Nesta obra Anne Perry conduz-nos pela época vitoriana, expondo as suas características, as suas riquezas em termos descritivos e também os podres de uma época em que as aparências eram muito importantes. Será Charlotte que nos guiará nesta descoberta, uma jovem da pequena aristocracia, mas muito sincera e verdadeira. Atributos que nessa época se tornavam muito desagradáveis para as conveniências.
Uma descrição rica e pormenorizada, com um crime em fundo e que será resolvido pelo inspetor Pitt, o Sherlock Holmes de Anne Perry, mas muito mais prático, e onde o seu Watson é nem mais nem menos que Charlotte. Os dois juntos vão desvendar um crime ocorrido numa das zonas mais chiques de Londres e, onde o mais importante que descobrir o criminoso é salvar a face, até porque as investigações vão trazer à tona algumas das inconfidências de alguns dos mais respeitáveis inquilinos de Cater Street. Charlotte vai-se transformar ao longo desta obra e passa a ser a atriz principal, uma mulher de força que deixa uma vida de privilégios por uma vida de sacrifício ao lado do homem que ama. Uma obra para quem gosta de bons policiais com uma grande qualidade histórica.
Capítulo 1
Charlotte Ellison estava de pé no centro da sala de estar com um jornal nas mãos. Seu pai não tinha sido muito prudente ao deixá-lo sobre uma das mesas. Não gostava que sua filha lesse semelhantes coisas; preferia lhe contar às notícias que considerava aptas para uma jovenzinha. E é claro isso excluía escândalos - pessoais ou políticos, assuntos suscetíveis de controvérsia e, naturalmente, qualquer classe de crimes; em suma, todo aquilo que pudesse ser interessante.
Para lê-lo, Charlotte tinha que ir ao quarto do Maddock, o mordomo, que guardava o jornal para lhe dar uma olhada antes de atirá-lo, e por isso sempre levava pelo menos um dia de atraso com respeito ao resto dos londrinos.
Entretanto, naquela ocasião tinha entre suas mãos o jornal do dia, com data 20 de abril de 1881, e em sua notícia mais destacada anunciava a morte do senhor Disraeli, ocorrida no dia anterior. Charlotte se perguntou em primeiro lugar como teria acontecido aquilo ao senhor Gladstone. Haveria sentido a perda? Acaso um acérrimo inimigo podia chegar a formar parte da vida de alguém em igual medida que um grande amigo? Certamente sim. Cada fio tem seu lugar na vasta malha dos sentimentos.
Soaram uns passos no vestíbulo, e Charlotte se apressou a deixar o jornal em seu lugar. Não tinha esquecido a ira de seu pai ao descobri-la, três anos atrás, lendo a edição vespertina de um diário. Naquela ocasião o artigo explicava um intercâmbio de calúnias entre o senhor Whistler e o senhor Ruskin, e o aborrecimento de seu pai tinha sido inclusive compreensível. Mas no ano anterior, sem ir mais longe, tinha mostrado o mesmo desgosto ao ver que sua filha se interessava pelas notícias da guerra zulú contadas por pessoas que tinham estado na África. Incomodou-se tanto que lhe proibiu ler até as passagens mais inocentes. No final Dominic, o marido de sua irmã, tinha-lhe contado o que sabia; mas sempre lhe chegavam às coisas pelo menos com um dia de atraso.
Ao recordar, Dominic, esqueceu por completo o senhor Disraeli e os titulares do jornal. Dominic a tinha fascinado desde sua primeira visita a casa, seis anos antes, quando Sarah tinha só vinte anos, Charlotte dezessete e Emily treze. É claro, tinha escolhido Sarah; Charlotte só podia entrar na sala em companhia de sua mãe, de modo que os encontros estavam sujeitos ao mais estrito decoro. Dominic, apenas a via, pronunciava palavras vagamente amáveis enquanto seus olhos observavam, por cima de seu ombro esquerdo, a loira cabeleira e o delicado rosto de Sarah. Charlotte, com sua cabeleira mogno tão difícil de pentear e suas feições algo duras, era tão somente um compromisso de qual deveria livrar-se com boas maneiras.
Naturalmente, um ano depois contraíram matrimônio, e Dominic perdeu parte de seu mistério. Tinha deixado de pertencer ao mágico mundo dos sonhos românticos. Entretanto, cinco anos depois, apesar de viver sob o mesmo teto, na mesma casa, grande e perfeitamente ordenada, Dominic continuava exercendo sobre ela igual fascinação do dia de seu primeiro encontro e não tinha perdido nem um ápice de encanto.
Os passos que se ouviram no vestíbulo eram precisamente os seus. Sabia sem necessidade de pensar. Fazia parte de sua vida: estava atenta ao menor de seus movimentos, reconhecê-lo-ia em meio de uma multidão, sabia em que parte da habitação se achava e recordava cada uma de suas frases, inclusive as mais corriqueiras.
Acostumara-se à situação. Dominic sempre tinha estado fora de seu alcance. Nunca se tinha interessado por Charlotte, nem ela tinha concebido jamais a possibilidade de que isso ocorresse. Talvez algum dia acharia alguém a quem queira e respeite, o homem adequado, e sua mãe falaria com ele, comprovaria se era uma pessoa aceitável de todos os pontos de vista. Seu pai levaria a cabo os preparativos necessários, tal como tinha ocorrido com Dominic e Sarah, e como sem dúvida ocorreria também com Emily e algum pretendente em seu devido tempo. Não era algo no que desejasse pensar, mas fazia parte de seu futuro. O presente o formava Dominic, a casa, seus pais, Emily, Sarah e a avó. O presente era a tia Susannah, que passaria para tomar o chá em umas duas horas, e o fato de que os passos do vestíbulo se afastavam lhe permitindo assim dar outra olhada ao jornal.
Uns minutos depois, sua mãe entrou na sala tão silenciosamente que Charlotte não se deu conta.
- Era muito tarde para ocultar o que estava fazendo. Baixou um pouco o jornal e olhou diretamente nos olhos castanhos de sua mãe. Sim, mamãe - disse com tom de verdadeira confissão.
- Já sabe o que opina seu pai sobre essas coisas. -Lançou um olhar ao jornal. - Não entendo o que a impulsiona a fazê-lo; seu pai nos põe, à corrente das notícias agradáveis que aparecem publicadas, e são muito poucas. Empenhar-se em ler pessoalmente, pelo menos faz isso de maneira discreta; vá ao quarto do Maddock ou peça ao Dominic que te conte o que sabe.
- Charlotte se ruborizou. Olhou para o outro lado. Não tinha a menor idéia de que sua mãe conhecesse suas visitas ao quarto do Maddock e muito menos que estivesse a par de suas conversas com o Dominic! Ou teria contado o próprio Dominic? Por que a só possibilidade lhe doía como uma traição? Era uma idéia ridícula. Confiava plenamente no Dominic. Como tinha podido sequer imaginar algo parecido?
- Tem razão, mamãe. Sinto muito. - Jogou o jornal sobre a mesa-. Não permitirei que papai me veja.
- Se quiser ler, por que não os livros? Na biblioteca achará uma obra de Dickens, e tenho certeza de que ainda não leu Coningsby do senhor Disraeli.
- É curioso como as pessoas afirmam estar certas de algo quando na realidade não o está.
- O senhor Disraeli morreu ontem - respondeu Charlotte-. Não poderia desfrutar da leitura. Não nestas circunstâncias.
- O senhor Disraeli? OH, querida, sinto muito! Nunca me importou o senhor Gladstone, mas não o conte a seu pai. Recorda-me ao vigário.
- Charlotte sufocou um risinho.
- Você não gosta do vigário, mamãe?
- Sua mãe ficou séria imediatamente.
- Claro que eu gosto. Agora, por favor, vá se arrumar para o chá. Acaso esqueceu que a tia Susannah vem nos visitar esta tarde?
- Mas não chegará até dentro de uma hora e meia, pelo menos - replicou Charlotte.
- Então borde um pouco ou continua o quadro que estava pintando.
- Charlotte, a gramática! Não me está ficando bem. Lamento-o. Talvez seja melhor que acabem as luvas para que possa levá-la amanhã à mulher do vigário.
- Prometi-lhe que os faríamos chegar.
- Acha que realmente servem de algo aos pobres?
- Era uma pergunta sincera.
- Não tenho a menor idéia. -O rosto de sua mãe relaxou ao pensar, obviamente pela primeira vez, nesse tema-. Acho que nunca conheci ninguém realmente pobre. Mas o vigário assegura que sim, e não temos por que desconfiar.
- Embora nós não gostemos muito.
- Charlotte, por favor, não seja impertinente!Obediente, Charlotte saiu da sala e subiu pela escada. O melhor seria que acabasse as luvas; teria que fazê-lo em um momento ou outro.O imprevisível era a companhia. Algumas vezes iam visitar alguém, sentavam-se em cadeiras desconhecidas de outra sala de estar e mantinham tímidas conversas, e outras vezes eram eles quem recebiam visitas. Sarah tinha amigas jovens e casadas cuja conversa era extremamente aborrecida para Charlotte. As amigas da Emily eram mais divertidas: conversavam sobre moda e amor - quem cortejava a quem ou, quem estava a ponto de começar a fazê-lo. As amigas da mãe eram mulheres sérias, de comportamento severamente correto e rigoroso, mas havia duas que contavam histórias capazes de fascinar Charlotte: lembranças de velhos admiradores, mortos tempo atrás na Crimea, Sebastopol e Balaclava, e lembranças também dos poucos que voltaram sãos e salvos. Costumavam comentar a vida de Florence Nightingale: "Tão pouco feminina, mas com uma coragem impressionante, querida. Pode ser que não seja uma dama, mas é uma patriota inglesa admirável!"Mas estavam em 1881, muito longe de semelhantes acontecimentos, com o senhor Disraeli morto, com luzes de gás nas ruas e mulheres cursando estudos na Universidade de Londres! A rainha era a imperatriz da Índia e o império se estendia por todos os rincões da terra. Wolfe e sua vitória nos planos do Abraham no Canadá, Clive e Hastings na Índia, Livingstone na África e a guerra zulú... Tudo isso formava já parte da história. O príncipe com sorte tinha morrido de tifo vinte anos atrás; Gilbert e Sullivan escreviam óperas como H.M.S. Pinafore. O que pensaria o imperador Napoleão de todo aquilo?
- Naquele dia, a senhora Winchester foi visitar a mãe de Charlotte – um verdadeiro aborrecimento -, mas felizmente a tia Susannah foi vê-los todos. Era a irmã menor de papai. De fato, só tinha trinta e seis anos, dezenove menos que seu irmão e só dez mais que Sarah; parecia mais uma prima que uma tia. Fazia três meses que não a viam três e que parecia uma eternidade. Tinha passado uma temporada em Yorkshire.
- As amigas da avó eram ainda mais interessantes. Não é que gostasse muito, pois eram umas velhas damas desagradáveis. Mas a senhora Selby tinha mais de oitenta anos e podia recordar a batalha do Trafalgar e a morte do almirante Nelson: os laços negros na rua, as pessoas chorando, os jornais impressos com margens negras; ao menos isso ela dizia. Falava com freqüência do Waterloo e do Grande Duque, dos escândalos da imperatriz Josefina, da volta do Napoleão de seu exílio em Elba, e dos Cem Dias. Muito do que explicava tinha ouvido em outras salas de estar como aquela, talvez um pouco mais austeras, com móveis mais discretos e neoclássicos; entretanto, embora suas histórias não fossem vividas, fascinavam Charlotte.
- Doura a ajudante da cozinheira, serviu o chá na sala de estar. O chá era um dos assuntos mais previsíveis. Se estivesse em casa, servia-se sempre as quatro em ponto, na mesma sala de móveis verde pálido e janelas com vistas ao jardim, naquele momento fechados apesar de que o claro sol primaveril iluminasse a erva e os últimos narcisos. O jardim era pequeno, com uns metros de grama, um leito de flores e uma única e formosa bétal junto ao muro. Entre os tijolos subiam as rosas preferidas de Charlotte. A roseira era velha, mas muito bonita; florescia desde junho até novembro. As rosas cresciam em desordenados ramalhetes que logo formavam frondosos mantos de pétalas caídas.
- Seu tom era verdadeiramente duro. Sabia que era verdade embora não estivesse disposta a reconhecê-lo. Não podia zangar-se com Charlotte, mas, em todo caso, consigo mesma.
- Tem que nos contar todos os detalhes, querida. -A senhora Winchester se inclinou ligeiramente, com o rosto ardendo de curiosidade-. Quem são os Willis? Sem dúvida já me falou que eles - tinha a absurda convicção de que todo mundo contava tudo-, mas ultimamente minha memória não é tão boa como deveria.Charlotte pensava que a verdadeira razão estava entre os dois extremos: uma vez cumprido o desejo de sua família e da sociedade de vê-la casada, sua tia se prometera não voltar a comprometer-se até achar um amor verdadeiro, o que, ao que parece, ainda não tinha conseguido.
- Aguardou a resposta ansiosa, com as sobrancelhas arqueadas. Susannah era um de seus temas preferidos: suas idas e vindas e, sobre tudo, uma possível aventura ou, melhor ainda, um suposto escândalo... Reunia todos os elementos necessários. Casara-se aos vinte e um anos com um cavalheiro de boa família e, um ano depois, em 1866, o homem tinha morrido assassinado no Hyde Park Riots, deixando-a bem assentada, com uma grande fortuna, em plena juventude e com uma beleza invejável. Não havia tornado a casar-se, apesar de que lhe sobravam pretendentes. Certas pessoas opinavam que ainda guardava luto por seu marido e, como a rainha, nunca poderia recuperar-se de sua perda; pelo contrário, não faltava quem assegurava que seu matrimônio tinha sido tão doloroso para ela que não se arriscaria a repetir.
- O senhor Willis é um primo materno - respondeu Susannah com um sorriso de compromisso.
- Claro, é claro. -A senhora Winchester se tornou para trás-. E o que faz o senhor Willis, rezar? Estou certa de que é uma pessoa muito interessante.
- É o sacerdote de um pequeno povoado - respondeu Susannah, embora seu olhar se cruzasse com o de Charlotte com uma piscada travessa.
- OH! -A senhora Winchester tentou dissimular sua decepção-. É estupendo. Imagino que você lhe seria de grande ajuda em sua paróquia. Nosso querido vigário adoraria saber de sua nova experiência; e a pobre senhora Abernathy. Tenho certeza de que ouvir falar do campo e dos pobres a ajudará a sentir-se melhor.
- Charlotte se perguntou em que sentido ouvir falar sobre os pobres ou sobre o campo poderia confortar a alguém e, em especial, a senhora Abernathy.
- OH, sim! -apontou a mãe-. Seria uma idéia excelente.
- Deveria levar-lhe umas frutas em conserva - acrescentou a avó, assentindo com a cabeça-. Sempre é agradável receber presentes, pois indica que outros se preocupam com alguém. Mas a pessoas de hoje já não são tão atentas como em meus tempos. É claro, a culpa são esses crimes e essa violência. Isso faz mudar às pessoas. E grande falta de modéstia: as mulheres se comportam como se fossem homens e pretendem todo tipo de coisas inconvenientes. Dentro de nada, nas granjas cantarão as galinhas em lugar dos galos!
- Pobre senhora Abernathy! -insistiu a senhora Winchester, meneando a cabeça.
- A senhora Abernathy esteve doente? -perguntou Susannah.
- É claro! -respondeu a avó-. O que esperava filha? Digo isso à Charlotte todo o tempo. -Lançou um olhar penetrante à Charlotte-. Você e Charlotte são iguais sabia? -tratava-se de uma acusação dirigida à Susannah. - Costumava considerar o responsável por Charlotte – se referiu a sua nora fazendo um ligeiro gesto de desprezo com sua carnuda mão-, mas suponho que não posso culpá-la de como é você. É filha de sua época. Seu pai nunca foi suficientemente estrito com você, mas pelo menos não lê esses horríveis jornais que chegam a esta casa. Nada bom se tira deles.
- Mamãe, não acredito que Charlotte leia os jornais tanto como supõe - apontou Susannah tratando de defender a sua sobrinha.
- Quantas vezes considera que se deve ler algo para ter certeza de que o dano aparece? -perguntou a avó.
- Cada um é diferente, mamãe.
- Como sabe? -A avó era pior que um terrier.
- Susannah guardou a compostura e a penas se ruborizou:
- Os jornais contam as notícias, mamãe; e as notícias mudam todo dia.
- Grande tolice! Não descrevem mais que crimes e escândalos. O pecado não mudou desde que Nosso Senhor permitiu que invadisse o jardim do Éden.
- Isso resolveu a conversa. Seguiram uns minutos de silêncio.
- Tia Susannah - disse Sarah ao cabo-, nos conte, o campo no Yorkshire é tão formoso como dizem? Eu nunca fui. Talvez os Willis pudessem nos acolher ao Dominic e a mim... -sugeriu.
- Tenho certeza de que estariam encantados. Mas me custa acreditar que Dominic possa se interessar pela vida rural. Sempre me pareceu um homem com motivações mais ambiciosas que o visitar pobres e assistir a reuniões à hora do chá.
- Faz com que se pareça muito aborrecido! -exclamou Charlotte impulsivamente.
- Em troca, recebeu um olhar geral de surpresa e desaprovação.
- Isso é o que a senhora Abernathy precisa não me cabe dúvida – apontou à senhora Winchester fazendo um gesto de assentimento-. Far-lhe-ia muito bem, pobre mulher.
- Yorkshire pode ser muito frio em abril - explicou Susannah com serenidade, olhando a cada um dos pressentes-. Se a senhora Abernathy tiver estado doente, não acredita que seria melhor esperar junho ou julho?
- O frio não tem nada que ver! -sentenciou a avó-. É revigorante e muito saudável.
- Salvo se a gente está saindo de uma enfermidade...
- Pretende-me contrariar, Susannah?
- Mamãe, só desejo deixar claro que a princípios da primavera Yorkshire não é o lugar ideal para alguém de saúde delicada. Em lugar de ser revigorante pode lhe provocar uma pneumonia.
- Mas, ao menos a manteria distraída - teimou a avó.
- Pobre mulher! -acrescentou à senhora Winchester-. Sem dúvida deixar este lugar, embora fosse ir ao Yorkshire, far-lhe-ia um grande bem, mudaria seu estado de ânimo.
- O que tem de mau este lugar? -inquiriu Susannah olhando à senhora Winchester e depois à Charlotte-. Sempre achei que este era um lugar especialmente agradável. Temos todas as vantagens da cidade sem o esgotamento da gente que vive nas partes mais povoadas e sem o gasto que implica residir nas zonas mais em moda. Nossas ruas estão limpas que as demais e estamos a um passo de tudo que apresenta interesse ou é divertido, isso para não mencionar os nossos amigos.
- A senhora Winchester se inclinou para ela.
- É evidente que esteve fora - disse com tom acusador.
- Só dois meses. Acaso este lugar mudou tanto em tão pouco tempo? - A pergunta era irônica, inclusive um pouco sarcástica.
- Quanto tempo se necessita? -A senhora Winchester estremeceu com afetação e fechou os olhos-. Pobre senhora Abernathy! Como pode suportar? Não estranho que a pobre tenha medo de ir dormir.
- Susannah se sentiu confundida e olhou Charlotte em busca de ajuda. Esta decidiu conceder-lhe e confrontar as conseqüências.
- Recorda de Chloe, a filha da senhora Abernathy? -Não esperou receber resposta-. Assassinaram-na há seis semanas; morreu estrangulada. Tinham-lhe rasgado a roupa e seus seios tinham sido muito maltratados.
- Charlotte! -Caroline lançou um olhar penetrante a sua filha-. Não falaremos disso!
- Levamos toda a tarde fazendo comentários sobre a questão, de uma forma ou outra - respondeu Charlotte com tom de protesto. Com a extremidade do olho viu Emily sufocar um risinho. - Simplesmente camuflamos isso entre muitas palavras.
- Melhor deixá-lo camuflado.
- A senhora Winchester estremeceu de novo.
- Nem sequer posso pensar nisso, só de recordar me ponho doente. Encontraram-na, na rua, atirada na calçada, como se fosse um montão de roupa suja. Seu rosto tinha um aspecto terrível, azul como... Como... OH, Deus! Com os olhos abertos e a língua pendurada.
- Estava há horas sob a chuva; não estranharia que tivesse estado ali toda a noite.
- Não se incomode em dar detalhes! -disse a avó com certa brutalidade ao ver o rosto alterado da senhora Winchester.
- Esta recuperou rapidamente seu ar aflito.
- OH, é terrível! -queixou-se com um gesto de dor-. Por favor, senhora Ellison, não permita que voltemos a mencionar este assunto. É-me insuportável. Pobre senhora Abernathy, não sei como pode suportar!
- Que remédio fica? -respondeu Charlotte-. Ocorreu. Agora ninguém pode fazer nada.
- Suponho que tampouco antes. -Susannah olhava fixamente sua xícara de chá-. Certamente foi um louco ou um ladrão; é o tipo de coisas que não se podem prever. -Levantou a vista e franziu o sobrecenho-. Não estaria passeando sozinha na escuridão, não é?
- Minha querida Susannah - objetou Caroline-, no inverno escurece a partir das quatro da tarde, especialmente nos dias chuvosos. Como pode alguém ficar sempre em casa depois das quatro da tarde? Nem sequer poderíamos visitar os vizinhos à hora do chá!
- Isso se dispunha a fazer?
- Ia levar roupa velha ao vigário para que a distribuísse entre os pobres. -
- De repente, o rosto doe Caroline refletiu profunda tristeza
- Pobre moça... Mal tinha dezoito anos.Ninguém pronunciou palavra.Charlotte continuava deprimida quando seu pai voltou para a casa, passadas as seis. Tinha escurecido e começavam a cair as primeiras gotas de chuva. A carruagem avançava pelo caminho. Edward Ellison trabalhava em um banco da cidade, cobrava um bom salário e pertencia à classe meio abastada. Faziam Charlotte comportar-se como se pertencesse a uma classe inclusive superior.
- Edward entrou e sacudiu as gotas de chuva de seu casaco durante os escassos segundos que demorou Maddock em chegar para recolher o traje e colocar a cartola em seu lugar.
- O silêncio não se rompeu até que Doura entrou do vestíbulo.
- E a seguir, a história lhes embargou o ânimo, deixou de ser um simples escândalo que comentar um relato mórbido... Tratava-se de uma morte real, a de uma mulher como elas: o ruído de uns passos, umas mãos repentinas no pescoço, o pavor, o esforço desesperado por respirar, os pulmões a ponto de explodir e, finalmente, um nada.
- Boa noite, Charlotte - disse com tom afável.
- Espero que tenha tido um bom dia - disse enquanto esfregava as mãos-. Temo que o tempo não seja o que corresponde a esta época do ano. É possível que se aproxime uma tormenta. O ambiente está muito carregado.
- A senhora Winchester devia estar tomando o chá. -Era uma forma indireta de responder a sua pergunta, já que seu pai sabia quão pouco gostava da senhora Winchester.
- Céus... -Esboçou um ligeiro sorriso. Entre eles existia um entendimento tácito, embora nem sempre se pudesse perceber - achei que Susannah viria.
- OH! Ela também esteve conosco, mas a senhora Winchester passou todo o tempo perguntando sobre os Willis e falando do Chloe Abernathy.Nesse momento, Sarah cruzou da sala de estar ao vestíbulo; a luz que se achava atrás dela criou uma espécie de halo em torno de seu cabelo loiro. Era uma formosa mulher, mais na linha da avó que do Caroline, com a mesma pele de porcelana, a boca pequena e o queixo arredondado.
- A expressão do Edward se endureceu. Charlotte se deu conta de que, sem querer, tinha traído a sua mãe. Seu pai esperava que sua mulher fosse capaz de evitar esse tipo de bate-papos em sua sala de estar. Não lhe agradava a idéia de que não fosse assim.
- Olá, Sarah, querida! -Edward lhe deu um tapinha no ombro-. Está esperando Dominic?
- Pensei que o teria encontrado - respondeu ela com um ligeiro tom de decepção-. Espero que chegue antes que descarregue a tormenta. Faz uns minutos me pareceu ouvir um trovão.Soou outro trovão, ao longe, e logo uma portada. Todo mundo olhou instintivamente para a porta. Ouviram-se uns passos, a voz do Maddock e, finalmente, Dominic entrou na sala.
- Charlotte sentiu um nó na garganta, embora a essas alturas já devesse tê-lo superado. Era magro e forte. Sorriu discretamente e olhou primeiro ao Edward - tal como o exige o protocolo em uma família patriarcal - e depois à Sarah.
- Retrocedeu uns passos. Edward entrou na sala de estar, dirigiu-se para a lareira e se colocou de costas ao fogo, impedindo que o calor chegasse a outros. Emily estava sentada em frente ao piano e passava as páginas da partitura distraidamente. Olhou a suas filhas com satisfação.
- Espero que tenha tido um dia agradável - disse Edward, que continuava junto ao fogo- conseguiu chegar antes que estale a tormenta. Acredito que vai pôr se feio em uma hora ou inclusive em menos. Sempre temo que os cavalos se assustem e provoquem um acidente. Becket perdeu a perna dessa maneira, sabia?Ela não tinha conhecido a ninguém, salvo ao Dominic, que lhe inspirasse o suficiente para que sua vida girasse em torno dele. Talvez devesse imitar Emily e conseguir algumas amigas do tipo de Lucy Saldelson ou as irmãs Hayward; parecia como se sempre estivessem começando ou acabando uma história de amor. Mas todas elas eram incrivelmente estúpidas. Pobre papai. Era muito duro para ele ter três filhas e nenhum varão.
- A conversa teve lugar muito perto de Charlotte; tratava-se da típica e intransigente conversa familiar, um dos pequenos rituais diários que marcam o ritmo da vida. Acaso ia ser sempre igual? Dias intermináveis costurando, pintando, dedicada às tarefas domésticas, às reuniões à hora do chá, esperando a chegada de seu pai e do Dominic. A que se dedicavam as demais? Casavam-se, criavam filhos e levavam a casa. É claro, as pobres trabalhavam e as de boa sociedade se ocupavam em ir a festas, galopar pelos parques e viajar de carruagens, embora fosse de supor que também atendiam a sua família.
- Poderia, não é certo, Charlotte?
- Dominic a olhava com as sobrancelhas arqueadas e uma expressão divertida em seu elegante rosto.
- Sonha acordada - comentou Edward.
- Dominic sorriu abertamente.
- Poderia vencer a senhora Winchester em seu próprio terreno, não é certo, Charlotte? -repetiu.
- Charlotte não sabia do que se falava. Estava claro que perdera uma parte importante da conversa.
- Pode ser tão inquisitiva como ela - explicou Dominic-. Responder a todas suas perguntas com mais pergunta. Estou seguro de que existem temas que prefira não tocar!
- Charlotte lhe respondeu com franqueza, como fazia sempre. Talvez essa fosse uma das razões pelas quais se apaixonara pela Sarah.
- Não conhece a senhora Winchester - respondeu sem preâmbulos-. Se não quiser falar de algo, simplesmente o ignora. Não concebe razão alguma pela qual sua resposta tenha que responder a sua pergunta. Diz o primeiro que lhe ocorre.
- Hoje tocou a pobre Susannah?
- Não; o tema de hoje foi à pobre senhora Abernathy. Susannah era uma questão tangencial que lhe permitia chegar à conclusão de como seria bom para a pobre senhora Abernathy passar uns dias no Yorkshire.
- Em abril? -Dominic se surpreendeu-. A pobre senhora se congelaria e morreria de aborrecimento.
- Edward ficou sério. Por desgraça, Caroline chegou nesse preciso instante.
- Caroline - disse friamente-, Charlotte me disse que esta tarde falou de Chloe Abernathy. Pensava que me tinha expressado com clareza, mas se por acaso não fui repetirei: não quero que nesta casa se especule ou se mexerique sobre a desafortunada morte dessa moça. Pode-se ajudar à senhora Abernathy a agüentar sua desgraça, adiante; do contrário, espero que a questão fique resolvida. Fica alguma dúvida sobre meus desejos a este respeito?
- Não, Edward, é claro que não. Temo-me que não consigo controlar a senhora Winchester. É tão... -interrompeu-se porque sabia que de nadaMaddock entrou e anunciou que o jantar estava servido.À tarde, Charlotte foi sozinha levar as luvas à mulher do vigário. Não lhe agradava ter que fazê-lo, especialmente em um dia como aquele, com muitas possibilidades de que o vigário se encontrasse em casa. Era um homem que a deprimia mortalmente. Entretanto, dessa vez não podia negar-se. Tocava a ela e nem Sarah nem Emily pareciam dispostas a liberar a dessa desagradável tarefa.A criada abriu a porta quase imediatamente. Tratava-se de uma mulher de ar severo, formas angulosas e idade indeterminada. Charlotte nunca conseguia recordar seu nome.
- Chegou ao vicaríato um pouco antes das três e meia. O ar, depois da tormenta era quente e tinha sido um agradável passeio; era perto de três quilômetros, mas estava acostumada a fazer exercício.
- No dia seguinte a tormenta tinha amainado. A rua amanheceu limpa sob a clara luz de abril, o céu era de um azul pálido e, no jardim, o rocio fazia brilhar cada fibra de erva. Charlotte e Emily se dedicaram a manhã às tarefas da casa, tal como costumavam fazer, e Sarah foi à costureira. Caroline se tinha encerrado, junto à senhora Dunphy, a cozinheira, para repassar as contas da comida.
- Serviriam suas explicações. Edward tinha expressado claramente seu desacordo e já estava pensando em outra coisa.
- Obrigado - disse ao entrar-. Acredito que a senhora Prebble me espera.
- Sim, senhorita. Siga-me, por favor.
- A mulher do vigário estava sentada em uma das salas menores, na parte de trás da casa. Junto a ela se achava seu marido, de costas a um fogo fumegante e negro.
- Boa tarde, senhorita Ellison - disse, inclinando tão pouco as costas que parecia corcunda - Que agradável vê-la empregar seu tempo em ajudar a outros!
- Não é grande coisa, senhor vigário. -Sentia o impulso de contrariá-lo-. São só umas luvas que têm feito minha mãe e minhas irmãs. Espero que sejam... -interrompeu-se porque se deu conta de que não sentia nada do que dizia. Eram simples palavras vazias, ruídos para encher o silêncio.
- A senhora Prebble se aproximou e pegou a bolsa. Era uma formosa mulher, de peito grande, robusta, com mãos fortes e magras.
- Tenho certeza de que quando chegar o inverno, muitos o agradecerão. Quando a gente tem as mãos frias, o resto do corpo fica gelado; observou?
- O vigário a observava fixamente e ela tentava fugir a seu gélido olhar.
- Parece que tem frio, senhorita Ellison - sentenciou ele-. À senhora Prebble adorará que tome uma taça de chá quente conosco-. Era uma ordem que não deixava lugar para recusar cortesmente.
- Obrigado - disse secamente.
- Martha Prebble fez soar a campainha de prata que havia sobre o suporte da lareira e quando, momentos depois, acudiu a criada, pediu que lhes servisse o chá.
- Como está sua mãe, senhorita Ellison? -perguntou o vigário, que continuava de costas ao fogo, impedindo que o calor chegasse até outros. - É uma mulher muito boa!
- Está bem, obrigado, senhor vigário - respondeu Charlotte-. Comentarei que perguntou por ela.
- Martha Prebble deixou de costurar e levantou a vista.
- Ouvi que sua tia Susannah já tornou do Yorkshire. Espero que a mudança de ares lhe tenha feito bem.
- A senhora Winchester não tinha perdido o tempo.
- Acredito que sim, mas não estava doente.
- De qualquer modo, as coisas devem lhe ser bastante duras - continuou Martha-. Ao estar sozinha.
- Não acredito que à tia Susannah incomode-se o mínimo – soltou Charlotte sem pensar-. Parece-me que se encontra melhor assim.
- O vigário franziu o sobrecenho. O chá chegou em seguida. Evidentemente já estava preparado, à espera do sinal para servi-lo.
- Não é bom que uma mulher esteja sozinha - apontou o vigário com tom severo. Tinha um rosto grande e quadrado, com uma boca magra e um nariz bastante proeminente. Charlotte envergonhava-se de reconhecer o muito que lhe desgostava aquele homem. Não deveria pensar assim de um alto cargo da igreja. - É muito vulnerável - acrescentou.
- Susannah não corre perigo algum - respondeu Charlotte com firmeza-. Tem com o que manter-se e, é claro, sai sozinha durante o dia. De noite fica em sua casa, que é um lugar muito seguro. Tem um criado muito eficiente que entre outras coisas sabe dirigir armas de fogo.
- Não me referia à violência, senhorita Ellison, mas à tentação. Uma mulher só está submetida às tentações da carne, à ligeireza de comportamento e a uma classe de diversões que tendem a perverter os bons costumes. Uma boa mulher é aquela que se ocupa das tarefas de sua casa. Recorde o que se diz na Bíblia, senhorita Ellison, recomendo-lhe que leia o livro dos Provérbios.
- Susannah é uma boa dona-de-casa. -Charlotte sentiu a imperiosa necessidade de defendê-la-. E não se dedica A... a comportar-se com ligeireza.
- Realmente você é uma jovenzinha muito obstinada - comentou o vigário com um sorriso forçado-. Isso não é bom. Terá que aprender a controlar-se.
- Só pretende defender a sua prima, querido - disse Martha ao ver como Charlotte começava a avermelhar de raiva.
- Martha, defender a outros deixa de ser uma virtude quando se protegem valores equivocados, demoníacos e perigosos. Pensa no Chloe Abernathy, por exemplo, pobre moça! Além disso, Susannah é sua tia, não sua prima.
- Charlotte ainda podia sentir o ardor em suas faces.
- O que tem que ver Chloe Abernathy com o Susannah? -exclamou.
- As más companhias, senhorita Ellison, as más companhias. Todos somos seres frágeis e as mulheres, especialmente as jovens, se forem em má companhia costumam cair em vícios friáveis e inclusive, guiados por um homem demoníaco, podem acabar sua vida nas ruas, abandonadas e miseráveis.
- Chloe não tinha nada que ver com tudo isso!
- É uma alma cândida, senhorita Ellison, tal como corresponde a uma mulher. Não tem por que saber destas coisas, e seu desconhecimento diz muito em favor de sua mãe. Mas os grandes males começam com pequenos deslizes. É por isso que inclusive a mais inocente das mulheres necessita o amparo de um homem capaz de descobrir as sementes do pecado e de mantê-la afastada do vício. As más companhias são a fonte de todo mal, ocinha, não tenha a menor duvida. Pouco antes de sua morte a pobre Chloe freqüentava muito às irmãs Madison. Talvez você não possa apreciar a leveza de seus costumes, a frivolidade de suas maquiagens, a forma em que se vestem para chamar a atenção dos homens e seu horrendo costume de estar sem acompanhante, mas tenho certeza de que seu pai está à corrente e não a deixaria relacionar-se com semelhantes personagens. Deve lhe agradecer o não estar atirada na rua, vítima de um assassinato.
- Sei que são um pouco frívolas... -Charlotte tratava de pensar nas irmãs Madison para ver se detectava em seu comportamento algum dos indícios de pecado aos que aludia o vigário. Não conseguia recordar nada nefasto, simplesmente um amontoado de absurdos românticos e nada perigosos. Eram frívolas, mas sem maldade, nem sequer latente-. Mas não recordo nada malévolo nelas.
- Nada malévolo... - O vigário lançou um grunhido de suficiência-. O pecado não tem que ver com a malevolência, mocinha. O pecado é o princípio pelo qual se chega à condenação eterna, à perdição da carne, à fornicação e à busca do bezerro de ouro!
- O vigário ergueu a voz e Charlotte soube, instintivamente, que aquilo era o início de um sermão. Começou a se desesperar.
- Senhora Prebble - se voltou para ela em um alarde de hipocrisia-, poderia me dizer que mais gostaria que fizéssemos para ajudar aos pobres? Tanto a minha mãe como as minhas irmãs adorariam continuar colaborando.
- Martha Prebble se surpreendeu com a veemência da pergunta, mas também ela estava contente de deixar o tema do pecado.
- OH! Acredito que o melhor seriam umas mantas ou talvez roupa para as crianças. Os pobres sempre têm tantas crianças... Certamente mais do que temos quem possa abrigar.
- É claro. -O vigário não estava disposto a abandonar a questão. Sua cabeça parecia enorme, erguida sobre seus ombros como se fosse um monumento-. Precisamente porque se deixam levar por suas paixões têm mais filhos, e isso garante que continuem sendo pobres. Outros têm a obrigação de cuidar deles. Imagino que é uma das formas que tem o Senhor de lhes ensinar a ser pacientes em sua desgraça e de desenvolver a virtude da caridade cristã em outros.
- Charlotte não respondeu. Bebeu o que ficava do chá e se levantou.
- Obrigado pelo chá. Agora que já descansei e esquentei é hora de voltar para casa; não quero que me pilhe a noite. Transmitirei a minha mãe seu agradecimento pelas luvas e não duvido que siga seus conselhos. A partir de amanhã faremos roupa para as crianças. Espero que nos dê bem.
- Martha Prebble a acompanhou até a porta. Uma vez no vestíbulo, pegou Charlotte e pelo braço.
- Minha querida Charlotte, não se incomode com o vigário. Ele só procura o bem-estar da comunidade e não é sua intenção soar tão cru. Sei que lhe causar pena não poder evitar desgraças como as que ocorreram.
- Claro. Entendo-o - respondeu Charlotte para sair do passo. Não o entendia absolutamente. O vigário a punha doente, mas Martha lhe dava pena. Devia ser horrível viver com aquele homem. Embora talvez a maioria dos homens fosse assim. Todos estavam acostumados a mostrar-se bastante estritos com as jovenzinhas como as irmãs Madison, que em realidade eram bastante pesadas. Eram tolas, mas não pecaminosas...
- É muito gentil, querida. Sabia que compreenderia.Dois dias depois, quando Edward voltou para casa, todas as mulheres se achavam no salão, confeccionando roupa para crianças tal como à senhora Prebble tinha sugerido.
- Ouviram fechar a porta principal. Depois, um murmúrio de vozes enquanto Maddock recolhia o casaco e o chapéu do senhor, mas, um momento depois, em lugar de aparecer Edward, apareceu o rosto do Maddock na porta.
- Ficou na soleira vendo como Charlotte se afastava pelo caminho.
- Senhora - disse olhando Caroline com o rosto alterado.
- Sim, Maddock? -Caroline se surpreendeu, mas ainda não suspeitava que tivesse ocorrido algo mau-. O que ocorre? Não era o senhor Ellison?
- Sim, senhora. Poderia sair um momento ao vestíbulo?
- Charlotte, Emily e Sarah o olharam aniquiladas. Caroline se levantou.
- Assim que saiu, as jovens se olharam, surpreendidas.
- O que estará acontecendo? -exclamou Emily muito emocionada-. Acha que papai trouxe companhia? Pergunto-me quem pode ser... Será rico? Talvez seja um cavalheiro da cidade.
- Se for assim, por que não o convida a entrar? -apontou Charlotte.
- Sarah franziu o sobrecenho e olhou ao teto com ar desesperado.
- Mas, Charlotte! O normal é que se consulte com mamãe antes que... O apresente. Talvez seja alguém que não devemos conhecer. Ou alguém que tem problemas e necessita ajuda.
- Grande tolice! -protestou Emily-. Quer dizer que pode tratar-se de um mendigo, alguém sem meios para manter-se?
- Não sei. Papai pediria a Maddock que se fizesse encarregado, mas, naturalmente, contaria a mamãe.
- Emily se levantou e se aproximou da porta.
- Emily, não pretenderá ir escutar!
- Emily sorriu e levou um dedo à boca.
- Não querem saber o que acontece? -perguntou.
- Charlotte se aproximou rapidamente e ficou quase em cima de Emily.
- É claro que quero - respondeu-. Abre um pouco mais a porta.
- Emily o fez e ficaram juntas. Pouco tempo depois, Charlotte sentiu o calor de Sarah junto a suas costas. Seu vestido de tafetá rangia ao mover-se.
- Edward tem que destruir os jornais - dizia Caroline-. Pode dizer que os perdeu.
- Não sabemos se sairá nos jornais.
- É claro que sairá! -exclamou Caroline furiosa e preocupada. Tremia-lhe a voz.
- Charlotte conteve a respiração. Sua mãe estava a ponto de traí-la.
- Pode ficar um solto por aí e uma das meninas poderia vê-lo - prosseguiu Caroline-. E tampouco quero que os serviçais o leiam. A pobre senhora Dunphy às vezes utiliza as folhas de jornais para envolver o lixo e Lily as pega para limpar. Levariam um susto de morte.
- É certo - assentiu Edward-. Tem toda a razão, querida. Será melhor que o leia e o destrua antes de chegar a casa. Procure que mamãe não saiba de nada. Seria um grande desgosto.Charlotte sorriu e tampou o rosto com o vestido de seda do Emily. Pensava
- que a avó era mais dura que aqueles soldados turcos da guerra da Crimea a respeito de quem não parava de falar. Parecia que Caroline compartilhava sua opinião, a julgar por seu gesto. Mas o que tinha ocorrido? Estava tremendo de curiosidade.
- Caroline assentiu sem muita convicção.
- A esta pobre - Caroline engoliu em seco; podia ouvi-la detrás da porta- também a estrangularam como ao Chloe Abernathy?
- Não exatamente como ao Chloe Abernathy - corrigiu Edward, mas algo em sua voz indicava que a situação o superava-. Chloe era... Uma moça respeitável. A criada dos Hilton era... Bom, parece friável criticar aos mortos, especialmente se tiverem morrido em semelhantes circunstâncias, mas... Tratava-se de uma jovem de duvidosa reputação. Tinha mais admiradores do que corresponderiam a uma moça decente. Acredito que isso lhe causou a morte.
- Disse que a acharam na rua.
- Sim, no Cater Street, apenas a um quilômetro da casa do vigário.
- Mas os Hilton não vivem no Russmore Street? Isso está muito longe do Cater. Suponho que tinha um encontro e... Então ocorreu.
- Calma, querida. Foi algo horrível, obsceno. Não voltaremos a falar disso. Será melhor que entremos na sala de estar ou começarão a perguntá-lo que nos retém aqui. Espero que os vizinhos não façam comentários e que Dominic tenha suficiente bom sensos para não mencionar nada pelo menos confia em que evite os detalhes mais... Mais selvagens.
- Bom, você se inteirou por casualidade, porque estava no Cater Street no momento em que chegou a polícia; do contrário não teria sabido nada.
- Acautelá-lo-ei para que seja discreto. Não quero que as meninas se preocupem. Será melhor que fale com o Maddock para que nem Doura nem Lily vão sozinhas a nenhum lado, até que detenham o assassino.Emily cravou o cotovelo em Charlotte para avisar que deviam limpar a zona.O rosto do Edward estava pálido, mas aparentemente sereno.
- Voltaram correndo a seus respectivos lugares. Quando a porta se abriu, estavam sentadas de forma muito incômoda, com as saias enrugadas.
- Dirigiram-se para a sala.
- Boa noite, queridas. Espero que tenham tido um bom dia.
- Sim. Obrigada, papai - respondeu Charlotte quase sem fôlego-. Muito bom dia. Obrigado. Emily estava emocionada. Era o tipo de dia que mais gostava, inclusive mais que no dia anterior. Era o momento de sonhar, de preparar-se, das pressas finais, de revisar até o último detalhe, de roupa interior recém lavada, de lavar o cabelo, escová-lo e frisá-lo e de, no último momento, dar um discreto toque de cor a suas faces.Sarah ia vestida de azul, uma cor que a favorecia muito. Destacava o delicado de sua pele e fazia jogo com seus olhos. Era uma cor que também ficava muito bem em Emily pois contrastava com suas cálidas faces, seus olhos escuros e seu cabelo castanho com reflexos dourados. De qualquer modo, nenhuma estaria favorecida se ambas levavam a mesma cor; ao contrário, ficariam ridículas. E Sarah tinha escolhido primeiro.Emily só podia optar pelo amarelo ou o verde. O amarelo a fazia parecer esquálida e Sarah também ficava fatal. A única que o podia pôr era Charlotte. De modo que, por eliminação, Emily escolheu o verde. Um verde suave, mais discreto que o verde maçã. Colocou o vestido ante si e se disse que a sorte estava de seu lado. Realmente era uma boa opção. Dava-lhe um aspecto delicado e primaveril, como uma flor em estado natural, carente de artifícios. De fato, se com essa roupa não chamasse a atenção de um dos amigos da família Decker, não o conseguiria com nada. Sarah não era concorrência porque estava casada e as irmãs Madison careciam de atrativo: a cintura de ambas era mais grosa do que se devia desejar -talvez comecem muito. Lucy era muito bela mas algo torpe. E Charlotte não seria rival porque sempre abria a boca e apagava qualquer boa impressão que tivesse produzido. por que Charlotte sempre tinha que dizer o que pensava em lugar de ser suficientemente esperta para dizer o que as pessoas desejavam ouvir?Aproximou-se da porta.
- O verde era perfeito. Teria que conseguir um vestido de dia, do mesmo tom. Onde estava Lily? Já deveria ter chegado com as tenazes de frisar!
- Charlotte tinha optado por um vinho intenso, outra das cores que teria escolhido Emily. Mas, honestamente, em Charlotte ia como anel ao dedo com seu cabelo mogno e sua pele de cor mel. Seus olhos nunca eram azuis, permaneciam cinzas sob qualquer tipo de luz.
- Nessa noite iriam a um baile na casa do coronel Decker, que também era a casa de sua esposa e, mais importante ainda, de seu filho e sua filha. Emily só os tinha visto algumas ocasiões, mas tinha ouvido Lucy Sandelson contar histórias incríveis sobre as festas: o estilo, a elegância, a formosura dos vestidos de última moda... E, ainda melhor, a quantidade de amigos ricos e aristocratas que tinha a família. O baile prometia abrir um sem-fim de portas que, com um pouco de sorte e manha, poderiam lhe dar entrada a mundos com os quais até então só tinha sonhado.
- Capítulo 2
- Mas sua mente estava muito longe dali, perdida em uma rua escura, em meio de um horror inimaginável onde aconteciam sombras, dor, asfixia e... morte.
- Já vou, senhorita Emily! É só um momento.
- Dando os últimos toques ao vestido da senhorita Charlotte, senhorita Emily.
- As tenazes vão se esfriar!
- Às vezes Lily era um tanto estúpida. Acaso não podia pensar um pouco?
- Ainda estão muito quentes, senhorita Emily. Já vou!Caroline entrou no quarto.
- Dessa vez cumpriu sua promessa e meia hora depois, Emily estava totalmente satisfeita. deu uma volta lentamente diante do espelho. O resultado era espetacular; não faltava nem sobrava um só detalhe. Tinha conseguido o máximo partido. Tinha um ar jovem mas sofisticado, um tanto etérea sem chegar a parecer inalcançável.
- Emily, leva muito tempo diante desse espelho. Deve conhecer todas e cada uma das dobras de seu vestido. -Sorria e olhava a sua filha nos olhos-. A vaidade não é um dos atrativos de uma mulher, querida. Por mais formosa que seja (e é bonita, não formosa), o melhor é aparentar que lhe é indiferente.
- Emily sufocou um riso. Estava muito emocionada para discutir.
- O que pretendo é que para outros não seja indiferente. Está preparada, mamãe?
- Acha que me falta algo? -perguntou Caroline com uma ligeira careta.
- Emily se virou e fez voar sua saia. Olhou a sua mãe com ar divertido. Qualquer outra pessoa teria ficado desfavorecida com o vestido dourado que levava, mas não Caroline. Estava muito bonita com sua pele clara e seu cabelo cor mogno. Emily era muito honesta para negá-lo.
- Pois não, mamãe. Não lhe falta nada.
- Obrigado -disse Caroline-. Está pronta para sair? Todo mundo está esperando.Chegava no momento justo, tal como a mãe tinha previsto. O baile já tinha começado; podia-se ouvir a música da escada da entrada. Emily conteve a respiração e engoliu em seco, embargada pela emoção. Havia mais de cinqüenta pessoas movendo-se graciosamente, como flores na brisa. As cores se mesclavam ao acaso, contrastando com as figuras escuras e retas dos homens. A música era como o verão, o vinho e a risada.Logo foram apresentados oficialmente, mas ela não se inteirou de quase nada. Só desejava ver o filho dos anfitriões. Quando por fim o viu, sentiu-se um tanto decepcionada. A realidade golpeava com força o sonho: o jovem tinha um rosto avermelhado, um nariz curto e era muito gordo para sua idade.Depois da dança, Emily se achou rodeada de um grupo de mulheres que conhecia, pelo menos de vista. As conversas eram breves e totalmente estúpidas, já que todas estavam com a atenção posta no grupo de homens que se estava formando no outro extremo do salão ou naqueles que estavam dançando com outras mulheres.Uma meia hora depois, uma vez transcorridos várias danças, o jovem Decker voltou... para desespero de Emily. Mas a jovem trocou de opinião quando observou que vinha acompanhado de um dos homens mais bonitos que tinha visto. Era de meia estatura mas tinha um bonito cabelo castanho e encaracolado, traços harmoniosos e grandes olhos, mas seu maior atrativo era o ar de segurança que desprendia.
- Emily viu Dominic e Sarah juntos e a sua mãe dançando com o coronel Decker. Charlotte falava, com certo interesse, com um jovem de ar sério e elegante.
- Emily fez uma reverência, como ditam as normas, e quando o moço lhe pediu a honra de dançar com ele, aceitou. Não havia alternativa se quisesse comportar-se corretamente e conseguir seu propósito. O jovem não dançava nada bem.
- Foram anunciados. A mãe e o pai desceram pelas escadas devagar, seguidos de Dominic e Sarah e, finalmente, Charlotte. Emily esperou tudo o que pôde. Estariam todos aqueles olhos olhando-a? Sim, por favor! Tomara fosse assim. Recolheu sua saia uns centímetros e começou a descer com delicadeza. Era um momento para saborear, como se faz com os primeiros morangos do ano, que inundam a boca de um gosto ao mesmo tempo doce e amargo.
- Emily desceu pela escada com cuidado, vigiando seu vestido, e foi primeira em subir à carruagem. Guardou silêncio durante todo o caminho. Ia sonhando acordada; imaginava jovens atraentes cujos rostos mal podia distinguir: todos se giravam para olhá-la enquanto dançava ao compasso de uma música que inundava seus ouvidos, seu corpo e seus pés, que quase não tocavam o chão. As imagens se fundiam umas com outras. Inclusive chegou a pensar no dia seguinte: as visitas de seus admiradores, as cartas... Todos eles lutariam por ganhar sua atenção. Um cavalheiro piedoso já não se batia em duelo, tudo seria muito correto. Talvez algum deles tivesse um título. casar-se-ia com ele? Converter-se-ia em uma dama? Primeiro haveria um longo e apaixonado noivado... de repente pensou que sua família teria escolhido outra mulher para ele, alguém de sua mesma classe, uma herdeira! Entretanto, ele estaria disposto a renunciar a tudo. O sonho era encantador e foi frustrante ter que interrompê-lo ao chegar. Mas conhecia a diferença entre os sonhos e a realidade.
- Senhorita Ellison -disse o jovem Decker com uma leve inclinação-, permito-me apresentar ao lorde George Ashworth.O jovem anfitrião lhe disse algo mas ela não pôde ouvi-lo. Respondeu amavelmente e mantiveram uma conversa formal, possivelmente com certa secura, mas isso era o de menos. Decker era um estúpido, lhe emprestando só parte de sua atenção podia manter uma conversa com ele... mas Ashworth era totalmente diferente. Sentia como a olhava e lhe parecia excitante e perigoso ao mesmo tempo. via-se que era o tipo de homem que conseguia o que queria. Podia ser fino, sem estupidez nem falta de confiança em si mesmo. Ao Emily deu certo medo saber que, nesse momento, interessava-se por ela.Viu seu pai no outro lado da sala, dançando com Sarah, e a sua mãe tentando matizar a admiração muito evidente que mostrava o coronel Decker sem ter que ofendê-lo ou provocar o ciúmes de outros. Em outro momento, Emily a teria observado para aprender, mas naquela ocasião havia outros assuntos que requeriam sua atenção.Ao chegar à meia-noite, Emily tinha dançado com o George Ashworth em outras duas ocasiões, mas não se falou de um hipotético encontro ou visita posterior. Começava a temer que não estivesse tão interessado nela como parecia. Seu pai não demoraria para decidir que já era hora de partir. Devia fazer algo em seguida ou perderia sua oportunidade; não podia deixar escapar tão facilmente o primeiro lorde com quem tinha entabulado conversa, além de ser um homem muito bonito, inteligente e decidido.Esperou uns cinco minutos que lhe pareceram cinqüenta, até que ouviu uns passos. Não se voltou; fingiu estar absorta contemplando as azáleas.
- Desculpou-se ante o Lucy Sandelson com o pretexto de que tinha calor e se dirigiu para o terraço. Certamente faria muito frio fora mas valia a pena para conseguir sua meta.
- Estava falando com uma das senhoritas Madison mas se dava conta de que lorde Ashworth tinha seu olhar cravado nela, apesar de estar na outra ponta da sala. Tinha que manter-se erguida; Costas curvada era pouco favorecedor, afiava o perfil do peito e a linha do queixo. Devia sorrir mas sem parecer muito superficial, e mover suas mãos com graça. Sabia perfeitamente como mãos feias podiam danificar um conjunto formoso; tinha-o comprovado ao ver como a outra garota Madison perdia dessa maneira um de seus admiradores mais interessantes. Isso era algo que Sarah nunca tinha dominado de tudo enquanto que Charlotte era uma verdadeira perita. Charlotte era um aborrecimento quando falava, mas tinha umas mãos lindas. Naquele instante estava dançando com Dominic; levava o queixo em alto e lhe brilhavam os olhos. Em certas ocasiões Emily se perguntava por que carecia Charlotte do bom senso com que ela contava. Não podia tirar nada do Dominic. Não tinha amigos importantes e tampouco conhecidos poderosos. Era certo que tinha conseguido um bom posto, mas isso não podia ajudar em nada ao Charlotte. Só os loucos tomam caminhos que não levam a nenhuma parte. Mas não havia forma de que certas pessoas o entendessem!
- Dançaram juntos duas vezes durante a hora seguinte. Duas vezes eram suficientes; mais teria chamado a atenção, e talvez seu pai tivesse vindo estragar tudo.
- Emily lhe estendeu a mão e fez uma reverência que lhe serviu para ocultar que suas faces começavam a ruborizar-se; devia comportar-se como se conhecesse lordes todos os dias e lhe importasse um nada.
- Espero que não tenha pego frio e volte para salão antes de que me retire.
- Emily se ruborizou. Era Ashworth.
- É claro -disse com toda a serenidade que pôde-. Não sabia que me tivesse visto sair. Não pretendia ser muito evidente. - -Grande mentira! Se tivesse acreditado que não a observava, teria retornado para tentá-lo de novo-. Faz muito calor, aí dentro, com tanta gente.
- Não gosta de gente? Sinto-me defraudado. -Parecia-o-. Esperava poder convidá-la e talvez à senhorita Decker, para que me acompanhasse junto com uns amigos às corridas de cavalos que terão lugar dentro de uma semana. Será uma grande competição e os mais ilustres de Londres estarão ali. Você animaria o lugar com sua presença, especialmente se levasse o mesmo tom que tem esta noite. É muito jovem e primaveril.
- Ela estava muito emocionada para falar. As corridas! Com lorde Ashworth e os mais ilustres de Londres! Começou a sonhar acordada com tal intensidade que mal podia distinguir a fantasia da realidade. Talvez fosse o príncipe do Gales, que adorava as corridas. E quem sabe quem mais. Compraria outro vestido verde e o poria especialmente para que todos se voltassem à sua passagem.
- Está muito calada, senhorita Ellison -disse ele colocando-se a suas costas-. Sentirei muito decepcionado se não me acompanhar. É a criatura mais encantadora que há neste baile. Prometo-lhe que a multidão que haverá nas corridas não será tão sufocante como a desta festa. O encontro será ao ar livre e, se estivermos com sorte, inclusive luzirá o sol. Por favor, me diga que aceita o convite.
- Obrigada, lorde Ashworth. -Tentou manter a voz serena, como se acostumasse a ir às carreiras com um lorde e não tivesse motivos para saltar de gozo-. Sentirei-me honrada de acompanhá-lo. Não duvido que será uma reunião encantadora e a senhorita Decker me parece uma companheira excelente; suponho que ela terá aceito.
- Naturalmente... do contrário não me teria atrevido a me aproximar de você -mentiu.O dia do encontro amanheceu frio mas com o suave sol de finais da primavera que faz resplandecer o ar. Emily tinha convencido a seu pai de que lhe comprasse um novo vestido verde. Tinha-o convencido alegando que, no caso de ser vitoriosa, poderia estar andando com um futuro marido, um argumento que impressionou a seu pai. Três filhas eram uma dura prova para as relações e a boa fortuna de um pai, se desejava vê-las bem casadas. Sarah já estava colocada, não de forma espetacular mas ao menos correta. Dominic tinha meios suficientes e era bastante apresentável. Era muito atraente e parecia ter bom caráter e melhores costumes.Entretanto, naquele dia nada de tudo aquilo importava. Emily estava nas corridas com lorde George Ashworth, a senhorita Decker e um amigo a quem mal prestava atenção. Tinha muito menos a oferecer que Ashworth de modo que não merecia sua consideração, no momento.A segunda corrida não teve muita emoção mas à terceira foi um espetáculo. As pessoas se entusiasmaram e se agitaram como um vespeiro em pé de guerra. O mudo de um lugar a outro se tronou mais intenso à medida que se aproximavam mais e mais pessoas às bilheterias tentando conseguir apostas cada vez mais altas. Os homens vestiam roupa elegante e cara, riam abertamente e faziam circular enormes somas de dinheiro entre suas mãos.
- Em uma ocasião, enquanto Ashworth falava das patas dos cavalos, corações fortes, habilidades do cavaleiro e demais coisas que Emily não entendia, a jovem observou uma cena que a deixou absorta. Um cavalheiro corpulento, com o rosto vermelho de emoção, estava benzendo sua boa sorte com uma nota nas mãos. Avançou uns passos e se dirigiu a um homem de pele macilenta, vestido com roupas escuras e de aspecto tão lúgubre como o de um encarregado de pompas fúnebres.
- Ao acabar a primeira corrida, George tinha ganho uma boa soma. Disse que conhecia dono do cavalo, o que fazia tudo ainda mais emocionante. Emily se instalou na erva, com a sombrinha na mão, desfrutando e dando-se ares de superioridade. Ia pelo braço de um membro da aristocracia, um especialmente bonito. Seu aspecto era encantador e perfeitamente na moda e ela sabia. E tinha informação confidencial com respeito ao ganhador da corrida anterior. Que mais podia pedir? Formava parte da elite.
- Charlotte, é claro, era outro problema. Emily não podia imaginar Charlotte tão bem casada. Era excessivamente inconformista -aos homens incomodam as mulheres muito discutidoras- e pouco pragmática, com suas próprias metas. Procurava os atributos mais estranhos e complicados em um homem. Emily tinha tentado ensiná-la, explicar-lhe que os bens e o status social junto com uma aparência agradável e maneiras corretas eram tudo o que uma mulher podia pedir -de fato, mais do que muitas moças podiam conseguir. Mas Charlotte se negava a deixar-se convencer ou a dar prova de que tinha captado a mensagem.
- Quando seu pai veio lhe dizer que era hora de voltar para casa, Emily o seguiu sorridente, com um olhar de felicidade extrema.
- Perdeu, velho amigo? -perguntou o homem corpulento com simpatia-. Não se preocupe... Terá melhor sorte desta vez! Não pode perder sempre. Volte- para tentar, me faça caso! -E soltou uma gargalhada.
- O homem magro o olhou com recatada consternação.
- Desculpe, diz-me isso ? -Falava tão baixo que se Emily não tivesse estado tão perto não o teria entendido.
- Parece que a má fortuna lhe visitou -insistiu o homem gordo com tom compreensivo-. Ocorre às melhores pessoas. Continue tentando, esse é meu conselho.
- Seriamente, senhor, asseguro-lhe que não tive má sorte.
- Ah! -exclamou seu interlocutor com uma careta-. Não o quer admitir, não é verdade?
- Asseguro-lhe, senhor...O homem robusto seguiu tirando o pó e suspirando. Então, sua mão se deteve um instante e depois rebuscou no bolso de sua jaqueta com gesto de perplexidade.
- O homem robusto pôs-se a rir e lhe deu umas palmadas no braço. Nesse instante, uma das pessoas que passavam por ali tropeçou com o homem gordinho, que, por sua vez, caiu em cima do homem com roupa fúnebre, que levantou as mãos para sustentar o peso que lhe vinha em cima ou para afastá-lo. Desculparam-se mutuamente e arrumaram os trajes. A pessoa que tinha tropeçado murmurou algo, mas nesse momento viu um conhecido e partiu para saudá-lo. Uma atraente jovem se aproximou do homem de negro e lhe pediu que a acompanhasse para celebrar sua boa sorte. Dois homens que mantinham uma acalorada conversa sobre os méritos e falhas de um cavalo acabaram ocupando seu lugar.
- Meu relógio! -exclamou indignado-. Meu dinheiro! Meus selos! Levava três selos de ouro na cadeia de meu relógio! Roubaram-me!
- Emily se voltou e puxou a manga do Ashworth.
- George! -disse com apresso-. George, acabo de ver como roubavam um homem. Roubaram-lhe o relógio e seus selos!
- Ashworth deu a volta com um sorriso de certa indulgência.
- Querida Emily, nas corridas ocorre todo o tempo.
- Mas eu o vi! Fizeram-no de forma muito ardilosa. Um homem caiu em cima de outro e o empurrou sobre um terceiro que pôs as mãos para proteger-se e aproveitou para lhe esvaziar o bolso. Não pensa fazer nada?
- O que sugere? -Arqueou as sobrancelhas-. A estas alturas o ladrão já teria passado o butim a outro que nem você nem a vítima conhecem.
- Mas acaba de ocorrer agora mesmo! -protestou.
- Emily olhou ao redor. Não reconheceu a ninguém salvo à vítima e aos dois amigos que discutiam sobre o cavalo. voltou-se de novo para o George com ar de impotência.
- É claro, e inclusive se tentar persegui-lo se achará com gente que a freará. Assim operam. É uma arte, quase tão difícil como a arte de evitá-los. Não pense mais nisso, não há nada que possa fazer. Procura não levar dinheiro nos bolsos de sua saia. Também se dão muito bem em roubar às mulheres.
- Importar-se-ia em apostar algo no cavalo do Charles? -perguntou ele-. Pode garantir que chegará entre os primeiros.Mas tudo aquilo gotejava perigo, e o risco era a essência da fortuna. Emily possuía juventude, ambição e inteligência, e acima de tudo pensava que tinha estilo, essa indefinível qualidade que distingue aos ganhadores dos perdedores. Se quisesse ganhar algo duradouro, tinha que jogar suas cartas.Ficaram de ver-se em primeiro de junho. O dia era fresco e luminoso, o céu estava claro e as ruas, limpas depois da chuva. Emily se reuniu com a senhorita Decker -a quem começava a detestar, embora o dissimulava maravilhosamente-, lorde Ashworth e um tal senhor Lambling, amigo do Ashworth, que mostrava grande interesse pela senhorita Decker. Deus saberia por que! Cavalgaram juntos sob as árvores, pelo caminho do Rotten. Emily se sentou com certa dificuldade na sela. Não estava acostumada aos cavalos, mas sim decidida a guardar o equilíbrio e a aparentar certo domínio enquanto conduzia sua montaria entre um grupo de meninos solenemente montados em gordos pôneis. Estava radiante, e sabia pelos murmúrios de aprovação com que a tinha obsequiado um grupo de cavalheiros que tinham cruzado. O traje ficava bastante apertado e, portanto, favorecia-a. O chapéu de montar de monopoliza alta que levava sobre seu cabelo brilhante recordava a um chapéu de cavalheiro mas lhe assentava maravilhosamente. Sua pele clara contrastava maravilhosamente com o tom escuro do chapéu e com o laço branco de sua blusa.A mulher lhes sorriu ao passar junto a eles e se ajustou o chapéu com um dedo, colocando-o em um ângulo ainda mais apropriado. Olhava diretamente ao Ashworth.
