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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


OS CINCO VOLTAM À ILHA / Enid Blyton
OS CINCO VOLTAM À ILHA / Enid Blyton

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS CINCO VOLTAM À ILHA

 

                          FÉRIAS GRANDES

       - ZÉ, meu amor, sossega e senta-te aí a fazer qualquer coisa, - disse a mãe da Zé, pacientemente. - Tens andado num reboliço para dentro e para fora do quarto com o Tim e não me deixas descansar.

       - Desculpe, mãezinha - respondeu Maria José, agarrando na coleira do cão. - Mas sinto-me tão só sem ver os outros... O dia leva tanto tempo a passar... Há três semanas que não os vejo!

       A Zé frequentava um colégio interno, com a sua prima Ana, e, nas férias, as duas raparigas e os dois irmãos de Ana - Júlio e David - costumavam juntar-se e divertiam-se imenso.

       Agora, havia três semanas que tinham começado as férias grandes. Ana, David e Júlio estavam em viagem com os pais; a Maria José ficara em casa, pois o pai e a mãe queriam-na junto deles.

       Mas já faltava pouco para as brincadeiras recomeçarem. Os três primos iriam chegar no dia seguinte e ficariam com ela, até ao fim das férias, na sua velha casa, o Casal Kirrin.

       - É tão bom que eles cheguem - disse a Zé, nome por que todos a conheciam, e ao seu cão Tim. - Tão bom, Tim. Não achas?

       - Uf! - respondeu este, lambendo o joelho da rapariga.

       A Zé estava vestida, como sempre, exactanente como um rapaz, de calções e uma camisola grossa.

       Sempre quisera ser um rapaz e nem sequer respondia quando a tratavam por Maria José. Era por isso que todos lhe chamavam Zé. Estas primeiras semanas das férias grandes, sem os primos, tinham-lhe custado  muito a passar.

       - Eu dantes pensava que gostava de estar sozinha, - continuou a Zé a conversar com o Tim, que parecia sempre compreender as suas palavras. - Mas vejo agora que era uma estupidez. É tão agradável estar com outros, e criar amigos!

       Tim abanou a cauda. Ele também gostava de conviver com as crianças e sentia muito a falta de Júlio, Ana e David. Zé levou o Tim para a praia. Pôs as mãos em pala sobre os olhos para se proteger do sol e olhou para a entrada da baía. A meio desta, como que a guardá-la, via-se uma pequena e rochosa ilha, onde se erguiam as ruínas de um velho castelo.

       - Logo que os primos cheguem, temos de te visitar, Ilha Kirrin, - murmurou a Zé gravemente. - Ainda não te fui ver este Verão, mas só porque o meu barco está a arranjar... Não tardará a estar pronto, e, depois, vamos lá todos. Voltaremos a percorrer o velho castelo de ponta a ponta. Tim... - continuou ela, para o cão - lembras-te das aventuras do Verão passado na Ilha Kirrin?

       Tim lembrava-se muito bem, pois também tomara parte nas excitantes aventuras. Descera com os outros aos subterrâneos do castelo; ajudara-os a descobrir lá um tesouro e divertira-se ainda mais do que as quatro crianças de quem tanto gostava.

       - Estás a lembrar-te, não é verdade, Tim? - perguntou a rapariga, acariciando-o.  - Temos de lá voltar todos juntos! E voltaremos a descer aos subterrâneos. Combinado? E, é verdade, lembras-te de como o David desceu pelo poço para nos salvar?

       Era tão bom recordar todas as coisas que tinham feito no Verão passado! O pior era que essas recordações a faziam sentir-se ainda mais só. E o dia custava tanto a passar!...

       - Gostava tanto que a mãe nos deixasse ir passar uma semana à ilha, - pensou Zé. - Isso é que seria divertido! Viver na minha própria ilha!

       A ilha era da Zé. Ou antes, era de sua mãe, mas esta, dois ou três anos antes, dissera que a Maria José podia ficar com ela e agora a pequena pensava que era verdadeiramente sua. Julgava seus todos os coelhos que lá viviam assim como todos os pássaros e tantos outros bichos.

       - Quando os outros chegarem, proponho que passemos lá uma semana - pensou excitadamente. - Levamos comida e tudo o resto, e ficamos lá sozinhos. Faremos exactamente como o Robinson Crusoé”.

       No dia seguinte foi esperar os primos à estação, guiando ela própria o pónei e a charrette.  A mãe também pensava ir, mas, como estava adoentada, resolveu ficar em casa. A Zé ficou bastante preocupada por causa dela.

       A mãe andava há bastante tempo adoentada! Talvez fosse o calor do Verão. Fazia tanto calor! O céu mantinha-se tão azul e o sol brilhava tão alegremente, dia após dia, que nem uma brisa soprava para refrescar o ar quente daquele recanto privilegiado.

         A Zé andava muito queimada do sol e os seus olhos azuis sobressaíam saudavelmente no tom escuro da pele. Cortara o cabelo ainda mais curto que de costume e, na verdade, era difícil perceber se era rapariga ou rapaz.

       O comboio entrou na estação. Três mãos acenaram freneticamente de uma janela e Zé correu a gritar de satisfação :

       - Júlio! David! Ana! Até que enfim!

       As três crianças saltaram precipitadamente da carruagem. Júlio chamou um carregador.

       - As malas estão no corredor. Olá, Zé! Estás boa? Cresceste imenso!

       - A verdade era que todos tinham crescido ' muito. Contavam mais um ano depois das primeiras aventuras na Ilha Kirrin. A própria Ana, a mais nova de todas, parecia já uma senhorinha.

       Abraçaram-se, muito comovidos, e Tim, louco de alegria por tornar a ver os seus amiguinhos, desatou a pular e a lamber as mãos e pernas de todos.

       A barulheira era ensurdecedora. Gritavam. com exclamações de alegria, tentavam contar ao mesmo tempo todas as novidades do último ano, e Tim, ladrando de contentamento, juntava-se ao coro.

       - O comboio não havia meio de chegar!

       - Tim, meu velho, não mudaste nada!  

       - Uf! Uf! Uf!

       - A mãe teve muita pena de não poder vir esperá-los...

       - Zé, estás tão queimada! Vamos divertir-nos tanto!

       - Uf! Uf!

       - Cala-te, querido Tim, e deita-te; já me arrancaste quase a gravata. Estou tão contente por tornar a ver-te!

       - Uf! Uf!

       O carregador não tardou a trazer a bagagem e a metê-la na charrette. Zé deu uma ordem e o pónei começou a trotar alegremente pela estrada poeirenta. Os cinco, apertados no pequeno carro, não cessavam de falar aos berros e ninguém se entendia.

       - Espero que a doença de tua mãe não seja de cuidado, - disse Júlio, que estimava muito a tia Clara, tão generosa e boa, e que gostava tanto de os ter lá em casa.

       - Julgo que é do calor, - respondeu Zé.

       - E o tio Alberto? - perguntou Ana. - Está bom?

       Nenhuma das três crianças simpatizava muito com o pai da Zé, por ser muito irascível e, embora não se importasse que os sobrinhos fossem passar o Verão lá em casa, a verdade é que gostava pouco de crianças. Por isso, não se sentiam muito à vontade junto do tio e divertiam-se mais quando ele estava ausente.

       - O pai está bom, - disse Zé, alegremente. - O que anda é preocupado por causa da mãe. Parece dar-lhe pouca importância quando ela está bem e satisfeita, mas logo se aflige se ela não se sente bem. É melhor não o aborrecermos muito, pois já sabem como ele é quando anda ralado.

       Os primos sabiam-no bem. Era melhor evitar o tio Alberto sempre que não andasse bem disposto. Mas, hoje, nem sequer o pensamento de um tio rabugento os podia calar. Estavam em férias. Iam a caminho do Casal Kirrin! Viam-se perto do mar, o velho Tim vinha ao lado deles e anteviam milhares de divertimentos de toda a espécie à sua espera!

       - Podemos ir à Ilha Kirrin, Zé? - perguntou Ana. - Temos de lá ir! Há já um ano que lá não vamos. No Inverno e nas férias da Páscoa não foi possível por causa do mau tempo. Mas agora...

       - Claro que iremos - disse Zé, com os olhos azuis a brilharem muito. - Sabem o que eu pensei? Que seria maravilhoso ir lá passar uma semana inteira... sozinhos! Agora já somos mais velhos e tenho a certeza de que a mãe nos deixará ir.

       - Passar uma semana na tua ilha! - exclamou Ana. - Não posso acreditar! Seria magnífico!

       - Na nossa ilha, - emendou Zé, muito feliz. - Não te lembras de eu te dizer que queria dividir a ilha em quatro parcelas, uma para cada um de nós? Estava a falar a sério. É nossa e não minha.

       - E o Tim? - perguntou Ana. - Também lhe devias dar um quinhão. Não seria melhor dividi-la em cinco partes?  

       - Não vale a pena. Pode ficar na minha parte, - disse a Zé, como se já tivesse pensado no assunto. Parou o pónei à beira da estrada, e as quatro crianças e o cão olharam para a baía que se estendia lá em baixo, tão azul...

       - Ali está a Ilha Kirrin, - disse a Zé. - A nossa querida ilha! Estou ansiosa por visitá-la. Ainda lá não fui este ano por ter o barco a arranjar.

       - Assim, iremos todos juntos, - disse David. - Gostava de ver se os coelhos ainda estão tão mansos como no ano passado.

       - Uf! - latiu logo Tim; bastava-lhe ouvir a palavra “coelhos” para se excitar todo.

       - Bem podes tirar da idéia isso de perseguir os pobres coelhos da ilha! Já sabes que não te consinto, Tim!

       A cauda de Tim baixou-se tristemente e o cão olhou para Zé, desapontado. Era a única coisa em que Tim e Zé não se entendiam. Tim estava firmemente convencido de que os coelhos tinham sido criados para ele correr atrás deles; e a Zé, por sua vez, estava firmemente convencida do contrário.

       - Vamos! - gritou a Zé para o pónei, sacudindo as rédeas.

       Continuaram a rodar para o Casal Kirrin e, minutos depois, encontraram-se em frente do grande portão da quinta. Uma mulher com cara de poucos amigos veio ajudá-los a levar as malas. As crianças não a conheciam.

       - Quem é? - perguntaram baixinho à Zé.

       - É a nova cozinheira, - informou.  - A Joana teve de se ir embora para tratar da mãe, que partiu uma perna, de maneira que temos agora esta. Chama-se Stick.

       - Não gosto nada da cara dela. Espero que a Joana volte; era sempre muito boa para o Tim e gostava imenso de nós.

       - A cozinheira Stick também tem um cão, - informou a Zé. - Um bicho horrendo, mais pequeno que o Tim, e sempre muito sujo e mal tratado. O Tim detesta-o.

       - Onde está esse fenómeno? - perguntou a Ana, olhando em volta.

       - Está sempre metido na cozinha e o Tim nunca se aproxima, - explicou a Zé. - E é boa idéia, pois estou certa que lhe daria uma tremenda sova se o nojento bicho se metesse com ele!

       Os outros riram-se. Júlio ajudara a cozinheira a levar as malas e, quando regressou, entraram todos para ir cumprimentar o tio e a tia.

       - Olá, rapaziada! - A tia Clara recebeu-os cordialmente, sorrindo muito afável, sem se levantar do sofá onde estava deitada. - Como estão todos? Tenho muita pena de não ter podido ir esperá-los. O tio Alberto foi dar uma volta. Agora é melhor irem para cima, para se lavarem e mudarem de fato. Mas não se demorem, porque o chá está pronto.

       Os rapazes dirigiram-se ao seu antigo quarto e a primeira coisa que fizeram foi abrir a janela que dava para a baía e de onde se gozava uma vista magnífica. Ana foi para o quarto da Zé, onde tinham posto mais uma cama para que as duas meninas dormissem separadas. Que agradável estar de volta a Kirrin! Que divertidas seriam estas férias com a Zé e o querido Tim.

      

                         A FAMÍLIA STICK

       Foi uma beleza acordar na manhã seguinte no Casal Kirrin e ver o sol entrar a jorros pela janela e ouvir o longínquo ruído das ondas a baterem na extensa e agradável praia. Que sensação magnífica saltar da cama e poder ir logo admirar o mar tão azul e a bela Ilha Kirrin à entrada da baía!

       - Vou tomar um banho antes do pequeno almoço! - exclamou Júlio, agarrando nos calções. - Vens, David?

       - Pois então não havia de ir! - respondeu o irmão. - Chama as raparigas. Vamos todos! E assim fizeram, todos os quatro, com Tim a saltar atrás deles, a cauda a abanar, e a língua de fora.

       Entrou na água com os outros e pôs-se a chapinhar à volta deles. A verdade é que a água estava mesmo boa para um banho matinal. Eram todos bons nadadores, mas Júlio e a Zé os melhores.

       Quando saíram da água, enrolaram-se nas toalhas, esfregaram-se vigorosamente e tornaram a envergar as camisolas. Em seguida, famintos, tomaram o caminho de casa, precipitando-se para o pequeno almoço que os esperava. Ao chegarem a casa, Ana reparou num rapaz que estava no jardim e perguntou, surpreendida:

       - Quem é aquele?

       - É o Edgar, o filho da cozinheira Stick, - informou Zé. - Não gosto nada dele. Está sempre a fazer coisas estúpidas, como a pôr a língua de fora e a dizer palavrões.

       Edgar parecia estar a cantar e Ana parou para tentar ouvi-lo. O rapaz, que parecia ter treze a catorze anos, cantarolava uma cantiga ridícula, em que se repetia muito o nome da Zé. A Zé corou.

       - Está sempre a cantar aquilo para entrar comigo. Tem a mania que é esperto. Não posso ouvi-lo!

       Júlio voltou-se para Edgar.

       - Cale-se! Não tem graça nenhuma! Estúpido! Edgar não lhe deu ouvidos e continuou a cantar, com um sorriso alvar. Júlio deu um passo para ele e o rapaz meteu-se logo em casa.

       - Não o poderei aguentar muito tempo, - disse Júlio, com uma voz decidida. - E nem sei como é que o aguentas, Zé! Não sei como ainda não lhe deste uma bofetada, um pontapé, ou não lhe arrancaste as orelhas ou qualquer coisa do género! Foste sempre tão impulsiva...

       - Bem! Na verdade ainda o sou, - interrompeu a Zé. - Sinto-me perder as estribeiras quando ouço aquele palerma a meter-se comigo e a dizer palavrões. Mas sabes que a mãe não tem estado bem e tenho a certeza de que, se me atirar ao Edgar, a Stick vai-se logo embora e a mãezinha é que teria de fazer todo o trabalho. Não seria justo. É por isso que tenho de me dominar e espero que Tim faça o mesmo.

       - Bravo, Zé! - exclamou Júlio, com grande admiração pela rapariga, pois sabia como lhe era difícil dominar-se quando se irritava.

       - Parece-me que vou agora lá acima ver a mãe para lhe perguntar se quer o pequeno almoço na cama - disse a Zé. - Fiquem aí com o Tim e segurem-no bem, sim? Se o Edgar tornar a aparecer é capaz de se lhe atirar ao pescoço.

       Júlio agarrou o cão pela coleira. Tim começara a rosnar ao ver o rapaz e levantou o focinho como se procurasse encontrar-lhe o cheiro. Subitamente, à porta da cozinha, apareceu um cão, de aspecto sarnoso.  

       - Uf!!! - rosnou Tim, saltando para o outro cão. Como Tim era grande e possante, arrastou consigo o Júlio que se viu obrigado a largar a coleira. Tim atirou-se logo e o outro cão, latindo assustado, tentou meter-se de novo na cozinha.

       - Tim! Vem cá! Não ouviste? - gritou o Júlio. Mas o Tim não lhe deu ouvidos. Estava atarefadíssimo em tentar morder as orelhas do outro, ou pelo menos parecia que era isso que tentava. O outro cão não cessava de ganir, a pedir socorro, e a Sra. Stick apareceu logo à porta com uma panela na mão.

       - Chamem esse cão! - gritou ela, atirando com a panela a Tim, que, por se desviar a tempo, a fez acertar no outro cão que começou a ganir ainda mais.

       - Pare lá com isso! - gritou Júlio ao ver a mulher abaixar-se para apanhar a panela. Ainda magoa os cães. Vem cá, Tim, Tim!

       Foi então que Edgar apareceu, com uma expressão idiota no rosto. Apanhou uma pedra e ficou à espera de oportunidade para atirá-la ao Tim sem tocar no outro cão. Ana começou também a gritar.

       - Não atire com essa pedra... Ouviu! Que rapaz tão mau! Ouviu? Se atirar...

       No meio da confusão geral chegou o tio Alberto, muito irritado.

       - Mas que vem a ser isto? Nunca ouvi tamanha barulheira em toda a minha vida!

       Logo a seguir apareceu a Zé que correu imediatamente para o meio da contenda para salvar o seu amado Tim. Meteu-se entre os dois cães e começou a puxar por Tim. O pai deu um passo em frente e chamou-a.

       - Sai daí, Zé! Não sabes que é perigoso separar dois cães engalfinhados? Sai daí e vai-me buscar a mangueira!

       Foi, porém, o Júlio quem correu para a torneira, a que estava ligada a mangueira, abrindo-a e apontando o jacto de água para os dois cães. Ao sentirem-se encharcados ambos pularam, cada um para seu lado, surpreendidos e assustados: Júlio estava muito próximo de Edgar e não conseguiu evitar que a mangueira se virasse de forma a encharcar também o rapaz, que, soltando um grito, se foi logo refugiar dentro de casa.

       - Para que fizeste tu isso? - perguntou o tio Alberto, aborrecido. - Zé, prende imediatamente o Tim. Sra. Stick, não lhe disse já que não deixasse sair o seu cão da cozinha, sem estar preso? Não quero que isto volte a acontecer! E o pequeno almoço? Tarda como de costume!?

       A Sra.Stick desapareceu na cozinha, a resmungar e a queixar-se, levando o cão consigo. A Zé com uma ar amuado, prendeu o Tim. Este deitou-se à entrada da sua casota de madeira, olhando a dona de um modo suplicante.

       - Já te tinha dito para não armares sarilhos com aquele cão sarnoso, - disse-lhe a Zé, severamente.  - Agora já viste o que aconteceu! O pai vai ficar mal disposto o resto do dia e a Sra. Stick ficou tão furiosa que certamente não faz bolos para o chá. E tudo por tua culpa!

       Tim soltou um queixume e meteu a cabeça entre as patas. Era tão triste ver-se assim preso!... Mas ao menos mordera uma das horrendas orelhas daquele maldito rafeiro! Foram todos tomar o pequeno almoço.

       - Desculpa-me ter deixado fugir o Tim - disse o Júlio à Zé. - Mas quase que me arrancou o braço. Não pude aguentar de forma alguma! Está fortíssimo, não está?

       - Pois está, - respondeu a Zé, orgulhosa. - É um valentão. Se o deixássemos, podia comer o cão dos Sticks de uma vez. E o Edgar também.

       - E a Senhora Stick! Todos! - acrescentou Ana. - Não gosto de nenhum deles.

       O pequeno almoço foi bastante aborrecido, pois a tia Clara não estava presente e o tio Alberto, quando mal disposto, não era uma companhia muito agradável. Estava furioso com a Zé; e os outros também sofreram com isso. Ana quase que se arrependeu de terem vindo para o Casal Kirrin! Mas sentiu-se logo melhor ao pensar no dia que tinha à sua frente. Levariam alimentos e almoçariam na praia ou até, talvez, na Ilha Kirrin. O tio Alberto não iria com eles para lhes estragar o dia.

       A Sra.Stick entrou na casa de jantar para mudar os pratos e via-se que estava muito mal disposta, pois quase atirou com eles para cima da mesa.

       - Não é necessário fazer assim. - disse o tio Alberto, carrancudo. A Sra. Stick nem sequer abriu a boca. Tinha-lhe muito respeito, o que não era de admirar. Os pratos a seguir colocou-os já com mais cuidado.

       - Quais são os vossos projectos para hoje? - perguntou o tio Alberto, quando acabaram o pequeno almoço. Por essa altura já se estava a sentir melhor e não queria ver as crianças amuadas por sua causa.

       - Pensámos em fazer um piquenique, - informou a Zé, receosamente. - Já pedi à mãe. Disse que podíamos ir se a Sra. Stick fizesse os sanduíches.

       - Não me parece que ela os faça muito apetitosos, - disse o tio Alberto, sorrindo. Os outros também sorriram, por delicadeza. - Mas podem-lhe pedir com bons modos.

       Houve um silêncio. Ninguém se sentia com coragem de pedir à embirrenta Stick que fizesse sanduíches.

       - E tudo por causa daquele cão sarnoso. - resmungou a Zé, amuada. - Seria tudo mais fácil se ele não existisse.

       No fim de contas foi a tia Clara que falou com a Sra. Stick e lhe pediu que arranjasse os sanduíches, o que ela fez, pois não tinha outro remédio, mas de má cara e a resmungar.

       - Quando para cá vim trabalhar não contava com mais três crianças... É o dobro do trabalho - queixou-se ela, mal disposta.

       - Mas eu disse-lhe que estávamos à espera deles, Sra. Stick, - explicou a tia Clara pacientemente. - O que não sabia é que ia estar doente, pois, se estivesse bem, seria eu quem fazia os sanduíches e tudo o mais. Só lhe peço é que ajude o mais que puder, até eu me pôr melhor. Pode ser que amanhã já me levante. Deixe as crianças divertirem-se à vontade durante uma semana, e, então, se eu ainda estiver doente, peço-lhes que a ajudem nos trabalhos da casa. Por agora quero que eles se divirtam e aproveitem bem estes primeiros dias.

       As crianças pegaram nos embrulhos com os famosos sanduíches e despediram-se da tia Clara e do tio Alberto. Quando iam a sair encontraram Edgar, com a sua habitual estupidez e má-criação.

       - Deixem-me ir com vocês - pediu ele corando. - Podíamos ir àquela ilha. Têm-me contado tantas histórias a seu respeito!

       - Não. - respondeu a Zé, bruscamente. - E não acredito que saiba nada acerca da ilha. Nunca permitirei que lá ponha os pés, compreendeu? A ilha é minha. Nossa, quero dizer de nós quatro e do Tim. Não pense nem por um minuto em lá ir.

       - A ilha não é nada sua, - exclamou Edgar. - Que mentira!

       - Você é que não sabe o que está a dizer. - motejou a Zé desdenhosamente.  - Vamos! Vamos! Não percamos tempo a falar com esse palerma!

       Este ficou sozinho no jardim, amuado e ofendido e, logo que os outros se encontravam a certa distância, começou a cantarolar aquela cantiga que tanto irritava Maria José. Júlio voltou-se para ajustar contas com o malcriado Edgar, mas Zé agarrou-o por um braço.

       - Não te metas com ele. Iria logo queixar-se à mãe e ela ia-se embora; e depois a minha mãe é que ficava com todo o trabalho. Temos de o suportar, mas isto não quer dizer que não lhe preguemos uma partida um destes dias. Que rapaz tão mau! Detesto-o!

       - Uf! - concordou Tim.

       - O Tim diz que odeia o rapaz e o rabo miserável e as estúpidas orelhas do outro cão. - traduziu a Zé, rindo-se gostosamente. E todos ficaram logo mais bem dispostos.

       - Vamos ver se o barco já está pronto, - sugeriu Júlio. - Como ainda é cedo, podíamos ir à nossa velha ilha.

      

                          UM TREMENDO SUSTO

       O barco da Zé estava quase pronto. Só lhe faltava uma última demão de pintura. Tinha um aspecto alegre, pois a dona escolhera uma tinta encarnada berrante e os remos estavam também pintados de vermelho.

       - Não será possível sairmos nele esta tarde? - perguntou a Zé ao velho pescador encarregado de arranjar o barco.

       Jim abanou a cabeça.

       - Não, menino José, - respondeu ele, - a menos que queiram encher-se todos de tinta encarnada. Amanhã estará seco, mas antes não.

       Os primos sorriam sempre ao ouvir os pescadores da praia tratarem a Maria José por “menino José”. A gente daqueles sítios sabia que ela tinha muita pena de não ser rapaz; e, como gostavam muito dela, riam-se e diziam “menino José” em vez de “menina Maria José”, como devia ser.

       Assim a Zé era o “menino José”, naquelas redondezas, e gostava imenso de ir para a praia, nos seus calções e camisolão, servindo-se do barco tão bem como qualquer filho de pescador e nadando mesmo melhor que todos eles.

       - Então amanhã vamos à ilha, está dito! - exclamou Júlio. - Hoje fazemos um piquenique na praia e depois vamos dar uma volta, combinado?

       Se bem o disseram, melhor o fizeram. Comeram todos na praia e Tim comeu mais do que qualquer deles. Os sanduíches não eram lá grande coisa. O pão era duro; não tinha bastante manteiga e as fatias eram grossas de mais. Mas Tim não se importou. Comeu quanto podia, abanando a cauda com tanta força que cobriu de areia tudo e todos.

       - Tim, se queres dar ao rabo não o arrastes pela areia, - recomendou Júlio, já aborrecido, ao sacudir a areia dos cabelos pela quarta vez. Tim, ao ouvir a voz do seu amiguinho, tornou a abanar a cauda e Júlio recebeu nova chapada de areia pela cabeça. Riram-se todos.

       - Vamos agora dar um passeio, - disse David, levantando-se de um pulo.  - Tenho as pernas dormentes. Onde é que havemos de ir?

       - Talvez para aqueles penhascos de onde podemos admirar a ilha, - propôs Ana. - Achas que ainda lá está aquele velho navio que deu à costa?

       A Zé assentiu. As crianças tinham-se divertido muito uma vez que o mar atirara para a ilha com a carcaça de um barco há muito naufragado. Uma tempestade fortíssima tirara o barco do fundo do mar e lançara-o contra as rochas da Ilha Kirrin. Tinham-no logo explorado e encontraram dentro dele um mapa do castelo, com instruções sobre um tesouro que lá estava escondido.

       - Lembram-se de termos encontrado aquele velho mapa nos destroços e de desenterrarmos as barras de ouro? - perguntou Júlio com um brilho nos olhos e recordando cada momento da emocionante aventura. - Ainda lá está o navio, Zé?

       - Não, - respondeu a prima. - Não me parece. Estava nas rochas do outro lado da ilha e daqui é impossível vê-lo, mas creio que no Inverno o mar levou o velho barco. Quando formos à ilha havemos de ir lá ver se ainda restam alguns destroços.

       - Sim, sim! - exclamou Ana, muito excitada. - Pobre barco! Já deve ter ido de vez para o fundo.

       Chegaram finalmente aos penhascos onde tencionavam almoçar. A paisagem era linda e podiam ver a ilha perfeitamente, com o seu castelo em ruínas a erguer-se por entre as rochas.

       - Ali é a torre dos Corvos, não é? - perguntou Ana, apontando para a única torre que ainda se conservava mais ou menos intacta. - A outra torre caiu? Olha para todos aqueles corvos a voarem à volta da torre, Zé!

       - É o mesmo todos os anos. Fazem os ninhos lá em cima, - explicou a Zé. - Não te lembras dos milhares de gravetos por debaixo da torre que os corvos deixavam cair enquanto faziam os ninhos? Duma vez até apanhámos uma porção deles e fizemos uma fogueira.

       - Gostava de voltar a fazer o mesmo, - disse Ana. - Gostava de verdade. Podemos acender uma fogueira todas as noites, se ficarmos na ilha uma semana, não podemos, Zé? Já pediste à tua mãe?

       - Pedi, pois claro, retorquiu a prima. Disse-me que talvez fosse possível, mas que tinha de pensar primeiro.

       - Não gosto nada de as pessoas crescidas dizerem que têm de pensar. Geralmente pretendem dizer que a resposta é negativa mas não querem desiludir-nos logo.

       - Pois eu tenho grandes esperanças, - tranquilizou-a a Zé. - Nós estamos mais velhos do que no ano passado. O Júlio já tem quase treze anos e o David e eu não andamos longe. Só a Ana é que é mais pequenita.

       - Não sou nada - refilou a pequena, indignada. - Sou tão forte como tu e não tenho nenhuma culpa de ter menos anos do que vocês.

       - Calma, calma, menina! - consolou-a Júlio, dando-lhe uma palmadinha nas costas e rindo-se da sua expressão furiosa. - Lá... olhem! O que é aquilo na ilha?

       Voltaram-se todos e a Zé soltou uma exclamação.

      - Olhem! Uma espiral de fumo! É fumo, não há dúvida! Está alguém na minha ilha!

       - Na nossa ilha, - emendou David. - Não pode ser! Talvez o fumo venha de algum navio que esteja do outro lado. Não o podemos ver mas se calhar está escondido pela ilha. Deve ser isso. Sabes muito bem que só nós é que podemos lá chegar. Ninguém mais conhece a passagem.

       - Se alguém se atrever a desembarcar na minha ilha, - começou a Zé a dizer, muito corada e indignada, - se está alguém na minha ilha, eu, eu...

       - Rebentas e desfazes-te em fumo! - interrompeu David. - Olhem, já não se vê nada. Deve ter sido um barco a passar para além da ilha.

       Ficaram a observar a Ilha Kirrin durante mais algum tempo mas não voltaram a ver nada.

       - Se ao menos o meu barco estivesse pronto - disse a Zé, inquieta. - Ia lá esta tarde... e parece-me que vou, mesmo com a pintura ainda por secar!  

       - Não sejas parva! - exclamou o Júlio - Já sabes o que aconteceria se chegássemos a casa com as roupas todas cheias de tinta encarnada. Já tens idade de ter juízo, Zé.

       A Zé desistiu da idéia. Ficou à espera de ver um navio aparecer de um dos lados da baía, para justificar o fumo, mas não enxergou nenhum.

