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OS CRIMES DA ROSA AZUL - P.2 / Peter Straub
OS CRIMES DA ROSA AZUL - P.2 / Peter Straub

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

OS CRIMES DA ROSA AZUL

Segunda Parte

 

O LAGO DA ÁGUIA

— Dois dias mais tarde, às sete e meia da manhã, um Victor Pasmore com a barba por fazer colocou uma das malas de Tom à frente da entrada principal do Campo David Redwing. As roupas amarrotadas de Victor cheiravam a suor, fumo e bourbon. Até suas sobrancelhas estavam em desalinho.

— Obrigado por trazer-me de carro até aqui.

Tom desejou poder abraçar o pai ou dizer-lhe qualquer coisa afetuosa, mas Victor estava irritado e de ressaca. Ele recuou um passo e olhou ansiosamente para seu carro, parado junto à calçada, em uma zona de estacionamento proibido. Além da estrada de acesso ao aeroporto, o pátio quase vazio já irradiava ondas de calor, ao sol da manhã.

— Tem aí tudo de que precisa? Está tudo certo?

— Claro — respondeu Tom.

— Eu, hum, acho melhor tirar o carro daqui. Nos aeroportos costumam rebocar a gente. — Victor o fitou com olhos semicerrados. Seus olhos também pareciam amarrotados. — É melhor não comentar nada com ninguém, entenda, sobre aquilo que lhe contei. Ainda é ultra-secreto. Faltam os detalhes, coisas assim.

— Tudo bem.

Victor assentiu. Um odor acre desprendeu-se dele até Tom.

— Certo. Vá com calma.

— Tudo bem.

Victor entrou no carro e fechou a porta. Acenou para Tom através da janela do passageiro. Tom acenou de volta, e seu pai fez o carro saltar para diante, rodando em direção à estrada de acesso. Tom o viu observando um lado e outro, à procura de motoristas com quem irritar-se. Quando o carro desapareceu de vista, ele recolheu suas malas e encaminhou-se para o terminal.

O prédio era um comprido bloco de concreto, com dois balcões aeroviários, uma mesa onde alugavam carros, um estande de souvenirs e uma estante para revistas, estocadas com The Lady, Harpers Queen, Vogue, Life e as revistas noticiosas americanas. Em uma extremidade ficava a área de bagagens — uma esteira rolante e vinte metros quadrados de linóleo, manchado por um charco permanente de líquido amarelo contra a parede oposta — e na outra extremidade, um bar chamado Hurricane Harry’s, com banquetas de vime, teto de palha e uma máquina automática para sanduíches.

Tom tentara ligar para Lamont von Heilitz três vezes no sábado, mas o Sombra não atendeu a seus telefonemas. Curioso sobre Barbara Deane, ele apanhara a caixa cinzenta de metal em que seus pais guardavam papéis importantes, na prateleira do estúdio, e folheara os documentos, da certidão de propriedade da casa e do carro ao certificado de casamento deles, de inúmeros documentos legais a certificados de ações, até encontrar sua certidão de nascimento. O dr. Bonaventure Milton o assinara, Barbara Deane e Glendenning Upshaw apareciam como testemunhas, e um homem chamado Winston Shaw, tabelião da ilha de Mill Walk, atestara a veraci­dade do documento.

Tom retornou à certidão de casamento e a tirou da caixa. Também ela fora testemunhada por Glendenning Upshaw e Barbara Deane. Winston Shaw tornara a incumbir-se de sua tarefa. Glória Ross Upshaw, de Mill Walk, tinha-se casado com Victor Laurence Pasmore, de Miami, Florida, Estados Unidos, em 15 de fevereiro de 1946.

Inicialmente, Tom reparou na singularidade de sua parteira haver sido testemu­nha no casamento de seus pais; em seguida, algo sobre a data o fez franzir a testa. Seus pais tinham-se casado em fevereiro; ele nascera a vinte de outubro. Contou nos dedos, e viu que fevereiro e outubro ficavam exatamente a nove meses de distância.

E era assim, pensou ele, como um empregado da Construtora Mill Walk casava com a filha do patrão. Houvera um romance: quando Glendenning Upshaw soubera que a filha estava grávida, voou com ela e o namorado para casa, em Mill Walk, onde encomendou uma cerimônia civil, da maneira como encomendaria o serviço de quarto em um hotel.

Tornou a colocar a caixa de metal na prateleira e foi até a cozinha. Sua mãe estava sentada à mesa, diante dos pratos do almoço, tendo na mão o frasco de plástico marrom com as pílulas e olhando apaticamente para a geladeira. Quando ela o viu, sorriu, como alguém recordando que deveria sorrir, e lentamente colocou o prato dele sobre o seu.

— Deixe que eu faço isso — disse ele, tirando-lhe os pratos e colocando-os na lavadora de pratos. Glória passou-lhe os copos. — Tudo bem com você? — perguntou.

— Acho que estou um pouco fraca — disse ela.

— Quer que a ajude a ir para cima? Ou prefere ir para outro cômodo?

Ela meneou a cabeça.

— Não se preocupe comigo.

Tom sentou-se ao lado dela. Sabia que, se passasse um braço em torno da mãe, esta recuaria.

— Eu gostaria de saber sobre essa Barbara Deane — falou.

Os olhos de Glória viraram-se rapidamente para ele, depois desviaram-se, e uma linha vertical lhe surgiu entre as sobrancelhas.

— Ela está tomando conta de seu velho chalé, ou coisa assim. Você a conhece?

— Ela é uma amiga de papai.

— Foi namorada dele ou coisa assim?

A linha vertical desapareceu, e ela sorriu.

— Ela nunca foi namorada de ninguém. Especialmente de papai! — Depois acrescentou: — Barbara Deane trabalhava no hospital. — Como se fosse tudo quanto havia para dizer. Então, encarou o filho: — Fique longe dela. Ela é esquisita.

— Esquisita, por quê?

— Oh, eu não sei! — Glória suspirou. — Não quero falar sobre Barbara Deane!.

Entretanto, quando Tom foi arrumar as malas, Gloria foi até seu quarto, certificar-se de que ele levava um calção de banho, sapatos para barco, suéteres, gravatas e um blusão. Tom ia ocupar seu lugar no mundo e precisava estar vestido para as noites frias.

Às oito horas, um homem barrigudo, de óculos escuros e chapéu de vaqueiro, carregou uma enorme mala através das portas giratórias. Foi seguido por uma mulher loura, com penteado à Jackie Kennedy, com imensos óculos escuros e minissaia preta. Ela puxava atrás de si uma mala de tamanho médio, sobre rodinhas. O homem barrigudo olhou enviezadamente para o bar às escuras, franziu as sobrancelhas ao ver Tom, e sacudiu a cabeça para as mulheres nos balcões das linhas aéreas, as quais murcharam em suas banquetas. Então, Sarah Spence cruzou a porta eletrônica, carregando uma mala pequena, como o Ursinho da história. Vestia uma camisa azul abotoada na frente, de mangas arregaçadas, e short cáqui.

— Tom! — exclamou ela. — Bingo ficou tão infeliz! Acho que o coração dele despedaçou-se! Podíamos tê-lo dado para o Percy... — e ela desenhou no ar, com a mão livre, o contorno de um grande avental à sua frente.

— Percy de quê? — perguntou sua mãe, baixando os óculos escuros no nariz e dirigindo a Tom um olhar clínico.

O sr. Spence pousou sua mala no chão e examinou Tom, através dos óculos escuros.

— Quer dizer que está tomando uma carona conosco lá para o norte, não é?

— Sim, senhor — disse Tom.

— Quem é esse Percy? — perguntou a mãe de Sarah. — Dar o que a Bingo?

— Ração especial para cães — disse Sarah. — Percy é amigo de um amigo de Tom.

A sra. Spence empurrou os óculos escuros para o alto do nariz. Era uma mulher vistosa, que obviamente conhecia os nomes de cada membro do Clube dos Funda­dores. Suas pernas eram quase jovens o suficiente para aquela minissaia.

— Essas duas malas são suas?

Tom assentiu, e a sra. Spence olhou para as malas dele, através dos óculos escuros.

— O piloto deveria estar aqui, esperando — disse sr. Spence. — Foi esse o trato. Acho melhor eu ir procurar o sujeito.

Lançando outro olhar para o bar, ele encaminhou-se em direção à área de bagagem com a poça amarela.

— Bem, não vejo o motivo para mudanças de última hora — disse a sra. Spence, dirigindo-se ao ar. Em seguida, fixou Tom com um sorriso que cobriu todo o trajeto até os cantos de seus óculos escuros. — E sua mãe é Glória Upshaw, não é?

— Ela foi Glória Upshaw — disse Tom. — Antes do casamento.

— Um amor de criatura — disse a sra. Spence.

— Tudo bem, já resolvemos a situação — disse O sr. Spence. — O piloto nos aguarda na sala de espera dos Redwings.

— Claro que sim — disse a sra. Spence.

Seu marido ergueu a mala enorme que carregava e começou a mover-se para a porta próxima ao teto do bar. A sra. Spence murmurou qualquer coisa e o seguiu com sua mala tamanho médio de rodinhas, puxando-a atrás das pernas bem-tornedas. Sarah abraçou-o, enquanto os pais estavam de costas. Depois, batendo-lhe nas costas com sua pequenina mala, sussurrou:

— Não ligue demais para eles, por favor. E não preste atenção a seja o que for que disserem.

No outro lado da porta, sofás e poltronas de couro negro tinham sido arranjados em torno de mesinhas com tampo de mármore, sobre um espesso tapete cinza. Um garçom de jaqueta branca mantinha-se em pé atrás de um bar, em cujo balcão havia um jarro de suco de laranja, um bule de prata para café e bandejas de pãezinhos para o desjejum, cobertos com plástico aderente.

— Oh! — exclamou a sra. Spence. — Bem, eu sabia!

Um homem alto e muito bronzeado, vestindo uniforme azul-escuro, baixou sua xícara de café e postou-se diante de um dos sofás.

— É a família Spence?

— E uma pessoa chamada Tom Pasmore — disse a sra. Spence. — Sabia que ele também ia?

O piloto sorriu.

— Não haverá problema algum, sra. Spence. — Ele abriu uma porta ao lado do bar e saíram todos para o calor da pista. Um lustroso jato cinza, com uma heráldica letra R, estava parado a pouca distância dali. — Por falar nisto, sou o capitão Mornay, mas os convidados do sr. Redwing costumam chamar-me de Ted — acrescentou o piloto.

— Oh, Ted, muito obrigada! — exclamou a sra. Spence.

Em seguida, ela cruzou a pista alcatroada em direção à escada que dava para a porta aberta do jato.

O interior do avião emparelhava-se à sala de espera dos Redwings. Um carpete cinza cobria o piso e anteparos, enquanto poltronas de couro negro situavam-se à volta de mesas com tampo de mármore negro. Um bar com um comissário de jaqueta branca ficava ao lado de um corredor com a cortina aberta. No outro lado do bar e do corredor, Tom viu dois compartimentos separados por vidros enfumaçados. Uma porta foi aberta na traseira do avião, e um carregador começou a entregar suas bagagens ao comissário, que por sua vez as colocou em prateleiras na extremidade traseira do avião, as quais ficaram fechadas atrás de uma porta acarpetada.

A seguir, o comissário pediu a eles que escolhessem seus lugares e colocassem os cintos. Depois disso, o homem internou-se no corredor.

— Bem, Tom, acho que nos sentaremos nesta pequena e encantadora área bem aqui — disse a sra. Spence.

Ela sorriu radiosamente, ocupou seu assento e bateu na poltrona ao lado, após olhar para Sarah. Havia três poltronas em torno da mesa negra.

— Eu e Tom podemos sentar-nos aqui — disse Sarah. — Dessa maneira, ficaremos praticamente sentados à mesma mesa.

Ela ocupou a poltrona do primeiro grupo mais próximo da mesa de sua mãe e a fez girar, para mostrar-lhe o quanto estavam próximas. O sr. Spence sentou-se com um grunhido e colocou seu chapéu de vaqueiro na mesa. A sra. Spence empurrou os óculos escuros para o alto da cabeça e sorriu ferozmente.

— Somente vinte homens na América possuem jatos como este — comentou ela. — Frank Sinatra tem um. E também Liberace, creio. Alguns outros são mais exibicionistas, porém o de Ralph é que tem mais gosto. Sem dúvida, sinto-me muito mais feliz neste jato do que ficaria no de Frank Sinatra. Ou no de Liberace.

— Oh, eu adoraria estar no jato particular de Liberace — disse Sarah. — Ficaria eufórica, em um jato onde tudo tivesse forma de piano e fosse coberto de arminho. Você não acha que jatos particulares não deviam exibir bom gosto?

— Pois eu lhe sugiro que aprenda a gostar deste — replicou sua mãe, em tom cortante. — Irá vê-lo muitas vezes. — Ela girou na cadeira, fazendo a saia subir ainda mais sobre as coxas, e passou os olhos pelo resto da cabina. — Aquelas cabinazinhas não são uma graça? Adoro essas cabinazinhas. Até posso ver Buddy sentado em uma dessas cabinazinhas. Ou na carlinga. Buddy tem mesmo um tipo de piloto, não tem?

— Posso ver Buddy pilotando o bar — replicou Sarah.

— Não entendo você! — exclamou sua mãe. — Como pode falar assim?

— Tom é muito corajoso e decidido, mamãe. Faz excursões maravilhosas. Tem amigos interessantes em toda parte.

— Posso imaginar — disse a sra. Spence. — Será que teremos champanha neste vôo? Creio que champanha seria o mais correto, não?

O sr. Spence empurrou o ventre, levantou-se e foi ao corredor encortinado. Quando uma garrafa de cerveja, dois copos de suco de laranja e um balde de gelo com uma garrafa de champanha foram postos em cima da mesa, a sra. Spence ergueu a taça e exclamou:

— Ao verão!

Todos beberam.

— A senhora conhece Ralph Redwing há muito tempo? — perguntou Tom.

— É claro — respondeu a sra. Spence.

— Nem tanto — respondeu o sr. Spence, quase simultaneamente, e os dois entreolharam-se, com graus diferentes de irritação.

— Bem, naturalmente, nós nos movemos nos mesmos círculos, desde que o sr. Spence assumiu a Corporate Accounting, para Ralph — disse a sra. Spence. — Entretan­to, só nos tornamos realmente próximos, nos dois ou três últimos anos. Poder-se-ia dizer que Buddy e Sarah nos uniram, e ficamos felicíssimos por isso. Sim, felicíssimos!

O senhor faz todo o trabalho contábil para a Redwing Holding Company? — perguntou Tom.

— Nem de longe — respondeu o sr. Spence. — Eu me incumbo do trabalho para a fábrica de latas, de tudo o relacionado a bens imóveis, da cervejaria e de alguns negócios isolados. Dá para sobrecarregar. Acima de mim há o contador-geral, a quem me reporto, e então o vice-presidente do Departamento Contábil, que fica acima dele.

— Então, é o senhor que faz o trabalho de contabilidade relativo aos Pátios Elíseos e ao antigo bairro escravo?

O sr. Spence assentiu.

— Tudo isso é receita.

— Nunca tinha visto champanha em garrafa clara antes — disse a sra. Spence, tornando a encher sua taça. — Ela não fica estragada ou qualquer coisa, engarrafada assim?

— Você talvez não saiba — disse o sr. Spence — mas certa vez seu avô prestou-me um grande favor. Ele é o motivo pelo qual agora trabalho para Ralph.

— Oh, é mesmo?

— Sou originário do Iowa. Eu e a sr. Spence conhecemo-nos na universidade, ainda lá. Quando nos casamos, ela quis tornar a viver em sua terra, Mill Walk. Assim, vim para cá e consegui um emprego com seu avô. Tínhamos uma bela casinha, na enseada do Olmo. Em dez anos, eu fazia cerca de metade do trabalho contábil dele — seu avô faz tudo por instinto, compreenda — e pudemos ter nossa casa na The Sevena.

— Uma das casas mais antigas na extremidade leste da ilha — disse a sra. Spence.

— Fazia mais de vinte anos que estava desabitada. Parecia um museu, quando nos mudamos para lá. Uns dois anos mais tarde, ele nos vendeu a nossa cabana — um negócio semelhante. Fica fechada, quando tudo gela por lá. De qualquer modo, com a posse da cabana, ficamos em maior contato com Ralph e seu pessoal. E quando Ralph apareceu um dia em meu escritório, dizendo que gostaria de oferecer-me um emprego, tive as bênçãos de seu avô. — Ele havia terminado a primeira cerveja, enquanto falava. — Assim, tudo funcionou a contento, poder-se-ia dizer.

— O proprietário dessa casa não era um homem chamado Anton Goetz?

— Negativo. Ele trabalhou para seu avô — fez muito dinheiro também! Para um contador, quero dizer. A verdadeira posse da casa pertencia a uma corporação fantasma que era parte da Construtora Mill Walk, se pensar bem. O mesmo era válido para a nossa cabana. Dessa maneira, acho que economizávamos algumas moedas em impostos.

— Creio ter ouvido certa vez que Goetz era dono do Hotel St. Alwyn — disse Tom.

— Ele talvez dissesse isso, talvez fosse conhecido como dono aqui e ali, mas seu avô ainda é o dono do St. Alwyn. Juntamente com Ralph, claro está.

— Oh, claro — disse Tom. — Parece que meu avô também possui parte dos Pátios Elíseos.

— E do antigo bairro dos escravos. Sem dúvida. Já faz muito tempo, desde que Glendenning Upshaw e Maxwell Redwing praticamente dividiam a ilha entre si. Sempre cada vez mais, naturalmente. Portanto, hoje Glen e Ralph continuam parcei­ros em um bocado de coisas. Em seu trabalho, há muita coisa em parceria.

— Basta de tanta conversa sobre negócios! — exclamou a sra. Spence. — Não estou neste avião para ouvir falar das favelas de Mill Walk e de quem é dono do quê. Sarah irá para a universidade no outono... Tom — ela parecia sentir dificuldade em pronunciar o nome dele — todos achamos que um ou dois anos de universidade em uma boa escola, irão deixá-la preparada para a vida que desejamos que tenha. Eu mesma fiz dois anos de universidade, e foi tudo de que precisei. Naturalmente — ela olhou com ar de recato para a filha — se Sarah pedir transferência para o Arizona, onde a universidade também é maravilhosa, as coisas podem ficar diferentes.

— Eu e Tom faremos agora uma excursão, mamãe — disse Sarah. — Vamos explorar os fundos deste avião e ver se, nos cinzeiros, foram escondidos dispositivos de gravação.

Ela pegou a mão de Tom e levantou-se.

— Um fato interessante — disse o sr. Spence — é que eu jamais soube de algum Redwing casando-se com uma mulher que não viesse de seu próprio meio. Todos eles casam-se com pessoas a quem conheceram quase a vida inteira. É assim que mantêm essa dinastia indo para diante. E eu lhe digo outro fato interessante — ele piscou para Tom: — todos casam-se com mulheres bonitas.

— E eles as encontram, com desconto, no mercado de mulheres bonitas — disse Sarah, puxando Tom para longe da mesa.

Ela parou no bar, e o comissário inclinou-se para diante.

— O que mulheres bonitas bebem? O que é uma bebida bonita?

— Tenha modos, Sarah! — disse sua mãe.

O comissário disse que conhecia uma bebida bonita, e despejou uma pequena dose de cassis* em uma afilada, completando-a com champanha de uma nova garrafa.

* Espécie de groselha escura, com folhas aromáticas, de cujo fruto se fabrica um licor. (N. do E.)

 

— Certamente, é isto o que bebem as mulheres bonitas — disse Sarah. — Obrigada. Tom, tenho certeza de que há indianos escondidos na traseira deste avião. Vamos juntar-nos a eles!

Ela percorreu em passos largos todo o comprimento do jato, espiando em cada um dos compartimentos até chegar ao último, oposto ao compartimento de bagagem.

— Aqui estão eles! — Ela entrou e sentou-se em um dos compridos assentos, bebericou seu drinque e o colocou em cima da mesa. Tom sentou-se defronte a ela. — Os indianos somos nós — disse Sarah. — Beba metade disto.

Ele bebeu um pequeno gole e tornou a colocar a taça diante dela. Os olhos de Sarah queimavam, fixos nele. Erguendo a taça, ela também sorveu um gole.

— Vou cortar meu cabelo. Vou usar blusas de gola rolê e jeans. Vou ter um irmão caladão chamado Bill. Arranjarei móveis na lixeira. Afinal de contas, é lá que estão todas as coisas que valem a pena.

A voz tranqüilizadora do capitão Ted Mornay soou em um alto-falante invisível, avisando que voavam a trinta mil pés acima da Carolina do Sul, que esperavam pousar no Lago da Águia segundo o programado e que deveriam ter um vôo calmo.

Sarah tomou mais um gole de seu drinque.

— Eu podia começar a ver certas vantagens na beleza. Acha que seria possível para você ir até o bar e conseguir mais um drinque com aquele homem encantador? Quero dividi-los, de maneira como Nancy Vetiver divide cervejas.

Tom retornou ao bar e conseguiu um segundo Kir Royale.** Nenhum dos Spences olhou para ele. Quando retornou ao compartimento, Sarah disse:

** Drinque feito da mistura de licor ou creme de cassis com champanha. (N. do E.)

 

— Ótimo! Agora, você é também uma mulher bonita. Sem dúvida, fará um casamento excelente.

Tom sentou-se ao lado dela. A bebida leve e adocicada borbulhou em sua língua.

— É deselegante alguém desculpar-se pelos pais, ainda que eles sejam francamente horríveis?

— Não precisa desculpar-se. Gostei de conversar com seu pai.

— Gostou especialmente dos fatos interessantes?

Os dois beberam de seus drinques.

— Pelo menos, agora compreendo o que você dizia, quanto a outras pessoas a forçarem a fazer coisas.

— Bem, já é alguma melhora — disse Sarah. — Não se trata apenas de meus pais, no momento tão excitados, que mal conseguem conter-se. São os pais dele também. Ralph Redwing envia sua carruagem para apanhar-me, depois das aulas de dança! Sou escoltada até em casa! Katinka Redwing quer dar-me lições de golfe! Por que acha que estamos neste avião?

— Eles não podem fazê-la casar com Buddy — disse Tom.

— Ah, mas é como ser o Dalai Lama. Somos escolhidos ainda na infância e eles planejam todo o resto de nossa vida. Cercam-nos de atenções, de presentes e de sua maravilhosa convicção de sermos realmente especiais, porque podemos nos tornar um deles — e depois, que somos um deles. Então, nosso pai consegue um novo e formidável emprego, nossa mãe simplesmente presume que... bem, ela simples­mente presume, eis tudo. De repente, ela é a Rainha Mãe.

— Ainda assim, não terá de casar com ele — disse Tom.

— Beba um pouco mais disso — ordenou ela.

Ele bebeu.

— Mais.

Ele tomou dois goles, e Sarah apontou para o copo. Tom bebeu novamente. O copo de Sarah estava vazio.

Então, os braços dela o envolveram, o rosto era uma mancha contra o dele, a boca suave procurou a sua. A língua dela penetrou-lhe na boca. Beijaram-se durante um longo tempo, quando então ela se moveu para o seu colo, e beijaram-se ainda mais demoradamente. Tom ouvia as vozes dos Spences chegando até ele, como se viessem de uma longa distância.

— Para que acha que são estes compartimentos? — sussurrou Sarah. — Mal podemos ouvi-los e eles não nos ouvem, em absoluto.

— Será que não virão até aqui?

— Eles não ousariam. — Os rostos estavam tão colados, que Tom se sentiu engolfado por Sarah Spence. — Faça isto — disse ela, e lhe lambeu o lábio superior. — É isto...

Sarah fechou a mão direita dele sobre seu seio esquerdo. Foi como se uma nuvem cálida pairasse em torno dele, instilando-lhe seu calor e sua maciez. As vozes dos Spences recuaram. O rosto de Sarah bailou diante dele, idealmente belo. Os ombros dela, os pequenos seios redondos, as costas retas e esguias, os braços flexíveis e arredondados, tudo aquilo o circundava. Sarah ficou de joelhos, escarranchou-se sobre ele e, rapidamente, sorrindo, abriu-lhe o cinto.

— Livre-se dessas roupas — sussurrou ela. — Eu quero ver você!

— Aqui?

— Por que não? Eu posso sentir você.

Ela deslizou a mão por baixo da cintura da roupa interior de Tom, depois correu os dedos ao longo da ereção dele. Então, envolveu-a na mão.

— A sensação é maravilhosa — sussurrou no rosto dele.

— Você é maravilhosa — disse ele, falando a coisa mais verdadeira que sabia.

Sarah esfregou os bicos dos seios contra o peito dele. Erguendo o corpo, Tom puxou as calças para baixo.

— Bem, o que faremos com esta coisa? — disse Sarah. — Aqui estamos nós, não estamos? Neste ninho de amor volante Redwing...

Em um segundo, ela estava nua, e todo o seu belo corpo enovelou-se no dele. Sarah o guiou para entre suas pernas, os dois abraçaram-se e moveram-se o melhor que podiam. Tom sentiu o corpo inteiro concentrar-se e concentrar-se, enquanto ela se contorcia sobre ele, indo e vindo; era como se ele fosse explodir. Sarah mordeu-lhe o ombro, e Tom enrijeceu-se de novo, instantaneamente. Ela apertou-se em tomo dele; seu corpo estremecia; ele sentiu toda a calidez dela abraçá-lo, e após alguns minutos intermináveis, foi como se estivesse virando-se ao avesso, como se ele fosse uma árvore, transformando-se em um rio dentro dela. Trêmulo, sacudido de paixão e do que parecia uma final, definitiva bem-aventurança, ele a sentiu estremecendo também. Por fim, Sarah arriou contra ele. O rosto dela estava molhado contra sua face, e Tom viu que ela estivera chorando.

— Eu te amo — sussurrou ele.

— Estou feliz — disse ela, e Tom recordou-a dizendo isso em casa da srta. Ellinghausen.

Sarah soltou-se dele e o beijou; vestiu seu short, fechou o sutiã e puxou a blusa sobre os ombros tenros. Ele rearrumou as roupas, tendo a sensação de que uma aura o contornava. Então, tinham novamente 17 anos, estavam sentados lado a lado de mãos dadas, porém tudo havia mudado para sempre.

— Ainda posso sentir você dentro de mim — disse ela. — Como casar com Buddy Redwing, se Tom Pasmore continua dentro de mim? Fiquei marcada. Há este enorme TP impresso em mim, em algum lugar.

Eles ficaram calados, com o jato abrindo seu caminho através do ar.

— Como estão vocês, crianças? — gritou o sr. Spence, do bar.

— Muito bem, papai! — gritou Sarah em resposta, em voz clara e aguda, que soava como sinos bimbalhando e fez o coração de Tom dissolver-se. — Temos muita coisa para conversar!

— Então, divirtam-se! — gritou ele. — Com juízo, naturalmente!

— O juízo nada tem a ver com isso — sussurrou ela.

Os dois encostaram-se em no outro e riram. A sra. Spence gritou, ao longo da extensão do avião:

— Por que vocês, crianças, não vêm para cá e ficam sociáveis?

— Daqui a um minuto, mamãe! — gritou Sarah.

Ficaram novamente em silêncio, entreolhando-se.

— Acho que este vai ser um verão interessante — disse Sarah.

 

Grand Forks era uma cidadezinha a uns trinta quilômetros do Lago da Águia e, como recebia viajantes do Canadá, assim como de Mill Walk, seu pequeno aeroporto tinha uma seção de Alfândega e Imigração, localizada em um bloco de concreto em forma de pavilhão, adjacente ao terminal. O capitão Mornay escoltou os passageiros e suas malas para o balcão da Alfândega, onde o inspetor o cumprimentou como Ted e marcou as malas a giz, sem dar-se ao trabalho de abri-las. A Imigração carimbou vistos de turistas nos rubros passaportes de Mill Walk.

— Suponho que Ralph tenha enviado um motorista, não? — exclamou a sra. Spence, dando a entender que se sentia ofendida pela necessidade de fazer a pergunta.

— Ele geralmente o envia, madame — disse o piloto. — Se levarem suas malas por aquela porta de vidro, logo ali adiante, transferindo-as para o terminal principal, certamente encontrarão o motorista à sua espera.

O inspetor da Alfândega e o funcionário da Imigração olhavam extasiadamente para as compridas pernas da sra. Spence, enquanto um jovem de blusão de couro marrom espalhava-se em uma poltrona contra uma das paredes cinzentas do local.

A sra. Spence cobriu a maior parte do rosto atraente com os enormes óculos escuros e deslizou para a porta de vidro, sem carregar mais nada além da bolsa de mão.

— Desejo que aproveitem bem sua permanência — disse o piloto, e se virou para caminhar em direção ao sorridente homem de blusão de couro.

O sr. Spence recolheu a mala de Papai Urso e seguiu a esposa.

Uma das malas de Tom possuía uma correia comprida, que ele passou por um ombro. Pegou sua mala mais pesada pela alça e, com a mão esquerda, segurou a correia da mala da Mamãe Ursa.

— Oh, deixe que eu faço isso! — disse Sarah. — Afinal de contas, ela é minha mãe terrível, não a sua.

Tirou da mão dele a correia fina e Tom reordenou a própria bagagem para compor o equilíbrio. Em seguida, cruzaram a porta de vidro.

Entre o jato e o pavilhão da Alfândega, Tom estivera preocupado demais com Sarah Spence, para reparar em algo mais além do frescor do ar e da intensidade incomum do céu; na distância mais curta entre a Alfândega e o prédio do terminal, sentiu que o ar era cortante, que havia um toque de frialdade no centro de seu calor, e percebeu que estava a milhares de quilômetros ao norte, uma distância que jamais percorrera antes. O céu dali fazia com que o céu acima de Mill Walk parecesse ter sido lavado mil vezes. Sarah abriu a porta do terminal com um empurrão do quadril, e ele entrou diante dela.

O sr. e a sra. Spence estavam parados na extremidade oposta do terminal, falando com um corpulento homem de vinte e poucos anos, o quepe de motorista enterrado bem baixo na testa e uma camisa de malha azul que se estirava sobre seu ventre. Os três olharam irritadamente para Tom e Sarah.

— Venham, crianças! — chamou o sr. Spence. — Este espetáculo pode continuar na estrada.

— Dê para ele a minha mala, Sarah! — falou a sra. Spence.

O rapaz adiantou-se e estendeu a mão grossa para a correia da mala da sra. Spence. O sr. Spence tossiu dentro do punho fechado, e o rapaz tomou dele a mala maior, na outra mão. Depois, começou a andar para a saída.

Um comprido Lincoln negro esperava junto ao meio-fio. Um policial de apertada túnica azul e um cinturão Sam Browne pulou de cima do pára-lama. O motorista colocou as malas no porta-malas e deu a volta para abrir a porta traseira do carro. Os Spences ocuparam o assento traseiro e Tom subiu para o passageiro.

Enquanto o Lincoln afastava-se do meio-fio, os Spences começaram a falar entre si. Tom reclinou-se no assento e fechou os olhos. A sra. Spence dizia coisas que queria fossem ouvidas pelo motorista e, de vez em quando, algumas palavras atropelavam-se. Tom abriu os olhos e surpreendeu o motorista olhando duramente para ele.

Chegaram a uma auto-estrada macadamizada de quatro faixas. Pinheiros de dez metros de altura apinhavam-se nas margens de cascalho, nos dois lados. Pequenos motéis para turistas e acampamentos de pesca surgiam a largos intervalos, situados no fundo de estreitas entradas cobertas de cascalho, em meio às árvores, como que em profundas cavernas. Avisos pintados a mão gritavam seus nomes para a auto-es­trada vazia: Pavilhão Muskie, Gilbertson’s — Cabanas Alegres do Lago Harmonia, Balneário Lakeview, Bob & Sally Rideout’s — Acampamentos de Pesca & Guias da aaa*. Pequenos bares e locais para a venda de iscas erguiam-se recuados da auto-estrada em arenosos pátios de estacionamento, cheio de carros antigos. Lago Deepdale — Propriedades Deepdale, dizia um letreiro maior, pintado profissional­mente, ao lado de uma cintilante estrada de asfalto, no lado direito da auto-estrada. Sua Chaves para as Terras do Norte! Guaxinins mortos jaziam achatados na auto-estrada, como gatos de tamanho exagerado.

** Sigla da Associação Automobilista Americana. (N. da T.)

 

— Jerry — perguntou a sra. Spence, que cochilara durante vários minutos — o sr. Buddy já está no complexo?

Tom virou a cabeça, a fim de olhar para o rígido perfil ao seu lado. O olho direito do motorista passeou sobre ele. O rapaz tinha pequenas cicatrizes semelhantes a pregas na pele, abaixo, do canto da boca.

— Sim, Buddy está lá. Chegou faz duas semanas, com um bando de amigos.

— Pensei que o chamasse de “sr. Buddy” — disse a mãe de Sarah, parecendo um pouco escandalizada pelo tom do motorista.

— Alguns dos auxiliares mais antigos o chamam assim — disse o homem, tornando a fitar Tom com ar sombrio.

— Vai ser bom você conhecer alguns dos amigos de Buddy, Sarah — disse o pai dela. — É possível que permaneça vendo um bocado dessas pessoas.

— A maioria deles foi embora na sexta-feira — disse Jerry. — Eu mesmo os levei para o aeroporto. Tive de passar uma hora limpando este carro. Um daqueles drogados bebeu meia garrafa de Southern Comfort em dez minutos, depois vomitou até as tripas, bem aí onde estão sentados.

— Oh! — exclamou a sra. Spence. — Onde quem está sentado?

— Precisei voltar com ele para o complexo. Buddy empurrou o cara dentro d’água, no ancoradouro, para ele ficar limpo.

— Oh, céus! — exclamou a sra. Spence, e Tom a ouviu virando-se, a fim de examinar o assento.

— Já tentaram limpar vômito de tecido? — perguntou o motorista. — O Cadillac tem assento de tecido, e acho que por isso Ralph sempre manda o Lincoln para os amigos de Buddy.

— Você certamente fica muito tempo em companhia de Buddy — disse o sr. Spence, em voz viva, mas inexpressiva.

— Bem, na maioria do ano costumo fazer outras coisas para Ralph. Fico com Buddy quando ele está por aí — disse o rapaz, novamente virando o olho para Tom.

— Já nos conhecemos? — perguntou Tom.

O olho pareceu aumentar e brilhar como o olho de um cavalo.

— Eu sou Tom Pasmore. Fui até sua casa uma vez.

— Isso nunca aconteceu — respondeu Jerry.

— Seus amigos Nappy e Robbie perseguiram-me ao longo da rua, dobraram a esquina atrás de mim e fui envolvido pelo trânsito na Calle Burleigh, onde um carro atropelou-me. Eles devem ter pensado que eu tinha morrido.

Ruídos chocados e escandalizados brotaram no assento traseiro.

Jerry sorriu para ele, fazendo Tom recordar os olhos vidrados e os dentes afilados do peixe empalhado na parede do aeroporto de Grand Forks. Era assim que agitaria as coisas? Tom sentiu o rosto ficar quente. Parecia-lhe estar desaparecendo de vista, sob o peso do sorriso de Jerry.

Jerry voltou a concentrar-se na estrada e o carro penetrou em um túnel verde-es­curo. Não haviam passado por qualquer outro carro, desde a saída do aeroporto. Um grande cartaz branco proclamava a existência, em alguma parte no fundo da floresta, das Cabanas & Estalagem do Norte Urso Branco. Um urso polar, com um guarda­napo vermelho à volta do pescoço, erguia uma das mãos para a cartola em sua cabeça.

— Oh, o “Urso Branco”! — exclamou a sra. Spence. — A comida no “Urso Branco” continua sendo tão espetacular?

— Nós geralmente fazemos as refeições no complexo — disse Jerry.

— Ultimamente, eu me tenho perguntado o que aconteceu ao cão — disse Tom.

As pequenas cicatrizes abaixo da boca de Jerry apertaram-se, como se as dobras houvessem sido comprimidas. Ele moveu os lábios e o olho girou para Tom.

— Como? — perguntou Tom.

— O cão morreu — disse Jerry, em voz quase inaudível.

— Oh, talvez seja uma bênção, quando um cão idoso morre — disse a sra. Spence. — É doloroso vê-los sofrendo.

Eventualmente, passaram por um pequeno aviso castanho, no qual estavam inscritas as palavras Lago da Águia — Propriedade Particular — Entrada Proibida — Sem Convites, queimadas na madeira, em floreadas letras encurvadas. Jerry manobrou o carro para uma estreita trilha acidentada, entre altos pinheiros e carvalhos.

— Será que cochilei?

— Sim, papai — disse Sarah. Galhos roçaram o teto do carro.

 

— Não gostam deste lugar parecer tão isolado? — perguntou a sra. Spence. A pergunta não era dirigida a ninguém em particular, e ninguém respondeu. — Eu gosto dele parecer tão isolado.

Aos dois lados do carro, as falhas entre os pinheiros e folhudos carvalhos deixavam ver fileiras de árvores estirando-se para o alto e expandindo-se em intermi­nável floresta adulta, ao acaso; a claridade do sol enviezava-se para baixo, batendo nos troncos e formando poças cintilantes de luz no solo macio. Esquilos saltavam como flechas pelos galhos e pássaros esvoaçavam abaixo da abóbada de verdura. O carro prosseguiu em terreno sombreado, descrevendo uma leve curva na estrada, passou por uma clareira com um comprido banco de madeira, salpicado de secas folhas cinzentas, e então por uma comprida fila de caixas de correspondência sobre canos de metal. Tom viu de relance nomes familiares sobre aquelas caixas: Thielman, R. Redwing, G. Redwing, D. Redwing, Spence, R. Deepdale, Jacobs, Langenheim, von Heilitz.

Um corvo grasnou na floresta, e folhas bateram contra o topo do carro. Uma luz dourada lampejou no pára-brisa, e as árvores diante deles pareceram rarear subita­mente; em seguida, elas dividiram-se, e Tom avistou uma longa expansão de azul-escuro abaixo dele, enquanto uma ondulada esteira se abria atrás de um barco a motor, que acabara de penetrar no retalho de sol sobre a água. Prédios altos e sólidos erguiam-se a largos intervalos em torno do lago, cada um com um amplo ancoradou­ro de madeira projetando-se nas águas calmas e cintilantes. Na extensa varanda de uma grande estrutura de vários pavimentos, com fileiras de janelas altas e várias varandas menores, um garçom de jaqueta branca conduzia uma bandeja ao lado de uma piscina do tamanho de uma toalha, encaminhando-se para um cavalheiro — uma pequenina e rosada pêra, deitada sobre o amarelo-vivo de uma espreguiçadeira acolchoada. Perto daquele prédio, altas estacas, semelhantes às que formavam uma paliçada, emparedavam o complexo Redwing. Uma esguia figura a cavalo surgiu à vista, saindo de trás de um dos chalés, para logo desaparecer por trás de um maciço de abetos.

— Buddy saiu em sua lancha — disse Sarah.

— E Neil Langenheim está virando picles no clube — disse sua mãe.

— Quem é que está com Buddy? — perguntou Sarah.

— Seu amigo Kip — disse Jerry. — Kip Carson. Do Arizona. É um dos que ficaram, quando levei os outros caras para Grand Forks.

— Eu gostaria de saber se Fritz está aqui — disse Tom.

— Fritz Redwing? — Jerry abanou a cabeça. — Ainda não veio — ele e sua família devem chegar em umas duas semanas. Ainda é muito cedo. Muita gente está para chegar ainda. Há um punhado de chalés ainda vazios. Até o complexo está meio vazio.

O esguio cavaleiro montando o cavalo castanho apareceu entre altos carvalhos, em uma trilha que se estendia além dos fundos dos chalés, no lado contrário do lago, depois desaparecendo atrás de um estreito chalé. Jerry dirigiu o Lincoln lentamente, ladeira abaixo, na direção do lago.

— Quem estava naquele cavalo? — perguntou Tom.

— Samantha Jacobs — disse a sra. Spence.

— A mim pareceu Cissy Harbinger — disse o sr. Spence.

— Os Jacobs foram para a França. Segundo ouvi dizer, não virão para cá este verão. Quanto a Cissy Harbinger, casou-se com um mecânico ou coisa assim — disse Jerry. — Seus pais a levaram para a Europa. Só virão para cá talvez em setembro.

— Então, já que você sabe tudo, quem montava aquele cavalo? — perguntou a sra. Spence.

— Barbara Deane — disse Jerry. — Entendam, ela agora dá seus passeios, porque não há quase ninguém por aí.

— Oh, Barbara Deane! — exclamou a sra. Spence, parecendo um tanto duvidosa quanto a tal nome.

Tom empertigara-se no assento, preparado para vê-la aparecer novamente, mas a esguia figura ereta sobre o cavalo castanho não tornou a mostrar-se.

Jerry dirigiu o Lincoln até o fundo da trilha, saindo em aberto em um local onde a estrada dividia-se, na extremidade estreita e pantanosa do norte do lago. O carro fez alto, de frente para o lago. O Spences baixaram suas janelas movidas automaticamente, e o zumbido da pequena lancha, executando uma larga e impetuosa curva na extremidade mais ampla do lago em forma de rim, chegou até eles através de oitocentos metros de água, como o ronco de uma motocicleta em uma noite quieta.

— Aonde querem ir primeiro? — perguntou Jerry.

— Eu quero sair deste carro, antes que ele rode mais um centímetro — disse a sra. Spence. — Acho que este banco ainda está molhado.

Ela abriu a porta, desceu do carro e começou a torcer-se, a fim de verificar a parte traseira de sua minissaia.

Tom saiu para o frouxo solo musgoso que descia para a área pantanosa da extremidade estreita do lago. O ar cheirava a agulhas de pinheiro e água fresca. Por vários metros, a superfície do lago se cobria de uma camada espumosa e verde, quebrada por juncos. Ele caminhou até perto da água e o chão cedeu sob seus pés. Podia ver apenas os topos dos guarda-sóis listrados de verde e branco, no largo terraço da sede do clube. Os prédios restantes erguiam-se à volta do comprido lago, com suas fachadas de madeira acinzentadas pelo tempo e quase invisíveis, por trás do arvoredo cerrado que os circundava. Um chalé construído em madeira de sequóia, com linhas modernas e funcionais, no extremo oposto do lago, encarapitava-se acima de um gramado sem árvores, como uma espécie de escavação fora da floresta.

— Então, aquele é o clube — disse Tom, apontando através de vinte metros de água povoada de juncos, para a estrutura com tantas janelas. — E aquele é o complexo Redwing.

Acima das altas estacas que confirmava o complexo, podiam ser avistados os pavimentos superiores de várias e enormes construções de madeira.

— Ao lado fica o nosso chalé — disse Sarah.

Menor do que os outros, o velho chalé de Anton Goetz era diminuído pelos enormes carvalhos e abetos que o contornavam.

— Depois vem o de Glen Upshaw, onde você ficará — disse a sra. Spence.

O chalé de seu avô tinha quase duas vezes o tamanho do dos Spences, parecendo pairar — como seu avô — acima das árvores circundantes, embora sendo escondido por elas. Duas janelas ogivais e um maciço ancoradouro projetavam-se do lado do chalé que dava para o lago. Fora isso, apenas o teto acinzentado era visível através das árvores.

— A seguir, temos aquele absorto que pertence a Roddy Deepdale — disse a sra. Spence. Era o prédio de sequóia-e-vidros sobre o terreno sem árvores à beira do lago, vizinho à propriedade de seu avô. Parecia ainda mais agressivamente contemporâ­neo visto ao nível da água, do que da ladeira da colina. — Não sei como permitiram que ele edificasse aquilo. Ele pode fazer o que bem entender nas Propriedades Deepdale, mas aqui... bem, pode-se dizer com certeza, que ele nunca foi parte do velho Lago da Águia. Ou da velha Mill Walk tampouco.

— Nem nós, mamãe — disse Sarah.

— Do outro lado daquela úlcera, recuando deste lado sul do lago, ficam os Thielmans, os Langenheims, os Harbingers e os Jacobs.

Em tamanhos situados entre a imponência do chalé de seu avô e a pequenez do de Sarah, mas todos construídos com a mesma madeira que o tempo envelhecera, dotados de proporcionais ancoradouros e janelas ogivais sobre o lago, todos os chalés estavam fechados e vazios, exceto o dos Langenheims.

Naquele lado do lago, pouco antes da extremidade norte começar a estreitar-se e ficar pantanosa, situado mais ou menos em oposição ao espaço arborizado entre a sede do clube e o complexo dos Redwings, erguia-se uma construção estreita, com uma comprida varanda de frente para a colina enladeirada, um ancoradouro curto e prático, e uma atarracada varanda, larga o suficiente para apenas duas poltronas e uma mesa redonda. Tudo ali parecia precisar de uma nova pintura. Também este prédio estava fechado. Tom perguntou sobre ele.

— Oh, é outra úlcera! — exclamou a sra. Spence. — Sinceramente, eu preferiria ver aquilo derrubado do que a monstruosidade de Roddy.

— A quem pertence o chalé? — perguntou Sarah. — Nunca vi ninguém lá.

— Eu tentei comprá-lo — disse o sr. Spence — mas o dono não respondeu a meus telefonemas. É de um sujeito chamado...

— Von Heilitz! — exclamou Tom, adivinhando subitamente. — Lamont von Heilitz. Ele mora em frente de nossa casa, no outro lado da rua.

— Oh, vejam, Buddy já nos viu!

A sra. Spence deu pulinhos e acenou. A lancha cortava ruidosamente o compri­mento do lago e, em pé atrás do leme, atarracado, de cabelos negros, Buddy Redwing fazia gestos violentos e sem sentido com os braços. Fez soar uma buzina, e pássaros voaram das árvores. Em seguida, ele executou um cumprimento nazista, tornou a buzinar, girou o leme bruscamente e a embarcação quase adernou e encheu-se d’água. Buddy apontou para as paredes do complexo. Seu companheiro, cujos cabelos louros à altura dos ombros flutuavam atrás dele, não se moveu nem reagiu aos caprichos de Buddy, de maneira alguma.

— Ora, mas é uma moça que está na lancha com Buddy! — exclamou a sra. Spence, colocando as mãos na cintura e mudando bruscamente de estado de ânimo.

— Nada disso. Aquele é Kip — disse Jerry. — O bom e velho Kip Carson, amigo de Buddy.

Buddy manobrou a lancha para o ancoradouro central dos Redwings, e a sra. Spence o espiou avidamente saltar da embarcação e enrolar uma corda ao redor de uma estaca. O ventre flácido de Buddy projetou-se para fora de frouxo calção de banho negro. As pernas dele eram curtas, grossas e arqueadas. A seguir, ele se inclinou para a lancha oscilante, estendeu um braço grosso e puxou o amigo para o ancoradouro. Kip Carson estava nu e vivamente queimado de sol nos ombros estreitos. Jogou os cabelos para trás e correu pelo ancoradouro para uma porta na paliçada. Buddy fez gestos de beber, com a mão direita, e depois trotou atrás do amigo.

— Kip é um hippie, parece que é como chamam — disse Jerry.

A sra. Spence anunciou que Buddy convidara Sarah para um drinque no com­plexo, de maneira que a deixariam lá primeiro. Jerry poderia levar o restante deles para o chalé dos Spences, e Tom carregaria suas malas até o chalé do avô. Ela retornou ao carro, e puxou a saia firmemente para baixo, como se isso fosse possível.

— Sem dúvida, pouco importa o que rapazes alegres fazem, quando estão juntos — disse a sra. Spence. — Buddy e seu amigo estão praticamente isolados aqui. Aquele jovem deve ser a única pessoa de fora que se encontra naquele enorme complexo dos Redwings.

— Não, há também uma senhora de idade — disse Jerry. — Só que Buddy e Kip ficam inteiramente entregues a si mesmos. Há duas noites, abriram um buraco de bala no espelho do bar, lá no “Urso Branco”.

Ele dirigiu para a estrada que contornava o lado oeste do lago, e logo estavam passando pelo pátio de estacionamento vazio do clube.

— Eu gostaria de saber quem poderia ser essa outra hóspede deles — disse a sra. Spence. — É possível que a conheçamos.

— Ralph e a sra. Redwing a chamam de tia Kate — disse Jerry. — Ela é uma Redwing, mas mora em Atlanta.

— Oh, claro — disse a sra. Spence. — Nós a conhecemos, querido.

— Eu não — disse o sr. Spence.

O Lincoln parou ao lado dos portões fronteiros do complexo Redwing, e o sr. Spence desceu laboriosamente do carro, a fim de deixar Sarah sair.

— Venha para o chalé, depois que você e Buddy se tiverem cumprimentado -disse a mãe dela. — Tenho certeza de que todos jantaremos com Ralph e Katinka esta noite.

— Tom também — replicou Sarah.

— Tom tem coisas a fazer. Não o forçaremos a aceitar convites.

Jerry seguiu em frente, enquanto Sarah acenava, e o carro internou-se por entre o arvoredo, rodando para o chalé dos Spences.

— É claro que conhecemos a tia Kate — disse a sra. Spence ao marido. — É aquela que casou com Jonathan! Eles viviam em Atlanta. Ela deve andar... andará... pela casa dos setenta agora, e seu nome de solteira... ora, eu sei qual em... seu nome de solteira era... era...

— Duffield — disse Tom.

— Viu? — exclamou ela. — Até ele sabe que era Duffield!

Jerry os deixou diante da varanda do chalé do Spences, depois se virando no assento para recuar pela estradinha do lago até o complexo. Os Spences atrapa­lharam-se com malas e chaves, antes de subirem para sua empoeirada varanda, despediram-se mecanicamente de Tom, e ele começou a caminhar com suas duas malas, em direção ao chalé do avô.

 

Quatro degraus de seis metros de comprimento, formados por enormes pedras revestidas de uma camada de concreto, levavam à varanda coberta do chalé de Glendenning Upshaw. Tom carregou suas pesadas malas por entre móveis de vime, e bateu à porta de tela. À sua direita, podia ver o ponto em que as árvores cessavam abruptamente, dando lugar ao aparado gramado de Roddym Deepdale. Luzes esca­pavam por uma das janelas do comprido e angular chalé Deepdale.

A porta se abriu para um vasto e penumbrado espaço, cruzado por nevoentas réstias de luz.

— Então, você está aqui! — exclamou uma jovem alta e vestida de preto, que recuou imediatamente. — Você é o neto de Glen? Tom Pasmore?

Tom assentiu. A mulher desviou-se, a fim de olhar atrás dele, e a impressão de sua juventude desapareceu. Havia faixas grisalhas em seu cabelo bem arrumado e fundas linhas verticais nas faces. Entretanto, era muito atraente, apesar da idade.

— Eu sou Barbara Deane — apresentou-se, ficando ereta para encará-lo — por um instante, Tom sentiu que ela queria ver qual a sua reação àquele nome. A mulher usava uma blusa de seda preta e um fio duplo de pérolas. A saia era também preta e justa. Aquelas roupas não chamavam a atenção e nem disfarçavam as curvas naturais de seu corpo, que pareceria mais ajustado a um outro rosto, mais jovem. — Por que não traz suas malas para dentro? Então, mostrarei seu quarto. É sua primeira vez aqui, não?

— Sim, é — disse Tom, e carregou as malas para dentro.

— Temos dois aposentos neste andar, esta sala de estar e o estúdio, que dá para o deque e o ancoradouro. A cozinha fica depois da arcada, e tudo está pronto para funcionar. Florris Truehart veio fazer a limpeza hoje de manhã.

As paredes e o piso eram de madeira de lei, que ficara acinzentada e opaca pela idade. Galhadas de cervo e peixes empalhados pendiam das paredes. Grandes almofadas descoloridas suavizavam o mobiliário artesanal. Uma mesa redonda de nogueira e seis cadeiras de encosto arredondado ocupavam uma área separada, perto da cozinha. Janelas enormes, raiadas de poeira, davam para o lago e deixavam passar frestas mortiças de luz. Duas outras janelas abriam-se para a varanda. Tom podia apostar que as cobertas de proteção dos móveis haviam sido removidas somente aquela manhã.

— Bem — disse a mulher ao seu lado — fizemos o melhor que pudemos. A casa ficará com um pouco mais de vida, depois que você estiver aqui algum tempo.

— Ainda é a sra. Truehart que faz a limpeza? Pensei que ela...

— A srta. Truehart. Florrie. O irmão dela é o carteiro do distrito.

Ela começou a caminhar para uma ampla escada de madeira, coberta por um desbotado tapete índio, e novamente pareceu a Tom ser duas pessoas, uma jovem forte e vital, e uma autocrática mulher mais velha.

— Por falar nisso, quando chega o correio? — perguntou Tom, carregando as malas e subindo os degraus atrás dela.

Barbara olhou para ele por sobre o ombro.

— Creio que, a correspondência é colocada nas caixas, mais ou menos às quatro horas. Por quê? Está esperando alguma coisa?

— Pensei em escrever para algumas pessoas, enquanto estiver aqui.

Ela assentiu, como se considerasse que este ponto merecia ser lembrado, e o conduziu pelo restante da escada.

— Os dormitórios ficam neste andar. Mantenho algumas coisas no quarto da frente, de maneira que reservei para você o maior dos outros dois. Há um banheiro logo ao lado da porta. Quer que o ajude com as malas? Eu devia ter perguntado antes.

Suando, Tom descansou as duas malas no chão e abanou a cabeça.

— Homens! — exclamou Barbara Deane.

Aproximando-se dele, ergueu a mala maior, sem qualquer sinal de esforço. O quarto dele ficava nos fundos da casa, desprendendo um cheiro de cera e óleo de limão. As escuras tábuas estreitas das paredes e do piso cintilavam. Barbara Deane ergueu a enorme mala para a cama de solteiro, coberta por uma desbotada manta índia, e Tom fez uma careta, quando colocou a sua ao lado da primeira. Caminhou até uma porta-janela na parede externa e viu um estreito balcão de madeira, quase desaparecendo sob um maciço carvalho.

— Sua mãe usava este quarto — disse Barbara.

Quarenta anos antes, sua mãe tinha espiado daquela janela e vira Anton Goetz correndo para seu próprio chalé, através da floresta. Agora; nem o chão ele conse­guia avistar.

Tom afastou-se dali. Barbara Deane estava sentada na cama, ao lado das malas, olhando para ele. A saia preta lhe chegava aos joelhos, sugerindo pernas que ficariam melhores sob uma minissaia do que as da sra. Spence. Ela puxou a barra da saia sobre os joelhos, e Tom enrubesceu.

— O lago está muito quieto agora. Eu prefiro assim, mas para você talvez seja desinteressante.

Tom sentou-se em uma cadeira alta e esguia, perto de uma pequena mesa quadrada, com um tabuleiro de xadrez incrustado em sua superfície.

— Você é amigo de Buddy Redwing?

— A verdade é que mal o conheço. Ele tem mais quatro ou cinco anos do que eu.

— É desconcertante... você parece muito mais velho do que realmente é.

— Vida difícil — disse ele, porém ela não retribuiu seu sorriso. — Você mora aqui o ano inteiro?

— Venho ao chalé três ou quatro dias por semana. O resto do tempo fico em minha casa na cidade. — Ela espiou em torno do quarto, como se o inspecionasse em busca de alguma poeira. — O que sabe a meu respeito? — perguntou, mantendo os olhos nas tábuas nuas e lustrosas da parede contrária à cama.

— Bem, sei que você foi minha parteira — ou parteira de minha mãe, não sei como se diria.

Ela o fitou de banda e afastou do olho uma elegante mecha de cabelo.

— Sei também que foi testemunha no casamento de meus pais.

— E?

— E sabia, creio, que cuidava deste chalé para meu avô.

— Isso é tudo?

— Bem, sei ainda que anda a cavalo — disse Tom. — Quando vínhamos para cá, esta tarde, nós a vimos cavalgando entre os chalés.

— Em geral, ando a cavalo de manhã bem cedo — disse ela — mas havia tanta coisa a fazer aqui, que tive de adiar. Aliás, acabava de trocar de roupa, quando você bateu à porta. — Ela esboçou um sorriso vago, enquanto alisava a saia sobre as coxas. — Estaremos juntos aqui, pelo menos durante parte de cada semana; gostaria de dizer-lhe que minha privacidade é muito importante para mim. Meu quarto está fora dos limites para você...

— Naturalmente — respondeu Tom.

— Eu me mantenho fora do caminho do pessoal de Mill Walk, e espero que eles retribuam o favor.

— Poderemos conversar, pelo menos?

O rosto dela suavizou-se por um instante.

— É claro que sim. Conversaremos. Não tive intenção de ser brusca com você, mas... — Ela sacudiu a cabeça, em um gesto que pareceu feminino e petulante ao mesmo tempo. Pretendia contar a ele algo que pensara manter em sigilo. — Minha casa foi assaltada na semana que passou. Fiquei muito perturbada com isso. Sou do tipo de pessoa — bem, eu nem mesmo gosto que os outros saibam onde moro. E quando fui daqui para casa, quando a encontrei invadida...

— Eu compreendo — disse Tom. Aquilo explicava muita coisa, pensou ele, mas não explicava por que ela era o tipo de pessoa que quisesse manter seu endereço em segredo. — Descobriram quem fez isso?

Barbara Deane sacudiu a cabeça.

— Tim Truehart, o chefe de polícia no Lago da Águia, acha que foi obra de alguma quadrilha de fora da cidade — talvez de tão longe como o Lago Superior. Nos últimos verões tem havido vários roubos por aqui. Em geral, eles escolhem os chalés dos veranistas, de onde levam equipamentos de som e aparelhos de televisão. Entretanto, a gente nunca pensa que pode ser a vítima. A maioria dos residentes no Lago da Águia nem costuma trancar as portas. Vou lhe contar a pior parte.

Ela o encarou diretamente agora, girando na cama para vê-lo melhor.

— Eles mataram meu cão. Suponho que a princípio o quisesse em parte como cão de guarda, porém não o considerava mais assim. Ele era apenas um grande e meigo animal — um chow-chow. Eles lhe cortaram a garganta e deixaram o corpo na cozinha, como um... como um cartão de visitas. — Ela lutava para controlar-se. — Seja como for, depois disso trouxe algumas coisas minhas para cá, onde pareciam mais seguras. Ainda estou... abalada. E furiosa. É tão pessoal!

— Sinto muito — disse ele.

E isso quebrou o encantamento. Barbara Deane saltou da cama dele e franziu o cenho.

— Não queria aborrecê-lo com tudo isso. Por favor, não comente o fato no complexo, está bem? O pessoal do Lago da Águia detesta tudo que seja desagradável. Tenho certeza de que você gostará de andar por aí e tomar conhecimento deste lugar. Eles começam a servir o jantar no clube às sete, a menos que prefira que eu cozinhe alguma coisa para você.

— Tentarei o clube — disse ele — mas podemos conversar mais tarde?

— Se você quiser — disse ela, e saiu, deixando-o sozinho.

Tom a ouviu descendo para o térreo, depois movendo-se no corredor. A porta do quarto dela se fechou. Ele foi até a cama, abriu o zíper das malas, tirou seus livros e roupas, depois pendurou as roupas em um closet que parecia um ataúde provido de lâmpada. Empurrou as malas para baixo da cama estreita. Ao levantar-se, olhou em torno do pequeno quarto nu, com seus lambris estreitos. Sem Barbara Deane ali, todo o aposento recordava-lhe um caixão. Pegando um livro, saiu para o corredor.

No outro lado da escada, a porta de Barbara Deane permaneceu fechada. O que sabe a meu respeito? Ele a visualizou sentada em uma cadeira, olhando para o lago.

Um barco a motor roncou.

Tom desceu a escada, imaginando que Barbara Deane ouvia cada pisada e rangido dos degraus. Cruzou a enorme sala, passou por uma arcada e entrou na cozinha. Era parecida à de Lamont von Heilitz, com prateleiras abertas, balcões amplos e um comprido fogão preto. As paredes mostravam as mesmas tábuas estreitas que o antigo quarto de sua mãe, tendo sido um dia castanho-claras, mas agora oferecendo um tom cinza-desbotado, com o verniz já velho descarnando. Poeira cinzenta e sujeira de muito tempo se tinham aninhado nas frestas entre as largas tábuas do piso. Ali dentro, o único moderno era uma geladeira branca Kenmore. No balcão ao lado da geladeira, ele viu um pão integral embrulhado. Tom abriu as torneiras sobre a pia quadrada de cobre, depois lavou o rosto e as mãos, usando um velho pedaço de amarelado sabão de alcatrão de hulha. Enxugou-se em uma toalha de pratos surrada. Barbara Deane estocara a geladeira com leite, ovos, queijo, bacon, pão, carne moída e carne para sanduíche. Pegando um copo embaçado, ele o encheu de leite. Depois levou o copo para a sala, abriu uma porta de madeira feita manualmente, e entrou no estúdio.

Estantes indistintas, cheias de livros sem sobrecapas, situavam-se defronte de uma comprida mesa de trabalho, na qual havia um telefone de baquelite preta, um forro de feltro verde com bordas de couro e um porta-canetas vazio. Um tapete oval de crochê, verde e rosa, cobria o piso do estúdio. Um outro tapete, também de crochê em dois tons de castanho, jazia dobrado sobre um sofá marrom-amarelado, provido de meios-braços e junções de metal escovado. Um antigo abajur de pé ficava no canto mais distante do sofá, e outro ao lado da mesa. Fazia quase calor ali dentro. Mais do que qualquer outra parte do chalé, era aquele estúdio que evocava seu avô. Instintivamente, Tom percebia que aquele pequeno cômodo dando para o lago, teria sido o lugar predileto do velho. Fitas irregulares de luz do sol passavam por duas grandes janelas divididas em vidraças, chegando até metade do estúdio. O ronco forte da lancha de corrida aumentou ainda mais. Tom bebeu um pouco do leite e sentou-se atrás da mesa. Abrindo as gavetas, encontrou alguns velhos clipes para papel, uma pilha de papel espesso com o timbre Glendenning Upshaw, Lago de Águia, Wisconsin, e um fino catálogo telefônico para as cidades do Lago da Águia e Grand Forks. Tom folheou as páginas para Lago da Águia até os sobrenomes com a. letra D. O número telefônico de Barbara Deane não constava da lista. Ele terminou o leite, colocou o copo em cima do catálogo e saiu para a varanda.

Buddy Redwing manobrava a lancha em apertadas e repetitivas figuras em forma de oito, diante do complexo e da sede do clube, com o topo do 8 passando por entre os juncos. Duas cabeças louras, do tamanho de bolas de pingue-pongue, oscilavam de um lado para outro, quando o barco descrevia as curvas. Kip Carson tinha cabelos mais compridos do que Sarah. Tom sentou-se a uma riscada mesa de sequóia para piquenique, no amplo deque, e ficou espiando as manobras incessantes da lancha. Quando ela fazia a curva inferior do 8, as duas pessoas louras jogavam as cabeças, como passageiros de uma montanha-russa, e Buddy crocitava. Sarah acenou para ele, e ele acenou de volta. Buddy zurrou qualquer coisa rouca e ininteligível. Tom levantou-se, e Buddy manobrou a lancha na direção dos juncos. Sarah tornou a erguer os braços para ele. Buddy internou-se mais fundo na água pantanosa, o motor rosnou, uivou e silenciou abruptamente, deixando um enorme silêncio espraiar-se sobre o lago. Um pássaro piou e outro respondeu. Buddy moveu-se pesadamente para a traseira da embarcação, e começou a puxar a corda do motor. Sarah apontou para o clube.

Tom caminhou para o maciço ancoradouro. A trinta metros dali, em seu próprio ancoradouro, os Spences respiravam o ar puro, em suas roupas de veranistas. O sr. Spence estava de costas para Tom, com as mãos pousadas nos quadris gordos. Sacudia a cabeça, ante o manejo errôneo de Buddy com a embarcação. A sra. Spence recostava-se constrangidamente a um poste de atracação e, avistando Tom, virou a cabeça.

No meio do lago, um peixe rompeu a superfície e faiscou em cinza-azulado, acima do azul mais escuro da água, antes de cair chapinhando. Pequenas marolas espa­lharam-se e se fundiram à superfície vidrosa.

A direita de Tom, o ancoradouro dos Deepdales deixava a margem despida de vegetação e internava-se na água. Além dele, ficava o ancoradouro dos Thielmans. Tom avançou até o final de seu ancoradouro, a fim de poder ver o chalé cios Thielmans, porém viu-se olhando para uma margem espessamente coberta por arvores, através das quais eram visíveis apenas uma porta cinzenta, uma janela fechada e pedaços dispersos de cinzenta parede nua. O motor tossiu duas vezes, silenciou de novo. Tom se virou para olhar além dos Spences, e viu Kip Carson empurrando a proa da embarcação, com água pela cintura. Seu peito e braços eram pálidos e escanifrados, ele parecia exaurido. Buddy gritou “Jerry! Jerry!” inúmeras vezes, no tom exigente e agudo de uma criança mimada. Por fim, Jerry Hasek apareceu a porta, na paliçada do complexo. Tinha trocado os jeans e a camisa de malha por um lustroso terno cinza. Olhou para a lancha e então desapareceu no interior do complexo.

Tom voltou para dentro e, da gaveta da mesa, tirou um punhado de papel para escrever. Riscou o nome do avô e escreveu o seu abaixo dele. Refletiu por um momento, em seguida começando a escrever para Lamont von Heilitz. Após ter enchido uma página, ouviu Barbara Deane descendo rapidamente a escada. Suas passadas cruzaram a grande sala de estar. A porta se fechou. Tom iniciou uma segunda página. Ouviu um carro dando partida, atrás da casa. Quando o carro alcançou a larga via pedregosa diante do chalé, o motor da lancha pegou novamente. Tom terminou sua longa carta e olhou para seu relógio. Duas e meia da tarde. Dobrou a carta três vezes, tornou a vasculhar as gavetas e encontrou um maço de envelopes. Riscou o nome de seu avô impresso no primeiro, escreveu Tom acima dele, depois o endereço de Lamont von Heilitz, e enfiou a carta no envelope, selando-a em seguida. Feito isto, saiu do chalé e começou a caminhar pela trilha abaixo.

Havia dois carros parados ao lado do portão do complexo. Cinco ou seis carros menores e mais velhos jaziam parados nas vagas, no lado oposto do estacionamento de terra batida, em frente da sede do clube.

— Quem vem aí? Ei, você! — chamou uma voz, ao alto.

Erguendo a cabeça, Tom viu Neil Langenheim debruçado sobre a balaustrada de uma varanda, sorrindo amplamente para ele, abaixo de um guarda-sol de lona, listrado de verde e branco. Sua testa vermelha começava a descascar, as bochechas e a papada transbordavam acima da gola de uma camisa desabotoada, cor de pêssego. Neil Langenheim, vizinho do lado dos Pasmores, era advogado dos Redwings e, até então, Tom jamais o vira usando outra coisa que não fossem ternos escuros.

— É Tom Pasmore, sr. Langenheim!

— Tom Pasmore? Ora, ora! Está no chalé de seu avô?

Tom respondeu que estava.

— Bem, e para onde está indo, rapaz? Suba até aqui e lhe pago uma cerveja! Diabo, eu lhe pago o que você preferir!

— Estou indo a Lago da Águia pôr uma carta no correio — respondeu Tom. — Também quero conhecer a cidade.

— Oh, ninguém vai lá! — protestou o sr. Langenheim. — Não faz sentido. Aliás, ninguém escreve cartas daqui — nada acontece! E mesmo que acontecesse, todas as pessoas para quem fosse escrever, estariam aqui, com você!

Tom acenou para ele e recomeçou a andar. O sr. Langenheim gritou:

— Vejo você no jantar!

 

A rua principal era marginada por lojas de presentes, lanchonetes, drugstores, bares, cafés tendo nomes como “A Machadinha Vermelha” e “O Cinto de Conchas”, um estabelecimento que vendia apetrechos de pesca, uma pequena joalheria espe­cializada em relógios suíços e jóias de ouro, uma sorveteria, lojas vendendo cartões-postais e calendários com fotos de gatinhos em pinheiros, um estúdio fotográfico, uma galeria de arte com telas de patos voando em formação e índios em torno de fogueiras de acampamento, e duas lojas para a venda de armas. Três pequenos estabelecimentos interligados vendiam camisetas com inscrições turísticas, cinzeiros de madeira tendo dísticos nativos e bonecos representando peles-vermelhas. Os carros estacionavam em diagonal. Jipes e camionetas apinhados de crianças rodavam rua abaixo e rua acima. Famílias de shorts, unhas pintadas, toucados índios e camisas de pastores gregos, carregavam sacolas de plástico para compras com figuras impres­sas de pinheiros e peixes pulando fora da água, enquanto caminhavam por calçadas de tábuas, com postes para atar animais.

O edifício de pedra, com dois pavimentos, que abrigava a Gazeta do Lago da Águia, situava-se entre a agência dos correios, erigida em madeira, e a biblioteca de fachada abaulada, no fim da Rua Principal, ponto em que os turistas geralmente olhavam para trás, querendo saber se tinham deixado de ver alguma coisa. No outro lado da rua, um pequeno posto policial, semelhante a uma fortaleza, colava-se como ostra ao prédio vitoriano em que ficava a sede da municipalidade. No final deste último, um enorme cartão branco dizia: Lago da Águia Agradece sua Visita. Um cartaz menor anunciava: Lago do Alce 6 km, Lago do Mergulhão Perdido, 19 km. Pólo Norte 4.100 km. Visite a Aldeia Pele-vermelha Autêntica.

Tom entrou no prédio do jornal e aproximou-se de um balcão de madeira. Um homem de gravata-borboleta e cabelos castanhos rareando usava uma caneta para corrigir um monte de provas, sentado a uma mesa apinhada; atrás dele, um homem alto e magro, de camisa xadrez e viseira, dedilhava um linotipo como se fosse um órgão de tubos. O homem de gravata borboleta riscou uma frase em um trecho da prova que corrigia, ergueu os olhos, e viu Tom. Levantando-se da mesa, chegou ao balcão.

— Deseja publicar algum anúncio? Pode escrevê-lo em um destes formulários, se eu puder encontrá-los por aqui, debaixo de alguma coisa...

Inclinou-se para espiar debaixo do balcão, e Tom disse:

— Minha idéia era poder examinar alguns exemplares antigos do seu jornal.

— Antigos... de quanto tempo? Os da semana passada estão ali naquele suporte, ao lado da pequena escrivaninha. Os mais antigos são encadernados e guardados em prateleiras, no “necrotério” de jornais, no andar de cima. Quer apenas ver o jornal ou procura algo em particular? — o homem olhou para sua mesa e seu monte de provas. — Em realidade, o “necrotério” não é uma de nossas atrações turísticas.

— Eu queria ver exemplares recentes que tivessem relatos sobre os roubos locais, especialmente aquele que houve em casa de Barbara Deane, mas também sobre o maior número desses incidentes que eu pudesse ler. Também gostaria de dar uma espiada nos jornais do verão de 1925, os que lidam com o assassinato de Jeanine Thielman.

— Quem é você?

O homem recuou do balcão, apanhou no bolso um par de óculos redondos, com aros de tartaruga, colocou-os e espiou para Tom.

Se eu disser que sou um amador do crime, este sujeito me expulsaria daqui, pensou Tom. E com toda razão.

— Sou primeiranista em Tulane — disse ele. — Estou fazendo Sociologia. Tenho que apresentar uma tese no ano que vem e, como estou passando o verão no Lago da Águia, pensei que poderia fazer parte de minha pesquisa aqui.

— Crime em balneários — esse tipo de coisa?

Tom respondeu que esta era a idéia geral.

— Passado e presente, algo assim?

— Se adivinhar mais, acabam escrevendo por mim.

— Tudo bem — disse o homem. — Em mais duas semanas eu teria de negar, mas as coisas ainda estão relativamente calmas por aqui. Por mais loucos que agora pareçam na rua, pelo meio do verão teremos o dobro de gente por estes lugares. Ah, eu sou Chet Hamilton. Proprietário e editor deste jornaleco.

O homem na linotipo deu uma risadinha.

Tom disse seu nome e eles trocaram um aperto de mão.

— Penso que posso levá-lo lá em cima agora, para que comece suas leituras, porém não posso ficar por perto e ajudá-lo. Terá que botar tudo de volta no lugar e apagar a luz quando descer. Apenas me diga quando houver terminado.

— Ótimo. Obrigado.

Hamilton ergueu um pedaço da tampa do balcão e passou para o lado de Tom.

— Fiz uma série sobre esses roubos, você talvez pudesse usar parte de meu material.