- Os outros se amoldaram a seu passo e cavalgaram mais ou menos a seu lado. Falaram pouco até que cruzaram com uma das mulheres mais elegantes que Emily tinha visto em sua vida. Tinha o cabelo prateado e um formoso rosto. Vestia um traje verde sálvia, de corte delicioso, com uma gola de veludo, e seu cavalo era evidentemente um animal de raça. Emily ficou maravilhada e desejou poder cavalgar por Ladies Mile com semelhante porte e um ar de superioridade assumido com tanta naturalidade.
- Foi tão bem como esperava. Dez dias depois, voltaram a convidá-la, junto com a senhorita Decker, a um torneio de tênis sobre erva onde se divertiu muitíssimo. É claro, ela não jogava, mas o objetivo era fazer vida social e nisso já era uma perita. Até conseguiu um convite para cavalgar pelo parque, ao cabo de uns dias. É claro, teriam que lhe emprestar tanto o cavalo como o traje, mas isso não era problema. Ashworth se fazia encarregado do cavalo e pensava pedir o traje à tia Susannah, que era só uns centímetros mais alta que ela. Bastaria dobrar a saia na cintura. Só ela saberia.
- Aceitou. Apostar era emocionante. Fazia parte do encanto do lugar e como não era seu dinheiro, não tinha nada que perder e podia sair ganhando. Mas o que sem dúvida era melhor que obter um benefício econômico era saber que fazia parte desse mundo com o qual tinha sonhado desde sua adolescência. Damas de linhagem agitavam suas saias ao correr da mão de elegantes cavalheiros, cavalheiros com dinheiro e títulos que apostavam nos cavalos, cartas ou jogo de dados, cavalheiros que tomavam o touro pelos chifres e ganhavam ou perdiam fortunas em um dia. Emily ouvia suas conversas e imaginava distintas situações, com pouca precisão, claro está, porque ela nunca tinha estado em um local de apostas, em um combate de cães ou de galos. Nunca tinha visto um salão de jogos nem a ninguém bebido mais da conta.
- Bom dia, milord -saudou com ar jocoso.
- Ashworth cravou seu olhar nela durante um longo e tenso momento e depois se voltou para Emily.
- Senhorita Ellison, estava me falando da visita de sua tia ao Yorkshire. pelo que me conta, deduzo que se trata de um belo lugar. Vai ali freqüentemente?
- Aquilo era uma imperdoável falta de educação. Fazia pelo menos um quarto de hora que Emily tinha comentado o do Yorkshire e era evidente que aquela mulher o conhecia perfeitamente. Emily se sentiu muito assombrada para responder.
- Embora me surpreende que lhe ocorresse ir a princípios da primavera a um lugar tão ao norte -prosseguiu ele sem deixar de dar as costas ao caminho.
- Emily o olhou perplexa. O rosto da mulher compôs uma espécie de careta, um gesto que indicava diversão e amargura ao mesmo tempo, e em seguida, fustigou seu cavalo e partiu.
- Essa mulher estava falando com você! -exclamou Emily, ainda assombrada.
- Minha querida Emily -a boca do Ashworth esboçou um ligeiro ríctus-, um cavalheiro não pode prestar atenção a todas as rameiras que o incomodam -explicou com certa condescendência-. Especialmente em um lugar público como este. E em nenhum caso se vai acompanhado de damas.
- Rameira? -balbuciou Emily-. Mas se ia... ia vestida... quero dizer...
- Existem muitos tipos de rameiras, do mesmo modo que existem muitos tipos de quase tudo! quanto mais caras são, mais elitista é sua clientela e menos as delata seu aspecto. Isso é tudo. Terá que aprender a ser menos ingênua!
- Perguntou-se como era que ele conhecia o ofício dessa mulher, mas se absteve de fazer mais comentários. Evidentemente, tinha muito que aprender sobre o mundo se quisesse sair graciosa e obter o cobiçado troféu.
- Será amável de me ensinar? -disse com um sorriso que esperava camuflasse seus pensamentos e suas intenções-. É um âmbito para o qual não recebi formação alguma.
- Ele a olhou com dureza durante um momento mas logo esboçou um amplo sorriso. Tinha uns dentes extraordinariamente finos. Nesse momento Emily decidiu que faria o máximo esforço por converter-se em lady Ashworth, apesar de ter suposto certos inconvenientes. Ocupar-se-ia disso no momento adequado e não duvidava que seria capaz de vencer todos os obstáculos.
- Emily, não tenho certeza de que seja tão inocente como parece. -Continuava olhando-a fixamente.George Ashworth foi visitar a família Ellison durante a segunda semana de junho. É claro, tudo estava previsto e rigorosamente planejado. Caroline parecia muito emocionada e tratava em vão de ocultá-lo.Emily se mantinha perfeitamente sentada em seu lugar. Já tinha realizado todos os preparativos necessários e só restava praticar cada uma das frases e olhares, antes que chegassem.Doura levou o chá entre risinhos , ruborizada. serviram-se os canapés mais deliciosos que a senhora Dunphy conseguiu preparar, bolachas em forma de mariposa e outras impossíveis de catalogar; tudo isso envolvido em um cerimonial que excedia em muito o habitual.
- Apareceram à hora prevista e foram apresentados em meio de certo nervosismo. sentaram-se e começaram a falar de ninharias, como manda o ritual. O único que parecia totalmente ã vontade era George Ashworth.
- Um quarto de hora antes das quatro, estavam todos sentados na sala. O sol atravessava a estadia e, no jardim, floresciam as primeiras rosas. Lorde Ashworth e os irmãos Decker chegariam de um momento a outro. Sarah estava sentada ante o piano, com ar afetado, improvisando. Emily tinha suficientes conhecimentos musicais para apreciar como sua irmã tocava mal, mas se sentia muito feliz ante a perspectiva da visita. Caroline se sentou muito rígida em uma cadeira como se já estivesse preparada para servir o chá que ainda não tinham levado. Charlotte era a única que parecia indiferente. Mas, é claro, Charlotte era incapaz de distinguir o que era importante do que não o era.
- A jovem fez expressão de menina e sorriu com ternura. Baralhou a possibilidade de permitir que a conhecesse mais intimamente, mas a desprezou. Era muito precipitado e, qualquer modo, cedo ou tarde ocorreria.
- Emily nos contou seu encontro nas corridas -começou Caroline para dar conversa, ao mesmo tempo que estendia os canapés ao Ashworth-. Deve ser um espetáculo fascinante. Eu só fui às corridas em duas ocasiões, faz já bastante tempo, no Yorkshire. As corridas de Londres têm mais fama. Isso ouvi. fale-nos delas. Vai freqüentemente?George sorriu.
- Emily esperava que sua resposta fosse discreta, em parte porque tinha contado muito pouco a sua mãe sobre as corridas e o pouco que tinha contado tinha mais que ver com o lado elegante e mundano que com o mundinho das apostas, ladrões, os que bebiam mais da conta e as damas cuja ocupação - agora se dava conta- era similar a da amazona que tinham cruzado no caminho do Rotten. Rogava a Deus que George tivesse a prudência suficiente para evitar, ele também, semelhantes questões.
- Temo que não há tantas corridas para ir mais de duas ou três vezes ao mês, senhora Ellison. E, é claro, nem todas valem à pena... nem para mim nem para uma dama.
- Acaso existem corridas às quais não acodem as damas? -perguntou Sarah, curiosa-. Corridas só para homens?
- Não, não é isso, senhora Corde. escolhi o termo "damas" para distingui-las de outras mulheres que vão às corridas com outros propósitos.
- Sarah ficou boquiaberta, mas seu rosto refletia interesse. Entretanto, recordou a tempo que devia guardar a compostura e fechou a boca. Emily olhou Charlotte com a extremidade do olho. Ambas conheciam o zelo desmedido de Sarah em manter as normas de correção social. Mas Charlotte fez a pergunta que sua irmã não se atreveu a formular.
- Refere-se a mulheres carentes de virtude - perguntou abertamente-. Mundanas, acredito que as chamam.
- Assim as chamam, com efeito, entre outras muitas coisas -assentiu-. Existem os aficionados às corridas e aquelas que seguem aos aficionados às corridas e aqueles que seguem às que seguem. Comerciantes de cavalos, jogadores e inclusive ladrões.
- Caroline franziu o sobrecenho.
- Ah! Não parece tão agradável como tinha imaginado.
- As corridas variam quase tanto como as pessoas, senhora Ellison -explicou George ao mesmo tempo em que pegava outro canapé-. Só pretendia esclarecer por que não vou às corridas em certas ocasiões.
- Caroline relaxou o semblante.
- É claro. Tinha começado a temer por Emily, desnecessariamente , pelo que parece. Suponho que o entenderá.
- Não esperava menos da senhora. Mas lhe asseguro que não me atreveria a levar ao Emily a nenhum lugar que não pudesse visitar com minha própria irmã.
- Não sabia que tinha uma irmã. -Caroline se mostrou de novo muito interessada e, a julgar por suas expressões, os Decker também.
- Lady Carson -respondeu George com soltura.
- Nós adoraríamos conhecê-la. Deveria trazê-la a casa -propôs o senhor Decker, sem perder um minuto.
- Receio que vive em Cumberland. -George podia prescindir de sua irmã sem problema. - Raramente vem a Londres.
- Carson? -Decker não estava disposto a mudar de assunto. - Não me soa.
- Conhece Cumberland, senhor Decker? -perguntou Emily. Não gostava de Decker e lhe incomodava sua curiosidade.
- Decker ficou um tanto abatido.
- Não, senhorita Ellison. É bonito?
- Emily se voltou para o George com as sobrancelhas arqueadas.
- Muito bonito, embora um pouco rústico -respondeu-. Carece de muitas comodidades da vida civilizada.
- Não tem luzes? -inquiriu Charlotte-. Tenho certeza de que têm água quente e lareiras.
- É claro, senhorita Ellison. Referia a clubes para cavalheiros, vinhos importados, alfaiates de qualidade, teatros e todas essas coisas que, em definitivo, tornam possível a vida em sociedade.
- Deve ser muito aborrecido para sua irmã -afirmou à senhorita Decker em tom cortante-. Eu não me casaria com um homem que tivesse a má fortuna ou o desejo perverso de viver no Cumberland.
- Então, se alguém assim o propõe, não tem mais que negar-se -respondeu Charlotte. Emily sorriu para si mesma. Aparentemente, Charlotte tampouco gostava da senhorita Decker. Mas rogava ao céu que não se comportasse grosseiramente-. Esperemos que lhe façam uma oferta que seja mais de seu agrado -rematou Charlotte.
- A senhorita Decker fez um gesto mal-humorado.
- É claro que me farão isso, senhorita Ellison -protestou.
- George se inclinou. Seu belo rosto estava sombrio e seus lábios em tensão.
- Não acredito que receba uma oferta melhor que a de lorde Carson, senhorita Decker. Pelo menos não para casar-se.Emily tinha que fazer algo.
- Fez-se um silêncio grave. Era imperdoável que se permitisse ofender a uma mulher de semelhante maneira, por muito clara que tivesse sido a provocação. Caroline não sabia o que dizer.
- É perfeito que nem todos tenhamos os mesmos gostos -afirmou com presteza-. Mas tenho certeza de que as propriedades de lorde Carson são muito habitáveis. Não é o mesmo viver em um lugar que estar de visita. Quando a gente está em sua casa, sempre encontra algo no que ocupar-se. Surgem um sem-fim de responsabilidades.
- Que inteligência a sua! -opinou George-. As propriedades de lorde Carson são muito extensas. Cria cavalos de raça e tem ganhado; além disso pode dedicar-se a caçar e pescar. Também tem moinhos e... -interrompeu-se ao dar- se conta de que estava falando de propriedades, quer dizer, de dinheiro, algo que era extremamente vulgar.
- Eugenie tem muito no que ocupar seu tempo, especialmente com seus três filhos.
- Sem dúvida leva uma vida muito atarefada -assentiu Caroline tentando resolver a questão.Quando as visitas partiram, Emily e Charlotte se acharam na sala. Charlotte abriu as portas para que entrasse o sol das últimas horas da tarde.
- A tarde seguiu seu curso e a conversa se reanimou. Emily se esforçou que as coisas fossem bem e Sarah, que tinha ficado muito impressionada, fez reluzir suas melhores maneiras, que na verdade eram excelentes.
- Não foi de muita ajuda -se queixou Emily-. deveria se ter dado conta de que classe de criatura é a senhorita Decker.
- Também me dei conta de que classe de criatura é ele -respondeu Charlotte sem deixar de olhar as rosas.
- O senhor Decker? -perguntou Emily, surpreendida-. Não é ninguém.
- Não, não Decker. Seu lorde Ashworth. Esta rosa amarela terá florescido amanhã.
- O que importa isso agora? Charlotte, pretendo me comprometer com George Ashworth, de modo que vigie sua língua quando nos visitar.
- Que pretende o que? -Charlotte se virou, surpreendida.
- Já o ouviu! Penso em me casar com ele, de modo que tente ser amável, pelo menos por agora.
- Conhecê-lo-ei o suficiente quando chegar o momento.
- Não pode se casar com ele! Seria uma insensatez!
- É claro que não seria! Pode ser que lhe agrade passar a vida sonhando, mas eu não. Sem dúvida George é perfeito...
- Perfeito? -repetiu Charlotte incrédula. - É espantoso! É superficial, jogador e provavelmente um libertino. Não faz parte de nosso mundo, Emily. Se casar com ele fará você desgraçada.
- É uma sonhadora, Charlotte. Qualquer homem a fará desgraçada em um momento ou em outro. Acredito que George tem mais que oferecer que a maioria e penso me casar com ele. Não tente me convencer do contrário. Era o fim de julho. Caroline estava colocando flores na sala, pensando que deveria estar fazendo era revisar as contas da casa. Doura entrou sem chamar.
- Caroline se deteve, com uma longa margarida branca na mão. Realmente não podia tolerar semelhante comportamento. deu a volta para começar a falar e foi então que viu o rosto de Doura.
- Capítulo 3
- Estava convencida. Ali, sentada na sala, olhando o rosto de Charlotte e seu denso cabelo resplandecente de luz estival, compreendeu até que ponto estava convencida. O que ao começar a tarde era só uma idéia se converteu em uma decisão irrevogável.
- Doura! O que acontece? -Deixou cair a margarida.
- OH, senhora! -Doura emitiu um longo lamento-. OH, senhora!
- Controle-se, Doura. diga-me o que se passou. foi o menino do açougue, de novo? Disse-lhe que se seguisse com sua atitude impertinente contasse ao Maddock. Ele convencerá a esse jovenzinho que refreie sua língua se não quiser perder seu trabalho. Agora, deixa de soluçar e volta para seu trabalho. E, não volte a entrar na sala sem chamar. Procura não esquecê-lo.
- Recolheu a margarida e voltou a olhar o vaso. Estava muito azul no lado esquerdo.
- OH, não, senhora! -Doura continuava a seu lado-. Não tem nada que ver com o menino. Eu mesma solucionei essa questão... ameacei-o de lhe jogar o cão, imagine!
- Não deveria mentir, Doura -respondeu sem ânimo de criticar. Pensava que era um trato justo. Suas palavras nasciam do costume, pelo que pensava que devia dizer, sobre tudo do que esperava que Edward queria que dissesse-. Bom, então o que ocorre?
- O rosto de Doura se voltou a contrair ao recordar o ocorrido.
- OH, senhora, o assassino tornou a atacar! Vai estrangular a todos se pusermos um pé fora da casa. Caroline o negou, de entrada, para evitar que Doura ficasse mais histérica.
- Grande tolice! Não corre perigo algum desde que não passeie sozinha de noite, e nenhuma moça decente o faria. Não tem nada que temer.
- Mas senhora... voltou a agir! agrediu Daisy, uma empregada da senhora Waterman, a plena luz do dia!
- Caroline sentiu um calafrio.
- Do que está falando, Doura? Não estará repetindo uma fileira de estúpidos rumores? De onde tira semelhante informação, de algum menino sem lar?
- Não, senhora. Jenks, que também trabalha para o senhor Waterman, contou a Maddock.
- Seriamente? Diga ao Maddock que se apresente ante mim.
- Agora mesmo, senhora? -Doura estava muito alterada.
- Doura saiu disparada e Caroline, para acalmar-se, voltou a ocupar-se das flores. O resultado não ficou a seu gosto. Maddock bateu na porta.
- Sim -disse friamente-. Maddock, Doura me disse que esteve presente enquanto você e esse Jenks falavam sobre as duas moças que assassinaram recentemente e sobre um novo crime.
- Maddock ficou rígido, em seu rosto habitualmente inexpressivo se refletia a surpresa.
- Não, senhora! O senhor Jenks veio trazer uma garrafa de Porto que o senhor Waterman queria dar de presente ao senhor Ellison. Enquanto estávamos em meu quarto, disse-me que tinha que manter as garotas em casa porque uma moça da casa dos Waterman, Daisy, acredito que se chamava, tinha sido atacada na rua, uns dias antes. Ao que parece é uma garota robusta, pouco dada a desmaiar. Levava um bote de conservas em escabeche na mão e deu um bom golpe ao agressor. Saiu ilesa e parecia bastante tranqüila até que chegou a casa. Uma vez ali, deu-se conta da sorte que podia ter sofrido e teve uma crise nervosa.
- Compreendo. -alegrava-se de não o ter criticado abertamente pois assim podia sair graciosa desse incidente-. E onde estava Doura?
- Imagino, senhora, que nesse momento passava diante de meu quarto.
- Obrigado, Maddock. Talvez seja melhor que não envie às garotas fazer nenhum encargo fora, como sugeria Jenks... ao menos por agora. Tomara me tivesse contado isto antes.
- Contei-o ao senhor, senhora, e me pediu que não a preocupasse com este tipo de notícias.
- Já. -perguntou-se por que motivo Edward lhe teria pedido tal coisa. O que teria passado se ela ou uma das meninas tivessem saído sozinhas? Acaso pensava que só as empregadas corriam perigo? por que tinham matado ao Chloe Abernathy, então-. Obrigado, Maddock. Vá e tente acalmar a Doura. E comente que será melhor que deixe de escutar atrás das portas.
- Sim, senhora, é claro! -Girou sobre seus calcanhares e partiu, fechando a porta atrás de si.Isso a fez pensar em Emily. Estava muito bem que aceitasse convites esporádicos de lorde Ashworth mas, por alguns de seus comentários, Caroline temia que sua filha albergasse planos mais sérios com respeito a ele. Emily devia abandonar semelhantes projetos ara seu próprio bem. Do contrário, poderia chegar a sofrer muito, não só por ter que renunciar a suas expectativas mas também pela nefasta influência que isso poderia ter na hora de conseguir outros pretendentes. As pessoas são muito dadas a pensar o pior. A má reputação podia desanimar a outros jovens -ou, o que é o mesmo, a suas mães-, menos aristocratas mas mais ao alcance do Emily.Revisou o vaso com flores um pouco exasperada e decidiu que com semelhante estado de ânimo não valia a pena fazer mais esforços, só conseguiria piorá-lo. Seria melhor ir procurar ao Emily e lhe dizer que iriam até a casa do vigário juntas. Pelo menos não arruinaria à tarde de Charlotte!Caroline se disse que era melhor tocar o assunto de forma indireta.
- O passeio até o Cater Street foi muito prazenteiro. Brilhava o sol e a brisa movia as folhas. Saíram pouco depois das três. Emily não parecia entusiasmada mas aceitou de boa vontade.
- Depois de ter falado com o Maddock, decidiu que era melhor não ir até a casa do vigário sozinha. Pediria à Emily que a acompanhasse, desse modo poderiam conversar em privado. Fazia uma tarde deliciosa para dar um passeio. Era muito melhor que ir com Charlotte, que era imprevisível. Charlotte detestava ao vigário e não parecia interessada nem disposta a dissimulá-lo. Essa era outra questão pendente: tinha que achar a forma de ensinar ao Charlotte a arte de dissimular ou ocultar seus sentimentos. Entre outras coisas, seus sentimentos eram muito exacerbados para uma dama. Queria muito ao Charlotte; de todas suas filhas era a mais cálida, a mais disposta a estreitar relação e a que tinha um senso de humor mais agudo, mas se mostrava excessivamente rebelde. Em certas ocasiões Caroline chegava a se desesperar. Se ao menos adquirisse um pouco de tato antes de arruinar sua vida social com uma de suas saídas de tom! Se pensasse antes de falar! Que homem ia querer a com esse caráter? A maioria das vezes nas reuniões parecia uma espécie de bomba a ponto de explodir.
- Tinha previsto ir ver Martha Prebble pela tarde. Não entendia por que, apesar de não gostar dela, aquela mulher lhe dava lástima. Talvez porque lhe desagradava o vigário, o que em si era uma estupidez. Sem dúvida se tratava de um bom homem e provavelmente se comportava tão corretamente com o Martha como qualquer outro marido o faria com sua esposa. Pensando bem, não se pode esperar que um vigário seja um modelo de romantismo; ser honesto, sóbrio, educado e ganhar o respeito da comunidade já é suficientemente complicado. Não se pode exigir nada mais. Evidentemente, Martha era uma mulher razoável, embora não o tivesse sido em jovem.
- Maddock me comentou que atacaram a outra jovem na rua -começou
- com ardis dignos de um homem de negócios. Era melhor incluir essa questão no lote.
- OH! -exclamou Emily, que parecia interessada mas não assustada, tal como Caroline teria esperado-. Espero que não fosse nada sério.
- Aparentemente não, mas parece que se deve mais à boa sorte que à falta de intenção do agressor -respondeu Caroline secamente. Queria que Emily se assustasse o suficiente para garantir que não correria riscos inutilmente. O risco era alto e os danos podiam ser permanentes.
- Quem era? Alguém que conhecemos?
- Uma das criadas dos Waterman. Mas isso não tem importância. Não deve sair sozinha, nenhuma de vocês deve fazê-lo até que a polícia detenha esse lunático.
- Mas isto pode durar eternamente! -protestou Emily-. Pensava visitar a senhorita Decker na sexta-feira à tarde...
- Mas se nem gosta sequer da senhorita Decker cai bem!
- Se gosto ou mau não tem nada que ver! Mamãe, ela conhece gente que eu gostaria de conhecer, ou pelo menos achar em alguma ocasião.
- Então terá que levar Sarah ou Charlotte com você. Não irá sozinha, Emily.
- Emily sentiu lhe arder o rosto.
- Sarah não quererá ir. Vai ao Madame Tussaud com Dominic. Custou-lhe um mês convencê-lo.
- Mamãe! -protestou Emily com evidente desgosto-. Sabe tão bem como eu que Charlotte estragaria tudo. Embora não dissesse nada seu rosto a delataria.
- Devo entender que tampouco gosta da senhorita Decker? -replicou Caroline com certa ironia.
- Charlotte não é nada pragmática.
- Era o momento justo para mudar de assunto e Caroline não desperdiçou a ocasião.
- Parece-me que você tampouco é muito esperta na questão. Seu interesse por lorde Ashworth está destinado ao fracasso e o vê muito freqüentemente para que possa considerar-se o um simples amigo. Se continuar assim conseguirá que as pessoas comecem a murmurar sobre você e acabarão conhecendo-a como a amiguinha de Ashworth... -Caroline tentava achar a palavra adequada.
- Pretendo me converter na esposa do Ashworth -sentenciou Emily com um aprumo que deixou perplexa ao Caroline-. O que demonstra que sou bastante pragmática.
- Não seja ridícula! -replicou Caroline-. Ashworth nunca se casaria com uma jovem sem relações e sem dinheiro. Embora ele o desejasse, seus pais o impediriam.
- Emily olhou por cima de sua mãe e continuou caminhando rua abaixo.
- Seu pai está morto e ele tem o mesmo poder que sua mãe. Não perca o tempo tentando me convencer. Estou decidida.
- E tem a desfaçatez de afirmar que Charlotte não é nada pragmática -se queixou Caroline, desesperada, enquanto chegavam ao Cater Street-. Pelo menos prega com o exemplo e não mencione este tema diante do vigário.
- Não me ocorreria comentar nada em presença do vigário -respondeu Emily-. Não entende nada destes assuntos.
- Tenho certeza de que entende, mas como religioso não lhe interessam. Todos os homens são iguais ante Deus.
- Emily lhe lançou um olhar penetrante que deixou descoberto seu próprio desdém pelo vigário e a fez ficar como uma hipócrita. Não era um sentimento agradável, e muito menos se vinha provocado pela filha menor de alguém.
- Bom, se aspirar a te converter em uma dama será melhor que comece a aprender a se comportar, inclusive quando estiver a desgosto -sentenciou Caroline com tom ameaçador, consciente de que o conselho servia tanto para sua filha como para ela.
- Como com a senhorita Decker -respondeu Emily com um sorriso.Cinco minutos depois estavam na sala. Martha Prebble tinha pedido o chá e estava sentada em um fofo sofá, em frente a elas. Curiosamente, Sarah também se achava ali, conversando animadamente. Não pareceu surpreender-se de vê-las. Martha se desculpou pela ausência do vigário com um tom que fez Caroline suspeitar que provavelmente Martha Prebble se sentia tão aliviada por isso como elas.
- Caroline não soube o que responder. Felizmente já estavam diante da porta dos Prebble.
- É muito gentil de sua parte o oferecer-se a ajudar, senhora Ellison - começou Martha inclinando-se ligeiramente-. Algumas vezes me pergunto o que seria desta paróquia sem você e suas bondosas filhas. Sarah esteve aqui a semana passada. -voltou-se para o Sarah e lhe dedicou um sorriso-. Deu-nos uma mão com os órfãos. É uma jovem encantadora.
- Caroline sorriu. Sarah nunca lhe tinha causado problema algum, salvo possivelmente, brevemente, quando ela e Edward tiveram que decidir se Dominic era uma boa escolha. Mas as coisas tinham saído bem e isso os fazia felizes a todos... menos Charlotte. Em alguma ocasião se chegou a expor que... Mas Martha Prebble continuava falando.
- É claro que devemos ajudar a essas pobres mulheres. Apesar do que o vigário opina, acredito que são vítimas de suas circunstâncias.
- As classes pobres não têm a sorte de gozar de uma boa educação como a nossa -acrescentou Sarah, indicando que estava de acordo.A senhora ficou um pouco desconcertada, como se tivesse estado referindo-se há algo muito diferente. Finalmente, prosseguiu:
- Às vezes Sarah era tão pomposa como Edward. Caroline não tinha seguido o princípio da conversa, mas podia imaginá-lo. Estavam preparando um ato benéfico com lanche, chá e refrescos para ajudar às mães solteiras. Era um projeto que Caroline tinha exposto em um momento de desorientação.
- Naturalmente. Mas o vigário sempre diz que nosso dever é ajudá-los, seja qual for sua situação, por muito baixo que caiam...
- Caroline se alegrou ao ver entrar a criada com o chá.
- Talvez seja melhor que falemos do programa. Quem disse você que nos ia dirigir? Se o comentou, esqueci-o.
- O vigário -respondeu Martha com uma expressão indecifrável-. Além de tudo, é o melhor qualificado para nos falar do pecado, do arrependimento, da debilidade da carne e seu castigo.
- Caroline se horrorizou ante aquela menção e agradeceu ao céu o ter vindo com Emily em lugar de Charlotte. Só Deus sabia o que haveria dito Charlotte nessa situação!
- Boa idéia -disse impulsivamente, embora pensava que aquilo não serviria de nada, salvo para aquelas pessoas que se sentissem aliviadas confessando seus sentimentos. Pobre Martha. Devia ser exaustivo tratar de viver com tanta retidão. Olhou para Sarah de esguelha. perguntava-se se sua filha teria pensado alguma vez nesse tipo de assuntos. Parecia tão doce, tão total e satisfeita... Que pensamentos se ocultavam atrás de seu formoso rosto? voltou-se para Martha, de novo. Essa dor que refletia seu semblante, seria provocada pela pena de não ter tido nenhum filho?
- Estou de acordo com você, senhora Prebble -comentava Sarah, entusiasta-. Certamente toda a comunidade desejará colaborar. Prometo-lhe que não faltaremos.
- Querida, pode opinar por si mesma -matizou Caroline algo molesta-, mas não por outros. Eu irei, certamente, mas não sabemos se Emily ou Charlotte o farão. Acredito que Charlotte já tem um compromisso. -E se não o tinha, Caroline lhe buscaria um rápido. O serão já pode ser suficientemente desastroso sem a nefasta influência do Charlotte fazendo comentários inapropriados.
- viraram-se todas para o Emily, que abriu os olhos com aparente inocência.
- Quando disse que seria o encontro, senhora Prebble?
- Na sexta-feira da semana que vem, de noite, na entrada da igreja.
- OH, que pena! Prometi a uma amiga lhe fazer um favor: visitar um ancião familiar; suponho que entende que não se arriscaria a ir sozinha todo o trajeto. As visitas significam tanto para os anciões... especialmente quando não gozam de boa saúde.Assim passaram à tarde, entre conversas educadas e corriqueiras, chá quente e aromático, bolachas algo macias, e todas desejando que o vigário não voltasse antes que se fossem.Um mês depois, o serão era só uma incômoda lembrança. Charlotte estava encantada de que lhe tivessem proibido assistir e aceitou com agrado ter que fingir-se repentinamente indisposta.Pensou que a enxaqueca podia dever-se ao tempo, que estava pesado e tormentoso, de modo que abriu as portas do jardim para que entrasse ar fresco. O remédio foi muito eficaz e por volta das nove da noite já se sentia melhor.Às dez e meia, a noite tinha caído por completo. A senhora Dunphy bateu na porta da sala.
- Charlotte levantou a vista.
- Fechou as portas as dez, porque já tinha escurecido. Ali sentada, em plena noite, sentia-se um pouco vulnerável pois entre o jardim e a rua não havia mais que uma sebe de roseiras. Estava lendo um livro dos que seu pai não aceitava. Era o momento perfeito pois nem ele nem Dominic estavam em casa.
- Aquela era uma noite borrascosa, fria para o mês de agosto. Caroline, Sarah e Emily tinham assistido a outro ato na igreja. Martha Prebble tinha uma forte gripe e necessitava de gente como Caroline, com capacidade de organização, para que lhe dessem uma mão no serviço de comidas, em que se cumprissem os horários previstos e em que o deixassem tudo bem limpo ao partir. Charlotte voltava a ficar em casa, feliz, embora desta vez lhe doesse à cabeça de verdade.
- Voltaram às três juntas, caminhando, para a casa. Sarah e Emily foram falando. Sarah mais que sua irmã, que parecia algo decaída. Caroline se atrasou uns passos porque continuava pensando no Martha Prebble e no tipo de mulher que teria que ser para desfrutar vivendo com o vigário. Teria sido diferente em jovem? Só Deus sabia... Edward podia ser muito pedante às vezes, talvez todos os homens fossem um pouco, mas o vigário era o pior. Caroline havia sentido muitas vezes vontade de rir do Edward ou do Dominic e não o tinha feito por covardia. Teria Martha à mesma vontade de rir? Não tinha expressão de querer rir. De fato, quanto mais pensava mais lhe parecia que só tinha expressão de sofrer: feições proeminentes, sentimentos profundos... não era um rosto para estar em paz.
- "Emily, é uma mentirosa", pensou Caroline, temendo que seu rosto a traísse. Mas tinha que reconhecer que Emily tinha saído surpreendentemente bem.
- Sim?Charlotte a olhou surpreendida.
- A senhora Dunphy entrou, com o cabelo um pouco revolto e o avental apertado entre os dedos.
- O que acontece, senhora Dunphy?
- Suponho que não deveria incomodá-la, senhorita Charlotte, mas não sei o que fazer.
- O que a preocupa, senhora Dunphy? Não pode esperar a manhã?
- OH, não, senhorita Charlotte! É Lily. -Parecia preocupada-. saiu outra vez com esse Jack Brody, e ainda não retornou. Já são mais das dez e meia, e tem que levantar às seis da manhã.
- Bom, não se preocupe -aconselhou Charlotte com certa dureza. Sempre tentava não ver-se envolvida em problemas domésticos. - Talvez se encontrar-se cansada amanhã, aprenda que não pode sair até tão tarde.
- A senhora Dunphy conteve a respiração, visivelmente insatisfeita.
- Não entende, senhorita Charlotte. São mais de dez e meia e ainda não voltou. Nunca gostei desse Jack Brody. Maddock disse em um par de ocasiões que não lhe parecia um moço de confiar, até que Lily lhe pediu que não se metesse em seus assuntos.
- Charlotte já percebera que Maddock parecia ter certo interesse por Lily, por isso não estranhou que Jack Brody não fosse de seu agrado, como não o teria sido qualquer outro com quem Lily saísse.
- Não tome tão a sério a opinião do Maddock, senhora Dunphy. Certamente se trata de um jovem inofensivo.
- Senhorita Charlotte, são mais onze que dez, está muito escuro aí fora e Lily está em algum lugar, com um homem que não é trigo limpo. O senhor Maddock saiu em sua busca. Não obstante, acredito que você deveria fazer algo.
- Charlotte compreendeu, pela primeira vez, o que temia a senhora Dunphy.
- Senhora Dunphy, não seja exagerada! -Brigou não porque fosse exagerada mas sim porque tinha conseguido assustá-la também-. Estará aqui em seguida; quando chegar, lhe diga que venha ver-me. Deixar-lhe-ei claro que se voltar a fazer algo assim perderá seu emprego. Diga isso ao Maddock quando retornar e você vá para cama. Maddock esperará acordado.
- Sim, senhorita Charlotte. Acredita que... que estará bem?
- Deixará de está-lo se repetir algo assim. Agora, volte para a cozinha e não se preocupe mais.
- Sim, obrigada, senhorita.Maddock chegou meia hora depois, já passadas as onze.
- Charlotte deixou o livro. Estava a ponto de deitar-se. Não tinha sentido esperar acordada que chegassem os outros, apesar de que se atrasavam mais do previsto. As reuniões na igreja costumavam terminar por volta das dez. Talvez houvesse muitos coisas que recolher, e depois teriam que achar uma carruagem que as levasse a casa. Seu pai estava no clube e não recordava onde havia dito Dominic que ia.
- A senhora partiu. Continuava apertando o avental com uma de suas mãos.
- Já são mais de onze, senhorita Charlotte, e Lily ainda não retornou. Com sua permissão, vou chamar à polícia.
- A polícia? Para que? Não podemos incomodar à polícia porque nossa empregada sai com um desavergonhado! Seremos o bobo da vizinhança. Papai nunca nos perdoaria. Embora... -pensou na melhor maneira de construir a frase-, embora passasse toda a noite fora.
- Maddock endureceu o gesto.
- Nenhuma das garotas do serviço é uma imbecil, senhorita Charlotte. Ocorreu-lhe algo mau.
- Está bem. Em lugar de imoral, lhe chamemos loucura transitiva ou irresponsabilidade.
- Charlotte começava a sentir-se francamente assustada. Desejava que seu pai estivesse em casa, ou Dominic; eles saberiam o que fazer. Estaria Lily realmente em perigo? Devia chamar à polícia? Só pensar na polícia a assustava, parecia-lhe humilhante. A gente respeitável não precisava chamar à polícia. Se o fizesse , seu pai a repreenderia? Começou a imaginar possíveis rumores e desgraças, o semblante de seu pai vermelho de indignação, Lily jazendo em uma rua...
- Está bem, será melhor que os chame -disse com tom abatido.
- Sim, senhorita. Irei pessoalmente. Feche a porta atrás de mim e não se preocupe. Com a senhora Dunphy e Doura aqui estará a salvo. Não deixem entrar ninguém.Levantou-se, disposta a reter o Maddock, mas já era muito tarde. Estava sentada no sofá, tremendo, quando ouviu abrir-se e fechar-se a porta de entrada. ficou gelada.
- Escutou Sarah dizer:
- Charlotte se sentou para esperar. De repente, a sala lhe parecia inquietante e se apertou contra as almofadas do sofá. perguntava-se se tinha tomado a decisão adequada; parecia um tanto desmedido enviar ao Maddock à polícia porque Lily não era tão decente como deveria. Seu pai ficaria furioso. Seriam a fofoca do bairro. Sua mãe se sentiria envergonhada, pois aquilo danificaria a reputação da casa.
- Não me tinha cansado tanto em toda minha vida! A senhora Prebble costuma fazer tudo isso sozinha?
- Não, é claro que não -disse Caroline, fatigada-. Só que, ao estar doente, não chamou às pessoas que costuma ajudá-la.
- Charlotte, que demônios faz aí, aninhada como um menino e a meia luz? Encontra-se bem? -Caroline avançou rapidamente para ela.
- Charlotte estava tão contente de vê-la que os olhos lhe encheram de lágrimas. Engoliu em seco.
- Mamãe, Lily não voltou para casa. Maddock foi a avisar à polícia!
- Caroline ficou de uma peça.
- A polícia? -repetiu Emily, incrédula e aborrecida. - Em que demônios estava pensando, Charlotte? É preciso estar louca...
- Sarah seguiu com o mesmo argumento.
- O que dirão os vizinhos? Não podemos chamar à polícia porque uma de nossas criadas escapou com alguém! -Olhou ao redor como se esperasse que o homem em questão fizesse ato de presença-. Onde está Dominic?
- Não está, evidentemente! -soltou Charlotte-. Acha que se tivesse estado aqui teria ido para a cama?
- Não deveria ter deixado Charlotte só - protestou Emily com raiva.
- Bom, talvez mamãe não sabia que Lily ia escolher justo o dia de hoje para desaparecer! -Charlotte ouviu como lhe quebrava a voz. Pensava no Lily, atirada em uma rua-. Pode estar morta ou algo assim, e a vocês não ocorrem mais que comentários estúpidos.
- Antes que continuassem com o tema, a porta voltou a abrir-se e fechar-se e Edward entrou na sala de estar.
- O que acontece, Caroline? -perguntou.
- Charlotte chamou à polícia porque Lily desapareceu -respondeu Sarah, furiosa-. Seremos o bobo de todo o bairro!
- Edward olhou Charlotte estupefato.
- Sim, papai? -Não se atrevia a olhá-lo.
- O que a impulsionou a cometer semelhante loucura, filha?
- Estava assustada, poderia ter acontecido algo... -começou Caroline.
- Cale-se, Caroline! -replicou secamente seu marido-. Charlotte, estou esperando uma resposta!
- Charlotte se sentiu tão indignada que as lágrimas desapareceram de seus olhos. Olhou a seu pai com o mesmo aborrecimento com que ele a olhava a ela.
- Se formos ser a fofoca dos vizinhos -respondeu-, prefiro que seja porque nos preocupamos muito que porque não nos preocupamos o suficiente e não tentamos ajudá-la quando jazia ferida gravemente em alguma ruela.
- Charlotte, sobe a seu quarto!Pela manhã, levantou-se cansada e com dor de cabeça. Recordava o ocorrido da noite anterior. O mais certo era que seu pai continuasse zangado e a pobre Lily levaria a pior parte, provavelmente inclusive a despedissem... Maddock tampouco devia estar escutando louvores, precisamente. Tinha que procurar não piorar sua situação deixando que seu pai se inteirasse de que tinha sido ele quem tinha sugerido chamar à polícia.Ainda era cedo mas já não gostava de voltar a dormir. De qualquer modo, era melhor enfrentar-se ao problema quanto antes em lugar de deixar que crescesse e alcançasse proporções alarmantes.
- Não tinha passado do vestíbulo quando viu Doura.
- É claro, se despedisse Lily, toda a casa cairia na desordem até que encontrassem uma substituta. A senhora Dunphy se sentiria muito aborrecida , Doura se tornaria estúpida, e sua mãe se queixaria de como é difícil achar a uma garota decente, para não falar de como é complicado ensinar a fazer bem seu trabalho.
- Em silêncio, com a cabeça no alto, Charlotte subiu pela escada. Seu quarto estava frio e escuro mas na única coisa que podia pensar era que fora fazia ainda mais frio e havia mais escuridão.
- O que ocorre, Doura? Tem muito mau aspecto. Está doente?
- Não, não é isso, senhorita. Mas não lhe parece terrível?
- Charlotte sentiu que o coração lhe dava um salto. Seu pai não podia ter mandado embora Lily em plena noite...
- O que ocorre, Doura? Deitei-me antes que Lily voltasse.
- OH, senhorita Charlotte! -Doura suspirou com tristeza-. Nunca voltou. Deve estar morta em alguma rua... e nós deitados em nossas camas, como se não nos importasse absolutamente!
- Não tem por que ser assim! -replicou Charlotte, tentando convencer-se a si mesma. - Provavelmente ela também esteja em uma cama, em alguma pensão com esse tal Jack como se chama.
- OH, não, senhorita! É muito cruel de sua parte dizer algo assim -soltou bruscamente-. Sinto muito, senhorita Charlotte, mas não deve sugerir algo assim. Lily era uma boa garota. Nunca teria feito isso, e muito menos sem avisar!
- Charlotte mudou de assunto.
- Sabe se veio a polícia? Acredito que Maddock foi avisá-los.
- Sim, senhorita, veio um guarda. Disse que a garota não devia ser o que parecia e que pensava que Lily tinha desaparecido voluntariamente. Mas, os policiais tampouco são o que parecem. Misturam-se com todo tipo de gente e já se sabe... Não acha assim?
- Não sei, Doura. Não conheço nenhum policial.Eram onze e meia. Charlotte pintava e os resultados eram bastante bons, tendo em conta que não estava de bom humor. Maddock bateu e abriu a porta.
- O café da manhã foi formal e tenso. Inclusive Dominic parecia extremamente preocupado. Edward e ele foram trabalhar, e Emily e Caroline partiram para a costureira, para encarregar uns acertos. Sarah ficou em seu quarto escrevendo cartas; era incrível a quantidade de correspondência que mantinha. Ao Charlotte não lhe ocorriam mais de duas ou três pessoas a quem escrever, cada mês.
- O que ocorre, Maddock? -disse Charlotte sem levantar a vista da paleta. Estava preparando um tom sépia apagado para pintar as folhas mais afastadas e queria que ficasse perfeito. adorava pintar e aquela manhã lhe era uma atividade especialmente relaxante.
- Senhorita Charlotte, há uma pessoa que deseja ver a senhora Ellison, mas como não se encontra insiste em entrevistar-se com você.
- Deixou a um lado a sépia.
- O que quer dizer "uma pessoa", Maddock? De que classe de pessoa se trata?
- Um policial, senhorita Charlotte.
- Charlotte sentiu o medo lhe percorrer o corpo. Tinha ocorrido algo mau! Ou teriam vindo para queixar-se de que os incomodassem com problemas domésticos?
- Será melhor que o faça entrar.
- Quer que permaneça junto a você, senhorita, no caso de se tornar-se inconveniente ? Com a polícia nunca se sabe. Estão acostumados a tratar com outra classe de gente.
- Charlotte teria agradecido seu apoio moral.
- Não, obrigado, Maddock. Mas, por favor, fique no vestíbulo para que possa chamá-lo, se for preciso.
- A porta se tornou a abrir ao cabo de uns minutos.
- O inspetor Pitt, senhorita.
- O homem que entrou na sala era alto e impressionava porque não ia muito arrumado; seu cabelo estava revolto e sua jaqueta meio puída. Seu rosto não tinha nada de especial, talvez um ligeiro toque semítico embora seus olhos fossem claros e seu cabelo não chegava a castanho. Parecia inteligente. Quando começou a falar, Charlotte comprovou que sua voz tinha uma beleza pouco habitual, que contrastava com seu aspecto pouco favorecedor. Olhou-a de cima a abaixo, a consciência, o que a incomodou.
- Sinto ter que falar com você quando está sozinha, senhorita Ellison, mas não há tempo que perder. Quer sentar-se?
- Não, obrigado -respondeu com tom cortante-. Que deseja?
- Sinto muito, mas trago más notícias. encontramos a sua criada, Lily Mitchell.
- Charlotte tratou de manter a calma, embora lhe tremiam os joelhos. Sentia como o sangue lhe subia à cabeça.
- Onde? -perguntou com um fio de voz. Aquele homem cruel não deixava de olhá-la. Não costumava lhe desgostar as pessoas por seu aspecto (bom, talvez isso não fosse de todo verdade), mas esse polícia não lhe inspirava nada de bom-. Bem? -insistiu tratando de elevar o tom.
- No Cater Street. Talvez seja melhor que se sente.
- Encontro-me perfeitamente, obrigado. -Tentou fulminá-lo com o olhar, mas parecia invulnerável.
- Ele a pegou firmemente pelo braço e a levou até uma das cadeiras com espaldar.
- Quer que chame a alguma de suas criadas? -perguntou.
- Isso acabou de indignar Charlotte. Não era tão fraca para não saber valer-se por si mesma, inclusive sob o efeito de notícias horripilantes.
- Que não pode esperar? -perguntou fazendo demonstração de um grande autodomínio.
- Ele deu umas voltas pela sala. Evidentemente carecia de maneiras, mas o que se podia esperar de um policial? Certamente não podia evitar.
- Seu mordomo nos disse, ontem de noite, que a jovem tinha saído a dar uma volta com um tal Jack Brody, outro empregado. A que hora tinha que ter retornado?
- Acredito que por volta das dez e meia. Não tenho certeza. Talvez as dez em ponto. Maddock deve saber.
- Então, se me permitir, perguntarei a ele. -Soava mais como uma afirmação que como um pedido-. Quanto tempo estava a seu serviço?
- Tudo parecia tão remoto, tão perdido no passado.
- Uns quatro anos. Só tinha dezenove anos. -Sentiu como perdia a voz e lhe chegavam um amontoado de lembranças do Emily. Emily de bebê, Emily aprendendo a caminhar. Era ridículo. Emily não tinha nada em comum com Lily, salvo o que ambas tinham dezenove anos.
- O malvado polícia continuava sem lhe tirar olho de cima.
- Devia conhecê-la muito bem.
- Suponho que sim. -Ao responder compreendeu o pouco que a conhecia realmente. Lily era um rosto que revoava pela casa, alguém a quem tinha chegado a acostumar-se. Não sabia nada a respeito dela, nada do que ocultava esse rosto, suas preocupações ou seus medos.
- Tinha passado alguma noite fora com antecedência?
- O que? -Por um momento tinha esquecido que ele estava ali.
- Não. Nunca, senhor... -Também tinha esquecido seu nome.
- Inspetor Pitt, morreu... estrangulada, como as outras?
- Sim, estrangulada com um arame. Exatamente como as outras.
- E... também a... mutilaram?
- OH! -Sentiu como a invadiam o horror, a compaixão e o desfalecimento.
- Ele não deixava de olhá-la. Pelo visto não se deu conta de nada, salvo de que permanecia em silêncio.
- Com sua permissão, irei falar com o resto do serviço. É provável que a conhecessem melhor que você. -Algo em seu tom parecia indicar que não lhe importava nada e isso a fez sentir-se aborrecida e... culpada.
- Não nos misturamos na vida de nossas criadas, senhor Pitt! Mas se acreditar que não estamos preocupados, equivoca-se. Fui eu quem enviou ao Maddock para que os avisasse, ontem de noite. -ruborizou-se de , ao pronunciar essas palavras. por que tratava de justificar-se ante aquele homem-. Desgraçadamente não foram capazes de encontrá-la naquele momento! -acrescentou com dureza.Charlotte ficou olhando o cavalete. O quadro que um quarto de hora antes lhe parecia sutil e evocador, converteu-se em umas simples mancha cinza marrom sobre um papel. Sua cabeça estava cheia de imagens imprecisas de ruas escuras, passos, luta por manter a respiração, medo e, por cima de tudo, um espantoso ataque à intimidade.
- Continuava olhando o cavalete quando entrou sua mãe. ouvia-se a voz do Emily no vestíbulo.
- Ele recebeu sua queixa em silêncio e partiu.
- Tenho certeza de que ficará fatal se o deixar tão solto como está. Parecerei gorda! É muito pouco elegante.
- Caroline se deteve e olhou a sua filha.
- Charlotte, querida, o que acontece?
- Encheram-se os olhos dela de lágrimas. Em um esforço por liberar-se da pena, jogou-se sobre os braços de sua mãe e a estreitou com força.
- É Lily, mamãe. Estrangularam-na, como às outras. Encontraram-na no Cater Street. Há um policial na casa, bem agora. Está interrogando ao Maddock e ao resto do serviço.
- Caroline lhe acariciou suavemente o cabelo com gesto tranqüilizador.
- Querida -disse com ternura-. Temia que tivesse ocorrido algo assim. Nunca achei que Lily se escapou. Suponho que queria acreditar nisso porque era bastante melhor que isto. Seu pai ficará furioso quando souber que a polícia está aqui. Sabe Sarah?
- Caroline a afastou suavemente.
- Então será melhor que vamos arrumar nos e nos preparemos para confrontar o pior. Terei que escrever a seus familiares, se é que os tem. No fim de contas Lily era nossa responsabilidade. Agora sobe a seu quarto e lave o rosto. E avise Sarah. Onde disse que estava esse polícia?
- O inspetor Pitt retornou pela tarde para entrevistar-se com o Edward e Dominic e insistiu em que desejava voltar a falar com todos. mostrava-se muito tenaz e autoritário.
- Nunca vi algo assim! -exclamou Edward furioso quando Maddock anunciou sua presença-. A rabugice deste jovem não conhece limites. Terei que me queixar a seus superiores. Não permitirei que as mulheres se vejam mescladas neste sórdido assunto. Eu falarei com ele, ninguém mais. Caroline, meninas, por favor, se retirem até que Maddock avise-as.
- Todas se levantaram obedientes, mas antes que tivessem podido sair abriu-se a porta e apareceu a desalinhada figura do Pitt.
- boa noite, senhora -saudou-. boa noite -repetiu, dirigindo um olhar a todos, embora seus olhos se detiveram um momento em Charlotte, para gravidade da jovem. Sarah a olhou aborrecida, como se ela tivesse a culpa de semelhante incursão em sua sala de estar.
- As mulheres já se foram -disse Edward com rudeza-. Seria amável de deixá-las passar?
- Que pena! -Pitt sorriu com ar afável-. Esperava poder falar com elas diante de você, para que lhes desse apoio moral... Mas, é claro, se o prefere falarei com elas a sós...
- Prefiro que não falem com você absolutamente. Nada do que elas saibam pode ajudar a resolver este assunto e não permitirei que as incomode.
- Bom, é claro terei suficiente com sua colaboração, senhor...
- Eu tampouco não sei nada! Não me misturo na vida amorosa de minhas criadas! -sentenciou Edward-. Mas posso lhe contar o que, como família, sabíamos de Lily. Posso lhe falar de sua eficiência, suas referências, onde vive sua família, etc. Suponho que lhe interessará saber todo isso.
- Sim, embora não acredito que tenha muita importância. De qualquer modo, preciso falar com sua esposa e suas filhas. As mulheres são muito observadoras, já sabe; e as mulheres observam às outras mulheres. Surpreenderia- se saber a quantidade de coisas que podem passar inadvertidas para você ou para mim e não para elas.
- Minha mulher e minhas filhas têm coisas melhores que fazer que preocupar-se da vida amorosa de Lily Mitchell. -O rosto do Edward se ia avermelhando e suas mãos começavam a esticar-se.
- Sarah se aproximou da polícia.
- Realmente, senhor... -Decidiu prescindir de seu nome-. Asseguro-lhe que não tenho nada que lhe dizer. Seria melhor que interrogasse à senhora Dunphy ou a Doura. Se Lily confiava em alguém, devia ser uma delas duas.
- Encontre a esse malvado com o que saía.
- Senhora Corde, já o encontramos. Diz que deixou Lily ao final da rua, a um passo da casa, mais ou menos às dez menos dez. Tinha que estar de volta em sua casa às dez se não queria achar a porta fechada.
- Isso diz, mas não há provas -apontou Dominic, que falava pela primeira vez. Estava sentado em uma das cadeiras com espaldar e parecia um pouco desconcertado, mas era o mais tranqüilo de todos.
- O coração de Charlotte deu um pulo ao olhá-lo. Parecia muito sereno. Seu pai parecia ridículo a seu lado.
- Chegou a sua pensão as dez em ponto -respondeu Pitt olhando Dominic com o sobrecenho franzido.
- Bom, podia tê-la matado antes das dez, não? -insistiu Dominic.
- Sem dúvida. Mas por que teria que fazê-lo?
- Não sei. -Dominic cruzou as pernas. Isso é coisa de vocês. por que teria que matá-la alguém?
- É verdade. -Sarah se aproximou do Dominic, dando mostras de compartilhar sua teoria-. Teria que estar com ele, não aqui.
- Pelo menos teve a delicadeza de não vir antes que anoitecesse - murmurou Emily a Charlotte-. A pobre Sarah está que gorjeia!
- Não seja má! -respondeu Charlotte, embora estivesse de acordo e sabia que Emily sabia.
- Acredita que foi ele, senhora Corde? -perguntou Pitt arqueando as sobrancelhas.
- Acho que é evidente. -Edward tomou a palavra-. Tiveram uma briga de apaixonados e ele perdeu os nervos e a estrangulou. Ocuparemo-nos de tudo o que concerne ao funeral, é claro. Mas não acredito que tenha que voltar a nos importunar. Maddock lhe dirá tudo que precisa saber e lhe será de grande ajuda.
- Não a estrangularam com as mãos, senhor, afogaram-na com um arame. -Pitt esticou um arame invisível-. Suponho que não se costuma levar um arame, se por acaso surge à ocasião.
- Queixarei a seus superiores por sua rabugice!
- Charlotte sentiu um absurdo desejo de rir.
- Também foi ele quem assassinou ao Chloe Abernathy? -perguntou Pitt-. E à criada dos Hilton? Ou temos dois estranguladores instalados no Cater Street?Charlotte sentiu a mão de Emily na sua e se alegrou de poder estreitá-la. O dia seguinte foi um dos piores que Charlotte recordava. Todos se sentiam mal, embora cada um reagisse a sua maneira. O pai tinha menos paciência da habitual e se mostrava muito autoritário. A mãe não parava de revisar o mínimo detalhe, como se arrumar a cozinha e o trabalho da casa fosse mudar o acontecido. Sarah explicava mil anedotas de seus conhecidos, até que Charlotte perdeu a paciência e lhe pediu que se calasse. Emily parecia a menos afetada; evidentemente estava pensando em outras coisas. A única coisa boa era que a avó continuava em casa de Susannah e não estava em condições de opinar.O vigário tinha enviado um mensageiro com uma nota de condolência.
- Era sábado e portanto não tinha que se trabalhar, mas ninguém gostava de sair.
- Capítulo 4
- Ninguém respondeu as perguntas do Pitt.
- Todos o olharam em silêncio. Sua figura parecia ridícula naquela sala de estar e dizia coisas absurdas, desagradáveis e aterradoras.
- Que amável! -opinou Sarah quando viu a mensagem, uma vez seu pai acabara de ler.
- É o mínimo que podia fazer -murmurou Charlotte. Só a menção do vigário a punha de um humor de cães.
- Não esperará que se apresentasse em pessoa, por um criado. -Sarah também estava perturbada. - Além disso, não há nada que possa fazer.Caroline entrou na sala com o rosto congestionado e o cabelo ligeiramente
- revolto. Edward levantou a vista.
- Charlotte procurou a forma de replicar a sua irmã, mas não lhe ocorreu. Observou o rosto divertido de Dominic e se ruborizou. Tinha que evitar corar! Fazia-aela parecer estúpida.
- O que esteve fazendo, querida? Parece que tenha algo no nariz.Charlotte pegou seu lenço e lhe tirou a mancha. Era farinha.
- Caroline passou a mão e o problema se agravou.
- Esteve cozinhando? -perguntou Edward, surpreso-. O que se passou com a senhora Dunphy?
- Dói-lhe a cabeça. Receio que todo este assunto a transbordou. Queria muito à Lily, sabe. De qualquer modo, eu gosto de cozinhar. vim porque recordei que fiquei de passar uma receita de caldo vegetal à senhora Harding. Alguma de vocês poderia aproximar-se até sua casa esta tarde?
- Charlotte gostava da senhora Harding. Era um pouco desbocada mas recordava histórias fantásticas e muito antigas. Tinha conhecido a todo tipo de gente em sua agitada juventude, antes de casar-se e subir de classe social. Agora era rica e respeitável. Charlotte não achava que tudo o que contava fosse verdade, mas a entretinha ouvi-la falar.
- Eu irei, mamãe -propôs sem vacilar.
- Emily ou Sarah lhe acompanharão -disse Caroline olhando a ambas.
- Tenho coisas que fazer -se desculpou Emily-. Há muito que costurar, agora que temos uma empregada a menos, e roupa que remendar.
- Se a senhora Dunphy estiver indisposta -atravessou Sarah - será melhor que fique em casa, se por acaso necessita algo. Talvez se falar com ela poderei tranqüilizá-la.
- Charlotte lhe lançou um olhar de reprovação. Sabia perfeitamente que seus motivos nada tinham que ver com a senhora Dunphy. Sarah considerava que a senhora Harding era uma fofoqueira de duvidosa reputação e não queria conhecê-la em pessoa. Quanto a ser fofoqueira, era certo. Mas se suas histórias tivessem sido um pouco mais atuais, teria demasiado público.
- Charlotte não necessita que ninguém a acompanhe -disse Edward bruscamente-. São só uns quilômetros. Não se detenha, Charlotte, e volta o antes possível. Acredito que não tenho que lhe explicar o motivo. Suponho que a notícia terá chegado a toda a vizinhança. E não fofoque! A senhora Harding é uma velha muito curiosa. Dê-lhe a receita, deseje-lhe um bom dia e volte para casa imediatamente.
- Não quero que as meninas vão sozinhas pela rua -protestou Caroline-. Ou vai alguém com ela ou a senhora Harding terá que esperar. As ruas são muito perigosas.
- Não seja absurda, Caroline! Não correrá perigo algum. -Edward se ergueu na cadeira-. É pleno dia.
- Também era pleno dia quando atacaram a criada dos Waterman! - recordou-lhe Caroline-. Pergunto-me por que não nos avisou para que tanto nós como as empregadas pudessem ir com mais cuidado.
- Querida Caroline, perdeu os papéis? Esse lunático só ataca a empregadas e moças de duvidosa moral. Ninguém poderia confundir Charlotte com uma delas.
- E tem Chloe Abernathy? Não era uma faxineira!
- Sim, seu caso me surpreendeu. Pensava que era muito correta, embora algo ligeira de cascos. Isso prova que alguém pode equivocar-se.
- Diz isso porque a mataram? -respondeu Caroline com um matiz de surpresa.
- Charlotte pensou que esse era uma colocação sem saída e respondeu:
- Está dizendo que a mataram porque era indecente e que era indecente porque a mataram? -Pensava em voz alta.
- O que digo é que a mataram porque se misturou com pessoas imorais - Edward a olhou com cenho-, e o fato de que a matassem é prova disso. Tem medo de ir sozinha? -Perguntou com preocupação e certa ternura.
- Sim -respondeu-, preferiria não ter que ir.
- Dominic estirou as pernas e ficou de pé de um salto.
- Se quiser a acompanho. Não acredito que possa ajudar em nada aqui, nem com a roupa de casa nem com a senhora Dunphy, e muito menos na cozinha.Durante o trajeto de volta Dominic confessou sentir-se um pouco decepcionado. Tinha ouvido que a anciã era uma das melhores charlatãs do bairro e esperava algo mais dela. Charlotte tentou lhe explicar o que ela considerava as razões de sua repentina discrição e acabou por lhe contar algumas das melhores historias da senhora Harding, para diverti-lo. Dominic riu a muito e Charlotte se sentiu feliz como fazia tempo que não se sentia.A felicidade que sentia se dissipou de repente apesar de Dominic continuar sorrindo como se não notasse a mudança.
- Quando chegaram a casa, acharam Sarah muito zangada. Edward estava pálido, Emily totalmente calada e Caroline ausente, encerrada na cozinha.
- O passeio com o Dominic foi maravilhoso a pesar do calor do sol de agosto, que subia do pavimento. A senhora Harding se mostrou encantada de vê-los e inclusive sua necessidade de fofoca parecia haver-se esfumado. Possivelmente fosse devido à presença masculina do Dominic. Serviu-lhes um refrigério e tomaram encantados antes de retornar a casa. Deu-pena deixá-los intuiu que a visita do Dominic a fez sentir-se incômoda, apesar de apreciar o jovem. De fato, que mulher não o apreciaria?
- O que acontece com todos? -perguntou ao mesmo tempo em que se dispunha a abrir as janelas. - Necessitam um pouco de ar. Faz um dia lindo. - voltou-se de repente e com um gesto sério perguntou-: Não estarão pensando no Lily ainda, não é? Tenho certeza de que ela não teria querido que nos sentíssemos tristes todo o verão.
- O verão está a ponto de terminar, Dominic - disse Sarah-. Mas isto não tem nada que ver com o Lily, pelo menos não no sentido que você acha. Esse pérfido polícia esteve aqui de novo.
- Charlotte se zangou até que viu o rosto de seu pai. Parecia mais preocupado que iracundo.
- O que queria, papai? Já lhe dissemos tudo o que sabíamos.
- Ele franziu o sobrecenho e olhou para outro lado.
- Conforme nos explicou, não suspeitam desse jovem com o que saía. Acreditam que se trata de um louco.
- Bom, isso não tem nada que ver conosco -protestou Dominic.
- Não sei o que opinam eles -respondeu Edward-, mas acredito que estão procurando um motivo para seguir bisbilhotando e farejando.
- O que perguntou? -inquiriu Charlotte olhando a todos-. Se mostrar impertinente, não temos por que responder. Podemos expulsá-lo de casa.
- É muito fácil falar agora -replicou Sara-, mas você não estava aqui!
- Você tampouco teria estado se tivesse aceitado me acompanhar. - Charlotte não pretendia culpabilizar-la. Estava encantada de que Dominic tivesse ido com ela mas, inconscientemente, sentia-se aborrecida com todos por lhe haver estragado à tarde.
- Não se preocupe que não se livrou. -Sarah inclinou ligeiramente a cabeça-. Pensa voltar para falar com você.
- Charlotte se voltou para seu pai:
- Papai, que mais posso lhe dizer? Nem sequer recordo ter visto Lily naquele dia. -Sentiu certa vergonha-. E tampouco a conhecia muito.
- Não sei o que pretende. -Seu pai estava mais nervoso que aborrecido-. Fez todo tipo de perguntas, sobre mim e sobre o Maddock, e tinha muito interesse em falar com Dominic.
- Dominic se incomodou e em seu rosto apareceu certa preocupação.
- O que tem as outras vítimas... além de Lily?
- Não seja absurdo! -replicou Sarah-. Não podem pretender que soubesse algo desse assunto, salvo possivelmente comprovar que não tinha visto nenhum desconhecido rondando pelo bairro. No fim de contas, você vai e vem todo dia por essa rua.Sarah se deu conta do que Charlotte estava pensando.
- Assaltou uma terrível inquietação em Charlotte: acaso a polícia suspeitava de algum deles? Dominic e seu pai saíam freqüentemente e cruzavam Cater Street...
- Penso lhe tirar essa estúpida idéia da cabeça quanto antes – disse furiosa -. Conheço de sobra Dominic. Não é o tipo de homem que se fixaria em uma criada, e muito menos iria falar lhe. Não tem esse tipo de baixas paixões. É um homem civilizado, nem sequer poderia pensar em nada parecido.Uma hora depois, o inspetor Pitt voltou a visitá-los. Desta vez vinha em companhia de outro homem a quem Charlotte não conhecia. Apresentaram-no como o sargento Flack. Era um homem magro, de altura normal, mas, ao lado do inspetor Pitt, parecia pequeno. manteve-se calado todo tempo, mas seus olhos percorriam a sala com interesse.