       - Provavelmente está ancorado ao largo, sugeriu David. - Vamos! Ou querem ficar aqui todo o dia?

       - É melhor voltarmos para casa, - disse Júlio, olhando para o relógio de pulso. - São quase horas do chá. Espero que a tua mãe já se tenha levantado, Zé. É muito melhor quando ela está presente às refeições.

       - Calculo que já esteja de pé, - respondeu a pequena. - Vamos então!

       Começaram a descer pelos penhascos. Levavam os olhos postos na Ilha Kirrin mas só podiam ver os corvos e as gaivotas pairando por cima. Não viram mais nenhum fumo... devia ter sido um navio!

       - Mas mesmo assim vou amanhã ver. - disse a Zé, firmemente. - Se encontrar vadios na minha ilha corro com eles.

       - Na nossa ilha, - emendou David. - Não te lembras de teres prometido dividi-la entre nós todos, Zé?

       - Claro que é de todos nós mas ainda não me habituei à idéia. Vamos, estou cheia de fome!

       Chegaram finalmente ao Casal Kirrin. Foram direitos à sala de estar e, muito surpreendidos, depararam com Edgar a ler um dos livros do Júlio.

       - Que é que você está aqui a fazer? - perguntou Júlio. - E quem é que lhe deu autorização para ler os meus livros?

       - Não estou a fazer mal nenhum, - respondeu Edgar. - Se me apetece sentar-me confortávelmente a ler um livro, quem é que me impede de o fazer?

       - Espere até que o meu pai o veja aqui, - disse a Zé. - E então se se atrevesse a entrar no escritório é que ele lhe diria das boas!

       - Mas eu já lá tenho ido, - redarguiu Edgar, surpreendido. - Estive a ver aqueles instrumentos esquisitos que ele lá tem.  

       - Como é que se atreveu! - exclamou a Zé, empalidecendo de raiva. - Mas... mas mesmo nós não estamos autorizados a entrar no escritório do pai. E se tocou nalguma coisa...!.

       Júlio olhou para Edgar ansiosamente. Não podia compreender como é que o rapaz se tornara subitamente tão insolente.

       - Onde está o teu pai, Zé? - perguntou ele. - Acho que seria melhor que fosse ele a encarregar-se do Edgar. Este rapaz perdeu o juízo!

       - Chamem o paizinho, se quiserem! - respondeu o rapaz, estendendo-se no sofá provocadoramente e folheando o livro. - Chamem-no que ele não aparece.

       - Porquê? - perguntou a Zé, assustada. - Onde está a minha mãe?

       - Chamem-na também, - disse o rapaz. - Vá! Chamem-na!

       As crianças começaram a sentir-se deveras preocupadas. Que queria Edgar dizer? A Zé subiu a correr para o primeiro andar, gritando com toda a força dos pulmões.

       - Mãe! Mãe! Onde está?

       Mas a cama da mãe estava vazia. Não fora feita, mas estava vazia. A Zé entrou em todos os quartos a gritar desesperadamente:

       - Mãe! Mãe! Pai! Onde é que estão?

       Não houve resposta. A Zé, muito pálida, juntou-se aos outros. Edgar piscou-lhe o olho atrevidamente.

       - Então não lhe tinha dito? Eu bem disse que podia chamar à vontade que eles não apareciam.

       - Onde é que estão? - perguntou a Zé. Diga-me já!

       - Descubra você! - respondeu Edgar. Ouviu-se uma bofetada estrondosa e Edgar saltou do sofá com a mão direita na face esquerda. A Zé atirara-se a ele e dera-lhe uma bofetada com quantas forças tinha. Edgar levantou a mão para ripostar mas Júlio interpôs-se.  

       - Não se atreva a tocar nela. É uma rapariga, se quer alguma coisa, vamos já a isso!

       - Eu não sou uma rapariga, sou um rapaz!... - gritou a Zé, tentando afastar Júlio. - Deixem-me dar uma sova nesse fanfarrão! Larguem-me!

       Júlio, porém, não a deixou passar. Edgar começou a andar para a porta mas encontrou David pelo caminho e teve de parar, ficando a olhar para os outros, receoso.

       - Um momento! - disse David. - Onde é que estão a tia e o tio?

       - Gr-r-r-r-r, - rosnou Tim em tom tão ameaçador que Edgar deu instantaneamente dois passos para trás. O cão arreganhava os dentes e o pêlo eriçara-se-lhe no pescoço. Tinha um ar ameaçador.

       - Agarrem esse cão! - gritou Edgar, trémulo. - Parece que se quer atirar a mim.

       Júlio segurou na coleira de Tim.

       - Quieto, Tim! - ordenou autoritariamente. - Agora, Edgar, vai-nos já dizer o que queremos saber e depressa, se não quer arrepender-se.

       - Não há muito que dizer, - começou Edgar, sem tirar os olhos do Tim. - A mãe da menina Zé adoeceu de repente com uma dor muito forte na barriga; o pai chamou o médico e foram todos para o hospital. Nada mais.

       - Oh! - exclamou a Zé, cheia de lágrimas. - Mãezinha! Não devíamos ter saído! Agora como é que podemos saber o que aconteceu?

       Edgar, entretanto, fugira da sala, fechando a porta atrás de si para que Tim não o pudesse seguir. As crianças olharam-se, estarrecidas e apoquentadas. Pobre Zé! Pobre tia Clara!

       - Devem ter deixado algum recado; não se iam embora sem nos avisar! - disse o Júlio, olhando à sua volta. Descobriram então uma carta entalada no rebordo do espelho; era dirigida à Zé. Júlio deu-lhe. Fora o pai que a escrevera.

       - Lê-a, depressa, - pediu Ana. - Mas que triste começo de férias!

      

                          UMA MANCHEIA DE RALAÇÕES

       A Zé leu a carta em voz alta. Era muito curta e fora, evidentemente, escrita à pressa.

             “Querida Zé,

             A tua mãe adoeceu gravemente. Levo-a para o hospital e ficarei junto dela até que melhore. O médico disse que seriam só uns dias, uma semana, o máximo. Telefonar-te-ei todos os dias às nove horas da manhã, para te dizer como ela se encontra. A Senhora Stick tratará de vocês todos. Tentem governar-se o melhor possível, até eu regressar.

             Teu PAI”

             - Querida tia! - exclamou a Ana, sabendo quanto a Zé gostava da mãe e vendo que, coisa rara, as lágrimas lhe escorriam pela cara abaixo. A Zé nunca chorava; mas, chegar a casa, não encontrar a mãe e saber que fora para o hospital... era demais. E o pai também! Não encontrar ninguém em casa senão a embirrenta Stick e o Edgar...

       - Não posso suportar a idéia de a mãe se ter ido embora sem eu a ver. - soluçava a Zé, tapando a cara com as mãos e deitando-se no sofá. - Pode ser... pode ser que nunca mais volte!  

       - Não sejas parva, Zé, - disse o Júlio sentando-se e passando-lhe o braço pelas costas. - Claro que volta. Não tenhas a menor dúvida. Não disse o teu pai que era só por uns dias? Vamos, ânimo! Não costumas ir-te abaixo tão facilmente.

       - Mas eu nem sequer me despedi dela. - continuou a pobre Zé a soluçar. - E fiz eu com que ela pedisse à Stick para fazer os sanduíches em vez de os fazer eu própria... Quero ir ver a mãe e saber como ela está.

       - Não sabes para onde a levaram! E, mesmo que soubesses, não te deixavam entrar. - disse David carinhosamente. - Vamos é tomar chá. Depois sentimo-nos todos melhor.

       - Eu posso lá comer agora! - exclamou a Zé, num desespero. Tim começou a lamber-lhe as mãos, visivelmente inquieto por não saber o que se passava.

       - Pobre Tim! Não pode compreender, - disse Ana, fazendo-lhe uma festa na cabeça. - Está muito apoquentado por te ver triste, Zé.

       Foi isso que moveu a Zé a sentar-se. Esfregou os olhos e permitiu que Tim lambesse as lágrimas que lhe corriam pela cara. O cão pareceu surpreendido pelo sabor a sal; tentou saltar para o colo da Zé.

        - Tonto! - exclamou a rapariga, já mais calma. - Não te preocupes! Já estou melhor. Foi o choque. Pronto, Tim, já passou. Eu estou bem, quem está doente é a mãe...

       Mas o Tim convencera-se absolutamente que a Zé estava doente ou magoada, pois nunca a tinha visto chorar assim, e continuava a lambê-la e a soltar ganidos como se quisesse acompanhar a rapariga na sua dor.

       Júlio abriu a porta.

       - Vou dizer à Sra. Stick para trazer o chá, - e, dizendo isto, saiu da sala, com uma expressão decidida. Os outros pensaram que o rapaz era muito valente para ousar defrontar-se com a cozinheira.

       Júlio foi até à cozinha e deparou com Edgar, sentado num banco a esfregar a face em que a Zé lhe tinha dado a bofetada.

       - Se essa rapariga torna a tocar no meu filho, dou-lhe uma sova, - começou a velha Stick.

       - O Edgar estava mesmo a pedir uma lição, - respondeu Júlio. - E eu venho pedir-lhe que nos arranje o chá.

       - Os meninos não o merecem e não estou para isso. - resmungou a cozinheira.

       Júlio não se desconsertou.

       - Se não nos quiser arranjar o chá, faço-o eu mesmo. - disse o rapaz. - Onde está o pão? E os bolos?

       A Sra.Stick olhou para Júlio e este olhou-a também, decidido. Era uma mulher de muito má catadura, mas, o rapaz, de forma alguma queria ceder. Estava mesmo a apetecer-lhe despedi-la, mas dominou-se e continuou a olhá-la sem pestanejar. A Sra. Stick foi a primeira a desviar o olhar.

       - Vou-lhes arranjar o chá, mas, se não se portarem bem não lhes faço mais nenhumas refeições.

       - E se a senhora não se portar bem, chamo a polícia! - exclamou Júlio, inesperadamente.

       Nem pensara no que dissera. Fora mais instintivo do que propositado mas causou um efeito surpreendente. Ao ouvir falar na polícia a mulher ficou visivelmente alarmada e submissa.

       - Vamos, vamos! Não há razão para isso, - disse ela, já mais delicadamente. - Tivemos todos um abalo e estamos preocupados. São os nervos... Vá lá para dentro que lhes levo já o chá.

       Júlio foi-se juntar aos outros. O que ele agora queria saber era a razão de a velha Stick ter apanhado um susto ao ouvir falar da polícia. Talvez receasse que chamassem logo o tio Alberto e este não era para graças. Punha-a na rua sem hesitar um minuto.

       - Já aí vem o chá, - disse aos outros. - Alegrem-se!

       Mas o chá foi tudo, menos alegre. Estavam todos muito tristes, apesar dos esforços de Júlio para lhes dar alento. A Zé continuava a chorar e parecia não ter vergonha de o fazer diante dos outros. Ana também estava muito ralada. David  tentou contar algumas anedotas, mas ninguém ria e o rapaz desistiu. Júlio estava pensativo e sentia-se consciente das suas responsabilidades, por ser o mais velho do grupo. Tim sentara-se ao lado da Zé e não cessara de lhe lamber os joelhos afectuosamente.

       - Gostava de ter um cão que gostasse de mim assim. - pensou a Ana.

       Ninguém comeu com grande apetite mas o chá, de qualquer modo, soube-lhes muito bem e, quando acabaram de comer, sentiram-se todos um pouco melhor. Resolveram ficar em casa, pois tinham medo que alguém telefonasse a dar notícias da mãe da Zé quando tivessem saído.

       Foram para o jardim e, mal se sentaram nas cadeiras de verga, ouviram o estúpido Edgar a cantar aquela cantiga que fazia troça de Zé. Júlio levantou-se e foi espreitar à janela da cozinha. Edgar estava só.

       - Vem cá para fora, patife! - desafiou Júlio. - Quero ensinar-te outra cantiga. Vem daí! - Edgar não se moveu. - Então já nem posso cantar?

       - Claro que podes, - respondeu Júlio, - mas não essa cantiga. Eu ensino-te outra. Vem cá para fora!

       - Nem penso nisso! - disse Edgar, insolentemente. - O que você quer é bater-me.

       - Pois quero. Uma sova é o que merece um atrevido que só sabe fazer troça de uma rapariga, que se sente tão infeliz. Vens ou não vens? Ou tenho de ir buscar-te?

       - Mãe! - gritou Edgar, enchendo-se de medo ante a ameaça de Júlio. - Mãe! Onde é que está?

       Júlio, que se encavalitara na janela da cozinha, estendeu subitamente um braço e agarrou o nariz de Edgar, começando a puxá-lo com tanta força que o rapaz soltou um grito de dor.

       - Largue-me! Largue-me! Está a magoar-me! Largue-me o nariz!

       A Senhora Stick entrou na cozinha a correr. Soltou um grito ao ver o que Júlio estava a fazer e atirou-se a ele furiosamente. Júlio largou então o nariz de Edgar e saltou para o jardim.

       - Como é que se atreveu! - gritou a mãe Stick. - Primeiro, aquela rapariga deu uma bofetada no Edgar e, agora, o menino quer-lhe arrancar o nariz! Estão todos malucos, ou quê?

       - Não estamos malucos, não. - respondeu o Júlio, alegremente. - Quem está maluco é o seu Edgar, Sra. Stick. Temos de o educar. A senhora é que o devia fazer, claro, mas como não parece ter talento para tanto...

       - Que insolência! - exclamou a cozinheira corando muito.

        - Sim, é uma insolência, - disse Júlio com uma expressão irónica, - mas é do contacto com o seu Edgar. O Sarnoso produz-me o mesmo efeito.

       - Sarnoso?! - gritou a Senhora Stick, mais indignada. - Se está a referir-se ao meu cão, está muito enganado; ele não tem sarna.

       - Pois se não tem, parece, - redarguiu o Júlio. afastando-se.

       - Se não quer que o chamemos assim, dê-lhe um banho e tire-lhe as pulgas.

       A cozinheira ficou a resmungar raivosa, e o rapaz foi ter com a prima e o irmão. Olharam todos para ele com curiosidade. Parecia um Júlio muito diferente do antigo, um ousado e decidido Júlio, um Júlio muito crescido e já bastante temível.

       - Receio que tenha estragado ainda mais as coisas, - disse ele, sentando-se na relva. - Quase arranquei o nariz ao Edgar e a velha Stick apanhou-me em flagrante. Parece-me agora que estamos em guerra aberta! A partir de hoje vai ser tudo muito difícil e teremos mais ralações. Duvido mesmo que ela nos faça as refeições.

       - Cozinhamos nós mesmos, - declarou a Zé. - Detesto a Sra. Stick! Que pena que a Joana cá não esteja. Também detesto o Edgar e aquele miserável cão sarnoso.

       - Olhem, ali está ele! - gritou subitamente David, ao ver o cão dos Sticks. Tentou sem resultado agarrar na coleira do Tim, que se levantara rosnando, ameaçador. Bruscamente Tim saltou e atirou-se ao outro cão, filando-o pelo pescoço e sacudindo-o como se fosse um rato.

       A Stick pegou numa vassoura e começou a bater nos cães sem querer saber em qual acertava. Júlio correu de novo para a mangueira. Edgar refugiou-se em casa, lembrando-se do que lhe acontecera da outra vez.

       O Tim, logo ao primeiro jorro de água, largou o outro cão e o Sarnoso, como as crianças lhe chamavam, correu a refugiar-se nas saias da dona.

       - Ainda um dia envenenarei esse vosso cão! - berrou a Stick, furiosa. - Está sempre a meter-se com o meu. Há-de pagá-las!

       A Zé ficou alarmada de verdade.

       - Acham que está a falar a sério? Será capaz de envenenar o Tim? - perguntou a rapariga aos primos.

       - É muito mal intencionada, - disse Júlio pausadamente. - O que eu acho é que será melhor que o Tim nunca se separe de nós e que coma só da nossa comida.

       Ao ouvir isto, a Zé puxou Tim para junto de si, aterrorizada à idéia de que alguém o quisesse envenenar. - Mas a velha Stick era muito má; era capaz de tal atrocidade, - pensou ela. - Como desejava que o pai e a mãe voltassem! Era horrível estar longe deles nestas condições. Nesse momento, ouviu-se o telefone tocar estridentemente e as crianças saltaram logo das cadeiras e correram para casa. A Zé pegou no telefone, cheia de nervosismo. Ouviu a voz do pai e as lágrimas saltaram-lhe aos olhos.

       - És tu, Zé? - perguntava de lá uma voz bem conhecida. - Como estás? Espero que vá tudo bem. Desculpa não ter esperado por vocês para os avisar, mas foi-me completamente impossível.

       - Pai, como é que está a mãe? Diga-me depressa!... Está melhor? - perguntou a Zé, angustiada.

       - Só depois de amanhã é que saberemos ao certo se está bem ou não, - respondeu o pai.  - Amanhã de manhã volto a telefonar e depois de amanhã outra vez. Só regressarei quando souber que ela está bem.

       - Pai, pai... É horrível sem o pai e a mãe cá em casa! - lamentou a pobre Zé. - A Sra.Stick tem sido desagradável...

       - Então, Zé! - disse o pai, impaciente - com certeza que se poderão governar sozinhos e aturar a Sra. Stick por mais uns dias. Já devias saber que não me posso agora preocupar com essas coisas.

       - Quando é que pensa voltar, pai? - perguntou ainda a pequena. - Posso ir visitar a mãe?  

       - Não. A tua mãe não poderá receber visitas durante, pelo menos, duas semanas. Eu vou para aí logo que possa. Mas agora não posso abandonar a mãe. Ela precisa muito de mim. Adeus, e tenham juízo, todos vós! Adeus!

       A Zé despediu-se e, tristemente, desligou o telefone. Voltou-se para os outros.

       - Só depois de amanhã é que o pai sabe como é que a mãe está. E teremos de suportar a maldita Stick até o pai voltar. E sabe-se lá quando é que ele volta!... É horrível, não é?

      

                          NO MEIO DA NOITE

       A Sra.Stick estava tão mal disposta que nessa noite nem fez o jantar para as crianças. Júlio foi-lhe pedir que trouxesse alguma coisa de comer, mas encontrou a porta da cozinha fechada. Quando voltou para junto dos outros ia desanimado e faminto.

       - Tem a porta fechada - disse. - Que mulher horrível! Estou mesmo a ver que ficamos sem jantar.

       - Temos de esperar até que ela se vá deitar, - disse a Zé. - Iremos então à despensa ver o que lá há.

       Foram-se deitar cheios de fome. Júlio ficou à escuta e, quando a Stick e o seu Edgar subiram para o quarto, o rapaz levantou-se, desceu as escadas cuidadosamente, e foi à cozinha. A escuridão era completa e Júlio estava quase a acender a luz quando ouviu respirar pesadamente. Quem poderia ser? Seria o Sarnoso? Não, não podia ser o cão. Parecia tratar-se de uma pessoa.

       Júlio ficou sem saber o que fazer, surpreendido e ligeiramente assustado. Não podia ser um gatuno, pois os gatunos não costumam adormecer nas casas que assaltam. Não era a velha Stick nem o Edgar. Então quem seria? Acendeu-se a luz súbitamente. A cozinha iluminou-se e Júlio viu um homem deitado num colchão. Estava a dormir profundamente, de boca aberta.

       Tinha um aspecto inquietante. Via-se que não se barbeava nem se lavava havia muitos dias, pois além de uma barba hirsuta, tinha as mãos e as unhas negras de sujidade. Estava todo despenteado, com o cabelo muito comprido e o nariz era parecidíssimo com o de Edgar.

       - Deve ser o pai de Edgar. - pensou Júlio. - Que grandessíssimo porcalhão! Agora já sei de quem o Edgar herdou aqueles maus hábitos... com um pai e uma mãe assim!

       O homem ressonava. Júlio continuava sem saber o que fazer. Queria ir à despensa, mas sem acordar o homem, nem começar uma discussão. Não o podia pôr na rua, pois era muito possível que o tio e a tia tivessem autorizado o marido da cozinheira a dormir lá em casa, de tempos a tempos.

       Júlio estava cheio de fome. O pensamento das boas coisas que haveria na despensa fizera com que, por precaução, apagasse a luz e começasse a avançar lentamente. Abriu a porta. Passou as mãos pelas prateleiras. Óptimo! Parecia que tocara num empadão. Pegou nele e cheirou-o. Cheirava a carne. Um empadão de carne! Esplêndido! Recomeçou a tactear e, pouco depois, descobriu um prato cheio de tortas de morango. Já não era nada mau; um empadão de carne e tortas de morango eram bastante para o jantar de quatro crianças famintas.

       Júlio pegou nos dois pratos e retrocedeu cautelosamente para a cozinha. Empurrou a porta com o pé e, quando ia a sair para o corredor, tropeçou numa ponta do colchão! O homem acordou logo, em sobressalto, e, ainda meio a dormir, exclamou:

       - Quem está aí? És tu, Edgar? O que é que queres?

       Júlio não lhe respondeu e, silenciosamente, começou a aproximar-se da porta. O homem, não ouvindo resposta, pôs-se a pé de um salto e foi acender a luz. Ao ver Júlio ficou a olhar para ele com uma expressão de espanto no rosto.

       - Que está aqui a fazer?

       - Isso é que eu lhe ia perguntar - retorquiu Júlio, sem se desconcertar. - Quem o autorizou a dormir aqui?

       - Tenho todo o direito a dormir cá em casa, - respondeu o homem, insolentemente. - A minha mulher é cá cozinheira, não é? O meu barco está em terra e tenho uns diazinhos de licença. O seu tio disse à minha mulher que não se importava que eu cá viesse ficar uma vez por outra. Está a perceber?

       Júlio já receava essa resposta. Que horrível ter em casa um Sr. Stick além de uma Sra. Stick e um Menino Stick! Era insuportável! O horrendo Stick não se desviou e olhou para os pratos com o empadão e as tortas.  

       - Com que então a roubar a despensa!? Muito bonito, não há dúvida.

       Júlio não estava com vontade nenhuma de discutir com o Senhor Stick.

       - Saia do meu caminho! Se quiser, conversaremos amanhã, depois de eu falar com o meu tio. Mas o pai Stick não parecia disposto a deixá-lo passar. Ficou em frente de Júlio, a sorrir sarcasticamente e, era visível, a divertir-se com a situação.

       Júlio teve então uma idéia genial. Assobiou com toda a gana e ouviu-se logo um barulho no primeiro andar. Tratava-se do Tim a saltar da cama da Zé para o chão! Em seguida, ouviram o cão a descer as escadas apressadamente. O Tim vinha a caminho! Parou à porta da cozinha. Cheirou o Senhor Stick e começou a rosnar ameaçadoramente. O homem deu um passo atrás e fechou a porta rapidamente. Fez uma careta sardónica.

       - E agora?

       - Quer que lhe diga? - respondeu Júlio, começando a perder a paciência. - Se não sai do caminho pode ter a certeza que lhe atiro com este empadão à cara!

       Levantou o braço e o velho Stick deu um passo atrás.

       - Não faça isso! Estava só a brincar consigo. Não desperdice um empadão tão bom. Vá lá deitar-se e leve esse cão. Gosto pouco de cães!

       - Então porque não se desembaraça do Sarnoso? - perguntou Júlio abrindo a porta. - Vamos Tim! Não te metas com ele. Nem disso é digno.

       Os outros receberam Júlio e Tim como se se tratasse de dois verdadeiros heróis. Não sabiam bem o que se passara, mas tinham ouvido vozes e sabiam que o rapaz encontrara qualquer obstáculo. Depois fartaram-se de rir ao saber que Júlio quase atirara com o empadão à cara do maldito Stick.

        - Era bem feito, - disse a Ana, - embora tivesse sido uma pena por não o podermos comer. A velha Stick é uma pessoa horrível mas sabe cozinhar. O empadão é delicioso.

       Júlio foi-lhes contando o que sabia a respeito do marido da cozinheira e, entretanto, acabaram de comer o empadão e as tortas.

       - Três Sticks já são Sticks a mais. - disse David, pensativo. - É uma pena não os podermos pôr na rua e ficarmos sozinhos. Não poderias convencer o tio a despedi-los, Zé? Tenho a certeza de que nos governávamos muito bem sem eles.

       - Posso tentar, - respondeu a Zé. - Mas já sabes como ele é. Tão difícil de convencer! Amanhã de manhã falo-lhe nisso, prometo. Estou cheia de sono. Agora, toca a dormir, para acordarmos cedo.

       Na manhã seguinte a Sra.Stick surpreendeu-os, ao trazer-lhes o pequeno almoço, inesperadamente.

       - Deve ser por saber que o pai telefona daqui a bocadinho, Zé. - disse o Júlio, - e por não querer complicar mais as coisas. A que horas é que ele disse que telefonava? Nove horas, não foi? São oito e meia, já falta pouco. Vamos a correr até à praia e voltamos antes das nove, combinado?

       E assim o fizeram, todos os cinco, desprezando Edgar, que estava no jardim a fazer-lhes caretas estúpidas. Os pequenos estavam absolutamente convencidos de que o rapaz não era muito certo da cabeça. Quando voltaram, faltavam dez para as nove.

       - Vamos sentar-nos na sala de estar à espera que o telefone toque, - sugeriu o Júlio. - Não queremos que a velha Stick atenda primeiro, pois não?

       Mas ao entrarem na sala, ouviram com grande desilusão, a cozinheira a falar já ao telefone!

       - Sim, senhor! - ouviram-na dizer, - está tudo perfeitamente bem. Os meninos são um pouco difíceis mas eu posso encarregar-me deles. Não se preocupe, senhor, estão em boas mãos. Sim senhor. Naturalmente, sim senhor. Não há a menor dificuldade; além disso, por sorte, o meu marido está de licença e pode-me ajudar um bocado nas coisas da casa. Não se preocupe! Eu encarrego-me de tudo.

       A Zé não se conteve por mais tempo e, de um salto, arrancou o telefone das mãos da Stick.  

       - Pai! Sou eu: a Zé! Como está a mãe? Diga-me depressa!

       - Não está pior, Zé. - respondeu-lhe o pai. - Mas só amanhã de manhã é que se sabe ao certo. A Sra. Stick disse-me que está tudo bem. Isso tranquiliza-me pois ando tão preocupado com a tua mãe, que nem sei o que poderia fazer se as coisas aí corressem mal. Agora já posso sossegá-la e dizer-lhe que tudo vai bem no Casal Kirrin.

       - Mas não vai bem! - exclamou a Zé, indignada. - Não vai mesmo nada bem. É horrível. Queria-lhe pedir que mandasse os Sticks embora e nos deixasse governar a casa sozinhos.

       - Que tremendo disparate! - exclamou o pai, surpreendido e aborrecido. - Que idéia! E eu que esperava que fizesses o possível por ter juízo e ajudares, Zé! Devo dizer que...

       - Fala tu com ele, Júlio, - pediu a Zé, passando o telefone ao primo.

       O rapaz não hesitou.

       - Bom-dia, tio. É o Júlio que está a falar. Estou muito contente por saber que a tia não está pior.

       - Pois se ela pensar que as coisas não estão a correr bem no Casal Kirrin piora logo, - disse o tio Alberto, exasperado. - Não podes convencer a Zé a ter juízo e não dizer disparates? Então nem ao menos podem suportar os Sticks durante alguns dias? Digo-te já, Júlio, que não despeço os Sticks enquanto estiver ausente. Quero que a casa esteja em ordem quando levar a tua tia. Se não conseguem aturar os Sticks voltem vocês para vossa casa; mas não levem a Zé. A minha filha deve ficar no Casal Kirrin! É a minha última palavra.

       - Mas, tio... - começou Júlio a dizer, não sabendo como convencer o pai da Zé. - Devo dizer-lhe que...

       Ouviu-se do outro lado um ligeiro ruído metálico. O tio Alberto desligara o telefone. Não havia modo de contar o que se passara. Júlio olhou para os outros, enrugando a testa.

       - Desligou! - lamentou-se ele. - Desligou quando ia convencê-lo.

       - Bem feito! - exclamou a Sra.Stick, que ficara à porta da sala. - Já sabem: Estou cá e cá fico até que o seu tio me despeça. E, de agora em diante, vão-se portar com muito juizinho ou hão-de arrepender-se!

      

                          JÚLIO DEFRONTA-SE COM OS STICKS

       A cozinheira foi-se desabridamente, batendo com a porta da cozinha, e tratou logo de contar ao marido e a Edgar o que se passara. Os pequenos sentaram-se na sala de estar e ficaram a olhar-se entre si, desanimados e ainda mais tristes.

       - O pai é terrível! - exclamou a Zé, furiosa. - Nunca me dá ouvidos.

       - Não te esqueças de que ele anda muito preocupado. - disse Júlio, tentando acalmá-la. - Foi uma pena que telefonasse antes das nove e que a maldita Stick lhe tenha dito tudo aquilo.

       - Mas, afinal, o que te disse o pai, ao certo? - perguntou a Zé a Júlio.

       - Disse que se eu, a Ana e o David não pudéssemos aturar os Stick, devíamos voltar para casa. Mas tu, Zé, devias cá ficar.

       A Zé olhou para o Júlio.

       - Pois bem! Está provado que vocês não os podem suportar e, por isso, é melhor irem-se embora. Eu cá me governarei sozinha.

       - Não sejas parva! - berrou Júlio. - Já sabes que não te deixamos ficar sozinha com esses monstros. Claro que não os suportamos, mas há coisas piores na vida e é só por poucos dias. Ficaremos todos juntos e, apesar de tudo, ainda nos havemos de divertir.

       - Não, vocês voltam para os vossos pais, - insistiu a Zé. - Eu tenho um plano e vocês não entram nele. Basta-me o Tim para me ajudar. Telefonem para casa e digam que vão amanhã.