Ele abriu a porta frontal e deixou Tom sair. Um homem de joelhos ossudos e uma mulher de cabelos ondulados e coxas gordas espiavam pelas vitrinas da Gazela.

— Ei, isto é real ou está em exposição? — perguntou o homem a Hamilton.

— Eu mesmo não tenho certeza — respondeu o editor.

— Viu? — disse a mulher. — Eu lhe falei! Mas você ouve o que eu digo? Não, eu só digo asneiras!

Hamilton conduziu Tom em redor do prédio e tirou do bolso um molho repleto de chaves.

— Considere isto — disse ele, selecionando uma das chaves. — Em sua casa, aquelas duas pessoas são criaturas sensatas e responsáveis. Pagam impostos e têm empregos. Viajam oitocentos quilômetros até um balneário ao norte, e imediatamente viram bebês gaguejantes, que não enxergam o que está à frente de seus narizes. — Ele encontrou a chave, enfiou-a na fechadura. — O crime é diferente em locais de balneários, eis o motivo. As pessoas mudam, quando se ausentam de casa. — Ele abriu a porta para um surrado lance de degraus. — Vou subir e acender as luzes.

Tom subiu a escada atrás dele.

— Pessoas que nunca roubaram nada na vida, tornam-se cleptomaníacas.

No alto da escada, ele pressionou um interruptor. Volumes encadernados da Gazeta estavam enfileirados em prateleiras metálicas. No extremo oposto do apo­sento havia uma mesa de madeira e uma cadeira de escritório.

— Imagino que seja de Mill Walk, não?

— Sim, sou — respondeu Tom.

— Só podia ser... Está no Lago da Águia, e aquele lugar tem sido cem por cento Mill Walk, ainda antes de eu nascer. David Redwing comprou toda aquela terra e a loteou entre os amigos, tudo tendo ficado assim desde então. — Ele tirou dois volumes de uma prateleira e os colocou em cima da mesa. — Além disso, você mencionou Jeanine Thielman. Tinha que ser de Mill Walk para saber esse nome. Ela foi a primeira veranista a ser morta aqui, pelo menos a primeira que já ficou provada. — Hamilton retornou à prateleira de metal e pousou a mão sobre os dois volumes mais recentes. — Acho que encontrará nestes quase tudo sobre essas invasões de domicílio.

Hamilton retirou os dois volumes da prateleira e retornou à mesa.

— Da maneira como fala, parece ter havido outro assassinato de veranista, antes da sra. Thielman — observou Tom.

Hamilton sorriu, depositando os dois volumes sobre os mais antigos.

— Bem, meu pai certamente pensava assim. Era o editor da Gazeta naquele tempo. Uma mulher afogou-se no Lago da Águia, um ano antes do assassinato Thielman. O legista declarou ser morte acidental e a maioria pensava que fosse mesmo suicídio. Meu pai tinha certeza de que o legista havia sido subornado -compreenda, naquela época não tínhamos um legista na cidade trabalhando em tempo integral; havia três coveiros que trabalhavam em rodízio, mês a mês.

Tom sentiu uma onda gélida, no aposento quente e abafado do andar de cima.

— O senhor recorda qual o nome desta mulher?

— Penso que seria Magda qualquer-coisa.

Tom percebeu que nunca tinha ouvido o primeiro nome de sua avó até este momento — tal o sucesso com que seu avô apagara a memória da esposa.

— Magda Upshaw?

— Acertou. — Hamilton inclinou-se sobre a pilha de jornais encadernados e franziu o cenho para Tom. — Tem certeza de ser tão velho quanto diz? A mim, não parece um primeiranista de universidade.

— Magda Upshaw era minha avó.

Tom engoliu em seco, sentindo o pomo-de-adão do tamanho de uma bola de beisebol.

— Humm! — exclamou o editor, endireitando o corpo. As mãos dele subiram até a gravata borboleta, cujas pontas endireitaram. — Bem, acho que sinto muito... eu não pretendia...

Sem terminar a frase, ele recuou um passo da mesa.

— Por que seu pai achava que ela havia sido assassinada?

— Você poderá ler a respeito, se quiser. Ele precisava ser cauteloso na maneira de dizer as coisas, mas se puder ler nas entrelinhas, é certo que captará o pensamento dele. — Hamilton foi até as prateleiras novamente e retornou com outro antigo volume. — O chefe de polícia daquele tempo não era muito... bem, estava-se na Proibição, lembre-se, e muita bebida ilegal passava através de Lago da Águia. Certas pessoas fizeram fortunas com isso. — Ele deslizou o volume no topo dos demais. — Talvez o chefe não desse muita atenção à imposição rotineira da lei, em particular quando se tratava de veranistas ricos, que faziam muito para manter os contrabandis­tas de bebida em atividade.

— Temos uma polícia assim em Mill Walk — disse Tom.

— Ouvi dizer. Poderá notar que as pessoas daqui mostram uma certa atitude em relação ao pessoal de sua ilha. A verdade é que eles nem mesmo gastam algum dinheiro em Lago da Águia.

Hamilton bateu com a mão sobre a pilha de jornais encadernados.

— Você provavelmente estará de volta amanhã, de maneira que pode deixá-los em cima da mesa. Não esqueça sobre as luzes e a porta, certo?

Tom assentiu.

Chet Hamilton tirou os óculos e tornou a guardá-los no bolso da camisa. Envolveu Tom em um olhar sóbrio e questionante: era um homem decente, estando cons­trangido e interessado na mesma medida.

— Mesmo que eu não tivesse aberto minha gorda boca tagarela, não acha que teria percebido isso, recuando um ano após o caso Thielman e descobrindo o que publica­mos sobre a morte de sua avó? Deve ter sido um verdadeiro impacto em sua família.

— Creio que tive um punhado de motivos para vir a Lago da Águia — disse Tom.

— Bem, talvez alguns deles estejam neste recinto. — Hamilton enfiou as mãos nos bolsos e balançou-se de um lado para outro. — Chego a lamentar ter provocado a coisa toda! — Ele começou a caminhar para a escada. — Fiz você recuar um bom pedaço, desde os assaltos em que estava interessado.

— Talvez não me tenha feito recuar tanto quanto pensa — disse Tom.

— Vendo-o aqui, recordo uma espécie de detetive que meu pai convidou para jantar umas duas vezes, faz muito tempo. Também era gente de Mill Walk. As pessoas costumavam chamá-lo de Sombra — nunca ouviu falar?

— O Sombra leu os arquivos sobre minha avó? — perguntou Tom.

— Não. Ele estava interessado no caso Thielman. Acho que significava muito para ele. Isto o tornou um herói por aqui, posso garantir.

Hamilton fez um ligeiro aceno algo cordial e desceu os degraus. Tom ouviu a porta ser fechada. A linotipo matraqueou abaixo dele. Os ruídos do trânsito chega­vam até ele vagamente, através das janelas na frente do aposento. Tom abriu o volume que estava sobre os outros, ajeitou-o no colo e começou a folhear as páginas.

 

S.L.H., Samuel Larabee Hamilton, fundador da Gazeta do Lago da Águia, tinha considerado seu jornal uma expressão de sua personalidade agressivamente dogmá­tica e, durante as três horas que passou no “necrotério” de jornais no andar de cima, Tom aprendeu tanto sobre ele, quanto sobre Lago da Águia. Samuel Larabee Hamilton vira a Proibição e o imposto de renda como exemplos elementares de confusão governamental. Ele detestara antivivisseccionistas, advogados da igual­dade racial, liberacionistas femininas, Franklin Delano Roosevelt, segurança-social, controle de armas, a Universidade do Wisconsin, leis do mercado livre e Robert LaFollette. Odiara criminosos e mantenedores da lei corruptos, não vacilando em dar nomes.

Nos anos 20, por duas vezes uma pessoa ou pessoas tinham disparado balas através das vidraças do escritório da Gazeta, esperando matar, ferir ou amedrontar seu editor. Ele respondera com manchetes em tipos corpo 18, trombeteando os covardes falharam! e eles falharam de novo!

Desde o início, S.L.H. fora contrário ao interesse Redwing em Lago da Águia, considerando-o “invasão estrangeira”. Mill Walk era um “estado policial do Caribe”, apoiado em “cada prática indecente conhecida daqueles que governam pelo medo”. Um editorial era intitulado bandidos em nosso quintal.

Quando uma mulher de 36 anos foi encontrada morta em Lago da Águia, com os bolsos do robe noturno cheios de pedras, tendo sido declarada vítima de morte acidental e cremada dentro de dois dias, Hamilton esbravejara a plenos pulmões.

A primeira foto da avó que Tom já vira mostrava o vago rostinho quadrado de uma criança, olhos hesitantes e o que pareciam cabelos dourados, presos atrás em um coque. Magda Upshaw recostava-se contra uma balaustrada na sede do clube no Lago da Águia, segurando uma garotinha gorducha, de cachinhos em forma de salsicha, como se tentasse proteger-se de algo que ninguém mais via.

Pela Gazeta, ele ficou sabendo que sua avó era filha de refugiados húngaros, proprietários de um pequeno restaurante em Miami Beach. Saíra da escola no décimo grau e trabalhara no restaurante dos pais, até seu casamento com um homem oito anos mais novo.

Glendenning Upshaw casara-se com uma estrangeira iletrada muito mais velha do que ele e a levara para o anglófilo, esnobe e classista Mill Walk, quase imediatamente começando a ser-lhe infiel.

Uma espécie de convicção chegou a Tom, através dos velhos jornais: a de que seu avô se sentira tão à vontade após a morte da esposa, como antes disso. Ele tinha tudo da maneira como queria: seus negócios — a parceria quase secreta com Maxwell Redwing, seus primeiros contratos para construção — sua filha, sua privacidade, a casa na Estrada Litorânea do Leste.

Samuel Larabee Hamilton chegara ao Lago da Águia pouco após a descoberta do corpo de Magda. O corpo havia sido içado com uma draga, depois de cinco dias na água, e os ganchos metálicos da draga, as rochas no fundo do lago e os peixes, haviam deixado suas marcas. O editor pensara que nem todos os ferimentos visíveis no corpo tinham sido motivados por essas causas. O que o enfureceu, foi o fato de terem cremado o cadáver após uma autópsia superficial, de maneira que um caso no mínimo semelhante a suicídio, havia sido apresentado como morte acidental. Justiça da ilha; bandidos no quintal.

Uma semana depois que as cinzas de Magda Upshaw foram entregues a seus pais, a administração do clube do Lago da Águia substituíra cada garçom, cada copeiro, cozinheiro e bartender no prédio, por homens vindos de Chicago. Nenhum empre­gado do clube telefonaria para o irascível editor local, caso outro membro morresse em circunstâncias que pudessem ser mal interpretadas.

Não muito tempo depois, Hamilton ficou sabendo que gangsters estavam com­prando chalés e pavilhões de caça no condado, isto o motivando a encetar mais uma cruzada.

No volume seguinte, Tom releu os artigos sobre a morte de Jeanine Thielman, os mesmos que lera em casa de Lamont von Heilitz. Milionária veranista desaparece de casa. Jeann Thielman é encontrada no lago. Morador local acusado do assassinato Thielman. Mistério esclarecido em tragédia. Fotos da sra. Thielman, de Minor Truehart, Lamont von Heilitz e Anton Goetz. O que Tom não compreendera, lendo por sobre o ombro de seu vizinho, era com que arrebatamento S.L.H. acolhera o aparecimento de Lamont von Heilitz. O Sombra não era apenas uma celebridade, mas um herói. Sua investigação salvara um morador local inocente e resgatara a reputação da cidade de Lago da Águia, de uma forma que podia ter sido calculada para vender o número máximo de exemplares. Ele era o apogeu: ele era o Museu do Louvre, o Coliseu, era Mickey Mouse. Era justamente o que S.L.H. estivera esperando.

Hamilton patrocinara um dia de Lamont von Heilitz; publicara as opiniões do Sombra sobre grandes mistérios insolvidos do passado; publicara uma coluna, convidando os leitores a perguntarem ao famoso detetive o que mais desejavam saber sobre ele; e o recluso detetive submetera-se à idolatria e à invasão de sua privacidade. Apertara centenas de mãos, declarara qual a sua cor favorita (azul-cobalto), sua música predileta (um empate entre as gravações do conjunto Hot Five de Louis Armstrong e A Criação de Haydn), alfaiate (Huntsman’s, de Savile Row), novela (The golden bow) e cidade (Nova Iorque). Ele achava que bons detetives não nasciam, como bons artistas, nem eram feitos, como bons soldados, sendo produzi­dos por uma combinação de ambos.

Tom procurou os volumes mais recentes, em busca dos roubos e assaltos a residências na periferia do Lago da Águia. Ficou sabendo que casas haviam sido assaltadas e o que tinha sido roubado — um amplificador Harmon Karden e um toca-discos Technics aqui, um anel de jade e um tapete Kerman ali, aparelhos de televisão, instrumentos musicais, telas, mobiliário antigo, remédios receitados, rou­pas, dinheiro, qualquer coisa que pudesse ter valor em uma revenda. As violações domiciliares tinham começado três anos antes, em julho, tendo lugar entre junho e setembro; dois cães, além do de Barbara Deane, haviam sido mortos, ambos animais de estimação. Os assaltantes tinham começado pelas casas dos veranistas, porém no último ano haviam invadido várias residências em Lago da Águia, de moradores permanentes. As séries de Chet Hamilton repetiam elaboradamente as idéias que ele havia descrito para Tom, e implicavam que filhos de veranistas ricos, em idade universitária, estariam cometendo os crimes.

Ao pensar que Lamont von Heilitz teria feito o mesmo, Tom vasculhou a maioria dos artigos e colunas dos volumes recentes, lendo sobre transferências de proprie­dades, reuniões do conselho da cidade, prisões de motoristas embriagados, de invasores de moradias privadas e assaltantes, novas indicações para a Câmara de Comércio e para a Liga Epworth, a viagem do Clube 4-H a Madison, acidentes de trânsito, atropelamentos com fuga do atropelador, brigas de bar, ferimentos produ­zidos por facas e armas de fogo, solicitações para a venda de bebidas, e uma abóbora de tamanho recorde, produzida na horta do sr. e sra. Leonard Vale. Tom fez anotações em uma folha do velho papel de cartas de seu avô, que dobrara e enfiara no bolso da camisa. Depois, deixando os volumes encadernados em cima da mesa, apagou a luz e desceu a escada, pensando em Magda, no cão chow-chow de Barbara Deane e nos terrenos de uma abandonada loja de máquinas na Rua Summers, que tinha sido arrendados à Redwing Holding Company.

Em frente do escritório da Gazeta, do outro lado de uma espessa cerca-viva, o prédio do correio parecia um posto militar de fronteira, em algum antigo faroeste de John Ford. Tom ficou parado na calçada diante dele, perguntando-se se deveria simplesmente colocar sua carta para von Heilitz na caixa de correspondência diante do correio ou guardá-la, a fim de entregá-la ao carteiro, no dia seguinte. Passavam alguns minutos das cinco da tarde e metade dos turistas da Rua Principal havia voltado para seus balneários e acampamentos de pesca, com vistas ao Jantar Plane­jado Americano. Um Cadillac azul-pólvora, de pontudas barbatanas, atravessou as faixas próximas para executar uma curva em “U”, estreita demais para sua distância entre eixos. Carros bloqueados atrás dele buzinaram e motoristas das faixas opostas pisaram nos freios, em paradas bruscas. Um homem de camisa rosa e short vermelho abriu a porta do Cadillac e caiu na rua. Levantando-se, gesticulou para as pessoas que gritavam nos outros carros, retornou incertamente para trás do volante e recuou devagar, sem fechar a porta. Um furgão azul de correspondência espremeu-se em torno da frente do Cadillac, ziguezagueou por entre os carros que esperavam e parou diante do correio. Um homem esguio e de cabelos pretos, vestindo a camisa azul do serviço postal e jeans pretos, saltou do furgão e foi até a traseira do veículo, para remover um saco de correspondência cheio pela metade.

Tom aproximou-se um passo, e o carteiro olhou para ele.

— Um bêbado em um Cadillac. Odeio dizer isto, porém é como fica esta cidade no verão.

Ele sacudiu a cabeça, jogou o saco no ombro e começou a caminhar pela entrada que levava à porta do correio.

— Com licença — disse Tom — mas você conhece um homem chamado Joe Truehart?

O carteiro parou e olhou para ele. Não parecia amistoso nem inamistoso. Nem mesmo parecia expectante. Em seguida, baixou o saco que tinha nos ombros.

— Sim, conheço Joe Truehart. Conheço até muito bem. Quem quer saber?

— Meu nome é Tom Pasmore. Acabo de chegar aqui, vindo de Mill Walk, e um homem chamado Lamont von Heilitz me pediu para dizer-lhe olá.

O carteiro sorriu.

— Tudo bem. Por que não disse logo? Encontrou o seu homem, Tom Pasmore. Diga a ele que retribuo o olá.

Ele estendeu uma firme mão morena, que Tom apertou.

— O sr. von Heilitz pediu-me que escrevesse para ele, mas disse que eu deveria entregar minhas cartas a você pessoalmente. Ele não queria que ninguém me visse fazendo isso, mas creio que ninguém está olhando para nós neste momento.

Truehart espiou sobre o ombro e mostrou outro radioso sorriso.

— Ainda estão todos de queixo caído pelo acidente que não aconteceu. O sr. Heilitz me disse para procurá-lo. Já tem uma carta?

Tom ergueu-a e Truehart a dobrou, enfiando-a depois no bolso traseiro.

— Imaginei que você apareceria perto das caixas de correspondência. Geralmente saio para o Lago da Águia pouco depois das quatro.

Tom explicou que tinha vindo à cidade antes disso, mas que futuramente aguardaria perto das caixas de correspondência no Lago, sempre que tivesse cartas.

— Não espere em campo aberto — disse o carteiro. — Esconda-se entre as árvores, até ouvir meu furgão. Se temos que agir assim, vamos agir como é devido.

Os dois tornaram a apertar-se as mãos, e Tom começou a descer a Rua Principal, em direção aos bandos de pessoas que estavam espiando o trânsito desenovelar-se.

 

Dentro do prédio do correio, Joe Truehart gritou um olá para a postalista-chefe, que selecionava correspondência em uma mesa comprida e fora de vista, situada atrás da parede das caixas de correio. Retirando a carta de Tom do bolso traseiro, ele aproximou-se e a fez deslizar para o topo das prateleiras de encomendas postais, onde a postalista-chefe, uma mulher mordaz e grisalha, chamada Corky Malleson, seria incapaz de vê-la, do alto de seus 1,61 de estatura. Em seguida, ele levou seu saco de correspondência até a mesa e começou a transferir-lhe o conteúdo para outros sacos, destinados à coleta das 5:30. Ajudou Corky a selecionar a correspondência de terceira-classe, distribuiu-a pelas caixas e disse-lhe até amanhã, quando ela foi para casa, a fim de preparar o jantar do marido.

Pouco antes da chegada do caminhão do correio do distrito central, ele ouviu uma batida na porta lateral, marcada somente empregados, a qual dava passagem a ele e a Corky para os fundos do prédio. Truehart pulou da mesa de Corky, onde estivera fazendo somas e preenchendo formulários, e abriu a porta. Trocou algumas palavras com o homem na soleira. Em seguida, foi buscar a carta no topo das prateleiras de encomendas postais e a entregou ao homem. Trancou a porta, depois que ele se foi. Então, voltou a sentar-se diante da mesa, à espera da chegada do caminhão que levaria a correspondência.

 

Do meio da rua subiram ruídos rangentes de metal contra metal. Dois quarteirões abaixo do prédio do correio, a metade traseira do Cadillac azul-pólvora projetava-se no meio do trânsito. Pessoas em vivos trajes de férias apinhavam-se nas calçadas de madeira, nos dois lados da rua, espiando como se assistissem a um desfile.

Tom começou a caminhar pela calçada de madeira, e viu que o Cadillac se chocara com as traseiras de vários carros, amassando o primeiro deles a tal ponto, que parecia ter sido atingido por um caminhão. O motorista tentara safar-se da confusão investindo através das obstruções e, quando isso falhara, recuara atabalhoadamente e impedira o trânsito em metade da rua, onde desligara o motor. Tom chegou à orla da crescente multidão e começou a abrir caminho para diante. O homem da camisa rosa saiu do Cadillac e olhou em torno, como um urso encurralado. As pessoas gritaram. Um policial em apertado uniforme azul desceu correndo para o meio da rua.

— Afastem-se todos! Afastem-se todos! — bradava ele.

Parecia um herói de filme, de curtos cabelos louros e perfeito queixo quadrado. Um escanifrado velho de camisa havaiana destacou-se do povaréu em torno dos carros acidentados, e começou a gritar, primeiro para o bêbado da camisa rosa, depois para o policial. Virando-se para ele, o policial fincou as mãos na cintura e falou. O velho parou de gritar. O bêbado arriou contra o lado de seu carro.

— Tudo já acabou — disse o tira, em voz alta, mas sem gritar. — Voltem para casa!

O bêbado da camisa rosa endireitou o corpo e tentou explicar algo ao tira, apontando-lhe um dedo no peito largo. O policial afastou rudemente a mão dele, com um safanão. Depois, dando um passo à direita, empurrou o bêbado para o lado de seu carro, agarrou-lhe os punhos e algemou-o. Abriu a porta traseira do Cadillac. Então, fazendo o homem recuar, colocou a mão direita em sua testa e o empurrou para o banco traseiro do carro.

Nas calçadas soaram alguns gritos de aplauso e uma ou duas vaias dispersas. O policial endireitou o quepe, enfiou os polegares no cinturão e contornou o carro, a fim de pôr-se ao volante. Houve um tangido de engrenagens, e o Cadillac recuou. O tira girou o volante e rodou para diante. O amassado Cadillac começou a descer a rua à frente de uma fileira de carros, em seguida dobrando à esquerda.

A multidão se tornara ruidosa e falante, sem a menor intenção de abandonar a cena. Tom contornou uma família de quatro pessoas, todas mastigando sanduíches e olhando para os carros que começavam a ganhar velocidade. Depois, abriu caminho entre dois casais que discutiam sobre irem à “Machadinha Vermelha” para uma cerveja ou comprarem uma camisa nova para alguém chamado Teddy. Chegou a um espaço vazio na beira da calçada e pensou em cruzar a rua, para onde a multidão parecia mais rala.

— Cuidado, garoto! — sussurrou alguém.

Antes que Tom pudesse olhar em torno, alguém o chutou com força no tornozelo esquerdo e mais alguém bateu em suas costas, empurrando-o para o meio do trânsito de carros.

Seus braços voaram adiante dele e Tom cambaleou alguns passos, antes que o tornozelo começasse a diluir-se. Brados e gritos soaram na calçada. Buzinas tocaram. Seu coração parou de bater. Um homem e uma mulher, de olhos e bocas muito abertos, surgiram atrás do pára-brisa embaçado de uma caminhoneta entulhada de malas no teto, presas com uma rede verde berrante. Tom viu com incrível nitidez a expressão no rosto deles e a cor da rede. Em seguida, viu apenas o capô maciço e o radiador da caminhoneta, salpicado de insetos. Seu tornozelo arqueou-se como um graveto verde. Ele se chocou contra o chão, o ar se tornou negro e dissonante.

Um ruído atroador encheu-lhe os ouvidos, depois substituído por uma música indistinta, quando então a memória de uma pungente harmonia o envolveu e seu eu de dez anos de idade inclinou-se para ele, dizendo: A música explica tudo. Poeira e cascalho ergueram-se diante de seus olhos e cada fragmento de cascalho produziu uma sombra minúscula.

Uma voz aguda, a voz de um pato de desenho animado gritou:

— Esse garoto está bêbado!

Tom ergueu-se do chão. Seu tornozelo cantava. Diante dele, um espantado homem com boné de beisebol espiava através do pára-brisa de um Karmann Ghia. Tom olhou o ombro e viu a traseira de uma caminhoneta entulhada de sacolas e caixas de papelão. A seguir, um homem de cabelos à escovinha e braços trêmulos o ajudava a levantar-se.

— Esse carro acabou de passar acima de você! — exclamou o homem. — Você teve uma sorte dos diabos! — comentou ele, e seus braços tremiam.

— Alguém me empurrou — disse Tom.

Ele ouviu a multidão repetindo suas palavras como um eco, em vozes diferentes.

O homem e a mulher saíram da caminhoneta, abalados. Cada um deles deu um passo para diante. A mulher perguntou se ele estava bem.

— Alguém me empurrou — disse Tom.

O casal deu mais um passo em frente.

— Estou bem — disse Tom.

Os dois retornaram à caminhoneta. O homem de cabelos à escovinha ajudou Tom a voltar para a calçada. Os carros começaram a passar velozmente pela rua.

— Quer falar com um tira? — perguntou o homem. — Quer sentar-se? ...

— Não, eu estou bem — disse Tom. — Viu quem me empurrou?

— Tudo quanto vi foi você voando para o meio da rua — respondeu o homem. Soltando Tom, ele começou a recuar. — Se alguém o empurrou, devia procurar um tira e contar a história — acrescentou, olhando em torno, como se tentasse encontrar algum.

— Talvez tenha sido um acidente — disse Tom, e o homem assentiu vigorosa­mente.

— Está com o rosto todo sujo de terra — disse o homem.

Tom limpou o rosto e começou a sacudir as roupas. Quando ergueu os olhos novamente, o homem tinha desaparecido. As outras pessoas na calçada olhavam para ele, mas ninguém chegou perto. Sua cabeça estava leve como um balão a gás, o corpo parecia não ter peso — uma brisa leve o teria derrubado. Tom sacudiu o grosso da poeira em seus joelhos, depois começou a caminhar pela calçada, descendo a rua em direção à auto-estrada.

 

Sarah Spence saltou do banco de ferro forjado perto das caixas de correspondên­cia, quando Tom surgiu mancando pela trilha entre os grandes pinheiros e carvalhos. Ela havia tomado uma ducha e vestia um vestido de linho azul, sem mangas. Seus cabelos brilhavam.

— Aonde você foi? — perguntou, acrescentando um segundo depois, ao vê-lo melhor: — O que houve com você?

— Nada sério. Fui até Lago da Águia e levei um tombo — respondeu Tom, manquejando até ela.

— Você levou um tombo? O sr. Langenheim disse que você tinha ido à cidade, mas pensei que ele talvez não tivesse ouvido bem... Aonde foi a queda?

Sarah aproximou-se dele e, por um momento, pousou as mãos nos braços de Tom, fitando-o com seus olhos sérios e muito afastados no rosto.

— Na Rua Principal — disse ele. — Dei um belo espetáculo.

— Você está bem? — Ela continuava a fitá-lo, as pupilas movendo-se loucamente de lado a lado. Tom assentiu, Sarah abraçou-o e enterrou a cabeça no peito dele, como um gato. — Como é que foi cair bem no meio da Rua Principal?

— Apenas aconteceu. — Tom afagou-lhe a cabeça e sentiu o retorno de algo como sentimentos comuns. — Eu lhe contarei a respeito mais tarde.

— Não me viu pedindo-lhe para encontrar-me no clube?

— Eu queria pôr uma carta no correio. — Sarah bandeou a cabeça e o fitou inquisitivamente. — Também queria dar uma espiada em alguns velhos artigos do jornal local.

Os dois começaram a descer a trilha por entre árvores, abraçados. Tom procurava não mancar.

— Hoje vivi pelo menos três vidas — disse ela. — A melhor foi no avião. No nosso pequeno compartimento.

Após mais alguns passos ela disse:

— Buddy está aborrecido comigo. Não me mostrei tão encantada com de este verão. E é contra o regulamento, não ficar encantada com Buddy Redwing.

— Está muito aborrecido?

Sarah ergueu os olhos para ele.

— Por que pergunta? Você tem medo dele?

— Não exatamente, mas acontece que alguém me empurrou para fora da calçada, bem para o meio do trânsito. Caí na rua e um carro passou acima de mim.

— Da próxima vez que partir em outra excursão, quero que me leve com você.

— Você parecia muito ocupada com Buddy e o amigo dele.

— Oh, claro, o grande Kip Carson! Sabe o que ele faz? Sabe por que Buddy o mantém por perto? Ele carrega consigo um saquinho de pílulas e as vai distribuindo, como se fossem balas. Falar com ele é como conversar com um farmacêutico. Buddy adora as pilulazinhas chamadas Baby Dollies. Aí está outro motivo de ter-se aborre­cido comigo. Não aceitei nenhuma.

No topo da descida para o lago, eles contemplaram a tranqüila água azul e os chalés silenciosos.

— Não acredito que Buddy chegue a ser um capitão de indústria ou seja lá o que seu pai é — disse Sarah, — mas ele não o teria empurrado para a rua. Por volta das quatro horas, tomou duas das tais pílulas e ficou sentado com Kip no ancoradouro, dizendo “uau”.”Uau”.

— E quanto a Jerry Hasek?

— O motorista? Buddy o fez entrar no lago e empurrar nosso barco para fora. Kip tentou, mas não sabe fazer mais nada além de distribuir pílulas.

— E mais tarde? Viu Jerry ou seus dois amigos pelo complexo?

Os chalés pareciam desertos e, em uma varanda do clube, um garçom de camisa branca desabotoada recostava-se contra um gradil ao lado da piscina e penteava os cabelos, em gestos amplos.

— Imagino que eles fiquem indo e vindo. Você acha que poderia ter sido apenas um acidente?

— Talvez. A cidade inteira parecia um zoológico.

Uma claridade alaranjada de fim de tarde refletiu-se nas águas do lago.

Eles desceram a colina em um silêncio demasiado ruidoso com frases não ditas. Quando chegaram à área pantanosa da extremidade do lago, Sarah soltou a mão dele.

— Pensei que você aqui estaria seguro — disse ela. — Ninguém vem para cá fazer algo mais além de comer, beber e fofocar. No entanto, você ficou apenas um dia neste lugar, e alguém o empurra diante de um carro!

— É possível que tenha sido acidental.

Sarah sorriu quase timidamente para ele.

— Se quiser, poderá jantar conosco esta noite. Apenas não aponte o dedo para ninguém, acusando-o de assassinato, como no último capítulo de uma novela de detetive.

— Prometo comportar-me — disse Tom.

Sarah passou os braços em torno dele.

— Buddy e Kip convidaram-me a ir ao Urso Branco com eles depois do jantar, mas respondi que queria ficar em casa. Portanto, se você vai ficar em casa...

Tom tomou uma ducha no banheiro ao lado do antigo quarto de sua mãe, enrolou uma toalha à volta do corpo e saiu para o corredor. Barbara Deane deslizou algo pesado de uma prateleira e o colocou sobre uma superfície de madeira. Ele correu de volta para o seu quarto. Afastou a velha e macia manta índia, e estirou-se debaixo dela. A cama tinha um odor de mofo, sob os lençóis recém-lavados. Tom adormeceu em segundos.

Ele acordou uma hora e meia mais tarde. Nada em torno parecia-lhe familiar. Por um momento, nem foi ele próprio, mas apenas um estranho, em um quarto nu, mas agradável. Sentando-se, viu a toalha pendendo de uma cadeira, e recordou onde estava. Todo aquele fantástico dia lhe encheu a cabeça. Foi até o closet e vestiu uma calça de sarja, uma camisa branca abotoada na frente, tipo lave-e-use, pôs uma gravata e o leve blazer azul que sua mãe o fizera trazer. Enfiou os pés em mocassins e desceu. A casa estava vazia.

Tom saiu e desceu rapidamente a avenida de árvores até a sede do clube.

 

Um rapaz profundamente bronzeado, usando apertada camisa branca com baba­dos, apertadas calças pretas com uma faixa de cetim e sapatos pretos altamente polidos, mas sem gravata preta ou casaco, surgiu ao lado dele no andar térreo do clube.

— Pois não?

O rapaz tinha a cabeça cheia de anéis negros de aparência oleosa, apertados o suficiente para estirar-lhe a testa. Nos dois lados da escada suspensa, que se erguia do meio do aposento para o segundo andar, havia poltronas de vime acolchoadas e mesas alouradas, brilhando de polidor. Havia abajures Tiffany perto de cada círculo de poltronas, estando todas as lâmpadas acesas. O aposento encontrava-se inteira­mente vazio, à exceção de Tom e do bronzeado rapaz, o qual parecia querer manter o ambiente deste jeito.

Tom deu-lhe seu nome, e o rapaz baixou o queixo um ou dois milímetros.

— Oh, sr. Pasmore! O sr. Upshaw comunicou-nos que o senhor terá pleno uso de seus direitos de membro e privilégios assinados, durante todo o tempo em que permanecer aqui. Jantará sozinho esta noite ou prefere relaxar no Bar Mezanino antes do jantar? Talvez prefira ser conduzido diretamente à sua mesa, não?

Enquanto falava, o rapaz olhava em linha reta para o meio da testa de Tom.

— Sarah Spence já chegou?

O rapaz fechou os olhos e tornou a abri-los. O movimento era demasiado calculado para ser uma piscadela.

— A srta. Spence está no andar de cima com os pais, senhor. Os Spence jantarão esta noite em um grande grupo, na mesa dos Redwings.

— Vou apenas subir até lá — disse Tom, movendo-se para o baixo e cintilante primeiro degrau da escada.

Chegou a um piso de madeira que se estendia por quinze ou vinte metros na direção de um deque aberto, com três redondas mesas brancas debaixo de guarda-sóis listrados de verde e branco. Dentro da sala de refeições, dez mesas maiores, uma para cada chalé, ocupavam o piso cintilante. Três delas tinham sido arrumadas com toalhas brancas, velas, garrafas de vinho e flores. Um diminuto palco e local para banda de música, com um pequeno piano de cauda, projetava-se do final da parede esquerda do refeitório. Neil Langenheim, sentado defronte da esposa na única mesa ocupada, ergueu os olhos e acenou com seu copo para Tom. Tom sorriu de volta.

Os olhos de Sarah faiscaram para ele, do meio de um bando de pessoas mais velhas em roupas esportivas, no comprido bar à direita da sala. Ela o encontrou a meio caminho, entre a escada e o bar.

— Por que está usando essa gravata? Oh, não ligue, apenas estou contente em vê-lo aqui. Venha falar com todo mundo.

Ela o levou para o bar, onde o apresentou a Ralph e Katinka Redwing. O chefe da família Redwing sorriu para ele, mostrando a falha entre os dentes da frente, ao mesmo tempo em que lhe apertava a mão, com pressão esmagadora e dolorosa. Seus pequenos olhos negros pareciam demasiado animados para o rosto pálido e laqueado. Sua esposa, muito mais bronzeada e uns 15 centímetros mais alta do que ele, pousou em Tom olhos quase incolores. Seus compridos cabelos louros tinham sido congelados no lugar.

— Então, é você o filho da Glória! — exclamou.

— Neto de Glen Upshaw — disse seu marido. — Esta é a sua primeira vez aqui, não? Fique certo de que irá adorar. Este é um grande lugar. Às vezes penso em aposentar-me e vir morar aqui, em apenas ficar sozinho nestes bosques maravilhosos, com toda essa caça e pesca. Paz e tranqüilidade. Você vai adorar.

Tom agradeceu-lhe por deixá-lo vir no avião.

— É um prazer fazer tudo o que posso pelo velho Glen. Um dos velhos persona­gens da ilha, você sabe. Um homem sólido, um homem sólido. Gostou da viagem? Foi bem tratado?

— Nunca havia tido uma experiência igual antes — disse Tom.

A sra. Spence surgiu ao lado de Ralph Redwing. Trocara a minissaia, agora usava um vestido rosa à altura do joelho, com cinto e decote bastante pronunciado. Parecia uma enorme bala açucarada, em forma de bengala.

— Pessoalmente, eu preferiria viajar em seu avião do que no de Frank Sinatra. Sem a menor dúvida!

Redwing passou-lhe um braço branco e peludo pela cintura.

— Nem é preciso dizer-se o que Frank faria, se você surgisse no jato dele com esse vestido. Hah! Isso não é direito!

Ele manteve o braço em torno da cintura da sra. Spence por um ou dois instantes, e sua esposa levou à boca um copo cheio de líquido transparente e gelo.

— Teve um bom primeiro dia? — perguntou o sr. Spence. — Divertiu-se?

— Não fiz muita coisa — disse Tom. — Fui até a cidade e conheci Chet Hamilton.

O rosto de Redwing parou de mover-se, e sua esposa se virou para o bar.

— Tom passou por um certo excitamento — disse Sarah. — Ele acha que alguém o empurrou da calçada para o meio do trânsito. Um carro passou bem acima dele.

Os animados olhos negros haviam ficado quase opacos.

— Devia ter acontecido com Chet Hamilton. Por aqui, não costumamos falar com os Hamiltons. — Ela forçou um sorriso. — Nós os deixamos em paz, e eles fazem o mesmo conosco. Prudência nunca é demais.

— O que aconteceu? Como foi isso?

A pergunta fora feita por um homem fora do grupo Redwing, que estivera falando com duas outras pessoas, enquanto olhava ocasionalmente de relance para Tom e ouvira o comentário de Sarah. Devia regular com Redwing em idade, tinha cabelos escuros crespos e um rosto atraente, com um leve bronzeado. Com uma camisa listrada e os braços de um suéter algodão azul frouxamente amarrados em torno do pescoço, ele parecia cada ator que já estrelara uma comédia romântica ao lado de Doris Day. Insistiu:

— Alguém o empurrou da calçada no meio do trânsito? Ficou machucado?

— Nada de importância — disse Tom.

— Este é Roddy Deepdale, Tom — disse Sarah. — E Buzz.

Um homem louro, com trinta e poucos anos e um cachecol azul ao pescoço, aproximara-se de Roddy Deepdale, a fim de olhar para Tom com a mesma mistura de preocupação e fascínio que o homem mais velho. Também ele era incrivelmente atraente. Amarrara o suéter de vivo algodão amarelo ao redor da cintura. Os dois homens pareciam mais alarmados ante o sucedido a Tom do que qualquer outra pessoa no grupo Redwing.

— Bem, o que aconteceu, exatamente? — perguntou Roddy, e bebericou um drinque, enquanto Tom relatava a história.

Uma mulher idosa, desprovida de queixo e com um rosto de rã, espiava para ele por entre os vultos fortes e largos dos dois homens. Com exceção de Sarah, todos os demais se tinham virado para o bar.

— Meu Deus, você podia ter morrido! — exclamou Roddy Deepdale. — E quase morreu!

Buzz perguntou-lhe se tinha visto quem o empurrara.

— Aí está o problema. Havia tanta gente na calçada, que deve ter sido apenas um acidente.

— Foi à polícia?

— Na verdade, eu nada tinha para contar a eles.

— É, talvez esteja certo. No verão passado, uma ou duas semanas antes de chegarmos aqui, alguém quebrou todas as janelas de nosso chalé. Roubou metade de nossos pertences, inclusive um retrato duplo, obra de Don Bachardy, cuja falta deploramos imensamente, deixe-me dizer-lhe, porém o dano físico não ficou atrás. Os esquilos invadiram a casa, além de bandos de pássaros sem que a polícia descobrisse qualquer pista.

— Todos lamentaram muito, Roddy — disse Sarah.

— Algumas pessoas lamentaram — disse Buzz.

— Eu lamentei! — exclamou a mulher idosa, espichando o braço por entre Roddy e Buzz, depois rindo da estranheza de sua posição. Os dois homens moveram-se para os lados, a fim de dar-lhe lugar. Roddy lhe pousou a mão no ombro arqueado. — Eu lamentei profundamente o caso, palavra! E estou aborrecida pelo que aconteceu a você, Tom Pasmore. Felicito-o por ter sobrevivido! — Tom lhe tomara a mão, que era surpreendentemente sólida e comprida — mais comprida do que a dele. A mulher tinha bolsas embaixo dos olhos, dentes salientes e nenhum queixo, porém ele viu inteligência naquelas pupilas, as ondas macias dos cabelos brancos e a calma largura da testa. — Eu sou Kate Redwing — disse ela. — Você nunca ouviu falar de mim, porém conheci sua mãe, quando ela ainda era garotinha.

— Eu tinha vontade de conhecê-la — disse Tom. — E agora que a conheci, estou encantado.

— Também eu estou encantada em conhecê-lo. Sente-se perto de mim ao jantar, e teremos uma boa e longa conversa.

— Sarah pediu para entregar-lhe isto — disse Roddy Deepdale, entregando a Tom uma taça comprida, com um líquido borbulhante rosa-pálido. — Presumo que seja uma recompensa por você ter sobrevivido à sua experiência.

— Se Sarah Spence está cuidando de você, garanto que será muito bem cuidado — disse Kate Redwing. — Acha que alguém cuidaria de mim? Bebi apenas um martíni, era pequeníssimo, e como meu sobrinho-neto ainda está enfarpelando-se...

Buzz sorriu e chegou até a metade vazia do bar.

— Disse há pouco que foi roubado um retrato duplo de seu chalé. Um retrato duplo de quem?

— De mim e de Buzz — disse Roddy Deepdale. — Continua sendo uma perda terrível. Odiei contar a Don sobre o roubo, porém ele foi bastante civilizado. Disse que provavelmente o retrato apareceria um dia, e enviou-nos um pequeno desenho, como compensação. Christopher disse algo muito malicioso e engraçado, que preferiria não repetir aqui.

Rodeada pelos pais, por Ralph e Katinka Redwing no bar, Sarah piscou para Tom e ergueu sua taça.

— Aquela garota Spence é realmente qualquer coisa, não? — observou Kate Redwing. — Não acredito muito que seja devidamente apreciada nestes lugares.

Ao falar, ela bateu sua taça contra a dele e, enquanto bebia, ofereceu-lhe um vivo e conspiratorial olhar por sobre a borda. Houve uma movimentação súbita no bar, e Kate Redwing disse:

— O herdeiro aparente.

Katinka Redwing encaminhou-se para o topo da escada, enquanto Buddy subia ao lado do rapaz de cabelos oleosos. Atrás deles vinha um jovem de ar indolente, flácidos cabelos louros e nariz grande. Buddy usava uma frouxa camisa de pólo, bermudas folgadas e sapatos para barco, sem meias; Kip Carson usava jeans largos, sandálias e um blusão inteiriço, em estilo indiano. Buddy estava vermelho e luzidio, como se houvesse acabado de sair do forno.

— Penso que já podemos ir para nossa mesa, Marcello — disse sua mãe.

— Quem é o sapo engravatado? — perguntou Buddy, seus olhos assados, em um rosto de torta assada de maçã, fixos em Tom. — Um dos companheiros de Roddy?

O grupo no bar dissolveu-se. Katinka Redwing inclinou-se cochichando para o filho, enquanto seguiam Marcello na direção de uma mesa comprida, perto da varanda. Roddy e Buzz levaram os respectivos drinques até uma mesa para dois, atrás dos Langenheims. Os Spences mais velhos postaram-se a cada lado de Ralph Red­wing; Sarah girou os olhos, encaixando-se perto de Tom e Kate.

— Buddy se diverte sendo maldoso — disse a velha quietamente, enquanto seguiam a procissão para a mesa. — Entretanto, eu devo dizer que, pessoalmente, sempre preferi os sapos. São coisinhas úteis. Inclusive, até fiquei parecida com um, embora esperando que seja um atraente. Acredita que Buddy talvez quisesse dar a entender... não, não creio.

Kate sorriu perversamente, mas poderia ser por causa do jogo de cadeiras musicais, em andamento na cabeceira da mesa. A sra. Spence queria sentar-se entre Ralph e Buddy Redwing, mas Buddy queria sentar-se ao lado de Kip Carson; Katinka Redwing estava determinada a sentar-se ao lado do marido e a banir Kip Carson para a outra extremidade da mesa. O sr. Spence e a sra. Redwing insistiam com Sarah para que ocupasse a cadeira defronte à de Buddy. Ralph Redwing ocupou a cadeira à cabeceira da mesa. Todos os demais acomodaram-se mais ou menos onde queriam. Tom ficou diante de Kip, entre Sarah e Kate Redwing, esta defronte do sr. Spence.

Marcello distribuiu cardápios manuscritos do tamanho de cartazes de teatro, e Kip passou dois ou três pequenos objetos a Buddy, que os introduziu na boca. Tanto o anfitrião, como depois Kip Carson, manifestaram seu desejo de viver o ano inteiro no Lago da Águia. Podia-se notar que a sra. Spence agarrava o joelho de Ralph Redwing. Sarah esticou a perna, colando-a à de Tom. Katinka Redwing contemplava algum privado espaço ártico e aludiu à expectativa reinante em Mill Walk sobre o “livro de Ralph”. Buddy soltou uma piada suja, dedicada especialmente a Sarah, seguida por outra, incompreensível, envolvendo um elefante e um homossexual, dirigida a todos os ouvintes em geral. Todos — todos, exceto Kip Carson, que nem chegou a provar a comida, mas bebeu seis copos duplos de água — comeram enormemente, beberam enormemente e, na maior parte do tempo, falaram sem parar e sem ouvir. Tom reparou que Sarah estivera errada sobre Buddy Redwing, e que Kate estivera certa: Buddy sentia prazer em ser maldoso, estava representando, mas parte de sua hediondez era não possuir qualquer talento real para essa espécie de maldade. Ele era comum demais para isso. Em dez anos, estaria falando com romântica nostalgia sobre o quanto costumava ser desenfreado; em vinte, seria um manda-chuva obeso, que roubava no golfe e considerava-se com o divino direito de apoderar-se do que quer em que pusesse as mãos.

— Fico satisfeita por não ter tirado sua gravata — disse Kate Redwing para ele.

— Minha mãe me disse que usasse esta — disse Tom, sorrindo.

— Ela devia estar pensando no Lago da Águia de antigamente, quando as coisas eram muito mais formais. Certamente ainda se lembra dos tempos em que fazia refeições no clube com o pai. Posso recordá-la aqui, no verão em que fiquei noiva. Como está sua mãe agora?

Tom vacilou um momento, depois disse:

— Poderia estar melhor.

— Seu pai é um homem muito sensível?

Tom viu-se incapaz de responder a tal pergunta, e Kate deu-lhe um tapinha na mão, dando a entender que compreendia seu silêncio.

— Não importa. Tenho certeza de que você preenche muitos espaços. Ela deve orgulhar-se muito do filho que possui.

— Espero que sim — disse Tom.

— Eu costumava preocupar-me com sua mãe. Era uma coisinha encantadora, mas absolutamente desamparada! Tão bonita, mas tão infeliz... Enfim, claro está que nada disso é da minha conta.

Na outra extremidade da mesa, Ralph Redwing explicava que via o Lago da Águia como um mundo excluído dos negócios de sua família, daí por que desistira de tantas oportunidades de investir na área. Não conspurcaria o lugar com dinheiro — estava contente com o lago deles, seus amigos e a pequena extensão de bosques do local.

— A despeito do que poderíamos fazer com esta área — disse. Esta era uma peroração que requeria platéia, e todos os rostos se viraram para ele, inclusive os de Buddy e Kip. — Poderíamos transformar incontinenti esta parte do Wisconsin — poderíamos despertá-la — poderíamos começar a pôr dinheiro nos bolsos das pessoas...

— Eu gostaria de ver — sussurrou Kate para Tom.

— ... e existe um outro fator, qual seja, a atitude de alguns dos residentes locais. Algumas dessas pessoas rejeitam tudo que seja novo — tudo o que seja bem-sucedido. Durante uns dois anos tornaram a vida bastante difícil para nós. E nós retribuímos em umas duas formas, porém significando que não tentaríamos ajudá-los em absolu­to, podem acreditar!

— Como foi que o senhor retribuiu? — perguntou Tom, inocentemente.

— Sim, já que falou nisso — disse Kate — eu sempre quis saber como retribuir o que alguém nos faz de incômodo.

— Lembrem-se de que agora estamos falando de uma época diferente — disse Redwing. — Erigimos aqui a nossa morada perfeita, para dar prazer a nós e aos nossos, eles podem vir pedir-nos ajuda e orientação, porém não colocamos um níquel na cidade de Lago da Águia. Vêem estes excelentes rapazes que trabalham aqui no clube? São os melhores garçons do mundo, e meu pai contratou seus pais nos melhores restaurantes de Chicago, nos anos vinte. Eles moram precisamente aqui, nos ótimos aposentos que merecem, e são pessoas leais.

Um silêncio respeitoso se seguiu a tudo isto. A sra. Spence então declarou que admirava a... bem, ela admirava tudo proveniente dela, embora havendo algo em particular, algo para o que simplesmente não encontrava a palavra certa, mas que todos ali sabiam o que queria dizer. A sra. Redwing respondeu estar certa de que todos sabiam, meu bem, e, depois disso, voltaram ao mesmo tipo de conversa que vinham tendo antes.

— A senhora vem sempre aqui? — perguntou Tom a Kate Redwing.

Ela sorriu.

— Sou apenas uma Redwing da periferia, que vive em Atlanta. Apareço por aqui não mais de uma vez a cada dois ou três anos. Quando meu marido vivia, cos­tumávamos vir todos os verões. Tínhamos nosso próprio chalé no complexo, mas com o falecimento de Jonathan, eles começaram a reservar-me um quarto na casa principal.

— Eu gostaria de falar-lhe sobre seu primeiro verão aqui — disse Tom. — Sobre minha mãe e meu avô. Se não se importa, também gostaria de falarmos sobre o que aconteceu a Jeanine Thielman.

— Oh, céus! — exclamou ela. — Você é um jovem notável! — Virando-se, fitou-o com uma expressão transbordante de inteligência e bom humor. — Sim, é mesmo notável. Por acaso conhece um cavalheiro de sua ilha, chamado — aqui ela baixou a voz — von Heilitz?

Tom assentiu.

— Bem, ele também era notável. — Kate continuou a fitá-lo. — Penso que seria melhor termos essa conversa em outro lugar — e, certamente, não no complexo. — Ela sorveu o que sobrara de seu aguado martíni. — Freqüentemente vou ver Roddy e Buzz durante o chá, por volta das quatro da tarde. Por que não aparece lá amanhã?

O jantar terminou pouco mais tarde. Ralph Redwing aceitou benevolamente os agradecimentos de Tom. Buddy contornou a mesa em direção a Sarah, que sussurrou “Dez minutos” para Tom, antes de levantar-se. Tom despediu-se de Kate Redwing, que retribuiu com animado gesto de cabeça dos Spences, que pareceram não ouvi-lo, e da sra. Redwing, que lhe mostrou todos os dentes, dizendo:

— Oh, seja bem-vindo!

 

Sarah não apareceu dez minutos depois e nem vinte. Tom leu uma página de Agatha Christie, depois a releu ao perceber que compreendera cada palavra indivi­dual, mas nenhuma delas em seqüência. Ruídos na entrada o faziam precipitar-se para abrir a porta, porém não havia ninguém. O chalé produzia ruídos por si mesmo. Ele observou a comprida avenida marginada de árvores, iluminada pelas luzes de seu pórtico e do dos Spences.

Após mais dez minutos, Tom saiu para o deque. Bem mais além, à esquerda, áreas distintas da luz amarelada do clube formavam-se sobre a água negra do lago como tinta. O ancoradouro dos Spences estava iluminado como um palco. O luar prateava o topo das árvores que rodeavam os chalés, invisíveis do outro lado do lago, e depositava um amplo caminho branco sobre a água. Na extremidade norte do lago, um pássaro chilreou Chk?, sendo respondido por outro, além do chalé de Roddy Deepdale: Chk! Chk!

Vozes masculinas flutuaram até ele e luzes acenderam-se no chalé dos Deepdales: outro ancoradouro acordou para a visibilidade. Tom voltou para o deque, encontrou os interruptores das luzes externas e os desligou. A luz do estúdio de Glendenning Upshaw caiu sobre o deque, e as poucas poltronas de lona e uma mesa rústica de madeira lançaram sombras compridas e decisivas. Agora, o ancoradouro era apenas um borrão de escuridão contra as brumas mais pálidas do lago. Ele se sentou em uma das poltronas e perguntou-se como conseguiria suportar as horas do anoitecer no clube.

Entrou, sentou-se diante da secretária, abriu o catálogo telefônico e encontrou o número do chalé dos Spences.

A sra. Spence informou que Sarah ainda não voltara do clube; afinal, ela não combinara ir ao “Urso Branco” com Buddy?

— Pensei que ela tivesse mudado de planos — disse Tom.

— Oh, não! Ela sempre sai a noite com Buddy. Eles têm muito que conversar.

A sra. Spence prometeu dizer a Sarah que ele havia ligado. Sua voz era suave-mente insincera.

Tom escreveu Estou no deque — dê a volta pelo lado, em uma folha do papel de cartas de seu avô, dobrou-a e a inseriu entre a tela e a porta da frente. Em seguida, contornou o chalé e subiu os degraus para o deque. Ligou uma das luzes e sentou-se para ler Agatha Christie, enquanto esperava por Sarah.

Insetos noturnos revoluteavam em torno das lâmpadas colocadas em ângulo. A lua seguiu seu caminho através do céu. A luz no quarto de Barbara Deane apagou-se, e outro grau de suavidade e integralidade surgiu na escuridão, além do círculo da luz do deque. Hercule Poirot caminhou pelo palco e começou a exercitar sua pequeni­nas células cinzentas. Tom suspirou — sentia falta de Lamont von Heilitz. Por outro lado, talvez Monsieur Poirot acabasse explicando o que realmente tinha acontecido ali, no Lago da Águia, quarenta anos antes.

Tom perguntou-se por que o Sombra não lhe contara que Anton Goetz havia sido contador da Construtora Mill Walk; perguntou-se também como um contador fora capaz de construir a enorme casa em “The Sevens”, no início dos anos vinte; quem havia disparado contra Lamont von Heilitz; e por que Anton Goetz havia levado suas refeições do clube para casa, quando na época deveria ter agido com o máximo de normalidade.

Eram precisamente estas as perguntas que Hercule Poirot e qualquer outro detetive como ele sempre teriam de explicar. Tais criaturas eram máquinas abstracionistas, nunca se tendo a mais remota idéia quanto a uma semelhança com elas, porém à altura do último capítulo, certamente diriam ao leitor quem deixara a pegada abaixo da janela do coronel, e quem havia encontrado a pistola sobre o travesseiro ensangüentado, depois a jogando dentro do maciço de tojos. Esses indivíduos eram enigmas ambulantes de palavras cruzadas mas, pelo menos, podiam fazer isso.

Tom fechou o livro e espiou através do lago. Informes como manchas de tintas, os chalés vazios situavam-se abaixo das árvores enormes. Um garçom de folga dedilhava uma guitarra ao lado de uma janela aberta, no terceiro andar da sede do clube. Outra pessoa, provavelmente um garçom do clube voltando para casa, carregava uma lanterna acesa entre os chalés, no outro lado do lago.

Entretanto, um garçom do clube teria apenas que subir ao andar de cima, para chegar em casa. A lanterna projetava seu facho entre as árvores, intermitentemente visível, enquanto se movia por entre elas e os chalés. A única outra luz no lado contrário do lago, brilhava em um aposento no andar de cima do chalé dos Lange­nheims, e o facho movente desapareceu atrás de um canto escuro e quase invisível desta estrutura. Neil Langenheim certamente saíra a fim de arejar a cabeça, antes de ir para a cama, pensou Tom. Ele leu mais uma página de Agatha Christie, enquanto a maioria de sua mente permanecia atenta aos passos de Sarah Spence, aproximan­do-se pelo lado do chalé.

Da próxima vez em que ergueu os olhos, a lanterna seguia oscilante entre os chalés dos Harbingers e dos Jacobs. Tom ficou espiando sua luminosidade, até vê-la desaparecer. Após algum tempo, a luz emergiu dos fundos do chalé dos Jacobs, começando a aparecer e desaparecer de vista no longo trecho de terreno arborizado entre aquele chalé e o de Lamont von Heilitz. Tom baixou o livro e caminhou para o ancoradouro. Uma enorme mariposa cinzenta voou silenciosamente ao lado de sua cabeça e chocou-se contra uma janela. Da ponta de seu ancoradouro, Tom via apenas a nevoenta escuridão dos carvalhos e bordos na propriedade de von Heilitz, bem como a extremidade frontal de seu rude ancoradouro na água negra, pontilhado pela luz amarela que vinha da sede do clube. A lanterna não apareceu no lado pantanoso do lago, abrindo caminho em torno do clube. Como não voltasse a surgir por mais vários minutos, Tom recordou que pelo menos um chalé vazio do Lago da Águia havia sido invadido por ladrões. Virou o mostrador de seu relógio para a janela iluminada. Eram dez e meia, quase todos ao redor do lago já estariam dormindo. Ele trotou de volta, ao longo do ancoradouro.

Parou à porta para garatujar Espere por mim — volto logo, no bilhete para Sarah, e então desceu os degraus para a trilha escura ao redor do lago.

Tom correu, deixando para trás o chalé dos Spences, onde estava acesa apenas a luz da varanda, depois internou-se na escuridão abaixo das árvores frondosas, até chegar ao clube. No pátio de estacionamento, ele avistou faroletes traseiros de carros, depois viu luz nas janelas do segundo e terceiro pavimentos. Na extremidade do lago que não tinha árvores, sapos coaxavam entre os juncos. O guitarrista no clube tocava incessantemente os mesmos acordes. Nenhuma luz brilhava entre as árvores, ao redor do chalé do Sombra. Tom correu até a ponta final do lago, e seus sapatos chapinhavam ruidosamente na terra batida. O luar mostrou-lhe a curva da trilha para retornar ao meio do arvorado. O som da guitarra ficou mais fraco. Ele trotou pelo caminho estreito que descia da auto-estrada, cortando o bosque, voltou a ficar debaixo das árvores. O chalé de von Heilitz estava a apenas dez ou quinze metros adiante, escondido pela escuridão e pelos abetos maciços que cresciam na borda do lago. Tom perguntou-se o que faria, se visse alguém retirando equipamento estereofônico do chalé.

Saindo da trilha, caminhou quietamente pela propriedade de von Heilitz, até avistar bem o chalé. O luar infiltrava-se por entre o arvoredo. Nenhuma luz brilhava através das janelas de persianas descidas. Ele foi até a varanda, experimentou a porta, e viu que estava fechada. A menos que o gatuno houvesse deixado a casa enquanto ele contornava a extremidade mais distante do lago, continuaria lá dentro. Devia existir outra porta dando para o lago, provavelmente por onde o intruso penetrara. Tom saiu da varanda e recuou para a trilha, a fim de verificar se via alguma luz movendo-se por trás das persianas, nos aposentos do andar de cima.

A casa estava inteiramente às escuras. Recuando na trilha, Tom espiou para o lado oeste. Ali, o luar mostrava uma apertada trilha branquicenta, tão clara quanto um caminho em um sonho, indo para oeste. Muito abaixo nesta trilha, um facho amarelado e espalhado saltitava de árvore para árvore, distanciando-se.

— Maldição! — murmurou ele.

Não fora rápido o suficiente para agarrar o ladrão dentro do chalé do Sombra. Talvez o homem o ouvisse correndo e fugira, antes de invadir o chalé. Tom começou a caminhar velozmente atrás da figura com a lanterna acesa.

Passou por uma grande forma escura que devia ser o chalé dos Jacobs, depois pelo chalé dos Harbingers. A lanterna continuou a mover-se. Tom achou que serpentearia por todo o caminho até o complexo, seguindo o homem da lanterna.

Quando a trilha alcançou o chalé de Neil Langenheim, as árvores do lado direito da construção bloquearam o luar. O facho da lanterna saltitou e vagueou, batendo nos troncos cinzentos dos carvalhos, na trilha de terra, nos maciços densos entre as árvores. Tom conseguiu encurtar a distância entre ele e o desconhecido. Podia ouvir as batidas de seu coração.

Sem tirar os olhos do oscilante facho da lanterna, ele descalçou os mocassins e tornou a avançar, levando os sapatos na mão.

Em algum ponto entre os chalés dos Thielmans e de Roddy Deepdale, o facho de luz virou para a direita, iluminando uma caverna formada por galhos e folhas, em cujo interior desapareceu.

A caverna devia ser uma segunda trilha, internando-se mais nos bosques. Ele correu para lá. Pedrinhas enterraram-se em seus pés. As árvores copadas na proprie­dade dos Langenheims se fecharam acima de sua cabeça, obstruindo o luar. Desapa­receu o senso de espaço aberto diante dele. Parando de correr, estirou os braços à frente do corpo. Então, uma claridade amarela chamejou entre árvores muito à direita, adiante dele, desapareceu e tornou a surgir. Ele seguiu a curva da trilha diante do chalé dos Thielmans e correu através de um trecho aberto, banhado pelo luar, em direção a uma abertura semelhante a uma porta estreita e escura entre dois bordos, algo que poderia ter sido uma trilha. A luz amarela dançou como fogo-fátuo, bem no meio das árvores.

Tom avançou para a abertura entre os bordos, e a luz da lanterna sumiu nova­mente de vista. Seguiu em frente na escuridão. Animaizinhos agitavam-se e fugiam, algo movimentou-se ao longo de um ramo. Tom continuou avançando. A luz pestanejou de novo. Em um súbito raio de luar, ele viu a trilha encurvando-se para o seio da floresta à sua frente. Continuou a caminhada, sentindo os pés doloridos, com os braços estendidos para diante.

Um galho lhe bateu no lado da cabeça. Seu dedo grande do pé tropeçou em qualquer coisa dura e escamosa, que poderia ser uma raiz. Então, ele empurrou o galho para o lado, transpôs a obstrução e avançou mais um pouco. Outro clarão surgiu à distância, muito à frente. A trilha diluía-se diante dele — ramos finos, em desenhos como teias de aranha, arranharam-lhe a face, e seu pé direito pisou em algo frio e molhado.

Os traços da lanterna desapareceram por completo na floresta. O lado de seu braço roçou pela casca áspera de um carvalho. Tom havia perdido a trilha, naquela escuridão. Dando meia-volta, começou a recuar pouco a pouco para os chalés.

Gravetos prendiam-se em suas roupas, um solo macio e molhado sugava-lhe os pés. A trilha desaparecera, tanto à sua frente como à retaguarda. Tom colocou os braços diante do rosto e avançou — com a esperança de estar caminhando para diante.

Alguns assustadores minutos mais tarde, ele vislumbrou luz brilhando à sua frente e caminhou para lá com dificuldade. A luz ficou mais forte e luziu através das falhas entre as árvores. Diante dele, as árvores e arbustos cessaram de repente — ele viu um poste alto com um foco de luz e uma vasta região plana de puro verde monocrômico, como de um campo de golfe. Parecia algo inteiramente estranho, em nada seme­lhante a Lago da Águia.

Tom abriu caminho por um denso maciço de bordos, caminhou sobre folhas úmidas e desembocou em cintilante claridade, em um gramado bem-aparado. Atra­vés do gramado erguia-se uma comprida edificação reta em madeira de sequóia, com um deque alto e janelas encortinadas. Estava parado no gramado de Roddy Deepdale.

Tom caminhou em direção à água e, ao longo da margem, seguiu para o ancoradouro de Roddy, cruzando-o com suas meias molhadas. No outro lado do ancoradouro, continuou seguindo a margem, assustou dois pássaros que pronta­mente levantaram vôo, e finalmente chegou ao ponto em que começavam as árvores da propriedade de seu avô. Depois disso, a luz de seu próprio ancoradouro o guiou através dos carvalhos, na traseira do chalé de Glendenning Upshaw.

No lado mais distante do deque, uma figura moveu-se nas sombras.

— Tom? — perguntou Sarah Spence, chegando até a luz. — Por onde foi que andou?

— Há quanto tempo você está aqui?

— Uns vinte minutos.

— Que bom não ter voltado para casa — disse ele. Subiu para o deque e passou os braços em torno dela. — Sua mãe lhe disse que telefonei?

Sarah sacudiu a cabeça contra o peito dele.

— Eu não fui em casa, vim para cá assim que Buddy me liberou. Ele não estava muito alegre comigo. Precisei prometer sair com ele de carro, amanhã de tarde. — Ela lhe retirou um graveto quebrado, preso ao casaco. — O que esteve fazendo?

— Você conhece uma trilha que se interna no bosque, perto do chalé dos Thielmans?

— Você tentou seguir por uma trilha no meio do bosque, em plena escuridão da noite?

— Vi alguém vagando em torno dos chalés, no outro lado do lago. Nos últimos anos tem acontecido um bocado de roubos por aqui...

— Além desse no chalé de Roddy?

— Você ficaria sabendo a respeito, se Ralph Redwing lhe permitisse ler o jornal local.

— Então, você o seguiu até o meio do bosque! Sua vida inteira é uma grande excursão.

— A sua também — disse ele.

Após falar, ele a beijou.

— Podemos entrar?

— Barbara Deane está no andar de cima.

— E daí? — Ela o levou até a porta e o fez entrar. — Ah, um sofá! É do que precisamos. Ou haverá algo melhor no aposento vizinho? — Sarah abriu a porta e espiou o interior da grande sala de estar. — Ugh! Parece uma câmara funerária!

— Não acorde Barbara Deane.

— O que ela é, afinal de contas? Sua babá ou sua guarda-costas? — Sarah fechou a porta e voltou para junto dele. — Espero que não seja sua guarda-costas — acrescen­tou, passando os braços em tomo dele.

— Você voltou ao complexo, depois do jantar?

Sarah ergueu os olhos para ele.

— Por quê?

— Viu se Jerry e seus amigos estavam lá?

— Eles sempre me deixam a sós com Buddy... a menos que Buddy precise deles para alguma coisa. Ele até mandou Kip embora — queria fazer cenas comigo, por eu ter dado muita atenção a você. Que me conste, Jerry e os outros caras estavam em seu chalé. Sim, há um chalé inteiro, só para eles.

— Você já entrou lá?

— Não!

— Quando não houver ninguém por perto, será que você arranjaria um jeito de deixar-me entrar lá?

Por um momento, Sarah pareceu visivelmente infeliz.

— Antes de mais nada, talvez não tenha sido tão boa idéia você vir para cá...

Tom se sentou ao lado dela.

— Talvez devêssemos ter apenas ficado no avião.

— Por que não paramos de falar? — sugeriu Sarah.

 

Na manhã seguinte, Tom acordou no escuro, arrancado do sono por um pesadelo que se dissolveu, tão logo tentou recordá-lo. Olhou para seu relógio: seis e meia. Saiu da cama com um grunhido. Milhões de pontos d’água e uma dúzia de serpenteantes riachinhos cobriam sua janela. No lado de fora, a árvore era um borrão escuro.

Tom escovou os dentes, lavou o rosto e depois enfiou um calção de banho e um blusão de malha. No andar de baixo, saiu para o deque.

Por um momento, apenas seus arrepios o deixaram saber que não continuava sonhando. De todas as partes do lago erguiam-se distintos novelos plumosos de fumaça cinza-esbranquiçada, que ficavam suspensos no ar, como que ancorados à superfície azul-acerada da água. Alguns novelos de fumaça moviam-se ligeiramente, viravam-se e ficavam pairando. No outro lado do lago, um nevoeiro baixo pendia como gasosa vidraça branca entre os troncos das árvores, porém isto não era nenhum nevoeiro — um nevoeiro não era uma série interminável de congelados dervixes brancos, presos ao lago como balões de gás ao punho do vendedor. O lago parecia arder em fogo lento, no fundo de si mesmo.

Tom puxou o blusão pela cabeça e o jogou em uma das cadeiras. Depois sentou-se no final do ancoradouro e enfiou as pernas em uma água sedosa, curiosa­mente morna. Inclinando-se para dentro do lago, ele impeliu-se do ancoradouro. Imediatamente passou para outro mundo. O barulho produzido por seu corpo cortando a água acetinada era o som mais alto na terra.

Penugens cinza-esbranquiçadas ergueram-se ao seu redor, deslizaram por ele, achataram-se contra seus olhos, correram por sua pele e tornaram a formar-se quando ele se foi. Ao erguer o braço fora d’água, Tom viu a fumaça fluindo-lhe da carne. Nadou para a água rasa perto do ancoradouro e ficou em pé. Anéis brumosos aderiram a seu corpo como nuvens. O ar escuro enregelou sua pele arrepiada. Subiu para o ancoradouro, e as nuvenzinhas penugentas dissiparam-se contra ou dentro de seu corpo. Um traço de vermelho jazia acima das árvores escuras, no horizonte leste.

Vestindo jeans, uma camisa e um suéter quente, ele retornou ao deque em tempo de ver o topo do sol vermelho elevar-se acima das árvores. Os rolos brumosos sobre o lago desapareciam quando a luz os tocava, e a superfície da água se tornava transparente, mostrando o azul-escuro mais abaixo, como uma segunda camada de pele. Raios separados de luz batiam no ancoradouro, refletiam-se nas vidraças do clube e do chalé de Sarah. Na extremidade norte do lago, os juncos cintilaram ao sol matinal. Tom desceu do ancoradouro, quando o sol banhou as frondes das árvores no horizonte.

Ele caminhou pela lateral do chalé e começou a mover-se para o norte, seguindo a trilha, com a sensação de estar vendo tudo pela primeira vez. O mundo parecia impossivelmente limpo, purificadamente aberto para revelar-se. Até a terra na trilha cintilava com um secreto viço que o dia iria escondendo aos poucos. Além do complexo, além dos velhos carros contra um gradil caiado de branco do clube; em torno da extremidade norte e do pântano estreito, onde os juncos projetavam-se da bruma e cem peixes prateados, quase transparentes, do tamanho de seu dedo mínimo, dispersando-se ao mesmo tempo, quando sua sombra abrupta caiu entre eles.

Tom caminhou por entre as árvores até o chalé de Lamont von Heilitz e procurou vidraças quebradas ou arranhões em fechaduras, qualquer indício de uma invasão real ou tentada. As portas estavam trancadas e cada persiana muito bem fechada. O intruso certamente o ouvira chegando e fugira trilha acima, internando-se nos bosques.

Tom deixou para trás os chalés ainda fechados. Guaxinins haviam descoberto uma lata de lixo, fora da propriedade dos Langenheims. Pontas de cigarro, latas de cerveja e garrafas de vodca jaziam espalhadas sobre uma relva pálida e emaranhada, ao pé de um carvalho de 12 metros.

Ele cortou um atalho para o chalé dos Thielmans, pensando em Arthur Thielman, caminhando com seus cães para ver o Sombra, no dia seguinte àquele em que sua esposa fora morta. Desejou ter podido ver aquilo — ver o que tinha acontecido no ancoradouro em frente deste chalé, naquela noite. Ele contornou a frente do chalé vazio e viu o espaço verde que Roddy Deepdale criara em redor de seu próprio chalé. Naqueles tempos, entre a propriedade de seu avô e a dos Thielmans, houvera apenas terra intocada. Tom pulou para o deque e caminhou arrastando folhas secas e uma camada de areia. No outro lado do lago, um encurvado homem de cabelos brancos, de jaleco branco, movia-se através de uma janela da fachada do clube, arrumando uma mesa para o breakfast.

Dois alces, um deles um macho de galhada rendilhada, moveram-se sobre pernas delicadas para fora da orla das árvores, no lado mais distante do complexo, e abriram caminho no solo macio entre os ancoradouros, até a beira da água. A fêmea inclinou-se para diante, dobrou as patas dianteiras na altura dos joelhos e ficou ajoelhada para beber. O macho entrou na água e viu Tom parado no ancoradouro, através do lago. Tom não se moveu. Com água pelos tornozelos, o macho vigiou-o. Por fim, baixou a cabeça e bebeu. A penugem nas pontas da galhada cintilou em leve tonalidade rosa-acastanhada. Tom viu o velho garçom debruçar-se à janela, a fim de espiar o cervo na água. Após terminarem, os dois animais saíram da água e retornaram para o seio do arvoredo. Tom saiu do ancoradouro e voltou atrás, contornando o lado do chalé.

Um pouco depois do chalé dos Thielmans, as árvores do lado direito da trilha separavam-se em torno de um caminho estreito, o qual seguia direto por entre os carvalhos e olmos, durante uns seis ou nove metros, depois enviezando-se para oeste, no seio da floresta. Folhas mortas e castanhas agulhas secas de pinheiro cobriam a superfície do caminho. Tom olhou para trás, ao longo da trilha encurvan­do-se nos fundos dos chalés, e então avançou pelo caminho.

O lago desapareceu atrás dele.

Tom chegou a uma curva no caminho, dali aprofundando-se no matagal. Uma densa vegetação espraiava-se nas duas margens. Uma luz pálida e quase branca descia em diagonal através das copas, tocando troncos inclinados e montes de folhas secas. Aqui e ali, o nevoeiro alvo ainda enovelava-se nos lugares baixos. O caminho desceu por uma garganta, um pequeno vale na floresta, subiu através de um maciço de nogueiras com frutos semelhantes a rígidas bolas verdes de beisebol, para em seguida retornar ao nível do solo.