- Charlotte se virou para Dominic e viu em seu olhar um traço de dor, uma profunda frustração, como se tivesse divisado algo valioso e o tivesse perdido no último instante. Charlotte não sabia que fantasia de perigo ou sensualidade se apropriara momentaneamente dele.
- Bom tarde, senhor Pitt - disse Charlotte com naturalidade. Estava decidida a não deixar-se impressionar e a livrar-se daquele caipira o antes possível-. Sinto que se incomodou em voltar, mas não lhe posso dizer nada novo. De qualquer modo, responderei a todas suas perguntas. -Talvez aquilo fosse um tanto imprudente, mas não lhe permitiria nenhuma rabugice.
- Às vezes, as coisas que menos importantes parecem são a chave para a investigação - respondeu Pitt. Voltou-se para o sargento e lhe pediu que fosse à cozinha interrogar Maddock, a senhora Dunphy e Doura. Depois olhou de novo ao Charlotte. Parecia totalmente relaxado, o que lhe era aborrecido. Pelo menos, devia estar um pouco... Impressionado. Depois de tudo, ele era um simples polícia e estava em casa de uma família de classe muito mais elevada que a sua.
- Que deseja saber? -perguntou friamente.
- Ele sorriu com expressão afável.
- O nome e o paradeiro do louco que está estrangulando jovens mulheres nas ruas desta vizinhança - respondeu-. Isso é claro, se partirmos da base de que se trata de um único assassino e não de crimes independentes.
- Charlotte se deu conta de que a estava olhando diretamente nos olhos, o que há surpreendeu um pouco.
- Que algumas pessoas, quando se inteiram de um crime, especialmente se for original, decidem solucionar seus próprios problemas seguindo o mesmo esquema. Pode ser que aproveitem para tirar vantagem de alguém de cuja morte pensam tirar benefício, econômico ou de outra índole, e... -estalou os dedos - surge um segundo crime ou um terceiro. O segundo assassino espera que o primeiro carregue com a culpa.
- Explica-o como se fosse uma possibilidade - comentou Charlotte com desgosto.
- É senhorita Ellison. Agora falta elucidar se é ou não uma realidade. Tenho que investigar, mas antes queria descartar opções mais óbvias.
- A que opções se refere? -Ao acabar de formular a pergunta desejou não tê-la feito. Não pretendia animá-lo. E, francamente, a resposta lhe dava um pouco de medo.
- Nos últimos meses estrangularam três mulheres nesta zona. O primeiro que me ocorre é que há um louco solto.
- Parece-me que essa é a solução - apontou ela, aliviada-. por que teria que pensar em outra alternativa? por que não orienta sua busca nessa direção e vai aos lugares onde pode achar esse tipo de gente? Refiro-me às pessoas que são capazes de... -procurou a palavra adequada- cometer atos delitivos!
- O mundo dos baixos recursos? -sorriu zombador. Falava com certa dissimulação e um ar de superioridade-. O que acredita que são os baixos recursos, senhorita Ellison? Algo que há nas bocas-de-lobo?
- Não, é claro que não! -protestou ela-. Não os conheço. Não é algo que pertença a meu mundo! Mas sei perfeitamente que existem zonas onde reinam os criminosos, cujo nível é diferente do de outros... -Olhou-o de cima abaixo, desafiante-. Pelo menos do meu!
- OH! Muito diferente senhorita Ellison - assentiu com um sorriso, mas a olhava com dureza-. Embora não menciona se refere a seu nível moral ou social. Mas talvez não importe... Não são tão diferentes como se supõe. De fato, acredito que normalmente são simbióticos.
- Simbióticos? -perguntou ela surpreendida. Pensou que não tinha entendido a palavra.
- Que dependem um do outro, senhorita Ellison. Que coexistem que se alimentam mutuamente, que se necessitam.
- Já sei o que significa esse adjetivo! -replicou-. O que discuto é sua pertinência. A pobreza nem sempre gera criminosos. Existe muita gente pobre tão honrada como eu.
- Chegados a esse ponto, ele se pôs a rir abertamente.
- Parece-lhe divertido, senhor Pitt? -queixou-se indignada-. Sei que não me conhece o suficiente para me considerar um exemplo a seguir, mas pelo menos saberá que não me dedico a estrangular as jovenzinhas na rua!
- Ficou olhando: sua cintura, suas finas mãos e seus pulsos.
- Não - assentiu-, duvido que tenha força suficiente.
- Seu senso de humor era muito impertinente, senhor Pitt. –Tentou olhá-lo por cima do ombro, mas não o conseguiu posto que fosse mais alto que ela-. E não me parece nada engraçado.
- Não pretendia diverti-la, senhorita Ellison, nem bancar esperto. Dizia-o em sentido literal. -Voltava a mostrar-se sério-. E temo que nunca viu a verdadeira pobreza.
- Sim? -Era evidente que não achava-. Viu meninos de seis ou sete anos abandonados, mendigando ou roubando para subsistir, dormindo em esgotos e alpendres, empapados pela chuva, sem mais bens que os trapos que os cobrem? O que acredita que os espera? Quanto tempo acredita que demora um menino de seis anos que vive na rua, subalimentado, em morrer de inanição ou de frio? Um menino que não sabe mais que sobreviver que não pode ler nem escrever, que passou que mão em mão até que já ninguém o quis... O que acredita que acontecerá com um menino assim? Se não morrer (e me acredite, vi montões de pequenos corpos atirados ao final de um beco, mortos de fome e frio), pode ser que tenha sorte e o adote algum limpador de chaminés ou algum padrinho.
- A seu pesar, ela sentiu como a piedade deslocava seu aborrecimento.
- Um homem que encontra a meninos assim - explicou-, acolhe-os e os alimenta, dá-lhes um teto sob o que dormir e certa segurança, em suma, um lugar onde sentir-se em casa. Depois, pouco a pouco, aproveita-se de sua gratidão e ensina-os a roubar, pelo menos a roubar com graça. Ensinam as crianças maiores; começam com algo simples, por exemplo, os lenços de seda foram um bom negócio enquanto estiveram em moda. Depois se tornam mais sutis. Os mais hábeis se dedicam a roubar carteiras, relógios ou selos. Um bom padrinho é aquele que reparte classes. Coloca uma fila de casacos em uma habitação, com um lenço de seda aparecendo em cada bolso e os meninos terão que demonstrar seu talento para agarrá-los. Pode ser que recorra a um manequim de alfaiate e um casaco cheio de campainhas que soam ao menor movimento ou pode ser que se proponha a si mesmo como coelhinho de índias. Premia-se aos que passam a prova e castiga aos que falham. Se tiver os dedos ágeis, um menino valente ou faminto pode enriquecer a seu padrinho e a si mesmo até que cresça, torna-se mais torpe e deixa de ser útil.
- Ela estava horrorizada e, apesar da pena que sentia pelos meninos, estava zangada com ele por lhe referir semelhantes coisas.
- O que fazem então? Morrem de fome? -perguntou. Não queria saber e entretanto não podia suportar a curiosidade.
- O mais freqüente é que continuem roubando, sós ou em bandos, inclusive podem converter-se em ladrões de luva branca...
- Ladrões de luva branca... é o melhor em que pode converter-se um assaltante. Vestem-se bem, têm uma habitação em um bairro abastado, e uma amante a quem conhecem quando têm treze ou quatorze anos e que costuma ser maior que eles. Por estranho que pareça, são muito fiéis e vivem como se fosse um matrimônio. Trabalham em grupos de três ou seis e cada um tem um papel em seus roubos. Costumam roubar mulheres.
- Como sabe tudo isso? E se sabe, por que não os prende?
- Ele soltou um leve suspiro.
- Prendemo-los. Quase todos eles passam uns anos na prisão.
- Que vida tão terrível! Certamente é melhor ser limpador de chaminés. Não mencionou também os limpadores de chaminés? Pelo menos esse será um final mais honrado.
- -Minha estimada senhorita Ellison, seria preciso uma mulher mais inteligente e mais experimentada que você para achar um limpador de chaminés honrado. Esteve alguma vez em uma chaminé?
- Ela arqueou as sobrancelhas e fez um gesto de menosprezo com tanta frieza como pôde.
- Tem uma idéia muito curiosa das ocupações de uma jovem de boa classe, senhor Pitt. Se necessitar que responda a sua pergunta, a resposta é não, nunca subi em uma chaminé.
- Entendo. -Seu tom não parecia lhe incomodar absolutamente. Olhou-a de cima abaixo e ela se ruborizou-. Não caberia - acrescentou com franqueza-. É muito alta e muito grande.
- Ela se ruborizou, mas desta vez de fúria.
- Tem uma cintura excelente, mas -seus olhos se detiveram em seu peito e seus ombros- todo o resto não encaixaria em um túnel vertical, com curvas, e se colocaria a fuligem no nariz, na boca, nos olhos, nos pulmões...
- Parece horrível, mas ao menos é honrado, salvo para o limpador de chaminé, claro está, que permite que os ladrões façam seu trabalho. Como você mesmo disse, não poderiam fazê-lo eles mesmos.
- Senhorita Ellison, nenhum ladrão profissional rouba uma casa sem conhecer sua disposição e onde se guardam os objetos de valor. Ocorre-lhe melhor maneira de fazê-lo que utilizando os tubos da chaminé?
- Quer dizer que...? Mas isso é terrível!
- É claro que o é, senhorita Ellison. Tudo é terrível! -replicou ele-. A pobreza, o crime, a solidão, a sujeira, as enfermidades crônicas, o alcoolismo, a prostituição, a mendicidade! Roubam, falsificam dinheiro e letras de pagamento, praticam a fraude e a prostituição, mas só assassinam em casos de necessidade extrema. E não saem de seu ambiente salvo para tirar um proveito. Não se pode tirar nenhum proveito estrangulando a três jovens no Cater Street. Nem sequer roubaram seus pertences!
- Ela não podia afastar seus olhos dele, invadida por uma mescla de fascinação e horror. Aquele homem lhe desagradava profundamente e suas palavras lhe produziam pavor.
- O que quer dizer? Estão mortas!
- OH, é claro! O que quero dizer é que o tipo de estrangulador no que estão pensando, proveniente dos baixos recursos, mata para obter um benefício. Não arriscaria seu pescoço por entretenimento. Mata para escapar e só quando é imprescindível. Prefere imobilizar ou aturdir de um golpe à vítima e atacar aquelas pessoas que possam ter dinheiro.
- Então...? -Ante seus olhos acabava de surgir um novo mundo, desagradável e confuso, um mundo que fazia tremer suas convicções, aquelas coisas que lhe pareciam fora de toda dúvida e seguras.
- Pitt a olhou e esboçou um sorriso, como se advertisse que começavam a entender-se.
- Se soubesse, talvez poderia achar ao culpado. Mas os motivos não são tão fáceis de decifrar e, é claro, a explicação pode ser menos clara do que seria um móvel como o roubo ou a vingança. Trata-se de algo mais escuro, mais soterrado nas curvas da alma.
- Ela estava aterrada e aquele homem lhe desagradava profundamente. Desagradava-lhe a familiaridade com a que a tratava, a forma como jogava com suas emoções e a obrigava a tomar consciência de coisas que não queria saber.
- Acredito que será melhor que se vá senhor Pitt. Não há nada que possa lhe dizer. Entendi que queria falar com o senhor Corde, embora tenha certeza de que tampouco não lhe servirá de nada. Talvez fora melhor que investigasse a morte das outras garotas... Assassinadas - conteve a respiração e tentou aparentar serenidade.
- Proponho-me investigar tudo, senhorita Ellison. Mas sim, tenho intenção de falar com o senhor Corde. Seria amável de pedir ao Maddock que o mande chamar?Aquela não era uma noite agradável. Dominic não quis dizer a ninguém o que Pitt lhe tinha perguntado, apesar de que Edward o animou a que o fizesse, até onde a discrição o permitia, é claro. Dominic guardou silêncio, o que era um mau sintoma porque não encaixava com seu caráter. Charlotte tinha inclusive medo de pensar. Inconscientemente, temia que Pitt tivesse dado com algo grave de Dominic, algo vergonzante. É claro, nada que tivesse que ver com a morte do Lily e as demais moças, mas todo mundo sabe que os homens, inclusive os melhores, de vez em quando fazem coisas que não devem transcender. Assim eram os homens; era um pouco sabido, mas que não devia mencionar-se, para guardar as aparências.O vigário soltou um de seus sermões habituais, ou possivelmente pior do que de costume. O texto dizia "Benditos som os puros de coração", mas as palavras do vigário transmitiam outra mensagem: "Benditos são os que agem limpamente." Dedicou um bom tempo a condenar as ações impuras. Quanto mais falava de rameiras e prostitutas, mais pensava Charlotte em nos pobres que tinha mencionado Pitt: crianças mortas de fome na idade em que ela e suas irmãs aprendiam a ler e a escrever nas aulas da senhorita Sims. Pensou nas mulheres abandonadas com filhos por criar. De que outro modo podiam ganhar a vida?Deu uma olhada ao órgão e viu o pálido rosto do Martha Prebble enquanto tocava o hino final. Parecia aborrecida e desgraçada.Parecia impossível, mas a segunda-feira foi ainda pior. A avó chegou as dez em ponto, murmurando negras profecias sobre o declive da vizinhança, da classe social e do mundo em geral. A moralidade rodava costa abaixo e todos estavam destinados a um grande desastre.Não havia ninguém a quem Charlotte desejasse ver menos que ao inspetor Pitt, que entrou na sala de jantar, enorme, com seu casaco ondeante e o cabelo mau penteado, como sempre. Charlotte se irritava até limites insuspeitados.
- Acabavam de instalá-la em seu quarto, quando o inspetor Pitt se apresentou de novo na casa, em companhia do silencioso sargento Flack. Sarah tinha ido colaborar em alguma obra de caridade e Emily estava na costureira encomendando outro vestido para seu próximo encontro com o George Ashworth (essa garota deveria ter melhor senso; já era hora de que entendesse que se tratava de um jogador, um paquerador ou algo pior e que com ele não conseguiria mais que arruinar seu bom nome). A mãe estava em cima, tentando que a avó se acalmasse para que a pudesse deixar um momento só sem que fizesse a vida impossível a todos.
- A comida do domingo foi um desastre e a tarde deviam dedicá-la a pouca coisa, como corresponde ao dia em que descansou o Senhor. A avó voltaria no dia seguinte da casa da tia Susannah, com o que tampouco se abriam perspectivas apaixonantes.
- Não costumava falar mal, mas naquela manhã tinha vontade de enviar ao senhor Pitt ao inferno por havê-la obrigado a abrir os olhos. Sentou-se e olhou ao vigário. Cada uma de suas palavras a fazia sentir-se pior. Nunca tinha gostado, mas ao acabar a manhã odiava-o com uma intensidade que a assustava e a deprimia. Tinha certeza de que odiar dessa maneira era um sentimento pouco cristão e pouco feminino, mas o sentia tão intensamente que não era capaz de aplacá-lo.
- Ficou a falar de outras coisas, consciente de que dizia muitas tolices, mas lhe parecia melhor dizer tolices que deixar lacunas na conversa, silêncios nos que pudessem penetrar, de novo, aqueles pensamentos. A pesar do cansaço, não conseguiu dormir bem e se levantou tarde pelo que teve de apressar-se para estar pronta na hora de ir à igreja. Não gostava muito assistir a missa; incomodava-lhe sua solenidade, a atmosfera de severa decência que se respirava, as saudações educadas - mais um ritual que um sinal de verdadeira amizade-, o desenvolvimento da cerimônia, que nunca mudava e que a obrigava a repetir como um louro as perguntas e as respostas. Podia seguir tudo mecanicamente; a única coisa que não devia fazer era pensar no que estava fazendo. Detinha-se, perdia- se e tinha que voltar a consultar o livro de orações. Além disso, o vigário soltava um de seus sermões. A temática costumava girar em torno do pecado ou da necessidade de penitência. Uma de suas histórias favoritas era a da mulher adúltera, embora Charlotte e o vigário não extraíam a mesma conclusão. Por que eram sempre mulheres e nenhuma vez homens os adúlteros? Em todas as leituras eram as mulheres quem cometiam adultério e os homens quem as descobriam e castigavam. O que acontecia com os homens que cometiam adultério? Por que não lhes atiravam pedras?Tinha perguntado isso a seu pai, tempo atrás, e, para sua surpresa, este lhe tinha respondido que não fosse ridícula.
-
- Ele não se teve o trabalho de corrigi-la, de lhe recordar que era o inspetor Pitt. Aquilo também incomodava ao Charlotte, porque pretendia que se sentisse desconfortável e não o conseguia.
- bom dia, senhorita Ellison. Um bonito dia do verão. Está seu pai em casa?
- É claro que não! É segunda-feira pela manhã. Meu pai está na cidade, igual a muitas outras pessoas respeitáveis. O fato de que não formemos parte da classe operária não nos converte em uns folgazões.
- Pitt riu abertamente, deixando descobertos seus fortes dentes.
- Apesar de que eu adoro sua companhia, eu também me encontro aqui por motivos de trabalho. Se seu pai não se acha, terei que falar com você.
- Não investigo crimes para me entreter. -Seu sorriso se desvaneceu, embora não perdeu o bom humor. Falava com um tom um pouco trágico e iracundo-. Nenhum de nós desfruta com isto, mas é necessário.
- Já lhe contei várias vezes o pouco que sei - respondeu ela-. Se não é capaz de resolver este caso, será melhor que o passe a alguém mais competente.
- Ele não prestou atenção a seu desplante.
- Lily Mitchell era uma jovem bonita?
- Não a viu? -respondeu ela surpreendida. Parecia ter esquecido o mais elementar.
- Pitt sorriu com tristeza, como se sentisse pena por ela e queria ser compreensivo.
- Sim, senhorita Ellison, vi-a, mas nessas circunstâncias não estava muito bonita. Seu rosto estava inchado e arroxeado, seus traços desencaixados, sua língua...
- Cale-se! Por favor! -gritou Charlotte.
- De acordo. Mas poderia deixar a um lado sua dignidade - propôs ele com tom afável- e me ajudar a achar a quem o fez, antes que ataque a alguém mais?
- Ela se sentiu zangada, doída e envergonhada.
- Sim, é claro - assentiu, dando-à volta para que não pudesse ver seu rosto e para não ter que vê-lo. - Lily era bastante bonita. Tinha uma pele linda. -estremeceu e sentiu uma náusea quando tratou de imaginar essa mesma pele cheia de hematomas e marcada por uma morte violenta. Procurou afastar essa idéia-. Nunca lhe saíam espinhas nem a via apagada. Tinha uma voz muito doce. Acredito que vinha de algum lugar do interior.
- Do Derbyshire. Dava-se bem com o resto do serviço?
- Sim, isso acredito. Nunca soube de nenhum problema.
- Voltou-se de repente e em seu rosto podiam ler-se seus pensamentos.
- Exatamente. Maddock a cortejava ou se insinuava?Pitt esperava, estudando sua expressão.
- Até esse momento não tinha pensado nos sentimentos do Maddock. Podia ser um pouco possessivo com os criados, mas até o ponto de sentir desejo ou ciúmes? Maddock era o mordomo. Vestia um traje elegante, era amável e se encarregava da casa. Mas, além disso, era um homem, e não devia ter mais de trinta e cinco anos, mais ou menos, não muito maior que Dominic. Que idéia tão absurda! Compará-lo sequer com Dominic.
- Acredito que sei o que pensa. É uma nova possibilidade para você e, se o analisar, não lhe parece desatinado.
- Não tinha sentido lhe mentir.
- Tem razão. Lembra se alguém comentou algo sobre isso. A senhora Dunphy, na mesma noite em que Lily desapareceu. Disse que Maddock gostava de Lily, que não lhe agradava Jack Brody porque saía com Lily, sem importar como fosse realmente. Mas isso podia ser simplesmente porque temesse perder uma boa trabalhadora. Custa muito tempo formar ao serviço, sabe? -Não queria colocar ao Maddock em um problema. Não concebia que tivesse seguido ao Lily e lhe tivesse feito aquilo. Como poderia?
- Mas Maddock saiu àquela noite à rua, não? -prosseguiu Pitt.
- Sim, é claro. Já sabe. Foi procurá-la porque se atrasava muito. Qualquer mordomo responsável teria feito o mesmo.
- Não Tenho certeza. Por que não pergunta a ele? -Nada mais de queixar-se, compreendeu que se comportava como uma idiota. Se Maddock era culpado de algo... é claro que não o era, mas se o fosse, não ia contar ao Pitt a verdade a respeito de sua saída-. Sinto muito. -por que pedia desculpas a um policial-. Pergunte à senhora Dunphy - prosseguiu secamente-. Acredito que passava as dez... Naturalmente, eu não estava na cozinha para comprovar.
- Já perguntei à senhora Dunphy - respondeu ele-, mas queria corroborar os fatos com o maior número de fontes possíveis. E ela mesma reconhece que sua memória não é muito de confiar. Parecia muito afetada por todo este assunto.
- E acredita que eu não o estou simplesmente porque não vou chorando pelos cantos? -Pensou que ele insinuava que não se preocupava tanto como devesse.
- Imaginei que você não estaria tão apegada a uma criada como a cozinheira - disse Pitt torcendo ligeiramente a boca, como se sorrisse para si mesmo. - Além disso, acho que sua natureza a impulsiona mais a sentir raiva que a chorar.
- Opina que tenho um temperamento insuportável? -perguntou, e imediatamente se arrependeu. Dava a entender que lhe preocupava o que ele pensasse dela, o que era absurdo.
- Acredito que é muito fogosa e que lhe custa ocultar seus sentimentos. - Sorriu-. É uma qualidade pouco habitual nas mulheres, especialmente de classe social elevada, e me parece muito atraente.
- Charlotte se ruborizou levemente.
- É um impertinente - replicou.
- Ele sorriu ainda mais, sem deixar de olhá-la nos olhos.
- Se não desejava saber o que penso de você, por que me perguntou?
- Não ocorreu nenhuma resposta à jovem. Portanto, se encheu de dignidade e o fulminou com o olhar.
- Acredito que é muito possível que Maddock se interessasse pelo Lily, mas suponho que não acreditará que olhava com os mesmos olhos à criada dos Hilton, e menos ainda ao Chloe Abernathy. Portanto, supor que tenha matado as três é levar as coisas um pouco longe, se acreditar que o móvel é o interesse. Se não for assim, carece por completo de argumento. Acredito que deveria começar de novo de uma perspectiva melhor encaminhada. -Pretendia que isso servisse de despedida.
- Era você a única que estava em casa aquela noite?
- Também estavam à senhora Dunphy e Doura. por quê?
- Sua mãe e suas irmãs tinham ido a uma função beneficente na igreja. Onde estavam seu pai e o senhor Corde?
- Mas para voltar para a casa tinham que passar perto do Cater Street inclusive pela própria Cater Street, não?
- Se tivessem visto algo teriam dito.
- É claro que sim! Por que não teriam que fazê-lo? -Assaltou-lhe uma idéia espantosa-. Suponho que não acreditará que algum deles pôde...
- Acredito em tudo, senhorita Ellison, e ao mesmo tempo não acredito em nada até que tenha sido provado. Mas admito que não há motivos para pensar que... –Deixou a frase inconclusa-. Eu gostaria de voltar a falar com o Maddock... A sós.Naquela noite todo mundo estava em casa, inclusive Emily. Estavam sentados, com as janelas que davam ao jardim totalmente abertas, mas em lugar de sentir o ar fresco da noite, carregados dos aromas do dia, o ambiente lhes era carregado e difícil de respirar.
- Sarah foi quem expressou o que todos estavam pensando, ou algo muito parecido.
-
- Bom no fim de contas não estou preocupada. -Levantou um pouco o queixo-. O inspetor Pitt parece um homem sensato. Não demorará em comprovar que Maddock é tão inocente como todos nós. Eu inclusive diria que chegará a essa conclusão amanhã mesmo.
- Como de costume, Charlotte disse o que sentia sem meditar.
- Seu bom senso não me inspira muita confiança. Não é como nós.
- Bons todos sabem que pertence a outra classe social -falou Sarah - mas está acostumado a tratar com criminosos. Tem que conhecer a diferença entre um perfeito e honrado mordomo como Maddock e um rufião capaz de ir estrangulando mulheres por aí.
- Sufoca-as com um arame - particularizou Charlotte-. Além disso, existe uma grande diferença entre os rufiões, como você os chama que se dedicam a atracar e roubar às pessoas e o tipo de pessoas capaz de estrangular a uma mulher, especialmente a uma criada que não possui nada de valor.
- E desde quando sabe você dessas coisas, Charlotte? Quando se tornou uma perita em crimes passionais?
- Ela não sabe nada! -afirmou Edward cortante-. Diz isso para nos contrariar, como de costume.
- OH, não acredito! -Dominic não tinha deixado de sorrir-. Charlotte não pretende nos contrariar; está sendo franca. Além disso, passou muito tempo em companhia de nosso amigo o policial. Talvez tenha aprendido algo.
- É difícil que de um homem assim aprenda algo que valha a pena ou que uma dama deva conhecer - respondeu Edward e a interpelou-: É verdade, Charlotte? Esteve vendo esse homem?
- Charlotte se ruborizou com uma mescla de confusão e raiva.
- Só o vi quando veio para casa em missão oficial, papai. Desgraçadamente, veio em duas ocasiões quando não havia ninguém mais que pudesse recebê-lo.
- respondi a suas perguntas, nada mais. Não mantemos nenhuma outra relação.
- Não seja impertinente! Refiro a que lhe perguntou.
- Não muito. -Agora que o penso, a maioria de suas conversas não tinham tido relação direta com o caso-. Perguntou-me algo sobre Lily e sobre o Maddock.
- É um homem horroroso. -Sarah estremeceu-. É revoltante que tenhamos que recebê-lo. Acredito que deveríamos ir com mais cuidado e não deixar que Charlotte fale tanto com ele. Nunca se sabe o que pode dizer.
- Sugere que devem sair à rua para responder suas perguntas? –Charlotte tinha perdido completamente a paciência-. Se não o deixa falar comigo, suspeitará que sei algo vergonhoso e que têm medo que o confesse.
- Charlotte - a voz do Caroline era doce, mas não lhe faltava firmeza.
- Não acredito que seja um homem horroroso - indicou Dominic - Possui um senso de humor muito peculiar, algo que tem mérito se tivermos em conta sua profissão. Talvez seja a única forma de manter a prudência.
- Tem um gosto curioso ao que se refere a amizades, Dominic - replicou Emily com dureza - agradeceria que não fosse muito hospitaleiro com ele nesta casa.
- Tal como estão às coisas, seria redundante - disse Dominic com tomCharlotte se dispôs a protestar, mas se deu conta de que estava brincando. Sentiu-se um pouco confusa e se ruborizou. Seu coração pulsava muito forte e a preocupava que alguém percebesse isso.
- Jovial - Me parece que Charlotte já cumpre perfeitamente esse cometido. Duvido que possa perder mais tempo.
- Dominic, este não é um bom momento - apontou Caroline - Parece que esse senhor realmente acredita que Maddock poderia ter algo que ver com o crime.
- Mais que isso - replicou Edward com seriedade - Receio que acredita que Maddock pôde ter matado Lily.
- Mas isso é ridículo! -Sarah só estava preocupada com a maneira como tratavam o assunto. Parecia-lhe que era um tema para falar em privado, algo que requeria circunlóquios esmerados e discrição - Não teria podido fazê-lo!Edward juntou as mãos e olhou a sua família:
- Emily parecia muito pensativa, com o sobrecenho franzido.
- Sarah levantou a vista, sobressaltada. Ninguém respondeu uma palavra.
- Além de tudo -prosseguiu Edward-, está claro que alguém o fez. Parece lógico pensar que pôde ser alguém do bairro, o que não elimina a possibilidade de que se tratasse do típico criminoso que agride as pessoas na rua para roubá-la e etc. Mas nenhum ladrão que se aprecie atraca a uma criada que sai de noite, como era o caso de Lily. Está claro que não levava nada que valesse a pena roubar, pobre moça. Talvez Maddock a pretendia e ela o rechaçou para ir-se com o jovem Brody, e Maddock perdeu a cabeça. Em realidade pôde ter sido assim, por muito desagradável que nos pareça.
- Papai, como pode suspeitar dele? -saltou Sarah-. Maddock é nosso mordomo! É durante anos! Conhecemo-lo bem!
- Isso não impede que seja um ser humano, querida - replicou Edward com doçura -, e como todos está sujeito às paixões e as baixezas do coração. Temos que confrontar a verdade. Negá-la não serve de nada e tampouco ajuda a ninguém, nem sequer ao Maddock; e temos que pensar em proteger a outras pessoas, especialmente a Doura e a senhora Dunphy.
- Não sei, querida. A polícia é quem deve decidir, não nós.
- Não acredito que devamos aventurar qualquer conclusão - Era claro que Caroline não se sentia muito feliz - Mas temos que estar preparados para confrontar a verdade quando chegar o momento.
- Charlotte não pôde calar por mais tempo.
- Não sabemos qual é a verdade! Não a estrangularam, afogaram-na com um arame. Se Maddock tivesse perdido a cabeça por um momento, por que ia levar um arame em cima? Duvido que passeie com um arame para ir estrangulando mulheres!
- Querida, é possível que perdesse a cabeça antes de sair de casa – replicou seu pai com tranqüilidade. Ela nem sequer os olhava - Negar-se a aceitar as coisas não solucionará nada.
- O que terá que aceitar? - perguntou Charlotte - Que Maddock pôde ter matado Lily? É claro que pôde! Estavam na rua nesse momento. Também estava você, papai, e Dominic. Suponho que haveria um centena de homens por aí e é possível que nunca conheçamos a metade deles. Qualquer um pôde tê-la matado.
- Não diga tolices, Charlotte - cortou Edward - Não duvido que nas demais casas poderão nos dizer onde estavam seus mordomos há essa hora. Não há razão para acreditar que nenhum deles conhecesse a pobre Lily!
- Acaso Maddock conhece a criada dos Hilton? -perguntou Charlotte.
- Caroline interveio com tom apaziguador.
- Charlotte, seu comportamento está sendo muito ofensivo - Edward tinha um gesto muito severo; era evidente que queria resolver a questão - Compreendo que deseje que seja outra pessoa, alguém que não conheçamos, um vagabundo vindo de um bairro marginal, mas como você mesma explicou, a hipótese do roubo não tem solidez. Assim por agora deixemos o assunto.
- Não podem dizer que Maddock matou ao Lily e esquecer o assunto como se nada tivesse acontecido! Sabia que se estava procurando que a castigassem mas não podia sossegar sua indignação.
- Edward abriu a boca mas antes que pudesse falar Emily disse:
- Sabe, papai, Charlotte tem razão em parte. Pode ser que Maddock tenha matado Lily, embora pareça estranho que se sentisse atraído por ela. De fato seria inclusive frustrante... Mas por que ia querer matar a criada dos Hilton, ou ao Chloe Abernathy? E elas morreram antes de Lily. Não tem sentido.
- Charlotte sentiu uma onda de carinho por Emily. Esperava que ela se desse conta.
- O crime não costuma ter sentido, Emily - Edward ia corando de raiva. Estava acostumado que Charlotte o desafiasse mas que Emily o fizesse lhe parecia intolerável - Se trata de um crime brutal, um crime de paixões animais, alheio à razão.
- Pretende dizer que está louco? - Olhou a seu pai - Que Maddock está bestial, apaixonada ou irracionalmente louco?
- Não, é claro que não! - replicou ele - Não sou um perito no que a loucura criminosa se refere, e você tampouco! Mas acredito que o inspetor Pitt sim o é; trata-se de seu trabalho e ele acredita que Maddock é culpado. Agora, importar-lhes-ia não voltar a trazer à tona este assunto? falei suficientemente claro?
- Charlotte o olhou fixamente. Havia dureza em seus olhos mas lhe pareceu ver também um pouco de medo.
- Sim, papai - respondeu complacente. Costumava ser obediente, era uma espécie de hábito. Mas sua mente se rebelava, feita um formigueiro de novas idéias, de novas imagens cheias de espanto.Capítulo 5
- O malvado polícia voltou no dia seguinte. Primeiro interrogou Maddock, depois Caroline e finalmente pediu para ver Charlotte.
-
- Para que quer ver-me? -Charlotte estava cansada e aquela manhã se sentia superada pelo medo e por ter que viver a inexorável realidade da morte. Tinha começado a reagir. foi dormir pensando na tragédia e, ao despertar, tinha descoberto com horror que ainda continuava aí.
- Não sei, querida - respondeu Caroline do gonzo da porta. Manteve a porta aberta para que saísse sua filha - Mas quer ver você em concreto; suponho, que pensa que pode ajudar em algo.
- Charlotte se levantou e pôs-se a andar lentamente. Caroline a puxou pelo braço com ternura e a acompanhou à sala.
- Tome cuidado com o que diz, querida. Estamos vivendo uma terrível tragédia, não permita que isso a faça perder os papéis nem que sua avaliação pelo Maddock te impulsione a dizer algo do qual logo possa se arrepender ou que conduza a conclusões imprevisíveis. Não esqueça que é um policial. Recordará tudo o que diga e tratará de achar um significado oculto em cada coisa.
- Charlotte jamais pensou antes de falar - replicou Sarah aborrecida - Perderá os nervos e me parece compreensível. Esse Pitt é uma pessoa extremamente desagradável. Mas o menos que pode fazer Charlotte é comportar-se como uma dama e contar o menos possível.
- Emily estava sentada em frente ao piano.
- Acredito que gosta de Charlotte - disse tocando discretamente a nota mais aguda com um de seus dedos.
- Emily, este não é momento para frivolidades - a admoestou Caroline.
- Não pode deixar de pensar em temas relacionados com a vida amorosa das pessoas? Sarah a olhou fixamente.
- Emily sorriu com certa arrogância.
- Acha que os policiais são românticos, Sarah? O inspetor Pitt não tem nenhum atrativo porque é uma pessoa comum, do contrário não seria polícia, mas tem uma das vozes mais formosas que ouvi, dessas vozes que lhe envolvem calidamente. Além disso vocaliza maravilhosamente bem e sua linguagem é excelente. Suponho que trata de nos mostrar o melhor de si mesmo.
- Emily, Lily morreu e isto é muito sério - Caroline apertou os dentes.
- Sei, mamãe. Mas Pitt deve estar acostumado a essa classe de coisas e não acredito que isso o impeça de sentir algo por Charlotte - voltou-se para sua irmã e a olhou - Charlotte é muito bonita. Tenho certeza de que não lhe importa que seja uma desbocada. Está acostumado a tratar com pessoas vulgares.
- Charlotte sentiu arder o rosto. Só a idéia de que o inspetor Pitt se interessasse por ela era insuportável.
- Vigia o que diz, Emily! -ameaçou- O inspetor Pitt tem tantas possibilidades de gostar de mim como... como você de se casar com o George Ashworth. E é melhor que assim seja porque Ashworth é um jogador e um libertino - Afastou a um lado a sua mãe e se dirigiu ao vestíbulo.
- Pitt a estava aguardando na sala de espera da parte detrás.
- Bom dia, senhorita Ellison -Sorriu abertamente; em qualquer outra pessoa, aquilo teria sido muito atraente.
- Bom dia, senhor Pitt - respondeu ela com frieza - Não entendo por queOlhou-o fixamente tentando que se sentisse incômodo mas em lugar disso, por um terrível instante, pareceu-lhe detectar em seus olhos o interesse do qual Emily tinha falado. Aquilo era francamente intolerável.
- solicitou ver-me de novo, mas já que o fez, no que posso lhe ajudar?
- Não fique aí me olhando como se fosse tolo! -exclamou- O que quer? Ele deixou de sorrir.
- Parece muito aborrecida, senhorita Ellison. ocorreu algo que a incomodou? Algum acontecimento, uma simples suspeita... algo que conseguiu recordar? - Fixou seus claros e inteligentes olhos nela e esperou uma resposta.
- Entendi que suspeita de nosso mordomo - replicou com ar distante - Isso é especialmente molesto para mim; em primeiro lugar porque está tachando de assassino a alguém que vive em minha casa, e em segundo lugar porque tenho certeza de que ele não pôde fazê-lo e que o verdadeiro culpado continua livre e nas ruas. Parece-me que semelhante situação basta para justificar meu estado de ânimo.
- Antecipa as conclusões com grande agilidade mental, senhorita Ellison - Sorriu de novo - Você tem certeza de que Maddock não é culpado e estou disposto a lhe conceder isso, mas nem você nem eu temos direito a eliminar nenhum suspeito da lista até que fique provada sua inocência ou sua culpa. E para acabar, equivoca-se se pensar que porque estou investigando ao Maddock deixei que baralhar outras hipóteses.
- Não quero que me dê uma aula sobre métodos policiais, senhor Pitt - Tinha entendido a mensagem e sabia que ele tinha razão, mas isso não diminuía seu mau humor.
- Pensei que isso a tranqüilizaria.
- A que hora viu por última vez ao Maddock antes que saísse para procurar Lily?
- O que fez você aquela noite?
- Estive lendo. Que demônios tem isso que ver?
- OH! -Arqueou as sobrancelhas com interesse e logo sorriu-. O que lia?
- Charlotte se ruborizou e se sentiu muito desconfortável. Seu pai não teria aprovado sua leitura pois se tratava de temas inapropriados para uma dama.
- Isso não é assunto seu, senhor Pitt.
- Sua resposta pareceu divertir o polícia. De repente, Charlotte pensou que ele podia acreditar que se tratava de uma novela romântica ou inclusive de cartas de amor.
- Estava lendo um livro sobre a guerra da Crimea -respondeu com acrimônia.
- Os olhos de Pitt se arregalaram.
- É uma leitura pouco habitual em uma dama.
- É possível. Mas o que tem isso que ver com o Lily?
- Tenho certeza de que aproveitou essa ocasião porque seu pai não é partidário de que se interesse por um tema tão cruento e pouco feminino.
- Tampouco isso é assunto seu.
- De modo que estava sozinha, lendo. Não chamou o Maddock ou a Doura para lhes pedir algum refrigério, solicitar que avivassem a lareira ou que fechassem as portas?
- Não queria nenhum refrigério e sou perfeitamente capaz de me ocupar da lareira e das portas por mim mesma.
- Portanto, não viu o Maddock em nenhum momento?
- Por fim se deu conta do que tentava comprovar Pitt. Repreendeu-se a si mesma por não ter compreendido antes.
- De modo que, pelo que sabe, pôde ter saído em qualquer momento.
- A senhora Dunphy disse que tinha falado com ela. Maddock saiu quando viu que Lily não chegava, e decidiu ir procurar por que... porque estava preocupado.
- Isso diz. Mas a senhora Dunphy estava sozinha na cozinha. Pôde ter saído antes.
- Não, não pôde. Teria me chamado tivesse percebido sua ausência.
- Mas você estava lendo um livro que seu pai não aprovava - Olhava-a cada vez com maior interesse. Seus olhos eram francos, como se não existisse nenhum muro entre eles.
- Ele não sabia! - Mas ao dizê-lo, se deu conta de que provavelmente Maddock sabia. Tinha pego o livro do estúdio de seu pai. Maddock conhecia bem cada um dos livros e era capaz de deduzir qual faltava; além disso, conhecia-a perfeitamente. voltou-se para o Pitt desafiante.
- O inspetor simplesmente sorria.
- Bem -prosseguiu com um gesto que indicava que o livro não importava. Realmente era um homem muito desalinhado, totalmente diferente do Dominic. Parecia uma ave como a cegonha batendo as asas sem parar - Não posso imaginar que motivos podia ter para albergar um sentimento de ódio pela senhorita Abernathy - Baixou a voz - A senhorita Abernathy era amiga dela?
- Não; quase não a conhecia.
- Compreendo - disse com ar pensativo - Pelo que me disseram, não acredito que fosse seu tipo de companhia preferido. Era uma garota um pouco cabeça-de-vento, muito dada a rir e com metas um tanto frívolas, pobrezinha.
- Charlotte o olhou. Parecia falar muito a sério. Acaso apesar de seu trabalho continuava sem habituar-se à morte? Era capaz de estremecer frente a ela?
- Não era uma garota imoral - replicou ela -, simplesmente era muito jovem e um pouco amalucada.
- Ah - Fez uma espécie de careta - E não parece provável que tivesse relações com o mordomo de um vizinho. Suponho que aspirava a algo mais. Não podia pretender manter seu status social e ter uma aventura com um criado, por alto que fosse seu cargo.
- Detecto certo sarcasmo, senhor Pitt?
- Ao contrário, digo-o de coração, senhorita Ellison. Nem sempre sigo as regras que impõe a sociedade, mas sei bem como funcionam.
- Grande surpresa! -respondeu ela com cinismo.
- Não gosta do sarcasmo, senhorita Ellison?
- Ela se ruborizou de novo. Era uma boa forma de calá-la.
- Parece-me uma pessoa grosseira, senhor Pitt. Se tiver alguma pergunta em relação com a investigação, faça-a. Do contrário, permita que chame Maddock para que o acompanhe até a porta.
- Para sua surpresa, também ele se ruborizou e, por uma vez, deixou de olhá-la.
- Rogo-lhe que me desculpe, senhorita Ellison. Não pretendia ofendê-la.
- Charlotte se sentiu confusa. Pitt parecia triste, como se realmente se houvesse sentido ferido. Era culpa dela e sabia; tinha sido muito direta, mas ele não tinha perdido os papéis. Charlotte tinha abusado da vantagem que lhe dava sua posição social para dizer a última palavra. Não se sentia orgulhosa de sua estratégia; de fato era um abuso de autoridade. Tinha que emendar seu engano.
- Sinto muito, senhor Pitt. Falei-lhe com dureza. Não me ofendeu, mas me sinto chateada com... com as circunstâncias. Rogo-lhe desculpe minha falta de educação.
- Admiro seu caráter, senhorita Ellison - disse o inspetor.
- Emily tinha razão: sua voz era linda. Voltou a sentir-se incômoda porque ele a estava olhando.
- E não tema pelo Maddock. Não encontrei nenhuma prova que me permita prendê-lo e, sinceramente, não acredito que tenha nada que ver com este crime.
- Seus olhos procuraram os dele para comprovar que não estava mentindo.
- Quisera que tivesse uma pista sobre o verdadeiro culpado! – suspirou com cenho - É uma classe de assassino que não se conforma com duas ou três vítimas. Por favor, estreite a precaução e não saia sozinha à rua.
- Charlotte sentiu uma mescla de horror e vergonha... Horror ao pensar que havia um louco solto, percorrendo as ruas, li fora, atrás de suas próprias janelas, e vergonha pelo intenso sentimento que percebia nos olhos do Pitt. Era impossível que... é claro que o era! Era uma das estupidez de Emily. Pitt era um policial, uma pessoa comum. Certamente estava casado e tinha filhos. Era um homem corpulento e alto. Tomara não a olhasse daquela maneira, como se fosse capaz de ler seus pensamentos.
- Não - disse depois de um breve suspiro – Asseguro-lhe que não penso sair sozinha. Nenhuma de nós o fará. Bom, se não desejar perguntar nada mais, será melhor que continue com seu trabalho... em outra parte. Bom dia, senhor Pitt.
- Ele segurou a porta enquanto Charlotte saía.
- Bom dia, senhorita Ellison.
- Ao final da tarde, achava-se sozinha no jardim, recolhendo as rosas que desfolharam durante o dia, quando Dominic chegou e se aproximou.
- Que linda é! - Examinou as roseiras que já tinha limpado - É curioso, nunca imaginei que fosse tão... ordenada. Preocupar-se em limpar tudo é mais próprio de Sarah. Não achei que você se preocuparia com isso.
- Ela nem sequer o olhou; não queria sentir a turbadora sensação que lhe provocava achar-se de perto com seus olhos. Disse o que sentia, como de costume.
- Não o faço por beleza. Se tirarem as flores mortas, a planta já não investe mais energia nelas, não cria sementes, etc. Isso ajuda a que brotem novas flores.
- Muito prático! Isso recorda Emily - Tirou um par de flores e as jogou no cesto - O que queria Pitt? achei que já não ficavam mais pergunta por fazer.
- Não tenho certeza. Foi bastante impertinente - disse e ao ponto se arrependeu daquelas palavras. Talvez Pitt não se comportara muito amavelmente, mas ela tampouco - Deve ser sua tática, pressionar às pessoas para lhes arrancar confissões.
- Insiste muito com você, não lhe parece? - disse Dominic.Olhou as rosas por medo de que ele lesse em seus olhos. Sabia que não lhe seria difícil. Por uma vez, não sabia o que dizer.
- Ela o olhou e sua cabeça começou a virar. O costume e a familiaridade se dissiparam e foi como se acabasse de conhecê-lo e de novo se sentisse fascinada. Ria e parecia tão masculino e romântico ao mesmo tempo. por que não era ela Sarah?
- Continua com o do Maddock? - perguntou ele.
- Dominic arrancou outra rosa e a deixou no cesto.
- Realmente acredita que o pobre homem estava tão louco pelo Lily que quando ela preferiu ao Brody, seguiu-a e a matou em plena rua?
- Não, é claro que não! Não é tão estúpido... -respondeu ela.
- Parece-lhe estúpido, Charlotte? A paixão pode ter uma força incontrolável. Se ela riu em seu rosto, zombou dele...
- Maddock? Dominic! - exclamou impulsivamente - Não suspeitará dele, não é verdade?
- Seus olhos escuros estavam perplexos.
- Parece-me pouco provável -respondeu ele -, mas também me parece isso de alguém pensar em estrangular a uma mulher com um arame... e entretanto alguém o fez. Só conhecemos uma faceta do Maddock. Sempre lhe vemos como alguém correto e atento: "sim, senhor", "não, senhor". Não temos a menor idéia do que pensa ou o que sente em seu interior.
- Não sei! Mas é algo que temos que levar em conta.
- Talvez Pitt tenha que fazê-lo, mas nós não. Nós o conhecemos bem!
- Não o conhecemos, Charlotte. Pitt deve saber o que faz ou não o teriam subido a inspetor.
- Não é infalível. De qualquer modo, disse que não pensava que Maddock tivesse que ver com o crime; simplesmente quer comprovar todas as hipóteses.
- Então, se não acredita que Maddock é culpado, por que segue vindo a nos interrogar?
- Suponho que porque Lily trabalhava para nós.
- O que acontece às outras, Chloe e a criada dos Hilton?
- Bom, imagino que também irá ali. Não o perguntei.Charlotte teria querido dizer algo mais convincente, algo que tivesse recordado no último momento. Mas o único que chegava a sua mente era um amontoado de sentimentos tormentosos. Arrancou à última rosa e pegou o cesto.
- Ele ficou olhando ao chão, com o sobrecenho franzido.
- Bom, suponho que se não prenderem a ninguém, declararão o caso fechado -disse ele secamente-. Não é uma perspectiva muito tranqüilizadora mas talvez seja melhor que nada. -E pôs-se a andar para a casa.
- Charlotte o seguiu em silêncio. Seu pai, Sarah e Emily estavam na sala e ao entrar Dominic, também Caroline se endireitou, e estava no quarto do lado. Viu o cesto com as rosas.
- OH!, obrigado, Dominic - Tomou e o levou fora.
- Edward levantou a vista do jornal.
- O que lhe perguntou esse polícia pela manhã, Charlotte? - inquiriu.
- Pouca coisa - respondeu ela. De fato, a única coisa que recordava era quão mal educada tinha estado e o alívio que lhe tinha produzido saber que ele não suspeitava realmente do Maddock.
- Esteve muito tempo com ele - comentou Emily - Se não a estava interrogando, que demônios faziam?
- Emily, não seja absurda! - admoestou-a Edward - Seus comentários são de muito mau gosto. Charlotte, por favor, nos dê mais detalhes. Estamos preocupados.
- Papai, só se limitou a lhe dar voltas ao de sempre: Maddock, a hora em que saiu à rua, o que disse a senhora Dunphy. Mas reconheceu que não acredita que Maddock fosse culpado, embora pretendia investigar todas as possibilidades.
- Charlotte esperava uma reação de alegria ou ao menos de alívio; por isso a surpreendeu o silêncio que se produziu.
- Não se alegra? A polícia não suspeita do Maddock, o inspetor Pitt me confirmou isso.
- Então, de quem suspeitam? - perguntou Sarah - Ou acaso não lhe disse isso?
- É claro que não o disse! - exclamou Edward aborrecido - Me surpreende que lhe tenha contado tantas coisas. Tem certeza de havê-lo entendido bem? Não será que ouviu o que queria ouvir?
- Parecia que não desejavam acreditar nela.
- Não, não me equivoquei. Disse-o de forma muito clara.
- O que disse exatamente? -perguntou Caroline com serenidade.
- Não recordo suas palavras exatas mas sei que não o entendi mal, estou absolutamente segura.
- Grande alívio! - afirmou Sarah deixando a um lado seu trabalho. Costurava muito bem; Charlotte tinha invejado sua habilidade desde que tinha uso de razão - Agora é possível que a polícia deixe de nos importunar.
- Para que, se já não suspeitam do Maddock?
- Para ver Charlotte, é claro. O inspetor Pitt é um grande admirador de Charlotte.
- Edward lançou um forte suspiro.
- Emily, este não é bom momento para suas frivolidades. E muito menos para fantasiar que um policial possa ter algo que ver conosco. Não duvido que muitos homens de classe baixa se sintam atraídos por mulheres de uma categoria superior à sua, mas têm a suficiente inteligência para não permitir que se note.
- Mas a polícia não tem por que voltar; não existe uma razão de peso - insistiu Sarah.
- Têm a razão de maior peso - Emily não era fácil de dobrar - O crime vai e vem mas o amor permanece.
- Alguns amores permanecem -acrescentou Dominic com um risinho.
- Bom, evidentemente o assassino pertence à outra classe social – disse Sarah, sem fazer caso a nenhum dos dois - Não sei como puderam duvidar disso. Parece-me claro.
- Não -replicou Charlotte-. Não o é!
- Por que não o é, querida?
- Não é claro que se trate de um assassino de outra classe social. Eles só matam se não puderem evitá-lo, para escapar da polícia ou por vingança. Só agridem a pessoas que não conhecem para roubá-las. Não roubaram Lily, equivoco-me?
- Charlotte era consciente de que todos a observavam.
- O inspetor Pitt me explicou isso. E me parece razoável.
- Não entendo por que os assassinos têm que ser razoáveis – comentou Sarah com impaciência - Terá sido algum louco, algum relaxado que não sabia o que fazia - estremeceu.
- Pobre diabo! - Dominic o disse com sentimento e Charlotte se surpreendeu. por que sentia compaixão por alguém que tinha assassinado cruelmente três pessoas?
- Melhor guardar sua piedade para Lily, Chloe e a criada dos Hilton - apontou Edward um tanto aborrecido.
- Por quê? Estão mortas. Em troca, esse pobre homem continua vivo, ou pelo menos não há motivo para pensar o contrário.
- Basta já! - replicou Edward com cenho -. vai assustar as meninas!
- Dominic voltou a olhar a todos.
- Sinto muito. Embora acredite que em casos assim, o medo pode salvar vidas - voltou-se para Charlotte - De modo que Pitt não acredita que possa tratar-se de um louco dos baixos recursos. O que acha?
- Só havia uma conclusão possível. Charlotte tratou de aparentar calma, apesar de a voz lhe tremer ligeiramente quando disse:
- Deve pensar que se trata de alguém que vive aqui, em algum lugar perto do Cater Street.
- Isso é absurdo! - Edward estava escandalizado - vivi aqui toda minha vida. Conheço todos os que vivem em um raio de... de quilômetros. Nesta vizinhança. Não há nenhum louco assassino. Céu santo! Acaso não se dá conta de que se o houvesse o conheceríamos? Uma criatura semelhante dificilmente poderia passar inadvertida. Não é possível que pareça uma pessoa normal.
- Não? - Charlotte olhou a seu pai e depois a Dominic.O que faria ela se amasse a alguém assim? Se, se tratasse do Dominic, acaso não tentaria encobri-lo? Acaso não morreria por ele, se fosse necessário? Que idéia tão monstruosa! Acaso alguém parecido ao Dominic poderia deixar-se arrastar por uma violência tão obscena que lhe levasse a vagar pelas ruas escuras com a intenção de assassinar e semear o pânico?Outros continuavam falando. Ela não tinha ouvido nada. por que tinham aceitado tão facilmente que pudesse ter sido Maddock? Parecia como se tivessem vontade de achar uma rápida solução ao enigma, fosse quem fosse. Era uma idéia terrível, mas ela podia entendê-la. Isso acabaria com as suspeitas. Enfrentar-se a um fato era melhor que enfrentar - uma interrogação, sabendo que o assassino continuava ali fora, à espreita. Qualquer solução era melhor que a dúvida, melhor que ter à polícia interrogando todo mundo. Podia entender, mas ao mesmo tempo se sentia envergonhada deles e de si mesmo, por calar e expor a um inocente. De algum jeito estava ajudando a que todos se defraudassem a si mesmos.Emily não pensava de igual maneira. No dia seguinte, o problema se reduziu tanto que já só o considerava uma simples perturbação que se resolveria cedo ou tarde. É claro que sentia muito por Lily, mas já não podia fazer nada por ela e a tristeza não lhe faria nenhum bem. Emily nunca tinha entendido os duelos. Sempre lhe tinha surpreendido que fossem as pessoas mais piedosas quem mais se lamentava por uma morte quando, em estrita lógica, deviam ser as que mais se alegrassem. NO fim de contas, achavam no céu e no inferno. Provavelmente o duelo era um dos piores insultos para um morto. Era como pressupor que não ia muito bem ante o Todo-poderoso.De modo que o melhor era esquecer tudo aquilo, salvo o pequeno detalhe de dar com o assassino. Isso era assunto da polícia. O que sua família e ela tinham que fazer era ir com cuidado para não tropeçar com esse louco estrangulador.Passaram vários dias sem que a polícia voltasse a interrogá-los. Ao que parecia estavam ocupados visitando outros lugares, provavelmente relacionados com as outras mortes. Supunham que teriam ido falar com os Abernathy e os Hilton. O assunto não voltou a tocar-se abertamente apesar de que todos, em um momento ou outro, diziam algo em relação ao caso. tratava-se, quase sempre, de amostras de alívio pelo fato de que a polícia se transladara, com suas suspeitas e sua ameaça de escândalo, a outro lugar. Outro dos sentimentos que aflorava freqüentemente era o de inquietação com respeito ao futuro. perguntava-se onde podia estar o assassino e se era certo que vivia na vizinhança. tratar-se-ia de um criado ou algum comerciante?Ashworth foi procurá-la em sua carruagem e antes de partir desceu para apresentar seus respeitos à família. Seus pais o saudaram educadamente, mas Charlotte, como de costume, não ocultou seus sentimentos.
- Emily conseguiu toda a informação que procurava e comprou um bonito vestido lilás claro, com um fino cós prateado. Tinha muito bom aspecto: sua pele reluzia bastante mais que a da velha senhorita Madison, e seus olhos eram mais brilhantes. Sua tez tinha um tom perfeito, nem muito claro nem muito escuro, e conseguiu fazer um elegante penteado.
- Havia questões mais importantes que resolver. Por exemplo, averiguar o que iam vestir as pessoas na festa do senhor Major e a senhora Winter, a que pensava ir com George Ashworth. Se levasse o mesmo vestido que outra pessoa seria uma falha imperdoável. Preferia impor modas em lugar de segui-las, mas devia tomar cuidado de não parecer muito excêntrica. Surrupiaria às irmãs Madison e à senhorita Decker, é claro sem que se dessem conta.
- Lily tinha sido uma garota vulgar, mas nada fazia supor que ganhara a condenação eterna, de modo que era de esperar que estivesse em um lugar mais confortável. Seus pecados não podiam ter sido muito graves e provavelmente se considerariam purgados pela forma em que morreu.
- A conversa seguia seu curso mas ela não tinha humor para participar.
- Que classe de homem poderia ser? Charlotte só podia imaginá-lo escuro, envolvido em uma espécie de névoa. Lily teria visto seu rosto? O teria visto cada uma de suas vítimas? Se ela pudesse vê-lo, seria um rosto conhecido? Um pesadelo desconhecido ou familiar?
- Quanto de verdade podia ler-se no rosto de uma pessoa? Acaso algum dos pressentes podia suspeitar a força dos sentimentos que ela mesma albergava? Deus quisesse que não! Além disso, se uma pessoa semelhante tivesse que saltar à vista, por que não a tinham encontrado ainda? Alguém tinha que conviver com ele... sua família, sua mulher, seus amigos. O que pensariam se soubessem? É possível reconhecer a alguém assim e conservar o segredo? O mais provável era que seus conhecidos se negassem a aceitá-lo e fechassem os olhos à evidência.
- Acredito que sua irmã Charlotte não gosta de mim – comentou Ashworth assim que ficaram sós - É uma jovem muito formosa.
- Emily sabia que não tinha que preocupar-se por Charlotte, mas decidiu não dar muita confiança ao Ashworth. Era provável que lhe fascinasse mais a caça que a presa.
- Sim o é – admitiu - E não é o único que se deu conta.
- Estranharia que não fosse assim - Olhou-a com um sorriso nos lábios - Refere a alguém em concreto? Conte-me, eu adoro as fofocas!
- Nosso querido inspetor de polícia parece muito interessado em falar com ela... embora Charlotte se chateia bastante! - Riu abertamente.
- E conhecendo-o, não terá deixado passar a oportunidade de comentá-lo em público. Pobre Charlotte! Ter um admirador polícia não é precisamente adulador.
- Uma vez na festa, tudo saiu como Emily tinha planejado. Durante as duas primeiras horas, tudo foi maravilhosamente, mas ao cabo de um momento se deu conta de que Ashworth prestava muita atenção a seus companheiros de bebida e de jogo e também a uma tal Hetty Gosfield, uma jovenzinha de encantos discretos mas de família muito influente e, ainda pior, com dinheiro! Emily sabia que Ashworth se sentia facilmente atraído pelas mulheres bonitas e também sabia que teria que ganhá-lo a pulso. Essa tal Gosfield começava a ser uma séria competidora.Emily suspirou. O último que lhe convinha fazer era organizar uma cena. Ashworth odiava qualquer comportamento vulgar, com a única exceção do seu próprio. Tinha que achar uma forma mais sutil de reagir e fazer ficar mal a essa Gosfield. Demorou um momento em conceber seu plano porque sua atenção estava repartida em três frentes: manter uma conversa com o senhor Decker sem dizer nenhuma tolice, controlar seu mau humor e organizar sua estratégia.
- Por fim, ficou em marcha com decisão. Conhecia um dos amigos do Ashworth, o honorável William Foxworthy, um cabeça vazia que tinha mais dinheiro que bom gosto e muita necessidade de ostentação. Não lhe foi difícil chamar sua atenção. Estava sentado a uma das mesas de jogo, apostando nas cartas. Emily viu como a olhava e esperou que ganhasse uma partida.
- Emily observou como Ashworth lhe sorria do outro extremo da sala e Hetty ria alegremente a modo de resposta. Um quarto de hora depois, continuavam no mesmo.
- Magnífico, senhor Foxworthy! – aplaudiu - É muito bom. Nunca conheci a ninguém mais inteligente salvo lorde Ashworth, claro está.
- Ele levantou a vista com cenho.
- Ashworth! Acredita que é mais preparado que eu?
- Só jogando às cartas. Não duvido que lhe superam em todo o resto.
- Não sei em outras coisas, mas lhe asseguro que sou muito melhor que ele jogando cartas.
- Emily o olhou amavelmente mas dando a entender que não acreditava em suas palavras.
- O demonstrarei! -levantou-se com o baralho nas mãos.
- OH, rogo-o, não se incomode - disse ela. Seu plano funcionava perfeitamente-. Estou segura de que é você muito bom.
- Não sei se sou muito bom, senhorita Ellison - Estava muito tenso, com o orgulho ferido - Isso não estabelece nenhum tipo de comparação. Eu o que sou é melhor que Ashworth e o demonstrarei.
- OH, por favor. Não pretendia entorpecer sua partida - protestou Emily com um tom de cepticismo na voz.
- Quer que lhe seja sincera?
- Então não fica mais opção que vencer ao Ashworth! Isso a convencerá. - dirigiu-se até onde se achava Ashworth conversando com o Hetty Gosfield.
- OH, por favor! - lamentou-se Emily, e não o seguiu mais que uns passos. Não devia parecer que ela tinha organizado tudo aquilo, ou não conseguiria seu objetivo.Por fim, Emily voltou a achar-se em companhia do Ashworth.
- Tudo saiu como foi pedido. Foxworthy interrompeu o estreito tête-à-tête solicitando provar sua superioridade, e Ashworth não pôde resistir. Hetty Gosfield ficou boquiaberta e finalmente, com expressão ofendida, partiu com outro jovem.
- Ganhei-lhe - anunciou ele com satisfação.
- É claro - Emily sorria. Ashworth não tinha compreendido que todo o assunto tinha pouco que ver com sua perícia com as cartas - Sabia que o faria.
- Não suporto a vulgaridade - perorou ele com tom solene - É intolerável que um homem se dedique a alardear de suas habilidades.Emily não fez balanço da noite até que esteve de volta em casa, deitada na cama, olhando no teto as sombras projetadas pelas luzes da rua. Continuava querendo casar-se com o George Ashworth, mas agora sabia que tinha uma série de defeitos; ela tinha que decidir quais valeria à pena mudar e com quais era melhor aprender a viver, quer dizer, a quais deveria adaptar-se. Talvez esperar que um homem rico e de boa posição fosse fiel era muito pedir, mas sem dúvida podia lhe exigir que fosse discreto com suas aventuras. Não tinha que dar motivos para que ela se sentisse desconfortável em público. Quando chegasse o momento, expor este ponto com clareza.Ficou adormecida pensando nos pormenores do pacto.
- Na terça-feira seguinte, foi com Sarah a casa do vigário e a senhora Prebble para tomar o chá e falar sobre a tômbola que pensava organizar a igreja.
- Por outro lado, podia gastar seu dinheiro como facilmente quisesse, sempre e quando não arriscasse o que ela considerava o mínimo imprescindível, quer dizer, a manutenção da casa, o salário do serviço, a carruagem e uns bons cavalos e suficiente pressuposto para vestidos, como convém a uma dama.
- Emily assentiu de novo mas se disse, para si mesma, que era mais intolerável ainda que o fizesse uma mulher; isso ditavam as regras da sociedade e as conhecia suficientemente bem para segui-las com convicção. Sabia perfeitamente que ninguém podia rompê-las e ganhar a partida.
- O que acontecerá se não fizer bom tempo? -perguntou Sarah.
- Terá que confiar no Senhor - respondeu o vigário – Setembro costuma ser um dos meses mais agradáveis do ano. Embora chova, não fará frio. Acredito que nossos fiéis paroquianos suportariam com estoicismo um aguaceiro.
- Emily tinha sérias dúvidas a respeito e se alegrava de que Charlotte não estivesse presente para expressar sua opinião.
- Não é possível fazê-lo coberto, em caso de mau tempo? – perguntou - Não é justo pensar que o Senhor nos favorecerá mais que a outros.
- Mais que a outros, senhorita Ellison? - O vigário arqueou as sobrancelhas - Receio que não a entendo.
- Bom, pode ser que outras pessoas necessitem que chova – explicou – Os granjeiros, por exemplo.
- O vigário a olhou com cenho:
- Nós trabalhamos em nome do Senhor, senhorita Ellison.
- Não havia forma de responder sem ser descortês.
- Não acredito que seja complicado pedir umas tendas emprestadas - apontou Martha pensativa - Acredito que no Sr. Peter têm algumas. Estarão encantados de nos poder emprestar
- Será um acontecimento - comentou Sarah - A gente ficará seus melhores ornamentos.
- É uma tômbola para a igreja, senhorita Ellison, para reunir dinheiro para os pobres, não um traje de gala para que as mulheres vistam - admoestou o vigário mostrando seu descontentamento.
- Sarah se ruborizou e Emily a defendeu com palavras dignas de Charlotte.