       A Zé olhou para os outros em ar de desafio e era evidente que tinha, na verdade, um plano qualquer que tencionava levar a cabo sozinha. Júlio sentiu-se pouco à vontade.

       - Não sejas ridícula. - teimou o rapaz. - Já te disse que ficamos todos juntos. Se tens um plano conta connosco! Mas, suceda o que suceder não te largamos.

       - Fiquem, se quiserem, - concordou a Zé finalmente, - mas tenho a certeza de que o meu plano não vos agrada e que se irão logo embora. Vamos, Tim! Vamos ver se o barco já está pronto.

       - Vamos contigo. - disse David.

       Estava cheio de pena da Zé; parecia que por baixo de toda aquela arrogância havia grande tristeza e sabia que a rapariga andava muito preocupada com a mãe, zangada com o pai, transtornada por os primos ficarem naquelas condições e não voltarem a casa, onde se podiam divertir muito mais.

       O dia corria-lhes bastante mal. A Zé era uma casmurra e continuava a insistir para que os outros se fossem embora.

       - Estão-me a estragar os planos. Vão-se embora! A sério... se não forem, estragam tudo.

       - Mas, afinal, que famoso plano é esse? - perguntou Júlio impaciente. - Está-me cá a parecer que não tens plano nenhum e que inventaste tudo isso só para te veres livre de nós.

       - Não inventei nada. - exclamou a Zé, exaltando-se. - Já alguma vez me viste mentir? Já sabes que nunca invento nada. Quando digo que tenho um plano é porque tenho um plano. Mas não vos vou dizer o que é. É um plano secreto, e só meu, muito meu!

       - Acho que nos devias dizer o que é. - disse David, deveras ressentido. - Apesar de tudo, somos os teus melhores amigos, não somos? E já que está decidido que vamos ficar juntos, com plano ou sem plano... Sim, mesmo que te estraguemos o plano, como disseste, cá ficaremos contigo!

       - Não quero que me estraguem o meu plano. - gritou a Zé, quase a chorar. - Não há direito. Estão todos contra mim, tal e qual como os Sticks.

       - Não, não, Zé. - exclamou a Ana, com lágrimas nos olhos. - Não nos zanguemos. Já basta de ralações por causa desses Sticks...

       A Zé acalmou-se imediatamente. Sentia-se envergonhada e pediu desculpa aos primos.

       - Desculpem-me! Que parvoíce estarmos a discutir numa altura destas. Mas acreditem que estava a falar verdade. Tenho um plano e quero levá-lo a cabo. E não vos digo o que é, pois, se o fizer, acabará por estragar as vossas férias. Creiam-me!

       - Vamos é para a praia, - disse o Júlio, levantando-se. - Vou ver se a Stick arranja um farnel. Vão ver como nos sentimos melhor, logo que nos virmos fora de casa.

       - Querido Júlio, és tão valente! - exclamou a Ana, que teria preferido morrer a defrontar-se com a Senhora Stick.

       A cozinheira mostrou-se muito difícil. Sentia-se vitoriosa e, além disso, estava aborrecida com o desaparecimento do empadão e das tortas de morango. O marido terminava justamente de contar-lhe o assalto à despensa, quando Júlio chegou à cozinha.

       - Mas que impertinência! Então quer que eu lhe arranje um farnel, depois de nos ter roubado o empadão e as tortas? - interrogou ela, indignada. - O mais que lhes dou é pão seco e doce. E já vão com muita sorte! E o que é mais, nem isso lhes daria se não fosse para me ver livre dos meninos!

       - E que não voltem mais! - murmurou Edgar, estendido no colchão onde o pai dormira.

       - Se tem alguma coisa para me dizer, salte cá para fora, seu traste! - desafiou Júlio.

       - Não se meta com o meu filho - avisou a velha Stick.

       - Com todo o prazer! - troçou Júlio. - Até me dá nojo olhar para ele.

       - O quê? Ouça cá... - começou o pai Stick a dizer.

       - Não quero ouvi-lo. - disse Júlio, com o maior desplante.

       - Olhe que se... - começou de novo o pai Stick, levantando-se furioso.

       - Já lhe disse que não quero vê-lo nem ouvi-lo. A sua presença até me enjoa.

       - Que insolência! - exclamou a Stick, perdendo a calma.

       - Não, não é insolência. É a pura verdade.

       A cozinheira fitou-o fixamente. Júlio fitou-a também e não desviou o olhar. Foi a cozinheira a primeira a baixar os olhos. Júlio vencera-a. O rapaz sabia responder a tempo e dizia tudo muito calmamente. Quanto mais insolentes eram as suas palavras, mais delicadamente as dizia. A velha Stick não compreendia pessoas como o Júlio. Sabia bem que não era bastante inteligente para as compreender. Detestava o rapaz e estava mesmo a apetecer-lhe atirar-lhe à cabeça a panela que tinha nas mãos. Mas dominou-se e, em vez disso, atirou a panela ao chão e pôs as mãos na cintura, disposta a insultar o rapaz e a correr com ele da cozinha. O cão dos Sticks, ao ouvir o inesperado estrondo da panela, deu um pulo e começou a rosnar.

       - Olá, Sarnoso! - disse Júlio, rindo-se. - Já te deram um banho? Não, pelo cheiro... parece que não.

       - Já lhe disse que o cão não tem sarna, - exclamou a Stick, exasperada. - Saia daqui para fora!

       - Vou-me já embora. Não aguento mais o cheiro!... E não pense mais no pão e no doce. Eu arranjo melhor.

       E, dizendo isto, o rapaz afastou-se, assobiando alegremente. O cão recomeçou a rosnar e Edgar repetiu mais alto o que já dissera:

       - E que não volte mais...!

       - O que foi que disse? - perguntou Júlio, voltando-se de chofre à porta da cozinha. Mas Edgar não teve coragem de o repetir e Júlio afastou-se de novo, continuando a assobiar, alegremente, mas não se sentindo, nem por sombras tão alegre como o assobio. Ia mesmo muito preocupado. Se a velha Stick decidisse continuar assim, no tocante às refeições, então a vida, no Casal Kirrin ia tornar-se verdadeiramente difícil.

       - Qual de vocês é que quer pão seco e doce? - perguntou Júlio, ao reunir-se aos outros. - Não lhes apetece? Bem me queria parecer. E foi por isso que rejeitei a generosa oferta da Sra.Stick. Eu, cá por mim, proponho comprar-se qualquer coisa para comer. Aquela loja da aldeia vende uns pastéis de carne bem apetitosos.

       A Zé andou muito calada todo o dia, naturalmente ralada por causa da mãe. Os outros sabiam-no bem. E, se calhar, também matutava no tal plano, e os primos mal podiam conter a sua curiosidade.

       - Vamos à Ilha Kirrin? - perguntou Júlio, pensando que a idéia distraísse a Zé.

       Mas a rapariga abanou a cabeça.

       - Não, não me apetece. Bem sei que o barco está pronto, mas hoje, não me apetece. Enquanto não souber que a mãe está melhor não quero afastar-me de casa; se fôssemos para a ilha, e o pai telefonasse, os Sticks não tinham maneira de me avisar, mesmo que o quisessem fazer.

       Os pequenos passaram todo o dia de um lado para o outro, sem fazer nada, e andaram muito aborrecidos e apoquentados. Voltaram para casa à hora do chá e a Sra.Stick deu-lhes pão com manteiga, mas não bolo. O leite estava azedo e tiveram de tomar o chá sem leite, ao que não estavam habituados. Enquanto tomavam chá, os pequenos ouviram Edgar no jardim, mesmo junto à janela da casa de jantar. Foram espreitar e viram que o rapaz trazia na mão um prato de esmalte, que pousou no chão.

       - É o jantar do vosso cão, - gritou Edgar, com grandes gestos.

       - Ele é que parece um jantar de cão, - exclamou David, enojado. - Que reles criatura! Riram-se todos. Mas, nesse momento, viram o Tim aproximar-se do prato e a Zé lembrou-se logo da ameaça da maldita Stick. Teria tido coragem de envenenar a comida do Tim?

       - Tim! Tim! Não toques nisso!

       O Tim abanou a cauda e mostrou a dentuça, num arremedo de sorriso, como se quisesse dizer que, de qualquer modo, não tivera a menor intenção de tocar naquela porcaria. A Zé correu para o jardim e pegou no prato, cheirando-o.

       - Não lhe tocaste, pois não, Tim? - perguntou a rapariga, ansiosamente.

       David debruçava-se da janela da casa de jantar e vira-o cheirar o prato.

       - Cheirou a comida mas não lhe tocou. Aposto que a mulher lhe deitou veneno de ratos ou de qualquer outra coisa.

       A Zé empalidecera.

       - Querido Tim! És tão inteligente! Percebeste logo que havia veneno, não percebeste?

       - Uf! - respondeu Tim, com ar esperto. O cão dos Sticks ouviu o latido e apareceu à porta da cozinha.

       A Zé chamou-o:

       - Vem cá, Sarnoso! Sarnoso! O Tim não quer o jantar. Come-lo tu! Anda, toma!

       Edgar apareceu a correr atrás do cão.

       - Não lhe dê isso, - gritou nervosamente.

       - Porquê? - perguntou a Zé inocentemente. Vamos, Edgar. Explique-me porquê!

       - O meu cão nunca come carne. - explicou Edgar, depois de uma pausa. - Só come biscoitos para cão.

       - Mentiroso! - gritou a Zé. - Ontem vi-o a comer carne. Toma, Sarnoso! Come isto!

       Edgar arrancou o prato das mãos da Zé e correu para a cozinha precipitadamente. A Zé quis ir atrás dele, mas Júlio, ao ver Edgar a falar com a prima, saltou da janela e interpôs-se.

       - Calma, Zé! - exclamou o primo, agarrando-a por um braço. - Já não consegues provar nada; a esta hora a Stick escondeu o prato e chamava-te mentirosa se dissesses que a comida estava envenenada. Doravante seremos nós que faremos a comida ao Tim. Podemos muito bem comprar a carne no talho e assim ficamos mais seguros, sem receio que ele coma qualquer coisa envenenada. De resto, é sabido demais para isso.

       - Era capaz de o fazer se estivesse cheio de fome, Júlio, - disse a Zé, muito pálida e sentindo-se agoniada. - Eu não ia dar aquela comida ao Sarnoso, claro está, mas pensei que, se estivesse envenenada, um dos Sticks aparecia logo para não deixar que o cão a comesse. E assim sucedeu. Não achas que é prova suficiente?

       - Acho, mas não te preocupes, Zé! O Tim não se deixa envenenar.

       - É possível, é possível, - lamentou-se a Zé, fazendo uma festa na cabeça do cão. - Mas nem posso pensar nisso, Júlio! Não posso, a sério que não posso!

       - Então não penses mais e vem acabar de comer.

       - Achas que os Sticks eram capazes de nos envenenar, Júlio? - perguntou a Ana, muito a sério, súbitamente assustada e olhando desconfiada para o pão com manteiga.

       - Não, minha parvinha. Só querem livrar-se do Tim por ele nos guardar tão bem. - respondeu-lhe o irmão. - Não tenhas medo! Vais ver que daqui a dois ou três dias já está tudo mais calmo e nos divertimos imenso. Vais ver!

       Mas Júlio só dissera isto para reconfortar a irmãzinha. No fundo, estava preocupado, deveras. O que mais desejava era poder levar a Ana, o David e a Zé para casa dos seus pais. Mas sabia que a Zé não iria. E como é que a podiam deixar sozinha com os Sticks? Era impossível! Os amigos são para as ocasiões e tinham de se conservar unidos até à volta da tia Clara e do tio Alberto.

      

                          BOAS NOTÍCIAS

       - Não achas que seria melhor irmos lá abaixo quando os Sticks se fossem deitar, para ver se encontramos alguma coisa na despensa? - perguntou o David, nessa noite, quando compreendeu que iam ficar outra vez sem jantar.

       Júlio não se sentia muito disposto a enfrentar outra vez o mal-encarado Stick. Não que tivesse medo dele, mas tudo aquilo era desagradável... A casa era deles, a comida também. Que razão havia, pois, para terem de pechinchar qualquer coisa ou irem à despensa às escondidas? Era ridículo!

       - Vem aqui, Tim! - exclamou Júlio. O cão saiu de junto da Zé e aproximou-se do rapaz, olhando interrogativamente. - Vou-te levar comigo lá abaixo, para me ajudares a convencer a Stick a dar-nos o que tiver de melhor na despensa!

       Os outros riram-se, alegrando-se imediatamente.

       - Boa idéia! - exclamou David. - Vamos todos, para nos divertirmos um bocado.

       - É melhor não, - disse Júlio. - Vou eu sozinho com o Tim.

       Desceu as escadas e foi à cozinha. Os Sticks estavam a ouvir telefonia e, por isso, só deram por ele quando já estava dentro da cozinha. Edgar foi o primeiro a ver Júlio mas o seu olhar fixou-se sobretudo no Tim, que já estava a rosnar ameaçadoramente.

      - Que deseja? - perguntou a Sra.Stick, desligando a telefonia.

       - O jantar! - disse Júlio, prazenteiramente. - O jantar! O que tiver de melhor na despensa, que foi tudo pago com o dinheiro do meu tio, cozinhado no fogão da minha tia, com o gás pago pelo... sim, queremos o melhor jantar que se possa arranjar!

       - É preciso ser-se descarado! - exclamou o velho Stick, admirado com a coragem do rapaz.  - Se quiser, pode levar uma carcaça e queijo, - disse a Sra.Stick como por grande favor. - E nada mais!

       - Isso é o que vamos ver, - disse Júlio, aproximando-se da porta da despensa. - Tim, fica de atalaia! Podes rosnar à vontade mas não mordas ninguém... por enquanto!

       Tim estava de facto assustador. O próprio Stick, foi-se passando para o outro lado da mesa da cozinha, enquanto Edgar se escondera por detrás de uma cadeira. O Sarnoso, esse, nem já se via em qualquer canto. A Sra.Stick quase perdia as estribeiras.

       - Leve o pão e o queijo, e toca a andar!

       Júlio abriu a porta da despensa, muito calmo, assobiando de leve, o que levava ao auge a irritação da Sra.Stick.

       - Fantástico! Nem quero acreditar! - exclamou Júlio, surpreendido. - Não haja dúvida de que tem a despensa bem recheada, Sra.Stick! Um frango assado! Bem me parecia ter-me cheirado a frango assado esta tarde. Suponho que o seu marido matou hoje um dos nossos frangos. E que lindos tomates! Com certeza, os melhores à venda no mercado. E que bolo maravilhoso! Os meus parabéns, Sra. Stick. Devo confessar que é uma excelente cozinheira!

       Júlio agarrou no frango, no prato dos tomates e no bolo. A cozinheira desatou a gritar.

       - Não toque nisso! É o nosso jantar! Ponha isso onde estava!

       - Está um pouco enganada. - disse Júlio, muito suave. - É o nosso jantar. Comemos hoje pouquíssimo, e estamos precisados de um bom jantar. Muito obrigado.  

       - Ouça cá... olhe! - começou o velho Stick, furioso, ao ver em perigo o seu opíparo jantar.

       - Outra vez? Então ainda não desistiu de me forçar a encará-lo? - perguntou Júlio num tom de grande surpresa. - Para quê? Já se teria barbeado... ou lavado? Creio que não. Assim, se me dá licença, prefiro não olhar!

       O velho Stick ficou embuchado. Não era lá muito inteligente, e um rapaz como o Júlio deixava-o sem saber que fazer ou dizer, a não ser o seu estribilho :  

       - Ouça cá!... olhe!

       - Ponha tudo isso no seu lugar, - insistia a cozinheira asperamente. - Diga-me, que vamos nós comer se nos levar o nosso jantar? Diga-me lá!

       - É fácil! Posso oferecer-lhes o jantar que nos destinava - pão e queijo, Sra. Stick, pão e queijo!

       A cozinheira soltou um palavrão e avançou de mão erguida para Júlio, mas o Tim, ao ver isto, saltou como para lhe morder a mão.

       - Oh! - gritou a cozinheira. - Esse cão quer morder-me! Essa fera! Um dia mato-o! A ver se não o mato!

       - Já hoje o tentou fazer, não é verdade? - disse Júlio, calmo, fitando a mulher. - É um caso de polícia, não é? Tenha cuidado! Estou muito tentado a ir amanhã à polícia.

       Como por encanto, a simples menção da polícia bastou para assustar a mulher, que olhou de revés para o marido e deu um passo atrás. Júlio perguntou de si para si se o homem não teria cometido qualquer crime e andava fugido à polícia. A verdade é que o velho Stick nunca punha os pés fora de casa... O rapaz foi ter com os outros, triunfante. Tim parecia desapontado por não ter tido a sua oportunidade de ferrar o dente em qualquer dos Sticks.

       - Olhem! O jantar dos Sticks! - exclamou Júlio. E os outros rodearam-no entusiasticamente, enquanto ele lhes contava o que se tinha passado.

       - Como tens tu tanta lata? - perguntou Ana, sem poder ocultar a sua admiração pelo irmão. - Os Sticks devem odiar-te; não voltes à cozinha sem o Tim para te proteger.

       - Tens razão! Não sei o que faria sem o Tim. O Stick atirava-se logo a mim.

       Jantaram optimamente. Era a primeira refeição a sério que tomavam desde que se viram sozinhos e, quando acabaram de comer, sentiram-se muito melhor e reconfortados. O Tim também recebeu o seu quinhão e, depois, ainda lambeu os pratos, deliciando-se com os restos do frango e abanando a cauda alegremente. Fora na verdade um excelente jantar. Já era tarde e Ana bocejou de sono.

       - Vamos para a cama! - sugeriu a Zé. Estamos todos muito cansados.

       No dia seguinte acordaram cedo. Foi Júlio o primeiro a levantar-se. Estava uma manhã maravilhosa. Júlio foi à janela e quedou-se a olhar para a bela paisagem. O céu estava muito azul e o mar calmo e límpido. Júlio recordou uma frase que Ana repetia muitas vezes. Dizia ela que o “mundo, de manhãzinha,  parecia sempre ter acabado de chegar da lavadeira... tão limpo, novo e fresco!”

       Antes do pequeno almoço foram todos à praia tomar um bom banho e, desta vez, voltaram às oito e meia, para não se arriscarem a estar ausentes de casa, quando o pai da Zé telefonasse.

       - Pode trazer-nos o pequeno almoço! - ordenou o Júlio.

       - Um pequeno almoço muito apetitoso, Sra.Stick. É muito possível que o tio Alberto nos pergunte o que tivemos para o pequeno almoço, não é? É mesmo possível.

       A Sra.Stick, evidentemente, pensou que Júlio era muito capaz de dizer ao tio que ela só lhes dava pão com manteiga e, por isso, não tardou que os pequenos sentissem o delicioso aroma de presunto a fritar na cozinha. A Sra. Stick trouxe-lhes uma travessa de ovos com presunto, adornada com apetitosos tomates. O próprio Edgar lhes apareceu carregado com o bule do chá, as chávenas e os pires.

             - Olhem quem ele é, o nosso querido Edgar! - exclamou Júlio - o querido porcalhão!

             Edgar soltou um palavrão, mas, ao ouvir o rosnar ameaçador do Tim, pousou tudo na mesa e retirou em boa ordem para a cozinha. A Zé não quis comer nada. Júlio pôs-lhe o seu quinhão no prato e tapou-o com outro para que não arrefecesse. Sabia muito bem que ela estava cheia de fome, mas não tocaria em nada antes de saber se a mãe estava melhor. Ouviu-se a campainha do telefone e a Zé precipitou-se para o aparelho, antes de a Sra.Stick ter tempo de lá chegar.

       - Pai! Sim. Sou eu, a Zé. Como está a mãe? - Houve uma pausa, enquanto o pai lhe respondia. Os outros pararam de comer a escutar em silêncio, esperando que a Zé falasse, para saberem pelas suas próprias palavras se a tia estava ou não melhor.

       - Que bom! Estou tão contente! - ouviram a Zé dizer. - Então foi operada ontem? E não me disse nada! Tem a certeza de que está bem agora? Pobre mãezinha! Dá-lhe um grande beijo da minha parte. Gostava tanto de ir vê-la. Deixa-me lá ir, pai, deixa?

       Mas a resposta foi negativa. A Zé disse ainda mais qualquer coisa e, em seguida, despediu-se. Correu para junto dos outros.

       - Ouviram, não ouviram? A mãe está melhor. Vai ficar boa e deve voltar dentro de uns dez dias. O pai disse que voltava logo que ela pudesse vir. Mas que boas notícias! Só é pena não nos podermos livrar dos Sticks.

      

                          O PLANO DA ZÉ

       A Sra. Stick ouvira a conversa, ou, pelo menos, ouvira o que a Zé dissera ao telefone. Sabia que a mãe da Zé estava melhor e que o pai só voltaria para casa quando ela estivesse completamente bem. E isso seria dentro de uns dez dias! Até lá os Sticks continuariam a ser reis e senhores naquela casa.

       A Zé, desde que recebera as boas notícias, sentia-se muito melhor e, cheia de apetite, atirou-se aos ovos com presunto que o Júlio lhe guardara. Bebeu três chávenas de chá e muito satisfeita estendeu-se no sofá.

        - Estou muito melhor, - declarou logo alegremente.

       A Ana sentou-se-lhe ao lado; a pequenina também estava contentíssima por saber que a tia já estava quase boa. Se não fossem aqueles horríveis Sticks, podiam divertir-se imenso. Foi então que a Zé teve uma idéia que enfureceu Júlio.

       - Sei agora que a mãe está bem e sinto-me melhor. Poderei suportar os Sticks, sozinha com o Tim, e vocês irão terminar as férias com os vossos pais. Não se preocupem comigo!

       - Cala-te, Zé! - disse Júlio. - Discutimos tudo isso e já tomei uma decisão. Sabes muito bem que sou tão teimoso como tu. Nem vale a pena falar mais no caso.

       - Já te disse que tenho um plano... e vocês não poderão tomar parte nele. Tenho muita pena, mas é assim mesmo! Quer queiram quer não, terão de se ir embora, vão ver!

       - Não sejas tão misteriosa, Zé! - exclamou Júlio impaciente. - Qual é o teu plano, afinal? Podias dizer-nos, mesmo que nós não tomássemos parte nele. Não confias em nós, ou quê?

       - Claro que confio. Mas não quero que me estraguem o que planeei.

       - Então o melhor é dizer-nos. - insistiu Júlio, sentindo-se pouco à vontade. A Zé logo que decidia qualquer coisa era tão casmurra! Sabia-se lá do que ela era capaz! A Zé não disse nem mais uma palavra. O Júlio não voltou a falar no assunto, mas decidiu não sair de junto dela durante todo o dia. Se quisesse fazer qualquer disparate teria de ser à vista do Júlio!

       O dia foi bastante agradável. Foram ao banho. Sobre a areia almoçaram todos, depois de terem comprado pastéis de carne, bolos e fruta na loja da aldeia. Tïm, por sua vez, teve um óptimo osso que Júlio foi buscar ao talho.

       - Tenho de ir fazer umas compras, - informou a Zé à hora do chá. - Vocês vão andando e vejam se a Stick nos faz um bom chá. Eu já lá vou ter.

       Júlio percebeu logo. A Zé estava a tentar afastá-los para levar a cabo o tal plano misterioso.

       - Eu vou contigo. - disse o Júlio levantando-se. - O David pode ir conversar com a velha Stick e levar o Tim para o proteger.

       - Não, não - respondeu a Zé. - Eu vou sozinha, não me demoro nada.

       Mas Júlio decidiu não a abandonar: Finalmente, foram todos juntos e David não teve de enfrentar a velha Stick, sem o Júlio ou sem a Zé.

       A Zé dirigiu-se à pequena loja da aldeia e comprou uma nova pilha para a sua lanterna, assim como duas caixas de fósforos e um frasco de álcool.

      - Para que queres tu isso? - perguntou a Ana, surpreendida.

       - É sempre útil ter fósforos e álcool à mão. - respondeu a Zé, sem dizer mais.

       Voltaram todos para o Casal Kirrin e, com grande espanto, viram o chá à espera deles, já na mesa. Comeram com apetite e ninguém mais tornou a falar no plano da Zé.  Depois do chá começou a chover e os pequenos não puderam sair de casa. Jogaram às cartas e, divertiram-se bastante, agora que já estavam menos preocupados pela tia Clara. A meio do jogo, Júlio levantou-se e tocou a campainha. Os outros olharam para ele, muito surpreendidos.

       - Para que estás tu a tocar a campainha? - perguntou a Zé, admirada.

       - Para dizer à cozinheira que traga o jantar. - respondeu o Júlio, piscando o olho. Mas ninguém respondeu à chamada.

       O Júlio voltou a tocar a campainha e, desta vez, conservou o dedo no botão durante alguns minutos. Passado um bocado ouviram a porta da cozinha abrir-se e a Sra.Stick apareceu à entrada da sala, visivelmente mal disposta.

       - Que quer isto dizer? Então julga que eu estou aqui para responder às suas campainhadas? Que descaramento!

       - Só toquei para lhe dizer que estamos à espera do jantar. Mas, se prefere, vou à despensa, com o Tim, e trago o vosso jantar como ontem à noite. Terei muito prazer nisso. Mas como não me está a apetecer nada incomodar-me, preferia que fosse a Sra. Stick a trazê-lo hoje.

       - Se for outra vez à despensa, eu... eu..., - começou a mulher a gaguejar, ameaçadora.

       - Se calhar, chama a polícia... não? - interrompeu o Júlio. - Sim, faça isso mesmo! Gostava imenso que o fizesse. Estou mesmo a ver o polícia cá do sítio a tomar apontamentos e a colher informações. Eu, cá por mim, tenho umas poucas que lhe dava com prazer.

      A Sra. Stick repontou olhando para o Júlio como se quisesse comê-lo e voltou para a cozinha. Pelo ruído de panelas e de pratos era fácil ver que a mulher lhes estava a arranjar qualquer coisa para comer. O Júlio voltou a piscar o olho, sorriu e deu novamente as cartas.

       O jantar não era tão bom como o da véspera mas, assim mesmo, não estava nada mau. A Sra.Stick trouxera também um prato de carne para Tim e pousara-o no chão ao lado da mesa.

       A Zé olhou para a mulher.

       - Leve isso já! Aposto que está envenenado. Leve o prato para dentro! Ouviu?

       - Não. Pelo contrário, deixe-o ficar aí, disse Júlio. - Amanhã levo a carne à farmácia para eles a analisarem, Se tiver veneno, como a Zé pensa, o analista fará o necessário. É costume chamar a polícia nestes casos, não é?

       A Sra.Stick levou a carne, sem dizer palavra. - Que mulher! - exclamou a Zé, puxando Tim para junto de si. - Detesto-a!

       - Já são dez horas, - informou Júlio. - Todos para a cama! A Ana já devia ter ido há muito tempo. Não tem idade para estar de pé a estas horas.

       - Ora, já viram! - exclamou Ana indignada. - Sou quase da idade da Zé, não sou? E não tenho culpa de ser mais nova, pois não?

       - Está bem, está bem! - riu-se Júlio. - Não és só tu que vais para a cama, vamos todos. Já sabes que não nos separamos enquanto os Sticks cá estiverem. Vamos para cima, sim?

       Estavam todos cansados. Tinham passado o dia a nadar e a remar. Júlio tentou ficar acordado durante um bocado, mas, tal como os outros, adormeceu logo. Passado pouco tempo acordou em sobressalto, pensando que ouvira barulho. Mas o silêncio era total. Que teria sido aquele ruído? Seria algum dos Sticks? Não, não podia ser. O Tim teria logo começado a ladrar. Então o que teria sido? Alguma coisa o acordara, disso não tinha dúvidas:

       - É capaz de ser a Zé a fazer alguma das suas que tenha que ver com o seu plano! - pensou Júlio subitamente. Vestiu à pressa o roupão e saiu, fazendo o possível por não acordar David. Acendeu a lanterna e dirigiu-se cautelosamente ao quarto das raparigas.

       A Ana dormia pacificamente na sua cama. Mas a da Zé estava vazia. E as roupas dela tinham desaparecido.

       - Onde terá ela ido! - disse Júlio, consigo. - Ia apostar que foi ver se descobria onde está a mãe. Foi então que a lanterna lhe revelou um envelope branco sobre a almofada da Zé. Como estava endereçado a ele, o rapaz abriu-o sem perda de tempo e leu :

             “Querido Júlio,

             Não fiques zangado comigo, peço-te! Mas não tenho coragem para ficar mais tempo com a idéia que a Stick envenene o Tim. Sabes que isso me despedaçaria o coração. Resolvi ir viver para a ilha até que o pai e a mãe voltem para casa.

       Faz-me o favor de deixares uma carta ao pai a pedir-lhe que diga ao Jim para passar perto da ilha, no seu barco, com um pano encarnado no mastro, logo que eles regressem. Só então é que voltarei para casa. Vocês devem voltar para os vossos pais, a gozarem o resto das férias. Seria estúpido ficar no Casal Kirrin com os Sticks, agora que já lá não estou.

             Um grande abraço da Zé”

       O Júlio leu a carta com toda a atenção.

       - Afinal esse é que era o plano! - pensou o rapaz. - Era por isso que ela queria que nos fôssemos embora! Queria ir sozinha com o Tim. Tenho de ir buscá-la. Não quero que esteja sozinha na ilha. Pode adoecer, escorregar numa rocha, magoar-se, e ninguém o saberia!

       O rapaz estava verdadeiramente preocupado. Não sabia o que fazer. Aquele barulho fora provocado pela rapariga. Logo, ela não devia ter saído há muito tempo, e se ele fosse a correr até à praia talvez ainda a apanhasse.