Bem distante, à direita, tão fundo na floresta que parecia fazer parte dela, materializou-se uma cabana cinza-esverdeada entre os troncos dos carvalhos, desaparecendo contra o arvoredo, assim que Tom avançou mais um passo. No outro lado do caminho, meio escondida atrás dos troncos grossos das nogueiras, havia uma cabana de tábuas escuras, com uma pequena chaminé negra em forma de cano projetando-se do teto.

Algo se moveu no mato à sua direita. Tom virou rapidamente a cabeça.

A luminosidade era difusa através dos troncos maciços, e árvores abatidas por raios ou doenças formavam sombras cinzentas, por entre os tons castanhos e verdes. Ele avançou e, de novo, pressentiu movimento à direita. Desta vez, viu a cabeça de um cervo erguida em sua direção, abaixo da linha diagonal de um galho morto; em seguida, o restante do animal entrou em foco e ele fugiu, através de uma clareira banhada de sol, desaparecendo atrás de uma muralha de abetos. No lado mais distante daquela clareira iluminada apareceu o lampejo alvo de um rosto, contra o fundo escura de folhas, para também desaparecer como o cervo.

Tom parou de andar.

O cervo quebrava ramagens, em sua corrida para o seio do bosque.

Tom recomeçou a caminhar, olhou em tomo e viu apenas a clareira ensolarada e o cinzento diagonal do ramo caído.

O caminho alargou-se diante dele. A luz pálida da manhã caiu sobre a relva alta de uma clareira à frente e sobre os pinheiros por trás dela. No outro lado da clareira, o caminho serpenteava entre carvalhos e pinheiros até chegar a uma estrada — talvez a auto-estrada entre Grand Forks e Lago da Águia, talvez alguma abandonada estrada madeireira do condado. Era um longo caminho para o transporte de bens roubados, porem ninguém poderia afirmar que não fosse isolada.

Esta teoria ficou anulada a meio caminho para a clareira, quando surgiram as pedras e o lado envidraçado de uma casa. Tom aproximou-se. Mais da casa surgiu à vista. Ele pôde ver acréscimos feitos em pedra, com janelas incrustadas em batentes também de pedra grossa, aos dois lados de uma pequena cabana marrom, com um pórtico de madeira diante da porta de entrada. Uma enorme chaminé de pedra salientava-se do teto inclinado, no lado direito. Vividos amores-perfeitos e gerânios cresciam ao redor da casa.

No momento em que Tom decidiu caminhar de volta para o lago, algo remexeu-se no matagal ao lado dele. Espiou por sobre o ombro. Um atarracado homem de cabelos negros, em camisa de xadrez vermelho, estava parado a vinte metros de distância, ao lado de um carvalho. O carvalho não tinha mais grossura de tronco do que o homem. De braços cruzados ao peito, o estranho olhava para Tom.

A garganta de Tom ficou seca.

Uma porta bateu e, em um rápido instante, o homem havia desaparecido. Ele não desviou o corpo nem o moveu de maneira alguma; simplesmente não estava mais lá. Uma voz irritante gritou: “Quem é você?” Tom saltou. Um homenzinho de jeans e camisa bordada de brim estava em pé na relva, diante do pórtico de madeira. Tinha nariz adunco e rosto vincado, com compridos cabelos brancos caindo de um bico de viúva e despencando abaixo dos ombros. Apontava um rifle para Tom.

— O que pensa que está fazendo por aqui?

Tom recuou.

— Saí para dar um passeio, e o caminho me trouxe até aqui.

O velho chegou mais perto, com o rifle virado para o peito de Tom.

— Vá embora daqui e não volte mais! — Os olhos dele eram inexpressivos e negros. Tom recuou, e então viu que o velho era uma mulher. — Já temos ladrões demais por aqui — disse ela, em sua voz cacarejante e rouca.

Lentamente, Tom deu meia-volta. Na lateral, à distância, o homem atarracado da camisa xadrez apareceu de novo.

— Fora! — gritou esganiçadamente a mulher.

Tom começou a correr pelo caminho.

 

Bitsy Langenheim estava inclinada perto da lata de lixo, vestindo um surrado conjunto de malha para ginástica, atirando latas e garrafas dentro da lata. Lançou a ele um olhar acre, irritado. Jogou uma garrafa de vodca dentro da lata e errou.

— O que está olhando?

— Nada.

— O que estava fazendo nesse matagal?

— Dando um passeio.

— Mantenha-se fora de lá. Os índios não gostam.

Tom limpou o suor da testa.

— Foi o que fiquei sabendo.

Ela grunhiu para ele e recuperou a garrafa.

 

— Alguns homens vieram vê-lo — disse Barbara Deane. Ela se levantara, apertando a bolsa nas duas mãos. — Há coisa de uns dez minutos. Falei que pensava que você ainda estivesse na cama, mas não foram embora enquanto não fui espiar em seu quarto. Espero que não se incomode.

— É claro que não — disse Tom. — Quem eram eles? Você os reconheceu?

— Os guarda-costas de Ralph Redwing. — Barbara olhou para a porta, depois novamente para ele. — Um deles chama-se Hasek. Foi o que me fez subir até seu quarto.

— Eles disseram o que queriam?

Ela deu um passo para a porta.

— Queriam apenas vê-lo. Não disseram mais nada. — Barbara virou-se para ele. — Não faço a menor idéia do que desejavam, mas pareciam francamente desagradáveis.

— Imagino que tenham vindo avisar-me para que fique longe da namorada de Buddy Redwing.

Ela o surpreendeu com um sorriso. Imediatamente pareceu menos ansiosa e nada autocrática. Relaxou a pressão na bolsa e virou muito de leve a cabeça para trás, a fim de beneficiá-lo com o sorriso integral.

— Naturalmente, Buddy Redwing é importante demais para fazer isso em pessoa.

— Não creio que Buddy faça alguma coisa pessoalmente — disse Tom. — Ele gosta de ter pelo menos uma pessoa real por perto.

— Acho que entendo o que quer dizer. — Ela vacilou. — Dormiu bem? A cama estava confortável?

— Excelente. — respondeu ele.

— Fico satisfeita. Queria que as coisas fossem agradáveis para você. Vai comer no clube esta noite? Achei que eu poderia ir dormir em casa hoje.

Ele disse que comeria no clube e perguntou se ela estava indo para a cidade.

Barbara ergueu as sobrancelhas.

— Poderia me dar uma carona?

— Bem, sim, seria um prazer — disse ela. — Claro, não vejo por que não seria um prazer.

Os dois saíram juntos, e Tom a seguiu pela trilha, até um caminho rústico que se duplicava, internando-se entre a árvores. Tinha sido deliberadamente obscurecido por um ramo folhudo, que ela afastou do lugar. Pouco mais adiante dali, um Volkswagen verde-escuro estava parado junto a um maciço de azaléias silvestres. Barbara Deane pediu que ele esperasse enquanto ela manobrava o carro. Tom recuou no caminho, o suficiente para ver um maltratado celeiro no final de um pequeno campo, orlado pela floresta. Barbara se virou para fitá-lo pela janela traseira, após manobrar o carro, Tom correu de volta e ocupou o assento ao lado dela.

— Mantenho meu cavalo naquele celeiro — disse ela. — Devia tirá-lo de lá para uma galopada todas as manhãs, porém desde o roubo fico nervosa sempre que me ausento de casa por muito tempo. Acho que vou levantar cedo amanhã e levá-lo para um passeio.

Bárbara direcionou o carro para o caminho e moveu-o lentamente, passando pelos chalés. Tom perguntou se ela conhecia Jerry Hasek.

— Na verdade, só hoje é que o vi. — Ela rodou pela altura do clube e passou para a faixa aberta de terra, na extremidade norte do lago. — Entretanto, ele é parecido com o pai.

— Você conheceu Wendell Hasek?

— Eu sabia quem ele era. — Ela rodou para o alto da ladeira. — Ele trabalhou para o juiz Backer, até o juiz despedi-lo. Eu achava Wendell Hasek um indivíduo absolu­tamente desagradável, mas agora penso que seu filho também parece desagradável, e ele trabalha para os Redwings. Assim, aparentemente, não sou boa julgadora.

— Acho que está certa em seus dois julgamentos — disse Tom. — Entretanto, por que o juiz Backer contratou esse tipo desagradável? Ele também era desagradável?

Ela deu uma risada.

— Dificilmente. Wendell era apenas um rapazola, quando foi trabalhar para o juiz. Naquele tempo, havia alguns juizes honestos em Mill Walk. E alguns policiais hones­tos também. — Ela meneou a cabeça. — Eu não deveria expressar-me assim. Estou quase inteiramente fora de contato com o que acontece em Mill Walk. E suponho que sou um tanto amarga.

Só voltaram a falar quando ela entrou na auto-estrada. Então, Tom disse:

— Deve lembrar-se bem nitidamente do verão da morte de Jeanine Thielman.

— Sem dúvida! — Barbara virou a cabeça, a fim de fitá-lo. — Foi o verão depois daquele em que sua avó morreu. Provavelmente, você nada sabe a respeito.

— Por que eu não saberia?

— Eu conheço Glen Upshaw. Ele nem mesmo queria ouvir o nome da esposa, depois que ela morreu. Tirou de sua vida tudo que se relacionasse a ela. Talvez achasse que assim seria melhor para Glória.

— Acha que Magda foi uma boa esposa para ele?

Barbara dirigiu-lhe um olhar Sobressaltado.

— Não creio que possa responder a isso. Não creio que qualquer mulher pudesse ser, para seu avô, o que as pessoas consideram uma boa esposa.

— Fiquei sabendo alguns fatos sobre minha avó, não faz muito tempo. Pareceu-me uma mulher surpreendente, para ele tê-la como esposa.

Ela retorceu a boca.

— Quer mesmo saber o que penso? — Barbara o fitou de banda, e ele viu que este havia sido um tema importante para ela. — Ignoro o que você conhece sobre Magda, mas ela era como uma criança. Não tinha mais independência do que um gatinho. Quando Glen a conheceu, Magda trabalhava como garçonete no restaurante do pai — era uma graciosa coisinha loura, aparentando 19 anos, mesmo quando já entrara nos trinta. Quietinha como um camundongo. Penso ser isso o que Glen apreciava, ter controle absoluto sobre a vida dela. Ele lhe dizia o que vestir, o que falar — governava a vida dela. Para Magda, era como um rei.

— Ela não tinha amigos?

— Glen não a incentivava a ter uma vida social em separado. Depois que Glória nasceu, ela parou de sair. Glen despediu os criados — naquele tempo em que todos os amigos deles tinham criadas, lavadeiras, cozinheiras, jardineiros e só Deus sabe o que mais — e Magda ficou fazendo tudo, além de cuidar também do bebê. Era como uma garotinha tímida, querendo agradar o pai.

— Então, ele tinha duas filhas — disse Tom.

— Ele tinha o queria. A maior parte do que queria.

Ela seguiu lentamente pela estrada deserta.

— Por que Magda teria se matado? Acho que ela tinha tudo o que queria também. Enfim, estava sozinha com o marido e o bebê.

— Glen a deixava sozinha a maior parte do tempo. Ele levava Glória para toda parte, deixando Magda sozinha em casa. E Magda começou a aparentar a idade depois que Glória nasceu. Mas isso não aborreceu muito Glen. Não mesmo. Para mim, ele apenas perdeu o interesse por ela.

— Então você não acredita que os rumores sobre a morte dela tivessem funda­mento.

— Glen não pode ter contado tudo isso a você.

— Li alguns jornais velhos.

— Jornais velhos do Lago da Águia?

Como Tom não dissesse nada, ela continuou depois de um instante.

— Bem, aquele editor era maluco. Ele odiava tanto as pessoas de Mill Walk que quando uma delas se afogou, viu ferimentos a faca onde não havia nenhum. É provável que Glen tenha subornado o criminalista e arranjado a cremação de Magda. Mas tudo o que ele queria era disfarçar seu suicídio, não encobrir um assassinato.

Tom assentiu.

— Mesmo as pessoas que não gostavam de Glen não pensaram que ele tivesse matado Magda. Aquele editor ridículo deveria ter sido despedido.

— Você é muito fiel a ele — Tom comentou.

— Eu costumava ser fiel a ele, acho. Arrumava as bagunças dele, e cuidava de Glória quando ele pedia. Mas Glen me esnobou quando arranjei problemas. Agora apenas trabalho para ele. Cuido da propriedade e ganho dinheiro dele por fazer isso. Não falo sobre coisas que ele não quer que eu fale, então se é isso que você...

Calou e olhou diretamente para a frente. Suas mãos crisparam-se no volante. Pareceu velha, nervosa e confusa.

— Sinto muito — ela disse.

Ela deu uma guinada para o acostamento e freou o carro, colocando as mãos sobre as coxas. Suas mãos pareciam pertencer a alguma outra pessoa, embrutecidas e emaranhadas com veias.

— Ele me pediu para testar você — afirmou Tom.

— Eu sei.

Ela afundou no assento.

— Não acho nem que ele tenha pensado que um dia nós conversaríamos ou conheceríamos um ao outro. Não é o jeito de pensar dele.

— Não — ela disse. — Estou certa que não é. — Ela afinal olhou para Tom. — Você não é muito parecido com ele, não é?

— Não o conheço o suficiente para saber se sou ou não.

— Bem, você é muito simpático. Acho que ele apenas o mandou para cá do mesmo jeito que me mandou.

— O jeito que ele mandou minha mãe para casa depois que Jeanine Thielman desapareceu.

— Não. Gloria tinha formado algum tipo de afeição por Jeanine. Glen não queria que sua filha passasse por outra perda terrível. Acho que estava tentando poupá-la de alguma dor, o que fez do seu jeito habitual, apagando a causa da dor.

Ela agora olhava para ele, não com raiva, mas como se esperasse que assumisse as feições do pai preocupado de Glen Upshaw.

— Minha mãe não lhe disse nada sobre ter visto um homem correndo pela floresta na noite que a sra. Thielman desapareceu?

— Não, mas se ela disse, seria apenas mais uma razão para Glen afastá-la de todos. Não percebe? Glória era uma menininha muito abalada naquele verão. Ele decerto não queria envolvê-la com a polícia.

Glória era uma menininha muito abalada bem antes daquele verão, Tom pensou, mas não disse nada.

— Você está muito interessado no que aconteceu naquela época, não é?

Ela deu a partida no carro e voltou para a auto-estrada.

— Penso que o que aconteceu tem muito a ver com o que está acontecendo agora.

— Mas aqueles foram tempos terríveis. Há coisas que é melhor não saber.

— Não acredito nisso.

Ela dobrou a Rua Principal. Às oito da manhã, a maior parte das lojas estavam fechadas. Apenas algumas pessoas andavam nas calçadas. Nenhuma delas parecia turista. Barbara Deanne encostou na calçada depois do primeiro cruzamento. Uma placa preto e branca dizia Rua do Carvalho.

— Minha casa é logo ali adiante. Se importa se eu o deixar aqui?

Ela pareceu subitamente tímida e indecisa.

— Sei que está ocupado, mas que acha de vir jantar uma noite dessas? Seria bom cozinhar para alguém, e eu gosto da sua companhia, Tom.

— Apreciaria muito.

— Devo poder lhe contar algumas coisas sobre o verão em que Jeanine morreu sem ser desleal ao seu avô. Entretanto, a coisa mais importante que deve lembrar é que quer que ele tenha feito, foi para proteger sua mãe.

— É só marcar o dia.

Ela tocou o braço dele para dizer mais uma coisa.

— Sua mãe disse que viu um homem correr na floresta aquela noite?

— Deve ter sido Anton Goetz. Não poderia ter sido mais ninguém.

— Bem, não poderia ter sido Anton Goetz também. Ele andava com uma bengala, e era manco. Mancava de forma muito romântica. Anton Goetz não podia se mover rápido. Glória não deve ter visto nada — tinha uma imaginação muito viva. Nem sempre podia diferenciar ficção da realidade.

— Sei disso — disse ele, saindo do carro.

 

Uma hora depois, enquanto andava de volta pela auto-estrada, o Lincoln preto passou perto dele e, dando marcha à ré, encostou no acostamento. As portas traseiras do Lincoln se abriram. Dois homens vestidos com ternos cinza e óculos escuros saíram do carro. Um deles era gordo demais para abotoar o terno; o outro, magro como um vira-lata. Ambos tinham costeletas compridas e cabelos escovados para trás tipo Elvis. Olharam para ele com expressões de cansaço e indiferença. O magrela pôs as mãos nos bolsos. Jerry Hasek, também num temo cinza, mas sem óculos escuros, abriu a porta do motorista, saiu e olhou de forma pouco amistosa para Tom por cima do teto do carro.

— Vamos levar você para um passeio — ele disse. — Vamos, entre no carro.

— Prefiro andar.

Tom olhou para a floresta que margeava os dois lados da estrada.

— Oh, não faça isso —Jerry disse. — De que valeria? Apenas entre no carro.

Os outros dois começaram a caminhar em sua direção.

— Nappie e Robbie — observou Tom. — Os Rapazes Comer.

— Robbie tirou as mãos dos bolsos e trocou um olhar com o amigo gordo. A boca de Nappy quase encostou nas costeletas.

— Vou lembrar de você — Nappy disse.

— Apenas entre no carro -Jerry mandou. -Já fomos longe demais com isso. Tom, seja compreensível, não vamos machucá-lo. Só queremos levá-lo de volta.

— Por quê?

— Tem uma pessoa que quer falar com você.

— Então entre no carro — Nappy disse numa voz áspera que soava como se alguém tivesse pisado na sua garganta.

Passando por Nappy e Robbie, Tom abriu a porta do passageiro da frente. Todos os três guarda-costas observaram-no entrar, e também entraram em seguida.

— Tá legal — Nappy suspirou.

Parecia um grande sapo-boi, recostado no fundo do carro.

— Tá legal — disse Robbie. — Tá legal. Tá legal. Tá legal.

Jerry ligou o carro e dirigiu pela estrada em volta do lago.

Nappy se inclinou para a frente.

— Que história é essa de Rapazes de Corner, hein? De onde tirou isso, essa história de Rapazes Corner?

— Fica quieto, tá? — pediu Jerry. — E você também, Pasmore. Quero falar algumas coisas antes de voltarmos.

— Bom — Tom respondeu.

Jerry fez uma careta e olhou para ele.

— Você veio à minha casa há muito tempo atrás. Eu e minha irmã saímos para conversar com você. Quando meus amigos se aproximaram, você correu e se machucou. Ninguém queria que aquilo acontecesse.

— Não achei que vocês estivessem querendo me matar. Fiquei apavorado quando vi aqueles dois caras brandindo facas.

— Todo mundo teria cuidado daquele assunto de outra forma. Meu pai tinha mandado ver o que você queria.

— Sei disso agora.

— Quero dizer, já havia alguma excitação.

— Certo.

— Então que foi aquilo sobre o cachorro?

Robbie soltou uma risadinha.

— Ouviu alguém gritar.

— Acho que todos cometemos erros, hein? — Nappy disse.

— Não quero ouvir outra palavra sobre isso —Jerry disse. — Entendeu?

— Cachorro — Robbie disse, e Nappie fez um pequeno oh-oh que terminou tão rápido quanto começou.

Jerry tirou as mãos do volante e girou tão rapidamente que quase não pareceu se mover — Tom viu apenas um borrão — e então Jerry estava debruçado sobre o banco traseiro, batendo em Robbie com as duas mãos.

— Babaca! Cabeça de bagre! Filho da puta retardado!

Robbie protegia o rosto com as mãos.

— Você bateu no meu... Acertou o meu...

— Pensa que me importo? Seu maldito, eu te avisei...

O Lincoln vagou lentamente em direção à alameda mais próxima. Tom agarrou o volante e afastou o carro para longe dela. O retorno de Vic Pasmore, pensou. Jerry bateu mais um pouco em Robbie e virou para tirar o volante das mãos de Tom. Seu rosto estava completamente vermelho.

— Tá legal? Tá legal? Vamos fazer isso certinho?

— Fizemos certinho — Nappy contestou.

— Vamos fazer mais certinho ainda — Jerry disse.

— Você me machucou — Robbie disse.

Tom olhou por cima do banco. Nappy estava olhando diretamente para a frente. Parecia um homem andando de ônibus. Um fio de sangue, que começava num corte na ponta do nariz, descia pela bochecha de Robbie. Um golpe atingira seus óculos escuros. Robbie fitava os dois pedaços quebrados. Olhou para Tom e abriu a janela, jogando os óculos na estrada.

— Tudo bem — Jerry disse. — Agora vamos fazer tudo direito.

Dirigiu o carro pela trilha acidentada que levava ao lago.

Tom esperou que eles fossem para o complexo, mas Jerry passou por ele sem mesmo olhá-lo de relance. Passaram pela cabana dos Spences e pararam em frente à de Glendenning Upshaw.

— Ótimo — Jerry disse. — Vamos entrar e acabar com essa história.

Os quatro saíram do carro.

— Você primeiro, bacana. É aqui que mora, certo?

Tom contornou o carro. Nappy e Robbie colocaram as mãos nos bolsos e olharam para a grande cabana como se estivessem pensando em comprá-la para veraneio. Robbie limpara o fio de sangue do nariz, mas dois arranhões estendiam-se no lado do rosto como pintura de guerra. Tom subiu os degraus de pedra. Jerry o seguiu empurrando-o para frente. Os outros dois subiram lentamente os degraus, olhando para um lado e para o outro.

— Limpe o rosto, pelo amor de Deus — Jerry disse.

Tom abriu a porta de tela, e Jerry a segurou enquanto ele abria a porta da frente. Entraram. Jerry continuou a acompanhá-lo por trás.

Buddy Redwing levantou-se do sofá em frente à porta como um boneco de caixa de surpresa. Usava uma camisa pólo verde-claro e calções cáqui largos.

— Demorou muito.

— Tivemos que procurá-lo por toda parte.

Jerry colocou as pontas dos dedos nos ombros de Tom e o empurrou gentil­mente.

Nappy e Robbie se encaminharam para lados opostos da grande sala de estar. Nappy andou até a porta do escritório, abriu-a e espiou seu interior. Kip Carson, vestido apenas com um par de jeans rasgados e desbotados, caminhou atra­vés da cozinha, segurando uma lata vermelha de Coca-Cola. Levantou a lata em saudação.

— O que vocês estão fazendo aqui? — perguntou Tom.

— É uma boa pergunta, vinda de você — Buddy disse. — Até onde sei, você é um autêntico caso de caridade. Não tem nada a fazer por aqui. Não é nada senão um grande pé no saco.

— Buddy, quero que você e seus amigos saiam deste chalé.

Buddy jogou os braços para o alto e virou de um lado para o outro, como se estivesse suplicando para os dois lados da sala.

— Oh, meu Deus. Ele quer que eu deixe o chalé. Isso é tão... tão putamente decisivo. Mal sei o que dizer.

Nappy soltou um risinho abafado, e Kip Carson tomou um gole de Coca, sentando-se no sofá atrás de Buddy para apreciar o espetáculo. Jerry e Robbie caminhavam em volta da sala. Quando Buddy se voltou para eles, os dois tentaram parecer atentos.

— O que quero dizer é que isso é realmente raro.

Virou-se para encarar Tom.

— Vamos fazer isso certinho. Pelo que sei, você não passa desse cara que apareceu . de repente. É um idiota. Não entende nada. Não sabe como as coisas funcionam.

— Acabou? — Tom disse. — Ou ainda há mais?

Buddy apontou um grosso dedo indicador para o peito de Tom.

— Você pegou uma carona até aqui em nosso avião particular com meus convida­dos. Se sentou à minha mesa. Dirigiu meu carro.

Deu um passo nervoso para o lado, e então se moveu para a frente de Tom novamente.

— E no momento que você aparece, minha garota decide de repente que não quer passar muito tempo comigo. De repente, tudo está um pouco diferente. Tenho a impressão de que você andou fuçando o que não é da tua conta, Pasmore.

— O que é da minha conta? — Tom perguntou.

— Nada é da tua conta! — explodiu Buddy. — Diabos! Sabe há quanto tempo estou saindo com Sarah? Três anos! Temos toda a porra de um relacionamento!

Tom sorriu, e os olhos pareceram afundar em suas órbitas.

— Não sacou? Sarah me pertence. Sarah é minha. Você não tem nada a ver com ela.

— Você não pode possuir outras pessoas — disse Tom. — As pessoas fazem o que quiserem.

Buddy se afastou.

— É o que você acha? Devia saber isso bem, considerando sua família.

— Deixe minha família de lado, seu babaca mimado, preguiçoso e indiferente — Tom disse, mordaz.

Buddy insistiu no que identificou como a fraqueza de Tom.

— Nós possuímos o velho Upshaw, Pasmore. Acha que ele faz alguma coisa que nós não tenhamos conhecimento? Seu avô nos pertence. Não há qualquer guarda-chuva para te proteger.

Tom piscou, mas não reagiu de forma alguma.

— Quer que eu explique o problema para você?

— Você pode?

Buddy balançou a mão em frente do rosto como se espantasse uma nuvem de mosquitos.

— O seu problema é que não conhece as regras. E porque não conhece as regras, não sabe o modo certo de jogar. Sou um Redwing. Vamos começar por isso. Nada acontece aqui em cima sem estar aprovado por nós. A segunda coisa é: não se meta com minha namorada. É um erro. Se você espera que eu seja civilizado a respeito disso, é porque não me conhece. Porque eu não pretendo ser civilizado a respeito disso.

— É engraçado — disse Tom — mas eu nunca esperei que você fosse civilizado, Buddy.

— Seu viado escroto! — Buddy reagiu. — Está vendo esses caras aqui? Eles trabalham para mim, se eu pedir que eles façam alguma coisa a você, eles farão. Mas não preciso deles para me livrar de você — posso fazer isso eu mesmo.

Tom recuou, tremendo de medo, ódio e desgosto. Um odor intenso e desagradá­vel, de fermentação e sujeira íntima, parecia exalar dos poros de Buddy.

— A coisa mais idiota que você podia ter feito foi mandar que me trouxessem preso para casa. Você pensou que isso o tornaria invulnerável?

— Jesus, quanta besteira — Buddy disse. — Alguém pode me explicar o que esse sujeito está falando?

Olhou sobre o ombro de Jerry.

— É maluco — Jerry disse.

— É completamente desmiolado — falou Kip Carson, soando levemente es­tupefato.

— Quanta besteira — Buddy repetiu, num tom de voz admirado. — Esse cara é incapaz de dizer qualquer coisa que não seja cem por cento pura besteira.

Balançou para frente e para trás, brandindo ameaçadoramente os braços grossos e curtos.

— Não disse que não precisava de ninguém para cuidar de você? Por que acha que eu o trouxe para cá? Estou te dizendo agora para ficar longe de Sarah Spence. Seja lá o que for que você pense sobre ela, está enganado. Entendeu? Talvez ela esteja brincando um pouco com você — ela seria capaz disso. Mas eu a entendo muito melhor do que você, acredite.

— Não acho que você a entenda nem um pouco.

— Ela está tentando me deixar com ciúmes — disse Buddy. — Ela sabe que eu vejo umas duas garotas no Arizona, e quer descontar em mim. E funcionou! Estou com ciúmes, certo? Estou puto da vida — mas você não me quer puto da vida com você, Pasmore.

— Por quê? O que vai fazer? — Tom perguntou.

— Buddy apontou um dedo para o peito de Tom.

— Vou te deixar em pedaços. Está claro o suficiente para você? É tão insignifi­cante que eu não deveria me preocupar. Mas se você me provocar, vou te partir ao meio.

— Sei o que você faria — Tom disse, perdendo um pouco do autocontrole. — Diga a você mesmo que ela não é boa o suficiente para você. Vai dizer isso mais cedo ou mais tarde, então por que não começa logo? Diga a você mesmo que tem sorte em ter descoberto a tempo.

Nappy deu uma risadinha. Buddy agitou os punhos e, sorrindo, deu um soco na direção da cabeça de Tom. Ele se esquivou, Buddy socou com o outro braço e errou novamente. Tom recuou e deu uma olhada rápida em Jerry e nos outros, que não estavam fazendo nada senão olhar impassivelmente. Buddy veio a passos leves na direção de Tom e disparou sua mão direita. De instinto, Tom deu um passo na direção do sopro no rastro golpe e o acertou no estômago. Foi como enfiar o punho numa tigela de mingau de aveia. Buddy espalmou ambas mãos no estômago e se dobrou sobre os joelhos.

— Oh, merda — Jerry disse.

Fez um sinal para Nappy e os dois levantaram Buddy e o ajudaram a sair pela porta. Kip Carson jogou fora a lata de Coca e os seguiu. Tom enxugou o rosto com as mãos e tentou parar de tremer. Foi até a porta aberta e puxou a tela para o lado. Jerry Hasek estava parado no degrau do alto com as mãos nos quadris. Kip flutuava incerto junto ao carro. Buddy se esforçava para respirar, enquanto Robbie e Nappy abriam a porta de passageiros do Lincoln e entravam. Kip Carson subiu na traseira e esperou.

— Você fala muito — Jerry disse no degrau de cima.

— Ele também — retrucou Tom.

 

Tom passou o resto da manhã sozinho. Ligou para Sarah, mas, na cabana, ninguém atendeu. Bateu à sua porta. Como não obteve resposta, foi dar uma caminhada pelo complexo. Tanto o Lincoln quanto o Cadillac já haviam ido embora. Caminhou todo o percurso ao redor do lago, nada ouvindo senão pássaros, insetos, e um peixe ocasional espalhando água. Tom se sentiu a última pessoa sobre a Terra — toda a caravana dos Redwings havia saído. Quando voltou, contornando a cabana de Roddy Deepdale até a sua própria, pôs a roupa de banho e nadou até os músculos estarem cansados e relaxados.

No clube, Marcello estava sentado num sofá desbotado, lendo uma revista em quadrinhos sob uma lâmpada. Ele se levantou quanto Tom entrou, e, bocejando, andou até uma porta de madeira descorada onde estava escrito ESCRITÓRIO. Tom subiu para a sala de jantar vazia. O velho garçom que vira naquela manhã se levantou de uma cadeira por trás do balcão e o conduziu a uma mesa perto do coreto da orquestra.

— Onde estão todos? — Tom perguntou.

— Eles não me dizem para onde vão — respondeu o garçom, colocando um cardápio enorme nas mãos de Tom.

Depois de almoçar, tirou um romance da estante e, mal havia acabado de sentar numa das cadeiras de madeira maciça, o telefone tocou no gabinete do avô.

— Então, o que aconteceu? — perguntou Sarah.

— Onde você está? — ele perguntou de volta. — Liguei para sua casa, mas ninguém atendeu. Também não havia ninguém no clube.

— Fomos todos para o Urso Branco. Ralph e Katinka estiveram de mau humor durante todo o almoço, embora tenham feito o máximo para disfarçarem. Buddy me disse que você o chamou de preguiçoso, mimado e indiferente. Você fez isso?

— Não pude evitar.

— Acertou duas em três. Ele certamente é preguiçoso e mimado, mas eu não o chamaria de indiferente.

— Ele brigou com você?

— Ele mais ou menos brigou aos sussurros. Não queria que seus pais ouvissem. Estava numa mesa com ele e Kip, e meus pais estavam em outra mesa com os pais dele e a tia. Buddy normalmente se comporta quando os pais estão por perto, e eu acho que ele tinha que manter as boas-maneiras no Urso Branco.

— O que você disse a ele na outra noite?

— Só queria que ele parasse de fingir que íamos nos casar. Disse que gostava de você também, e que não estava certa se queria viver para sempre em Mill Walk. Estava me sentindo muito inquieta.

— Você não rompeu com ele.

— Tenho que passar todo o verão aqui, Tom. Acho que me saí muito bem, na verdade. Disse a ele que ser um Redwing é uma carreira, e que não estava certa se é a que eu quero.

— Disse a ele que devia decidir se você é ou não boa o suficiente para ele.

— Gostei disso — ela disse, no sentido de que não gostou. — De qualquer forma, Você poderia fazer a gentileza de dizer o que aconteceu, por favor?

Ele descreveu, o melhor que pôde se lembrar, a cena entre ele e Buddy, exceto como terminara.

— Muito bem... O complexo está quase vazio agora. Então, se você quer ver onde ás guarda-costas moram, a hora é essa. A única pessoa no lugar deve ser a tia Kate, e ela tira uma longa soneca toda tarde.

Tom disse que a encontraria em frente à cabana.

— Acho que sou maluca — disse ela, desligando.

 

Ela saiu de trás dos carvalhos quando Tom caminhou na direção da cabana. Ele desceu a trilha para juntar-se a ela. Sarah o empurrou para trás dos grandes carvalhos e abaixou o rosto dele para dar-lhe um beijo demorado.

— Tive de sair. Minha mãe sabe que há alguma coisa errada entre mim e Buddy, e não podia mais agüentar tanto interrogatório. Liguei para você quando ela subiu para lavar o cabelo.

Caminharam através do estacionamento estreito em frente ao complexo, e Sarah abriu a porta da cerca alta.

— Lá vamos nós.

Uma trilha de cascalho levava a três casas de madeira altamente ornamentadas, com pórticos compridos, frontões e janelas de água-furtada no terceiro andar. As casas eram tão perfeitamente conservadas que pareciam artificiais. A coisa toda parecia uma terra dos brinquedos, Disneylândia.

— Bem, aqui está você — Sarah disse. — É isso aí. O Santuário. O de Mill Walk parece exatamente igual, com exceção que as casas são mais novas e não são todas iguais.

— É melhor que eu fique por aqui, caso eles voltem mais cedo. Bato na porta, ou algo do gênero.

— Não vou demorar — disse Tom, entrando.

A cabana cheirava a cigarros e gordura. Roupas e revistas abertas jaziam no chão da sala principal do térreo, e a cozinha era uma pilha só de pratos sujos e garrafas de cerveja vazias. Tom subiu os degraus e espiou os quartos. O chão e as camas estavam cobertos por jeans azuis, meias e camisetas. No maior dos quartos de dormir, havia uma televisão portátil e um toca-fitas sobre uma mesa baixa. Tom abriu as gavetas do armário, achando cuecas, camisas brancas limpas e ainda nos embrulhos da lavande­ria, e meias limpas. Numa prateleira mais baixa, sobre dois ternos cinzas, encontrou uma pilha de revistas pornográficas e, junto a um monte de livros sobre campos de concentração, Hitler, nazistas e criminosos famosos, quatro manuseadas edições de bolso intituladas A biblioteca dos torturadores.

Fotos de revistas de cultura física decoravam o quarto de Nappy. Caixas de Crumpled O Henry e Twinkies estavam espalhadas pela cama. O quarto de Robbie era uma pocilga de garrafas de cerveja, pratos sujos e roupas emboladas. Um toca-fitas barato, igual ao de Glória Pasmore, estava no chão perto de uma pilha de fitas cassete e um espelho de corpo em frente ao qual Robbie fingia tocar guitarra.

Tom desceu as escadas e saiu.

— Nunca pensei que ser vigia era um trabalho tão complicado — disse Sarah. — Tenho certeza que vários pássaros me olharam de forma suspeita. Minhas mãos estavam tão apertadas uma na outra que eu quase me contundi. Alguma coisa?

— Mais ou menos o que eu esperava. Um monte de discos de Vivaldi e livros de T. S. Eliot. Vamos sair daqui.

— Agora pode me dizer por que queria fazer isso?

— Estava procurando...

Um carro avançou sobre o cascalho do pequeno estacionamento atrás da cerca. Portas de carro foram abertas. Vozes flutuaram na direção deles. Tom e Sarah estavam no meio do complexo, a meio caminho do portão.

— Epa!— disse Sarah.

O portão da cerca se abriu. Katinka Redwing o atravessou, seguida imediata­mente por seu marido. Ambos gelaram ao ver Tom e Sarah.

— Oh, oi! — disse Sarah. — Estava mostrando o complexo ao Tom. É tão bonito, não acha?

— Lindo — disse Tom. — Tão calmo. Posso realmente perceber por que vocês o adoram.

Ambos os Redwings o encararam com expressões implacáveis.

— Bem — Sarah disse — digam ao Buddy que estou ansiosa por nosso passeio à tarde.

Sorriram e passaram pelos atônitos Redwings.

Do lado de fora da cerca, Jerry Hasek estava recostado no Cadillac, fumando. Quando Tom e Sarah apareceram através do portão, tirou o cigarro da boca e olhou para eles mordendo o lábio inferior. Seus dentes agiram como se estivessem mascan­do chiclete.

— Nos vemos depois, Jerry — disse Sarah. Ela e Tom seguiram a trilha do cascalho.

— É — disse Jerry. — Nos vemos depois.

Às dez para as quatro, Tom estava à sombra das árvores perto da fila de caixas do correio. Um pouco depois, uma caminhoneta azul e branca do correio surgiu na frente das caixas. Joe Truehart saltou e começou a enfiar folhetos publicitários, catálogos e revistas nas caixas de Redwing. Tom saiu de seu esconderijo e deu a ele outra carta comprida para Lamont von Heilitz. O carteiro disse que tomaria o máximo de cuidado com ela, colocando-a no bolso traseiro. Tom desceu a colina e voltou à cabana. Leu por uma hora. Depois saiu e caminhou até a cabana Deepdale para visitar Kate Redwing.

 

Buzz abriu a porta e disse: “Pode entrar!” Seu calção de banho era apenas uma faixa mínima de pano azul. A pele reluzia a óleo. Um lenço vermelho de petit-pois estava amarrado ao redor do pescoço. Seus dentes perfeitos brilhavam. Deu um passo para trás e Tom o seguiu até uma sala comprida, tipo sótão, com sofás e cadeiras castanhas, vasos de vidro com flores cortadas, um piano com fotografias emoldura­das e cobertores grossos de lã amarelo-clara sobre o chão de madeira polida. Havia uma grande lareira de pedra na parede dos fundos. Kate Redwing se levantou e sorriu de um dos lados do comprido sofá em frente a ele.

— Kate está tomando uma xícara de chá. Aceita uma? Posso lhe dar uma Coca ou um 7-Up ou qualquer outro tipo de bebida, se preferir.

— Chá seria ótimo — disse Tom.

Roddy e eu estamos lá fora aprimorando nossos bronzeados, e como Kate disse que vão falar sobre túmulos, vermes e epitáfios, só vou lhe trazer o chá e voltar para meu bronzeado, se você não se importa.

Ele pôs as mãos sobre as coxas finas, inspecionando Tom de forma bem-humorada.

— Tem certeza que já se recuperou daquela cambalhota? Está com uma aparência!

— Acho que tudo tem sido uma grande cambalhota desde então — Tom respon­deu, e Buzz riu, indo para a cozinha ferver água.

— Venha se sentar comigo — disse Kate. — Você está mesmo bem?

Ele contornou a sala até ela, respondendo com a cabeça. Ao passar pela janela no fundo da sala, acenou para Roddy Deepdale, que estava recostado numa cadeira de praia. Ele usava o mesmo tipo de calção de banho quase inexistente de Buzz, e seus ombros e peito estavam tomando um dourado suave e uniforme. Uma garrafa plástica marrom de loção de bronzear e uma pilha de livros estavam sobre uma mesinha ao lado da cadeira. Roddy se ergueu com um cotovelo e acenou de volta. A chaleira apitou na cozinha.

— Você conseguiu abalar mesmo meu sobrinho e sua esposa — disse Kate. — Houve uma certa inquietação entre você e Buddy de manhã, não? Claro que todos são ótimos diplomatas, mas eu não acho que você poderá me divertir em mais nenhum jantar de família.

Tom respondeu que ele provavelmente também não poderia se divertir.

— Pelo menos não nos jantares — ela disse, e Tom percebeu que esta senhora incrível estava lhe oferecendo sua amizade. Ele disse que achava que poderia haver outras horas do dia.

— Isso mesmo. Ralph também não se afina muito com Roddy e Buzz, mas nós nunca vimos qualquer razão para que isso interferisse em nosso relacionamento. O mundo não funciona de acordo com as leis dos Redwings.

Ela deu uma palmadinha com as mãos.

— Imagino que tudo isso tenha relação com aquela linda menina dos Spences. Claro que seria terrível para ela casar-se com meu sobrinho-neto. E além do mais, é muito jovem. Ralph e Katinka se recuperarão do choque mais rápido que você pensa. E logo-logo Buddy descobrirá outra garota que será muito mais apropriada. Você deveria ser o mais discreto possível até o verão acabar.

— Então é sobre isso que estão falando — disse Buzz, retornando com uma xícara fumegante de chá. — Agora mesmo tenho certeza de que é melhor que eu não me meta!

Ele serviu o chá na mesinha de vidro na frente deles e saiu por uma porta lateral. Um minuto depois passava pela janela, caminhando na direção de uma espreguiça­deira.

— Buzz trabalha?

— É médico — Kate sorriu para ele. — Excelente pediatra, pelo que ouvi dizer. Teve alguns problemas no início da carreira, quando trabalhava com um médico muito importante, e teve que dar um jeitinho aqui e ali, mas tudo vai bem agora.

Ela se inclinou para sua xícara e depois o fitou com brilho nos olhos.

— Mas não foi a esse respeito que você veio conversar. Não estava interessado no que aconteceu no primeiro verão que passei aqui? Quando aquela pobre mulher foi assassinada?

— Não foram você e seu noivo que acharam o corpo?

— Suspeitava que você sabia disso. — Ela sorriu para ele novamente. — Fico pensando por que você quer saber tudo isso.

— Bem, minha mãe piorou muito durante aquele verão. Acredito que o assassinato teve muito a ver com isso.

— Ah...

— E eu e Lamont von Heilitz falamos sobre o assassinato da sra. Thielman desde que nos conhecemos.

— Então foi ele que o fez ficar interessado.

— Acho que poderia dizer isso. Acho que ainda há muita coisa que não se sabe, que nunca se explicou, e o máximo que eu puder descobrir...

Deixou a frase incompleta.

— Talvez não esteja me explicando direito, mas me importo com Mill Walk, e aquele assassinato envolve um monte de pessoas importantes que dirigem os assuntos da ilha.

— Estou satisfeita por não estarmos conversando no complexo. Mas confesso que acho fascinante. Você realmente acredita que Lamont tenha deixado escapar algo?

— Provavelmente nada importante.

Ele olhou para a lareira e viu o retângulo vazio e levemente mais descorado na parede creme sobre o qual o retrato estivera pendurado.

— Bem, há uma coisa que posso lhe dizer. Tudo a respeito de um assassinato é surpreendente, porque de uma só vez você descobre muita coisa sobre os segredos dos outros, mas foi realmente uma surpresa quando soube que Jeanine Thielman estava encontrando Anton Goetz. E se não fosse por aquelas cortinas — as cortinas que a embrulhavam quando Jonathan a encontrou embaixo d’água — não sei se eu teria acreditado que ele teve alguma coisa a ver com isso. E também o fato de que ele se matou, claro. Mas as cortinas foram realmente algo e tanto.

— Ele nunca esperou que elas fossem descobertas.

O lago é muito fundo naquela parte, e há um grande declive onde os juncos acabam. Foi má-sorte dele minha linha ter ficado presa, o que fez Jonathan mergulhar e ver algo que pareceu curioso.

— Você não achava que Goetz era o tipo dela?

— Anton Goetz! Ele parecia tão óbvio. Queria projetar um tipo de virilidade romântica, você sabe, sempre fumando e estreitando os olhos, esse tipo de coisa. Aquela ferida de guerra ajudava. Ele era bom no tiro, aliás, um verdadeiro atirador. Sob tais circunstâncias, impressionava um pouco, não acha? E diziam que possuía aquele hotel de fama um tanto duvidosa. Vinte anos depois que aquilo aconteceu, me lembrei de Anton Goetz quando vi Casablanca. Humphrey Bogart e o Rick’s Café American. Exceto que Goetz tinha um daqueles melosos sotaques alemães.

— Ele não parece o tipo de pessoa que seria um contador.

— Oh, ele não poderia ser um contador — ela disse, olhando para ele como se o rapaz estivesse brincando. — Impossível. Lembra quando várias pessoas foram mortas em seu hotel? O Alvin? O Albert?

— O St. Alwyn — disse Tom.

— Isso. Uma prostituta, um músico, eu acho, e um grupo de outras pessoas? E alguma coisa sobre as palavras “Rosa Azul”? E um detetive de Mill Walk que se matou? Estar como Roddy e Buzz me faz lembrar tudo isso, acho. De qualquer forma, quando ouvi sobre isso de meus pais em Mill Walk, pensei que era típico de Anton Goetz possuir um hotel onde acontecesse esse tipo de coisa. Ele não poderia ter sido um contador. Poderia?

— Segundo o pai de Sarah, ele foi. Viu o nome de Goetz nos livros da corporação. Mas na verdade era meu avô que possuía o St. Alwyn.

Ela olhou fixamente para ele por um segundo, esquecendo a xícara de chá que erguera do pires.

— Bem, isso é muito interessante. Explica alguma coisa. Na noite que se soube que Jeanine Thielman desaparecera, Jonathan e eu estávamos jantando com os Red­wings, como fazíamos a maior parte daquelas noites. Eu deveria conhecer o seu tio Maxwell e o resto, e eles deveriam me dar uma boa inspecionada, o que certamente fizeram. Aqueles jantares abalavam um pouco os nervos, mas naqueles tempos tínhamos de suportá-los. De qualquer forma, naquela noite, Jon e eu queríamos ser nós mesmos e eu perguntei se teríamos que ficar o verão inteiro. Jonathan achou que deveríamos, porque seria muito simpático. Teríamos que ficar ali por um bom tempo porque não tínhamos argumento em contrário. Uma certa hora, quando me afastei dele, fui para o balcão da frente do clube que dá vista para a entrada. Vi seu avô conversando com Anton Goetz.

Ela olhou para baixo e notou a xícara em sua mão. Recolocou-a no pires e cruzou as mãos no colo.

— Bem, fiquei um tanto surpresa. Não sabia que eles se conheciam tão bem. Alias, eles nem se pareciam. Claro que eu não achava que a sra. Thielman e o sr. Goetz também faziam o gênero um do outro, e depois descobriria que sim. Durante o dia, nunca vira Glen e Anton fazerem mais do que acenarem um para o outro. E lá estavam eles, tendo uma conversa intensa. Cada um estava se apoiando em alguma coisa: Anton Goetz em sua bengala e seu avô com aquele guarda-chuva que sempre carregava. Achava que ele podia bater em alguém com ele se ficasse nervoso.

— Parecia que estavam brigando?

— Diria que não. O que me impressionou na hora foi Glen ter deixado Glória sozinha na cabana. À noite. E Glen jamais deixava Glória sozinha, especialmente à noite. Era um pai muito cuidadoso.

Tom balançou a cabeça.

— Goetz sempre carregava uma bengala?

Ele precisava dela para se levantar. Uma de suas pernas era praticamente inútil. Podia andar, mas apenas mancando muito. Mancar caía bem nele. Era parte dele tanto como ser um bom atirador. Adicionava-se à sua aura.

— Não podia correr?

Kate sorriu.

— Meu Deus, correr? Ele daria com a cara no chão. De qualquer forma, não era o tipo de homem que você imagina correndo.

Ela olhou para ele com uma expressão de compreensão no rosto inteligente.

— Alguém lhe contou tê-lo visto correndo? São uns mentirosos, se contaram.

— Não, não foi exatamente isso. Minha mãe viu um homem correndo pela floresta na noite que a sra. Thielman foi morta. Pensei que teria sido Goetz.

— Pode ter sido todo mundo, menos ele.

Do lado de fora, Roddy Deepdale se levantou e espreguiçou. Pegou seus livros e desapareceu por um momento antes de chegar pela porta lateral. Buzz o seguiu um momento depois.

— Alguém quer uma bebida antes de sairmos para o clube? — disse Roddy. Ele abriu um sorriso brilhante e foi para o quarto colocar uma camisa.

— Não gostaria de termos Lamont von Heilitz aqui, para que pudéssemos pedir que explicasse tudo? — sugeriu Kate. — Tenho certeza que ele poderia.

— Roddy disse alguma coisa sobre bebida? — Buzz perguntou, vindo pela porta lateral.

— Talvez uma pequena — respondeu Kate. — Todo mundo cuida de mim... Acho que têm medo que eu fique chorando pelos cantos.

— Posso chorar por você — disse Buzz. — Tenho só mais uma semana para deitar ao sol, pegando bronzeado, antes de voltar para St. Mary Nieves.

Tom ficou mais uma meia hora. Soube que o Christopher que disse a coisa estranha a Roddy Deepdale foi Christopher Isherwood, e depois se divertiu -surpreendentemente — quando todos falaram sobre Mr. Norris changes trains e Goodbye to Berlin, e seu autor, que Roddy e Buzz consideravam um querido amigo. Era a primeira vez em sua vida que tinha esse tipo de conversa com adultos, e a primeira prova que obteve de que conversa literária era uma possibilidade no Lago da Águia. Mas depois se aborreceu com a sensação de ter esquecido algo importante ou deixado de fazer alguma questão relevante, durante sua conversa com Kate Redwing.

Quando voltou para a cabana do avô, tentou escrever outra carta para Lamont von Heilitz, mas logo perdeu o ânimo — realmente não tinha nada novo para dizer a ele, exceto que estivera se perguntando se não deveria apenas voltar para Mill Walk e começar a pensar seriamente em se tornar engenheiro, afinal. Perguntava-se como sua mãe estava passando, e se ele podia fazer qualquer coisa para ajudá-la se ela estivesse em casa. Casa, neste momento, não parecia muito mais seu lar que o chalé de Glendenning Upshaw.

Tomou um banho, enrolou-se numa toalha e, ao invés de voltar imediatamente ao quarto para se vestir, subiu a escada e foi ao quarto de Barbara Deane. Abriu sua porta e entrou.

Era um quarto bonito e quase vazio, duas ou três vezes maior que o seu, com uma cama de casal e uma vista para o lago através de uma janela ampla. Uma porta entreaberta revelava um chão de banheiro ladrilhado e a ponta de uma banheira branca com pés em forma de garras e uma cortina de banho. As portas do armário estavam fechadas. Uma mesa vazia ficava encostada a uma das paredes, e uma fotografia emoldurada estava em cima dela como um ícone. Tom avançou três passos e viu que era uma fotografia ampliada de seu avô, jovem, cabelos alisados para trás, dando à câmera um sorriso de mil velas que a expressão em seus olhos fazia parecer forçada e não natural. Estava abraçando Glória, com quatro ou cinco anos de idade, em seus braços — a Glória rechonchuda e de cabelos cacheados que Tom vira numa foto de jornal. Sorria como se tivesse sido mandada sorrir, deixando transparecer no rosto o que Tom achou ser medo. Se aproximou e olhou mais de perto, sentindo seu próprio pesar sufocá-lo, e viu que não era medo, mas terror, tão habitual e familiar que mesmo o fotógrafo que gritara “sorria” não havia visto.

 

Marcelo conduziu Tom para a mesa perto do coreto, deixou cair o cardápio em seu colo como fosse radioativo, e rodou nos calcanhares para atender aos Red­wings. Buddy fechou uma carranca, Kip Carson fez que não o viu através da nuvem de Baby Dollies, e Ralph e Katinka o ignoraram completamente. As costas de tia Kate estavam viradas para ele, e Sarah Spence parecia a um quilômetro de distância numa daquelas mesas perto do bar. A sra. Spence lançou-lhe um olhar obsidiano, e então o ignorou ostensivamente, começando a falar em voz demasiado alta para mostrar como se divertia. Palavras ocasionais flutuavam para Tom: truta, esqui aquático, relaxada. Sarah virou-se em sua cadeira para lhe enviar um olhar de companheiro de prisão, mas sua mãe a açoitou com uma palavra afiada. Neil Langenheim lançou um olhar carrancudo para Tom — aprumou-se na cadeira, segurou o queixo, e a despeito da carne viva do nariz e da testa, olhou para Tom de forma tão rígida e contida como fizera em Mill Walk. Apenas Roddy e Buzz se comportavam de forma amigável, mas falavam sem pausa, numa forma que sugeria que a conversa daquela noite fazia parte de um diálogo eterno que ambos conside­ravam divertido e estimulante. Eles eram a melhor dupla da sala. Tom ficou sentado em sua mesa lendo, se perguntando como conseguiria sobreviver até o fim do verão.

Os Langenheims saíram; os Spences carregaram Sarah para longe. Ralph Redwing olhou de soslaio para Tom, a testa franzida. Tom fechou o livro de Agatha Christie, assinou um cheque, que o garçom mais velho pegou, e caminhou para fora da sala de jantar com a parte de trás do pescoço formigando.

Nuvens pesadas ocultavam a Lua.

Esquecera de deixar acesas as luzes da cabana, e andou às apalpadelas ao redor da sala de estar, caminhando entre a mobília como se esta houvesse se movido e trocado de posição enquanto ele estava fora. Então sua mão tocou um abajur, seus dedos encontraram a corda, e a sala passou a existir novamente. Deixou-se cair no sofá. Depois de um instante se levantou e acendeu outra luz. Então se esticou no sofá de novo e leu mais umas páginas de Os crimes do ABC. Recordou estar insatisfeito com ele no dia anterior, mas não conseguia lembrar por quê — era um livro perfeito. Fazia você ler melhor, como um cobertor desbotado ou um copo de leite morno. Um tipo de lucidez simples brilhava através de tudo e todos, e os obstáculos a essa claridade eram apenas telas que podiam ser descortinadas pelas famosas pequeninas células cinzentas. Você nunca tinha a sensação de que a escuridão real cercava alguém, nem mesmo os assassinos.

Tom percebeu que Lamont von Heilitz começara a falar sobre o Lago da Águia na primeira noite em que se conheceram — quase assim que Tom atravessou a porta, von Heilitz aparecera com seu álbum de recortes e virara as páginas dizendo aqui, aqui e aqui.

Tom tirou as pernas do sofá e se levantou. Fechou o livro e foi ao escritório do avô. Luzes da grande sala de estar tocaram o tapete pequeno e a ponta da mesa. Tom acendeu o abajur ao lado da mesa e sentou-se atrás dele. Puxou o telefone para perto. Levantou o fone, discou 0, e pediu à telefonista que o conectasse com o número de Lamont von Heilitz em Mill Walk.

Ela mandou que aguardasse na linha. Tom virou para a janela e viu seu rosto e o suéter azul-escuro impressos no vidro.

— Não atendem a chamada, senhor— a telefonista lhe disse. Tom recolocou o fone no gancho.

Colocou as mãos em cada lado do telefone e o fitou. O telefone tocou, e ele derrubou o fone do gancho quando pulou de susto. Se atrapalhou procurando segurá-lo, mas finalmente colocou no ouvido.

— Alô — ele disse.

— O que está acontecendo aí em cima? — o avô rugiu.

— Oi, vovô.

— Oi, uma droga! Eu o mandei para aí se divertir e conhecer as pessoas certas, não para seduzir a noiva de Buddy Redwing! E sair à procura de informações sobre um velho assunto que não é da sua conta! Nem um pouco!

— Vovô...

— E invadir o complexo Redwing e xeretar tudo com a namoradinha! Não tem nada melhor para fazer?

— Não invadi nada. Sarah pensou que eu gostaria de ver...

— O último nome dela é Redwing? Se não é, ela não tem direito algum de levar você ao complexo, porque ela mesma não tem direito de ir até lá. Você cresceu na Estrada Litorânea do Leste, foi para a escola certa, deveria saber se comportar.

Ele parou para respirar.

— E além de tudo isso, no seu primeiro dia aí, vai à cidade e inicia uma amizade com o filho de Sam Hamilton!

— Estava interessado em...

— Nem vou mencionar sua associação com Roddy Deepdale, aquele excêntrico que arruinou o terreno ao lado do meu, mas eu me pergunto o que você pensava lucrar agredindo fisicamente um membro da família Redwing.

— Eu não o agredi.

— Bateu nele, não foi? Francamente, desde que você foi para o Lago da Águia está destruindo a maior parte do que construí durante a vida toda.

— Então quer que eu vá para casa?

O avô não falou.

Tom repetiu a pergunta. Tudo que ouviu foi a respiração do avô.

— Sarah Spence não vai casar com Buddy Redwing — disse ele. — Ninguém pode obrigá-la a isso — ela não vai deixar ser vendida.

— Tenho certeza de que você está certo — disse o avô. Sua voz estava surpreen­dentemente calma. — Me diga, o que você vê quando olha pela janela, a esta hora da noite? Eu sempre gostei das noites no Lago da Águia.

Tom se inclinou para a frente, tentando enxergar através de seu reflexo.

— Está muito escuro agora, e...

O abajur ao lado da mesa explodiu; alguma coisa se chocou com a parede ou o chão, produzindo um som de tijolo batendo em concreto. A cadeira escorregou para trás, fazendo-o cair pesadamente no chão em plena escuridão. Seus pés se embara­çaram com os da cadeira, e pequenos pedaços de vidro cintilaram no chão ao redor dele. Outros cacos caíram em seu cabelo. Sua respiração parecia um trem de carga roncando um tom acima, e por um instante não pôde se mover. Ouviu a voz diminuta do avô vinda do fone.

— Tom? Você está aí? Está aí?

Desembaraçou os pés da cadeira e ergueu a cabeça acima da mesa. Uma luz brilhava na cabana Langenheim. Ar gelado passava pelo buraco aberto que fora a vidraça superior.

— Pode me ouvir? — soou o ruído metálico da voz do avô.

Tom agarrou o fone e o apertou contra o rosto. Uma chuva de vidro caiu-lhe do cabelo sobre o pulso.

— Oi.

— Está bem? Aconteceu alguma coisa?

— Acho que estou bem.

Limpou os cacos de vidro do punho; olhou para o lago parado e a luz na cabana dos Langenheims.

— Diga o que aconteceu — o avô mandou.

— Alguém disparou através da janela.

— Foi atingido?

— Não. Acho que não. Estou apenas... apenas... não sei. -Viu alguém?

— Não. Não há ninguém lá fora.

— Tem certeza sobre o que aconteceu?

— Não tenho certeza sobre nada. Alguém quase me acertou. A lâmpada do abajur explodiu. Parte da janela está quebrada.

— Vou dizer o que aconteceu. De vez em quando, homens da cidade vagueiam pela floresta, para ver se pegam um cervo fora da temporada. Lembro de ter ouvido muitos disparos aí em cima. Caçadores.

Tom lembrou que Lamont von Heilitz dissera algo assim naquela primeira noite na casa dele.

— Caçadores.

— Um deles disparou uma bala perdida. Já devem estar longe agora. Como se sente?

— Um pouco trêmulo.

— Mas está bem?

— Sim. Sim.

— Não vejo qualquer razão para chamar a polícia, a não ser que você pense assim. Afinal, ninguém se feriu. Os caçadores devem estar a meio caminho do vilarejo agora. E a polícia daí nunca foi muito boa.

— Alguém atirou em mim! Não acha que eu deveria chamar a polícia?

— Só estou tentando proteger você. Há uma história inteira que você não conhece, Tom.

O avô ofegava. Sua voz ficou lenta e pesada.

— Como você provou indo ver Sam Hamilton.

— Chet Hamilton. O filho dele.

— Chet Hamilton! Não me importo! Você não está me escutando!

A voz do avô demonstrava raiva.

— Não é como Mill Walk — a polícia daí de cima não está do seu lado.

Tom quase riu. Tudo estava de cabeça para baixo.

— Me ouviu? — perguntou o avô.

— Vou chamar a polícia agora.

— Ligue de novo quando forem embora — disse o avô, desligando.

Tom recolocou o fone no lugar e se levantou aos poucos, olhando pela janela enquanto o fazia. Seu traseiro estava doendo por causa da queda. Esfregou a área dolorida, endireitou a cadeira, e se sentou nela. O abajur pendia na direção dele, um pequeno buraco irregular perfurando-lhe a cobertura. Depois de tocar o buraco, olhou para a interseção do chão com a parede. Sem luz, podia ver apenas treva onde a bala deveria ter parado. Quis acender o outro abajur da sala, mas suas pernas não o deixaram levantar-se da cadeira. O sangue acelerado produzia um som de maré em seus ouvidos. Inclinou a cadeira e olhou o abajur. A lâmpada desaparecera; o soquete torcido estava caído como um pescoço quebrado.

O avô salvara sua vida.

Enfim pôde levantar-se novamente. Afastou-se da mesa e acendeu o abajur do outro lado da sala. Uma pequena vidraça estava quebrada; o topo do abajur ao lado da mesa pendia como uma flor. A mesa estava coberta pelo brilho do vidro estilhaçado. Tom acendeu as luzes do teto e a janela foi iluminada, fazendo o lago desaparecer. Voltou à mesa e olhou para baixo — pensou que acharia o buraco do impacto, tábuas quebradas e o rodapé estraçalhado, mas de imediato não encontrou nada. Acabou enxergando alguma coisa que parecia uma sombra, e afinal um belo buraco na. parede de madeira, a 25 ou trinta centímetros acima do rodapé.

 

Em dez minutos alguém bateu à porta. Espiando pela porta, viu o policial louro que prendera o bêbado na Rua Principal.

— Sr. Pasmore? — disse ele.

O carro de polícia estava estacionado em frente à cabana, com todas as luzes apagadas — Tom esperara sirene e luzes faiscantes.

— Foi o senhor que telefonou? Sou o oficial Spychalla.

Tom deu um passo para trás, deixando que ele entrasse.

— Parece que o senhor teve algum problema. Mostre-me onde aconteceu para que extraia algumas informações.

Spychalla dava a impressão de ter o corpo inquieto dentro do uniforme, forçando o pano azul-escuro e o couro preto e esticado. Seu cinto rangia a cada movimento.

Inspecionou rapidamente o escritório, fez algumas anotações num pequeno caderno espiral e perguntou:

— Onde estava sentado na hora do incidente?

— À mesa, falando ao telefone.

Spychalla balançou a cabeça, contornou a mesa, olhou o abajur e o buraco de bala. Saiu da casa para ver a janela pelo lado de fora. Voltou e fez mais anotações.

— Foi um tiro só?

— Não é o suficiente?

Spychalla ergueu as sobrancelhas e passou para outra folha do caderno.

— Você é de Mill Walk? Qual é a sua idade e ocupação?

— Oficial, não acha que deveria mandar alguns homens para a floresta, e ver se descobre quem atirou em mim?

— Sua residência de tempo integral fica na ilha de Mill Walk? Qual é a sua idade e ocupação?

Seu queixo era quadrado como uma caixa, e a ponta do lápis sobre a folha branca era perfeitamente afiada.

— Vivo em Mill Walk. Tenho 17. Sou estudante.

Spychalla ergueu as sobrancelhas mais uma vez.

— Data de nascimento?

— Isso vai ajudar você?

Spychalla aguardou com o lápis na mão e Tom deu sua data de nascimento.

— Esta cabana, você está aqui sozinho? O que sei sobre este lugar é que ele pertence a um homem chamado Upshaw.

Tom explicou que o sr. Upshaw era seu avô.

— Parece um programa e tanto — disse Spychalla. — Você vem passar o verão inteiro sozinho aqui, bebe um bocado de cerveja e caça garotas, não é?

Tom começou a achar que seu avô estava certo a respeito de chamar a polícia. Spychalla lhe oferecia um sorrisinho estático que comunicava um total entendimen­to dos prazeres de ter 17 anos e passar o verão sozinho.

— Acho que ser quase baleado parece um problema e tanto.

Spychalla fechou o caderninho e o guardou no bolso traseiro. Ainda tinha o sorrisinho no rosto.

— Abala um pouco.

Tom se sentou atrás da mesa.

— Não vai fazer nada?

— Vou explicar algo a você.

Spychalla sentou-se ao seu lado na mesa.

— Tem uma chave de fenda ou algo assim? Uma faca comprida?

Tom olhou para ele, tentando adivinhar o que o pedido significava. Spychalla pôs os braços atrás das costas e fez alguma coisa com o braço e os músculos que estalou o uniforme.

Tom foi até a cozinha e voltou com uma chave de fenda. Spychalla se agachou e começou a cavar a madeira ao redor da concavidade do impacto.

— As pessoas não deviam caçar veados no verão, mas eles fazem. Da mesma forma que não deviam ficar bêbedas e dirigir, mas fazem da mesma maneira. Às vezes saímos de noite para pegá-los de surpresa. Golpeou a parede com a chave de fenda e arrancou um pedaço denteado de madeira. Eu e o chefe Truehart somos os únicos na força em tempo integral, mais um suplente de meio-expediente durante o verão. Um dos lugares em que essas pessoas sabem que podem achar veados é ao redor do lago; de vez vocês nos telefonam dizendo que escutaram tiros durante a noite. Corremos até aqui, mas já sabendo que não acharemos ninguém, porque tudo o que eles precisam fazer é apagar as luzes.

Golpeou a parede com a chave de fenda.

— Se estão de carro, podemos agarrá-los quando voltam para os veículos, mas a maioria das vezes estão a pé. Escondem a caça até o dia seguinte, quando a trazem às escondidas sob um pedaço de lona numa traseira de caminhonete. Lá vamos nós.

Balançou a chave de fenda no buraco aumentado, puxou-a para trás; um fragmen­to de metal preto caiu ao chão. Spychalla o guardou em um dos bolsos da camisa e se levantou. A camisa do uniforme era tão apertada que Tom pôde ver músculos se moverem.

— Então poderia me meter lá na floresta, mas estaria perdendo tempo. A cidade tem um decreto que não permite disparos a oitenta metros da zona habitada. Agora vamos pensar de onde isso teria vindo.

Ele sorriu, parecendo um robô bonitão. Andou até o fim da mesa e apontou o vidro.

— Veio por aqui, explodiu a lâmpada e acertou a parede, se alojando na diagonal. Portanto, o rifle provavelmente disparou de algum lugar além daquelas cabanas do outro lado do lago. O cara que disparou a arma não teve idéia alguma de para onde sua bala foi. Todo verão e outono temos reclamações de pessoas cujas cabanas foram atingidas por balas — não muitas, mas uma ou duas. A coisa engraçada é que este cara podia estar a uns quatrocentos metros de você.

— E se não tivesse sido um caçador, mas alguém que quisesse me matar?

— Olha, não posso te culpar por estar excitado. Mas um cara que estivesse querendo matar você com um rifle de grande potência teria conseguido. Mesmo se estivesse escuro aqui, ele teria acertado mais umas duas balas por aquela janela. Estou lhe dizendo, isso acontece todo verão. Você é apenas o mais perto que uma dessas balas chegou.

E você é o amigável oficial Spychalla, que realmente não se importa se as pessoas de Mill Walk são quase acertadas por uma bala acidental mais ou menos uma vez por verão — pensou Tom.

— Alguém tentou me empurrar da calçada para o tráfego outro dia — disse ele. — Na cidade.

— Você registrou a queixa?

Tom balançou negativamente a cabeça.

— Viu alguém?

— Não.

— É provável que tenha sido um acidente, exatamente como este. Algum turista velho e gordo acertou você com uma bunda do tamanho de um caminhão.

— É provável que se eu estivesse morto vocês investigariam um pouco mais.

Spychalla exibiu seu sorriso de robô.

— O que é que vocês caçam lá na ilha em que vive? Bebedores de rum?

Não é esse tipo de ilha — retrucou Tom. — Caçamos policiais.

Spychalla deu um tapinha nos bolsos e marchou na direção da porta, botas e cinto à Sam Browne rangendo magnificamente, seu revólver de serviço pendendo pesada­mente sobre a anca. Parecia um enorme cavalo louro.

— Vou preencher uma ocorrência, senhor. Se estiver preocupado com uma repetição desse incidente, mantenha-se afastado das janelas à noite.

Desceu os degraus dirigindo-se ao carro de patrulha.

Uma voz masculina veio da escuridão.

— Oficial?

O pai de Sarah adentrou o anel luminoso dos degraus, parecendo alguém acostumado a ser obedecido por policiais. Usava pijama e robe cinza.

— Esse rapaz está com problemas?

— Volte para a sua cabana, senhor — disse Spychalla. — O excitamento já acabou.

O sr. Spence fitou Tom nervosamente, e então mais uma vez Spychalla. Este, cujo rosto deixava bem claro que já vira muita exasperação, entrou no carro e bateu a porta.

O sr. Spence pôs as mãos nos quadris e observou as luzes da patrulha moverem-se rua abaixo. Voltou-se para Tom, tentando matá-lo com um olhar.

— Você não vai mais incomodar minha filha. De agora em diante você e Sarah não se comunicarão mais, entendeu?

A barriga grande balançou para cima e para baixo enquanto grilava.

Tom entrou e fechou a porta. Atravessou a sala de estar e foi para o escritório. Ao concluir que o haviam mirado através da janela, seu estômago gelou, o sangue parou de se mover. Então começou a varrer o vidro quebrado da mesa para a lata de lixo. Depois de procurar por um espanador e uma pazinha na cozinha, os encontrou num armário e os levou para o escritório. Lá varreu com eles o resto do vidro do chão.

Ele estava levando o espanador e a pazinha de volta quando ouviu o telefone tocar. Deixou os utensílios sobre a mesa e voltou para o escritório. Evitou passar pela linha da janela e puxou a cadeira para trás. Então se sentou e atendeu o telefone.

— Aqui é Tom.

— Eles ainda estão aí? — o avô falou num tom de voz ligeiramente abaixo de um grito.

— Ele. Era só um tira. Já foi.

— Disse para me ligar quando fossem embora!

— Bem, eu tinha algumas coisas para fazer. Saiu há apenas um minuto. Disse o mesmo que você. Uma bala perdida.

— Claro que era. Eu lhe disse. De qualquer forma, pensando melhor, achei que você agiu certo em chamar a polícia. Não vamos questionar isso. Está se sentindo melhor agora?

— Um pouco.

— Vá cedo para a cama. Descanse. Verá tudo em perspectiva pela manhã. Não vou contar à sua mãe sobre isso, e proíbo você de escrever para ela qualquer coisa que a deixe preocupada.

— Tudo bem. Isso significa que não quer que eu volte imediatamente?

— Voltar? Claro que não deve voltar! Tem muita coisa para consertar, rapaz. Quero que fique aí até que eu lhe diga que é hora para voltar.

Glendenning Upshaw começou a desenrolar um longo discurso sobre respeito e responsabilidade.

— Quando terminou, Tom decidiu ver onde uma questão levaria.

— Vovô, quem era Anton Goetz? Ouvi que...

— Não era nada. Fez uma coisa de mal certa vez, foi descoberto e se matou. Cometeu um assassinato, se quer os detalhes.

— No vôo para cá, o sr. Spence quis me dizer que o senhor prestou alguns grandes favores a ele...

Upshaw grunhiu.

— ... e acabou mencionando esse tal de Anton Goetz, que ele disse que era um contador...

— Quer saber a respeito dele? Vou te contar a respeito dele e depois o assunto estará acabado. Entendeu?

Tom não disse nada.

— Anton Goetz era um homenzinho com uma perna ruim que perdeu a cabeça porque não soube controlar as fantasias. Contou um monte de mentiras para todos — inclusive para mim — porque queria prestígio social. Tentei ajudá-lo porque gostava muito de estimular as pessoas e porque Anton Goetz tinha uma personali­dade cativante. Dei-lhe um trabalho e até o ajudei a fazer com que parecesse mais importante do que era. Foi a última vez na vida que cometi esse erro. Ele conseguiu alguma coisa com a primeira esposa de Arthur Thielman, e imaginou que era muito mais do que era. Quando ela o pôs em seu devido lugar, ele a matou. Depois matou a si mesmo, como o covarde que realmente era. Retive suas propriedades durante muito tempo porque queria que o fedor de sua memória se dissipasse. Então as vendi para Bill Spence.

— Então ele era realmente um contador.

— Mas não dos bons. E por falar nisso, Bill Spence não era brilhante também, motivo pelo qual deixei que Ralph o contratasse. E agora Bill Spence está almejando o mesmo sucesso social que Anton Goetz queria, só que está usando a filha, não o pau. Espero que minha linguagem não tenha chocado você.

Tom disse que estava grato pela franqueza.

— Esses homens querem o que é seu por direito — disse o avô. — Agora durma um pouco e amanhã tente agir como você sabe. Vamos ajeitar tudo até o fim do verão.

Tom perguntou sobre a mãe, e Upshaw disse que ela estava melhorando — quase fora da medicação. Prometeu lhe dizer que Tom havia mandado um beijo e Tom prometeu que escreveria para ela.