- Sem dúvida para assistir a uma reunião em honra do Senhor, alguém deve vestir o melhor que possa, não é assim, senhor vigário? -expôs com certa crueldade-. Isso não impede que a gente se comporte decorosamente. É o que ocorre na igreja. Suponho que não pretende que a gente vá à missa totalmente desalinhada?
- No rosto do Martha apareceu fugazmente uma curiosa expressão, mescla de triunfo e medo, com um toque de humor, mas se esfumou sem que ninguém o percebesse.
- É certo, senhorita Ellison -concedeu o vigário muito pio-. Esperemos que todo mundo tenha um sentido do dever e a correção tão desenvolvido como o seu. É um exemplo.
- Esperemos também que a gente se divirta -acrescentou Martha-. Além de tudo, não se sentirão muito dadivosos se aborrecerem.
- Não somos um centro de entretenimento -observou o vigário com expressão compungida.
- Emily não podia imaginar nada menos divertido que o rosto do vigário com seu habitual gesto aflito.
- Tenho certeza de que podemos fazer felizes a outros -observou Emily com certa malícia- sem nos parecer remotamente a um centro de entretenimento. -Parecia como se Charlotte lhe apontasse ao ouvido-. De fato, o saber que estamos servindo ao Senhor deveria ser causa de alegria.
- O vigário não soube se era um sarcasmo; o rosto do Emily não refletia nada. Mas viu de soslaio Martha com um sorriso nos lábios, e se perguntou se a sua mulher teria gostado de dizer o mesmo.
- Sinto lhe dizer que você não conhece bem o mundo -começou o vigário com ar admonitório-, como de fato corresponde a sua condição de mulher. De qualquer modo, dir-lhe-ei que a gente não é tão feliz servindo ao Senhor como deveria ser. Se isso se emendasse, o mundo seria um lugar mais habitável em lugar do vale de lágrimas e de pecado que é. É uma pena comprovar quão débil é a carne, embora o espírito queira guiá-la com retidão.De volta a casa, ambas caminharam em silêncio. Quando faltava pouco para chegar, Sarah fechou um pouco mais seu xale.
- Tampouco havia forma de responder a aquele sermão. Emily decidiu passar a falar das questões práticas, algo que lhe dava muito bem embora não a interessasse absolutamente. Mas era justo que se encarregasse ela e não Sarah.
- Faz mais frio de que esperava -disse com um ligeiro tremor-. Parecia que ia fazer mais calor.
- Está cansada. -Emily tentou achar uma explicação-. Trabalhou muito neste... assunto. -Decidiu omitir o adjetivo que lhe tinha vindo à mente.
- Não posso permitir que a pobre senhora Prebble o organize tudo. Não tem idéia de quanto trabalha essa mulher! -Sarah apertou o passo.
- Tinha razão: Emily não imaginava no que ocupava Martha Prebble todo seu tempo. E mais, não lhe interessava absolutamente.
- Consegue dinheiro para a igreja, visita os doentes e os pobres, dirige o orfanato. Quem acha que organizou o encontro do mês passado? Quem acha que mantém a velha senhora Janner? Não tem família e é mais pobre que um rato.
- A senhora Prebble faz tudo isso?
- Sim, às vezes a ajudam outras pessoas, mas só quando querem ou vai bem ou quando acreditam que alguém as vão felicitar por isso.
- Acredito que é por isso que mamãe suporta suas manias um tanto estranhas, e as do vigário. Reconheço que às vezes são bastante pesados, mas não deve esquecer que realizam um magnífico trabalho.
- Caroline também pensava no vigário e no Martha Prebble, mas com menos ternura. Fazia muito tempo que conhecia o trabalho do Martha com os órfãos e isso já não a impressionava tanto. Também era consciente da solidão de uma mulher que não tinha tido filhos e que se via obrigada, pela família e circunstâncias, a trabalhar pelos outros. Era um trabalho anônimo, poucas vezes agradecido. Mas cada vez que tinha que passar um momento com ela e com o vigário, desejava não ter que voltar a fazê-lo em muito tempo.
- Emily ficou olhando com desconcerto. A pesar do desdém que sentia pelo vigário, e por derivação também pela própria Martha, compreendeu que mereciam um respeito por tudo o que acabava de lhe contar sua irmã. As pessoas podem ter virtudes ocultas.
- É uma garota muito valiosa -comentou a avó-. Um bom exemplo para o resto da paróquia. É uma pena que não haja muitas como ela. Deve estar orgulhosa de Sarah. Saiu-se muito bem.
- Para Caroline parecia que falava de Sarah como se fosse um bolo ou um pudim, mas sabia que a avó não permitiria que se fizesse nenhum comentário jocoso a sua custa.
- Sim -assentiu Caroline, sem afastar a vista de seu trabalho. Havia mais roupa de casa que cerzir do que pensava. Fazia muito tempo que não lhes faltava uma faxineira, de fato desde as bodas de Sarah.
- É uma pena que Charlotte não vá pelo mesmo caminho -continuou a avó-. Não sei como conseguirão casá-la. Nem sequer o tenta!
- Caroline voltou para enfiar a agulha. Ela sabia por que Charlotte não tentava conseguir noivo, mas isso não era assunto da avó.
- Sem dúvida tem interesses diferentes dos do Emily -disse com de modo vago. -E usa outras táticas. Mas não vejo por que teriam que ser iguais.
- Deveria falar com ela -insistiu a avó-. Abra-lhe os olhos! O que vai ser dela se não se casar? Já pensou nisso?
- Sim, avó. Mas assustá-la não servirá de nada. Se não se casar, igualmente conseguirá sobreviver. É melhor ficar solteira que casar-se com alguém de má reputação ou mau viver ou que não possa mantê-la como merece.
- Caroline -prosseguiu a avó irritada-, seu dever de mãe é velar para que nada disso ocorra! E também que esta casa esteja bem organizada. Quando pensa contratar a outra faxineira?
- Comecei a perguntar por aí e a senhora Dunphy já entrevistou a duas moças, mas não eram boas.
- Uma era muito jovem e não tinha experiência; a outra tinha uma reputação pouco adequada.
- Talvez se tivesse vigiado ao Lily um pouco mais de perto, não a teriam matado. Estas coisas não ocorrem nas casas bem organizadas.
- Não ocorreu na casa! -Caroline não pôde conter-se-. Ocorreu no Cater Street. E é uma irresponsabilidade sugerir, embora seja de forma indireta, que Lily buscou seu próprio final ou que era uma jovem imoral. Não permitirei que se afirme nada parecido sob meu teto!
- Está bem! -A avó ficou de pé com as mãos tensas e o rosto congestionado-. Agora entendo por que Charlotte não é capaz de manter a boca fechada e por que Emily perde a cabeça por esse vagabundo, só porque tem um título. Converter-se-á em uma desgraçada e a culpa será sua. Quando Edward se casou com você adverti-o que cometia um grave engano mas, é claro, estava apaixonado por você e não me escutou. Agora Charlotte e Emily pagarão por isso. Depois não venha me dizer que não a avisei!
- Não me ocorreria, avó. Quer que lhe leve o jantar a seu quarto ou terá se recuperado o suficiente para descer à sala de jantar?
- Não estou doente, Caroline. Simplesmente estou decepcionada, embora não surpreendida.
- Alguém se pode recuperar de uma decepção assim como de uma enfermidade -apontou Caroline com um risinho.
- Carece de modéstia, Caroline, e de feminilidade. Por isso Charlotte é tão desbocada. Se tivesse sido minha filha, teria educado-a para que fosse uma dama.Caroline suspirou. Já havia suficientes problemas e coisas que fazer para que a avó ficasse a dar vozes como uma cantora de ópera. De qualquer modo, seria melhor que se fosse acostumando. O que mais lhe doía era que criticasse Charlotte. O comentário sobre Lily era desafortunado em um sentido mais grave.Edward interrompeu o fio de seus pensamentos.
- Que ripo de pessoa mataria a uma jovem pobre e indefesa como Lily Mitchell? Só um louco. Um louco saído dos bairros pobres ou um louco que tinha aspecto normal e se transformava de noite, ao ver uma jovem solitária na rua. Poderia tratar-se de algum conhecido?
- Partiu dando uma portada, sem que Caroline tivesse tempo de replicar.
- Boa noite, querida. -Beijou-a na face-. Teve um bom dia? -
- Olhou a roupa de casa e franziu o sobrecenho-. Continua sem ter substituta para o Lily? Pensava que hoje ia entrevistar um par de candidatas.
- Onde estão as meninas? E mamãe? -sentou-se e ficou confortável.
- Quer uma taça antes de jantar?
- Não, obrigado. Venho do clube.
- Já me parecia que chegava um pouco tarde - disse olhando o relógio.
- Onde estão? -repetiu ele.
- Sarah e Dominic foram jantar a casa dos Lessing...
- Os Lessing, o sacristão e sua família.
- Emily saiu com o George Ashworth. Queria que falasse com ela, Edward, não me faz conta.
- Receio, querida, que terá de aprender com seu erro. Duvido que escute a alguém. Poderia proibir, é claro, mas não podemos evitar que se vejam em reuniões sociais e isso lhe daria um toque mais romântico ao assunto, o que impulsionaria ainda mais Emily. N fim de contas, seria contraproducente.
- Caroline sorriu. Não esperava que seu marido tivesse uma percepção tão sutil. Ela tinha feito o comentário para justificar que, como mãe, tinha-o tentado.
- É certo - concordou-. Certamente com o tempo ela mesma se dará conta.
- Charlotte está jantando com o Uttley e a avó está em seu quarto, um pouco zangada porque não lhe permito que afirme que Lily era uma imoral.
- Não, não devemos dizê-lo, embora temo que pudesse ser certo.
- Por quê? Porque a mataram? Se isso acha, como explica sobre Chloe Abernathy?
- Querida, existem muitas coisas neste mundo que não conhece e é melhor que assim seja. Mas é mais que provável que Chloe procurasse sua própria ruína. Por desgraça - vacilou-, inclusive as moças de boa família mantêm relações, aventuras... E nunca se sabe, despertam ciúmes, desejos de vingança. Coisas de que vale mais não falar. Uma semana depois, Caroline conseguiu por fim contratar a uma nova criada para substituir Lily. Não tinha sido uma tarefa fácil, pois apesar de serem muitas as garotas que procuravam trabalho, as quase todas faltava experiência ou boas referências, e algumas arrastavam uma reputação pouco recomendável. Além disso, como todo mundo estava à corrente das circunstâncias da morte do Lily, a oferta de emprego tentava a poucas moças decentes.Millie era uma jovem de dezesseis anos bastante agradável. Parecia atenta e serviçal e suficientemente limpa e ordenada. Não tinha muita experiência se tratava de seu segundo trabalho-, mas isso podia ser uma vantagem. Ao carecer de hábitos adquiridos, seria mais simples lhe ensinar e adequá-la ao tipo de serviço que se requeria em sua nova casa. E o que era mais importante, à senhora Dunphy gostara dela à primeira vista.
- Na quarta-feira pela manhã Millie bateu na porta da sala.
- Por fim se chegou à conclusão de que Millie Simpkins era o melhor que iriam conseguir e que a casa não podia continuar com uma empregada de menos. Temiam que a senhora Dunphy se sentisse superada pelo excesso de trabalho e aproveitasse a desculpa para despedir-se.
- Capítulo 6
- Caroline teve que contentar-se com isso apesar de que não foi capaz de acreditar com convicção nem de descartar por completo.
- Adiante -respondeu Caroline.
- Millie entrou com um casaco e fez uma pequena reverência um pouco ridícula.
- Desculpe senhora, mas este casaco está bastante rasgado. Não sei como costurá-lo. Peço-lhe perdão, senhora.
- Caroline o pegou e o estendeu para inspecioná-lo. Tratava-se de um dos casacos de Edward, um muito elegante com gola de veludo. Demorou um momento em achar o rasgão. Finalmente o viu em uma das mangas, na parte interior, perto da costura da axila. Como podia alguém enganchar-se em semelhante lugar? Separou os dois farrapos com os dedos para inspecioná-lo. Parecia como se uma garra afiada tivesse esmigalhado a malha uns cinco centímetros.
- Não se preocupe Millie - comentou Caroline-. Verei o que posso fazer mas é possível que tenhamos que enviá-lo a alfaiate para que troque toda a manga.
- Sim, senhora. -Millie relaxou um pouco, mas continuava nervosa.
- Fez o correto ao me comentar isso Agora, vá e te se da roupa da casa, que é mais simples. Acho que também há umas anáguas rasgadas de Emily.
- Sim, senhora. -Fez outra curiosa reverência-. Obrigada, senhora.Demorou quase toda à tarde em repará-lo. Tinha tirado fios das costuras para que não se notasse o remendo, mas mesmo assim não estava satisfeita com o resultado. Edward chegou à casa bastante cedo e Caroline lhe disse ao vê-lo:
- Quando ficou sozinha, Caroline voltou a dar uma olhada ao casaco. Não recordava que Edward pusera essa roupa em muito tempo, provavelmente semanas. Em que ocasião o teria rasgado? Era evidente que não podia voltá-lo a utilizar assim. Por que não lhe tinha pedido que o costurasse em seu momento? Era impossível que não se desse conta. Era um dos casacos que mais gostava de levar quando ia ao clube. De fato, o tinha posto a noite... À noite em que mataram Lily. Recordava perfeitamente sua chegada e quão indignado estava com a Charlotte por ter chamado à polícia. Voltou a reviver a cena: o lampião de gás da parede tremia um pouco e lançava um feixe amarelado sobre o veludo vinho do casaco. Todos estavam muito assustados e zangados para pensar em roupa. Talvez por isso Edward tivesse esquecido comentar-lhe.
- Receio que se nota um pouco. -Mostrou-lhe o traje. - Mas só se vê quando lhe bate a luz, algo que não tem porque ocorrer freqüentemente pois está na parte interior da manga. Como demônios fez para rasgá-lo?
- Ele franziu o sobrecenho e olhou para outro lado.
- Não o recordo. Deve ter ocorrido há séculos.
- Por que não me comentou isso na hora? Podia tê-lo remendado assim como o fiz agora. Bom, em realidade teria sido melhor ainda porque o teria costurado Lily. Fazia muito bem estas coisas.
- É provável que ocorresse depois da morte do Lily e suponho que já tinha suficientes coisas que atender com uma criada a menos, sem ter que se ocupar deste casaco. Além de tudo, tenho muitos casacos.
- Não tornou a usá-lo desde a noite em que morreu Lily - insistiu ela sem saber por que.
- Bom, talvez essa fosse à última vez que o usei. Isso explica tudo. Um casaco carecia de importância ante o desaparecimento de Lily e da presença da polícia na casa.
- Sim, é claro. -Dobrou o casaco com a intenção de pedir à Millie que o subisse ao armário-. Como ocorreu?
- Pois não o recordo, querida. Tem importância?
- Pensava que aquela noite tinha estado no clube e que por isso tinha chegado tão tarde.
- Assim foi. -Seu tom adquiriu certa brutalidade-. Sinto que a nova criada não saiba arrumá-lo mas, querida, não é tão importante. Não queria passar a tarde falando desta coisa sem importância.
- Caroline pegou o casaco e abriu a porta.
- Não, claro que não. Simplesmente queria saber como se rasgou. É um rasgão tão largo... -E se dirigiu ao vestíbulo para chamar Millie. O melhor seria que a jovem o engomasse para lhe tirar as rugas que se formaram.Dominic conseguiu alterar a paz mental de Caroline e a imergiu em uma confusão difícil de controlar quando, dois dias depois, apareceu com o dedo indicador aparecendo por um buraco do bolso do colete. Como fez isso? -disse tomando o colete para examiná-lo.
- Afundei muito a mão - sorriu-. Que coisa tão tola, não é? Acredita que poderia arrumá-lo? Vi quão bem ficou o remendo do casaco do Edward.
- Caroline se sentia que os elogia damas achava que poderia ter ficado ainda melhor.
- Penso que poderei fazer algo. Tentá-lo-ei esta tarde.
- Conseguiu-se arrumar o do Edward, tenho certeza de que não terá problema com este.
- Quando Dominic se dispunha a partir, ao Caroline assaltou uma dúvida.
- Quando viu que o casaco do Edward estava rasgado?
- Dominic franziu o sobrecenho ligeiramente.
- Na noite em que mataram Lily.
- Grande capacidade de observação! Com toda a confusão que se organizara era difícil dar-se conta de algo assim. Ou é que o notou no clube? Ali foi onde se enganchou.
- Eu estava no clube, mas Edward partiu muito cedo e, quando se foi, o casaco não estava rasgado. Recordo-o perfeitamente. Belton, o porteiro, deu-lhe seu chapéu e sua bengala. Se estivesse rasgado, Belton se teria dado conta. Não lhe escapa nada.
- Talvez se confunda com outra noite.
- Não; nessa noite jantei com Reggie Hafft. Deixou-me ao início do Cater Street e andei o trecho que faltava. Vi o Edward chegar no outro extremo do Cater e o chamei, mas não me ouviu. Entrou em casa um pouco antes de mim.
- OH! -exclamou Caroline, muito surpreendida para pensar com clareza.Não voltaram a ver-se a sós até o momento de deitar-se. Caroline estava sentada em um tamborete, frente na penteadeira, escovando o cabelo. Edward saía do quarto de vestir.
- Edward lhe tinha mentido. Era uma mentira sem importância salvo porque tinha que ver com... com a noite em que mataram ao Lily. por que não lhe tinha contado a verdade? Tinha algo que ocultar, algo do que se envergonhava? O que estava pensando? Era absurdo! Certamente tinha visitado algum amigo e tinha esquecido. Era isso. Sem dúvida tudo tinha uma explicação perfeitamente lógica e ela fazia mal ao desconfiar de seu marido sequer por um momento.
- A quem foi visitar na noite em que morreu Lily? -perguntou com fingida indiferença.
- Viu seu rosto refletido no espelho, com o sobrecenho franzido.
- Repetiu a pergunta com nervosismo, evitando que seu olhar se cruzasse com o dele.
- A ninguém - respondeu ele-. Já lhe disse isso, Caroline, estive no clube! E logo vim diretamente a casa. Não entendo por que continua dando voltas a este assunto. Suponho que não imaginará que estive vagando pelo Cater, perseguindo a minha própria criada! -Parecia muito zangado.
- Não, é claro que não - respondeu ela com calma-. Não seja ridículo! - Sorriu.Edward continuava zangado e calado. Caroline pensou em lhe pedir perdão, mas no fundo sabia que não deixaria de questionar-se sobre o tema, que a preocupação surgiria de novo, antes ou depois, e que qualquer tento de pedir perdão não seria, no fundo, genuíno. Meteram-se na cama sem trocar palavra.Por que não se tirava essa idéia da cabeça? Conhecia bem ao Edward e sabia que, apesar de mentir com respeito a sua volta, era impossível que tivesse que ver com o ocorrido aquela noite no Cater Street. Estava convencida disso. Mas sem dúvida tinha feito algo que queria lhe ocultar. O que podia ser? Certamente nada bom, pois do contrário lhe haveria dito com quem tinha estado embora preferisse guardar os motivos. De onde podia vir para chegar pelo extremo oposto do Cater? Que lugar tinha visitado que o obrigava a mentir?Dormiu sentindo-se dolorosamente infeliz.Caroline se levantou com uma ligeira dor de cabeça e sentindo-se deprimida. Estava frente ao armário da roupa de casa, comprovando o trabalho do Millie, quando se aproximou Doura para anunciar que o inspetor Pitt perguntava se podia vê-la.
- Com o pulso acelerado e a boca seca, Caroline contemplou a pilha de capas de travesseiros que havia junto a ela. Era possível que Pitt tivesse ido ao clube e tivesse descoberto a mentira do Edward? Ele não podia ter matado ao Lily mas tinha algo que esconder, e ela devia tentar protegê-lo. Se pelo menos conhecesse a verdade!
- O dia seguinte foi surpreendente e exaustivo.
- Pensou em sua vida cotidiana, as coisas que Edward fazia diariamente, as pessoas que conhecia, os lugares que freqüentava. Mas quanto mais pensava nisso mais se dava conta do pouco que conhecia seu marido. Quando estava em casa podia saber o que ia dizer, como ia reagir frente a um fato, de quem ia gostar e quem o ia desgostar. Mas quando ia à cidade se perdia em um mundo diferente, abria outra parte de sua vida da qual ela desconhecia tudo, salvo o que lhe contasse.
- Edward parecia descansar placidamente e respirava com ritmo regular. Caroline não sabia se dormia, tentava-o ou fingia para evitar mais perguntas.
- Edward empalideceu e em seu rosto apareceu uma expressão de indignação que Caroline conhecia muito bem. Tinha-o ofendido muito que usasse o termo "ridículo" ou só o fingia para evitar contar a verdade ou somar uma nova mentira? Mas por que se fazia essas perguntas? estava-se preocupando desnecessariamente; estava cansada de tanta tensão e isso a fazia chegar a desvairar. O melhor era esquecer o assunto e ir dormir.
- Senhora? -Doura seguia esperando.
- Sim, Doura. diga-lhe que me reunirei com ele em cinco minutos. Faça-o entrar à sala de estar.
- Quando Caroline chegou , Pitt estava olhando através da janela. Voltou-se para saudá-la.
- Bom dia, senhora Ellison. Sinto incomodá-la de novo mas tenho que comprovar uns dados.
- Seus dados lhe trazem muito freqüentemente a esta casa, senhor Pitt. Posso deduzir pelo que acaba de anunciar que tem algum outro suspeito em mente?
- Era um homem tão pouco elegante e tão antiquado... Sua presença parecia invadir toda a sala. Ou acaso pensava assim porque lhe dava medo?
- Que deseja nesta ocasião, senhor Pitt? -Era melhor acabar quanto antes.
- Seu marido chegou muito tarde à casa a noite em que mataram Lily Mitchell e isso não é habitual nele. -Era mais uma afirmação que uma pergunta, como se quisesse confirmar algo que já sabia.
- Assim é. -perguntou-se se sua voz soava tão tensa como temia.
- Onde esteve?Pitt a olhava fixamente, com seus claros e inteligentes olhos. Caroline se sentiu como um livro aberto, como um menino a quem se descobre fazendo um vandalismo.
- O que devia responder? Repetir a versão do Edward ou mencionar a verdade que Dominic tinha deixado escapar sem saber? Ao pensar nisso reparou que nem sequer tinha posto em dúvida as palavras do Dominic. Dizia-se que Edward tinha estado no clube, revelaria que mentia a ela, mas se admitia que tinha estado em outro lugar, obrigá-la-ia a revelar algo que não queria ou não podia explicar.
- Acredito que esteve no clube - disse lentamente, vocalizando cada sílaba-, mas não recordo se depois ia jantar com uns amigos.
- Não o disse? -perguntou ele.
- Havia algo estranho em que não o houvesse dito?
- Tendo em conta o que encontramos em casa ao chegar (Charlotte tinha chamado à polícia, todos estávamos alterados e assustados), acredito que me esqueci de semelhante questão. Não fazia parte de minhas preocupações imediatas.
- Ah. Entretanto, não posso deixar de pensar que o senhor Ellison pôde passar pela cena do crime no momento adequado. -Sorriu mostrando seus dentes brancos. Os olhos lhe brilhavam-. É possível que visse algo.
- Receio que não posso ajudá-lo.
- Naturalmente, senhora Ellison. Já sei que você passou pelo Cater Street em carruagem, com suas filhas, e já falei com todas vocês.
- E também falou com meu marido. Que mais pode lhe contar? –Poderia convencê-lo de que não interrogasse ao Edward? Não havia nada mais que lhe pudesse dizer. Pitt suspeitava algo ou tinha descoberto que mentia-. Suponho que não lhe cabe dúvida, senhor Pitt, de que se meu marido tivesse visto algo, já o teria contado.
- Pode ser que recorde algum pequeno detalhe, algo que tinha esquecido pensando que era insignificante. E a hora em que passou por ali também é importante. As horas permitem construir ou destruir os álibis.
- Algo que confirme que a pessoa em questão estava em outro lugar à hora em que ocorreu o crime, e portanto a exima de culpa.
- Sei o que significa a palavra, senhor Pitt, mas não me dava conta de que estava descartando as pessoas apoiando-se na impossibilidade de que estivessem... - interrompeu-se, assustada do que estava pensando e confusa.
- Bom, quando há vários sujeitos, senhora Ellison, os álibis são de grande ajuda para realizar um crivo e eliminar aos inocentes.
- Caroline desejava que a deixasse em paz de uma vez. Aquele homem era polícia, o que para todos os efeitos era como ser comerciante; não podia permitir que a dominasse. Emily tinha razão; sua voz era formosa, forte e doce ao mesmo tempo, e sua dicção era perfeita.
- Suponho que sim - disse visivelmente perturbada. - Mas receio que meu marido não se encontra em casa e não pode tirá-lo de dúvidas.
- Pitt sorriu compreensivamente.
- Voltarei esta tarde. Acredita que o senhor Ellison terá chegado então?
- Sim, certamente.Quando Edward chegou a casa as seis e quinze, comentou-lhe que Pitt tinha estado e que voltaria.
- Ele ficou rígido, olhando-a.
- O inspetor fez uma pequena reverência e se dirigiu à porta.
- Disse que voltaria esta tarde?
- Não devia lhe dizer que eu estaria, Caroline. -Sua expressão era severa-. Tenho que voltar a sair...
- Esta manhã disse... -interrompeu-se; o medo lhe intumescia a garganta. Tentava evitar Pitt para não ter que lhe mentir?
- Surgiu-me um compromisso depois de falar com você esta manhã - explicou-. De qualquer modo, já lhe disse tudo o que sabia. diga-lhe isso de minha parte ou peça ao Maddock que o faça.
- Acha que... -replicou dúbia.
- Por Deus, Caroline! É um policial, não um conhecido a quem tenha que tratar com atenção. Deixa que seja Maddock quem lhe explique que me surgiram compromissos de última hora e que não tenho nada mais que acrescentar que possa ajudá-lo em sua investigação. Se depois de todos os interrogatórios e pesquisas continua sem dar com o culpado, ou é um crime sem solução ou esse homem é um incompetente.
- Mas Pitt voltou a apresentar-se na noite seguinte e fizeram-no entrar na sala, onde se achavam Caroline, Edward, Charlotte e a avó. Os outros tinham ido a um concerto. Maddock abriu a porta e o anunciou e, antes que alguém pudesse queixar-se, Pitt já estava dentro da sala.
- Na casa de um cavalheiro, senhor Pitt -se queixou Edward-, é de boa educação esperar que se convidem a entrar.Pitt não pareceu se afetar com o comentário. Avançou uns passos mais e Maddock se retirou.
- Caroline se ruborizou ante semelhante grosseria e a atribuiu ao fato de que Edward estava assustado. Tinha que estar e muito, para permitir-se abandonar sua boa educação. Boa educação? Acaso lhe conhecia ela tão bem como achava? Que demônios tinha estado fazendo no Cater Street aquela noite?
- Desculpe. Os assassinatos não costumam me levar às casas dos cavalheiros; mas quando alguém tenta evitar falar comigo, tenho que recorrer a métodos algo drásticos. Tenho certeza de que você deseja tanto como eu que detenhamos o culpado.
- É claro. -Edward o olhou com frieza-. Entretanto, considero que já lhe disse tudo o que sabia... e em mais de uma ocasião. Não tenho nada que acrescentar a meu testemunho. E não vejo no que poderia ajudá-lo que voltasse a repetir tudo.
- Surpreender-lhe-ia sabê-lo. Cada vez se acrescentam detalhes, pequenas coisas que se foram recordando.
- Pois eu não recordei nada.
- Onde estava aquela noite, senhor Ellison?
- Edward franziu o sobrecenho.
- Já o disse: no clube, que não está precisamente perto do Cater Street.
- Esteve ali toda a noite, senhor Ellison?
- Caroline olhou ao Edward, que tinha ficado pálido. Quase se podia ouvir o conflito que bulia em sua cabeça. Conseguiria sair gracioso sem ter que mentir? O que estava ocultando? voltou-se para o Pitt. Seus inteligentes olhos não estavam fixos no Edward mas nela. de repente sentiu medo de que pudesse adivinhar seu medo, que soubesse por ela que seu marido estava mentindo. Tentou distrair-se e olhar para outro lado, e se deu conta de que Charlotte também a observava. Sentiu um sufoco de medo.
- Toda a noite, senhor Ellison? -replicou Pitt sem alterar-se.
- Né... não, não toda a noite -respondeu Edward tenso e assustado.
- Aonde foi, então? -Pitt se mostrava muito cortês. Estava-se surpreso pela resposta, dissimulava-o perfeitamente.
- Seria possível que já soubesse o que lhe ia responder? Fez um nó no estômago de Caroline. Acaso Pitt sabia onde tinha estado Edward?
- Fui visitar um amigo -respondeu Edward sem deixar de olhá-lo.
- Seriamente? -Pitt sorriu-. Que amigo, senhor Ellison?A avó se ergueu repentinamente em seu assento.
- Edward apertou os lábios.
- Jovem! -exclamou-. Não esqueça qual é sua posição tanto nesta casa como na sociedade em geral. O senhor Ellison acaba de lhe dizer que foi visitar um amigo. Pois bem, não precisa conhecer os detalhes. Sabemos que tem uma missão que cumprir e que se trata de uma árdua tarefa, necessária para que se faça justiça e se mantenha a ordem pública. Certamente o ajudaremos em tudo o que possamos, mas não pense que isso lhe dá direito a saltar certos limites.
- Pitt arqueou as sobrancelhas mais divertido que aborrecido.
- Senhora, desgraçadamente os assassinos não respeitam às pessoas nem às diferenças de classes. Temos que apanhar a esse homem porque a próxima vítima poderia ser uma de suas netas.
- Grande estupidez! -disse a avó indignada-. Minhas netas são jovens de moral e costumes irrepreensíveis. Suponho que não conheceu a muitas mulheres assim e por isso não terei em conta seu insulto, que nasce mais de sua ignorância que de sua má vontade.
- Pitt soltou um longo suspiro e acrescentou:
- Senhora, nada faz supor que este homem só agrida a mulheres imorais nem que sinta predileção por elas. A senhorita Abernathy era um tanto frívola mas nada mais, e Lily Mitchell tinha uma reputação irrepreensível; inclusive seu encontro com Brody foi extremamente correta.
- A avó o olhou com certo desprezo.
- O que é correto para uma criada ou para um policial pode não ser para uma jovem de família respeitável.
- Pitt se inclinou ligeiramente.
- Permito-me discordar, senhora. Acredito que a moralidade é universal. As circunstâncias podem aliviar o grau de culpa mas não evitam que o ato em si seja criticável.Caroline olhou para Edward, que continuava sem responder, e depois à Charlotte, que contemplava Pitt com uma mescla de surpresa e respeito.
- O inspetor se voltou para o Edward.
- A avó aspirou disposta a condenar sua temeridade, mas de repente pensou no que Pitt acabava de dizer e optou por permanecer calada.
- Senhor Ellison, necessito o nome e a direção de seu amigo, por favor. Também queria conhecer, com a maior precisão, a hora em que saiu dali.
- De novo se produziram uns momentos de tenso silêncio que para Caroline pareceram uma eternidade, como quando se duvida em abrir uma carta que contém más notícias.
- Sinto muito, mas não recordo a que hora parti - respondeu Edward-. Naquele momento não me pareceu que fosse ser de relevância.
- É possível que seu amigo o recorde - comentou Pitt imperturbável.
- Não! -atalhou Edward-. Meu amigo está... Doente. Por isso fui visitá-lo. Quando parti... Estava a ponto de ficar adormecido, por isso fui nesse momento e não em outro. Receio que nenhum dos dois podemos lhe dar informação mais precisa. Sinto muito.
- Mas você voltou para casa e ao longo de toda Cater Street. -Pitt não desanimava facilmente.
- Já o contei. -Edward começava a recuperar a compostura.
- Encontrou-se com alguém na rua?
- Não que eu recorde, mas estava pensando em chegar a casa, não em observar a rua.
- Naturalmente. Mas suponho que isso não o teria impedido de ver um homem correndo ou duas pessoas brigando, nem o teria impossibilitado de ouvir um grito de socorro ou de qualquer outro tipo, não?
- É claro que me teria dado conta. Mas se havia alguém mais na rua deve ter sido gente muito discreta, um pedestre tardio como eu ou algo parecido. De fato não recordo que houvesse ninguém.
- O endereço da casa de seu amigo.
- Não me parece que seja relevante para a investigação. Meu amigo está doente e tem problemas. Preferiria que não o visitasse. Não faria mais que aumentar sua ansiedade e piorar sua precária saúde.
- Entendo. -Pitt permaneceu imóvel-. De qualquer modo, eu gostaria de tê-la. É possível que recorde a hora.
- Que importância tem a hora?
- Permitir-nos-ia precisar em que momento não se cometeu o crime. Por descarte podemos chegar à hora exata do assassinato.
- Caroline atravessou impulsivamente.
- Isso pode ser muito fácil de saber. Edward chegou pouco depois que nós, uns cinco minutos quando muito. Se caminhar daqui até o Cater Street poderá calcular facilmente a hora de saída. -Esperou com a alma na mão ver se ao Pitt parecia bem sua proposta.
- Está bem. Obrigado por sua colaboração. -Olhou para Charlotte e a seguir inclinou a cabeça com um gesto de resignação-. Espero que tenham um bom dia. -Abriu a porta ele mesmo e partiu.
- Ouviu-se a voz do Maddock no vestíbulo e a seguir se fechou a porta da entrada.
- Bem! -A avó deixou de conter sua indignação-. Que homem tão vulgar!
- É muito obstinado - disse Caroline-, mas não é vulgar. Se não esclarecesse todas as ambigüidades nunca resolveria seus casos.
- Jamais achei que seja uma boa juíza no que a vulgaridade se refere Caroline. -A avó falava cada vez com mais sanha-. Mas me surpreende que pense que Edward possa saber algo a respeito deste crime. Parece que dele duvida!
- É claro que não! -mentiu Caroline, com o rosto ardendo e corado -. Falava da polícia, não de mim. Não pode pretender que o senhor Pitt veja as coisas como eu!
- Não o pretendo. Mas tampouco esperava, até agora, que você visse as coisas como ele!
- Não é isso, avó - interrompeu Charlotte-. A única coisa que mamãe fez foi pôr de manifesto que...
- Cale-se, Charlotte! -ordenou Edward-. Proíbo que se siga falando desta questão. Trata-se de um assunto sórdido que não tem capacidade em nossas vidas além da colaboração que já prestamos. Charlotte, se não pode se controlar será melhor que suba a seu quarto.Caroline se sentou para contemplar uma foto de suas bodas sem deixar de pensar, cada vez mais assustada, por que razão Edward não queria dizer aoDurante esse dia não se voltou a mencionar o assunto.
- Na manhã seguinte, Caroline estava na cozinha, revisando as contas da casa, quando recebeu uma inesperada visita da avó.
- Pitt onde tinha estado.
- Charlotte não respondeu e a avó começou a queixar-se outra vez da decadência da boa educação e o aumento do crime e da imoralidade.
- Caroline, quero saber o que pretendia dizer, embora temo que já saiba. Tenho direito a saber.
- Caroline adotou uma postura defensiva e mentiu:
- Não sei do que me fala, avó. -Não tinha podido pensar em outra coisa, mas nesse momento fingiu estar concentrada na fatura do peixeiro.
- Então é mais insensível do que eu achava. Estou falando do policial e de sua incrível desfaçatez de ontem de noite. Em meus tempos os policiais sabiam manter-se em seu lugar.
- O lugar de um policial é onde há um crime - respondeu Caroline com tom de aborrecimento. Sabia que a confrontação era inevitável, mas queria atrasá-la, assim como se tenta atrasar uma dor.
- Nesta casa, Caroline, não há mais crime que seu friável comportamento com respeito ao bom nome de seu marido.
- Isso é falso e mal intencionado! -Caroline se virou em redondo e deu as costas à mesa; continuava tendo a pena na mão, mas a esgrimia como se fosse uma faca-. E não se atreveria a dizê-lo se não estivéssemos sozinhas e se não tivesse certeza de que não vou discutir com você. Mas desta vez se equivoca! Vou discutir, e muito, se atrever a repetir mentiras como esta. Ouviu-me?
- Tem má consciência e por isso está zangada - comentou a avó com perversa satisfação-. E é claro que o penso repetir, diante do Edward. Então veremos quem discute com quem e quem se salva.
- Adoraria, não o é verdade? -Caroline retrocedeu-. Adoraria entristecer ao Edward e armar um grande revôo! Bom, pela primeira vez, não penso ceder a sua chantagem. Diga ao Edward tudo o que queira. Mas recorde que não foi você quem foi em sua ajuda quando se negava a lhe dizer à polícia onde tinha estado! Não fez mais que tratar grosseiramente ao Pitt. O que pretendia ganhar com isso? Esperava assustá-lo? Se for assim, é hora de que vá descendo das nuvens. Suas palavras não fizeram mais que acrescentar as suspeitas do inspetor.
- Suspeitas do que? -A avó se balançava ligeiramente adiante e atrás, de pura raiva-. O que acha que fez Edward? Pensa que saiu atrás dessa garota e a estrangulou? Isso acha? Sabe Edward que pensa isso dele?
- Não, salvo se você o tenha dito, o que não me surpreenderia! Para você seria uma grande satisfação. Não lhe basta a morte de Lily?
- Se me basta? A mim? O que acha que ganho eu com a morte de uma desventurada criada? Sempre detestei a imoralidade mas não sou eu quem deve julgá-la a não ser Deus.
- -É você uma velha hipócrita! -exclamou Caroline furiosa-. Não existe nada mais imoral que o alegrar-se das desgraças alheias!
- Você mesma procurou a desgraça, Caroline. Eu não poderia fazer nada para ajudá-la, embora quisesse.
- Fez um gesto de desespero com a mão e saiu da sala antes que Caroline pudesse responder; de qualquer modo, tampouco lhe ocorria nenhuma boa réplica.
- Sentou-se de novo e olhou a conta do peixeiro com lágrimas nos olhos. Odiava as brigas mas esta levava anos incubando-se. O rancor que ambas tinham ido acumulando tinha explodido pela tensão provocada pela morte de Lily. Se não fosse por isso, talvez o vulcão tivesse permanecido adormecido para sempre. Agora haviam dito coisas que não esqueceriam facilmente, sobre tudo a avó, se não tivesse intenção de fazer as pazes.Seria horrível! E o pior era que a avó tinha razão. Caroline suspeitava, com pavor, que Edward pudesse ter feito algo mau. Doía-lhe a garganta de conter o pranto. Se baixasse a cabeça, as lágrimas começariam a cair irremediavelmente.
- O pior era que a avó implicaria toda a casa e pediria às pessoas que tomassem partido. Teriam olhares significativos, silêncios tensos, comentários críticos... até que alguém tivesse suficiente curiosidade para perguntar o que acontecia. Para Edward seria fatal. Queria-as a ambas e por cima de tudo desejava que na casa houvesse bom ambiente. Igual a muitos homens, odiava as brigas em família. Faria o que fosse para preservar a tranqüilidade, fingiria não dar-se conta durante o maior tempo possível. Certamente Dominic seria o catalisador, ainda sem pretendê-lo. Não conhecia suficientemente à avó para ler entre linhas e ignorar suas más caras.
- Era Charlotte. Caroline nem sequer a tinha ouvido entrar. Sorveu e disse:
- Sim, quem é? Estou muito ocupada revisando as contas.
- Charlotte a rodeou com seus braços e a beijou.
- Sei tudo, ouvi-as discutir.
- Era muito para agradecer, sobretudo que se sentia só. Custava-lhe muito controlar-se, mas tinha anos de prática.
- OH, sinto muito! Não me dava conta de que elevávamos tanto a voz.A jovem se aproximou da janela.Caroline estava muito surpreendida para dissimular. Voltou-se e olhou ao Charlotte, que continuava de costas.
- ''Não se preocupe pela avó. Se comentasse algo com o papai, ele se zangaria com ela e sairia perdendo''.
- Charlotte lhe ajustou uma forquilha e se afastou para que sua mãe se repusesse. Era curiosa a sensibilidade que Charlotte podia mostrar em certas ocasiões, enquanto que em outras não tinha pelo na língua.
- Charlotte não deixava de olhar pela janela.
- Porque papai não quer falar do assunto. Temos que assumi-lo. Zangar-se-á com quem voltar a trazê-lo à tona.
- Que demônios quer dizer? -Ao Caroline tremia a voz-. O que está sugerindo, Charlotte? Não pensará que seu pai pôde...?
- Não sei. Talvez estivesse jogando ou bêbado ou em companhia de pessoas pouco recomendáveis. O caso é que não quer que ninguém saiba onde esteve. Não tem sentido que nos enganemos. Mas não se preocupe, mamãe, tenho certeza de que não tem nada que ver com a morte do Lily, se isso for o que a assusta.
- Charlotte... -Não sabia o que dizer. Como podia sua filha estar aí, tão tranqüila, dizendo esse tipo de coisas?
- Acredito que tudo isto é em vão -prosseguiu Charlotte, mas desta vez Caroline detectou um tremor em sua voz que lhe indicou que a sua filha custava um grande esforço aparentar essa calma-, porque o senhor Pitt acabará por averiguá-lo cedo ou tarde.
- Sim. E papai sairá maltratado por não ter querido contar de boa vontade.
- Então o melhor seria convencê-lo...Mas o fez. O senhor Pitt voltou dois dias depois, de noite e totalmente de surpresa -provavelmente para assegurar-se de achar ao Edward- já que não passou para avisar durante a manhã. Encontrou-os a todos em casa.
- Mas Caroline sabia que não tinha suficiente coragem. Edward se zangaria, adotaria a atitude fria e distante que reservava para os casos graves. Como aquela vez em que Caroline lhe tinha contrariado sobre o Gerald Hapwith. Já tinham passado muitos anos e tudo parecia uma tolice visto com perspectiva... Mas a sensação de tristeza e isolamento que aquele aborrecimento tinha provocado ao Caroline era difícil de esquecer. E, ainda pior, no fundo lhe assustava averiguar o que seu marido pretendia ocultar. Talvez Pitt não o descobrisse por si mesmo.
- Isto é bastante aborrecido, senhor Pitt -disse Edward com cara de poucos amigos-. O que quer agora?
- Calculamos que deve ter caminhado por Cater Street das onze menos cinco até poucos minutos depois da hora em ponto.
- E veio para me dizer isso? -respondeu Edward com secura-. É uma obviedade, pois cheguei em casa às onze e quinze.
- Pitt seguiu impertérrito.
- Obviedade para você, senhor, que sabia de onde vinha. Nós só podíamos confiar em sua palavra, o que não constitui prova alguma. Se os crimes resolvessem simplesmente perguntando aos assassinos, nosso trabalho não teria razão de ser.
- Edward franziu o sobrecenho.
- O que pretende dizer, senhor Pitt?
- Que concluímos que saiu de casa da senhora Attwood às onze menos quarto. demora-se uma meia hora em chegar até sua casa, caminhando a um passo normal. portanto, cruzou Cater Street entre as onze menos cinco e às onze e cinco.
- Poderia ter sido mais simples e nos haver economizado muito tempo, senhor, se nos tivesse facilitado o endereço da senhora Attwood. Agora, confio que tenha a amabilidade de me dizer onde se achava a noite em que mataram ao Chloe Abernathy.
- Se souber onde estava à noite em que mataram ao Lily, saberá que não tive nada que ver com seu assassinato -replicou Edward. Pela primeira vez parecia realmente assustado-. O que acredita que posso lhe dizer sobre o Chloe Abernathy?
- Só quero que me diga onde estava aquela noite. -Pitt sorriu-. E com quem.
- Estava com o Alan Cuthberston, discutindo sobre negócios em sua casa.
- Bem, isso o diz mas ao tratar-se de um amigo bastante especial da senhorita Abernathy, preferimos contrastar sua versão. Obrigado, senhor Ellison. Fez um favor ao senhor Cuthberston e à polícia. Encantado, senhora. -Inclinou a cabeça a modo de pequena reverência-. boa noite.
- Quem é a senhora Attwood, papai? -perguntou Sarah imediatamente-. Não recordo que nos tenha falado dela.
- Duvido que o tenha feito -respondeu Edward olhando para outro lado-. É uma mulher bastante pesada que era familiar de um senhor que me fez um grande favor faz tempo e que morreu. Ela adoeceu e eu a visito de vez em quando e a ajudo no que posso. Não se encontra prostrada em cama, mas quase. Não costuma sair de casa. Podem visitá-la, se quiserem, mas lhes advirto que é muito pesada e que vai um pouco mal da cabeça. Costuma confundir as lembranças com suas próprias fantasias, mas às vezes está lúcida. Sem dúvida tudo isso se agrava porque passa muito tempo só ou lendo más novelas românticas.Mas em seguida aflorou a maior de suas preocupações, uma difícil de evitar. Por um tempo tinha temido que Edward tivesse tido relação com a morte do Lily. Ele estava deitado a seu lado, dormindo. Estavam casados há mais de trinta anos. Como tinha podido pensar sequer que fosse capaz de matar a uma jovenzinha na rua? Que classe de mulher era ela se tinha aceitado essa inimaginável possibilidade sequer por uns segundos? Sempre tinha pensado que o queria, não apaixonadamente, é claro, mas sim de forma adequada. Conhecia-o bem... ou isso achava até aquela semana. Nesse momento se deu conta de que havia coisas dele que desconhecia por completo.A relação que mantinham valia à pena? Se Edward soubesse o que ela tinha estado refletindo, o que pensaria, como se sentiria? Caroline se sentiu confundida, envergonhada e assustada.Capítulo 7Charlotte deixou a enxada com que estava cortando a erva entre as flores. Era mais um passatempo que um trabalho, uma desculpa para estar fora em lugar de na cozinha cozendo as frutas para fazer as compotas que logo Sarah guardaria em botes para sua conservação. Sarah tinha ido com o Dominic a um evento social, Emily estava em uma partida de tênis com um grupo de amigos entre os quais figurava George Ashworth, e Caroline tinha ido visitar Susannah.
- A seguinte semana marcou o princípio de um mês de setembro quente e tranqüilo. Millie foi procurar Charlotte no jardim. Seu rosto estava ruborizado e parecia muito alterada. Levava um papel na mão.
-
- Tinha compartilhado a mesma casa e a mesma cama com ele durante trinta anos; tinha-lhe dado três filhas e um filho que tinha morrido poucos dias depois de nascer. Entretanto, expôs-se a possibilidade de que seu marido tivesse estrangulado ao Lily.
- Todos se sentiram aliviados mas aquela noite, já na cama, Caroline despertou e começou a dar voltas ao assunto. por que se empenhava Edward em ocultar suas visitas à senhora Attwood? Era só por proteger a uma mulher doente ou teria que ver com o fato de que fosse uma mulher de baixa categoria, o tipo de pessoas com as quais não desejava que o associassem?
- Desculpe, senhorita Charlotte, esta manhã encontrei esta nota. Levo todo o dia pensando o que fazer com ela.Charlotte a pegou e leu: "Querida Lily: Esta é minha última advertência. Ou faz o que prometeu ou vai passar muito mal." Não levava assinatura.
- De onde o tirou? -perguntou Charlotte.
- Encontrei-o em um dos armários de meu quarto, senhorita. O mesmo em que viveu Lily.
- Fiz o correto, senhorita?
- Sim, Millie, sem dúvida. Teria sido um engano não me mostrar isso Pode ser que... seja importante.
- Acredita que pôde ser o assassino quem escreveu esta nota, senhorita?
- Não sei, Millie. Mas temos que pô-lo em conhecimento da polícia.
- Sim, senhorita. Mas o senhor Maddock está muito ocupado guardando o vinho que chegou esta tarde; o senhor disse que era urgente.
- Não se preocupe, Millie. Levá-la-ei eu mesma.
- Mas, senhorita Charlotte, não pensará ir sozinha, não é?
- Charlotte ficou olhando-a um momento.
- Não, Millie; você me acompanhará.
- Eu, senhorita Charlotte? -ficou gelada e arregalou os olhos.
- Sim, você. Vá por seu casaco. Diga à senhora Dunphy que necessito que acompanhe a um encargo urgente. Vamos!Quando levava ali dez minutos, apareceu um homenzinho de nariz bicudo, vestido com certa elegância. Ao vê-la se surpreendeu.
- Três quartos de hora depois, Millie estava na sala de espera da delegacia de polícia enquanto Charlotte aguardava no escritório do inspetor Pitt. tratava-se de um quarto cinza, anódino e algo poeirento. Havia três cadeiras, uma delas giratória, uma mesa com gavetas fechadas com chave e uma escrivaninha, também com fechadura. O chão era de linóleo marrom e estava desgastado no trecho que ia da porta até a mesa.
- Olá, senhorita. Tem certeza de que não se equivocou de lugar?
- Acredito que não. Estou esperando o senhor Pitt.
- Olhou-a de cima abaixo atentamente.
- Não parece uma delatora - repetiu ele ao tempo que entrava e fechava a porta-. Um agente de informação, uma espiã para a bofia.
- Para quem? -Franziu o sobrecenho.
- A bofia, a polícia! Não disse que queria ver o senhor Pitt?
- De repente o homenzinho soltou um risinho e deixou descoberto todos os dentes.
- vim para falar com o inspetor Pitt de um assunto oficial que, me perdoe, não é de sua incumbência. -Não pretendia ser grosseira. Era um homenzinho inofensivo e parecia bastante cordial.
- Assunto oficial? Não me parece que você tenha nada oficial que falar com a bofia. -sentou-se na cadeira em frente, sem deixar de olhá-la com curiosidade e simpatia.
- Trabalha aqui? -perguntou ela.
- Claro. -Sorriu-. Eu também tenho assuntos oficiais que tratar.
- Muito importantes. -Fez um gesto de assentimento e seus olhos brilharam-. Trabalho para o senhor Pitt. Não poderia arrumar-se sem mim.
- Acredito que poderia sobreviver, de qualquer modo - disse Charlotte com um sorriso.
- Ah, senhorita! Diz isso porque não sabe de que fala, e o digo sem ânimo de ofender.
- Não conhece a forma em que trabalhamos aqui, senhorita. Imagino que não saberia saquear uma casa ou roubar mercadoria e colocá-la depois.
- Charlotte não entendia nada mas, a seu pesar, todo aquilo lhe era muito interessante.
- Não - admitiu-. Nem sequer sei do que está falando.
- Ah! -Se reclinou na cadeira-. Como vê, eu sei um pouco de tudo. É meu destino. Nasci e cresci em um bairro perigoso. Minha mãe morreu quando eu tinha três anos, ao menos isso me disseram. Eu era muito pequeno. Tive sorte...
- Sorte? Quer dizer que alguém teve piedade de você?
- Ele a olhou como se compadecendo dela, com certa ternura.
- Quero dizer que viram que era um menino com possibilidades... Que se ficasse por ali podia ser útil.
- Charlotte recordou o que Pitt lhe tinha contado a respeito dos meninos e as chaminés e estremeceu.
- Não tinha você mais familiares? Pai ou avós...
- A meu pai penduraram no quarenta e dois, o ano em que nasci, e meu avô estava no meio do oceano a bordo de um navio. Minha mãe tinha um irmão que era um estelionatário, mas não queria saber nada de meninos. Sobre tudo de um que era muito pequeno para ajudá-lo. Os bons estelionatários não necessitam de meninos ao redor.
- O que significa que a seu pai o penduraram? -perguntou.Charlotte se sentiu tola e se ruborizou.
- Ele levou a mão ao pescoço e imitou a um enforcado.
- Não se preocupe! -tranqüilizou-a-. Não fez nada por mim, de qualquer modo.
- E seu avô, foi navegar? Voltou em algum momento?
- Por Deus, senhorita! Realmente vive você em outro mundo. Não foi navegar, enviaram-no a Austrália.
- OH! -Não sabia o que dizer-. E seu tio?
- Meu tio se dedica a roubar o dinheiro das mulheres, senhorita. É uma arte muito complexa. Alguns usam meninos, mas ele não. Portanto, eu não lhe servia para nada, entende? Assim, atribuíram a um padrinho que me ensinou as regras básicas do negócio... Roubava lenços de seda dos bolsos dos cavalheiros para ganhar o pão, para dizê-lo de algum jeito. Quando cresci venderam-me a um saqueador de casas profissional. Escalava muros e penetrava entre as grades como uma serpente. Grande quantidade de torres abri de dentro para que entrassem meus sócios!
- O que é uma torre? -Seu pai ficaria furioso se soubesse que estava mantendo semelhante conversa, mas os termos que usava aquele homem a deixavam absorta. Estava igualmente fascinada que um menino que não é capaz de deixar de pinçar na crosta de uma ferida.
- Uma torre é uma casa de gente rica, uma casa como a sua provavelmente. -Disse-o sem aparente ironia; parecia gostar de despertar o interesse da jovem.
- Acredito que não ganhou muito com a mudança - comentou ela-. O que se passou depois?
- Bom, transcorreu o tempo e cresci muito, é claro. Mas antes que meu protetor pudesse "me despedir", pilharam-no e nunca voltei a vê-lo. Entretanto, já me tinha ensinado muitos truques, como usar as ferramentas, como tirar um vidro...
- Como tirar um vidro? -perguntou um tanto perplexa.
- Ele soltou uma sonora gargalhada.
- Meu deus! É você muito divertida. Preste atenção como se tira um vidro... -levantou-se e se aproximou da janela-. Imaginemos que quer tirar esta parte de janela. Bem, pois se coloca perto - ia ilustrando sua explicação ao mesmo tempo em que falava-, põe a faca aqui, perto do bordo, e empurra com força mas sem passá-la até que o cristal se rompe. Tem que tomar cuidado de que não caia. Continuando, tira-o lhe pegando uma parte de argamassa marrom e preparada... já não há vidro e entretanto não fez nada de ruído. Já só falta colocar a mão e abrir o trinco.
- Entendo. Alguma vez o agarraram?
- É claro que sim! Mas faz parte do jogo, não acha?
- Nunca se dispôs a procurar um trabalho... Convencional? -absteve-se de dizer "honesto". Por algum motivo não desejava ferir a sensibilidade daquele homem.
- Tinha tudo o que podia desejar. Consegui ferramentas, um bom corvo, o canário mais formoso de toda Londres e um bom perista. Vivia em uma boa casa, muito confortável, em que vendíamos umas quantas quinquilharias quando os tempos ficavam duros. Que mais necessita uma pessoa? por que ia partir a espinhaço em uma fábrica para que me explorassem por uns míseros pennies?
- Para que queria os pássaros?
- Os pássaros? -Fez um gesto de surpresa-. Que pássaros?
- Ele soltou um risinho agudo e estridente.
- OH! eu adoro falar com você, senhorita. É tão inocente! Um corvo é um delator, alguém que fica fora e avisa quando há perigo, por exemplo, se vier o proprietário ou a polícia. E um canário é a pessoa que leva as armas e demais ferramentas. Quando se é um ladrão com classe, a gente não leva as ferramentas em cima, primeiro lança uma olhada ao lugar e quando está tudo claro vem o canário e entrega tudo. Os canários costumam ser mulheres. Dá melhor resultado. Bessie era tão formosa como um dia do verão.
- Morreu de cólera no sessenta, um ano antes da guerra. Pobre Bessie.
- Mais jovem que Emily, mais jovem que Lily Mitchell. Tinha vivido nos piores bairros, levando as ferramentas de um ladrão, e tinha morrido de uma grave enfermidade aos dezoito anos. Sua vida fazia que a do Charlotte parecesse um presente, com algum ou outro conflito intranscendente. O único grave que lhe havia tocado passar era o haver-se apaixonado pelo Dominic e ter que enfrentar à morte de Lily. Todo o resto tinha sido extremamente simples. Costurar lençóis e toalhas, fazer conservas de pêssegos e damascos, comprovar que a conta da pescadería não se disparasse muito, decidir o que ficar para ir ao baile da sexta-feira, tentar mostrar-se educada com o vigário... Enquanto, outras pessoas, como aquele homenzinho com o que falava, tinham que lutar para comer. E muitos deles não o conseguiam: os pequenos e os fracos, os que se assustavam com facilidade. Só atinou a dizer:
- Ele a observou atentamente.
- É uma criatura curiosa - disse.
- A porta se abriu e Pitt entrou no escritório antes que Charlotte pudesse reagir ante esse último comentário. O rosto do inspetor refletiu surpresa. Ao que parecia, nenhum de seus subordinados lhe tinha anunciado sua visita.
- Senhorita Ellison... O que está fazendo aqui?
- Está esperando-o. -O homenzinho ficou de pé, muito animado-. Está aqui há uma meia hora. -Tirou um relógio de ouro muito elegante de um bolso.
- De onde tirou isso, Willie?
- Você pensa muito mal, senhor Pitt.
- Também tenho muito mau aspecto. De onde o tirou, Willie?
- Comprei-o, senhor Pitt! -Não parecia realmente indignado mas bem ansioso por provar sua inocência.
- Senhor Pitt! Isto é ouro de verdade, um produto de qualidade.
- Da casa de empenhos, então.
- Isso não é muito amável de sua parte, senhor Pitt. Comprei-o em um lugar respeitável!
- Está bem, Willie. Saia e procura convencer ao sargento, enquanto falo com a senhorita Ellison.
- Willie tirou o chapéu e fez uma cerimoniosa reverência.
- Sim, senhor Pitt. Boa tarde, senhorita.
- Pitt fechou a porta e indicou ao Charlotte que tomasse assento. Agora que estavam a sós parecia menos seguro de si mesmo, possivelmente envergonhado pelo lugar em que a recebia. Charlotte não se importava. Estendeu-lhe a nota, sem preâmbulos.
- Millie, nossa nova criada me trouxe isto faz uma hora. Encontrou-o pela manhã em seu quarto, o mesmo onde se alojava Lily.
- Pitt pegou a folha, leu-a e logo a orientou para a luz.
- Não parece muito antiga e certamente é o tipo de carta que não se guarda como lembrança. Suponho que a recebeu pouco antes que a assassinassem.
- É uma ameaça? -Charlotte se aproximou um pouco para ver a folha.
- É difícil pensar que não o seja. Mas de qualquer modo, pode ser que não fosse uma ameaça de morte.
- Charlotte viu como se abria ante ela um mundo de horríveis suspeitas. Pobre Lily! Quem a ameaçava? por que não pediu ajuda a algum deles? Impressionava-lhe saber que sob seu aspecto de doce criada , aquela jovem mantinha uma luta solitária para sair de seus problemas.
- O que se supõe que devia fazer? -perguntou-. Quem pôde escrever semelhante nota? Acredita que é possível descobri-lo e condená-lo?
- Pode ser que não a tenha escrito o assassino.
- Não me importa! Alguém pretendia assustá-la! Alguém tentava obrigá-la a fazer algo que evidentemente não queria fazer. Acaso isso não é um crime?
- Ele a olhou surpreso, observando a raiva com que falava, sua sensação de ultraje e seus compassivos sentimentos. Talvez se sentisse um pouco culpada de que tudo tivesse ocorrido em sua casa sem que ela se inteirasse.
- Sim, é um crime mas temos que conseguir provas. Não sabemos quem escreveu a nota nem o que pretendia que a garota fizesse. E a pobre já não está neste mundo para esclarecer.
- Não pensa investigar? -inquiriu.
- Ele levantou uma mão para tocá-la, mas se deu conta a tempo de que era um engano e voltou a baixá-la.
- Tentá-lo-ei. Mas duvido que a pessoa que escreveu esta nota seja a culpada de sua morte. Mataram-na com um arame, estrangulada por detrás, igual à Chloe Abernathy e a criada dos Hilton. Um assaltante se atreveu a ameaçar a duas criadas mas não se arriscou com uma garota como Chloe. -Seus olhos se iluminaram ante uma nova possibilidade-. Salvo se a confundisse com Lily. Eram da mesma estatura e tinham a mesma cor de cabelo. Imagino que de noite...
- Para que as ameaçaria? Refiro às criadas.
- Os ladrões tentam os criados para que os deixem entrar e os revelem onde se guardam os objetos de valor de uma casa. Talvez Lily se negou e... - Suspirou-. Mas me parece uma forma muito extrema e desnecessária de fazer negócios. Há centenas de criados que estariam dispostos a aceitar uma oferta semelhante, não é necessário matar a ninguém para conseguir esse tipo de informação.
- Por que não nos pediria ajuda?
- Provavelmente porque não se tratava de um ladrão mas sim de algum pretendente -respondeu-. Uma relação que preferia manter em segredo por medo de que vocês não a aprovassem. Receio que nunca saberemos a resposta.
- Sim, tentá-lo-ei. Fez você muito bem em vir me contar, Obrigado.
- Charlotte se sentiu um pouco perturbada pela forma como a olhava e contemplou o lugar em que estava. Por que teria querido ser polícia? Em realidade não sabia nada dele, e como costumava acontecer, seus pensamentos se converteram em palavras.
- Senhor Pitt, sempre foi polícia? Pitt se surpreendeu mas em seus olhos se notou que a pergunta o divertia. Em outro momento possivelmente teria sido inconveniente.
- Sim, desde os dezessete anos.
- Por quê? Por que quis ser polícia? Deve ver tanta... -Não conseguia dar com a palavra para referir-se à miséria e a sordidez.
- Cresci no campo. Meus pais trabalhavam como criados: minha mãe era cozinheira e meu pai guarda-florestal. -Sorriu ao pensar na diferença de status que havia entre eles-. Vivíamos em casa de um cavalheiro bastante rico. Tinha vários filhos e um deles era de minha idade. Permitiam-me assistir com ele à escola e costumávamos brincar juntos. Eu conhecia o campo muito melhor que ele; tinha amigos entre os caçadores furtivos e os ciganos. Tudo isso era muito emocionante para o filho de uma família elegante, que tinha muitas irmãs e passava muito tempo em aula.Charlotte se imaginou a um pobre menino desesperado e confuso, sentindo-se impotente. Aquela imagem lhe inspirou uma ternura que a surpreendeu. levantou-se rapidamente e tratou de recuperar a compostura.
- "Alguém roubava faisões da propriedade e os vendia. Acusaram a meu pai, que foi julgado e condenado por isso. Mandaram-no a Austrália durante dez anos. Eu estava seguro de que era inocente e dediquei muito tempo e esforço a prová-lo. Nunca o consegui mas isso foi o que me fez começar.
- Entendo. Depois veio a Londres. Muito interessante. Obrigada por me contar isso. Agora tenho que voltar para casa ou começarão a temer que me tenha ocorrido algo.
- Não devia vir sozinha - disse Pitt-. Farei que um agente a acompanhe a casa.
- Não é necessário. Pensei que quereria falar com Millie e a trouxe comigo.
- Não preciso falar com ela neste momento, mas me alegro de que fosse suficientemente prudente para vir acompanhada. -Sorriu e desviou um pouco o olhar-. E lhe peço minhas desculpas por ter posto em dúvida seu bom senso.
- Que você tenha um bom dia -se despediu ela e saiu do escritório.
- Três dias depois, Charlotte foi visitar os Abernathy. Tinha ido sozinha porque sua mãe e Sarah estavam a poucos metros, em casa do vigário.
- Charlotte sabia que enquanto saía da delegacia de polícia ele a olhava do gonzo da porta e se sentiu estranhamente coibida. Quase tropeçou e cai ao chegar fora, mas felizmente pôde pegar o braço de Millie e recuperar o equilíbrio. Por que demônios tinha que sentir-se tão apurada ante um simples polícia?
- Tome outra xícara de chá, senhorita Ellison. foi muito amável ao vir nos visitar.
- Obrigado. -Charlotte aproximou a xícara - Me alegra ver que se encontra melhor.
- A senhora Abernathy sorriu com doçura.
- Reconforta-me voltar a ver gente jovem em casa. Ninguém tinha vindo desde que morreu Chloe. Suponho que não lhes posso recriminar; ninguém deseja visitar uma casa que está de luto, e menos ainda os jovens. Obriga-se a recordar que a morte existe, em um momento em que todos desejamos pensar na vida.Tornou-se um pouco para trás.