       Se bem o pensou, melhor o fez. Sem sequer se vestir, largou a correr para a praia, esperando ansiosamente chegar a tempo de evitar a loucura da pequena. Já não chovia e havia estrelas no céu, mas a noite estava bastante escura.

       - Como é que a Zé espera passar aquelas rochas no escuro? - pensou Júlio. - Endoideceu! Vai de encontro a algum rochedo e afunda-se.

       Pôs-se a correr ainda mais depressa, falando alto, enquanto avançava na escuridão. - Não admira que quisesse uma nova bateria para a lanterna, e fósforos... e, se calhar, o álcool era para acender uma fogueira! Podia-nos ter dito. Seria bem divertido irmos todos juntos. Chegou à praia. Viu ao longe a luz da lanterna da Zé. Correu para lá, gritando desesperadamente.

       - Zé! Idiota! Não podes ir sozinha em noite tão escura.

       A rapariga estava a puxar o barco para a água e, ao ouvir o Júlio, deu um último puxão e saltou para dentro dele. O Júlio ainda teve tempo de se agarrar ao barco, ficando com água até à cintura.

       - Larga o barco! - gritou a Zé. - Vou partir!

       - Zé, ouve-me! Não podes ir sozinha! Vais de encontro a uma rocha. Volta para trás!

       - Não. Tu é que vais voltar para trás, Júlio. Não te preocupes comigo. Larga o barco!

       - Zé, devias-me ter dito qual era o teu plano. - gritou o Júlio, que nessa altura quase foi levado por uma vaga. - Tenho de entrar para o barco, senão as ondas levam-me!

       A muito custo, conseguiu trepar. A escuridão mal lhe permitia ver a Zé, mas tinha a certeza de que estava furiosa. O Tim veio lamber-lhe os pés.

       - Estás a estragar tudo! - gritou a Zé, quase a chorar.

       - Ouve-me, Zé! Tu vais voltar comigo para o Casal Kirrin e prometo-te uma coisa. Palavra que prometo. Amanhã vamos todos contigo para a Ilha Kirrin. Ouviste? Todos nós. É uma idéia estupenda e não vejo razão para que não o façamos. A tua mãe quase nos autorizou a ir lá passar uma semana, não é verdade? Livramo-nos desses horríveis Sticks e será divertidíssimo. Agora voltamos para trás; sim, Zé? Amanhã iremos todos juntos. Combinado?

      

                          UMA NOITE EMOCIONANTE

       HOUVE um silêncio. Depois, a Zé exclamou alegremente :

       - Ó Júlio! Falas a sério? Estava com tanto medo de fazer isto, depois de o pai ter dito que eu devia ficar no Casal Kirrin... Já sabes como ele detesta que lhe desobedeçam. Mas eu sabia que se permanecesse em casa vocês também aí estariam, e não queria que tivessem de aguentar por mais tempo os horríveis Sticks. Por isso, resolvi fugir. Nem pensei em lhes pedir que viessem comigo, para não terem de ouvir um ralhete por minha causa.

       - Às vezes és muito tansa, Zé! Como se nós nos importássemos de ouvir um ralhete, desde que ficássemos todos juntos! Claro que iremos contigo. E, o que é mais, tomo toda a responsabilidade e direi ao teu pai que foi minha a culpa.

       - Não, não, nem pensar nisso! - exclamou logo a Zé. - Eu direi que a idéia foi minha. Já sabes que nunca fujo às responsabilidades.

       - Está bem. Depois discutimos isso. Ficaremos uma semana ou dez dias na Ilha Kirrin e teremos muito tempo para discutir. Agora voltamos para casa, acordamos os outros e combinamos tudo. Devo dizer que tiveste uma idéia estupenda!

       A Zé estava contentíssima.

       - Está a apetecer-me mesmo dar-te um beijo, - disse a pequena, pegando nos remos.

       O Júlio voltou para a água e puxou o barco para a praia. Quando ia arrumar os remos, a luz da lanterna iluminou o interior do barco e o rapaz soltou uma exclamação.

       - Levas um verdadeiro carregamento! Pão, fiambre, manteiga, tantas coisas... Como é que conseguiste isso tudo, sem o Stick dar fé? Assaltaste a despensa? Está mesmo a ver-se!

       - Pois claro! - respondeu a Zé. - Mas esta noite não havia ninguém na cozinha. Talvez o Stick tenha dormido lá em cima. Ou, então, já voltou para o barco.

       - O melhor é deixar aqui as coisas, - disse o Júlio. - Esconde a comida por debaixo do banco e põe os remos por cima. Ninguém suspeitará de nada. Mas teremos de trazer muito mais comida para todos nós. Que divertido vai ser!

       Voltaram ambos para casa, muito excitados. Acordaram o David e a Ana, que, admirados, ouviram contar tudo o que se passara naquela noite. A Ana estava tão entusiasmada com a idéia de irem passar uma semana à Ilha Kirrin que não pôde evitar de falar em voz alta.

       - Vai ser estupendo! Que maravilha!...

       - Cala-te! - sussurraram imediatamente três vozes furiosas. - Acordas os Sticks!

       - Desculpem! - murmurou a Ana. - Mas é tão bom! - E começaram todos a discutir os planos da fuga.

       - Se formos lá ficar uma semana ou dez dias teremos de levar imensa comida. - disse o Júlio, muito senhor de si. - Será possível encontrar tanta comida cá em casa? Mesmo que levemos tudo que há na despensa não será bastante. Temos que pensar bem no assunto.

         - Júlio. - disse a Zé, lembrando-se subitamente de qualquer coisa. - Já sei o que havemos de fazer! A mãe tem no quarto um armário cheio de coisas de mercearia! Costuma lá guardar toda a espécie de latas de conserva para o caso de no Inverno as inundações nos isolarem. Já aconteceu uma ou duas vezes. Como sei onde a mãe tem a chave, podemos levar muitas latas, não acham?

       - Claro que podemos! - disse o Júlio contentíssimo. - Tenho a certeza de que a tia Clara não se importa. E, de todas as maneiras, podemos fazer uma lista do que levarmos e depois, se ela se importar, substituirmos tudo. Faço anos daqui a pouco tempo e então terei algum dinheiro para comprar as coisas.

       - Onde está a chave? - perguntou David.

       - Vamos ao quarto da mãe e eu mostro-lhes onde ela a guarda. Espero que não a tenha levado.

       Mas quando a mãe da Zé saiu de casa ia demasiadamente doente para se preocupar com chaves, e a Zé encontrou-a logo, abrindo a pesada porta do armário. O Júlio apontou a lanterna. O armário estava cheio de latas e pacotes, tudo muito bem arrumado nas prateleiras.

       - Caramba! - exclamou o David com os olhos a brilhar. - Sopas, latas de carne, de fruta, leite enlatado, sardinhas, manteiga, bolachas, legumes! Aqui há de tudo!

       - Estupendo! - confirmou o Júlio, radiante. A Zé teve uma idéia brilhantíssima. Levamos tudo o que pudermos. Sabes onde é que podemos arranjar um ou dois sacos, Zé?

       Não tardou que as latas fossem metidas em dois sacos. Júlio fechou a porta do armário e voltou a guardar a chave. Regressaram todos aos quartos.

       - Bem... o problema, mais importante está resolvido. Já temos comida bastante, - disse o Júlio. - Agora vamos assaltar a despensa, e levamos todo o pão que lá houver, e bolos... se tivermos sorte. E água, Zé? Haverá água na ilha?

       - Não sei bem. Suponho que sim, naquele velho poço. Mas, por causa das dúvidas, é melhor levarmos umas latas cheias.

       - E onde é que havemos de passar as noites? - perguntou o Júlio. - Naquela parte do castelo onde há o único quarto que ainda tem telhado e paredes?

       - É o único sítio abrigado.

       - Então é melhor levarmos mantas para nos cobrirmos e também para fazer colchões. E almofadas. Que excitante! Sinto-me como um prisioneiro que vai recuperar a liberdade. Os Sticks é que vão ficar de boca aberta quando não nos virem!

       - O que temos é de meter tudo no barco, antes de amanhecer. Daqui a nada é dia.

       - Como é que vamos levar isto tudo para o barco da Zé? - perguntou Ana, de olhos esbugalhados ante o enorme monte de coisas que havia a levar. - Tanta coisa!

       Não havia dúvida de que eram muitas coisas. Júlio, como de costume, teve uma idéia.

       - Não haverá por aí nenhum barril? - perguntou o rapaz à Zé. - Podíamos meter isto tudo lá dentro e ir com ele a rebolar até à praia.

       - Não sei o que faríamos sem o Júlio! Quando levei as minhas coisas tive de ir e vir cinco vezes, e era muito menos do que isto. Se não me engano, há dois barris na garagem. Vamos buscá-los!

       Passado pouco tempo estava tudo arrumado no barco, sem que os Sticks tivessem dado por nada.

       - Deus queira que não nos tivéssemos esquecido de nada de importância - disse a Zé, enrugando a testa. - Ah! Já sabia!... falta-nos um abre-latas. Podemos ir buscar um lá a casa, enquanto o David fica aqui a guardar as coisas. Só poderemos partir mais tarde por termos de esperar que a padaria abra. Levamos tão pouco pão! E já agora também queria ir ao talho para arranjar uns ossos para o Tim.

       O Júlio, a Ana e a Zé voltaram para casa com o Tim, deixando o David confortavelmente instalado em cima de todas as mantas e almofadas. O pequeno não levou muito tempo a adormecer, provando assim não ser grande guarda...

       - Que diremos nós aos Sticks se os encontrarmos? - perguntou a Ana.

       - Nada. Não há nada a dizer-lhes - respondeu-lhe a Zé. - Não gosto de mentir, e também não quero dizer-lhes a verdade. Sabem o que é que podíamos fazer? Deixávamos um horário dos comboios em cima da mesa e a Stick pensará que fugimos no comboio das oito horas. Como nos sabe todos muito aborrecidos, julgará logo que abalámos para casa dos vossos pais.

       - Boa idéia, - disse a Ana. - E, se julgarem que fomos para nossa casa, nunca pensarão que estamos na ilha e não irão procurar-nos.

       - Pois é, foi isso que pensei, - confirmou a Zé. - Mas como é que podemos saber quando o pai e a mãe voltarem?

       - Não haverá ninguém a quem possas deixar um recado? Alguém em quem confies inteiramente? - perguntou o Júlio.

       A Zé quedou-se pensativa.

       - Talvez o Alf - disse depois. - É o filho de um pescador e costumava tomar conta do Tim, quando íamos para fora. Tenho a certeza de que não me atraiçoará.

       - Então, antes de nos irmos embora, iremos ver o Alf. Agora vamos à procura do horário dos comboios e pô-lo no sítio mais à vista.

       Encontraram facilmente o horário. Sublinharam a tinta o comboio das oito horas da manhã, e puseram-no em cima da mesa da casa de jantar. Júlio foi buscar um abre-latas e, também, mais algumas caixas de fósforos, pois as duas que já tinham não durariam muito tempo.

       Já o dia nascera e a casa enchera-se de sol. Não tardaria que os Sticks descessem do quarto.      

       - A padaria já deve estar aberta. Podemos ir andando; já devem ser umas sete horas.

       Foram à padaria. Estava ainda fechada. A Zé que conhecia o padeiro, bateu à porta, o homem veio abrir, muito surpreendido ao ver os quatro ladinos.

       - Já de pé? Querem uns pãezinhos para algum piquenique, não? Quantos? Seis! Ena, mas que grande banquete!

       O Júlio pegou nos seis enormes pães e seguiram logo para o talho. A Zé tornou a bater à porta e pediu alguns ossos para o Tim, que os quis logo surripiar. Mas a Zé falou-lhe rispidamente e o cão deixou-a em paz, pois sabia bem que, de qualquer modo, havia de roer os deliciosos ossos.

       - Agora, ala! Para o barco!... E a caminho da nossa querida ilha! - exclamou Júlio jovialmente. Acordaram o David, que continuava a dormir pacificamente. E meteram as compras no barco.      

       - Vamos a isto! A aventura vai começar! - gritou o Júlio, começando a empurrar o barco para a água.

      

                          DE NOVO NA ILHA KIRRIN

       Saltaram todos para dentro do barco e o Tim sentou-se à proa no seu pouso habitual. O cão estava muito excitado. Sabia muito bem que ia para a ilha, onde geralmente se divertia imenso.

       - A caminho! - exclamou o Júlio, pegando nos remos. - Senta-te daquele lado, Ana! E tu, David, senta-te ao pé dela, para equilibrar o barco. Pronto! Ala!...

       E lá foram os cinco no frágil barco da Zé, ao sabor das ondas, e, todos, com os olhos postos na Ilha Kirrin. O mar estava calmo, mas uma ligeira brisa agradável ajudava o barco a aproar à saída da baía, onde se encontrava a ilha.

       - Que rico cheirinho tem o pão; bem se vê que foi acabado de cozer, - disse o David, faminto como sempre. - Não acham boa idéia comer umas fatias?

       - Eu também vou nisso. Estou esfomeada - disse a Zé, por sua vez. Decidiram então partir um dos pães em cinco nacos, e a fome era tanta que o pão desapareceu num rufo. Tim foi o que comeu mais depressa; e não teve nenhuma vergonha em pedir mais: mas houve pouca sorte. O Júlio, armado em comandante disse que era preciso economizar o pão para prepararem um pequeno almoço a valer, logo que chegassem à ilha.

       - Não me parece que alguém nos tenha visto partir, - disse o Júlio. – Excepto o Alf, claro. É a única pessoa que sabe que viemos para a ilha. A Zé tinha razão. Tem aspecto de ser de toda a confiança.

       Tinham ido falar com o Alf antes de voltarem para junto do David e, por sorte, encontraram o rapaz sozinho, à porta de casa. Contaram-lhe o segredo e Alf ouvira-os com atenção; prometendo não o revelar a ninguém, absolutamente a ninguém.

       - Logo que os meus pais voltarem, vai no teu barco até perto da ilha e chama-nos - dissera a Zé. - Como a conheces tão bem como eu, não há perigo de encalhares nas rochas.

       - Está bem, - respondera o rapaz muito contente por ter merecido tal confiança, se bem que um pouco triste por não poder ir com eles.      

       - Foi tudo muito bem pensado - exclamou o Júlio, examinando a ilha que já estava bastante perto. - Daqui a nada lá estamos. Toma lá os remos, Zé! Tu é que sabes o caminho.

       - Já estamos pertinho da passagem entre as rochas. É preciso muita cautela. Há tantos penhascos que nem se vêem, e só há uma maneira de lá entrar - informou a Zé, pegando nos remos.

       Todos admiraram a habilidade da pequena, enquanto ela singrava com o barco por entre as inúmeras rochas que emergiam da água. Não havia dúvidas que a Zé sabia o que estava a fazer. Sentiram-se todos perfeitamente seguros com tal piloto.

       O barco entrou por fim na pequena enseada. Era um portinho natural, rodeado de rochas por todos os lados, com uma única passagem que ia dar à pequena praia para onde os quatro garotos puxaram o barco com quantas forças tinham.

       - Ala! arriba! - comandou a Zé. - Sabem que às vezes a maré sobe muito. Temos de pôr o barco a salvo em lugar seguro.

       Quando à Zé pareceu que o barco estava bem a salvo, todos quatro se sentaram no chão, arquejantes e derreados.

       - Vamos ao nosso pequeno almoço, aqui mesmo? - sugeriu o Júlio. - Temos de criar forças para safarmos do barco todos os mantimentos e levá-los para o castelo.

       Foram buscar outro pão, fiambre, tomates e um frasco de compota. A Ana desencantou pratos e talheres do fundo de um dos sacos. Júlio abriu duas garrafas de laranjada.

         - É um pequeno almoço muito pândego, mas, com a fome que trazemos, podíamos comer tudo o que ensacámos.

         O Tim regalou-se com um osso e algumas bolachas.

         - Muita sorte tem o Tim em não ter de se haver com garfos e pratos, - disse a Ana, invejosa. - Comi imenso! - exclamou estirando-se preguiçosamente na areia.

         O cão estava cheio de sede e, como não gostava de laranjada, pôs-se a olhar tristemente para a dona, soltando um queixume suplicante. A Zé, cheia de preguiça, olhou distraídamente para ele.

       - Ó Tim! Estás com sede! E eu tão cansada que nem me posso levantar. Espera uns minutos, até me voltar coragem para te ir buscar água ao barco.

       Mas Tim não podia esperar nem um minuto mais. E dirigiu-se a uns rochedos, fora do alcance do mar. Não tardou a descobrir um poço onde ainda estava alguma água do dia em que chovera tanto. Os quatro, ao ouvirem chapinhar na poça, desataram a rir.

       - Este Tim é muito esperto! - exclamou a Ana - Como ele foi logo descobrir água... !

       Como todos tinham passado quase toda a noite em pé, agora, depois de tão opíparo pequeno almoço, estavam a cair de sono. O sol ia já alto quando acordaram. Sentaram-se e espreguiçaram-se.

       - Meu Deus! - exclamou o David, olhando para os braços muito queimados. - O sol apanhou-me em cheio. Logo à noite é que vão ser elas. Trouxemos algum óleo, Júlio?

       - Não. Nem pensámos nisso! - respondeu Júlio. Mas alegra-te, que logo à noite ainda havemos de estar todos mais queimados. O sol está quentíssimo; nem se vê no céu uma nuvem!

       - Que maravilha! - exclamou Ana. - Vocês já pensaram bem que estamos sozinhos na Ilha Kirrin, com comida aos montes e sem ninguém que nos impeça de fazer o que nos apetecer?

       - Os Sticks é que devem estar contentes, disse o David. - A partir de agora podem-se servir de toda a casa como se fosse deles, e o Edgar tem todos os nossos livros para ler. Vão ter uma santa vida!

       - E o cão sarnoso poderá passear-se pela casa toda e dormir em qualquer cama, sem que o Tim dê cabo dele, - disse a Zé. - Pois que o faça! Não me importo nada, agora que fugimos todos juntos.

       Era um regalo estar-se ali deitado de papo para o ar, a conversar, sem que ninguém os interrompesse. Mas Júlio, que nunca podia estar quieto muito tempo, levantou-se e voltou a espreguiçar-se.

       - Vamos! Há muito trabalhinho à nossa frente. Venham daí, preguiçosos!

       - Trabalho? Que trabalho?! - perguntou a Zé, surpreendida.

       - Pois claro! Temos de tirar as coisas do barco, arrumar a comida onde não se estrague, se chover, - opiniou Júlio, metodicamente. - E temos de decidir onde é que ao certo havemos de ficar, fazer as camas, etc... Há imenso que fazer estejam certos!

       - Mais daqui a um pedaço! - pediu a Ana, a quem não estava a apetecer nada levantar-se da areia quente. Mas, implacáveis, os outros puxaram-na e a pequenita teve de ajudar também à descarga dos mantimentos.

        - Vamos dar uma olhadela ao castelo! - lembrou Júlio, depois. - Teremos de levar as mantas e as almofadas para aquele quarto onde ainda há tecto e paredes.

       Começaram a trepar pelas rochas e, pouco depois, avistaram as ruínas do velho castelo, que se erguia a meio da ilha. Pararam e quedaram-se a olhar a velha fortaleza, que há tanto tempo não visitavam.

       - É maravilhoso! - exclamou David. - Que sorte a de termos uma ilha e um castelo só para nós!

       O castelo tivera, em tempos, duas airosas torres; agora, uma já quase desaparecera. A outra erguia-se no ar, em ruínas, embora ainda majestosa. Lá em cima viam-se dezenas de corvos, numa barulheira infernal que, felizmente, não havia de impedir os quatro de dormirem toda a noite, como justos.

       - Gosto destes pássaros! - disse David.

       - Olha, tantos coelhos! Tão mansos como dantes! - exclamou a Zé.

       O pátio do castelo estava cheio de coelhos que não pareciam importar-se nada com a chegada dos visitantes. Tim mostrava-se excitadíssimo. Aqueles coelhos! Apetecia-lhe tanto ir atrás deles! Nisto é que não havia meio de concordar com a dona. A Zé, percebendo o nervosismo do cão, agarrou-lhe na coleira e falou-lhe asperamente.

       - Não, Tim! Não te atrevas a correr atrás dos laparotos! São meus, todos meus...

       - Nossos! - corrigiu imediatamente a Ana, que nem por sombras queria ceder a sua parte dos coelhos, do castelo e da ilha.

       - Nossos! - concordou a prima. - Vamos dar uma olhadela ao quarto onde vamos passar as noites.

       Aproximaram-se do portão em ruínas e espreitaram.

       - Aqui está! - exclamou Júlio que acendera a lanterna e encontrara facilmente o único quarto que não estava completamente em ruínas. - Ainda tem as janelas em bom estado!

      Mas quando o rapaz apontou a lanterna para cima, a Zé soltou uma exclamação.

       - Olhem! Não podemos aqui dormir. Desde o ano passado para cá o tecto caiu.

       E assim sucedera. O tecto ruíra completamente e o quarto não oferecia a menor segurança nem conforto. Júlio ficou aborrecidíssimo.

       - Com isto é que se não contava! Temos de procurar outro pouso para dormitório.

      

                          NO VELHO BARCO NAUFRAGADO

       Os quatro pequenos ficaram aborrecidos deveras por verem os seus planos alterados. Sabiam que no velho castelo não havia outro quarto que os pudesse abrigar e, antes de chegar a noite, havia que desencantar outro abrigo para dormirem. O tempo estava lindo mas não era impossível chover, de noite, ou levantar-se uma daquelas borrascas que frequentemente assolavam a baía.

       - E as tempestades em volta da Ilha Kirrin são tão violentas! - disse Júlio, ao recordar uma ou duas que presenciara. - Lembras-te daquela que nos atirou com o barco para as rochas, Zé?

       - Então não havia de lembrar-me! - respondeu a pequena. E Ana, por sua vez, acrescentou precipitadamente: - Vamos ver o barco, vamos! Já há tanto tempo que não o vemos.

       - Primeiro há que decidir onde passar a noite, - disse Júlio com firmeza. - Não sei se deram por isso, mas já são três horas da tarde! Temos de encontrar um sítio e arrumar lá todas as coisas antes que a noite caia.

       - Mas para onde é que podemos ir? - perguntou David. - No castelo não pode ser.

       - Só se for nos subterrâneos. - sugeriu Ana, estremecendo. - Mas são tão escuros e misteriosos! Só de rastos me levarão!

       Ninguém mostrava grande vontade de dormir nos subterrâneos, a que chamavam catacumbas.

       O David procurou outra solução.

       - E se fôssemos para o barco encalhado?

       - Boa idéia! Boa idéia! Podemos lá ir ver se está habitável. Não me apetece lá muito dormir num barco naufragado, todo podre e húmido, mas se ainda está no mesmo sítio, no meio das rochas, talvez o sol o tenha secado e é possível até que lá possamos dormir, pelo menos alguns dias.

       - Então, vamos lá! - disse a Zé, mostrando o caminho aos outros e começando a andar em direcção a uma parede de rochas que se erguia a pouca distância.

       O barco, bastante grande, fora atirado para as rochas no ano anterior e ficara bem seguro entre dois enormes penedos onde o mar raramente chegava. Os dois rapazes e as ditas pequenas treparam acima de uns pedregulhos e procuraram o barco com a vista.

       - Já não está no mesmo sítio. Olhem, olhem! - exclamou Júlio, admirado. - Está ali! Naquelas rochas... mais perto do mar que dantes. Pobre barco! Parece ter apanhado uns bons safanões este Inverno. Está muito pior do que no Verão passado.

       - Não me parece que lá nos possamos asilar. - disse David. - Está em péssimo estado. O melhor é ir vê-lo mais de perto.

       - Só lá poderemos chegar quando a maré vazar, daqui a uma hora. - informou a Zé, para quem a Ilha Kirrin não tinha segredos.

       - E se fôssemos ver o velho poço? - sugeriu David.

       Todos concordaram e dirigiram-se de novo para o castelo, onde, no outro Verão, tinham descoberto a entrada de um velho poço que descia muito fundo, mais baixo que as catacumbas e o nível do próprio mar, mas que, nas suas profundezas, continha uma boa quantidade de água doce. Não tardaram os pequenos exploradores a encontrar a velha tábua que tapava a entrada do poço. Levantaram-na, muito excitados.

             - Ali estão as barras de ferro, por onde eu desci o Verão passado! - disse o David, espreitando para dentro. - Vamos agora à entrada das catacumbas!  

       Com grande surpresa encontraram a entrada tapada com pedras enormes. A Zé soltou um berro!

       - Quem teria feito isto? Nós não fomos! Esteve cá alguém!

       - Vadios que cá se acoitaram, com certeza! Lembram-se de termos visto subir uma fumarada? Aposto que eram vadios que por aqui andavam. Ou, então, curiosos.

       - Que desplante! - exclamou a Zé, indignada. - Vou fazer uma tabuleta que diga “Proibido desembarcar nesta ilha. Os transgressores sofrerão as consequências”. Não quero intrusos na nossa ilha.

       - Não nos preocupemos com essas pedras. Tenho a certeza de que nenhum de nós quer lá ir abaixo. Olhem para o pobre Tim. Tão infeliz por não poder correr atrás dos coelhos! - disse Júlio, tentando desviar a conversa, pois a Zé parecia cada vez mais furiosa.

       - Não, Tim! - disse a Zé, firmemente, ao cão que olhava com uma expressão tristíssima para os coelhos que pulavam no pátio do castelo. - Não julgues que vou mudar de opinião! Não te deixo apanhar nem um coelho na nossa ilha.

       - O pobrezinho deve pensar que estás a ser cruel com ele. - disse Ana. - Apesar de tudo, disseste que ele podia ter um quinhão da tua parte da ilha. E, por isso, deve pensar que também tem direito a uma parte dos coelhos.

       Todos riram. Tim abanou a cauda e olhou, esperançado, para a dona. Encaminharam-se por fim para o pátio e Júlio, subitamente, parou, muito apreensivo.

       - Olhem! Não há dúvida de que alguém esteve cá. Até acenderam uma fogueira, - disse o rapaz, apontando para o chão.

       Olharam e viram um monte de cinzas, certamente resíduos duma fogueira recente. A poucos metros via-se também uma ponta de cigarro espezinhada. Não havia dúvidas. A Ilha Kirrin fora visitada por intrusos.

       - Se alguém aparecer, o Tim defenderá os nossos direitos - exclamou a Zé. A Ilha Kirrin é nossa e ninguém cá pode desembarcar sem nossa autorização. Tim, não te deixo correr atrás dos coelhos, mas podes atirar-te a qualquer pessoa que por aí apareça! Compreendes?

       O Tim abanou a cauda e respondeu imediatamente. - Uf! - E olhou em volta, para ver se podia já começar a morder a torto e a direito. Mas ninguém se via nas redondezas.

       - A maré já deve estar a vazar. - lembrou o Júlio. - Vamos lá ver o barco! Talvez seja melhor a Ana aqui ficar. O caminho por entre as rochas é perigoso.

       - Não sejas parvo! Eu vou com vocês. - gritou a Ana, indignadamente. - Tão perigoso o caminho é para mim como para vocês.

       - Bem, bem!... Vamos a ver!

       As rochas em redor do navio naufragado eram batidas de tempos a tempos pelas ondas, mas o barco em si parecia bastante seguro e não seria difícil lá chegar, se as crianças esperassem por um intervalo entre as ondas.

       - Se a Ana quiser vir connosco, tem de ir sempre entre mim e o David - disse o Júlio. - Mas temos de ser prudentes, especialmente a Ana. Ouviste?

       Afinal chegaram, sem dificuldade de maior, ao velho barco e nem sequer se molharam. A Ana portou-se muito bem e os irmãos não tiveram razões de queixa nem de se arrepender de a terem levado.

       - Pronto! - exclamou o Júlio, encostando-se ao costado do navio.

       - Não há dúvida de que sofreu bastante neste último Inverno. - disse a Zé, confirmando a opinião que já tinha formado de longe. - Tem o costado cheio de buracos e já lhe falta metade do mastro grande. Como é que havemos de subir lá para cima?

       - Temos aqui uma corda, - informou o Júlio, começando a desenrolar uma corda que trazia em volta da cintura. - Vou fazer um laço para ver se consigo prender a corda àquele pau lá em cima.

       Com quanta força tinha, Júlio atirou então o laço mas não alcançou o barrote. Tentou mais duas vezes, até que desistiu. Então a Zé, impaciente, tirou-lhe a corda da mão, lançou-a, e logo a sua primeira tentativa foi coroada de êxito. A corda ficou presa ao poste, permitindo assim que os quatro subissem ao velho barco. A Zé tinha um jeitão para coisas deste género. Por vezes, ainda era mais hábil que qualquer rapaz. A Zé subiu pela corda como um macaco e não tardou a pisar a coberta do navio. O Júlio ajudou a Ana a subir e os dois rapazes agilmente a seguiram.

       - Cheira horrivelmente mal, não cheira? - perguntou a Ana. - Porque será que todos os barcos naufragados cheiram assim? Parece-me que desta vez não vou às cabinas. Lá em baixo deve cheirar ainda pior.

       Mas os outros desceram ao interior do navio, enquanto a Ana ficou à espera no convés. Meteram o nariz em todos os camarotes e decidiram logo que não só era impossível passar ali a noite, como também não podiam lá arrumar os mantimentos. O navio estava a cair de podre e por toda a parte a humidade reinava. O Júlio receava até que a madeira carcomida do chão desse de si e que algum deles desaparecesse nas entranhas do porão.

       - Voltemos para cima, - sugeriu o rapaz, sentindo-se responsável pela segurança dos outros.

       Iam subir, quando ouviram um grito de Ana.