A luz no quarto de Neil Langenheim apagou, fazendo um fino traço amarelo sumir do lago. As grandes cabanas do outro lado ocultaram-se entre as árvores pendentes, e uma luz misteriosa se projetou do céu negro e prateado, tocando as extremidades das docas e os topos das balaustradas, varrendo do chão as folhas caídas.

Através da janela quebrada, os odores de pinho e água fresca chegaram embru­lhados em ar frio, junto com alguns outros odores, mais intensos, da parte pantanosa do lago e das estacadas entre as docas, da areia macia e dos juncos úmidos, dos peixes que se moviam ou dormiam sob as águas.

Tom sentiu um tremor profundo em si mesmo, que era como um tremor no mundo prateado e adormecido além da janela. Levantou-se e caminhou pela cabana, apagando as luzes. Despiu-se, foi para a cama, e ficou acordado durante a maior parte da noite.

 

Alguém bateu à porta logo depois que Tom acordou no dia seguinte. Ao espiar, torcendo que Sarah Spence houvesse conseguido escapar dos pais, viu um carro de polícia e outro uniforme azul. Um homem por volta dos trinta, com cabelos pretos lisos e brilhantes que pareciam longos demais para um policial, olhou para ele através da tela e disse:

— Sr. Pasmore? Tom Pasmore?

Ele parecia tanto amigável quanto levemente familiar. Tom deixou que entrasse, percebendo que se parecia muito com o carteiro do Lago da Águia. De perto, era pelo menos dez anos mais velho do que parecera à primeira vista. Tom viu profundos pés-de-galinha e um pouco de grisalho escondido por trás do cabelo que lhe caía sobre as têmporas.

— Sou Tim Truehart, chefe de polícia — disse, apertando a mão de Tom. — Li o relatório sobre o tiro que chegou aqui ontem à noite, e pensei que seria bom vir dar uma olhada por conta própria. A despeito de qualquer impressão que tenha tido do oficial Spychalla, não gostamos quando atiram nos residentes de verão.

— Ele me pareceu bem desinteressado.

— Meu delegado tem seus pontos favoráveis, mas investigação não é um deles. Ele é muito competente em tratar com bêbados e ladrões de lojas, e é o diabo dos corredores.

Truehart estava olhando ao redor da sala de estar enquanto falava, sorrindo todo o tempo, examinando tudo com cuidado.

— Teria vindo pessoalmente, mas estive fora da cidade quase que a noite inteira. Como eles não pagam muito bem o chefe de polícia, me dou ao luxo de voar um pouco.

Então Tom se lembrou.

— Vi você no aeroporto quando cheguei — estava sentado encostado na parede na cabine da alfândega. Usava uma jaqueta de couro marrom.

— Você daria uma boa testemunha — Truehart disse, sorrindo para ele. — Estava sozinho na cabana quando o tiro entrou?

Tom respondeu que sim.

— Foi bom Barbara Deane não estar aqui. Barbara sofreu uma experiên­cia desagradável há alguns anos, e dispararem contra ela não ia ajudar. Como se sente?

— Bem.

— Você teve meu assistente para se aborrecer, assim como tudo o mais. Deve ser feito de aço. — Riu. — Pode me mostrar onde aconteceu?

Tom o levou para o escritório, onde Truehart examinou cuidadosamente a janela quebrada, o abajur, e o buraco na parede de onde seu assistente havia tirado a bala. Foi para fora olhar para a colina verdejante do outro lado do lago, sobre a cabana vazia dos Harbingers. Voltou para dentro.

— Mostre-me onde estava sentado.

Tom se sentou atrás da mesa.

— Diga-me como foi. Estava escrevendo alguma coisa, ou lendo, ou olhando para o lago, ou o quê?

Tom disse que estava falando ao telefone com seu avô, e que a bala entrara logo depois que se abaixou para olhar o lago, pois seu avô queria que o descrevesse.

— Não se moveu?

— Só limpei um pouco de vidro estilhaçado.

— O abajur era a única luz no quarto?

— Devia ser a única luz no lago inteiro.

Truehart balançou a cabeça, foi até a ponta da mesa e mais uma vez olhou cuidadosamente a janela, o abajur, e o local onde a bala se alojara na parede.

— Mostre-me como você se curvou para olhar pela janela.

Recuou um pouco para longe da escrivaninha, enquanto Tom mostrava como fizera, e sentou no sofá encostado na parede. Ele juntou os dedos e se inclinou para a frente sobre os cotovelos.

— E você fez isso no momento exato que aconteceu?

— O abajur explodiu assim que me abaixei.

— Foi muito bom você ter se abaixado assim.

Tom sentiu seu estômago como se houvesse engolido sopa.

— Não gosto muito disso.

Truheart estava olhando para ele com uma expressão séria, quase meditativa, como se estivesse ouvindo algo que Tom não podia escutar.

— Não acho que você deve ter visto muitos rifles de calibre alto nos últimos dias.

Tom balançou negativamente a cabeça.

— E não acho que você conheça alguém que queira matar você.

— Pensava que caçadores disparavam balas perdidas contra as cabanas uma ou duas vezes por ano — Tom disse, estarrecido.

— Bem, talvez não com essa freqüência, mas acontece. No ano passado, alguém atirou lá de cima da colina numa janela do clube. E dois anos antes, uma bala atingiu os fundos da cabana dos Jacobs no meio de uma bela noite de junho. As pessoas aqui ficaram nervosas, e eu não as condeno, mas ninguém não esteve nem perto de ser atingido. E aqui está você, enquadrado nessa janela como um alvo. Não quero deixar você tenso, mas não posso dizer que gosto disso. Nem um pouco.

— Buddy Redwing está furioso comigo porque sua namorada gosta mais de mim — disse Tom. — Ele estava planejando casar com ela. Na verdade, a família dele está furiosa comigo também, assim como a dela. Mas não acho que nenhum deles tentaria me matar. Buddy tentou bater em mim ontem, mas eu o acertei no estômago, e isso pareceu o fim. Não acho que ele escalaria uma colina com um rifle nas costas para tentar atirar em mim através de uma janela.

— Tem que se estar sóbrio para fazer isso, o que de certa maneira deixa Buddy de fora.

Pressionou os lábios e olhou para as mãos.

— Spychalla está lá em cima na floresta, procurando por qualquer coisa que possa encontrar: cartuchos de balas, pontas de cigarro, qualquer coisa que possa ter sido deixada pelo atirador. Mas, realisticamente, o máximo que podemos esperar é alguma idéia sobre o tipo de rifle que usou. Não dá para achar pegadas lá em cima, não naquele tipo de terreno.

— Não acredita que foi um tiro perdido de caçador?

— O que aconteceu foi realmente estranho. Mas um monte de coisas tem aconte­cido recentemente no Lago da Águia. — Parou para refletir um pouco sobre o que disse. — E você não é um visitante de verão comum.

Esses homens querem o que é seu por direito, Tom lembrou.

— Não posso fingir que entendo o que está acontecendo aqui em cima, mas, tão certo como o diabo existe, alguma coisa está sendo mexida. E tenho que considerar que alguém possa estar querendo atingir seu avô através de você.

— Meu avô e eu não somos muito chegados.

— Isso não faz diferença. Não posso oferecer nenhuma proteção extra a você, mas acho que deveria tomar cuidado em não ficar muito próximo das janelas. Na verdade, deve ter cuidado com tudo — Spychalla me disse que você afirmou ter sido empur­rado em direção ao tráfego da Rua Principal na última sexta. Talvez não devesse ir sozinho a muitos lugares nas próximas duas semanas. E talvez Barbara Beane devesse passar mais noites aqui com você. Quer que eu fale com ela sobre isso?

— Posso fazer isso — respondeu Tom.

— Ela gosta de privacidade, mas neste momento pode querer alguma companhia.

— Há mais uma coisa — disse Tom. — Tem relação com ela. Sei que houve arrombamentos ao redor desta área nos últimos anos. Não sei se você já pensou a respeito disso ou não, mas os guarda-costas de Ralph Redwing têm muitas tardes e noites livres. Antes deles trabalharem para Ralph, se autodenominavam os Rapazes Corner e cometeram vários roubos. Acho que fizeram alguns assaltos em Mill Walk, e eu acho...

Ele decidiu não mencionar Wendel Hasek, e ao invés, disse:

— ...acho que Jerry Hasek, que é uma espécie de líder, gosta de matar animais. Sei que ele matou um cachorro quando era adolescente, e o cachorro de Barbara Deane foi morto, e no outro dia eu o vi ficar furioso enquanto dirigia o Lincoln, quando Robbie Wintergreen, um dos guarda-costas, disse a palavra cachorro na minha frente.

— Muito bem... — disse Truehart. — Essas pessoas vivem no complexo?

— Numa casa só para eles.

— Não posso entrar lá, claro, a não ser se for convidado ou consiga persuadir um juiz a me dar um mandato de busca. Mas você acha que eles correriam o risco de estocar produtos roubados no complexo, onde teriam de entrar e sair com eles por baixo do nariz de Ralph Redwing? A não ser que você ache que Ralph Redwing os está acobertando.

— Não — respondeu Tom. — Acho que sei onde eles colocam o material.

— Isto está ficando cada vez melhor. Onde é?

Tom lhe contou sobre ter visto a luz se movendo ao redor da cabana de von Heilitz, de tê-la seguido pela trilha da floresta, ter se perdido, e ter encontrado a trilha no dia seguinte. Tim Truehart curvou-se sobre seus cotovelos e escutou a história de Tom com uma expressão embasbacada no rosto. E quando Tom descreveu a casa na clareira e a velha magra que saíra carregando um rifle, ele pôs as mão sobre o rosto e se recostou no sofá.

— O que está errado? — Tom perguntou.

Truehart abaixou as mãos.

— Bem, vou ter que perguntar à minha mãe se ela está guardando mercadorias roubadas para um sujeito chamado Jerry Hasek. — Ele estava sorrindo. — Mas ela provavelmente vai me acertar com uma frigideira na cabeça se eu fizer.

— Sua mãe. A sra Truehart, que costumava limpar as casas da vizinhança durante o verão. Oh, meu Deus.

— É ela. Deve ter pensado que você estava espiando a casa dela para roubar.

— Oh, meu Deus — Tom disse novamente. — Desculpe-me.

— Não precisa.

Truehart riu alto — parecia estar se divertindo muito.

— Se fosse comigo — continuou — provavelmente teria feito a mesma coisa. Mas estou satisfeito que não tenha dito nada disso a Spychalla. Ele falaria sobre isso até deslocar o queixo.

Ele se levantou.

— Bem, acho que basta por enquanto.

Truehart ainda estava sorrindo.

— Direi a você se encontrarmos qualquer coisa na floresta. E quero que seja cuidadoso. Isso é sério.

Deixaram o escritório, e atravessaram a sala de estar até a porta da frente.

— Ligue para mim se vir esse tal Hasek fazer qualquer coisa de anormal. Deve ser um sujeito esperto. E tente passar o maior tempo possível com outras pessoas.

Truehart estendeu a mão, que Tom apertou. O policial tirou um par de óculos escuros de aros finos do bolso da camisa e os colocou enquanto descia os degraus. Foi até o carro e voltou pela trilha em direção ao clube como Spychalla havia feito. Tom ficou nos degraus, observando Truehart se afastar. Ele ainda estava rindo quando seu rosto se tornou apenas uma bolha escura no pára-brisa.

 

De repente, Roddy e Buzz decidiram passar a última semana de férias de Buzz com amigos no sul da França. O jantar que participou com eles na noite antes de sua partida pareceu o último encontro amigável que ele teria no Lago da Águia. Os Redwings chegaram tarde ao clube e saíram cedo, não cumprimentando ninguém à exceção de Marcello, que era um queridinho de Katinka. Os Spences ocuparam sua mesa perto do bar, colocando Sarah de costas para Tom, enquanto conversavam um com o outro com as vozes mais altas da sala, demonstrando que estavam se divertin­do, o verão estava apenas começando, e tudo mudaria para melhor. Neil e Bitsy Langenheim encararam Tom quando este entrou acompanhado por Roddy e Buzz, cochichando um para o outro como conspiradores.

— Todo mundo está sabendo que a polícia prestou duas visitas sociais à sua cabana — disse Roddy. — Todos estão torcendo para que você tenha se metido em algum tipo de problema desesperador, pois assim terão o que falar durante o resto do verão.

— Um caçador disparou um tiro perdido por uma de minhas janelas — disse Tom, percebendo o olhar de dúvida trocado entre seus dois novos amigos.

— Sua vida inteira é assim? — Roddy perguntou, e Tom respondeu que estava começando a pensar isso.

Então conversaram um pouco sobre as outras vezes que caçadores haviam se aproximado muito das cabanas ao redor do lago, e daí passaram a falar sobre a tensão que sempre existiu entre o vilarejo e as pessoas de Mill Walk; finalmente chegaram ao assunto que mais ocupava suas mentes, sua viagem impulsiva para a França. Mas outro assunto do qual não falavam parecia se esconder sob tudo o que diziam.

— Marc e Brigitte têm uma vila maravilhosa bem no Mediterrâneo perto das Antibes, e Paulo e Yves vivem a apenas alguns quilômetros de distância. E alguns amigos nossos de Londres estão deprimidos porque seus filhos decidiram subita­mente tornarem-se seguidores de um guru em Poona. Mesmo que isso pareça um tanto extravagante, achamos que podemos transformar isso numa festa de uma semana Vou voar com Buzz de volta a Mill Walk, para cuidar de alguns assuntos por mais umas duas semanas antes de ir para Londres ver Monserrat Caballé e Bergonzi na La Traviata, no Covent Garden. Não acho que vou poder voltar aqui até agosto.

Buzz perderia Caballé e Bergonzi no Covent Garden, mas ele estaria em Paris a tempo para a Carmelites; em outubro havia Hector e Will, e Nina, Guy e Samantha em Cadaques; em março havia uma chance de Arthur e quem quer que estivesse agora em Formentera, e depois disso...

Depois disso, haveria mais. Roddy Deepdale e Buzz Laing (pois esse era o nome de Buzz, ele era o dr. Laning no st. Mary Nieves e para seus pacientes, que não sabiam nada a respeito de sua vida peripatética e bem provida) tinham amigos ao redor do mundo todo, eram sempre bem-vindos, estavam sempre informados, tinham cadei­ras favoritas em sua casa de ópera favorita, La Scala, onde haviam assistido todas as óperas de Verdi, com exceção de Stiffelio e Aroldo, pratos favoritos em restaurantes em dúzias de cidades, haviam apreciado o Vermeers e o auto-retrato de Rembrandt no Frick, conheciam um psiquiatra em Londres que era a segunda pessoa mais inteligente do mundo e um poeta em Nova Iorque que era a terceira pessoa mais inteligente do mundo, amavam e precisavam de seus amigos e seus amigos amavam e precisavam deles. Tom se sentiu provinciano, estreito, bronco, ao seu lado: a centelha de julgamento no olhar que ele vira ser trocado entre Roddy e Buzz o separara deles como ele fora afinal separado dos Redwings, que estavam empurran­do suas cadeiras para trás e se preparando para sair, envoltos na bolha de sua importância insular.

Mas Kate Redwing veio dizer olá e adeus na mesma respiração. Ela, também, estava partindo amanhã. Achava que duas semanas haviam sido suficientes e agora estava voltando para Atlanta com os netos. Todos os três na mesa a abraçaram, e quando ela ouviu seus planos, disse que deveriam levar Tom com ele. Mas Roddy e Buzz sorriram polidamente e disseram que gostariam, mas não esqueceriam de vê-lo bastante em Mill Walk. Tom tentou imaginar o que esses dois homens diriam sobre Victor Pasmore, e o que Victor Pasmore diria a respeito deles. Kate Redwing o abraçou novamente, e sussurrou:

— Não desista! Seja forte!

Ela se virou para seguir a família descendo as escadas, passando pela mesa vazia dos Spences a passos hesitantes de senhora, em seu vestido de algodão estampado e sapatos lisos pretos. Poucos minutos depois, Roddy pediu a conta e eles partiram também.

Deixaram Tom em sua cabana e prometeram que o convidariam para jantar quando voltasse para a ilha — “assim que as coisa se acertarem”.

Tom ligou para Lamont von Heilitz naquela mesma noite, mas novamente lhe disseram que ninguém atendia naquele número. Ficou lendo até tarde, e foi para a cama sentindo-se desolado.

Na manhã seguinte, cortinas cobriam as grandes janelas de frente para o lago da cabana dos Deepdales. Um vidraceiro da cidade veio substituir o vidro quebrado no escritório de seu avô e disse:

— Um rapaz como você deve se divertir muito, sozinho num lugar como este.

Tom nadou nas manhãs, andou ao redor e ao redor do lago, terminou Os crimes do ABC e leu os livros de Iris Murdoch Under the net e Elight of the enchanter. Comeu sozinho. Os pais de Sarah não se juntaram aos Redwings no bar antes dos jantares, e Sarah não fez nada além de dar a ele um olhar pesaroso e moderado antes de sua mãe a açoitar com uma palavra afiada. Nadou durante horas toda tarde, e por duas vezes, Buddy Redwing saiu com sua lancha, guiando-a em forma de oito lá no norte, enquanto Tom nadava peito e costas entre as docas e a margem sul. Kip Carson estava sentado com a boca aberta na primeira vez, Kip e Sarah Spence juntos num dos bancos traseiros da segunda. Tom deu uma caminhada até a cidade, onde encontrou uma estante de livros de bolso ao lado dos cinzeiros no Posto de Trocas Índio. Carregou para casa uma pilha de livros e ligou para sua mãe, que contou não estar saindo muito, mas que o dr. Milton estava cuidando dela. Os Redwings haviam oferecido um emprego a Victor — ela não tinha certeza do que era, mas ele teria de viajar muito, e estava bastante animado. Ela disse que esperava que Tom estivesse encontrando pessoas e se divertindo, e ele respondeu que sim, estava.

Algumas regras governavam suas conversas com a mãe — ele percebeu isso subitamente. A verdade jamais poderia ser dita: hipocrisia gentil e mordaz era a lei da vida. Era uma gaiola.

Os dias passaram. Lamont von Heilitz nunca atendia aos telefonemas. Barbara Deane vinha e ia, com muita pressa e concentrada demais em si mesma para falar com ele. Tom não conseguia tirar Sarah Spence da cabeça, e algumas das coisas que Buddy dissera voltaram para torturá-lo. Nadou tanto naquela noite que caiu instantaneamente num sono sem sonhos, esquecendo até mesmo os músculos doloridos.

No quinto dia depois que a bala irrompeu através da janela, estava sentado numa rocha na extremidade da floresta onde a estrada particular para o lago desembocava na rodovia, quando viu Kip Carson caminhar em sua direção. Trazia uma mochila nas costas e arrastava uma mala de viagem atrás de si.

— Oi, cara — Kip Carson disse. — Estou de partida, rapaz. Foi divertido e tudo o mais, mas já estou indo.

— Para onde?

— Aeroporto. Tenho de pedir carona. Ralph não me levaria e Buddy não moveu uma palha. Buddy é um babaca, cara.

Tom perguntou se ele estava voltando para Tucson.

— Tucson? Nem a porrada. Schenectady — minha velha me mandou uma pas­sagem. Acha que tem barbearia no aeroporto? Quero cortar o cabelo antes de voltar pra casa.

— Não vi nenhuma — respondeu Tom.

— Bom, foi legal.

Kip acenou para ele com dois dedos em forma de V, levantou a mala de viagem e foi esperar num lado da rodovia. O segundo carro que passou o levou.

Tom caminhou de volta para a cabana.

No sábado, a dor pela ausência de Sarah Spence — uma combinação de mágoa, rejeição e humilhação — ainda era constante. Só então lembrou que estava à espera que Tim Truehart voltasse para contar o que Spychalla havia achado lá na floresta. Gostara de Truehart, e pensou em ligar para ele enquanto nadava entre as docas vazias. Claro que Spychalla não havia encontrado nada, e claro que Truehart tinha outras coisas para fazer. Acabou percebendo que a razão pela qual estivera pensando no chefe de polícia do Lago da Águia era a falta que sentia de Lamont von Heilitz. Subiu a doca, entrou na cabana, se vestiu, e sentou no sofá do escritório para escrever o que achava sobre o assassinato de Jeanine Thielman. Leu o que havia escrito, lembrou mais, reescreveu tudo de forma diferente.

Sua mente parecia acordar.

E então os eventos de quarenta verões atrás tornaram-se ocupação, obsessão, salvação. Ainda nadava durante as manhãs e tardes, mas ao nadar via Jeanine Thielman na doca, pálida ao luar, e Anton Goetz vestido com um casaco branco — parecendo Humprey Bogart em Casablanca — mancando na direção dela. Ele se curvava para ela num arremedo de galanteio, apoiando-se em sua bengala e balan­çando a perna inútil. Tom ainda dava voltas e voltas no lago, mas via uma nuvem de Redwings usando pulôveres esportes e vestidos brancos, fofocando sobre a jovem de Atlanta que Jonathan decidiu desposar. Sentou-se na doca, olhando a figura de porte taurino do jovem robusto que fora seu avô andar lentamente para um lado e outro da plataforma, sua mão segurando a mão bem menor de uma pequena jovem de cabelos encaracolados vestida em roupas de marinheiro.

Qualquer evento é alterado pela perspectiva pela qual é visto, e durante dias Tom reviu na mente os eventos e circunstâncias do assassinato de Jeanine Thiel­man. Escreveu a respeito disso na terceira e na primeira pessoa, imaginando que fosse Arthur Thielman, Jeanine Thielman, Anton Goetz, seu avô, até mesmo tentando ver aqueles eventos através dos olhos angustiados da criança que fora sua mãe. Brincou com datas e épocas; decidira jogar fora tudo o que lhe fora dito sobre os motivos dessas pessoas e experimentar novos. Encontrando hiatos e incoerên­cias no que lhe fora contado, roncou furtivamente entre eles, seguindo seus instintos e imaginação como havia seguido Hattie Bascombe através dos pátios e passagem do Paraíso de Maxwell. Aqui estava seu avô, apenas começando a solidificar o relacionamento com os Redwings, assegurando tanto seu futuro financeiro quanto social. Aqui estava Anton Goetz, um jovem ambicioso, que encantava homens e mulheres com histórias sobre um passeio romântico e enco­bria a conexão de Glendenning Upshaw com o hotel St. Alwyn e as partes secretas, ocultas, de Mill Walk. Aqui estava Lamont von Heilitz, vendo o mundo renascer ao redor dele.

Sonhou com cadáveres erguendo-se como fumaça do lago, levantando os braços acima das cabeças gotejantes, pairando com os olhos e bocas abertos. Ele sonhou que andava através de uma floresta para uma clareira onde um monstro grande e cabeludo, com um tamanho que fazia o seu próprio parecer o de uma criancinha, arrancava com os dentes a cabeça de uma mulher pálida e virava para ele com a boca cheia de ossos e pus dizendo:

— Eu sou seu pai, Thomas. Vê o que sou?

Uma noite acordou sabendo que sua mãe pegou a arma na penteadeira e matou Jeanine Thielman. Foi por isso que o pai dela a escondeu na casa de Barbara Deane. Foi por isso que ela gritou à noite, por isso que o pai a vendeu em casamento para um homem que pagaria sendo seu enfermeiro. Mais uma noite sem sono: pela manhã, porem, não poderia acreditar nesta versão, também.

Ou poderia?

Se sua mãe tivesse matado Jeanine Thielman, Glendenning Upshaw não hesitaria em matá-la para protegê-la. Sou seu pai. Vê o que sou?

Por mais uma semana, esteve sozinho sem sentir-se solitário. Imaginava a si mesmo entre os homens e mulheres que haviam vindo para o Lago da Águia em 1925, e sentiu suas formas e sombras ao redor dele, cada um, cada uma, com seus próprios desejos e fantasias. Começou a sentar-se novamente à mesa, esquecendo o conselho de Tim Truehart, e nenhuma bala irrompeu através do vidro. Fora uma bala de caçador, afinal de contas, e ele não era uma vítima potencial. Ele era — finalmente lhe ocorreu — Lamont von Heilitz.

Certa noite durante o jantar, foi até a mesa dos Spence e, ignorando os olhares, perguntou ao sr. Spence como Jerry Hasek e os outros dois guarda-costas estavam registrados nos livros.

— Nos deixe em paz — ordenou a sra. Spence. Sarah lhe deu um olhar nervoso e irado que ele não pôde compreender.

— Não sei o que é que você está fazendo, mas não vejo problema em lhe dizer. Estão registrados como assistentes de relações-públicas.

Tom o agradeceu, ouviu a sra. Spence dizer “Não devia ter falado com ele”, e voltou para seu livro e jantar.

Na sexta-feira da segunda semana depois de Roddy e Buzz terem deixado o lago, Barbara Deane entrou após seu passeio matinal e o encontrou deitado no sofá da sala de estar, segurando uma caneta na boca como um cigarro e forçando a vista numa folha de papel coberta com sua própria letra.

— Espero que não se importe — ela disse —, mas você vai ter que almoçar no clube hoje. Esqueci de comprar ingredientes para sanduíches e estamos sem nada em casa.

— Tudo bem — disse ele.

Ela subiu as escadas. Ele ouviu a porta fechar. A tranca interna foi colocada. Depois de um ou dois minutos a água do chuveiro começou a correr. Ainda um pouco depois, a porta do armário dela rangeu e alguma coisa fez barulho na prateleira. Quinze minutos depois ela desceu, vestida com uma saia preta e uma blusa vermelho-escura que ele não vira antes.

— Já que tenho de fazer compras — disse ela —, poderia comprar algumas coisas extras para o jantar.

— Seria ótimo — disse ele.

— O que quero dizer é: você poderia ir jantar na minha casa esta noite, Tom.

— Oh! — ele jogou as pernas para fora do sofá e se sentou, esparramando dúzias de papéis amarelados tamanho ofício no chão. — Obrigado! Gostaria muito!

— Você vem?

Ele assentiu.

— Vou estar ocupada hoje então, se você não se importar em caminhar até a cidade, eu o levo de volta depois do jantar.

— Ótimo.

Ela sorriu para ele.

— Não sei o que você está fazendo, mas está com cara de quem precisa de uma folga. Moro na Rua do Carvalho, a primeira à direita depois da Rua Principal na direção de quem vem daqui. É a quarta casa do lado direito — número quinze. Chegue pelas seis.

A lembrança de que outras pessoas se encontravam para jantar, tinham vidas normais e viam seus amigos o fez sentir-se impaciente com a própria solidão. Nadou durante uma hora pela manhã, e viu o pai de Sarah e Ralph Redwing andando de um lado para o outro no terreno arenoso em frente ao clube. Ralph Redwing falava a maior parte do tempo, e de vez em quando o sr. Spence tirava seu chapéu de vaqueiro e enxugava o suor da testa. Tom nadou de peito suavemente até sua doca, observando-os passarem e falarem. No clube, à hora do almoço, os Spences juntaram-se aos Redwings na grande mesa do terraço. Sarah olhou fixamente para ele duas vezes, entrelaçando as sobrancelhas como se estivesse tentando enviar-lhe um pensamento. Buddy Redwing pegou a mão dela e a pressionou contra a boca com ruídos altos de beijo. A sra. Spence fingiu achar isso hilário. Tom não foi notado, e passou o resto da tarde tentando achar alguma coisa nova em suas anotações.

Ele poderia vê-los. O jovem e tenso Sombra em pé na ponta da doca, tirando um cigarro — um Cubeb? um Murad? —, seu avô vestido com uma blusa branca aberta, apoiando-se no guarda-chuva e Anton Goetz se mantendo equilibrado com a bengala, falando na fronteira da escuridão do lado de fora do clube. Mas ele não podia ouvir suas vozes mais do que pôde ouvir Ralph Redwing dando ordens para um Bill Spence suando em bicas.

 

A casa de Barbara Deane era um pequeno chalé de quatro cômodos com um feio tapume de madeira marrom-escura, duas janelas pequenas de cada lado da porta da frente, e uma pesada antena de TV no topo do teto pontudo. Ela havia plantado filas de flores no fim de seu pequeno terreno, e pequenos braceletes de amores-perfeitos, cravos e tremoços cresciam ao redor da casa.

— Entre — ela disse. — Não é como o clube, suponho, mas vou tentar oferecer um jantar tão bom quanto o de lá.

Ela usava a blusa de seda preta, e as pérolas estavam de volta aos seus lugares. Depois de um segundo, reparou que ela havia colocado batom e maquiagem. Sua solidão reconheceu a dela. e ele também viu que Barbara Deane parecia muito bem hoje à noite — não tão jovem quanto aparentara nos segundos iniciais de seu primeiro encontro, mas jovem de alguma forma interna, como Kate Redwing, e naturalmente, instintivamente elegante. Elegância nada tinha a ver com dinheiro, ele pensou, achando que ela lhe lembrava a atriz de Hud, Patrícia Neal.

— Gostaria que você pudesse ter visto este lugar antes dos ladrões o terem redecorado — disse ela, mostrando sua sala de estar. — Costumava ter um monte de coisas, mas estou aprendendo a viver sem elas.

Uma das coisas sem a qual estava aprendendo a viver era o aparelho de tevê que antes ocupava a mesa vazia ao lado da fogueira. Algumas prateleiras mais altas também estavam vazias, pois ela perdera o cristal antigo de sua mãe, e seu toca-fitas também havia sumido, mas um outro estava em seu lugar; a prataria e porcelana de sua família também fora levada, motivo pelo qual eles usariam alguns pratos baratos comprados no posto de gasolina — Você ganha um prato grátis a cada dez litros de gasolina, não é curioso? E utensílios de aço inoxidável que ela comprara na cidade de manhã, porque não teria cara de fazê-lo usar facas e garfos plásticos.

A despeito do que ela tinha perdido, a pequena sala de estar era morna e confortável. Ele se sentou num sofá roído por insetos enquanto ela abria uma garrafa de vinho. Ela lhe deu um copo e ficou entrando e saindo da cozinha para preparar o jantar, fazendo perguntas sobre sua escola, os amigos, a vida que ele levava no Lago da Águia e em Mill Walk.

Ele contou a ela sobre o escândalo de Friedrich Hasselgard na tesouraria, mas não mencionou nenhuma de suas conclusões e atos.

— E se é isso que eles dizem — ela comentou -, então há muito mais que não estão dizendo. Às vezes acho que a única forma de viver em Mill Walk é manter os olhos cerrados e andar como uma pessoa cega.

Logo depois ela anunciou que o jantar estava servido, e lhe disse para sentar-se à mesa, que havia sido posta para dois no canto da sala de estar, perto da cozinha. Tom se sentou numa cadeira de metal dobrado — suas cadeiras boas também haviam sido roubadas — enquanto ela carregava um tabuleiro esfumaçante para a mesa, voltando em seguida à cozinha para trazer panelas e tigelas.

Ela havia feito uma delicada carne de vitela marinada, recheada com ingredientes misteriosos, e cercada por arroz integral, batatas, cenouras cozidas, e uma salada verde: comida suficiente para quatro.

— Rapazes gostam de comer, e isso me dá chance de cozinhar.

A comida estava melhor que a do clube, e Tom disse isso a ela. Depois de mais algumas mordidas, disse a ela que era uma das melhores refeições que já fizera, o que também era verdade.

— Como você conheceu meu avô?

Ela sorriu como se estivesse diante de uma inevitabilidade.

— Foi no hospital. Monte Umbroso — eles precisavam de enfermeiras durante seu primeiro ano, e eu acabara de me formar como enfermeira. Seu avô estava no comando, e ele estava muito mais envolvido na rotina diária do hospital do que a maioria dos membros da diretoria. Você podia vê-lo nos corredores e nas salas dos médicos. Naquela época, ele conhecia quase todo mundo que trabalhava no Monte Umbroso. Era um grande projeto para ele, seu primeiro grande trabalho desde os Pátios Elíseos, e ele se sentia em seu próprio território. Ele queria que fosse o melhor hospital do Caribe.

— Aquele dia no carro você disse que ele a esnobou quando esteve com problemas.

— É, ele fez isso. Fiquei furiosa com ele. Suponho que queira saber tudo sobre isso agora.

— Você não tem que me dizer nada que não tenha vontade.

Ela olhou para o prato; cortou um pedaço da carne.

— Foi há muito tempo atrás — ela disse. — Um rapaz havia sido ferido num tiroteio com a polícia. Ele estava em isolamento depois de operar. Era sua enfermeira. Acho que não é necessário entrar em detalhes médicos.

Ela olhou para ele.

— Ele morreu. Foi de repente, e no meu turno. Eu nem sabia, até chegar ao quarto dele para examiná-lo — ele vinha mostrando sinais de recuperação, e eu achava que ele poderia falar em um ou dois dias. De qualquer forma, morreu e fui considerada responsável. Descobriram que havia sido dado a ele o medicamento errado durante a tarde, e como era eu que trazia seus medicamentos, só podia ter sido feito por mim. Por um certo tempo eles iam tirar minha licença de enfermeira, e eu temia ser acusada de um crime. Meu nome estava nos jornais. Minha foto estava nos jornais.

Ela lembrou do jantar, e cortou um pequeno pedaço de vitela.

— E ele ajudou você?

— De certa forma, cuidou de tudo. Assumiu o inquérito do hospital, e quando o júri decidiu que não havia nenhuma acusação fundamentada contra mim, a polícia não pôde me acusar de nada. Muitas outras pessoas poderiam ter entrado e saído do quarto, e muitos realmente entraram e saíram. Claro, eu estava arruinada como enfermeira. Glen sugeriu que eu viesse para cá por uns tempos, e ele soube dessa casinha. Eu tinha algum dinheiro para comprá-la, e então vim para cá por uns seis meses. Quando voltei para Mill Walk, ele me colocou num curso de obstetrícia, e por muito tempo trabalhei como parteira. Por isso, sempre pensei que seu avô havia salvo minha vida. Ele conquistou minha lealdade, e eu a dei a ele.

— O que você quis dizer quando falou no carro que arrumava as bagunças dele?

— Acho que quis dizer que Glen era o tipo de pessoa que sempre recorria às mulheres quando precisava de ajuda.

Ela voltou ao seu jantar. Mais uma minúscula fatia de vitela, um gole de vinho. Tom esperou que ela falasse mais.

— Mas eu realmente estava pensando naquela vez que me chamou para cuidar de Glória — ele queria que fosse à sua cabana e arrumasse tudo. Disse que tinha deixado algumas coisas por lá: brinquedos, livros e roupas, e ela os estava querendo. Mas ele também queria que eu limpasse tudo — literalmente. O lugar estava uma bagunça. Glen sempre precisou de alguém para ajeitar as coisas para ela. Então limpei os cinzeiros e arrumei as coisas antes de sair.

— Estava apaixonada por ele?

— Muita gente achava que seu pai e eu éramos amantes.

Ela balançou a cabeça, continuando:

— Nunca foi assim. Em primeiro lugar, eu não fazia o tipo dele. Depois percebi quais eram meus deveres.

O olhar dela encontrou o de Tom, e ela acrescentou:

— Sem esquecer o que eu devia a ele.

— E você nunca esqueceu.

— Nunca poderia. Não tenho queixas. Nenhuma mesmo. Trabalhei como parteira aqui em cima por muito tempo — me registrei como autônoma e as pessoas me ligavam pedindo meu serviço. Me aposentei há uns cinco anos, e ganho um pouco de dinheiro de seu avô por cuidar da casa dele. Tenho mais que o suficiente para viver. Minha vida é muito pacífica, e eu faço o que quero fazer. Como convidar você para jantar.

— Você é solitária?

— Nem sei mais a resposta para isso. Solidão não é tão mal assim. — Ela sorriu para ele. — Mas eu imagino que você tenha todo tipo de amigos lá no lago.

— As coisas não seguiram esse rumo — disse ele, e deu a ela uma descrição geral sobre suas dificuldades com Sarah Spence e os Redwings. Contou a ela sobre Buzz Laing, Roddy Deepdale e Kate Redwing, e também sobre a bala que entrara pela janela.

— E depois que dois carros de polícia apareceram lá na cabana, minha reputação está ainda pior. Tenho passado o tempo todo sozinho.

Ele hesitou, depois disse:

— O chefe de polícia, Tim Truehart, aconselhou que eu pedisse a você para ficar na cabana, um tipo de proteção. No caso do tiro ter sido alguém querendo se vingar de meu avô ou algo assim.

— E você ficou em silêncio sobre isso por quase duas semanas?

— Bem, não aconteceu mais nada. E eu tenho estado um pouco ocupado.

— Gostaria que eu passasse as noites lá?

Ele respondeu que não, isso não era necessário, pensando que ela veria isso como mais uma parcela a pagar na dívida com seu avô.

— Bem, de qualquer forma tenho pensado em voltar lá por uns dois dias. Você me diz se começar a se sentir pouco à vontade, sozinho lá.

— Direi, sim.

Agora os dois estavam se sentindo mais á vontade. Conversaram no modo anedótico e divagante das pessoas que tentam conhecer e gostar umas das outras. Ela queria saber sobre a Brooks-Lwood, os livros e filmes que ele gostava, e ele perguntou a ela sobre cavalos e o Lago da Águia. Em dado momento, Tom sentiu como se os dois se conhecessem há muito tempo.

— Não precisa responder isso, claro, mas você disse que não era o tipo de meu avô, e desde que você falou isso, tenho tentado imaginar qual seria o tipo dele.

— Suponho que este seja um tema permitido. Afinal, estamos falando sobre algo do tempo da Idade Média. Acho que é seguro dizer que ele gostava de mulheres muito femininas e submissas. Magda, pobre alma, era assim. Só conheci mais uma outra mulher que Glen via, uma escolha muito infeliz, na minha opinião. Era uma garota que trabalhava como ajudante-de-ordens de enfermeira — foi assim que se conheceram, quando Glen ainda passava muito tempo fazendo o hospital correr como ele queria. Ela era uma coisinha linda, mas no íntimo era uma pessoa dura. Ela tinha um passado vergonhoso, mas fazia você pensar que era a alma da inocência.

Recordando o julgamento que sua mãe exprimira de Nancy Vetiver, Tom disse:

— Tem certeza sobre ela — que era uma pessoa dura, quero dizer?

— Era calculista, se é o que você está perguntando. Ela e Glen tinham o que queriam ou precisavam um no outro, e acho que eles afinal se tornaram algo como amigos. No final, acho, ele sabia que tinha de respeitá-la. Carmen Bishop, era o nome dela — tinha por volta de 17 ou 18 quando começou no hospital.

O nome não significava nada para Tom.

— Acho que ouvi que ela se envolveu com ele para ajudar o irmão. Ela possivel­mente se importava com Glen, mas também o usava.

— Dezessete ou 18 — ele disse.

— Ela devia ser mais velha. De qualquer forma, a considerei perfeita para ele. A coisa engraçada é que Glen não a levou para jantar mais do que umas poucas vezes, para que fossem vistos juntos. Isso foi tudo o que ele fez comigo, e por esse motivo as pessoas achavam que nós... você sabe. Acho que era importante para Glen ser visto com mulheres jovens e atraentes, mas não acho que ele tenha alguma Vez ido mais longe do que isso, mesmo com Carmen.

Ela deu a Tom uma fatia de torta de maçã, se serviu, e depois embrulhou o resto da torta para que ele levasse.

Era pouco depois das dez quando ela o deixou na cabana. Ela lhe disse para ligar quando quisesse que ela começasse a ficar na cabana.

— Sei que vou ver Tim Truehart na rua uma hora dessas, aí ele vai mandar que eu venha cuidar de você!

— Ah, você é ótima — ele disse, e ela em seguida partiu com o carro.

No dia seguinte, tom escreveu uma longa carta para Lamont von Heilitz e levou-a até o alto da colina para esperar por Joe Truehart. Quando o carteiro apareceu, Tom saiu das árvores e deu a carta para ele.

— Ouvi dizer que você acha que mamãe entrou para o negócio de assaltos.

— Dizem que ela é muito boa no que faz — disse Tom.

Truehart riu, deu a volta com o furgão e continuou seu caminho.

Tom se deu conta que nunca havia aberto a caixa de correio do avô — se Joe Truehart tivesse qualquer coisa para ele, Joe Truehart lhe daria quando Tom entre­gasse os grossos envelopes para von Heilitz. Ele nem sabia que caixa de alumínio pertencia ao avô. Teve de seguir a fileira de caixas de correio lendo os nomes. Finalmente chegou à de Upshaw. Soltou a tranca e abriu a caixa. Estava entupida de pedaços dobrados de papel branco. Havia dúzias de mensagens dentro da caixa. Pegou-as com a mão em forma de concha e abriu a de cima.

Em letras pretas garranchais que virtualmente gritavam de frustração, lia-se nunca olha sua caixa de correio? A palavra sexta-feira fora rabiscada em cima dessa frase e o nome Sarah estava escrito embaixo, com tal pressa ou irritação que havia apenas uma linha estreita entre o enorme S e o quase embrionário h.

Tom leu todo o maço de cartas no caminho de volta para sua cabana. Então leu tudo de novo. Estava quase tonto de alegria.

 

Dentro da cabana, espalhou as cartas por cima da escrivaninha e as leu todas em ordem, de Meus pais me mandaram não vê-lo nunca mais a nunca olha sua caixa de correio? Havia uma para cada dia, desde o dia em que ela o levara para o complexo. Algumas eram cartas de amor, diretas e francas, as declarações mais íntimas e passionais que ela já havia lhe feito. Algumas estavam inflamadas com ressentimentos contra os pais e detalhavam os eventos dos dias cheios de tédio quase mortal. Uma, datada do dia em que soubera sobre o disparo, estava impregnada de alarme e preocupação. Uma delas dizia apenas Preciso de você.

Uma era uma longa e extensa metáfora comparando seu pênis à torre inclinada de Pisa, o Monumento de Washington, e a Torre Eiffel, símbolos que vira entre os oito e 12 anos.

Devo comparar você a um dia de verão? Não, quase nunca penso assim. Você não é muito parecido com um dia de verão, mas me lembra um pouco uma viagem à Europa...

Ele ligou para a cabana dela, e a sra. Spence bateu o telefone assim que ele disse seu nome. Ele tornou a ligar e disse:

— Sra. Spence, sinto muito, mas isso é muito importante. A senhora poderia por favor me deixar falar com Sarah?

— Ninguém nesta família não tem nada a dizer a você — ela respondeu, e desligou.

Na terceira vez que ele ligou, a sra. Spence atendeu, perguntou se ele queria um braço quebrado e bateu o telefone.

Colocou o calção de banho e nadou resolutamente para frente e para trás a partir de sua doca, mas nem Sarah ou ninguém apareceu na porta dos fundos.

Pelo resto da tarde, Tom tentou se concentrar nas páginas que tinha escrito sobre o assassinato, mas sua atenção voltava de novo e de novo nas cartas maravilhosas de Sarah — ela tinha sugerido encontros, marcado lugares, esperado por ele na estrada atrás da cabana de Lamont von Heilitz, tentado transmitir ao cérebro dele mensagens para olhar a caixa de correio.

Ele chegou cedo ao clube naquela manhã e esperou na ponta do bar em que Roddy e Buzz normalmente ficavam. Pediu um clube-soda e comeu um punhado de biscoitos salgados. Nervoso, tomou um segundo copo de clube-soda e pediu um Kir Royale. O primeiro gole deixou-o tonto e com a cabeça leve. Os Langenheims subiram a escada, acenaram para ele de mau humor, e foram direto para sua mesa.

Então a voz ressoante de Marcello subiu pelas escadas, e Tom ouviu passos. Ralph e Katinka Redwing apareceram ao lado dele — Ralph lhe deu um olhar de extrema indiferença, Katinka nem reparou sua presença. Atrás deles vinham os Spences. O sr. Spence parecia feliz e expansivo, e a sra. Spence dizia “Oh, Ralph! Ralph!” Ambos os Spences viram Tom ao mesmo tempo, e suas faces se mortificaram. Atrás de seus pais veio Sarah, com Buddy Redwing. Buddy disse uma frase da qual Tom ouviu apenas “rato”, e os olhos de Sarah voaram para o rosto de Tom, sendo aprisionados pelos olhos do rapaz. Ele sentiu toda sua gravidade interna ser alterada, e balançou a cabeça três, quatro, cinco vezes, veementemente. Sarah virou os olhos para o alto, os fechou, os abriu, e deu a ele um pequeno e aberto sorriso de pura satisfação.

— Acho que não vamos ao bar hoje — Ralph Redwing disse a Marcello. — Está um pouco cheio. Leve-nos apenas para a mesa.

Sarah sentou-se ao lado de Buddy com as costas viradas para Tom.

Num tom de voz alto, Ralph Redwing disse da cabeceira da mesa:

— Traga duas garrafas de Roederer Cristal para começar a noite, Marcello. Temos algo para celebrar. Estes jovens acabam de decidir se casarem, e todos nós estamos tremendamente felizes com sua decisão.

A sra. Spence fitou Tom com olhos malignos sob as pálpebras semicerradas. Ele levantou seu copo num brinde de escárnio, e o sorriso dela desapareceu.

Quando o velho garçom veio atender seu pedido, Tom perguntou se poderia levar o jantar para comer em casa. A despeito de sua ousadia, não podia ignorar o que estava acontecendo naquela mesa comprida, e não tinha estômago para ver aquilo.

Levou seu jantar para casa numa sacola de papel marrom. Colocou-a sobre a mesa e a olhou por um instante. Então, jogou-a no lixo e comeu a torta que Barbara Deane havia lhe dado.

No dia seguinte, Tom ouviu vozes vindas da avenida de árvores em frente às cabanas, e saiu para ver quem era. Desceu a trilha e as vozes ficaram mais altas. Jerry Hasek estava tirando malas da traseira de seu Cadillac e sacolejando de um lado para o outro enquanto entrava no complexo atrás de seus pais, os cabelos brancos reluzindo ao brilho do sol. Atrás dele estava a resposta ao problema de Tom. Fritz Redwing viera ao Lago da Águia para outra festa interminável com seu primo.

 

Tom andou descompassadamente ao redor da sala de estar, sentou-se inquieto à escrivaninha com canetas e papéis, manteve-se à distância de todas as janelas do andar térreo da cabana, releu as cartas de Sarah, olhou seu relógio. Cada minuto que passava era uma indicação a mais que Fritz não telefonaria para ele. Tom imaginava Fritz na cabana da família, as malas abertas na cama, jeans e calções espalhados pelo chão, interrompendo uma conversa com os pais, a tia e o tio sobre o jato e Ted Mornay com o comentário que achava que ia agora, vocês sabem, ver como vai o velho Tom Pasmore. Tio Ralph iria tomar providências para que ele não visse como o velho Tom Pasmore ia, e quando Fritz cruzasse com Tom na sala de jantar ia dar de ombros e balançar a cabeça, tentando comunicar de um modo geral que toda a conversa teria de esperar até que as aulas começassem. Má sorte. E você, o que vai fazer, rapaz?

Quando o telefone tocou, Tom correu para sala de estar, atendendo ao terceiro toque.

As primeiras palavras de Fritz lhe disseram que toda a sua preocupação fora infundada.

— Tom! Estamos os dois aqui! Não é demais?

Claro que é, disse Tom, genuinamente feliz em ouvir a voz de Fritz.

— Cara, nunca imaginei que isso fosse acontecer mesmo — disse Fritz. — Vamos nos divertir muito. Acho que Buddy tinha uns amigos bem malucos aqui em cima. Aposto que eles ficaram furiosos e sumiram. Então, me conta o que você tem feito — mas por favor não me diga que ficou só moscando por aí, lendo livros e agindo como o sr. Handley. Estou cheio do sr. Handley, ele nunca faz sentido algum!

Fritz havia passado as últimas três semanas em recuperação com Dennis Handley.

— Venha aqui — disse Tom. — Agora.

Ano que vem vamos ser veteranos! — disse Fritz. — Este vai ser o melhor verão que já tivemos.

— Não diga a ninguém para onde você está indo, apenas venha aqui.

Em menos de cinco minutos, Fritz estava na porta da frente, usando camisa-pólo sobre um calção de banho e carregando uma toalha embaixo do braço.

— Bonito bronzeado — disse quando Tom abriu a porta. — Estava com medo de encontrar você todo branco. Temia que estivesse cheio de cicatrizes de livro na cara.

— Cicatrizes de livro?

— Você sabe, aquelas pequenas linhas que a gente fica embaixo dos olhos quando lê muito. Com o sr. Handley, tive de ler um livro inteiro em voz alta, e cada vez que eu lia uma frase errada, ele a lia de volta para mim. Era como um cara competir consigo mesmo. Fiquei cheio dessas linhas embaixo dos olhos, porque lia bem de perto para não ter de ver o rosto dele. Então vamos nadar logo, tá? Quero ficar com o seu bronzeado, quero...

Eles tinham andado para a sala de estar. Fritz subitamente parou de falar, fitando horrorizado as folhas amarelas, totalmente escritas, dispostas em fileiras e pilhas no chão perto do sofá.

— Que é isso? Virou para olhar Tom com olhos azuis pálidos, agitados como cataventos.

— Está fazendo os trabalhos de casa do ano que vem!

— Estou pesquisando um assunto. Não tem nada a ver com trabalho de casa.

— Então? — Fritz disse, significando: se não é trabalho de casa, então o que é?

— É a respeito de um assassinato.

Fritz olhava para ele profundamente intrigado.

— Vou colocar meu calção de banho e já volto — disse Tom.

— Tudo bem — Fritz disse quando Tom desceu. Ele estava segurando uma folha das anotações de Tom, que deixou cair no chão com evidente alívio.

— Vamos para a água. Não sei o que está fazendo aqui, mas tem que se afastar disso, rápido.

Andaram até o escritório, onde Fritz sacudiu a cabeça ao ver mais papel.

— Foi bom eu ter chegado a tempo. Não sei como você conseguiu um bronzeado desses, enfiado de cabeça nessa coisa maluca. Até escreveu o nome da sra. Thielman errado, seu tonto.

— Essa era a primeira sra. Thielman. Apenas por curiosidade, qual era o nome do livro que você teve que ler para o sr. Handley?

— Tá brincando? Acha que eu lembro?

— Era sobre o quê?

— Um cara.

— O que ele fazia?

— Íamos atrás de um peixe. Não fez sentido algum. O sr. Handley me deixava pular todas as partes difíceis.

— O sr. Handley fez você ler Moby Dick? Em voz alta?

— Foi terrível. Foi nojento e terrível. O que você quer dizer com a primeira sra. Thielman? Houve apenas uma sra. Thielman.

— A primeira sra. Thielman foi morta aqui em cima por um homem chamado Anton Goetz, e Lamont von Heilitz solucionou o caso.

— A múmia que é dona da cabana vazia?

Estavam agora caminhando através do pier de Tom, e Fritz apontou diagonal­mente na direção do lago.

— O cara que todo mundo detesta? Queria que você fosse dono daquela cabana.

— Não é uma múmia — disse Tom. -Já foi incrivelmente famoso, e está velho agora, mas é um homem surpreendente. Eu o conheci porque ele mora perto da gente. Ele solucionou centenas de assassinatos e realmente sabe como a ilha fun­ciona.

— Ah, todo mundo sabe disso — disse Fritz.

Deu um grito de entusiasmo e pulou da ponta da doca. Juntou os joelhos ao peito e abraçou seus braços ao redor deles, acertando a água como uma bala de canhão barulhenta. i

Todo mundo sabe disso?

Tom mergulhou atrás dele.

— Deus, isso é demais — gritou Fritz.

Por um certo tempo, ele e Tom ficaram nadando ao acaso e energicamente na parte mais larga do lago.

— Já viu o Buddy? — perguntou Tom.

— Buddy ainda está na cama. Acho que eles tiveram um tipo de comemoração ontem à noite no clube. Você não estava lá?

— Saí cedo. Eu e Buddy não somos exatamente amigos, Fritz.

— Buddy é amigo de todo mundo. Ele é amigo do Jerry. Ele e Jerry vão sair esta tarde para treinarem tiro. Talvez possamos ir também. Vai ser bem legal.

— Não acho que iam me querer junto, a não ser... — a não ser que me usassem como alvo, pensou Tom. — Há algumas coisas que você não sabe.

Fritz se aproximou dele, sua testa larga franzida de preocupação.

— Você sabe o que eles estavam comemorando ontem à noite?

Fritz balançou negativamente a cabeça.

— Buddy deve casar com Sarah Spence.

— Bem, claro. Qual é o grande lance?

— Ele não pode casar com ela.

— Por quê?

— Ela é jovem demais. É esperta demais. Ela nem mesmo gosta dele.

— Então como é que ela vai casar com ele?

— Porque os pais dela querem, porque o seu tio Ralph gosta dela, e porque ela não pôde me ver por duas semanas.

Fritz parou de nadar em volta e fitou Tom. Sua boca estava embaixo d’água.

— Nós temos uma espécie de relacionamento. Somos muito íntimos, Fritz.

Fritz levantou a boca para fora d’água.

— Íntimos até que ponto?

— Bastante íntimos. Buddy tentou me dizer para ficar longe dela, e quando não concordei, ele tentou brigar comigo. Então eu o acertei no estômago. Ele caiu.

— Puta-merda! — Fritz disse.

— Fritz, a verdade é que...

Fritz cerrou os olhos.

— Por favor, Fritz. A verdade é que Sarah já não queria casar com ele, mesmo. Ela vai para a faculdade depois do outono, então vai escrever uma carta ou algo assim, e vai ser só isso. Nem estão noivos. É só uma espécie de acordo.

— Fodeu ela? — perguntou Fritz.

— Não é da sua conta.

— Puta-merda. Quantas vezes?

— Tenho de vê-la.

Fritz mergulhou e começou a nadar de volta para a doca. Fritz escalou a doca e sentou-se cora a cabeça nos joelhos. O cabelo brilhava ao sol. Quando Tom subiu, Fritz se levantou e caminhou para longe dele.

— E aí? — disse Tom.

Fritz olhou para ele. Parecia que estava a ponto de chorar. Bateu no ombro de Tom.

— Diga-me que fez. Diga-me que fez, seu cabeça-de-bagre.

Bateu no peito de Tom, empurrando-o um passo para trás.

— Eu fiz.

Fritz virou de costas, de forma que encarou a cabana de Roddy Deepdale.

— Eu sabia!

— Se sabia, por que me bateu?

— Sabia que algo assim ia acontecer.

— Quê?

Fritz se virou lentamente.

— Sabia que você ia fazer alguma coisa maluca desse tipo.

Havia um brilho de pura travessura em seus olhos.

— Onde foi? Na floresta? Na sua cabana? Dentro ou fora?

Tom deu um passo para trás.

— Não te interessa.

Fritz empurrou Tom novamente.

— Não vou te ajudar se não me disser. — Seus olhos brilhavam mais do que nunca agora. — Se não me disser alguma coisa, nem vou falar mais com você.

Deu um tapinha no pescoço de Tom, o empurrando como um ursinho louro brincando com o treinador.

— Quando foi a primeira vez?

— No avião do seu tio.

Os braços de Fritz caíram.

— No...

Ele piscou rapidamente três vezes. Prendeu uma gargalhada, deixou a gargalhada escapar da garganta, e caiu sobre os joelhos, tremendo de tanto rir.

— No... No... do meu tio...

Caiu de costas, ainda sem conseguir falar de tanto rir.

— Vai me ajudar?

A gargalhada de Fritz diminuiu gradualmente para uma série de suspiros.

— Claro. Você é meu amigo, não é?

Olhou para cima, os olhos ainda brilhando. Moby Dick — ele disse, e explodiu outra gargalhada. Depois seu rosto ficou sério:

— Tem um cara muito velho em Moby Dick?

— Claro.

— E comem o peixe inteiro?

— Comem?

— Seu tonto, entendeu o livro errado. Até onde eu sei que Ernest sei-lá das-quantas não escreveu Moby Dick. Os pais dela estavam naquele avião, não é? Estavam lá pertinho, não é?

— Não há qualquer parte difícil em O velho e o mar.

— Não fuja do assunto — disse Fritz, começando a rir. — Oh, Deus. Oh, Deus. Como é que isso está acontecendo comigo?

— Não está acontecendo com você — disse Tom. — Está acontecendo comigo.

— Bem, o que é que Sarah Spence tem a ver com Lamont von Heilitz?

— Nada.

Fritz se sentou e coçou o ouvido com um dedo. Balançou a cabeça e olhou para Tom.

— Mais eu ouvi meu tio e Jerry falando sobre ele — logo antes de ter vindo para cá. Estavam no portão do meu tio. Eu lhe falei.

— Quando foi isso?

— Quando você disse que esse velho que já foi famoso vivia perto de você, e eu disse, todo mundo sabe disso, foi aí. Porque vi meu tio Ralph no portão com Jerry, e meu tio disse, blá-blá-blá, Lamont von Heilitz, ou seja lá qual for seu nome, e Jerry disse, ele é vizinho dos Pasmores.

— Queria saber sobre o que estavam falando.

— Vou perguntar.

— Não, é melhor não perguntar sobre isso. Seu tio disse alguma coisa depois?

— Ele disse, divirta-se bastante, Fritzie. Acho que estou fazendo isso.

Fritz se levantou.

— Acho que você quer que eu traga ela para cá e depois vá dar uma volta pelo lago ou algo assim.

— Talvez você possa ligar para ela à tarde, ou falar com ela no almoço. Diga que você gostaria de dar um passeio com ela ou algo assim enquanto Buddy estivesse praticando tiro com Jerry. Venha contornando o lago para que os pais dela não o vejam trazendo-a para cá. Só quero falar com ela. Tenho que falar com ela.

Depois de um segundo, Fritz acertou novamente o peito de Tom, dizendo:

— Vamos nadar mais um pouco, tá? Cuidarei de tudo. Se você estiver apaixonado por Sarah Spence, o Buddy sempre pode casar com Posy Tuttle. Buddy não se importa com quem vai casar.

Eles nadaram até que a mãe de Fritz apareceu do lado de fora do complexo e andou até o meio da doca dos Redwings, gritando:

— Fritzie! Fritzie!

 

Assim que Fritz correu de volta para o complexo, suas pegadas molhadas marcan­do seu percurso, Tom se enxugou, trocou de roupas para bermuda e camisa-pólo, e foi para o clube. Eram apenas onze e quarenta e cinco. O almoço normalmente não começava até meio-dia e meia, mas ele estava com fome — não comera mais nada além de metade da torta no jantar da noite anterior, e não tomara café da manhã. Além disso, estava tenso demais para esperar: suspeitava que a verdadeira razão para querer comer cedo era que assim ele sairia da sala de jantar do clube antes dos Redwings aparecerem, satisfeito consigo mesmos por haver negociado os obs­táculos para o casamento de seu filho. Haveria algum leve comentário com os pais de Fritz sobre o problema com o rapaz dos Pasmore, e Fritz não resistiria lançar olhares vividos através da sala.

— Cicatrizes de livros — Tom disse para si mesmo, e sorriu.

A mesa comprida fora estendida e mais três lugares haviam sido adicionados. Os pais de Fritz seriam formalmente apresentados à mais nova aquisição das Empresas Redwings.

Oh, estivemos esperando isso durante meses.

Oh, acho que podemos fazer um pronunciamento normal assim que eles es­tiverem prontos, mas depois de um ano acho que nossa jovem dama se mudará para o Arizona. Ela vai querer ficar de olho no namorado, não vai?

Risos, entendimento, indulgência.

Foi tão bom que eles não tenham esperado até o final do verão — vocês sabem. Estava morrendo de medo que eles fizessem isso!

Oh, Sarah vai amar sua vida nova.

Tom sabia a verdadeira razão de estar comendo cedo.

Sentou-se à mesa vazia com um livro ainda não lido nem aberto ao lado do prato cheio de ketchup. Dois garçons jovens caminhavam em direção ao bar. A luz do sol ninava no terraço e caía sobre as três primeiras fileiras de ladrilhos vermelhos do chão. Tom olhou para as mãos, que dobravam um guardanapo, e viu as mãos de Lamont von Heilitz vestidas em luvas azuis e brancas. Pôs o guardanapo sobre a mesa e deixou a sala de jantar.

De volta à cabana do avô, encostou-se contra a parede. Então começou a catar os papéis que estavam sobre o sofá.

O telefone tocou.

Tom torceu para que Sarah tivesse ficado sozinha um momento depois de seus pais saírem para o clube.

— Oh, alô.

Colocou a pilha de papéis na mesa.

— Tom?

Não reconheceu a voz, que era de uma mulher entre seus vinte e trinta anos.

— É Barbara Deane — disse a voz. — Estive pensando... se Tim Truehart quer que eu fique na cabana, é melhor que eu vá para aí. Do contrário, vou ficar com medo de encontrar com ele toda vez que eu for para Red Owl.

— Tudo bem — disse Tom.

— Vou para aí de noite ou amanhã — não me espere. Só vou entrar e ir para meu quarto.

Ela parou de falar um instante.

— Há uma coisa que eu não lhe disse ontem. Talvez você deva saber.

Ela quer me dizer que realmente era amante dele, Tom pensou, e disse que ele a veria no dia seguinte. Ele olhou para as cartas de Sarah, uma pilha branca de páginas ao lado do bolo ainda maior de folhas amarelas. Ele as pegou e dobrou-as. Levou todos seus papéis para cima e os colocou embaixo do travesseiro.

Um segundo depois, levou-os para fora e deu uma espiada na sala. Olhando pela janela do fim do corredor, viu um emaranhado de galhos horizontais e folhas verdes caídas. Por trás havia mais galhos, e além destes também, e ainda mais, até o ar limpo e vazio sobre a trilha. Deu a volta, andou até a escada e olhou para baixo. Se Fritz conseguisse trazer Sarah até ele — se ele pudesse encontrá-la sozinha, se os pais dela a permitissem sair de suas vistas, e se ela concordasse em ir — ainda demorariam horas para chegar. Desceu para a sala e foi até a porta de Barbara Deane. Depois de hesitar um pouco, abriu.

Ela também escondia alguma coisa numa prateleira. Alguma coisa que examinara no primeiro dia em que ele estivera no lago e uma vez depois disso. Ouvira essa coisa ser retirada de seu esconderijo. Se encontrasse cartas de Glendenning Upshaw, ele disse a si mesmo, as colocaria de volta sem lê-las.

Tom foi rapidamente até o quarto de Barbara. Andou ao redor da cama e abriu a porta do armário. Uma fileira bem arrumada de vestidos, saias e blusas — a maioria em tons escuros — pendiam de um mastro de madeira. Sobre as roupas havia uma gaveta branca de madeira. Embaixo, pouco visível na escuridão do anuário, uma caixa de lírios esculpidos na madeira um pouco mais clara. Tom enfiou-se no armário, tentando alcançar a caixa. A própria Barbara Deane teria de se espremer pela porta e ficar nas pontas dos pés para poder alcançá-la. Tom a puxou para si, tirando-a da prateleira, e saiu do armário.

Era pesada e ornamentada com incrustações. Mas o peso era da própria madeira. Nada chocalhou quando balançou a caixa. Pousou-a sobre a mesa, respirou fundo, abriu a tampa.

Ela ia me dizer de qualquer jeito, pensou.

Viu uma pequena pilha de recortes de jornal no lugar das cartas velhas que esperara. Pegou o de cima e leu a manchete ainda antes de tirá-lo da caixa. Enfermeira suspeira na morte oficial. O artigo fora recortado da primeira página do Eyewitness. Pegou o segundo: Esta mulher deve ser acusada? Embaixo da manchete havia uma foto de uma Barbara Deane de vinte anos, quase irreco­nhecível, vestida com um uniforme branco e um chapéu engomado. A única pessoa com acesso era a enfermeira deane, dizia a manchete seguinte. Tom enrubesceu. Era como ter entrado no quarto de Barbara e a visto nua. Havia outros artigos embaixo desses, todos acusando Barbara Deane de assassinato. Tom mal prestou atenção neles. Talvez Lamont von Heilitz os tivesse lido, mas Tom achava que já fora longe demais.

Ao se inclinar para repor os artigos no lugar, viu duas folhas amarelas de caderno dobradas no fundo da caixa. Tinham quase que a mesma tonalidade da caixa. Tocou-as com medo que se esmigalhassem, mas sentiu um papel grosso e macio. Pegou as folhas, pousou com cuidado a pequena pilha de recortes, e desdobrou as folhas de caderno que estavam por cima.

Sei o que você é, e alguém tem que deter você, estava escrito na primeira. A tinta assumira o tom marrom de sangue ressecado, mas as letras de imprensa gritavam mais alto que as manchetes dos velhos exemplares do Eyewit­ness. Colocou a folha de lado e leu a segunda. Sua garganta estava seca, o coração acelerado. Isso já foi longe demais, deve pagar por seus pecados.

Tom deixou o pedaço amarelado de papel cair na caixa como se ele o tivesse picado. Engoliu em seco. Pegou o papel de volta. O F estava cruzado com um traço curvo e suave, e o S era inclinado. Fora uma mulher que escrevera esses recados, e ele sabia quem.

Morreu de medo por um segundo, como se Barbara Deane estivesse para entrar afobada pela porta, gritando com ele. Sei o que você é. Pôs as duas folhas juntas no fundo da caixa com mãos trêmulas. Deitou os recortes por cima delas e fechou a caixa. Pegou a caixa, percebendo que não lembrava para que lado estava voltada a parte da frente. Pingou suor de sua testa. Levou a caixa para o armário e enfiou-se nele. Tom a colocou na prateleira e empurrou para o fundo. Pensou que, pelo que lembrava, antes estava encostada na parede do armário. Mas virada para que lado? Enxugou a testa com o braço e virou a caixa. Virou mais uma vez. A casa rangeu, e o coração de Tom tentou saltar do peito. Empurrou a caixa reta contra a parede do armário, virada de frente. Recuou e fechou a porta do armário. Pensou se ela realmente estava fechada antes. Abriu e fechou novamente. Abriu só um pouquinho e a fechou de vez.

Virando-se, deu com suas pegadas de poeira estampadas contra o chão de madeira tão claramente quanto as pegadas de Fritz na trilha.

Tirou o lenço do bolso e caminhou de costas, apagando suas pegadas durante o percurso inteiro até a porta. Gotas de suor pingavam no chão opaco. Deixaram traços brilhantes quando ele as limpou. Chegou à soleira, saiu da sala, fechou a porta.

No banheiro, jogou água fresca no rosto. Queria sair do chalé — fugir para longe. Olhou no espelho seu rosto gotejante e disse: “Jeanine Thielman escreveu aqueles recados.” Enxugou o rosto e lembrou a nervosa Barbara Deane abrindo a porta da cabana no primeiro dia dele no Lago da Águia. E lembrou da calma e terna Barbara Deane que mentira e mentira enquanto servia o jantar.

Sei o que é ser acusado injustamente.

Em primeiro lugar, eu não era o tipo dele.

Desceu lentamente as escadas, ainda temeroso de que ela estivesse entrando pela porta da frente. Ela saberia num instante o que ele havia feito. Só precisava ver o rosto dele.

Tom deixou-se cair no sofá. Barbara não fora acusada injustamente. Ela matara o policial no hospital ao lhe dar a medicação errada. Provavelmente fora Maxwell Redwing que havia mandado que ela o matasse. O Hospital de Monte Umbroso era onde as pessoas que governavam Mill Walk punham seus embaraços quando que­riam que eles morressem. Era o hospital mais respeitável da ilha; o lugar mais seguro em Mill Walk para um pequeno e discreto assassinato. Os próprios Redwings iam para lá, não iam?

O que significava que ela matara Anton Goetz também. Tom não sabia como isso acontecera, mas uma mulher jovem e forte como Barbara Deane poderia ter derru­bado um aleijado... Talvez, pensou Tom, Goetz estivesse chantageando Barbara Deane. Talvez ele até a tivesse visto atirar em Jeanine Thielman, e a ajudasse a esconder o cadáver no lago. A mãe de Tom o vira se movendo na floresta, fugindo para detrás das cortinas de sua cabana. Depois que von Heilitz o acusara de assassi­nato, ele havia voltado para enfrentá-la, e ela também o matou. Desde então ela vive quieta na vila do Lago da Águia. Até entrara no ramo de partos.

Disse a si mesmo para se acalmar quando lhe ocorreu que Barbara Deane havia atirado nele por ter pensado que ele vira os bilhetes no fundo da caixa.

Mas ele sabia mais uma coisa que Lamont von Heilitz desconhecia. Era o fato crucial no assassinato de Jeanine Thielman: ela morrera por ter escrito aqueles bilhetes.

 

Ele ainda estava tentando adivinhar o que fazer a respeito dos bilhetes quando alguém começou a bater à sua porta três horas depois. Pulou do sofá e abriu a porta, Fritz Redwing quase caiu para dentro da sala. Sarah Spence lhe deu outro empurrão para afastá-lo do vão da porta.

— Entra logo, sai do caminho — disse ela. — Contornamos o lago inteiro para não sermos vistos. Não vamos melar tudo no último minuto.

Ela fechou a porta e se encostou nela, sorrindo para Tom.

— Faço todos esses planos inteligentes para encontrar com vocês em lugares remotos à noite, e quando Tom Pasmore — que escreve uma carta por dia para Lamont von Heilitz — checa sua caixa de correio e finalmente ajeita as coisas, me faz vir à sua casa em plena luz do dia.

— Sinto muito.

— Não coloca aquelas cartas preciosas na caixa de correio?

— Passo em mãos para o carteiro. Como você sabe que eu escrevo para ele?

— É o seu herói, não é? O sujeito que o iniciou nessa brincadeira de detetive? Vi como você ficou quando Hattie Bascombe falou sobre ele.

— Von Heilitz, von Heilitz — disse Fritz. — Por que todo mundo está de repente falando nele?

Nem Tom ou Sarah se incomodaram em olhar para ele.

— Li suas cartas um milhão de vezes.

— Que cartas? — perguntou Sarah. — Nunca te escrevi carta nenhuma. Não escrevo cartas para rapazes. Nem posso me imaginar fazendo uma coisa estúpida assim.

— Oh, ótimo — disse Fritz.

— Já conheço você, não é? Foi há muito tempo? Aconteceu tanta coisa nesse meio tempo. Lembro-me vagamente.

— “No meio tempo” é o período em que você me escreveu todo dia e planejou encontros em lugares remotos?

— Não, é o período durante o qual eu fui prometida — ela disse. — Ou fui prometida para ser prometida? Encontrar pessoas em lugares remotos é algo muito distante de mim.

— Será que eu devo sair? — perguntou Fritz.

— Prometida para ser prometida — disse Tom. — É um tipo de condição interes­sante.

— Penso nela como uma ação retardada. Ou devia chamá-la de ação renegada?

Ela se impulsionou para longe da porta.

— Não vai me abraçar, ou algo assim?

— Eu? — Tom colocou a mão no peito. — Só sou alguém que você conheceu certa vez.

— Deixe que eu julgue isso. Sou muito seletiva em relação a quem conheço.

— Seus padrões mudaram tarde demais.

Mas antes que Tom pudesse dizer qualquer coisa a mais, Sarah soltou um rugido alto e atravessou a sala para envolvê-lo em seus braços.

— Seu idiota. Seu debilóide. Acha que eu escreveria alguma coisa para você?

— Devia saber disso — ele disse, abraçando-a com tudo o que podia. Abaixou a cabeça para o cabelo brilhante de Sarah.

— Olhem — disse Fritz. — Já cumpri meu papel?

Sarah levantou o rosto para Tom, pedindo para ser beijada. Tom encostou seus lábios nos dela. O choque de sua suavidade ecoou pelo corpo inteiro do rapaz.

— Vejo vocês depois, pessoal — Fritz disse, levantando-se.

— Não! — Tom e Sarah disseram, quase simultaneamente, rompendo o abraço.

— Acho que devemos dar um bom passeio juntos — disse Sarah.

Ela enlaçou seus dedos com os de Tom.

— Podíamos ir a algum lugar — sugeriu Tom.

— Uma excursão! — Sarah disse. — É isso aí. Você nunca deve ter saído em excursão com Tom Pasmore. Todo tipo de coisas incríveis acontecem. Há algum jeito de nós sairmos de carro?

— Claro — disse Fritz. — Posso pegar a chave de um dos carros.

— Melhor ainda, eu e você vamos pegar as chaves, para que todos vejam que ainda estamos nos divertindo, e Tom irá caminhar ao redor do lago e subir até as caixas de correio. Lá nos encontraremos.

— Não preferiam ficar sozinhos e curtir?

— Oh, Tom tem alguma outra coisa em mente — disse Sarah.

Tom gelou por dentro.