- Charlotte desejava aliviar sua dor, evitar que acreditasse que os amigos de Chloe eram tão insensíveis que não pensavam na dor de uma mãe.
- Possivelmente não queriam incomodar. Quando se está muito impressionado por algo, é compreensível que não saiba o que dizer. Não há nada que possa aliviar a pena e a gente pode mostrar-se torpe, dizer algo inconveniente e agravar ainda mais a situação.
- É muito gentil, querida Charlotte. Tomara meu pobre Chloe tivesse tido mais amigas como você e não como aquelas frívolas que freqüentava. Tudo começou quando achou esse maldito George Ashworth...
- O que disse? -Charlotte se assustou tanto que esqueceu a boa educação.
- A senhora Abernathy a olhou surpreendida.
- Disse que tomara Chloe não se fizesse tão amiga de lorde George Ashworth. Sei que é um cavalheiro, mas algumas vezes os nobres têm gostos e hábitos reprováveis.
- Não sabia que Chloe conhecesse lorde Ashworth... -Charlotte estava muito alterada. Não deixava de ver o rosto da pequena Emily-.Tratava-lhe muito?
- Muito mais do que seu pai e eu tivéssemos desejado. Mas é um homem bonito e com título. Não se pode convencer às jovenzinhas... -Pestanejou várias vezes.
- Charlotte era consciente de que devia deixar o assunto. A ferida era muito profunda e mexer nela seria inclusive cruel-, mas antes queria informar-se, por Emily.
- Acredita que enganou ao Chloe, que não era sincero com respeito a seus sentimentos?
- Meu marido se zanga comigo quando digo isto - empalideceu-, mas acredito que se Chloe não tivesse conhecido a esse homem continuaria viva.
- Charlotte sentiu como se caminhasse por um corredor lúgubre e as sombras fossem rodeando.
- Por que o diz, senhora Abernathy?
- A senhora Abernathy se inclinou e se apoiou no braço do Charlotte.
- Por favor, Charlotte, não repita a ninguém o que acabo de lhe contar! - Rogou. - Poderia me colocar em um grave problema se falar muito.
- Charlotte pôs sua mão sobre a da senhora Abernathy e a segurou com força.
- Não se preocupe. Mas eu gostaria de saber por que acredita que George Ashworth é tão má influência. Conheço-o, embora não goste dele, não o considero tão perigoso como assegura.
- Enganou ao Chloe lhe fazendo pensar coisas impossíveis, coisas que estavam fora de seu alcance. Levou-a a lugares onde havia mulheres de escassa moralidade.
- Contou-nos algo, mas sei por outras pessoas que os viram. Um cavalheiro, amigo de meu marido, viu o Chloe onde não esperava achar a nenhuma filha de boa família.
- E pode confiar-se nesse amigo? Não pôde ter se equivocado ou exagerar um pouco a história? Não teria alguma razão para querer prejudicar a reputação de Chloe?
- Nenhuma absolutamente. É um dos homens mais íntegros que conheço.
- Então, desculpe-me, mas que fazia esse cavalheiro em um lugar como esse?
- A senhora Abernathy ficou um pouco confusa por um momento.
- Minha querida Charlotte, para os homens é diferente... É perfeitamente normal que os cavalheiros freqüentem locais aos quais as mulheres decentes não iriam. Todo mundo aceita essa classe de coisas.
- Charlotte não aceitava nada semelhante mas sabia que não valia à pena discutir nesse momento.
- Entendo. E você teme que lorde Ashworth possa ter deixado ao Chloe em más companhias ou que inclusive possa tê-la tentado a cometer atos inaceitáveis para uma jovem como ela ou qualquer moça decente, não?
- Sim, assim é. Chloe não pertencia a esse mundo. Acredito que morreu porque tentou começar a fazer parte dele.
- Não tenho certeza de entendê-la bem, senhora Abernathy. Pretende dizer que lorde Ashworth ou alguém de seu círculo pôde ter matado ao Chloe?
- Sim, Charlotte, isso acredito. Mas me prometeu não contar a ninguém! Nada fará que Chloe volte a estar entre nós e não devemos ser vingativos.
- Mas podemos evitar que o crime se repita! -exclamou Charlotte-. E de fato é nosso dever.
- Mas Charlotte... Não é seguro, não são mais que loucos pressentimentos que tenho. Talvez me equivoque e esteja cometendo uma grande injustiça. -pôs-se de pé; parecia ansiosa e gesticulava com as mãos-. Prometeu-me não dizer nada disto.
- Senhora Abernathy, minha irmã Emily está saindo com lorde Ashworth. Se o que você diz é certo, como poderia não ter em conta seus pressentimentos, ainda a risco de me equivocar... Prometo-lhe que não direi nada, salvo se vir que Emily está em perigo. Então não poderia permanecer calada.
- OH, querida! -A senhora Abernathy se sentou de repente-. OH, querida Charlotte! O que podemos fazer?
- Não sei - respondeu a jovem com franqueza-. Contou-me tudo o que sabe ou suspeita que pôde ocorrer?
- Sei que bebe muito, mas os cavalheiros costumam fazê-lo. Sei que é jogador, mas suponho que se pode permitir. Sei que a pobre Chloe estava apaixonada por ele, que perdeu a cabeça e fez toda classe de ilusões românticas. Sei que ele a introduziu em seu mundo, uma classe social diferente que tem outras regras de comportamento e se diverte com coisas horríveis. Acredito que se tivesse mantido em seu próprio nível, entre cavalheiros moderadamente ricos e de boa família, agora não estaria morta. -As lágrimas escorregavam por suas faces quando disse-: Perdoe, senhorita Charlotte. -Pegou seu lenço e pôs-se a chorar em silêncio.De caminho a casa pensou o que ia dizer a sua mãe e à Sarah, mas felizmente, elas estavam muito ocupadas com seus assuntos. Charlotte permaneceu calada quase toda a noite, respondendo quando não podia evitá-lo e fazendo algum esporádico comentário. Dominic fez referência a seu silêncio em duas ou três ocasiões, mas Charlotte não pôde abandonar sua angústia nem sequer para agradar a ele.Mas o pior era Emily. Charlotte esperava que sua irmã não soubesse que Ashworth podia ser culpado de tais crimes. Se o descobrisse e ousasse lhe denunciar, possivelmente acabaria também morta no Cater Street.O que devia fazer? Olhou os rostos de toda sua família; estavam sentados na sala, depois do jantar. A quem podia pedir conselho? Seu pai lia o jornal com expressão compungida. Não gostaria que o interrompessem, e além disso parecia que Ashworth o agradava.Emily estava tocando o piano. junto a ela, Sarah e Dominic jogavam cartas. Poderia perguntar à Sarah? Por um lado desejava contarão Dominic para poder compartilhar algo com ele e lhe pedir conselho. Mas pelo outro resistia, temia que Dominic não tivesse a inteligência necessária, que sua resposta não fosse de grande ajuda e que não se comprometesse a nada. Tampouco confiava muito em Sarah, mas não ficava ninguém mais.
- Procurou o momento adequado para poder falar com ela, antes de ir dormir.
- Sua mãe estava bordando, estava muito pálida. A avó ainda não lhe perdoava que tivesse duvidado de seu marido. Levava dias lançando comentários mal intencionados. E perguntar à avó não era aconselhável: Contaria a todos imediatamente ou os voltaria loucos a base de indiretas até que alguém o adivinhasse.
- Mas Charlotte carecia de provas. Talvez a senhora Abernathy o tinha imaginado tudo, obnubilada pela pena, procurando desesperadamente um culpado, desejando uma resposta, embora fosse nefasta. Se Charlotte comunicava ao Emily seu temor, sem provas concludentes, Emily não acreditaria e se zangaria. Talvez inclusive o contasse ao George Ashworth, simplesmente para lhe mostrar sua fé nele, e acabaria provocando involuntariamente sua própria morte.
- Se a senhora Abernathy estava certa, George Ashworth não era só extremamente inconveniente mas altamente perigoso e podia estar comprometido em uma trama de assassinato. Não parecia provável que pudesse haver dois assassinos agindo em Cater Street, portanto Ashworth poderia ter matado também Lily e à criada dos Hilton. Talvez ele e seu grupo de amigos, em plena bebedeira, tinham decidido espreitar a jovens solitárias... Só a idéia a fez estremecer.
- Charlotte a abraçou. Sentia uma terrível pena por ela, mas não podia fazer nada; além disso, sentia-se culpada por ter puxado o assunto de novo. Charlotte a balançou como se estivesse embalando a uma criança, não a uma mulher da idade de sua mãe.
- Sarah se deteve, um pouco surpreendida.
- Pensei que já se tinha deitado.
- Não pode esperar até manhã?
- Não, por favor, venha a meu quarto.
- Charlotte fechou a porta e se voltou para Sarah enquanto esta se sentava na beira da cama.
- Hoje fui à casa da senhora Abernathy.
- Sabia que George Ashworth era muito amigo de Chloe e saía com ela antes que a matassem?
- Não sabia. tenho certeza de que Emily tampouco está ao corrente.
- Acredito nisso. A senhora Abernathy acredita que George levou a sua filha a lugares pouco apropriados para uma senhorita e que ali pôde ter encontrado a seu assassino. Acredita que George pôde ser responsável, em certa medida, do crime...
- Tem certeza do que diz, Charlotte? Sei que lorde Ashworth não lhe agrada. Não estará se deixando levar por seus preconceitos?
- Não acredito. O que devo dizer à Emily?
- Nada. Não acreditaria em você .
- Mas tenho que acautelá-la!
- Do que? Da única coisa que tem certeza é de Ashworth se interessou por Chloe antes dela. Isso não será de muita ajuda. Além disso, o que tem de estranho? Chloe era uma jovem muito bonita, pobrezinha. Não duvido que Ashworth se interessou por outras moças ao longo de sua vida e que ainda cortejará a muitas outras.
- Mas o que acontece com Emily? -perguntou Charlotte-. O que ocorrerá se realmente ele teve algo que ver com a morte de Chloe? Emily poderia inteirar-se. Poderia inclusive ser a próxima vítima!
- Não fique histérica, Charlotte - respondeu Sarah-. A senhora Abernathy é uma mulher chapada à antiga e algo curta de idéias. Certamente o que ela considera escandaloso e imoral não são mais que coisas normais para nós. Soube que desaprova a valsa! Como se pode ser tão afetada? Inclusive a rainha dança a valsa, ou pelo menos a dançava quando era mais jovem.
- A senhora Abernathy falava de assassinatos, não de valsas.
- Para nós são dois pólos extremos, mas para ela não são coisas tão distintas. Segundo ela, uma pessoa capaz de dançar assim pode supor-se perfeitamente capaz de matar alguém.
- Não sabia que tinha um senso de humor tão agudo - replicou Charlotte amargamente-. Mas este não é momento para fazer uso dele. O que posso dizer à Emily? Não posso ficar de braços cruzados.
- Pelo menos ainda não contou a seu querido polícia!
- É claro que não. E esse comentário me serve de pouca ajuda.
- Sinto muito. Talvez seja melhor que chamemos o Emily e contemos tudo... embora não sei o que lhe contaremos exatamente. Suponho que bastará lhe dizer a verdade. -levantou-se e foi para a porta.Minutos depois estavam as três no quarto de Charlotte, com a porta fechada.
- Charlotte assentiu com a cabeça. Era o melhor e agradecia que Sarah a apoiasse. fez-se a um lado para que Sarah pudesse sair.
- Charlotte se inteirou de algo e pensamos que deve sabê-lo – começou Sarah-. É por seu próprio bem.
- Quando a gente diz isso sempre se refere a algo desagradável. –Emily olhou ao Charlotte-. Está bem, do que se trata?
- Charlotte tomou fôlego. Sabia que Emily ia se zangar.
- George Ashworth era muito amigo do Chloe pouco antes que esta morresse. Levou-a a muitos lugares.
- Emily arqueou as sobrancelhas.
- Charlotte se mostrou surpreendida.
- Sim, isso pensava. Mas talvez não saiba a que tipo de lugares a acompanhava. Tratava-se de lugares onde uma mulher decente não deveria ir.
- Emily, por favor! -admoestou-a Sarah-. Sei que está aborrecida, mas não perca as maneiras.
- Não, não me refiro A... Os bordéis! -replicou Charlotte. Pelo menos acredito que não é isso. Mas não deveria tomar este tema tão à ligeira. Recorda que Chloe está morta e pensa em como morreu. A senhora Abernathy acredita que sua relação com o George Ashworth lhe custou a vida de uma ou outra forma.
- Sei que você não gosta de George e pode ser que inclusive esteja ciumenta, mas não pensei que cairia tão baixo! Deus sabe o muito que sinto a morte do Chloe, mas George não teve nada que ver com isso.
- Porque só uma mente retorcida como a sua poderia pensar algo assim! Conheço o George. por que ia fazer ele uma coisa tão horrível?
- Não sei! Mas não lhe digo isso com má intenção, me acredite. Se conto é porque não poderia suportar que se passasse o mesmo a você, se George apresentasse a alguém...
- Emily suspirou com desespero.
- Se Chloe se mesclava com más companhias era porque não tinha suficiente inteligência para distinguir o bom do mau. Suponho que não pensa que eu teria o mesmo problema, não é?
- Não sei o que dizer Emily – respondeu Charlotte com franqueza-. Algumas vezes me pergunto se...
- Emily ficou ainda mais na defensiva.
- O que pensam fazer, contar a papai?A expressão de Emily se suavizou.
- Para que? Ele poderia proibi-la que visse o George Ashworth... Mas você continuaria fazendo o que lhe parecesse, só que às escondidas, o que seria inclusive pior. Simplesmente lhe peço que tome cuidado.
- É claro, tomarei cuidado. Suponho que o diz por meu bem. Mas às vezes é tão... Pomposa e afetada que me desespera... Bom, estou muito cansada para prosseguir com este bate-papo. Boa noite.
- Uma vez que Emily se foi, Charlotte olhou para Sarah.
- Não pode fazer nada mais - comentou Sarah para tranqüilizá-la-. E, sinceramente, não acredito que Ashworth tenha algo que ver com esse assunto. Não são mais que imaginações da senhora Abernathy. Não se preocupe mais por isso. Boa noite.
- Boa noite, Sarah. E obrigada.Capítulo 8Edward ergueu a vista e se dispôs a lhe recriminar que tivesse entrado sem esperar resposta, mas ao vê-lo se levantou rapidamente.
- Em 2 de outubro, Maddock bateu na porta da sala de estar e entrou sem esperar resposta. Fora chovia torrencialmente e ele trazia a roupa empapada e estava lívido.
-
- Maddock! O que acontece? Está doente?
- Maddock tentou ficar erguido mas cambaleou um pouco.
- Não, senhor. Posso falar-lhe em privado?
- Do que se trata, Maddock? -Edward estava assustado e todos guardavam silêncio.
- Charlotte os olhou ansiosa, com um nó no estômago.
- Queria falar-lhe a sós, senhor – insistiu Maddock.
- Edward - disse Caroline-, se tiver ocorrido algo é melhor que saibamos todos. É preferível que Maddock nos conte isso a que nos deixe com semelhante desgosto.
- Maddock olhou ao Edward esperando uma resposta.
- Está bem - assentiu Edward-. O que ocorre, Maddock?
- Cometeu-se outro assassinato, senhor, em uma das esquinas do Cater Street.
- OH, Meu deus! -Edward ficou totalmente branco e se deixou cair na cadeira.
- Quem é a vítima? -perguntou Caroline com um fio de voz apenas audível.
- Verity Lessing, senhora, a filha do sacristão - respondeu Maddock-. Acaba de vir um policial para nos avisar e pedir que não nos movamos de casa e que não deixemos sair às criadas, nem sequer para ir ao porão.
- É claro. -Edward parecia muito afetado e tinha o olhar perdido-. Morreu da mesma maneira que...?
- Sim, senhor, estrangulada com um arame, como as outras.
- Será melhor que vá comprovar que as portas estão bem fechadas - propôs o mordomo-. E de passagem fecharei as venezianas. Assim as mulheres se sentirão mais seguras.
- Sim - respondeu Edward com ar ausente-. Sim, faça-o, por favor.
- Maddock - chamou Caroline quando o mordomo se dispunha a sair.
- Antes de nada nos traga uma garrafa de brandy e umas taças. Acredito que nos virá bem...
- Em pouco tempo se ouviu outra portada e entrou Dominic sacudindo a água da jaqueta.
- Deveria ter levado o casaco - disse olhando-as mãos molhadas-. Não esperava esta mudança de tempo. -Olhou os rostos, depois a garrafa de brandy e de novo os rostos-. O que se passa? Têm um aspecto desolador! Agora que penso nisso, a rua estava cheia de gente... Caroline - enrugou a fronte e a olhou fixamente-, não estará doente a avó, não é?
- Não. -Respondeu Edward por ela-. Assassinaram outra jovem. Será melhor que se sente e tome uma taça de brandy.
- OH, é terrível! -Conteve a respiração e perguntou-: De quem se trata desta vez?
- Dominic se sentou com expressão desolada.
- Sim. -Edward lhe serviu brandy e entregou-lhe a taça.
- Como foi? -perguntou Dominic, aturdido-. Acaso tornou a ocorrer no Cater Street?
- Em uma das esquinas, com um beco - explicou Edward-. Acredito que é hora de confrontar os fatos: seja quem for o louco, vive no bairro, perto do Cater, ou tem negócios por esta zona que o obrigam a vir muito freqüentemente.
- Ninguém respondeu. Charlotte olhou a seu pai. O primeiro que pensou foi o imenso alívio que lhe produzia o saber que tinha estado em casa toda à noite, que nesta ocasião, quando Pitt voltasse -não duvidava que o faria- não teria que interrogar a seu pai.
- Sinto-o - prosseguiu Edward-, mas não podemos fingir que se trata de algum criminoso dos bairros pobres que nos escolheu ao acaso.
- Papai - murmurou Emily assustada-, não acreditará que possa tratar-se de alguém que... Que conheçamos, não é verdade?
- Claro que não! -exclamou Sarah-. Tem que tratar-se de um perturbado mental.
- Isso não significa que não possa ser um conhecido nosso. -Charlotte deu rédea solta aos pensamentos que tinham ocupado sua mente-. Depois de tudo, alguém tem que conhecê-lo!
- Não entendo o que quer dizer - respondeu Sarah, incômoda-. Não conheço nenhum perturbado mental.
- O que pretende dizer, Charlotte? Que não poderíamos distinguir a um louco desse calibre de uma pessoa normal?
- Acredito nisso. -Charlotte o olhou desafiante-. Se fosse tão simples, quem o conhecesse já o teriam denunciado. Tenho certeza de que tem amigos, criados e vizinhos, e que vai comprar sempre na mesma loja, se é que não tem uma família em toda regra.
- Que horror! -exclamou Emily-. Imagine trabalhar como criada para uma pessoa assim ou o ter por vizinho, sabendo que está louco, que é um assassino...
- Isso é o que tento explicar. -Charlotte os olhou a todos com expressão ansiosa-. Duvido que vocês soubessem distingui-lo, porque nesse caso já o teriam detido faz tempo. A polícia interrogou a muita gente. Se alguém soubesse algo já teria vindo à luz.
- Bom, há várias pessoas que me parece que não são o que aparentam. –A avó falou pela primeira vez-. Sempre disse que não se pode saber que maldades se ocultam atrás do rosto cordial com que se apresenta a maioria das pessoas. Alguns com aspecto de Santos são verdadeiros diabos.
- E alguns que parecem diabos o são em realidade, por muitas voltas que alguém se empenhe em lhe dar -acrescentou a impulsiva Charlotte. .
- O que quer dizer? -respondeu a avó, inquieta-. Jovenzinha, já vai sendo hora de que controle sua língua! Em meu tempo, uma moça de sua idade sabia comportar-se.
- Em seu tempo as jovens não se expunham a que as assassinassem em seu próprio bairro -replicou Caroline para defender Charlotte e, indiretamente, a si mesma-. Ou isso ao menos é o que costuma nos contar.
- Talvez isso explique tudo! -exclamou a avó, irada.
- Explicar o que? -inquiriu Sarah-. Todos sabem que Charlotte não sabe morder a língua, mas daí a pretender que ela tenha a culpa dos assassinatos do Cater Street...
- Sarah, não seja impertinente! -ordenou a avó-. Você não é assim.
- Acredito que está sendo injusta, avó - disse Dominic com um sorriso. Sabia que a avó o achava encantador, e se aproveitava disso-. Todos estão muito afetados porque assassinaram a uma jovem que conhecíamos bastante.
- Assim é, mamãe - acrescentou Edward-. Talvez fosse melhor que retirasse a seu quarto. Caroline se encarregará de que lhe levem algo de beber antes que durma.
- A avó o desafiou com o olhar.
- Não tenho vontade de me deitar. E não vai tirar-me do meio! Acredito que é o melhor – insistiu Edward com firmeza.
- A avó não se moveu, mas Edward não retrocedeu em seu empenho e minutos depois a avó partiu à cama, por certo bastante desgostada.
- Graças a Deus! -exclamou Caroline-. Realmente é muito para mim.
- De qualquer modo - comentou Dominic carrancudo-, não podemos evitar que, como diz Charlotte, poderia tratar-se de qualquer um... Inclusive um conhecido ou um amigo da família...
- Deixa-o já, Dominic! -replicou Sarah-. Vai acabar por suspeitar de nossos vizinhos ou acusar a nossos amigos. Não poderemos falar com ninguém por medo de que seja o assassino.
- Possivelmente seria o mais sensato - murmurou Emily muito séria-, pelo menos até que encontrem o culpado.
- Emily! Como pode zombar de algo assim? Não é momento para brincar.
- Emily não está brincando - defendeu-a Dominic-. Está sendo pragmática, como sempre. E até certo ponto tem razão. Talvez se Verity Lessing tivesse sido mais precavida, continuaria viva.
- Ocorreu outra possibilidade à Charlotte.
- Acha isso, Dominic? Possivelmente seja essa a chave de que ninguém tenha ouvido nenhum grito. Talvez todas as vítimas conheciam o assassino e não se assustaram até que foi muito tarde.Charlotte pensava que Dominic tinha isso claro e surpreendeu-a comprovar que não era assim.
- Dominic ficou lívido. Evidentemente não tinha pensado nisso. Não tinha compreendido o que suas próprias palavras implicavam, não tinha imaginado nada parecido.
- Isso explicaria tudo - concluiu.
- Também poderia ser que as tivesse atacado inesperadamente e pelas costas - apontou Sarah.
- Acredito que esta conversa não conduz a nada – interrompeu Edward-. Não podemos nos proteger nos isolando de nossos conhecidos; além disso, correríamos o risco de cometer uma grave injustiça com eles. Só conseguiríamos nos assustar ainda mais.
- É fácil dizer - disse Caroline com o olhar fixo em sua taça de brandy-. Mas é mais difícil cumprir. Temo que a partir de hoje vou pensar nas pessoas de uma maneira distinta. Não poderei evitar me perguntar até que ponto conheço uma pessoa, e talvez os outros se perguntem o mesmo com respeito a mim ou a minha família. Sarah a olhou perplexa.
- Quer dizer que alguém poderia suspeitar de papai?
- Por que não? Ou do Dominic. Outros não o conhecem como nós.
- Charlotte recordou como sua mãe e ela tinham suspeitado de seu pai em um momento de fraqueza. Procurou não olhar a sua mãe. Quanto antes o esquecesse, melhor para todos.
- O que mais me assusta -admitiu Charlotte- é chegar a conhecer alguém que desperte minhas suspeitas justificadamente... e que a outra pessoa intua que sei e eu o veja refletido em seu rosto... e não fique mais remédio que me matar para que não o delate, sem me deixar sequer gritar socorro...
- Charlotte! -Edward ficou em pé e deu um murro na mesa-. Cale-se! Isso é absurdo e não faz mais que nos assustar, sem nenhuma necessidade. Nenhuma de vocês vai estar a sós com um homem assim nem com nenhum outro.
- Não sabemos de quem se trata. -Charlotte não pensava calar-se-. Poderia ser algum amigo no que confiássemos como em nós mesmos! Poderia ser o vigário, o menino do açougue ou o senhor Abernathy...
- Não seja ridícula! Certamente se trata de algum conhecido longínquo, se não de um completo desconhecido. Pode ser que não sejamos infalíveis selecionando nossas amizades, mas não podemos cometer um engano tão grave.
- Tem certeza? -Charlotte tinha o olhar perdido-. Pergunto-me até que ponto as aparências enganam, até que ponto podemos chegar a conhecer alguém. Se não sabemos muito de nossos seres queridos, quanto menos saberemos dos outros!
- Dominic a observava assombrado.
- Achei que nos conhecíamos bastante bem.
- Sério? -Charlotte cravou seu olhar naqueles brilhantes olhos negros e pela primeira vez não sentiu um calafrio-. Continua convencido disso?
- Talvez. -Desviou o olhar e se aproximou da garrafa de brandy para servir-se de um pouco mais-. Alguém quer outra taça?
- Acredito que será melhor que nos deitemos logo. Quando tivermos adormecido e tenhamos descansado, poderemos enfrentar melhor aos problemas e ser um pouco mais... Pragmáticos. Pensarei nisso e lhes comunicarei pela manhã como devemos agir até que detenham o assassino.A comida foi frugal -verduras e frios- e transcorreu em silêncio. Pela tarde, as quatro se dispuseram a ir apresentar suas condolências à casa dos Lessing e lhes oferecer sua ajuda, apesar de saber que não podiam fazer nada por mitigar a comoção ou aliviar a dor daqueles pais. Entretanto, tratava-se do tipo de visitas que convém fazer para evitar ferir suscetibilidades.Foram caminhando porque a casa dos Lessing não se achava muito longe. As venezianas estavam fechadas e havia um agente de polícia na porta. O homem parecia muito triste. Charlotte pensou que devia estar acostumado à morte e a violência, mas não ao sofrimento daqueles que tinham querido à vítima. É muito desagradável ter que contemplar o sofrimento que não se pode aplacar. Perguntou-se se Pitt teria essa sensação de impotência ou se estaria muito ocupado tentando encaixar todas as peças: quem estava onde, amores, ódios, móveis. de repente pensou no pouco que gostaria desse trabalho, no muito que a assustaria tamanha responsabilidade. Todo o bairro esperava que Pitt os liberasse de seus temores, que encontrasse ao culpado para comprovar que não se tratava de nenhum de seus seres queridos, todos depositavam nele, até sem dizer-lhe suas paixões, suas secretas suspeitas, seus medos íntimos e inconfessáveis. Esperavam que realizasse algum tipo de milagre? Pitt não podia trocar a realidade, talvez nem sequer pudesse dar com o assassino.Caroline se dirigiu para ela, abraçou-a e lhe deu um beijo na face. Verity era filha única.
- A criada as recebeu na porta, nervosa e com os olhos avermelhados. A senhora Lessing se achava na sala, que estava em penumbra por respeito à morte de sua filha; só havia umas pequenas lamparinas de gás acesas. A senhora Lessing estava vestida de negro, seu rosto estava muito pálido e seu cabelo um pouco revolto, como se não se desfizera do coque de noite e se limitou a arrumá-lo pela manhã.
- Todas elas vestiam cores escuras. Caroline ia de negro. Charlotte se olhou no espelho e não gostou do que viu. Usava um vestido verde com um cós negro e um chapéu também negro que não era muito favorecedor, sobre tudo sob a luz outonal.
- No dia seguinte lhes esperavam as ingratas tarefas de costume. Pela manhã, um policial foi informar lhes oficialmente do assassinato e para perguntar se sabiam algo a respeito. Charlotte se tinha perguntado se Pitt viria e se sentiu aliviada e decepcionada, ao mesmo tempo, quando comprovou que não era assim.
- Querida, sinto-o tanto! -disse com doçura-. Podemos ajudá-la em algo? Quer que uma de nós fique um momento para dar uma mão?Caroline a abraçou com ternura, acariciou-lhe o cabelo e lhe arrumou um pouco o penteado, como se isso pudesse ter alguma importância naquelas circunstâncias.
- Charlotte sentia uma pena terrível. Recordava a última vez que tinha visto Verity. Comportara-se um pouco grosseiramente e tinha previsto desculpar-se, mas agora já não teria ocasião de fazê-lo.
- A senhora Lessing não podia falar, seus olhos refletiam surpresa e a momentos esperança. De repente se pôs a chorar desconsoladamente e ocultou a rosto no ombro do Caroline.
- Senhora Lessing, eu gostaria de ficar um momento - explicou-. Tinha muito carinho a Verity. Por favor, me deixe ajudar. Sem dúvida há muito que fazer. Não deveria encarregar-se de tudo sozinha, e sei que o senhor Lessing tem obrigações que atender.
- Passaram uns minutos antes que a senhora Lessing pudesse dominar seu pranto. Voltou-se para a Charlotte embargada pela pena, mas sem envergonhar-se de seu estado.
- Obrigada, Charlotte. Por favor, fique.Foi um dia muito duro. O senhor Lessing era o sacristão da igreja e passava a maior parte do dia fora de casa. Charlotte esteve junto à senhora Lessing enquanto esta recebia às visitas que deviam expressar suas condolências. Não havia muito que dizer, todos repetiam as mesmas palavras de condenação do crime e de apoio à família, insistiam no muito que apreciavam ao Verity e expressavam seu medo de que ainda houvesse mais vítimas.
- É claro, o vigário passou por ali. Charlotte temia esse momento, mas sabia que era inevitável. Ao que parecia tinha estado ali na noite anterior, assim que se soube a notícia, mas decidiu voltar de novo, esta vez em companhia de Martha. A empregada os fez passar e Charlotte os recebeu na sala pois a senhora Lessing tinha aceitado, por fim, a deitar um momento e ficou adormecida.
- As demais não podiam acrescentar muito. Charlotte ficou ali porque queria fazer companhia à senhora Lessing; ao cabo de umas horas Maddock lhe levou roupa e um estojo de asseio.
- Ah, senhorita Ellison! -O vigário a olhou assombrado-. Veio visitar a senhora Lessing? Que boa é você! Mas já pode partir tranqüila; nós a atenderemos e a consolaremos nestes desgraçados momentos. O Senhor a deu e o Senhor a tirou.
- Não estou visitando a senhora Lessing - respondeu Charlotte com certa rudeza-. Estou lhe fazendo companhia e a ajudo no que posso. Há muitas coisas que atender...
- Tenho certeza de que nós poderemos nos encarregar disso. -Era evidente que ao vigário lhe incomodava algo; provavelmente o tom de Charlotte-. Estou mais acostumado a este tipo de situações que uma jovem inexperiente como você. Minha missão na vida é confortar aos que estão afligidos e sofrer com os que sofrem.
- Duvido que sobre tempo para organizar uma casa, senhor vigário. - Charlotte não cedia nem um ápice-. Como acaba de explicar, estará muito ocupado preparando o funeral, e como sua missão é confortar aos afligidos, terá outras obrigações com o passar do dia. Além disso, intuo que a senhora Abernathy segue precisando de seus serviços.
- Martha estava mais pálida do que o habitual até o ponto que seus olhos pareciam afundar-se em suas órbitas e as sobrancelhas pareciam muito negras. A pobre mulher aparentava estar a ponto de desmaiar apesar de sua robusta constituição e seus largos ombros.
- Por favor, sente-se. -Charlotte virtualmente a guiou até uma cadeira-. Deve estar exausta. Dormiu algo esta noite?
- Martha indicou que não e se desabou sobre a cadeira.
- É muito boa - murmurou com um fio de voz-. Há tantas coisas que atender: a comida, escrever cartas, preparar o luto e dirigir às criadas... A senhora Lessing dorme?
- Sim e prefiro não despertá-la salvo em caso de urgência - disse Charlotte com tom firme. Suas palavras foram dirigidas ao vigário apesar de continuar olhando para Martha.
- Esperava poder oferecer ajuda espiritual a esta mulher, mas se está dormindo será melhor que volte em outro momento.
- Acho isso - aprovou Charlotte. Não pensava lhes dizer que tomassem algo, mas ao ver o rosto de Martha, trocou de idéia-. Desejam tomar algo? Não é trabalho.Quando se foram, Charlotte se aproximou da cozinha e pediu que preparassem um jantar ligeiro e algo para oferecer aos convidados do dia seguinte. Uma das criadas lhe comunicou que a polícia acabava de chegar. Charlotte sabia que viriam, tinha estado esperando-os durante todo o dia e, entretanto, nesse momento, pilhavam-na de surpresa.
- Tratava-se do Pitt, é claro. Sentiu-se algo incômoda ao pensar que a ia encontrá-la ali, tentando ajudar.
- Martha se dispôs a aceitar, mas de repente seu rosto refletiu uma mescla de dúvida e ansiedade e, depois de uma hesitação, optou por levantar-se e recusou o convite.
- Boa noite, senhorita Ellison - disse sem mostrar surpresa-. A senhora Lessing se encontra bem para falar comigo? Sei que o senhor Lessing ainda está na igreja.
- Suponho que é necessário que fale com você - respondeu Charlotte em voz baixa, com um tom que não fosse muito rude-. Possivelmente seja melhor não atrasá-lo. Não há forma de evitá-lo. Se não lhe importa esperar um momento, irei despertá-la. Se demorar um pouco não se preocupe.
- É claro - disse Pitt, e ficou pensativo-. Charlotte! -chamou-a quando a jovem se encaminhava para a porta.
- Se estiver doente ou muito triste posso esperar até manhã. Simplesmente temo que tampouco então seja muito fácil para ela. Talvez descanse melhor uma vez feito.
- É possível. Posso ficar se ela o desejar?
- Preferiria que o fizesse.Pitt se mostrou muito amável com ela, mas as perguntas eram indevidamente dolorosas. Quais eram os amigos de Verity? Com quem saía ultimamente? Tinha pretendentes? Tinha medo de algo? Até que ponto conhecia Chloe Abernathy? Tinha visitado os Hilton ou os Ellison? Conhecia as criadas ou elas ao Verity? Suspeitava de alguém?Pitt decidiu deixar para outro momento e se levantou para partir. Observou como à senhora Lessing caminhava lentamente pelo corredor e fechava a porta de seu quarto.
- A senhora Lessing não foi de muita ajuda. Respondia às perguntas com a falta de precisão que caracteriza as pessoas que se encontram comocionadas, como se não entendesse o motivo das diferentes perguntas.
- Demorou uns minutos em despertar à senhora Lessing e em convencer a de que tinha um aspecto apresentável, sobre tudo para ver um simples polícia. Comentou-lhe que se tratava de um homem cortês, que não tinha nada que temer pois não era culpada de nada e que descansaria melhor depois de ter completado com seu dever de colaborar na investigação. Não teve coragem para lhe dizer que certamente aquele seria o primeiro de muitos interrogatórios. Tinha bastante se enfrentando ao primeiro.
- A ela nem sequer lhe ocorreu queixar-se de que Pitt a chamasse por seu nome de batismo.
- Sim. Há muitas coisas que fazer e o senhor Lessing não pode deixar seu trabalho. Não é um homem muito prático e não sabe levar uma casa.
- Talvez seja melhor que a deixe a ela encarregar-se de algumas coisas. O trabalho não cura a dor, mas pode aliviá-la. Quando a gente está desocupado tem mais tempo para pensar.
- Sim... Assim o farei. Procurarei coisas simples que ela possa fazer , eu me encarregarei do mais complexo: preparar o funeral, avisar às pessoas e todo o resto.
- Pitt lhe dedicou um sorriso.
- Em meu trabalho me toca ver muitas tragédias e feitos atrozes, mas felizmente, também posso ver atitudes de afeto e solidariedade. Boa noite. –Ao chegar à porta se voltou-. Por certo, não esqueça que não deve sair sozinha sob nenhuma circunstância. Se precisar de um médico, envie a alguém para buscá-lo ou peça ajuda aos vizinhos. Eles o entenderão, sem dúvida.
- Descobriu algo mais? Refiro a que classe de homem pode ser o assassino... -Estava pensando no George e Emily.
- Sabe algo mais que queira me contar? -Olhou-a com tal intensidade que parecia capaz de lhe ler o pensamento, como se a conhecesse muito bem e fosse igual e não um simples polícia.
- É claro que não. Se soubesse algo o contaria.
- Tem certeza de que o faria? -apontou Pitt com certa desconfiança-. Embora não fosse mais que uma suspeita por confirmar? Não temeria ferir alguém, talvez a algum ser querido?
- Charlotte estava a ponto de lhe gritar que nenhum de seus seres queridos podia ter nada que ver com os assassinatos; mas algo nele a impulsionou a ser sincera. Devia escolher entre sua inteligência ou sua honestidade.
- Sim, é claro que temeria ferir alguém com uma simples suspeita. Mas suponho que você não é a classe de pessoa que adianta conclusões simplesmente porque alguém lhe faz partícipe de suas impressões.
- Assim é. Do contrário acabaríamos com dez detidos para um só crime. - Sorriu de novo mostrando seus dentes brancos-. A quem tenta proteger?
- Está se antecipando aos fatos! -replicou aborrecida. - Eu não disse que soubesse algo.
- Não o disse diretamente, mas suas evasivas assim o dão a entender.
- Ela se virou e decidiu não lhe contar nada.
- Equivoca-se. Tomara soubesse algo que pudesse servir para esclarecer o caso, mas não é assim. Sinto lhe haver dado a impressão contrária.
- Trata-me você com muita familiaridade, inspetor Pitt.
- Pitt se aproximou da jovem por detrás, sem deixar de olhá-la. Charlotte recordou as palavras do Emily sobre o interesse do Pitt e começou a corar de vergonha. De repente compreendeu que era certo. Não se atrevia a mover nem um cabelo.
- Charlotte - disse ele com amabilidade-. Esse homem matou a quatro mulheres até a data. E nada indica que pense deter-se. É provável que não possa evitar continuar matando. É preferível suspeitar de um inocente injustamente por um tempo (não seria nem o primeiro nem o último) que não fazer nada por evitar que matem a outra mulher. Que idade tinha Lily? Dezenove? Verity Lessing só tinha vinte. Chloe Abernathy era um pouco mais velha. E a criada dos Hilton? Nem sequer recordo seu nome! Se esquecer o monstruoso do caso, vá acima e olhe à senhora Lessing...
- Já sei! -replicou Charlotte-. Não tem que me recordar tudo isso! Estou aqui desde ontem à noite.
- Então, me diga o que tenha visto, pensado ou ouvido... Seja o que for. Se me equivocar, já retificarei; não acusaremos a um inocente. Apanharemos ao culpado um dia destes, mas mais vale que seja antes que volte a matar.
- Ela se virou sem pensar duas vezes e o olhou diretamente nos olhos.
- Acredita que voltará a matar?
- Charlotte fechou os olhos para não vê-lo.
- O que aconteceu? Este era um lugar tranqüilo e agradável para viver. Não havia mais dramas que alguma que outra história de amor rompida e um pouco de fofoca. Mas logo as pessoas morrem assassinadas e todos nos olhamos com desconfiança. Ocorre-me! Olhou aos homens nos que confiei durante anos e me pergunto se poderiam ser o assassino. Minhas suspeitas me envergonham. Posso ver em seus rostos que sabem que não confio neles. Isso é quase o pior! Sabem que me faço perguntas, que não estou totalmente certa deles. Como acredita que se sentem? Como deve sentar o olhar à esposa ou a filha e saber que não têm sabor de ciência certa se a gente for ou não o assassino. Deve doer muito simplesmente assumir que lhes tenha ocorrido duvidar de alguém. Acaso isso se pode esquecer e manter a mesma relação que antes? Pode o amor resistir a uma prova semelhante? Acaso o amor não supõe ter confiança e fé em alguém, conhecer tão bem a essa pessoa que se possa descartar toda suspeita?
- Manteve os olhos fechados.
- Dei-me conta de que mal conheço às pessoas que quero - prosseguiu-. E me dou conta de que a outros passa o mesmo. Todos os que se aproximaram desta casa olham ao redor e tentam achar um culpado alheio a eles, para não ter que entristecer-se ainda mais. Os rumores acabam convertendo-se em certezas. Não só sofrem os mortos e quem os queria.
- Então me ajude Charlotte. Diga-me o que sabe ou o que suspeita.
- George Ashworth. Lorde George Ashworth. Era muito amigo do Chloe Abernathy antes que a matassem. Levou-a a lugares pouco adequados, pelo menos isso afirma à senhora Abernathy. Eu acredito que, apesar do que meu pai opina Chloe não era uma garota imoral, simplesmente era um pouco idiota.
- Ela abriu os olhos perplexa.
- Ashworth sai com Emily muito freqüentemente. Rogo-lhe que comprove que ele não... que não é um...
- Pitt fez um gesto de descontentamento.
- Vigiarei ao senhor Ashworth com discrição. Prometo. Conhecemo-lo bastante bem, ao menos sua reputação.
- Quero dizer que é um cavalheiro com gostos um tanto... Peculiares. O dinheiro e o título lhe permitem fazer impunemente coisas pelas quais outros pagariam muito caro. Suponho que falar com a Emily não serviria de nada.
- De nada, com efeito. Já o tentei e se me tivesse feito algum caso não incomodaria a você.
- É claro. Não se preocupe. -Deixou cair sua mão como se fosse tocar lhe o braço mas não chegou a fazê-lo.
- Porei lorde Ashworth sob vigilância. Farei o que possa para evitar que Emily sofra algum dano, embora não posso impedir que se leve um bom susto.
- Isso não lhe faria nenhum dano - apontou Charlotte, sentindo-se muito aliviada-. Obrigada, inspetor. Alegra-me que... Empreste-me sua ajuda.
- Pitt se ruborizou ligeiramente e se deu a volta disposto a partir.
- Pensa ficar com a senhora Lessing até depois do funeral? –perguntou antes de sair.
- Por nada. Boa noite... Senhorita Ellison. Obrigado por sua colaboração.
- Boa noite, inspetor Pitt.Falaram de coisas corriqueiras, mas para Charlotte só importava estar junto a ele e que lhe prestasse toda sua atenção.
- O condutor desceu a mala e Maddock se encarregou de levá-la a casa. Charlotte entrou na casa agarrada pelo braço de Dominic; era uma sensação maravilhosa. Mas todo se esfumou ao entrar na sala de estar. Sarah estava sentada em um sofá, costurando, e os olhou com cenho.
- Uma semana depois, já passado o funeral, Charlotte deixou a casa dos Lessing. Pitt não era o único que lhe tinha proibido que fosse sozinha a nenhum lado, também seu pai tinha insistido nisso. Alegrou-se muito ao ver Dominic descer da carruagem na qual ia procurá-la. Nada podia apagar o grande prazer que supunha para ela achar-se com o Dominic, nem as lembranças do funeral, nem o patético do duelo nem a dor da senhora Lessing. Ao ver seus olhos sentiu que ele a acariciava. Seu sorriso a reconfortou, diluindo os restos de medo e impotência que ficavam nela. Subiu ao carruagem, sentou-se a seu lado e por um momento o tempo se deteve; não existiam nem o passado nem o futuro.
- Isto não é um baile, Charlotte - disse com dureza-. E a menos que esteja a ponto de se desvanecer, não acredito que precise se apoiar em ninguém dessa maneira!Charlotte ficou gelada e sentiu como se o braço lhe tivesse morrido, apesar de que continuasse em contato com o do Dominic. Talvez estivessem muito agarrados; não podia negar que o tinha feito a consciência. Agora se sentia incômoda e culpada. Tentou retirar o braço, mas Dominic o impediu.
- Emily estava sentada ao piano e se concentrou em suas mãos ao mesmo tempo em que se ia ruborizando.
- Sarah - disse com gravidade-. Charlotte acaba de voltar para casa depois de ter feito uma obra de caridade. Teria gostado que a deixasse voltar sozinha?
- Parece-me bem que a receba cordialmente. -Sarah estava aborrecida e seu tom era duro-. Mas não vejo por que tem que entrar tão caramelados o um com o outro!
- Charlotte se soltou, com o rosto aceso de raiva.
- -Sinto tê-la ofendido, Sarah, mas até que abriu a boca estava mais que feliz de voltar para casa.
- E agora já não? -replicou Sarah.
- Sem dúvida destruiu o encanto da volta. -Charlotte estava se zangando. Aquilo era injusto; sua imprudência não merecia uma crítica tão severa e ainda menos em público.
- Foi à volta da esquina - recordou Sarah-. Não a Austrália!
- Ficou-se com a senhora Lessing para ajudá-la a superar o mau pedaço e isso é um ato especialmente caridoso. -Dominic também começava a irritar-se-. Não pode ter sido nem fácil nem agradável, dadas as circunstâncias. Sarah lhe lançou um olhar feroz.
- Sei perfeitamente onde esteve. Não é preciso que adote uma atitude devota. Tratava-se de uma boa obra, certamente, mas isso não a converte em uma Santa.
- Charlotte não entendia o que ocorria. Observou a expressão de Sarah e leu o ódio em seus olhos. Afastou a vista; tudo aquilo a punha doente. Emily não levantava o olhar do teclado, assim decidiu voltar-se para o Dominic.
- Isso! -Sarah ficou de pé-. Olhe ao Dominic! Não espero outra coisa de você, só que deveria fazê-lo a minhas costas!
- Charlotte engoliu e disse:
- Sarah não sei a que se refere, mas se insinuas que existe algo impróprio ou ofensivo para você, equivoca-se. E não tem direito a me criticar. Não há nada censurável entre nós, e acredito que me conhece o suficiente para saber que não tinha que me ter acusado de algo assim.
- Achei que te conhecia! Mas agora me dou conta de quão cega estive enquanto você realizava sua obra de caridade em casa da senhora Lessing. É uma perfeita hipócrita, Charlotte. Nunca o tinha suspeitado de você.
- E tinha razão em não suspeitar! -Charlotte ouvia sua própria voz como se chegasse de algum lugar remoto-. Não fiz nada de mau. É agora quando se equivoca, não antes.
- Dominic voltou a tomá-la pelo braço e Charlotte tentou libertar-se, sem êxito.
- Sarah - disse Dominic com calma-. Não sei o que imaginou e não quero saber. Mas acredito que deve uma desculpa à Charlotte por seus maus pensamentos e por não tê-la escutado.
- Sarah o olhou com rancor e os lábios contraídos em uma careta de desgosto.
- Não minta pra mim Dominic. Sei que não estou inventando isso.
- Dominic ficou pálido e perplexo.
- Não está inventando? Não há nada entre nós!
- Sei tudo, Dominic. Emily me contou isso.
- Aquela era a primeira vez que Charlotte via o Dominic realmente zangado. De repente Emily pareceu muito assustada.
- Não tente intimidar Emily ou fazê-la sentir-se mau. -Sarah deu um passo à frente.
- Intimidá-la? -Dominic arqueou as sobrancelhas divertido - A Emily ninguém intimidou nunca. Seria impossível!
- Não se faça de engraçado! -protestou Sarah.
- Charlotte deixou de olhá-los e observou ao Emily, que ergueu um tanto o queixo.
- Contou ao inspetor Pitt sobre George e Chloe Abernathy - disse com um ligeiro tremor na voz.
- Porque temia por sua segurança! -defendeu-se
- Charlotte, apesar de que se sentia um pouco culpada. Sabia que Emily considerava uma traição.
- Por que temia por minha segurança? Assusta-a que possa me casar com George e que você se converta na única solteira da família? -Estava pálida e fechou os olhos. - Sinto muito. Não devia ter dito isso.
- Pensei que podia ter matado ao Chloe e que você poderia pôr em perigo sua vida - explicou Charlotte. Tivesse dado algo porque Dominic não estivesse presente e não escutasse todo aquilo.
- Equivoca-se - replicou Emily serena e com os olhos ainda fechados-. George tem muitos defeitos, defeitos que provavelmente você não suportaria, mas não poderia ter cometido um crime semelhante. Pensa que quereria me casar com um assassino?
- Não. Mas acredito que poderia descobri-lo mais tarde e que isso lhe custaria a vida.
- Ele me traz sem cuidado! - exclamou Charlotte exasperada - Só pensava em você!Dominic seguia zangado.
- De modo que inventou algo sobre Charlotte e o contou Sarah para se vingar de sua irmã? -acusou-a.
- Emily ficou muito séria; parecia sentir-se terrivelmente envergonhada.
- Não deveria ter dito nada - admitiu olhando ao Dominic.
- Então retifica e pede perdão - exigiu ele.
- Emily franziu o sobrecenho.
- Não deveria ter dito, mas isso não significa que tenha contado uma mentira. Charlotte está apaixonada por você. Está-o desde que veio pela primeira vez a casa. E o adula essa situação. Você gosta. Não sabemos bem até que ponto... - Deixou a última questão pendente, a modo de dolorosa sugestão.
- Emily! -exclamou Charlotte.
- Emily se voltou para ela.
- Pode remediar o que disse ao inspetor Pitt? Pode fazer que o esqueça? Pois terá que viver com isso assim como eu - disse, e partiu da sala.
- Charlotte ficou olhando para Sarah.
- Espera-se que me desculpe, espera em vão - disse Sarah-. Poderia ser amável de subir a seu quarto para desfazer a mala? Eu gostaria de falar com meu marido a sós. Suponho que não estranhará que queira lhe perguntar certas coisas! No dia seguinte Dominic foi à cidade, como de costume. De noite tinham previsto jantar com um brigadeiro retirado. Era um encontro que Sarah tinha muita ilusão e fazia tempo que esperava esse momento. Mas quando chegou a casa achou que Sarah não só não estava contente de vê-lo, mas também parecia extremamente chateada com sua presença. Felicitou-a pelo bem que ficava o vestido, contou-lhe tudo o que tinha averiguado sobre a mulher do brigadeiro e seus conhecidos, e comentou que tinha certeza de que ela estaria à altura das circunstâncias. Beijou-a procurando não danificar nem seu vestido nem seu penteado. Mas nada do que fez produziu o efeito desejado; Sarah se escorria quando Dominic se aproximava e evitava olhá-lo nos olhos.Estiveram a sós pela primeira vez quando se sentaram na carruagem para voltar para casa.
- Não teve oportunidade de lhe perguntar o que lhe incomodava tanto. Durante o jantar tentou falar com ela duas ou três vezes, mas Sarah não o escutava, mudava de assunto e se ninguém vinha a interrompê-los espontaneamente, ela procurava a forma de incluir a outra pessoa na conversa.
- Capítulo 9
- Charlotte titubeou, mas não podia fazer nada mais, salvo piorar. Soltou o braço do Dominic e partiu. Talvez no dia seguinte alguém se desculpasse ou talvez não. Mas dissessem o que dissessem nada poderia apagar a lembrança daquele dia. Os sentimentos mútuos não voltariam a ser os mesmos. O que tinha explicado ao Pitt era verdade. Todo aquilo era como os círculos concêntricos que se formam na água ao atirar uma pedra: cada vez se formava um círculo maior e aquilo podia não acabar nunca.
- Sim? -respondeu sem olhá-lo sequer.
- O que lhe passa Sarah? Leva toda a noite me tratando como a um estranho. Bom, nem sequer como a um estranho, com um estranho teria um pouco mais de educação.
- Sinto que pense que não sou suficientemente educada.
- Basta já, Sarah! Se algo não vai bem me diga para discutir com você?
- Se algo não vai bem? -voltou-se para olhá-lo. Em seus olhos se refletia a luz das luzes-. Sim, algo vai muito mal, e se não o sabe é que seu sentido moral deixa muito a desejar. Não tenho nada mais que acrescentar.
- Sentido moral? Meu Deus! Suponho que não seguirá zangada porque ontem tomei Charlotte pelo braço. É absurdo e você sabe. Só quer achar uma desculpa para brigar comigo. Pelo menos seja sincera.
- Uma desculpa? Isso acredita? Passa o tempo paquerando com minha irmã, tomando sua mão, lhe sussurrando ao ouvido e só Deus sabe que mais. E acha que necessito de uma desculpa para discutir com você? -A voz lhe tremia. Deu-lhe de novo as costas.
- Dominic a rodeou com seus braços, mas Sarah não cedeu.
- Sarah, não seja ridícula. Charlotte não me interessa mais que como tua irmã. Gosto dela, mas nada mais. Por Deus! Conheci a Charlotte no mesmo momento que a você, se a tivesse querido não teria me comprometido com você!
- Isso ocorreu faz seis anos! A gente muda-protestou, embora se notasse que estava aborrecida consigo mesma por dizer algo extremamente vulgar.
- Dominic estava de causar pena e não queria feri-la, mas aquele assunto lhe parecia um exagero. Estava indignado porque sua mulher tinha estragado uma noite que podia ter sido maravilhosa e se pôs a discutir sobre uma tolice quando ambos estavam cansados.
- Sarah, tudo isto é uma tolice. Não mudei que opinião em todos estes anos e não acredito que você o tenha feito. E pelo que sei Charlotte tampouco. Mas, de qualquer modo, Charlotte não pinta nada nesta história. Tenho certeza de que percebeu que Emily se misturou porque está apaixonada pelo George Ashworth e Charlotte contou a esse polícia como que Ashworth conhecia o Chloe mais do que dava a entender. Confio em que tenha suficiente bom senso para ver que nada do que lhe contou sua irmã tem fundamento.
- Por que se zanga se não é culpado de nada? -inquiriu ela com voz serena.
- Porque tudo é uma tolice!
- Acabo de descobrir que está apaixonado por minha irmã e que ela lhe corresponde e pensa que é uma tolice que isso me afete?
- Sarah rogo-lhe que esqueça tudo isso – respondeu bastante perturbado-. Nada do que diz é verdade e sabe disso. Jamais cortejei a sua irmã, nem remotamente. Para mim só é minha cunhada. É inteligente e chicoteada e pensa por si mesmo... Mas isso não são atributos que resultem especialmente femininos, como você mesma comentou em tantas ocasiões.
- Não parece que isso incomode ao inspetor Pitt - replicou Sarah-. Está apaixonado por ela, isso o veria até um cego.
- Por Deus, Sarah! O que tenho eu que ver com esse vulgar polícia? Além disso, suponho que à Charlotte isso não a incomoda. É um homem de classe operária! Não é melhor que um comerciante! Por que não teria que apaixonar-se pelo Charlotte sempre e quando recordar qual é seu lugar? Ela é uma jovem muito atraente...
- Isso acha verdade! -exclamou com um tom recriminatório que implicava certo triunfo.
- Sim, sim acredito! - ergueu a voz indignado. Começava a cansar-se de que sua mulher se comportasse de um modo tão estúpido. Já não agüentava mais, não estava de humor para tudo aquilo. Tinha sido paciente durante toda a noite, mas sua paciência começava a esgotar-se a passos dilatados. - Rogo que não siga por esse caminho. Não fiz nada pelo que tenha que te pedir perdão nem nada que justifique seu aborrecimento.Quando despertou na manhã seguinte, Dominic tinha esquecido todo o assunto, mas Sarah se encarregou de recordar-lhe com dureza. As coisas não tinham melhorado. Além disso, entre a Emily e Charlotte persistia certa tensão, mas ninguém além dele parecia apreciar.O dia seguinte tampouco foi muito melhor, de modo que Dominic decidiu ir jantar no clube. Passaria o aborrecimento de Sara um dia ou outro, mas de momento a situação era insustentável. Dominic não entendia o propósito de tudo aquilo. Com a Charlotte não lhe unia nada que não fosse uma boa amizade. Sarah sabia. Há tempos as mulheres se empenhavam em coisas estranhas, difíceis de explicar. Costumava ser uma escura maneira de conseguir chamar a atenção e em pouco tempo, tudo voltava a a normalidade. Fosse o que fosse o que Sarah desejava, estava-se passando um pouco da raia. Estava aborrecido da situação e começava a zangar-se a sério.
- Jantou no clube durante duas noites mais. À terceira noite, escutou uma conversa que mantinham uns homens que viviam relativamente perto do Cater Street. A princípio não lhe prestou muita atenção, mas se interessou quando os ouviu comentar os assassinatos.
- Mantiveram conversas muito suscitas. Caroline comentou algumas fofocas e Edward não se interessou muito pela questão. A única que se apaixonou pelo tema foi à avó. Parecia muito interessada em arejar os segredos dos vizinhos, especialmente os dos homens que viviam perto do Cater Street. Finalmente, Edward lhe rogou com tom cortante que se calasse.
- Sarah não acrescentou nada mais, mas quando chegaram a casa subiu pela escada sem saudar ninguém. Dominic o contou tudo ao Edward e logo subiu a seu quarto. Sarah já estava na cama e lhe dava as costas. Por um momento Dominic pensou em aproximar-se dela, mas o desprezou; não gostava. Estava muito cansado para um último esforço ou para ser hipócrita. Despiu-se e se meteu na cama, sem dizer palavra.
- Está tudo infestado de malditos policiais, mas não encontram ao assassino.
- Os pobres diabos estão tão perdidos como nós - apontou outro.
- Mais perdidos ainda! Nem sequer pertencem a nosso mundo, formam parte de outra classe social. Não nos entendem ao igual a nós não os entendemos a eles.
- Meu deus, não estarão sugerindo que esse louco possa ser um cavalheiro, não é verdade?
- Meu Deus! -repetiu aflito.
- Bom, temos que admiti-lo. Se tratasse de um estranho alguém o teria visto. -O homem se inclinou-. Santo Deus, senhores, com o medo que temos todos agora, acreditam que um estranho poderia passar inadvertido? Todo mundo observa até o mínimo detalhe. As mulheres não se atrevem a ir sozinhas nem a casa do vizinho, e os homens estão atentos e à espera que algo aconteça. Os repartidores assinam em todas as partes, querem que se saiba onde estiveram em cada momento. Inclusive os taxistas começam a mostrarem-se reticentes na hora de levar a alguém ao Cater Street. A semana passada a polícia deteve dois deles, simplesmente porque não era gente do bairro.
- Sabem - disse outro dos homens, carrancudo-, acabo de recordar algo que disse o velho Blenkinsop o outro dia. Pensei que estava brincando, mas agora me dou conta de que era uma forma indireta de dar a entender que suspeitava de mim.
- É certo, isso é o pior desta história: todos olham a todos com inquietação, e embora não digam nada se vê perfeitamente o que estão pensando. Até os meninos dos recados me olham mal!
- Não é você o único, amigo. Emprestei a carruagem a minha mulher, que ia voltar um pouco tarde, e quando quis tomar uma carruagem para voltar para casa, o cocheiro me pediu a direção e ao sabê-la se negou a me levar. "Não vou ao Cater Street", teve o descaramento de me dizer.
- Um deles viu o Dominic com a extremidade do olho.
- Ah, Corde! Você entenderá do que estamos falando. É terrível, não é? Todo mundo se tornou louco. Sem dúvida se trata de um demente.
- Desgraçadamente isso não está tão claro - replicou Dominic, enquanto se sentava na cadeira que lhe tinham indicado.
- Não? Por quê? A que se refere? Eu diria que uma pessoa em seu são julgamento não se dedica a estrangular mulheres indefesas pelas ruas...
- O que quero dizer é que sua loucura pode não aflorar em seu trato cotidiano com outros - explicou Dominic-. Pode não refletir-se nem em seu rosto, nem em sua atitude nem em nada. É provável que pareça uma pessoa normal, como qualquer de nós. -Recordou as palavras do Charlotte-. Inclusive poderia estar entre nós, ser um destes ilustres cavalheiros.
- Não acredito que seja momento para brincadeiras, senhor Corde. Parece-me de muito mau gosto, na verdade.
- Brincar sobre um assassinato é algo desagradável, mas eu não estava brincando. Embora não confiemos na inteligência da polícia, parece claro que se a loucura do assassino fosse muito evidente alguém o teria denunciado, não lhe parece?
- O homem o olhou com aborrecimento e logo empalideceu.
- Bendito seja o céu! É uma idéia inquietante. Não é agradável saber que os vizinhos desconfiam de uma pessoa...
- Você alguma vez suspeitou de alguém?
- Admito que sim. Gatling se comportava de uma maneira muito estranha. Surpreendi-o sendo muito solícito com minha esposa, noutro dia. Tinha as mãos onde não correspondia com a desculpa de que lhe ajudava a colocar o xale. Queixei-me, na hora e não voltei a pensar nisso. Talvez por isso esteja tão aborrecido comigo agora, talvez pensasse que suspeitava que... Bom, tudo isso já é água passada.
- Tudo é muito desagradável. Sinto-me como se ninguém fosse sincero. Vejo duplos sentidos e intenções ocultas a cada momento.
- O que não posso suportar é que as criadas me olhem como se fosse um...
- E o bate-papo seguiu desta maneira. Dominic teve que escutar as mesmas coisas uma e outra vez: expressões de vergonha, de raiva, de impotência... E sobre tudo a sensação de que em algum lugar, perto deles, o assassino podia voltar a matar, e talvez a vítima fosse algum de seus seres queridos.Uma semana depois, Dominic se achou com um George Ashworth muito elegante; estava claro que pensava sair àquela noite.
- Dominic queria esquecer, desejava que, ao menos por umas horas, tudo voltasse a ser como antes do primeiro assassinato.
- Corde! -Ashworth lhe deu uma palmada no ombro-. Quer se divertir? Mas não o diga à Sarah! -Sorria para deixar claro que se tratava de uma brincadeira. É claro, a ninguém ocorreria que Dominic fosse contar algo assim a sua esposa. As pessoas não explicavam certas coisas a uma mulher, a nenhuma, salvo às prostitutas.
- Dominic o decidiu rapidamente.
- É justo o que necessito. Irei com você. Aonde vamos?
- Acabaremos no Bessie Mullane, mas antes visitaremos outros lugares.
- Fantástico! Conheço um lugar que você adorará; é pequeno, mas servem boa comida e a companhia é muito grata.
- Assim foi. O lugar era um pouco indecoroso, mas Dominic nunca tinha provado uma comida melhor nem tinha bebido com tanto prazer. Ao Ashworth o conheciam bem e o tratavam com deferência. Não levavam ali nem meia hora quando se aproximou um jovem Dandy, vestido de forma algo extravagante e um tanto bêbado, mas correto.
- George! -exclamou com alegria-. Fazia semanas que não o via! - sentou-se em uma cadeira-. Boa noite, cavalheiro. -Fez uma reverência olhando ao Dominic-. Viu ao Jervis? Sei que anda um pouco abatido e não consigo achá-lo.
- O que lhe passa? -perguntou Ashworth-. Por certo - indicou ao Dominic-, Dominic Corde, Charles Danley.
- Danley saudou com a cabeça e logo disse:
- O muito idiota do Jervis perdeu nas cartas muito dinheiro.
- Não se devem jogar mais do que se tem - respondeu Ashworth-. Cada um deve manter-se dentro de seus próprios limites.
- Enganaram-no. -Danley soprou-. O outro fez armadilhas. Precisei advertir-lhe antes que começasse a jogar com ele.
- Pensava que Jervis era bastante rico. -Ashworth arqueou as sobrancelhas com gesto interrogativo-. Recuperar-se-á. Basta que reduza suas diversões por uma temporada.
- Isso não é o pior. O muito idiota se atreveu a chamar trapaceiro o seu competidor.
- Ashworth esboçou um sorriso.
- O que aconteceu? Desafiaram-se a duelo? Pensava que depois do escândalo de faz um ano entre o Churchill e o príncipe do Gales teria a sensatez de não meter-se em problemas...
- É claro que não o desafiou! Ao que parece a armadilha foi bastante áspera e podia demonstrar facilmente... e foi bastante estúpido para fazê-lo!
- Por que estúpido? -interrompeu Dominic com curiosidade-. Eu diria que se um homem é tão mesquinho para fazer armadilhas, e ainda por cima fazê-las mau, merece que o descubram.
- Naturalmente. Mas se tratava de um personagem muito irritável e com muito poder nas altas esferas. Isso o arruinaria. O pior pecado é não saber fazer armadilhas. Implica que nem sequer se tem o suficiente respeito pelo competidor para fazê-lo bem. Mas não se deixará afundar sem arrastar ao Jervis com ele.
- Ashworth enrugou a frente.