       - Ouçam: Venham cá cima depressa! Encontrei uma coisa!

       A Zé e os dois primos apressaram-se e depressa se juntaram à Ana que, muito assustada, apontava para qualquer coisa no outro lado do convés.

       - Que é? Que é?! - perguntou a Zé. - Que se passa?

       - Olhem! Aquilo não estava ali, quando cá viemos o ano passado. Tenho a certeza! - Os outros olharam e viram uma pequena arca de prata. - Extraordinário! Extraordinário!

       - Uma arca! - exclamou Júlio, muito admirado - Não, não estava cá no Verão passado. E deve estar aqui há pouco tempo. É nova e está seca. De quem será? E o que estará aí a fazer?

      

                         A GRUTA DOS PENHASCOS

       Os quatro aproximaram-se da arca cautelosamente. Como o convés era muito escorregadio e o barco se achava inclinado para o lado da arca, todos os cuidados eram poucos. O Júlio puxou a arca para si. Quem a teria posto ali?

        - Teriam sido contrabandistas? - perguntou o David, muito importante.

       - Sim... é possível! - respondeu Júlio, pensativo e tentando desatar as correias do baú. - É um sítio ideal para contrabando. Podem trazer para aqui, de noite, as mercadorias, sem ninguém dar por isso. Depois, vem alguém de terra e leva-as consigo. É facílimo. Basta o piloto do barco dos contrabandistas conhecer bem o acesso à ilha.

       - Então achas que a arca está cheia de contrabando? - perguntou a Ana excitadamente. - De que espécie? Diamantes? Sedas? Jóias?

       - Qualquer coisa que tenha de pagar direitos de alfândega. - informou Júlio. - Estas correias estão apertadas! Não as consigo desatar.

       - Deixa-me experimentar. - pediu Ana, que tinha grande habilidade. A pequena não deixou a sua fama por mãos alheias.

       As correias caíram para o lado, mas a arca fora bem fechada à chave. Tinha duas fechaduras e nenhum dos pequenos tinha chaves para abri-las.

       - Que aborrecimento! - lamentou a Zé. Como é que havemos de abrir o baú?      

       - É impossível, - redarguiu o Júlio. - Nem sequer podemos arrombá-lo, pois quem vier buscá-lo descobre logo tudo, e não queremos que os contrabandistas saibam de nós, pois não? O que é preciso é apanhá-los com a boca na botija e prendê-los, não acham?

       - O quê?! - exclamou a Ana, toda afogueada e excitada. - Prender os contrabandistas! Ó Júlio! Achas que podemos?

       - Não me parece impossível. - respondeu o rapaz. - Ninguém sabe que cá estamos. Se, quando algum navio se aproximar da ilha, nos escondermos bem, pode ser que vejamos algum escaler vir a terra e depois basta observar tudo muito bem. Os contrabandistas devem usar esta ilha como armazém e ser-nos-á fácil descobrir quem traz e quem vem buscar as coisas. Decerto alguém de Kirrin ou dos arredores.

       - Vai ser estupendo! - exclamou o David. - Já repararam que sempre que vimos à Ilha Kirrin nos sucede qualquer coisa de extraordinário?

       - Parece-me melhor voltar para as rochas, - recomendou Júlio, prudentemente, pois verificara que a maré estava a subir e se se demorassem de mais no navio podiam muito bem achar o caminho tapado.

       Desceram todos pela corda e passado pouco tempo estavam de novo nas rochas, pisando terra firme e respirando melhor, já livres do horrível cheiro que enchia o barco. Quando iam a trepar pelas rochas o David parou e chamou a atenção dos outros.

       - Olhem para ali, para aquele penhasco! Parece mesmo a entrada de uma gruta. Se fosse, seria um sítio estupendo para guardar as coisas e, mesmo, para lá dormir, não acham?

       - Não existem grutas em Kirrin, - começou a Zé a dizer, mas não continuou. O que o David estava a mostrar parecia ser, na realidade, uma gruta. Valia a pena ir lá ver se era ou não.

       Apesar de tudo, a Zé tinha de confessar que nunca explorara bem a fundo este lado da ilha e nem sequer notara aquele buraco nas rochas. Podia muito bem ser uma gruta!

       - Vamos ver! - comandou a Zé. Os pequenos começaram a andar em direcção àqueles penhascos e, quando lá chegaram, notaram que havia, de facto, um buraco na rocha. A entrada estava tão bem escondida que só podia ser vista do ponto em que David se encontrava, quando a mostrou aos outros.

       - É uma gruta! Não há dúvida! - exclamou o David, triunfante e entrando lá dentro. - Mas que maravilha!

       Era, na verdade, uma maravilha. O solo estava coberto de uma areia fina e muito seca e a gruta era espaçosa e perfeitamente habitável. O mar nunca devia lá chegar, salvo em dias de grande tempestade.

       - Tal e qual o que nós queríamos! - exclamou a Ana. - Podemos trazer tudo para aqui e até podemos ficar de noite. E olha, Júlio, até temos uma clarabóia.

       A irmãzita apontou para cima e todos os outros viram que o tecto da gruta tinha uma abertura por onde se via o céu muito azul e límpido. Era evidente que, em qualquer ponto, na parte superior do penhasco, havia um buraco que dava para a gruta, formando aquilo a que Ana chamava uma “clarabóia”.

       - Seria muito mais fácil atirar as nossas coisas por aquele buraco, - disse o Júlio, começando logo a fazer planos.

       - Seria impossível trazer tudo pelas rochas e, como o cimo do penhasco está mais perto do castelo, até podíamos pendurar uma corda desta abertura do tecto para descermos e subirmos por ela sem ter de contornar os penedos.

       A gruta fora um grande achado. A Ana sentia-se felicíssima.

       - A nossa ilha ainda é mais emocionante do que nós pensávamos. Agora também temos uma gruta maravilhosa!

       A primeira coisa a fazer era, naturalmente, explorar o penhasco e encontrar o buraco que dava para o tecto da gruta. Os quatro e Tim subiram então pelo íngreme penhasco e depressa encontraram o buraco meio escondido entre duas rochas.

       - Isto é muito perigoso. Qualquer de nós poderia ter caído por aí abaixo, se não soubéssemos da sua existência, - disse Júlio, espreitando de cima para dentro da gruta.

       - Não é lá muito alta! - disse Ana. - Se calhar até podíamos saltar para a gruta sem nos magoarmos.

       - Não vale a pena experimentar. Partias logo uma perna, se não fossem as duas... Temos é de amarrar aqui uma corda, depois será fácil descer e subir à vontade.

       Voltaram então para o barco da Zé e começaram a transportar tudo para o penhasco. Júlio atou uma corda muito forte a uma pedra junto à entrada da “clarabóia”, fazendo vários nós em toda a extensão da corda para que os companheiros tivessem mais facilidade de se servirem dela.

       - Assim já nós podemos apoiar os pés quando descermos, - explicou o rapaz. - Agora é melhor que a Zé desça e depois nós mandamos-lhe os mantimentos. Combinado?

       A Zé desceu pela corda com relativa facilidade; mas a gruta era mais alta do que pensavam, e teria sido de facto um disparate se algum deles tivesse tentado saltar lá de cima.

       - Como é que o Tim desce? - perguntou o Júlio. Mas o Tim, que soltara um queixume angustiado ao ver a dona começar a descer pela corda, resolveu a dificuldade por si próprio.

       Saltou para o buraco e desapareceu instantaneamente! Ouviu-se uma exclamação na gruta.

       - Oh! Meu Deus, o que é isto? Tim! Magoaste-te?! - exclamou a Zé, que ia a descer pela corda.  A areia era muito macia como se fosse uma almofada de veludo e Tim não sofrera nada com o embate. Sacudiu-se e ladrou alegremente aos pulos. Estava de novo com a Zé e era isso que ele queria. Não gostava nada de ver a sua dona desaparecer por buracos misteriosos! Não, Tim não podia admitir que isso sucedesse.

       A Ana e o David ataram os mantimentos em diversas trouxas e o Júlio, depois de a Zé lhe ter dado sinal, começou a baixar os pacotes cuidadosamente, não fosse algum frasco de mel ou garrafa de laranjada partir-se de encontro a uma das paredes da gruta.

       - Aí vai o último! - indicou o Júlio, depois de um extenso período de trabalho exaustivo. - A seguir vamos nós, e, digo-te já, quero um jantar a valer, antes de fazermos as camas ou qualquer outra tarefa! Há horas que não trincamos nada e estou faminto.

       Pouco depois estavam todos sentados no agradável chão da gruta. Abriram uma lata de carne, cortaram grandes fatias de pão e fizeram uns deliciosos sanduíches. Como ainda não estivessem satisfeitos abriram, em seguida, uma lata de ananás e comeram num instante as doces e suculentas rodelas. Mas a fome era muita e não hesitaram em abrir mais duas latas de sardinhas, terminando cada um a refeição com sua mão cheia de bolachas.

       - Foi um jantarão.

       - E, para acabar, vai uma laranjada! - exclamou o David, feliz. - Assim é que devíamos comer sempre.

       - Temos de nos despachar, porque dentro em pouco faz escuro e não poderemos arranjar urze para fazer as camas.

       - Quem é que quer urze? - perguntou David. - Eu, cá por mim, não preciso! Esta deliciosa areia basta-me... com uma almofada e uma ou duas mantas. Até vou dormir melhor aqui do que em casa!

       E afinal, foi o que fizeram. Estenderam as mantas pela areia e deitaram-se, olhando uns para os outros, todos já meio a dormir e sentindo-se muito felizes.

       - Boa-noite! - bocejou a Zé. - Já estou quase a dormir.

       - Boa-noi... te, a to... dos! B... o... a-noi...te! - a rapariga abriu a boca mais uma vez e fechou os olhos.

            

                         UM DIA NA ILHA

       AS crianças, ao acordarem no dia seguinte, mal sabiam onde estavam. O sol entrava-lhes a jorros pelas duas espécies de fendas da gruta e banhava-lhes copiosamente as caritas adormecidas. A Zé acordou antes dos outros e olhou em volta, muito espantada.

       - Mas eu não estou em minha casa...! Estou na Ilha Kirrin, claro... - pensou ela subitamente. Sentou-se na areia e abanou a Ana, estremunhada. - Afinal teria sido melhor termos ido buscar urze para as nossas camas. A areia é macia de começo mas depois torna-se muito dura. Sinto o corpo todo dorido.

       Os outros concordaram e decidiram fazer camas mais confortáveis.

       - É divertido viver numa gruta, - disse o David. - Temos imensa sorte em sermos donos de uma ilha com um castelo, grutas, etc...

       - Sinto-me todo sujo, - declarou Júlio, por sua vez. - Vamos tomar banho antes do pequeno almoço. Valeu? E, depois, quero fiambre, pão, marmelada e bolachas!

       - Como vamos esfriar muito depois do banho é melhor acender uma fogueira para nos aquecermos enquanto comemos. Até podíamos fazer cacau. Não é boa idéia?

       - Concordo absolutamente. Há para aí uma lata de leite em pó e o cacau está naquele canto. O que não sei é onde está o abre-latas.

       Finalmente, depois de procurarem por toda a gruta, Júlio encontrou o abre-latas numa das algibeiras dos calções. Só então é que todos saíram para um banho.

       - Olhem, que estupenda piscina no meio daquelas rochas! Ainda não a tínhamos visto! - exclamou o Júlio, apontando-a. - Até parece que foi feita para nós!

       - A piscina da Ilha Kirrin! - disse o David alegremente. - Propriedade privada! E, olhem! É de água corrente. Não podia ser melhor.

       Era na verdade uma deliciosa piscina natural, incrustada nas rochas, de água muito límpida e não muito fria. David dissera que era de água corrente, porque as águas do mar, embatendo constantemente nas rochas, saltavam por cima delas, e, assim, renovavam a água da piscina. Os banhistas fartaram-se de nadar e divertiram-se imenso. A Zé saltou das rochas em mergulho uma ou duas vezes e os outros aplaudiram-na entusiasmados.

       - A Zé faz na água o que quer. - disse a Ana, admirando a prima. - É como um peixe. Quem me dera poder mergulhar como ela. Mas nunca serei capaz...

       O Júlio pusera-se de pé sobre a rocha mais alta que rodeava a piscina.

       - Daqui vê-se muito bem o navio naufragado! - estava a tremer de frio e não tinha nada onde se secar. - Não trouxemos nenhumas toalhas! - lamentou-se então, tiritando e esfregando-se com força.

       - Podemos servir-nos das mantas. Espera aí que vou buscar a mais fina. É verdade, lembras-te daquela arca que vimos ontem no barco? Estranho, não achas? - perguntou o David.

       - Sim, é muito esquisito, - respondeu-lhe o Júlio. - Não se percebe como é que lá foi parar. Temos de ficar de atalaia para ver se alguém a vai buscar.

       - Suponho que os contrabandistas, se é que se trata de contrabando, - falou a Zé, esfregando-se vigorosamente - virão num escaler deste lado da ilha, e irão directamente ao navio. Teremos de vigiar o mar com muita atenção, para ver se enxergamos algum barco com este rumo.

       - E é preciso o maior cuidado, - recomendou o David. - É preciso que não nos vejam. Se nos virem, vão-se logo embora e então nunca mais os agarramos. Eu proponho que um de nós fique sempre de vigia. Assim, não nos apanharão desprevenidos.

       - Boa idéia! - concordou o Júlio. - Agora vamos para a gruta para nos aquecermos e comer. Era capaz de comer agora uma galinha inteira e talvez também um pato, para não falar num peru...

       Os outros riram-se. Estavam todos famintos. Desataram a correr para a gruta, já prevenidos com galhos e alguma vegetação para acenderem uma fogueira; e, pouco depois, estavam de novo à entrada da gruta que continuava a ser inundada de sol.

       - Vou acender a fogueira, - avisou o Júlio. - Vocês podem ir abrindo as latas e cortando o fiambre e o pão. Tu ficas encarregada do cacau, Zé! E vê se fazes bastante... Se não chegar, já sabes... tu é que sofres!

       - Sinto-me tão feliz! - e, na verdade, ao dizê-lo, a pequena Ana era a perfeita imagem da felicidade. - É tão maravilhoso! Sinto-me tão bem e gosto tanto de estar na nossa ilha com vocês!

       Sentiam-se todos muito felizes. O dia estava lindo e o céu e o mar estavam azuis e límpidos. Sentaram-se a comer e a beber à entrada da gruta, olhando o mar que suavemente batia nas rochas em redor do velho navio naufragado. A Ana, que nunca podia estar calada, quebrou o silêncio.

       - Vamos arrumar tudo muito bem dentro da gruta, sim? - propôs ela, por ser a mais arrumada de todos e nunca perder uma oportunidade de brincar às “casas”, quando o podia fazer.

       - A gruta é agora a nossa casa, o nosso lar. Temos de fazer quatro camas a valer e arrumar as latas e tudo o resto naquele parapeito da rocha. Até parece que foi feito para nós.

       - Deixemos a Ana a brincar às casas e vamos buscar urze para as camas, - sugeriu a Zé, que queria desentorpecer as pernas. - Ah! Já me esquecia: um de nós tem de ficar de vigia ao navio.

       - Eu não me importo de ser o primeiro, - disse o Júlio imediatamente. - O melhor sítio é no penhasco por cima da gruta. Se me esconder por detrás da rocha onde está presa a corda ninguém me poderá ver do mar. Vocês vão indo à urze. Eu fico de atalaia por duas horas e depois um de vocês vem render-me.

      O David e a Zé foram apanhar urze. Júlio trepou pelas rochas e foi sentar-se junto do penhasco de onde podia ver-se o mar sem se ser visto. Além de um grande paquete que ia passar, muito longe, nada se via no mar. O rapaz deitou-se ao sol, deliciando-se com o calorzinho que lhe entrava por todos os poros. Esta história da vigia era muito agradável! A Zé e o David não tardaram a voltar com braçadas da macia e cheirosa urze que lhes ia servir de colchões.

       - Deixem a urze à entrada da gruta, - recomendou a Ana, que estivera a arrumar o interior da “casa” e que não queria que lha sujassem. - Eu cá faço as camas, quando o resto estiver pronto.

       - Está bem, - concordou a Zé. - Nós vamos buscar mais. Que divertido isto é, não acham?

       - O Júlio está lá em cima. Disse que nos chamava logo que visse qualquer coisa de anormal. Quem dera que sim!

       - Seria colossal! - assentiu o David, sempre pronto para aventuras, por mais perigosas que fossem.

       A Ana teve uma manhã deliciosa. Arrumou tudo muito bem na ”prateleira” e, em seguida, foi lavar os pratos e os talheres servidos ao jantar e pequeno almoço.

       - Desculpa-me se te estraguei a água, querido Tim, - disse ela depois de lavar as coisas numa poça de água doce perto da gruta, onde Tim costumava ir beber. - Mas és um bicho tão inteligente que depressa descobres outra poça. Não é verdade, Tim?

       Lavados os talheres foi arrumá-los ao lado das outras coisas e a prateleira ficou, na verdade, com um aspecto esplêndido. De um lado estavam todas as latas muito bem alinhadas e, do outro, pratos, copos, chávenas, talheres, etc... Era uma perfeita despensa. A Ana enrolou, em seguida, o pão todo numa toalha de mesa e colocou-o ao fundo da gruta no sítio mais fresco. As latas de água e as garrafas de laranjada foram fazer companhia ao pão e a pequena deu por terminada a primeira parte da sua tarefa. Foi buscar a urze para fazer as camas e decidiu que era melhor fazer duas camas grandes em vez de quatro pequenas.

       “A Zé, eu e o Tim dormimos deste lado, - pensou ela, começando a espalhar a urze pelo chão. - O Júlio e o David poderão ficar do outro lado. Preciso de muito mais urze.”     

       Mas não foi preciso pedir, porque a Zé e o David voltavam carregados de urze; e a Ana fez as camas, cobrindo-as com as mantas trazidas de casa. O aspecto não podia ser melhor.

       - Que pena terem esquecido os pijamas, - disse a Ana. - Ficavam mesmo a calhar por baixo das almofadas. Pronto! Já acabei. Temos uma linda casa, não acham?

      O Júlio desceu pela corda e, ao tocar na areia, olhou à sua volta, maravilhado.

       - Capite! A gruta está estupenda, Ana! Tudo tão bem arrumado e limpo que faz gosto! Só a Ana era capaz disto.

       - Está bonito, não está, - disse o Júlio? - Estou encantado... Palavra! Agora é a vez do David ir lá para cima. Onde estão as bolachas? Estou já outra vez cheio de fome. Podíamos ir todos lá para cima e sentarmo-nos um bocado a comer.

       Ana sabia exactamente onde estavam as bolachas. Foi buscar a lata e juntou-se aos outros que se preparavam para subir pelas rochas para treparem ao penhasco. Júlio içou-se pela corda num rufo e chegou lá primeiro que todos.

       O dia passou-se deliciosamente, sem incidentes, salvo quando Júlio se zangou com a Ana, por ela ter adormecido quando lhe calhou a vez de vigiar. A pequena ficou tão envergonhada que até chorou.

       - És muito nova para ficares de atalaia é o que é, - disse o Júlio. - A partir de agora ficamos só nós os três e o Tim.

       - Oh, não! Prometo que não torno a adormecer. Prometo. Desta vez foi só porque o sol estava muito quente, - desculpou-se Ana a soluçar.

       - Não chores, não vale a pena!... Pronto, pronto! Vá lá, damos-te outra oportunidade. Mas, se tornas a adormecer, já sabes!... é prova de que não podes fazer o mesmo do que nós.

       Os quatro estavam desapontados. Todo o dia de atalaia e nada! Nenhum barco se aproximava da ilha! E tanto desejavam saber quem pusera a arca no navio naufragado!

       - Meninos, são horas de irem para a cama! - avisou o Júlio quando o sol desapareceu no horizonte. - Devem ser umas nove horas. Vamos! Está-me mesmo a apetecer dormir numa daquelas fofas camas que a Ana nos arranjou tão bem!

      

                          INCIDENTE DURANTE A NOITE

       - E se acendêssemos uma fogueira? - sugeriu A Ana.

       - Faz muito calor, - redarguiu O Júlio. - Enchia-nos tudo de fumo e sufocávamos.      

       - Se a gruta tivesse chaminé era outra louça...  

       - Então não há chaminé? - perguntou A Ana, apontando para o buraco no tecto. - Se acendermos a fogueira, mesmo debaixo do buraco, faz o efeito duma chaminé, não é assim?

       - É possível, mas não me parece! - disse o David. - Como há vento, o fumo encheria A caverna num instante e depois, para dormir não seria nada bom.

       - E se a acendêssemos à entrada da gruta? - disse A Ana, pensando que uma verdadeira casa devia ter uma lareira em qualquer sítio. - Nem que fosse para afugentar a bicharada! - Era assim que se fazia nos velhos tempos, não era? Ou pelo menos, é o que diz o meu livro de história.

       - Aprendeste bem a lição. Mas que bichos queres afugentar? - perguntou O Júlio. - Leões? Tigres? Ou talvez elefantes?

       Todos riram a bandeiras despregadas.

       - Não, não sou assim tão parva, - retorquiu a Ana, abespinhada. - Sei muito bem que por aqui não há bichos desses. Mas pensei que seria agradável adormecer a olhar para a lenha a crepitar nas chamas da fogueira.

       - Se calhar a Ana tem medo que os coelhos lhe venham morder os dedos dos pés... - disse o brincalhão do David.

       - Uf! - exclamou Tim ao ouvir falar em coelhos.      

       - Não me parece ajuizado acender uma fogueira. Podia ser vista do mar e em vez de afugentar as feras ou os coelhos afugentava os contrabandistas, - explicou o Júlio.

       - Não, não me parece que isso pudesse acontecer, - intrometeu-se a Zé. - A entrada da gruta está tão bem escondida que tenho a certeza que a fogueira não podia ser vista do mar. Aquelas rochas mesmo em frente são tão altas que devem tapar completamente a gruta. Eu, por mim, acho divertido acender uma fogueira.

       - Esplêndido, Zé! Já somos duas a querer! - A Ana estava deliciada por ter uma aliada.      

       - Vou acender a fogueira, - avisou o Júlio.

       - Mas é impossível agora ir apanhar lenha. Faz já muito escuro - resmungou o David, que se sentia muito confortável.

       - Não é preciso, - declarou a Ana com ar de dona de casa.

       - Apanhei muita esta tarde e arrumei-a ao fundo da caverna para o caso de querermos acender uma fogueira.

       - Esta garota lembra-se de tudo! - exclamou o Júlio, com admiração pelas suas qualidades de dona de casa. - Às vezes adormece quando está de vigia, o que não a impede de estar suficientemente acordada para transformar uma gruta numa verdadeira casa. Está bem, Ana! Vamos acender-te a fogueira.

       Júlio e David foram buscar a lenha, que se resumia a galhos e ramagens secas, ao fundo da gruta. E não tardou a acender-se uma bela fogueira, com grande delícia de Ana que levara a sua avante. Os dois rapazes e as duas raparigas voltaram às camas e deitaram-se com as chamas vermelhas a saltarem e iluminarem estranhamente as paredes da gruta.

       - Que encanto! - disse a Ana, já quase a dormir. - É um verdadeiro encanto.

       - Boa-noite! - articulou o David a custo. - A fogueira está a apagar-se, mas estou já meio a dormir e não me apetece nada ir buscar mais lenha. Tenho a certeza de que todos os leões, tigres e elefantes já foram afugentados.

       - Estúpido! - exclamou A Ana. - Escusas de te meter comigo! Divertiste-te tanto com a fogueira como eu! Boa-noite!

       Adormeceram todos e sonharam pacificamente com as coisas mais inocentes. De súbito O Júlio soergueu-se em sobressalto. Qualquer ruído estranho o acordou. E ficou sem se mover, à escuta. Mas Tim começou a rosnar assustadoramente sem parar.

       - R-r-r-r-r-r-r.

       A Zé acordou também e fez uma festa ao Tim.

       - Que é, Tim? Que é?

       - Ouviste qualquer coisa, Zé? - perguntou o Júlio em voz baixa. - Eu também ouvi, mas não sei o que foi.

       A Zé sentou-se cautelosamente. Tim continuava a rosnar.

       - Cala-te! - ordenou a rapariga.

       O cão calou-se e ficou a olhar para a entrada da gruta, de orelhas fitas, e pêlo eriçado.

       - São talvez os contrabandistas, - sussurrou a Zé, sentindo um arrepio a correr-lhe a espinha.

       Contrabandistas de dia era uma coisa, mas de noite era outra história. A Zé não tinha vontade nenhuma de se encontrar com contrabandistas àquela hora da noite.

       - Vou lá fora ver se distingo alguma coisa, - murmurou o Júlio, levantando-se com todo o cuidado para não acordar os irmãos. - Subirei pela corda. Lá de cima vê-se muito melhor.

       - Leva a minha lanterna! - ofereceu a Zé. Mas o Júlio não quis.

       - Não, obrigado. Conheço bem o caminho.

       Subiu rapidamente pela corda e, passados momentos, encontrava-se no cimo do penhasco, perscrutando o mar. A noite estava escuríssima e o rapaz nem sequer conseguia ver o navio naufragado.

       - Que pena não haver luar! - pensou. - Assim não posso ver nada.

       Ficou alguns momentos a observar o mar e, depois, ouviu a Zé que lhe falava lá de baixo.

       - Júlio! Vês alguma coisa? Queres que eu lá vá também?

       - Não vejo nada, - respondeu o Júlio. - O Tim ainda está a rosnar?

       - Está. Deve ter sentido qualquer coisa.

       Nesse momento Júlio viu uma luz a brilhar para lá das rochas, mesmo no sítio onde devia estar o navio naufragado. Sim, devia ser alguém no navio.

       - Ó Zé! Vem cá acima! Depressa! - gritou-lhe o primo muito excitado.

       A Zé subiu num instante, deixando o cão a rosnar lá em baixo.

       - Vês o navio? Olha! Ali! Uma luz, - indicou-lhe Júlio. - Não se pode ver o navio, mas aquilo é com certeza uma lanterna.

       - Não há dúvida. É uma lanterna - exclamou a Zé muito nervosa. - Serão os contrabandistas A trazerem mais coisas?

       - Ou então alguém para levar a arca. Só amanhã é que podemos saber. Olha! Quem quer que seja está a mover-se; a luz da lanterna está a baixar. Devem ter descido para o escaler encostado ao navio. E agora a luz apagou-se.

       As duas crianças esforçaram-se por ouvir o barulho dos remos na água, mas como estavam muito longe, não o conseguiram. Não havia mais para ver ou ouvir. Por isso, regressaram ambos ao conforto da gruta, fazendo o possível por não acordar os outros. O Tim, muito contente ao ver a dona e o Júlio, saltava , lambia-lhes as mãos. Já não rosnava.

       - És um cão fiel, não és? - dizia-lhe o Júlio, carinhosamente. - Ouves sempre tudo. Nada te escapa.

       O Tim voltou a deitar-se aos pés da Zé. Era evidente que o que o excitara fora-se de vez. Devia ter sido a presença de estranhos no velho navio naufragado. Logo de manhãzinha iriam ao navio ver se a arca desaparecera ou se aparecera mais qualquer coisa. Até lá o que havia a fazer era dormir. E assim fizeram ambos.

       Na manhã seguinte, David e Ana ficaram indignados ao ouvirem contar o que se passara.      

       - Podiam ter-nos acordado, - lamentou-se o David.

       - Não foi preciso. No fundo nada se passou de anormal. Apenas vimos a luz de uma lanterna e nada mais.

       Quando a maré baixou encaminharam-se todos quatro para o navio. Treparam pela mesma corda e começaram no convés a esquadrinhar tudo em redor. O Júlio avançou para o sÍtio em que a arca devia estar.

       - Vês alguma coisa? - perguntou a Zé, seguindo atrás dele.

       - Olhem, uma caixa de papelão! - exclamou o rapaz, abrindo a caixa facilmente. - Latas de conserva! E copos e pratos, tal como se alguém também viesse viver para a ilha! Que esquisito! A arca ainda cá está. Olhem! Olhem! Velas, fósforos! E mantas! O que quererá isto dizer?

       Era, na verdade, muito estranho. o Júlio ficou pensativo.

       - Parece que alguém decidiu instalar-se na ilha. Provavelmente algum contrabandista que tem de ficar à espera do contrabando para o levar para terra. Agora é que temos de estar a sério de vigia!

       Desceram do navio, mais excitados. Tinham um esplêndido esconderijo e ninguém os poderia descobrir. E, desse esconderijo, poderiam observar tudo à vontade, o navio e quem lá pusesse os pés.

       - E o nosso barco? - perguntou a Zé, subitamente. - Se o virem, sabem logo que está cá mais alguém.

       - É preciso escondê-lo, - exclamou o David, alarmado.

      - Mas como? - perguntou a Ana, não lhe parecendo possível esconder um barco tão grande como o da Zé.

       - Não sei, - disse o Júlio com ar preocupado. - Temos de ir até lá e descobrirmos algum esconderijo.

       Os quatro garotos e o cão dirigiram-se então ao portinho onde tinham desembarcado e deixado o barco, que ficara fora do alcance das ondas.

       - Acham que podíamos puxá-lo para lá daquela grande rocha? Não ficava lá muito bem escondido, mas só quem viesse daquele lado é que o poderia ver.

       Os outros pensavam que a idéia da Zé era razoável e, como não havia outra solução, lá levaram o barco, a muito custo, para o outro lado da rocha.

       - Pronto! - exclamou a Zé, mal podendo ter-se de pé, tal o cansaço. - É o melhor que podemos fazer.

       - Agora do que estamos precisados é de um bom lanche. Já passa da hora do chá e durante todo este tempo ninguém ficou de vigia no penhasco. Toca a andar para a gruta.

