tio Alberto? Nunca chegaríamos a passar aqueles montes de pedras se não tivéssemos as tuas pás!

‑ Obrigado, ‑ disse o Martinho. ‑ Se vocês conseguissem afastar‑me do meu tutor de maneira a nunca mais o ver, ficaria bem feliz!

‑ É evidente que o sr. Curton vai para um lugar seguro, onde não poderá ver os amigos por muito tempo, ‑ disse o tio Alberto, secamente. ‑ Por isso acho que não tens que te preocupar.

Logo que os barcos chegaram à praia, o Júlio, a Zé, o David, o Tim e o tio Alberto, foram todos à pedreira, para ver se o sr. Curton ainda lá estava, e esperarem que os outros dois homens saíssem do túnel.

O sr. Curton ali continuava, ainda a gemer e gritando por socorro. O tio Alberto falou‑lhe severamente.

‑ Nós já conhecemos qual foi o seu papel neste assunto, Curton. Terá que prestar contas à polícia, que em breve estará aqui.

O Tim farejou à volta do sr. Curton e depois afastou‑se, como quem diz: ‑ Que trabalho tão sujo! Os outros acomodaram‑se à volta da entrada para o subterrâneo e ficaram à espera.

Mas ninguém aparecia. Passou‑se uma hora, duas horas, e continuava a não aparecer ninguém. ‑ Ainda bem que o Martinho e a Ana não vieram, ‑ disse o tio Alberto. ‑ Que pena não termos trazido umas sanduíches.

Nesse momento chegou a polícia, descendo com cuidado pela pedreira abaixo. Vinha com eles um médico que examinou a perna do sr. Curton. Depois, ajudado pelos outros, levou o homem para o cimo da pedreira, com grande dificuldade.

‑ Júlio, vai buscar umas sanduíches, ‑ disse por fim o tio Alberto. ‑ Parece‑me que ainda temos de esperar muito tempo.

O Júlio depressa voltou com um pacote de saborosas sanduíches de fiambre e um termo com café quente. Os dois polícias que ainda ali estavam ofereceram‑se para ficarem de guarda, no caso de o tio Alberto querer voltar para casa.

- Obrigado, de modo algum! ‑ disse ele. ‑ Quero ver a cara dos dois sujeitos quando aqui chegarem. Vai ser um dos melhores momentos de toda a minha vida! A ilha não explodiu; o meu segredo está salvo, o meu livro também. O meu trabalho acabou. E eu quero dizer tudo isto aos meus dois queridos amigos!

‑ Sabe, pai, tenho a impressão que eles se perderam nos subterrâneos, ‑ disse a Zé. ‑ O Júlio contou que há muitas passagens diferentes. O Tim soube guiar os rapazes, mas eles podiam ter‑se perdido se não tivessem o cão com eles!

O pai ficou aborrecido com aquela ideia. Ele queria tanto gozar a cara dos dois homens quando chegassem à pedreira!

‑ Podemos mandar o Tim procurá‑los, ‑ lembrou o Júlio. ‑ Depressa os encontrará e há‑de trazê‑los até aqui. Queres ir, Tim?

‑ Béu, Béu! ‑ respondeu o Tim, concordando.

‑ É uma boa ideia, ‑ aprovou a Zé. ‑ Não lhe farão mal por pensarem que ele os pode conduzir à saída. Vai, Tim! Vai procurá‑los! Trá‑los aqui!

‑ Béu! ‑ repetiu o Tim, agradecido, desaparecendo pelo buraco, debaixo da laje.

Ficaram à espera, comendo sanduíches e bebendo o café. Depois ouviram o Tim a ladrar, ainda nos subterrâneos.

Ouviu‑se um barulho, como se alguém se aproximasse. Saiu um homem, pôs‑se de pé e então viu o grupo silencioso a observá‑lo. Ele ficou de boca aberta, sem dizer palavra.

‑ Bom‑dia, Johnson, ‑ saudou o tio Alberto, com uma voz amigável. ‑ Como tem passado?

Johnson tornou‑se lívido. Deixou‑se cair sobre o tojo. ‑ Ganhou! ‑ exclamou ele.

‑ Ganhei, sim ‑ respondeu o tio Alberto. ‑ Na verdade ganhei totalmente. O seu plano não resultou. O meu segredo continua a salvo e no próximo ano todo o Mundo o conhecerá.