- Mas como? Jervis não fez armadilhas, não é? E embora as fizesse não o descobriram que é do que se trata. Ao fim e ao cabo, todo mundo faz armadilhas. Se lhe acusar de algo parecerá que o faz por simples rancor.
- Não tem nada que ver com as armadilhas, amigo. O homem está casado com a prima do Jervis, a quem este quer muito.
- Parece que ela tem um amante, algo habitual e nada grave. No matrimônio tiveram cinco filhos e ao que parece se cansaram um do outro. Uma situação compreensível e correta desde que se mantiver a discrição, mas ela não soube fazê-lo. Foi a uma estalagem o fim de semana com o amante e não fechou bem a porta. Alguém entrou em seu quarto por engano, e os achou na cama. O pior é que o miserável trapaceiro ameaçou pedir o divórcio!
- Ashworth fechou os olhos.
- Meu deus! Isso suporia sua ruína.
- É claro. O pobre Jervis se desgostou o bastante. Quer muito a sua prima, além disso, há o descrédito que isso suporia para o bom nome de sua família. Não se olha bem quando tem um parente divorciado.
- E o marido trapaceiro fica impune?
- Passá-lo-á mal um tempo, mas voltará a casar-se quando queira. Em troca ela, pobrezinha, converter-se-á em uma proscrita. Com histórias assim, a gente aprende quão importante é fechar bem as portas.
- Surpreendeu-a o próprio marido?
- Felizmente não. Ele estava na cama com o Dolly Lawton-Smith, alheio ao mundano ruído. Mas isso carece de importância. É diferente quando se trata de um homem.
- O que acontece com Dolly? Suponho que não lhe fez nenhum bem.
- Tampouco lhe causou muito problema. Todo mundo sabe o que fazem outros, o que importa é que não o vejam. Que lhe descubram é inaceitável vulgar. A pessoa fica em ridículo. Um divórcio não tem muita transcendência quanto ao homem se refere, mas à mulher a arruína totalmente. Depois de tudo, uma coisa é divertir-se um pouco e outra coisa converter-se no bobo porque sua mulher prefere estar com outro homem.
- OH, acredito que chegaram a um acordo amistoso. Não pensa divorciar-se dela, se refere a isso. por que teria que fazê-lo? Ninguém lhe pôs em evidência enquanto fazia armadilhas jogando a cartas!
- Pobre Jervis! -suspirou Ashworth-. Sem dúvida lhe tocou um mau pedaço!
- Falando de maus pedaços, o que opina desse turvo assunto do Cater Street? Quatro assassinatos! Tem que tratar-se de um louco. Alegro-me de não viver ali - de repente enrugou a fronte-. Você vai por ali freqüentemente, não é, George? A procurar essa formosura com quem o vi o outro dia em casa dos Acton. Havia-me dito que vivia ali, não? Eu gostei. Uma mulher com personalidade. Não é de sangue azul, mas é verdadeiramente linda.
- Dominic se dispôs a dizer algo, mas decidiu que era melhor limitar-se a escutar. Gostava de Emily, mas, além disso, achava que lhe devia certa lealdade.
- As mulheres de sangue azul são muito aborrecidas - disse Ashworth-. Sua educação é muito estrita e sempre estão procurando o melhor partido para casar-se. Suponho que deveria me casar com uma dama de dinheiro, ou pelo menos que vá herdá-lo, mas as jovens ricas são um verdadeiro aborrecimento.
- Dominic recordou o rosto decidido do Emily. Podiam dizer-se muitas coisas dela e às vezes era um tanto irritante, mas certamente, nunca a consideraria uma mulher aborrecida. Era tão ardilosa como Charlotte, mas a sua maneira... E bastante mais arrevesada.
- Mas bom George. -Danley se tornou para trás e mostrou seu copo vazio a uma das garçonetes-. Case-se com uma mulher rica e de boa posição, sem duvidá-lo, e converte à outra em sua amante. É claro!
- Ashworth olhou ao Dominic e esboçou um sorriso.
- É uma boa sugestão, Charlie, mas não para levar a à prática diante do cunhado da garota.
- Como? -Danley ficou perplexo, mas logo se relaxou-. OH, George, não recordava seu senso de humor - Agarrou a uma das moças que passavam por ali e a sentou sobre seus joelhos sem prestar atenção à careta de desgosto da jovem - É um grosseiro!
- A senhorita Ellison é minha cunhada - respondeu com malicioso prazer-. E não acredito que aceite converter-se na amante de alguém, embora se trate de uma pessoa tão distinta como George. De qualquer modo, pode tentar, se o desejar.
- George engoliu em seco e compôs uma expressão de circunstância. Ashworth sorria; era um homem francamente atraente.
- A graça está na caça - disse- Se a gente precisa desafogar-se com urgência, sempre pode vir aqui. Mas o jogo com uma garota como Emily é muito mais... Interessante. Requer de uma vez habilidade, inteligência e engenho, entende?A polícia continuava interrogando às pessoas. O medo continuava presente, mas a angústia tinha diminuído. Tinham enterrado ao Verity Lessing e seus familiares tinham reatado suas vidas de sempre. Seguiam suspeitando os uns dos outros, mas sem a histeria que reinava nos primeiros momentos.
- Um frio dia de outubro, Dominic se achou com o inspetor Pitt na cafeteria. Dominic estava só e Pitt se aproximou de sua mesa. Realmente aquele homem carecia de toda educação. Se tentasse fazer-se passar por um cavalheiro, não enganaria a ninguém. Não fazia concessões à moda e só guardava minimamente às convenções.
- Sarah costumava estar em casa quando Dominic chegava de suas saídas noturnas. Já não se mostrava distante nem havia tornado a mencionar o espinhoso tema da relação entre a Charlotte e ele. Mas se comportava com certa reticência que indicava que não o tinha esquecido completamente. Dominic sabia que não podia fazer nada a respeito, de modo que optou por não preocupar-se mais. Entretanto, a situação o incomodava. Sentia que todo aquilo lhe tinha roubado parte da ternura e da felicidade a que estava acostumado.
- Boa tarde, senhor Corde - saudou Pitt-. Está você?
- Boa tarde, senhor Pitt. Sim, meu acompanhante já partiu.
- Posso me sentar? -Pitt pegou a cadeira que havia em frente do Dominic.
- Dominic se surpreendeu. Não estava acostumado a falar com policiais e menos em público! Aquele homem não tinha em conta qual era sua posição social.
- Se for necessário... -respondeu reticente.
- Pitt sorriu e se sentou comodamente.
- Obrigado. O que está tomando é café recém feito?
- Sim, por favor, sirva-se. Quer falar comigo sobre algum particular? - Supunha que não se teria aproximado dele simplesmente para melhorar seu status. Não podia ser tão descarado.
- Obrigado. -Pitt se serviu de um pouco e o bebeu saboreando-o-. Como se encontra você e sua família?
- Supôs que se referia a Charlotte. Certamente Emily exagerava, mas não cabia dúvida de que Pitt sentia certa fraqueza por Charlotte.
- Muito bem, obrigado. É claro, os crimes de Cater Street nos afetaram muito. Suponho que não há novidades com respeito ao culpado.
- Pitt esboçou um gesto de chateação. Era um homem muito expressivo.
- Fomos descartando pessoas, suponho que isso implica certo progresso.
- Não muito. -Dominic não estava de humor para reservar-se de suas opiniões - abandonou? Faz bastante tempo que não passa para nos importunar.
- Não tinha nada mais que lhes perguntar - respondeu Pitt razoavelmente.
- Parece-me que isso não o deteve em anteriores ocasiões. -Que diabos! Se aquele homem não era capaz de resolver um crime por si mesmo, deveria pedir ajuda a seus superiores-. por que não transfere o caso ou pede ajuda?
- O inspetor olhou nos olhos. Dominic se sentiu incomodado ante a inteligência que emanava do rosto do Pitt.
- Já o fiz senhor Corde. Todos os policiais do Scotland Yard estão pensando nisso, asseguro. Mas se cometem mais crimes, sabe? Roubos, falsificações, malversações, corrupção, ataques e inclusive outros assassinatos.
- É claro que sim! Não pretendia dizer que o do Cater Street fosse o único crime de Londres. Mas suponho que para você será o mais importante, não?
- Azedou o sorriso de Pitt.
- Claro que sim. Os crimes em série são os mais horríveis... Pois nunca se sabe quando vão deixar de repetir-se. O que sugere que façamos?
- Dominic se sentia impressionado pelo descaramento do policial.
- Como pretende que eu saiba? Não sou polícia! Mas imagino que de haver mais pessoas investigando, inclusive agentes com mais experiência, talvez...
- Para que? - Pitt arqueou as sobrancelhas - Para perguntar mais coisas? Investigamos numerosas excentricidades, imoralidades, atitudes desonestas e cruéis... Mas não obtivemos uma pista real sobre o assassino, ou pelo menos nada que o pareça. -ficou sério. - Enfrentamos à loucura, senhor Corde. Não tem sentido pensar em móveis lógicos nem em um patrão de comportamento que pudéssemos reconhecer você ou eu.
- Dominic o olhou horrorizado. Aquele homem lhe estava falando de algo horrível, algo infernal e incompreensível e tinha conseguido assustá-lo.
- De que classe de homem pode tratar-se? - prosseguiu Pitt - Escolhe as suas vítimas por alguma razão ou se deixa guiar pelo acaso? As vítimas estavam no lugar e momento inadequado ou o assassino as conhecia? O que têm em comum todas elas? São jovens e bastante bonitas, mas que saibamos, não se parecem em nada mais. Duas eram criadas; as outras duas filhas de uma família respeitável. A criada dos Hilton era uma garota de cascos um pouco ligeiros, mas Lily Mitchell era uma moça muito decente. Chloe Abernathy era um pouco idiota, mas nada mais. Verity Lessing tinha contatos com a alta sociedade. Não vejo o que têm em comum salvo viver perto do Cater Street.
- Deve tratar-se de um louco - apontou Dominic.
- Por agora não sabemos nada mais.
- Pôde tratar-se de um roubo? -sugeriu Dominic, embora na hora soube que não tinha sentido.
- Pitt arqueou as sobrancelhas.
- Roubar uma criada em seu dia livre?
- Havia-as...? -Dominic não queria empregar aquela palavra.
- Pitt não tinha tantos escrúpulos.
- Violado? Não. Ao Verity Lessing rasgaram o vestido e lhe arranharam os seios com sanha, mas nada mais.
- Mas... Por quê? -exclamou Dominic com indignação, ignorando as caras dos cavalheiros das mesas contíguas que se viraram para olhar-. Tem que tratar-se de um lunático, de um... Um... -Não achava a palavra-. Não tem sentido! -concluiu impotente.
- É certo - assentiu Pitt-. Entretanto, enquanto tentamos entendê-lo e dar com uma pista que esclareça questão, não podemos deixar de investigar outros crimes.
- Ah. -Dominic ficou olhando sua xícara de café vazia-. Não poderia encarregar-se disso seu ajudante? O bairro está vivendo uma experiência terrível, todos desconfiam de todos. -Pensou em Sarah-. Tudo mudou inclusive a forma em que vemos outros.
- E continuará assim enquanto dure - comentou Pitt-. Nada é tão desolador como o medo. Obriga-nos a ver coisas em nós mesmos e em outros... Coisas que preferiríamos não conhecer. Mas meu ajudante está no hospital.
- Encontra-se doente? -Dominic não tinha muito interesse em sabê-lo, mas devia perguntar por cortesia.
- Não; feriram-no em uma briga de ruas enquanto tentávamos deter um vigarista.
- Não. -Respondeu Pitt com um sorriso-. Os ladrões e os estelionatários preferem fugir antes que apresentar batalha. Certamente não viu as tocas em que vivem e trabalham esses personagens, do contrário não faria esse tipo de perguntas. Os edifícios estão tão juntos que não se podem distinguir uns dos outros: cada bloco tem uma dúzia de entradas e saídas. Normalmente, têm um vigilante... Um menino, um velho, um mendigo ou algo similar. Dispõem de entradas secretas. Estamos habituados a achar portas camufladas que se abrem com algum mecanismo estranho e dão passagem a pequenas guaridas, buracos de quatro ou cinco metros de profundidade, provavelmente conectados com as bocas-de-lobo. Mas aquilo foi diferente. O homem subiu correndo ao terraço. Meu ajudante Flack subiu atrás dele e lhe caiu em cima uma armadilha que o estelionatário fechou de repente. A tampa estava cheia de pontas agudas e alguém lhe atravessou o ombro e outra não lhe deu no rosto por milagre.
- Meu Deus! -Dominic estava horrorizado. Sua mente se encheu de imagens nas que apareciam escuros passadiços pestilentos, repletos de ratos; revolvia-lhe o estômago de só pensar em entrar em um lugar semelhante. Imaginou que uma armadilha cheia de pontas lhe caía em cima e lhe destroçava o corpo. Por um momento acreditou que ia vomitar.
- É provável que perca o braço, mas seguirá vivo se não sofrer gangrena - explicou. Afastou a taça de café-. Como vê, há outros casos que atender senhor Corde.
- Apanharam ao vigarista? -perguntou Dominic com voz ligeiramente trêmula-. Deveriam pendurá-lo!
- Sim, detivemos-lhe um dia depois. E o condenaram a vinte e cinco ou trinta anos. Pelo que sei isso pode ser tão mau quanto lhe pendurar. Talvez na Austrália possa servir de algo a alguém.
- Continuou pensando que deveriam pendurá-lo!
- É fácil julgar, senhor Corde, quando se é filho de um cavalheiro e se tem roupa com que vestir-se e comida com que alimentar-se todo dia. O pai do William era resurreccionista...
- Um religioso? -Dominic ficou perplexo.
- Pitt sorriu com tristeza.
- Não, senhor Corde, ganhava a vida roubando cadáveres para as academias de medicina, quando a lei proibia as práticas, antes dos anos trinta...
- Bom, o certo é que havia muitos cadáveres abandonados nos bairros pobres daqueles tempos. Era um crime, é claro, e era preciso muita habilidade e sangue-frio para levá-los dali até os lugares que indicavam os compradores. Em certas ocasiões os vestiam e os colocavam para que parecessem passageiros de uma carruagem...
- Cale-se! -Dominic ficou em pé-. Suponho que o pobre homem não podia fazer outra coisa, mas prefiro que não me conte nada mais. Isso não o desculpa nem ajuda ao sargento Flack. Deixe em paz aos estelionatários. NO fim de contas, que importa que haja alguns guineus de mais ou de menos em Londres? Preocupe-se com achar ao estrangulador!
- Umas guineus de mais ou de menos não significam nada para você, senhor Corde, mas para uma mulher com um filho podem marcar a diferença entre comer ou morrer de inanição. Além disso, se me explicar que mais podemos fazer para deter o estrangulador experimentará isso encantado.Ao chegar a casa continuava afetado. Sarah saiu para recebê-lo no vestíbulo. Dominic a beijou e abraçou, mas ela ficou rígida. Dominic se irritou e a afastou bruscamente.
- Dominic saiu da cafeteria sentindo-se bastante mal, confuso e indignado. Pitt não tinha direito a lhe falar assim. Ele não podia fazer nada e não gostava que lhe obrigassem a escutar tais desgraças.
- Sarah já estou farto de que adote uma atitude tão infantil. Está se comportando como uma estúpida e vai sendo hora de que repense!
- Sabe quantas vezes saiu este mês? -protestou.
- Sim. Treze nas últimas três semanas.
- Fui só. E se em lugar de te comportar como uma menina demonstrasse que é uma mulher feita e direita, teria levado você comigo.
- Não acredito que me interesse conhecer os lugares que freqüenta.Charlotte se achava na sala junto à janela, pintando.
- Dominic suspirou e pensou responder que a teria levado a outros lugares, mas se zangou e se absteve de dizer algo. Não tinha sentido discutir com ela já que não se tratava de palavras mas sim de sentimentos, e enquanto Sarah não mudasse de atitude não se poderia arrumar nada. Virou-se e entrou na sala de estar. Sarah voltou a meter-se na cozinha.
- Isto é uma sala de estar, Charlotte, não um estúdio - lhe recordou Dominic com dureza.
- Ela o olhou surpreendida.
- Sinto muito. Outros não estão ou estão muito ocupados. Não esperava que retornasse tão cedo, se o soubesse teria me instalado em outra parte.
- Entretanto, não fez gesto de recolher suas coisas.
- Tem algum outro em sua lista?
- Não se faça de inocente, Charlotte - sentou-se, irritado-. Sabe perfeitamente que gosta, inclusive que se apaixonou por você. Embora não se tivesse dado conta por si mesma, Emily já se encarregou de lhe explicar isso.
- Emily disse isso para incomodar. E você mais que ninguém deveria saber que Emily comenta coisas simplesmente para provocar problemas.
- Ele a olhou e compreendeu que estava sendo injusto ao descarregar sobre Charlotte o aborrecimento que lhe tinham produzido Pitt e Sarah.
- Sinto muito - se desculpou-. Sim, Emily não mede suas palavras, mas mesmo assim acredito que nesta ocasião não se equivoca. Além de tudo, por que não teria que gostar de você? É uma mulher muito formosa e tem uma personalidade muito atraente para um homem como ele.
- Assombrou-lhe ver que Charlotte se ruborizava ainda mais. Pretendia tranqüilizá-la, não incomodá-la ainda mais. Charlotte era uma das pessoas mais francas que Dominic tinha conhecido; entretanto lhe custava muito entendê-la. Era evidente que uma jovem de boa família não podia alegrar-se de ter um admirador como Pitt, mas não valia a pena zangar-se, bastava ignorá-la.
- Onde o encontrou? -perguntou ela sem deixar de manipular a paleta.
- Em uma cafeteria. Não sabia que os policiais freqüentassem esses lugares. Teve o descaramento de aproximar-se de minha mesa e sentar-se para conversar comigo! -Ao explicá-lo recordou quão indignado estava por isso.
- O que queria? -Charlotte parecia preocupada.
- Dominic não soube o que responder. Pitt não lhe tinha feito nenhuma pergunta importante.
- Não sei. Possivelmente só conversar um momento.
- Dedicou-se a falar de estelionatários e de resurreccionistas.
- Charlotte franziu o sobrecenho.
- O que são os resurreccionistas, uma espécie de enganadores religiosos?
- Não. São pessoas que se dedicam a vender cadáveres aos estudantes de medicina.
- Também é patético que a pessoa se veja obrigada a cair tão baixo.
- Tem certeza de que não o fazem por própria vontade?
- Se for assim, parece-me ainda pior.
- Que mulher tão peculiar! Sarah nunca o teria visto dessa maneira. Charlotte tinha uma inocência e uma generosidade excessivas, e isso era uma das coisas que mais gostava dela. Que curioso! Sempre tinha pensado que Sarah era a doce e Charlotte a rebelde, a menos feminina. Agora a observava, de pé com o pincel na mão. Não era tão bonita como Sarah e lhe faltava a graça desta (as rendas, os brincos, os caracóis na nuca), mas... Em certo sentido era mais formosa. Passados trinta anos, quando Sarah tivesse envelhecido, seu queixo fosse menos firme e seu cabelo tivesse perdido seu brilho, as feições de Charlotte continuariam sendo lindas.
- Carrega com uma responsabilidade muito dura - acrescentou a jovem sem suspeitar os pensamentos de seu cunhado-. Todos esperamos que resolva o caso e nos devolva à vida que desfrutávamos antes.
- E continuaria dizendo as coisas tal e como as pensasse, disse-se Dominic. Nunca aprenderia os truques de que se vale uma mulher para manter seu encanto e seu mistério. Mas Charlotte não se zangaria por uma coisa sem importância. Tinha muito mau gênio e ao zangar-se organizaria um bom escândalo. Mas talvez isso fosse preferível.
- Pelo menos não vive por aqui. Ninguém suspeita dele – apontou Dominic, retomando o tema.
- Não; mas todos o culparemos se não achar ao assassino.Charlotte contemplava o quadro do cavalete.
- Dominic não tinha pensado nisso. Agora que Charlotte o comentava sentiu uma crescente simpatia por Pitt. Pensou que não deveria haver-se mostrado tão brusco na cafeteria.
- Pergunto-me se sabe quem é, ou se estiver tão assustado como nós.
- É claro que não sabe! Do contrário o prenderia.
- Não refiro ao Pitt a não ser ao culpado. Pode recordar seus crimes, é consciente do que faz? Ou está tão assustado e confuso como outros?
- Meu Deus! Que idéia tão horrível! De onde tira algo assim?
- Não sei, mas poderia ser não lhe parece?
- Prefiro não pensar nisso. Se fosse verdade, poderia ser... Qualquer um. - Charlotte o olhou fixamente com seus olhos cinza intenso.
- Esperemos que Pitt encontre ao assassino. Não pense mais nisso. Não há nada que possamos fazer, salvo não ir só a nenhum lugar, sob nenhuma circunstância. -Sentiu um calafrio-. Não saia se não ser necessário e nesse caso vá com Maddock, com seu pai ou comigo.
- Charlotte esboçou um tênue e estranho sorriso, e se virou para continuar pintando.
- Obrigado, Dominic.Podia alguém entender às mulheres?
- Um par de dias mais tarde, Dominic achou mais motivos para não entender a alma feminina. Estavam todos sentados na sala de estar, depois do jantar; inclusive Emily se achava em casa. A avó fazia agulha de crochê; de vez em quando baixava a vista e olhava a seu trabalho, mas a maior parte do tempo trabalhava às cegas, deixando que a prática de anos guiasse seus dedos.
- Ele ficou olhando-a. Sempre a tinha considerado uma jovem aberta e franca e, entretanto agora a achava mais misteriosa e enigmática que Sarah.
- Esta tarde estive em casa do vigário - disse a avó com certa brusquidão. Sua voz tinha um matiz de crítica-. Sarah me acompanhou.
- Sim? -Caroline levantou a cabeça- Se encontram bem?
- Não muito. O vigário parecia achar-se bastante bem, mas Martha a estava muito relaxada. Uma mulher não deveria abandonar-se tanto. Começa a ter o aspecto de uma escrava.
- Trabalha muito - apontou Sarah em sua defesa.
- Isso não tem nada a ver, querida - insistiu a avó-. Por muito duro que alguém trabalhe, não convém descuidar a aparência até esse extremo. A imagem que se oferece é muito importante.
- Não acredito que seja muito importante para o vigário. Pergunto-me se pode apreciar a diferença.
- Essa não é a questão. -A avó não estava disposta a dar o braço a torcer-. Uma mulher deve respeito a si mesma. É um dever.
- Tenho certeza de que tudo o que tenha que ver com o dever, interessa ao vigário - comentou Charlotte-. Especialmente se tratar de algo desagradável.
- Charlotte, todos sabemos que não gosta do vigário, deixou-o claro em numerosas ocasiões - respondeu a avó com tom recriminatório-. Entretanto, comentários como o que acaba de fazer não leva a nenhum lugar e não dizem muito a seu favor. O vigário é um homem de grande valia e, como bom homem de igreja, desaprova a frivolidade e a maquiagem que induzem à luxúria.
- Nem em um momento de alienação mental poderia imaginar ao Martha Prebble induzindo à luxúria -replicou Charlotte com descaramento - Salvo por efeito contrário.
- Caroline deixou de costurar o travesseiro que tinha nas mãos.
- Charlotte! O que pretende dizer?
- Que ao ver a Martha Prebble, com seu semblante tão pálido, vivendo com um ser tão inflexível e estrito como o vigário, a luxúria parece uma alternativa mais desejável - explicou Charlotte com absoluta desfaçatez.
- Imagino -retomou a avó com frieza- que se acha muito engraçada. Quando penso no que se converteu a boa educação, hoje em dia, desespero-me. A vulgaridade se confunde com a astúcia!
- Temo que não esteja sendo justa, Charlotte. -Caroline tentou mediar no conflito-. Admito que o vigário seja uma pessoa difícil, um homem não muito agradável, mas cumpre escrupulosamente sua missão. E a pobre Martha é uma mulher infatigável.
- Parece-me que não se dá conta de tudo o que ajuda - acrescentou Sarah - nem do que sofreu com esta série de mortes. Queria muito ao Chloe e Verity, sabia?
- Charlotte se surpreendeu.
- Não sabia. Conhecia sua relação com o Verity, mas não tinha idéia de que conhecesse Chloe. Não parece que tivessem muito em comum.
- Acredito que tentava ajudar a Chloe... A pôr os pés na terra. Era uma jovem um pouco tonta, mas muito carinhosa.O que estariam pensando?Até que ponto conhecia-as realmente?Esperava que Sarah esquecesse totalmente aquele estúpido assunto provocado pelas acusações de Emily, mas aparentemente não ia ser assim. Sarah não voltou a trazer à tona a questão, mas sua frieza persistiu. A distância entre eles se foi aumentando.Tinha passado uma noite excelente, tanto o vinho como a companhia tinham sido encantadores. Entretanto, ao ver-se ali só, sob a névoa, pensou nas mulheres que foram sozinhas pelas ruas, ouviam uns passos a suas costas e descobriam um rosto que talvez não fosse desconhecido. Depois sentiriam um arame tênue ao redor do pescoço, a escuridão, os pulmões a ponto de explodir e a morte... Outro corpo que algum transeunte acharia sobre os paralelepípedos molhados, na manhã seguinte, e que a polícia recolheria.
- Estremeceu, cheio de frio. Subiu rapidamente pela escadaria da entrada e bateu na porta com força. Maddock foi a abrir e Dominic entrou desejando encontrar luz e calor. Sentiu-se melhor uma vez que a porta ficou fechada, protegendo o da escura rua, da névoa e de Deus sabe que classe de louco assassino.
- Era uma gelada noite de novembro, a névoa cobria as ruas e amortecia o clarão das luzes. Fazia um frio atroz e persistente. Dominic se alegrou quando a carruagem deixou Cater Street e avançou pela rua até parar diante da casa. Desceu, pagou ao cocheiro e ficou escutando o ruído dos cascos dos cavalos até que a carruagem entrou na espessa névoa que atenuava todo som. Estava de pé sob o feixe de luz de uma lâmpada, ao redor não havia mais que escuridão impenetrável. A seguinte luz parecia extremamente longínqua.
- 'Dominic continuou saindo para jantar no clube e a outros lugares, para achar um momento de distração e diversão. Viu-se com o George Ashworth em várias ocasiões e comprovou que era uma companhia cordial e agradável.
- A avó culpava a todo mundo pela decadência da moralidade. Caroline estava concentrada em seu trabalho. Emily certamente estaria pensando em algo prático. Sarah tinha defendido ao Chloe e Charlotte chorava por ela.
- Ao escutá-la, Dominic experimentou uma intensa sensação de pena. Nunca se tinha interessado por Chloe; de fato, parecia-lhe uma moça muito pesada. Mas agora sentia por ela algo mais forte que o amor e bastante mais doloroso. Instintivamente, voltou-se para Charlotte. Estava pestanejando, e por sua face escorregava uma lágrima. Caroline tinha retomado sua costura. Emily não fazia nada e a avó observava ao Charlotte com cenho.
- A senhorita Sarah se retirou não faz muito, senhor - lhe informou Maddock-. O senhor Ellison está no estúdio, lendo e fumando, mas na sala de estar não há ninguém, se quiser que lhe sirva algo. Prefere uma bebida quente ou um brandy?
- Nada, obrigado, Maddock. Acho que irei para a cama. Fora faz um frio terrível e a névoa é muito espessa.
- Um clima muito desagradável, senhor. Deseja que lhe prepare um banho quente?
- Não, obrigado. Prefiro subir e me deitar. Boa noite, Maddock.
- No piso de cima tudo estava em silêncio; só havia um pequeno abajur aceso no patamar. Dirigiu-se a seu quarto de vestir para tirar a roupa. Dez minutos depois entrou no dormitório.
- Não é preciso que ande nas pontas dos pés - disse Sarah com tom distante.
- Pensei que estava adormecida.
- Quer dizer que isso esperava!
- Dominic não entendeu sua reação.
- O que me importa se dorme ou não? Simplesmente não queria despertar em caso de que já estivesse descansando.
- No clube. -Não era de todo verdade, mas tampouco era do todo mentira. Em essência dizia a verdade.
- Sarah arqueou uma sobrancelha, sarcástica.
- Era a primeira vez que o submetia a interrogatório sobre esse tema. Ele estava muito perplexo para sentir-se aborrecido.
- Não; também fui a outros clubes. por que o pergunta?
- Bom, pode estar segura de que não estive com a Charlotte, se isso for o que a preocupa - replicou ele.
- Não acredito que Charlotte se prestasse a visitar semelhantes lugares, nem sequer para estar com você. -Olhou-o com rancor.
- Que demônios lhe ocorrem? Estive com o George Ashworth. Pensei que gostava dele! Sarah olhou para outro lado.
- Fui visitar a senhora Lessing.
- Sim? -sentou-se no banco do quarto de vestir. Não lhe importava saber a quem tinha visitado, mas Sarah pretendia chegar a algum lado.
- Até hoje não me tinha dado conta de quão bem conhecia o Verity - prosseguiu-. Sabia que se dava muito bem com Chloe, mas o do Verity foi uma surpresa para mim.
- Que importância tem? Só falei com ela em um par de ocasiões. Acredito que simpatizava comigo. Mas a pobre está morta. Por Deus, Sarah, não pode sentir ciúmes de uma moça que está morta! Pensa onde está neste momento!
- Não esqueci onde está, Dominic, nem tampouco onde está Chloe.
- E Lily e Bessie. Acaso também tem ciúmes das criadas? -Começava a zangar-se. Considerava Charlotte como uma irmã e já era suficientemente grave que Sarah o acusasse de ter algo com ela, mas aquilo... Aquilo era muito ridículo, virtualmente indecente.
- Quem é Bessie? A criada dos Hilton? Não conhecia seu nome, como sabia você?
- Não sei! Que demônios importa? Está morta!
- Sei Dominic. Todas elas estão mortas.
- Dominic a olhou fixamente. Sarah o escrutinava como se fosse um desconhecido surgido dentre a névoa, com um arame entre as mãos. Por que pensava algo tão horrível? Porque podia lê-lo nos olhos de sua mulher. Ela tinha medo. Estava encolhida, sentada na cama com os ombros abatidos, e tinha um nó na garganta, como revelavam os músculos de seu pescoço em tensão.
- Sarah ficou gelada, incapaz de pronunciar uma só palavra.
- Sarah, pelo amor de Deus! -Avançou para ela, sentou-se na beira da cama e lhe pegou os braços nus. Podia sentir todo seu corpo intumescido sob seus dedos-. Não acreditará... Você me conhece! Não pode pensar que eu... - Sua voz se foi apagando. Sarah não respondeu nada.Levantou-se.
- Afastou-se dela. De repente não desejava tocá-la absolutamente. Ficou frio por dentro, como se acabasse de abrir uma ferida e não pudesse deixar de ver sua terrível dimensão. Mas a impressão amortecia a gravidade da afronta. A dor viria mais tarde, quando tivesse podido reagir, talvez no dia seguinte.
- Dormirei no quarto de vestir. Boa noite, Sarah. Pode fechar a porta com chave se isso a faz sentir-se mais segura. Charlotte ignorava o ocorrido a noite anterior e os sentimentos de Dominic. Mas no dia seguinte não pôde deixar de perceber que entre ambos se abria uma terrível brecha, mais profunda do que caberia esperar embora fosse por culpa das suspeitas que Sarah albergava.
- Entretanto, naquela tarde se viu obrigada a pensar em coisas mais graves. Estava sozinha em casa, transcrevendo uma série de receitas para a senhora Lessing. Levantou a vista para a janela e contemplou as nuvens. Todos estavam fora, de visita, e Charlotte se disse que iriam se molhar bastante... Enquanto pensava, alguém bateu discretamente à porta.
- Capítulo 10
- Ouviu-a pronunciar seu nome lentamente, mas fechou a porta atrás de si, sem voltar-se sequer. Queria estar só, assimilar o ocorrido e dormir.
- Entre - disse. Faltava muito para a hora do chá, de modo que devia tratar-se de alguma dúvida relativa à preparação do jantar.
- Era Millie, a nova faxineira, e parecia aterrada. Charlotte pensou que teria saído para cumprir algum encargo próximo e que alguém a teria incomodado ou por alguma razão teria recordado ao estrangulador.
- Entre, Millie. Será melhor que se sente. Tem um aspecto horrível. O que acontece?
- Senhorita Charlotte! -A pobre tremia como se tivesse febre- Alegra-me tanto que você esteja aqui!
- Sente-se, Millie e me conte o que aconteceu.
- Millie tinha as pernas rígidas e não parava de retorcer as mãos. De repente ficou sem fala e parecia a ponto de pôr-se a correr.
- Pelo amor de Deus! -Charlotte suspirou e a obrigou a sentar-se em uma cadeira-. Agora me conte o que ocorre. Saiu para fazer algum recado ou foi ao porão?
- OH, não, senhorita Charlotte! -Parecia comocionada.
- Bem, do que se trata? Onde estava?
- Estava lá em cima, em meu quarto, senhorita. A senhora Dunphy me tinha dado permissão.
- Charlotte retrocedeu uns passos, confundida. Teria jurado que a palidez de Millie tinha algo que ver com o estrangulador, mas não era assim.
- Então, qual é o problema, Millie? Está doente?
- Não, senhorita. -Millie baixou a vista para suas mãos, que continuavam retorcendo-se no regaço. Charlotte se deu conta de que Millie segurava algo entre as mãos.
- OH! -Encheram os olhos de lágrimas da garota. - Não queria trazê-lo, senhorita, mas temia por minha reputação! -Sorveu ruidosamente-. Me alegra que seja você quem está em casa, senhorita. -De repente rompeu a soluçar desconsoladamente.
- Charlotte estava perplexa e assustada.
- Do que se trata, Millie? -Estendeu a mão-. Dê-me isso.Charlotte pegou a gravata e a examinou. Millie a observava com olhos bem abertos.
- Millie abriu lentamente sua mão para lhe mostrar uma gravata enrugada. Charlotte não entendia nada. Não compreendia que Millie ficasse assim por uma simples gravata. Aquele objeto não podia inspirar nenhum sentimento em especial e muito menos o terror de que era presa Millie.
- É uma gravata -disse Charlotte-. O que se passa com ela? -Então a assaltou uma idéia-. Millie, não acreditará que alguém pôde usá-la para estrangular, não é? -Teve vontade de pôr-se a rir-. Não as mataram com uma gravata, Millie! Fizeram-no com um arame. Leve isso e diga ao Maddock que a atire, está asquerosa!
- Sim, senhorita Charlotte. -Mas Millie não se moveu. Continuava pálida e o medo ainda se refletia em seu rosto.
- É do senhor Dominic, senhorita Charlotte. Sei por que sou eu quem as lava. As gravatas do senhor Edward são de outro tecido. É fácil distingui-las. Quando coloco a roupa limpa no armário, só dando uma olhada já sei de quem é cada uma.
- Charlotte sentiu um imotivado suor frio. Que importância tinha que Dominic tivesse perdido uma gravata?
- Bem, é do senhor Dominic - disse engolindo em seco. - Mas mesmo assim está asquerosa. Ponha de novo para lavar.
- Millie se levantou lentamente, espremendo a gravata entre as mãos.
- Não tem nada que ver comigo, senhorita Charlotte, juro. Ponho a Deus por testemunha, senhorita, juro! -Estava tão assustada que se pôs a tremer.
- Charlotte não podia evitar por mais tempo a única pergunta que podia dar sentido a todo aquilo. E a formulou:
- Em meu quarto, senhorita. -ruborizou-se- Debaixo da cama. Ao virar ao colchão caiu do somier ao chão. Por isso está tão suja e cheia de pó. Esteve aí desde que cheguei senhorita, juro!
- Charlotte sentiu que seu mundo saltava em mil pedaços. Uma voz interior lhe sussurrou que devia ter imaginado algo assim, mas Charlotte se negou a escutá-la. Em pleno caos, procurava algo que dizer e que permitisse reconstruir tudo. Aquela tinha sido o quarto de Lily durante anos. Sarah nunca tinha adormecido nela; Dominic não tinha motivo para ir a esse dormitório. Podia ser que Lily tivesse levado a gravata a seu quarto por alguma razão? Talvez Lily tivesse levado a gravata para costurá-la. Esse argumento era fácil de rebater posto que a gravata não estivesse rasgada. Millie mentia? Bastava lhe olhar o rosto para descartar essa possibilidade.
- Sinto muito, senhorita - murmurou Millie com desespero-. Fiz mal?
- Charlotte apoiou sua mão sobre o tenso braço da jovem.
- Não, Millie, fez o correto e não é preciso que se assuste. Mas não o diga a ninguém, não vá ser que alguém o interprete mal...
- E se alguém me perguntar, senhorita? -inquiriu Millie e a olhou com repentino alívio-. O que devo responder senhorita Charlotte?
- Não vejo porque alguém teria que lhe perguntar algo, mas se desse o caso, conta a verdade, Millie, exatamente o que sabe nada mais, sem extrair conclusões, entende?
- Sim, senhorita Charlotte. E... Obrigado, senhorita.
- Está bem, Millie. Será melhor que ponha essa coisa com o resto da roupa. Por favor, encarregue-se pessoalmente. Não permita que Sarah se inteire.
- Millie voltou a empalidecer.
- Senhorita Charlotte, acredita que...?
- Não acredito nada, Millie. Tampouco quero que a senhorita Sarah pense nada a respeito. Agora vá e faça o que lhe digo.
- Sim, senhorita. -Millie fez uma breve reverencia e quase tropeçou ao abandonar a sala.Dominic e Lily! Dominic na cama de Lily! Dominic tirando-a gravata, a camisa... E pondo tudo de novo tão apressadamente que se esquece da gravata. Charlotte se sentia doente. Lily... A pequena Lily Mitchell.Era ridículo. A autocompaixão não conduz a nenhum lado. Tinha que pensar em algo mais. Lily tinha morrido. Que tivesse amado ou não ao Dominic, não importava... e era melhor não pensar nisso. Dominic era bonito e encantador... O coração lhe deu um salto. Por que não teria que gostar de qualquer mulher? Verity parecia atraente, e sabia que ao Chloe também. E ambas estavam mortas.Quanto mais pensava, mais confusa se sentia e mais duvidava de si mesmo e do amor apaixonado que tinha sentido durante todos aqueles anos por Dominic.Charlotte tentou sobrepor-se; não tinha vontade de ver ninguém, e menos ainda à Martha Prebble.
- Charlotte ficou absorta, sem consciência do aposento em que estava, nem da casa, nem da hora que era quando bateram na porta. Doura disse que a mulher do vigário tinha vindo fazer uma visita e queria saber se devia servir o chá, pois já eram perto das quatro da tarde.
- Ficou gelada. Não podia ser! Dominic se tinha encontrado com Edward na noite em que mataram Lily, o que significava que ele também tinha estado nessa rua. Não o tinha tido em conta! Só tinha pensado no Edward, jamais lhe tinha ocorrido que Dominic... O que estava sugerindo! Queria ao Dominic, tinha-lhe querido desde que se convertera em uma mulher. Como podia suspeitar semelhante coisa dele? Onde ficava o amor que sentia por ele? Para que lhe servia se não para lhe conhecer o suficiente para descartar que fosse um criminoso? Acaso era possível amar a um desconhecido? Jamais teria imaginado que Dominic se deitara com Lily! Entretanto, em menos de uma hora tinha chegado a aceitar isso. Talvez seu amor não fosse mais que fascinação, possivelmente se tinha apaixonado pelo próprio amor ou de alguém que só existia em sua imaginação. Talvez se tivesse apaixonado por seu rosto, seu sorriso, seus olhos, seu cabelo. Acaso sabia como era em realidade aquele homem? O que pensava ou sentia quando estava longe de Sarah e família? Podia ter amado Lily ou Verity... Ou tê-las odiado?
- Tinha amado ao Dominic com todo seu coração, sem pedir nada em troca, e ele se foi com a criada. Qual era o problema do Dominic e de todos os homens? Ou acaso era problema dela, de Charlotte? Seria porque não sabia calar a tempo? Era pouco feminina? Algumas pessoas se interessaram por ela, mas o único que realmente se apaixonou por ela como mulher era aquele desgraçado do Pitt.
- Uma vez a sós, Charlotte se deixou cair sobre o assento mais próximo. Tremiam-lhe as pernas e lhe formigavam as mãos.
- Sim, Doura, é claro - respondeu mecanicamente-. E faz entrar à senhora Prebble.
- Martha Prebble estava menos apagada que a última vez que Charlotte a tinha visto. Parecia ter recuperado o ânimo e tinha um ar mais decidido. Avançou para ela, para lhe estreitar a mão.
- Minha querida Charlotte está muito pálida. Encontra-se bem, querida?
- Sim, obrigada, senhora Prebble. -Logo pensou que era melhor dizer algo, se por acaso seu aspecto era tão nefasto como seu estado de ânimo. - Estou um pouco cansada, não dormi bem esta noite. Por favor, sente-se. -Assinalou a cadeira acolchoada porque era uma das mais cômodas.
- Tem que se cuidar mais. Foi um anjo ajudando à senhora Lessing, não pode ser menos com você mesma.
- Charlotte sorriu um pouco forçada.
- Esse é um bom conselho, vindo de você. Está em todas as partes, ajudando a todo mundo. -de repente lhe assaltou uma idéia-. Veio sozinha? Não terá cometido a imprudência de ir pela rua sozinha, não é? Não deveria arriscar-se tanto. Pedirei ao Maddock que a acompanhe, a sua volta. Quando partir já teria escurecido. É muito perigoso!
- É muito amável de sua parte, mas temo que não possa me acostumar a ir escoltada a todas as partes.
- Então será melhor que fique em casa, pelo menos até que...
- Martha se inclinou, esboçando um sorriso em seu sério rosto.
- Até o que, querida? Até que a polícia encontre ao assassino? Quanto acha que pode durar isto? Não posso deixar de atender à paróquia. Há muita gente que me necessita. Nem todos têm a mesma sorte, sabe? Algumas pessoas vivem sozinhas, são velhas ou estão doentes. Algumas mulheres ficaram viúvas ou os maridos as abandonaram e têm que criar a seus filhos sem ajuda de ninguém. A gente rica da paróquia prefere não conhecer esses problemas, mas isso não impede que continuem existindo.
- Em nosso bairro? -Charlotte se mostrou surpreendida-. Pensava que todos os vizinhos do Cater Street desfrutavam de uma posição folgada, tinham as necessidades cobertas e certo conforto. Nunca vi a nenhum pobre vivendo neste bairro.
- OH, fazem-no de maneira discreta! -Martha olhou para a janela-. A pobreza está soterrada; a roupa vai com emplastros, costurada e recosida. Às vezes só têm um par de sapatos e comem uma única vez ao dia. Mantêm as aparências por preservar a auto-estima.
- Que horror! -Charlotte não pretendia usar um tom tão corriqueiro como o que lhe saiu. Aquilo lhe parecia de verdade horrível; doía-lhe. Não se tratava da miserável e desproporcionada pobreza da que falava o inspetor Pitt, mas isso não impedia que fosse dolorosa, constante e exaustiva. Charlotte não tinha passado fome em sua vida nem tinha tido que pensar se poderia ou não pagar algo. É claro em alguma ocasião se apaixonara por um vestido que não se podia permitir, mas sabia que, no fim de contas, dispunha de tudo que precisava.
- Sinto muito. Posso ajudar de alguma forma?
- Martha sorriu e apoiou sua mão no joelho de Charlotte.
- É muito boa, Charlotte. Parece-se com sua mãe. Tenho certeza de que haverá coisas que fazer e de que já tem feito muitas. É uma lástima que nem todas as jovens da paróquia ajam como você.
- Doura entrou para servir o chá e as interrompeu. Martha não voltou a falar até que Doura se foi e Charlotte se serviu de uma xícara.
- Abunda a frivolidade, as pessoas não se preocupam mais que de si mesmas.
- Charlotte pensou em Emily. Por muito que quisesse a sua irmã, tinha que admitir que não fazia nada se não fosse para tirar algum proveito.
- Temo- que assim é -assentiu-. Talvez seja por falta de informação.
- A ignorância não justifica tudo. Freqüentemente não sabemos por que não queremos saber. Se nos dermos por inteirados, sentimo-nos obrigados a agir.
- Aquilo era absolutamente verdade e Charlotte se sentiu um pouco culpada. Involuntariamente pensou e, Pitt. Tinha lhe obrigado a ver coisas que ela preferia evitar, coisas que a faziam soçobrar, que alteravam sua paz mental e sua tranqüilidade. E por causa disso se desgostara muito com ele.
- Tentei fazer que Verity pensasse como você - explicou Martha sem deixar de olhá-la-. Tinha bom coração, a pobre Verity.
- Soube que também conhecia a Chloe - disse Charlotte, e desejou não tê-lo dito. Era uma forma de despertar uma dolorosa lembrança e reavivar a tristeza. Viu como o rosto de Martha se contraía e como se retesavam os músculos ao redor da boca.
- Pobre Chloe - se lamentou com um tom que Charlotte não chegou a compreender-. Era tão frívola, tão despreocupada... Ria quando não devia. Tentava subir na escala social. Temo que abrigue idéias pecaminosas, coisas que... -Conteve a respiração-. Mas eu não gosto de falar mal dos mortos. Pagou por suas faltas e a corrupção já não pode fazer racho nela.
- Charlotte a observou atentamente. Seu rosto de traços fortes refletia confusão e tristeza.
- Será melhor que mudemos de assunto - propôs Charlotte-. Estive transcrevendo várias receitas. Tenho certeza de que lhe vão interessar. Sarah comentou que você andava procurando uma receita para o fricandó de vitela com espinafres. Acredito que a senhora Hilton tem uma cozinheira excelente, ou isso disse a senhora Dunphy a minha mãe.
- Sim, é certo. Além disso, é uma jovem muito disposta. Cozinha muito para os atos beneficentes da igreja. Se dá muito bem com bolos. Nem todas as cozinheiras sabem fazer um bom bolo de nata; resultam muito torpes. Para isso se necessitam mãos ligeiras e peritas. Também é muito boa quando se trata de preparar fruta em conserva. Passava o tempo enviando à criada A... -interrompeu-se. Voltava a estar lívida e em seus olhos se lia a angústia.
- Charlotte levantou a mão instintivamente.
- Será melhor que não pensemos nisso. Já não podemos fazer nada. Buscar-lhe-ei a receita do fricandó. -ficou em pé.
- Martha a seguiu ao outro extremo da mesa. Charlotte desejava que a visita terminasse; sentia-se desconfortável e não tinha sabido levá-la bem. Dava-lhe pena ter despertado a tristeza da pobre Martha com respeito às jovens mortas, mas também lhe inspirava compaixão por sua vida em geral: o ter que viver com o vigário lhe parecia pior destino que qualquer daqueles aos que Pitt tinha aludido.
- Aqui tem. - Estendeu-lhe uma folha-. Já copiei o fricandó uma vez, posso voltar a fazê-lo sem problemas. Por favor... E insisto em que Maddock a acompanhe até casa.
- Não é necessário. -Martha pegou a receita sem olhá-la sequer-. Não se preocupe.
- Nego-me a deixá-la ir sozinha – insistiu Charlotte, e pegou a campainha para avisar ao mordomo-. Sentiria-me culpada toda a noite. Estaria tão preocupada que poderia cair doente!Charlotte não pôde ter uma tarde tranqüila para pôr ordem em seus sentimentos. Emily voltou para casa anunciando que tinha convidado lorde Ashworth para jantar e que chegaria às sete em ponto.
- Todo mundo se entregou a um nervoso trajín ante semelhante mudança de planos. A avó foi a única que pareceu encantada com a notícia. Fascinava-lhe tanto movimento porque lhe permitia monologar sobre como se devia levar bem uma casa para que uma visita imprevista, embora fosse o próprio rei, encontrasse-o tudo em ordem e a mesa disposta. Emily estava muito emocionada e Caroline muito ocupada para incomodar-se em lhe responder. De fato, foi Sarah a que lhe pediu, que mantivesse a boca fechada. A avó se ofendeu tanto que teve que retirar-se a seus aposentos e deitar um momento.
- À Martha não ficou outro remédio que aceitar. Dez minutos mais tarde partiu escoltada pelo Maddock.
- Assim se faz - a felicitou Charlotte. Sarah sorriu a sua irmã pela primeira vez nas últimas semanas.Ruborizou-se e se sentiu algo incômoda quando Ashworth se inclinou ante ela e a examinou de cima abaixo, com evidente satisfação. Não gostava daquele homem, e do qual pensava que estava brincando com Emily. Respondeu a sua saudação formalmente, sem mais entusiasmo que o que assinala a boa educação.Charlotte olhou de esguelha e viu Emily sorrir. Estava claro que Ashworth sabia seduzir e que se dava extremamente bem. Charlotte amaldiçoou a aquele jovem que ia ferir Emily. Sua irmã era ainda uma menina que não sabia nada do mundo, comparada com ele!Pareceu-lhe que a visita durava eternamente. Entretanto, não eram mais das onze quando George Ashworth partiu e Charlotte pôde ir, por fim, à cama. Pensava que ia ficar refletindo, dando voltas a seus sentimentos durante toda a noite, mas ao deitar-se, o cansaço pôde com ela e dormiu.
- O dia seguinte foi ainda pior. Pouco depois das dez da manhã, Maddock abriu a seu quarto para lhe comunicar que o inspetor Pitt estava no vestíbulo e queria vê-la.
- A partir desse momento, sempre que Charlotte lhe dirigia a palavra fazia isso com certa raiva. Dominic a olhava com gesto de repreendê-la, mas Charlotte estava muito aborrecida para preocupar-se por isso. Sentiu-se de novo confusa com respeito ao Dominic. Tinha o amado tanto e agora desejava protegê-lo de... Do que? Do Pitt, da polícia... De si mesmo?
- Entretanto, durante a noite mudou em parte de opinião. A conduta do Ashworth era irreprochável e de não ser porque podia magoar Emily tão social como pessoalmente, até o teria considerado uma pessoa agradável. Era um homem inteligente e seguro de si mesmo. Claro que, com seu status, provavelmente se podia permitir falar sem temor às conseqüências. Pode-se dizer que cativou à avó, o que não era difícil de prever, tendo em conta o muito que gostava dos jovens atraentes e, em especial, dos títulos de nobreza.
- Tudo estava em ordem e tranqüilo, pelo menos na aparência, uns cinco minutos antes que chegasse George Ashworth. Toda a família estava reunida na sala de estar. Emily levava um vestido rosa que lhe sentava muito bem embora a seu pai tivesse parecido um exagero ter que comprar mais roupa nova. Sarah ia de verde e também estava muito bonita. Charlotte escolheu um azul cinzento pálido que não gostava muito até que se viu em um espelho e comprovou que fazia jogo com seus olhos e destacava o quente tom de sua pele e seu cabelo.
- A mim? -Tratou de dissimular. Pitt talvez quisesse ver seu pai e só tentava assegurar-se de que lhe dessem o recado.
- Sim, senhorita - respondeu Maddock sem duvidar-. Pediu vê-la em particular.
- Tem certeza de que não é com meu pai com quem deseja falar, por favor, Maddock.
- Sim, senhorita. -Maddock voltou para sair, mas quando chegou à porta se achou com o próprio Pitt que entrava sem pedir permissão.
- Inspetor Pitt! -protestou Charlotte com indignação. Era a última pessoa a que desejava ver. O episódio da gravata do Dominic estava muito fresco em sua memória e lhe preocupava que Pitt pudesse interrogar a Millie ou passeasse pela cozinha ou tanque e percebesse a inquietação da criada. Mas temia ainda mais o que ela mesma pudesse dizer ao inspetor. Em seu rosto se refletia a angústia de que quer calar algo e está assustada.
- Bom dia, senhorita Ellison. -Esperou que Maddock partisse e fechasse bem a porta-. Charlotte vim para lhe falar do George Ashworth.
- Charlotte se sentiu aliviada. Não tinha nada que ver com o Dominic!
- Já sabe? -perguntou Pitt. O rosto do Charlotte era único, nele podiam ler-se seus sentimentos como em um livro aberto.
- Charlotte estava confusa.
- Não. O que acontece com ele? Descobriu algo? -Voltou a preocupar-se com Emily. Acaso era Ashworth o assassino? Se fosse assim, Pitt o deteria e ele não poderia ferir Emily, nem humilhá-la abandonando-a por outra mulher.
- Gosta dele? -inquiriu com um sorriso. Tinha um olhar muito doce.
- Desagrada-me sobre maneira – respondeu ela com dureza.
- Por quê? Porque teme que faça mal a Emily? Preocupa-lhe que a mate ou que se dela aborreça e a abandone por outra mulher com mais dinheiro ou com um título?
- Incomodou-lhe que o inspetor acertasse e que se misturara. A possível humilhação do Emily ou o dano que pudesse sofrer não eram assunto do Pitt.
- Claro que temo que possa matá-la! O que veio me contar, senhor Pitt?
- Pitt ignorou sua rudeza sem deixar de sorrir.
- Que provavelmente nem sequer conhecia a criada dos Hilton e que certamente não matou ao Lily Mitchell. Tem um álibi perfeito para aquele dia e aquela noite.
- Charlotte se sentiu aliviada e contente, o que em realidade carecia de lógica, pois isso implicava que Ashworth continuaria em liberdade e poderia humilhar Emily, e ela não queria que isso ocorresse.
- De modo que já pode descartar a um suspeito - disse procurando a expressão que desse a entender ao Pitt que não gostava que a olhasse em silêncio, sorrindo e analisando cada gesto e cada pensamento que pudesse refletir-se em seu rosto.
- Sim - assentiu-. Certamente não é o melhor método de investigação.
- Não pode fazer nada mais? -Era uma pergunta, não uma crítica.
- Ele sorriu e fez um divertido gesto de impotência.
- Não muito. Tento formar uma imagem do tipo de pessoa que procuramos o tipo de homem que poderia cometer semelhantes crimes.
- Involuntariamente, Charlotte repetiu em voz alta o mesmo pensamento que tanto tinha horrorizado ao Dominic:
- Acha possível que se trate de um homem que não é consciente de seus atos, não sabe por que mata ou nem sequer recorda havê-lo feito? Nesse caso seria tão alheio ao problema e se sentiria tão assustado como nós, não?
- Mas para Charlotte não serviu de consolo. Teria preferido que respondesse que não. Tudo aquilo aproximava ainda mais ao estrangulador a sua vida; eliminava o abismo que havia entre ele e eles. Podia tratar-se de alguém de seu entorno. Só Deus sabia como se sentiria o assassino ao descobrir seus crimes!
- Sinto muito, Charlotte - disse Pitt com ternura-. Também me assusta. Sei que se deve encontrá-lo, mas não me faz graça ter que ser eu quem o faça.
- Charlotte não sabia o que responder. Em sua mente só via a gravata do Dominic, tão grande que poderia estrangular ao mundo inteiro. Desejava que Pitt partisse antes que seus pensamentos desatassem sua língua.
- Vi seu cunhado o outro dia - disse ele.
- Charlotte ficou tensa. Felizmente se achava de costas e isso impedia ao Pitt ver o nervosismo que a embargava. Tentou falar para aparentar serenidade, mas não o conseguiu. Seria aquela a verdadeira razão de sua visita? Suspeitaria algo ou teria a certeza?
- Em uma cafeteria - precisou.
- Sério? -conseguiu dizer ela por fim.
- Pitt não respondeu. Charlotte sabia que a observava e não podia suportar o silêncio.
- Não acredito que tivessem muito de que falar.
- Falamos do estrangulador, é claro, e não de muito mais, além de uns quantos crimes. Ele considera que o do estrangulador era o mais importante.
- E não o é? -voltou-se para olhá-lo e ler em seu rosto sua verdadeira opinião.
- Sim, claro, mas existem muitos outros. Meu ajudante perdeu um braço a semana passada.
- Perdeu um braço? -exclamou Charlotte horrorizada-. Como? O que ocorreu? -Recordava ao taciturno ajudante perfeitamente.
- Gangrena - respondeu Pitt sem mais, mas Charlotte distinguiu a raiva em seus olhos. Esqueceu-se do Dominic por uns instantes-. Caiu-lhe em cima uma armadilha tachada de puas de ferro e uma lhe atravessou o braço - explicou-. Tínhamos ido aos bairros pobres para deter um vigarista. -Explicou-lhe o que tinha ocorrido.
- É terrível! -exclamou ela-. Estas coisas ocorrem freqüentemente A... seu grupo?
- Não, não muito - respondeu-. Os detidos têm reações estranhas, tentam despertar nossa compaixão ou inclusive nos divertir, mas poucas vezes ficam violentos. A maioria prefere cumprir, uma condenação e seguir vivo. As penas que se impõem por violência são muito graves para tomar-lhe à ligeira. A um culpado de assassinato o enviam à forca.
- Tentam diverti-los? -perguntou desconfiada.
- Pitt se sentou a seu lado, no braço de uma cadeira.
- Como acredita que a gente poderia viver nos bairros marginais se não tivesse senso de humor? Sem a astúcia e uma estranha e amarga capacidade para assumir as coisas mais absurdas não poderiam resistir. Você não entenderia o jargão dos vendedores ambulantes, das prostitutas nem dos estelionatários, mas se pudesse compreendê-los se daria conta de quão divertidos são em certas ocasiões. Não dão nada mas tampouco esperam nada, têm muita imaginação e são avaros, mas tudo isso não impede que sejam divertidos. Assim é o mundo no que vivem. Um mundo no que os fracos e os desleais morrem.
- O que acontece com os doentes, os órfãos, os velhos? -inquiriu ela-. Como se pode ver isso com senso de humor?
- Morrem, como ocorre também nas classes sociais distintas - replicou-. Morrem de outra forma, isso é tudo. Mas Charlotte, em seu mundo, que sorte corre uma mulher divorciada, uma que tem um filho ilegítimo ou uma cujo marido morre e a deixa sem nada para pagar as dívidas? arruínam-se e acabam por suicidar-se. Para efeitos práticos, arruínam-se no mesmo dia em que ocorre sua desgraça. Deixam de sair à rua e ninguém as visita à tarde. Não têm possibilidade de trabalhar, não poderão casar a suas filhas e nenhum comerciante lhes dará crédito. É uma morte diferente, mas o final é o mesmo. Charlotte não tinha nada que alegar. Teria podido odiá-lo, negá-lo ou justificar tudo, mas no fundo sabia que era verdade. Vinham-lhe à memória os nomes de algumas pessoas que de repente já não devia pronunciar, lembranças de conhecidos que desapareciam para sempre.
- Pitt apoiou delicadamente sua mão sobre o braço do Charlotte. A jovem sentiu seu calor.
- Sinto muito, Charlotte. Não tenho direito a dizê-lo como se fora culpa sua, como se você colaborasse feliz ou conscientemente em todo este drama.
- Isso não muda as coisas, não é verdade? -murmurou.
- Me conte algumas dessas coisas divertidas. Acredito que preciso sabê-las.
- Ele se tornou para trás e retirou a mão. Charlotte sentiu frio no braço. Pensava que não gostaria que a tocasse, mas para sua surpresa não lhe tinha desagradado. Pitt sorriu com malicia.
- Conheceu o Willie quando foi a meu escritório, não é?
- Charlotte sorriu. Recordava seu rosto magro e a mescla de interesse e brincadeira que lhe tinha produzido a ignorância do Charlotte.
- Sim, claro. Imagino que ele foi protagonista de umas quantas histórias pitorescas.
- De centenas delas, e algumas são autênticas. Recordo uma que me contou sobre como um mascate e toda sua família planejaram vingar-se do estelionatário que lhes pagou com dinheiro falso. E Belle... ia dizer que gostaria de Belle, mas esquecia que é uma prostituta.
- Isso não impede que possa gostar dela - respondeu Charlotte e em seguida se perguntou se teria ido muito longe-. Talvez...
- Pitt a olhou com compreensão.
- Belle é originária do Bournemouth. Seus pais eram gente honrada, mas extremamente humilde. Serviam na casa de um casal de classe média. O filho desta família seduziu ao Belle, mais pela força que por seu encanto, conforme conta ela. Quando se soube o ocorrido, decidiram que era uma mulher desonrada. É claro, em nenhum momento se expôs a possibilidade de que se casasse com ela. Belle foi a Londres e ao chegar descobriu que estava grávida. Começou a trabalhar costurando camisas (golas e punhos, as seis casas e as costuras por só dois piniques e meio). Você costura Charlotte? Tem idéia de quanto tempo se demora a costurar uma camisa? Sabe quanto dinheiro se necessita para manter uma casa? Sabe o que pode comprar com dois pennies e meio?"Belle descobriu um mundo novo. Escrevia a seus pais toda semana e lhes enviava dinheiro. Eles pensavam que ganhava como costureira. Do que ia lhes servir saber a verdade? Não sabem o que uma costureira pode ganhar em Londres.
- "Encontrou um caseiro que a protegia, mas que lhe pedia cada vez mais dinheiro. Mas Belle tinha muitos amigos, não só entre seus clientes. É uma jovem muito bonita e ardilosa. Quase sempre que a vejo está sorrindo por uma coisa ou pela outra.
- "Tentou trabalhar como criada, mas não conseguiu porque não tinha autorização oficial para exercer essa profissão. Nesse momento, um cavalheiro lhe propôs que se convertesse em sua amante porque não tinha suficiente dinheiro para casar-se com ela, mas mesmo assim lhe dava dinheiro para a manutenção de seu filho.
- O que fez? -Charlotte estava intrigada.
- Conseguiu um amante fixo que falsificava documentos, escrevia cartas, copiava certificados, etc. O tio desse homem era um padrinho de meninos e encarregou a todos seus protegidos que atracassem ao caseiro e lhe fizessem a vida impossível cada vez que pusesse um pé na rua. Assim, roubaram-lhe o relógio, sua coleção de filatelia e a carteira. Mas o pior é que o vaiavam e se mofavam dele, até que se converteu no bobo do bairro.
- Mas por que não ia à polícia? -Charlotte não pôde evitar fazer essa pergunta-. Especialmente se podia indicar aos culpados e os roubos se repetiam freqüentemente.
- Fez isso! Por isso conheço a história.
- E você os prendeu? -Parecia-lhe mau e estava perturbada.
- Pitt sorriu e a olhou nos olhos.
- Desgraçadamente, aquele dia me doía uma perna e não pude correr para agarrar a nenhum. Ao sargento Flack lhe colocaram algo no olho e se viu obrigado a parar para tirá-lo Quando pôde ver, já não havia nenhum dos pequenos à vista.
- Charlotte se sentiu aliviada.
- O caseiro lhe desceu o aluguel a uma soma razoável, embora ele continuasse ganhando uma boa quantidade de dinheiro.
- Belle segue trabalhando de... Prostituta?
- Que remédio fica? Voltar a costurar camisas por dois pennies e meio?
- Não, certamente que não... Tive muita sorte de nascer em uma família abastada. Costumava pensar que era injusto que os pecados dos pais os pagassem os filhos. Agora compreendo que não é questão de justiça. Colhemos o que nossos pais semearam.
- Levantou a vista e seus olhos se encontraram. A doçura que refletiam os do Pitt a perturbou e afastou o olhar.
- O que se sabe do estrangulador? Acredita que não pode evitar matar?
- É provável que não saiba muito bem o que faz. Isso explicaria que os mais próximos a ele não perceberam nada - respondeu Pitt.Ficou em pé, um pouco tensa.
- Charlotte recordou a gravata negra e sentiu medo. Por um momento tinha esquecido que Pitt representava um perigo e que era só um... Não, era uma idéia absurda!
- Obrigado por me contar o de lorde Ashworth. Foi muito amável de sua parte. Serviu-me para me tranqüilizar ou pelo menos para descartar o pior de meus medos.Não deixava de olhá-la... Acaso a brusquidão da despedida o fazia suspeitar? Tinha precipitado tanto a despedida depois da menção do estrangulador que ele tinha intuído seus temores? Tinha que emendar seu engano.
- Pitt também se levantou. Aceitava que era hora de partir, mas parecia decepcionado. Ao Charlotte deu pena, mas Pitt a inquietava muito e não queria que ficasse por mais tempo. Tinha o dom de antecipar-se a suas palavras e a entendia muito bem. Sua simpatia e sua inteligência acabariam por conseguir que Charlotte traísse ao Dominic e a si mesma.