       - Desde que de lá saímos não se deve ter passado nada. Ia apostar que os contrabandistas só vêm de noite, - disse o David, dando uma última olhadela ao sÍtio onde o barco ficara escondido.

       - Tens razão. Doravante também ficaremos de vigia durante a noite. Fazemos uma cama em cima da gruta e todas as duas horas revezamo-nos, - sugeriu o Júlio.

       - O Tim também podia dormir lá em cima porque, se um de nós adormecesse, logo que ouvisse alguma coisa rosnava e acordava-nos, - disse a Ana.

       - Queres dizer, se tu adormecesses... - gracejou O David. - Vamos, estou cheio de fome!

       E foi justamente nesse instante que o Tim começou a rosnar outra vez!

      

                          QUEM É QUE ESTARÁ NA ILHA?

       - Calado! - ordenou Júlio. - Escondam-se atrás daqueles arbustos! Depressa!

       Iam nessa altura a caminho do castelo e, felizmente, quando o cão começou a rosnar estavam a dois passos de uns arbustos.

       - Cala-te, Tim, - ordenou a Zé ao ouvido do cão. O bicho obedeceu de mau grado e pôs-se também à escuta, muito atento e a tremer de nervosismo.

       O Júlio espreitou por entre os ramos e viu três vultos no pátio do castelo. Tentou ver-lhes as caras; mas estavam muito longe e, além disso, desapareceram-lhe logo da vista.

     - Parece-me que tiraram as pedras que tapavam a entrada dos subterrâneos e desceram lá abaixo, - informou Júlio, muito baixinho. - Fiquem aqui! Eu vou ver se me aproximo mais. Ninguém me verá.

       O Júlio, cautelosamente, saiu do esconderijo e rastejou até perto do castelo, escondendo-se por entre a vegetação rasteira que rodeava o fosso. Passados minutos regressou para junto dos outros a confirmar o que já dissera     

       - Sim, desceram às catacumbas. Vocês acham que são os contrabandistas? Se calhar estão a guardar as coisas lá em baixo. Seria o sítio mais indicado, claro.

       - Voltemos para a gruta enquanto eles lá estão, - disse a Zé com ar mais preocupado.

       - Tenho tanto medo que o Tim se ponha a ladrar... Então é que ficávamos lindos! O pobrezinho já não pode aguentar mais. Daqui a pouco põe-se para aí a fazer uma barulheira que ninguém o poderá fazer calar.

       - Vamos embora - disse o Júlio. - Mas temos de contornar o castelo e ir pelas rochas. Quando chegarmos à gruta, eu vou pôr-me de vigia no alto do penhasco para ver o que se passa. Os contrabandistas devem ter vindo do barco, do navio naufragado ou então do mar. O que não sei é como atravessaram a passagem; só a Zé a conhece bem...

       Chegaram, por fim, à gruta e, enquanto os outros se sentavam a descansar, Júlio subiu agilmente pela corda e colocou-se no seu posto por trás da rocha. E estava o rapaz muito atento a observar o navio, quando ouviu soltar um berro.

       O Tim desaparecera! O cão fugira da gruta assim que apanhou os pequenos distraídos, de costas. Quando a Zé o chamou, não havia nem sinal dele.

       - Tim! - chamava a rapariga ansiosamente. - Tim! Onde estás tu?

       Mas não havia resposta! O Tim fugira. A única esperança era que os contrabandistas o não vissem. Era a primeira vez que o cão desobedecera à dona. Devia ter uma razão muito forte para tal! A fuga de Tim era fácil de compreender. Sentira no ar o cheiro de outro cão e saíra da gruta a correr, disposto a saltar-lhe às orelhas e à cauda.

       - Crr-r-r-r-r - O Tim não tolerava a presença de outros cães na sua ilha!

       O Júlio estudou atentamente o horizonte. Nada se via de anormal no navio naufragado, nem havia nenhum barco no mar. Provavelmente o barco que trouxera para a ilha os intrusos estava escondido entre os rochedos. O Júlio olhou então para o castelo e, nesse momento, deparou-se-lhe uma cena extraordinária.

       O que o rapaz viu, não muito longe, foi um cão a cheirar qualquer coisa e a rastejar, de pêlo todo eriçado; viu também Tim que se ia aproximando do outro cão sem ele dar por isso. Mas, quando Tim o ia apanhar de surpresa, o outro súbitamente voltou-se e deu de focinho com o Tim, que, sem hesitar, se atirou a ele, ladrando e obrigando-o a recuar, aterrado!

       - Diabo! Isto vai chamar a atenção dos contrabandistas! Quando ouvirem o Tim, ficam logo sabendo que há mais gente na ilha, - pensou o Júlio, contrariadissimo.

       E, de facto assim foi. Passados instantes, apareceram três vultos a correr, para saber da razão da barulheira que atroava toda a ilha. O Júlio ficou estarrecido a olhar os três vultos. Os intrusos não eram nada mais nada menos do que o Sr. Stick, a Sra. Stick e o Menino Edgar!

       - Isto é que é azar! - exclamou o Júlio, descendo apressadamente pela corda para a gruta. - Vieram à nossa procura. Não sei como descobriram que aqui estávamos. Mas não nos Hão-de encontrar! Que pena o Tim ter-se atirado ao Sarnoso.

       O Júlio, mal pôs os pés na gruta, ouviu um estridente assobio. Era a Zé, ao perceber o Tim andar à bulha com outro cão, a assobiar do seu modo especial a que ele obedecia sempre. O Tim deixou-o e largou a correr para a gruta, no momento em que os três Sticks chegavam, esbaforidos, ao local da bulha.

       Edgar, ao ver o Sarnoso todo coberto de sangue, foi atrás do Tim; mas este galgou velozmente as rochas e atirou-se pelo buraco da gruta, indo cair quase em cima da dona.

       - Cala-te, cala-te! - gritou a pequena ao Tim, ainda todo excitado. - Cala-te que nos descobrem o esconderijo!

       Edgar, estafado, arquejante, chegou às rochas e ficou muito espantado ao ver como o cão desaparecera. O casal Stick veio ter com o rapaz.

       - Onde é que se sumiu esse cão? - gritou a Sra.Stick. - Que aspecto tinha?

       - Parecia-se imenso como aquele maldito cão dos meninos, - disse Edgar.

       Os quatro pequenos, no fundo da gruta, estavam a ouvir nitidamente tudo e com medo de serem descobertos não ousavam dizer palavra.

       - Não pode ser ele! - berrou a Sra.Stick. - Os meninos foram para a cidade, para casa dos tios da Menina Zé. Tenho a certeza! Deve ser cão vadio que para aí anda perdido.

       - E para onde se teria ele escapulido? - perguntou o Sr. Stick, muito irritado.

       - Desapareceu de repente, - disse Edgar, ainda espantado.

       - Estás sempre a inventar palermices! - exclamou o Sr. Stick desdenhosamente. - Desapareceu de repente! Não estiveste foi para ir atrás dele. Se vir esse maldito cão, dou-lhe um tiro! Ia matando quase o nosso cachorro...

       - Está, talvez, para aí escondido nalgum buraco, - sugeriu a Sra.Stick. - Vamos procurá-lo.

       No seu esconderijo, os pequenos continuavam sem se mover; e a Zé, por precaução, agarrou a coleira do Tim. Os Sticks estavam agora tão perto da gruta que Júlio chegou a recear que algum deles lá caísse pelo buraco.

       - Se o cão era dos rapazes, então esses malcriados devem ter fugido para a ilha, - disse a Sra.Stick sentenciosa. - E isso estragava-nos todos os planos. Não descanso enquanto o não souber!

       - É fácil, - respondeu o Sr. Stick. - Escusas de te esfalfar. Se cá estiverem, havemos forçosamente de descobrir o barco deles. É impossível nesta pequena ilha não encontrar quatro rapazes, um cão e um barco... se cá estiverem. Edgar, vai tu por esse lado. E tu, Rosa, vai procurar do outro lado do castelo. Pode ser que estejam alagados nas ruínas. Eu vou por aqui!

       Os pequenos encolheram-se todos a um canto da gruta, a olharem uns para os outros, inquietos. Viam-se metidos num grande sarilho! O Tim, ansioso por ir ter outra vez com aquele cão vadio, começou a rosnar baixinho. Gostara imenso da trincadela que lhe dera na orelha! Edgar ia cheio de medo de descobrir os quatro pequenos ou de se ver outra vez frente a frente com o Tim. Por essa razão, o rapaz reduziu ao mínimo a sua busca.

       - Por aqui não vejo nada! - gritou ele à mãe, que andava também em vão a procurar por trás de cada pedra das ruínas.

       - Não podia ter sido o cão deles! - disse, por fim, o Sr. Stick. - Devia ser cão vadio que ficou abandonado na ilha.

       Os pequenos, passada uma hora, quando pensaram que os Sticks já haviam abandonado a busca, respiraram fundo. Ana fez sanduíches e Júlio abriu três garrafas de laranjada e todos, com imenso apetite, comeram e beberam falando apenas por murmúrios.

       - Afinal de contas os Sticks não vieram procurar-nos - disse Júlio. - Julgavam que tínhamos ido para casa dos pais com a Zé e o Tim.

       - Então o que teriam cá vindo fazer? - perguntou a Zé, já furiosa. - A ilha é nossa! Não, não têm qualquer direito a cá vir. Vou é correr com eles! O Tim se encarregará de os pôr a mexer!

       - Não, Zé! - disse Júlio. - Sê razoável! Não queres que eles se vão e telefonem logo aos teus pais, pois não? O tio Alberto era capaz de perder a cabeça e de vir buscar-nos. E, além disso, pensei noutra coisa...      

       - O quê? - perguntaram os outros, ao verem os olhos do Júlio a brilharem estranhamente.

       - Bem!... não acham que é possível que os Sticks estejam feitos com os outros contrabandistas? É muito provável que sejam eles que vêm cá buscar as coisas ou escondê-las para virem buscá-las mais tarde. O Stick é marinheiro, não é? Deve pois saber tudo o que se refere a contrabando. Ia apostar que trabalha para os contrabandistas.

       - Tens razão! - exclamou a Zé. - O melhor então é esperarmos que eles se vão da ilha e depois irmos ver se esconderam alguma coisa nas catacumbas. Temos de descobrir o que se passa e impedi-los de continuar esta patifaria! Vai ser imensamente divertido, não acham?

      

                          OS STIKS APANHARAM UM SUSTO

       Mas os Sticks não saíram da ilha! Nem pareciam dispostos a fazê-lo. Os quatro pequenos de vez em quando espreitavam pela “clarabóia” da gruta e viam sempre algum deles a passear entre as rochas. Começou a escurecer, e nada! A família Stick não se decidia a ir-se embora. Quando era já quase noite, o Júlio deu uma corrida até à praia e descobriu o pequeno escaler em que os Sticks tinham alcançado a ilha.

       - Parecem dispostos a ficar cá toda a noite, - disse o Júlio, aborrecido. - Vão-nos estragar a estadia. Viemos para a ilha para nos vermos livres deles e estamos outra vez a contas com tal gente! Já é azar!

       - Vamos pregar-lhes um susto! - sugeriu a Zé.      

       - Que susto? - perguntou o David, muito interessado. O rapazito gostava sempre das idéias da Zé, por mais malucas que fossem.

       - Ouçam!... Os Sticks devem ter-se encafuado nas catacumbas, não lhes parece? Nas ruínas do castelo não há nenhum sítio abrigado. No barco naufragado não estão, pois temos estado quase sempre de vigia. Têm forçosamente de estar nas catacumbas!

       - E então? Qual é a tua idéia - perguntou o David.

       - Podíamos lá ir abaixo gritar e fazer uma barulheira infernal que ecoasse por todas as catacumbas - sugeriu a Zé com o ar mais traquina do mundo. - Já sabem que lá em baixo os ecos são todos de aterrar. Lembram-se de quando lá estivemos? Bastava uma ou duas palavras para ouvirmos o eco repeti-las umas cinquenta vezes.

       - Sim, sim! Estou a recordar-me muito bem, - exclamou a Ana. - E até o Tim se assustou quando ladrou e supôs que havia mil cães escondidos lá em baixo. Assustou-se mesmo muito!

       - É uma idéia estupenda! - exclamou Júlio. - Os Sticks bem merecem um susto, por terem vindo à nossa ilha sem licença. Se os assustássemos a valer, talvez se fossem embora. Vamos a isso!

       - E o Tim? - perguntou a Ana. - Não seria melhor deixá-lo aqui?

       - Não. Levamo-lo para ficar de guarda à entrada das catacumbas, - respondeu a Zé. - Assim, no caso de aparecer algum dos contrabandistas, avisa-nos logo.

       - Pronto! Está decidido, vamos! - comandou o Júlio, entusiasmado. - É uma partida estupenda. Está escuro bastante mas tenho aqui a lanterna, e logo que tenhamos a certeza que os Sticks estão lá em baixo, podemos começar com a nossa barulheira!

       Os Sticks não se viam já em nenhum sítio e nem sequer se notava qualquer luz ou se ouvia ruído de vozes. Não havia dúvida de que se deviam ter metido nas catacumbas, tanto mais que as pedras que tapavam a entrada tinham sido afastadas.

       - Ouve bem, Tim! Tu ficas aqui muito quieto e calado, - sussurrou a Zé. - Ladra só se aparecer alguém, compreendes? Nós vamos descer por este buraco.

       - Está-me a apetecer ficar aqui com o Tim, - disse a Ana subitamente. A escuridão da entrada das catacumbas não era nada convidativa. - Sabem... é porque o Tim é capaz de ter medo aqui sozinho. Assim ficava eu a fazer-lhe companhia.

       Os outros riram-se. Sabiam muito bem que quem estava com medo era ela. O Júlio pegou-lhe na mão.

       - Então, está bem! Fica com o Tim!

       O Júlio, a Zé e o David começaram a descer pelas escadas que levavam às velhas e profundas catacumbas da Ilha Kirrin. Mal pisaram o chão rochoso dos subterrâneos ouviram vozes e ao fundo do estreito corredor que se estendia à sua frente viram uma luz.      

       - Parece que estão naquele quarto em que descobrimos o tesouro no Verão passado, - murmurou a Zé. - Devem estar a comer. Podíamos começar já a fazer barulho, não acham?

       - Eu faço de vaca, - sussurrou o David.

       - E eu de carneiro, - disse o Júlio. - A Zé pode fazer de cavalo. Combinado? Estão prontos? Então, vamos a isto!

       Os dois pequenos e a prima começaram a imitar respectivamente uma vaca, um carneiro e um cavalo. Os estranhos ruídos voaram logo, ampliados e multiplicados pelos ecos de todos os corredores, passagens, recantos e celas das catacumbas de tal maneira que, pouco depois, parecia que andavam por ali à solta mil vacas, mil cavalos e mil carneiros...

       Surpreendidos e aterrados, os Sticks ouviram a enorme barulheira que se levantara nas silenciosas catacumbas, onde julgavam ter encontrado um sossegado e calmo refúgio.

       - Que é isto, mãe? - perguntou Edgar, quase a chorar. O Sarnoso encolheu-se a um canto da caverna, aterrorizado.

       - Parecem vacas. E um rabanho de ovelhas e cavalos, - disse o velho Stick, muito admirado. - São, não há dúvida! Mas como é que vieram aqui parar?

       - Que disparate! - exclamou a Sra. Stick, recompondo-se um pouco. - Cavalos e vacas nestas catacumbas? Estás maluco!

       - Mas ouve, ouve! - insistiu o Sr. Stick. - Não ouves? Se não são vacas e ovelhas, que são então? Que se passa? Eu bem dizia que não devíamos ter vindo cá para baixo!

         A fúria dos ruídos aumentava à medida que os três mafarricos repetiam, sem cessar, as suas imitações, ao mesmo tempo que batiam com os pés no chão e atiravam pedras contra as paredes. O pobre cão dos Sticks, todo encolhido a um canto e não ousando sequer mover-se, não parava de soltar latidos medonhos. Edgar agarrou-se ao braço da mãe.

       - Vamos lá para cima, - pediu o rapaz. - Já não aguento mais. As catacumbas estão cheias de bichos. Bem sei que não são verdadeiros, mas têm vozes e estão a fazer uma barulheira infernal. Se calhar são fantasmas. Vamos embora, mãezinha, vamos!

       O Sr. Stick foi até à entrada do quarto onde se tinham acoitado e começou a gritar.

       - Vão-se! Saiam daqui! Deixem-nos em paz!      

       A Zé riu-se e gritou depois, com uma voz profunda e rouca.

       - CAUTELA! Muita cautela! - E os ecos trovejaram pelos enormes corredores, repetindo mil vezes; CAUTELA! CAUTELA! CAUTELA-ELA-ELA!

       O Senhor Stick recuou rapidamente e acendeu outra vela. Fechou a pesada porta de madeira que dava para o corredor e sentou-se ao lado da mulher. As mãos tremiam-lhe.

       - Não sei o que hei-de pensar! Se isto acontecer todas as noites não ficaremos aqui muito mais tempo.

       O Júlio, o David e a Zé, sem poderem conter o riso, estavam em tal estado, que já não conseguiam imitar animais. A Zé passou a fazer de porco e roncou de tal forma que o David soltou uma sonora gargalhada. Ronco e gargalhada foram-se juntar aos outros ecos, aterrando ainda mais os pobres Sticks, que se sentiam cada vez mais estarrecidos.

       - Vamos, vamos embora! - disse, por fim, Júlio. - Não aguento mais. Vamos embora!      

       Minutos depois sentaram-se com Ana e Tim nos degraus de pedra que davam acesso às catacumbas e riram-se a bandeiras despregadas ao contarem o que se passara.

       - Ouvimos o velho Stick a gritar e a pedir para nos irmos embora. E parecia cozido de medo. Quanto ao Sarnoso, nem sequer lhe ouvimos a voz! Ia apostar que amanhã se vão embora! Devem ter apanhado um valentíssimo susto.

       - Foi divertidíssimo! - rematou Júlio.

       - Não acham estranho que os Sticks tenham vindo todos para a ilha? - perguntou David pensativamente. - Abandonaram o Casal Kirrin, mas não para virem à nossa procura. Devem estar feitos com os contrabandistas, não há dúvida. E, se calhar, foi por isso mesmo que a Stick se empregou em tua casa, Zé! Assim, estavam perto da ilha quando os contrabandistas precisassem da sua ajuda.

       - Agora podemos já voltar para o Casal Kirrin, não podemos? - perguntou a Ana, que, apesar de gostar muito da ilha, não estava nada tranquila com a presença dos Sticks.

       - Voltar para casa quando a aventura começou?! - exclamou a Zé, com desdém. - Não estás boa, Ana! Volta tu, se quiseres! Mas tenho a certeza de que ninguém te acompanhará.

       - A Ana fica connosco, - disse Júlio, deitando água na fervura. - Os Sticks é que se vão embora!

       - Voltemos então para a gruta, - propôs Ana, com saudades da sua segurança e conforto. Os outros aceitaram a idéia e tomaram o caminho de regresso, felicitando-se alegremente pelo grande susto que tinham pregado aos Sticks.

       O Júlio acendeu a lanterna por ser impossível ver alguma coisa na escuridão, e por não querer que nenhum deles caísse pelo buraco em vez de descer pela corda. Foram descendo todos, um por um, iluminados pela lanterna, e, quando Júlio, por sua vez, ia a descer olhou para o mar e parou numa grande surpresa. Lá longe, na escuridão do mar, via-se uma luz a fazer sinais.

       O Júlio, tentando perceber o que aquilo significava, ficou a olhar. Do que não havia dúvida era que se tratava de um barco a fazer sinais.      

       - Talvez sejam os contrabandistas, os que trazem as coisas para esconder no navio naufragado, - pensou o rapaz. - Sim, deve ser! Se calhar, viram a minha lanterna, julgaram que eu era algum dos Sticks e começaram também a fazer os seus sinais.

       Durante muito tempo os sinais continuaram, como se estivessem a mandar uma mensagem do barco. Júlio gostaria de saber qual era a mensagem, mas decerto só os Sticks poderiam compreender o seu significado.

       - Pois estão a perder tempo! - disse Júlio de si para si. - Quer-me cá parecer que os Sticks não estão em grande disposição de decifrar mensagens. Penso mesmo que esta noite a família Stick não se atreve a deitar o nariz de fora... Ainda devem estar a pensar nas vacas, nas ovelhas e nos cavalos!

       O Júlio tinha razão. Os Sticks não saíam do quarto, de onde nada os faria sair até que a manhã rompesse.

      

                         EDGAR NÃO SE SENTE MUITO SEGURO

       As crianças dormiram muito bem nessa noite e, de manhãzinha, comeram um rico pequeno almoço de presunto, pêssegos de conserva, pão, manteiga, mel e laranjada.      

       - Acabou-se a laranjada, - anunciou Júlio pesarosamente.

       - É uma pena. A partir de agora só podemos beber água ou leite.

       - Comi imenso, - declarou Ana, lambendo os beiços. - Mas desde que aqui estamos na ilha temos comido sempre bem, não é verdade? Acham que os Sticks também trouxeram coisas boas para comer?

       - Ia apostar que sim, - disse David. - Devem ter trazido tudo o que havia lá na despensa.      

       - Não me tinha lembrado disso! - exclamou a Zé, furiosa. - Sabe-se lá se não teriam roubado as coisas de valor dos pais?

       - É muito possível, - assentiu Júlio, enrugando a testa. - Mas é uma idéia terrível! Estou mesmo a ver a tia Clara chegar a casa, doente e fraca, e verificar que lhe roubaram tudo.  - Que horror! - exclamou Ana, olhando para a Zé, com ar trágico.

       - Esses Sticks são capazes de tudo! Se têm o atrevimento de se instalarem na nossa ilha, são também capazes de nos ter roubado. Haverá maneira de o sabermos ao certo?

       - São capazes de ter trazido imensas coisas e esconderem tudo nas catacumbas.

       - Podemos lá ir dar uma olhadela, quando saírem, - sugeriu David.

       - Pois vamos agora mesmo - propôs a Zé. E começou a subir pela corda, sem esperar pela resposta dos outros, que a seguiram logo, à excepção de Ana que ficou a arrumar a “casa”.

       O David, o Júlio e a Zé estenderam-se ao comprido na enorme rocha que escondia a entrada da gruta, e puseram-se a olhar para o castelo em ruínas. Um pouco mais tarde, apareceram os Sticks, vindos aparentemente das catacumbas. Pareciam satisfeitos de se encontrarem de novo ao sol. E as crianças compreendiam isto muito bem, por saberem como as catacumbas eram frias e escuras. Os Sticks olharam em volta, ainda um pouco preocupados com os estranhos ruídos da noite mal passada. O Sarnoso, de rabo caído, não se despegava das saias da Sra. Stick, como aterrorizado ainda de tudo o que o rodeava.

       - Devem andar à procura das vacas, dos carneiros e dos cavalos que ouviram ontem à noite! - sussurrou David, muito baixinho.

       Os Sticks demoraram-se ainda a conversar alguns minutos. Depois, começaram a andar para as rochas fronteiras ao navio naufragado, enquanto Edgar se dirigia para o quarto do castelo onde os pequenos tinham pensado dormir, antes de verificarem que o tecto ruíra durante o Inverno.

       - Eu vou atrás dos Sticks - murmurou o Júlio aos outros.

       - Vocês não larguem o Edgar...      

       Júlio desapareceu, ocultando-se com os arbustos e seguindo cautelosa-mente os dois Sticks. Por seu turno, a Zé e o David dirigiram-se ao velho castelo em ruínas e, passados momentos, ouviram Edgar assobiar e viram o Sarnoso a correr no pátio do castelo.

       Edgar apareceu ao portão com vários almofadões debaixo dos braços. A Zé, ao reconhecer os almofadões, quase explodiu de raiva e agarrou com força o braço de David.

       - Os melhores almofadões da mãe! Que gatunos! - exclamou a rapariga, mal podendo conter-se.

       O David ficou também furioso. Era evidente que os Sticks se tinham apoderado de tudo a que podiam ter deitado mão no Casal Kirrin. David não esteve com meias medidas: pegou num grande bocado de terra, apontou cuidadosamente e atirou-o com quanta força tinha. O projéctil caiu mesmo entre Edgar e o Sarnoso, levantando uma grande nuvem de terra.

       Assustadíssimo, apalermado, Edgar deixou cair os almofadões e olhou para todos os lados. A Zé pegou noutro torrão e, por sua vez, apontou e atirou-o, atingindo o cão, que desatou a ganir, enfiando-se precipitadamente no buraco que conduzia às catacumbas.

       Sem poder compreender quem o estaria a bombardear, Edgar olhava o céu e à volta, embasbacado. O que seria? David esperou que Edgar voltasse a olhar noutra direcção e, - zás! - atirou outro pedaço de terra, que, desta vez, foi atingir em cheio o estúpido garoto. Nesse momento, lembrou-se David de fazer das suas imitações do mugido das vacas, foi de efeito instantâneo.

       Rodando nos calcanhares, muito pálido, tornou a olhar para todos os lados, sem ver a Zé nem o primo que estavam bem escondidos atrás duns arbustos perto dele. Outra vez as vacas! Onde estariam! Pela expressão do Edgar, David percebeu que o gaiato tremia como varas verdes e não perdeu tempo em soltar outro mugido. Logo o jovem Stick se precipitou para as catacumbas, sem cuidar mesmo de levar os almofadões.      

       - Vamos! Depressa! - comandou o David, correndo para o local. - Vamos buscar os almofadões. Quando os vier procurar, ao ver que desapareceram, morre de susto.

       O David e a prima deram uma corrida e apanharam os almofadões.

       - E se fôssemos dar uma olhadela àquele quarto para vermos se lá têm mais alguma coisa da tua mãe? - sugeriu o David.

       - Isso mesmo! Fica tu aqui a tomar conta, que eu vou lá num pulo espreitar, - disse a Zé. - Se o Edgar tornar a aparecer, larga-se-lhe outro mugido de vaca para ele nos deixar em paz.

      - Então, vai depressa. Se os Sticks aparecerem por aí, eu dou sinal!      

       A Zé correu ao quarto do castelo e olhou em volta, estarrecida. Não havia dúvida de que os Sticks tinham deitado mãos a montes de coisas da casa de seus pais. Cobertores, talheres de prata, louça, toda a espécie de latas de conserva. Nada faltava! A Sra.Stick devia ter assaltado o armário do quarto da mãe, rapinando o resto das latas. A pequena voltou a correr para junto do David.

       - O quarto está cheio de coisas roubadas! Vem-me ajudar! Talvez possamos levar tudo, antes de Edgar ou dos Sticks tornarem a aparecer.

       Nesse momento ouviu-se um assobio. Voltaram-se e viram o Júlio, que não tardou a juntar-se a eles.

       - Os Sticks foram num escaler ao navio naufragado - informou o rapaz. - Bom marinheiro o velho Stick deve ser para poder levar um escaler por entre as rochas, com um mar como hoje está, encapelado.

       - Óptimo ! - exclamou a Zé. - Temos tempo assim para levar a nossa avante! - E contou ao Júlio o que havia descoberto.

       - Oh, que malandros! - exclamou o Júlio, indignado. - Pelos vistos, não tencionavam voltar ao Casal Kirrin. Qualquer combinação devem ter com os contrabandistas. E quando receberem o contrabando, safam-se com as coisas roubadas à tia Clara, e tudo o mais, nalgum barco que os venha buscar.

       - Ah! Isso é que não vão, - protestou a Zé. - Vamos já lá buscar tudo o que trouxeram de nossa casa! O David fica aqui a guardar a entrada das catacumbas, não vá o Edgar de repente aparecer. E eu e tu, Júlio, vamos buscar as coisas e transportá-las para a gruta.

       - Depressa, então! - disse Júlio. - Temos de fazê-lo antes que os Sticks voltem, porque se calhar, demoram-se lá pouco tempo. É provável que só tenham ido buscar a tal arca e o resto que lá estava.

       A Zé e o Júlio foram numa corrida ao quarto do castelo em ruínas e carregados de coisas e, sempre a correr, esconderam-nas detrás dumas rochas perto da gruta. Os Sticks tinham roubado tudo o que era de fácil transporte. Até o relógio da cozinha!

       Edgar não voltou a aparecer e, David, sem nada que fazer, contentou-se em cruzar os braços e divertiu-se a observar as viagens que Júlio e a Zé iam fazendo do castelo para o penhasco e do penhasco para o castelo. A Zé suspirou fundo, aliviada, e chamou por David, que logo se juntou aos outros dois.  

       - Já lhes apanhámos tudo, - disse-lhes Júlio. - Agora vou ver se os Sticks já aí vêm ou não. Se ainda estiverem no barco, podemos, então, levar tudo para dentro da gruta.

       Não demorou muito.

       - Ainda têm o escaler encostado ao navio, - informou Júlio. - Temos sorte! Agora é só carregar com as coisas para a gruta.

       E, se assim o disseram, melhor o fizeram, levando tudo aos poucos para junto da “clarabóia” da gruta e chamando Ana, que ainda não sabia de nada.

       - Ana! Temos aqui uma tonelada de coisas para mandar para baixo. Prepara-te para as apanhares!

       A Ana ficou mais do que espantada com a quantidade e variedade de coisas que iam descendo pelo buraco.

       - Meu Deus! Agora é que a nossa gruta fica uma casa a valer, quando arrumar tudo isto!...      

       Mal se desembaraçaram da tarefa os pequenos ouviram vozes a distância.

       - São os Sticks! - exclamou Júlio, espreitando cautelosamente por entre os arbustos. Eram mesmo. Os Sticks tinham voltado no escaler e iam a caminho do castelo, trazendo com eles a arca.