— Você arranjou um jeito de me trazer aqui, mas... — ela franziu a testa. — Está com uma péssima aparência. Parece alguém que levou um tiro há uma meia hora. O que fez nessas duas semanas?

— Não sei se posso falar sobre isso agora. Descobri algo, mas não sei o que fazer a respeito.

— Bom, nos encontre lá em cima nas caixas de correio dentro de meia hora. Isso lhe dará tempo para pensar.

Puxou Fritz pela mão e o levou para a porta.

— Alguém mais atirou em você? — Fritz perguntou, sendo rebocado por ela.

Tom deu de ombros.

— Ele leva uma vida muito excitante — comentou Sarah, puxando Fritz para a porta.

Eles saíram e Sarah se encostou na tela, protegendo os olhos para vê-lo.

— Devo ficar preocupada com você?

— Verei você em meia hora.

— Se não estiver lá, vou ligar para Nancy Vetiver pedindo uma consulta.

Ele acenou e ela lhe mandou um beijo antes de sair puxando Fritz pelo portão até a trilha. Tom os ouviu falando. Fritz fazendo perguntas inúteis e Sarah dando respostas elípticas como saques de tênis, enquanto se dirigiam para o complexo. Quando já estavam fora do alcance da audição, ele subiu para seu quarto e pegou as anotações na prateleira do armário.

Tom sentou-se à mesa de xadrez e leu tudo de novo. Agora ele viu Barbara Deane se escondendo por trás das árvores perto da cabana dos Thielmans. Barbara jogando pedregulhos numa janela e se apoderando da arma que o cuidadoso Arthur Thielman deixara sobre uma mesa... Ele havia comido na mesa dela! Andara em seu carro! Dissera que ela podia dormir no chalé!

Quando tinha dez minutos para subir a colina até as caixas de correio, Tom dobrou o chumaço de anotações ao meio, e tentou enfiá-lo num bolso traseiro de seu jeans. Não caberiam. Alguma contradição ainda clamava para ser vista. Pôs as anotações de volta na prateleira do armário, com a sensação de que a resposta pularia em cima dele se pudesse examinar os papéis mais uma vez.

Tom seguiu o longo caminho ao redor do lago, mastigando suas preocupações. Ao atingir o topo da colina, não guardava memória de ter subido a trilha.

Sentou-se no banco e esperou por Sarah e Fritz, que vieram no Lincoln alguns minutos depois. Fritz estava dirigindo; Sarah estava ao seu lado no banco da frente

— Entre — ela disse. — Esta é nossa reunião. Você não pode parecer tão triste.

Sentou-se ao lado de Sarah, que o envolveu com um abraço.

— Agora não vamos fazer nada que possa embaraçar ou ofender Fritz, mas você precisa ser animado. Então vamos dar umas voltas de carro e esquecer essa confusão horrorosa na qual você se meteu. Não vamos nem mencionar que eu vou — hipoteticamente — casar com Buddy Redwing.

— Tudo bem.

— Embora alguém deva concordar que foi ótimo da minha parte ter a idéia de prometer noivar.

— Mas por que você fez isso? — perguntou Tom.

— É, por quê? — repetiu Fritz.

— Porque acalmou todo mundo imediatamente. E Buddy parou de planejar como ia fazer picadinho de você. A partir do momento que você tem a segurança de estar prometida em noivado, esquece tudo sobre rivais e volta às suas velhas ocupações. Tudo que tenho a fazer é sentar numa porção de jantares, e ouvir Buddy dizer como vai ser legal quando eu me mudar para o Arizona. Nosso noivado vai ser oficializado no próximo verão. Só que não vai. Quando voltar para casa no Natal, vou dizer à minha mãe que eu não posso continuar com isso. Todo mundo vai culpar a influência de Monte Holyoke, e vai ser muito mais fácil lidar com isso do que seria aqui.

Ninguém disse nada, e Sarah disse:

— Eu acho.

— Por que me sinto tão merda? — disse Fritz. — Talvez devesse ter continuado na escola de verão.

— Bom, estou feliz que você não tenha continuado lá.

— É, eu sei por quê — Fritz se lamuriou.

— É uma confusão horrorosa? — perguntou Sarah. — Ou é apenas uma pequenina que estamos insuflando até ficar enorme?

— Ela sempre fala assim? — perguntou Fritz, se inclinando para ver Tom.

— Acho que não — respondeu Tom.

— Realmente acho que é apenas uma pequena confusão que parece uma enorme.

— Acho que nunca alguém decidiu não se casar com um dos meus parentes — disse Fritz. — Normalmente, é o contrário.

— Bonito. Isso é muito bonito. — disse Sarah.

Ela puxou o braço que estava em volta de Tom. Ficou parada, silenciosa, por um momento. Ele levou um segundo para perceber que ela estava chorando.

Fritz se inclinou para frente e olhou de novo para Tom. Seu rosto havia ficado vermelho.

— Não chore, Sarah — disse ele. — Conheço Buddy. Até gosto de Buddy. Mas, como disse para Tom, não acho que ele vá sair de si ou qualquer coisa assim.

— Gosto dele também — disse Sarah. — E, acredite em mim, sei do que você está falando.

Ela limpou os olhos, e Tom disse:

— Você gosta?

— Como você acha que entrei nessa? Claro que gosto dele, pelo menos quando ele não está bebendo ou tomando aquelas pílulas idiotas. Só não gosto dele tanto quanto gosto de você.

Ela pôs o braço em volta de Tom novamente, e disse:

— Isto não está parecendo muito um passeio.

— Vamos dar uma olhada no Lago da Águia. A cidade, quero dizer. — Fritz anunciou, tomando a Rua Principal. — Tenho vindo aqui toda minha vida, e nunca estive lá antes.

— Claro que não — disse Sarah. — “Lago da Águia é um lugar fora dos negócios da família. Tive mil oportunidades de investir lá em cima, mas declinei de todas.”

— “Nunca foi minha intenção macular aquele lugar com dinheiro” — Fritz disse numa surpreendente imitação da voz do tio.

— “Podíamos facilmente torná-lo parte de Wisconsin” — disse Sarah. “Mas não pusemos um centavo no Lago da Águia.”

Ela agora estava sorrindo.

— É como ele diz. Claro que você nunca viu a cidade. Você colocaria um centavo lá, e Ralph Redwing viria, despertado como um vampiro que, de seu caixão, ouve alguém rastejar por cima dele segurando uma garrafa de água benta e uma estaca de madeira.

Fritz soltou uma risadinha ao ouvir a blasfêmia.

— Esperem um pouco! — disse Tom. — Entendi! Acabo de entender!

— Bem, lá vamos nós — disse Sarah. — Algo também estava me preocupando, mas você não reagiria dessa maneira sobre isso.

— Eu sei onde colocaram o negócio. Deus, eu realmente sei onde está.

— Que negócio?

— Isso sim soa como uma excursão.

— Oh, meu Deus, eu até sabia que isso ia acontecer — foi por isso que quis trazer todas aquelas anotações.

Ele viu a expressão de horror no rosto de Sarah e disse:

— Anotações diferentes. Tudo que tenho a fazer é lembrar o nome da rua!

— Do que ele está falando? Daquela porcaria toda que ele escreveu?

Tom começou a olhar para fora pela sua janela. O carro estava rastejando pela Rua Principal através do tráfego pesado. Pessoas bronzeadas com camisetas e viseiras enchiam as calçadas. Passaram pela Rua do Bordo, que não era a certa. Adiante, viu a Rua Tamarak, que também não era a certa.

— Começava com S. Pensem em nomes de rua que começam com a letra S.

— Rua Suspeita.

— Rua Suruba.

— Buddy diria assim.

— Nomes de ruas!

— Rua Sátiro. Rua Sublime. Sevens! Onde moro!

— Desisto — Fritz disse.

— Rua Season.

— Ah! — Tom disse, e a beijou.

— Peguei?

— Pegou! — ele disse, e a beijou de novo. — Você é brilhante.

— Era realmente Rua Season?

— Era Rua Summers. Tudo o que temos que fazer agora é encontrá-la.

Fritz protestou, argumentando que não poderia encontrar uma rua numa cidade na qual nunca estivera, e Tom respondeu que era uma cidade pequena, tudo o que precisavam fazer era dirigir um pouco e acabariam passando por lá.

— Do que se trata, afinal?

— Direi depois que chegarmos ao lugar. Se eu estiver certo.

— Não tem a sensação de que ele está certo? — Sarah comentou.

— Não. Tenho a sensação de que vou me arrepender do que estou fazendo.

— Vai ser um herói, Fritz — Tom disse. — Espera. Diminua um pouco.

Tom vira o editor do jornal caminhando na calçada. Pôs a cabeça para fora da janela.

— Sr. Hamilton! Sr. Hamilton!

Chet Hamilton olhou por cima do ombro, e em seguida olhou para a rua. Tom chamou pelo seu nome mais uma vez e acenou, e o editor o viu, acenando de volta.

— Como vai a pesquisa? Está tendo um bom verão?

— Ótimo — gritou Tom. — Pode nos dizer como achar a Rua Summers?

— Rua Summers? Vejamos. É um pouco afastada do centro. Siga direto até a praça da cidade, pegue a primeira à direita, a segunda à esquerda, cruze os trilhos do trem, passe pela Autêntica Aldeia Índia, e você vai chegar lá direitinho. São uns seis ou sete quilômetros.

Olhava para Tom com curiosidade, como faziam algumas pessoas na calçada.

— Não há muita coisa para lá.

Tom agradeceu e tirou a cabeça da janela.

— Pegou? — perguntou para Fritz.

— Primeira à direita depois da praça da cidade, segunda à direita, trilhos do trem, Índios — disse Sarah. — O que pretendemos achar, quando chegarmos? — Um monte de propriedades roubadas.

— Quê? — Fritz gritou.

— É meu garoto! — disse Sarah.

— Que propriedade roubada? — Fritz exigiu saber.

Tom lhe contou sobre os roubos que vinham sendo cometidos nas imediações do Lago da Águia e outras cidades de veraneio.

— Se você sai das casas das pessoas com tanta coisa, vai precisar de um lugar para guardar até que encontre alguém que compre de você. Acho que eles demorariam para se livrar daquilo tudo, e portanto precisavam de um lugar grande.

Passaram pela praça da cidade e pela delegacia de polícia. Passaram pelos sinais na periferia da cidade, e Sarah disse:

— Vire na primeira à direita.

Fritz deu uma guinada com o carro e dobrou numa rua de mão dupla. Primeiro passaram por uns barracos com quintais cheios de pneus carecas de automóveis. Filhotes grátis, dizia uma placa com letras apagadas pela chuva. Os barracos ficaram cada vez mais espaçados, e a terra começou a ficar vazia. Árvores compridas margeavam um campo barrento. Ao longe, uma figura estática movia-se em direção a uma fazenda.

— Fritz, seu tio jamais compraria ou alugaria nada por aqui. Na verdade, ele gosta de declinar de negócios aqui, mesmo quando são vantajosos, por causa da forma como o jornal local tratou a família.

— Bem, aqui está a primeira à esquerda.

— Estou vendo — Fritz grunhiu, e dobrou outra rua de mão dupla.

Outra seqüência de terrenos barrentos, estes agora delimitados por cercas de madeira. Passaram por uma grande placa branca na qual se lia Três quilômestros para a autêntica aldeia índia.

— E então? — perguntou Fritz.

— Há dois anos, as Empresas Redwing alugaram uma loja de máquinas na Rua Summers. Li numa coluna da Gazeta do Lago da Águia no meu primeiro dia aqui.

— Uma loja de máquinas? — perguntou Fritz.

— Era um edifício vazio. Eles provavelmente o alugaram por cem dólares por mês, ou algo assim.

Sarah deixou escapar um “Oh!”

Fritz resmungou. Pôs a testa na parte de cima do volante.

— É Jerry — Sarah disse, numa compreensão súbita.

— Provavelmente Jerry e seus amigos não sabiam que o jornal listava coisas assim. Mas não teriam se importado mesmo se soubessem. Sabiam que nenhum Redwing leria. E, por outro lado, o nome os protegia. A polícia nunca suspeitaria que a Empresa Redwing estivesse envolvida com uma onda de pequenos roubos.

Vindo de parte alguma, indo para parte alguma, um par solitário de trilhos de trem cruzava a rua. O Lincoln passou por cima deles.

Quinhentos metros depois, num terreno vazio, tendas indígenas esfarrapadas circulavam um edifício baixo e sem janelas. Suas tábuas eram rachadas; o teto, coberto de vegetação. As coberturas das cabanas haviam se soltado e caído, deixando espaço aberto para o crescimento de ervas amarelas. Ninguém disse nada enquanto passavam por ali.

Mais cem metros depois, uma rua intersectava a deles. Uma grande placa metálica de rua, quase surrealista em meio ao vazio, anunciava a Rua Summers. A rua depois do ponto de ônibus abandonado não era identificada de forma alguma.

— Onde é então? — perguntou Fritz.

Sarah apontou. Bem no fundo à direita, quase invisível contra um muro espesso de árvores, erguia-se um edifício de concreto pintado em marrom no fim de um estacionamento vazio.

Fritz dobrou na Rua Summers, dirigindo relutantemente para o edifício.

— Mas por que eles cometeriam furtos?

— Estão entediados. Gostam da sensação de estarem um pouco na corda bamba.

O grande carro entrou no estacionamento. De perto, a fábrica parecia a delegacia que ficava perdida num canto da praça central do Lago da Águia: precisava de outro prédio que o completasse.

— Não vou sair do carro — Fritz disse. — Pra falar a verdade, acho que devemos sair daqui agora mesmo e ir nadar no lago.

Ele olhou para Tom, continuando:

— Não gosto nada disso. Não devíamos fazer isso.

— Eles não deviam estar fazendo isso — disse Tom.

— Rápido! — manifestou-se Sarah.

Tom saiu do carro e caminhou até a frente da fábrica. Sobre a porta um cartaz rodado a estêncil dizia irmãos pryzgoda ferramentas e matrizes. Inclinou-se para a frente e espiou através de uma janela ao lado da porta. Era um escritório que, a despeito de uma cadeira verde de braços encostada numa das paredes, estava vazio. Alguns pedaços de papel estavam caídos no chão.

Tom se virou e fez sinal com os ombros. Fritz fez sinal para que voltasse para o carro, mas Tom deu a volta até o lado do prédio, onde uma fileira de janelas reforçadas estendia-se no alto da parede. Um pouco da tinta marrom havia se separado de forma limpa do concreto; pendiam da parede como cera seca de vela. As janelas ficaram mais baixas, atingindo o nível de seu queixo. Tom olhou para a primeira delas, vendo apenas sombras geométricas. A maior parte do interior estava repleta de caixas e coisas não identificáveis empilhadas por cima delas.

Tom colocou as mãos nos lados da cabeça e se curvou para bem perto da janela. Um dos objetos em cima da primeira fileira de caixas tinha a frente coberta por tecido marrom e era contornado por madeira escura. Por cima dele, meio perdido na escuridão do alto da sala, havia outro objeto idêntico. Afinal os reconheceu: alto-falantes de aparelhagem de som. Tom virou a cabeça para sorrir para Fritz e Sarah. Fritz balançou a mão em sua própria direção novamente: Vamos!

Tom foi até a janela seguinte na fila, flanqueou o rosto com as mãos e se curvou para a frente. Sustentando a fileira de caixas, os rostos de Roddy Deepdale e Buzz Laing olharam para ele das cadeiras nas quais haviam sido pintados por um homem chamando Don Bachardy. Tom baixou as mãos e se afastou da janela. Nesse momen­to, uma figura superdesenvolvida, num temo cinza pequeno demais para conter uma barriga do tamanho de uma melancia, veio de trás das caixas, chacoalhando alguma coisa numa caixa de papelão e olhando atentamente para ela como um minerador de ouro. Tom pulou para longe da janela. Uma fileira de retângulos brancos refletiu nos óculos de Nappy assim que ele olhou para a frente.

Tom se abaixou para evitar as janelas e correu na direção do carro. Jogou-se pela porta aberta. Fritz espalhou poeira e pedras com os pneus traseiros, gritando: “Eles viram você! Merda!” O carro disparou para a frente. Tom esticou-se para a porta aberta e a fechou enquanto seguiam pela Rua Summers. “Abaixe-se”, Tom disse para Sarah, que se curvou para baixo do painel. Tom escorregou no assento e virou a cabeça para olhar pela janela traseira. Fritz pisou fundo no acelerador. Os pneus do Lincoln guincharam. Nappy LaBarre deixou as portas da frente do prédio escancara­das e correu pesadamente pelo estacionamento com suas pernas curtas. Agitou os braços pequenos e grossos, gritando alguma coisa. Num segundo, a parede de árvores o apagou.

— Ele nos viu — lamuriou Fritz. — Ele viu o carro! Pensa que não sabe quem somos nós? Ele sabe quem somos nós.

— Está sozinho — disse Tom, enquanto ajudava Sarah a se sentar reta novamente. — Não havia nenhum telefone lá. Acho que não.

— Quer dizer que ele não pode chamar Jerry — disse Sarah.

— Acho que estava colocando algumas das coisas em caixas, para sua próxima viagem. A não ser que volte a pé, vai ter que esperar que Jerry venha pegá-lo.

Fritz virou à esquerda em outra rua sem placa, tentando encontrar o caminho de volta para a cidadezinha e a rodovia.

— As Novas Aventuras de Tom Pasmore — Sarah disse.

— Quero dizer uma coisa — anunciou Fritz. — Não tenho nada a ver com isso. Tudo o que quero é voltar para o lago, tá? Nunca olhei por janelas, nunca vi nenhum material roubado... Acho que nem vi Nappy.

— Ah, qualé! — disse Tom.

— Tudo o que vi foi um cara gordo.

— Fale por você — disse Tom.

— Meu tio Ralph não é um cara comum. Lembre-se que eu disse isso, tá? Ele não é um cara comum.

Fritz dirigiu pela estrada acidentada, cerrando os dentes. Dobrou à direita numa estrada de três vias marcada 41 e seguiu por um pedaço de floresta. Árvores grossas, nem carvalhos nem bordos, mas alguma variedade retorcida e escura que Tom desconhecia, margeavam a estrada. Estavam tão próximas umas das outras que seus troncos quase se tocavam. Fritz rangeu os dentes, produzindo um som que soava como arranhão em ferro. Deram novamente com uma região desolada.

— Não vi Nappy.

Houve outro grande intervalo era silêncio. Fritz chegou a um cruzamento, olhou para os dois lados, e pegou a esquerda de novo. Em ambos lados, terrenos de aparência barrenta surgiam através das cercas como palitos de fósforo contra a floresta densa.

A estrada chegou a um aclive e desceu numa rodovia de asfalto brilhante com quatro vias. Passaram por uma placa onde lia-se Lago Deepdale — Propriedade Deepdale. Fritz rangeu os dentes novamente, cantou os pneus e virou em direção ao Lago da Águia.

— Não sei com que você está tão irritado — disse Tom.

— Você está certo. Não sabe. Não tem a mais leve idéia.

Dobrou na trilha estreita entre as árvores que levava para o lago. Quando chegaram ao barranco, parou o carro.

— Foi aqui que o pegamos, e é aqui que você desce.

— Vai ligar para a polícia? — Sarah perguntou a Tom.

— Saia do carro se quiser falar assim — disse Fritz.

— Não seja criança, Sarah lhe respondeu.

Tom abriu a porta e saiu. Não fechou a porta.

— Claro que vou ligar para eles — disse para Sarah. — Essas pessoas vêm roubando casas há anos.

Fritz ligou o motor e Tom se curvou para dentro do carro. Olhou para o perfil furioso de Fritz.

— Fritz, se você soubesse que teria de ver alguém de novo, logo depois que você tivesse descoberto algo que o deixasse completamente certo de que essa pessoa cometeu um assassinato, o que faria? Diria alguma coisa?

Fritz continuou olhando diretamente para a frente. Seus dentes produziram o som de arranhão em ferro novamente.

— Não pode tentar esquecer?

Sarah deu a ele seu sorriso ansioso.

— Eu o verei à noite. Vou sair de algum jeito.

Fritz engrenou a marcha e Tom acenou para Sarah. Fritz empurrou o acelerador. O carro deixou Tom em pé ao lado da estrada. Depois de uns dois segundos, Sarah . esticou a mão para fechar a porta. O carro ganhou velocidade enquanto subia o aclive. Depois desapareceu.

 

Assim que voltou à cabana, Tom foi ao escritório, onde encontrou o número do Departamento de Polícia do Lago da Águia na lista telefônica.

Uma voz masculina atendeu. Tom pediu para falar com o chefe Truehart.

— O chefe está fora da delegacia até a noite — disse a voz. Tom viu Spychalla se recostando na cadeira do patrão, mexendo os músculos para fazer o cinto ranger.

— Pode dispor de algum tempo?

— Que é? — Spychalla perguntou.

— Quero lhe dar uma informação — disse Tom. — A aparelhagem de som e tudo mais que foi roubado este ano está estocado numa velha fábrica de ferramentas e matrizes na Rua Summers. Há um nome polonês em cima da porta.

— Quem é você?

— Um dos caras ainda está lá. Se vocês forem à Rua Summers podem pegá-lo.

— Por estar sozinho no momento, não estou apto a responder a nada, exceto emergências. Mas se você deixar seu nome e me disser como conseguiu essa informação...

Tom tirou o fone do ouvido e o fitou com frustração. Ouviu a voz de Spychalla dizer:

— É aquele garoto do Lago da Águia, não é? O que pensa que a mãe do chefe é ladra.

Colocou o fone na boca e disse:

— Não, meu nome é Philip Marlowe.

— Onde o senhor está, sr. Marlowe?

Tom bateu o telefone. Sentiu vontade de subir para o quarto e se esconder embaixo da cama.

Trancou a porta da frente, caminhou toda a extensão da cabana e fechou a porta do pátio. Andou nervosamente em torno da sala de estar por algum tempo, e quando a casa fez seus ruídos, olhou pelas janelas da frente para ver se Jerry havia aparecido no portão. Voltou à sala de estar e ligou para Lamont von Heilitz, que não estava em casa.

O telefone tocou assim que ele atingiu o fim da primeira página de uma carta para von Heilitz. A caneta escorregou pela folha, deixando rabiscos. Tom pousou a caneta e olhou para o telefone. Colocou a mão no aparelho, mas não ergueu o fone. Parou de tocar. Começou a tocar novamente assim que ele tirou a mão do aparelho, e tocou dez vezes até parar de novo.

A lista tinha dois Redwings: Ralph, na cabana Gladstone, Trilha da Águia, e Chester, na cabana Palmerston, Trilha da Águia. Chester era o pai de Fritz. Tom discou o número e esperou três toques até que uma mulher atendeu. Reconheceu a voz da mãe de Fritz, Eleanor Redwing, e pediu para falar com Fritz.

— É você, Tom? Deve estar se divertindo tremendamente.

— Oh, claro. Tremendamente.

— Bem, sei que Fritz estava querendo subir para ficar com você desde que você veio para cá. Claro que as grandes novas por aqui são sobre Buddy e Sarah. Todos achamos maravilhoso. Ela vai ser boa para ele.

— Maravilhoso. Tremendamente.

— E é claro que ela tem uma queda por ele desde a quinta série. E eles formam um casal tão bonitinho. Vivem querendo estar a sós.

— Imagino que tenham muito o que conversar.

— Não acho que passem muito tempo falando. De qualquer forma, aqui está Fritzie. Tom, espero te ver aqui pelo complexo.

— Seria ótimo.

Logo depois Fritz estava no telefone. Não disse nada. Tom podia ouvir sua respiração no fone.

— O que está acontecendo aí? — Tom perguntou.

— Nada.

— Ninguém disse nada sobre nos ter visto?

— Foi o que disse, nada.

— Onde estão todos? Viu Jerry ou mais alguém depois que voltou?

— Faz uns cinco minutos que minha tia e meu tio foram para Hurley no Cadillac com Robbie. Vão passar a noite com alguns amigos.

— Viu Nappy?

— Não está por aqui. Jerry ainda está fora com o Buddy, eu acho. Levaram Sarah para ver um barco novo.

Fritz respirou um pouco no telefone e disse em seguida:

— Talvez não vá acontecer nada.

— Alguma coisa tem que acontecer, Fritz.

— Então... ligou para... ah, ligou para quem você ia ligar?

— Não dei nomes. Só disse para darem uma olhada na fábrica.

— Não devia ter feito isso. — Fritz respirou profundamente perto do telefone por alguns segundos. — O que disseram?

— Não pareceram muito animados?

— Tá. Vai ver não acreditaram. Vou dizer que só estava passando de carro por ali. Ninguém viu nada.

— Tentou me ligar há alguns minutos?

— Tá brincando? Olha, não posso falar mais.

— Quer vir aqui depois, nadar um pouco?

— Não posso falar agora.

Fritz desligou.

Tom andou de um lado para outro do chalé por mais vinte minutos. Depois pegou um livro, destrancou a porta dos fundos e foi para a varanda.

Empurrou a espreguiçadeira para trás, se esticou e tentou ler. A luz do sol batia na página, ofuscando a impressão. Tom ergueu o livro para bloquear o sol. O calor se infiltrava por sua roupa e aquecia-lhe a pele. Uma luz brilhante e dourada envolvia todo seu corpo. Não conseguia manter a mente no livro. Não levou muito tempo para que suas pálpebras fechassem. O livro caiu sobre seu peito, tornando-se um pequeno pássaro branco que ele segurava nas mãos. Adormecera.

Uma campainha insistente como um alarme o acordou. Pensou por um instante que estava em Brooks-Lowood. O corpo estava lento e pesado, mas ele tinha de comparecer à próxima aula, tinha de se levantar e se mover... Sentou-se. O calor do sol ardia sua testa, o rosto estava ensopado pela transpiração. O telefone continuava tocando. Tom se moveu automaticamente em direção à porta para atendê-lo. Parou ao colocar a mão na maçaneta. O telefone tocou mais duas vezes. Tom abriu a porta e foi para a escrivaninha.

Deve ser o vovô, pensou.

Pegou o telefone e disse alô.

Houve um instante breve de silêncio. Um clique foi seguido pelo sinal de linha.

Tom se levantou depressa, trancou a porta dos fundos, atravessou a sala de estar, saiu e trancou a porta da frente a chave. Desceu os degraus e atravessou a trilha para arrastar o galho com folhas de cima dos sulcos feitos pelo carro de Barbara Deane, o contornou e puxou o galho de volta. Passou para trás da vegetação rasteira depois da trilha, e cobriu a passagem com pequenos galhos. Agachou-se atrás da base de um carvalho. Através de brechas nas folhas era possível ver a escada na frente da cabana, metade da varanda, e um pedaço da trilha que levava ao complexo.

Jerry Hasek veio pela trilha segundos depois. Usava o terno cinza e o boné de motorista. Seus punhos estavam cerrados. Subiu os grandes degraus dois por vez, atravessou a varanda e bateu à porta de tela. Jerry girou nos calcanhares e agitou várias vezes os punhos, rapidamente. Seu rosto exibia uma expressão preocupada que era familiar para Tom e nada significativa. Era apenas o jeito com que Jerry parecia. Abriu a porta de tela e bateu violentamente na porta de madeira. O corpo de Jerry dizia muito mais que o rosto. Seus movimentos eram rápidos e agitados. Os ombros pareciam rígidos e encurvados, como se houvesse desenvolvido camadas adicionais de músculos e pele.

— Pasmore! — gritou. Bateu novamente na porta.

Jerry recuou um passo e fitou a porta.

— Vamos, sei que está aí! Vamos, Pasmore!

Segurou a maçaneta e a virou. Sem conseguir nada, balançou a porta.

Foi até uma das janelas e espiou o interior da forma como Tom olhara a fábrica, com as mãos em cunha ao redor do rosto.

Bateu na janela com a palma da mão. O vidro tremeu.

— Vamos! Fora!

Jerry desceu os degraus, olhando para cima como se esperasse ver Tom saindo por uma janela. Pôs as mãos nas cadeiras. O ombro e os músculos se mexeram por baixo do tecido do terno. Olhou de um lado até o outro, expirou. Olhou novamente para a frente da cabana.

Subiu novamente os degraus, abriu a porta de tela e bateu novamente várias vezes na porta.

— Tem que falar comigo — ele disse, falando com o tom de voz que usaria para uma pessoa com problema auditivo. — Não posso te ajudar se você não falar comigo.

Encostou a cabeça contra a porta e disse: — Vamos!

Impeliu a si mesmo para longe da porta e desceu os degraus aos pulos. Todo seu corpo rígido parecia energizado, eletrificado, como se você fosse levar choque se o tocasse. Jerry foi até a lateral da cabana e contornou as árvores para chegar aos fundos.

Depois de dois minutos, durante os quais deve ter batido na porta dos fundos e tentado entrar, Jerry reapareceu. Vinha pela trilha com o boné nas mãos e — desta vez — mais concentração que preocupação no rosto largo. Saiu de trás dos carvalhos e se virou para encarar o chalé.

— Seu babaca — disse, e virou para caminhar de volta para o complexo.

Quando Jerry sumiu, Tom deixou o esconderijo e subiu os degraus. Seus passos ressoaram na madeira da varanda. Enfiou a chave na fechadura, sentindo uma presença rude e perturbada no ar, o fantasma de Jerry. Entrou e trancou a porta.

No escritório, discou para a telefonista e pediu o número do avô em Mill Walk.

Pegou o fone ao primeiro toque. A voz de Kingsley lhe informou que essa era a residência de Glendenning Upshaw.

— Kingsley, aqui é Tom. Posso falar com meu avô, por favor?

— Mestre Tom, que surpresa agradável! Está se divertindo no lago?

— É um lugar e tanto. Pode chamá-lo por favor?

— Só um minuto. — disse Kingsley, pousando o fone com um baque ruidoso que sugeria que ele o tivesse deixado cair.

Demorou muito mais que um minuto. Tom ouviu vozes, passos, uma porta fechando. Passaram segundos, seguidos por mais segundos. O criado finalmente voltou.

— Receio que ele não esteja disponível.

— Não está disponível? O que isso significa?

— O sr. Upshaw teve de sair inesperadamente, mestre Tom. Não posso precisar quando vai estar de volta.

— Saiu de carro?

Kingsley deu uma pausa de um segundo e disse: — Sim, acredito que sim.

— Talvez tenha ido visitar mamãe.

— Ele sempre nos informa quando planeja não jantar em casa — disse Kingsley, com um tom de voz e uma linguagem que pareciam mais duros do que o habitual.

Por um instante, nem o velho criado nem Tom disseram nada.

— Ele realmente não está aí, Kingsley? Ou apenas não está disponível?

O criado disse, depois de uma pausa:

— É como lhe disse, mestre Tom.

— Tudo bem. Diga-lhe que preciso falar com ele — disse Tom, e ambos desligaram em seguida.

 

Parecia que a tarde interminável seria seguida por uma noite interminável. Tom se deu conta de que não comera nada o dia inteiro. Foi até a cozinha e abriu a geladeira. A maior parte dos alimentos que Barbara Deane trouxera para ele ainda estava nas prateleiras, conservados em embalagens de supermercado. Já ingeri a comida dela antes, ele pensou, e não morri.

Mexeu dois ovos numa tigela, passou manteiga em dois pedaços de pão integrai, cortou fatias de salsicha de alho e as jogou na frigideira com os ovos. Virou as extremidades do ovo solidificado sobre a salsicha, e depois de alguns segundos, virou a coisa toda num prato. Comeu na cozinha e pôs a frigideira, a tigela, o prato e os talheres na pia, deixando água cair sobre eles.

Lá fora, a luz do sol ainda caía sobre o lago, mas a sombra da cabana cobria da varanda ao pier. Tom fechou as cortinas e foi para a escrivaninha, ligar para a polícia.

— O chefe Truehart já voltou?

— É o sr. Marlowe? — perguntou Spychalla. — De onde está ligando agora, se. Marlowe?

Tom bateu o telefone e ligou para a mãe. Não, o pai dela não aparecera naquela tarde. Não, ela não sabia onde ele podia estar. Estava muito ocupado com os novos planos do Clube dos Fundadores; ela não o via há vários dias. Victor estava fora da cidade, fazendo alguma coisa para os Redwings no Alabama.

— Está vendo todos os seus amigos?

— Ando muito ocupado.

Tom sentou-se à escrivaninha com o telefone à sua frente, observando a sombra da cabana deslizar pela varanda e começar a sombrear o pier. Peixes pulavam silenciosamente no lago. O ar ficou cinza. Dentro, parecia noite.

Quando o céu começou a escurecer, colocou um suéter e foi até a varanda, trancando a porta. Acesas, as janelas dos Langenheims refletiam na água em linhas amarelas e estreitas. Tom andou rápido ao redor da parte baixa do lago sob um ascendente luar prateado. A velha cabana parecia uma casa assombrada de filme, como a casa de Norman Bates, em Psicose. Pulou para a doca cheia de tocos e caminhou até a ponta, onde se sentou na madeira fria para olhar as janelas do clube.

Os Redwings e seus convidados estavam sentados numa mesa comprida logo no início do terraço. Tom podia ver as costas das pessoas no lado da mesa de frente para a janela: Sarah Spence, Buddy, Fritz, Eleanor Redwing. De frente para eles, Tom apenas podia ver as cabeças da mãe de Sarah, do pai de Fritz, e Katinka Redwing. Ralph Redwing e Bill Spence estavam sentados cada um numa cabeceira da mesa. Marcello, com a casaca do smoking desabotoada sobre o peito, passava as páginas gigantescas dos cardápios. Quando chegou perto de Katinka, se abaixou para sussurrar-lhe no ouvido. Em resposta, Katinka fez uma cara felina. Buddy Redwing pôs a mão nas costas de Sarah e a acariciou da nuca até a cintura.

Marcello trouxe duas garrafas de champanhe num balde prateado. Ralph Redwing e Bill Spence fizeram brindes. O pai de Fritz fez um brinde. As mãos de Buddy, gordas como uma estrela-do-mar, circularam lentamente pelas costas de Sarah. Fritz fez um brinde, ao qual Tom adoraria poder ouvir. Buddy empurrou a cadeira para trás e se levantou para fazer um discurso. Marcello circundou a mesa, enchendo taças. Todos prestavam atenção em Buddy. Riam, olhavam-no solenemente, riam novamente. A sra. Spence agitou sua taça no ar por mais champanhe. Quando Buddy se sentou, Sarah o beijou e todos aplaudiram. Ela colocou os braços em volta do pescoço de Buddy. O pai de Fritz disse alguma coisa. Todos riram novamente.

Eles fizeram os pedidos. Vieram mais duas garrafas de champanhe. A estrela-do-mar marrom e gorda rastejou novamente pelas costas de Sarah. O rosto de Sarah resplandecia cada vez que ela olhava para Buddy.

Era assim que funcionava, pensou Tom. Os Redwings engoliam sua comida, bebida, posição, outras pessoas — devoravam moralidade, honestidade, escrúpulos. E todos os admiravam. Sarah Spence era incapaz de resistir porque todos eram.

Buddy agitava um garfo, falava, e Fritz o fitava com a expressão de admiração de um cãozinho. Uma versão mais adulta e ambiciosa da mesma expressão surgia no rosto da sra. Spence sempre que ela se voltava para Ralph Redwing. A mão direita de Sarah — uma estrela-do-mar mais esbranquiçada e viscosa — descansava entre as omoplatas do ombro de Buddy.

Sentado na doca, Tom os observou terminarem seu jantar. Houve mais duas garrafas de champanhe, café, sobremesas. Afinal todos se levantaram e desaparece­ram da janela. Poucos minutos depois, Tom os viu se movendo lentamente na trilha entre o clube e o complexo. Gritavam adeuses suficientemente altos para serem ouvidos através da água.

As janelas superiores do complexo se iluminaram. Uma luz acendeu no segundo andar da cabana dos Spences. Pássaros chamaram uns pelos outros. Um sapo mergulhou entre os juncos da margem mais estreita do lago.

Um carro foi ligado atrás do complexo. Depois, outro. Os fachos luminosos dos faróis atravessaram a trilha entre o complexo e o clube. Em seguida, reluziram entre as árvores. Um carro comprido, com os faróis apontados para baixo, contornou o clube. Circundou a outra margem do lago, e ao virar para subir a colina, Tom viu duas cabeças no banco da frente, uma morena, outra loura. Outro carro seguiu o cortejo. Este, também, com uma cabeça morena e uma cabeça loura no banco da frente.

As luzes da sala de jantar do clube foram apagadas. Faixas amarelas compridas sumiram da superfície do lago. Tom retornou a pé o longo percurso até a cabana.

Cortou caminho pelo gramado de Roddy Deepdale e chegou à sua doca pela margem. Sentou na madeira e balançou as pernas; tirou os sapatos. Sapatos nas mãos, caminhou até a varanda. Na escuridão, ajoelhou-se em frente à porta dos fundos. Com as pontas dos dedos, encontrou a fechadura. Inseriu a chave. Virou a maçaneta, abrindo a porta o mais lentamente possível. Do lado de dentro, fechou a porta e virou a fechadura. O luar frio cobria a mesa e desbotava as cores do tapete recurvado.

Tom entrou na sala de estar pela porta aberta. Agachou-se. Segurando a respira­ção, esgueirando-se para a grande sala, onde se manteve agachado e imóvel, atento para qualquer movimento. A sala de estar estava escura como uma caverna subterrânea. Tom esperou até se convencer de que estava sozinho. Levantou-se e deu outro passo para a sala.

O facho de uma lanterna acertou seus olhos, cegando-o.

— Se fosse você, também seria cuidadoso — disse um homem. — Fique onde está.

A lanterna se apagou. Instantaneamente, Tom curvou os ombros e correu para o escritório. Um abajur foi aceso.

— Nada mal — disse o homem.

Tom aprumou o corpo lentamente e se virou para encará-lo. Todo o ar abandonou imediatamente seu corpo. Ainda segurando o fio do abajur, e usando temo azul-escuro e luvas que combinavam com seu colete cinza de peito duplo, Lamont von Heilitz sorria para ele, sentado num sofá.

— Está aqui! — disse Tom.

O Sombra puxou o fio do abajur. A sala ficou escura novamente.

— É hora de termos outra conversa.

 

Tom avançou às apalpadelas. Esbarrou nas costas de uma cadeira, sentiu seu caminho ao redor dela, se sentou. Sua própria respiração soava tão alta quanto a de Buddy Redwing ao telefone naquela tarde.

— Quando veio para cá? Como entrou?

À medida que os olhos de Tom adaptavam-se à escuridão, a forma longilínea de von Heilitz tomava forma contra o sofá. A cabeça do detetive recortava-se como uma silhueta contra as cortinas detrás do sofá.

— Cheguei há mais ou menos uma hora, destrancando a fechadura. Suponho que não foi jantar no clube.

— Não. Fui para a sua doca e olhei para a sala de jantar através das janelas. Não queria que Jerry Hasek me encontrasse aqui. Queria saber o que está acontecendo — estou realmente contente por você estar aqui. Se pudesse enxergá-lo, diria que é ótimo rever você.

— Também estou satisfeito em vê-lo, pelo menos o máximo que posso. Mas lhe devo desculpas. Devia ter vindo antes. Queria que você descobrisse o máximo que pudesse, nas subestimei o perigo que você corria. Nunca pensei que atirariam em você pela janela.

— Então recebeu as cartas.

— Cada uma. Foram excelentes. Fez um ótimo trabalho, Tom, mas já é hora de voltar a Mill Walk. Partimos às quatro da manhã.

— Quatro da manhã!

— Nosso piloto precisa seguir seu plano de vôo e preparar tudo, senão sairíamos ainda mais cedo. Não podemos correr o risco de ficar mais uma noite aqui.

— Não acredita que foi um tiro perdido de caçador.

— Não. Foi um atentado deliberado contra sua vida. E você renovou as apostas indo àquela fábrica. Tudo o que quero agora é levar você para um lugar seguro e me certificar de que continuará vivo até pegarmos o avião.

— Como sabe sobre a fábrica? Nem mandei aquela carta ainda.

Von Heilitz não disse nada.

— Há quanto tempo está aqui? Não chegou há apenas uma hora ao Lago da Águia, não é?

— Achou que mandaria você para este covil de leões sozinho?

— Esteve aqui o tempo todo? Como recebeu minhas cartas?

— Algumas vezes ia pegá-las no correio, outras, Joe Truehart me trazia.

Tom quase saltou da cadeira.

— Então foi você que segui — era você com a lanterna.

— Quase me pegou também. Fui pegar algumas coisas na minha cabana, e já não enxergo à noite como antes. Vamos embora, certo? Devemos voltar, e quero ver mais de você do que aquele relance que tive quando chegou rastejando. Temos muito do que falar.

— Para onde vamos?

Von Heilitz se levantou.

— Você verá.

Tom observou a mancha escura do velho vindo em sua direção. Os cabelos brancos brilhavam ao luar.

— Aquela casa na clareira. A casinhola da sra. Truehart.

A figura alta à sua frente se inclinou para ele; o cabelo branco reluziu. Von Heilitz encolheu os ombros.

— Ela também deve querer lhe pedir desculpas. Não costuma assustar visitantes com um rifle, mas eu não queria que você soubesse que eu estava lá.

Ele apertou os ombros de Tom e endireitou o corpo.

Tom o seguiu até o escritório. À luz da lua, von Heilitz se voltou para ele e o fez entrar, sorrindo.

— Não consegui descobrir nada — disse Tom.

— Você foi minha maior descoberta. Fez tudo o que esperei que fizesse, e mais. Não esperava que você solucionasse nenhum assalto quando o mandei para cá.

— Tive um bom professor — disse Tom, sentindo que seu rosto corava.

— Mais do que isso — disse o velho. — Agora você vai abrir aquela porta, não vai?

Tom destrancou a porta dos fundos, e von Heilitz saiu. Tom o seguiu, ajoelhando-se para trancar a porta novamente.

Von Heilitz pôs a mão no ombro de Tom, deixando-a lá até que ele se levantasse. Não a retirou nem mesmo quando Tom afinal o encarou. Os dois ficaram parados ao luar por um segundo, olhando para o rosto um do outro. Tom ainda sentia o choque de prazer e alívio por reencontrar von Heilitz.

— Não acho que Anton Goetz tenha matado Jeanine Thielman. — Tom deixou escapar.

Von Heilitz balançou a cabeça e sorriu. Deu um tapinha no ombro de Tom antes de retirar a mão.

— Eu sei.

— Pensei — pensei que você ficaria zangado ou algo assim. Foi um de seus casos mais importantes — sei o que significou para você.

— Simplesmente foi meu maior erro. E é isso que significa para mim. Agora eu e você vamos acertar as coisas, depois de todo esse tempo. Vamos até a casa da sra. Truehart, para podermos falar sobre isso.

Von Heilitz deu um pulo perfeito da varanda e começou a andar na direção da margem. No chalé de Roddy Deepdale, levou Tom através do gramado para a trilha. Produziam sombras compridas idênticas à luz da lua. Nenhum deles disse palavra até chegarem ao início da trilha para a floresta, atrás da cabana dos Thielmans. Von Heilitz ligou a lanterna e disse enquanto entravam na floresta:

— A propósito, Tim Truehart prendeu seu amigo Nappy.

— Prendeu? Não achei que Spychalla lhe passaria o recado.

— Não teria se Chet Hamilton não tivesse ficado curioso sobre por que você estava perguntando como chegar à Rua Summers. Foi até lá de carro não muito depois que você, e chegou suficientemente perto para ver Nappy empilhando caixas do lado de fora. Ele apenas virou com o carro e foi até o telefone mais próximo. Spychalla não podia ignorar dois telefonemas.

— Mas e quanto a Jerry?

— Nappy ainda está alegando ser o único responsável pelos roubos. Vai mudar de idéia quando finalmente se tocar de que não vai passar menos tempo na cadeia se não denunciar os amigos. Spychalla está procurando por Jerry Hasek e Robbie Wintergreen, mas até agora não os encontrou. Aqui deve ser onde você se perdeu naquela noite.

O facho da lanterna iluminou troncos verde-amarronzados de aparência uni­forme. Moveu o facho levemente para a esquerda, e a trilha estreita, que seguia para o interior da floresta, reapareceu.

— Parece sim — disse Tom.

— Fiquei triste por ter deixado isso acontecer — disse von Heilitz seguindo a curva na trilha.

— Então por que fez?

— Eu lhe disse. Porque queria que você fizesse o que tinha de ser feito.

— Descobrir que Barbara Deane matou Jeanine Thielman?

A luz parou de se mover, e Tom por pouco não esbarrou no velho. Von Heilitz soltou uma gargalhada alta e explosiva que soou como “UÁ-RÁ!” Ele se virou e dirigiu a luz para o meio do peito de Tom. Mesmo na escuridão e com o rosto escondido por trás do brilho da luz, parecia estar suprimindo mais uma gargalhada explosiva.

— Perdão, mas o que faz você pensar isso?

Agora tão irritado quanto antes estivera aliviado, Tom disse:

— Olhei numa caixa que achei no armário dela. Entre vários artigos antigos que a acusavam de assassinato, encontrei dois bilhetes anônimos. Foram escritos por Jeanine Thielman.

— Meu Deus. O que diziam?

— Um dizia, “sei o que você é, e alguém tem que deter você”. O outro era alguma coisa como “Isso já foi longe demais — deve pagar por seus pecados.”

— Extraordinário.

— Acho que você não acredita que foi ela quem matou Jeanine Thielman.

— Barbara Deane nunca matou ninguém na vida. Acha que ela também matou Anton Goetz? O enforcou com sua própria linha de pesca?

— Ela podia ter feito. Devia estar sendo chantageada por ele.

— E ela por acaso estava esperando por ele em sua cabana para fazer um pagamento quando cheguei com as notícias de que eu o tinha acusado de assassinato.

— Bem, sempre achei essa parte um tanto confusa.

Ele não sentia mais raiva. Estava aliviado por não ter de pensar em Barbara Deane como uma assassina.

— Mas se não foi ele, e não foi Anton Goetz, então quem foi?

— Você me disse quem matou os dois — afirmou von Heilitz.

— Mas você acaba de dizer...

— Nas suas cartas. Não lhe disse que você fez tudo como eu esperava?

Von Heilitz baixou a lanterna. Tom o viu sorrindo para ele.

Alguma coisa está acontecendo aqui, pensou Tom. Alguma coisa que não entendo.

O detetive se virou para a frente e começou a andar rapidamente pela trilha.

— Não vai me dizer?

— Na hora certa.

Tom sentiu como se estivesse gritando.

— Há uma coisa que eu tenho de lhe dizer primeiro — von Heilitz falou enquanto seguia rapidamente trilha abaixo.

Tom apressou o passo para acompanhá-lo.

Von Heilitz não disse mais nada até que eles Unham chegado à clareira. O luar caía sobre a cabana de Truehart, drenando toda a cor das flores. O velho apagou a lanterna assim que Tom saiu da trilha para o gramado. Suas sombras se projetavam nítidas e alongadas sobre o solo prateado. O mundo inteiro estava negro, cinza, prateado. Von Heilitz cruzou os braços sobre o peito. Todas as linhas finas de seu rosto foram aprofundadas pelo luar. Sua testa estava franzida. Parecia uma pessoa a quem Tom nunca vira antes. Tom deteve o passo, subitamente incerto.

— Quero tanto fazer isso certo — disse von Heilitz. — Você nunca me perdoará se eu fizer errado, nem eu.

Tom abriu a boca, mas não conseguiu falar. Uma súbita e profunda sensação paralisou sua língua.

Von Heilitz olhou para baixo, tentando começar. Sua testa se contorceu de forma ainda mais alarmante. Quando falou, o que perguntou estarreceu Tom.

— Como é seu relacionamento com Victor Pasmore?

O garoto quase riu.

— Não nos damos bem. Não mesmo.

— Por que você acha que é assim?

— Não sei. Tem algum ódio de mim, acho. Somos muito diferentes.

— O que ele diria se soubesse que você e eu conhecemos um ao outro?

Ficaria furioso, acho. Me avisou para ficar longe de você.

Tom sentiu a mistura de tensão e seriedade do velho.

— Por que tudo isso?

Von Heilitz olhou para ele, para o gramado prateado e novamente para Tom. — Esta é a parte que tenho de fazer certo.

Respirou fundo.

— Encontrei uma jovem em 1945. Era muito mais velho do que ela, mas ela me atraía muito — muito mesmo. Aconteceu comigo algo que pensava que jamais aconteceria. Comecei a me sentir envolvido por ela, e à medida que a conhecia melhor, comecei a amá-la. Achei que ela precisava de mim. Tínhamos de nos encontrar secretamente porque o pai dela me odiava. Eu era o homem mais inapropriado que ela poderia ter escolhido, mas ela me escolheu. Naquela época, ainda viajava muito, mas comecei a recusar casos para não ter de abandoná-la.

— Está dizendo que...

Balançou a cabeça. Andou alguns passos e parou para olhar a floresta.

— Ficou grávida, e não me disse. Ouvi falar de um caso muito excitante, um que realmente me intrigava, e o peguei. Tínhamos decidido nos casar depois que voltasse do caso, e para diminuir o choque, aparecemos em público por uma semana. Fomos a um concerto juntos, a um restaurante, a uma festa dada por pessoas que não eram de nosso círculo, mas viviam em outra parte da ilha. Foi um alívio fazer coisas assim. Ela havia ficado mais forte, ou pelo menos pensei assim. Ela não me deixou falar com o pai dela, sabe? Ela disse que haveria tempo para isso quando eu voltasse.

Voltou o rosto novamente para Tom.

— Quando telefonei para ela, o pai não deixou que eu falasse com ela. Desisti do caso e voei de volta para Mill Walk no dia seguinte, mas eles tinham ido embora. Ela havia contado tudo a ele — mesmo que estava grávida. O pai a afastou de Mill Walk, e lhe comprou um noivo no continente. Ela... ela teve um colapso. Voltaram para Mill Walk, e o casamento foi efetuado em questão de dias. O pai ameaçou colocá-la num hospital para insanos se ela me visse novamente. Dois meses depois do casamento, deu à luz um filho. Acho que o pai subornou o escrivão para emitir um certificado falso de casamento. Daquele tempo em diante, Tom, nunca aceitei outro trabalho que me afastasse da ilha. Ela pertencia ao pai novamente. É possível que sempre tenha pertencido ao pai. Mas observei aquele garoto. Ninguém me deixaria vê-lo, mas eu o observei. Eu o amava.

— Então foi por isso que você me visitou no hospital.

Sentimentos muito fortes para serem reconhecidos o congelaram no gramado enluarado. Sentia como se o corpo estivesse sendo puxado para direções diferentes. Como se gelo e fogo estivessem sendo despejados em sua cabeça.

— Eu o amo — disse o velho. — Tenho muito orgulho de você e o amo, mas não mereço seu amor. Sou um mau pai.

Tom andou na direção dele, e von Heilitz cruzou o chão entre eles — de alguma forma — sem parecer mover-se. O velho tentou abraçar Tom, mas o rapaz permane­ceu rígido por um momento. Então algo rompeu dentro dele — algo como uma camada de rocha que possuíra a vida toda sem jamais tê-la notado — começou a soluçar. O soluço parecia vir de algum lugar sob a rocha, um ponto que nunca tocara. Pôs os braços em volta de von Heilitz, sentindo uma inacreditável leveza e vivência do ser, como se o mundo tivesse jorrado para dentro dele.

— Bem, pelo menos eu lhe disse. Estraguei tudo?

— Sim. falou muito.

— Tinha muito a dizer!

Tom riu, e lágrimas desceram por seu rosto, umedecendo o ombro do paletó de von Heilitz.

— Achei que você tinha.

— Vai levar um tempo para nós dois nos ajustarmos a isso — disse von Heilitz. — E eu queria que soubesse que acho que Victor Pasmore fez o melhor que pôde. Ele certamente não queria que você crescesse parecido comigo. Ele tentou lhe dar o que achava ser uma infância normal.

Tom recuou para olhar o rosto do velho. Não parecia mais uma máscara, mas extremamente familiar.

— Ele fez um ótimo trabalho, realmente, dadas as circunstâncias. Não deve ter sido fácil para ele.

A palavra mudara completamente, embora continuasse a mesma: a diferença era que agora ele podia entender, ou pelo menos começar a entender, detalhes de sua vida que haviam sido inexplicáveis, a não ser como prova de sua excentricidade e incompatibilidade.

— Oh. se você acha que você estragou tudo... — disse Tom.

Von Heilitz o interrompeu:

— Vamos entrar.

 

Menos de uma hora depois, Tom estava de novo sozinho no chalé, esperando. Quando disse a Lamont von Heilitz que queria voltar ao chalé para encontrar Sarah Spence, o velho deixou-o ir com relutância, com a promessa de que ele o esperaria do lado de fora à uma. Como a sra. Truehart já estava na cama, ele e o velho conversaram em vozes baixas sobre si mesmos, revivendo suas histórias. A conversa sobre Jeanine Thielman e Anton Goetz teria de esperar, assim disse von Heilitz. Havia muitos detalhes para serem passados a limpo, muitos pedaços de informação para juntar. Ele ainda não entendia muita coisa, e a compreensão levaria mais tempo do que dispunham.

— Temos pelo menos cinco horas de vôo — disse a Tom. — Tim Truehart vai nos levar de avião até Mineápolis, onde pegaremos nosso vôo para Mill Walk. Haverá tempo. Quando pousarmos no aeroporto David Redwing já teremos encerrado o assunto.

— Pelo menos me diga o nome.

Von Heilitz sorriu e o encaminhou à porta.

— Quero que você me diga o nome.

Assim, cansado demais se sentar, amedrontado demais com Jerry Hasek para ligar as luzes, Tom esperou por Sarah, torcendo para que ela ainda não tivesse tentado encontrá-lo no chalé. Acabou por sair para esperar embaixo de um carvalho atrás da trilha entre a sua cabana e a dela.

Ouviu o som dos pés de Sarah pisando suavemente na terra batida, mas não saiu de trás do carvalho até ver sua blusa branca brilhando na escuridão. O rosto e os braços de Sarah, já bronzeados, pareciam muito escuros contra a camisa e os cabelos louros. Caminhava apressada. Quando Tom apareceu na trilha, ficaram quase face-a-face.

— Oh!

— Sou eu — ele disse suavemente.

— Você me assustou.

Ela chegou mais perto, parecendo flutuar na escuridão. Tocou a frente da blusa.

— Você me assustou também. Não estava certo se viria.

— Minha vida dupla me toma muito tempo. Tive que ir ao Urso Branco com Buddy para vê-lo ficar bêbado.

Tom lembrou de Buddy esfregando suas costas, e as próprias mãos dela sobre as de Buddy.

— Gostaria que você não levasse essa vida dupla.

Ela se aproximou mais dele.

— Parece tão agitado. É por minha causa, ou pelo que aconteceu esta tarde? Não devia sentir-se inseguro a meu respeito, Tom. E acho que Jerry e os amigos fugiram. Ralph não conseguiu achá-los depois do jantar.

— Nappy foi preso. Talvez tenham ido embora, mas é provável que não. Estou voltando para Mill Walk esta noite. Muita coisa está acontecendo, e eu acabo de descobrir... bem, acabo de descobrir algo muito importante sobre eu mesmo. Sinto-me um tanto sobrecarregado.

— Esta noite? Esta noite quando?

— Mais ou menos daqui a uma hora.

Ela olhou para ele estática.

— Então vamos entrar.

Ela abraçou a cintura dele. Juntos, começaram a caminhar na direção da cabana quase invisível.

— Como vai voltar? Não há nenhum avião à noite.

— Vamos para Mineápolis.

— “Vamos”?

— Eu e mais alguém. O chefe de polícia tem um pequeno avião. Ele está nos levando daqui.

Ela ergueu a cabeça para olhá-lo enquanto caminhavam.

— É Lamont von Heilitz, mas, Sarah, você não pode dizer a ninguém que ele estava aqui. Isto é sério. Ninguém pode saber.

— Acha que falo sobre as coisas que você me conta?

— Às vezes acho.

Ela o enlaçou com os braços e ergueu o rosto na direção do dele. O rosto dela preencheu os olhos de Tom. Ele a beijou, e foi como beijar a noite. Ela às vezes falava sobre as coisas que ele contava, e às vezes ele achava isso; para ela as duas coisas significavam o mesmo, porque ambas eram excitantes. Como ser prometida em noivado. São emoções que você vive duas vezes.

— Vamos entrar no chalé, ou vamos apenas ficar em pé aqui fora?

— Vamos entrar.

Guiou-a pelos degraus, deixou-a entrar, fechou a porta atrás deles. Pôde sentir, mais do que ver, ela se virando em sua direção.

— Ninguém tranca as portas aqui no norte.

— Ninguém menos eu.

— Meu pai não vai vir nos procurar.

— Não é seu pai que me preocupa.

Ela encontrou a bochecha dele com a mão.

— Onde estão as luzes? Nem posso vê-lo aqui.

— Não precisamos de luzes. Apenas me siga.

— Na escuridão?

— Gosto da escuridão.

Ia dizer mais alguma coisa, mas ao ver seus dentes brilharem no escuro, a abraçou. Sua mão escorregou para os quadris dela.

— Acabo de descobrir que não sou o que pensava.

— Nunca foi quem você pensava.

— Talvez ninguém fosse o que eu pensava ser.

— Tal-veez... — disse num meio canto e num meio sussurro, enquanto acomodava melhor o corpo em seu abraço. — Está me levando para algum lugar?

Ele segurou sua mão e a guiou ao redor da mobília até a escada na escuridão. -Aqui — ele disse, pousando a mão dela sobre a ponta do corrimão. Colocando o braço em torno da cintura dela, subiram lentamente as escadas. Na escuridão profunda, a sensação era a de estar caindo para cima.

Ela parou de andar no topo das escadas, sussurrando:

— O corrimão sumiu.

Tom empurrou-a suavemente para a esquerda, onde a luz pálida que entrava pela janela revelava o corredor sombrio. Tom se inclinou para a maçaneta da porta e puxou a porta silenciosamente para si.

Havia apenas luz suficiente na sala para revelar a cama e a mesa. Folhas negras chapavam-se contra a janela. Os braços de Sarah já estavam ao redor de seu pescoço mal ele fechou a porta. Sentiu cheiro de cigarro no cabelo dela.

 

Algumas coisa que ela disse:

Tom. Oh.

Adoro isso, você gosta também?

Diga que me ama.

Sim, isso. Faça mais isso.

Adoro a forma... a forma como você me preenche.

Me morde. Me morde.

Oh, Deus.

Mais rápido... Sim, sim, sim...

Vamos rolar...

Oh! Oh! Oh!

Meu querido.

Oh, meu Deus, dá uma olhada em você! Enfia, enfia... Siiim...

 

— Eu te amo.

 

A cabeça de Sarah estava deitada sobre seu peito. Fosse isso o que fosse, era muito bom.

 

Jeanine Thielman, usando um vestido branco e gotejante, levantou se do lago. Seu rosto era morto e sombrio. Ela andava na direção dele através de camadas de fumaça. A boca estava escancarada, como uma armadilha. Á língua tremia quando tentava falar. Em seu sonho, Tom a ouviu gritar. Os olhos dele se abriram para uma escuridão oleosa. O corpo afogado de Jeanine Thielman estava deitado sobre o dele. Dor embaçava sua mente. O peito estava coberto por farrapos, e algo ruim sacudia em seu estômago. Um grito? Tentou ver a cama. Os pêlos do nariz encresparam com o calor. Tudo o que podia ver através da escuridão era um retângulo vermelho e indistinto — a janela. Finalmente ouviu um som de rugido. Balançou a cabeça, e quase pulou. Gemeu, se esgueirando debaixo do corpo que o cobria. O movimento fez seus quadris passarem da ponta da cama estreita. Caiu no chão. Fitou uma mão que pendia da cama na frente de seus olhos, percebendo que pertencia a Sarah Spence. O chão aqueceu seus joelhos.

Tom inalou, sentindo como se houvesse respirado fogo pelo nariz.

— Sarah! Acorde! Acorde!

Ele puxou o braço dela, levantou seu corpo. Seus olhos se abriram em faixas estreitas.

— Quiiié?

— O chalé está pegando fogo — gritou uma coisa que ele não sabia até dizer.

Os olhos de Sarah rolaram novamente para dentro da cabeça. Tom se inclinou sobre a cama. Colocou as mãos sob os braços dela e a puxou para ele. Ela caiu por cima dele. Uma mão rodou e bateu na cabeça de Tom, fazendo-o cair para trás. O ar estava mais frio e claro no chão. Percebeu que estava usando camisa. Não tinha tirado a camisa? Levantou-se e puxou um lençol da cama. Bateu forte no rosto de Sarah.

— Merda — ela disse, de forma clara.

Os olhos dela se abriram de novo. Tossiu como se estivesse tentando expelir o estômago.

— Minha cabeça dói. Meu peito dói.

Tom a embrulhou rudemente com o lençol. Agarrou a manta e a colocou nela como um capuz. O lençol de baixo estava solto e emaranhado na cama. Ele o pegou e enrolou o corpo com o lençol. Começou a se arrastar na direção da porta. Através do ruído de fornalha provocado pelo fogo, pôde ouvir Sarah se arrastando atrás dele, tossindo.

Bateu contra a porta e se levantou. A maçaneta estava morna, não quente, e ele a virou. Vozes, gritos, o som de rugido, acompanharam uma lufada de ar quente. Agachou-se no chão quente e serpenteou para frente, querendo olhar o corredor.

Uma parede de fumaça negra rolava na direção dele, vinda dos fundos da casa. A porta do quarto grande e metade da escada estavam invisíveis. Madeira seca rangia, emitindo faíscas brilhantes através da escuridão.

— Respire pelo lençol — ele gritou, olhando para Sarah, às suas costas.

Seu rosto espiava para fora do lençol, assustado e rechonchudo como o de uma criança acordada de súbito. Engatinhou para frente mais uns centímetros, tentou subir o lençol para a boca, e desmaiou por baixo da manta.

Tom apertou seu próprio lençol no pescoço. Recuou e colocou os braços por baixo de Sarah. Seu lençol escorregou quando levantou o corpo de Sarah. Ajoelhou-se e o pegou para embrulhá-la com ele. O lençol parecia importante, essencial. Pôs seu braço direito atrás dos ombros dela, o esquerdo sob os joelhos, e se levantou cambaleante. Os olhos ardiam. Carregou-a do quarto para a sala.

A força do calor quase o nocauteou. Mal coberta pelo lençol, Sarah se contorceu em seus braços. Seu próprio lençol pendia como uma mortalha. Tom correu direto contra a fonte do calor — uma mão tentando empurrá-lo de volta. Ar aquecido penetrava-lhe pela boca e seguia pela garganta até os pulmões. Quase caiu novamente. Alguma coisa bateu contra os quadris, mantendo sue equilíbrio. Percebeu que era o topo do corrimão. Com uma força súbita, jogou o corpo de Sarah para cima dos ombros. Uma ponta solta da manta envolveu-lhe o rosto. Já descia as escadas. Vozes flutuavam em sua direção através do ruído do fogo, mas não eram vozes verdadeiras.

Na metade do caminho, viu fagulhas e linhas vermelhas do fogo pulando através da sala de estar. Um raio irrompia dos fundos da casa. Uma chuva de fagulhas e chamas solitárias caíam do escritório, encerradas em fumaça espessa. Espirais de fumaça erguiam-se do sofá e das cadeiras. Os tapetes tinham começado a queimar em sentido contrario das pontas; ovais de fogo vindas dos tapetes agora tocavam as pernas das cadeiras e mesas, já subindo pelas paredes. As cortinas ardiam em chamas.

Desceu correndo das escadas e rodou em círculos, incapaz de enxergar saída alguma. Não respirava há minutos, e seus pulmões clamavam pelo ar que o mataria. A porta da frente estava trancada, as chamas subiam até seu topo. Uma faixa de fogo correu através do chão, incendiando uma velha cadeira, que sumiu com um audível puf! Um pedaço pesado de madeira caiu no escritório. Chamas correram até o teto. Pulou sobre uma linha baixa, mas distinta, de chamas que se estendia pelo chão. Soluçou de frustração. Sarah era uma flácida e pesada carga sobre seus ombros. Suas sobrancelhas e cílios chiavam com o calor.

Tom chegou à porta da frente e segurou a tranca com a mão envolta no lençol. O metal queimou seus dedos. Ele se atrapalhou por um instante, depois puxou a tranca com o lençol, liberando a porta. O lençol caiu de sua mão. Pôs a palma da mão na maçaneta, e sentiu a pele aderindo ao metal. Gritou, virou a maçaneta. Um impacto trovejante e uma explosão ocorreram às suas costas. Fogo se espalhou pela madeira diretamente em frente aos olhos de Tom. Ele fechou os olhos, abaixou a cabeça, empurrou a porta. Ar doce e suave derramou-se sobre ele. O fogo direta­mente às suas costas rugiu como mil feras. Cambaleou para a porta de tela, ouviu-a estilhaçar-se e ruir. Caminhou através do vão da porta com pernas feitas de água. Engoliu ar. Pessoas que ele não podia ver gritavam ou bradavam. Seu estômago se virou pelo avesso; vomitou sobre a frente do corpo, empapando o lençol. Sentiu o sabor de fumaça e cinzas, como se tivesse vomitado um cinzeiro inteiro. Pôde ouvir o alto do vão da porta rugindo sobre ele.

Tom saiu do vão da porta com suas pernas oscilantes. Sentiu o peso de Sarah desaparecer magicamente de seus ombros, como se ela tivesse saído voando. Abriu os olhos sem ver, caminhou para o ar vazio, afundou nos braços de alguém.

 

Algum tempo depois retomou o ato de vomitar. Mãos seguravam seus ombros. O ar estava sobrenaturalmente quente, porém mais frio que ele esperava: como podia ser? Impulsionou o corpo para longe do pudim marrom e rosa na terra, seus pés se enrascando na ponta da manta que o cobria. O vômito fedia a madeira calcinada, assim como o ar contraditório. Levantou a cabeça e viu chamas pulando no ar do outro lado de uma multidão de pessoas com robes e pijamas. Uma sirene gritou. Lembrou dos gritos — sirenes? Bitsy Langenheim, vestido num quimono japonês amarelo, com mangas largas e crisântemos da cor do fogo, olhava sobre o ombro com uma expressão preocupada para ele. Folhas pegaram fogo num carvalho alto à frente deles; todos recuaram um passo, na direção de Tom.

— Sarah? — ele disse-grasnou.

Navalhas e facas desciam por sua garganta.

— Ela está bem. Uma ambulância está vindo, Tom. Você salvou a vida dela.

Caiu sobre os quadris. Estava debaixo das árvores no lado mais próximo da cabana dos Spences. O grande fogo que todos estavam olhando era seu chalé. Lã umedecida encheu seu cérebro. Agora Neil Langenheim também havia se virado para olhar para ele; não havia nada em seu rosto além de desgosto.

— Tinha mais alguém no chalé? — Lamont von Heilitz lhe perguntou.

Tom balançou a cabeça.

— Você me segurou.

— Estava para tentar entrar quando você saiu correndo — bem a tempo, também. Acho que toda a metade de trás da cabana ruiu mais ou menos um segundo depois.

— Um segundo depois — disse Tom, lembrando a explosão que ouvira atrás dele. — Onde está Sarah?

— Com os pais dela. Fez a coisa certa, embrulhando-a com os lençóis.

Tom procurou sentar-se reto; uma escuridão densa invadiu sua cabeça.

— O avião... e as pessoas vão saber que você...

— Receio que nosso vôo tenha sido cancelado. De qualquer forma, Tim vai ter de esticar mais um dia por aqui, tentando descobrir como o fogo começou.

— Quero vê-la — Tom disse com sua voz grasnadora; as navalhas e facas forçaram caminho mais um ou dois centímetros na carne de sua garganta.

Um carvalho no lado do lago da cabana em chamas começou a se incinerar, com uma barulhada de folhas.

— Ela disse... falou sobre...

Von Heilitz embrulhou novamente o braço de Tom com o lençol.

Um homem de cabelos pretos, usando um robe vermelho brilhante sobre um pijama de seda amarelo e fumando um longo cachimbo, estava no fim da multidão, olhando o fogo. Disse alguma coisa a um rapaz usando apenas um par de jeans desbotados e apertados, o rapaz, que era Marcello, moveu o braço esticado do fogo para as árvores entre ele e a cabana dos Spences. De algum lugar distante, um cavalo relinchava de terror. Tom ia perguntar a von Heilitz o que Hugh Hefner fazia ali, quando lhe ocorreu o pensamento irrelevante que o editor de Playboy provavel­mente teria o mesmo tipo de jato particular de Ralph Redwing. Então viu que o homem de robe era Ralph Redwing, e que o pequeno olho negro de Ralph fitou rapidamente a ele e von Heilitz antes de voltar sua atenção para outro lugar. Em seu rosto acetinado e iluminado pelo fogo, havia uma expressão de preocupação tão abstrata quanto a de Jerry Hasek.

— Todos viram você — grasnou para von Heilitz.

O Sombra deu um tapinha em seu ombro.

— Não, eles viram você — grasnou novamente, percebendo que isso era terrível, que precisava ser desfeito.

O fogo atingiu outro carvalho.

 

A SEGUNDA MORTE DE TOM PASMORE

O quarto não era branco, como o seu velho quarto em Monte Umbroso, mas pintado em cores primárias vivas, azul-piscina, amarelo cor-do-sol e vermelho-melancia. A intenção era que essas cores transmitissem alegria e estados de espírito saudáveis. Quando Tom abriu os olhos de manhã, lembrou de quando ficava sentado numa mesa comprida da classe de jardim de infância da sra. Whistler, tentando desajeitadamente cortar alguma coisa parecida com um elefante de uma cartolina azul bem dura com uma tesoura grande demais para ele. O estômago, a garganta, e sua cabeça inteira doíam; um esparadrapo grosso e branco envolvia a mão direita. Um aparelho de tevê de vinte polegadas, sobre um suporte móvel, estava direciona­do para a cabeceira da cama. A primeira vez que a desligou com o controle remoto instalado na cama, uma enfermeira a ligou de novo assim que entrou no quarto, dizendo:

— Quer ver alguma coisa, não quer?

Na segunda vez, ela disse:

— Não consigo entender o que há de errado com a droga dessa tevê.

Acabou deixando que ela ficasse ligada, mudando de programas de jogos para novelas e informativos, enquanto ele dormia.

Tom desligou o aparelho de novo quando Lamont von Heilitz entrou no quarto. Cada parte de seu corpo sentia-se anormalmente pesada, como se tivessem cos­turado pesos em sua pele, e a maioria delas doía de formas completamente novas. Uma pasta transparente que cheirava a bom-ar brilhava em seus braços e pernas.

— Vai poder sair daqui dentro de duas horas — von Heilitz disse, antes de tomar a cadeira do lado da cama de Tom. — É como os hospitais agem agora, sem mimos. Acabaram de me contar. Então, quando sair daqui, vou empacotar você e então vir buscá-lo. Tim vai nos levar para Mineápolis, e de lá pegamos um vôo de dez horas e aterrissaremos em Mill Walk por volta das sete da manhã.

— Um vôo de dez horas?

— Não é exatamente sem escalas — von Heilitz respondeu, sorrindo. — O que achou do hospital Grand Forks?

— Dá vontade de não ir embora.

— Que tipo de tratamento fez?

— De manhã, me deram uma máscara de oxigênio por um tempo. Depois disso, tomei alguns antibióticos. A cada duas horas, uma mulher vem aqui e me faz beber suco de laranja. Esfregam essa meleca pelo meu corpo todo.

— Sente-se bem para sair?

— Faria qualquer coisa para sair daqui. Sinto como se estivesse vivendo minha vida inteira de novo. Fui empurrado na frente de um carro, e logo depois estou num hospital. Daqui a pouco vou descobrir um assassinato e uma porção de pessoas serão mortas.

— Viu algum dos novos programas?

A voz do velho fez Tom chegar um pouco mais para trás na cama.

— Tenho de lhe dizer umas coisas — o velho se inclinou para mais perto dele, apoiando os braços na mesa.

— O chalé do seu avô pegou fogo, claro. Não há mais ninguém no lago agora. Os Redwings levaram todo mundo de volta em seu jato esta manhã.

— Sarah?

— Deram alta para ela por volta das sete da manhã. Ela estava em melhor estado que você, graças à manta com a qual você a embrulhou. Ralph e Katinka deixaram os Spences e os Langenheims em Mill Walk e voaram direto para a Venezuela.

— Venezuela?