- Sinto muito, senhor Pitt. Nem sequer lhe ofereci uma taça. -Olhou aos olhos e sorriu apesar de que seu rosto seguia tenso. Devia ter um aspecto espantoso-. Deseja tomar algo?
- Não, obrigado, não se incomode - respondeu e se dirigiu para a porta, mas se voltou antes de chegar-. Charlotte, do que tem tanto medo?
- Charlotte conteve a respiração e demorou uns segundos para poder responder.
- Por que o diz? Assusta-me o estrangulador, como a todo mundo, não?
- Ah - murmurou Pitt-. É possível que até o próprio estrangulador esteja assustado de si mesmo.
- A sala começou a virar ante os olhos de Charlotte. Era ridículo, não podia desmaiar nesse momento. Pode que Dominic fosse um pouco fraco no referente a suas paixões -em realidade todos os homens o são-, mas não seria capaz de matar, de rondar pelas ruas estrangulando moças com arames. Suspeitar dele era uma baixeza, uma loucura e uma traição.
- Sim - assentiu Charlotte-. Imagino que é possível. Mas tem que prendê-lo, pelo bem de todos - acrescentou com um tom especialmente relaxado, como sugerindo que todo aquilo não tinha muito que ver com ela, que sua preocupação era mais social que pessoal.Afrouxaram-se os joelhos e se deixou cair em um sofá enquanto as lágrimas lhe escorregavam pelas faces.Ao acabar, Sarah disse que ia se deitar porque lhe doía a cabeça. Caroline acompanhou à avó à biblioteca para lhe ler algo até que lhe tivesse sono. Edward se foi para o estúdio para fumar e responder a correspondência.Esperou uns minutos e depois levantou a vista, pensando que se não falasse logo Dominic poderia partir também.
- Dominic e Charlotte ficaram sós na sala de estar. Charlotte tinha temido que isso ocorresse, e, entretanto se sentia quase melhor ao ter que enfrentar o problema. Podia ser que a realidade não fosse tão nefasta como ela tinha imaginado.
- Quando Dominic retornou a casa aquela noite, Charlotte não pôde olhá-lo no rosto. Sarah também passou todo o jantar em silêncio. Emily tinha saído com o George Ashworth e um grupo de amigos. A avó salmodiaba sobre a perda da boa educação entre os jovens. Edward e Caroline mantinham uma conversa de compromisso que ninguém escutava.
- Pitt esboçou um sorriso, fez uma pequena reverência e partiu. Charlotte ouviu como Maddock abria e fechava a porta principal.
- Dominic tenho algo que lhe dizer.Estavam a sós e dispunha de toda sua atenção. Dominic tinha posto nela seus negros olhos; parecia preocupado. Normalmente isso teria bastado para que o coração lhe desse um salto, mas nesse momento só podia pensar em Lily Mitchell e em que Sarah estava acima, desgostada por uma tolice quando havia coisas mais graves que nem sequer imaginava... Ou talvez sim. E no Pitt. Não conseguia afastar o rosto do Pitt de sua mente, aqueles olhos penetrantes que a faziam sentir-se tão próxima a ele. Sentiu-se desconcertada. O que acabava de pensar era ridículo.
- Charlotte nunca se caracterizou por seu tato, não sabia abordar um tema com discrição. Caroline o teria feito melhor.
- Você gostava de Lily? -inquiriu.
- Dominic fez expressão de surpresa.
- Sim. Você gostava? Por favor, me responda sinceramente. É importante - Mas não sabia que resposta poderia tranqüilizá-la. Se respondesse que tinha gostado se sentiria triste, mas saber que a tinha utilizado sem que mediasse sentimento algum lhe parecia ainda pior porque seria pior e baixo.
- Dominic empalideceu levemente.
- Sim, eu gostava bastante. Era uma moça muito alegre. Costumava falar do povoado onde cresceu, no campo. Por quê? Deseja fazer algo por ela? Era órfã, sabia? De fato acredito que era filha ilegítima. Não tinha família.
- Não, não pensava fazer nada - respondeu ela com certa brutalidade. Não sabia que Lily era órfã. Tinha compartilhado a mesma casa com ela durante anos, mas para efeitos práticos era como se a garota não tivesse existido. Conheceria igualmente mal a Dominic-. Perguntava-o por você.
- A Charlotte pareceu que Dominic se ruborizava.
- Sim, por ti. -Mentir não servia de nada; evitar o problema, tampouco. Dominic a olhava fixamente. Por que demônios tinha tanta vontade de acariciá-lo nesse momento? Para assegurar-se de que continuava sendo o Dominic ao qual ela tinha amado sempre, ou por piedade?
- Não sei de que fala - murmurou.
- Olhou-o nos olhos com uma franqueza que teria sido impossível uns meses atrás. Pela primeira vez podia olhá-lo sem que o coração lhe palpitasse ou o pulso lhe acelerasse. Olhava à pessoa que havia além daquele homem atraente e fascinante.
- Sim sabe. Millie me mostrou a gravata que achou debaixo de sua cama. Era sua.
- Ao Dominic não ocorreu negá-lo. Ruborizou ainda mais, mas não afastou o olhar.
- Sim, eu gostava. Era tão... Tão simples. Às vezes Sarah é insuportavelmente pedante.
- Igual a você - respondeu Charlotte com tal dureza que inclusive ela mesma se surpreendeu. Estava tão zangada que não pôde evitar pensar em algo absurdo e, como de costume, sem pensar o disse-: O que lhe pareceria se Sarah se dedicasse a fazer amor com Maddock?
- O que lhe parece ridículo exatamente? -replicou ela com desprezo-. Deitava com a criada, não é assim? Lily nem sequer era a governanta, tratava-se de uma simples criada!
- À Sarah não ocorreria fazer semelhante coisa, não é uma prostituta. É incrível que tenha se atrevido a sugerir algo tão degradante.
- Por que o incomoda tanto que fale de um hipotético romance de Sarah quando você reconhece sem problema ter cometido adultério? Deveria estar envergonhado!
- Dominic voltou a ruborizar-se e pela primeira vez desviou seu olhar.
- Não me sinto muito orgulhoso desse episódio - admitiu.
- Diz isso por Sarah ou pela morte de Lily? -de repente via tudo claro. Era um descobrimento muito doloroso, como quando se vêem os defeitos da pele à luz da manhã.
- Você não pode entender! -exclamou ele-. Quando se casar o entenderá.
- Que... -levantou-se- que os homens às vezes... -interrompeu-se porque não sabia como explicar sem ser grosseiro.
- Charlotte acabou a frase por ele:
- Que os homens fixaram umas regras para vocês e outras para as mulheres? Exigem-nos que sejamos absolutamente fiéis mas vocês podem dar seu amor a qualquer uma...
- Não se trata de amor! -replicou Dominic-. Pelo amor de Deus, Charlotte!
- O que é então? Desejo, luxúria?
- Não seja ingênua. Não é um homem. Se estivesse casada talvez entenderia que os homens são diferentes. Não se podem aplicar as regras e os sentimentos das mulheres aos homens.
- A lealdade e a honra são iguais para todos.
- Isto não tem nada que ver com a lealdade nem com a honra! Eu quero à Sarah; pelo menos a queria até que... -ficou lívido- até que começou a temer que eu fosse o estrangulador. -Dominic a olhava e Charlotte viu a dor e a impotência refletida em seus olhos.
- Charlotte ficou em pé e impulsivamente apoiou sua mão na do Dominic. Ele a apertou forte.
- Acredita - Charlotte! Afirmou-o sem ambigüidades!
- Acredito no que Emily contou - disse Charlotte com doçura-. E talvez também saiba sobre Lily.
- Mas pelo amor de Deus! Não tem nada a ver com que matassem a sangue frio a quatro jovens indefesas e abandonassem seus cadáveres em plena rua!
- Se souber sobre Lily e suspeita de mim, tem que sentir-se ferida. Talvez essa fosse sua maneira de vingar-se de você.
- Mas isso é monstruoso! Não pode sentir-se tão mal para... - Dominic cravou seu olhar nela. Charlotte a segurou com expressão séria.
- Eu estaria. Se lhe tivesse entregado todo meu amor e lhe tivesse sido fiel em corpo e alma, sem sequer pensar em ninguém mais, sentir-me-ia traída se te tivesse deitado com minha criada e ainda por cima suspeitasse de que pudesse ter cortejado a minha irmã. Tentaria feri-lo no mais profundo. Se me tivesse traído dessa maneira, o assassinato não me pareceria algo muito mais grave.
- OH, Charlotte! -Lhe quebrou a voz e balbuciou-: Charlotte, não pode pensar isso. Por Deus! Quero dizer que eu... Eu nunca fiz mal a ninguém. -aferrou-se a sua mão, com tanta força que Charlotte sentiu dor.
- Mas ela não estava disposta a ceder.
- Exceção feita à Sarah, claro está e talvez inclusive à Lily. Possivelmente se tinha apaixonado por você, ou as faxineiras sim podem sentir desejo como os homens?
- Charlotte, por favor, não seja tão sarcástica! Ajude-me!
- Não sei como ajudá-lo! -Agora foi ela quem apertou fortemente a mão dele-. Não posso fazer que Sarah se sinta de outro modo, não posso apagar o que disse nem fazer que você o esqueça.
- Dominic ficou imóvel durante um momento, junto a ela, olhando seu rosto e seus olhos.
- Não, não pode - disse por fim, e fechou os olhos-. E o que é pior - acrescentou com um fio de voz-, nem sequer pode me assegurar que não fui eu quem as matou. Esse maldito Pitt disse que o assassino poderia não ser consciente de seus atos. Portanto, poderia ser eu mesmo. Poderia ter estrangulado a quatro moças e não saber. Aquela noite me encontrei com seu pai na rua; parece que ninguém se dá conta de que isso implica que eu também estava ali. Conhecia as quatro jovens... E não estava em casa quando as mataram.
- Ao Charlotte só lhe ocorria uma coisa que pudesse lhe consolar, e a disse.
- Se Pitt pensasse que você poderia ser o estrangulador, teria voltado aqui para interrogá-lo. Sua condição de cavalheiro não o liberaria da justiça.
- Acha que suspeitou de mim? -perguntou ansioso. Necessitava e queria acreditar nela, mas lhe era muito difícil.
- Sei que não gosta dele, mas suponho que sabe que não poderia enganá-lo durante muito tempo, não é?
- Não é que não goste dele, dá-me medo.
- Sim, provavelmente. -Suspirou-. Obrigado, Charlotte. Suponho que tem razão, Pitt me conhece o suficiente. Se suspeitasse de um de nós, estaria nos investigando mais de perto. E não parece que o esteja fazendo, não é? –O medo voltou a refletir-se em seu rosto.
- Charlotte decidiu mentir, como se estivesse protegendo a um menino.
- Dominic recuperou o fôlego e se sentou.
- Como é possível que Sarah pense que pude ser eu? Qualquer pessoa que me conheça o suficiente... Disse que me queria como se pode querer a alguém e pensar algo assim dele?
- Porque estar apaixonada por alguém não implica que o conheçamos perfeitamente - respondeu sentindo o eco das palavras em sua mente. Podia aquela frase significar tanto para ele como significava para ela nesse momento?
- Não acredito que me ame realmente - murmurou-. Do contrário não lhe teria ocorrido nada semelhante.
- Você mesmo acredita nisso!
- Isso é diferente. Eu me conheço. Mas nunca pensaria nada mau dela, em nenhuma circunstância.
- Então não a conhece mais do que ela conhece-o - respondeu Charlotte com franqueza, apesar de que ia descobrindo o que achava à medida que falava.
- Todos cometemos nossas faltas... E também Sarah. Pensando que é perfeita lhe faz tanto mal como ela está fazendo a você.
- Não a entendo, Charlotte. -Enrugou a fronte a vezes penso que não sabe o que diz.
- Não se equivoca - assentiu, doída porque sabia que era certo-. Suponho que não me entende... Será melhor que suba para ver se Sarah se encontra bem.
- Sarah? - perguntou ele, surpreso.Dominic a olhava sem compreender. Ao Charlotte doía a alma. Queria abraçá-lo, consolá-lo e apagar o medo que lhe embargava, mas o amor que sentia por ele tinha mudado. Já não se tratava de uma paixão romântica e irrefreável. Sentia-se mais velha que ele e também mais forte.
- Charlotte foi até a porta e se voltou antes de sair.
- Sabia o que Dominic queria lhe dizer: queria lhe pedir que o ajudasse, mas ela não sabia como fazê-lo. Charlotte sorriu.
- Não penso lhe comentar nada. Todos os homens que vivem perto do Cater Street e têm um pouco de bom senso devem ter seus mesmos medos.
- Dominic suspirou e tentou sorrir.
- Obrigado, Charlotte. Boa noite.
- Charlotte encontrou Sarah sentada na cama, com o olhar fixo na parede e um livro de barriga para baixo sobre a colcha.
- Como está? -perguntou Charlotte.
- O que quer? -Sarah a olhou com dureza.
- Necessita que lhe traga algo? Uma bebida quente?
- Não, obrigada. O que acontece? Dominic não quer falar com você? –Sarah falava com tom amargo e Charlotte viu que estava a ponto de pôr-se a chorar.
- Sentou-se na beira da cama.
- Estivemos conversando um bom tempo.
- OH! -replicou Sarah fingindo desinteresse-. A respeito do que?
- Um tema muito estimulante. Logo terá pesadelos. -Charlotte apoiou sua mão sobre a do Sarah.
- Sarah, não deveria lhe dar a entender que suspeita dele...
- Esteve se queixando de mim, chorando em seu ombro?
- É fácil adivinhar o que está pensando, Sarah! -aproximou-se mais e Sarah tentou afastar-se-. Mas não poderia ter a sensibilidade ou o bom senso suficiente para não dá-lo a entender? Se for culpado já haverá tempo de atribuir-lhe quando tiver ficado provado. Mas se for inocente e suas suspeitas são infundadas, terá aberto entre vocês um abismo difícil de superar.
- Os olhos de Sarah se alagaram em lágrimas.
- Não suspeito dele - disse entre soluços-. A idéia cruzou por minha mente por uns instantes, nada mais. É tão difícil entendê-lo? Não pude evitar! Saiu tanto ultimamente... Já não me faz nenhum caso. Charlotte me diga a verdade, está apaixonado por você? Se for assim quero saber.
- Não. -Charlotte negou com a cabeça e esboçou um sorriso-. Eu estava apaixonada por ele, isso quis dizer Emily. Mas ele nunca se fixou em mim.
- As lágrimas escorregavam pelas faces de Sarah.
- OH, Charlotte! Sinto muito, não sabia.
- Não queria que soubesse. -Charlotte forçou um sorriso. Seus sentimentos estavam muito claros naquele momento. Sentia lástima por Sarah porque tinha acusado Dominic e se fizera um dano irreparável a si mesma; além disso, Sarah não conseguia entender o que tinha ocorrido nem como podia desfazer a ofensa.
- Sarah a olhava com piedade.
- OH, não se preocupe! -tranqüilizou-a Charlotte-. Já não estou apaixonada por ele. Eu gosto, mas não estou apaixonada.
- Sarah sorriu e aspirou pelo nariz.
- Está apaixonada por seu desventurado polícia?
- Charlotte ficou perplexa.
- Por favor, claro que não!Charlotte se inclinou para ela. Acima de tudo, queria proteger e ajudar a sua irmã, e conseguir que as coisas voltassem a ser como antes.
- Sarah, diga ao Dominic que não suspeita dele, que foi um lapso horrível. Minta se for preciso. Mas não permita que continue pensando que...
- Não. -Sarah negou com a cabeça.
- Não posso. Sarah tomou em conta o que Charlotte lhe havia dito, mas não conseguiu aproximar-se de Dominic. Fazia tantos dias que ele mantinha um comportamento distante e inabordável, que temia que a rechaçasse. Além disso, se realmente se sentia tão ferido, por que não ia falar com ela?Se lhe tivesse perguntado, embora fosse uma só vez, lhe teria respondido que não o achava capaz de matar a ninguém. Que a idéia simplesmente tinha cruzado por sua mente, como um estranho medo, mas a tinha descartado por absurda. Mas Dominic não se aproximava dela para falar disso e Sarah tampouco se atrevia a fazê-lo.Pelo menos, tudo tinha acabado. Charlotte se tinha apaixonado por outra pessoa. Mas como podia sentir-se atraída por um pobre polícia? Era difícil de admitir. Mas, certamente, se havia uma pessoa no mundo capaz de tal loucura, essa era Charlotte.Dois dias depois, quando tinha ido visitar a Martha Prebble para falar de uns assuntos da paróquia, a senhora Attwood, a mulher inválida que seu pai tinha ido visitar a noite em que mataram ao Lily, saiu na conversa.
- Bom, já haveria tempo para preocupar-se deste ponto. Sem dúvida Edward acharia a forma de resolvê-lo, embora não estava esforçando-se muito quanto ao Emily e o dandy Ashworth. Teria que falar com ele; do contrário Emily podia acabar ferida e desonrada. Sarah pensou que a isso Emily serviria de castigo por ter traído Charlotte, mas logo pensou que a vida já lhe apresentaria fatura, sem que sua própria família interviesse.
- Uma coisa sim tinha mudado: o que Sarah pensava do Charlotte. A confissão de sua irmã explicava muitas coisas. Agora entendia por que Charlotte tinha mostrado tão pouco interesse por todos os jovens solteiros que sua mãe lhe tinha apresentado. À luz das palavras de Charlotte compreendeu uma série de pequenos incidentes, palavras, olhadas, aborrecimentos e prantos que antes lhe eram inexplicáveis. Não entendia como Charlotte não lhe guardava rancor por ter sido tão insensível e... Por haver-se casado com Dominic. Como podia ter estado tão cega? Só se tinha preocupado por conseguir sua própria felicidade e nunca tinha pensado na de Charlotte. Emily se tinha dado conta disso e, em um momento de aborrecimento, tinha-a traído. Aquilo era difícil de perdoar.
- Acaso se tratava de algo mais? Sentia-se culpado por outra coisa? Recordou os olhares travessos de Lily e seus risinhos. Naquele momento tinha preferido não lhe dar importância. Tinha pensado nisso em outras ocasiões, mas tinha decidido esquecer por sua própria paz espiritual. Agora tudo vinha a sua mente e se sentia envergonhada. Lembrava-se daquilo porque Lily tinha morrido?
- Capítulo 11
- Charlotte não podia acrescentar nada mais, ficou calada, acariciando o cabelo de sua irmã. Apartou-lhe uma mecha dos olhos, logo se levantou e se dirigiu lentamente para a porta. Estava muito cansada para sentir algo mais aquela noite, muito transtornada com todas as novas. Sem dúvida o medo e a pena voltariam no dia seguinte.
- Pobre mulher! -disse Martha dando um pequeno suspiro-. Realmente é muito pesada.
- Sarah recordou o que seu pai lhes tinha contado.
- Soube que tem tendência a exagerar as coisas e mescla o vivido com o sonhado. Vive um pouco de ilusões, receio.
- Martha arqueou as sobrancelhas.
- Não sabia disso. Quando a vi não parava de falar de velhas glórias, e reconheço que não tomei a precaução de escutá-la muito. De modo que não sei se o que contava era verdade ou não. Suponho que acusa muito a solidão.
- Não recebe visitas? -perguntou Sarah, que sentia muita pena por aquela mulher, mas não queria vê-la.
- Receio que não muitas. Como disse, é um pouco pesada.
- Acredito que está inválida e não pode sair de sua casa.
- Sarah se sentia obrigada a seguir com o tema. Se aquela mulher estivesse muito necessitada, sentir-se-ia mal por não ir, sobre tudo se seu marido tinha ajudado a seu pai tempo atrás.
- OH, não! -respondeu Martha sem duvidar-. Sofre os típicos ataques da idade, mas nada mais.
- Não tem que guardar cama? -Sarah franziu o sobrecenho. Era possível que tivesse entendido mal a seu pai? Tentou recordar quais tinham sido suas palavras exatas mas não pôde.
- OH, não, absolutamente! Mas tenho certeza de que adoraria receber uma visita, simplesmente para conversar um momento.
- Tem problemas de dinheiro? -Sarah preferia dar parte de seu dinheiro antes que seu tempo.
- Querida Sarah, é você tão generosa. É tão louvável por sua parte o querer ajudar e antepor as necessidades de outros às suas próprias. Mas não é pobre, asseguro, salvo em espírito. Necessita de amigos - apontou dúbia ao mesmo tempo em que punha suas mãos sobre os ombros de Sarah- e um pouco de ternura. -Sua voz se quebrou como se tentasse dominar uma emoção muito forte.
- Sarah se sentiu desconfortável, mas recordou a extrema frieza do vigário e tentou ficar no lugar de Martha. Por desgraça, a atitude distante do Dominic lhe ajudava a fazer uma idéia da situação. Respondeu ao gesto de Martha tocando seu braço.
- Claro - disse docemente-. Todos o necessitamos. Irei visitá-la esta tarde. Não posso lhe levar nada nesta ocasião, mas passarei um tempo porque tenho a oportunidade de usar a carruagem. Mas voltarei mais adiante, talvez com a Charlotte e com mamãe, e lhe levarei algum presente, embora seja um simples detalhe.
- Martha a observou atentamente.
- Você acha que é uma boa idéia? -perguntou Sarah olhando o semblante pálido de Martha-. Seria melhor adiar minha visita até ter sido formalmente apresentadas?
- Não se preocupe - disse um pouco perturbada-. Deve você ir hoje mesmo.
- Senhora Prebble, encontra-se bem? -Estava muito tensa e alterada. Sarah se perguntou se tinha feito algo que a incomodasse. Talvez a tinha induzido a pensar sobre quão dura era sua própria vida emocional.
- Sarah pegou as mãos de Martha e as apertou forte, beijou-a suavemente na face e depois se dirigiu para a porta.
- Dar-lhe-ei lembranças de sua parte. Tenho certeza de que se alegrará. Faz você tanto por tanta gente que não deve haver nenhuma casa em toda a paróquia que não valorize sua bondade. -despediu-se e partiu antes que Martha pudesse responder.
- Sarah não tinha uma idéia preconcebida do que esperava achar durante a visita, mas quando viu a mulher que abriu a porta se sentiu tão surpreendida que ficasse sem fala.
- Sim? -inquiriu a mulher arqueando as sobrancelhas.
- Sarah engoliu em seco e tentou recuperar-se.
- Meu nome é Sarah Corde. Não tenho o gosto de conhecê-la, mas a senhora Prebble fala tão elogiosamente da senhora que pensei em vir a conhecê-la, sem ânimo de incomodá-la.
- Iluminou-se o rosto da mulher. Era uma pessoa muito formosa; vinte e cinco anos atrás sem dúvida fora uma jovem linda. Suas feições continuavam sendo bonitas e seu cabelo era extremamente elegante, e embora se apagara um pouco não tinha perdido todo seu esplendor. Não havia nada patético nela e se sentia sozinha, dissimulava-o muito bem.
- Por favor, entre - disse, e se afastou a um lado para que Sarah entrasse.
- A sala de estar era pequena e estava mobiliada de forma muito simples, mas Sarah teve a impressão de que era mais uma questão de gosto que de pobreza. O conjunto lhe foi muito agradável. Era mais acolhedor que as habitações às que estava acostumada, repletas de quadros e fotografias, pássaros dissecados, flores secas, modelos de bordar e um móvel em cada espaço disponível.
- Obrigada. - sentou-se na cadeira que lhe oferecia. Alegrou-se de não ter levado nada de comer, pois naquela casa teria parecido supérfluo e inclusive ofensivo.
- A senhora Prebble é muito amável - explicou a mulher-. Temo que não a conheço tão bem como deveria, as reuniões da igreja me parecem... - interrompeu-se, consciente de que Sarah devia ser paroquiana e optou por não dizer o que pensava.
- Agradeço-lhe sua sinceridade. Sim, temo que assim seja. Faz muitas boas obras, mas terá que ser um santo para suportar tantas conversas horríveis e tanto fofoca. E querida, nem sequer se trata de fofocas interessantes!
- Pode uma fofoca interessar a alguém mais que ao que o promove?
- Claro que sim! Algumas fofocas são muito inteligentes e, é claro, alguns levam a semente de futuros escândalos. Ou assim era antes. Faz anos que não me contam um bom escândalo. Também é certo que cada vez recebo menos visitas. Converti-me em uma senhora respeitável. Grande epitáfio!
- Sarah sentia aumentar sua curiosidade. Quem era aquela mulher, exatamente? Não se parecia em nada à pessoa patética e perdida que seu pai havia descrito. Ao contrário, era muito divertida e parecia saber perfeitamente o que fazia em todo momento.
- Não lhe parece um pouco cedo para pensar em epitáfios? -respondeu Sarah sorrindo-. Ainda não está morta.
- Em certo modo sim o estou. Aqui sentada, em uma das casas do Cater Street, vendo desfilar o mundo ante meus olhos. E ninguém me escuta, embora possa fazer algum comentário inteligente. Querida, é terrível ser uma pessoa inteligente e não poder compartilhar isso com ninguém. Deseja tomar algo, um chá possivelmente? Não tenho criada, como terá comprovado, mas posso preparar o que for, se me desculpar um momento.
- OH, não, obrigada! -Sarah fez um gesto para detê-la-. Acabo de tomar o chá com a senhora Prebble - mentiu para que não se incomodasse-. Salvo que queira tomar um. Se for assim, me permita que o prepare e o sirva.
- Por Deus, moça, morre por fazer obras de caridade! Está bem, eu adorarei que me sirvam por um momento. Encontrará o necessário na cozinha. Se não achar algo, diga-me.
- Dez minutos depois, Sarah voltou com uma bandeja e chá para dois. Serviu-o e continuaram o bate-papo.
- Quanto tempo faz que vive no Cater Street? -perguntou.
- Desde que meu marido morreu e meu querido Edward me achou esta casa - respondeu.
- A mulher arqueou as sobrancelhas, ao mesmo tempo surpreendida e divertida.
- Por favor, não! Era meu amante. Faz muito tempo, mais de vinte e cinco anos. Eu tinha quarenta anos e ele rondava os trinta.
- Ela soltou uma sonora gargalhada.
- É claro que não. Ele já estava casado com uma formosa mulher, pelo que soube. Tinha uma filha. O que lhe ocorre, querida? Ficou pálida. Foi-lhe o chá pelo outro lado?Quanto mais esforço fazia por não tirar conclusões, mais clara surgia à história em sua mente. Escutou sua própria voz perguntar algo como se fosse a voz de outra pessoa.
- Sarah estava perplexa. Não sabia o que pensar. Observou a aquela mulher tentando imaginá-la vinte e cinco anos atrás. Era aquela a razão pela qual seu pai tinha ido visitá-la aquela noite? Por isso tinha mentido dizendo que estava no clube, até que Dominic o delatou sem querer? Por isso se tinha negado a proporcionar ao Pitt o nome e o endereço?
- Suponho que seria uma espécie de presente de despedida, para assegurar-se de que se achava bem.
- Que romântico! -A mulher sorriu-. Uma despedida com lágrimas reprimidas e momentos para recordar eternamente? Não está morto, querida, nem emigrou a outro lugar. De fato se encontra perfeitamente bem e continuamos sendo bons amigos, até onde a discrição e o tempo nos permitem isso. Nada tão romântico como imagina. Uma aventura que acabou convertendo-se em amizade e depois em dois conhecidos com boas lembranças que compartilhar.
- Então suponho que vive perto daqui. -Sarah não podia deixar o tema, esperando que algo descartasse seus medos. Cada novo dado era uma oportunidade para comprovar que não se tratava de seu pai.
- A mulher sorriu, em seus olhos brilhava uma faísca de graça.
- É claro - assentiu-. Mas suponho que seria indiscreto de minha parte lhe contar algo mais sobre ele. Poderia tratar-se de um conhecido seu!
- Suponho que sim - respondeu Sarah sem pensar.Sarah não podia nem queria aceitá-lo. Nunca tinha pensado em outro homem que não fosse Dominic e seu conceito do amor não lhe permitia fazê-lo. O amor implicava fidelidade. Um fazia promessas e alguém as cumpria. Podiam-se ter comportamentos egoístas, irracionais ou absurdos; podia-se vestir desalinhado ou extravagante, mas não se podia mentir nem de ato nem de palavra. Ficou insensível, sua mente não se atrevia a mover-se em nenhuma direção. Só pensava em uma coisa e a repetia uma e outra vez, como se isso fosse ajudar em algo. Edward tinha tido uma aventura com outra mulher, vinte e cinco anos atrás, e tinha mantido a amizade durante todos esses anos, inclusive a visitava na atualidade, de vez em quando. Estaria apaixonado? Seriam os restos de uma paixão já fenecida? Vivê-lo-ia como uma espécie de dívida perpétua ou sentiria piedade por ela?Sarah tinha ido a ela em busca de conselho, para assegurar-se de que não estava sozinha e que não tinha sido traída, e não lhe tinha podido oferecer nada. Sarah estava muito confusa e surpreendida para dar-se conta do que dizia, para compreender que Caroline não sabia nada dessa história. Sarah tinha destroçado em trinta minutos uma paz conjugal que tinham durado trinta anos.O que o tinha feito abandonar a sua amante? Pretendia evitar um escândalo? Preocupavam-lhe as meninas? Tinha sido por um motivo tão terrestre como o dinheiro? Nunca conheceria a resposta, porque embora Edward a respondesse, Caroline jamais saberia se dizia a verdade.Não podia deixar de pensar naquela mulher. Que tipo de pessoa seria? Teria amado ao Edward, lhe teria entregado parte de seu ser, ou se tratava só de uma aventura, algo com suas vantagens e seus inconvenientes? O que lhe dava ela que Caroline não sabia lhe dar?Teria querido a essa outra mulher ou se tratava só de um passatempo para satisfazer um desejo? Tinha sido toda sua vida em comum uma grande mentira?Estremeceu. De repente se sentiu suja, como se estivesse manchada por dentro e não pudesse limpar-se. Recordar suas carícias e os momentos de intimidade lhe foi insuportável; queria esquecer que tinha ocorrido pois já não podia dar marcha atrás no tempo.A avó soube que passava algo à Caroline e Sarah. Disse-se que se teriam brigado com alguém e é claro estava desejosa de conhecer os detalhes. Na manhã seguinte Sarah estava na saleta de leitura. A avó se aproximou supostamente para averiguar que preparativos eram necessários para o chá e que convidados esperavam aquele dia, mas em realidade queria conhecer os motivos da suposta briga.
- Ficou em pé, recolheu o cabelo e se alisou o vestido. Tinha que descer e fingir que tudo era normal, pelo menos evitar que seu rosto refletisse a pena e a confusão que a embargavam.
- A possibilidade de que Edward pudesse ter amado à senhora Attwood a tinha aniquilada, era algo muito doloroso que alterava décadas de sentimentos e de paz, e destruía tudo que pudesse ter que ternura e confiança. Embora por parte do Edward tivesse sido simples desejo, mudava algo?
- Tentou recordar como se sentira durante os primeiros anos. Sarah era uma menina pequena, Charlotte apenas um bebê, e Emily nem sequer um projeto. Era essa a chave? Talvez se tivesse dedicado tanto às meninas que o tinha abandonado um pouco a ele. Não, não tinha sido assim. Tinham passado muitas horas juntos, tinham saído para jantar, tinham ido a festas, inclusive a concertos. Ou aquilo tinha sido depois? As lembranças se mesclavam em sua memória.
- Assaltou-lhe uma nova dúvida. Devia lhe dizer que sabia? A essas alturas não tinha muito sentido, mas não sabia se poderia calar algo assim. Aquilo mudava seus sentimentos por ele. Com os anos tinham ido tomando confiança, acostumaram-se a conviver, a perdoar pequenas falhas e debilidades, mas sempre tinha confiado o um no outro porque sabiam que os problemas eram superficiais.
- Caroline se olhou ao espelho. O problema não era que se estivesse fazendo velha. A outra mulher era ainda mais velha! O que teria visto Edward nela que não achou em Caroline? Beleza, doçura, inteligência, sofisticação? Ou era simplesmente amor, um amor sem motivo específico.
- Pobre Sarah.
- Caroline estava sozinha em seu dormitório. Sarah acabava de partir e de fechar a porta atrás de si.
- Ficou um momento conversando com a mulher embora não teria sabido dizer qual foi o tema de conversa... Pronunciou um sem-fim de frases de compromisso e de observações corretas, dessas que todo mundo diz e ninguém escuta. Depois se despediu e subiu à carruagem para voltar para casa.
- Deixou de prestar atenção à conversa. Sua mente parecia um caos e tentava dar sentido a seus pensamentos a respeito de seu pai e Dominic. Saberia sua mãe da existência daquela mulher? Saberia faz anos e teria decidido não dar-se por inteirada? Ou acaso se tratava dessa classe de coisas que estava preparada para assumir porque formavam parte da natureza dos homens? Mas os homens em geral eram algo muito diferente ao próprio pai ou marido!
- Bom dia, Sarah, querida - saudou lisonjeadora.
- Bom dia, avó - respondeu Sarah sem levantar a vista da carta que estava escrevendo.
- Está um pouco pálida. Dormiu bem? -perguntou a avó, sentando-se em um sofá.
- Tem certeza? Está um pouco alterada.
- Encontro-me perfeitamente, avó. Não se preocupe por mim.
- A anciã não desperdiçou a oportunidade.
- Sim me preocupo querida. Não posso evitar fazê-lo quando vejo que tanto você como sua mãe têm um aspecto cansado e triste. Se tiverem discutido por algo, talvez eu possa ajudar a esclarecer a questão.
- Se Sarah tivesse sido Charlotte teria respondido que a considerava mais capaz de acrescentar gasolina a essa classe de fogos que de apagá-los, mas Sarah decidiu ser o mais correta possível.
- Não brigamos, avó; sentimo-nos muito próximas. -Sorriu sem dissimular um gesto de amargura-. De fato, somos companheiras de infortúnio.
- De infortúnio? A que infortúnio se refere? Não sabia que tivesse acontecido algo.
- Não tinha por que inteirar-se; ocorreu faz vinte e cinco anos.
- De que demônios está falando - inquiriu a avó-. O que ocorreu faz vinte e cinco anos?
- Sarah se arrependeu de haver-lhe dito.
- Nada que tenha que ver com você. Além disso, já terminou.
- Continua-se entristecendo a você e a sua mãe, não terminou - replicou a avó com teimosia. - Do que se trata Sarah?
- Dos homens - respondeu Sarah-. Da vida. Possivelmente também tenha lhe ocorrido alguma vez. -Forçou um sorriso-. Não me surpreenderia absolutamente.
- Do que está falando? O que acontece com os homens?
- São turvos, desleais e hipócritas! -exclamou Sarah com indignação-. Pregam uma coisa e fazem o contrário. Têm regras para nós e outras para eles.
- Certos homens sim. Isso sempre foi assim. Mas nem todos. Também há homens honestos e decentes. Seu pai é um deles. Sinto-o se não ser o caso de seu marido.
- Papai? -exclamou Sarah-. Está equivocada! Papai é o pior de todos. Pode ser que Dominic tenha olhado para onde não devia, mas não teve uma amante e a manteve durante vinte e cinco anos.
- 'Tudo aquilo não eram mais que palavras para a avó. Não duvidava de que eram mentiras sem fundamento. Sarah tinha perdido a cabeça depois de descobrir o deslize do Dominic. É claro, casar-se com um homem tão bonito era buscar-se problemas. Ela o tinha pressentido desde o começo. Tinha advertido Caroline, mas é claro Caroline não tinha aberto a boca.
- Tolices! -protestou a anciã para resolver de uma vez-. É ridículo que diga algo assim. Não o terei em conta porque sei que está muito alterada por causa de seu marido. Eu mesma a teria advertido desde o começo, se me tivesse dado a oportunidade. De fato, o comentei a sua mãe. Mas se atreve a repetir semelhante calunia sobre seu pai fora desta sala ou em presença de outros, me...
- O que fará avó? -desafiou-a Sarah-. Demonstrará que é mentira? Não poderá! Se tiver uma tarde livre, levá-la-ei para que a conheça. É uma mulher velha, mais velha que papai, mas continua sendo muito formosa. Deve ter sido uma beleza em seu tempo.
- Sarah! Isto não tem nenhuma graça. Ordeno-lhe que se controle imediatamente. Se não puder se conter, sobe para deitar e não desça até que esteja calma. Cheira sais para reagir ou lave o rosto com água fria.
- Água fria! Meu pai tem uma amante e você me sugere que me lave o rosto com água fria! -Sarah ergueu a voz-. Também vai aconselhar a minha mãe que cheire sais para reanimar-se? O avô também tinha uma amante?
- Voltaram velhas e desagradáveis lembranças para a anciã.
- Sarah, acredito que se tornou louca - cortou a avó-. Saia deste quarto. Comporta-se como uma criada. Será melhor que se deite até que recupere o bom senso. -Ao ver que Sarah não se movia, a avó se enfureceu-. Obedece! Eu explicarei a sua mãe que não se achava bem. Não desejo ver como organiza um espetáculo e estou certa de que você tampouco o quer. O que ocorreria se entrasse um dos criados? Quer se converter na fofoca de todos os criados do bairro?A avó ficou comocionada. Grande manhã! O que tinha passado ao Sarah para que lançasse semelhante acusação? Tinha que ter perdido a cabeça. Tinha certeza de que Edward teria cometido alguma ou outra indiscrição, mas nada que justificasse o qualificativo de desonesto. Esperar que um Homem passe trinta anos sem cometer nenhum deslize era pedir muito; qualquer mulher sabia. Alguém tinha que aceitá-lo e ser forte e, sobre tudo, digna.Ou seria verdade?
- A avó se estava expondo a possibilidade de que Edward fizesse algo assim quando Charlotte entrou na sala. Também ela parecia aborrecida e muito tensa. Mas Charlotte era uma jovem muito peculiar, carecia de todo praticamente e estava sujeita a imprevisíveis mudanças de humor. Provavelmente também devia estar decepcionada pelo comportamento do Dominic. Muito curiosa sua relação com o Dominic. A essas alturas, deveria ter superado já a fase dos sonhos românticos e infantis.
- Mas ter uma amante fixa, lhe pôr uma casa e lhe dar dinheiro regularmente, isso era uma coisa bem distinta. Era imperdoável. Como tinha ousado Sarah sugerir semelhante coisa? Por muito que se sentisse decepcionada com respeito ao Dominic, não tinha direito a turvar o bom nome de seu pai com aquelas afirmações que certamente careciam de fundamento.
- Sarah partiu, mas antes lançou a sua avó um olhar fulminante.
- O que lhe passa Charlotte? -perguntou-. Suponho que não terá escutado as tolices que anda dizendo Sarah, não é? -Charlotte se virou em redondo. A avó suspirou e prosseguiu-. Está um pouco transtornada porque descobriu que Dominic não é infalível, mas o superará se lhe ajuda em lugar de andar pela casa com ar trágico. Comporte-se, mocinha, e deixa o egoísmo a um lado!
- E mamãe? -inquiriu Charlotte com rudeza-. Também deve comportar-se e superar tudo?
- Não tem nada que superar - replicou a avó cortante-. Estranho que cometa o engano de acreditar na Sarah sabendo quão afetada está.
- É claro que está afetada! Eu também estou. Se você não estiver triste, imagino que será porque seus critérios morais são diferentes dos meus!
- Aquilo era muito! A avó foi às nuvens de tal maneira que até lhe custou respirar. A insolência de Charlotte ia além do que estava disposta a tolerar.
- Certamente que meus critérios são diferentes aos seus! -replicou a avó airadamente-. Eu não me apaixonei por marido de minha irmã!
- Tenho certeza de que nunca se apaixonou por ninguém - disse Charlotte secamente.
- Nunca perdi o controle como uma menina - apontou a avó com sanha-, se isso for o que significa para ti estar apaixonada. Não acredito que um descontrole emocional seja desculpa para um comportamento indecoroso. E se lhe tivessem educado como corresponde a uma dama, você tampouco justificaria algo assim.
- Charlotte tinha esperado com ânsia uma oportunidade como aquela. Seu rosto se iluminou com a sensação de triunfo.
- Queima-se com seu próprio fogo, avó. Se o problema for como nos educam, o que acha que aconteceu com meu pai? Como pôde esquecer-se de ensinar que não está bem trair à mulher e às filhas mantendo uma amante durante vinte e cinco anos?
- A avó avermelhou de raiva. Sentia-se ultrajada e, ao mesmo tempo, assustada de que as palavras do Charlotte pudessem ser verdadeiras.
- Como ousa repetir uma mentira tão irresponsável e mal-intencionada? Ambas deveriam se envergonhar de acusar e ferir seu pai. Exijo que se desculpem ante ele.
- Acredito que seria muito grave para vocês dois – murmurou Charlotte esboçando um sorriso cínico-. Veria a culpa refletida em seu rosto, e então se veria obrigada a retirar suas palavras e se retratar de muitas de suas convicções.
- Tolices! -disse a avó com ar arrogante. Não permitiria que uma menina insolente criticasse Edward.Charlotte esboçou uma careta de aborrecimento.
- Como se tinha atrevido Sarah a difundir uma infâmia semelhante? Não tinha perdão-. Imagino que seu pai terá cometido algum ou outro deslize, todos os cavalheiros o fazem, mas tenho certeza de que não levou a cabo nada tão desonesto ou indecente como insinua. Falar de traição é palavras maiores!
- Considera-me imoral por ter querido ao Dominic, embora nunca lhe confessei nada nem fiz nada a respeito. Entretanto, papai tem uma amante durante vinte e cinco anos, compra-lhe uma casa e a mantém, e diz que se comporta como um cavalheiro. É uma hipócrita! Sei que há regras para os homens e outras para as mulheres, mas não se podem levar tão longe. Como é que se uma mulher trair a um homem se considera pecado mortal, enquanto que se for o homem o que trai à mulher se considera um simples pecadilho, algo sem importância? Parece-me que um pecado sempre é um pecado, sem depender de quem o cometa. A única coisa que poderia servir de desculpa seria a ignorância ou uma debilidade extrema. É essa a justificação que empregam os homens, sua "extrema debilidade"? Sempre comentam que as mulheres são as fracas. Trata-se só de uma debilidade física? Supõe-se que moralmente devemos ser mais fortes?
- Não diz mais que tolices, Charlotte! -Mas a avó já vacilava. Recordava o rosto de Caroline durante o café da manhã. Se não se equivocava, tinha estado chorando, embora o tivesse dissimulado com maquiagem. A avó era perfeitamente capaz de descobrir o que havia debaixo daquela fachada.Era possível? Poderia ser que Edward tivesse freqüentado a outra mulher durante tantos anos? Se fosse certo, que classe de mulher era? Olhou ao Charlotte, que continuava dando amostras de aborrecimento e decepção.A avó sentiu que a desilusão a embargava, porque parecia evidente que em todo aquilo tinha que haver algo de verdade. Sempre tinha querido ao Edward, tinha-o identificado com seu marido e, portanto a retroagia a sua juventude e ao que lhe havia tocado viver naquela época. Pensava que Edward era um modelo de virtudes, tudo o que se podia esperar de um homem: um ser admirável que reunia o melhor de seu pai sem retomar o pior.Odiou a Charlotte por obrigá-la a assumir a verdade.
- Mas tinha que confrontar que aquela imagem se desvanecia ao vê-lo de perto. Se o conhecesse tão bem como Caroline devia conhecê-lo, teria detectado antes suas falhas. Aquilo não era o pior. Doía-lhe tanto pensar nele como nela mesma. Os valores e crenças de sempre tinham caído e não sabia como recuperá-los. Sentiu-se velha e sozinha. O mundo ao que pertencia tinha morrido e o que ficava dele, seu filho Edward, tinha-a traído.
- Charlotte pôde ler nos olhos da avó a dúvida e se sentiu melhor.
- Caroline acreditava com convicção aqueles rumores.
- É uma mulher dura, Charlotte - retomou o fio da conversa-. Por isso Dominic escolheu Sarah e não a você! -Procurava algo com que feri-la ainda mais-. Nenhum homem se apaixonará por você. Carece totalmente de feminilidade. Esse polícia andrajoso a corteja porque é um ser vulgar que ignora os atributos que correspondem a uma dama. Acredita que se unindo a você poderia ascender socialmente. Mas embora aceitasse sua proposta (é possível que seja a única que receba) não conseguiria que se integrasse em nossa classe social. Nasceu sendo um homem comum e morrerá sendo isso. Será você quem se rebaixará a sua condição. Talvez pertença mais a esse mundo que a este!
- É uma velha horrenda e pérfida - murmurou-. Não estranharia que o avô tivesse tido uma amante, simplesmente para livrar-se de você. Talvez meu pai tirou de seu próprio pai o exemplo. E nesse caso não seria culpa dele. Se houver algo que aprendi que esse "vulgar polícia" é a compreender até que ponto nossos pais nos fazem o que somos; determinam nossa educação, mas também nossa riqueza ou nossa pobreza, nosso status e nossos pensamentos. Quando a observo compreendo que meu pai não é tão culpado como eu achava.A hora da comida foi muito incômoda. Comeram em silêncio e procuraram desculpas para abandonar a sala de jantar o antes possível. Emily disse que ia ver a costureira e que Caroline a acompanharia. A avó olhou com fúria para Charlotte e disse que se retirava a seu quarto porque não se sentia bem. Sarah comentou que pensava visitar a Martha Prebble; em casa do vigário se respirava um ambiente muito estrito, mas ali ao menos estaria a salvo dos pecados da carne.
- Continuando, Charlotte se virou e saiu da sala dando uma portada. A avó ficou fria, mal podia respirar e as palavras de sua neta se cravavam em seu coração como facas. Gritou para pedir auxílio, confiando em inspirar piedade, mas Charlotte já partira.
- Sarah, não deveria ir sozinha - disse Charlotte-. Quer que a acompanhe? -Era a última coisa que gostava de fazer, mas se sentia tão unida a sua irmã como não o tinha estado desde antes que Dominic chegasse à casa, quer dizer desde que era uma menina. Doía-lhe ver a decepção, a impotência e a sensação de perda que se apropriaram de Sarah. Também ela se sentia mal porque tinha amado ao Dominic. Mas para ela era diferente e a surpreendia que a fosse tão fácil esquecê-lo. Temia que seu amor tivesse sido menos forte do que ela achava; era um amor apoiado na ilusão mais que em um verdadeiro conhecimento. Mas o caso do Sarah era outro; ela tinha compartilhado com Dominic sua intimidade, sua vida, seus pensamentos não se tratavam de simples sonhos.
- Não, obrigada - respondeu com um franco sorriso-. Sei que não gosta do vigário e é possível que se encontre em casa. De qualquer modo, quero falar com Martha a sós.
- Posso - acompanhá-la até a porta -propôs Charlotte.
- Não seja absurda! Então teria que retornar sozinha a casa. Não me passará nada. É provável que esse louco assassino partiu do bairro. Faz muito que não ocorre nada. Talvez nos equivocamos. Provavelmente se tratava de alguém dos bairros pobres e voltou para lugar que lhe corresponde.
- O inspetor Pitt não opina assim. -Charlotte começou a levantar-se.
- Sente o mesmo interesse que ele sente por você? -Emily arqueou as sobrancelhas-. Não é infalível, sabe?
- Irei primeiro ver o vigário e depois visitarei várias pessoas da paróquia - explicou Sarah-. Imagino que Martha me acompanhará. Estarei perfeitamente segura! Não se preocupe. Vê-la-ei esta noite. Até mais tarde.'Às três e meia estava ocupada redigindo cartas que levava tempo atrasando, mas teve que deixar isso quando Maddock lhe anunciou que o inspetor Pitt desejava vê-la.Mas durante todos esses anos tinha estado visitando aquela outra mulher que vivia a umas ruas de sua casa! E sua pobre mãe não tinha suspeitado nada!
- Sentiu-se agradada, quase aliviada, como se aquela visita pudesse mudar seu estado de ânimo. Entretanto, isso não impedia que estivesse um pouco assustada. Todos na casa sabiam do comportamento desonroso de seu pai, embora só se mencionasse em privado. Mantinha-se como um segredo, mas parecia que as próprias paredes da casa sabiam; Pitt não demoraria a descobri-lo. Se seu pai era capaz de ocultar uma traição durante vinte e cinco anos, o que outras coisas podia estar discretamente ocultando? Essa faceta desconhecida de sua vida podia proporcionar inumeráveis surpresas. Poderia ser que nem ele mesmo fosse consciente de tudo isso. Aquela terrível idéia levava horas no fundo de sua mente e agora tinha vindo à superfície. Poderia ter outras amantes? Talvez tivesse tentado seduzir às jovens assassinadas e depois preferiu matá-las a correr o risco de ser descoberto. Não podia ser! Seu pai? Em que demônios estavam pensando? Conhecia seu pai desde sempre. Sentara-se em seus joelhos e tinha brincado com ele quando era menina. Recordava os aniversários, os Natais... Todos os brinquedos que lhe dava de presente.
- As demais também se foram e Charlotte se sentiu sozinha, sem ter nada que fazer. Procurou rapidamente no que ocupar-se para não ficar a pensar em seu pai ou em Dominic, na decepção que sentia, no absurdo que era construir sonhos em torno de uma pessoa... e sobre tudo no estrangulador, porque apesar do que Sarah e Emily sugeriam, Charlotte não achava que o assassino pertencesse a outro mundo e muito menos que partira. Tinha certeza de que se tratava de algum vizinho, que vivia no Cater Street ou nas proximidades. Dizia seu instinto.
- Senhorita Charlotte? -Maddock a fez voltar para o presente.
- Ah, sim, Maddock! Faça-o entrar.
- Deseja que sirva alguma coisa, senhorita?
- Certamente que não - respondeu sem vacilar-. Não acredito que fique mais de meia hora.
- Muito bem, senhorita.Estava desalinhado, como sempre, e esboçava seu característico sorriso de orelha a orelha.
- Maddock se retirou e Pitt apareceu segundos depois.
- Boa tarde, Charlotte - saudou.
- Charlotte o olhou com cenho para lhe indicar que não gostava de tanta familiaridade, mas ele não pareceu se afetar.
- Boa tarde, senhor Pitt. Há algo mais que possa fazer por você? Avançou um pouco em sua investigação?
- Sim, descartamos a maioria dos suspeitos. -Não tinha deixado de sorrir. Não havia forma de atravessar sua couraça?
- Alegra-me. Diga-me, são muitos os suspeitos que restam?
- Pitt arqueou as sobrancelhas.
- Ocorreu algo que a entristeceu? -Era mais uma afirmação que uma pergunta.
- Ocorreram muitas coisas, mas nenhuma que lhe interesse - respondeu ela com frieza-. Não tem nada que ver com o estrangulador.
- Se a entristecerem, interessam-me. -Olhou-a com doçura e com algo mais...
- Charlotte não tinha visto esse olhar em nenhum outro homem e se sentiu perturbada. Ruborizou-se e sentiu um calor ao qual não estava acostumada. Desviou o olhar imediatamente, mas assim e todo se sentiu confundida.
- É muito amável de sua parte -replicou com gravidade - mas são assuntos de família e resolverão ao seu devido tempo.
- Ainda está preocupada com o Emily e George Ashworth?
- Ela tinha esquecido esse assunto, mas parecia uma boa forma de sair do atoleiro.
- Sim -mentiu-. Me preocupa que possa feri-la. Não pertence a sua mesma classe social e poderia lhe fazer conceber falsas ilusões. Emily poderia ver menosprezada sua reputação e em troca não obter mais que dor e desilusão.
- Acredita que porque tem um status superior não quer se casar com ela? -perguntou ele.
- Era uma pergunta absurda.
- É claro que não se casará! -respondeu-. Os homens de sua posição se casam por compromissos familiares ou por dinheiro. Emily não se encontra em nenhuma dessas categorias.
- Claro que não! Parece-me cruel e desprezível, mas assim é como funcionam as coisas. -Viu o sorriso dele e, de novo, algo mais. sentiu-se muito violenta, mas engoliu em seco e tentou controlar-se.
- Pitt seguia sem lhe tirar olho de cima mas agora parecia zombar de si mesmo. Amavelmente, ajudou-a a sair graciosa daquela situação.
- Acredito que se preocupa muito pelo Emily -indicou-. É bastante mais esperta do que você acredita. Pode ser que Ashworth pense que tem tudo sob controle, mas será a própria Emily quem decide se se casa ou não. Para um homem de sua posição, uma mulher como Emily seria muito valiosa. Para começar, é muito mais esperta que ele e suficientemente hábil para que ele não se sinta inferior. Conseguirá o que se proponha, mas o convencerá de que foi idéia dele.
- Parece que a considera extremamente... diplomática.
- É sim. -Pitt sorriu-. É justamente o contrário de você. Você iria diretamente ao problema e Emily tende a esquivar-se e acessar a ele de forma tangencial.
- Por suas palavras, diria-se que pensa que sou estúpida.
- Ao Pitt lhe azedou um tanto o sorriso.
- Qual nada. Não teria nada que fazer com o Ashworth, mas é suficientemente inteligente para não interessar-se por ele!
- Ela relaxou a seu pesar e disse:
- De fato não me atrai absolutamente. O que queria me perguntar, senhor Pitt? Suponho que não terá vindo para falar do Emily e do Ashworth. Está a ponto de apanhar ao estrangulador?
- Não tenho certeza - respondeu ele-. Por uma ou duas vezes achei tê-lo a meu alcance, mas me equivocava. Se pelo menos pudesse compreender os móveis dos crimes! por que mata? por que escolheu essas jovens entre outras muitas? É uma simples questão de sorte?
- Suponho que... -vacilou- se se tratasse de puro acaso não haveria forma de achá-lo. Poderia ser qualquer uma!
- Sei. -Pitt não queria que ela abrigasse falsas esperanças. Teria gostado de poder acalmá-la, mas não queria faltar à verdade. Não podia obter ambas as coisas.
- Não existe nenhuma relação entre elas, ninguém a quem conhecessem as três...?
- Seguimos procurando algo assim. Por isso vimvê -la. Eu gostaria de falar com Doura, se você me permitir isso, e com a senhora Dunphy também. Acredito que Doura era muito amiga da criada dos Hilton, mais amiga do que deu a entender para mim. Suponho que não quis dizê-lo por temor. Muita gente oculta informação porque acreditam que um assassinato é algo tão terrível que inclusive conhecer algum dado chave pode ser nefasto para eles. sentem-se atemorizados. -Curvou os lábios em uma careta.
- E a senhora Dunphy? Ela pode ter calado algo, odeia os escândalos.
- Tenho certeza disso. As boas criadas costumam aborrecêer disso, inclusive mais que os senhores, se isso for possível. Mas de fato só necessito que confirme a informação, talvez assim Doura não volte a ser tão esquiva. Pode ser que Doura me minta , mas se for como a maioria das criadas , não se atreverá a dizer nada falso diante da cozinheira.
- Charlotte sorriu; sabia que Pitt estava certo. De repente, assaltou-a outra idéia. Seria aquilo tudo o que Pitt queria saber? E se o fosse, Doura e a senhora Dunphy transmitiriam, ainda sem querer, a angústia que se vivia na casa naquele momento? Pretender que os criados não estavam à corrente das disputas dos senhores era uma absoluta falácia com a que se tentava preservar a auto-estima e a dignidade. Mas o serviço tinha olhos, ouvidos e uma boa dose de curiosidade. Alguém deveria ter escutado algo. Os rumores seriam discretos e inclusive bem-intencionados, mas sem dúvida existiam. É claro, nunca diriam nada fora da casa. A lealdade e o orgulho eram valores seguros.
- Quer que a chame? -perguntou, pensando que seria mais fácil controlar a situação se ela estivesse presente e podia corrigir os deslizes de Doura-. Tampouco mentiria ante mim.
- Por favor, não se incomode. Além disso, é possível que se mostrasse algo reticente ante você. Tampouco quero que a senhora Dunphy esteja presente durante o interrogatório, simplesmente lhe pedirei que me ajude a contrastar a informação. Falarei com ela primeiro e logo contrastarei com Doura os dados que tenha obtido. Se tiver feito algo que você não aprovaria , não dirá nada aqui, mas talvez me explique isso se estivermos a sós.Era absurdo. Pitt era um homem e sem dúvida se identificaria com outro homem e pensaria que aquilo era algo bastante comum e normal... desde que as mulheres não fizessem o mesmo. Talvez se tinha preocupado em vão. Para os homens, o assassinato era algo muito diferente do adultério.
- Charlotte queria opor-se, achar uma razão que justificasse sua presença no interrogatório, mas não lhe ocorreu nenhuma convincente. Entretanto, devia evitar que Pitt se inteirasse sobre seu pai com sua ex-amante. Temia que pensasse, como tinha pensado ela mesma, que aquela era uma traição das que se tentam perdoar mas nunca se conseguem esquecer porque supõem uma perda de respeito e confiança.
- Como se encontra seu ajudante? -perguntou, tentando ganhar tempo para ver se lhe ocorria alguma forma de evitar que se entrevistasse a sós com Doura.
- Está melhorando, obrigado. -Se a perguntar o surpreendeu, não deu amostras disso.
- Tem outro ajudante enquanto isso?
- Sim. -Sorriu-. Gostaria dele; é todo um personagem. Recorda-me um pouco ao Willie.
- Sim? Não imagino ao Willie como polícia.
- OH, a princípio Dickon tampouco parecia muito adequado. Teve que procurar trabalho desde muito jovem e comprovou que lhe era mais fácil achar ocupações ilegais que trabalhos honrados. Conhece perfeitamente os bairros pobres e depois de sua primeira detenção decidiu que seria melhor tirar proveito de seus conhecimentos ficando do lado da lei em lugar de seguir fora dela. -Sorriu abertamente-. De fato, apaixonou-se por uma jovem de uma classe social superior à sua. Prometeu à moça que se casava com ele se tornaria um homem respeitável. E até a data cumpriu sua palavra.
- Por que teve que começar a trabalhar de jovem? -Queria sabê-lo, mas, além disso, continuava procurando a forma de evitar que Pitt fosse à cozinha. Recordava perfeitamente o rosto do Willie e imaginou o tal Dickon com idêntico aspecto.
- A seu pai o mataram em uma execução pública no quarenta e sete e a mãe ficou com cinco filhos que criar. Ele era o menor mas outros eram meninas.
- E como conseguiram sair adiante? Que crime tinha cometido o pai para que o matassem? Grande irresponsabilidade arriscar assim sua vida!
- Mataram-no - matizou Pitt-, mas isso não significa que cometesse crime algum. Naquela época se organizavam espetáculos em torno da forca, e tinham muita aceitação.
- Charlotte não deu crédito a seus ouvidos.
- Espetáculos? Quem podia gostar de ver como levavam a alguém ao patíbulo e o executavam? -Engoliu em seco e enrugou o nariz em uma careta de desaprovação.
- Muita gente - respondeu Pitt-. Tinha muita aceitação entre o público. Acudiam centenas de pessoas para presenciar a execução e outros tantos para roubar aos assistentes, para apostar, para vender pães doces e caracóis, e no inverno castanhas assadas. É claro também havia lutas de cães, para esquentar o ambiente.
- "Os pobres se apinhavam na praça e os nobres alugavam quartos nas casas dos arredores e o olhavam da janela...
- É escorregadio! -protestou ela-. Parece-me asqueroso!
- Pagavam somas muito altas para alugá-las - prosseguiu ele como se não a tivesse ouvido-. Desgraçadamente, a violência da execução contagiava ao público e estalavam muitas rixas. Ao pai do Dickon mataram com uma surra em uma delas.
- Sorriu tristemente ao ver que Charlotte se sentia horrorizada.
- Mas hoje em dia já não existem as execuções públicas. Bom, agora irei falar com Doura. Não sei se descobrirei o que a tem tão assustada, mas o tentarei.
- Charlotte engoliu em seco de novo.
- Não sei a que se refere! Pergunte-lhe a Doura o que queira. Não estou assustada, o único que me preocupa é o próprio estrangulador, mas isso é algo que preocupa a todos.
- Mas teme que possa ser algum conhecido seu, não é verdade, Charlotte?
- Não tenho certeza que o é? Não chegamos à conclusão de que se trata de alguém do bairro? -perguntou. Não tinha sentido continuar mentindo-. Pelo menos tenho certeza de que não fui eu, nenhuma parte escura e desconhecida de mim. Mas todos os homens com certa capacidade de reação devem ter pensado em alguma ocasião que poderia tratar-se deles.
- E você também o pensou - apontou Pitt suavemente-. Suspeitou que todos: de seu pai, do Dominic, do George Ashworth, do Maddock, provavelmente inclusive do vigário e do sacristão. Em quem está pensando agora, Charlotte?Pitt roçou sua mão delicadamente e se dirigiu ao corredor que levava a cozinha, para interrogar a Doura.Capítulo 12Quando por fim ficou a escrever, não conseguiu mais que umas cartas desconexas, que adivinhava cheias de repetições e de palavras irrelevantes, mas, mesmo assim, era melhor que passar o momento preocupada com o que ocorria na cozinha.Caroline e Emily chegaram em poucos minutos. Estavam transijas de frio e não pareciam muito contentes com o vestido. Pediram que lhes servissem o chá e perguntaram se Sarah havia voltado.
- Às quatro começou a escurecer. Uma névoa proveniente do rio o cobria tudo e criava auréolas em torno das luzes da rua.
- Charlotte voltou para suas cartas, já que Pitt não pensava falar com Doura em sua presença. Não sabia se voltaria a falar com ela antes de ir-se ou se passaria para comentar o que tivesse descoberto com a criada, no caso de ser algo relevante. Durante o primeiro quarto de hora só pôde pensar no que estariam comentando na cozinha. Perguntava-se se Pitt se interessaria por algo mais além da criada dos Hilton ou se, de forma acidental, inteirar-se-ia da aventura de seu pai com aquela mulher do Cater Street.
-
- Ela se dispôs a negar, mas se deu conta de que seria em vão, absteve-se.
- Não - respondeu Charlotte com o sobrecenho franzido-. O inspetor Pitt esteve aqui faz um momento. Não sei se partiu ou continua na casa.
- Por que veio? -inquiriu com um fio de voz.
- Charlotte se perguntava se temia o mesmo que ela, quer dizer, que Pitt descobrisse a aventura do Edward com aquela mulher.
- Queria falar com Doura porque esta conhecia a criada dos Hilton e não o disse em seu momento - respondeu.
- Que razões poderia ter Doura para mentir? -inquiriu Emily, deixando sua xícara sobre a mesa, antes de provar um só gole-. Conhecer a moça não é nenhum crime.
- Suponho que teria medo - respondeu Charlotte-. Do escândalo e demais. Se não queria ter nada que ver com a polícia, o mais cômodo era negar qualquer implicação.
- Talvez não a conhecesse. Pitt poderia estar mal informado – sugeriu Emily-. De qualquer modo não importa. Escureceu muito. Tenho certeza de que Sarah está fazendo visitas para a paróquia em companhia do Martha Prebble, a estas horas.
- Caroline se levantou e se aproximou da janela. Só se via escuridão e uma espessa névoa.
- Se o estiver, falarei muito seriamente com ela assim que retorne. Não é necessário estar fora tão tarde, salvo que se trate de uma emergência. Sobre tudo em uma noite tão horrorosa como esta. Pedirei ao Maddock que vá procurá-la.
- Suponho que o vigário a acompanhará até casa - apontou Emily-. Não gosto mais dele que Charlotte -olhou de esguelha a sua irmã-, mas não é tão mal educado para deixar que Sarah volte sozinha em plena noite.
- Tem razão. -Caroline se afastou da janela e se sentou, tentando dominar seus nervos-. Alterei-me por nada. Não há de que preocupar-se. Sabemos onde se encontra e certamente está realizando um trabalho excelente. Nem as mortes nem os nascimentos se deixam influir pelas condições climatológicas ou à hora. E tampouco a enfermidade. Inteirei-me que a velha senhora Petheridge não se encontra muito bem. Talvez Sarah esteja agora lhe fazendo companhia.