       - Vamos segui-los, para ver a cara que fazem quando descobrirem que lhes desapareceu tudo quanto tinham roubado.

       Mais uma vez desceram os quatro traquinas pelas rochas e tomaram o caminho do castelo, escondendo-se sempre nos providenciais arbustos que povoavam aquelas bandas da ilha. Os Sticks, mal chegaram, pousaram a arca e procuraram Edgar com os olhos. Mas não o lobrigavam em parte alguma!

       - Onde é que ele se teria metido? - perguntou a Sra. Stick com impaciência. - Tempo já teve de sobra para fazer tudo! Edgar! Edgar!... Edgar!...

       O pai Stick foi espreitar no quarto do castelo, mas voltou logo para junto da mulher.

       - Já levou tudo, - disse, muito sossegado. - Deve lá estar em baixo. O quarto está completamente vazio.

       - Mas eu disse-lhe que viesse cá para cima, para o sol, quando acabasse, - exclamou a Sra. Stick, exasperada. - Não faz nada bem à saúde passar o dia todo naquelas húmidas catacumbas. EDGAR! Ó EDGAR...!

       Desta vez, Edgar ouviu a mãe e não tardou a aparecer, mas ainda muito enfiado, num grande susto.

       - Vem cá! - chamou a mãe. - Agora, que já levaste tudo para baixo, é melhor aqui ficares ao sol.

       - Tenho medo! - gemeu o pobre garoto. - Não fico aqui sozinho.

       - Porquê? - perguntou o pai com espanto.

       - São as vacas, outra vez, pai. Centenas delas, pai! - Todas a mugir e a atirar-me com coisas. São bichos muito perigosos e estou cheio de medo!

 

                          UM PRISIONEIRO INESPERADO

       Os Sticks olharam para o filho como se estivesse maluco.

       - Vacas a atirar com coisas? - perguntou a mãe. - Estás a mangar connosco, ou quê? As vacas não atiram coisa nenhuma senão coices, às vezes.

       - Pois estas atiravam, - teimou Edgar. E desatou a exagerar para convencer os pais. - Eram umas vacas enormes, centenas delas, com chifres tão compridos como os dos veados. E soltavam uns mugidos horríveis! Começaram a atirar com pedregulhos, a mim e ao cão... Tive tanto medo que desatei a fugir, sem mesmo levar os almofadões nem nada..

       - Então onde é que estão agora os almofadões - inquiriu o pai Stick, olhando em volta. - Não vejo almofadões nenhuns. Daqui a nada vais dizer-nos que foram também as vacas que os comeram     

       - Mas então não levaste tudo do castelo para os subterrâneos, como te disse que fizesses - perguntou, por sua vez, a mãe. - O quarto está completamente vazio.

       - Não cheguei a levar uma só coisa para baixo. Os almofadões deixei-os cair aí. Não faço a menor idéia do que lhes aconteceu.

       - O quê?! - exclamou surpreendido o pai. - Mas, afinal, que quer isto dizer? Alguém levou os almofadões e tudo o mais. Quem? E onde é que estarão as coisas?

       - Não foram senão as vacas, pai! - respondeu Edgar, olhando em redor, como se esperasse ver as famosas vacas a levarem os almofadões, os cobertores, as portas...

       - Não me tornes a falar em vacas, - ameaçou Stick perdendo a calma. - Já sabes que não há vacas nesta ilha, e, mesmo que houvesse, não levavam coisa nenhuma. O que ontem ouvimos foi o vento a assobiar e ecoar nos corredores das catacumbas. Não, meu palerma, não são vacas. É provável, isso sim, haver mais alguém na ilha, além de nós!

       Nesse momento ouviu-se um gemido ecoar como um queixume no subterrâneo, debaixo do chão onde os Sticks tinham parado a conversar. Era o Sarnoso, o Sarnoso aterrado, sem coragem para vir ter com os donos.

       - O pobrezinho! - disse a mãe Stick, condoída, por ter mais amor ao cão do que a qualquer pessoa. - Deve estar cheio de frio e de medo.

       O cão soltou outro ganido, ainda mais triste, e a Senhora Stick dirigiu-se para a entrada dos subterrâneos para ir buscá-lo. O marido foi atrás dela, mas Edgar não perdeu tempo a imitá-los.

       - Depressa! - ordenou Júlio, levantando-se. - Vem comigo, David! Pode ser que tenhamos tempo de levar também aquela arca! Vamos! Corre!

       Os dois rapazes desataram a correr direito ao pátio do castelo. Quando lá chegaram pegaram na arca, cada um do seu lado, e começaram a arrastá-la, por ser pesadíssima.

       - Vamos para a gruta! Tu, Zé, fica aqui uns momentos, a ver o que acontece.

       Os rapazes encaminharam-se para a gruta e a rapariga encolheu-se atrás dos arbustos. Passados minutos apareceu o velho Stick, e, ao ver que a arca se sumira, abriu a boca de espanto e desatou aos berros pela mulher, que estava ainda em baixo nas catacumbas.

       - Rosa! Rosa! A arca desapareceu!

       A Senhora Stick galgou imediatamente os degraus com o cão e o filho atrás, e olhou para o sítio onde tinham pousado a arca.

       - Desapareceu?! - perguntou ela, ainda mais assombrada que o marido. - Desapareceu? Mas como? Como?

       - Isso gostava eu de saber! Deixámo-la aqui há poucos minutos... e desapareceu logo. Sumiu-se por encanto, como tudo o resto!

       - Tudo isto é muito estranho! - disse a mulher, sucumbida. - E não desisto de descobrir o que se passa. Tens aí a tua pistola? - perguntou ao marido, recobrando ânimo.

       - Tenho, - disse este, dando uma pancada no cinto. - E ou não me chame eu Stick ou hei-de encontrar o malandro que nos anda a estragar os planos.

       Silenciosamente a Zé afastou-se para ir avisar os outros, mas, antes de descer pelo buraco, teve a esperteza de o tapar com galhos de urze, tentando disfarçar o mais possível a entrada da gruta. Júlio, entretanto, tentava abrir a arca, em vão. A fechadura era forte e os rapazes não tinham ferramenta apropriada.

       - Estaremos aqui a salvo, a não ser que alguém caia pelo buraco! - disse Júlio, Depois de ouvir à Zé a resolução dos Sticks. - Temos de ficar muito quietos; e tu, Tim, não te lembres agora de fazer barulho.

       Fez-se completo silêncio durante algum tempo. Depois, ouviu-se a certa distância o ladrar do Sarnoso.

       - Quietos, agora! Parece que vêm nesta direcção.

       Os Sticks vinham, de facto, a subir pelo penhasco, bem por detrás de todos os arbustos e Chegaram onde os pequenos frequentemente se escondiam e pararam.

       - Esteve aqui alguém! - disse o velho Stick. - O chão está todo pisado. Vou seguir estas pegadas, e tu Edgar, vai por ali!

       O rapaz assim fez, aproximando-se de umas moitas e, então, para seu grande susto, sentiu-se num precipício! Não se tratava, afinal, de nenhum precipício, mas, sim, do buraco que dava para a gruta.. E, ante os olhares esgazeados dos pequenos e do Tim, o pobre Edgar estatelava-se ao comprido na areia macia, não fazendo a menor idéia do que lhe acontecera. O Tim atirou-se a ele, a rosnar, mas a Zé agarrou-o a tempo e ordenou-lhe que se calasse.

       Edgar vinha tão aterrado que se deixou ficar no chão, de olhos fechados, a choramingar numa lamúria. Os pequenos olharam-se entre si, tão pasmados também que nem sabiam que dizer ou fazer. O Tim recomeçou a rosnar furiosamente, tão furiosamente que Edgar abriu os olhos. Viu o cão e abriu a boca para gritar. O Júlio tapou-lhe a boca e ameaçou-o:

         - Se deres um só grito, o Tim dá-te cabo da saúde em menos de um segundo! Agora vê lá... O Tim está mesmo com ganas de te abocanhar...!

         - Não grito, prometo! - murmurou tão baixinho o estarrecido Edgar que os outros mal o ouviram. - Mas afastem esse cão! Já disse que não grito.

         A Zé voltou-se para o cão!.

         - Ouve bem, Tim: Se este rapaz gritar, atira-te a ele. Podes mordê-lo á vontade, percebeste? Agora deita-te ao pé dele e não te distraias.

       - Uf! - respondeu o Tim, muito satisfeito com a licença de abocanhar o estúpido garoto.

       Edgar olhou para os pequenos:

       - Como é que vieram aqui parar? Pensávamos que tivessem ido para a cidade.

       - Estamos aqui porque nos apetece. A ilha é nossa e temos todo o direito de cá estar. Vocês é que não têm, e muito gostava de saber ao certo o que vieram cá fazer.

       - Não sei, - respondeu o rapaz.

       - Vais já dizer-nos, senão...! - ameaçou Júlio. - Aliás, já sabemos que se entendem com os contrabandistas.

       Edgar pareceu muito surpreendido.

       - Contrabandistas?! Disso não sei. O pai e a mãe não me disseram nada e eu, cá por mim, não gosto de contrabandistas.

       - Então não sabes nada? - insistiu David. - Trouxeram-te para a Ilha Kirrin sem te darem explicações?

       - Não sei nada. Os pais nunca me dizem nada. Eu faço o que eles mandam e não posso refilar. Mas garanto-lhes que nunca lhes ouvi falar em contrabandistas.

       Era fácil de ver que, na verdade, Edgar não sabia as razões da vinda dos pais à ilha.

       - Não me espanta que os Sticks não confiassem os seus segredos ao Edgar, - troçou Júlio. - É tão cobarde que, se soubesse alguma coisa, já nos tinha contado tudo. Mas o certo é que há contrabandistas metidos no caso.

       - Agora deixem-me ir embora! - pediu Edgar. - Não têm nenhum direito a ter-me aqui preso.      

        - Daqui não sais, - disse imediatamente a Zé. - És nosso prisioneiro. Se voltasses para junto dos teus pais, dizias-lhes tudo e nós não queremos que eles saibam da nossa presença na ilha. Decidimos estragar-lhes os planos, compreendes?

       Edgar compreendeu. Compreendeu também muitas mais coisas. Sentia-se bastante desconfortável.

       - Foram então vocês que levaram os almofadões e o resto? - perguntou ele.

       - Não, que idéia! - exclamou David, fingindo-se muito admirado. - Foram as vacas. Não te lembras de teres dito á tua mãe que te apareceram umas centenas de vacas a atirar com coisas e a roubar os almofadões?

       - Não lhes acho graça nenhuma! - respondeu Edgar, embezerrado. - E então o que querem fazer de mim? Não posso aqui ficar toda a vida.

       - Ficarás, sim, enquanto for preciso. Ficarás até nós te deixarmos ir embora e isso só será quando desvendarmos todo este mistério do contrabando. E ficas avisado de que qualquer tentativa de fuga será castigada pelo Tim.

       - O pai e a mãe vão ficar furiosos, - disse o rapaz, ao ver que não tinha outro remédio senão obedecer aos cinco.

       O pai e a mãe do rapaz naquele momento estavam verdadeiramente espantados. Tinham percorrido toda a ilha sem encontrarem vivalma. O seu Edgar levava agora o mesmo destino dos almofadões e do resto das coisas!

       - Onde é que estará esse maldito rapaz? Edgar! Edgar! - berrava o Sr. Stick, aos quatro ventos.

       - Mas o rapaz não respondia; não podia responder. Os Sticks não o encontraram em parte nenhuma e decidiram passar uma busca minuciosa às catacumbas, não fosse o desgraçado ter-se perdido, lá por baixo.

       Júlio, depois de resolver o caso de Edgar, deu toda a sua atenção à arca.

       - Vou abrir isto, seja lá como for: Tenho a certeza de que é mercadoria de contrabando. E quero ver o que é.

       - A única maneira é arrombar os fechos à pedrada, - sugeriu o David. E Júlio assim fez. Pegou numa pedra e começou às marteladas, ora num ora noutro fecho, até que, por fim, os fechos caíram e as crianças, ardendo em curiosidade, levantaram a tampa da famosa arca.

       Logo ao de cima estava um cobertor de criança, todo bordado com coelhinhos. Júlio levantou-o, esperando ver qualquer preciosidade por baixo. Mas, para maior surpresa sua, a arca só continha roupas de criança!

       Tiraram tudo para fora da arca. Esse tudo consistia em duas camisolas azuis, uma saia também azul, algumas camisolinhas interiores, um casaco e calcinhas de criança. E, no fundo da arca, ficaram a descoberto várias bonecas e um ursinho!

       - Por esta é que eu não esperava! - exclamou Júlio. - De quem serão estas roupas? Para que é que os Sticks as teriam trazido para a ilha, e os contrabandistas para o navio encalhado! Que estranho!

       Edgar parecia tão espantado como os outros. Esperava também que a arca contivesse algum tesouro. A Zé e a Ana pegaram nas bonecas. Eram muito bonitas e Ana, ao contrário da Zé, que as desprezava, adorava bonecas.

       - De quem serão?! - perguntou Ana. - A dona deve estar tristíssima por se ver sem elas. Mas que estranho tudo isto, Júlio! Por que razão alguém trouxe para a Ilha Kirrin uma arca cheia de roupas e de bonecas?

        

                          UM GRITO NA NOITE

       - NÃO compreendo nada disto! - disse por fim o David. - Não há dúvida de que se passam coisas extraordinárias nesta nossa ilha ou os Sticks não estariam cá. E também não há dúvida de que o Júlio viu um barco fazer sinais luminosos. Julgava ter a certeza de que, ao abrirmos esta arca, desvendaríamos o enigma. Mas, afinal, estas roupas de criança ainda tornam tudo mais misterioso.

       Os pequenos ouviram, então, de novo, as vozes dos Sticks a chamarem pelo Edgar, mas este não ousou responder. O Tim estava tão encostado a ele que não hesitaria em filá-lo. Edgar sabia-o muito bem.

       - Sabes alguma coisa do navio que esta noite fez sinais para a ilha?- perguntou Júlio ao Edgar. O rapaz abanou a cabeça.

       - Não. Ouvi dizer à mãe que esperavam o Roamer esta noite. Mas não sei o que ela queria dizer.

       - O Roamer? - perguntou a Zé. - Que diabo será? Um homem, um barco ou quê?

       - Não sei, - respondeu Edgar. - Se tivesse perguntado, a mãe batia-me logo.

       - Pois então o que temos de fazer é esperar esse tal Roamer, esta noite, seja ele lá o que for, - afirmou Júlio. - Obrigado pela informação.

       Os pequenos passaram o dia todo na gruta muito aborrecidos, sem nada que fazer, excepto Ana que nunca se cansava de arrumar a sua “casa”. E do que não restava dúvida era a gruta estar agora muito confortável e parecer uma casa a sério, especialmente com os novos cobertores e almofadões que os quatro tinham recuperado.

       Edgar não tinha ordem de sair da gruta, e Tim não o largava um segundo. Dormiu toda a tarde, explicando que as vacas e os cavalos o tinham assustado muito e não pregara olho toda a noite anterior. Os outros discutiam em voz baixa os seus planos de campanha. Resolveram ficar de vigia, aos pares, durante toda a noite. Como não sabiam o que se ia passar, decidiram combinar novos planos quando o Roamer chegasse. Até lá, bastar-lhes-ia vigiar bem o mar do alto do penedo que se erguia por cima da caverna.

       Chegou a noite. As crianças comeram com grande apetite, especialmente Edgar; depois, Ana e David subiram pela corda e instalaram-se confortávelmente, espiando o mar com a maior atenção. Deviam ser umas dez horas e meia e no mar não havia sinal de barco ou do que quer que fosse.

       À meia-noite e meia o Júlio e a Zé juntaram-se aos outros, que continuavam sem ver nada. Júlio e a Zé sentaram-se e Ana e David desceram à gruta para dormir uma boa soneca antes do próximo turno. Passado pouco tempo ouviram vozes abafadas e viram nas rochas, mesmo por baixo deles, dois vultos.

       - Os Sticks! - murmurou Júlio, todo alvoraçado. - Vão outra vez para o navio encalhado.

       Ouviram os remos e não tardou que a luz iluminasse um escaler a deslizar na água em direcção ao navio. No mesmo instante a Zé abanou Júlio com força e apontou para o mar, onde, muito ao longe, se via uma luz a brilhar  intermitentemente. Seria aquele barco o Roamer? Ou seria Roamer o nome do dono do barco? Seriam contrabandistas?

       - Olha! Vem aí outro escaler! - apontou a Zé, excitadíssima. - Vem daquele navio, e vai direito ao barco encalhado. Deve ser o ponto de encontro dos Sticks e dos contrabandistas.

       A noite estava muito escura e os dois primos não conseguiram distinguir nada do que se passara entre os dois escaleres.

     - Agora já se estão a afastar do navio naufragado, cada um para a sua banda! - informou Júlio, impaciente. - Se calhar vieram só entregar aos Sticks mais contrabando para eles o esconderem na ilha. Quando atracarem, vamos atrás deles ver onde é que deixam as coisas, sim?

       Logo que o escaler chegou a terra, Júlio e a prima viram os Sticks tomarem o caminho do castelo, e, ao notarem que o velho Stick levava aos ombros um volumoso fardo, talvez uma trouxa ou uma mala, saíram do esconderijo, seguindo-os cuidadosamente. Os Sticks entraram no pátio do castelo e dirigiram-se à entrada das catacumbas.

       - Vão levar o contrabando lá para baixo, - sussurrou Júlio ao ouvido da Zé.

       Ambos se encontravam agora escondidos nas ruínas do próprio castelo, muito perto dos Sticks, e todos os cuidados eram poucos.

       - É melhor voltarmos para a gruta - continuou Júlio, - e contar aos outros o que se passou, e combinarmos o que há a fazer. Estou ansioso por ir lá abaixo buscar as coisas de contrabando e depois ir a terra buscar a polícia. Não achas boa idéia?

       Mas, nesse momento, um grito estridente cortou o silêncio da noite. Fora um grito de terror e - percebia-se bem! - lançado por uma criança. Júlio e a Zé ficaram assombrados, sem fazerem idéia de que lado viera.

       - Depressa! É capaz de ter sido a Ana! - disse Júlio, desatando a correr para a gruta, seguido da Zé, ainda mais alarmada que ele.

       Afinal de contas, a Ana estava muito sossegada a dormir profundamente, bem como David e Edgar, atentamente vigiado por Tim que, na possibilidade de lhe ferrar bem os dentes, preferia não dormir.

       - Quem teria então sido? - perguntou Júlio, com espanto. - A Ana não foi. Se tivesse gritado a dormir teria acordado os outros. Tudo muito, muito estranho; cada vez mais estranho!

       - Mas quem foi, quem foi? Não te pareceu horrível, Júlio? Quem quer que gritou estava aterrado deveras. Estou a gostar pouco disto!

       Resolveram, então acordar o David e a Ana para lhes dizer o que se passara. Ana, ao ouvir falar no estranho grito, tornou-se preocupada, enquanto David ficou interessadíssimo em saber como os dois escaleres se tinham encostado ao navio naufragado e os dois Sticks tinham recebido mais contrabando.

       - Amanhã iremos buscar todas essas coisas, - sugeriu ele alegremente. - Vai ser divertidíssimo.

       - O que não percebo é o que os levou a pensar que fui eu que soltei o grito,  - disse a Ana. - Seria por julgarem que foi uma rapariga?

       - Pois foi! Parecia mesmo tu a gritares, quando apanhas um susto. Não tenho dúvida de que era um grito de rapariga.

       - Não compreendo, - disse Ana, encolhendo-se de novo entre os  cobertores. A Zé, muito cansada, deitou-se a seu lado.

      - Ó Ana! - exclamou então a Zé, pouco contente. - Tens a cama cheia de bonecas... e nem o urso deixaste de fora. És um autêntico bebé.

       - Não, não sou, - fez a Ana, abespinhada. - As bonecas e o ursinho é que são bebés... E estão muito tristes por não estarem com a menina sua dona. Foi por isso que os meti na cama. Tenho a certeza de que a menina não gostaria de saber que...

       - A menina! - observou Júlio, lentamente. - Esta noite pensámos ter ouvido uma menina a gritar. E até encontrámos uma arca cheia de bonecas e de roupas de menina. Será uma coincidência?

       Houve um silêncio. Depois, Ana falou excitadamente.

       - Já adivinhei! O contrabando é uma menina! Roubaram uma menina e estas são as bonecas dela! A menina está aqui na ilha... e vocês ouviram-na gritar, quando os horríveis Sticks a levaram para as catacumbas!

       - Bem... bem, talvez, - começou Júlio a matutar, indeciso. - É muito possível que a Ana tenha acertado. Sim, Ana, deves ter razão. Não são contrabandistas que se estão a servir da ilha... São raptores!

       - Raptores? - inquiriu Ana.

       - Raptores são bandidos que roubam crianças ou pessoas crescidas e as escondem em qualquer sítio até alguém lhes dar uma batelada de dinheiro, - explicou Júlio. - A esse dinheiro chama-se um resgate. Os raptores ficam com os prisioneiros até esse resgate ser pago por alguém da família deles.

       - É isso mesmo! - exclamou a Zé. - Aposto que roubaram uma menina rica, e trouxeram-na para aqui naquele barco e entregaram-na aos Sticks. Que infames criaturas!

       - E foi, com certeza, ela que gritou. Temos de ir socorrê-la!

       - Claro está! Nem se discute! - concordou Júlio. - Amanhã vamos buscá-la.

       Edgar, que acordara nesse momento, juntou-se à conversa.

       - De que estão vocês a falar? E quem é que vão buscar amanhã? - Júlio fê-lo calar.

       - Não é nada contigo - berrou-lhe.

       A Zé chamou Júlio para junto de si e falou-lhe ao ouvido.

       - Só queria que a Senhora Stick estivesse tão apoquentada com a perda do Edgar, como a mãe da menina deve estar!

       - Amanhã trazemo-la para aqui. O pior vai ser encontrá-la nas catacumbas, sem que os Sticks dêem por nós.

       - Havemos de descobrir uma maneira. Agora vamos dormir que são horas, Boa-noite!

       Pouco depois todos dormiam a sono solto. Todos menos o Tim que decidira ficar de olho aberto toda a noite. Não havia precisão de qualquer dos quatro ficar de guarda, enquanto tivessem o Tim. Aquele fiel canzarrão era o melhor guarda que podia haver. E os quatro primos já o sabiam muito bem.

      

                          AS CRIANÇAS SALVAM A MENINA

       NO dia seguinte Júlio acordou muito cedo e subiu pela corda ao cimo do penhasco.  Queria ver se os Sticks já estavam a pé e, de facto, viu logo o casal perto da entrada das catacumbas. A Senhora Stick parecia pálida e muito preocupada.

       - Temos de encontrar o nosso Edgar, - dizia ela ao marido. - Ouviste? Temos de encontrá-lo! Já sabemos que não está nas catacumbas. Procurámos por toda a parte. Temos de encontrá-lo, - repetia, sem cessar.

       - Já percorremos a ilha de ponta a ponta, e nada! - respondeu o marido, também preocupado como era, aliás, natural. - A minha opinião é que quem nos roubou as coisas, roubou-nos o Edgar e voltou para terra. Podes estar certa de que o nosso filho já não está na ilha. Estou plenamente convencido disso!

       - Então, se assim é, - redarguiu a Senhora Stick, - o melhor é irmos também a terra e tentarmos saber alguma coisa.

       - Quem será o patife que nos levou o Edgar e que se intrometeu nos nossos planos? Muito gostava de saber. Ia tudo tão bem...

       - Achas que é prudente sair agora da ilha? - perguntou o velho Stick, duvidoso. - E se o tipo que ontem aí estava ainda cá está hoje e resolve ir lá abaixo às catacumbas, quando nos formos embora?

       - Já cá não está ninguém, - afirmou a velha Stick, categórica. - Então não achas que se o Edgar cá estivesse desatava para aí a gritar que se ouvia em toda a ilha? Foram-se embora, com certeza, o rapaz e todas as nossas coisas. E, digo-te já, não estou a gostar nada disto.

         - Está bem, está bem! - disse o marido, enfadado. - Esse rapaz só nos dá desgostos e trabalhos. Sempre a armar sarilhos.

       - Como é que podes dizer isso do pobre Edgar?! - exclamou a Sra.Stick. - Julgas, se calhar, que o pobrezinho fez de propósito para lhe deitarem a mão? Sabe-se lá o que ele estará a sofrer! Deve sentir-se tão só, tão cheio de medo..!

       Júlio, que se aproximara cautelosamente do casal, sentia-se enojado. Ali estava a velhaca Stick a lamentar o malandro do Edgar, quando tinha presa nas escuras e geladas catacumbas uma pobre menina, possivelmente muito mais nova e aterrada que o Edgar! Era preciso ser-se muito má.

       - E o nosso cão? - resmungou o Stick. - É melhor deixá-lo cá, não é? Pode ficar a guardar-nos a entrada das catacumbas, embora eu também esteja convencido de que não há cá mais ninguém, além de nós dois.

       - Sim, o cão pode ficar, - opinou a mulher, tomando o caminho do escaler.

       Júlio viu-os embarcar e o barco não tardou a afastar-se da ilha, com o velho Stick a manobrá-lo com perícia, por entre as penedias que se erguiam da água. Júlio voltou a correr para a gruta, chamando alegremente os outros.

       - Venham cá para fora, que eu lhes conto os meus novos planos. Só o Edgar é que deve ficar aí com o Tim.

       A Zé, o David e a Ana juntaram-se logo a Júlio que não perdeu um minuto.  - Ouçam! Os Sticks foram para terra à procura do filho. O que eu proponho é irmos às catacumbas salvar a menina, que lá deve estar, e trazê-la para aqui, a tomar o seu pequeno almoço connosco. Levamo-la depois para terra. Vamos à polícia para descobrir quem são os pais dela. E, em seguida, telefonamos para lhes dizer que a filha está sã e salva.      

       - E o Edgar? - perguntou Ana.

       - É fácil, - respondeu a Zé. - Fechamo-lo na cela em lugar da menina! Estou mesmo a ver a cara dos Sticks ao depararem com o Edgar em vez da pequena raptada.

       - A Zé sempre tem cada idéia estupenda! - disse Ana, maravilhada. E todos os outros concordaram, e riram ao pensarem no pasmo dos Sticks quando dessem pela troca.

       - Tens de ficar tu aqui, Ana, e vai arranjando um pequeno almoço digno dos teus talentos de dona de casa! - disse Júlio, que sabia quanto ela detestava descer aos subterrâneos.

       Ana assentiu logo, satisfeitíssima.

       - Fiquem descansados! vai ser melhor que qualquer das refeições que já tivemos.

       Regressaram todos à gruta.

       - Vem connosco, Edgar! - ordenou Júlio. - E tu também, Tim.

       - Para onde é que me levam? - perguntou o rapaz, mais receoso.

       - Para um sítio muito confortável, onde as vacas não te poderão marrar mais. Vamos depressa!

       - G r-r-r-r-r, - ameaçou Tim, tocando na perna de Edgar. Subiram todos pela corda, uns atrás dos outros, embora Edgar, a tremer de medo, tivesse a certeza de não ser capaz.

       Mas, com a ajuda do Tim, que às focinhadas não cessava de o ameaçar, o rapaz foi subindo também pela corda, muito depressa, e juntou-se aos outros que o esperavam lá em cima.

       - Toca a andar! - comandou Júlio, que queria fazer tudo quanto necessário, antes do regresso dos Sticks. E lá foram todos em fila indiana. Atravessaram primeiro o penhasco, dirigiram-se depois ao castelo e chegaram, por fim, ao pátio onde era a entrada dos subterrâneos.

       - Eu não vou para baixo com vocês... declarou logo Edgar, alarmado.

       - Ah, não, não vais! - afirmou Júlio, com cara de poucos amigos.

       - Os meus pais onde estão? - perguntou Edgar, olhando ansiosamente em redor.

       - Foram comidos pelas tais vacas! - respondeu-lhe a Zé. - As que roubaram os almofadões e te atiraram coisas.

       Riram-se todos, menos Edgar, que estava pálido como cera. Este género de aventura não lhe quadrava nada.

       - Olhem! O Sarnoso! - exclamou Edgar, apontando para o fundo das escadas. Era verdade. O cão estava encostado ao último degrau, a tremer já como varas verdes, todo aterrorizado ao ver de novo o seu amigo Tim que ia descer para as catacumbas com os pequenos.

       - Não, Tim! - gritou Júlio. - Não te metas agora com ele. Ficas aqui. Porque te garanto que, se lhe metesses o dente, sabia-te mal!

       O Tim ficou de orelha murcha por não poder dar a sua sova no outro cão. Se não podia correr atrás dos coelhos, que o deixassem ao menos ir atrás do Sarnoso!

       O Júlio conhecia bem todos os recantos das catacumbas e dirigiu-se logo a um quarto, espécie de caverna, onde, no Verão passado, tinham descoberto as preciosas barras de ouro.

       Era quase certo que a menina se encontrava ali, por ser a única cela que tinha uma porta maciça de madeira e se podia fechar pelo lado de fora. Os pequenos pararam em frente dessa porta, que de facto estava trancada com um enormíssimo barrote. Não se ouvia o menor ruído lá dentro; mas Tim começou a raspar na porta e a olhar para os pequenos como a indicar-lhes qualquer coisa. O cão sabia muito bem que havia alguém dentro da cela.

       - Olá! - gritou Júlio, dando fortes punhadas na porta. - Está aí alguém? Somos gente amiga e viemos socorrê-la!

       Ouviu-se um ligeiro rumor como de alguém que se tivesse levantado, em sobressalto; e, depois, uma vozinha muito fraca respondeu-lhes a medo, hesitante.