— Eles têm uma casa de veraneio lá também. Não queriam ficar plantados em Mill Walk com toda essa confusão e sujeira. Para não mencionar a investigação criminal.

— Criminal? Ah, incêndio.

— Não apenas o incêndio. Esta tarde, por volta das duas horas, quando as cinzas finalmente ficaram frias o suficiente para se andar por elas, Spychalla e um delegado de meio-expediente encontraram um corpo no que sobrou do seu chalé. Estava queimado demais para ser reconhecido.

— Corpo? Não pode ser...

Súbito, Tom sentiu uma onda de náusea e horror ao perceber o que acontecera.

— Era o seu corpo — disse von Heilitz.

— Não, era...

— Chet Hamilton estava lá quando eles o acharam, e todos os três sabiam que tinha de ser você. Não havia ninguém por perto para lhes dizer o contrário e eles até tinham um belo motivo. Que era que Jerry Hasek... bem, você sabe. Hamilton escreveu a matéria assim que chegou ao escritório, e isso vai aparecer no jornal de amanhã. Até onde todos sabem, você está morto.

— Era Barbara Deane! Eu esqueci... ela me disse que viria tarde da noite... Oh, Deus. Ela morreu... foi morta.

Fechou os olhos. Um tremor de choque e tristeza quase o fez levantar-se da cama. Seu corpo parecia estar ficando quente, depois frio, e sentiu gosto de fumaça no fundo da garganta.

— Eu a ouvi gritar — disse Tom, começando a chorar. — Quando saí — quando você estava comigo do lado de fora — acho que ouvi o cavalo dela. O cavalo ouviu o fogo, e...

Ofegou, ouvindo os gritos dentro da cabeça.

Pôs as mãos sobre os ouvidos. Viu Barbara Deane abrindo a porta do chalé. Usava sua blusa de seda e as pérolas. Estava preocupada com o que ele ouvira sobre ela. Barbara Deane dizia não tenho certeza se alguma mulher poderia ter sido o que as pessoas pensavam como uma boa esposa para seu avô. Dizia: sempre pensei que seu avô salvou minha vida. Pôs as mãos sobre os olhos.

— Concordo com você — disse o velho. — Assassinato é uma obscenidade.

Tom cobriu com seus dedos as mãos unidas do velho.

— Deixe que eu lhe conte sobre Jerry Hasek e Robbie Wintergreen.

Von Heilitz segurou os dedos de Tom com suas mãos enluvadas. Era um gesto de confiança, mas de alguma forma, confiança apesar de tudo. Tom sentiu uma cautela triste acender-se nele.

— Roubaram um carro na Rua Principal e o dirigiram até um dique fora de Grand Forks. Uma testemunha disse que estavam gritando um com o outro dentro do carro, e o motorista tirou as mãos do volante para bater no outro homem. O carro bateu no dique, e os dois quase foram cuspidos pelo pára-brisas. Estão presos numa cela aqui na cidade.

— É o Jerry.

— Tudo isso aconteceu ontem, por volta das oito da noite.

— Não, não pode ser. Tem que ter sido hoje. Como eles poderiam...

— Não foram eles — von Heilitz disse, apertando a mão de Tom. — Jerry não ateou o fogo. Também não acredito que Jerry tenha atirado em você.

Soltou a mão de Tom e se levantou.

— Volto em menos de uma hora. Não esqueça que você está morto agora. Pelo menos por um ou dois dias. Tim Truehart sabe que está vivo, mas eu consegui o persuadir a não contar a ninguém até que seja a hora certa.

— Mas o hospital...

— Registrei você como Thomas von Heilitz.

Saiu do quarto. Por um momento, Tom nada fez senão fitar a parede. Não esqueça que você está morto agora. A enfermeira do segundo turno irrompeu no quarto trazendo uma bandeja. Sorriu para ele, olhou a ficha de Tom e disse:

— Aposto que vamos para casa hoje, não vamos?

Era uma ruiva robusta, com sobrancelhas alaranjadas e dois pequenos calombos em cada lado do rosto. Fez-lhe uma expressão cômica quando Tom não respondeu.

— Não vai sorrir para mim, querido?

Teria falado com ela, mas não encontrou nada para dizer.

— Bem, talvez gostemos daqui.

A enfermeira colocou a ficha no lugar e foi até o lado da cama. Na cama havia apenas uma agulha hipodérmica comprida, uma mecha de algodão, e uma garrafa de álcool.

— Pode virar para mim? É a última injeção de antibióticos antes de você voltar para casa.

— A saideira — disse Tom.

Virou para que a enfermeira separasse a parte de trás de seu robe. O álcool gelou uma lista em sua nádega esquerda, como se uma camada fresca de pele tivesse sido exposta ao ar. A agulha o picou e manteve-se dentro dele por um instante. Outra esfregada de álcool.

— Seu avô parece tão distinto. Ele é ator?

Tom não disse nada. A enfermeira ligou a televisão antes de sair do quarto, não com o controle remoto, mas diretamente no botão do aparelho, de forma quase brutal, como se fosse um dever que tivesse negligenciado.

Assim que ela estava fora, Tom apontou o controle remoto na televisão histérica e a desligou.

 

— Aqui em cima, nossas vítimas não se vestem tão bem — disse Tim Truehart, aparecendo com sua jaqueta de couro quando a porta de um velho Dodge azul foi aberta.

— Eu não costumo me vestir tão bem — disse Tom, olhando para o terno que o velho trouxera para ele. Era de um tecido verde e azul, da marca de um alfaiate de Londres, e a despeito de estar um pouco apertado nos ombros, caía melhor nele que qualquer uma de suas próprias roupas. Von Heilitz também lhe dera uma camisa branca, uma gravata azul escura e um par de sapatos bem engraxados, também do seu tamanho, que estava um pouco duro, resistindo aos passos. Tom esperara que o detetive aparecesse com algumas roupas novas e baratas, não as dele mesmo. Quando olhou para si mesmo no espelho que pendia no pequeno banheiro do quarto vira um estranho bem-vestido, por volta de seus 25 anos. O estranho tinha cílios eriçados e apenas alguns fiapos por sobrancelhas. O rosto do estranho parecia descascado. Se houvesse visto a si mesmo no escuro, teria pensado que era Lamont von Heilitz.

Tom entrou no banco traseiro com as malas, e von Heilitz sentou na frente com Tim Truehart.

— Você não viu ninguém andando em volta do chalé antes do fogo começar, não é?

— Nem sabia que Barbara Deane estava lá.

— O fogo começou na frente e nos fundos do chalé quase que ao mesmo tempo. Não é preciso mais que um galão de gasolina e um fósforo para fazer aquelas velhas casas sumirem. — Truehart falava como se estivesse conversando com si mesmo. — Sabemos que Tom não fez isso acidentalmente, e não começou na cozinha, ou qualquer outra coisa assim. O fogo foi ateado deliberadamente.

Por um instante, Tom preferiu estar de volta à sua cama no quarto-jardim-de-infância, seguro com as injeções, antibióticos e televisão perpétua.

— Em algum lugar do Lago da Águia ou de Grand Forks há um homem sem sorte — disse von Heilitz. — Ele provavelmente tem ficha criminal. Faz certas coisas por dinheiro. Vive na floresta e não tem muitos amigos. Jerry Hasek descobriu o nome desse homem perguntando pelos bares e fazendo telefonemas. Você poderia fazer o mesmo, se quisesse.

— Deve haver cinqüenta caras assim por aqui — disse Truehart. — Não sou um detetive particular famoso, Lamont, sou o chefe de polícia de uma cidadezinha. Não costumo disputar jogos como este, e Myron Spychalla está de olho no meu emprego. Odiaria ter de trabalhar.

Tom não conseguiu conter um bocejo.

— Você está com Nappy Labarre e Robbie Wintergreen na sua prisão — disse von Heilitz. — É tudo o que realmente precisa. Acho que um deles ficaria feliz em fazer um pequeno acordo.

— Se souberem alguma coisa.

— Claro — disse von Heilitz. — Se souberem alguma coisa. Não estou lhe dizendo nada de novo. Também não sou um famoso detetive particular. Sou um velho aposentado que tem tempo de sentar para ver as coisas acontecerem.

— E é isso que está fazendo aqui em cima, aposto.

Passaram pela placa do aeroporto, e Truehart virou no sinal de desvio.

— Semi-aposentado — disse von Heilitz, e os dois homens sorriram um para o outro.

— Tudo bem — disse Truehart. — Mas a mãe deste rapaz vai passar o diabo quando ouvir que o filho morreu num incêndio.

— Não vai.

— Não vai o quê?

— Não vai ouvir. O marido está no Alabama por duas semanas e ela nunca assiste televisão ou lê jornais. É uma inválida. Se o pai dele souber de alguma forma, não lhe irá logo, e talvez nunca diga a ela. Ele tem um currículo de proteção a ela das más notícias.

Isso era verdade, Tom pensou — se ele tivesse morrido no fogo, ele nunca teria existido. Seu avô jamais pronunciaria seu nome, e a mãe seria proibida de mencio­ná-lo. Era a forma como o avô queria o tempo todo.

 

Tim Truehart saltou do lado de um prédio alto, com revestimento de metal acinzen­tado. Tom saiu do carro depois dos dois. A luz amarela de uma lâmpada de sódio comia tudo como ácido. As mãos de Tom estavam doentiamente amarelas; o cabelo de Lamont von Heilitz assumira um mórbido amarelo-acinzentado. Tom trouxe uma das malas do velho para a frente aberta do comprido prédio de metal, e viu um avião desmantelado sobre o chão amarelo-acinzentado de concreto: uma bolha de vidro sobre uma lona sem vida, um motor em partes formando uma frase em que parafusos eram vírgulas e a hélice um ponto de exclamação.

Von Heilitz lhe perguntou se estava se sentindo bem.

— Muito — ele respondeu.

O avião de Truehart fora colocado num canto do hangar. As malas entraram por uma abertura estreita como uma porta de fogão. Você sobe na asa para chegar à carlinga, Truehart segurou a mão de Tom e o puxou para cima. Ele se sentou num banco traseiro simples, e von Heilitz se sentou ao lado do piloto.

O motor cuspiu e rugiu. O avião rolou para a frente rumo ao vazio antes de decolar para o grande vazio do ar.

Em Mineápolis, atravessou a pé com von Heilitz um corredor comprido e margeado por lojas. As pessoas que passavam os olhavam divertidas, um velho empertigado e um rapaz grandalhão sem cílios, ambos vestidos como atores num palco e mais altos do que qualquer um por ali.

De Mineápolis voaram para Houston. Tom acordou uma vez, assustado com fumaça de madeira, e viu a forma tubular de uma cabine de jato à sua frente. Por um segundo, pensou que estava voando para o Lago da Águia de novo, e caiu ins­tantaneamente no sono.

Entre Houston e Miami, Tom acordou com a cabeça no ombro ossudo do Sombra. Ajeitou-se no assento e olhou para o pai, que dormia, sua cabeça inclinada, a boca aberta. Respirava profunda e regularmente. Seu rosto, suavizado pela escuridão da cabine, era o de um jovem.

Uma aeromoça que poderia ser irmã mais velha de Sarah Spence, olhou para eles, viu que Tom estava acordado, e se ajoelhou perto dele com um sorriso expectante e curioso.

— As outras garotas querem saber uma coisa... bem, eu quero também. — O sussurro dela revelava um sotaque texano; cada vogal parecia rodopiar. — Ele é alguém famoso?

— Já foi — disse Tom.

Em Miami tiveram de correr até seu portão, e minutos depois estavam presos com cintos aos seus assentos. O avião deslizou pela pista e se elevou no ar para voar rumo ao sul sobre centenas de quilômetros de água até Mill Walk. Um grupo de freiras ocupava os assentos na frente deles. Sempre que o piloto anunciava que estavam voando sobre uma ilha, elas se amontoavam perto das janelas laterais do avião, para ver Porto Rico e Vieques, os pontinhos chamados St. Thomas, Tortola e Virgin Gorga, e os pequenos pensamentos tardios de Anguilla, St. Martin, Mont­serrat e Antigua.

— Vou ficar com você? — Tom perguntou.

Outra aeromoça colocou bandejas com ovos mexidos, bacon e batatas fritas na frente deles. Von Heilitz fez um gesto de que não queria o seu, mas Tom disse “Pode deixar, vou comer o dele também”, e a aeromoça recolocou a bandeja e deu o olhar curioso habitual.

— Adoro o jeito como vocês se vestem — a moça disse.

Tom começou a devorar os ovos.

— Não, acho que não devia — disse von Heilitz. — Também não acho que você deva ir para casa.

— Vou para onde, então?

— Para St. Alwyn — von Heilitz disse, sorrindo. — Que Anton Goetz afirmava ser seu. Já registrei você, sob o nome de Thomas Lamont. Achei que esse nome você conseguiria se lembrar.

— Por que não quer que eu fique na sua casa?

— Achei que você estaria mais seguro em qualquer outro lugar. Além disso, o St. Alwyn é um lugar interessante. Sabe alguma coisa a respeito dele?

— Não houve um assassinato lá uma vez?

Tom podia lembrar alguma coisa de sua infância — manchetes garrafais em jornais que sua mãe havia escondido. Kate Redwing também havia mencionado isso.

— Dois — disse von Heilitz. — Na verdade, é provavelmente o caso de assassinato mais famoso na história de Mill Walk, e eu não tive nada a ver com isso. Um novelista chamado Tim Underhill escreveu um livro chamado O homem dividido sobre isso — você nunca leu?

Tom balançou a cabeça.

Vou lhe emprestar. Bom livro — boa ficção — mas enganado a respeito do caso, da mesma maneira que a maioria das pessoas. Um suicídio era normalmente consi­derado uma confissão. Temos mais uns vinte minutos neste limbo. Por que não lhe conto a história?

— Acho que deveria!

— O corpo de uma jovem prostituta foi descoberto no beco atrás do hotel. Sobre o corpo, duas palavras haviam sido escritas a giz na parede: Rosa Azul.

As freiras na frente deles haviam parado de falar. De vez em quando olhavam por cima de seus assentos.

— Uma semana depois, um pianista que trabalhava em alguns dos clubes da cidade foi encontrado morto num quarto do St. Alwyn. Sua garganta estava cortada. O assassino escrevera as palavras Rosa Azul na parede sobre a cama. No início de sua carreira ele havia tocado com Glenroy Breakstone and The Targets — o disco Blue rose é uma espécie de memorial para ele.

Tom lembrou de sua mãe e von Heilitz tocando o disco — o saxofone suave tornando irresistíveis as canções mutiladas na classe da sra. Gonsalves.

— Até então as vítimas eram pessoas marginais, meio-invisíveis. A polícia de Mill Walk não podia ficar excitada com uma vagabunda e um jazzista — não era como se cidadãos respeitáveis tivessem sido mortos. Só se preocuparam com os motivos. Era bem óbvio que o rapaz fora morto por ter presenciado o assassinato da garota. Até Fulton Bishop podia descobrir isso, porque a janela do pianista no St. Alwyn era no segundo andar de frente para o beco. Pouco tempo depois, um jovem médico foi atacado. Mesma coisa, Rosa Azul. Mas quando souberam que ele era homossexual...

O piloto pediu a todos passageiros que apertassem seus cintos de segurança para pousar na ilha de Mill Walk, onde o céu estava limpo de nuvens e a temperatura mantinha-se baixa. As freiras puseram seus cintos e espicharam os pescoços.

— Bem, o patrono de Fulton Bishop, seu avô, pediu que ele se dedicasse a algum assunto mais salutar, e...

— Meu avô?

— Oh, Glen era muito importante para o capitão Bishop, e ainda é. Teve interesse em sua carreira desde o início. De qualquer modo, Bishop foi promovido, e um detetive chamado Damrosch pegou o caso. Agora ele parecia uma maldição. O Eyewitness não falava de outra coisa, e as pessoas acompanhavam os jornais com uma espécie de fascinação doentia. Agora, Damrosch era um detetive talentoso, mas um homem instável. Profissionalmente, era completamente honesto, e se ele tivesse disparado setas para todos os lados, certamente teria juntado um núcleo de outros policiais honestos ao redor dele, do jeito que David Natchez parece ter feito. Mas ele era um beberrão, batia nas pessoas de vez em quando, teve uma juventude muito problemática, e, secretamente, era homossexual. Nada desse lado de sua vida havia emergido até então. Mas mesmo naquela época, não tinha amigos no departamento. Eles lhe deram o caso para fazer dele bode expiatório.

— Que aconteceu?

— Houve um assassinato. Um açougueiro que vivia perto do antigo bairro de escravos. Quando aconteceu, o caso virtualmente fechou a si mesmo. Não mais assassinatos da Rosa Azul.

As freiras escutavam avidamente agora, suas cabeças quase tocando uma na outra na brecha entre seus assentos.

— O açougueiro havia sido um dos pais de criação de Damrosch — um homem violento e abusado. Fez o rapaz trabalhar quase até a morte, até que o jovem Damrosch afinal entrou no Exército. Damrosch o odiava.

— Mas os outros — o médico, o pianista, a garota.

— Damrosch conhecia dois deles. A garota era uma de suas informantes, e ele tinha passado uma noite com o pianista.

— O que quer dizer, o caso virtualmente fechou a si mesmo?

— Damrosch se matou com um tiro. Pelo menos parecia dessa forma.

O avião descera gradativamente à medida que von Heilitz falava, e agora as palmeiras e a vastidão do oceano ao lado da pista zuniam e borrachavam as janelas. As rodas esfregaram-se contra o chão, todo o peso do avião pareceu voltar-se contra ele mesmo.

Uma aeromoça se levantou e anunciou pelo alto-falante que os passageiros deveriam permanecer em seus lugares, com os cintos fechados, até que a aeronave parasse de se mover.

— Poderia dizer que o suicídio dele foi uma espécie de prisão injusta.

— O que você estava fazendo durante isso tudo?

— Em Cleveland, provando que o monstro de Parking Lot era um cavalheiro chamado Horace Fetherstone, o gerente regional da Companhia de Cartões de Felicitação Corações Felizes.

O avião parou de se mover. A maior parte dos passageiros pulou para o corredor central e abriram os bagageiros superiores. Tom e o Sombra continuaram em seus lugares, assim como freiras.

— A propósito, ficou claro que uma das vítimas sobreviveu? No livro de Underhill todos são mortos, mas o caso real foi diferente. Um deles conseguiu. Foi atacado no escuro e por trás, sem ter nem mesmo um vislumbre de seu agressor, o que não o tornou muito útil para o caso. Mas ele sabia medicina suficiente para deter o sangramento.

— Medicina?

— Bem, ele era um médico, não era? Você o encontrou neste verão. Sujeito legal.

Levantou-se meio curvado, saindo para o corredor.

— Buzz Laing. Não reparou? Sempre usa algo ao redor do pescoço.

Tom olhou diretamente para a frente, vendo o olho marrom direito de uma freira e o olho azul esquerdo de outra os olhando através da brecha entre seus assentos.

— Ah, uma coisinha. — Von Heilitz se abaixou dos bagageiros. — Damrosch se matou à mesa de seu apartamento, com um tiro na cabeça. Havia um bilhete dizendo Rosa Azul na mesa à sua frente. Caso encerrado.

Ele sorriu. As finas linhas de pêlo ao redor de sua boca afundaram na pele. Virou-se e começou a caminhar pelo corredor na direção da frente do avião. Tom se levantou do assento apoiando-se com as mãos.

— Ocasionalmente — disse von Heilitz —, tudo o que você tem a fazer é retornar aos primórdios para ver a situação sob um novo ângulo.

Saíram pela porta aberta do avião, enfrentando o sol aniquilador do Caribe, que derramava de um sol indistinto num céu quase descorado.

— Ocasionalmente — disse von Heilitz -, há razões profundas para você não poder ou não querer fazer isso.

A aeromoça que dissera que gostava do modo como eles se vestiam estava em pé no fim da escada metálica, dando cartões impressos brancos aos passageiros. Lá longe, gansos enfiavam as cabeças por uma cerca de arame. O cheiro de água salgada misturava-se ao cheiro de combustível de avião do aeroporto.

— O bilhete escrito a mão na frente de Damrosch — disse Tom.

— Escrito em letra de forma.

Heilitz aceitou um dos cartões dados pela aeromoça.

Tom também pegou um. Era um cartão de desembarque. A primeira linha era para o seu nome, a segunda para o número do passaporte.

Quando olhou para a aeromoça, ela disse:

— Puxa, o que aconteceu com suas sobrancelhas?

Von Heilitz o puxou pela manga.

— O rapaz esteve num incêndio. Acaba de lembrar que não está cora seu passaporte. .

— Puxa, será que isso vai dar problema?

— Nenhum.

Levou Tom pelo tapete de pista até a porta.

— Por que não?

— Observe.

No balcão de bagagem, o tanque de líquido amarelo parecia ter avançado mais 18 a 25 centímetros pelo linóleo. Os passageiros americanos olhavam-no com expressões de desagrado enquanto esperavam por suas malas. Tom seguiu o velho até a mesa identificada como Residentes de Mill Walk. Ele o viu retirar um caderno fino do bolso. Rasgou uma folha perfurada de papel amarelo, dobrou-a por um segundo, fazendo em seguida sinal para que Tom o seguisse até a mesa.

Ele disse, “Olá, Gonzalo”, ao oficial, e lhe deu seu passaporte e cartão de desembarque. A folha de caderno estava dobrada dentro do passaporte.

— Meu amigo esteve num incêndio. Perdeu tudo, inclusive o passaporte. É o neto de Glendenning Upshaw, e deseja lhe transmitir os melhores votos do Sr. Upshaw e do Sr. Redwing.

O oficial passou os olhos negros e entediados pela face de Tom, abriu o passaporte de von Heilitz, pegando o bilhete. O escondeu por baixo da mão e abriu a parte de cima. Em seguida, colocou a folha dobrada numa gaveta, carimbou o passaporte de von Heilitz, abriu de novo a gaveta para pegar um formulário marcado requisição de troca de passaporte.

— Preencha isto e nos remeta o mais rápido possível. Ótimo vê-lo novamente, sr. von Heilitz.

As primeiras palavras do formulário eram: Nenhum residente de Mill deve ser autorizado a passar pela Costumes e Imigração até o recebimento do novo passaporte.

O que estava escrito no bilhete? — perguntou Tom.

— Dois dólares.

Saíram para a luz e o calor.

— Quanto teria sido sem os melhores votos de meu avô e de Ralph Redwing?

— Um dólar. Nunca ouviu falar de acordo de cavalheiros?

Olhando para o outro lado da rampa, Tom viu uma dúzia de veículos no estacionamento aberto. Cheiro de estrume de cavalo chegou até ele, juntamente com os odores de combustível e água salgada. Estavam em casa. Von Heilitz ergueu a mão; um velho táxi vermelho com um farol, que além de único, estava pendente, parou na frente deles.

Um homem negro e baixinho com um rosto largo e bonito saiu e sorriu para eles, exibindo dois dentes de ouro entre os da frente. Contornou o carro para abrir a porta. Heilitz o cumprimentou:

— Olá, Andres.

— Sempre é bom ver você de novo, Lamont.

O carro tinha um cheiro forte de peixe. O motorista pegou as malas e as colocou na mala do carro.

— Para onde vamos?

— Para St. Alwyn.

Todos entraram no carro. Von Heilitz disse:

— Andres, o Tom Pasmore aqui é um grande amigo meu. Quero que o trate da mesma forma que me trata. Pode precisar de sua ajuda algum dia.

Andres se inclinou sobre o banco traseiro, oferecendo uma mão enorme.

— Qualquer hora, irmão.

Tom pegou a mão dele com a esquerda, levantando a enfaixada como explicação.

Andres seguiu pela rodovia até a cidade. Tom perguntou:

— Você conhece todo mundo?

— Só as pessoas certas. Tem pensado sobre o que eu disse?

Tom assentiu.

— É um pouco de pressão demais para você, não é?

— Talvez.

Von Heilitz riu.

— Não sei se estamos pensando a mesma coisa.

— Estamos.

— Posso lhe fazer uma pergunta antes de lhe dizer outra coisa qualquer?

— À vontade.

Tom sentiu um tremor recalcitrante mover-se através de seu corpo como um choque elétrico lento.

— Quando estava lá no lago, alguma vez nadou ou pescou? Alguma vez fez alguma coisa que o levasse para o meio do lago?

— Está querendo saber se eu realmente vi a frente do chalé do seu avô?

Tom assentiu.

— Nunca nadei, pesquei ou fui para o meio do lago. Nunca pisei na propriedade dele também. Congratulações.

Mas não foi como a vez em que o Sombra tinha se inclinado sobre uma mesa de café e tremido a mão. Tom recostou-se no banco traseiro do táxi de Andres, vendo Barbara Deane acordar numa cama em chamas.

— Ele é tão ousado — disse von Heilitz. — Me diz uma mentira descabelada e eu engulo inteira. Sabe o que realmente me irrita? Ele sabia que era o tipo de mentira — o tipo de detalhe — que realmente falaria a mim. Sabia que eu voltaria direto para casa com ela. Sabia que construiria uma teoria inteira sobre aquela mentira. Não precisou mais do que um instante para perceber isso. Daí em diante, tudo se encaixou.

— Todo mundo pensou que ele deixou Miami no dia seguinte do desaparecimento de Jeanine.

— Mas ficou tempo suficiente para matar Goetz.

Tom fechou os olhos, e os manteve fechados até que eles saltaram em frente ao velho hotel. Há coisas que é melhor não saber, Barbara Deane lhe dissera.

Andres disse, “Chegamos, patrão”, e von Heilitz deu-lhe um tapinha no ombro. Uma porta bateu. Tom abriu os olhos para a parte mais baixa da Calle Drosselmayer... Era antes das oito numa ilha em que nada abria até as dez. As lojas de jogo e de licor ainda estavam trancadas por trás de suas travessas e portas. Um cavalo de sucateiro passou trotando por eles, puxando um aquecedor a água, uma roda quebrada de charrete, e o sucateiro cochilando. Von Heilitz saiu por um lado e Tom pelo outro. O ar parecia estranhamente quente e brilhante. Mais no alto da rua, na parte mais movimentada da Calle Drosselmayer, uns poucos carros dirigiam-se para o oeste, levando autoridades e gerentes de lojas da parte comercial da cidade para a Calle Hoffmann.

Andres levou as duas malas do velho para a calçada em frente ao hotel. Von Heilitz lhe deu uma gorjeta.

— Não vai para casa? — perguntou Tom.

— Nós dois devemos permanecer fora de vista por uns tempos. Estarei no quarto vizinho ao seu.

Andres disse, “Grande chance para a Estrada Litorânea do Leste”, e puxou do bolso rasgado do casaco um pequeno maço de cartões de apresentação amarrados com um elástico. Tirou um do maço e deu a Tom. O cartão tinha impresso Andres Flanders Motorista Cortês e Eficiente e um número de telefone do antigo bairro de escravos.

— Me chame se precisar, tá?

Andres observou Tom colocar o cartão num bolso. Quando se assegurou de que estava seguro, acenou para os dois e saiu com o carro.

Tom se virou para olhar a alta fachada do hotel. Já fora azul-claro ou mesmo branco, mas a pedra escurecera com o tempo. Um arco com letras esculpidas sobre a entrada soletrava seu nome. Von Heilitz disse:

— Dividi minhas roupas entre essas três malas. Por que você não pega essa aí e usa as roupas dela enquanto estamos aqui?

Tom levantou a mala pesada e o seguiu pela caverna escura até o saguão do St. Alwyn. Haviam escarradeiras de bronze ao lado da mobília antiquada. Na parede oposta à mesa, três pequenas janelas embaçadas brilhavam em azul e branco, como a janela da escada da Escola Brooks-Lowood. Um homem pálido, com cabelos ralos e óculos sem aro, os observou aproximarem-se.

Von Heilitz registrou-se como James Cooper, da cidade de Nova Iorque, e Tom preencheu sua ficha como Thomas Lamont, também de Nova Iorque. O escrivão olhou sua mão enfaixada e sobrancelhas chamuscadas enquanto colocava duas chaves sobre a mesa.

— Vamos subir e conversar sobre seu avô — disse von Heilitz.

As sobrancelhas do atendente se mexeram sobre os óculos.

Von Heilitz pegou ambas as chaves e se curvou para pegar a mala que estava carregando.

— Oh — ele disse, vendo uma pilha de Eyewitness entre as sombras do fim do balcão. — Vamos querer um desses.

Levantou e colocou a mão no bolso da frente.

O atendente pegou dois jornais da pilha e os deu a ele em troca das duas moedas que von Heilitz deixara cair no balcão. Heilitz os pegou com as manchetes para cima.

O velho dobrou os jornais debaixo do braço. Cada um deles pegou uma mala e foram para o elevador.

 

No quarto de Tom, sentaram-se em cadeiras de madeira nos lados opostos de uma mesa escura. A mesa, que ficava a dois metros da cama, tinha em sua superfície uma data — 6/6/58 — que fora rabiscada por um músico itinerante. Tom chegou ao fim do artigo, recomeçando a lê-lo imediatamente. A manchete dizia: neto de Glendenning Upshaw morto em incêndio nas férias.

Incêndio de origem desconhecida tirou a vida de Thomas Upshaw Pasmore no início da manhã de ontem. Tinha 17 anos e era filho do sr. e da sra. Victor Pasmore da Estrada Litorânea do Leste. Pasmore passou as primeiras semanas do verão em chalé no privativo Lago da Águia, Wisconsin, de propriedade de seu avô, Glendenning Upshaw...

O aposento no quarto andar era mais claro que o saguão, mas uma sombra já obscurecia, às sete da manhã, a pintura sobre a cama. A outra cópia do Eyewitness crepitou. Tom olhou para o outro lado da mesa, vendo Lamont von Heilitz dobrando a folha do jornal para ler um artigo na segunda página.

— Quando começou a pensar que meu avô tinha matado Jeanine Thielman? — perguntou Tom.

Von Heilitz fechou o jornal num retângulo perfeito, dobrou-o ao meio e o colocou entre eles.

— Quando um de seus empregados comprou a casa na The Sevens. Como se sente, Tom? Deve estar desconfortável, lendo sobre sua própria morte.

— Não sei. Confuso. Cansado. Não vejo o que podemos fazer. Estamos de volta a Mill Walk, onde até mesmo a polícia trabalha para pessoas como meu avô.

— Nem todos. David Natchez vai nos ajudar. E nós vamos ajudá-lo. Um dos homens no centro do poder desta ilha cometeu um assassinato com suas próprias mãos. Seu avô não é o tipo de homem que escolhe sofrer em silêncio, como o homem que matou meus pais. Se for acusado de assassinato, vai levar a casa inteira com ele.

— Mas como fazemos ele ser acusado de assassinato?

— Fazemos com que confesse. De preferência a David Natchez.

— Nunca confessará.

— Esqueceu que temos duas armas. Uma delas é você.

— Qual a outra?

— As cartas que viu no quarto de Barbara Deane. Não foram escritas para ela, claro. Ela as encontrou no chalé quando Glen a mandou lá para limpá-lo. Ele possivelmente as deixou em cima da mesa — ou talvez até tenha mostrado a ela. Sabia que ela simpatizará com qualquer um acusado injustamente. Deve até ter dito que as cartas referiam-se à morte de sua esposa. Suponho que a própria Barbara tenha recebido algumas cartas anônimas, quando os jornais deram aquelas notícias sobre ela.

— Mas talvez seja isso que elas são — cartas mandadas para ela.

— Não acho que nesse caso ela as teria guardado. Teria queimado as cartas. Ela as manteve porque as cartas a preocupavam. Também acho que pretendia mostrá-las a você.

— Por quê?

— Quando você apareceu, fazendo um monte de perguntas sobre Jeanine Thiel­man e Anton Goetz, remexeu todas as dúvidas que ela tinha sobre seu avô. Ela não queria pensar que ele matou Jeanine, não depois de tudo que ele fez por ela, mas ela era esperta demais para não pensar sobre isso. Ele trouxe Glória para ela antes de o corpo ser encontrado — quando ninguém, a não ser o assassino, sabia que Jeanine estava morta. Acho que Barbara sentiu-se muito aliviada quando eu me enrolei ao encontrar o Sr. Goetz enforcado em seu chalé.

Von Heilitz recostou-se na cadeira. Uma barba branca espetava-se em seu rosto, seus olhos estavam negros e distantes.

— Depois, as pessoas do continente me pediam para revolver assassinatos. Não queria admitir que estava errado mais do que Barbara Deane queria. Anton Goetz se pôs em meu caminho.

— Podemos reconstruir o que realmente aconteceu? — Tom perguntou. — Há muita coisa que eu ainda não entendo.

— Aposto que não.

Von Heilitz endireitou o corpo e esfregou uma mão no rosto.

— Digamos que Glen soube imediatamente que Jeanine Thielman escrevera aquelas cartas para ele. Ela o estava ameaçando com algum tipo de desmascaramento. Sabia alguma coisa — algo realmente prejudicial. O marido dela era um rival de Glen nos negócios, e Goetz deve ter lhe dito mais do que devia sobre os negócios de seu avô. Ou, como acho, devia ser outro tipo de desmascaramento. De qualquer forma, estava dizendo a Glen para que parasse com o que estava fazendo. Ele saiu de uma festa barulhenta no clube — acho que ele marcara esse encontro para um dia antes de viajar para a Flórida, mas não acho que ele planejasse matá-la. Foi até o chalé dela. Ela o estava esperando na varanda. Ele a confrontou. O que ela sabia era suficientemente sério para arruiná-lo. Jeanine recusou a cooperar com ele, ou acreditou em seus desmentidos. Virou-se para entrar no chalé. Ele viu a arma que o marido dela deixara sobre a mesa, pegou-a e disparou. Errou. Atirou de novo. Com exceção de Anton Goetz, todos do lago estavam no clube, divertindo-se ao som de uma banda barulhenta — você sabe como a música empolga, não é?

Tom assentiu.

— Mas ele era um mau atirador. Como conseguiu acertá-la?

— Por causa da arma — ele teria errado as duas vezes, se a arma estivesse acurada. De qualquer jeito, não acho que ele estivesse muito longe dela. Depois disso, acho que ele a empurrou pela varanda para que não enchesse o lugar de sangue. E então...

Olhou para Tom, que disse:

— Então correu pela trilha e atravessou o bosque para encontrar Anton Goetz. Minha mãe o viu pela janela do quarto, mas ela não teve certeza de quem era — teve apenas um vislumbre dele. Goetz trabalhava para meu avô, mas aposto que ele não era um contador, pelo menos não mais do que Jerry Hasek é assistente de relações-públicas.

— Deve ter sido muito mais útil do que Jerry Hasek. Goetz podia ir a qualquer lugar, podia falar com pessoas e ouvir coisas. Goetz fazia tudo o que Glen não podia ser visto fazendo. Também acho que ele carregava dinheiro para Glen e os Redwings. Era um criminoso com uma fachada de cavalheiro. Falhei completamente em conseguir entendê-lo, exatamente como ele queria.

Von Heilitz lançou a Tom um olhar zangado e descontente com si mesmo, acrescentando:

— Diga-me o que fizeram em seguida.

— Meu avô e Goetz embrulharam o corpo dela nas cortinas velhas, amarraram um peso para que ela afundasse, e a levaram de barco até o meio do lago depois que a festa do clube acabou. Depois devem ter lavado a varanda. Meu avô levou mamãe para a casa de Barbara Deane bem cedo na manhã seguinte. Voltaram a pé para o chalé de Goetz e passaram as quatro noites seguintes no quarto de hóspedes, esperando para ver o que acontecia, Goetz trazia refeições do clube. Todos sabiam que vovô estava planejando uma viagem para a Flórida. Apenas entenderam que foi o que fez.

— E quando cheguei em Miami, ele estava lá esperando por mim.

Tom olhou o artigo sobre sua morte.

— Oh, meu Deus. Vovô vai achar que não morri no incêndio. Os Langenheims me viram. Os Spences sabem que saí de lá vivo.

— Quando lerem que você “perdeu a vida no incêndio” no jornal de hoje, vão pensar que morreu no hospital. Inalação de fumaça mata mais do que os próprios incêndios. As pessoas normalmente acreditam no que lêem nos jornais. Receio que você esteja morto.

— Suponho que isso seja um alívio.

Von Heilitz sorriu para ele.

— Diga-me o que aconteceu com Goetz.

— Depois que você falou com ele no clube, voltou para o chalé para dizer ao meu avô que você o tinha acusado de assassinato — ele era um cúmplice, de qualquer forma. Assim que Goetz lhe disse que você pensava que ele tinha matado a sra. Thielman, ele sabia...

Tom recordou o pai de Sarah dizendo: “Seu avô faz tudo do seu próprio jeito, você sabe”, e estremeceu.

— ...sabia que tinha encontrado a solução para seus problemas.

— Glen o estrangulou, ou bateu nele e o sufocou, ou talvez tenha passado a linha ao redor do pescoço de Goetz e jogado o carretel por cima de uma viga, puxando em seguida o corpo dele para o alto. Não é de admirar que a linha quase tenha arrancado a cabeça de Goetz. Então disparou dois tiros em mim só para me assustar, ajeitou as coisa, e foi para casa de Barbara pegar a filha.

— Sabia tudo isso quando fui à sua casa, aquela primeira vez?

— Realmente não sabia nada disso. Quando comecei a passar mais tempo em Mill Walk, fiz uma pequena investigação sobre a propriedade da casa e do chalé de Goetz. Uma companhia falsa me levou a outra companhia falsa, que era proprietária da Construtora Mill Walk. Glen podia ter tornado isso ainda mais complicado, mas nunca pensou que alguém pudesse se importar em examinar isso tão de perto. Uma vez que eu sabia que Goetz tinha trabalhado para Glen, comecei a pensar em Goetz trazendo as refeições do clube para casa, e mandando que a sra. Truehart não fosse até o quarto de hóspedes.

— Mas você não me disse nada sobre dúvidas. Só me falou sobre o caso.

— Exatamente. Apresentei a você da forma como chegou a mim.

Por um instante, olharam um para o outro através da mesa. Tom sorriu para o velho. Von Heilitz sorriu em resposta e Tom riu alto. O sorriso de von Heilitz abriu mais.

— Você passou o caso para mim!

— Sim, passei. E você pegou!

— Mas você não sabia que eu ia para o Lago da Águia.

Von Heilitz balançou a cabeça.

— Pensei que teríamos mais algumas conversas pacíficas. Eu deixaria que você soubesse que Goetz trabalhou para seu pai, e as coisas seguiriam seu curso.

— Conversas pacíficas, uma ova — disse Tom.

Uma surpreendente bolha de hilaridade libertou-se dentro dele. Uma gargalhada que parecia vir do mesmo lugar que as lágrimas, quando, ao luar, descobrira a resposta para o enigma de sua infância.

Von Heilitz ainda sorria para ele.

— Você acabou se revelando um pouco mais falante e enérgico do que eu esperava. E quase foi morto. Estou feliz que esteja rindo.

Tom se inclinou para a frente.

— É difícil explicar — mas tudo está claro agora. Sentamos aqui para falar por vinte minutos, e de repente posso ver com exatidão o que aconteceu. É como pontos num gráfico ou algo assim.

— É verdade. Claridade é uma coisa estimulante.

— A única coisa que não sabemos é por que tudo aconteceu.

Tom se recostou na cadeira, colocando as mãos na testa, como tentasse capturar algum conhecimento que parecia simplesmente fora de vista. Alguma coisa extra que não parecia habilitado a ver.

— Sobre o que eram aquelas cartas? O que Jeanine Thielman sabia que ele era?

Jogando os braços para cima, continuou:

— Talvez soubesse que ele matou a esposa e simulou seu suicídio. Talvez o editor do jornal estivesse certo.

— Ela diria alguém precisa deter você — isto já foi longe demais?

— Sim, ela diria.

— Vi o corpo de Magda Upshaw ao mesmo tempo que Sam Hamilton. O que pensávamos que eram marcas de punhaladas, havia sido, na verdade, provocado pelos ganchos durante a dragagem.

— Acha que ela se matou?

O velho assentiu.

— Mas não sei por que se matou. Uma daquelas cartas não dizia Eu sei o que você é? Talvez Magda tenha descoberto o que ele era, e isso era demais para que ela pudesse agüentar.

— Ela descobriu que ele era um pilantra. Não é sobre isso que estamos falando? Estava envolvido com transações sujas com Maxwell Redwing desde o início — estava no bolso de Maxwell, e Fulton Bishop estava no dele?

— É o que estamos falando, sim. Mas sobre dias anteriores a Fulton Bishop.

Algum outro conhecimento surgiu repentinamente e desapareceu da vista de Tom.

— Adultério? Mulheres mais jovens? — grunhiu. — Na verdade, pelo que Barbara Deane me falou, tudo o que ele fazia com as mulheres jovens era levá-las para passear, para que as pessoas pudessem vê-las com ele.

— Mesmo se ele dormisse com elas, não acredito que fosse suficiente para que Jeanine Thielman ficasse tão excitada assim. E isso seria um segredo que ele mataria para manter?

— Não se saía com elas em público — admitiu Tom.

O velho cruzou as pernas e afrouxou a gravata.

— Podemos usar esse segredo dele sem saber o que é.

— Como?

Os joelhos de von Heilitz rangeram quando ele se levantou. Fez uma expressão de dor.

— Falaremos disso depois que eu tomar banho e dormir um pouco. Há um lugarzinho para se comer lá embaixo.

Abaixando-se, pegou os jornais dobrados em cima da mesa.

— Enquanto isso, dê uma olhada neste artigo.

O Sombra se afastou da mesa e esticou seus braços compridos sobre a cabeça. Tom passou os olhos no pequeno artigo, que era sobre a prisão de Jerome Hasek, Robert Wintergreen, e Nathan LaBarre, moradores de Mill Walk, no Lago da Águia, Wisconsin, sob as acusações de arrombamento, assalto e roubo de veículos. Von Heilitz o olhava com uma expressão preocupada que o deixou nervoso.

— Já sabemos disso — disse Tom.

— E agora todo mundo mais sabe. Mas há uma coisa que você não sabe, e eu odeio ser quem vai lhe dizer. Leia a última frase.

— “Os três homens estão colaborando com a polícia do Lago da Águia na investigação de seus crimes.”

Tom levantou os olhos para von Heilitz.

— Aquele pequeno crime que você resolveu é uma ajuda crucial para os grandes.

— Isso tem a ver com o que Tim Truehart estava falando com você depois que saí do hospital? Sobre o homem que vive sozinho na floresta? Que está com pouca sorte?

Von Heilitz desabotoou o colete e se apoiou na moldura da porta que ligava seus aposentos.

— Por que você acha que seu avô estava com tanta pressa em mandá-lo para o norte?

— Para me tirar de Mill Walk.

— Diga-me o que você estava fazendo quando alguém atirou em você.

— Estava falando...

A sensação física da chegada do conhecimento se manifestou antes do próprio conhecimento. Tom sentiu a garganta apertar. Foi como se tivessem chutado seu estômago.

Von Heilitz assentiu, curvando todo o corpo, de forma que as roupas balançaram sobre seu peito. Parecia um espantalho desconsolado.

— Então hão tenho de lhe dizer.

— Não — disse Tom. — Não pode ser verdade. Sou o neto dele.

— Ele disse para você voltar para casa? Pelo menos mandou você chamar a polícia?

— Sim, mandou. — Tom balançou a cabeça. — Não. Ele tentou me desestimular a falar com eles, me disse que não era uma boa idéia.

Diga-me, o que você vê pela janela, a esta hora da noite? Sempre gostei das noites no Lago da Águia.

— Vovô sabia onde o telefone estava. Ainda sentia a bota em cima do estômago.

— Ele sabia que você estava com uma luz acesa. Queria que estivesse enquadrado na janela.

— Até me fez chegar para a frente — me pediu para olhar pela janela — mas no último instante me inclinei para ver através do meu reflexo...

— Tinha planejado tudo — Von Heilitz disse, numa voz que seria consoladora se as palavras fossem outras. — O homem que Jerry contratou sabia quando Glen ligaria.

— Sei que ele matou aquelas duas pessoas — Tom falou, sem ser capaz de mencionar seus nomes. — Mas isso foi há quarenta anos atrás. Acho que finalmente compreendi que ele estava envolvido com negócios sujos com Ralph Redwing. Mas ainda penso nele como meu avô.

— Glen é seu avô. Má sorte. E é o pai de sua mãe. Mas mesmo quando o conheci na escola, as outras pessoas não eram reais para ele. Nunca foram.

Tom olhou para o jornal sem vê-lo.

— Entende o que quero dizer com as outras pessoas não serem reais para ele?

Tom assentiu.

— É um modo diferente de pensar — é doença. Ninguém pode mudar pessoas assim. Ninguém pode ajudá-las -von Heilitz disse, entrando em seguida no quarto. — Estará bem por mais ou menos uma hora?

Tom assentiu.

— Vamos pegá-lo, sabe. Vamos balançar a gaiola dele. Desta vez foi longe demais; ele saberá disso assim que ler o jornal.

— Acho que gostaria de ficar sozinho um pouco.

Von Heilitz assentiu lentamente com a cabeça. Entrou no quarto, fechando a porta que ligava ao de Tom.

Um pouco depois, Tom ouviu o chiado do chuveiro no quarto ao lado.

 

Sentia o corpo leve e etéreo. Nada ao redor parecia totalmente real. Tudo tinha aparência de real, mas isso era um truque. Soubesse como, poderia caminhar através da cama, trespassar a mesa com o braço, penetrar o telefone com os dedos. Sentia como se pudesse passar pela parede — ela se achataria contra ele e dissolve ria, como a neblina levantando do Lago da Águia.

Sempre gostei das noites no Lago da Águia.

Tom se levantou com uma lentidão onírica para olhar pela janela se a Calle Drosselmayer ainda era real, se tudo lá fora não passava de sombras pintadas, como ele mesmo e o quarto. Automóveis brilhantes fluíam para cima e para baixo pela rua. Um homem com uma camisa de trabalho e calças desbotadas, como Wendell Hasek anos atrás, levantava com uma manivela a grade metálica que cobria a janela de uma loja de penhores. A grade descobriu violões, saxofones, uma fileira de antigas máquinas de costura a pedal. Uma mulher num vestido amarelo passou por um bar chamado O Prato da Casa, e dando meia-volta pressionou o rosto contra a janela como se estivesse lambendo o vidro.

Voltou para o quarto; podia desaparecer ali. Era para desaparecimentos que quartos assim serviam. Locais em que as pessoas desistiam, abdicavam, aceitavam a derrota. Os aposentos de sua mãe na Estrada Litorânea do Leste eram locais de desaparecimentos análogos a este quarto. Um tapete salpicado de manchas, mobília e cama com um tom de marrom desalentador. Uma camada de papel de parede amarelo-pálido, estampado com algum padrão indistinto, soltava-se a um centímetro de distância da parede ao lado da porta.

Pousou a mala no tapete, abriu-a, tirou os belos temos e gravatas lustrosas do Sombra. Depois de separar as roupas do velho, despiu-se, enfiou a camisa e a cueca de volta na mala; pendurou o terno que estivera usando — ele se enrugara na forma de seus joelhos, ombros, cotovelos. A solidez parecia começar a nadar em volta ao seu corpo. Entrando no banheiro, encontrou outra pessoa, mais velha, no espelho. Viu o filho do Sombra, espécie de estranho familiar. Thomas Lamont. Ele teria que se adaptar a essa pessoa. Ele poderia se adaptar a essa pessoa.

Abriu o chuveiro e se pôs sob a água quente.

— Vamos pegá-lo — disse alto.

 

— Glen Upshaw e a ilha de Mill Walk chegaram juntos no momento em que podiam causar mais danos — disse von Heilitz.

Haviam descido para um restaurante chamado Caverna de Sinbad, um buraco sombrio, decorado com redes de pesca penduradas como teias de aranha. Tinha um vestíbulo e uma entrada pela rua. Um bar comprido seguia uma parede inteira. Sobre o bar havia pendurada uma pintura imensa de uma mulher nua, com uma tonalidade de pele maravilhosa, reclinada num sofá da cor do tapete do quarto de Tom. Na extremidade mais próxima da rua, dois policiais uniformizados e com o rosto coberto de pústulas bebiam Pusser’s Navy Rum em belos copos matizados.

Uma geração antes, ele teria sido amarrado, David Redwing o teria enfiado numa cela ou o mantido na linha. Não teria deixado Glen fundar um sistema de pagamentos e favorecimentos, não permitiria que ele envolvesse a força policial.

Comeu outro pedaço do omelete de frutos-do-mar que ambos haviam pedido.

— Se Glen tivesse nascido uma geração antes, teria distinguido entre o que era limpo e o que não era, e imitado um cidadão respeitável durante a vida inteira. Não teria princípio algum, claro, mas veria a necessidade de manter ocultos seus maus hábitos. Se tivesse nascido uma geração antes, seria jovem demais para ter alguma influência sobre Maxwell Redwing. Maxwell era apenas um pilantra oportunista que dera a sorte de nascer numa família prestativa. Não era tão esperto quanto Glen — na época em que estavam por volta de seus 25 anos, Glen operava quase que como uma asa independente da família Redwing. E quando Ralph começou a envelhecer, Glen tinha tanto poder que era uma espécie de sócio júnior permanente. Tinha os arquivos e papelada de cada acordo secreto e operação ilegal. Se Ralph tentasse alguma coisa, tudo o que Glen teria de fazer era enviar alguns registros para a imprensa, o que espalharia um fedor suficientemente forte para afugentar os Red­wings de Mill Walk. As pessoas daqui querem acreditar que o legado de David Redwing está intacto. Continuarão achando que algo como o escândalo de Hasselgard é uma aberração e que Fulton Bishop é um policial comportado até que seja provado o contrário.

— Então o que podemos fazer?

— Direi. Vamos balançar a gaiola de Glendenning Upshaw. Já está perturbado -ele não sabia que os capangas de Ralph eram idiotas a ponto de saírem arrombando casas. Não vai querer encarar uma ordem de extradição quando Tim Truehart encontrar o homem que mandou matar você. Já há problemas demais em Mill Walk. Ralph Redwing está na Venezuela, esperando as coisas se acalmarem. Se eu fosse Glen, pensaria em ir para lá também.

Von Heilitz fez um sinal com o queixo como ponto final de frase, empurrando o prato vazio para o canto da mesa.

Tom balançou a cabeça.

— Gostaria realmente de machucá-lo.

— Machucá-lo é o assunto de nossa conversa.

Tom olhou para os ovos frios em seu prato e disse:

— Você não entendeu o que quis dizer.

— Oh, entendi sim. Quero tirar tudo de Glendenning Upshaw: paz de espírito, reputação, liberdade — eventualmente, a vida. Quero vê-lo pendurado na prisão de Long Bay. Ficaria contente se pudesse eu mesmo colocar a corda em seu pescoço.

Tom ergueu a cabeça, encontrando um brilho de sentimento compartilhado nos olhos do velho.

— Temos que tirá-lo do Clube dos Fundadores. — disse Tom. — Temos que apavorá-lo.

Von Heilitz acenou veementemente, os olhos ainda presos aos de Tom.

— Dê-me uma caneta — disse Tom. — Vou mostrar o que faria.

O velho tirou uma caneta-tinteiro do bolso e a empurrou através da mesa.

Tom pegou o guardanapo que estava sobre o colo e o desdobrou em cima da mesa. Desenroscou a ponta da caneta e escreveu em letras de imprensa sei o que você é na superfície áspera do guardanapo. Virou o guardanapo e o mostrou a von Heilitz.

— Exatamente. Vai achar que está sendo picado por mil abelhas ao mesmo tempo.

— Mil! — Tom sorriu em resposta, imaginando a sala de estar do avô entulhada de cartas repetindo as palavras que Jeanine Thielman escrevera para ele.

— Dois mil — disse von Heilitz.

 

Passaram por policiais que bebiam no canto do bar com saída para a Rua das Viúvas. As janelas fechadas de um carro de polícia preto e branco, estacionado numa área de estacionamento proibido logo depois da entrada, refletiam uma cimitarra de néon vermelho que piscava na janela do restaurante. À esquerda deles, carros, bicicletas, charretes, subiam e desciam a Calle Drosselmayer. O lado da rua do St. Alwyn estava mergulhado em sombras. No outro, as sombras terminavam numa linha negra e nítida, que tocava a calçada oposta. A luz do sol caía sobre um nativo descalço que cochilava na calçada em frente a uma barraquinha de chapéus e cestas sobre um pano vermelho. Ao lado do ambulante havia uma feirinha com filas de vegetais intumescidos e postas de peixe protegidas do sol por um toldo comprido. Gelo derretendo e entranhas purpúreas de peixe espalhavam-se na calçada. Do outro lado do ambulante, duas jovens corpulentas, vestidas em roupas de banho, estavam sentadas fumando nos degraus de um prédio alto e estreito chamado Hotel do Viajante. Estavam olhando a entrada da Caverna de Sinbad; quando Tom e von Heilitz saíram, elas os olharam apenas por alguns segundos, antes de focalizarem novamente a atenção na porta.

Von Heilitz cruzou diagonalmente a rua, chegou à calçada apenas a alguns passos de onde as moças estavam sentadas, e, embaixo de uma tabuleta dourada onde se lia Quinquilharias e Badulaques do Ellington, entrou numa pequena loja escura. Tom fechou a porta ao passar, e uma sineta tocou quando entrou.

Von Heilitz já se movia rapidamente por um corredor abarrotado de garrafas de molho apimentado, salmão em conserva, comida de gato e caixas de cereais que Tom nunca vira na vida — Receita da Dalila e Açúcar da Mamãe — até uma prateleira com canetas esferográficas, blocos de papel, caixas de envelopes. Von Heilitz pegou um bloco de papel amarelo e envelopes de cores variadas. Deu meia-volta e passou os objetos para Tom, girando nos calcanhares e seguindo rapidamente para outro corredor.

— Pensei que tinha dito que seriam dois mil.

— Disse que ele sentiria como fossem dois mil — von Heilitz respondeu do outro corredor.

Tom olhou por cima das prateleiras e o viu pegando pão, um saco de batatas fritas, queijo cheddar* embrulhado, uma cumbuca de margarina, um salame compri­do, uma caixa de biscoitos crackers, vidros, garrafas, sacos — passando metade disso para Tom, o resto empilhando nos braços.

* Queijo originário de Cheddar (Inglaterra), com sabor de avelã, é o mais familiar do mundo anglo-saxão. (N. do E.)

 

— Pra que toda essa comida?

— Alimentação. Para que se usa normalmente comida?

Quando ambos já carregavam tantas coisas que as pilhas de embalagens ameaça­vam cair de seus braços, von Heilitz seguiu pelo último corredor e, sem cerimônia alguma, deixou tudo que carregava cair sobre um balcão de madeira rachada. Um homem pequeno e calvo com tom de pele de bala puxa-puxa o fitou do outro lado do balcão.

— Hobart, meu velho e querido amigo, este é um amigo muito íntimo meu, Tom Pasmore.

Tom pousou suas compras, e o homem pequeno agarrou-lhe a mão.

— Lamont, como ele parece com você! Afirmo isso! Acho que deve ser seu sobrinho!

— Vamos ao mesmo alfaiate — von Heilitz respondeu, piscando para Tom. — Acha que podemos usar seu quarto dos fundos esta noite?

— Esta noite, amanhã, quando quiserem.

O dono da loja apertou a mão de von Heilitz. Em seguida, Hobart somou o total das compras num pedaço de papel e começou a pôr os mantimentos em sacolas, enquanto von Heilitz contava as notas sobre o balcão.

— Alguém virá se juntar a vocês, Lamont?

— Um outro homem. Aparência atlética, cabelos escuros. Com quase quarenta anos.

— Que horas?

Deu uma bolsa pesada para Tom com uma piscadela conspiratória.

— Dez e meia, onze horas, por aí.

Hobart encheu a segunda sacola e a deu a von Heilitz.

— As luzes estarão apagadas.

Von Heilitz marchou na direção da porta, dizendo: — Obrigado.

Hobart disse, “Ele é um grande homem”, e Tom, seguindo o detetive, respondeu, “Eu sei!” Ao sair, foi banhado pela luz do sol. Von Heilitz, carregando sua sacola, já estava no meio da rua. As duas moças em roupas de banho estavam sentadas no carro de polícia com os policiais que haviam estado no bar.

— Depressa — von Heilitz disse, abrindo a porta da Caverna de Sinbad. — Temos bilhetes a escrever, se queremos enviar ainda hoje.

 

— Pode se lembrar das palavras que ela usou? — von Heilitz perguntou a Tom. — Queremos que de alguma forma ele veja por um segundo Jeanine Thielman parada na sua frente, apontando um dedo acusador.

Do outro lado da mesa, com iniciais rabiscadas, Tom estava sentado com a caneta do velho e uma folha limpa de papel a sua frente. Sei o que você é, escreveu.

— Esta foi a primeira, depois houve outra frase.

— O segundo recado não tinha duas frases também?

Tom assentiu.

— Então escreva todas as quatro frases, em qualquer ordem, da melhor maneira que puder recordar. Depois as colocaremos na ordem certa.

— Tá legal — disse Tom. Embaixo da primeira, escreveu já foi longe demais. Embaixo dessa, escreveu alguém precisa deter você. Embaixo dessa segunda, precisa pagar por seus pecados. Olhou a lista de frases.

— Está muito bom. Espere um pouco. — Tom riscou o segundo precisa e escreveu deve. — Assim é melhor.

— A primeira dizia “Sei o que você é”, e...?

— ...e “alguém precisa deter você.” Está certo. — Tom desenhou uma linha entre a primeira e a terceira frase. — Então o segundo recado dizia “Isto já foi longe demais” e “Deve pagar por seus pecados”.

Juntou as duas frases com uma linha.

— Tente assim, e veja como sai — disse von Heilitz.

No mesmo papel, Tom escreveu

sei o que você é    alguém precisa deter você

já foi longe demais      deve por seus pecados

— Parece certo?

— Acho que sim.

Tom fitou a página, tentando recordar as palavras escritas com tinta esmaecida

sobre o papel amarelo e grosso.

— Sei o que você é, e alguém tem que deter você — disse von Heilitz.

Tom olhou para o rosto de von Heilitz e, franzindo a testa, adicionou uma vírgula e a letra e no primeiro recado. Em seguida, riscou deve e escreveu tem que no lugar.

Sei o que você é, e alguém tem que deter você.

— É isso — disse Tom. — Como sabia?

— Você me disse. Acabou de dizer exatamente essas palavras. — Ele sorriu. — Tente se lembrar se havia alguma especial na escrita, e faça quatro ou cinco cópias separadas. Tenho de fazer umas duas ligações.

Levantou-se e saiu do quarto, fechando a porta ao passar. Tom arrancou outra folha do bloco e a fitou por um instante. Levantando-se em seguida, debruçou-se na janela apoiando-se com os cotovelos. Olhando para baixo, viu as curvas dos saxo­fones e as formas escuras e intrincadas das máquinas de costura na vitrine da loja. Fechando os olhos, viu dois pedaços de papel amarelo no fundo da caixa de madeira adornada.

Lembrou de tê-los tirado, desdobrado e colocado em cima dos recortes. Viu suas mãos segurando os malditos bilhetes, o amarelo cremoso do papel. As palavras pulavam sobre ele. Longe Demais.

Tom cruzou um F com traço curvo como um saxofone. Demais, com um S angular, inclinado.

Quando Lamont von Heilitz retornou, Tom já havia escrito quatro versões de cada bilhete em pedaços separados de papel. O velho contornou a mesa e olhou o que Tom fizera. Pôs uma mão sobre o ombro de Tom.

— Acha que conseguiu?

— Foi o mais próximo que consegui chegar.

— Então vamos preparar os envelopes.

Von Heilitz passou para a outra cadeira, pôs as caixas de envelopes sobre a mesa, e tirou oito envelopes de cores diferentes. Esticou-se para trás e pegou na sacola duas canetas esferográficas.

— Você põe o endereço na metade delas, eu nas outras. Escreva o nome de seu avô e endereço em cada uma, mas varie a grafia todas as vezes. Queremos que ele abra todas as cartas.

Fez duas versões de cada bilhete e disse:

— A que fala sobre pagar seu pecado, era pecado mesmo, e não pecados?

— Tenho certeza que era.

— Bom. Acho que foi a segunda que ele recebeu, concorda comigo? Não quere­mos enviá-las misturadas. Ele deve receber quatro do primeiro bilhete hoje, e outros quatro amanhã.

Tom endereçou quatro envelopes ao sr. Glendenning Upshaw, Bobby Jones Trail, Clube dos Fundadores, Mill Walk, em estilos variados de escrita. Inseriu os bilhetes, selou-os, e os colocou em pilhas separadas.

Von Heilitz adicionou dois envelopes a cada pilha, e olhou o relógio.

— Dois minutos — o velho disse.

— O que acontece em dois minutos?

— Nosso carteiro chega.

Von Heilitz cruzou as mão por trás da cabeça, esticou as pernas, fechou os olhos. Lá na rua, um homem de meia-idade usando óculos escuros e uma camisa branca de mangas curtas passou andando pela casa de penhores e se encostou na frente de O Prato da Casa. Tirou um cigarro de um maço e inclinou a cabeça na direção da chama de um isqueiro. Espirou uma nuvem de fumaça de cor leitosa e ergueu a cabeça. Tom recuou da janela.

— Viu algo? — Os olhos do velho ainda estavam fechados.

— Só um sujeito olhando na frente do hotel.

Von Heilitz acenou com a cabeça. Um caminhão do Supermercado Ostend desceu vagarosamente a Calle Drosselmayer atrás de uma dúzia de garotas andando de bicicleta. A traseira do caminhão passou gradualmente na frente da vitrine da loja e O Prato da Casa, a mulher de vestido amarelo saiu do bar, trazendo com ela um homem com camisa xadrez. O homem de óculos escuro desaparecera.

Von Heilitz disse “Pode entrar, Andres”, e um suave ruído de maçaneta veio da porta.

Tom riu.

— Duvidava?

Von Heilitz puxou as pernas, levantou-se e caminhou até a porta. Um segundo depois, acompanhava o motorista ao quarto de Tom.

Andres lhe deu uma carteia de selos embrulhada em celofane.

— Então... quer que eu mande algumas cartas para vocês?

Contornou a mesa, onde o velho removia os selos do plástico e os colocava nas cartas.

Von Heilitz lhe passou um maço que continha um envelope vermelho, um cinza, dois brancos.

— Aqui está o que eu preciso, Andres. Todas estas cartas precisam ser enviadas hoje antes das dez, de pontos diferentes da ilha. Ponha uma na agência de correio da enseada do Olmo, outra aqui no centro, uma na baía da Tartaruga, a última em Mill Key.

Andres esquematizou com o dedo um mapa no ar, fez um sinal afirmativo com a cabeça, e colocou as cartas no bolso do lado direito de seu casaco rasgado. Von Heilitz lhe deu o segundo maço de envelopes, dizendo:

— Envie estes nos mesmos lugares depois das dez da noite. Está tudo certo?

— E não está sempre?

Colocou o segundo maço de envelopes no bolso esquerdo e, dando uma palmada no bolso esquerdo, disse:

— Estes você quer que cheguem esta tarde. — Bateu no bolso esquerdo. — Estes, quer que chegue amanhã. Da ilha toda. Moleza.

Abaixando-se, viu as compras.

— Querem que eu ligue quando terminar? Não parece que vão sair daqui.

— Telefone por volta da uma — disse von Heilitz. — Queremos lazer uma pequena viagem à tarde.

Levantando-se, levou Andres até a porta. Colocando a mão no bolso, tirou uma nota dobrada que deu ao motorista. Andres deu um tapa na testa e murmurou alguma coisa para o velho. Tirando uma brochura do bolso esquerdo, passou-a para von Heilitz, que pôs o livro no bolso do terno. Voltou para a sala, abaixou-se para onde estavam as compras, levantando-se com um saco brilhante dourado e azul.

— Que fazemos agora? — Tom perguntou.

Von Heilitz rasgou o saco e lhe ofereceu o lado aberto:

— Coma uma batata frita.

Tom tirou uma batata do saquinho. O velho pôs a embalagem sobre a mesa e contornou-a até a janela.

— O homem que você viu olhando na frente do hotel era um sujeito de aparência comum, por volta dos cinqüenta anos, com cabelo preto fino, um pouco gordo, usando botas pretas, calças marrons, camisa branca, óculos escuros?

— É ele — disse Tom, quase arrastando a cadeira até a janela.

Uma mulher imensa de gorda, carregando uma cesta de roupa suja na cabeça, passou em frente à loja de penhores.

— Bem, não está lá agora — disse von Heilitz.

Tom virou-se para ele. Tão perto, von Heilitz cheirava a sabão e a algum odor mais pessoal que parecia levemente ao aroma de uma maçã recém-aberta. As rugas nos cantos dos olhos eram tão profundas quanto estrias.

— Eu o vi no lado de fora do hotel esta manhã — disse von Heilitz, afastando-se da janela. — Não deve significar nada. Há duzentas pessoas no St. Alwyn, e praticamente todas merecem ser seguidas.

Contornou a mesa de volta, segurando o queixo pontudo na mão do jeito que uma criança segura a casquinha de sorvete.

— Ainda assim, nos próximos dois dias será melhor que fiquemos entrando e saindo pela Caverna de Sinbad.

Caiu na outra cadeira e pôs a mão no telefone, ainda segurando o queixo. Olhou para cima dizendo “Hummm”, e deixou a mão cair do queixo para discar um número.

— Alô, gostaria de falar com o sr. Thomas, por favor... Alô, sr. Thomas? Aqui é o sr. Cooper da agência central de correios, sou o subgerente de sua região... Gostaria de saber se o senhor e seus membros no Clube dos Fundadores consideram nosso serviço satisfatório... Fico muito contente em ouvir isso. Como sabe, nossos horários de entrega variam de tempos em tempos, e eu me perguntei, sendo vocês um de nossos distritos prioritários, se o senhor não acharia que os membros têm uma preferência... Bem, sr. Thomas, todos na ilha prefeririam assim, mas entrega matuti­na comprometeria o serviço de mesmo-dia do qual nos orgulhamos tanto... Entendo. Bem, falarei com o gerente de rotas. Verei se posso embaralhar um pouco as coisas, para entregar a correspondência de seus membros mais próximo ao meio-dia do que às quatro da tarde... Claro, sr. Thomas. Até logo.

Pôs o telefone no gancho e olhou para Tom.

— Temos realmente um sistema postal extraordinário, você sabe. É uma das melhores coisas na ilha.

Desenroscou-se da cadeira, foi até a janela, olhou para a calçada, e caminhou até a porta que ligava os dois quartos, esfregando as mãos.

— Acho que devemos mandar que Andres dê um pulo no Clube dos Fundadores por volta das três e meia. Não gostaria de ver o que vai acontecer quando seu avô ler as cartas?

Tom assentiu com a cabeça, cautelosamente.

— Como entramos sem passar pela casa da guarda?

Von Heilitz deu um passo súbito do vão da porta e o fitou fingindo assombro.

— Será possível que você nunca escalou uma cerca?

Tom sorriu para ele. Respondeu que provavelmente já escalara, sim, uma ou duas vezes, quando criança.

— Bem, isso é um alívio. Ah, sim. Tenho uma coisa para você ler.

Tirou a brochura do bolso e estendeu o livro para Tom.

A ilustração da capa de O homem dividido, de Timothy Underhill, era um close-up do rosto de um homem que lembrava um jovem Victor Pasmore.

Usava chapéu cinza e casaco de chuva com a gola virada para cima. Uma sombra profunda ocultava-lhe metade do rosto.

— É o livro sobre o qual lhe contei: uma forma de ver aqueles assassinatos da Rosa Azul. Vamos passar um bom tempo aqui, e como conheço você, pensei que gostaria de algo para ler.

Enquanto Tom virava o livro para ler a contracapa, von Heilitz deitou-se no sofá encostado na parede. Seus pés estendiam-se bastante da ponta do sofá.

— Estive com Tom Underhill quando ele passou uma temporada em Mill Walk fazendo pesquisa para o livro. Para ser mais exato, ficou aqui. Grande parte do livro se passa no St. Alwyn.

Von Heilitz fechou os olhos e cruzou as mãos sobre o peito.

— Quando ficarmos com fome, faremos uns sanduíches.

 

Tom foi para a cama, onde começou a ler o livro de Timothy Underhill. Depois de trinta páginas, desatou os cadarços dos sapatos pretos e lustrosos, deixando-os cair no chão. Depois de setenta, sentou-se e tirou o casaco e o colete, também arrancan­do a gravata. Von Heilitz dormia no sofá.

Tom esperara que O homem dividido fosse passado em Mill Walk, mas Underhill localizara os assassinatos numa cidade industrial do meio-oeste com cercas de arame farpado, invernos inumanos, fundições, e mil bares. A única semelhança real com Mill Walk era que os cidadãos mais afortunados viviam na parte leste, em grandes casas construídas numa escarpa sobre a margem de um lago enorme.

No início do quinto capítulo, a personagem principal do romance, um detetive de homicídios chamado Esterhaz, acordava num apartamento desconhecido. A televisão estava ligada, o ar cheirava a uísque. Tão abatido que sentia-se quase desaparecendo, Esterhaz Perambulou pelo apartamento vazio, tentando descobrir o morador e como ele acordara ali. No armário, roupas de homem e mulher pendura­das; na cozinha, garrafas de leite cheias de teias verdes de mofo cobriam os móveis. Tinha uma leve recordação de haver lutado, de bater sem controle em alguém, acertando carne inconsciente de novo e de novo; de sangue escorrendo na parede... mas não havia sangue no apartamento. Não havia sangue em suas roupas. As mãos apenas sofriam de um dolorido leve, carinhoso, como se um demônio as houvesse beijado. Uma garrafa quase vazia de uísque estava encostada na porta do quarto; Esterhaz bebeu o resto do conteúdo em goles longos, e em seguida saiu do cômodo. No assoalho, ao lado de um colchão coberto por uma manta amarrotada, achou um bilhete que dizia, Um tormenta — na multidão — uma coisa menor — que soa — Volte à noite. — G. Quem era G.? Enfiou o bilhete no bolso do blusão. Esterhaz achou seu casaco amarrotado num canto da sala, e o vestiu. Arrepiou-se com náusea, e o pensamento lhe chegou de uma só vez, como se o tivesse lido e memorizado, que a invisibilidade era mais do que uma fantasia: invisibilidade era tão real que a maior parte do mundo já mergulhara num grande reino invisível que acompanhava e zombava do visível.

Esterhaz desceu uma escada escura e barulhenta, dando com um frio arrepiante e um vento doloroso. Viu que estava na porta ao lado de um bar chamado A casa de Correção e reconheceu onde se encontrava. A quatro quarteirões dali ficava o Hotel St. Alwyn, onde duas pessoas que conhecera haviam sido mortas. Esterhaz caminhou sob uma chuva de neve até seu carro, tirou uma garrafinha do porta-luvas e abasteceu seu sistema com um pouco mais de realidade. Era alguma hora inconcebível, como seis e meia da manhã. Um pequeno tormenta na multidão, ele pensou. Aquela puta sabia do que estava falando. Prendeu a garrafinha entre as pernas, e ligando o carro, dirigiu até um estacionamento deserto de frente para o lago. Cachos e plumas de fumaça absolutamente estáticos pendiam sobre a superfície cinzenta do lago, congelados no lugar.

— Muito bom, não acha?

Tom olhou acima das memórias de plumas de fumaça sobre o lago e viu von Heilitz debruçado sobre a mesa, fazendo sanduíches com nacos de queijo cheddar e fatias de salame.

— O livro — disse von Heilitz.

 

Conduzidos por Andres, passaram pelos muros altos e brancos do Complexo Redwing e através dos velhos campos de cana-de-açúcar, onde fileiras de salgueiros, as únicas árvores que cresceriam no solo cansado, quase escondiam tudo que restava da ilha original. Mais adiante, uma elevação lisa e cinzenta tomava forma no lado direito da rodovia litorânea, e virava para a direita à medida que seguia a curva de uma estrada lateral escura. Era a estrada de acesso ao Clube dos Fundadores, e a elevação tornava-se um muro de cimento que se estendia pela extremidade sudeste da propriedade do clube até a praia ao sul da Bobby Jones Trail e o bangalô de Glendenning Upshaw. Um muro de cimento idêntico margeava a extremidade nordeste do clube. A casa da guarda estava localizada logo depois do ponto onde os dois muros estavam mais próximos. Depois da casa da guarda, a estrada de acesso dividia-se na Via Ben Hogan e na Via Babe Ruth, ambas ligando a casa do clube aos bangalôs dos membros.