- Sim, é possível - assentiu Charlotte rapidamente. Tentava achar um tema de conversa interessante para que deixasse de pensar em Sarah-. Acham que o senhor Nigel se casará com a senhorita Decker? Sem dúvida ela não regula meios para obtê-lo.
- É provável - respondeu Emily friamente-. É um homem muito estúpido.
- Mantiveram o bate-papo durante uma hora, embora a interromperam para realizar pequenos encargos. Edward chegou pouco depois das cinco.
- Onde está Sarah? - perguntou ao entrar.
- Com o vigário e a senhora Prebble - respondeu Caroline, olhando instintivamente para a janela.
- A estas horas? -Edward arqueou as sobrancelhas-. Trata-se de uma emergência? Não acredito que estejam fazendo as visitas normais à paróquia quando já escureceu. Espera-nos uma noite muito desagradável, acaso não o vê?
- Claro que sim! -replicou Caroline-. Saí e tenho os olhos para vê-lo, inclusive daqui dentro.
- Está bem, querida, sinto-o - disse Edward com doçura-. Era uma pergunta estúpida. Estou preocupado por Sarah. Dedica muitas horas às obras da igreja. Não tenho nada contra a caridade, é claro, mas lhe absorve muito tempo. Passa muito tempo fora de casa e em noites como esta pode pilhar um resfriado.
- Edward não disse nada sobre o estrangulador, limitou-se a comentar que com a névoa Sarah poderia constipar-se. Charlotte sentiu uma repentina ternura por ele e lhe agradeceu sua delicadeza. Talvez estivesse arrependido sobre mulher e simplesmente não pôde livrar-se dela em todos esses anos. Levantou-se, beijou-o na face e se dirigiu para a porta. Edward ficou tão surpreso que não reagiu. Ao chegar à porta Charlotte se voltou e se encontrou com seu olhar. Viu gratidão nos olhos de seu pai? Queria ir à cozinha para inteirar-se do que tinha contado Doura ao Pitt.
- Irei ver que tal vai o jantar - anunciou-. Não acredito que Doura esteja abatida, mas prefiro me assegurar.
- Por que teria que estar abatida Doura? -ouviu perguntar a seu pai no momento em que fechava a porta.Às seis menos vinte, bateram na porta e em seguida Pitt entrou com o semblante lívido. Não se via o Maddock por nenhuma parte.
- Edward se voltou e quando comprovou quem era, endireitou-se rapidamente, disposto a pedir ao Pitt que justificasse aquela intromissão, mas observou seu rosto. Como sempre, o rosto do Pitt era um espelho de suas emoções e se notava claramente que estava comocionado. Olhou fugazmente Charlotte e logo voltou a dirigir seus olhos para o Edward.
- Ao que parecia, o interrogatório de Doura se apoiou essencialmente em sua amizade com a criada dos Hilton. Charlotte voltou para a sala de estar, plenamente satisfeita.
- Por amor de Deus, inspetor! O que ocorre? -Edward estava de pé-. Encontra-se doente? -Tinha que estar para oferecer aquele aspecto desolador.
- Pitt tentou falar, mas não achava as palavras. Charlotte sentiu um terrível calafrio.
- Sarah! -murmurou-. Trata-se de Sarah, verdade?
- Pitt fez um gesto de assentimento e fechou os olhos.
- Edward parecia não entender.
- O que acontece Sarah? Ocorreu-lhe algo? Houve algum acidente? - Tropeçou contra uma cadeira.
- Charlotte se levantou e ficou ao seu lado, sustentando o braço de seu pai. Olhou ao Pitt com o coração na mão. Sentia um milhão de agulhas cravadas nos dedos e nos braços. Antes de fazer a pergunta já sabia a resposta.
- Foi o estrangulador? -murmurou. Não o poderia suportar.
- Sim - respondeu Pitt com um fio de voz e expressão de pena e vergonha.
- Não é possível! -exclamou Edward, meneando a cabeça. Não podia compreender nem acreditar no que estava ouvindo-. Por que Sarah? Quem poderia querer fazer mal ao Sarah? -Lhe quebrou a voz, mas prosseguiu-. Era tão... -interrompeu-se; por suas faces escorregavam grosas lágrimas.
- Emily foi sentar se junto a sua mãe e a abraçou. Caroline, destroçada, ocultou a cabeça no peito de sua filha. Pôs-se a chorar e tremia de desespero.
- Não sei - respondeu Pitt-. Deus! Não sei.
- Podemos fazer algo...? - perguntou Charlotte com voz rouca. As agulhas começavam a subir por cima dos cotovelos e o rosto do Pitt se diminuía como se estivesse afastando.
- Não, não há nada a fazer - respondeu Pitt com amargura.
- Temo que não se sentia muito bem... Foi um duro golpe para ele. Aconselhei-lhe que fosse procurar um pouco de brandy e que trouxesse os sais, se por acaso fossem necessários... -Sua voz se foi apagando. Não sabia o que dizer.
- Charlotte abraçou ao seu pai ainda mais forte.
- Papai será melhor que se sente. Já ouviu o inspetor. Amanhã teremos que nos ocupar de muitas coisas, mas de momento não há nada a fazer.Em pouco tempo apareceu Maddock com uma bandeja, o brandy e uns copos. Manteve o olhar cravado no chão e não disse nada. Emily e Caroline nem sequer o viram. Deixou os sais sobre uma mesinha e se dispunha a partir quando ouviu Charlotte lhe pedir algo.
- Edward se dirigiu como um sonâmbulo para uma cadeira, arrastando as pernas.
- Maddock anula o jantar. Peça à senhora Dunphy que prepare algo ligeiro para as oito, por favor.
- Maddock a olhou com desconcerto. Charlotte sabia que dava a impressão de uma mulher fria a que não parecia lhe importar a tragédia sobrevinda. Mas não podia explicar ao Maddock que se sentia destroçada, tanto que preferia fazer algo útil ou consolar a outros para não sentir sua própria dor. Voltou-se para o Pitt e viu que a observava com aquela ternura que tanto a incomodava, mas nesse momento lhe pareceu como se a embalasse com seu calor e sua doçura. Sabia que ele entendia sua reação e os motivos da mesma. Desviou rapidamente o olhar, afogada em muitas lágrimas. O pior era não poder entender a morte de Sarah; não havia nada contra o que lutar.
- Obrigado, inspetor Pitt. -esforçou-se em dominar o tremor de sua voz.
- Poderia esperar a manhã para expor as perguntas pertinentes? Esta noite não podemos lhe esclarecer nada salvo que Sarah partiu a primeira hora da tarde para visitar a senhora Prebble e depois pensava acompanhá-la às visitas da paróquia. Pergunte à senhora Prebble, ela deve saber a que hora... -Não pôde acabar a frase. De repente compreendeu que não estavam discutindo um fato qualquer, mas a morte de Sarah. A imagem de sua irmã se apropriou de sua mente, e queria que Pitt partisse antes que ela se derrubasse-. Amanhã tentaremos responder a suas perguntas.
- É claro - assentiu ele-. De qualquer modo, irei falar com o vigário e com a senhora Prebble agora mesmo. -voltou-se para o Edward, incapaz de olhar Caroline-. Sinto muito - balbuciou.
- Edward ficou em pé para despedir-se.
- Obrigado - disse-. Tenho certeza de que fez tudo o que estava em sua mão. Os homens cordatos não podem deter os loucos. Obrigado por vir em pessoa nos comunicar esta desgraça. Boa noite, inspetor.Passou um bom tempo até que alguém se decidiu a mover-se. Edward foi à cozinha para comunicar aos criados o ocorrido. Emily acompanhou a sua mãe a seu quarto. Na sala de estar se serviu um jantar frio. Todos tentaram comer algo, menos Caroline. Às nove, Edward enviou ao Charlotte e Emily à cama e ficou só, esperando a volta do Dominic.Uma vez em seu quarto, despiu-se e pendurou a roupa. Depois lavou o rosto com água morna, desfez-se o penteado, escovou seu cabelo e se meteu na cama. Chorou com toda sua alma até que as forças a abandonaram.Tinha visto Sarah o rosto do assassino? Conhecia-o? Havia sentido um temor paralisante? Charlotte rogou a Deus que a morte de sua querida irmã tivesse sido rápida.Todos estavam já embaixo, vestidos e procurando no que ocupar-se para não pensar...Charlotte se perguntava onde tinha estado Dominic a noite anterior. Era justo supor que se ele tivesse estado em casa ou houvesse ficado de voltar para jantar, talvez Sarah não teria saído? Acaso o estrangulador queria matá-la precisamente a ela e se não fosse um dia teria sido outro? Tratar-se-ia de um louco chegado dos bairros pobres, farto de sujeira e pobreza, que se ressarcia matando? Ou seria um vizinho do Cater Street que conhecia suas vítimas, vigiava-as e esperava pacientemente uma oportunidade, talvez inclusive entabulasse conversa com elas, caminhava um momento a seu lado e de repente tirava o arame...?Como se sentiria aquela manhã o assassino? Estaria tranqüilamente sentado, tomando seu café da manhã? Teria fome? Estaria só em uma sórdida habitação, ou sentado em uma formosa mesa da sala de jantar, com sua família ao redor, saboreando uns deliciosos ovos com bacon e torradas? Poderia estar falando com normalidade, talvez inclusive com os meninos? Sabia sua família o que era em realidade, a que se dedicava às noites? Tinham suspeitado os uns dos outros e passado por todo o processo? Primeiro, o aborrecimento com a gente mesmo por ter duvidado de um ser querido e a sensação de culpa por não poder deixar de fazê-lo; depois, a análise de alguns detalhes do passado, contrastar as lembranças com os fatos até que o fantasma do medo toma sua forma definitiva.Recolheram a mesa do café da manhã e todos procuraram uma ocupação enquanto esperavam a chegada da polícia e o início dos interrogatórios.
- Felizmente, não tiveram que aguardar muito. Pitt chegou com seu novo ajudante pouco antes das nove. Parecia cansado, como se tivesse deitado tarde... E apresentava um aspecto mais descuidado do habitual. O inspetor parecia disposto para uma espécie de ordalía.
- O que estaria pensando ele? Pensaria nisso ou não? Estaria sentado em algum lugar, meditando como o fazia ela? Talvez estivesse pensando o mesmo, olhasse a seu pai, a seu irmão e sentisse medo por eles. Voltou a olhar de esguelha para Dominic. Onde tinha estado na noite anterior? Sabia... Com precisão? Pitt o perguntará.
- Tinha que deixar de pensar em Sarah. Já tinha acontecido; por mais dor ou medo que sentisse nada a devolveria à vida.
- Tomaram o café da manhã em silêncio. Dominic estava pálido e não olhava a ninguém. Charlotte o observou por um momento, mas temeu que desse conta e optou por concentrar-se em sua torrada. O próprio processo de mastigar e comer se converteu em uma desculpa para não pensar em nada.
- Não tinha sentido ficar na cama, afogando-se na dor. Era melhor levantar-se e procurar algo prático que fazer. Para a Caroline seria muito pior. Perder um filho era a experiência mais terrível, absolutamente incompreensível... Ver morrer à pessoa a quem deu vida, que nasceu que seu próprio corpo.
- O dia seguinte amanheceu frio e cinza. Quando Charlotte despertou sentiu que por uns instantes tudo voltava a ser como sempre, mas não demorou a voltar para a realidade. Sarah estava morta. Teve que repeti-lo várias vezes. Sentia-se como na manhã que seguiu o casamento de Sarah: naquele momento, como neste, truncou-se uma relação de anos. Sarah tinha deixado de ser sua irmã para converter-se na esposa do Dominic. Recordou toda sua infância. Sarah lhe tinha ensinado a amarrar os sapatos, a mesma Sarah com quem tinha brincado de bonecas, com cuja roupa se vestira, quem lhe tinha ensinado a ler, quem tinha sido a confidente de seus primeiros amores e ilusões... Quando Sarah se casara, Charlotte sentira que perdia uma parte de si mesma, a intimidade com sua irmã. Mas aquilo fazia parte de um processo natural. Sabia que um dia cresceriam e se distanciariam. Mas o ocorrido era muito diferente. Não era normal, era monstruoso. Já não sentia inveja, só uma insuportável e dolorosa sensação de perda.
- Charlotte agradeceu. Suas forças tinham começado a fraquejar à medida que passavam as horas. De repente se sentiu muito cansada e o esforço que fazia por conter o pranto lhe foi excessivo.
- Quando Pitt partiu, todos ficaram em silêncio, sem saber o que dizer. Não havia dúvidas, salvo uma pergunta atroz, impossível de responder: por que Sarah?
- Bom dia - saudou-. Sinto muito, mas isto é necessário.O inspetor optou por ser direto.
- Todos assentiram; preferiam acabar quanto antes. Sentaram-se todos salvo Dominic, que permaneceu de pé, e esperaram que Pitt começasse a falar.
- Esteve fora ontem à noite, senhor Corde?
- Sim, estive. -Dominic sentiu vergonha e corou. Charlotte compreendeu que também ele se perguntara se Sarah teria saído se houvesse ficado ele em casa.
- Perdão...? -Dominic parecia um pouco perdido.
- De novo? Havia alguém com você?
- Dominic corou ainda mais quando compreendeu as suspeitas do Pitt. Apesar de a vítima ser Sarah, não ficava excluído da lista de suspeitos.
- Sim... Sim - balbuciou-. Várias pessoas. Não recordo o nome de todas elas. Necessita-os?
- Será melhor que os consiga senhor Corde, antes que se eles esqueçam... ou você.
- Dominic abriu a boca como disposto a protestar, mas não o fez e se limitou a anotar uma dúzia de nomes. Estendeu-os a Pitt e disse.
- Parece-me que essas são as pessoas que estavam ali ontem de noite. Não estive com ninguém durante muito tempo, já sabe como são esses lugares.
- Tenho certeza de que poderemos refazer o quebra-cabeça se dispusermos de todas as peças. Por que estava no clube ontem de noite, senhor Corde? Tinha algo que fazer ali?
- Dominic se sentiu confundido até que compreendeu o que Pitt queria averiguar: saber por que não estava em sua casa na noite anterior.
- Pitt abandonou essa linha de perguntas. Voltou-se para a Caroline, mas mudou de idéia e se dirigiu à Charlotte.
- A senhora Corde saiu a primeira hora da tarde para visitar a mulher do vigário?
- Sim, pouco depois de comer.
- Sim. -Charlotte olhou ao chão. Recordava com pena e com sensação de culpa a recente cena. Era incrível comprovar como a vida de alguém podia extinguir-se da noite para o dia.
- Ofereci-me a acompanhá-la, mas ela recusou. Queria falar com a senhora Prebble a sós e logo ir fazer algumas visitas para a paróquia. -Custava-lhe falar.
- Fazia muitas boas obras para a paróquia - acrescentou Emily.
- Obra para a paróquia? Quer dizer que visita os pobres e aos doentes? - Usou o presente sem perceber isso.
- Sabe a quem pensava visitar ontem?
- Não. O que lhe contou Martha? Quero dizer a senhora Prebble.
- Que Sarah tinha mencionado a várias pessoas, mas quando deixou a casa do vigário já era bastante tarde e não especificou a quem pensava visitar nem em que ordem. Segundo a senhora Prebble, advertiu ao Sarah que não devia ir sozinha, mas Sarah não fez conta. Pelo que disse, há vários membros da paróquia doentes... -Sua voz se foi apagando-. Acredita que... -balbuciou- pôde ser simples casualidade?
- Não sei. É possível que o assassino estivesse esperando a uma vítima indeterminável.
- Se for assim, como demônios vai poder apanhá-lo? –exclamou Edward.
- Não pode encher as ruas de agentes até que volte a agir. O canalha esperaria até que tivesse retirado seus homens. Poderia passar a seu lado, falar com você, Saudá-lo com o chapéu, e você não poderia distingui-lo do vigário ou de um de seus agentes!
- Dizia que a senhora ultimamente ajudava muito nas obras de caridade da paróquia - retomou Pitt-. Seguia um horário fixo e visitava sempre às mesmas pessoas?
- Acredita que o assassino procurava Sarah... Quero dizer, à Sarah em concreto?
- Não sei senhor Corde. Tem idéia de quem podia amar ou odiar tanto a sua esposa?
- Amar? -repetiu Dominic sem dar crédito a seus ouvidos-. Por Deus! Refere-se a mim?
- Era a primeira vez que se dizia algo assim em voz alta. Charlotte olhou o rosto dos outros, tentando intuir a quem lhe tinha ocorrido essa idéia antes. O único que parecia não ter contemplado essa possibilidade era seu pai. Voltou a olhar ao Pitt, pendente de sua resposta.
- Não sei a quem me refiro senhor Corde - disse o inspetor-. Se soubesse teria resolvido o caso.
- Mas poderia referir-se a mim! -Dominic se mostrava cada vez mais fora de si-. Apesar de que desta vez se tratasse de Sarah, continua suspeitando de mim!
- Tem certeza de não ser culpado?
- Dominic o olhou por um momento, sem dizer nada.
- Salvo que esteja totalmente louco e possa me converter em outra pessoa, tenho certeza de ser inocente. Não poderia haver feito mal ao Sarah. Não sei quanto a queria, não sei quanto quero a ninguém, mas sei que a amava muito para feri-la deliberadamente. Talvez ambos nos fizemos mal com nossa atitude, mas nunca lhe teria feito nada semelhante.
- Charlotte não pôde reprimir as lágrimas. Se Sarah o tivesse sabido... Por que não dizemos as coisas às pessoas quando ainda estamos a tempo? Deixamo-nos levar por trivialidades. Mas não queria entristecer a todos tornando a chorar em sua presença. Levantou-se.
- Desculpe-me - disse e saiu da sala caminhando, porque correr a teria delatado.Mas seu pai era diferente. Estava claro que albergava paixões que nenhuma delas tinha sabido calibrar, e tinha demonstrado ser incapaz de deixá-las insatisfeitas ou de sacrificá-las.Mas Emily sim a tinha feito e à tarde, enquanto costurava, pensou o que ocorreria se Pitt se inteirasse da aventura do Edward e se fizesse a mesma pergunta que se fazia ela. Estava claro que ia se inteirar, já fosse por alguma fofoca a respeito da visita do Sarah a aquela mulher ou por algum deslize do serviço ou da própria Charlotte. Esta era tão transparente como a água. Pitt possivelmente inclusive tinha falado com a própria mulher. Não era um homem elegante nem tinha nascido em uma boa família, mas não era estúpido.Também podia ser que seu pai tivesse feito algo pior que manter a uma amante ou a várias. Nesse caso, a família estaria arruinada e ninguém se poderia expor casar-se. Esperava que não fosse assim. Duvidava que seu pai tivesse mais segredos, mas tampouco podia afastar de sua mente essa idéia sem fazer nada a respeito. Sabia que seu pai estava só na biblioteca.Edward a olhou com estranheza quando a viu entrar na biblioteca.
- O abominável vigário passaria para visitá-los nesse dia ou no dia seguinte, agora que a polícia já partira. O melhor era resolver quanto antes a questão.
- De qualquer modo, Emily se disse que mais valia que se fosse acostumando a opinar bem sobre ele porque estava claro que ia se atrever a declarar-se à Charlotte e ela aceitaria se conseguisse reunir a coragem suficiente. Edward protestaria e à avó teria um desmaio, mas isso era o de menos.
- A mulher do Cater Street seria a única? Segundo Sarah, tratava-se de uma mulher mais velha. Quando seu pai e ela romperam, quem a substituiu? Ninguém parecia haver-se exposto essa pergunta.
- Emily não temia pelo Dominic, mas sim por seu pai. Nunca tinha pensado que o marido de sua irmã pudesse ter um lado escuro. Para ela sempre tinha sido o que parecia: um homem bonito, agradável embora um pouco arrogante, inteligente às vezes, bastante carinhoso... e com uma imaginação muito fértil. Era curioso que Charlotte se apaixonara por ele. Estava claro que não era a pessoa adequada para ela e a teria convertido em uma pessoa extremamente infeliz. Ele nunca teria estado à altura de seus profundos sentimentos e sua irmã teria passado a vida procurando algo que não existia.
- Emily, busca algo para ler?
- Não é isso. -sentou-se na cadeira de couro que havia em frente dele.
- O que acontece, então? Não quer ficar sozinha? Reconheço que eu também me alegro de sua companhia.
- Ela sorriu discretamente. Aquilo ia ser mais duro do que tinha imaginado.
- Sim, querida? -Parecia tão cansado. Emily tinha esquecido que idade tinha.
- Papai, a mulher do Cater Street... Quanto tempo faz que é sua amante? - Era melhor ir ao ponto. Podia ser muito ardilosa com outra gente, mas nunca tinha conseguido enganar a seu pai.
- Às vezes é como a própria Charlotte - sorriu com ar triste e Emily soube que não pensava nela nem em Charlotte, mas em Sarah.
- Quanto faz? -insistiu. Precisava saber. Edward olhou a sua filha. Calibrava até onde estava informada? Talvez decidisse mentir para sair do passo.
- Sabemos sua história com ela - disse ela com tom cruel-. Sarah foi fazer lhe uma visita por caridade e descobriu a verdade. Por favor, papai, não o piore. -Tremia-lhe a voz. Odiava ter que fazer aquilo, mas viver com a dúvida seria muito pior; preferia confrontar a verdade, por dura que esta fosse. Além disso, não queria que ele mentisse, degradando-se ante sua própria filha.
- Edward não deixava de olhá-la. Desejava fechar os olhos e acreditar que Emily nunca tinha formulado essa pergunta, mas já era muito tarde.
- Faz muito tempo - respondeu com um pequeno suspiro-. Durou pouco. Acabou um ano ou dois depois de que você nascesse. Mas ela me seguia gostando de mim. Sua mãe estava muito ocupada... Com você. Não a conheceu naquela época, mas não era muito diferente de Sarah, uma mulher muito tenaz que sempre achava que sabia as coisas melhor que ninguém. -de repente as lágrimas afloraram a seus olhos e Emily afastou o olhar para evitar que se sentisse humilhado. Levantou-se e se aproximou da janela para lhe dar tempo a que se recuperasse.
- Houve outra depois dela? -perguntou. Era melhor inteirar-se de tudo de uma vez.
- Não - respondeu ele, surpreso-. É claro que não! Por que pergunta algo assim, Emily?
- Tentou responder com uma mentira rápida para que seu pai não percebesse o que tinha suspeitado. Embora fosse ridículo, nesse momento sentia a necessidade de protegê-lo. Tinha acreditado que nunca ia perdoar lhe o que tinha feito de mal a sua mãe, mas em troca aí estava, protegendo-o como se o ferido fosse ele.
- Por mamãe, claro! -respondeu-. É fácil perdoar um engano isolado, sobre tudo se cometeu faz muitos anos, mas é mais difícil esquecer um fato se veio repetindo com assiduidade uma vez atrás de outra.
- Acha que sua mãe pensará o mesmo? -Sua voz tinha um tom de esperança que soava patético.
- Perguntarei isso - disse impulsivamente-. Parece-me que está acima, descansando. Está sofrendo muito por causa de Sarah.
- Sim, sei. Eu tampouco me tinha dado conta do que Sarah significava para mim até hoje. -Edward a abraçou e a beijou suavemente na fronte. Emily se aferrou a ele e rompeu a chorar por Sarah, por ela mesma e por todos... Aquilo era muito duro.Emily o recebeu na biblioteca, porque ali eram menos freqüentes as interrupções.
- Ashworth fechou a porta ao entrar.
- À tarde, George Ashworth foi apresentar suas condolências. Naturalmente, foi extensiva a toda a família e, portanto, Edward o recebeu na sala de estar. O protocolo obrigava a oferecer um chá e o protocolo aconselhava que se rechaçasse. Assim se fez, depois do qual Ashworth pediu falar com Emily.
- Emily sinto muito. Talvez não devesse vir tão cedo, mas não queria que pensasse que me era indiferente, estava preocupado por você. Suponho que é uma tolice perguntar se posso fazer algo por você.
- Emily se emocionou ao comprovar que George tinha sentimentos mais profundos que os ditados pela boa educação. Tinha desejado -e de fato planejado- casar-se com ele porque gostava, mas não se dera conta de que era uma pessoa tão sensível. Era uma agradável revelação e, curiosamente, sentiu que a fazia perder parte da calma que tinha tentado reunir.
- Obrigada - murmurou-. É muito amável de sua parte, mas realmente não há nada que possa fazer, salvo ter paciência até que chegue o momento em que possamos retomar nossas vidas.
- Suponho que continuam sem saber quem pôde havê-lo feito?
- Assim é. Pergunto-me se algum dia saberão. De fato, outro dia ouvi que uma criada bastante estúpida comentava que não se tratava de um ser humano, mas sim de uma criatura sobrenatural, um vampiro ou um demônio. –Emitiu um breve som gutural que pretendia ser um risinho.
- Não a convence essa teoria, não é? -perguntou com certa gravidade.
- Claro que não! -replicou ela-. O assassino é algum vizinho do Cater Street ou os arredores, um louco com uma terrível enfermidade que o impulsiona a matar. Não sei se mata por alguma razão ou simplesmente estrangula às jovens que se cruzam em seu caminho quando lhe dá o ataque. Mas é um ser humano, disso tenho certeza.
- Por que tem tanta certeza, Emily? -perguntou George, e se sentou no braço de uma cadeira.
- Ela o observou. Aquele era o homem com o que pretendia casar-se e passar o resto de sua vida. Era muito atraente e diferente socialmente, mas aquele dia gostava em especial pelo evidente interesse que mostrava por ela.
- Porque não acredito em monstros - respondeu com franqueza-. Existem homens diabólicos, é claro, mas não monstros. Suponho que pretende nos fazer acreditar que o é, porque assim deixaríamos de buscá-lo entre nós. Talvez essa crença interrompesse toda busca definitivamente.
- É uma pessoa muito lógica, Emily - disse com um sorriso-. Alguma vez faz algo absurdo?
- Não muito freqüentemente - respondeu ela e também sorriu-. Preferiria que o fizesse?
- OH, não! É a mescla perfeita. Parece feminina e frágil, sabe quando calar e quando falar, e, entretanto tem melhor senso que muitos homens.
- Obrigado - murmurou ela com satisfação.
- De fato - olhou o chão e logo a ela-, se fosse certo deveria me casar com você.
- Emily conteve a respiração.
- E o é? -perguntou em voz baixa.
- Não estou acostumado a ser. Mas acho que por esta vez terei que fazer uma exceção.
- Está se declarando, George? -voltou-se para ele.
- Eu gostaria de me assegurar. Seria imperdoável cometer um engano de interpretação em um assunto tão importante.
- Sim, isto é uma proposta de matrimônio. -Seus olhos refletiam certa insegurança, como se a resposta lhe importasse de verdade.
- Emily soube que George gostava mais do que nunca tinha sonhado.
- Sinto-me muito honrada - disse-. E aceito. Será melhor que fale com papai quando tiverem passado algumas semanas; agora está muito afetado.
- Assim o farei. -ficou em pé-. E me assegurarei de que meu pedido seja convincente. Bom, agora tenho que partir, não queria me fazer pesado. Boa tarde, querida Emily.Capítulo 13A avó protestou raivosamente, com amarga autocompaixão, e tentou chantageá-los emocionalmente, mas ninguém fez conta.Emily estava em sua própria nuvem. Dominic fez mostra de uma boa capacidade diplomática e Charlotte realizou um grande esforço por medir suas palavras.Charlotte estava sozinha em casa quando vieram visitá-los o vigário e a senhora Prebble. Ambos queriam expressar seu pesar e quão angustiados estavam pela perda de Sarah. Doura lhes fez entrar na saleta.
- Na manhã seguinte, Caroline e Emily ajudaram à avó a fazer as malas e às dez em ponto a acompanharam a casa da tia Susannah em carruagem.
- Edward e Caroline pareciam ter chegado a um acordo sobre a senhora Attwood. Na noite anterior tinham discutido a questão e Caroline tinha aprendido muitas coisas, não só a respeito do Edward, mas também sobre a solidão, sobre o sentimento de ver-se afastada dos seres queridos e sobre si mesma. Tinham estabelecido uma nova relação entre eles e parecia que tinham mais que dizer-se que antes.
- Naquela tarde, Edward decidiu que não podia pedir à Caroline que se comportasse suavemente com a avó nem que tentasse não sentir-se ofendida com seus desplantes e suas más caras. Enviou a sua irmã Susannah uma mensagem no qual lhe comunicava que a avó se transladaria a sua casa e que eles não voltariam a acolhê-la até que se recuperassem da terrível tragédia. Não seria nenhuma alegria para Susannah, mas fazia parte dos inconvenientes da vida familiar e tinha certeza de que sua irmã tomaria o melhor possível.
-
- Estimada senhorita Ellison - começou solenemente o vigário-, não encontro palavras para lhe transmitir a dor que sentimos pela morte de sua irmã.
- Charlotte desejou que continuasse sem achá-las, mas sabia que não ia ser assim.
- Entre nós se encontra uma criatura demoníaca – prosseguiu, tomando sua mão-, capaz de segar a vida de uma mulher maravilhosa como sua irmã, e mergulhar ao marido e à família na desolação. Tenho certeza de que todos os homens e mulheres de bem de nossa comunidade querem, através de mim, lhe transmitir o mais sentido pêsames a você e a sua pobre mãe.
- Obrigado. - Charlotte retirou a mão-. Transmitirei seus bons desejos a meus pais e a minha irmã, e é claro o meu cunhado. Obrigado por sua amabilidade.
- É nosso dever - respondeu o vigário, sem dar-se conta que a olhos do Charlotte semelhante comentário tirava todo valor a sua visita.
- Podemos fazer algo por vocês? -ofereceu Martha. Charlotte se voltou para ela em busca de consolo, mas suas esperanças se esfumaram na hora: Martha tinha um aspecto cheio de olheiras que nunca; os olhos afundados e sobre as orelhas lhe caíam umas mechas de cabelo descuidadas.
- Sua amabilidade é a melhor ajuda - murmurou Charlotte, que se compadeceu daquela mulher. Viver com uma pessoa tão ansiosa do dever como o vigário tinha que ser exaustivo. Que mulher poderia suportar semelhante situação?
- Queria saber se é um bom momento para falar com seu pai dos... Acertos - disse o vigário sem olhar ao Martha-. Alguém tem que ocupar-se dessas coisas enquanto algumas almas se enfrentam ao julgamento divino.
- Não se podia responder a essa asseveração, por isso Charlotte optou por responder à primeira questão.
- Não sei, mas será mais oportuno que fale com meu cunhado. -Satisfez-lhe poder contrariá-lo em algo-. Se ele não se achar em condições de fazê-lo, papai se encarregará do assunto.
- O vigário tentou dissimular sua contrariedade. Sorriu mas seu olhar era duro.
- É claro - assentiu-. Achei que nestas tristes circunstâncias um homem feito seria...
- É possível que assim seja. -Charlotte não estava disposta a que fizesse o que queria. Sorriu com idêntica frieza e acrescentou-: Mas seria desnecessariamente descortês não consultá-lo, não lhe parece?
- A mandíbula do vigário se enrijeceu.
- A polícia avançou algo em suas investigações? Soube que você mantém... Certa amizade com um dos... Agentes que investigam o caso. - Pronunciou "agente" com o mesmo tom com que se teria referido a um caçador de ratos ou a um limpador de chaminés. Seus olhos brilhavam de satisfação.
- Não sei quem pôde lhe contar algo assim, senhor vigário. -Charlotte o olhou com ar desafiante-. Esteve falando com o serviço?
- Eu não estou acostumado a falar com os criados, senhorita Ellison. Parece-me muito grosseiro de sua parte sugerir essa possibilidade! Não sou uma vulgar fofoqueira!
- Não pretendia ofendê-lo, senhor vigário - mentiu Charlotte sem alterar-se-. Mas me ofende com essas palavras.
- Perdoe - se desculpou ele contendo a ira-. Tanto os homens como as mulheres são obra de Deus... e embora estas sejam mais fracas que aqueles, continuam sendo obra do Criador.
- Pensava que tudo fosse obra do Senhor. -Charlotte estava disposta a deixar as coisas em seu lugar-. Não obstante, é agradável que de vez em quando nos recordem que as mulheres também o são. Quanto a sua pergunta, não tenho notícia de que a polícia tenha avançado muito em sua investigação, embora se assim fosse não estão obrigados a me contar isso.
- Já vejo que tudo isto a alterou. -O vigário escolheu um tom mais sentencioso-. É compreensível em alguém tão jovem e inexperiente. Deveria procurar apoio na religião e depositar sua confiança em Nosso Senhor para conseguir superar esta crise. Leia a Bíblia cada dia, ser-lhe-á de grande consolo. Siga seus mandamentos e conseguirá alegrar sua alma apesar de viver em um vale de lágrimas.
- Obrigada pela sugestão - respondeu Charlotte secamente. Sempre tinha lido a Bíblia com interesse, mas agora era a última coisa que gostava de fazer-. Farei extensiva sua mensagem ao resto da família. Tenho certeza de que a todos será muito benéfico.
- E não tema, os malvados não escaparão a seu castigo. Se não cair o peso da justiça sobre eles neste mundo, Deus a aplicará em seu momento. Condená-los-á ao fogo eterno! O fim do pecado é a morte. A debilidade da carne faz que as almas se consumam em um fogo eterno ao que nenhum homem pode escapar. Nenhum pensamento impuro passará inadvertido nos olhos do Senhor no Julgamento Final.
- Charlotte estremeceu. Parecia-lhe desatinado que a convidassem a achar consolo em semelhante idéia. Com efeito, ela tinha pensamentos dos quais se envergonhava, desejos e sonhos que preferiria manter em segredo. E estava disposta a perdoar aos outros, assim como esperava que a perdoassem a ela.
- Suponho que os pensamentos - começou vacilante-, se não se converterem em ações...
- Martha levantou a vista repentinamente. Tinha o semblante pálido e a mandíbula tensa. Sua voz soou rouca:
- Equivoca-se, querida. Os pensamentos acabam por engendrar desejos e estes por sua vez provocam atos. Portanto, o pensamento mesmo pode ser diabólico e convém evitá-lo, apagá-lo como se tratasse de um veneno para o espírito, uma má erva que afogará a semente do bem plantada em cada alma pelo Senhor. Se seu olho direito ofender a Deus, arranque-lhe isso. Vale mais perder um órgão ou um membro que deixar que todo o corpo se infecte e morra!
- Eu... Não o tinha enfocado desse modo - balbuciou Charlotte, sentindo-se desconfortável pelo ardor com que falava Martha. Podia perceber uma grande dor concentrada naquela sala; não sabia como consolar Martha.
- Deve fazê-lo! -respondeu Martha-. O pecado é onipresente, aninha solapadamente em nossas almas e mentes. O diabo trata de nos controlar através da debilidade da carne. É mais esperto que nós e nunca descansa. Recorda-o, Charlotte, e mantenha-se alerta. Roga a Deus pela salvação de sua alma, lhe peça que a ilumine e a ensine a distinguir ao diabo que espreita em todas as coisas, para que possa afastá-lo de você e permanecer pura. -interrompeu-se e desceu a vista a suas mãos, que repousavam no regaço-. Eu tenho a sorte de conviver com um homem de Deus; ele me guia. Deus quis me ajudar para que possa superar minhas debilidades; foi bondoso comigo e me mostra o caminho a seguir... Não me considero merecedora de semelhante bênção.
- Acalme-se, querida. -O vigário apoiou sua mão no ombro de sua mulher-. Deus nos abençoa na medida de nossos méritos. Não é necessário que se denigra. Deus criou às mulheres para que servissem aos que servem a Ele, e você cumpre perfeitamente sua missão. Sempre está disposta a ajudar aos pobres e os desamparados. Tenho certeza de que Deus o tem em conta.
- Também o temos em conta na terra - apontou Charlotte-. Sarah não deixava de elogiá-la e dizer o muito que trabalhava pelos outros. -Esteve a ponto de voltar a chorar ante a mera menção do nome de sua irmã, mas não queria chorar diante do vigário.
- Sarah - disse Martha e lhe iluminou o rosto com um olhar indecifrável. Aparentava combater uma tortura muito íntima e Charlotte teve piedade dela.
- Neste momento descansa em paz - lhe disse, e apoiou sua mão sobre a dela. Esqueceu sua própria pena para consolar a aquela desventurada mulher-. Se o que nos ensina do céu é certo, não devemos sofrer por ela, mas sim por nós, porque sentiremos falta dela.
- O céu? -repetiu Martha-. Tomara Deus lhe perdoe seus pecados e só tenha em conta suas virtudes e a limpe no sangue de Cristo!
- Amém - respondeu o vigário-. Bem, senhorita Ellison, temos que partir para que possa refletir em privado a respeito do que lhe havemos dito. Por favor, diga a seu cunhado que estou ao seu dispor a qualquer hora. Vamos, Martha, querida... Temos deveres a atender. Bom dia, senhorita Ellison.
- Bom dia, senhor vigário. -Charlotte estendeu a mão à Martha-. Bom dia, senhora Prebble. Minha mãe agradecerá muito seu apoio.Naturalmente, Charlotte contou a sua mãe e ao Emily os pormenores da visita do vigário. Nenhuma das três fez nenhum comentário, como manda a boa educação, mas se deram por inteiradas.Pitt chegou perto das três e, pela primeira vez, Charlotte admitiu que se alegrava de vê-lo.
- Caroline se encerrou em seu quarto e passou a tarde escrevendo cartas para informar aos outros membros da família (padrinhos e primos) da morte de Sarah. Emily se entreteve na cozinha. Charlotte se dedicou a remendar; esse era trabalho do Millie, mas Charlotte queria fazer algo que lhe permitisse esquecer-se de tudo. Millie buscaria outra ocupação, por exemplo, engomar.
- O vigário e Martha se foram e Charlotte desabou em uma das cadeiras estofadas, sentindo-se muito só e desgraçada.
- Boa tarde, Charlotte - disse o inspetor e tomou uma de suas mãos delicadamente. Charlotte não a retirou e, de fato, sua mente se antecipou a seus desejos e imaginou muito mais.
- Boa tarde, inspetor - saudou com certo recato; não queria deixar-se levar por seus sentimentos-. O que posso fazer por você? Trata-se de mais perguntas?
- -Não - sorriu ele tristemente-. Não me ocorre nada mais que perguntar. Simplesmente passei para vê-la. Espero não necessitar uma desculpa para isso.Retirou a mão.
- Charlotte se sentiu aflita e foi incapaz de responder. Aquilo era ridículo. Nenhum homem a tinha perturbado desse modo, salvo Dominic, e com este se tratava de uma confusão absurda e sem futuro. Mas com o Pitt desejava fervorosamente que tudo acabasse como tinha imaginado.
- Há novidades? Algum suspeito?
- Sim, há. -Olhou a cadeira e Charlotte o convidou a sentar-se com um gesto. Pitt o fez e acrescentou-: Mas minhas suspeitas são muito vagas. Não consegui ver as coisas muito claras, talvez volte a ser uma falsa pista.
- Ela queria lhe falar da compaixão que sentia pelo Martha Prebble, de como tinha percebido que sua dor inundava a habitação, e do estranho sentimento de impotência que tinha visto em seu rosto.
- Charlotte, o que s preocupa tanto? Ocorreu algo que não me disse?Pitt esperava como sabendo que Charlotte procurava as palavras adequadas.
- A jovem não sabia como plasmar seus pensamentos em palavras, algo que não estava acostumado a lhe custar muito. Mas era difícil explicar a sensação de sufoco que lhe tinha produzido a visita dos Prebble, sem que parecesse uma tolice ou conseqüência de uma sensibilidade exacerbada. Entretanto, sentir-se-ia muito aliviada se ele a compreendesse.
- O vigário e a senhora Prebble nos visitaram esta manhã - começou.
- Ah - assentiu ele-. Era seu dever. -Franziu o sobrecenho-. Sei que não gosta dele. Me custa conservar a serenidade em sua presença. -Sorriu-. Suponho que para você é ainda pior.
- Charlotte o olhou e por um momento temeu que se estivesse zombando dela. Algo disso havia, mas também muita ternura. A doçura e a calidez a fizeram esquecer Martha Prebble por uns instantes.
- Por que teria que entristecê-la uma simples visita? -Pitt era implacável.
- Charlotte se voltou para evitar seu olhar.
- Martha me inspira sentimentos ambivalentes... -reconheceu-. Quando fica a falar do pecado me é deprimente. Volta-se para imagem e semelhança do vigário, vê o demônio por toda parte, inclusive onde só há um pouco de imaturidade que passará com o tempo. As pessoas como o vigário parecem dispostas a danificar qualquer diversão, como se divertir-se fosse pecado. Entendo que alguns prazeres afastam uma pessoa do caminho reto, mas...
- Talvez pense que esse é seu dever - sugeriu Pitt-. É mais simples que pregar a caridade e sem dúvida mais fácil que pô-la em prática.
- Suponho que assim é. Se vivesse com alguém como ele imagino que me sentiria como Martha Prebble. Talvez seu pai também fosse vigário.
- E qual é o outro sentimento? -perguntou Pitt-. Disse que eram ambivalentes.
- A piedade é claro. E acredito que também a admiro. Ela tenta pôr em prática tudo o que seu absurdo marido prega. Ele se limita a falar. Dedica muito tempo a visitar os necessitados e cuidar dos doentes e os marginalizados. Às vezes me pergunto até que ponto acredita no que diz sobre o pecado ou se o faz por costume e porque o considera sua obrigação.
- É uma mulher que não se conhece muito a si mesma. Mas prossiga Charlotte. Por que lhe violentou tanto sua visita de hoje? Sempre foram assim, não podia esperar nada diferente deles.
- Por que sentia um desgosto tão intenso?
- Ela mencionou a necessidade do castigo, disse coisas como se seu olho direito ofende a Deus, arranque-lhe isso e falava de cortar membros e outras atrocidades. Parecia tão... Tão exaltada, como se em realidade estivesse aterrada. Falou de lavar-se no sangue de Cristo... -Olhou-o-. E logo falou de Sarah como se fosse o próprio demônio; não se referia aos defeitos habituais de todo o mundo... Era como se soubesse algo em particular. Suponho que isso é o que me entristeceu tanto... o intuir que falava como se soubesse algo que eu ignorava.
- Charlotte, por favor, não se zangue comigo, mas acredita que Sarah ocultava algo, um segredo que não estivesse disposta a revelar?
- Charlotte se sentiu horrorizada ante essa idéia, mas recordou que Sarah havia dito que precisava falar com Martha a sós; talvez lhe tivesse confiado seus problemas mais íntimos. Às vezes é mais fácil falar com um estranho que com um membro da própria família.
- Pode ser - admitiu com reticência-, mas não acredito. Não me ocorre o que poderia lhe haver contado Sarah, mas cabe a possibilidade...
- Pitt se levantou e se aproximou dela. Charlotte sentiu sua cálida presença. Não queria afastar-se dele e inclusive desejou que não fosse indecoroso e impróprio lhe tocar.
- Talvez fosse algo intranscendente - sugeriu ele-, algo que para você carecesse de importância, mas que para Martha Prebble, habituada aos ensinos do vigário, se fizesse uma montanha, um pecado imperdoável. Tenho certeza de que Deus não é tão estrito como nosso vigário.
- Charlotte sorriu a seu pesar.
- Certamente. Deus é amor, e o vigário não quis a ninguém em toda sua vida. -Suas próprias palavras a desconcertaram por sua audácia-. Nem sequer à Martha. -Tomou ar-. Agora entendo por que está tão desesperada apesar de todas suas boas obras. Por isso está tão obcecada com o pecado: não a querem e não pode querer...
- Pitt lhe tocou o braço com ternura.
- E você, Charlotte, continua amando Dominic?
- Percebi logo - respondeu com um matiz de tristeza; a lembrança lhe era dolorosa-. Eu a quero... Como ia a não me dar conta de que amava a outro?
- Não me respondeu. Ainda lhe quer?
- Não sabe que não? Ou já não lhe importa?
- Tinha quase certeza de sua resposta, mas precisava ouvi-la dizer.
- Pitt a puxou pelo braço e a virou para olhá-la nos olhos.
- Importa-me. Não quero ser o segundo da lista. -Seu tom implicava uma pergunta.
- Charlotte o olhou com doçura e se sentiu impressionada pela força de seu olhar e os sentimentos que se refletiam no rosto do Pitt, mas pouco a pouco se entregou na ternura de seus próprios sentimentos por ele. Deixou de fingir indiferença e se deixou levar.
- Não é o segundo da lista - afirmou, e lhe acariciou a face timidamente-. Dominic foi só um sonho. Agora estou acordada e você é o primeiro da lista.
- Pitt pegou sua mão e a beijou, mantendo-a perto de suas faces e seus lábios.
- E se atreveria a se casar com um simples polícia?
- Dúvida de minha coragem, senhor Pitt? Suponho que pelo menos não duvidará de meus sentimentos.
- Pitt esboçou um amplo sorriso.
- Então será melhor que me prepare para travar uma batalha com seu pai. -Franziu o sobrecenho-. De qualquer modo, será prudente esperar que tudo isto esteja resolvido e a que tenha transcorrido certo tempo.
- Acha que conseguirá resolvê-lo?
- Espero que sim. Tenho a sensação de que estamos muito perto de conseguir. Ronda-me uma idéia que não me tinha ocorrido antes. Ainda não tenho muito claro o que é, mas está em minha cabeça. É uma espécie de sombra cheia de dor.
- Tome cuidado. Ainda não matou a um homem, mas se vê em perigo...
- Tomarei cuidado. Agora devo ir. Tenho que fazer várias perguntas e contrastar detalhes para poder pôr um rosto a essa sombra.No dia seguinte todos estavam ocupados preparando o funeral de Sarah. Millie levou um recado de que a senhora Prebble tinha adoecido e se via obrigada a guardar cama.
- A Charlotte pareceu ver a sombra de o estrangulador rondar em torno dela, mas em seu interior tudo era claro e se sentia feliz. Acompanhou-o até a porta.
- Meu deus, isto é muito! -exclamou Caroline com desespero-. Ia se encarregar dos detalhes, sobre tudo na igreja. E nem sequer sei o que conseguiu fazer antes de cair doente! -deixou-se cair sobre uma cadeira-. Suponho que terei que escrever uma lista dos encargos e enviar a uma criada a sua casa. Parece um pouco abusivo, se a pobre mulher estiver doente, mas que outra coisa posso fazer? E ainda por cima está chovendo!
- Mamãe não podemos enviar uma criada - protestou Charlotte-. O menos que podemos fazer é ir nós mesmas. A pobre visita todos os doentes da paróquia, leva-lhes presentes e lhes faz companhia. Seria ofensivo se agora que está prostrada nos limitamos a enviar a uma criada. Terá que ir uma de nós e lhe levar algo.
- Terá muitos presentes - apontou Emily-. Certamente não somos as únicas em saber que se encontra mal. Toda a paróquia deve estar ao corrente. Já sabe quão rápido correm os rumores.
- E é possível que todos pensem como você e ninguém a visite – respondeu Charlotte-. De qualquer modo, essa não é a questão.
- Deveríamos lhe levar algo embora sua casa estivesse abarrotada de presentes, para lhe demonstrar que nos preocupamos com ela.
- Emily arqueou as sobrancelhas.
- Desde quando se preocupa por ela? Pensei que Martha lhe fosse indiferente e que o vigário a tirava de gonzo.
- E não se equivoca. Por isso precisamente quero lhe levar algo. Essa mulher não pode evitar ser antipática. Todas o seríamos se estivéssemos casadas com o vigário!
- Eu seria bastante mais que antipática - afirmou Emily-. Ter-me-ia tornado louca. Esse homem é um chato!
- Emily, por favor! -Caroline estava à beira do pranto-. Estão-me fatigando com seu bate-papo. Emily assegure-se de que vamos avisando a toda a gente que tínhamos que avisar, repassa a lista de novo e calcula quantas pessoas acudirão; logo vá à cozinha e fala com a senhora Dunphy para que prepare algo ligeiro. Charlotte vá à cozinha e busca algo que possa levar ao Martha, se isso for o que quer. E, pelo amor de Deus, averigua com tato que falta preparar na igreja. E não esqueça perguntar o que a aflige, se lhe parecer oportuno.
- Sim, mamãe. O que posso lhe levar?
- Como não sei do que está doente, é um pouco difícil escolher um presente. Vá ver se a senhora Dunphy fez alguma bolacha de ovo. Prepara-os muito bons e sei que a cozinheira do Martha é um desastre para os doces.
- Mas a senhora Dunphy não tinha nenhuma bolacha de ovo preparado e demorou umas horas em preparar um. Charlotte vestiu a capa e o chapéu e passou pela cozinha a recolhê-lo.
- Aqui tem senhorita Charlotte. -A senhora Dunphy lhe deu um cesto coberto com um guardanapo-. Aí leva a bolacha, também pus um pote com fruta confeitada e um pouco de chá. Pobre mulher! Espero que se recupere logo. Tanto desgosto acabará lhe fazendo mal. Conhecia todas as garotas assassinadas. E ela trabalha muito pelos pobres e os marginalizados. Nunca descansa. Acredito que é hora de que alguém lhe ofereça um pouco de ternura.
- Sim, senhora Dunphy, obrigada. -Charlotte pegou o cesto-. Estou segura de que agradecerá o presente.
- Diga-lhe que espero que se recupere logo, fá-lo-á, senhorita Charlotte?
- É claro. -virou-se para sair e deu um pulo ao ver em cima de uma mesa um arame fino com um laço em um extremo. Sentiu-se tão assustada que lhe pareceu que alguém a ameaçava, como se fosse o mesmo arame com que se segou a vida daquelas jovens.
- Senhora Dunphy... Diga-me - balbuciou-. Que demônios é...?
- A senhora Dunphy seguiu seu olhar.
- OH, senhorita Charlotte! -sorriu-. É só um vulgar cortador de queijo! Por Deus! Se soubesse algo mais de cozinha o teria reconhecido em seguida. O que achava que era? Virgem Santa! Pensava que era um arame para estrangular? Pelo amor do céu, há um em quase todas as cozinhas! Corta fatias finas sem que o queijo se rompa; as facas não servem porque o queijo fica pego à lâmina... Senhorita Charlotte, não deveria sair sozinha. Não demorará a anoitecer e não estranharia que deixasse de chover e se formasse névoa.
- Tenho que ir, senhora Dunphy. A senhora Prebble está doente e, além disso, temos que preparar tudo para o funeral de Sarah.A criada a conduziu diretamente ao quarto de Martha. O quarto, muito escuro, e cheio de velhos móveis, era bastante desconfortável. Não se parecia em nada ao quarto de Charlotte, decorada com adornos, quadros pintados por ela, livros com ilustrações e relíquias de sua infância.A jovem se sentou na beira da cama e pôs o cesto entre ela e Martha.
- Martha estava na cama com um exemplar dos sermões do John Knox entre as mãos. A via onerosa, como se acabasse de despertar de um pesadelo e ainda se sentisse rodeada de sombras. Ao ver a Charlotte lhe dedicou um sorriso com grande esforço.
- A senhora Dunphy adotou uma expressão grave e Charlotte temeu que fora romper a chorar. Deu-lhe uns tapinhas no braço e partiu o mais rápido que pôde. Fora, o ambiente era úmido e frio, de modo que caminhou a bom passo, com a capa bem fechada e junto ao pescoço. Assim que enfiou Cater Street deixou de chover, mas ao chegar à casa dos Prebble, não caía nenhuma gota, embora o céu continuasse coberto de nuvens.
- Lamento que se encontre mal, senhora Prebble - disse-. Trouxe-lhe algumas coisas. Espero que a animem um pouco. -Retirou o guardanapo para lhe mostrar o conteúdo do cesto-. Minha mãe e Emily lhe mandam uma afetuosa saudação e a senhora Dunphy, nossa cozinheira, formula votos para que se recupere logo.
- É muito amável. -Martha tentou sorrir-. Por favor, lhes agradeça de minha parte; e também a sua mãe e Emily, é claro.
- Posso fazer algo por você? Quer que escreva alguma carta ou que me ocupe de algum encargo?
- Viu-a o médico? Tem o semblante muito pálido.
- Não, não acredito que seja necessário incomodá-lo.
- Tenho certeza de que não o incomodaria. Visitar os doentes é parte de seu trabalho.
- Mandá-lo-ei chamar se vir que não me reponho logo.
- Charlotte deixou o cesto no chão.
- Sinto ter que falar disto, estando você doente e tendo feito tanto por nós, mas mamãe precisa saber o que fica por preparar na igreja, para o funeral de Sarah.
- O rosto de Martha se contraiu e lançou um olhar angustioso. Charlotte teve a incomoda sensação de ter aumentado sua dor.
- Não tem do que preocupar-se. Por favor, diga a sua mãe que esse assunto está em ordem. Por fortuna caí doente depois de ter deixado tudo preparado.
- Tem certeza? Acredito que havia muito por fazer. Espero que o excesso de trabalho não lhe prejudique.
- Não acho. É o menos que podia fazer. Corresponde-nos... -sua voz se quebrou e se umedeceu os lábios- fazer quanto possamos pelos mortos. Já não pertencem a este mundo, abandonaram a corrupção da carne e enfrentam ao julgamento divino. Serão desencardidos no sangue de Cristo e os escolhidos se sentarão aos pés de Deus, para sempre. O pecado já não os tentará...
- Charlotte franziu o sobrecenho, sem saber o que responder. De qualquer modo, Martha parecia falar mais para si mesma que para sua visitante.
- Nosso dever é limpar a escória que encontramos a nosso passo - prosseguiu Martha com o olhar fixo em um ponto da parede, situado por cima do ombro do Charlotte-. Temos que eliminar aos corruptos e os relaxados e benzê-los com a palavra divina para desencardi-los. Esse é nosso dever, nosso dever para com os mortos e para com os vivos.
- Sim, é claro. -Charlotte ficou em pé-. Acredito que será melhor que descanse um pouco. Parece-me que tem um pouco de febre. -inclinou-se e pôs sua mão na fronte do Martha, que estava quente e suarenta. Charlotte retirou delicadamente uma das mechas-. Tem febre. Quer que lhe traga algo? Um caldo de carne? Ou prefere um copo de água?
- Não, obrigada. -Martha ergueu a voz e se voltou arrastando os lençóis.
- Charlotte olhou a cama; estava mal feita. Pensou que devia resultar muito incômoda. Os travesseiros pareciam deslocados e já não estavam macios.
- Permita-me que lhe faça a cama - se ofereceu-. Deve ser muito difícil descansar assim.
- Ficou mãos à obra sem esperar resposta, já que estava desejando fazer algo por aquela mulher que lhe permitisse despedir-se e partir. Inclinou-se e tentou arrumar os lençóis. Endireitou-a para manobrar melhor e para sacudir os travesseiros e depois voltou a recostá-la rodeando-a com os braços. Para acabar colocou a manta e a colcha.
- Espero que agora esteja melhor - disse.
- Martha parecia sufocada. Ruborizou-se e seus olhos olhavam febris. Charlotte se preocupou com ela.
- Não tem bom aspecto - disse, enrugando a fronte. Voltou a inclinar-se para tomar a temperatura na testa. - Tem colônia? -perguntou ao mesmo tempo em que olhava ao redor. O frasco estava em uma mesinha, junto à janela. Foi buscá-lo e de passagem pegou um lenço-. Refrescarei-lhe um pouco a testa. Talvez assim possa descansar melhor. Quando alguém não se encontra bem, o melhor é dormir.Quinze minutos depois Charlotte estava na rua de novo. Tinha deixado Martha reclinada na cama, com os olhos afundados, as faces ardendo e gotas de suor escorrendo na sua fronte. Esperava que o vigário mandasse chamar o médico em seguida.Era uma noite de cães e Cater Street parecia interminável. Era melhor pensar em algo alegre para que o trajeto se fizesse mais curto e a noite menos fria. Sorriu ao recordar no dia anterior e ao Pitt. Seu pai não se sentiria muito feliz de ver sua filha casada com um homem de uma classe social inferior, mas provavelmente se alegraria aliviado de poder casá-la com alguém. Especialmente se ela fosse tão insuportável como afirmava a avó. De qualquer modo, opinasse o que opinasse seu pai, estava resolvida a casar-se com Pitt. Não se havia sentido tão certa de algo em toda sua vida. Ao pensar nisso, experimentava um ardor capaz de fazer desaparecer a névoa e o frio de um entardecer de novembro.Tolices! E se fossem? Ainda era cedo. Podia haver outros viandantes no Cater Street. Não devia ser a única mulher que voltava para casa. De qualquer modo, apertou o passo. Era absurdo e irritante pensar que aqueles passos pudessem ter algo que ver com ela. Ainda soavam bastante longe e pareciam mais os de uma mulher que os de um homem.E se se tratava de um homem? Conhecia virtualmente a todos os homens que viviam nesse bairro; podia tratar-se simplesmente de um amigo ou de um conhecido. Inclusive podia ser alguém que se oferecesse a acompanhá-la a casa. A névoa era muito entupida, como uma coroa de mortos. por que pensava em coroas de mortos? Porque dentro de pouco iriam enterrar ao Sarah. Pobre Sarah...! Deus! Talvez Sarah tivesse estado apressando-se por essa mesma rua, ouvindo uns passos até que... Não tinha sentido pensar nisso. Ver-se-ia muito ridícula se punha a correr? De qualquer modo, o que importava se fizesse algo ridículo?Pelo menos tentaria ver o rosto daquele homem... Se fosse um homem. Reconhecê-lo-ia e poderia gritar com todas suas forças, gritar seu nome para que se ouvisse em todas as casas do Cater Street... Casas! Claro, poderia entrar na próxima casa, cruzar o jardim e bater na porta até que alguém acudisse. O que importava se tomavam por uma histérica? Alguém a acompanharia a casa. Todos a considerariam uma garota assustadiça, mas não lhe importava.
- Os passos soavam mais próximos. Não permitiria que tomasse de surpresa. Voltou-se para encarar-se com ele... Não era mais alto que ela, mas tinha as costas mais longas. Avançou até ficar debaixo da luz de uma lâmpada. Por Deus! Era Martha Prebble, simplesmente Martha Prebble.
- Voltou a acelerar. Os passos ressoavam cada vez mais perto. Charlotte levava o cesto em uma mão. Conteria algo que pudesse utilizar como arma? Um copo ou algo pesado? Não. Algum bote de fruta confeitada? O cesto não continha nada.
- Charlotte caminhou um pouco mais rápido.
- Acaso eram passos o que ouvia detrás dela?
- Fora fazia frio e a névoa era muito espessa. Os paralelepípedos molhados da rua amorteciam o som de seus passos e as luzes eram difusas, formando uma miríade de luas amarelas. Estremeceu-se e fechou ainda mais sua capa.
- Martha não respondeu e Charlotte evitou olhá-la nos olhos, porque não lhe ocorria nada mais que dizer.
- Martha! -exclamou Charlotte com alívio-. Grande susto me deu! Que demônios faz fora da cama...? Necessita ajuda? Permita-me...Charlotte ficou paralisada.
- Mas o rosto de Martha estava totalmente transtornado e irreconhecível; seus olhos brilhavam e seus lábios estavam apertados. Levantou seus braços e Charlotte pôde ver o arame prateado do cortador de queijos que levava entre as mãos.
- Maldita pecadora! -gritou Martha com os dentes apertados. Pela comissura dos lábios lhe escorregava uma baba e tremia sem parar-. Criatura do inferno! Tentou-me com seus brancos braços e com sua carne, mas não vencerá! O Senhor preferiria não te haver criado se só existe para tentar a um de seus fiéis e para induzi-lo ao pecado. Teria sido melhor que lhe pendurassem uma pedra no pescoço e a jogassem no mar. Destruí-la-ei tantas vezes como o tenta com suas doces palavras e seu toque pecaminoso. Não cairei na tentação! Sei quanto arde seu corpo e conheço seus vícios secretos. Destruirei a todas suas criaturas até que me deixem em paz. Satã nunca vencerá!
- Uma mescla de amor, solidão e desejos abandonados, reprimidos durante longo tempo afloravam em forma de violência irrefreável.
- OH, não, Martha, por favor! -exclamou Charlotte quando seu medo se transformou em piedade. - Tudo foi um mal-entendido! Pobrezinha...Já não havia nada mais que dizer.Durante um lapso que lhe pareceu uma eternidade, Charlotte lutou, mas Martha a segurou com mãos de aço. Então, de repente a silhueta do Pitt surgiu de entre a névoa e atrás dele, dois agentes. Imediatamente imobilizaram Martha lhe colocando os braços às costas.Pitt se aproximou dela e tomou seu rosto entre suas mãos.
- Charlotte se apoiou contra um muro, sem fôlego e tremendo; seus joelhos lhe fraquejavam e em todo o corpo sentia aguilhões de dor.
- Charlotte gritou com desespero, repetindo uma e outra vez o nome da Martha. E a seguir lhe jogou o cesto no rosto, esperando que se assustasse ou tropeçasse. Mas foi inútil.
- Mas Martha esticou o arame entre suas mãos e começou a avançar para Charlotte, que se achava a poucos metros de distância.
- Pequena idiota! -exclamou com ternura-. Por que foi vê-la sozinha? Se não houvesse voltado para visitá-la e me houvessem dito aonde tinha ido, jazeria morta na rua, como Sarah e as demais...
- Ela assentiu e engoliu em seco. As lágrimas escorregavam por suas faces.
- Sim, comportei-me como uma idiota - ofegou.
- É... É... -Não achava uma palavra suficientemente contundente.
- Repentinamente soaram uns passos e o vigário emergiu de entre a névoa.
- O que ocorre aqui? -inquiriu-. Do que se trata? Há alguém ferido?
- Pitt lhe olhou com raiva e amargura.
- Não há ninguém ferido, senhor Prebble... No sentido ao que você se refere. O dano vem de antes, receio.
- Não sei a que se refere. Explique-se! Martha! O que fazem esses policiais com Martha? Teria que estar em casa, em cama. Encontra-se doente. Saí em sua busca quando descobri que não estava no quarto. Já podem soltá-la. Eu a levarei a casa.
- Não, senhor Prebble, não a levará. Receio que a senhora Prebble está presa e ficará conosco.
- Presa? -O vigário torceu o gesto-. Tornou-se louco? Martha não pode ter feito nada mau, é uma boa mulher. Se tiver cometido alguma tolice... –Seu tom se tornou mais duro, com o aborrecimento, como se tudo aquilo lhe fosse incompreensível-. Ela não se encontra bem...
- Não, senhor Prebble, não se encontra bem. Está tão doente que assassinou a cinco mulheres.
- O vigário o fulminou com o olhar e seu rosto se contraiu em uma careta de cólera, negando-se a acreditar. Voltou-se para a Martha, que estava afundada, tinha um olhar de fera encurralada e os lábios e o queixo babado. Os agentes a seguravam com firmeza. O vigário se voltou para o Pitt de novo.
- Está possuída! -gritou fora de si-. É uma pecadora! A fraqueza moral tem nome de mulher!
- Pitt se enrijeceu de pura indignação.
- Fraqueza? -inquiriu-. Porque ainda sente algo e você não? Porque é capaz de amar e você não? Porque conhece o desejo, o carinho e a compaixão e você os desconhece por completo? Parta senhor Prebble, e reze se puder!
- Sem pronunciar palavra, o vigário se internou na névoa até desaparecer.
- Compadeci-me dela - disse Charlotte em voz baixa e inspirou. – Ainda me compadeço dela! Não sabia que as mulheres podiam experimentar esses sentimentos... por outras mulheres. Por favor, não se zangue comigo!
- OH, Charlotte; eu... -Mas preferiu calar-. Levante-se. Adoecerá se continuar sentada no chão. Está molhado.
- Ajudou-a ficar de pé enquanto as lágrimas escorriam por seu rosto. Pitt a olhou e a estreitou entre seus braços, como se não fosse soltá-la nunca.
- Sei que se compadece dela - sussurrou-. Deus! Eu também.
Anne Perry
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