       - Quem é que está aí? É verdade que me vêm socorrer? Estou tão sozinha e tão assustada! Tirem-me daqui, sim? Tirem-me daqui!

       - Vamos abrir já esta porta, - disse Júlio alegremente. - Somos todos amigos, não tenha medo. Daqui a nada a poremos em lugar seguro.

       Júlio levantou a tranca e abriu a porta. A um canto da cela, iluminada por um triste candeeiro de petróleo, viram uma menina da idade da Ana. Muito branca e pálida, parecia imensamente assustada. Tinha os olhos escuros, um lindo cabelo aloirado, e devia ter-se farto de chorar, pois tinha a cara toda molhada e os olhos inchados. David aproximou-se dela e passou-lhe o braço pelos ombritos.

       - Pronto! Agora já não tem nada a temer. Está salva e vamos levá-la para junto da sua mãe.

       - Quero ir para a minha mãezinha, quero ir, quero ir, - dizia a pequenita, recomeçando a chorar e agarrando-se a David num desespero. - Onde é que eu estou? Para que me trouxeram para aqui? Não gosto nada disto...

       - Foi uma aventura que passou, - explicou-lhe Júlio, muito suave. - Agora tudo acabou, ou, pelo menos, já quase acabou. Falta ainda um bocadinho agradável. Vamos todos tomar o nosso pequeno almoço, quer? Temos um bolo estupendo.

       - Têm? - perguntou logo a pobre pequena, esfregando muito os olhos, já quase rindo. - Então, vamos! Gosto muito de vocês, e embirro com aquelas duas outras pessoas.

       - Claro que não podia gostar deles, - disse a Zé. - E olhe! Este é o Tim, o nosso cão. Pelos vistos, também gosta já de si.

       - Que bonito cão! - exclamou a pequena, abraçando Tim, que a começou a lamber. A Zé ficou encantada com esta cena.

       - Como se chama? - perguntou ela à pequenina.

       - Jenny Mary Armstrong. E vocês?

       Os outros disseram-lhe os seus nomes e Jenny olhou para Edgar, que não dissera palavra.

       - Esse é o Edgar, - informou Júlio. - Não é amigo nosso. É o filho daqueles dois piratas que a trouxeram para aqui, Jenny! Agora vamos aqui deixá-lo. Os pais é que vão ter uma agradável surpresa, não acha?!

       Edgar soltou um grito. Tentou fugir para o corredor. Mas o Tim, saltando e rosnando ameaçadoramente, tapou-lhe logo o caminho.

       - Só há uma maneira de ensinar gente como tu e os teus pais! É castigá-los a valer. As pessoas como vocês não compreendem outra coisa. Vais provar agora um pouco do que esta Jenny sofreu. Espero que te sirva de emenda, e aos teus pais também! Adeus!

       Edgar começou a berrar como um vitelo, quando Júlio trancou a pesada porta.

       - Vou morrer à fome! Vou morrer à fome!

       - Não morres nada, - respondeu-lhe Júlio. - Tens aí comida e água bastante. Não faças cerimónia! Embora te fizesse bem passares um dia de fome, fica-te aí bastante que comer.

       - E tem cautela com as vacas! - gritou-lhe David, numa risota.

       - Pronto! Vamos embora, estou cheio de fome! - declarou Júlio.

       - Também eu! - disse Jenny, dando logo a mão a Júlio. - Na cela não tinha fome nenhuma, mas agora já tenho. Obrigada por me haverem salvo. Não me hei-de esquecer!

       - Não se fala mais nisso! - disse Júlio, sorrindo. - Foi um prazer soltá-la e maior prazer ainda deixar lá o Edgar em seu lugar.

       Atravessaram os sombrios e húmidos corredores e chegaram, por fim, às escadas, subindo-as à pressa, para se safarem quanto antes da atmosfera horrenda das catacumbas.

       - Que beleza! - exclamou Jenny, ao respirar cá fora o ar livre, o delicioso ar da manhã e ao sentir o agradável solzinho a aquecê-la toda. - Mas que maravilha! Onde estamos nós?

       - Na nossa Ilha Kirrin! - informou a Zé. E isto é o nosso castelo em ruínas. Trouxeram-na ontem para aqui num barco. Ouvimo-la gritar e foi isso que nos levou a pensar que os Sticks tinham ali encarcerada uma prisioneira.

       Foram até ao penhasco, e Jenny mais surpreendida ficou ao ver a forma como os seus novos amiguinhos desapareciam pelo buraco. Não esteve, porém, com meias medidas e a exemplo dos outros desceu também pela corda.

       - É muito simpática, não é? - perguntou Júlio ao ouvido da Zé.

       - Coitadinha! A sua aventura foi ainda mais excitante que a nossa.

      

                          UMA VISITA AO POSTO DA POLÍCIA

       Ana gostou imenso da Jenny e deu-lhe um grande beijo na cara. Jenny olhou, surpreendida, para a gruta tão bem mobilada e apontando para a cama da Ana, onde se viam as bonecas e o ursinho, não pôde conter um grito de alegria.

        - Olha, as minhas bonecas! E o ursinho! Que bom...! Onde é que vocês as encontraram? Minhas queridas... Josefina, Angela, e Marigold! Estava com tantas saudades vossas!

       - Tenho tratado delas muito bem, - disse Ana, muito divertida ao ouvir os nomes das bonecas. - Estavam muito sozinhas e tristes, mas dormiram comigo e já se sentem agora muito melhor.

       - Muito obrigada. Nem sei como agradecer, - dizia Jenny, não podendo esconder o seu contentamento. - Vocês são todos uns amores. Oh, que maravilhoso pequeno almoço!

       E era. Ana abrira uma lata de salmão, duas de pêssegos, uma lata de leite, cortara uma infinidade de fatias de pão e fizera um apetitoso cacau. Jenny sentou-se e começou logo a comer vorazmente. Estava faminta e, enquanto comia, começava a perder a palidez e ganhava cores e um ar feliz. Fartaram-se todos de tagarelar. Jenny falou-lhes de si e contou-lhes o que lhe sucedera.

       - Estava a brincar no jardim com a minha criada, - explicou a pequena, - e, de repente, quando ela foi a casa buscar uma coisa, um homem trepou pelo muro do jardim, tapou-me a cabeça com um xale e levou-me com ele. A nossa casa fica perto do mar, e, passado um bocado, ouvi o bater das ondas na praia e percebi que me estavam a meter num barco. Levaram-me então para um navio muito grande e estive dois dias fechada num camarote. Depois, uma noite, trouxeram-me para aqui; ao sentir a humidade e a escuridão daquelas cavernas malditas, tive tanto medo que desatei a gritar.

       - Foi o que te salvou! - disse a Zé, que pouco antes propusera que todos se tratassem por “tu”. - Foi uma sorte que te tivéssemos ouvido. Pensávamos que a nossa ilha fosse uma cáfila de contrabando e nem por momentos pensámos que se tratasse de um rapto. Até que encontrámos uma arca com as tuas bonecas e roupas, e...

       - Não sei como é que o homem as trouxe! - disse Jenny, pensativa. - A não ser que uma das criadas o tenha ajudado. Havia uma de quem eu não gostava nada. Chamava-se Sara Stick.

       - Ah! - exclamou Júlio. - Foi com certeza essa! Aqueles dois que te meteram na cela também se chamam Stick. Essa Sara deve ser da família. Deviam estar todos combinados com qualquer bandido que tinha um navio para te trazer para aqui.

       - E, no fundo, foi uma boa idéia! - disse a Zé. - Porque se te tivessem levado para outro sÍtio, não teríamos podido salvar-te... !

       - Agora temos de ir buscar o nosso barco e ir a terra, - disse Júlio, que não queria perder mais tempo. - Os jornais estão, com certeza, cheios de notícias acerca do rapto, e os polícias reconhecem-na imediatamente.

       - Espero que prendam os Sticks, - comentou a Zé. - O pior é se eles fogem, ao ouvirem dizer que a Jenny foi encontrada.

       - Pois é! Temos de lembrar isso à polícia. Seria melhor não espalhar a notícia, antes de os Sticks serem agarrados. Gostava de saber onde estarão eles agora!

       - Vamos, antes que voltem! - lembrou David. - Não há razão para perdermos mais tempo. Os pais de Jenny vão ficar doidos de contentes, logo que souberem que está sã e salva.

       - Não me está a apetecer muito sair desta gruta de sonho, - disse Jenny, que se sentia agora muito feliz. - Apetecia-me ficar aqui a viver com vocês. Voltam para cá, não voltam?

       - Bem, se calhar por mais alguns dias. A casa da Zé está vazia, porque a tia está no hospital e o tio ficou a fazer-lhe companhia, sabes? É, pois, provável que cá fiquemos até ambos voltarem para casa.

       - Deixem-me então vir com vocês, sim? - pediu Jenny cheia de  contentamento à idéia de viver uns dias numa gruta, numa ilha tão linda, com aqueles pequenos tão simpáticos e um cão tão bonito. - Deixem-me, sim? Gostava tanto? E gosto tanto do Tim!

       - Não me parece que teus pais consintam, especialmente depois de teres sido raptada - disse Júlio. - Mas não perdes nada em pedir-lhes!

       Todos se dirigiram à pequena enseada e empurraram o barco para a água. Saltaram, instalaram-se o melhor possível, e Júlio deu o último empurrão, saltando depois, agilmente, para junto dos outros.

       A Zé tomou o leme, como habitualmente, e, navegando com perícia por entre as rochas, passou junto do velho navio naufragado. O barco chamou a atenção de Jenny, que queria lá parar e ir visitá-lo, mas os outros desejavam chegar a terra quanto antes e não lhe fizeram a vontade. Contentes, seguiram  viagem pelas águas calmas da manhã. Não tardaram a chegar perto da praia. Alf, o filho do pescador, vira-os de longe e viera esperá-los e ajudá-los a  desembarcarem.

       - Ia ter com vocês daqui a bocado, - avisou Alf. - O seu pai já voltou, menino Zé! Mas a sua mãe ainda não veio. Ouvi dizer que já está melhor e que dentro de uma semana estará de volta.

       - O pai tinha dito que só viria quando a mãe estivesse completamente boa! - disse Zé, surpreendida.

       - Acho que ficou muito preocupado por ninguém responder ao telefone,  - explicou Alf. - Veio aqui à praia e perguntou-me onde é que os meninos estavam. Eu não lho disse, claro! Guardei o segredo mas esta manhã ia avisá-los. O seu pai chegou ontem à noitinha e ficou furioso. Não encontrou ninguém para lhe dar o jantar, a casa estava toda desarrumada, e faltava uma porção de coisas! Agora foi ali ao posto da polÍcia!

       - Por essa é que nós não esperávamos! - exclamou a Zé. - Nós também lá vamos! Vamos dar de cara com ele. Queira Deus que não esteja muito furioso connosco. Quando o pai se zanga, ninguém o pode aturar.

       - Vamos! - comandou Júlio. - Por um lado é bom que o tio já lá esteja, Zé, pois podemos explicar tudo à polícia e a ele, ao mesmo tempo.

       Os cinco pequenos chegaram ao posto de polícia e com grande espanto do guarda de serviço, entraram todos em fila.

       - Olá! Que se passa? Assaltaram alguma casa? Ou roubaram chocolates dalguma loja? Ou quê? Se calhar, vêm-se entregar à prisão!

       - Ouça! - disse a Zé, subitamente, ouvindo uma voz conhecida no aposento ao lado.

       - É o meu pai que ali está. 

       E, dizendo isto, correu para a porta. O polícia, escandalizado, chamou-a à ordem.

       - Não entre aí. É o Sr. Inspector que está lá dentro. Veio cá resolver um caso muito intricado e não pode ser interrompido.

       Mas a Zé não lhe deu ouvidos. Abriu a porta e entrou, deparando com o pai que se levantou logo.  

       - Zé! Onde estiveste tu, até agora? Como te atreves a sair de casa? Foi assaltada por gatunos e desapareceram imensas coisas! Estava aqui mesmo a participar ao Senhor Inspector que nos levaram todas as pratas.

       - Não se preocupe, pai! - respondeu a Zé. - Não pense mais nisso. Nós já recuperámos tudo. Foram os Sticks. E a mãe, como está?

       - Melhor, muito melhor! Graças a Deus, agora já posso voltar para junto dela e dizer-lhe que estás bem. Estávamos tão preocupados! Mas estou zangadíssimo contigo. Onde é que estiveste?

       - Na ilha, na minha Ilha Kirrin! O Júlio depois conta-lhe tudo.

       Júlio entrou, então, no aposento, seguido por David, Ana, Jenny e o Tim. O Inspector examinou-os cuidadosamente e, logo que viu a pequena Jenny, ficou intrigadíssimo e cheio de curiosidade.

       - Como se chama, menina? - perguntou-lhe.  

       - Jennifer Mary Armstrong, - respondeu Jenny, ingènuamente.

       - Deus seja louvado! - exclamou o Inspector, ainda mais surpreendido. - Esta é a menina que anda a ser procurada por toda a Inglaterra, e aparece-me aqui como se nada houvesse. Só a mim me acontecem destas! Ora diga-me, menina, como veio aqui parar?

       - Mas que significa tudo isto? - perguntou mais espantado o pai da Zé. - Esta pequena anda a ser procurada por todo o país? Já não leio jornais há vários dias e não sei o que se passa. Mas...

       - Então não sabia que a pequena Jenny Armstrong foi raptada? - perguntou o Inspector, puxando-a para junto de si.

       - É filha do milionário Harry Armstrong. Foi raptada há dias e exigem um resgate de cem mil libras. E agora aparece-me aqui! - repetiu o Inspector, sem poder recompor-se da surpresa. - Onde é que esteve todo este tempo, menina? Diga lá a este seu amiguinho.

       - Estive naquela ilha, além! Conta-lhe tudo, Júlio.

       E, assim o Júlio contou toda a aventura desde o começo ao fim. O polícia de serviço veio tomar apontamentos de tudo o que Júlio dissera. Os outros polícias ouviram a história, boquiabertos. E, quanto ao pai da Zé, estava ainda tão  assombrado que nem proferia palavra. Que aventuras que os quatro pequenos tinham corrido! E como tinham resolvido tudo tão bem!

       - E saberá, por acaso, quem é o dono do barco que levou esta menina Jenny para a ilha? - perguntou o Inspector.  

       - Não. O que ouvimos dizer foi que um tal Roamer era esperado na ilha nessa noite.

       - Ah! - exclamou o inspector esfregando as mãos de satisfeito. - Nós conhecemos muito bem esse Roamer. É um barco que já nos tem dado muito que fazer e anda sempre metido em negócios escusos. Agora é que o vamos apanhar. E esses Sticks? Onde é que estarão? E como é que os podemos apanhar “com a boca na botija”, agora que os meninos já lhes surripiaram a menina Jenny? São muito capazes de negar tudo.

       - Há uma maneira de os agarrar! - asseverou Júlio rapidamente.

       - Na mesma cela onde tinham a Jenny deixámos o filho deles, preso. Se fosse possível fazer-lhes saber que o Edgar lá estava, eles regressariam à ilha e iriam direitinhos às catacumbas. E se os senhores guardas os apanhassem lá, não poderiam dizer que não sabiam de nada e que nunca tinham posto os pés na ilha.

       - É uma maneira, sim senhor! Não há dúvida! - disse o Inspector, dando ordem ao outro polícia que procurasse um casal com os sinais que Júlio dera dos Sticks.

       - Quando forem encontrados, o Júlio poderá ir falar-lhes acerca do filho Edgar, - disse o Inspector sorrindo. - Se voltarem à ilha, iremos atrás deles e conseguiremos as provas de que necessitamos. Muito obrigado pela vossa grande ajuda! E agora temos de telefonar já aos pais da menina Jenny, a tranquilizá-los!

       - A Jenny pode vir connosco para o Casal Kirrin! - disse o pai da Zé, ainda não refeito de espanto, por tudo quanto se passara. - A Joana voltou para ficar uns dias e tomar conta dos meninos! A Jenny pode lá ficar connosco até a virem  buscar.

       - Ouça, pai! - disse Zé firmemente, - vamos para casa, mas só por hoje, pois tencionamos ir passar outra semana à ilha Kirrin até a mãe voltar. Ela tinha-me dito que podíamos, e temo-nos divertido tanto que ir agora para casa é uma sensaboria. A Joana pode ficar a arrumar a casa para quando a mãe vier, que nós na ilha governamo-nos muito bem sozinhos.

       - A minha opinião - comentou o Inspector - é que vocês merecem uma boa recompensa pelo bom trabalho que fizeram. E isso parece resolver o assunto.

       - Muito bem! - disse o pai da Zé. - Podem voltar para a ilha, mas regressam a casa logo que a mãe chegar!

       - Pois claro! - respondeu a Zé. - Estou com tantas saudades da mãe! Mas, sem ela, não me apetece nada ficar em casa. A ilha é bem mais divertida.

       - Eu também quero ir, - disse Jenny, inesperadamente. - Senhor Inspector, diga a meus pais que venham a Kirrin. Quero-lhes pedir para ir com os outros, sim?

       - Farei o possível! - disse o Inspector, piscando o olho às cinco crianças.

       O pai da Zé levantou-se.

       - Vamos então! São horas de almoçar. Iremos ver se a Joana nos preparou alguma boa petisqueira, acrescentou já de bom-humor.

       E lá foram todos, a falar ao mesmo tempo, fazendo com que o pai da Zé se sentisse à vontade. Logo que os primos se reuniam, acontecia sempre qualquer aventura fantástica. E nessas andanças ele se via também sempre ensarilhado.

      

                          REGRESSO à ILHA KIRRIN

       Pouco depois achavam-se todos reunidos no Casal Kirrin. Joana, a antiga cozinheira da casa, recebeu-os alegremente e enquanto acabava de fazer o almoço ouvia estarrecida contar as aventuras dos meninos. Foi quando se sentaram à mesa que Júlio, ao olhar pela janela, viu subitamente uma figura que conhecia muito bem.

       - O pai Stick! - exclamou o rapaz levantando-se. - Vou atrás dele! Vocês fiquem aqui. Saiu de casa a correr, dobrou a esquina e deu de caras com ele.

       - Então, Sr. Stick! Quer saber onde está o seu Edgar? - perguntou-lhe Júlio, misteriosamente.

       Stick arregalou os olhos, olhando para o Júlio sem saber que dizer.

       - Está nas catacumbas, - informou Júlio, ainda mais misteriosamente - fechado naquela cela.

       - O que sabe o menino a respeito do nosso Edgar? - perguntou o Stick. - Onde é que o menino esteve? Julguei que tinha ido para a cidade.      

       - Não interessa, - redarguiu Júlio. - Interessa agora, é que o Edgar está nas catacumbas!

       O velho Stick olhou para Júlio e afastou-se rapidamente. Júlio correu para casa e telefonou à polícia. Tinha a certeza de que o velho diria à mulher o que ele lhe dissera e esta insistiria em voltar à ilha para ver se o filho estava de facto nas catacumbas. Portanto, bastava agora que Júlio avisasse a polícia e que esta vigiasse bem a baía para ver se algum barco se dirigia à ilha.

       Os pequenos acabaram de almoçar e o tio Alberto anunciou que tinha de voltar para o hospital, a dar as notícias à mãe da Zé.

       - Apenas lhe direi que vocês estão a passar umas férias na ilha. Quando ela voltar para casa então lhe contaremos todas as vossas aventuras. Valeu?

       E foi-se de automóvel e os pequenos pensaram em voltar logo para a ilha. Por fim, acharam que era melhor não ir ainda, por causa de Jenny. Pouco depois apareceu na estrada um grande automóvel que parou mesmo à porta de casa. Eram os pais de Jenny; ele, um homem alto, elegante, ruivo, e ela, uma senhora muito bonita e ainda nova. Correram para Jenny, encheram-na de beijos e de abraços, e Júlio teve de contar de novo a história das suas aventuras. Os pais de Jenny agradeceram-lhe efusivamente e depois beijaram-nos por terem salvo a sua rica filha.

       - Peçam o que quiserem! - disse o sr. Armstrong. - Prometo que farei tudo o que me for possível. E tudo o que fizer por vocês é pouco. Não sabem como lhes estou grato por terem salvo a minha Jenny.

     - Não queremos nada, muito obrigado, - disse o Júlio, delicadamente. - Divertimo-nos muito, porque gostamos imenso de aventuras deste género, sabe?

       - Não, não. Tens de me pedir qualquer coisa! - insistiu o pai de Jenny.

       O Júlio olhou para os outros. Sabia que nenhum deles queria qualquer recompensa. Jenny piscou-lhe o olho e fez-lhe um sinal insistente.

       - Sim, - disse finalmente o Júlio. - Há uma coisa que lhe queria pedir.

       - Tudo o que quiser! - exclamou o pai de Jenny, contente por poder fazer qualquer coisa pelos novos amiguinhos de sua filha.

       - Deixe que a Jenny venha passar uma semana connosco à ilha, - pediu Júlio. E Jenny deu logo um pulo, de contente que estava com essa idéia.

       Os pais de Jennifer sentiram-se um tanto embaraçados com o pedido.      

       - Bem, bem!... começou o sr. Armstrong. - Bom!... Ela acaba de nos ser raptada, sabe? E não a queríamos perder de vista durante uns dias, e...

       - O paizinho prometeu fazer tudo o que o Júlio pedisse! - disse Jenny, já com uma lágrima ao canto do olho. - Deixem-me ir! Nunca terei outra ocasião de viver numa ilha. E esta tem uma gruta muito engraçada, e um castelo em ruínas, e as catacumbas onde eu estive presa, e...

       - E nós levamos o nosso cão, Tim, connosco, - interrompeu Júlio. - Como vê, é um cão fortíssimo, muito inteligente e nunca ninguém se atreve a meter-se connosco quando ele está ao pé de nós. Não é verdade, Tim?

       - Uf! - fez o cão, como a confirmar, no seu mais profundo tom de voz.

       - Então, está bem, Jenny! Mas só com uma condição! - consentiu, por fim, o sr. Armstrong. - E a condição é que eu e a tua mãe vamos passar amanhã o dia convosco, para verificarmos se essa famosa ilha é de tanta confiança.

       - Obrigado, paizinho, obrigado! - exclamou Jenny, saltando a dançar e a pular pelo quarto. - Uma semana inteira na ilha, com estes meus novos amiguinhos, e aquele lindo cão! Não havia nada melhor!

       - A Jenny pode então cá ficar já esta noite, não pode? - perguntou a Zé.

       Os pais de Jenny disseram que sim e foram dali à polícia para ver se já sabiam alguma notícia dos raptores. Os pequenos correram para a cozinha a pedir à Joana que lhes fizesse muitos bolos para o chá. Por volta das cinco horas bateram à porta. Era um enorme agente da polícia, que queria falar a Júlio.

       - Os Sticks acabam de largar para a ilha, - informou o polícia. - E nós vamos agora segui-los no vosso barco. - Mas como não conhecemos aquelas rochas à volta da ilha, vínhamos pedir que a Menina Maria José nos fosse mostrar o caminho.

       - Eu não sou a Menina Maria José, mas sim a Zé! - emendou ela friamente.

       - Desculpe-me, Zé! - disse o polícia amavelmente, sorrindo. - Mas faz-nos esse grande favor?

       - Vamos lá todos então! - exclamou David, levantando-se de um pulo. - Já estou cheio de saudades da nossa ilha e não sei porque é que havemos de desperdiçar uma noite. Ficamos lá já hoje, e amanhã mandamos o barco buscar os pais da Jenny.

       O polícia pareceu hesitante, por não saber se caberiam todos no barco. Mas as crianças insistiram, e, como não havia tempo a perder, lá se meteram todos no escaler, juntamente com três polícias e, claro está, o Tim.

       A Zé tomou, com a perícia habitual, o comando do barco e depressa se encontraram na pequena enseada da ilha. Os Sticks, como era costume deles, tinham, evidentemente, contornado a ilha e atracado do lado rochoso, onde estava o navio naufragado.

       - Agora, pouco barulho! - recomendou Júlio. Dirigiram-se cautelosamente ao castelo e chegaram ao pátio. Os Sticks não se viam em nenhum sítio.

       - Vamos às catacumbas! - disse Júlio. - Tenho aqui a lanterna. Os Sticks devem estar à procura do seu precioso Edgar.

      A Ana também foi, desta vez, apertando muito a mão de um dos polícias. Chegaram à cela onde se encontrava Edgar e verificaram que a porta ainda estava trancada; portanto, os Sticks ainda lá não tinham chegado.

       - Caladoos! - disse a Zé. - Vem aí alguém. Escondam-se! Devem ser os Sticks.

       As cinco crianças, os três polícias e o cão não perderam tempo e esconderam-se nas sombras do escuro corredor. Ouviram passos e, depois, a voz muito irritada da mãe Stick.

       - Não! Se o meu Edgar ali está fechado, isto não fica por aqui! Trancarem o pobre inocente num subterrâneo! Não percebo nada. Se o rapaz lá está, onde é que está então a rapariga? Ora, diz-me lá! Onde é que está a rapariga? Sabes o que me parece? Que o patrão nos armou qualquer partida, para não ter de nos pagar a nossa parte. Não nos prometeu ele cem libras, se guardássemos bem a rapariga na ilha, durante uma semana? Pois quer-me parecer que ele mandou alguém à ilha para nos assustar, levando-a consigo e pondo o nosso Edgar em seu lugar.

       - Pode ser que tenhas razão, - concordou o velho Stick. - Mas como é que o pequeno Júlio sabia onde estava o Edgar? Tudo isto está a tornar-se complicado de mais para mim.

       Os Sticks tinham chegado em frente da cela, e a mãe Stick começou a chamar:  

       - Edgar! Edgar! Estás aí?

       - Mãe, mãezinha. Estou, estou aqui! - gritou o rapaz. - Abra-me a porta. Depressa! Estou cheio de medo. Abra-me a porta!

       A Sra.Stick abriu imediatamente a porta e, ao ver Edgar, à fraca luz do candeeiro, correu para ele de braços abertos.

       - Quem é que te pôs aqui? - perguntou ela, exaltada. - Diz-nos depressa, que o teu pai e eu te havemos de vingar. Fechar um pobre rapaz numa caverna destas! Que barbaridade!

       Foi nesse momento que a família Stik apanhou o maior susto da sua vida. Um enorme polícia apareceu-lhes pela frente, com uma lanterna na mão e um livro de apontamentos na outra.

       - Tem toda a razão, Sra. Stick! - disse o polícia num tom de voz muito profundo. - Trancar uma criança nesta cela é uma barbaridade, e foi isso que vocês fizeram, não foi? Foi nessa cela que fecharam a pequena Jenny Armstrong! E ela não passa de uma criança. Esse vosso rapaz sabia que não lhe havia de acontecer nada de mal, pois, mais tarde ou mais cedo, vocês viriam libertá-lo. Mas a pobre menina, essa, apanhou um valentíssimo susto, e com razão.

       A velha Stick não encontrava palavras para responder. Não fazia mais do que abrir e fechar a boca como os peixes fora de água. Stick encostou-se á parede, como um rato acossado por um gato.

       - Foi o patrão que nos denunciou! Fomos atraiçoados! Eu não te dizia?  - resmungou a velha.

       Edgar desatou a chorar, soluçando. Os pequenos não tiveram nenhum dó dele. Era um tal cobarde! Só então é que os Sticks repararam na presença das crianças.

       - Olha! Os meninos todos, e a Jenny Armstrong, também! - exclamou o velho Stick, espantado. - Que quer isto dizer? Que se passa? Quem é que fechou o pobre do Edgar?

       - Basta de perguntas! - respondeu o polícia. - Vamos até à esquadra e lá se explicará tudo. Vêm a bem ou é preciso algemá-los?

       Os Sticks, vendo que era impossível resistir, resolveram acompanhar os polícias sem discutir, com o Edgar a soluçar, imaginando já o pai e a mãe na prisão e ele próprio fechado num reformatório, longe dos pais e do Sarnoso. Não que isso tivesse importância, porque os Sticks, tanto o pai como a mãe, não eram pessoas para a educação do rapaz e só lhe ensinavam coisas más e desagradáveis. Assim, se o rapaz ficasse separado dos pais ainda havia uma possibilidade de se emendar e de esquecer completamente o mau exemplo que os Sticks representavam.

       - Nós ficamos cá, - disse Júlio aos polícias. - Passamos aqui a noite e os senhores guardas podem ir no barco dos Sticks, que conhecem bem o caminho.

       Foram todos até às rochas onde ficara o escaler dos Sticks e Júlio ajudou a empurrá-lo para a água.

       - Adeus! - gritou Júlio, e os outros também acenaram, despedindo-se daquela aventura que agora terminava. - Adeus, Sr. Stick, não roube mais crianças! Adeus Sra. Stick, tome bem conta do Edgar para o não raptarem outra vez! Adeus, Edgar e vê lá se te emendas! Adeus, Sarnoso e toma banho, quando te vires livre dos Sticks. Adeus a todos!

       Os polícias riram-se e acenaram também. Os Sticks não disseram nem uma palavra e, claro, não corresponderam às despedidas. Ainda estavam a magicar no que acontecera, não percebendo de todo como é que as coisas tinham chegado àquele ponto.

       O barco afastou-se e as crianças depressa o perderam de vista.

       - Pronto! - exclamou David. - Já se foram embora, e para sempre, espero! Agora temos a ilha só para nós. Vem daí, Jenny. Vamos mostrar-te a nossa ilha de ponta a ponta. Garanto-te que nos havemos de divertir imenso.

       E lá foram a correr, endiabradamente, cinco petizes e um cão, sozinhos na ilha que adoravam. E, agora, deixemo-los brincar à vontade durante uma semana inteira, pois ninguém pode dizer que não o mereceram.

 

                                                                                Enid Blyton  

 

                      

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