— Entre no campo de cana e esconda o carro — von Heilitz mandou.

— Você manda, Lamont — respondeu Andres, que desviou o carro na direção do campo.

O velho táxi sacolejou sobre o terreno bruto, quebrando e entortando canas enquanto se dirigia para a fileira de salgueiros. Andres deu uma batidinha no volante.

— Estaremos de volta em duas horas, talvez menos — disse von Heilitz.

— Divirtam-se — disse Andres. — Mas não se machuquem.

Tom e von Heilitz saíram do carro e caminharam através dos tocos secos de cana. Atravessaram a estrada, adiante o muro de cimento branco curvava-se na direção deles, e em seguida curvava-se na outra direção, cruzando um terreno baldio e arenoso, coberto por giestas, palmas e arbustos baixos durante todo o percurso até a superfície aquosa, baixa e chapada. Von Heilitz caminhou apressado através do extenso gramado até a cerca, que não era mais do que um centímetro mais alta do que ele.

— Diga-me quando achar que estamos próximos do bangalô de Glen.

— Descendo essa trilha, na primeira estrada depois da praia.

— O último bangalô da estrada?

Heilitz olhou para trás sobre o ombro, sem alterar o passo.

Tom assentiu.

— Isso é boa sorte.

— Por quê?

— Nós podemos apenas contornar o lado mais distante do muro — descendo até a praia, onde ele acaba. Este muro é mais decorativo que eficiente.

O velho sorriu para Tom, que quase corria para acompanhá-lo.

— É sorte para você, então — disse Tom. — Acho que seria difícil para você escalar a cerca.

Von Heilitz parou de súbito.

— Acha? Acha mesmo?

— Bem, é tão alto quanto você.

— Meu caro rapaz... — disse von Heilitz.

O velho pôs as mão no topo do muro, pulou, impulsionando sem esforço o próprio corpo até a cintura estar na altura do topo liso do muro. Ergueu uma perna. Num segundo desapareceu sobre o topo. Tom pôde ouvi-lo dizendo:

— Ninguém está olhando. Sua vez.

Tom se apoiou e, com um gemido, levantou o corpo sobre o topo do muro. Sentiu o rosto enrubescer. A atadura roçou no cimento. Von Heilitz o observava ao lado de uma palmeira alta. Tom baixou o peito e tentou levantar as pernas. Os bicos de seus sapatos lustrosos bateram no lado do muro. Inclinou-se para frente, tentando elevar os quadris acima do topo, perdeu o equilíbrio e caiu no chão como um pássaro abatido.

— Nada mal — comentou von Heilitz. — Dói?

Tom esfregou o ombro.

— Não se deve fazer esse tipo de coisa usando terno.

— O ombro está bem?

— Está — Tom respondeu, sorrindo para o velho. — Pelo menos, consegui.

Olhando através das palmeiras e dunas de areia do lado de cá do muro, von Heilitz viu três fileiras de bangalôs a cerca de cem metros de distância. O último bangalô na fileira mais próxima da praia destacava-se dos outros por uma boa distância. Podiam ver, através de uma janela ampla, uma sala com mobília de couro e uma mesa pomposa.

— Diria que é aquela ali, estou certo?

— Está — respondeu Tom.

— Vamos aguardar a chegada do carteiro atrás daquelas palmeiras em frente ao último grupo de bangalôs.

Von Heilitz puxou a manga e olhou o relógio.

— Quase quinze para as quatro. Vai chegar logo.

Conseguiram atravessar a areia, movendo-se de um feixe de palmeiras para outro, até atingirem um grupo de quatro palmeiras arqueadas que cresciam a partir de um punhado de grama alta. Cocos cabeludos dispunham-se em redor deles como balas de canhão caídas. Tom sentou-se na grania ao lado do velho. Podia ver a mesa onde ele e a mãe costumavam almoçar. Através das janelas compridas, viu livros indistintos através das portas de vidro da estante, e os abajures brilhando no escritório. Era algo como a vista que a pessoa que atirou nele tivera.

Alguns minutos depois, um furgão vermelho dos correios de Mill Walk adentrou o estacionamento. Um carteiro abriu a porta e saiu para a luz do sol. Água azul cintilava por trás dele. Tirou uma sacola marrom pesada da lateral do furgão, saindo em seguida de vista, na direção dos bangalôs.

— Vai primeiro ao de Glen — disse von Heilitz. — É o mais próximo.

A voz de von Heilitz soava diferente. Tom virou-se para observar seu perfil. Uma linha cobria-lhe o topo da bochecha; os olhos estavam estreitos, e brilhavam.

— Agora... agora vamos ver.

Talvez não faça nada, Tom pensou. Talvez balance a cabeça e ponha os dedos nos cabelos. Talvez dê de ombros e atire os bilhetes na cesta de lixo.

Talvez tenhamos fantasiado tudo.

O carteiro teve de percorrer o estacionamento a pé, e depois carregar sua sacola pela Trilha Bobby James. Teve de subir as escadas e atravessar o pátio interno. Bateu à porta, e teve de esperar até que Kingsley atendesse. Kingsley teve de voltar à sala de estar para entregar a correspondência ao mestre. O mestre teve de seguir para o escritório, examinando cada carta enquanto andava.

Afinal a porta no fundo do escritório foi aberta. Glendenning Upshaw, uma grande cabeça branca encimando um terno de negror denso, surgiu, encaminhando-se à escrivaninha. Estava fitando as cartas que tinha na mão. Franzia o cenho apenas por hábito, não por raiva ou desconforto. Enquanto aproximava-se das janelas, Tom percebeu o envelope vermelho e o cinza.

— Ele os pegou — von Heilitz disse, arquejando.

O avô de Tom estava em pé atrás da cadeira da escrivaninha em seu terno negro, folheando oito ou nove cartas. Três dessas jogou imediatamente na cesta de lixo.

— Correspondência dispensável — von Heilitz comentou.

Empurrou a cadeira para longe da escrivaninha e se sentou. Tirou uma carta, cortou o longo envelope branco com um abridor de cartas, e ponderou um momen­to. Pousou-a no canto mais distante da escrivaninha, pegou uma caneta no bolso, inclinou-se para fazer uma anotação no fundo da página.

Pegou a seguir o envelope vermelho. Olhou a escrita a mão e examinou o carimbo do correio. Abriu o envelope e tirou a folha de papel amarelo. Desdobrou-a e a leu.

Tom prendeu a respiração.

O avô manteve-se imóvel por um segundo; depois, embora não tenha se movido, gesticulado, ou mudado de forma alguma, seu corpo pareceu alterar as dimensões, como se debaixo do terno negro houvesse subitamente esvaziado e se expandido como o saco aéreo de um sapo-boi. Pareceu ter sugado todo o ar do recinto para si próprio. Os braços e costas pareciam rígidos como postes.

— E aqui vamos nós.

O avô de Tom girou na cadeira para olhar através da janela para o terreno. O coração de Tom subiu-lhe pela garganta, ficando lá até Upshaw voltar lentamente a atenção para o bilhete. Fitou-o por mais um segundo. Empurrou o papel amarelo para um canto da mesa e pegou o envelope para examinar a escrita e o carimbo do correio. Olhou para trás para se certificar que a porta estava fechada, e depois virou-se novamente de frente para a janela. Pegou mais uma vez todas as cartas e as folheou, pousando na escrivaninha um envelope cinza e dois envelopes brancos. Descartou os outros e levantou cada um dos três para verificar o endereço escrito e o carimbo do correio. Abriu os envelopes um a um e leu os bilhetes. Recostou-se na cadeira, fitando o teto por um instante antes de ler os bilhetes de novo. Empurrou a cadeira para longe da escrivaninha e se levantou. Foi até a janela e olhou para a esquerda e a direita, expressando uma dissimulação que Tom nunca vira.

A linha rosada atravessando o topo da bochecha de von Heilitz havia se aquecido como uma barra de ferro.

— Ele não vai dormir muito hoje, não é?

— Ele a matou mesmo — disse Tom. — Não sei se...

Von Heilitz pôs um dedo nos lábios.

O avô de Tom dava voltas no escritório, descrevendo uma oval que o levava da estante com frente de vidro para a mesa. Cada vez que voltava à mesa, olhava os bilhetes. Enfiou-os na gaveta de cima junto com os envelopes. A terceira vez que fez isso, pegou os bilhetes e contornou a cadeira para jogá-los na cesta de lixo. Em seguida, apoiou-se pesadamente nas costas da cadeira, puxou-a e se sentou, inclinan­do-se para resgatar os bilhetes. Enfiou-os na gaveta de cima da escrivaninha com os envelopes. Abriu outra gaveta, tirou um charuto, mordeu a ponta, cuspiu-a na cesta.

— A nicotina sagrada — disse von Heilitz. — Faz a mente concentrar-se, alivia os nervos, acalma as entranhas.

Tom percebeu que observavam seu avô há apenas 15 minutos. Pareciam estar ali há horas. A angústia que se remoia dentro de si pareceu expelir-se como uma substância física. Deitou-se no capim alto e repousou a cabeça nas mãos. Von Heilitz deu-lhe um tapinha gentil no ombro.

— Ele está tentando decidir o que fazer — tentando descobrir se é arriscado dizer a alguém.

Tom levantou a cabeça e viu o avô exalando uma nuvem de fumaça branca. Colocou o charuto novamente na boca, começando a fazê-lo rodar com os dedos, como se quisesse enroscá-lo no lugar. Tom abaixou a cabeça novamente.

— Bem, ele está pegando o telefone — von Heilitz comentou. — Ainda não está certo sobre isso, mas vai fazer.

Tom olhou novamente. O avô estava sentado com o fone na mão esquerda enquanto a direita quase tocava o disco. O charuto, alojado num cinzeiro, levantava uma coluna de fumaça branca. Começou a discar. Pressionou o fone contra o ouvido. Depois de um instante, falou algumas palavras ao fone, esperou, pegou o charuto, recostou-se na cadeira para dizer mais algumas palavras. Segurava o charuto contra o peito como fosse uma mão de cartas. Desligou.

— E agora o quê? — perguntou Tom.

— Depende do que ele fizer. Se parecer estar esperando alguém, ficamos aqui. Do contrário, vamos para o hotel e voltamos quando escurecer.

O avô abriu a gaveta da escrivaninha e fitou os bilhetes. Levantou os envelopes e estudou os carimbos do correio antes de colocá-los de volta e fechar a gaveta.

— O que ele fizer agora é que vai nos dizer — avisou von Heilitz.

O avô de Tom olhou o relógio, levantou-se, tornou a andar para frente e para trás. Sentou-se no canto mais distante do recinto e voltou a brincar com o charuto. Depois de um instante, levantou-se novamente.

— Não vai demorar — von Heilitz assegurou.

Um esguio lagarto marrom de rabo curto e cabeça plistocênica arrastava-se pela areia na direção deles, os pés arredondados subindo e descendo como martelos. Ao vê-los, ergueu o focinho — uma pata em pose no ar. Uma veia pulsando visivelmente no pescoço. O lagarto deu meia-volta e disparou na direção do grupo de palmeiras mais próximo. O carteiro seguia seu caminho através da Trilha Bobby Jones. Tom suava dentro do terno. Esfregou o ombro, que ainda latejava. Um casal de cabelos brancos com roupas de golfe apareceu numa área atrás do bangalô mais distante da terceira fila; os dois deitaram-se em espreguiçadeiras para lerem revistas.

— Já provou lagarto? — perguntou von Heilitz.

— Não.

Tom sustentou a cabeça com as mãos em concha para olhar para o velho. Estava encostado numa palmeira com os joelhos dobrados, seu corpo inteiro contraído na sombra aracnoforme da coroa da palmeira, o rosto jovem e vivido.

— Qual é o gosto?

— A carne de um lagarto cru tem gosto de terra — terra úmida. Lagarto cozido é outra coisa. Se não deixá-lo secar muito, fica com o sabor exato que uma ave teria se aves tivessem barbatanas e pudessem nadar. Todo mundo sempre diz que eles têm gosto de galinha, mas lagartos são muito mais delicados. A carne tem um aroma penetrante, que lembra o do alcatrão, e o sabor é de carne de caça. Muita nutrição num lagarto. Um bom lagarto mantém você vivo uma semana.

— Onde comeu lagartos?

— México. Durante a guerra, a O.S.S.* americana me pediu investigar um grupo de executivos alemães que passavam grande parte de seu tempo viajando entre o México e vários países sul-americanos. Mill Walk era tecnicamente neutra, claro, assim como o México. Bem, esses homens estavam traçando rotas de fuga para nazistas importantes. Estabeleciam identidades, compravam terras. Mas o que vem ao caso é que um deles era doido por certos alimentos, e comia lagarto uma vez por semana.

* Sob a orientação do serviço secreto britânico, foi organizado o O.S.S. — Office of Strategic Service (Escritório de Serviços Estratégicos), precursor da atual C.I.A. — Central Intelligence Agency (Agência Central de Inteligência). O O.S.S. teve papel importante ao lado de agentes ingleses, em operações não só na França como em outros países ocupados pelos alemães, como, por exemplo, negociar a rendição dos exércitos alemães, em abril de 1945. (N. do E.)

 

— Cru ou cozido?

— Grelhado com algarobo.

Esta história, que podia ser verdadeira ou não, durou exatamente vinte minutos.

Um carro preto entrou no estacionamento. Dois homens com uniformes azuis-escuros bateram as portas. Um deles era o policial que Tom vira dando ordens a David Natchez no andar de cima do saguão do hospital, o outro, Fulton Bishop. Os dois moveram-se rapidamente através do estacionamento, desaparecendo de vista.

— Glen não vai dizer nada na frente do outro homem — von Heilitz afirmou. — Vai fazer Bishop mandá-lo sair. Veja.

O avô de Tom deu a volta pelo lado direito do quarto, sentou-se numa cadeira, erguendo-se de novo quase imediatamente. Apagou a ponta do charuto no cinzeiro. Voltou-se para a porta.

— Ouviu a campainha — von Heilitz observou.

Kingsley entrou no escritório um instante depois. Bishop e o outro homem vinham atrás dele. Kingsley fechou a porta ao sair. Glendenning Upshaw disse algumas palavras. Fulton virou-se para o outro homem e lhe indicou a porta com um gesto. O segundo policial caminhou para fora do cômodo.

— Bishop é um dos homens de Glen. Não teria uma carreira se Glen não houvesse facilitado as coisas para ele, e sem a proteção de Glen, não acredito que conseguisse reter seu poder. Mas Glen não pode acreditar suficientemente nele para lhe dizer a verdade a respeito de Jeanine Thielman. Tem de contar uma história para ele. Gostaria que pudéssemos ouvi-la.

O avô de Tom sentou atrás da escrivaninha, enquanto Fulton Bishop manteve-se em pé. Upshaw falou, levantou as mãos, gesticulou; o outro permaneceu imóvel. Upshaw mostrou a parte de cima de seu braço.

— O que é isso agora? — questionou-se von Heilitz. — Aposto...

O avô de Tom abriu a gaveta e tirou as quatro cartas e seus envelopes. Fulton Bishop andou até a escrivaninha e debruçou-se sobre os bilhetes. Fez uma pergunta, Upshaw respondeu. Bishop pegou os envelopes para examinar os carimbos do correio e a grafia. Colocou-as de novo na escrivaninha e caminhou até a janela, como se ele, também, temesse ser observado — Bishop virou-se para falar com Upshaw. Upshaw balançou a cabeça.

— Ele quer levar as cartas. Glen não quer cedê-las, mas vai.

O carteiro veio caminhando de volta ao furgão através do estacionamento.

Bishop olhou para todos os quatro bilhetes e disse algo que fez Upshaw balançar a cabeça. Bishop passou um bilhete e o envelope vermelho para o avô de Tom, desabotoou o bolso do uniforme, pôs as correspondências restantes no bolso. Glendennig Upshaw chegou suficientemente perto de Bishop para segurar seu braço. Bishop o empurrou para trás. Upshaw apontou um dedo para o peito do policial. Parecia uma conversa barulhenta. Afinal conduziu Bishop até a porta para que saísse do escritório.

— Bishop recebeu suas ordens de ação, mas não ficou muito satisfeito. Se Glen vier até a janela, olhe para a sua manga direita e veja se consegue ver alguma coisa lá.

O avô de Tom moveu-se pesadamente de volta à escrivaninha e pegou outro charuto. Mordeu, cuspiu, sentou-se para acendê-lo. Depois de alguns minutos, Fulton Bishop e o outro policial apareceram no estacionamento. Abriram as portas do carro e entraram sem trocar palavra. Glendennig Upshaw virou a cadeira da escrivaninha para a janela e expeliu fumaça. Tom não pôde ver nada que se distinguisse em sua manga. Upshaw pôs o charuto na boca, voltou-se para a escrivani­nha, inclinou-se para abrir uma gaveta do lado direito, de onde tirou uma pistola. Pousou a arma no topo da escrivaninha ao lado do bilhete e do envelope vermelho e os olhou por um instante. A seguir, pegou a pistola e verificou se estava carregada. Colocou-a na gaveta de cima, fechando-a lentamente com ambas as mãos. Empurrou a cadeira para trás e se levantou. Deu um passo na direção da janela, e ali ficou, fumando, Kingsley abriu a porta do escritório e disse alguma coisa. Upshaw fez sinal para que ele saísse sem se voltar.

Tom inclinou-se para espiar seu braço direito. Não viu nada além da manga preta.

— Acho que é impossível ver — disse von Heilitz. — Mesmo com olhos excelentes. Mas está lá.

— O quê?

— Uma faixa de luto. Ele disse a Bishop que as cartas eram sobre você.

Tom olhou novamente para o velho de cabeça branca que fumava um charuto comprido em frente à janela que dava para o terreno, e mesmo sem poder vê-la, ele a viu: viu-a porque sabia que von Heilitz estava certo, estava lá, uma faixa preta que a sra. Kingsley cortara de um velho tecido e costurara em sua manga.

O avô deu de costas para a janela e pegou o papel amarelo e o envelope vermelho. Levou-os até a parede atrás da escrivaninha, retirou um pedaço do apainelado, esticou-se para alcançar uma outra porta, interna. Bilhete e envelope desapareceram dentro da parede. Upshaw fechou a porta interna e recolocou a tampa do apainelado. Deu uma última olhada sanguinária pela janela e deixou o escritório.

— Bem, foi para isso que viemos — disse von Heilitz. — Não tem mais dúvidas, não é?

— Não — respondeu Tom, ajoelhando-se. — Não estou certo se tenho.

Von Heilitz ajudou-o a se levantar. O casal lendo revistas em seu quintal adorme­cera. Tom seguiu o detetive até o muro de concreto branco, onde von Heilitz parou e lhe estendeu as mãos enlaçadas. Tom pôs o pé direito sobre as mãos de von Heilitz, sentindo ser logo impulsionado para cima. Aterrissou do outro lado do muro com um baque que fez sua espinha ranger. Von Heilitz escalou o muro como um acrobata. Tirou a poeira das mãos; espanou camadas de areia da frente do terno.

— Vamos voltar para o hotel e telefonar para Tim Truehart.

 

Tom arrastou-se atrás do detetive com pernas que pareciam pesar cinqüenta quilos cada. O ombro ainda doía, a mão arranhada ardia, a areia nos sapatos irritava seus pés. O terno do velho pesava sobre ele como chumbo. Von Heilitz olhou para ele por cima do ombro. Tom puxou as lapelas, tentando forçar o terno a se acomodar melhor em seu corpo.

Quando chegaram ao campo de cana-de-açúcar, von Heilitz voltou-se para ele. Tom deteve o passo.

— Você está bem?

— Claro.

— Você não me parece estar muito bem agora, não é?

— Não diria isso — Tom respondeu, e isso também era verdade: ele não diria. Não diria nada.

Von Heilitz meneou a cabeça.

— Bem, vamos voltar para a cidade.

Começou a andar na direção da fileira de salgueiros. Tom o seguiu, incapaz de diminuir a distância entre os dois.

O velho esperava ao lado do carro amassado quando Tom contornou a primeira das árvores. Assim que viu Tom, abriu a porta e entrou. Tom entrou pela outra porta, como se houvesse mais duas pessoas no banco de trás.

— Tudo correu bem, Lamont? — perguntou Andres.

— Vimos o que tínhamos de ver.

Tom fechou os olhos e deixou-se cair no banco. Viu o avô inalando todo o ar do estúdio enquanto lia o bilhete amarelo. Viu-o virar-se instintivamente para a janela, como um leão sentindo uma flecha apontada para ele.

Tom nada falou durante o passeio de volta ao centro da cidade. Quando von Heilitz abriu a porta da Caverna de Sinbad para ele, passou como se temesse que o velho o tocasse.

Subiram de elevador num silêncio negro.

Von Heilitz abriu a porta para seu quarto, enquanto Tom o contornava para abrir a porta do próprio quarto. Uma camareira arrumara a cama e organizara as coisas na mesa. Os papéis e envelopes estavam empilhados numa cadeira, o queijo e a salsicha haviam sido colocados de volta nas sacas. Pegou o romance sobre os assassinatos da Rosa Azul e se atirou na cama. Da sala ao lado vieram sons de von Heilitz falando ao telefone. Tom abriu o livro e começou a ler.

Alguns minutos depois von Heilitz entrou no quarto de Tom. O rapaz mal levantou os olhos do livro. O velho virou uma cadeira e sentou-se nela de frente para o encosto.

— Quer saber o que Truehart andou fazendo?

— Tudo bem — Tom respondeu, fechando o livro.

— Descobriu um homem que Jerry pode ter contratado — um sujeito chamado Schilling que faz bico revendendo rifles usados, carros velhos, até mesmo motores de barco, qualquer coisa em que puder colocar as mãos. Cumpriu dois anos na prisão estadual de Wisconsin por receber mercadorias roubadas há alguns anos. Desde então, ele vive num lugarzinho perto de uma atração turística aquática fora do Lago da Águia. Perto daquela fábrica onde guardavam as mercadorias roubadas, também. Duas pessoas viram esse Schilling conversando com Jerry Hasek num bar. Na noite do disparo, ele desapareceu.

— Isso não prova nada.

— Não, não exatamente, mas Tim foi ao banco local. Schilling tem uma pequena conta lá. Depois que Tim teve uma conversa longa com o gerente, deu uma olhada nos registros das contas. Em cada verão, nos últimos quatro anos, Schilling vem depositando algo entre oito e dez mil em sua conta.

Von Heilitz sorriu para ele.

Tom não correspondeu.

— Schilling era o receptador de Jerry. Voltou ao velho negócio quando Jerry e seus amigos começaram a arrombar chalés.

— Que isso tem a ver com o disparo? Ou com alguém ter tentado me matar?

— No dia antes de você chegar ao Lago da Águia, nosso herói depositou cinco mil dólares em sua conta.

— Cinco mil dólares!

— Devia ser metade do pagamento. Teria recebido a outra metade quando seu corpo fosse descoberto, mas quando isso aconteceu, Jerry e seus amigos estavam atrás das grades, graças a você.

— Contratou o receptador dele para me matar?

— É provável que Schilling tenha sido voluntário ao saber que poderia ganhar dez mil dólares. Agora, a irmã de Schilling vive em Marinette, Wisconsin. Ela é casada com outro pilantra, um amigo do irmão, que está na prisão sob acusação de assalto a mão armada. Tim acha que nosso homem deve ter ido passar uma semana ou mais com ela. Ele pediu que a polícia de Marinette vigiasse a casa dela.

— Então eles devem pegá-lo. Deviam. Têm de pegar a pessoa que matou Barbara Deane.

Olhou para O homem dividido e o abriu novamente.

— Tim pensa que seu velho amigo Nappy LaBarre está quase lhe dizendo o que ele já sabe. Se prenderem Schilling, a informação de Nappy não vai lhe fazer bem algum. Nappy vai ter de delatar Schilling bem rápido, se quiser virar testemunha do Estado para ter as acusações derrubadas.

— Certo.

— É tudo o que você tem a dizer? Certo? A corda está apertando em volta do pescoço do seu avô, e tudo se deve a você.

— Eu sei.

— Faz parte da sua tristeza a respeito?

— Queria saber.

Tom viu novamente o avô, virando-se para a janela como um leão ferido.

Von Heilitz levantou-se e virou a cadeira para frente. Sentou-se de frente para Tom, pôs o cotovelo sobre o joelho, segurou o queixo com a mão.

— É só que ele é meu avô, acho. Enquanto crescia, fizeram-me pensar que ele era especial — um tipo de herói. Mantinha tudo em segurança. Tudo dependia dele. E agora eu me sinto — me sinto desligado de todos.

— Venha comigo conversar com David Natchez — disse von Heilitz. — Em primeiro lugar, você pode nos ajudar para onde Glen iria, se ele quiser se esconder em algum lugar enquanto se prepara para deixar a ilha. Ajudaria você a se recuperar do choque.

Tom balançou a cabeça.

— Estou falando sério — você sofreu um choque, e sério. Sei que você está zangado comigo, e que não quer estar. Nos últimos dois dias, tudo o que você pensava que era virou pelo avesso, e...

— Pare. Talvez eu esteja zangado com você, mas você não sabe tudo o que estou sentindo.

Dizer isso fez com que Tom se sentisse como uma criança, um menino birrento.

— Não. Mas depois que tudo estiver acabado, vamos poder conhecermos um ao outro muito melhor.

— Você não podia ter ido atrás de minha mãe, 17 anos atrás? Quando voltou a Mill Walk e descobriu que o pai dela a levara para Miami? Você só deixou que ele a levasse — você só desistiu. Devia viver do outro lado da rua, mas nunca vi você, exceto as duas vezes em que você esteve no hospital.

Von Heilitz ajeitou-se na cadeira. Parecia desconfortável, e disse:

— Glen jamais teria deixado que eu a visse. Mesmo se tivesse, ela não teria partido comigo.

— Você não sabia disso. Ela tinha mais de 18. Podia ter casado com quem quisesse. Você apenas deixou que ela caísse novamente de volta à... fragilidade. Deixou que ela fosse vendida a Victor Pasmore. Ou você pensa que Victor fosse comprado para ela, seja lá como funcionou.

Tom sentiu como se estivesse falando sobre Sarah Spence e Buddy Redwings, e outro grau de angústia o atingiu.

— Você não fez nada. — disse Tom, e depois não falou mais nada.

— Acha que não pensei nisso? Estava por volta dos quarenta anos. Estava acostumado a viver por conta própria e ia aonde eu quisesse. Não acho que daria um bom marido. Nunca pretendi ser egoísta, se é que egoísmo significa dar permissão a você mesmo para se concentrar em algumas coisas a despeito de qualquer coisa.

— Gostava de ser sozinho.

— Claro que gostava, mas essa não foi a razão mais importante. Achava que eu era apenas mais um tipo de pai para Glória. Não podia ter casamento real nessa base. Não era só isso. O que eu queria teria a matado um pouco. Não podia me casar com a filha de Glen Upshaw. Não pode ver isso? Logo depois de você nascer, comecei a perceber que ele havia matado Jeanine Thielman. Queria destruí-lo. As coisas tomaram o seu rumo porque éramos as pessoas que eram — Glória, Glen e eu. A única coisa boa que resultou de tudo isso foi você.

— Veio me ver duas vezes.

— O que acha que teria acontecido com sua mãe se tivesse insistido em vê-lo?

— O motivo não é esse. Estava ocupado demais sendo baleado e comendo lagartos, olhando através de janelas e solucionando assassinatos.

— Pode encarar dessa forma, se quiser.

— A única vez que você quis realmente passar um tempo comigo foi quando viu que podia me usar. Queria que eu ficasse interessado no que aconteceu com Jeanine Thielman. Deu-me corda como a um relógio e me deixou solto. E ficou satisfeito porque agi exatamente como você queria.

— E você fez isso por causa de quem você é. Se você fosse algum outro tipo de garoto, eu...

— Não teria feito nada.

— Mas você não era outro tipo de garoto.

— Gostaria de saber o que sou. Queria saber quem sou.

— Você é suficientemente parecido comigo para ter-me encontrado perto do carro de Hasselgard. E ter aparecido no hospital no dia em que Michael Mendenhall morreu.

— Não estou certo se quero realmente ser como você.

— Mas também não quer ser como seu avô.

Von Heilitz se levantou e olhou para Tom, deitado na cama de casal do Hotel St. Alwyn com um livro brochura ao seu lado. Tom sentiu correntes de emoção fortes e conflitantes — o velho queria ficar perto dele, pôr a mão na face dele, abraçá-lo, e o que ele tinha dito seria impossível.

— O que eu lhe disse naquela clareira era a verdade, Tom. Realmente o amo. E nós vamos fazer algo grande. Ainda há muito pela frente, mas nós o faremos — juntos.

Pôs a mão no fundo da cama, hesitou.

Tom pensou, não quero ouvir nenhum discurso, e o que von Heilitz viu em seu rosto o fez recuar da cama.

— Não precisa ir visitar Hobart comigo. Vou arrumar as coisas para você antes de partir.

Tom assentiu, mal sabendo o que queria mais, muito triste para pensar com clareza. Não viu von Heilitz deixar o quarto. A porta que ligava os dois quartos fechou. Pegou o livro e começou a ler. Podia ouvir von Heilitz andando em seu quarto. No livro, Esterhaz dirigia ao longo da margem de um lago nebuloso. Esterhaz sentia que outra pessoa, uma pessoa quase invisível de grande poder, vivia dentro dele; uma outra pessoa que era alguém que ele já fora. Von Heilitz começou a falar no telefone. Por que falei com ele desse jeito? É como se eu exigisse que ele fosse um pai comum. Victor Pasmore era um pai comum e um desses era suficiente. Tom quase saiu da cama para ir ao outro quarto. Entretanto, sua tristeza constante, uma tristeza que tinha gosto de raiva, o manteve preso à cama e ao livro.

Havia muita invisibilidade no mundo, pensou Esterhaz. Tomou outro gole da garrafinha presa no cinto. Muita gente desaparecia nela, e as outras pessoas nem reparavam. Arrependimento exercia um papel, humilhação também. Era uma ante­cipação da morte, morte como uma primeira parcela da morte. Ser deixado de lado pelo mundo era uma boa parte disso. Alcoólatras, libertinos, assassinos, combatentes depois da guerra, músicos, detetives, viciados, poetas, barbeiros, cabeleireiros... à medida que o mundo visível tornava-se mais e mais povoado, assim também se tornava sua contraparte invisível. Esterhaz parou num sinal vermelho; por um instante, permitiu a si mesmo vislumbrar o mundo invisível que acabara de imaginar. Uma turba de invisíveis indiferentes e infiltrados, vestidos em trapos e roupas velhas, bebendo de garrafas como a dele mesmo ou debruçados em postes, caídos nas calçadas cheias de neve, apareceram sem esforço.

Tom tirou os olhos do livro, despertado pela memória que parecia provir de alguma versão dele mesmo, escondida em seu interior — uma memória de ter visto a si mesmo neste quarto ensebado, sozinho, lendo o livro que lê agora. Havia visto o ser que ele é agora, o Tom quase crescido. Uma violência quase abstrata circundava essa lembrança — uma explosão de fumaça e fogo — como circundara Esterhaz.

Exaustão que parecia vir de cada célula do corpo o impulsionava para baixo, e Tom pensava, tenho de me levantar, mas o livro escorregava de sua mão, e ele via o animal enjaulado que era seu avô avançando com seu corpo pesado contra a janela quando a flecha acertava sua anca. Segurou o livro. Os dedos tocaram a metade negra do rosto na capa; seu avô levantou os olhos do bilhete amarelo para os seus próprios, e ele estava dormindo.

Ou não. Olhou pela janela uma vez, vendo o ar escurecer. Algum tempo depois, ouviu Lamont von Heilitz atravessar a porta e caminhar até o lado da cama. Vou com você, ele disse, mas as palavras permaneciam dentro dele. O velho desamarrou os sapatos de Tom e tirou-os de seus pés. “Caro Tom”, von Heilitz disse. “Tudo bem. Não se preocupe com nada do que falou.”

— Não — Tom respondeu, querendo dizer, não vá, tenho de ir com você. Von Heilitz deu um tapinha no ombro do rapaz e se inclinou para beijar-lhe a testa. Recuou, afastou-se, e uma linha de luz entrou no quarto, proveniente da porta. Ele fora embora.

Tom descia um corredor nevoento na direção de um garotinho louro numa cadeira de rodas. Ao tocar o ombro do garoto, ele levantou os olhos de um livro em seu colo com uma expressão escurecida pela fúria e humilhação.

— Não se preocupe — disse Tom.

 

Levemente ciente da presença de uma multidão de figuras flutuantes, Tom se inclinou para perto do garoto e viu que olhava para seu próprio, agora quase irreconhecível, rosto de menino. O coração bateu mais forte, e ele abriu os olhos para um quarto escuro no Hotel St. Alwyn. O brilho amarelado de uma lâmpada de rua atravessava a janela, um traço fino de luz tocava o teto. Esticou o braço até o abajur ao lado da cama, ainda vendo na mente o rosto do garotinho na cadeira de rodas. A luz súbita focou o quarto. Tom esfregou o rosto e resmungou.

— Já voltou? Lamont?

Era a primeira vez que usava o primeiro nome do velho, e ele saía de sua boca de forma desconfortável. Nenhuma resposta chegou da outra sala.

Tom olhou o relógio e viu que era dez e quinze. Concluiu que estivera dormindo por três ou quatro horas. Jogou as pernas para fora da cama e caminhou com pernas rígidas até a porta que ligava os dois quartos.

— Oi! — ele chamou, pensando que von Heilitz devia ter voltado do encontro com Hobart e ido para a cama. Não houve resposta. Tom abriu a porta. Aqui havia outro quarto escuro, idêntico ao seu — duas cadeiras numa mesa redonda ao lado da janela, uma cama de casal, sofá, armário, banheiro. A cama estava feita, e uma depressão no travesseiro, além de dobras no lençol, revelavam onde von Heilitz havia se deitado.

Sentindo como se estivesse invadindo,Tom caminhou através do quarto escuro até a janela. Uma charrete subia a Calle Drosselmayer, os faróis dos carros brilhando por trás dos flancos musculosos de uma parelha de cavalos negros. Algumas pessoas caminhavam sob o clima morno da noite, um grupo de marinheiros corria pela rua. O gradil já descera sobre a vitrine da loja de penhores. Um homem obeso com camisa branca e calça marrom estava encostado contra a parede do lado da entrada para O Prato da Casa, fumando e olhando para o outro lado da rua, na direção dos degraus do hotel. O homem olhou para cima, e Tom recuou da janela. O homem bocejou, cruzou os braços sobre o peito, jogou um cigarro na rua.

Tom voltou para esperar em seu próprio quarto o Sombra retornar de seu encontro com David Natchez. Comeu pão com queijo e salame, e leu vinte páginas de O homem dividido. Quando von Heilitz saíra para seu encontro com Hobart? Duas horas atrás? Nervoso, Tom pousou o livro aberto na mesa e caminhou pelo quarto, ao ouvir ruídos no corredor deserto e uma fileira comprida de portas marrons com números metálicos. Alguém no fundo do corredor tocava escalas numa saxofone-tenor, outra pessoa escutava rádio. Passos chegaram a ele, vindos da curva que levava às escadas, e Tom escondeu-se atrás de sua porta. Os passos dobraram a curva, chegaram mais perto, passaram pela sua porta. Espiou e viu um homenzinho andando na direção de uma porta no fim do corredor. Bateu, e o saxofone inseriu abruptamente dois toques na escala mi-menor.

— Ei, Glenroy — disse o homem na porta.

Tom colocou a cabeça para fora, mas não viu nada mais do que a porta sendo aberta o suficiente para o tocador de trumpete esgueirar-se para o quarto.

Sentou-se à mesa e comeu outro pedaço de queijo. Tirou sua chave do bolso e riscou TP na madeira, ao lado do PD. Depois, tentou apagar, mas apenas escureceu as linhas brancas e finas. Quando olhou pela janela, o homem de camisa branca estava observando um grupo de mulheres que havia acabado de sair de O Prato da Casa e subiam a Calle Drossemayer, falando e rindo. Tom puxou o telefone para mais perto e discou o número de Sarah Spence.

Ela respondeu no meio do primeiro toque; ele a imaginou assistindo televisão no palácio dos sonhos de Anton Goetz, esticando a mão com os olhos ainda na tela, dizendo absorta:

— Alô?

Ele não podia falar.

— Alô?

O que diria às pessoas?, Tom falou em silêncio. A quem você contaria?

— Há alguém aí?

Por mais tempo do que ele esperara, ela continuou segurando o fone, esperando resposta.

Então:

— Tom?

Ele respirou profundamente.

— É você, Tom?

Muito debilmente, ele pôde escutar o som da tevê atrás da voz dela. De mais longe ainda que a televisão, a mãe dela gritou:

— Picou maluca?

Tom desligou, depois ligou para a própria casa, sem idéia alguma do que diria a sua mãe, ou se ele diria alguma coisa. O telefone tocou duas vezes, três vezes. Quando pegaram o telefone, a voz do dr. Milton disse:

— Aqui é a residência dos Pasmores.

Tom bateu o telefone.

Olhou o relógio, observando o ponteiro dos minutos mudar de dez e cinqüenta para dez e cinqüenta e um.

Em seguida, pegou novamente o telefone e discou o número de von Heilitz. O telefone tocou e tocou. Tom contou dez toques, 11, 15, e desistiu.

Incapaz de ficar mais tempo no quarto, foi para a cama e colocou os sapatos que von Heilitz tirara dele, jogou água no rosto no banheiro, viu um rosto pálido no espelho, enxugou-se e arrumou a gravata, saindo para o corredor. Através da última porta, vinham os sons de um trompete e um saxofone tenor, tocando suavemente Someone to watch over me em uníssono. Vozes flutuaram na direção dele. Andou até as escadas e desceu para o saguão.

Alguns marinheiros haviam se espalhado da Caverna de Sinbad, e mantinham um nó apertado ao redor da porta, segurando copos e garrafas de cerveja. O atendente da noite estava em sua mesa, debruçado numa poça de luz, folheando lentamente o Eyewitness. Tom desceu os últimos degraus. O atendente e uns poucos marinheiros olharam para ele, mas logo desviaram sua atenção. Uma música percussiva de vitrola automática vinha do bar. Luz elétrica caía sobre cadeiras e sofá roídos por insetos, iluminando detalhes vermelhos e azuis no tapete oriental. Do outro lado das portas de vidro do St. Alwyn, carros enfileiravam-se na rua. Tom cortou seu caminho através dos marinheiros, que se separaram para que pudesse abrir a porta do bar.

A música percussiva chiou imediatamente dentro de sua cabeça. Mulheres, marinheiros e homens com camisas berrantes enchiam a sala com gritos, gargalhadas e fumaça de cigarro. Dois marinheiros dançavam na frente do bar entupido, balan­çando os braços, estalando os dedos, tentando — apesar de bêbados — manter-se no ritmo da música. Tom lentamente conseguiu passar pelo bar, espremendo-se através dos marinheiros e suas garotas, fumaça de cigarro fazendo seus olhos lacrimejarem. Afinal alcançou a porta, saindo para a Rua das Viúvas.

O mercado estava fechado, mas o ambulante ainda sentava-se em seu tapete, ao lado de chapéus e cestas, falando consigo mesmo ou com fregueses imaginários. Do outro lado da rua, homens subiam os degraus para o Hotel dos Viajantes. Um sinal de fechado estava pendurado na porta do Badulaques e Bugigangas do Ellington. Quando a luz mudou, os carros e charretes começaram a se mover pela Calle Drosselmayer. O ping-ping-ping da música soava através da janela, em harmonia com o piscar da cimitarra de néon. Quando o trânsito parou, Tom atravessou a rua correndo.

— Chapéus para sua dama, chapéus para você, cestas para o mercado — cantava o ambulante descalço.

Tom bateu à porta de Hobart. Nenhuma luz acendeu na loja.

— Não tem ninguém aí dentro, os armários estão vazios — o ambulante lhe disse.

Tom bateu novamente. Verificou a moldura da porta, achando um botão de cobre, que apertou até ver uma pequena figura escura movendo-se na direção dele através do interior da loja.

— Fechado! — Hobart gritou.

Tom recuou um passo para que o lojista pudesse ver seu rosto. Hobart correu para a porta e a abriu, puxando Tom para dentro.

— O que quer? Que está procurando?

— Meu amigo ainda está aqui?

Hobart recuou um passo.

— Que amigo? E eu sei de que amigo você está falando?

Usava um pijama creme comprido, que o fazia parecer um boneco zangado.

— Lamont von Heilitz. Vim aqui com ele esta manhã. Compramos um monte de coisas — você disse que eu parecia ser sobrinho dele.

— Talvez sim, talvez não. Talvez um homem tenha dito que ia a algum lugar, talvez nunca tenha estado aqui. Ninguém diz nada a Hobart — não há razão para dizer alguma coisa a Hobart, não sabia?

Hobart fitou-o petrificado antes de dar um passo na direção da porta.

— Quer dizer que ele não veio?

— Se você não sabe, talvez não deva saber. Como vou saber o que você é? Você não é sobrinho daquele homem.

— A polícia esteve aqui?

— Alguém esteve aqui — Hobart admitiu. — Talvez tenha sido ele.

— E meu amigo nunca veio para o encontro — disse Tom, por um segundo, estarrecido demais para se preocupar.

— Se você fosse amigo dele, como não ia saber disso?

— Ele saiu do hotel há algumas horas para vir aqui.

— Pode ser isso o que ele disse a você. Homens vêm aqui e esperam, podia ser isso que ele quisesse fazer. Vejo que está preocupado, mas vou lhe dizer uma coisa, me preocupo com Lamont há vinte, trinta anos, e isso nunca me fez bem. Ele bota uma peruca velha, se cobre de trapos, e fica parado numa esquina em algum lugar esperando por algo que ele sabe que vai acontecer.

Hobart colocou a mão na maçaneta.

— Quanto tempo o outro homem esperou por ele?

— Ficou aqui uma hora, e quando saiu estava soltando fumaça. Não espere favores desse homem.

Os dentes de Hobart brilharam na loja escura.

— Quase arrancou minha sineta, do jeito que ele atravessou a porta.

Deu um tapinha no ombro de Tom.

— Deve voltar e esperar por ele. É o jeito que seu amigo trabalha, ainda não sabe disso?

— Acho que não.

— Não fique preocupado.

Hobart esticou a mão para segurar a sineta com uma mão enquanto abria a porta com a outra.

— Isso foi o que ele me falou — disse Tom, e saiu. A porta fechou-se silenciosa­mente atrás dele.

— Entrou, mas comprou? — o ambulante cantarolou.

Tom olhou a figura descalça encostada na parede. Ele quase riu alto — o alívio fazendo-o sentir-se mais leve que o ar. Passou em frente à entrada do Hotel dos Viajantes na direção do ambulante, ajoelhando-se na calçada ao lado dele.

— Você me deixou preocupado — ele sussurrou. — Por que você não...

O ambulante era trinta centímetros mais baixo que von Heilitz. Dois dentes animalescos pendiam em sua boca, cicatrizes marrons cerravam seus dois olhos.

— Cesta ou chapéu?

— Chapéu — disse Tom.

— Três dólares. Pegue seu tamanho. Pegue seu tamanho.

Tom deu moedas ao homem e pegou um chapéu ao acaso.

— Você ouviu uma briga, ou um tumulto, algo assim, há umas duas horas? Deve ter sido do lado de fora do bar do outro lado da rua.

— Ouvi o anjo do Senhor — disse o vendedor. — E ouvi o anjo da Escuridão, caminhando para cima e para baixo do mundo. Vai ficar bonito com o chapéu.

Tom deu o chapéu a um marinheiro ao passar pelo bar voltando para o quarto. O marinheiro o pôs na cabeça de uma prostituta bonita.

 

Risadas, conversas em voz baixa, e música infiltravam-se no corredor ‘do quarto andar. Tom entrou no quarto e foi até a janela sem acender nenhuma das luzes. O homem de camisa branca estava limpando os dentes com uma tesoura de unha, e uma jovem com shorts apertados, saltos altos, camiseta decotada, sussurrava em seu ouvido. O homem balançou a cabeça. Ela se encostou nele, esfregando os peitos em seu braço. O homem parou de limpar os dentes. Virou a cabeça e disse duas ou três palavras que fizeram a garota pular para longe dele como se houvesse sido picada.

Tom puxou uma cadeira para perto da janela e se sentou, o queixo apoiado nos antebraços. Depois de dois ou três minutos, levantou a janela. Ar quente e úmido despejou-se sobre ele. Tráfego contínuo passava na frente do hotel na Calle Drossel­mayer. De vez em quando um táxi parava, deixando casais e homens solteiros que atravessavam a calçada e subiam os degraus do hotel.

À uma, o homem de camisa branca entrou no O Prato da Casa. Saiu dez minutos depois e voltou à parede.

Tom fora, pelo menos parcialmente, tranqüilizado com a conversa com Hobart Ellington. Por um bom tempo, observou a rua embaixo dele, esperando o som de Lamont von Heilitz entrando no quarto ao lado. Tom jamais vira o que acontecia à noite no centro de Mill Walk. Enquanto aguardava, esperando que o velho chegasse a qualquer momento, observou a vida na rua, fascinado. O número dos carros e de outros tipos de veículos na rua aumentara, e mais e mais pessoas caminhavam nas calçadas: em casais, os braços enlaçando as cinturas um do outro; em grupos de cinco ou seis, carregando garrafas e copos, promovendo uma festa ambulante. Homens e mulheres na calçada de vez em quando reconheciam pessoas nos carros e charretes, e gritavam saudações, e algumas vezes atravessavam correndo o tráfego para juntarem-se aos amigos. Neil Langenheim entrou numa carruagem aberta, bêbado demais para se sentar direito, enquanto uma garota de cabelos desgrenhados dobrava-se por cima dele, aconchegando em si seu rosto vermelho. Moonie Firestone passou no banco da frente de um Cadillac conversível, seu braço confortavelmente apoiado ao redor do pescoço de um homem de cabelos brancos. À uma e meia, quando o tráfego estava em seu pico, ouviu passos no corredor, pulando para a porta de ligação entre os quartos. Quando os passos continuaram descendo o corredor em direção à festa no quarto de Glenroy Breakstone, voltou para a janela e viu a cabeça de uma garota com cabelos na altura dos ombros aninhada no ombro de um homem de cabelos escuros dirigindo outro conversível comprido. Era Sarah Spence, ele pensou, e depois concluiu que não podia ser. A garota se mexeu, ele viu de relance o perfil dela, pensou novamente que era Sarah. O carro desapareceu de vista, deixando-o com sua incerteza.

Pelas duas e meia a multidão já sumira, deixando apenas alguns grupos de jovens, a maior parte rapazes, subindo e descendo a calçada. O homem de camisa branca desaparecera. Às três, uma maré de homens e mulheres saíram de O Prato da Casa e ficaram indecisos ali na frente enquanto as luzes apagavam-se atrás deles, e sumiram. Os ruídos do fundo do corredor haviam cessado. Vozes altas e passos fizeram-se ouvir na frente da porta. Um carro subiu a Calle Drosselmayer. Luzes de tráfego brilhavam em verde e vermelho. As pálpebras de Tom fecharam-se.

Ruídos da rua — um sucateiro enfiando caixas de garrafas vazias num carrinho — trouxe-o à semiconsciência horas depois. Ainda estava escuro lá fora. Cambaleou até a cama e caiu sobre os cobertores.

 

Foi acordado às dez pela fome. Deixou a cama e olhou o outro quarto. Von Heilitz não retornara. Tom banhou-se e colocou cuecas e meias limpas. Vestiu uma camisa rosa-clara e terno de linho azul que recordava da primeira visita que fizera à casa de von Heilitz. Antes de abotoar o colete duplo, deu nó numa gravata azul-escura. Usando roupas de von Heilitz, caminhou de volta à outra sala, pensando que o detetive poderia ter entrado e saído quando ele estava dormindo, mas não havia nenhum bilhete na mesa ou na cama.

O proprietário da loja de penhores estava levantando o gradil. O homem de camisa branca, assim como von Heilitz, ainda não havia retornado.

Tom sentou-se no canto da cama, quase tonto de preocupação. Parecia que deveria ficar nesse quartinho para sempre. Seu estômago resmungou. Tirou a carteira e contou o dinheiro — 53 dólares. Quanto tempo poderia ficar no St. Alwyn com 53 dólares? Cinco dias? Uma semana? Se eu descer para comer ele estará aqui quando eu voltar, Tom pensou, permitindo-se sair para o corredor.

O atendente diurno levantou os olhos quando Tom perguntou se haviam deixado alguma mensagem para ele, e olhou sobre o ombro para uma fileira de caixas vazias.

— Você acha que há alguma mensagem?

Tom comprou um exemplar volumoso do Eyewitness.

Tom foi até a Caverna de Sinbad e comeu ovos mexidos com bacon, enquanto um corcunda limpava cerveja derramada no chão. O jornal nada dizia a respeito do incêndio no Lago da Águia ou sobre Jerry Hasek e seus comparsas. Um parágrafo na coluna social dizia que o sr. e a sra. Redwing haviam decidido passar o resto do verão em Tranquility, sua belíssima propriedade na Venezuela, onde pretendiam entreter muitos amigos nos próximos meses. Tranquility tinha seu próprio campo de golfe de 18 buracos, uma piscina interna e uma externa, uma janela colorida do século XIII que Katinka Redwing arrecadara em leilão na França, e uma biblioteca particular com oito mil volumes raros. Também abrigava a famosa coleção Redwing de arte religiosa sul-americana. A porta da rua se abriu, e Tom olhou por cima do ombro para ver os mesmos dois policiais que haviam estado lá um dia antes enchendo as panças no bar.

— O de sempre — disse um deles.

O barman pôs uma garrafa de rum e dois copos na frente deles.

— Para começar outro dia perfeito — um dos policiais disse.

Tom voltou aos seus ovos mexidos, ouvindo o clique dos copos se encontrando.

Voltou ao saguão e subiu as escadas, rezando para encontrar o velho em seu quarto, andando impacientemente entre a cama e a janela, querendo saber onde ele fora. Tom desceu o corredor e pôs sua chave na fechadura. Por favor. Virou a chave e abriu a porta. Por favor. Estava olhando para um quarto vazio. A comida no estômago virara cabelo e pó de tijolo. Entrou e se encostou contra a porta. Foi até a porta entre os quartos. O outro quarto também estava vazio. Lutando contra o demônio do pânico, Tom foi até o armário e pôs a mão no bolso do terno que ele usara no dia anterior. Encontrando o cartão, foi até a mesa para discar o número de Andres.

Uma mulher respondeu. Quando Tom pediu para falar com Andres, ela disse que ele estava dormindo.

— É uma emergência. A senhora poderia acordá-lo?

— Ele trabalhou a noite toda, senhor. Será uma emergência se ele não puder descansar.

Ela desligou.

Tom discou o número novamente, e a mulher disse: — Olha, eu lhe disse...

— É a respeito de von Heilitz.

— Ah, entendo.

Ela pousou o telefone. Alguns minutos depois, uma voz grossa disse:

— Comece a falar, e é melhor que faça parecer interessante.

— Aqui é Tom Pasmore, Andres.

— Quem? Ah, o amigo de Lamont.

— Andres, estou muito preocupado com Lamont. Ele saiu para encontrar um policial ontem no início da noite, e ele não chegou ao encontro. E ainda não voltou.

— Você me acordou para isso? Não sabe que Lamont desaparece o tempo todo? Por que acha que o chamam de Sombra, cara? Basta esperar por ele, ele volta.

— Esperei a noite inteira. Andres, ele me disse que voltaria.

— Talvez fosse o que ele queria que você pensasse.

Era como falar com Hobart Ellington. Tom não respondeu nada, e finalmente Andres bocejou, dizendo:

— Tá, o que você quer que eu faça?

— Quero ir à casa dele.

Andres suspirou.

— Tudo bem. Mas me dê uma hora. Tenho de fazer um bule de café antes de mais nada.

— Uma hora?

— Leia um livro.

Tom pediu a ele que o pegasse na entrada do Caverna de Sinbad às onze e meia.

 

Ao lado das máquinas de costura e a fileira de saxofone com pescoços curvados como o topo do “T” maiúsculo de Jeanine Thielman, um homem em seus cinqüenta anos, usando uma camisa branca com as mangas enroladas, estava encostado contra a parede. Puxou um cigarro enquanto olhava para a entrada do St. Alwyn através de seus óculos escuros. Tom recuou da janela e começou a dar voltas no quarto. Entendeu por que as pessoas arrancavam seus cabelos, roíam as unhas, batiam as cabeças contra as paredes. Tais atividades não eram brilhantes, mas mantinham as mentes alheias das ansiedades.

Uma idéia lhe ocorreu — talvez também não fosse brilhante, mas ajudaria a preencher o tempo até que Andres chegasse. E isso responderia à pergunta que ele não tinha conseguido perguntar a Kate Redwing, na época em que ele achava que seu problema mais sério era suportar refeições solitárias no clube do Lago da Águia. Sentou-se e pegou o telefone — e quase começou a mastigar as unhas, por pura dúvida de que o que estava para fazer era certo ou não. Pensou em Esterhaz tirando sua garrafa, vendo fantasmas ao redor dele. Pensou também num detetive verdadei­ro, que se matara. Discou para informações e pediu um número de telefone.

Sem dar a si mesmo tempo para reconsiderar, discou o número.

— Alô — disse a voz que trouxe de volta uma avenida de árvores e o toque da água gelada contra sua pele.

— Buzz, aqui é Tom Pasmore.

Houve um instante de silêncio atônito antes de Buzz dizer:

— Acho que você não leu os jornais. Ou este é um chamado de distância muito longa?

— Outra pessoa morreu no incêndio, e eu voltei para a ilha com Lamont von Heilitz. Mas ninguém mais sabe que estou vivo, Buzz, e eu quero que você não diga a ninguém. É importante. Todo mundo vai saber daqui a alguns dias, mas até lá...

— Não vou dizer a ninguém, se você quiser permanecer morto. Bem, eu talvez diga a Roddy — está se sentindo tão mal quanto eu. Na verdade, mal posso acreditar que estou falando com você! Liguei para sua casa para falar com sua mãe, mas Bonaventure Milton atendeu, e percebi que ele não me deixaria falar com ela...

Buzz inalou e soltou a respiração umas duas vezes.

— Francamente, estou enrolando. Estou tão satisfeito que você esteja vivo! Roddy e eu lemos o artigo no jornal, e nos lembramos das vezes em que você quase foi ferido, e nós pensamos... você sabe...

— Sim.

— Meu Deus. De quem era o corpo que eles encontraram se não era o seu?

— Era o de Barbara Deane.

— Oh, céus. Claro. E você voltou com Lamont? Nem sabia que você conhecia ele.

— Ele conhece todo mundo.

— Tom — disse Buzz — Você recuperou nosso retrato! Não sei como você fez, mas foi brilhante. Roddy e eu estamos em débito eterno com você. A polícia do Lago da Águia ligou ontem à noite para dizer que ele está salvo. Há alguma coisa no mundo que eu possa fazer por você?

— Há uma coisa. Isso vai parecer engraçado, e talvez você ache que não é da minha conta.

— Tente.

— Kate Redwing me disse alguma coisa sobre seu primeiro trabalho.

— Ah — Buzz manteve-se em silêncio por um momento. — E você ficou curioso com isso — sobre o que aconteceu.

— Sim.

— Ela lhe contou que eu estava trabalhando com Boney Milton?

— Ela só disse que era um médico importante, e alguma coisa me fez lembrar disso há uns poucos minutos.

Buzz hesitou novamente.

— Bem, eu... — Ele riu. — Isto é um pouco embaraçoso para mim. Mas eu posso lhe contar parte da sujeira toda sem violar a privacidade de ninguém, eu acho. Costumava levar as fichas de Boney para casa à noite, para colocar em dia os históricos dos pacientes. Como eu era pediatra, no início só lia as fichas das crianças que eu estava examinando, mas depois comecei a ver as fichas dos pais também. Assim, podia ter todo o histórico da família na mente quando visse a criança. Tive a idéia de que o que acontecia aos pais exercia algum tipo de influência nas vidas das crianças — Boney não concordava muito com a idéia, o que é típico dele, aliás. Mas ele não se importava muito, e eu sempre sabia agir com bastante tato quando notava que ele havia se enganado ou deixado passar alguma coisa. Mas uma vez trouxe por engano as fichas de alguns pacientes que ele reservava para si, e pensei encontrar algumas indicações clássicas de problemas graves, se você entende o que quero dizer. Caroços, sangra-mentos vaginais, e mais algumas coisas que deveriam ter estimulado pelo menos investigações adicionais e possivelmente atestavam a necessidade de aconselhamento psiquiátrico. Entende do que estou falando? Isso fora na infância da mulher. Real­mente, só podia indicar uma coisa. Não posso ser mais específico, Tom. De qualquer forma, disse alguma coisa sobre isso a Boney, e ele subiu pelas paredes. Fiquei revoltado com isso, e é por esse motivo que não tenho pacientes em Monte Umbroso.

— Conheceu um policial chamado Damrosch?

— Está cavando alguma coisa, não está? Não, na verdade não. Ouvi falar dele, e o teria reconhecido se o visse na rua. O período do qual estive falando foi por volta do tempo daqueles crimes da Rosa Azul.

— Depois do primeiro?

— Depois dos dois primeiros, acho. Acharam que eu seria o terceiro, como acredito que você já saiba. Não são mesmo minhas lembranças favoritas. Lamont deve ter lhe contado minha relação com tudo aquilo.

Tom disse que sim.

— Claro que não há relação entre meu encontro com um maníaco e Boney ter-me despedido — ainda não estou convencido de que Damrosch era a pessoa que me atacou, mas posso lhe dizer uma coisa — tenho certeza absoluta de que não foi Boney!

— Não — disse Tom, embora pensando que nesse momento quase qualquer coisa poderia parecer possível para ele.

Eles disseram até logo alguns momentos depois. Tom andou em círculos pela sala, pensando sobre o que Buzz lhe havia dito, e depois, não conseguindo mais suportar a tensão de estar sozinho, permitiu-se sair para o corredor e descer para o bar. Bebeu duas Cocas e ficou olhando pela janela através da cimitarra piscando. Um táxi diminuiu a velocidade e freou.

 

Tom de agachou no banco traseiro quando Andres virou a oeste na Calle Drossel­mayer.

— E o que é agora? — disse Andres. — Acha que algum sujeito está vigiando você?

Tomou um gole de café numa xícara de plástico com um buraco na tampa.

— Como começou a pensar que esse sujeito o está vigiando?

Tom se endireitou lentamente no assento. Estavam a um quarteirão do hotel. Duzentos metros à frente ficavam as lojas brilhantes que haviam parecido um paraíso de coisas terrenas do carrinho de Sarah Spence.

— Viu um homem com óculos escuros e camisa branca em frente ao hotel, do outro lado da rua?

— Devo ter visto o homem. Não direi que não.

— Lamont o viu quando chegamos ao St. Alwyn. Tem estado lá desde então, apenas observando a frente do hotel.

— Bem, cuidado não machuca. — Andres admitiu. — Mas não há sentido no que estamos fazendo agora. Me tira da minha cama, procura por Lamont. Quando Lamont não quer ser visto, ninguém na Terra é capaz de achá-lo. Conheço Lamont há quarenta anos, e sei que o homem o pode deixar maluco. Ele não dá satisfações do que faz. Isso é verdade! Ele diz, estarei aqui, e ele está? Às vezes. Ele diz, verei você em duas horas, e quando ele chega? Talvez em dois dias. Acha que Lamont se importa se eu saio da cama depois de dormir duas horas? Não. Acha que Lamont se importa se você fica preocupado quando ele se ausenta? Posso assegurar-lhe, amigo, não mesmo. Este é Lamont. Lamont sempre está trabalhando. Vem aqui, vai ali, fica parado na chuva por duas horas, e quando acaba, ele diz: “Pouquíssimos homens em Mill Walk usam meias roxas”. Ele toca uma música diferente na cabeça.

— Sei, mas...

Andres ainda não tinha acabado.

— E agora estamos indo para a casa dele! Você tem chave? Acha que ele deixa a porta aberta? Não pode prever o que Lamont faz, sabia?

— Não quero me antecipar a ele, só encontrá-lo. Se quiser voltar para cama, vou andando.

— Vai andando. Você pensa igualzinho a ele. Está tão preocupado com Lamont que ficou acordado a noite inteira, e quer que eu volte para a cama. O que você acha que acontece, se eu voltar para casa? Minha mulher me pergunta: achou Lamont? Eu digo, não, preciso descansar. Ela diz: você descansa depois de achar Lamont!

Balançou a cabeça, continuando:

— Não é fácil ser amigo dele. Quem você acha que o encontrou quando ele foi quase morto em Armory Place? Quem você acha que o levou ao hospital? Acha que fez aquilo sozinho?

— Está preocupado também — Tom disse, tendo acabado de perceber isso.

— Não está me ouvindo. Minha função é essa, preocupar-me com Lamont von Heilitz. Então vamos até a casa dele; você vai entrar e o encontrar fazendo uma xícara de chá, e ele dirá: “o cavalo do seu avô quebrou a pata direita”, e você vai voltar para o hotel e pensar sobre isso, e eu vou voltar para a cama para não pensar sobre isso. Porque tenho mais a fazer do que pensar sobre as coisas que ele diz.

Andres saiu da Calle Berlinstrasse, entrando na Trilha Edgewater, Praça Waterloo, Viela Balacava, Rua Omdurman. As casas ficavam cada vez mais distantes umas das outras. Terraço Victoria, Círculo de Stonehenge, Propriedade Ely, Rua Salisbury. Agora estava de volta à paisagem pacífica da infância, onde irrigadores giravam e gramados compridos, onde o sol caía em buganvílias e hibiscos com flores vermelhas pendentes. Aqui, todas as crianças estudavam na Escola Brooks-Lowood, e um acidente de tráfego era um criado andando de bicicleta colidindo com a bicicleta de outro criado, espalhando roupa limpa na rua limpa. Propriedade Yorkminster. Algumas casas tinham telhados vermelhos e paredes brancas, algumas de mármore liso que comiam à luz do sol, outras de pedra cinza empilhadas em torrinhas, outras ainda de madeira branca e brilhante, com varandas brancas, colunas e quintais do tamanho de campos de futebol. Espirros de água dançavam nos gramados enormes.

Andres virou na The Sevens e freou. Voltou-se para Tom e pôs um braço em cima de seu banco.

— Agora, fico sentado aqui, do jeito que sempre fiz com Lamont, e você vai à casa dele, tá? E vê o que tem que ver. Depois volta e me conta, e nós decidimos o que fazer em seguida.

Tom deu um tapinha no braço grosso dele e saiu do carro. Um cheiro delicado no ar flutuava na direção dele vindo da Estrada Litorânea do Leste e do oceano. Tom se distanciou do carro e virou na direção da Estrada Litorânea do Leste na Trilha Edgewater. Seu couro cabeludo e as costas do pescoço arrepiados com a sensação de que estava sendo observado, correu pelo quarteirão. A linha lisa e azul do mar pendurada entre as casas maiores.

A carruagem do dr. Milton estava parada frente da casa de Tom. Dois homens carregavam um sofá embrulhado pela Via Langenheim, na direção de um furgão amarelo com a marca da Mudanças Costa-a-Costa Mill Walk. A sensação de que alguém o estava observando ficou mais intensa. Tom passou correndo pela casa dos Jacobs e subiu pela trilha de concreto para a casa de Lamont von Heilitz. No gramado, cortes recentes misturavam-se às partes do gramado em que o capim crescia livre­mente. Lá, perto da An Die Blumen, não mais alto que uma abelha, veio o zumbido do grande cortador usado pelo serviço de jardins. As cortinas estavam fechadas, como sempre, ocultando a vida secreta do proprietário da casa dos olhos das crianças da vizinhança. Ele está bem, Tom pensou. Não preciso ir adiante com isso. Von Heilitz estaria de volta ao St. Alwyn, soltando fumaça por Tom ter desaparecido quando ele precisava dele para pensar sobre meias roxas ou patas direitas de cavalos. Olhou por cima dos ombros para a casa e a garagem vazias, em seguida subindo relutante pela trilha para a casa de von Heilitz. No ponto onde a trilha fazia uma curva atrás da casa e da garagem vazias, uma guimba de cigarro amassada entre uma linha preta de alcatrão e a ponta do concreto. Tom contornou os fundos da casa e viu uma mancha de óleo na metade do concreto, entre a garagem e a porta dos fundos.

Parou de súbito. Todas calçadas velhas têm manchas de óleo. Onde quer que você tenha carros, você tem mancha de óleo. Mesmo pessoas que não têm seus próprios carros têm manchas de óleo em suas calçadas. A porta dos fundos estaria trancada, e ele tocaria a campainha umas duas vezes; depois disso, voltaria para encontrar Andres. Tom contornou a mancha brilhante e andou para os degraus da porta dos fundos, seguindo marcas suaves de coisas arrastadas no concreto.

A pequena vidraça perto da maçaneta estava quebrada, como se um punho houvesse socado através dela para chegar ao lado de dentro e abrir a porta. Tom colocou sua mão na maçaneta, perturbado demais para se preocupar em tocar a campainha, virou-a, ouviu a lingüeta escorregar no mecanismo. Puxou a porta para si.

— Alô? — disse ele, mas sua voz era apenas um sussurro. Entrou num vestíbulo onde casacos dos que duram a vida inteira estavam pendurados em ganchos de cobre. Dois ou três casacos haviam caído no chão. Tom caminhou até a cozinha. Uma mancha de sangue que lembrava uma pequena pena vermelha estava sobre o balcão ao lado da pia. Caía água lentamente da bica, uma gota batendo contra o fundo da pia, enquanto outra formava-se e alongava-se na boca da torneira. Em cima do balcão, escondida pelas sombras dos armários embutidos, havia uma garrafinha quase vazia de rum Pusser’s Navy.

— Não — disse Tom, na mesma voz estrangulada.

Para começar outro dia perfeito.

Saiu da cozinha e parou de súbito quando o que estava em seu estômago ameaçou subir pela sua garganta. Armários de arquivo e papéis espalhados cobriam o chão todo. Crina de cavalo e estofado cor de coalhada espumavam da mobília de couro onde ele e o velho haviam se sentado para conversar. Livros rasgados cobriam os escombros como cabelos. Tom deu um passo cego e entorpecido para a enorme sala.

— Lamont! — gritou, e desta vez sua voz estava alta como uma trompa de caça. — Lamont!

Deu mais outro passo para a frente. Seus pés desceram num grosso leque de papéis saindo de um arquivo amarelo. Abaixou-se para pegá-los, e mais papéis escorreram do arquivo, papéis marcados Cleveland, junho de 1940 e Crossed Keys Motel, Bakersfield, e cobertos com uma grafia densa e obsecada que ele percebeu nunca ter visto antes. Mexeu-se para colocá-las sobre a mesinha de café onde ele e von Heilitz haviam posto seus pés, mas viu que o móvel havia sido partido ao meio — sua superfície de couro filigranado, que afundava sobre a madeira quebrada, tinha marcas de bota impressas em poeira. Dali não havia mais trilhas através do labirinto; tudo era caos e obstrução, o que o obrigou a pisar num arquivo que vomitava edições velhas do Eyewitness e a afastar a roda de uma bicicleta empurrando de leve sua armação. Pinturas encimavam pilhas de papéis e livros. Discos arrancados de suas capas apoiavam-se em montanhas de papel. Perambulando pelo caos, Tom viu um arquivo vazio, em que se lia Glendenning Upshaw, 1938-39. Ao lado dele estava outro, Caso da Rosa Azul. As escrivaninhas haviam sido saqueadas e reviradas, as gavetas tiradas sem-cerimônia — tesouras e vidros de cola espalhavam-se entre a mixórdia. Os abajures da biblioteca foram reduzidos a cacos verdes sobre móveis rasgados. O cheiro pungente de urina vinha do sofá arruinado. Embaixo do globo que antes ficava sobre um armário de arquivo, viu novamente as palavras Rosa Azul, e puxou a capa do disco de Glenroy Breakstone. “Meu Deus”, ele disse. Uma mancha vermelha com formato de uma mão pulou sobre ele do apainelado escuro da escada. Outro odor, forte e fétido, anunciou-se; olhou para baixo e viu uma volumosa massa de excremento humano num pedaço descoberto do tapete. Passou por cima de uma série de arquivos e chegou ao pé da escada. O degrau embaixo da marca da mão estava salpicado de pontos.

Tom subiu correndo a escada e abriu violentamente a porta do quarto. O fedor de sangue e pólvora impregnava o cômodo, junto com outro mau cheiro, este mais doméstico. O colchão fora arrancado da cama. Tanto a cama quanto o colchão haviam sido retalhados.

No meio do chão, uma poça de sangue espalhava torrentes que se estendiam por baixo do colchão, na direção do armário. Outra inquietante marca de mão cintilava sobre uma porta branca do armário. Tom sentia uma atmosfera de violência envol­ver-lhe completamente. Caminhou sobre o chão escorregadio até o armário. Ao abri-lo, o corpo do pai caiu em seus braços.

Chocado demais para gritar, tirou o corpo flácido de dentro do armário e o pousou no chão. Tom abraçou-o e beijou o cabelo embaciado. Teve a sensação de haver deixado seu corpo: parte dele separou-se de si mesmo e flutuou, vendo o quarto todo; a cama destroçada; as pegadas sangrentas que pareciam uma marcação de dança saindo do armário; os orifícios perfeitos e encharcados com o sangue de seu pai, feitos por alguma coisa arredondada. Viu a si mesmo contorcendo-se e chorando sobre o corpo de Lamont von Heilitz. Disse a si mesmo: “A ponta de um guarda-chuva”, mas essas palavras eram tão desprovidas de significado quanto “meias roxas” ou “pata de cavalo quebrada”.

Depois de muito tempo, a porta dos fundos foi aberta. Alguém gritou seu nome. Seu nome trouxe sua mente flutuante de volta ao seu corpo. Deitou gentilmente a cabeça do pai no tapete do quarto, e andou para trás até bater na armação da cama. Passos subiram a escada. Tom juntou as pernas embaixo de si e prestou atenção aos passos chegando na direção da porta. Um homem apareceu na porta. Tom pulou para a frente, segurando o homem em torno da cintura. Empurrando-o para frente, caiu por cima dele e ergueu o punho.

— Sou eu — gritou Andres. — Tom, sou eu.

Tom saiu de cima de Andres, ofegando.

— Ele está aqui — disse ele.

Mas Andres já estava em pé, entrando no quarto. Ajoelhou-se ao lado do corpo, acariciou o rosto do velho e fechou seus olhos. Tom ergueu-se sobre pernas bambas. O rosto de von Heilitz mudara para uma expressão inalterável, que não combinava em nada com o cabelo desgrenhado e as faces subitamente lisas. Tornara-se outro rosto completamente diferente, um rosto sem nada nele.

— Vai ser difícil — disse Andres. — Difícil para você e para mim, mas nós temos de sair daqui. Se voltarem e nos acharem aqui, atiram em nós dois e nos acusam de ter assassinado Lamont.

Levantou-se e olhou para Tom.

— Não sei para onde você pretende ir agora, mas é melhor trocar de roupa. Vai ser preso num segundo, se te virem assim.

Tom olhou para baixo e viu borrões e respingos vermelhos cobrindo o linho azul-claro. Os joelhos eram círculos vermelhos.

Andres pegou um temo num cabide do armário e veio na direção da porta.

— Você sente cheiro de que, aqui? — Tom perguntou.

Intrigado, Andres parou e cheirou o ar.

— Você sabe que cheiro eu sinto. Ficou maluco?

— Não estou maluco. Diga-me que cheiro sente.

— Você parece com ele. — Andres respondeu olhando para o corpo. — Sinto o cheiro que sente quando disparam contra alguém para matar.

— Não há mais alguma coisa?

O rosto de Andres contraiu-se numa careta de preocupação e desespero.

— O quê?

— Charutos — respondeu Tom.

— Um monte de tiras fumam charutos — Andres respondeu, segurando o braço de Tom para fazê-lo descer as escadas.

 

— Tire os sapatos — Andres disse na cozinha.

Tirou o terno do cabide e pendurou as calças sobre o braço.

— Aqui?

— Tire os sapatos — Andres disse. — Você é grande demais para trocar de roupa no carro.