Ouviu‑se mais um barulho e chegou o outro homem. Este também se pôs de pé e então viu o mesmo grupo de espectadores.

‑ Bom‑dia, Peters, ‑ disse o tio Alberto. ‑ Tenho muito prazer em tornar a vê‑lo. Que tal lhe pareceu o passeio através dos subterrâneos? Nós achámos melhor virmos pelo mar.

Peters olhou para Johnson e logo se sentou ao lado do companheiro. ‑ Que aconteceu? ‑ perguntou ele ao Johnson.

‑ Não houve explosão, ‑ disse o Johnson. Nessa altura apareceu o Tim, abanando a cauda.

‑ Aposto que ficaram satisfeitos quando o Tim foi ter convosco! ‑ comentou o Júlio.

O Johnson olhou para ele. ‑ Pois ficámos. Andámos perdidos por aqueles horríveis túneis. O Curton disse que ia ter connosco, mas não chegou a aparecer.

‑ Neste momento é natural que esteja no hospital da prisão, com uma perna partida, ‑ respondeu o tio Alberto. ‑ Bem, senhor polícia, faça o seu dever.

Imediatamente prenderam os dois homens. Depois todos começaram a trepar pela pedreira.

Meteram os dois homens num carro da polícia que seguiu para a prisão. Os outros dirigiram‑se ao Casal Kirrin.

‑ Estou a morrer de fome, ‑ disse a Zé quando chegou. ‑ Joana, fizeste alguma coisa especial para o pequeno almoço?

‑ Nem por isso, ‑ disse a Joana. ‑ Só ovos com presunto e cogumelos.

‑ Bem bom! ‑ declarou a Ana. ‑ Devias ser condecorada com a ordem das cozinheiras.

‑ Venha mas é a menina ajudar‑me a pôr tudo em ordem!

Quando os sete foram para a mesa, ou seja os oito, pois o Tim também se conta, a Joana serviu um óptimo pequeno almoço. O Martinho, desde que ficara livre do tutor, tornara‑se muito diferente.

Os pequenos faziam planos para ele. ‑ Tu podes ficar com o guarda da costa, que simpatiza muito contigo. Ele passa a vida a dizer que tu não és mau rapaz. E podes vir brincar connosco e ir à ilha. O tio Alberto vai ver se consegue matricular‑te numa escola de arte. Ele diz que tu mereces uma recompensa por teres ajudado a salvar o seu maravilhoso segredo.

O Martinho sorria, radiante. Parecia que lhe tinham tirado um pesado fardo de cima dos ombros. ‑ Nunca tive uma oportunidade até agora, ‑ disse ele. ‑ Mas hei‑de sair‑me bem! Vão ver se não hei‑de!

‑ Mãe! Podemos amanhã ir à Ilha Kirrin para vermos desmontarem a torre? ‑ pediu a Zé. ‑ Diga que sim! E podemos lá ficar durante uma semana? Dormiremos no quartinho de pedra como já fizemos uma outra vez.

‑ Bem, acho que podem! ‑ disse a mãe, sorrindo, ao ver a cara ansiosa da Zé. ‑ Até gosto bastante de ficar uns dias só com o pai, a ver se consigo fazê‑lo engordar um pouco.

‑ Isso faz‑me lembrar uma coisa, Clara, ‑ disse o tio Alberto de repente. ‑ Anteontem à noite provei aquela sopa que me deixaste na ilha mas estava detestável! Completamente azeda!

‑ Oh, Alberto! Fartei‑me de te dizer para a deitares fora! ‑ declarou a tia Clara desesperada.

‑ Tu fazes‑me cabelos brancos!

Acabaram finalmente o pequeno almoço e foram até ao jardim. Olharam para a Ilha Kirrin. Estava linda, ao sol da manhã.

‑ Já tivemos uma porção de aventuras, ‑ disse o Júlio. ‑ Mais do que a maior parte das crianças. Têm sido divertidas, não têm?

Oh, sim! Muito divertidas! Mas por agora vamos dizer adeus aos Cinco e também à Ilha Kirrin. Adeus Júlio, David, Zé, Ana e Tim!! Mas só o Tim consegue ouvir o nosso adeus, pois tem o ouvido muito apurado, como sabem.

‑ BÉU! BÉU! ADEUS!

 

                                                                                Enid Blyton  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"