Tom desamarrou os sapatos e os tirou. Passou as calças ensangüentadas, o colete e o terno para Andres, que os colocou embaixo do braço. Estendeu as calças limpas para Tom do jeito que um alfaiate faria, mas as puxou de repente.

— Espere. Lave as mãos na pia.

Tom seguiu obedientemente para a pia, notando pela primeira vez que suas mãos estavam sujas de sangue. Olhou para Andres, vendo manchas vermelhas em sua camisa.

— Continue — disse Andres.

Tom lavou o sangue das mãos. Depois de colocar as calças limpas e amarrar os sapatos, Andres lhe entregou um cinto, observando-o com paciente concentração enquanto Tom o passava pelos laços. Outro colete, outro terno.

— Seu cartão — disse Tom.

Andres deu um tapa na testa e procurou nos bolsos do terno até achar o cartão. Colocou-o no bolso da camisa, depois mudou de idéia e o passou para Tom.

Saíram pelo lado da garagem, dando no quintal dos fundos de um grande solar branco, a duas casas da propriedade dos Spences. No que parecia uma outra vida, uma família chamada Harbinger vivera nesta casa. Agora ela estava tão vazia quanto o chalé do Lago da Águia, enquanto os Harbingers levavam sua filha de vinte anos para a Europa para fazê-la esquecer o mecânico com quem casara precipitadamente.

— Se tivesse alguma idéia, a daria para você — disse Andres.

— Há um policial com quem tenho de falar.

— A polícia! A polícia fez isso!

— Não este — assegurou Tom.

 

Na parte mais baixa da Calle Hoffman havia uma praça de concreto chamada Praça Armory, com bancos, palmeiras e grandes jarros ovais de buganvílias, colocados entre um par de escadas de pedras simétricas, que conduziam à chefatura de polícia e ao palácio da justiça de Mill Walk. Ambos os prédios eram cubos de pedra brancos e ofuscantes, que se erguiam contra o céu desbotado. No lado mais distante da Praça Armory, aglomerados numa fileira de edifícios georgianos com três séries de janelas com molduras semicirculares, ficavam o tesouro, a Casa do Parlamento, a velha residência do governador, e a gráfica estadual. Uma rede de ruas estreitas apinhadas de restaurantes, mercados, papelarias, escritórios de advogados e sebos de livros irradiavam da Praça Armory. Era por uma dessas, uma ruela chamada Beco Cana-de-Açúcar, que Andres dirigia relutantemente, levando Tom como passageiro.

— Sabe o que está fazendo?

— Não, mas Lamont ia encontrar com este homem antes de o outro policial o pegar. Não sei em quem mais posso confiar.

— Talvez não possa confiar nele.

Tom recordou Hobart Ellington dizendo que Natchez havia esperado uma hora na sua sala dos fundos, e comentou:

— Tenho de começar por algum lugar.

Andres disse que esperaria depois da esquina. Tom foi até uma pequena lancho­nete grega, onde pediu uma xícara de café e a levou para uma mesa encostada na parede. Sentou-se e bebeu o café quente. Por um momento, o choque e a angústia pela morte de Lamont von Heilitz voltou abruptamente, e Tom precisou se debruçar sobre a xícara fumegante para esconder as lágrimas do balconista.

Sou um amador do crime. Uma frase absurda, é claro.

Enxugando as lágrimas, foi até o telefone público nos fundos da lanchonete. Uma lista de telefones de Mill Walk rasgada com uma fotografia da Praça Armory na capa estava pendurada por um barbante ao lado do telefone. A fotografia parecia ser de uma linda praça tropical — prédios brancos e palmeiras contra um céu azul-claro. Tom discou o telefone do departamento de polícia, que estava listado no verso da capa.

Levou um bom tempo até que David Natchez atendesse, e ele pareceu bastante mal-humorado.

— Aqui é o detetive Natchez. O que você quer?

— Falar com você. Estou numa lanchonete grega atrás da Praça Armory.

— Quer falar comigo. Não poderia ser um pouco mais específico?

— Ontem à noite você deveria ter encontrado um homem chamado Lamont von Heilitz na sala dos fundos de uma loja defronte ao Hotel St. Alwyn. Quero falar com você sobre o que ele ia lhe dizer.

— Ele não chegou a aparecer. E, francamente, tenho minhas dúvidas sobre você.

— Ele está morto. Dois policiais devem tê-lo pegado assim que saiu do hotel. Foi levado para casa e assassinado. Depois os policiais revistaram sua casa. Está interes­sado neste tipo de coisa, detetive Natchez? Espero que esteja, porque não tenho mais ninguém com quem falar.

— Quem é você?

— Sou a pessoa que escreveu para o capitão Bishop a respeito de Hasselgard.

Houve um longo silêncio.

— Acho que devo a mim mesmo dar uma olhada em você.

— Estou na pequena...

— Conheço o lugar — Natchez disse, e desligou.

Tom voltou para a mesa e se sentou de frente para a porta. Alguma coisa aconteceria agora; quase não fazia diferença o quê. Um homem atravessaria a porta, ou uma dúzia. Alguém o ouviria, ou alguém o levaria para matá-lo. Haveria um problema interessante quando descobrissem que ele já estava morto, mas não continuaria interessante muito tempo. Um dia depois, estariam sentados em outro bar, bebendo rum Pusser’s Navy e conversando sobre dias perfeitos. Toda a sua vida até esse momento fechou-se atrás dele, separou-se, flutuou, independente e inabitável, como se seu lado consciente o houvesse abandonado no quarto sujo de sangue de seu pai. O que restara era a parte dele que abraçara o corpo de Lamont von Heilitz. Portanto, agora tinha de fazer o trabalho do Lamont. Engoliu o café que já esfriava e esperou para ver o que acontecia.

Em cerca de seis minutos — o tempo que um homem levaria para desligar um telefone e descer do andar de cima do departamento de polícia, depois passar pela escadaria para a Praça Armory e atravessar ruas estreitas com velhos nomes da Mill Walk colonial (uma ilha que não existia mais) até o Beco Cana-de-Açúcar — um homem de aparência resoluta, vestido com um terno azul-escuro, passou pela janela da lanchonete e virou para entrar pela porta.

Viu Tom instantaneamente, e Tom percebeu que ele também observou tudo o mais, e ao mesmo tempo: o balconista com a barba por fazer, o pedaço de carne de porco do tamanho de uma múmia que girava num espeto na vitrine, o telefone e as portas para os banheiros, as fotografias ampliadas sobre as mesas, e a velha com a criança, que sentavam-se depois da curva do balcão na frente da lanchonete — tudo o que o próprio Tom não tinha realmente observado até aquele segundo. Toda essa informação entrou em seu loco de atenção, porque era o cuidado que o mantinha vivo.

Passou pela fileira de mesas demonstrando um porte atlético que Tom já vira uma vez, um homem de aparência comum com cabelo escuro curto e feições largas. Uma eletricidade fatalística correu-lhe pelo corpo, um tipo de comando pessoal reflexivo que negava ambigüidades e tons de cinza. Um abismo absoluto separava alguém como ele de Lamont von Heilitz: Tom compreendeu que havia dois jeitos de ser detetive, e aqueles como David Natchez sempre encontrariam os como von Heilitz, extravagantes, intuitivos, teatrais demais para serem levados a sério.

Natchez pediu uma xícara de café com um gesto e andou até a mesa oposta à de Tom. Nos noventa segundos seguintes, destruiu a maior parte dos preconceitos que Tom acabara de formar.

— Tem certeza de que von Heilitz está morto?

— Acabo de ver seu corpo. Meu nome é Tom Pasmore, a propósito.

— Sei disso — Natchez disse e sorriu. — Você estava no hospital no dia em que Mike Mendenhall morreu. Teve algum tipo de conversa com o dr. Milton e o capitão Bishop.

— Não sabia que tinha reparado em mim.

— Não sei como não poderia — você observou tudo quando entrei aqui.

O balconista trouxe o café dele. Natchez o aceitou sem tirar os olhos do rosto de Tom.

— A opinião geral é que você morreu por inalação de fumaça lá no norte. Aposto que veio para cá com o velho.

Bebeu o café, ainda olhando para Tom, e continuou:

— Sabe, invejo sua relação com ele. Não sabia nada sobre von Heilitz até que o capitão Bishop me mandou para sua casa para tentar identificar a máquina de escrever usada para aquele bilhete, mas antes de encontrá-lo, chequei seu histórico. Foi um grande homem, e não sou de usar esse termo à toa. Eu o respeito mais do que posso dizer. O homem era uma riqueza natural. Gostaria de ter tido a oportunidade de conhecê-lo.

As próprias emoções de Tom o embaraçaram no meio dessas palavras surpreen­dentes. Virou o rosto para esconder as lágrimas que brotavam em seus olhos. Seu queixo tremia como o de um bebê. Uma mão muito firme segurou o pulso da mão que estava usando para esconder o rosto.

— Escute, Tom, muito do que acontece nesta ilha já é intolerável para mim, mas quando Fulton Bishop mata o maior detetive em talvez um século, cinco minutos antes de eu encontrá-lo, tomo como uma ofensa pessoal. Você e eu vamos nos sentar aqui até que você me diga tudo que sabe. Não tenho mais Lamont von Heilitz com quem trabalhar, e você também não, mas acho que podemos ajudar muito um ao outro.

Soltou o punho de Tom.

— Conte a respeito da carta que você escreveu.

— Tive de voltar à época em que Wendell Hasek apareceu bêbado em frente à nossa casa carregando uma saca de pedras.

Natchez pôs os cotovelos na mesa e inclinou-se para frente para descansar o queixo em seus dedos entrelaçados.

 

Meia hora depois, Tom disse:

— E no chão do quarto onde o encontrei, vi essas pequenas manchas impressas onde o guarda-chuva de meu avô deve ter tocado o sangue. E senti cheiro de charutos. Portanto, pensei que ele deve ter ficado ali, olhando enquanto o matavam e o carregavam para o armário. Fiquei fora de mim por alguns minutos, pensando como tinha ficado com raiva dele só porque havia me mostrado a verdade. De qualquer forma, depois de Andres ter me tirado dali e me vestido em roupas que não estavam cobertas com o sangue dele, tudo o que pude pensar foi em ligar para você.

— Então você fez mesmo aquilo tudo — Natchez disse. — Macacos me mordam.

— Não, eu só tropecei nisso. Nunca quis admitir que foi meu avô que matou Jeanine Thielman e Anton Goetz.

— Mas você soube de qualquer forma. E descobriu quem atirou em Marita Hasselgard. E foi idéia sua mandar as cartas que assustaram seu avô...

— E fizeram-no matar meu pai.

— Upshaw também teria matado você, se tivesse ido com von Heilitz. Além do mais, do jeito que você descreveu, ele teve a mesma idéia.

Mas ele jamais saberia sobre os bilhetes se eu não os tivesse encontrado, Tom pensou, e entraram marchando em sua cabeça os nomes de todas pessoas que estariam vivas se ele tivesse ido ao apartamento de Dennis Handley para ver o original de Os despojos de Poyton: Foxhall Edwardes, Friedrich Hasselgard, Michael Mende­nhall e Roman Flink, Barbara Deane, Lamont von Heilitz.

— O único erro que você cometeu foi mandar a carta para o tira errado. Vamos ao Clube dos Fundadores levar algumas más notícias a Glendenning Upshaw.

Levantou-se e pôs três dólares na mesa.

Tom se levantou e viu uma figura de aparência preocupada espiando através da janela.

— Seu amigo Andres?

Tom disse que sim.

— Cão de guarda e tanto, hein?

Natchez saiu pela porta da lanchonete. Andres olhou para Tom e recuou um passo.

— Esfria — disse Natchez.

— Andres, está tudo bem — disse Tom.

Andres deu outro passo para trás.

— Este é o homem com quem Lamont ia falar. Vamos sair para pegar meu avô. Vá pra casa que eu ligo para você quando tudo terminar.

O motorista deu meia-volta e começou a caminhar para a esquina, dando muitos olhares incertos para trás.

Tom e Natchez voltaram através das ruas estreitas até os fundos dos prédios georgianos. O policial lhe disse para esperar no topo da Praça Armory até que ele viesse com um carro, e saiu na direção do estacionamento da polícia. Tom caminhou ao longo da calçada da gráfica e desceu a praça longa, sentindo-se respeitável com as roupas do pai. Policiais de uniformes azuis bronzeavam-se em bancos embaixo das palmeiras plantadas em vasos. Ouviu sinos de igreja tocando, e percebeu que era domingo.

— Uma coisa que não entendo — disse Natchez, freando em frente ao Clube dos Fundadores. — Como seu avô e Fulton Bishop se uniram? Acabou sendo uma parceria como a de Gilbert e Sullivan, mas Glen Upshaw não podia saber disso no início. Fulton Bishop era apenas um jovem policial da parte oeste da ilha. Não acredito que ele alguma vez tenha demonstrado sinais promissores de excepcionalidade, mas sempre havia alguém cuidando dele, fazendo-o ser promovido, certificando-se de que ele sairia de compromissos que seria incapaz de lidar.

Um guarda caminhou vagarosamente na direção deles, olhando com desdém para o Studebaker preto que Natchez tirara da garagem.

— Veja aquele caso da Rosa Azul. Bishop já estava nadando cachorrinho para não ter de se afogar, e em vez de ser mandado para um pequeno distrito sonolento como o da alameda do Olmo, ele é promovido para um escritório no quartel-general e Damrosch...

O guarda circundara todo o carro, fora até Natchez e agora se debruçava em sua janela.

— O senhor tem algum assunto para tratar aqui?

Natchez sacou sua carteira com distintivo policial e quase a esfregou no nariz do homem.

— Afaste-se deste carro, ou então eu passo por cima do seu pé.

— Sim, senhor.

Natchez dirigiu o carro para dentro do terreno do clube.

— E como eu estava dizendo, jogam o caso na mão de Damrosch, que acaba perdendo a cabeça. Não conheço bem este lugar. Para onde vou?

— Direita. Não acha que Damrosch era o assassino da Rosa Azul?

— Bem, acho que Damrosch pensava que era. Por que von Heilitz nunca trabalhou nesse caso?

— Estava fascinado com ele. É tudo que sei. Mas ele me disse que naquela época estava sempre ocupado com outros casos, e quando teve tempo para pensar sobre ele, tudo estava acabado... Por aqui agora.

Natchez saiu da Suzanne Lengles para a Trilha Bobby Jones.

— Quem dá nome a estas ruas? Joe Ruddler?*

* Comentarista de beisebol (N. do T.)

 

Tom apontou para o último bangalô na Trilha Bobby Jones. Natchez parou perto da casa de Glendenning Upshaw.

— Quero dizer, gosto de esportes tanto quanto todo mundo, mas esse excesso deprecia o gosto público.

Saiu do carro, e Tom o imitou pelo outro lado.

— Que vai dizer a ele?

— Para vir comigo.

Natchez subiu os degraus. Cruzaram o terraço e passaram por baixo do arco branco para o pátio seguinte do bangalô. Natchez tocou a campainha.

— Ele tem criados?

— O sr. e a sra. Kingsley. Ambos estão na casa dos oitenta.

Natchez tocou a campainha novamente. Depois de um longo tempo, o som dos passos de Kingsley chegou a eles.

Natchez não tirou o dedo da campainha até o rosto esquelético de Kingsley aparecer.

— Sinto muito, mas o senhor Upshaw está...

Kingsley viu Tom em pé atrás do policial. Seu rosto, já habitualmente branco, ficou cor de papel. Todos os ossos por baixo de sua pele pareceram projetar-se para a frente.

— Oi, Kingsley — disse Tom.

O velho cambaleou para trás, literalmente sem respiração. Natchez gentilmente segurou a porta para mantê-la aberta. Se a tivesse puxado um pouco mais forte, Kingsley teria caído para a frente.

— Mestre Tom! Nós pensamos...

Parou de ofegar, seus lábios desapareceram, expondo a massa rosada de sua dentadura. Não estava usando o casaco de serviço e as mangas estavam enroladas.

— Eu sei — disse Tom. — O jornal cometeu um erro. Onde está vovô?

Natchez entrou, passando sem hesitar para o corredor largo que dava na sala de estar na frente do bangalô e no escritório, pátio e fundos. Virou na direção do escritório. King disparou um olhar atônito contra ele.

— O sr. Upshaw não está aqui, mestre Tom. Saiu com muita pressa há mais ou menos uma hora atrás. Nos deu instruções de arrumar as malas dele — disse que passaria o resto do verão em Tranquility.

Kingsley sentou-se num banco de madeira escura ao lado da armadura.

— Disse para onde estava indo quando saiu?

— Ele falou que eu não deveria falar com nenhum repórter ou deixar qualquer um entrar no bangalô. Mas é claro que não sabíamos que você... — Olhou embasbacado para Tom. — Sinto muito por aquela vez que você ligou do lago. Ele parece tão deprimido desde então. Estive esperando notícias de seu enterro, e quando ligaram esta tarde...

Natchez veio fumegando pelo corredor. Deu um olhar nervoso para Tom. A sra. Kingsley vinha atrás dele, as mãos esticadas como se quisesse agarrá-lo pelo casaco.

Ele se foi — disse Natchez. Virou para Kingsley e perguntou: — Quem ligou?

— Era um policial lá do norte — disse a sra. Kingsley. — Meu marido estava arrumando as malas do sr. Upshaw no quarto dele, e eu atendi.

— Truehart? — perguntou Tom.

— Acho que não, mestre Tom. Era um nome mais engraçado.

— Spychalla — disse Tom, resmungando.

— É esse nome. Depois que o sr. Upshaw desligou, passou o telefone para mim e me mandou providenciar uma passagem para a Venezuela o mais cedo possível. Tentei conseguir um vôo para ainda hoje, mas não há vôos internacionais aos domingos. Ele disse que ele mesmo faria isso depois.

— Nappy falou — disse Tom. — Ou então prenderam o homem que incendiou o chalé, e Jerry virou a casaca e apontou o dedo para meu avô.

— Seu avô é um bom homem — disse a sra. Kingsley. — Tem de lembrar disso.

— Quem é esse Spychalla?

— O delegado idiota do chefe de polícia, lá do Lago da Águia.

— Ele ligou?. — Natchez berrou. — Venha comigo.

Foi para o escritório.

Quando Tom entrou, Natchez já estava atrás da escrivaninha, segurando o telefone com uma mão, exigindo para ser colocado em contato com o chefe de polícia do Lago da Águia, Wisconsin, ao mesmo tempo abrindo as gavetas da mesa com a outra.

— Onde é o cofre? — perguntou a Tom.

Tom foi até a parte lateral do cômodo e começou a tatear as paredes.

— Quero falar com o chefe Truehart — disse Natchez. — Chefe, aqui é o detetive David Natchez, de Mill Walk. Estou na casa de Glendenning Upshaw com Tom Pasmore. Upshaw recebeu um telefonema de um de seus homens e saiu. Que diabos está acontecendo aí em cima?

Tom empurrou uma parte da parede, que cedeu sob sua mão. Correu os dedos pela junta da parede até que encontrou uma depressão. Empurrou, e uma porta quadrada abriu na parede. A 15 centímetros dentro da parede havia outra porta. Uma trava simples a mantinha fechada. Tom levantou a trava e abriu a segunda porta. Estava olhando para um nicho completamente vazio.

— Bem, seu amigo está morto — disse Natchez. — O garoto encontrou o corpo esta manhã.

Tom caminhou até o sofá de frente para o quintal e deixou-se cair nele.

— Spychalla pensou o quê?... Bem, se você estava esperando por essa ligação urgente de Marinette, por que não estava aí para receber?

— Ele estava fazendo um serviço paralelo — disse Tom.

— Serviço paralelo? — Natchez gritou no telefone. Ouviu por um momento e depois disse: — Sim, estou culpando você... Bem, estou satisfeito por você também estar se culpando, mas isso não adianta muito, chefe Truehart... Tudo bem, tome conta do que puder. Entro em contato com você depois.

Bateu o telefone. Seu rosto estava ardendo.

— Seu avô ligou para a polícia do Lago da Águia duas vezes ontem, preocupado em saber como a investigação sobre o incêndio estava indo, e hoje, quando esse palhaço do Spychalla soube que a polícia de Marinette tinha prendido o cara que realmente incendiou o chalé, achou que deveria ser o primeiro a dar as boas novas.

Virou a cadeira para olhar a parede.

— Diga-me que todos aqueles papéis estão aí.

— Está vazio.

Natchez baixou o olhar até Tom.

— Percebe o quanto a situação está ruim?

Tom balançou a cabeça, afirmativamente.

— Acho que sim.

Natchez apenas olhou para ele por um instante. Tom abriu a boca, fechando-a em seguida.

— Ele ainda acha que estou morto, não é?

— Não vai nos adiantar nada se ele estiver num avião.

— Ele precisa de um lugar para se esconder. Precisa de um lugar para guardar todos aqueles arquivos.

A sra. Kingsley deu um único passo para o interior da sala.

— Saia — disse Natchez.

Ela o ignorou.

— Devia estar defendendo seu avô. Não devia ajudar este homem. Só está fazendo isso porque é um fraco, como ele sempre disse.

Tom a olhou atônito, e viu que estava furiosa.

— Ele ia lhe dar uma educação universitária e uma carreira, e como você retribui? Vem aqui com esse policial renegado. Ele era um grande homem, e você está ajudando os inimigos dele a destruí-lo.

Kingsley apareceu na entrada do escritório, tentando fazê-la calar-se.

— Devia se envergonhar por estar respirando — ela disse. — Eu ouvi você, o ouvi defendendo aquela enfermeira contra o dr. Milton, quando veio almoçar aqui.

— Sabe para onde ele foi? — Tom perguntou.

— Não — Kingsley respondeu.

— Na Estrada Litorânea do Leste — disse a sra. Kingsley. — O que você merecia era...

Seus olhos resvalaram do dele e voltou à força total de sua raiva e desprezo para Natchez.

— Estrada Litorânea do Leste — disse Tom. — Entendo. Acha que eu merecia alguma coisa. O que eu mereço, sra. Kingsley?

— Não sei aonde o sr. Upshaw foi — ela disse rápido. — Mas você nunca irá encontrá-lo.

— Está mentindo — disse Tom.

Barbara Deane e Nancy Vetiver falaram dentro dele, e uma doce convicção o fez sorrir para ela.

A sra. Kingsley parou de tentar matar Natchez com o olhar e saiu, empurrando o marido. Todos os três homens ouviram seus passos descendo o corredor. A porta de um quarto bateu.

— Ele nunca nos disse onde ia — disse Kingsley. — Ela está muito nervosa — com medo do que pode acontecer. Mestre Tom, ela não quis dizer...

Ele balançou a cabeça.

— Sei que ele não lhe diria nada. Mas sei onde ele foi.

Natchez já estava em pé, e Tom se levantou.

— Não precisa mais arrumar as malas dele, Kingsley.

O velho cambaleou até o corredor, e Tom e o detetive o seguiram.

— Achamos sozinhos o caminho — disse Tom.

Kingsley virou como se já tivesse esquecido que eles estiveram no bangalô.

Tom e Natchez atravessaram o corredor e saíram para o calor e luz do sol no outro lado do pátio.

— Tudo bem — disse Natchez. — Pra onde o filho da puta foi?

— Estrada Litorânea do Leste — disse Tom.

Desceram rapidamente os degraus até o carro preto. Natchez olhou Tom inquisidoramente enquanto ele contornava a frente do carro, e Tom sorriu para ele quando entrou. Natchez acomodou-se atrás do volante.

— A outra Estrada Litorânea do Leste — disse Tom.

 

— A irmã dele? — Natchez disse. — Nunca soube que ele tinha uma irmã.

Passaram pelo Hotel St. Alwyn, pela loja de penhores e pelo O Prato da Casa.

— Carmem Bishop é a razão por meu avô ter se unido a Fulton Bishop — Barbara Deane me contou sobre ela numa noite em que jantávamos em sua casa. Ela era uma ajudante de enfermagem quando o Monte Umbroso abriu. Tinha 16 ou 17 anos, e meu avô costumava levá-la para sair. Queria ser visto com ela. Não acho que ele tivesse algum interesse em casos. Estava usando-a de alguma outra forma.

— Que forma?

Havia uma expressão tanto de interesse quanto de ceticismo no rosto do detetive, como se estivesse perguntando só para ver que resposta Tom daria: como se agora a coisa toda não passasse de uma história da qual ele só participasse como especta­dor. Não podia se reduzir apenas a isso, sua expressão dizia, a irmã de Fulton Bishop. E mesmo sem dizer, Tom sabia que não era só isso: reduzia-se a uma outra coisa — alguma coisa que Buzz Laing descobrira nos arquivos de Boney Milton.

Para fazê-lo parecer normal — ele disse, recordando os gritos sem sentido de sua mãe no meio da noite. — Mais do que normal. Fazia favores a elas, e elas o faziam parecer um garanhão. Ia muito ao hospital naquela época, e encontrava muitas garotas. Quando encontrou Carmem Bishop, achou um adversário à altura. Barbara Deane disse que no fim ele aprendeu a respeitá-la. Ela fez o que ele queria no hospital, e saiu com ele em público. Em retorno, ele ajudou o irmão dela.

— “Ela fez o que ele queria no hospital”, disse Natchez. Isso significa o que eu acho que significa?

— A reputação de Barbara Deane foi arruinada quando pareceu que ela tinha causado a morte de um paciente que fora ferido num tiroteio com a polícia.

— No Monte Umbroso — disse Natchez. — Com Bonaventure Milton dirigindo o espetáculo.

— Não acho que o construíram para ser um jeito de se livrar de pessoas inconve­nientes, uma vez que estava lá...

— ...e era o hospital mais respeitável da ilha...

— ...alguém como Carmem Bishop podia ser um tipo de recurso final — disse Tom. — Aposto que Buzz Laing só sobreviveu ao ataque por ter sido mandado para o St. Mary Nieves.

— Achei que você disse que von Heilitz nunca teve tempo de trabalhar no caso da Rosa Azul.

— Não teve — só estou pensando em uma coisa que o dr. Laing me disse hoje de manhã.

Dirigiram entre a fábrica de latas e a refinaria, saindo na Weasel Hollow.

— Já esteve no Terceiro Paço?

Natchez balançou a cabeça, e da forma como não olhou Tom, mas vagamente para os terrenos cheios de capim onde pessoas viviam no interior de casas que eram apenas cobertores dobrados sobre mastros inclinados, o rapaz percebeu que ele também nunca tinha estado dentro dos Pátios Elísios.

Passaram por um cruzamento. Olhando para uma rua coberta de lixo, Tom viu a carcaça queimada e enferrujada de um carro esporte que agora descansava sobre uma tábua de madeira compensada. Um pedaço de lona cobria seu topo e havia uma cadeira enfiada onde fora o banco de passageiros. O Corvette de Friedrich Hasselgard havia sido reciclado num apartamento de um quarto. Natchez subiu a colina na direção da ponta oeste da ilha.

Os números da rua avançaram da casa dos vinte para a casa dos trinta. Passaram por uma grande igreja tranqüila e deram num enxame de bicicletas. Dobraram na Rua 35 para passar pelo zoológico. Ouviram o ruído perpétuo do acasalamento dos grilos no campo do lado sul do parque. Desceram a colina na direção do Paraíso de Maxwell.

Os prédios bloqueavam o sol. Roupas velhas barato. Compro e vendo cabelo humanu. Lá atrás os moradores pobres viviam sua rotina sob a luz fulgurante do sol, e o sr. Rembrandt estava pendurado numa moldura dourada na parede de Hattie Bascombe. Tom apontou para uma quase invisível estrada de paralelepípedos depois de uma passagem em arco, e disse:

— Por ali.

Natchez dirigiu através de paredes descascadas e janelas cobertas de poeira até chegarem ao fundo do poço, um pátio calçado de paralelepípedos e cercado por portas fechadas por barras de ferro.

— O que acontece com o carro aqui fora? — perguntou Natchez.

— Percy toma conta — disse Tom.

Uma porta abriu-se com um rangido; uma montanha barbada vestindo avental de couro moveu-se pesadamente para fora, protegendo os olhos contra a poeira e a luz.

 

Tom guiou David Natchez através do arco até o Primeiro Paço.

— Vim aqui para ver uma enfermeira chamada Nacy Vetiver, que foi suspensa por cuidar de Mike Mendenhall bem demais, o que desagradou o dr. Milton. Ele temia o que Mendenhall iria dizer, e ele disse muito — foi assim que eu realmente soube a seu respeito.

— Não vá tão rápido — Natchez disse na escuridão rançosa.

Deram no caos visual de bares e casas em redor do Primeiro Paço. Sereno e um cheiro leve de água de esgoto poluíam o ar. Um zumbido de vozes vinha das passagens pelas quais se aprofundava no Paraíso de Maxwell. A placa do FREDO’S acendia e apagava.

— Fulton Bishop e a irmã cresceram no Terceiro Paço. Meu avô construiu o lugar — foi seu primeiro grande projeto. Ele sabia que seria um esconderijo perfeito.

— Você lembra como chegar ao Segundo Paço?

Natchez caminhou a ermo até o centro do paço e olhou para a placa de bronze com os nomes de Glendenning Upshaw e Maxwell Redwing.

— Acho que sim.

Tom olhou duvidosamente ao seu redor... Meia dúzia de ruas tortuosas levavam até uma confusão de ruas semivisíveis. As mesmas roupas sujas pareciam pender em linha entre as janelas acima deles: os mesmos homens esfarrapados passavam com garrafas diferentes na frente de uma porta iluminada. Moscas agrupavam-se sobre uma área lamacenta a alguns metros da placa. Tom virou na direção de uma abertura estreita embaixo de um paiol suspenso de madeira. Caminhou na direção dele até ver a escrita branca no tijolo: Trilha Edgewater.

— É isso.

Saíram numa ruela de paralelepípedos entre paredes de madeira escurecidas que ele lembrava. Uma mulher encolheu-se contra a parede ao vê-los; uma criança passou gritando. O fedor do excremento ficou mais forte. Tom apontou para uma escadaria de madeira no outro lado da lenta torrente que descia pelo meio da ruela. Foi até a ponta da torrente e saltou para o outro lado. Natchez o seguiu, subindo as escadas através da escuridão, até emergirem no topo das escadas que levavam até o Segundo Paço.

Sacadas de madeira atravessavam a frente dos prédios em todos os lados. Cada escadaria levava a ruas estreitas entrecortadas.

— Quando estive aqui — disse Tom, a atmosfera do lugar fazendo-o sussurrar —, vi Bishop passando. Desceu por essas escadas e atravessou o paço, indo para aquela esquina.

Natchez e Tom desceram as escadas e atravessaram o paço. Alguns homens saíram das sombras para vê-los passar. Tom parou no topo da escadaria, na esquina do edifício onde Nancy Vetiver crescera, e desceu.

Deu numa ponte de concreto sobre um córrego enlameado. À sua esquerda, a ponte terminava em degraus que davam numa carreira de prédios arqueados cons­truídos ao longo do córrego. Um enorme rato disparou de um buraco no concreto, correndo sobre o barranco para desaparecer entre dois prédios. No lado direito da ponte, o chão de concreto tornava-se o início de uma ruela que passava em frente a um cortiço de madeira. Passos soaram por trás deles. Tom virou à direita.

Os prédios amontoavam-se. Como a ruela se dividia, Tom tomou a bifurcação esquerda porque a direita declinava em direção a um beco sem saída, onde tenebro­sas casas de madeira avultavam-se contra um terreno baldio.

Passaram em frente a uma loja gradeada e vazia no andar térreo de um cortiço. Mulheres debruçavam-se das janelas, olhando os dois passarem. Tom tinha a impres­são de que estavam dando voltas em torno do Segundo Paço, e apenas o vislumbre ocasional do céu sobre os prédios encurvados o deixava saber que estavam real­mente descendo a ladeira na direção do antigo bairro dos escravos.

A rua alargou-se abruptamente; o concreto foi substituído por paralelepípedos. Uma charrete quebrada estava encostada contra um muro, que por sua vez encos­tava-se num prédio que se apoiava em outro. Dois homens que estavam conversando do lado da charrete desapareceram por uma porta.

— É o que acontece quando vêem um tira num lugar como este — disse Natchez. — Acho que este deve ser o Terceiro Paço.

Era uma combinação dos dois primeiros: passadiços de madeira e escadas exter­nas aglutinadas a cortiços de quatro andares. Havia palha e garrafas quebradas caídas no concreto à frente deles. Um teto de madeira pontudo cobria o paço inteiro, intensificando a obscuridade e o baquear do rock and roll que vinha de um bar de porão com uma placa pintada a mão ao nível do chão onde se lia Cerveja-Uísque. Passos vindos na direção deles da ruela de concreto diminuíram e depois pararam. Natchez recuou para baixo de um passadiço e, encostado contra a parede do cortiço, tirou uma pistola de cano longo, espiando assim a lateral do prédio. A seguir, balançou a cabeça e repôs a pistola no coldre.

— Só quero mostrar que teríamos nos poupado de muitos problemas se tivésse­mos contornado pelo outro lado deste lugar.

— Como? — perguntou Tom.

— Porque aquilo é onde estamos.

Apontou com a cabeça para uma galeria arqueada como um túnel, que seguia a lateral do prédio à frente deles. Do outro lado do túnel, diminuído como se visto através do lado errado de um telescópio, um carro descia a colina sob uma brilhante e irreal luz diurna. Tom deixou-se dobrar contra a parede do cortiço.

Estavam em pé sob a sombra de um dos passadiços. Ambos olharam para os desalentadores muros escuros no lado oposto do paço. Os cheiros de esgoto e cerveja choca, de pele imunda e banheiros entupidos misturavam-se aos sons baixos das vozes e rádios ruidosos. Numa casa, uma menina gritava; em outra, Joe Ruddler, um comentarista de beisebol vociferava a contagem de pontos de um jogo. Tom sentiu o sangue pulsar em suas têmporas. Seus olhos ardiam,

— Bem, você tem alguma idéia brilhante? — perguntou Tom.

— Não tenho muita vontade de sair batendo numa centena de portas. Queremos alguma coisa que o faça sair da casa dela, se é lá que ele está.

— Oh, ele está lá. Está lá em cima, em algum lugar, odiando cada segundo em que ele está nesse lugar.

E isso, ele sentia com certeza absoluta, era verdade: um tipo de inspiração tinha feito Tom trazer David Natchez até este lugar, mas agora que ele estava ali, ele sabia que não poderia haver qualquer outro lugar na ilha para onde Glendenning Upshaw pudesse ter ido. Estava cagando nas calças, dependia de mulheres para resolver seus problemas. Não tinha amigos, só pessoas que deviam serviços a ele. Tom pensou que Carmem Bishop era a única pessoa na vida inteira de seu avô que o havia entendido.

— Então vamos fazê-lo sair — disse Natchez.

— Certo. Nunca vai se mover se apenas ficarmos aqui fora chamando seu nome. O que queremos é algo a que apenas meu avô responderia — algo que não significaria nada em especial para qualquer um lá em cima, mas que o fará sentir-se picado por mil abelhas.

Natchez franziu a testa e virou para Tom na escuridão embaixo do passadiço.

Tom sorriu, embora fosse quase escuro demais para que Natchez pudesse ver.

— Bem?

— Ele mandou matar von Heilitz porque achou que ninguém mais lhe poderia ter mandado cópias dos bilhetes de Jeanine Thielman. Eles significavam que von Heilitz havia finalmente compreendido o que aconteceu realmente com ela.

Sentiu mais do que pôde ver Natchez balançando a cabeça.

— Então vamos convencê-lo de que alguma outra pessoa sabia sobre aqueles bilhetes. Ele reconheceria minha voz, mas não a sua. O que acha de sair por aí gritando “Isso já foi longe demais”?

— Vou tentar uma vez — Natchez disse.

Saiu debaixo das sombras do passadiço, pôs as mãos em volta da boca para projetar a voz e gritou: “isso já foi longe demais!” Recuou. Os rádios ainda faziam barulho, mas todas as outras vozes haviam ficado silenciosas.

— Bem, eles me escutaram — Natchez disse, suspirando.

Tom lhe disse o que falar em seguida, e Natchez saiu de baixo do passadiço e gritou: “deve pagar por seu pecado!”

Alguém levantou uma janela, mas os únicos outros sons eram de rádio, subita­mente altos demais na quietude. As palavras de Jeanine Thielman soaram debaixo do teto de madeira e ecoaram nas paredes do cortiço. Tom imaginou as palavras correndo por todo o Paraíso de Maxwell, congelando os ratos em seus buracos e acordando bebês, detendo as garrafas em sua passagem de mão para mão.

— “Eu sei quem você é” — Tom murmurou, tão suavemente que parecia falar consigo mesmo.

Natchez saiu das sombras novamente.

— Eu sei quem você é!

Alguém em cima deles jogou uma garrafa vazia de cerveja Pforzheimer, que explodiu contra o chão de paralelepípedos.

— Vão embora! — gritou uma irritada voz masculina, enquanto outra sugeria que eles fossem se foder.

— “Alguém tem que deter você”— Tom sussurrou.

— Alguém tem que deter você!!

Outra garrafa quebrou-se contra os paralelepípedos, espalhando vidro partido pelo paço. Mais janelas levantaram. Uma porta bateu. Passos pesados vieram por um passadiço de madeira a dois ou três andares acima do cortiço à direita deles. A madeira rangia sob o peso de seu avô. O coração de Tom lhe subiu à garganta quando o avô deu outro passo adiante. Ele o imaginou debruçando-se na balaustrada, olhando carrancudo para o paço sombrio, onde alguém o acusava no melo do dia. A voz de seu avô flutuou para baixo:

— Não posso vê-lo. Ande até o paço, seja você quem for.

— Bem, bem... — Natchez sussurrou.

— Estou curioso — disse a voz do avô de Tom. — Veio aqui fazer um trato?

Com o acaso irrelevante de uma orquestra afinando, todas as outras vozes começaram a falar novamente. Glendenning Upshaw recuou da balaustrada e come­çou a caminhar para a escada no lado oposto do cortiço. A madeira rangia a cada passo que ele dava. Quando chegou à escada, desceu até o andar inferior. Tom contou cada passo. No décimo, Upshaw atingiu o passadiço seguinte e foi até a balaustrada novamente.

— Não vai me desapontar, vai? Depois de se importar em descobrir tanta coisa a meu respeito? — Ele aguardou. — Diga alguma coisa, fale!

A voz dele era a de um homem furioso quase conseguindo conter a fúria.

Natchez puxou Tom para a passagem de concreto pela qual entraram no Terceiro Paço.

— Então me espere — disse Upshaw, e começou a descer a escada seguinte.

Tom contou até seis e ouviu as pernas ligeiramente arqueadas do avô carregando seu corpo pesado até o quinquagésimo degrau da escada seguinte, um lance de escadas acima da passagem onde ele e David Natchez estavam esperando.

— Ainda está aí?

Natchez bateu o nó dos dedos contra um dos suportes do passadiço sobre suas cabeças.

— Havia um homem ridículo nesta ilha.

Upshaw desceu outro degrau.

— Certos papéis de interesse sentimental para mim caíram em seu domínio.

Outro degrau.

— Não tenho nada contra você, seja lá quem for.

Upshaw pisou em outro degrau barulhento.

— Estou certo de que podemos chegar a um acordo.

Desceu os dois últimos degraus, chegando ao passadiço imediatamente acima deles. A madeira rangeu enquanto ele andou pelo passadiço e olhou para baixo.

— Os papéis originais foram escritos em 1925. O material ao qual eles se referiam não têm mais importância alguma.

Tom o ouviu ofegar com o esforço. Há muito não precisava lidar com escadas.

— Na verdade, também não foi de muita importância na época. Vai sair e me deixar ver seu rosto?

Natchez deu um tapinha no ombro de Tom e apontou para o passadiço mais alto do cortiço no outro lado do paço. Mergulhado na escuridão, uma forma pálida que devia ser a de um homem com camisa branca e calça marrom moveu-se com a lentidão de um sapo até a escadaria mais próxima.

— Está sendo tolo — disse Upshaw. — Não pode me assustar — só veio aqui vender o que tem.

Tom e Natchez esperaram na passagem. O homem de camisa branca chegou até a escada e começou a descer silenciosamente.

— Tudo bem, vou fazer do seu jeito — disse Upshaw.

Ele virou para longe deles e caminhou pelo passadiço até a escada no lado oposto.

— Quando você acha que essas cartas valem? Mil dólares a peça?

Deu uma risadinha, chegando às escadas no outro lado do cortiço seguinte, e começando a descer. Tom viu sua mão branca escorregando pelo corrimão. A forma vaga do ombro dele, o cabelo branco, apareceram. Chegou ao fim da escada e deu a volta.

— Se acha, está cometendo um sério erro. Cada uma não vale nem cem para mim.

Caminhou para frente, movendo-se sob o passadiço. Seu corpo perdeu definição na escuridão e se tornou apenas uma forma negra descendo pela frente do cortiço na direção da passagem. Tom olhou para o paço e viu que o homem com camisa branca tinha parado na descida do passadiço mais próximo.

— Mande o outro homem embora — disse Natchez.

— Se você prefere.

Upshaw parou de se mover e gritou para o outro lado do paço.

— Saia e espere na rua.

O homem disse.

— Senhor?

— Obedeça — Upshaw gritou para ele.

O homem saiu das sombras e desceu rapidamente todos os degraus, chegando ao longo túnel que dava na rua.

— Tudo certo? — perguntou o avô de Tom.

— Estou indo — Natchez sussurrou.

— Não, ele tem de me ver — Tom sussurrou em resposta.

Saiu da passagem, e recuou para a sombra do passadiço.

— Quem está aí? — Upshaw permitiu-se agora a transparecer mais a sua raiva. -Quem é você?

Tom se moveu um centímetro mais perto da parte mais iluminada do paço. Seu avô poderia ver seu corpo, mas não o rosto.

Glendenning Upshaw parou de se mover. Tom sentiu o ar se apertar ao seu redor, como a pressão dentro de sua cabeça. A nuvem negra que era o corpo do avô emitiu uma onda de choque como um raio de luz. Duas respirações sonoras vieram dele. O peito do próprio Tom ficou pesado.

— Vá para o inferno — disse o avô. — Von Heilitz está morto.

Tom recuou da passagem.

— Que diabos é isso, uma charada? Algum truque infantil?

Tom moveu-se para trás na escuridão, e viu a nuvem negra do pesado corpo do avô avolumar-se, avançando para a passagem onde Natchez mantinha-se oculto. Outra flecha tinha acertado sua anca, mas para Tom não havia nada de confusão e depressão de ontem, apenas uma satisfação sombria. Uma linha inclinada de sombra absoluta ocultava a metade superior do corpo do velho, do ombro ao quadril e o que estava visível era apenas meio visível. Mas dor e ultraje estouraram na direção dele quando seu avô gritou “Fique parado!” e chegou mais perto da passagem.

— Sei o que você é — disse Tom. Recuou novamente. Ouviu portas sendo abertas no cortiço sobre ele.

O avô entrou na passagem aberta. Sua cabeça liberou-se das sombras do passadi­ço. Luz suave caía sobre os cabelos brancos. Seu rosto estava selvagem. Quase instantaneamente, a sombra do passadiço seguinte ocultou tudo, menos a impressão de uma força inexorável em movimento.

— Você matou Jeanine Thielman — disse Tom.

Uma porta bateu acima dele, mas nem ele e o homem que se movia em sua direção perceberam.

— Isso é muito interessante — disse o avô.

Tom viu Natchez esgueirar-se da passagem com a pistola em punho.

— Da forma como vi a coisa — disse o avô —, ela escolheu pelo suicídio. Pessoas fracas fazem isso com uma freqüência impressionante. Estive cercado por elas toda a vida.

— Rosa Azul — disse Tom.

O avô suspirou pesadamente.

— Você não passou de um lacaio dos Redwings — disse Tom.

O avô parou de se mexer. Estava a um ou dois passos do ponto em que ele e Tom veriam o suficiente do rosto um do outro para poderem reconhecer-se.

— Meu Deus, eu conheço você — disse Upshaw.

Tom sentiu mais uma vez um momento de choque que era como uma flecha acertando o couro do avô.

— Não, não conhece. Nunca conheceu ninguém totalmente.

Saiu de baixo do passadiço para o pátio sombrio.

— Meu Deus, Tom. Você foi duro de se livrar, garoto, mas eu pensei...

Sua mão desceu ao bolso e saiu com a arma que Tom o vira pegar na gaveta da escrivaninha.

Tom sentiu as entranhas ficarem frias. Olhou por cima do ombro para David Natchez, que gritou:

— Upshaw, jogue a...

O avô apontou a arma para ele e puxou o gatilho. Fogo e fumaça saíram da ponta da arma. Uma explosão acertou Tom como um sopro. A morte zuniu perto de sua cabeça, aquecendo o ar, e antes de a bala amassar-se contra o muro, outra explosão golpeou seus tímpanos. O avô desaparecera na escuridão ao lado dele. Tom olhou para a passagem, vendo apenas um espaço vazio. Sentiu que uma multidão o olhava dos passadiços. Virou para o lado, vendo o que parecia o cano de um canhão apontado contra sua cabeça. O avô o segurava com os braços estendidos, quase vesgo pela concentração. Tom viu um dedo indicador gordo como uma truta puxando o gatilho. Natchez gritou. O cano virou-se abruptamente para longe de sua cabeça. Explodiu novamente. Tom pulou para trás com a explosão na cabeça e viu um buraco negro aparecer na cabeça do avô, logo acima da ponta do nariz. Torrentes de material cinza e vermelho jorraram da parte de trás de sua cabeça. A pistola afundou. O avô cambaleou para trás, aprumou-se, caiu sobre os joelhos, ainda tentando puxar o gatilho. Um clamor estridente encheu os ouvidos de Tom como se fosse uma substância física. Teve uma ligeira noção de que David Natchez caminhava para ele debaixo do passadiço. Natchez disse algo que não penetrou o chumbo derretido que entupia seus ouvidos. O avô deixou-se cair sobre si mesmo e pendeu para a frente. Um som abafado veio de onde Natchez estava; todas as cabeças penduradas nas balaustradas recuaram, com exceção de uma mulher com cara de boneca velha. Carmem Bishop esticou-se na balaustrada como se quisesse voar até ele, e então recuou lentamente. Tom cambaleou para os lados e se sentou.

Outro som abafado veio de Natchez. As palavras afinal conseguiram atravessar a barreira em seus ouvidos. Não sei como ele errou você.

A arma não puxou para a esquerda — disse Tom, sentindo que suas próprias palavras lutavam individualmente contra chumaços de algodão dentro de sua cabeça.

Natchez pareceu intrigado. Tom Sentiu-se dizer É uma velha história. Esticou o braço para tocar as costas do avô.

Olhou para trás e para cima, na direção dos passadiços. Viu Carmen Bishop gritar alguma coisa que desapareceu inteiramente no ruído de seus ouvidos.

— Temos de fazer alguma coisa com ele — disse Tom, desta vez ouvindo ligeira­mente sua própria voz — miúda como um velho disco atrás de uma parede, mas discos reais, não bolhas de pressão dentro da cabeça.

— Ligo para o distrito — Natchez disse num tom de voz idêntico. — E mando alguém ir pegar o corpo de von Heilitz.

Tom balançou a cabeça.

— Vamos ter de levá-lo conosco.

— Levar para onde?

— De volta ao bangalô. Inclinou-se para a frente e pegou a arma do avô, Parecia superlativamente feia, e pesada como um peso de ferro. Ele a colocou no bolso do terno. Dois homens vieram pelo longo túnel que ligava à rua. Tom e Natchez se viraram para olhá-los enquanto entravam no pátio. Um dos dois era o homem com a camisa branca, o outro, alguns passos atrás dele, era Andres. O homem de camisa branca olhou para o corpo de Glendenning Upshaw, e virando-se para Natchez, meteu as mãos nos bolsos. Andres se aproximou de Tom e lhe estendeu a mão para ajudá-lo a se levantar.

— Pode fazer deste um dia perfeito — disse Natchez -, se me disser onde este monte de merda escondia seus papéis e arquivos.

— Não sei — disse Tom. — Também queria saber.

Natchez olhou a própria pistola como se tivesse acabado de aparecer magica­mente em sua mão, e puxou o terno para ela escorregar em seu coldre.

— Holman, vá até o terceiro andar deste lado — disse ao homem de camisa branca. — A irmã do capitão Bishop vive lá em cima. Quero uma caixa de papéis e jornais, qualquer coisa desse tipo. Bishop está acabado.

— Entendo — disse o homem, e foi para as escadas. A mulher com cara de boneca velha estava olhando novamente para eles.

— Não — disse Tom. — Não é onde eles estão. Meu avô parou em algum lugar quando vinha para cá. Ele os deu para alguém guardá-los.

— Quem foi? — Natchez perguntou.

Tom sorriu para ele, e viu a compreensão aparecer gradualmente no rosto de Natchez.

— Quer que eu suba? — o outro policial perguntou.

— Não — disse Natchez. — Se quer ficar fora da cadeia, vá pra casa e fique com a boca fechada. Tenho alguns negócios para resolver com este garoto, depois ligo para você. Vou pegar os papéis, depois você e eu vamos levar dois cabeças-de-bagre bêbados para o distrito da enseada do Olmo e prendê-los pelo assassinato de Lamont von Heilitz.

O outro engoliu em seco.

— Nunca estivemos aqui — disse Natchez. — Está certo? — perguntou a Tom.

— Está certo.

O outro policial desapareceu na longa passagem que dava na rua, e Natchez agachou-se para tentar levantar o corpo de Glendenning Upshaw. Depois de um instante, Andres moveu-se para ajudá-lo.

 

O táxi vermelho com o farol pendente estava estacionado atravessado na calçada atrás do Paraíso de Maxwell. Os dois homens carregaram o corpo flácido de Glendenning Upshaw até a traseira do táxi. Tom abriu o porta-malas. Quando o fecharam sobre o corpo enrolado, o som foi suave e abafado, como o fechar de um cofre de banco.

Andres sentou-se atrás do volante.

— Talvez eu não devesse ter seguido vocês. Estou atrás de vocês desde o Clube dos Fundadores, cinco ou seis carros atrás, o caminho todo. Estacionei no mesmo lugar de ontem. Depois que vocês saíram, eu os segui até aqui e os vi entrarem nos paços. Fui atrás de vocês, mas me perdi. Tive de tentar achar o caminho de volta, e então fui de carro até o outro lado. Quando ouvi os tiros, vim para cá.

— Fez o que era certo — disse Natchez. — O que me pergunto é se estamos fazendo o que é certo.

— Dirija — Tom mandou, e Andres saiu com o carro.

Natchez exibiu seu distintivo para a casa da guarda, e o táxi vermelho correu através de palmeiras e dunas de areia até a Trilha Bobby Jones, freando em frente ao bangalô longo e branco. Quando os três saíram do táxi, Kingsley veio pelo arco e começou a descer os degraus. Tom levantou uma mão e o deteve.

— Vá com sua esposa para o seu quarto. Deixe a porta da frente aberta.

— Mas...

— Fique no quarto até que eu mande sair. Vai acontecer uma coisa que vocês não podem ver.

— O quê? — perguntou Kingsley, perturbado demais para lembrar da formalidade habitual.

— Vamos encontrar meu avô.

— Mas mestre Tom, ele...

— Não esqueça de levar sua esposa para o quarto com você.

Kingsley balançou a cabeça tristemente e deu meia-volta para subir os degraus.

— Kingsley — disse Tom.

O mordomo apoiou-se no parapeito e se virou para olhar para ele.

— O carteiro já passou?

— Acaba de passar, mestre Tom. Coloquei as cartas do sr. Upshaw em sua escrivaninha.

— Ótimo.

Kingsley olhou para Tom como um velho cachorro com medo que lhe batam.

— Ele estava em casa aquela noite, mestre Tom. Você lembra — a noite em que ligou do Lago da Águia?

— Não culpo você por nada.

O mordomo balançou novamente a cabeça e começou a subir as escadas com esforço, semelhante a uma marionete com um par de cordas partidas. Tom voltou para o carro e ficou ao lado dos dois homens que haviam aberto o porta-malas e olhavam a coisa preta intumescida em seu interior. No fundo do porta-malas, uma pequena franja de cabelos brancos aparecia sobre o terno enrugado e o braço dobrado.

— Acho que sei o que você quer fazer — disse Natchez. — Mas por que quer fazer isso?

— Justiça poética — respondeu Tom.

— Isso tem algo a ver com Damrosch?

— Não sei. Deve. Acho que ele tentou matar Buzz Laing, e ele podia ter se livrado de Damrosch para terminar a investigação. Acho que Lamont von... acho que meu pai estava tentando me fazer pensar sobre isso antes de ser assassinado.

— Vamos tirá-lo do carro? — perguntou Andres.

— Ajudo Natchez a fazer isso — respondeu Tom. — Pode esperar a gente aqui, Andres? Seria melhor que você não visse isso.

— Não vi nada o dia inteiro além de Lamont.

Ele recuou e os dois se debruçaram sobre o porta-malas e puxaram as pernas pesadas de Glendennig Upshaw. Uma das pernas de suas calças havia subido, deixando exposta uma longa extensão de carne branca brilhando por cima da meia. Um dos pés sacudiu de um lado para o outro sobre a estrada preta. Seguraram-no pela cintura e pelos quadris e o tiraram do porta-malas. O pé rígido bateu no asfalto. A frente do terno estava molhada de urina e Tom sentiu as mãos ficarem ins­tantaneamente pegajosas. Limpou a mão na bainha macia do casaco preto. O corpo despendia gás. Tom e Natchez o seguraram pelos ombros e o colocaram em pé. Sua cabeça pendeu para trás, a boca se abriu.

— Ponha o braço direito dele por cima dos seus ombros — disse Natchez. — E o seu braço esquerdo em volta das costas. Vou segurá-lo pelo outro lado e tentaremos andar com ele.

Tom pôs um braço grosso e pesado em volta do pescoço de Upshaw e se posicionou. Quando Natchez estava pronto, levantaram-no com suas pernas. Glen­denning Upshaw pendia entre eles como um espantalho gordo, cheio de cimento molhado. Alguma coisa no estômago dele sacudia e borbulhava A cabeça pendeu para a frente. Tom sentiu cheiro de charutos, sangue, loção de barba, pólvora. Parecia que seu avô estava tentando empurrá-lo contra o asfalto. Natchez andou para a frente. Tom moveu-se com ele. Andaram pela calçada e começaram a subir com o corpo pelos degraus.

— Ele deve pesar uns cento e trinta quilos — disse Natchez.

Tom teve de se abaixar um pouco para que o braço morto não escorregasse de seus ombros. Suas costas já doíam quando começaram a subir os degraus. O sangue na parte de trás do terno negro embebia seu braço.

— Quer botá-lo no chão por um instante? — perguntou Natchez.

— Se eu o colocar no chão nunca mais vou querer erguê-lo novamente.

Eles o carregaram pelo arco branco e através da porta aberta. Os pés de Upshaw se enrascaram no tapete e o arrastaram até ficar preso na porta do escritório. Através do zumbido em seus ouvidos, Tom pôde escutar a sra. Kingsley berrando em algum lugar nos fundos da casa. O marido dela dava respostas cansadas e monossilábicas.

— Presumo que quer colocá-lo na cadeira da escrivaninha.

— Certo — respondeu Tom.

— Não o deixe cair até que eu segure a cadeira, ou vamos ter de limpar muito sangue do chão.

Arrastaram o corpo para a mesa. Uma dúzia de envelopes de vários tamanhos e cores estava cuidadosamente empilhada na superfície brilhosa. Natchez inclinou-se para virar a mesa. Tom apressou-se em equilibrar o corpo quando ele começou a escorregar de seus ombros.

— Tudo bem — disse Natchez. — Temos de nos virar e tentar botar a bunda dele em cima da cadeira.

Tom virou-se. Natchez ficou na ponta dos pés para tentar acertar as pernas de Upshaw na posição certa.

— Vamos fazer ele descer agora, devagar — disse Natchez.

Enquanto se ajoelhavam, tanto Natchez quanto Tom seguravam a cadeira para mantê-la parada. Puxaram-na para a frente e se inclinaram mais 15 centímetros. Glendenning Upshaw aterrissou na cadeira com um som suave e úmido. Tom se levantou e Natchez se inclinou sobre o corpo para fazê-lo sentar-se mais natural­mente. Resmungou e empurrou a cadeira para a mesa. Limpou as costas da cadeira com seu lenço.

Tom espalhou as cartas sobre a mesa e pegou as quatro com endereços escritos a mão. Abriu os envelopes e tirou os quatro pedaços de papel amarelo, colocando-os na frente do corpo. Juntou as outras cartas numa pilha desarrumada ao lado dos envelopes abertos e dos bilhetes. Por fim, tirou a pistola negra e pesada do bolso e a pôs sobre a mesa. Olhou para o corpo do avô, depois para Natchez.

— Você acha que ele deixou todos os registros na casa de Wendell Hasek — disse Natchez.

— Tenho certeza.

Tom saiu de trás da mesa.

— Espero que você esteja certo.

— Ele não os daria a Carmen Bishop, Seriam queimados por ela assim que deixasse a ilha. Ele os consideraria em segurança nas mãos de Hasek porque Hasek é um vigarista. Quando meu avô roubou sua própria companhia, foi Hasek que guardou o dinheiro roubado para ele. Ele distribuiu pagamentos para meu avô por anos. Estava acostumado a confiar nele.

Natchez balançou a cabeça lentamente. Deslizou a arma pela mesa na direção dele, movimentando-a entre os bilhetes com letras de imprensa vibrantes.

— Justiça poética, diabos.

— Em parte — Tom explicou. — Minha mãe é a outra parte. Ela vai ter de aprender muitas coisas sobre o pai, mas eu não quero que ela saiba que ele foi morto enquanto tentava me matar a sangue-frio.

— Mas o que você realmente quer fazer é com que ele pareça pior do que era — Natchez pegou a arma e começou a limpá-la com o lenço. — Quer que pareça um fraco, um homem arrasado.

— Ele não pode parecer pior do que era. Mas você está errado. Quero justiça poética.

— Pensa que a vida é como um livro.

Segurando a arma com o lenço, Natchez contornou as costas da cadeira até o lado direito de Upshaw, onde se inclinou para acomodar a coronha na palma aberta. Fechou os dedos grossos em torno da coronha e enfiou o dedo indicador no arco do gatilho. Aprumou-se e puxou o corpo de Upshaw contra a cadeira, enquanto segurava a mão com a arma no alto. Glendenning Upshaw sentou-se ereto à sua escrivaninha, o terno manchado de sangue, a cabeça pendendo para a frente com os olhos e a boca abertos. A língua projetava-se um pouco além dos dentes. Natchez segurou um punhado de cabelo branco com a mão esquerda e puxou a cabeça com olhar pasmo para cima. Curvou a mão com a arma de forma que o cano ficasse apontado na direção de Upshaw, alinhado com o ferimento. Natchez pousou o próprio dedo indicador em cima do de Upshaw, e sorriu enquanto apontava o cano para o buraco negro sobre a ponta do nariz do velho.

— Bem, lá se vai nada — Natchez anunciou. — Literalmente.

Natchez pressionou o dedo indicador do homem morto no gatilho. A arma disparou com um rugido, a cabeça caiu sobre a mão. Miolos embebidos em sangue, cabelos, ossos espalharam-se na parede atrás do cadáver de Upshaw. Natchez deixou a cabeça pender e se curvou para deixar a mão cair aberta, soltando a pistola.

— Às vezes a vida é como um livro — disse Tom.

 

No sábado da segunda semana de setembro, dois meses depois da segunda morte de Glendenning Upshaw, Tom Pasmore estava sentado num banco de ferro a um metro e meio da entrada do Parque Zoológico Goethe. Homens e mulheres, a maior parte deles pastoreando tribos de crianças pequenas, jorravam através dos portões abertos e passavam por ele, indo na direção do vendedor de balões e da carrocinha de sorvete estacionada no ponto onde a entrada calçada com paralelepípedos dava com a trilha asfaltada que levava à primeira fileira de jaulas e às veredas que cortavam o zôo. As pessoas que empurravam carrinhos de bebê, Tom notou, sempre relaxa­vam ao saírem da trilha de paralelepípedos para o asfalto suave. Elas endireitavam o corpo, e se podia ver a tensão deixar suas colunas e músculos das costas. Algumas das pessoas que passavam pelo banco de Tom levavam um segundo observando-o: usava paletó cinza com risca-de-giz, um colete com lapelas, camisa azul-escura e gravata bem vermelha; nos pés, tinha um par de confortáveis sandálias marrons. Eram três da tarde. Nas fendas empoeiradas entre os paralelepípedos havia maços amassados de cigarro, manchas marrons de batatas chips amassadas e uma casca de pão entortada para a direita disputada por um bando de pardais barulhentos.

Outros bancos eram mais próximos da entrada do zoológico, e alguns deles estavam vazios, mas Tom escolhera este para poder ver Sarah Spence chegar sem que ela o visse. O objetivo almejado era vê-la sem perturbar-se antes de terem de avaliar um ao outro novamente: ele queria a avaliação, mas também queria o momento de puro olhar, para vê-la pelo espaço de poucos segundos como qualquer outro poderia. Desde a noite do incêndio, Tom a havia visto apenas uma vez numa sala de tribunal, enquanto o seu pai testemunhava sobre o que o promotor público havia descrito como a face mais aceitável dos negócios dos Redwings. Ele mesmo estivera esperando, como teve de esperar mais duas semanas, para falar sobre como encontrou o corpo do avô no escritório. Houve julgamentos dentro de julgamentos, julgamentos cruzando-se com julgamentos, e Tom era apenas periférico para eles, mas fora solicitado para ocupar o banco das testemunhas por mais três semanas, e durante esse tempo os Spences estiveram fora da ilha. Os julgamentos e inves­tigações continuariam por mais um ano, era o que parecia. Mas o papel de Tom neles já estava terminado: passava o que parecia a metade de cada dia com advogados e contadores, mas esses encontros eram a respeito de outros assuntos, surpreendentes para Tom, mas sem a relevância dos que enchiam as manchetes do Eyewitness.

Sarah atravessou o portão no meio de um bolo de pessoas, distinguindo-se delas como um cardeal se distingue numa revoada de pombos, e começou a flutuar sobre os paralelepípedos na direção das jaulas. Usava jeans justos e desbotados — jeans que em nada pareciam com os de um rapaz — arregaçados sobre botas de cowboy, uma camisa branca tamanho grande, que lembrou Tom de Kip Carson, e que estava presa em seus quadris por um cinto largo. Seus cabelos espessos haviam crescido o suficiente para estarem reunidos atrás de sua cabeça numa grande trança folgada, da qual madeixas e fios cor-de-mel escapavam sobre seu rosto. Atrasada 15 minutos, andava a passos largos sobre os paralelepípedos, checando os bancos. Seus olhos passaram por ele, e ela deu outro longo passo flutuante antes de voltar abruptamente o olhar para ele, parando de se mover. Virou para andar na direção dele com um sorriso pensativo, levemente bestificado. Ele se levantou para cumprimentá-la.

— Bem, dê uma olhada em você — disse ela. — Você é uma visão de alguma coisa ou outra pessoa.

— Assim como você.

— Estou me referindo a essa roupas.

— Eu não. Estava falando de você.

Ficaram em pé olhando um ao outro por um instante, sem nada para dizer.

— Sinto-me um tanto embaraçada, mas não sei ao certo por quê. Você também?

— Não.

— Mas eu aposto que sim. Aposto que se dançássemos juntos eu o sentiria tremendo.

Ele balançou a cabeça.

— Estou feliz por sua mãe tê-la deixado vir.

— Oh, depois de tudo o que aconteceu, ela parou de ficar com raiva de você.

Ela deu um passo para mais perto dele, e hesitantemente pôs os braços em torno da cintura dele.

— Vi você no tribunal.

— Vi você também.

— Você me ligou uma vez? Logo depois que aquele artigo sobre o incêndio saiu no jornal?

Ele assentiu com a cabeça.

— Eu sabia. Bem, pensei que era você. Não achava que você tinha morrido, especialmente porque você me carregou...

— Foi apenas um erro.

— Você ficou queimado de alguma forma?

— Não exatamente.

Ela olhou para o rosto dele como se tentasse lê-lo. Tirou os braços da cintura de Tom.

— Por que quis vir aqui?

— Porque nunca estive aqui.

Tom dobrou o braço ao redor da cintura dela. Começaram a caminhar com a multidão na direção das jaulas.

— Passamos por aqui de carro uma vez, lembra? Achei que seria legal ver os animais, ficam aqui o tempo todo, sentados em suas jaulas, e eu achei que eles mereciam uma visita.

— Uma visita social — ela disse.

Passaram lentamente pela primeira série de jaulas, apenas se adaptando um ao outro, pesando o que tinham a dizer. Uma pantera negra dava voltas e voltas em círculos. Um leão estava esparramado no chão de sua jaula como um saco de trigo, olhando através das barras com olhos remelosos, enquanto uma leoa estava deitada numa subdivisão da jaula acima dele, dormindo, com as costas viradas para o público. Tom e Sarah dobraram na direção da trilha que levava para os elefantes e a Ilha dos Macacos. De algum lugar distante, ouviam o latido dos leões-marinhos.

— Tudo está tão diferente agora — Sarah disse, tirando o braço da cintura dele, e colocando as mãos nos bolsos.

— Os Redwings estão na Suíça. Ouvi dizer que Fritz vai para uma escola lá. Consegue imaginar Fritzie Redwing numa escola suíça?

— Não muito bem. Imagino que Fulton Bishop esteja na Suíça também — ele saiu a tempo, e Ralph Redwing lhe deu algum tipo de emprego.

— Bem, eles estão todos na Suíça. Meu pai diz que eles ainda têm muito dinheiro.

— Devem ter.

Os elefantes moviam-se lentamente, dando voltas em suas grandes jaulas, carre­gando montes de palha com as trombas. Um homem se debruçou sobre a jaula, segurando um amendoim, e um elefante andou para a frente, estendendo sua tromba cinzenta e enrugada para pegá-lo de sua mão com um gesto delicado e rápido.

— Sempre terão muito dinheiro — disse Tom. — Sempre terão casas enormes, montes de pinturas e carros, pessoas que trabalhem para elas, e nunca acharão o suficiente. Eles apenas não têm mais sua própria ilha.

— Ainda somos amigos? — Sarah perguntou.

— Claro — Tom disse.

— Eu não disse a outras pessoas tudo o que você me falou.

— Eu sei.

— Disse apenas algumas coisas ao meu pai, e ele, mais do que eu, não sabe o que elas realmente significam. Ou ele não acreditou realmente nelas.

— Não, ele não acreditou realmente nelas — disse Tom. — Ele arranjou outro emprego?

— Sim, ele arranjou outro emprego. Não temos de vender nossa casa, ou nada. Tudo acabou funcionando muito bem, não foi?

— De muitas maneiras.

Seguiram pela Ilha dos Macacos, onde uma tribo de pessoas anarquistas em miniatura, com rabos e pêlos no corpo, escalava uma colina rochosa, separadas das pessoas reais por um fosso. Crianças gritavam de prazer e pulavam de um lado da ilha para o outro, brigando por comida, masturbando-se, montando uns nas costas dos outros, discutindo com guinchos e uivos, batendo-se com pequenos punhos de macaco, virando para dedicar aos seus espectadores discursos com gestos violentos de súplica ou afronta.

— Deve estar triste sobre seu avô.

— Estou triste com o tipo de pessoa que ele era. Estou triste por ele ter feito tanto mal. Dela e do pai dela, veio a voz de sua mãe. Acho que fiquei um pouco deprimido quando afinal tive de admitir...

Sarah sorriu para as cabriolas dos macacos, e ele sorriu para ela.

— Você sabe — ele continuou. — Quando realmente tive de admitir para mim mesmo o tipo de homem que ele era.

— Antes dele ter se matado.

— Não, antes disso. Um ou dois dias antes disso.

Dela e do pai dela. Porque éramos apenas nós dois naquela casa.

Ela desviou a atenção dos macacos.

— Bem, foi terrível o que aconteceu ao seu amigo. O sr. von Heilitz, quero dizer.

Ela olhou para ele tanto com simpatia como com um tipo de curiosidade impessoal, e ele soube o que estava chegando.

— Sim. Foi terrível.

— Você sabia que ele ia lhe deixar tudo?

— Não. Não sabia de nada até que os advogados dele me chamaram.

— E você vive na casa dele agora?

— Agora que eu a limpei.

Estavam caminhando por uma trilha pela qual passavam por ursos marrons e polares separados em jaulas diferentes. Os ursos deitavam-se de lado, besuntados com o próprio excremento.

— Acho que você realmente não vai ter de trabalhar nunca, não é?

— Não como empregado. Mas vou ter muito o que fazer. Tenho de terminar a Brooks-Lowood, e vou para a faculdade. Depois volto e vejo o que posso fazer.

— Essas roupas eram dele, não eram?

— Gosto das roupas dele.

— Mas vai se vestir dessa maneira na escola?

— Não sei.

— Não sei, também.

— Tom — ela disse.

— O quê?

— Está zangado comigo?

— Não. Talvez este zoológico seja um pouco deprimente.

Ela virou para os ursos, frustrada com ele.

— Havia milhões, não é? Meu pai disse que eram milhões, Isso não é uma coisa? Não é realmente uma coisa saber que você pode fazer o que quiser? Não é excitante?

— Não queria o dinheiro dele. Queria ele — para continuar a conhecê-lo.

— Bem, por que ele deixou tudo para você?

— Costumava ir lá conversar com ele — disse Tom, sorrindo para ela. — Talvez quisesse me dar um bom começo para viver.

— O que seus pais dizem?

Desceram a trilha na direção de um prédio escuro no lado mais distante do zoológico. Uma placa na estrada anunciava que a casa dos répteis era ali.

— Não acho que gostaria de ir à casa dos répteis. E você?

Ela balançou a cabeça.

— Bem, o que eles dizem?

— Quando contei a minha mãe, ela ficou um tanto surpresa para falar muito, mas ficou feliz. Ela gostava dele também.

— Feliz — disse Sarah. — Ela devia ficar feliz.

— Ela teve de assinar muitos papéis, mas não sabia exatamente o que eles eram. O que a preocupava mais era que eu queria me mudar, mas era apenas para o outro lado da rua. Faço as refeições em casa, e falo com ela. Ela está melhorando. E meu pai não disse nada, porque ele não estava por perto para ouvir nada. Achamos que desapareceu. Foi embora. Não acho que vamos vê-lo novamente.

O rosto de Sarah expressou choque, preocupação e tristeza enquanto ele falava. Quando terminou, ela disse:

— Mas você não parece que se importa se ele vai voltar!

— Eu me importo. Espero que ele não volte nunca mais. Estamos todos mais felizes dessa maneira.

— Sua mãe está mais feliz?

— Ela sente falta dele, mas sim, acho que ela está muito mais feliz. Ele realmente não gostava muito de nenhum de nós, mesmo.

— Tudo está tão diferente agora! — Sarah gritou.

— Tudo estava diferente antes, só que ninguém podia ver.

— Mas e quanto a mim e você?

— Nós nos conhecemos melhor.

— Isso não é tudo. Oh, perdemos os leões-marinhos. Vamos ter que partir do início de novo. Ouvi os leões-marinhos, mas não os vi em nenhum momento.

— Havia uma trilha que não pegamos.

Haviam saído do outro lado da jaula da pantera. A criatura inquieta olhou através das grades e ao encontrar os olhos de Tom, lançou-lhe um olhar rápido e inquisidor que o congelou. A pantera era louca, mas era bonita de uma forma que nem a loucura do encarceramento podia diminuir. O animal possuía um esplendor nativo e incons­ciente — era indefeso diante desse esplendor; a palavra inseguro era a única para adjetivá-lo, como os leões cansados da jaula ao lado.

— Você quer voltar? — ele perguntou a Sarah, mas estava olhando para a pantera.

— É só um pequeno zoológico triste, não é? Não, Tom, vamos sair daqui para algum outro lugar.

Os olhos da pantera esvoaçaram para longe dos dele. A pantera deu mais uma volta pela jaula e voltou para encontrar novamente os olhos de Tom. Os olhos da pantera eram grandes e inumanamente amarelos, cheios com suas questões pre­mentes, que poderiam ser: Quem é você? O que você vai fazer?

— Tom! — disse Sarah. — A pantera está olhando para você!

Quem era ele e o que ele ia fazer eram a mesma coisa, Tom compreendeu.

— Está rindo de mim? — Sarah perguntou. — Tom?

A pantera deu outra volta na jaula.

 

                                                                                 Peter Straub  

 

                      

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